UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE ISIS DE ALBUQUERQUE PERCEPÇÕES DA PERDA DE LIBERDADE PARA JOVENS EM CONFLITO COM A LEI: UM ESTUDO DE CASO NA UNIDADE DE RECEPÇÃO LUIS BARROS MONTENEGRO FORTALEZA 2014 ISIS DE ALBUQUERQUE PERCEPÇÕES DA PERDA DE LIBERDADE PARA JOVENS EM CONFLITO COM A LEI: UM ESTUDO DE CASO NA UNIDADE DE RECEPÇÃO LUIS BARROS MONTENEGRO Dissertação submetida ao Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade. Área de concentração: Políticas Públicas e Sociedade. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosemary de Oliveira Almeida FORTALEZA 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará Sistema de Bibliotecas Albuquerque, Isis de. Percepções da perda de liberdade para conflito com a lei: um estudo de caso na recepção Luis Barros Montenegro [recurso / Isis de Albuquerque. – 2014. CD-ROM. 120 f.: il. (algumas color.); jovens em unidade de eletrônico] 4 ¾ pol. CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm). Dissertação (mestrado acadêmico) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade, Fortaleza, 2014. Área do conhecimento: Políticas Públicas e Sociedade. Orientação: Prof.ª Dra. Rosemary de Oliveira Almeida . 1. Privação de liberdade. 2. Juventude. 3. Percepções. I. Título. À minha mãe, Nonata, dedico este trabalho. AGRADECIMENTOS À Deus, por ter me feito tão merecedora. À minha mãe Nonata, mulher guerreira, que sustenta a família e é feliz com as coisas simples da vida. À minha família, que proporcionou as condições necessárias para que eu me dedicasse exclusivamente ao Mestrado. À Tia Glaciene (in memorian) por saber que esta conquista seria vista por ela como motivo de grande orgulho. A Vitor Teixeira por ter sido tão companheiro nessa minha jornada, oferecendo-me sempre força e amor. À professora Rosemary Almeida, pela paciência e pelos ensinos, pela dedicação e disponibilidade em me orientar. Aos professores Gil Jacó e Luiz Fábio Paiva, pelo conhecimento compartilhado, a disponibilidade de fazer parte da minha banca de defesa e pelas contribuições ao meu trabalho. Ao curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade (MAPPS), especialmente à coordenação e aos professores. À amiga Lourdes Falcão, Assistente Social da URLBM, que foi imprescindível na pesquisa. A toda equipe da URLBM. À Ana Paula, Camila e Guilherme, Equipe do Projeto Justiça Já, pela forma como me acolheram e pela alegria transmitida. Às mães de adolescentes internos na URLBM, que tantas vezes me fizeram segurar as lágrimas ao ver seus choros sofridos. Aos adolescentes internos na URLBM que mesmo no silêncio do olhar me mostraram tanta coisa. Aos adolescentes entrevistados, que meu desejo de felicidades dito ao final de cada entrevista se realize. Às mães entrevistadas pela atenção e confiança que me foi referida. A José Valente Neto, Defensor Público lotado na Delegacia da Criança e do Adolescente, pela disponibilidade em participar desta pesquisa. Ao meu amigo João Vitor pelo suporte dado nas traduções. A Antônio Lima (Tony) por toda a ajuda que me foi dada. À Barbara Andrade por todas nossas conversas, dicas, desabafos e risadas, que muito contribuíram para realização do trabalho. À Andrea Luz, Coordenadora do Núcleo de Pesquisas Sociais da UECE, por todos os momentos de aprendizagem que o NUPES me proporcionou. RESUMO Os debates sobre a redução da maior idade penal, em que a privação de liberdade juvenil aparece como resoluto para a redução da violência praticada por adolescentes, motivaram a produção deste trabalho. Frente às discussões postas na sociedade é fundamental compreender quais são as percepções sobre a perda de liberdade para os adolescentes em conflito com a lei. Buscou-se analisar como juventude, violência, sociabilidade violenta, polícia, punição, família e amizades influenciam o processo de construção dessas percepções. Para tanto, realizou-se um estudo a partir das falas proferidas e o cotidiano vivenciado por adolescentes, do sexo masculino, na Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro. Tal instituição é gerida pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará e funciona diuturnamente acolhendo adolescentes de ambos os sexos, pelo prazo máximo de 24 horas, com a finalidade de apresentá-los à Justiça. Como ferramenta metodológica a pesquisa utiliza às técnicas de: entrevistas semiestruturadas e observação em campo. O estudo revela que os adolescentes têm conhecimento preestabelecido sobre o sistema socioeducativo. Destarte possuem uma previsibilidade sobre para qual medida socioeducativa serão encaminhados e até em qual Centro Socioeducacional irão cumpri-la caso recebam uma medida de internação. Conclui-se que para os adolescentes pesquisados a privação de liberdade possui caráter dicotômico, pois na dimensão instituída – racionalidade – é percebida como um “ruim”, mas, ao mesmo tempo, tem sua razão de ser na dimensão instituínte – subjetividade - como momento possível de se instituir, criar formas de sobrevivência, adquirir conhecimento, gozar até mesmo da estadia “para comer, se proteger por um tempo”. Palavras-chave: Privação de liberdade. Juventude. Percepções. RESUMEN Los debates sobre la reducción de la edad para el mayor de edad penal donde la privación de libertad juvenil surge de modo resoluto para la reducción de la violencia practicada por los adolescentes, motivaron la producción de este trabajo. Ante a las discusiones puestas en la sociedad es fundamental comprender cuales son las percepciones sobre la pérdida de libertad para los adolescentes en conflicto con la ley. En la investigación buscamos analizar como la juventud, violencia, sociabilidad violenta, policía, punición, familia y amistades influencian el proceso de construcción de esas percepciones. Por tanto, se realizó un estudio a partir de las hablas proferidas y del cotidiano vivenciado por adolescentes, de sexo masculino, en la Unidad de Recepción Luís Barros Montenegro. Tal instituición es dirigida por la Secretaría de Trabajo y Desarrollo Social del Estado de Ceará y funciona en el periodo diurno acogiendo adolescentes de ambos sexos en un plazo máximo de 24 horas, con la finalidad de presentarles a la Justicia. Como herramienta metodológica la investigación utiliza las técnicas de: entrevistas semiestructuradas y observación en campo. El estudio revela que los adolescentes tienen un conocimiento preestablecido sobre el sistema socioeducativo, de este modo tanto poseen una previsibilidad para cual medida socioeducativa serán encaminados, incluso, el Centro Socioeducacional que irán cumplirla caso reciban una medida de internación. El estudio concluye que, para los adolescentes investigados, la privación de libertad tiene carácter dicótomo, pues en la dimensión instituída – racionalidad – es percibida como un “infierno” , “malo” pero al mismo tiempo tiene su razón de ser en la dimensión instituyente – subjetividad – como momento posible de instituirse, crear maneras de sobrevivencia, adquirir conocimiento, disfrutar aun la estadía “para comer, protegerse por un corto tiempo”. Palabras Claves: Privación de libertad. Juventud. Percepciones LISTA DE FIGURAS Figura - 1 Adolescente é morto ao deixar unidade de recepção, em Fortaleza (11/04/2013). 42 Figura - 2 Adolescente executado em Centro de Triagem - ATO DE VINGANÇA (19.07.2006). 45 Figura - 3 Local onde os adolescentes são postos enquanto aguardam para realizar procedimento policial e para serem ouvidos pelo Promotor de Justiça. 85 Figura - 4 Espaço de espera para audiência com o Juiz. 96 Figura - 5 Dormitório URLBM. 96 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico - 1 Faixa etária dos adolescentes internos na URLBM. 58 Gráfico - 2 Sexo dos adolescentes internos na URLBM. 60 Gráfico - 3 Origem dos adolescentes internos na URLBM. 63 Gráfico - 4 Município de procedência de adolescentes da URLBM. 64 Gráfico - 5 Motivos de apreensão de adolescentes da URLBM. 66 Gráfico - 6 Encaminhamento de adolescentes da URLBM. 70 LISTA DE TABELAS Tabela - 1 Tabela estratificada por sexo e faixa-etária da população 61 de Fortaleza SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 PARA ONDE VÃO OS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM 21 A LEI? ENCAMINHAMENTOS, DISPUTAS E SUJEITOS DE INÍCIO: LÁ FORA COM AS MÃES... E SURGEM AS 22 AMIZADES DEPOIS: A CHEGADA À UNIDADE ..................................................... 35 2.1 2.2 3 3.1 4 4.1 4.2 5 ADOLESCENTES NA URLBM: ENTRANDO NO JOGO DO 49 INSTITUÍDO E INSTITUINTE... OS JOVENS DA URLBM: QUEM SÃO? 12 53 PERCEPÇÕES SOBRE VIOLÊNCIA, POLÍCIA E PUNIÇÃO 74 PASSADA A PRÁTICA VIOLENTA DO ATO INFRACIONAL E A 80 APREENSÃO PELA POLÍCIA: A INTERNAÇÃO O “NÃO FAZER NADA” NA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE COMO 93 VIABILIZADOR DAS PROSAS, CONVERSAS E CANTORIAS “AQUI CADA DIA É O CAPÍTULO DE UMA NOVELA... SÓ 98 FAZ MUDAR OS PERSONAGENS, MAS AS HISTÓRIAS SÃO QUASE AS MESMAS, SÃO MUITO PARECIDAS”. CONSIDERAÇÕES FINAIS 114 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 118 1 INTRODUÇÃO “Vão passar o trem em mim, vão passar o trem em mim”. Essas palavras, ditas em um momento de atendimento socioassistencial, por um jovem interno em um centro socioeducativo de Fortaleza, fizeram-me instantaneamente acreditar que havia vários sentidos naquela fala, cercada por um mundo de jovens em conflito com a lei, que me instigava a conhecê-lo. 1 Foi assim que, em uma visita ao Centro Educacional São Miguel para coleta de dados sobre os Serviços Sociais de Alta Complexidade, iniciou minha trajetória acadêmica, mais propriamente direcionada à pesquisa, durante os primeiros semestres da graduação em Serviço Social. No “entra e sai" de uma pequena e inadequada sala de atendimento, sem nenhum tipo de sigilo, os jovens narravam seus anseios e faziam telefonemas a seus familiares, em especial às suas mães. Ouvi um jovem relatar à Assistente Social que ele estava em uma ala e dormitório onde havia apenas jovens do território (bairro) inimigo ao que ele residia. Ele dizia repetidamente e em bom tom “Vão passar o trem em mim, vão passar o trem em mim”. Eu já estava colhendo as informações com a assistente social, para minha pesquisa, quando um instrutor educacional trouxe esse jovem pelo braço. Foi impossível não ouvir e não notar que aquele mundo possuía sua própria linguagem (O que significa trem? O que é passar o trem?), seu próprio território (alas e dormitórios reproduzem os espaços sociais e os conflitos existentes na cidade) e princípios (a exemplo do respeito e socorro à figura materna). Linguagem, território, princípios e aquele jovem me fizeram notar que ali havia um mundo rico e complexo, que me estimulava a compreendê-lo. A juventude em conflito com a lei, ainda na sua adolescência, apenada com o cerceamento da liberdade, surgia assim, como objeto de estudo, que foi se constituindo diante da inquietação em relação aos trabalhos acadêmicos e aos meus afetos e buscas individuais. Para mim, o elevado índice de práticas infracionais cometidas por adolescentes não se explicava, como o senso comum apregoava, em razão apenas da ausência de segurança pública efetiva, da rebeldia e da 1 O Centro Educacional são Miguel atende, em regime de internação provisória, adolescentes do sexo masculino em conflito com a lei, enquanto aguardam a conclusão do processo de apuração do ato infracional pelo Juizado da Infância e da Juventude. Este é situado na cidade de Fortaleza, Rua Menor Jerônimo s/n – Passaré. 13 irresponsabilidade juvenil. Na perspectiva de minha individualidade, ao tomar conhecimento de inúmeros casos de pessoas próximas, vítimas dessa violência juvenil, indignava-me com a agressividade e crueldade empregada pelos jovens. Este fora meu primeiro embate com o objeto de pesquisa: como separar meu lado individual temeroso e indignado, inserido na coletividade a mercê das peripécias da sociedade moderna violenta, de meu lado cientista social? Como buscar pensar relacionalmente (BOURDIEU, 1996) e compreender o sistema complexo que envolve não somente a prática do ato infracional em si, mas o mundo que eu já acreditava existir? 2 Assim, concluí - à época da graduação - que os jovens possuíam pelo menos duas concepções de juventude: uma que a compreendia como aproveitar a vida, passear, jogar bola; e outra relacionada ao modo de pensar as responsabilidades, os comportamentos e as mudanças de vida impostas pela criminalidade que fizeram com que os jovens passassem a se perceberem como adultos. Já em relação à punição, também tema de interesse na graduação, compreendi que os jovens a significavam como ter sua liberdade cerceada pela medida socioeducativa de internação. Mediante essas representações e concepções, marcadas pelas práticas de imersão dos adolescentes na criminalidade, passei a pensar sobre a ação do Estado no que tange a ação preventiva, em especial baseada na educação, mas também no que tange a ação repressiva da polícia e às formas inquisitória e ressocializadora dos aparelhos socioeducativos. Essas ações do Estado, a meu ver, inoperantes ou pouco eficientes, têm como consequência a criação de levantes sociais em busca do isolamento social dos indivíduos, que não se adéquam aos códigos e símbolos de convivência padrão. Nesta perspectiva surge, de maneira forte, a representação social de que os adolescentes em conflito com a lei, ou seja, os “desajustados” sociais devem ser afastados do convívio social como condição para a manutenção da paz e da ordem social. A ideia do encarceramento de adolescentes ganha ainda mais força em um país como o Brasil, que possui um sistema jurídico inquisitório e punitivo (MISSE, 2003), em que se julga o indivíduo e não o ato cometido. Além disto, considerando a 2 Graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará. Período 2008-2011. Trabalho monográfico intitulado: Juventude e Punição: Sob a Ótica de Jovens Internos no Centro Educacional Patativa do Assaré./ Isis de. Albuquerque. – 2011. 85 f.,enc.;30cm. 14 qualidade da educação pública brasileira e o grau de influência da mídia/imprensa na formação da consciência da sociedade brasileira, tem-se noção das razões que levantaram a discussão sobre a busca pela redução da maior idade penal como principal tema de debate, tanto no campo da política (alteração no código) como no campo social (entre os defensores da redução e os defensores do direito da criança e do adolescente). Estando a privação de liberdade tão em voga, compreendi que ela era considerada por alguns como a solução para todos os tipos de conflitos violentos e, para outros, como instrumento de subterfúgio do Estado para não operacionalizar aquilo que fora legitimado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA 3 . Também já compreendia, de alguma forma, como aqueles jovens em conflito com a lei percebiam o ser jovem. Assim, instigava-me saber qual era, para eles, a percepção sobre a perda de liberdade. Diante da naturalidade com que todos falavam tanto sobre a privação e as consequências e significados que ela possuía, elaborei, então, uma pergunta de partida para a presente dissertação: como as percepções sobre a privação de liberdade são construídas pelos adolescentes no jogo entre a institucionalidade, a lei, a polícia, a família, os amigos e eles mesmos? Acredito que as percepções sobre a privação de liberdade não são construídas apenas no momento em que o adolescente a vivencia, diante da experiência de apreensão pela polícia e futuro encaminhamento institucional. Compreendo que a elaboração dessas percepções tem relação também com aspectos sensíveis e provenientes da imaginação do jovem, cujas motivações têm conexão com seus contextos sociais e também com afetos, desejos e sentimentos complexos. O jovem, ao lidar concretamente com esta situação, no momento de sua captura e, enquanto aguarda sua sentença, constrói percepções. Tais percepções são constitutivas deste imaginário juvenil, que tanto é modelado pelas significações imaginárias instituídas pelas instituições corretivas e punitivas, quanto pelas instituintes, originadas das experiências subjetivas e insurgentes no mundo vivido do jovem. Para esta concepção do jogo entre o instituído e instituinte, apoio-me na perspectiva do imaginário social de Cornelius Castoriadis. 3 Essa percepção é notada nos discursos dos representantes dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente - CEDECA e em seus relatórios em que afirmam existir uma tendência ao encarceramento quando há a possibilidade do emprego de outras medidas socioeducativas em meio aberto. 15 Castoriadis (1982) considera que tudo que representamos, dizemos e/ou fazemos se dá por meio da criação que, por sua vez, é a combinação de duas dimensões: da psique e do social histórico. É por meio dessa associação que se dá o fluxo representativo – o jogo entre instituinte e instituído – em que são formadas as representações do indivíduo sobre a sociedade e tudo que o cerca. Tais representações, fazeres e dizeres sociais são resultados dessa interação entre instituído e instituinte, e formam o imaginário social. Desta feita, pretendo compreender quais as percepções sobre a perda de liberdade para o jovem em conflito com a lei, interno na Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro – URLBM, partindo da ideia de que a percepção deste jovem está diretamente vinculada ao fluxo representativo no qual ele se vincula em diferentes situações, lugares e sentidos. Tal fluxo se dá, por sua vez, por meio de duas dimensões que não se separam: a institucionalidade e sua lógica e a dimensão instituinte, reflexo da subjetividade. Outras categorias de análise que apoiam a reflexão desta pesquisa sobre as percepções dos jovens são juventude, violência/sociabilidade violenta, polícia, punição, família e amizades. Estas se encontram neste jogo do fluxo representativo em que os jovens permanecem entre a institucionalidade, mobilizada pela relação com as medidas socioeducativas e sua moralidade, com as idas e vindas ao sistema socioeducacional, com a polícia e outros determinantes do mundo instituído, e a dimensão instituinte em que constroem suas experiências nos seus territórios, com suas famílias, amizades, enfim, com sistemas simbólicos do fazer-se de seu mundo vivido e outras moralidades criadas em seu mundo subjetivo. Sobre juventude, encontro base na noção proposta por Machado Pais (1990) que a concebe em seu sentido heterogêneo, como sendo uma construção social que se configura e se apresenta de múltiplas maneiras. É construção social resultante de fatores sociais, políticos, econômicos e da forma dominante de como a sociedade representa as juventudes, dependendo da posição que ocupam nas estruturas sociais. Mas também é construção simbólica que se realiza mediante jeitos de ser e fazer das juventudes em suas particularidades, condição juvenil nos distintos recantos sociais, culturais e religiosos, no mundo urbano e não urbano, enfim, em diferentes lugares e espaços sociais. Os conceitos de violência urbana e sociabilidade violenta têm como aporte teórico os estudos de Machado Silva (2004), que os analisam como sendo 16 objeto sociológico singular, problema social complexo e representação simbólica de uma ordem social em que o princípio norteador das relações sociais é a força. A polícia é importante figura representativa do Estado, como elemento regulador das relações sociais existentes sob a égide da sociabilidade violenta. Neste estudo, inúmeras vezes me deparei com a necessidade de refletir sobre qual polícia estava referindo. Assim, dialoguei com Ricardo Moura (2011) que elaborou uma análise teórica bem próxima das observações do campo de pesquisa. Seguindo essa sequência de conceitos – violência, polícia, sociabilidade violenta – acrescento punição. Fazendo as devidas correções quanto ao tempo e contexto histórico, têm-se como referencial teórico, sobre a categoria punição, as ideias de Michel Foucault (1999), que aproxima esta categoria com o controle do corpo. Esta escolha tem relação com o fato de, no dia a dia da pesquisa, ter observado que os adolescentes não consideram o caráter socioeducativo da privação de liberdade, mas o aspecto punitivo. E, também, parte significativa dos agentes envolvidos no sistema socioeducativo opera com a representação da punição e não da socioeducação. Estas categorias se cruzam constantemente no jogo entre instituinte e instituído em que é configurada a trajetória de vida desses jovens. Nesse caminhar, a família é essencial, pois ela se faz presente em todas as fases da vida juvenil. Mesmo nos períodos de afastamento devido a internações ou, quando, por algum outro motivo, o jovem se afasta da família, percebo que esta não se dissipa, em especial representada pela figura materna. Todos os adolescentes observados na Instituição, durante a pesquisa, tem alguma referência de família. Para esta pesquisa, o desafio é compreender que tipo de arranjo familiar os jovens consideram como sendo família. Assim, para compreender o conceito, apoio-me em Osterne (2001), que tipifica família como unidade de referência, local onde se tem o sentido de pertencimento, mesmo que não haja laços de parentesco ou consanguinidade. Durante todo o percurso metodológico em campo, reiteradamente ouvia adolescentes e familiares falarem das “amizades”. As aspas aqui usadas e o grifo posto são para tentar representar o tom exclamativo que era usado sempre que as “amizades” apareciam nas falas. Desta feita, as “amizades” tornou-se categoria essencial para este trabalho. Na busca de entender quem são essas “amizades”, porque elas existem e como elas participam da vida dos jovens recorri a Nobert Elias (1997) e Glória Diógenes (2008). Elias (1997) devido a seu conceito de vida 17 significativa que é resultante da satisfação pessoal dada pela carreira escolhida pelos jovens no contexto do conflito de gerações. Já Diógenes (2008) fez estudo etnográfico de alguns grupos de jovens da periferia de Fortaleza, que se unem e formam gangues e galeras. Por meio dessa cartografia da violência e da cultura é possível uma aproximação do sistema social e cultural em que se formavam as gangues ou o que hoje é, muitas vezes, chamado de “amizades”. Para realizar esta investigação, precisava, então, escolher o lócus da pesquisa. Desta feita, uma alternativa foi conhecer que instituições do Estado do Ceará acolhiam jovens em conflito com a lei, em cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado. Quando se faz essa análise do cenário socioeducativo do Ceará logo se descobre que somente uma cidade, em todo o Estado, atende jovens na forma de internação. Trata-se de Fortaleza que possui seis espaços destinados a internação com fim socioeducativo, onde os jovens são distribuídos conforme a idade e a duração da medida socioeducativa sentenciada. Pensando nisso, busquei escolher um local onde fosse possível ter acesso a boa parcela desses jovens, independente da medida a ser cumprida e do período de cumprimento, escolhendo, assim, a Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro/URLBM. A URLBM é a porta de entrada de quase todos os adolescentes em 4 conflito com a lei no sistema de socioeducação do Estado do Ceará . Esta instituição tem caráter acolhedor e provisório e somente deve abrigar os jovens por um prazo máximo de 24 horas. Foi criada de forma a atender o Artigo 88, inciso V, do Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, que dispõe sobre a integração operacional dos órgãos que realizam o atendimento inicial, formando o Sistema Integrado de Atendimento (Delegacia da Criança e do Adolescente/DCA; Unidade de Recepção Luís Barros Montenegro; Ministério Público/MP e Juizado da Infância e da Juventude/JIJ). A Unidade foi inaugurada em julho de 1993, vinculada à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social. A URLBM apresenta quadro funcional composto por: Direção (1 funcionário) que realiza funções administrativas e técnicas junto à equipe funcional e aos adolescentes; Serviço Social (1 funcionário), realiza atendimento aos 4 Em casos de prática de ato infracional que não concorra em grave ameaça e em que a família do jovem esteja presente na Delegacia da Criança e do Adolescente é feito o procedimento policial e o jovem é entregue à família com guia para apresentação ao Poder Judiciário para devidos esclarecimentos sobre o fato ocorrido. 18 adolescentes e seus familiares, elabora relatórios sociais a fim de subsidiar as audiências, realiza visitas domiciliares e apoia e orienta a equipe funcional; Estagiárias de Serviço Social (2), auxiliam em todas as atividades inerentes ao Serviço Social, com acompanhamento e supervisão do técnico; Agente Administrativo (3 funcionários), realizam atividades burocráticas, são responsáveis pela expedição, recebimento e organização de documentos e responsáveis, também, pela organização e controle dos materiais alimentícios, vestuário e de limpeza; Instrutores Educacionais (23 funcionários), realizam o acompanhamento aos adolescentes em todas as atividades da Unidade, do atendimento inicial até o seu encaminhamento; Motoristas (5 diurno/noturno), são responsáveis pelo transporte e condução dos adolescentes e outras demandas apresentadas; Auxiliar de Serviços Gerais (6 funcionários), responsáveis pela elaboração das refeições (café, lanches e ceia), limpeza e organização da cozinha e áreas afins, como também pela manutenção e limpeza da parte externa e interna da Unidade e pela lavagem, organização e controle do vestuário dos adolescentes, bem como as roupas de cama e banho da Unidade; Auxiliar de Manutenção (1), responsável pelo conserto e manutenção da rede elétrica e hidráulica da Unidade; e Policiais (9), pertencentes ao Batalhão da 3ª Cia, prestando Serviços na Unidade, sendo que, 3 policiais, com plantão de 24 horas, são responsáveis pela segurança interna e externa da Unidade e pela escolta dos adolescentes. É percebido também que a Unidade serve de “depósito de servidores” do Estado, que estão próximos de se aposentar, mas que, por variados motivos, não estão em suas instituições de trabalho de origem. Esse fato gera um excedente de funcionários que não desenvolve nenhuma função na URLBM, apenas estão lá para cumprir o tempo de serviço. A escolha pela URLBM justifica-se pelo fato de ser uma instituição diferenciada dos outros espaços de internação de jovens do Estado do Ceará. Além de ser o primeiro espaço de privação de liberdade percorrido pelo jovem, abriga jovens de ambos os sexos, de diferentes idades e de todas as regiões do Ceará; tem caráter temporário e é marcado como ambiente de aguardo pela sentença. Ao entrar no campo da pesquisa escolhi trabalhar com os seguintes recursos metodológicos: observação direta no local e entrevista com adolescentes, 19 5 familiares dos adolescentes e operadores do sistema socioeducativo , que atuam junto a URLBM. A ideia é perceber o cotidiano dos adolescentes apreendidos, suas percepções, comportamentos e formas de relacionamentos entre si, com os funcionários que os recepcionam e com os familiares, especificamente as mães, sempre observando as dimensões do instituído e instituinte relacionadas às suas práticas e percepções sociais, especialmente sobre a privação de liberdade. Desde já informo que, em virtude das exigências metodológicas, foram 6 dados nomes fictícios aos jovens entrevistados e às suas mães. Pensando de que maneira nomeá-los, vali-me da observação no campo e notei a importância que os jovens dão ao território, em razão de este lhes proporcionar reconhecimento social, poder e meio de sobrevivência. Outro motivo é o fato de o território ser a forma como os próprios jovens inicialmente identificam uns aos outros. Assim, a título de organização deste trabalho, que preza pela ética e pelo sigilo dos informantes e mães entrevistadas, resolvi nomear os jovens segundo a situação infracional (primário/reincidente) e o bairro/território em que moram. Esta decisão é importante porque também dimensionará jovens de diferentes regiões de Fortaleza e como estes representam a privação de liberdade. Informo, também, que fiz um recorte de gênero, ao entrevistar apenas jovens do sexo masculino, não só pela maior quantidade, mas também pela dificuldade de entrevistar jovens do sexo feminino. Observei maior desenvoltura em conversas com os meninos, enquanto que, com as meninas, senti certo receio de não ser notada como pesquisadora e sim como igual, talvez, pelo fato de ser mulher. Além do mais, em algumas inserções em campo, não havia jovens do sexo feminino internas na URLBM. Assim, para alcançar estas questões, a dissertação se distribui em cinco capítulos. O primeiro corresponde a respectiva Introdução. O segundo explana acerca da chegada à Unidade e, com ela, a apresentação do complexo campo em 5 Saliento que, inicialmente, a intenção era entrevistar somente os adolescentes, mas, na estadia em campo, notei que as mães e os operadores do sistema socioeducativo influenciavam diretamente a construção da percepção de privação de liberdade dita pelos adolescentes. Ou seja, havia influência a partir da forma como as mães reagiam à situação da internação, a forma da abordagem policial e o tratamento recebido na URLBM e na Promotoria. Os operadores do sistema são a Assistente Social, Instrutor Educacional, Defensor Público e Policial. 6 Em meio às atividades de campo, percebi a necessidade de entrevistar as mães de alguns dos jovens entrevistados e, para identificá-las, fiz menção aos seus bairros de origem. Não foi possível entrevistar a todas, porque muitas delas não compareceram à URLBM, nem ao Poder Judiciário. 20 que eu estava me inserindo é vista no terceiro capítulo. Questiono para onde vão os jovens em conflito com a lei, ou seja, encaminhamentos e relações estabelecidas na Unidade de Recepção. É o momento em que apresento os demais atores envolvidos nesse processo de apreensão, internação e apresentação à justiça que dá sentido a existência da URLBM. Enfim, busco compreender as relações estabelecidas na Unidade e em suas experiências com a família, com a polícia e com as “amizades”. No terceiro capítulo, apresento os principais sujeitos da pesquisa, os adolescentes internos na URLBM, por meio dos dados estatísticos desta Instituição, no sentido de começar a delinear com quais sujeitos se está dialogando. A estatística é comum a outros trabalhos sobre jovens em conflito com a lei: são adolescentes, na sua grande maioria, semianalfabetos, do sexo masculino, de cor parda ou negra e oriundos de bairros da periferia de Fortaleza. Acrescento, neste trabalho, uma característica importante sobre esse perfil: a figura materna, na medida em que percebi que os jovens têm a mãe como a maior personificação da família, sujeito significativo nesta pesquisa, presente em todos os momentos. Já ciente de como se gesta o jogo entre instituinte e instituído existente no lócus da pesquisa, no quarto capítulo analiso a relação entre violência, polícia e punição como categorias partícipes do processo de construção da percepção de privação de liberdade dos adolescentes internos na URLBM. Por fim, no quinto capítulo, as observações em campo me levaram à construção de outras características dos adolescentes a partir de suas histórias comparadas com a identificação criminal, como uma “novela” que muda apenas os personagens, mas a história é quase sempre a mesma. Trata-se de mais uma classificação desses adolescentes, levando em conta as percepções sobre a privação de liberdade que eles possuem, constituídas no jogo entre o instituído e o instituinte. Isto é, o mundo vivido por eles nos campos da institucionalidade e fora dela, a época e o lugar de suas vidas e a sua condição criminal, social, econômica e cultural, são aspectos estudados para compreensão destas percepções. 2 PARA ONDE VÃO OS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI? ENCAMINHAMENTOS, DISPUTAS E SUJEITOS A presente reflexão refere-se ao encaminhamento dado aos jovens da URLBM. Com base nos dados e informações, apresentados anteriormente, delineiam-se nas próximas páginas as categorias surgidas no jogo entre instituinte e instituído do mundo vivido e institucional dos adolescentes, que contribuem para a compreensão sobre a percepção de privação de liberdade dos internos na Unidade. O caminhar teórico-metodológico deste estudo é construído com base na premissa de que as percepções dos adolescentes surgem mediante formas de pensar e agir diante de sua inserção no processo de identificação criminal, seja na condição de primário, seja de reincidente. Por isso a importância de se analisar as falas, os gestos, comportamentos, hábitos, ressaltando que tudo isso se gesta no mundo social histórico, dentro do fluxo representativo como resultado do jogo entre as dimensões instituinte e instituída da realidade social (CASTORIADES, 1982). Somente na interação é possível compreender a ação e o pensamento humanos. Para compreender tais percepções foi necessário conhecer quais são os elementos constitutivos da realidade social histórica dos adolescentes durante o processo de captura pela polícia, encaminhamento à Unidade de Recepção e, desta, para a Justiça. Parto da ideia de que tais elementos combinados são os andaimes para a compreensão das percepções sobre a privação de liberdade. Assim, família/mães, corpo, violência, polícia, punição, amizades e privação de liberdade foram se desvelando na estadia em campo, como os componentes edificantes do jogo instituído/instituinte e, consequentemente, da disputa entre as moralidades institucional e cotidiana dos jovens. Os corpos marcados, os olhares desnudos e escondidos, as lágrimas inocentes e culpadas, os risos irônicos e amarelos, as falas atropeladas e reticentes, o não dito, as situações variadas e tantos outros comportamentos, fizeram-me compreender que havia ali sentidos em constante conflito. Sentidos voltados para o “legal”, institucional, padrão (instituído/racional) e outros oriundos da subjetividade, da psique dos jovens (instituinte). Percebi que, nessa disputa pela constituição do real, não existe predominância de nenhuma das dimensões. Desse modo, as percepções dos jovens privados de liberdade na URLBM são resultado de uma combinação do mundo vivido por eles, da época e lugar de 22 suas vidas, da condição social, das sensações e ideias contínuas, com a inserção no campo da institucionalidade, frutos das criações individuais e coletivas. 2.1 DE INÍCIO: LÁ FORA COM AS MÃES... E SURGEM AS AMIZADES... No primeiro momento do percurso institucional e da inserção dos jovens na cultura da prisão, desvelou-se para mim, no lócus da pesquisa, um sujeito importante existente no campo de disputas das percepções dos jovens: as mães, representação majoritária da família no espaço da privação de liberdade. A presença dos pais e de outros parentes é bem menos expressiva. Já, só as mães carregam consigo um vendaval de sentimentos e relações entrecruzadas com a dimensão criadora da vida social. Para além da moral institucional, elas trazem em seu seio a dimensão nem sempre racional da vida, como o amor, o perdão e a presença materna. Observei que a URLBM não apresenta estrutura física para acomodar em seu espaço interno as mães dos adolescentes apreendidos, fazendo com que elas permaneçam por muito tempo na porta da Unidade à espera de notícias. Umas sentam-se em cadeiras, outras em um banco próximo a entrada da Unidade, outras ainda procuram se proteger do sol em baixo de árvores, todas ao redor da Unidade, ao redor de seus filhos que ali estão. Sentadas, caladas, introspectivas, chorosas, cansadas, sorridentes, tranquilas, fortes, aquelas mulheres estavam tão presentes no cotidiano da pesquisa que foi impossível não percebê-las, não escutá-las. Iniciei o contato com as mães sentando próximo a elas no momento em que elas esperavam para participar da audiência de seus filhos recentemente capturados. Sem realizar nenhum tipo de contato, nem me identificar, ouvi o silêncio que parecia se misturar com cansaço, dor, vergonha e medo; ouvi falas que conceituavam os jovens como desobedientes e sem jeito ou como pessoas bobas, que fazem o que todo mundo pede; vi lágrimas, risos, tranquilidade e muitas ligações telefônicas como se o fato de estar ali gerasse o interesse de outras pessoas, a comunicação do fato de ter o filho “preso”, a comunicação da necessidade de faltar ao trabalho, a comunicação aos demais parentes. Em algumas vi desesperança; em outras vi a banalidade de ter um filho “preso” em que o “não posso fazer nada” parece ser premissa de vida. 23 A consciência da culpabilidade do filho se mistura com a descrença no fato e a ausência de informações do que ocorreu, como ocorreu, parece ainda estar presente neste momento que antecede a audiência. É muito interessante como o assunto crime e violência é o tempo todo abordado pelos familiares. Contam casos de conhecidos que já foram apreendidos, mortos ou que vivem a praticar atos infracionais e estão livres, falam de seus filhos, de como lhe deram conselhos, de que deram tudo o que eles pediam e que estes não tinham motivo para roubar. Acabam conhecendo umas as outras, desabafando, consolando e é como se, ao verem que não estão sós, elas aceitassem o fato de terem os filhos presos. Elas 7 socializam informações numa espécie de troca de experiências. Diante desta situação, observo que o espaço da URLBM é permeado de fraquezas e fortalezas. Fraquezas porque é lá que muitas mães e parentes veem realmente seus filhos. Algumas não entendem, sofrem e relatam histórias que os inocentam; outras, já são mais conscientes do que ocorreu e ocorrerá com seu filho apreendido. É, assim, o momento em que percebem que estão perdendo a batalha pela internalização dos ditames do mundo social e criminal dominantes em seus filhos, que não os controlam mais, que não são mais suas referências centrais e, é nesse mesmo espaço que, vendo suas iguais, elas criam forças para continuarem a vida. As falas ouvidas nessas rodas de conversa adensam uma das hipóteses deste estudo, a de que há conhecimento da sentença a ser recebida, antes mesmo do julgamento, agora, sob a visão das mães. Quando estas falam de como são os locais de internação, as regras institucionais, as estratégias utilizadas para burlar outras regras, tudo isso demonstra que indiretamente essas mães já têm conhecimento de para onde possivelmente seus filhos serão encaminhados. Uma Assistente Social, em entrevista, expressou a existência do que aqui chamo de processo de aceitação da situação infracional do adolescente. A gente ver esse contraste, os pais aqui do lado de fora chorando e eles lá dentro sorrindo, cantando... num dá nem pra gente entender como é isso daí. Mas é o que acontece. - O que você acha que é mais gratificante no trabalho aqui na Unidade? (suspiro) O que é gratificante, o que eu acho é... O mais gratificante que eu acho é quando eu consigo, é..., amenizar um pouco o sofrimento de uma mãe. É... eu sei que o sofrimento é tão grande que as minhas palavras 7 Essas informações giram em torno da localização dos Centros Educacionais e das regras desses espaços. Regras quanto a vestimentas, ao tipo de alimentação que podem entrar no Centro, quais são os dias de visita, que documentos são necessários para fazer a carteirinha de visitantes, quem pode visitar, entre tantas outras. 24 talvez não cheguem nem assim um pouquinho é, é a diminuir o sofrimento delas. Mas assim, eu tento de todas as formas conversar com elas fazê-las é... se conformar né, entre aspas, com aquilo ali que tá acontecendo, conformar e não desistir nunca do filho sabe?! É uma coisa que eu sempre bato na mesma tecla que ela não desista do filho, que aquilo ali foi um deslize que elas têm que continuar lutando por ele. Aí eu explico como é lá na internação que elas vão visitar. Eu faço uma... a conversa que eu tenho com elas é girando em torno do, do, delas se conformarem com aquela situação entendeu? E aí quando eu vejo que chega uma mãe aqui, tão desesperada e, depois de uma conversa comigo, eu noto que ela se fortalece aí aquilo ali, pra mim é muito bom, muito bom. Eu me sinto bem. É como se a ideia instituída do aprisionamento cedesse algum espaço para a aceitação da realidade posta. Nesse momento a dimensão do instituinte, da subjetividade de cada mãe passa a suavizar a realidade vivenciada. É quando vão se apresentando as esperanças de o filho mudar de comportamento, em que existe a tentativa de inocentar o filho ou de compreender a possível identidade criminal construída pelo filho. Tudo isso, junto aos discursos dos operadores do sistema socioeducativo (representados aqui pela Assistente Social), das mães/parentes dos demais adolescentes e dos próprios adolescentes compõem este processo de aceitação da situação infracional do adolescente. Na fala de um adolescente foi visto que: Tu acha que a tua mãe, se ela soubesse que tu tá aqui ela viria? Acho que não... porque ela tá trabalhando né. E não ia adiantar de nada ela vim porque... tem que passar um tempo né. Não pode sair... ela vim e eu sair. - Mas mesmo ela sabendo que tu tá aqui, que tu tá com mandato né... Tô preso. - É mais importante ela trabalhar do que ela vir ti ver? Num sei, não sei o que se passa pela mente dela não. (silêncio). - Como é tua mãe? Ela chora, é claro, eu acho que ela já chorou né. Se ela já recebeu a noticia ela já chorou muito. (silêncio) - E como é que tu sabe que ela chorou? Porque quando meus irmãos iam preso, eu via ela chorando. (silêncio). (Reincidente, Centro). Nessa entrevista a um adolescente reincidente, que tem irmãos maiores que já passaram pela URLBM, é posto esse processo de aceitação como doloroso: “ela chora”, “ela já chorou muito”. Na fala do adolescente a aceitação se coloca pelo fato de “não ia adiantar de nada ela vim porque... tem que passar um tempo né”. 8 Nesse caso esse processo de aceitação foi construído anteriormente quando os 8 Até o horário da transferência do adolescente para o Centro Educacional a mãe do mesmo não havia comparecido a URLBM. 25 irmãos mais velhos do adolescente foram apreendidos. A consequência dessa aceitação da situação infracional do adolescente parece ser o reconhecimento de que o filho será encaminhamento para um Centro de Privação de Liberdade e que a única coisa que ela poderá fazer é ir visita-lo lá. A ida da mãe à Unidade perde sua funcionalidade, assim como, anteriormente, ela possivelmente tenha tido a sensação de ter perdido sua função de exercer controle sobre o filho. Esse processo é de fundamental importância para este estudo, pois a forma como as mães percebem a privação de liberdade dos filhos influencia densamente a maneira como esses filhos também percebem a privação de liberdade. A percepção negativa da prisão, na maioria das vezes, é relacionada ao sofrimento da família. O “ficar num canto só”, o “não poder sair”, a superlotação, a falta de higiene, o desconforto, o calor também são citados como piores coisas da privação de liberdade. De repente, quando eu era notada naquele espaço próprio delas, logo me perguntavam se era meu irmão quem estava apreendido ou o que “meu menino” tinha cometido. Então eu me apresentava como pesquisadora e logo o contexto começava a mudar de configuração. As mães passavam a apresentar seus filhos como frágeis, como pessoas altamente influenciáveis, como sendo os mais calmos da família, como não sendo possível saber como eles praticaram o delito, ou que era culpa das “amizades” eles estarem ali. O desejo de inocentar o filho é maior do que a consciência do crime praticado por ele. Há a tentativa de responsabilizar as amizades pela mudança de comportamento, posterior prática de ato infracional e apreensão do adolescente. Em entrevista a mãe de um adolescente primário é possível notar essa busca por inocentar o filho e a consciência da culpabilidade do mesmo: - Como é que era o filho da Senhora na liberdade? Como é que ele estava? - Você acredita, eu assim... ele era o mais calmo porque eu tenho quatro filho tá entendendo? E esses qua... assim e esses três filho eles tem uns comportamento horrível e ele eu não enxergava caiu a máscara dele de repente. Onti [ontem] eu ainda tô assim... eu tô sonhando ao mesmo tempo, porque eu não tô acreditando (choro). Quando eu recebi o telefonema, quando disseram que ele tava preso. Porque foi assim: ele trabalha... ele trabalha na padaria, ele é um bom filho, eu não tenho nada contra o meu filho. É assim, ele é muito amoroso, de uma assim, ele é muito diferente dos outros três. Me pedia beijo, me agarrava, mas eu não sei. Às vezes eu fico assim ó... de madrugada eu: Meu Deus, o que foi isso meu Deus? Às vezes eu dizendo pro meu namorado: Eu acho que eu tô é sonhando, eu não tô acreditando, eu não tô acreditando que aconteceu isso com ele. Mas eu vou, eu vou atrás dele. De noite quando era assim, no sábado passado a 26 minha mãe me disse: minha filha, eu tenho certeza que o [refere-se ao apelido do adolescente], que o apelido dele é [apelido do adolescente], que ele táááá... eu num sei não tão me dizendo que ele tá vendendo droga. Aí eu pah!!! liguei pra ele, todo disse esse nome da padaria ia buscar ele pra trabalhar, foi assim de um mês pra cá até ontem o menino virou a casa. Endoidou. Pra mim endoidou. Aí assim, sabe, ele é um bom filho, ele saía pra trabalhar, o homem vinha buscar, chegava de noite, pegava me ajudava dentro de casa. Ele é muito diferente dos irmão dele, ele é muito amado. Mas... até agora, de manhã eu perguntei: o que foi que aconteceu contigo? Porque quando eu peguei, peguei assim ó... ele chegou era 9 hora, eu disse: ó meu filho, vá dormir com a sua irmã, se acalme, não saia, vá se aquietar. Tá bom mãe. Quando eu saí, que eu peguei e saí de noite, quando eu já venho receber a ligação ele já tava preso. Mas do que eu não sei porque. (Mãe, Messejana). O diálogo a seguir representa a percepção das amizades como culpadas pelo ato infracional do filho: - A senhora me disse que de um mês pra cá ele mudou. Mudou como? Mudou assim se misturando. Não é aquele menino. Ele não se misturava, sabe? - O que é se misturar? Ele não tinha amizade. Era do trabalho pra casa. Num falava com ninguém. Aí depois que a minha mãe passou a... se mudou, ele criou essa amizade. - A sua mãe se mudou? Se mudou. Porque ele é assim ele vai lá pra casa só para dormir. Aí ele trabalhava né, o homem vinha buscar ele quando era por uma hora dessa (12:40) o homem deixava ele. Quando dava assim de tarde assim umas quatro horas por aí. Ele tinha uma mania de ficar na ponte com os outros criatura, tá entendendo? Aí ele arrumou uma namorada. A namorada tinha do dedo do pé até aqui (colocando a mão na barriga) cheia de tatuagem. Aí eu nunca quis. Mas... Eu cheguei até a querer dá nela, sabe? Eu disse pra ela: olha, você não entre na minha família, não entra na minha família. Quando dá fé ele ia chegando... eu não assim, ele não deixava eu reparar ele bem que eu apagava muito a luz ele entrava mais era no escuro dentro de casa. Aí um dia eu peguei e disse: eu tenho pra mim que tu tá fumando maconha. Ele: Tô não mãe, tô não. Eu disse tá, ta que você não tá normal e é com aquela (nome da namorada do filho). Mas você vai ver se eu pegar ela... você peça bastante a Deus que eu não pegue ela. Porque ela que tá acabando com sua a vida. Aí pronto... aí depois que eu chamei ela atenção, que fui na ponte, chamei atenção... porque essa (nome da namorada do filho) que fica com esses vagabundo véi. - E a Senhora foi lá na ponte? Fuuuuui! (enfatizou bastante) Eu digo: olha (nome da namorada) deixe meu filho de mão que você tá acabando com o meu filho. Deixe e nem pense de entrar na minha família porque se você entrar você vai levar uma pisa porque quem vai dá a pisa sou eu em você. Aí pronto, aí de lá pra cá ele ficou assim. - Assim como? Com a cabeça virada que chegou até a prender (ser apreendido). (Mãe, Primário, Messejana). No discurso da mãe o jovem era “normal”, trabalhava, não falava com ninguém, vivia do trabalho para casa, mas quando conheceu a namorada passou a frequentar um local dito no bairro como ponto de encontro para uso de drogas. A 27 mãe também se refere à tatuagem como elemento negativo. Percebe-se a representação estigmatizada da tatuagem como uma marca corporal classificatória e pejorativa 9 . Outro aspecto significativo no discurso da mãe tem relação com a violência como forma de resolução do conflito em que o filho se envolveu. A violência simbolizada pela pisa é o meio edificador das relações sociais em que, para “defender” seu filho das amizades, ou seja, coagir “os criaturas”, é preciso usar da força presente nessa sociabilidade violenta. A violência da pisa representa a necessidade de punir a jovem namorada por ter, na concepção da mãe, levado seu filho a usar drogas e se envolver com as “más companhias”. Há, aqui, ainda, uma tentativa de impor seu poder de mãe diante do filho e de suas escolhas, como também das “amizades”. O uso de droga é peça desse percurso que, aliado ao abandono escolar 10 , culminam com a apreensão e ida dos adolescentes para URLBM. Nota-se comumente, a presença feminina como referenciais de família, representada pela mãe e pela avó, cabendo à mãe resolver a questão, indo ao encontro das amizades e enfrentá-las. Isso afirma a hipótese de que há predominância de adolescentes oriundos de arranjos familiares de caráter monoparental alicerçados na figura materna. Outra característica comum, entre as mães, é a destituição de seu poder e influência sobre seu filho. No caso da entrevistada, a única coisa que ela parecia poder decidir, era quem pertenceria à sua família. Para a mãe, a namorada do adolescente até poderia ficar com seu filho, mas não entraria para sua família. Ser da família é ser aceito e reconhecido. Por fim, é importante ressaltar que, em nenhum momento o adolescente é posto como sujeito de suas próprias ações. Ao que parece, isso é uma estratégia utilizada para eximi-lo da responsabilidade criminal, bem como eximir-se da obrigação materna na conduta do filho. Durante o percurso com as mães, uma vez, antes mesmo de terminar de explicar do que se tratava minha pesquisa, fui interrompida por uma mãe que disse: “Tu tá aqui é pra estudar as mãe sofrida? Porque só o que tem aqui é mãe sofrida”. Essa frase muito sinaliza que tipos de percepção essas mães têm de si mesmas. Ao se intitularem como mães sofridas, sofredoras, elas se colocam numa posição de 9 A categoria tatuagem será abordada com mais profundida no próximo tópico. 10 No caso em questão em outro trecho da entrevista a mãe informou que o jovem largou a escola. 28 vítimas e consequentemente de merecedoras de atenção sobre o que relatam de suas vidas e de seus filhos, tanto na tentativa de salvá-los quanto na de se eximirem de qualquer responsabilidade por seus filhos estarem privados de liberdade. De forma alguma, esta afirmação pretende retirar a condição de sofrimento das mães. Esse é um fato e um sentimento sagrado das mães que veem seus filhos envoltos com a criminalidade. Entretanto, é uma compreensão da situação em que elas se encontram na tentativa de salvar, ou pelo menos amenizar, a condição de si e dos filhos. Comecei a observar que durante as audiências 11 esse sofrimento das mães era representado principalmente pelo choro, que parecia causar, nos adolescentes, certo mal estar. Uns pediam que elas parassem de chorar, outros perguntavam: “Pra quê isso?” em um tom de voz tão arredio que mais parecia ser uma forma de dizer que elas se calassem. Percebo que, de uma forma ou de outra, a visão de vítimas que as mães têm de si ou que tentam repassar influencia como seus filhos se percebem e percebem a privação de liberdade. A consciência de saber que a mãe está sofrendo por ele, demonstra que há um lado negativo na privação de liberdade, que há alguém por quem ele se importar. Essa observação é visível no seguinte depoimento: - E o que passa pela sua cabeça quando tu pensa em Unidade de Recepção? O que vocês ficam fazendo quando estão aqui? Nem, nem fala. Todo mundo fica na pedra. Fica só triste, né? Eu, eu fico mais assim por causa da minha mãe que mora só. Eu não gosto de ver ela assim não, minha irmã mora em Messejana e minha mãe às vezes tem aqueles problema a noite de ficar sem ar, sabe? Aí eu tenho que parar com esse vício de tá aqui, de dá esses problema nela porque ela pode até perder a vida. - Você falou dos pontos negativos e quais são os pontos positivos da internação? O lado bom daqui mesmo é só que a pessoa pensa mais no que vai fazer depois né? Eu pensei, não quero mais nada disso pra mim não. Minha mãe toda vida que vem aqui fica chorando, negócio de desmaiar, essas coisa aí. Minha mãe dizia que quando eu tava no Passaré ela dizia também que tava com depressão, aqueles comprimido amarelinho ela toma diazepam, eu acho que é esse daí. Ela pega depressão quando eu venho pra cá. Por isso que quando eu tava falando com o Promotor eu falei logo, não Seu Promotor, me dê uma chance, uma segunda chance, né nem por mim não, é por ela. Eu não gosto de ver minha mãe sofrer não. (Reincidente 1, Presidente Kennedy). 11 Pelo fato da função basilar da URLBM ser resguardar os jovens e apresentá-los à Justiça nas audiências senti a necessidade de acompanhar algumas coletas de oitivas na Promotoria de Justiça e posteriores audiências na 5ª Vara da Infância e da Juventude. 29 Chamou-me atenção o fato de o adolescente especificar a apreensão e consequente perda de liberdade como um vício. O que seria? Pensando no significado da palavra vício, entre a população dependente de drogas, pode dar a ideia de algo realizado por disposição natural ou por doença, e não por responsabilidade real. Pensando no delito roubo como vício, mediante essa conotação, por exemplo, pode dá ideia de dependência a uma prática em que o adolescente não consegue se desvencilhar, como hábito enraizado de más ações, mesmo sob a consciência de que é uma prática moralmente condenável. Isto também pode ser uma tática para amenizar o sofrimento da mãe e de busca de salvar-se da possível responsabilização pelo ato infracional. Interessante pontuar que, ao abordar o tema família, durante as entrevistas com os jovens, geralmente aflorava afeto ou silêncio, mesmo que falar em amor significasse negá-lo ou se mostrar indiferente a ele. Enfim, independente da existência ou não de afeto dentro das relações familiares, os adolescentes relacionam família a este sentimento. Percebo que a família, nesta investigação, distancia-se da configuração patriarcal do modelo de família nuclear, mas o que ainda permanece é a ideia do amor materno, mesmo em meio às tensões nos relacionamentos. (OSTERNE, 2001). Assim, observei valores conflituosos, sentimentos confusos, criados na seara das relações instituintes da vida cotidiana, que também baseiam as percepções dos jovens. Diante destas considerações, o conceito de família que mais se adéqua a realidade observada na URLBM é o que a denomina de unidade de referência dos indivíduos. (OSTERNE, 2001). Para a autora entender os atuais arranjos familiares como unidades de referência é ter a visão de família como: [...] algum lugar seja „o lar‟, „a casa‟, „o domicilio‟, „o ponto focal‟ onde se possa desfrutar do sentido de pertencer, onde se possa experimentar a sensação de segurança afetiva e emocional, onde se possa ser alguém para o outro, apesar das condições adversas mesmo independente das relações de parentesco e consanguinidade. Algo que possa ser pensado como o local de retorno, o destino mais certo. Local para refazer-se das humilhações sofridas no mundo externo, expandir a agressividade reprimida, exercitar o auto-controle, repreender, vencer o outro, enfim, sentir-se parte integrante. (OSTERNE, 1991, p. 178). 30 Importante refletir sobre a categoria família na medida em que observo que, para o senso comum, no contexto dos sujeitos dessa investigação, há o fim/destruição da família, ou a ideia de desestruturação familiar. Osterne, em seu trabalho, desvincula esses termos da realidade da família. Com base em seu estudo e na minha pesquisa, percebo que são conceitos que negam os arranjos familiares monoparentais, que grande parte desses jovens estão inseridos. A família, neste contexto, é lugar de proteção, de retorno, apesar das adversidades.No entanto, isto não garante ser o lugar do pertencimento, do “sentir-se parte integrante”. O que parece ocorrer é uma desfragmentação desse sentido de unidade de referência posto acima. Em outras palavras, o espaço da família deixa de ser vivenciado pelo adolescente como local de “liberação da agressividade reprimida”, de “vencimento do outro”, “de pertencimento”. Tais aspectos passam a serem vivenciadas no espaço de outros grupos sociais juvenis, as amizades. O afastamento da família é percebido como fato bastante recorrente na vida dos que praticam atos delituosos. Em alguns depoimentos observei que o fato da família (mães) começar a perceber a conduta dos filhos e passar a ter uma conduta inquisitória, repressiva, agressiva e até fatalista (acham que o filho não tem mais jeito) é determinante para a saída desses adolescentes de suas casas ou para o convívio familiar se resumir a entradas e saídas de casa para comer e dormir. Esses meninozinho da Saporé começou a estudar lá, sabe... Aí pronto o (nome do adolescente) crescendo, crescendo, tá aí ó. Se envolveu com quem não presta. De lá pra cá ele deixou de estudar. - Ele tem 17 anos. A senhora acha que ele entrou na criminalidade com mais ou menos quantos anos? Com 15, com 15. Aí parou o estudo. - E como foi que a Senhora percebeu que ele tava envolvido? Eu percebi, eu percebi, sabe como foi que eu percebi que ele... que as meninas me contava, nera. Mulher, teu filho. Eu num acredito que o teu filho tá fazendo... O pessoal me contava. Mulher o (nome do adolescente) tá fazendo isso, tá fazendo aquilo, roubando. O que, menina? Acredito não. Aí pronto, ele começou a sair de dentro de casa, começava a dormir nas casas dos outros. De lá pra cá negócio de aprender a dirigir carro, moto. Dormir nas casas dos outros, começou a levar as roupinhas dele, começou a se entrosar. Comecei a dá conselho a ele, aí pronto. Aí quando foi um dia que ele não foi lá pra casa, aí eu fui buscar ele, dei uma surra nele. Aí depois dessa surra que eu dei nele, pronto, de lá pra cá ele desapareceu. De lá pra cá ele nunca mais foi lá em casa. “Eu vou me embora, eu vou me embora, a senhora tá falando muita besteira”. Aí pegou as coisa dele e foi embora. - E essa surra, foi há quanto tempo? Assim quando ele foi embora lá de casa, essa surra que eu dei nele ele tinha 15 anos. - Nos próprios 15 anos? 31 Nos 15 anos. Aí pronto: “Eu vou parar de estudar. A senhora vai ver, a senhora vai ver”. Aí pronto, deixou de estudar, num apareceu mais no colégio. Aí de lá pra cá pegou as coisa dele, minha filha, se mandou ali pra aquela favela véia ali do Oitão Preto. Ele foi pego ali no Oitão Preto com arma, foi pego aqui na Santos Dumont aqui armado de revólver pilotando moto, já foi pego mais de uma vez. (Mãe, Reincidente, Mucuripe). Outro motivo de afastamento dos jovens da família é o fato de o adolescente praticar alguma ação que possa vir a gerar grandes transtornos na família, caso o jovem seja aprendido. Quando ocorre perseguição ou captura policial a casa dos adolescentes, muitas vezes, é local de invasão e, assim, mãe, irmãos, familiares podem sofrem retaliações e serem incriminados. Uma mãe em entrevista relatou fato ocorrido: Quando o RAIO, o COTAM, não. Eu tinha saído né? Pra comprar uma janta pra eles, ele tava com a namorada dele dentro de casa. Aí esses dois meninos aí que tu tá falando... É o (nome de adolescente morto) que tu tá falando? - Ele disse o apelido, mas eu não lembro agora. É, é... aí eu tinha saído. Quando eu tinha saído fui comprar a janta pra eles, ele tava com a namorada, aí fechou o portão. Ele, “mãe eu vou fechar o portão”. Ai eu disse: “pois feche”. Aí quando chegou foi um monte de policia lá em casa. Aí os dois menino vieram por dentro do beco aí, não tinha pra onde os dois menino correr, aí subiram, pulou o portão, um caiu por dentro lá de casa. Aí pegaram o (nome do filho dela), a namorada dele e ele. Aí mandaram eles procurar arma, o (nome do filho) não tinha negócio de arma. Invadiram lá em casa sem autorização, pularam lá. Aí pegaram o (nome do filho) levaram ele pra, subiu numas telha lá duma mulher. Aí esse menino que mataram ele... esse que tu tá falando aí, quando ele subiu, quebrou as telha tudinho da mulher. Quanto foi no outro dia. Aí não levaram eles preso não, que não encontraram fragrante, nem nada, que ele não tava com fragrante, ele tava era com a namorada dele dentro de casa. Os outros que tava, os que pularam pelos quintal. Era dois, aí o menino não tinha pra onde correr, cai lá dentro de casa. Aí quando foi no dia que pegaram esse menino, no outro dia mataram ele lá na Saporé. Nós só escutamo os papoco, os tiro. E foi os pessoal da favelinha que mataram ele. (Mãe, Reincidente, Mucuripe). A preocupação com a invasão a casa pela polícia foi relatada por adolescente aprendido por tráfico de drogas. - E já aconteceu da polícia ir na tua casa? Neeeem! tá doida é ?! Graças a Deus não. Eles queria ir lá em casa onti, eu: “Oiaí pra que? Só tem isso daí”. Quase que eles caía eu dizendo que era usuário. Eles aqui... aí teve um que falou assim: “ei bó liberar, aí eu escutei né, vixe vão me liberar.. Aí o lorim véi safado: “não tá vendo que esse bicho num é usuário, tem nem aparencia de usuário”. Ai eu: “sou mar (macho), altas latinha ali e tal... (Primário, Messejana). 32 É nesse cenário que vejo a família assumir um segundo plano no processo de socialização dos jovens em questão. Isso não significa que ela deixe de exercer relevante importância na vida dos jovens. A família continua sendo referência, mas algo relativa ao sagrado. Grande parte desses adolescentes quando estão “na liberdade”, consideram a família como suporte fundamental, mesmo muitas vezes, afastando-se dela, seja no sentido literal ou se afastando no sentido de estar no mesmo ambiente. Uma moça lá perto de casa disse assim: olha Magno, dizendo pro meu cunhado, o filho da menina levou um tiro... o (nome do filho). Aí disse assim: já foi pro hospital. Aí eu: valha o (nome do filho) foi pro hospital, aí eu vim me embora. Pedi pra mim sair mais cedo... foi de noite, eu acho que isso foi umas 10 horas da noite, esse tiro que ele levou. Aí fui pro hospital geral né. Quando fui pro hospital geral, ele: mãe o que é isso? Tá acontecendo nada não vá se embora. Aí eu deixei a identidade dele e fui me embora. Tu vai pra casa? Vou não, vou lá pra favela. Pois pra mim... comigo não conte com nada, em tempo de pegar uma infeção (nome do filho). Aí depois quando a perna dele começou a inchar ele veio se embora. Eu comecei a comprar remédio pra ele, passando soro, cuidei. Aí tá ai, ó, voltou de novo, aí taí, ó, onde ele tá. - Ai quer dizer que a perna dele infeccionou? Lá do hospital quando ele levou o tiro ele voltou pra Saporé. Ai não tinha ninguém pra cuidar da perna dele que infeccionou, saindo sangue direto ele foi lá pra casa. Ai eu comecei a comprar remédio, pomada, essas coisas tudo caro né? Tudo eu. Ai quando começou a ficar bom os menino começou a ligar pra ele de novo. Ai ele voltou pra Saporé de novo, eu vi ele domingo. Lá em casa eu só vi ele domingo assim de repente só me deu bença me abraçou e se mandou de novo. Andando com os pessoal no meio do mundo ai. Aí tá ai. (Mãe, Reincidente Mucuripe). Também quando estão apreendidos os jovens compreendem que somente a família pode visitá-los e, neste caso, esta se torna o elo que os ligam ao mundo exterior. Durante entrevista uma mãe menciona esse fortalecimento de vínculos, proporcionado pela apreensão e posterior privação de liberdade, em que a figura materna passa a novamente exercer importante papel na vida do adolescente. - E a senhora sempre foi pai e mãe? Eu não vivo com o pai dele, eu fui pai e mãe deles. A vida toda, tudo, tudo que eles queriam... Assim... taí quando ele vai pego... mãe é quando ele se lembra. Ele se lembra né e diz: Olha a minha mãe! AÍ eu digo: aí tu se lembra da mamãe, né? Na hora de resolver as coisa é a mamãe né? Na hora de tá pra ajudar dentro de casa, trabalhar, fazer um curso... mas eu arru.., eu ofereci tanta coisa pra ele, ele nunca quis na vida. Tá aí, sabe o que foi que ele disse? “Nego nasceu pra ser bandido vai morrer bandido, se é de morrer, se é de morrer é melhor matar”. Mas essa morte aí... mas ele nunca matou ninguém não, nunca, nunca o negócio dele é só negócio de roubo, essas coisas, mas ele nunca num matou ninguém não. (Mãe, Reincidente Mucuripe) 33 A relação entre as categorias família e amizades ocorre por esta última passar a exercer grande parte da representação de unidade de referência em lugar da família. Há uma linha divisória: os adolescentes sofrem alguma influência da família de origem, mas, em grande parte, a referência passa a ser um novo grupo social, as amizades. Eu estudava lá no Farias Lima (Escola Privada). Aí meu pai se separou da minha mãe, as condição não ficou muito boa, aí eu tive que sair do Faria Lima. Aí foi na veizada que eu também comecei a conhecer os menino. Aí foi indo... foi assim. Aí foi mais assim... quando eu estudei pro Gabriel Cavalcante (Escola Pública). Aí eu comecei a conhecer os meninos dali, do colégio. Aí foi tendo as amizade, amizade. (Reincidente, Presidente Kennedy). O espaço para liberar sua agressividade passa a ser o espaço público, passa a ser no convívio com as amizades. Prova disso é que parcela significativa dos adolescentes aprendidos estava em duplas ou trios. A questão das amizades precisa também ser pensada dentro de amplo complexo em que a casa deixa de ser local de proteção e refúgio, devido à inserção da mulher no mercado de trabalho, o esvaziamento da família e a violência intrafamiliar, a rua passa a ser esse local. Para tanto, é necessário unir forças para romper com o perigo que a rua possui. É preciso mostrar que aquele território tem dono e, para isso, utilizar da força e da violência expressas pelos roubos, tráfico de drogas e mortes que, além de servirem para demarcar território, acionam o sentimento de poder e posse. Dito isso, Diógenes aponta também que: Essa nova dinâmica das relações sociais, quando a fraternidade extrapola, e de certa forma assume novos significados dentro e fora da esfera da família, imprime uma dinâmica diferenciada de ocupação e socialização no espaço urbano. (DIÓGENES, 2008, p. 155). Observei, assim, que as questões de território mapeiam não apenas as trajetórias dos jovens pelo espaço urbano de Fortaleza, mas também muitas de suas mortes. Essa ideia é comprovada pela fala da mãe de um jovem, morador de umas 12 das regiões da cidade , que mais está em voga quanto aos conflitos de gangue. 12 Apesar de o filho não morar mais com sua mãe ambos residem na Comunidade Saporé, que é subdivisão do bairro Mucuripe que, por sua vez, faz parte do Grande Serviluz. 34 É tudo adolescente, os menino, tudo adolescente. Tudo uns querendo matar os outro. - E porque que a Senhora acha que eles tão querendo se matar? Ahh, alguma coisa mulher. Não é negócio de, de, de... num é negócio de dívida nem nada não. Assim, é um não pode olhar pro outro, aquelas treta véia... negócio de vagabundagem, negócio de droga, é assim mesmo. O que acontece é isso né... um tem rixa num, outro tem rixa noutro e aí vai. Aí começa aquela putaria. Começa aquela confusão todinha. Um não pode ir pra lá, outro não pode ir pra lá. O daqui da Favelinha se for pra Saporé... já matou num sei quantos; aí os da Favelinha e os da Saporé vão se vingar, mata os de lá. Aí vai... Serviluz não pode ir pra Saporé. Pessoal do Serviluz, Castelo (Castelo Encantado) num pode e os pessoal da Estiva num pode vim pra cá pra Saporé. Aí, eles aí mata, passa uns tempo, vão pra lá, vão se vingar. (Mãe, Reincidente, Mucuripe) Segundo os jovens esse “ter treta”, “ter rixa” também é tido como “pegar maldade”, apresentado como causa de muitos dos homicídios aos jovens. Isso também é posto na fala de um adolescente: Mas só que é naquela maldade sabe? Tem uns que fala só na maldade mermo. Como uns e outros fala com o cara, mas ninguém sabe tá tramando a morte do cara. A vingança. - Vingança pelo que? Assim pelo, pelo território, chegou agora já tá crescendo. (Primário, Messejana). O que se percebe é a predominância de um tipo de sociabilidade embasada na violência, em que as relações sociais ou findo delas se dá por meio do uso da força, da violência. Parafraseando o que Machado Silva (2004) denomina de sociabilidade violenta, esta - segundo ele - é consequência da crise de legitimidade do Estado, do enfraquecimento da capacidade de controle da polícia, da expansão e organização do crime organizado, fatores que contribuem para existência de um complexo orgânico de práticas norteadas pela utilização da força. No entanto, fator primordial para instituição da sociabilidade violenta é o uso da violência deixar de ser exercido exclusivamente pelo Estado. Na estada em meu lócus de pesquisa, mães que relataram querer resolver os desajustes pelo uso da violência; jovens plenamente absolvidos socioeducativo, que por essa legitimam sociabilidade, essas ideias. operadores do Consequentemente, sistema muitos adolescentes se munem da violência para conseguirem aquilo que desejam. Assim, a força como elemento organizador da ordem social institui uma nova ordem social, em que todos agora se utilizam da violência/força como forma de estruturar suas relações sociais. Na sociabilidade violenta, os limites para utilização 35 da força são dados pelo reconhecimento da força dos demais indivíduos, pois o Estado, conhecido como legítimo detentor da violência, ao entrar em crise, não consegue mais exercer seu papel de imperar limites aos homens, fazendo com que se instaure o abandono de referências coletivas moderadas e se elimine seu controle sobre os indivíduos. Contudo compreende-se que o gerenciamento das relações sociais pela sociabilidade violenta tem como consequência a casa deixar de ser o lugar de liberação da agressividade reprimida, pois ela não se adapta ao princípio norteador das relações sociais pela força. Articulando as informações empíricas com o estudo de Osterne (2001), tem-se que a casa não é lugar de se demonstrar força, mas ainda é lócus de refúgio para se refazer das humilhações sofridas no mundo externo por essa sociabilidade violenta. Quando essa força da agressividade adentra a casa/família ocorre o afastamento do jovem de sua família como anteriormente foi posto. Então o uso dessa força desvelada pelos jovens, por meio da agressividade, não pode ser reduzido ao espaço social da família de origem, que é, então, substituída pelas amizades. As amizades, mais do que grupos sociais, são espaços concretos onde os adolescentes lutam para realizarem seus desejos. Os limites para realização desses anseios são impostos pelo reconhecimento da força dos demais portadores que, muitas vezes, é maior que a sua. Além disso, essas amizades trazem consigo um conjunto de ideias quanto à concepção de vida a ser seguida, quanto ao que gostar, ao que fazer e como fazer o que é dito como interessante pelo grupo social que compõem essas amizades. Com isso, o relevante dessas amizades, para este estudo, é que elas também uma concepção da privação da liberdade, podendo ter resquícios dessas percepções em outros adolescentes que passarão pela Unidade. 2.2 DEPOIS: A CHEGADA À UNIDADE... Passado o momento da chegada, adentro a Unidade. O primeiro contato realizado foi com o Serviço Social, na pessoa da Assistente Social da URLBM. Depois foi realizado contato com a direção da Unidade e em seguida com os demais 13 funcionários . 13 Ressalto que houve certa facilidade em ter acesso a URLBM pelo fato de já ter sido estagiária de lá durante minha graduação em Serviço Social. 36 Em um primeiro momento a URLBM se apresenta como um local de tranquilidade, que parece ser rompida somente quando há chegada de jovens apreendidos. Cabe a polícia militar ou civil, aos representantes do poder judiciário ou ao conselho tutelar conduzir os adolescentes até a URLBM. A Unidade tem funcionamento ininterrupto durante todo o ano. Majoritariamente, essa condução é feita pela polícia e, nos casos de jovens encaminhados por comarcas do interior, por representantes do poder judiciário e/ou conselho tutelar. A URLBM somente recebe adolescentes apreendidos em flagrante de delito com a devida apresentação pelo condutor do flagrante de exame de corpo de delito emitido pelo Instituto de Medicina Legal – IML. Neste momento é preenchida, pelos instrutores, uma ficha de acolhimento 14 , é mandado que os adolescentes cortem as unhas, depois é feita coleta dos pertences com que o mesmo foi apreendido. Por fim, tomam banho e são postos nos dormitórios. 15 Na URBLM o preenchimento da ficha de recepção é feito sem nenhuma privacidade, logo na entrada na URLBM. Existem duas cadeiras de plástico situadas defronte a um birô, onde ficam os instrutores. Essas duas cadeiras são reservadas aos adolescentes, simbolizando, para alguns funcionários, um lugar ruim. Um dia, ao chegar à Unidade, quando ia me sentando em uma dessas cadeiras, uma instrutora logo correu e disse: “Minha filha, não se sente nessas cadeiras não, esses meninos são tudo sujo sentam em tanto canto, nesses canto véi (sic) imundo. Sente aqui!” Comecei então a compreender como os jovens são percebidos pelos instrutores e outros funcionários da URLBM. Como pessoas sujas, que transitam por lugares sujos, junto a coisas que não prestam. Acredito que a riqueza da pesquisa esteja nesses pequenos diálogos, nessas observações porque é por meio delas que se chega mais próximo à combinação do real construído entre o instituinte e o instituído. Assim, dinheiro, bonés, carteiras, cordões, anéis, calças jeans, bermudas, camisas e demais objetos pessoais são retirados, devendo todos esses pertences 16 ser descritos em livro de ata da URLBM . É nesse momento que os jovens se despem não somente de suas roupas, objetos, mas também vão iniciando o 14 15 Segue em anexo Modelo da Ficha de Acolhimento. É interessante pontuar que essas condutas variam conforme a equipe de instrutores educacionais que esteja no plantão e principalmente conforme a quantidade de adolescentes que já estão internos. No entanto, de uma forma geral este é o procedimento padrão. 16 Quando os jovens saem da Unidade seus pertences são devolvidos ou encaminhados para o Centro Educacional, Abrigo ao qual ele for enviado. 37 processo de institucionalização. É então necessário criar novas formas de se legitimar, de mostrar quem são, já que os anéis, cordões, roupas lhe são tirados. Interessante notar que esse processo de identificação também foi observado pelo instrutor. Eles têm uma necessidade muito grande de identificação uns com os outros, eu notei isso aí. É tanto que quando chega um novo adolescente os que já tão internos, que já tão na Casa eles procuram... pergunta de onde é que eles são, geralmente a pergunta: Qual é tuas áreas? É da onde? Então eles têm essa necessidade muito grande de identificação, é mais é a socialização mesmo, eles conversam muito entre si. Muitos deles também levam na brincadeira, na chacota, a questão... querem é desautorizar os educadores, a própria polícia [...] Não, não é com brincadeiras de mal gosto, brincam mesmo, chamam os educadores de garçom, de empregado, acontece isso daí. Isso daí tá acontecendo muito, a incidência maior tá sendo assim. Mas no geral, no geral eles conversam muito entre si, conversam demais, trocam experiências de atos infracionais. O carro chefe tem sido isso daí a troca de experiência, aí eu fui preso pela polícia, a polícia me bateu. (Instrutor URLBM). Já um adolescente quando indagado sobre o que acontecia na Unidade expôs que: - E chegou menino de madrugada? Chegou. Aí passa a noite todinha aí falando um com outro aí... qual é as área? Aí é que não dorme mermo. Fica falando qual é as área pivete? Num sei o que... Barroso, aí o outro num sei o que Aracati fica falando aí... Caiu com o que? Primeira queda é? Aí uns fala que é, outros fala que é segunda, 17 terceira. Num sei o que 157 ... essa putaria. Eles pensa que isso é bonito (...) (Primário, Parque Santa Rosa). Com isso se percebe que na privação de liberdade a identificação é dada pelos territórios aos quais esses adolescentes pertencem e ao ato praticado. A estada na Unidade é momento de conhecer outros jovens, compartilhar vivências, aventuras, agressões. Ao que parece isso faz com que alguns adolescentes tenham a seguinte percepção sobre a privação de liberdade: Aqui é bom melhor do que ficar no mei da rua, conhece outras pessoas e fica protegido. É válido salientar que o adolescente que relatou considerar achar bom estar na Unidade, posteriormente, informou que estava ameaçado de morte e que já havia sofrido uma tentativa de homicídio. Interessante notar como a prática de uma violência no caso em questão o roubo cometido por esse adolescente - estava servindo para neutralizar a 17 No Código Penal Brasileiro o artigo 157 tipificado roubo (para menores de 18 anos) e assalto (para maiores de 18 anos). 38 ocorrência de uma violência que no caso seria o assassinato do adolescente, caso ele não estivesse privado de liberdade na Unidade. Na liberdade essa identificação se auxilia com a posse de bens de consumo para ser construída e externalizada. Para os adolescentes é comum o pensamento de que o que você é tem relação com aquilo que você tem; se você não tem existe a necessidade de se criar subterfúgios para conseguir. Tipo assim ó.. eu num dou valor essas coisas não né porque pra mim é só humildade. Mas tipo assim, um celular desse, a pessoa chega perto da menina com um celular desse, ó, o jeito que a menina olha pro cara: vixe! o cara tem dinheiro né... tá com um celular desse. É isso tá entendendo? É o que eles pensa. (Reincidente, Caucaia) - E porque que tu acha que tem tanto menino que volta? (silêncio) Por causa da pobreza mesmo... quem não tem dinheiro vai roubar, vai furtar. (silêncio) - Pra comprar o que? As roupa que às vezes o pai não pode dá. Roupa, bicicleta, celular. (Reincidente 2, Presidente Kennedy). Percebe-se que o adolescente não fala de qualquer tipo de pobreza, ele fala da pobreza relacionada à falta de condições de ter acesso a bens de consumo não básicos, até supérfluos, para a manutenção da vida, mas que possui grande valia para o contexto em que está inserido. No dia a dia da pesquisa ouvi arrotos, insultos e gritos trocados entre os 18 jovens , canções de apologia ao crime, canções românticas, canções evangélicas, risadas, histórias. Os sons começam a surgir quando os objetos simbólicos são retirados. Pelos adolescentes esse “ritual de institucionalização” é descrito como: Cheguei de manhã, eu fiquei lá na sala lá (Delegacia da Criança e do Adolescente), aí os policial vieram, aí fez só uma ficha lá na mulher, num quartinho que entra lá do lado da recepção assim. Aí a gente foi lá no IML, fizemo só... um exame lá, um negócio lá e voltamo pra cá. Aí o policial tava conversando com a mulher ali, a mulher trouxe logo foi nós pra cá. A mulher trouxe logo foi nós pra cá e o educador me deu isso daqui (calção) e pronto. Guardou minha calça, meu tênis e minha blusa tá aqui. (Primário, Presidente Kennedy) Aí os homi abordaram, aí tinha... as vítimas tinha me dado... dado minhas característica, eu tava com a mesma roupa, aí me levaram... mas me pegaram sem nada. Me levaram lá pro 30º. Aí depois fizeram o procedimento lá, a vítima me reconheceu. Depois eu fui pro IML fazer os exame, aí depois eu vim pra cá. (Reincidente, Parquelândia) 18 As prosas. 39 Estes são depoimentos de dois adolescentes, um primário de 13 anos e um reincidente de 17 anos. O primário residia com sua mãe, avó e irmã; sobre o pai pouco falou. Ressaltou seu talento para o futebol, os títulos conquistados e a saída de um projeto social de inclusão pelo esporte por não possuir porte físico para jogar com outros adolescentes da mesma idade. O jovem de 17 anos relatou que passa maior parte do tempo na casa de amigos, somente indo à casa de sua mãe para pegar peças de roupa. Disse que seus amigos moram em um bairro bastante distante de onde sua mãe mora, o que dificulta ainda mais seu contato com a família de origem. Seus pais também estão separados. Este adolescente muito me marcou, pois sua mãe afirmou, em entrevista, que preferia que ele ficasse “preso”, ao perguntar sobre a possível internação do filho: “Eu pedi (ao promotor durante oitiva) foi pra ele ficar, não dá de comer nem a um pinto. Se tiver na rua vai acabar matando um pai de família”. Nessa entrevista entendi como muitas famílias, no caso a mãe, compreendem o espaço da URLBM como a prisão, a internação, propriamente dita. Quando a mãe coloca “eu pedi foi para ele ficar”, o ficar significa ficar preso, ficar ali naquela condição. Percebo, então, que não há entre as famílias a distinção entre a internação do Centro Educacional e a internação na URLBM. Em ambos os casos esse tempo em que os jovens têm sua liberdade cerceada é visto como prisão. Visão diferente do Sistema de Justiça que traz como acolhimento institucional na URLBM o período de até 24 horas em que os adolescentes ficam esperando para serem apresentados às autoridades judiciais cabíveis. É tanto que, mesmo se, por algum motivo, o jovem permanecer na Unidade por mais tempo do que o delimitado por lei e receber a medida de internação, os dias que ele passou na URLBM, antes da sentença julgada, não contarão no período de internação. O pedido da mãe para que o filho ficasse preso parecia inicialmente algo contraditório frente a todas as outras ali que torciam pela liberação de seus filhos. A priori parece ser um ato de desamor, se pensado sob a ótica generalista de qual mãe gostaria de ter seu filho privado de liberdade. Olhando para aquela mãe, tão segura de suas palavras e de seu posicionamento, pude observar que o desejo pela internação do filho era, na verdade, um ato de amor, de proteção. Na fala: “Não dá de comer nem a um pinto... mata um pai de família”, a preocupação não estava somente com a vida de alguém que poderia vir a ser ceifada pelo filho, mas pelo fato de ser ele o praticante de tal ato. Ela quer protegê-lo de si próprio, para não se 40 transformar em homicida. Este discurso também é envolto pelo ressentimento para com o filho, por ele não atender aos seus conselhos, por não ser útil, por ter saído de casa e ter se envolvido com “más amizades”. Voltando à Unidade, quando os adolescentes chegam, eles vão se despindo não somente de suas roupas, objetos, mas também vão iniciando o processo de institucionalização. É como se a retirada de algo fosse condição para aquisição de algo novo. É então necessário criar novas formas de se legitimar, de mostrar quem são já que no universo em que estavam anteriormente eram os anéis, cordões, roupas que davam alicerce ao reconhecimento social dos jovens. Interessante notar esses símbolos que, além de estigmatizados, são alicerces de reconhecimento social dentro desse contexto de identificação embasada na ostentação de bens de consumo. Ao contar sobre o momento da apreensão por receptação de moto, o adolescente relatou sobre o uso dos objetos como estilo: Bora macho se foi tu confessa logo que é melhor. (Policial) Cidadão não fui eu não. Fui eu não, tenho precisão de tá roubando não. Eu trabalho, minha mãe e meu pai me ajuda muito. Tenho precisão não... de tá roubando não. Porque ele viu também o meu estilo né?! Que eu tinha um cordão que tá aí na delegacia. Só que eu trabalho pra isso né, pra luxar. - E o que tinha esse cordão? Era de prata. Meu cordão é de prata assim coisa assim... assim eles acham chamativo né. Que a gente usa o mesmo estilo que esses menino aí usa e tal. - E como é o estilo? O estilo é boné aba reta, cordão grande com um pingentezão quadrado, pulseira, relógio, brinco, isso aqui, ó na sobrancelha (pequenos cortes nos pêlos do final da sobrancelha) e as luzes. - E qual o significado dessa sobrancelha? Não quer dizer nada não. Porque nós gosta mesmo, acha bonito não quer dizer nada não. E as menina gosta... muito (risos). (Primário, Parque Santa Rosa). O luxar me fez lembrar Elias (1997) quando, na obra Sociedade de Corte, coloca a ostentação como implicação da representação da posição social que se pretende manter. O luxar é a busca do adolescente de demonstrar que faz despesas com coisas que lhe atribuem valor e são tidas como exigências para a conquista da posição social que se almeja. Sobre os sons de arrotos e conversas eram tão altos que foi possível ouvir na gravação, durante a transcrição das entrevistas, que me fizeram refletir sobre os motivos de tudo aquilo. Quem ouvisse aquilo logo intitularia os adolescentes como mal educados, sem modos. Eu me perguntava se os jovens não 41 sabiam que arrotar daquela forma era visto como errado pela sociedade ou se faziam para gozação geral, o que é mais comum. Lendo Elias (1997), no livro O Processo Civilizador, deparei-me com a ideia da etiqueta como elemento de dominação do processo civilizador que, por meio da generalização das proibições, censuras e controles, reconhece o indivíduo pelas atribuições dadas a ele pelos outros. Com isso, no contexto de busca por identificação, de incerteza e ócio da privação de liberdade na Unidade, aqueles arrotos, além de significar um ato biológico, pareciam ser uma forma dos adolescentes dizerem “eu não sou dominado”, de se mostrarem avessos ao passível de censura ou até mesmo, de mostrarem que algumas regras de civilidade não lhes foram apresentadas. Elias (1997) coloca que a coerção social cede espaço para a autocoerção, quando a interiorização individual das proibições deixa de ser exercida por instituições externas ao homem e passa a se dar pelo autocontrole de suas pulsões e emoções. O espaço de privação de liberdade parece ser o local onde o adolescente é levado, por meio da coerção, a interiorizar algumas proibições que sua autocoerção não tomou como necessários ao convívio social, pelo menos naquele espaço. É interesse notar que essa visão de necessidade de “educação” dos adolescentes é a visão dos instrutores que lidam diretamente e mais têm contato com os adolescentes quando estes estão na Unidade. O adolescente reflete a falta de educação que ele recebe da própria família. É um problema... antes de tudo passa pela questão da educação, da educação que se recebe em casa. Eles não têm educação. Existe também a questão da não imposição de limites, eles não conhecem limites, é tanto que quando chegam aqui bagunçam, gritam, fazem o que eles fazem, fazem o que é normal deles talvez em casa ou na rua. (Instrutor URLBM). É em meio a observação desse complexo jogo de falas, gestos, comportamentos que fui conhecendo meus informantes, os atores que os cercam e meu lócus de pesquisa. Essa compreensão da complexidade do campo também sobreveio com o descobrimento de que a calmaria inicialmente notada na Unidade era apenas aparente. Na abordagem empírica o caráter de tensão e conflito se desvelou logo durante os primeiros dias de inserção. Observei um fato em que três homens estavam à procura de um adolescente, que estava na URLBM, por força de um Mandato de Busca e Apreensão. Um deles se dizia parente do jovem, não se identificando e 42 apresentando um papel (uma espécie de atestado médico). A Assistente Social achou estranho o interesse do homem em saber qual o horário que o jovem iria para audiência e a insistência dos três em obter informações sobre ele. Então, lhes informou que a mãe do jovem, apesar de não estar presente, já havia sido comunicada. Depois disso observei que os homens foram embora e um deles, de dentro do carro, fazia xingamentos olhando em direção a Unidade. Esta ocorrência foi motivo de comentários com a assistente social e minha reflexão sobre a existência de grupos de justiceiros, geralmente policiais, que têm assassinado adolescentes como forma de vingar a morte de colegas. Neste caso, salienta-se que o adolescente procurado pelos referidos homens possui tatuagens com desenhos de palhaços que, na simbologia do crime, identificam possíveis matadores de policiais. Este acontecimento me fez lembrar homicídio ocorrido recentemente quando um jovem foi assassinado na porta de saída do Complexo da Infância e da Juventude 19 , após participar de audiência e receber medida socioeducativa de Liberdade Assistida, como publicado pela imprensa: Figura -1: Adolescente é morto ao deixar unidade de recepção, em Fortaleza (11/04/2013) Fonte/Foto: TV Verdes Mares/Reprodução. 20 19 Complexo da Infância e da Juventude é o nome dado ao conjunto de instituições que estão presentes no mesmo espaço, sendo elas: Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro - URLBM, Delegacia da Criança e do Adolescente - DCA, Delegacia de Combate a Exploração da Criança e do Adolescente - DECECA, 5ª Vara de Justiça da Criança e do Adolescente e Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS. 20 A foto acima traz o corpo do adolescente na porta da URLBM, pois o padrasto do mesmo na tentativa de busca socorro ao adolescente baleado retornou com seu carro para dentro do Complexo e parou em frente à Unidade. 43 Um adolescente foi morto na tarde desta quinta-feira, na Rua Tabelião Fabião, no Bairro Presidente Kennedy, em Fortaleza, após deixar a Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro, onde estava recolhido por furto. De acordo com o diretor da 5ª Vara da Infância de Fortaleza, Evandro Junior, o adolescente havia sido liberado e saiu da Unidade em um táxi, quando foi abordado e assassinado. O motorista do táxi voltou com o adolescente para a Unidade, mas ele já estava morto. No entanto, esse homicídio não foi um caso isolado. No ano de 2008 ocorreu dentro da URLBM o assassinato de uma adolescente tendo como autores outras duas internas. Esta ocorrência teve muita repercussão na mídia, envolvendo a URLBM. As adolescentes apresentaram como motivação para a execução o “desejo de matar” e, após praticarem a ação, no meio da madrugada, voltaram a dormir, sendo o crime somente descoberto pela manhã. Nenhum funcionário da URLBM percebeu nada durante a noite. O detalhamento do assassinato foi exposto pelo jornal O Povo em matéria: Adolescentes matam outra 29/10/2008 O crime ocorreu numa unidade de abrigo para jovens infratores. Vítima e acusadas já respondiam por outros delitos Uma adolescente de 15 anos foi encontrada morta, na manhã de ontem, nas dependências da Unidade de Recepção de Jovens Infratores Luís Barros Montenegro, no bairro Olavo Bilac (Zona Oeste de Fortaleza). A Unidade de Triagem, administrada pela Secretaria do Trabalho e Ação Social do Estado (Setas), fica ao lado da Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA). A jovem Andressa Kelly do Nascimento Campos foi estrangulada por outras duas garotas que estavam recolhidas naquela unidade. D. e C., ambas de 16 anos. Uma terceira menor, J., da mesma idade, teria testemunhado o crime. As quatro garotas dividiam o mesmo dormitório. Durante a madrugada de ontem, elas teriam iniciado uma discussão. As adolescentes homicidas teriam sido xingadas por Andressa Kelly. Depois de colocarem um lençol na boca de Andressa Kelly, para evitar que ela gritasse, D. e C. estrangularam a garota com as mãos. Um outro lençol foi usado para apertar o pescoço da vítima. Em seguida, as jovens cortaram as costas de Andressa Kelly com um pedaço de cerâmica retirada de uma das paredes do dormitório. Segundo atestou a Perícia, elas ainda arrastaram o corpo da vítima pelo chão. Confissão Em depoimento à titular da DCA, delegada Iolanda Fonseca de Paula Duarte, na tarde de ontem, na sede da delegacia, D. e C., inicialmente, negaram o crime e disseram que a companheira de dormitório havia cometido suicídio. Depois, acabaram confessando o assassinato por estrangulamento e disseram que agiram motivadas simplesmente pelo ´desejo de matar´. 44 As acusadas afirmaram ainda que queriam tirar a vida de uma outra adolescente, que seria levada para a Unidade e ficaria na companhia da dupla. Entretanto, como isso não aconteceu, elas teriam decidido matar a primeira garota que fosse colocada no mesmo dormitório naquela noite. A jovem J. também falou à delegada Iolanda Fonseca. Ela negou ter participado da morte de Andressa Kelly e revelou que apenas assistiu à cena. O depoimento das três adolescentes na DCA foi acompanhado pela representante do Ministério Público, promotora Fátima Valente, e pelo diretor do Departamento de Polícia Especializada (DPE) da Polícia Civil, delegado Jairo Façanha Pequeno. Uma das jovens contou todos os detalhes do crime aos delegados e à promotora, sem demonstrar nenhum arrependimento. Ainda hoje, as três adolescentes envolvidas no caso deverão ser levadas à presença de um juiz e de um promotor de Justiça para prestarem mais esclarecimentos, devendo responder pelo crime cometido de acordo com o 21 estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As mortes 22 se caracterizam pela demonstração da precariedade do sistema de proteção à vida dos jovens acolhidos na Unidade. No primeiro caso é válido salientar que a URLBM se localiza literalmente ao lado da Delegacia da Criança e do Adolescente. E tanto URLBM como DCA estão dentro de um complexo em que também estão presentes a 5ª Vara da Infância e da Juventude, a Delegacia de Combate a Exploração da Criança e do Adolescente – DECECA e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. E, no segundo caso, o assassinato da adolescente ocorreu dentro de um dormitório da Unidade que, por sua vez, conta com instrutores educacionais e policiais diuturnamente. O crime mais antigo ocorrido dentro da URLBM data do ano de 2006 e nunca foi solucionado, tampouco seus autores foram identificados. Há fortes indícios que o adolescente assassinado foi morto por um grupo de policiais militares. O jornal Diário do Nordeste noticiou: 21 22 Fonte: <http://diariodonordeste.globo.com/m/materia.asp?codigo=584897>. Em anexo seguem as fotografias que foram postas junto às matérias de jornal apresentadas. 45 Figura - 2: Adolescente executado em Centro de Triagem - ATO DE VINGANÇA (19.07.2006). Fonte/Foto: TV Verdes Mares/Reprodução. Seis homens armados com pistolas e revólveres - usando capacetes e capuzes -, invadiram, na noite de ontem, o abrigo onde funciona o Centro de Triagem do Juizado da Infância e da Adolescência de Fortaleza, no bairro São Gerardo. Naquele local, eles executaram o adolescente Rômulo Alves da Silva, 16. O garoto havia sido apreendido, em flagrante, pela manhã, depois de participar do assalto a um motoqueiro, no bairro Jardim Iracema. Rômulo também era suspeito de envolvimento na morte do soldado Claudionor Pereira da Silva, destacado no Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), do Batalhão de Polícia de Choque (Bpchoque). Coincidentemente, o PM também foi assaltado e acabou morto, ontem de manhã, no mesmo bairro. EXECUÇÃO - Por volta de 19 horas, seis homens ainda não identificados, utilizando três motocicletas, chegaram ao estacionamento do abrigo, imediatamente, invadiram suas dependências, rendendo um PM que estava na portaria e dois agentes de disciplina. O militar, identificado como soldado PM Nivaldo, destacado na da 3ª Companhia do 5º BPM (Pirambu) teve sua arma (revólver) tomada pelo grupo de invasores. RENDIDOS - Com armas apontadas em sua direção, os reféns tiveram que ficar escondidos em uma sala contígua à portaria. Em seguida, os assassinos foram até a ala onde o garoto estava e descarregaram as suas armas. Segundo a análise inicial feita no corpo do garoto pelos peritos do Instituto de Criminalística (IC), Rômulo foi atingido com mais de uma dezena de tiros de diferentes calibres. Próximo ao corpo foram recolhidas várias cápsulas de balas de calibre 380 ACP. Ainda nervosos, os agentes de disciplina Eduardo e Socorro, bem como o PM Nivaldo, disseram que os assassinos agiram de forma muito rápida e, após a execução, correram de volta ao estacionamento, apanharam as três motos e fugiram em alta velocidade. 46 Rômulo foi apontado como suspeito de participação na morte do PM, pela manhã, mas as testemunhas não o reconheceram. Depois de apontado pelo motoqueiro assaltado, ele foi transferido do 17º DP para a DCA e, dali, 23 recambiado para o abrigo, onde acabou sendo executado com vários tiros. Interessante notar a existência da vingança como fio condutor de todas essas mortes. Os homicídios praticados dentro ou no entorno da URLBM sempre estavam relacionados à vontade de alguém ou de um grupo de se vingar. Seja pela morte de um companheiro de farda, seja pela raiva de uma companheira de quarto ou de Centro Educacional, seja por questões relacionadas a práticas delituosas, esses acontecimentos revelam a falta de segurança da Unidade, o desconhecimento de temor por parte dos algozes, a descrença na Justiça e o entendimento de que a função social punitiva da prisão não absorve mais o conceito de justiça existente. Em outras palavras, no sistema de vingança, só há justiça quando há a destruição total do outro. Além destes casos, também há informações sobre fugas de adolescentes, ocorrências de agressões físicas praticadas contra os jovens e quebra de patrimônio público, praticada pelos jovens. Isso tudo deixa claro que a URLBM é lócus de constante tensão em que, a qualquer momento, algo pode vir a quebrar a aparente paz existente. Ressalto ainda que a URLBM sediou até o ano de 2012, em uma de suas salas, a Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Ceará, onde os adolescentes eram ouvidos pela Promotoria de Justiça. No entanto, com a reforma e ampliação da Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), que fica ao lado da URLBM, a Promotoria de Justiça que atua por via do Projeto Justiça Já 24 ganhou duas salas e transferiu suas atividades para a DCA. Com isto a rotina da URLBM sofreu grande mudança, tendo em vista que as famílias nem sempre se concentram mais em frente à Unidade e que, por isto, a permanência de pessoas na Unidade reduziu consideravelmente. Além disto, percebi que a URLBM não oferece acolhimento adequado às famílias, tendo em vista que o atendimento aos adolescentes, familiares e advogados é feito na sala do Serviço Social que, além de ser muito pequena, ter 2 mesas e 2 armários, ainda tem que comportar a equipe técnica do setor. Assim, 23 Fonte: <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=352908>. Projeto criado para dá celeridade às ações delituosas que tenham como autores todos os indivíduos menores de 18 anos. 24 47 torna-se altamente desconfortante reunir adolescente, família, assistente social e estagiária de Serviço Social dentro de uma sala minúscula. Segundo documentos da URLBM, a instituição carece de reformas em sua estrutura física, desde a necessidade de construção de um refeitório até a adequação de um espaço para atendimento inicial dos adolescentes feito pelos educadores sociais. No decorrer da estadia em campo percebi que abordar o tema das violências sofridas pelos adolescentes era o mote de iniciação de contato e que, depois, eu poderia adentrar a outras questões. Foi assim que o silêncio de palavras foi rompido e que as entrevistas começaram a ganhar profundidade. Essa abertura para falar sobre a violência também é notada pelo instrutor da Unidade: Agora uma coisa que eu acho tão interessante é como eles se sentem bem em contar as histórias de sofrimento deles mesmos uns pros outros. Tipo: ah! polícia me pegou, foi o RAIO que me pegou, ser pego pelo RAIO é melhor do que ser pego pelo Ronda. É como se fosse algum demérito ser apanhado pelo Ronda, ser apreendido pelo Ronda. Então ser pego pelo RAIO, pelo COTAM, por uma polícia mais especializada pra eles é a glória. E se enfrentam alguma severidade da polícia, por exemplo, a polícia ter que entrar no embate corporal com eles, aí eles chegam contando como sendo a coisa melhor do mundo. Um homicida, por exemplo, um homicida, um latrocida, ele faz questão de dizer que é um latrocida, ele faz questão de dizer que é um latrocida pra ser temido pelos outros infratores e muitas vezes pelo próprio corpo de instrutores. Então eles fazem questão de dizer eu matei, eu roubei. Eu matei e roubei. Já matei tantos. (Instrutor URLBM). Não foi possível notar pelas entrevistas e observações em campo essa relação de mérito ou demérito pelo tipo de polícia que executou a apreensão. No entanto, o que também considerei interessante desta fala é a compreensão pelo instrutor do adolescente como infrator, o que, para um operador do sistema socioeducativo, não condiz com os avanços nos direitos das crianças e adolescente. A utilização do termo infrator não significa uma mera terminologia, mas sim a execução de um conjunto de ações, que nem sempre levam a percepção do adolescente como um sujeito de direitos, mas sim como delinquente e consequentemente digno de receber um tratamento punitivo e não um tratamento que lhe possibilitasse o desenvolvimento de suas potencialidades. Tais práticas e percepções ainda são oriundas do Código de Menores de 1927 e que até hoje insistem em perdurar e precisam ser banidas. Além disso, ressalto a necessidade de analisar a postura da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social/STDS, de reduzir as oficinas profissionalizantes e aumentar as atividades artísticas. Isto se faz 48 dentro de um cenário de desmonte das políticas da assistência social em que financeiramente é mais rentável custear atividades de dança do que atividades profissionalizantes. 3 ADOLESCENTES NA URLBM: ENTRANDO NO JOGO DO INSTITUÍDO E INSTITUINTE... Pensar é movimentar representações que, muitas vezes, se dão de forma autônoma decorrentes das formas de pensar e agir da coletividade e não do desejo do indivíduo. Outras vezes, no entanto, não há como desvincular as representações das subjetividades e certa autonomia individual. Neste sentido, inicio com a abordagem de Émile Durkheim (1984), que fundamentou, durante muito tempo, os alicerces de compreensão da representação social como sendo os estados da consciência coletiva, ou melhor, imagens da realidade, diferenciando-se, portanto, de estados mentais individuais. Têm relação com sensações, imagens e práticas provenientes de uma ideação coletiva, ou seja, da mentalidade social, que se pilastra na forma como o grupo pensa e age em relação à vida social e os fenômenos que o afetam. Desta forma as representações coletivas demonstram e tendem a ser também a própria realidade coletiva. Por isso, nesta concepção, as representações se traduzem em sentimentos coletivos fortes, crenças e práticas sociais, que dominam estados individuais da consciência. Durkheim fez muito caso do que chamou de realidade independente das representações coletivas. Ele usava a analogia dos estados mentais individuais, ou representações individuais que embora intimamente ligadas ao seu “substrato” (...) são relativamente autônomas, e podem influenciar diretamente umas às outras e combinar-se de acordo com suas próprias leis. (COHN, 1977, p. 19). Assim, esta teoria concebe que, mesmo resultando da combinação de substratos individuais, as representações coletivas não se limitam a eles: elas possuem características sui generis. Neste trabalho, considero importante compreender a iluminação deste teórico que traduz o conceito de representação amparado na ideação de uma consciência ideal, coletiva. Entretanto, embora as representações sejam frutos do pensamento coletivo que, muitas vezes, nos domina, elas não se aquietam no determinismo e avançam para a ação dos indivíduos e sua subjetividade, como responsáveis por inúmeras criações e significações da vida social. Assim, para evitar obscuridades, alguns estudiosos preferiram utilizar o conceito de percepção como forma de entender a compreensão dos indivíduos 50 sobre sentidos e significados do ser e do agir, tanto mobilizados pela ação socialmente instituída em seus grupos sociais quanto pela ação individual e seus pontos de vista. Didaticamente, o uso da percepção se daria por meio da relação passiva entre indivíduo e coisa – a forma como as pessoas percebem as coisas. Compreendo, dessa maneira, que a percepção do indivíduo se dá mediante formas de pensar e agir individuais e sociais que ocorrem dentro de um ciclo representativo, ou seja, permeada de representações coletivas de seu mundo vivido, de sua condição social, época e lugar de vida, além de sensações e ideias contínuas fruto de criações imaginárias individuais e coletivas. Sem isso não haveria a percepção dos fenômenos sociais. Em outras palavras, considero que percepção e representação estão interligadas e o fato de uma existir não põe fim à existência da outra. Neste sentido, Castoriadis (1982) assegura que há duas dimensões do mundo social histórico que, de forma combinada, criam as representações ou tudo que percebemos e fazemos na realidade. Trata-se da dimensão da psique humana ou instituinte e a dimensão lógica racional, ou o instituído. Para o autor, é por meio da criação que o real se constitui. A criação, por sua vez, gesta-se mediante a psique – dimensão mais profunda do indivíduo – e o imaginário social, que é a criação de significações de imagens e figuras, que dão forma ao que foi pensado pela psique. Por isso, para o autor, os indivíduos situam-se no social histórico com suas formas lógicas estabelecidas, mas que sozinhas não dão conta da ação e pensamento humanos. Assim, a criação de variadas formas de pensar e agir se constitui mediante a combinação entre a psique/instituinte e o racional/instituído. É a partir deste jogo que são formadas as representações ou percepções do indivíduo sobre o mundo social e suas diferentes criações sócio históricas. Estas considerações de Castoriadis alicerçam a busca de compreensão das percepções dos jovens sobre a privação de liberdade na URLBM, na medida em que entendo que elas se constituem tanto por meio de suas inserções na caminhada institucional mediante a captura pela polícia, o contato com a família, os atendimentos jurídicos até a internação, quanto com base em sua subjetividade por meio de suas inserções nos territórios onde moram, onde cometem crimes, divertem-se, relacionam-se, constroem afetos e inimizades etc. Passam a compreender e se orientar tanto pela moralidade institucional quanto pelas moralidades constituídas no seu mundo vivido. São estas moralidades combinadas e 51 encravadas no contexto social histórico, nas relações sociais que estabelecem e no cotidiano de conflito com a lei, que dão base para a constituição das percepções juvenis. Trata-se de um jogo em que estas morais coexistem e disputam a legitimidade nos comportamentos dos indivíduos em questão. Tomo como hipótese a ideia de que os jovens pesquisados jogam esse jogo das moralidades discursivas e práticas, tendo como mote a busca de se sentir vivendo, de se sentir parte integrante, dando significação à vida, como diz Elias (1997). Para tanto, segundo o autor, é fundamental ter noção da necessidade coercitiva que os adolescentes sofrem de buscar um significado, um propósito que favoreça a plena realização pessoal e possa ser vivenciado como significativo. Mas, Elias (1997) apresenta a liberdade como elemento essencial para construção desses significados de vida. Para o autor, a realização plena pessoal está relacionada à carreira escolhida, desde que corresponda a três expectativas: estar de acordo com os talentos do jovem, que satisfaça as suas exigências de status e que possa conceder plenitude e significado às suas vidas. No caso dos jovens observados na URLBM, penso que o alcance da satisfação pessoal tem relação com o reconhecimento social fornecido pela prática de ações delituosas, pela “coisa errada”, como é dito na fala de um jovem. Mas compreendo que não é a prática delituosa que diretamente gera essa satisfação pessoal, não é o mal pelo mal, mas a representatividade que o roubo, o assassinato, o latrocínio têm no cenário em que esses jovens estão inseridos. Na fala do adolescente isso pode ser percebido, no seguinte diálogo: - Por que quê tu acha que a pessoa entra no crime? Dinheiro fácil. Assim né... aqui não né, que aqui eu tô começando de novo, mas lá onde eu morava eu tinha moto, se eu quisesse tinha.. se eu quisesse 25 26 tinha arma, tinha cumade . Mas tá interada , né, o que vem fácil, vai fácil. - Por que tu acha que as meninas gostam tanto de menino que tem envolvimento? Porque tem moral. Respeito. Todo mundo pode dizer assim: não tem 27 respeito não. Tem má . Nego passa todo mundo fala: ei má, num sei o que. Mas só que é naquela maldade sabe? Tem uns que fala só na maldade mermo. Como uns e outros fala com o cara mais ninguém sabe tá tramando a morte do cara. A vingança. - Vingança pelo que? Assim pelo, pelo território, chegou agora já tá crescendo. (Reincidente 2, Presidente Kennedy). 25 Cumade = mulher. “Interada” tem valor semântico igual a está sabendo. Alguém “interado” é alguém que está entendendo, tem conhecimento de algum assunto. 27 Abreviação de macho. 26 52 Desta forma, se compreende que os ganhos materiais e com o reconhecimento social, oriundo de práticas delituosas, são envoltos no paradoxo do fácil – “vem fácil, vai fácil” – porque sabem que a qualquer momento tal respeito e moral podem acabar em meio à maldade, vingança e morte, em razão dos conflitos por território. Em outras falas também é posto a importância do reconhecimento pelas adolescentes do sexo feminino sempre relacionando ao “ter cumade”, “as cumade já vão olhar assim”. Parece passar pelo reconhecimento da masculinidade, pelo ser aceito pelo sexo oposto, ser visto como interessante. Tais práticas geram percepções relacionadas à dignidade, respeito, estima, virilidade, enfim, a ideia de que, quem as realiza, é destemido, corajoso e perigoso. Em alguns momentos da vida, quando são apanhados pela institucionalidade, seja da família, do profissional ou dos aparelhos policial e jurídico, precisam jogar o jogo institucional, atender ao chamado da moral social, pela vitimização, ao mesmo tempo em que estão profundamente imbuídos nas regras do jogo da moralidade criminal e suas relações sociais. Em entrevista a um instrutor educacional que trabalha há 13 anos na URLBM, coletei o seguinte relato: É tanto que no Serviço Social eles contam uma história vitimizados pro Ministério Público; a gente também ver essa vitimização e na, e lá, diante do Magistrado, aí é que a vitimização é muito grande; geralmente o que se houve pro Promotor e as conversa com o Juiz: eu tenho uma mulher, eu tenho um filho; meu filho nasceu eu quero ver meu filho crescer, nunca mais vão me ver aqui. A gente ver muito isso aí... quando, aqui dentro, a versão é outra; aqui dentro não existe esposa, não existe filho, o que existe é a periculosidade, é a necessidade que eles têm de se firmarem dentro da comunidade como pessoas perigosas, como pessoas que realmente comentem infracionais como homicídios, latrocínios. É sabido que a fala acima também é construída em meio às condicionalidades instituídas e instituintes do operador do sistema socioeducativo. A intenção é tomá-la como construída dentro do contexto coercitivo, punitivo e inquisitório em que os adolescentes, informantes deste estudo, estão inseridos. O fato de, ao estar dentro da Unidade, dos dormitórios, os adolescentes não se mostrarem fragilizados, nem vitimizados, como tentam mostrar para o juiz, não faz deles meros encenadores de situação. São jogadores do jogo da institucionalidade versus práticas instituintes, criadas no processo de privação de liberdade. O adolescente percebe que é necessário internamente ter outra postura, se autoafirmar frente aos demais adolescentes internos, ao mesmo tempo em que 53 precisa manter a condição de vítima e de arrependido. Isso foi observado em meio à repreensão e vergonha dita pelo ato de chorar, pois muitos adolescentes não queriam demonstrar que estavam chorando. Esse choro é um exemplo do jogo entre instituído e instituinte, ao passo que ele é usado como estratégia de sensibilização do Promotor e Juiz (o choro quase sempre está vinculado à demonstração de arrependimento) e instituinte, pois expressa a subjetividade do adolescente que agora se percebe privado de liberdade (se sensibilizando pelo sofrimento da mãe, temendo a vivência no Centro Educacional e já sentindo o incômodo que é ter sua liberdade de ir e vir cerceada pela reclusão). É nesse cenário de jogo entre instituído e instituinte, envolto por diferentes atores sociais, que os adolescentes em conflito com a lei constroem suas percepções sobre a privação de liberdade na URLBM. Saliento que, muitos deles, antes mesmo de serem aprendidos já tinham informações sobre como era o sistema socioeducativo, o que também influencia essas percepções. Eis aqui, os primeiros passos para compreender as percepções dos jovens da URLBM sobre a privação de liberdade, mas é preciso aprofundar detalhadamente no percurso desta dissertação. Para tanto, inicio com a busca sobre quem são estes jovens. 3.1 OS JOVENS DA URLBM: QUEM SÃO? Para realização deste estudo, considero essencial ter conhecimento sobre quem são os jovens específicos da URLBM. Isso é importante, pois se sabe que a variabilidade das condições sociais existentes em cada sociedade faz com que os jovens vivenciem a juventude de diferentes formas, o que nos permite falar na ocorrência da pluralidade da juventude. (REZENDE, 1989). Os jovens, sujeitos desta pesquisa, são provenientes, em ampla maioria, das classes populares, e situam-se no processo de modernização das sociedades ocidentais relacionadas à utilização de novos meios culturais para racionalizar o processo de inutilização/descarte de coisas e pessoas que não se adaptam aos contornos simbólicos da modernidade capitalista. No caso desta juventude em conflito com a lei, ainda mais desconforme aos ditames racionais do capitalismo, está sujeita efetivamente ao descarte social. É o que Boaventura (2002) apresenta como ausências e emergências. Por meio da criação de uma razão que denominou de razão cosmopolita que é dividida em três procedimentos sociológicos, sendo eles: sociologia das 54 ausências, sociologia das emergências e o trabalho de tradução, Boaventura (2002) faz crítica à racionalidade ocidental mostrando a necessidade de se voltar os olhares aos países que não conseguem acompanhar, na mesma velocidade, as transformações da globalização neoliberal hegemônica. Desta feita, Boaventura 28 apresenta que: [...] o objetivo da sociologia das ausências é revelar a diversidade e multiplicidade das práticas sociais e credibilizar esse conjunto por contraposição e credibilidade exclusivista das práticas hegemônicas. A ideia de multiplicidade e de relações não destrutivas entre os agentes que a compõem é dada pelo conceito de ecologia: ecologia de saberes, ecologia de temporalidades, ecologia de reconhecimento e ecologia de produções e distribuições sociais. Comum a todas estas ecologias é a ideia de que a realidade não pode ser reduzida ao que existe. Trata-se de uma versão ampla de realismo, que inclui as realidades ausentes por via do silenciamento, da supressão e da marginalização, isto é, as realidades que são produzidas como não existentes (BOAVENTURA, 2002, p. 20). Além deste descarte social, posto pela lógica moderna do consumo, há o descarte social posto pelo não enquadramento às regras sociais próprias dos contextos sociais, embasamentos na violência e no crime que muitos desses jovens estão inseridos. Quando indagado se conhecia alguém, vítima de violência, o adolescente expôs: Tenho amigo morto, tenho uns amigo morto. Não, não amigo assim só conhecido. (silêncio) - E eles foram mortos por quê? Porque devia, uns devia outros falava besteira demais ai os elemento vinha e matava. Mas eu não sei dizer qual o motivo não. Conhecia eles assim só de vista, passava na rua e falava também falavam comigo. (Reincidente, Parquelândia). Apesar do adolescente não aprofundar sua fala sobre as motivações dos assassinatos de outros jovens é percebido que eles são consequência do não ajustamento às ordens postas, seja a ordem de pagar, estando devendo, seja por ameaçar a ordem vigente pelo complexo termo “falando besteira”. A Sociologia das ausências ajuda a entender a inversão de visibilidade social que configura a trajetória de vida social dos jovens desta pesquisa. Não há invisibilidade social desses jovens, o que há é uma visão limitada da realidade. Em 28 Boaventura dos Santos traz síntese de sua análise sobre sociologia das ausências e sociologia das emergências em artigo intitulado “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências” Fonte: <www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf>. 55 outras palavras, ocorre a exacerbação da dimensão do mal, irracional e desobediente dos adolescentes em detrimento da dimensão humana, afetiva, solidária que eles possuem. Essa realidade que torna o adolescente visível pelo seu potencial de periculosidade busca constantemente o enquadramento desses jovens como indivíduos a serem isolados, como não assimiladores das regras sociais, como configuração física da ameaça constante de violência e maldade. O que é invisível são os valores culturais, sociais, humanos, as capacidades de aprendizado, de criação do novo, de inserção social que esses jovens possuem. Esse invisível é a realidade ausente, realidade esta que não se mostra aos olhos dos ditames ocidentais de sociabilidade. O que defendo é que o jovem não é invisível, pelo contrário, ele é o tempo todo vigiado, caçado, sitiado, pois ele é visto somente como um símbolo de ameaça a paz e a ordem social posta. Conforme Elias (1997) a dinâmica social é impulsionada pelo conflito de gerações em que as mais velhas procuraram a todo o momento desqualificar as mais jovens. Acredito que Elias queira dizer que a sociedade ocidental requer a existência de uma hierarquia, uma diferenciação de forças para que possa se estruturar as relações sociais. O ter condições de luxar, de se vestir bem, ter celular, cordões, pulseiras, relógios organiza a hierarquia das relações sociais e assim cria os “bichões”. Instigada a saber o que significava propriamente a expressão luxar, perguntei a um adolescente sobre seu significado e ele informou que: Luxar é querer ter alguma coisa pra se amostrar. Tipo assim ó.. eu num dou valor essas coisas não né porque pra mim é só humildade. Mas tipo assim, um celular desse, a pessoa chega perto da menina com um celular desse, ó, o jeito que a menina olha pro cara: vixe cara tem dinheiro né... tá com um celular desse . É isso tá entendendo? É o que eles pensa. (Reincidente, Caucaia). O fazer social desses jovens também é buscado e observado, pois é tido como elemento passível de alteração da realidade. A multiplicidade das práticas sociais é negada pela afirmação da existência de um único fazer social cabível a esses adolescentes. Sendo esse fazer o rompimento com as regras instituídas por meio de ações delituosas. Isso pode ser percebido ao se assistir aos telejornais policiais das emissoras de televisão do Ceará, reportagens em que menores de 56 idade são autores de práticas delituosas, são as “âncoras” de muitas edições 29 .É como se a única coisa que esses jovens tivessem a oferecer e a apresentar fosse a capacidade de praticar violência com crueldade e ironia, sem respeito a qualquer tipo de princípio posto pela sociedade. Essa visibilidade social dada ao jovem, no campo das ilegalidades, é peça fundamental no entendimento de suas percepções. Assim, contribui para que tais percepções sejam construídas dentro do jogo entre a institucionalidade, a lei, a polícia e os jovens, suas práticas e relacionamentos. É como se o adolescente agisse para corresponder às expectativas que a mídia espera que ele haja. A mídia, por sua vez, tem essas expectativas porque o adolescente age assim. Apesar de envoltos nessa trama que os insere ou, pelo menos, pensam ou buscam inseri-los na institucionalidade, no caminho da socialização ou ressocialização institucional, na escola, no mundo do trabalho, na família etc, os adolescentes apresentam ações e pensamentos mediados por outra moral, àquela constituída na criminalidade e outras formas instituintes de pensar e viver, sob as quais a socialização primária das instituições e investimento social parece não alcançar. A questão é que, os jovens aprenderam a estar tanto na caminhada institucional da moral aceita quanto na criminal, assumido outras morais criadas, se digladiando consigo, com seus familiares, amigos, assim como com autoridades policiais e assistenciais com os quais se relacionam. Desta feita, no caso dos jovens em estudo, é complexo conceituá-los de forma generalizada, como jovens em conflito com a lei, abrigados em uma Unidade de Recepção, encaminhados para a moral socialmente aceita ou, ainda, inadequados, bandidos e criminosos incuráveis. Há que se perguntar pelo jogo em que estão inseridos, pelas relações que estabelecem, pelas idas e vindas às instituições e às ruas ou aos seus territórios de origem em que se defrontam com diferentes regras morais, legalidades e ilegalidades, ora sujeitando-se, ora criando novas formas de perceber e agir sobre suas realidades. Certamente, tal situação gera incertezas nas demandas e inserções institucionais e não institucionais, ainda mais, quando alicerçada na “sociedade do descarte” para alguns, como afirmado, a exemplo dos jovens observados na 29 As emissoras de televisão do Ceará produzem juntas seis programas policiais diariamente, além de dois destes reprisarem também diariamente. Ao todo são mais de 14 horas de emissão de notícias ligadas a homicídios, prisões, assaltados, linchamentos, estupros e crimes de uma forma em geral. 57 URLBM. Ou, pelo menos, sociedade que não tem encontrado meios de compreendê-los na sua integralidade objetiva e subjetiva, ou mesmo, contê-los pela socioeducação ou punição. Assim, parece-me que estes jovens compreendem esse jogo e entram nele, assim como, a instituição vai levando e todos vão buscando minimizar as incertezas e construir significações moldadas por regras constituídas tanto no campo das instituições morais, socialmente aceitas, quanto de outras moralidades criadas e fundamentadas em outros espaços instituintes. Para conhecer essas configurações e emaranhados, considerei oportuno, primeiro, reunir dados da URLBM sobre qual perfil possuem dos jovens que por lá passaram, por meio da estatística de seu setor administrativo. Tais dados se constituem com base no levantamento feito de forma manual por um técnico do setor administrativo da URLBM 30 . Essa estatística é composta pelas seguintes categorias: faixa etária, sexo, municípios de procedência, motivos da apreensão infracional e encaminhamentos dos jovens, que foram acolhidos na URLBM durante os seis primeiros meses de 2013. Esta estatística fica armazenada no computador do técnico administrativo responsável por ela e somente são colhidos os dados 31 citados. Não é permitido fornecer informações quanto ao uso de drogas e situação familiar. O perfil, em primeira instância, serve para conhecer os dados da instituição. Por isso, precisei colher outras informações por meio das entrevistas. Ao todo foram realizadas 21 entrevistas: 15 adolescentes; 03 mães e 03 operadores do sistema socioeducativo (Assistente Social da URLBM, Defensor Público e Instrutor da URLBM). No tocante aos critérios para escolha dos adolescentes busquei entrevistar adolescentes que tivessem praticado ato infracional juntos, em que um fosse primário e o outro 30 Em campo observei que muitos funcionários da URLBM são antigos e estão próximos de se aposentar. Isso parece fazer com que eles realizem suas atribuições sem a devida dedicação. Fato é que a estatística apresenta falhas, não sendo permitido o acesso aos números exatos de quantos jovens já passaram pela Unidade de janeiro a julho de 2013. No entanto, isso não altera a configuração dos gráficos. A URBLM é uma espécie de “depósito de funcionários antigos” do governo do Estado que estão próximos a se aposentarem. Exemplo disso é a existência de quatro técnicos administrativos, número maior do que o funcionamento da Unidade necessita. Essa estagnação do funcionalismo público produz outra grande dificuldade que é a informatização do sistema de cadastro dos adolescentes, tendo em vista que os instrutores educacionais não sabem e relutam em aprender a utilizar o computador. 31 Em 2012 a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará-STDS, Secretaria responsável pelo gerenciamento das Unidades de Socioeducação em meio fechado, ordenou que muitos campos da estatística não fossem contabilizados. Com isso não é mais possível saber o grau de escolaridade dos adolescentes, nem informações sobre o uso de drogas, nem com quem esses jovens residem. Apesar de todas essas informações serem prestadas pelos jovens e postas na ficha de recepção, elas não são postas na estatística. Não foi possível ter conhecimento das razões dessa tomada de atitude pela STDS. 58 reincidente. Também busquei adolescentes de bairros diferentes e se possível distantes uns dos outros, além de somente entrevistar adolescentes que estivessem “calmos”, tendo em vista que muitos ficam agitados quando internos. Quanto às mães entrevistei as que estavam ao entorno da Unidade, já os operadores do sistema socioeducativo entrevistei a única Assistente Social que URLBM possui, o único Defensor Público que atende na Unidade e o Instrutor da Unidade foi escolhido por saber se comunicar melhor do que os demais. Os gráficos empregados são do tipo “coluna”, tendo em vista melhor se adequarem às medidas quantitativas existentes utilizadas. Desta feita, tem-se o mesmo universo de 1.359 jovens para todos os gráficos, no período de janeiro a julho de 2013. Os números na vertical representam esse universo e os números na horizontal, suas variações conforme o tema do gráfico. N Nota-se que o pico etário está entre 15 e 17 anos e que o gráfico possui um caráter ascendente, reduzindo bruscamente ao chegar à maior idade. Esse fato se deve a três aspectos: a partir de 18 anos, apreendidos em flagrante delito, os jovens são encaminhados a um Distrito Policial convencional; os jovens internos na URLBM, com 18 anos ou mais, praticaram delito quando ainda eram menores de 59 idade e, devido à emissão de um mandado de busca, foram conduzidos à Justiça 32 para esclarecimento de sua situação judicial ; e, por fim, a descoberta da negação da maioridade quando chegam a URLBM, ou seja, os jovens negam que já possuem 18 anos ou mais, mas são descobertos e não contabilizados no perfil de faixa etária. A idade biológica muitas vezes não coincide com a idade social. Muitos desses adolescentes saltaram etapas ditas como próprias da infância, da juventude. Observando os adolescentes, notei alguns deles com gestos e formas de falar semelhantes ao modo de agir próprios dos adultos. Muitas vezes me surpreendi com a clareza nas ideias, a segurança nas falas, a frieza ao tratar de assuntos que poderiam vir a gerar algum tipo de alteração emocional. Essa observação teve uma concreta personificação quando em um dia de pesquisa de campo me deparei com alguns funcionários da URLBM comentando sobre um menino que fora apreendido praticando arrastões 33 em ônibus. Comentavam que ele era audacioso e, com uma faca, havia praticado roubo pelo segundo dia consecutivo, que o menino “não tinha nem tamanho de gente”. O menino em questão tinha 12 anos, corpo bastante franzino, aparentando, de fato, ter menos de 12 anos, tamanha era a finura de seu braço que não foi possível algemálo, como disse um funcionário. Percebi nele uma tosse pesada, cabelos amarelados, ou seja, tratados “com luzes”, quatro tatuagens, um olhar distante, uma voz rouca 34 . Ainda tentei entrevistá-lo, mas na segunda interrogação ele perguntou se podia parar e não tive como continuar o contato. É notório que está havendo um aumento de apreensões de adolescentes com 12 e 13 anos. É importante frisar que não existe nenhum registro que coloque esse aumento como um boom na prática de atos infracionais por adolescente. O que houve foi um crescimento contínuo de atos infracionais praticados por jovens, tendo também se elevado a prática de atos de maior gravidade. Na fala do instrutor educacional é possível notar esse crescimento. 32 É válido salientar que devido à superlotação dos centros de internação é executada pela Vara da Infância e da Adolescência uma política não oficial de concessão de remissão a esses jovens. 33 Arrastão - expressão utilizada para denominar o roubo a várias pessoas concomitantemente por um grupo de jovens. 34 Lembro-me que fiquei olhando para alguém de olhos tão pequenos e, ao mesmo tempo, senti medo dele. Intrigante, ao passo que eu já havia entrevistado homicidas, traficantes, assaltantes e nenhum deles me fez sentir aquele medo. Infelizmente ele estava bastante disperso e não quis dar entrevista, pois após duas perguntas me indagou se as perguntas eram aquelas e se podia voltar pra lá (se referindo ao dormitório). 60 Quando eu comecei a lotação da casa era em torno de sete a dez adolescentes. Quando nós tínhamos esse número nós considerávamos altíssimo. Hoje a lotação, normal é de dez a vinte. Então houve realmente um aumento muito grande no número de adolescentes. Em decorrência, acredito que seja em decorrência da população, do aumento da população e o aumento também dos atos infracionais. Hoje o normal é nessa faixa de dez a quinze pessoas, adolescentes e a gente ver uma superlotação como a que tivemos ontem cinquenta adolescentes. Acredito que houve um agravamento dos atos praticados antigamente, os atos mais giravam em torno de 155 que é o furto, com algumas exceções de roubo e raríssimas exceções de 121 que é o homicídio, hoje em dia o homicídio tá mais presente, mas o carro chefe mesmo é o uso, é o, é o traficante. É o adolescente que comete ato infracional análogo ao tráfico de drogas. Então esse, essa tem sido a maior incidência como também roubos. (Instrutor URLBM). Entre um questionamento e outro, continuo a busca de conhecer sobre quais jovens se está falando, tanto no discurso acadêmico/científico, quanto no imaginário social. Assim, construí o gráfico de perfil por sexo: Conforme a variação dos meses de janeiro a junho tem-se que, no mês de abril, foram apreendidos 296 adolescentes do sexo masculino e 35 do sexo feminino; já em maio o número de jovens do sexo feminino foi de 32 e do sexo masculino chegou a 254. Tem-se em abril um contingente de meninos 8,4 vezes maior do que o de meninas e em maio a proporção é: para cada oito (08) adolescentes do sexo masculino apreendidos, uma (01) adolescente é apreendida. 61 Os ciclos de vida e a atuação das instituições que atendem jovens autores de atos delituosos se diferenciam quando se trata da questão de sexo/gênero. Dentre as variações de atos tipificados como infracionais pela Justiça, é visível uma quantidade significativa de jovens do sexo feminino praticando tráfico de drogas e roubo, com maior recorrência do primeiro tipo. No caso em estudo e do ponto de vista mais qualitativo de análise, é possível observar que as meninas, quando internas na URLBM, são bem mais difíceis de ser disciplinadas/controladas (gritam, conflitam bem mais, tentam conversar com os meninos, desacatam autoridades). Percebo que, em parte, estas práticas ocorrem, considerando individualidades e particularidades, mas também, com base na situação de gênero historicamente constituída, de subjugação ou vitimização objetiva e subjetiva da mulher, ainda mais de meninas em situação de conflito com a lei. Assim, considero que as meninas acreditam que, por serem do sexo feminino, não sofrerão agressões físicas por parte dos instrutores/policiais, construindo uma certeza de inviolabilidade. Esta realidade tem relação, a meu ver, com o imaginário social feminino da fragilidade que, tanto gera necessidade de romper com esse estigma, tendo que demonstrar força pela própria busca de sobrevivência, como também, a apropriação da vitimização como subterfúgio de melhor lidar ou escapar das situações de conflitos. Procedendo a uma comparação entre o gráfico anterior com a tabela estratificada por sexo e faixa-etária da população de Fortaleza entre 10 a 14 anos e 15 a 19 anos tem-se que o número de jovens do sexo feminino é bem semelhante aos jovens do sexo masculino. 62 Cruzando com os dados de perfil por sexo da URLBM, foge-se a regra da maioria existente ser a maioria apreendida, já que as jovens são internadas em quantidade bem menor. Por esse ângulo pode-se dizer que o crime é predominantemente masculino. Além disso, a dita dificuldade tida pelos operadores diretos do sistema sociojurídico policial 35 em lidar com as jovens se deve a necessidade que as mesmas possuem em se legitimarem nesse universo masculinizado. É como se a não identificação com esse momento gerasse a necessidade de se destacar e, para isso, se utilizam de práticas como a desobediência, a rebeldia, a necessidade de chocar, de mostrar o corpo. Assim, elas se utilizam principalmente de seus corpos. Na fala da Assistente Social da URLBM isso é citado: As meninas são bem mais, vamos dizer assim, “assanhadas”, dão mais trabalho, elas gostam de ser o centro da atenção, elas fazem strip-tease pros meninos. Quando tem uma menina na casa, a casa fica totalmente modificada a dinâmica porque elas são mais barulhentas, elas chamam mais atenção, sabe? Elas gostam de chamar atenção e se expõem pros meninos. Tiram a roupa. É complicado quando tem menina principalmente porque é uma casa que a gente não pode separar menino de menina, elas ficam separadas num quarto, claro que ficam separadas, mas ficam às vistas dos meninos e eles ficam vendo de onde estão elas são vistas pelos meninos; aí aquilo ali assanha os meninos, eles ficam paquerando, perguntando onde é que ela mora. Aí, ali já faz uma balburdia danada. (Assistente Social URLBM). Assim, os operados do sistema socioeducativo relatam que há certa alteração de gênero, na medida em que algumas adolescentes apreendidas, quando encaminhadas à internação, acabam por incorporar características masculinas como o uso de roupas masculinas, e também a ter a homossexualidade como orientação sexual. A fala a seguir da Assistente Social da URLBM, concedida em entrevista, confirma o que alguns outros funcionários relatavam. Vale salientar, que esta profissional atua diariamente 36 na URLBM desde 2008. - E a questão do homossexualismo das meninas depois que entram na internação? 37 Assim isso é mais no Aldaci Barbosa que tem muito esse fato né? Essa questão aí do homossexualismo... agora o que eu percebo é que grande parte das meninas que são apreendidas principalmente as que já tiveram 35 36 37 Assistente Social, técnicos judiciários, instrutores educacionais, policiais. Exceto domingos e feriados. Centro Educacional Aldaci Barbosa Mota atende, em regime de internação provisória, privação de liberdade e semiliberdade, adolescentes do sexo feminino, autoras de ato infracional. 63 passagem no Aldaci todas elas têm, assim, uma característica de homossexual, elas... não sei se elas já eram antes de ir pro Aldaci ou se foi lá no Aldaci que desenvolveram, que aflorou, sei que a maioria delas, uma grande parte tem essa tendência. Você ver que ela tem aquela característica de menino. Inclusive até tem menina que vem pra cá e se recusa a usar calcinha, quer usar é cueca. Muitas vezes as instrutoras vão na hora do banho vão oferecer, vão dá né na hora pra elas trocarem calcinha, short e tudo. Não quero calcinha não, quero uma cueca e quando não tem elas preferem ficar sem, sem a calcinha não colocam calcinha, quer a cueca. Aí, quando não têm elas vestem o short sem nada. Elas têm essa resistência a calcinha. No que se refere à procedência dos jovens, a maioria é de Fortaleza, como é expresso no seguinte gráfico: Fortaleza continua sendo a principal cidade do Estado a ter jovens apreendidos. A estadia em lócus de pesquisa possibilitou a construção de algumas hipóteses, que explicitam tal fato como: o grande contingente de jovens na cidade; a maior facilidade em se adquirir drogas e armas; grande número de efetivo de repressão policial; maior desigualdade social; maior ocorrência de situações que propiciam a prática de atos infracionais. Quanto às demais regiões do Ceará, percebi que as cidades metropolitanas predominam frente aos demais municípios. Nesse ranking Fortaleza é seguida por Caucaia e Maracanaú, sendo estas seguidas por Sobral, fato que demonstra outra característica importante que é a prevalência de cidades polos, depois da região metropolitana. Esses municípios são considerados polos econômicos e base de desenvolvimento para as regiões em que estão inseridos. 64 Tem-se como exemplos: Quixeramobim, Cratéus e Quixadá. Isto é mais bem compreendido pelo quadro a seguir. Mesmo em menor escala, as ações infracionais estão disseminadas por quase todo o território do Estado do Ceará. Entretanto, o interior do Estado 38 não possui espaços de internação, o que impede a operacionalização do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), contrariando o que promulga em seu capítulo sobre gestão pedagógica, tópico Família e Comunidade: As práticas sociais devem oferecer condições reais, por meio de ações e atividades programáticas à participação ativa e qualitativa da família no processo socioeducativo, possibilitando o fortalecimento dos vínculos e a inclusão dos adolescentes no ambiente familiar e comunitário. As ações e atividades devem ser programadas a partir da realidade familiar e comunitária dos adolescentes para que em conjunto – programa de atendimento, adolescentes e familiares – possam encontrar respostas e soluções mais aproximadas de suas reais necessidades. (PARÂMETROS DE GESTÃO PEDAGÓGICA NO ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO, p. 49). 38 Vale salientar, que a cidade de Sobral é a primeira do interior do Estado do Ceará a possuir um Centro Socioeducacional em regime de internação fechado. 65 Essa não efetivação da lei faz com que todos os adolescentes autores de atos infracionais graves sejam encaminhamentos para cumprir medida de internação em Fortaleza, tendo obrigatoriamente que passarem pela URLBM, pois é necessário que o Juiz da 5ª Vara da Infância e da Juventude de Fortaleza autorize o pedido de internação feito pelo Juiz da Comarca do interior. É interessante notar que como diferente o comportamento entre os adolescentes primários e reincidentes oriundos do interior. Além de observado no lócus de pesquisa foi mencionado pela Assistente Social da URLM durante entrevista que assim disse: O do interior ele é sempre mais tímido, ele ainda não tá bem vivido vamo dizer assim nessa, nessa vida né... do crime e sempre eles vem com medo. Principalmente os de primeira viagem, eles veem sem saber o que, que espera por eles aqui. Agora os que já são reincidentes não... já vêm mais sabendo de tudo, sabendo como é lá na internação, já dão até dicas de como é, dizem que tem amigos lá e tudo. Tudo vai depender se é de primeira vez ou não, se é reincidente ou se é primário. Os primários esses sim vêm com muito medo, assim meio encolhido e inseguros. Às vezes eu converso com eles aqui do interior. Ai eles ficam perguntando: Tia como é lá? Eu tô com medo. Será que lá vão fazer alguma coisa comigo, vão bate em mim. Eu noto que eles não tem assim... nem noção do que, que espera por eles por lá, principalmente os primários. É interessante colocar que, mesmo não pontuado pela entrevista acima, observei que esse medo e essa insegurança dos adolescentes primários do interior não são tão percebidos nos primários oriundos de Fortaleza. Não foi possível saber se isso se dá pelos internos de Fortaleza ter a família presente nesse caminhar da apreensão/internação ou se pelo convívio e proximidade destes aos outros adolescentes, que já vivenciaram a privação de liberdade. Independente dos fatores que ocasionam esses comportamentos a intenção aqui foi de pontuar que eles são notados. Outro dado importante que subsidia a construção do perfil desses jovens é conhecer quais são os atos infracionais praticados, que mais motivam apreensões, conforme aparece no gráfico seguinte: 66 O roubo aparece como principal motivador de apreensões, como tendo sido praticado por 906 jovens e sendo seguido pelo: tráfico ilícito de entorpecentes (TIE) com mais de 300 jovens, o porte ilegal de arma de fogo (PIAF) com aproximadamente 300 jovens e os mandados de busca e apreensão (MBA), com aproximadamente 200 jovens. Fato interessante notado em campo é a existência de uma política de liberação dos jovens apreendidos por mandados de busca. Tais jovens alcançaram a maior idade e não cumpriram sentença quando menores. Por isso é emitido tal mandado e a polícia faz a apreensão do jovem. O que pude perceber na minha estadia entre a URLBM e a Promotoria e 5ª Vara da Infância e da Juventude é que há uma “política” de liberação desses adolescentes. Em parte, isso ocorre em razão de alguns jovens estarem afastados da criminalidade, terem residência fixa e emprego e principalmente para reduzir a superlotação dos locais de internação. Na prática, a visão que é transmitida é a de que não há mais motivos para privar de liberdade esse jovem, pois o fato já havia passado e, caso ele volte a reincidir, a responsabilidade já não é do poder judiciário infanto-juvenil. A meu ver, isso demostra que o próprio poder judiciário possui relativa falta de credibilidade nas medidas socioeducativas de privação de liberdade. É como se a maior preocupação fosse “se livrar do problema”. 67 Observei que os atos em agravo à vida, homicídio e latrocínio, tidos como mais graves, são cometidos em escala menor frente às infrações contra o patrimônio, como o roubo e o furto. Sem fugir do foco da pesquisa, mas notando a necessidade de analisar o que é posto neste momento, é observado que há um crescimento no índice de homicídios e latrocínios cometidos por adolescentes; porém, esse aumento é quase irrisório quando comparado aos delitos contra bens materiais. Em números, no mês de janeiro de 2013, houve 10 jovens apreendidos por homicídio e 02 por latrocínio, enquanto que o número de adolescentes acolhidos por roubo e furto foi respectivamente, 141 e 21. Apesar do crescimento de crimes graves, este ocorre mais lentamente do que o crescimento de atos em relação a bens materiais 39 . Ressalto que homicídio e latrocínio são crimes que mais alavancam a discussão e o desejo pela redução da menoridade penal. Crimes que causam grande comoção social por terem como vitimas pessoas de “bem” e como algozes jovens. Estes são publicizados com apoio de mídias sensacionalistas de vertente meramente punitiva, fundamentando o cenário atual sobre o desejo de vingança e de punição, de grande parte da opinião pública brasileira. A questão da menoridade penal se embasa sob uma sociedade punitiva, que constrói representações sobre os adolescentes homicidas, como mote para a redução da idade penal. Com isso, não se pretende eximir o jovem de suas responsabilidades penais, mas enxergá-lo como tal, com possibilidades de responsabilização dentro da sua condição de desenvolvimento e não de punição. Diante desses dados e informações apresento, como alicerce teórico, alguns significados em relação à prática de conflito com a lei e as motivações para ações criminais. Desta feita, quanto à conflitualidade juvenil com a lei se tem conhecimento de vasta quantidade de teorias sobre este assunto. Muitas têm como embasamento a conflitualidade vinculada às perspectivas biológicas, psicológicas ou sociológicas. Claude Dubair (2007) apresenta quatro principais teorias quanto à conflitualidade com a lei. Oriunda da escola de Chicago tem-se a teoria culturalista das “subculturas” delinquentes. Os sociológicos defensores dessa teoria apregoam as condições econômicas e o ambiente em que os jovens estão inseridos como 39 Segundo dados da estatística da URLBM o ano de 2011 apresenta como 32 adolescentes autores de latrocínio e 132 autores de homicídio já em 2012 30 adolescentes foram julgados e sentenciados por latrocínio e 14ª por homicídio. Infelizmente a Unidade não apresenta estatística de 2013. 68 fatores determinantes para construção de uma “subcultura” marcada pela pobreza e pela conflitualidade com a lei. Também, tendo origem na Escola de Chicago, mas fazendo oposição à teoria culturalista, surge à concepção interacionista da rotulagem, que afirma ser por meio da estigmatização que o indivíduo constrói sua identidade embasada na criminalidade, ou seja, ele internaliza o que atribuem a ele. A terceira teoria é a funcionalista do controle social fundamentada na ideia de anomia de Durkheim. Surgida na França (1880-90) esta teoria se propôs a estudar as causas da delinquência e os efeitos das punições nos indivíduos infratores. A teoria mais recente tem origem nos Estados Unidos, é a da oportunidade ou do “vidro quebrado” que traz a ideia de que, mesmo em períodos de crescimento econômico, o número de furtos nos Estados Unidos não diminuiu; em outras palavras, não é a pobreza nem a falta de controle social que dão margem a delinquência. Para os defensores dessa teoria o que dá margem é a descrença nas sanções às ações delituosas e o desinteresse pela ordem social. No contexto da URLBM observei que os operadores do sistema constroem uma justificativa para a criminalização juvenil embasada na junção de três dessas teorias, sendo elas a das subculturas (o meio como determinante do ser), a teoria da anomia em que se parece viver constantemente a necessidade do controle social por meio das punições e a teoria do vidro quebrando em que não se teme mais as punições (no caso a prisão) e não se importam mais com a ordem social. É como se o jovem em conflito com a lei fosse um ser geral, pobre, inserido em um contexto impregnado pela “vagabundagem” 40 e, por isso, na primeira oportunidade, roubasse, usasse drogas e matasse, como se não se importasse com ninguém e não tivesse medo da polícia. Isso é percebido na seguinte fala da Assistente Social: Eu acho que é tanta... Eu acho que é uma mistura de muitas coisas, eu acho que é a droga tomando de conta dessa meninada, com os traficantes no comando né, prometendo muita coisa pra eles e... e vejo também que é a questão da... eu acho que é a questão também deles sentirem que num, que nada, nada dá em nada, a questão da impunidade também é muito forte pra eles eu acho que é isso aí. É a droga e a questão da impunidade mesmo, deles acharem que não dá em nada. E a questão também, eu noto também a questão do consumismo, eles querem comprar, eles querem ter 40 Optei em deixar esta palavra por ser referência comum na linguagem dos operadores do sistema socioeducacional, policial e jurídico e de grande parte da população aterrorizada. “Os vagabundos” é linguagem corrente em diferentes classes e grupos sociais. 69 dinheiro no bolso pra comprar, consumir, né. E eu acho que o caminho pra eles... uma vez eu atendi um adolescente aqui ele me dizendo que não vai estudar, detesta estudar, não quer trabalhar porque diz que em um roubo ele ganha muito mais do que passar um mês trabalhando. Então eu vejo que eles acham que no roubo eles conseguem mais dinheiro e no tráfico também. Com certeza no tráfico eles ganham muito dinheiro e tem uns traficantes aí adotando os meninos né... Aí por isso que eu digo são muitos fatores não é só um fator. E têm também aqueles meninos que eu acho que já nascem com aquela índole, aí de repente o meio favorece né e acaba virando infelizmente um bandido, é triste. São muitos fatores não é só um fator a questão do aumento dessa violência toda. (Assistente Social da URLBM). As teorias e práticas empíricas são pilares para a compreensão do próximo capítulo, cujo objeto é saber sobre os encaminhamentos jurídicos dados aos jovens após apreensão pela polícia, encaminhamento a DCA e posterior internação 41 na URLBM . Com base também nos gráficos trazidos acima, no decorrer desta dissertação, será analisado como esses encaminhamentos são percebidos pelos jovens, por suas mães e pela polícia. Considero importante relembrar que essas concepções/percepções possuem convergências e divergências postas pelo jogo entre o imaginário instituinte e o mundo instituído que formam o social histórico. Enfim, conhecendo os dados do perfil e criminais dos jovens da URLBM, considero importante saber qual o encaminhamento dado ao jovem após sua apreensão, passagem pela URLBM e pelos aparelhos jurídicos (Promotoria e Juizado), porque parto da hipótese de que isto influencia a construção de suas percepções sobre a privação de liberdade e suas vidas. 41 É válido reiterar que essa internação tem duração máxima de 24 horas. 70 Pelo gráfico, é visível perceber o quanto a privação de liberdade continua a ser a medida socioeducativa mais empregada no Ceará e o quanto a prisão permanece sendo a principal saída para socioeducação dos jovens em conflito com a lei 42 que passam pela URLBM. Prova disso é que nos primeiros seis meses de 2013 a medida socioeducativa de advertência foi aplicada quatro vezes, a de 42 Com intuito de tornar o gráfico mais compreensivo opto por já apresentar abaixo a nomenclatura e seus significados dentro da legislação: Abrigo em entidade: medida específica de proteção presente no art. 101, inciso VII do Estatuto da Criança e do Adolescente; CESM - Centro Socioeducativo São Miguel: unidade de privação de liberdade para jovens, do sexo masculino, sentenciados com medida socioeducativa de internação provisória; CSLMF - Centro Socioeducativo Semi-Liberdade Martin Francisca: unidade destinada a jovens sentenciados com medida socioeducativa presente no art. 120 do ECA; CECA - Centro Socioeducativo Dom Aluísio Lochader unidade de privação de liberdade para jovens entre 18 e 21, que cometeram atos infracionais quando menores; CEPA Centro Socioeducativo Patativa do Assaré: unidade de privação de liberdade para jovens, do sexo masculino, sentenciados com medida socioeducativa de internação (no mínimo seis meses de privação de liberdade); CEDB - Centro Socioeducativo Dom Bosco: unidade de privação de liberdade para jovens, do sexo masculino, entre 14 a 17 anos sentenciados com medida socioeducativa de sanção (30 a 90 dias de internação); CESF - Centro Socioeducativo São Francisco: unidade de privação de liberdade para jovens, do sexo masculino, reincidentes sentenciados com medida socioeducativa de internação provisória; CSP - Centro Socioeducativo Passaré: unidade de privação de liberdade para jovens, do sexo masculino, reincidentes entre 12 e 15 anos sentenciados com medida socioeducativa de internação provisória; CEAB - Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa: unidade de privação de liberdade para jovens, do sexo feminino, sentenciadas com qualquer tipo de medida socioeducativa de internação; LA - Liberdade Assistida: medida socioeducativa presente no art. 118 do ECA; Prestação de Serviço a Comunidade – PSC: medida socioeducativa presente no art. 117 do ECA; Advertência: medida socioeducativa presente no art. 115 do ECA; Remissão: iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo, Art. 126 do ECA; Conselho Tutelar: em raras vezes os jovens são encaminhados ao Conselho para serem acompanhados pelos conselheiros. 71 internação de jovens do sexo feminino foi aplicada em 126 casos e a internação provisória de adolescente do sexo masculino chegou a torno de 1000 jovens. Essa tendência à privação de liberdade da juventude brasileira como forma de socializar e educar é historicamente legitimada pelo processo de avanços e retrocessos das politicas públicas para juventude brasileira. Conhecer a historicidade dessas políticas ajuda a compreender o cenário visto na URLBM, em que a primazia na aplicação de medidas de aprisionamento de jovens é vista por parte dos operadores do sistema socioeducativo como medida cabível e necessária; pelos adolescentes como parte de um todo, que dá significado a suas vidas (que como parte de algo não é um fim, que para uns tem mais aspectos negativos do que positivos e para outros, o contrário); pelas famílias/ parentes como momento de dor, tristeza, vergonha e/ou alívio. Sposito (2008) analisa que o jovem brasileiro, como ator de políticas públicas, passa de algoz a vítima, já que, no período colonial, os jovens eram vistos como problemas sociais e as ações destinadas a eles eram de caráter controlador e repressivo. Posteriormente, foram criadas ações no âmbito da saúde (política de prevenção e combate a AIDS), da violência (tendo o assassinato do índio Galdino 43 e o crescimento do número de homicídios a jovens como estopins para tais ações) e do trabalho (com o desemprego - fora necessário a criação de programas de inclusão social). Estes novos sentidos denotam outra visão de jovem, agora como vítima de uma sociedade desigual e cidadão detentor de direitos. Ressalto que não há intenção de colocar as medidas aplicadas como descabidas, tendo em vista que o debate posto pelas instituições de defesa dos direitos da criança e do adolescente cearenses se contrapõe à privação de liberdade quando é desproporcional e pesada demais frente a condição juvenil. Porém, no cotidiano da URLBM foi visto que grande parte dos roubos 44 é cometida com arma de fogo e/ou por adolescentes que são reincidentes. Nestes casos, o ECA, em seu art. 122, dispõe: 43 Acerca de 16 anos, no dia 20 de abril de 1997, cinco jovens de classe média de Brasília atearam fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, de 44 anos, que dormia em uma parada de ônibus na Asa Sul, bairro nobre da capital Federal. Fonte: <www.g1.com/Noticias/Brasil/0,,MUL237645508,00.html>. 44 Ação delituosa mais motivadora de apreensões. 72 Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional de grave ameaça ou violência pessoal; II- por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III- por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. Com isso, compreendo que a crítica deva se referir à lei quando não é aplicada em consonância com a realidade e condição dos jovens, o que não significa dizer que a privação de liberdade não põe em prática o que o ECA e o SINASE preconizam. Em relação à reincidência, em levantamento realizado pela pesquisa “Participação no Monitoramento Nacional das Medidas Socioeducativas em Meio Fechado”, 39% (327) dos jovens internos em espaços socioeducativos do estado do Ceará, entre janeiro e fevereiro de 2009, já tinham mais de duas internações, 29% (239 adolescentes) estavam cumprindo primeira privação de liberdade, 31% (253) cumpriam segunda privação de liberdade e 1% sem informação. 45 A prática de crimes ditos como de “grave ameaça”, a reiteração dos atos infracionais e a inoperância dos dispositivos legais da garantia de direitos faz com que os espaços de construção social de direitos dos jovens percam força frente à ênfase dada pela mídia às ações praticadas pelos jovens. Os delitos são considerados, pela maioria da população, em seus diferentes grupos sociais e 46 culturais, como graves delitos , gerando o anseio de afastamento dos adolescentes do convívio social. Em outras palavras, apesar dos avanços nas políticas de proteção e defesa dos direitos dos jovens brasileiros o cerceamento da liberdade pela reclusão continua a ser a solução para muitos casos de conflito juvenil com a lei. (SPOSITO, 2008). Compreendendo que esses adolescentes estão inseridos em contextos delineados por uma sociabilidade violenta - onde estes não são somente algozes, mas também vítimas - é importante compreender como eles relatam a violência no 45 A pesquisa foi realizada pelo Núcleo de Pesquisas Socais da UECE, onde tive oportunidade de participar como pesquisadora. Os objetivos foram: informar as características de todas as instituições e unidades envolvidas na aplicação e execução das medidas socioeducativas de meio fechado, incluindo o perfil do seu público-alvo; e como funciona o sistema socioeducativo estadual dentro da perspectiva do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. 46 Segundo 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 2013, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em números absolutos, a população carcerária e sob custódia das polícias no ano de 2011 era de 417.254, número que em 2012 sobe para 515.482. Já quanto ao número de adolescentes apreendidos, segundo relatório “Um Olhar Mais Atento às Unidades de Internação e de Semiliberdade para Adolescentes”, o sistema socioeducativo brasileiro oferece 15.414 vagas, mas abriga 18.370 internos. O Relatório foi lançado no dia 08 de agosto de 2013 pela Comissão de Infância e Juventude do Conselho Nacional do Ministério Público. 73 seu cotidiano, buscando conhecer quais são os tipos de violência que afetam esses jovens diretamente. Sabendo que a discussão de violência quase sempre desemboca na ideia de repressão, surge a necessidade de perceber como é a relação entre adolescente e polícia, notando que a polícia está presente durante todo o processo de apreensão e apresentação a Justiça, o que será abordado no próximo capítulo. Também será analisada a ideia da punição como forma de agir repressivamente e controlar os corpos dos adolescentes. 4 PERCEPÇÕES SOBRE VIOLÊNCIA, POLÍCIA E PUNIÇÃO - Você tem algum amigo ou parente que foi vitima de violência? Minha mãe, quando eu era pequeno meu padrasto batia nela [...] Tenho amigo morto, tenho uns amigo morto. Não, não amigo assim só conhecido. (silêncio) - E eles foram mortos por quê? Porque devia, uns devia, outros falava besteira demais, aí os elemento vinha e matava. (Reincidente, Parquelândia) Já, morte. O meu tio, mataram ele... de bala. Quando era eu mais pequeno. - E a pessoa que matou ele foi presa? Sei dizer não. Acho que já tá morto. (riso) (Reincidente, Centro) O meu irmão. E foi doença? Foi não, foi os outro mermo que matou ele, lá é Piçareira e Canal. - E prenderam a pessoa que matou teu irmão? Não, mataram ele de bala, ele era lá do ABC. É porque eles não gostava dele não, do meu irmão. (Primário Palmeiras) - E quem é esse rapaz que tá na tua blusa? É um conhecido meu, morreu roubando. Parece que foi na João Pessoa. Eu tava viajando, aí quando cheguei a menina tinha mando fazer a camisa dele, aí me deu uma. Dezenove ano ele tinha. - Mas quem foi que matou? Foi o vigilante. Fazia pouco tempo que ele tinha se soltado fazia nem um ano. (Primário, Damas) É recorrente entre os informantes deste estudo o conhecimento de amigos, familiares ou conhecidos vítimas de violência. O cotidiano marcado, muitas vezes, pela violência e pela circularidade de informações sobre mortes e outros delitos, alia-se a constituição da identificação criminal dos adolescentes, colaborando, assim, para círculos de vingança e a consequente naturalização da violência. Muitas vezes, propagam-se notícias de homicídios em decorrência de vingança e da prática de “fazer justiça com as próprias mãos”, fazendo parecer que a justiça na periferia de Fortaleza está sendo feita pelos homicídios. 47 Assim, passei a compreender que as percepções dos adolescentes sobre sua situação criminal e posterior perda da liberdade são permeadas de significações imaginárias sobre o mundo que os cerca, portanto, pela violência e morte, conjugando-se a quase indiferença como modo de vida. Durante a pesquisa de 47 Levantamento feito pelo O POVO com base em relatórios da Secretaria da Segurança também aponta que 83% dos homicídios foram com arma de fogo. Das 772 pessoas assassinadas nos dois primeiros meses de 2014, 400 (51%) eram jovens, com idade entre 15 e 29 anos. Jornal O Povo 17/03/2014. Fonte: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/cotidiano/2014/03/17/noticiasjornalcotidiano ,3221360/homensjovens-sao-maioria-das-vitimas-de-homicidio-no-ceara.shtml>. 75 campo, observei que somente um adolescente demonstrou certa sensibilidade ao relatar o homicídio de seu parente. Não é que estes jovens estejam anestesiados e não sintam mais com a perda dos entes. A raiva e o medo diante desta situação é presente, mas a indiferença parece vir à tona como uma maneira defensiva de continuar a vida, tamanha a recorrência de ações violentas, em que os adolescentes são vítimas e algozes. Não é possível “viver” o luto: não há tempo. A dor é imediatamente substituída pela necessidade de vingança, dando continuidade ao ciclo de violência. Cada vez mais, é perceptível que o sistema de justiça juvenil e as políticas públicas voltadas para a juventude não alcançam pertinentemente este quadro circular de morte e vingança, nem a existência de outros delitos, como roubo e tráfico de drogas, contribuindo para o distanciamento entre estes e os demais segmentos sociais. O sistema de vingança, assim, estende-se a todos. Acusados e acusadores podem ser os adolescentes ou qualquer pessoa atingida pela violência, propagando a identificação criminal para os jovens e a vitimização na população. Permanece a dúvida sobre quais chances estes jovens têm de constituírem outra identidade diferente de seu retrato criminal plenamente instituído. Acho que sozinho é meio ruim. Apareceu tanta gente, tanto senhor, tanta mulher assim nas ruas. Outra, nós não queria celular não, nós queria uma moto. [...] Aí a moto vinha assim na rua, aí o cara vinha assim pela calçada, aí o cara veio com negócio de [...], ora ele foi se intrometer nas coisa, nós nem ia rouba ele. Aí ele foi e avisou o cara da moto, aí o cara da moto saiu e ele ficou. (Primário 1, Presidente Kennedy). Roubando ônibus. Nós fomo pego lá na praia. Nós ia pra praia e roubemo o ônibus. Nós tinha descido e tava correndo, aí os homi pegaram nós, lá na frente. Nós tinha acabado de descer do ônibus. (Primário, Granja Portugal). Vezzula (2004) apresenta que a transgressão sob a forma de ato infracional está diretamente ligada às diversas violências sofridas pelos adolescentes. Dessa forma, ao invés de confirmá-los como algozes, os adolescentes em conflito com a lei são, antes, vítimas de uma sociedade que tem penalização, reclusão e “reeducação” como ditames mais coerentes para a correção de sua situação criminal. Porém, este sistema punitivo tem apenas negado aos adolescentes a possibilidade de uma emancipação alicerçada na utilização do diálogo, da criatividade e das potencialidades juvenis. 76 Nesse cenário, Vezzula (2004) apresenta os adolescentes, dentro do universo jurídico das Varas da Infância e da Adolescência, como objetos da execução de “normas de proteção dos cidadãos judiciais” (VEZZULA, 2004, p. 59) e não como “sujeito de direito” (idem, p.59). A violência segundo Walter Benjamim (1975) está intrinsecamente ligada à origem do direito, sendo este elemento de poder instaurador e mantenedor do direito. Para Benjamim quando a noção da relação entre violência/instituição está longe dos indivíduos, estas instituições estariam fadadas ao fracasso. O que gera prestígio e admiração não é o direito, mas sim o poder; para o autor, essa é uma das possíveis explicações quanto aos levantes históricos de admiração por bandidos. Denomina-se de poder imediato que o bandido possui de romper com o destino, se utilizando da violência como um meio e não um fim. Um aparelho do Estado moderno que possui essa característica de possuir poder é a polícia, o chamado poder de polícia. A polícia até ultrapassa esses poderes, agindo quando a ordem jurídica não tem condições de alcançar, em que a lei não abarca. Frente a isso concordo com as considerações de Michel Misse 48 (1999), quando este cria o conceito de “poder de polícia”. O sociólogo, que estuda a conduta da polícia em comunidades carentes do Rio de Janeiro, apresenta o poder discricionário que dá aos policiais a autoridade não apenas de prender, tampouco somente de investigar, mas também de julgar e aplicar verdadeiras sentenças aos indivíduos moradores destas comunidades. É interessante observar, na fala de um adolescente, como ele relaciona o discurso do Juiz ao do policial em que ambos o aconselham a uma mudança. Fui bem tratado, eu pensei que os cana iam era me quebrar onti, chegou um perto de mim e fez só assim ó (encarando) e eu tava algemado né pá trás... aÍ começou a querer entrar no meu psicológico óia. AÍ eu querendo gaguejar só que eu não tremi não né eu: é o que mah!, num sei o que... eles queria me levar na casa do camarada lá né. Eu disse: tem nada a ver, já tinha ouvido falar né o nome Big Big, o cara é.. o cara é forte né. Eles queria me levar lá na casa do cara lá. Aí eles: bó lá na casa do Big Big, leva tu lá. Eu: Óia isso aí é com vocês mesmo, eu nem conheço esse Big Big. Ai pronto, aí me levaram na minha avó e pronto. - E como é pressão psicológica? É eles querendo assim, tipo assim bota medo no cara pro cara falar. Aí queria que eu entregasse o cara. Pior que eu nem conheço o cara mermo não. O cara ligou pra mim perguntando se eu queria, deram meu número pra ele né. Aí só manda, aí ele: ei mah tá em tal canto só buscar. Aí tá certo. Só o número dele mesmo que eu tenho. (Primário, Messejana). 48 O artigo Sobre a construção social do crime no Brasil é parte da tese de doutorado de Misse. 77 O “poder de polícia” de Misse (1999) surgiu para mim por meio de falas que mostraram a polícia investigando, julgando e executando sentença por meio da “pressão psicológica” e/ou da “peia”. - E a policia pegou? Meteu a péia, foi lá pro IML... trouxeram nós pra ir, aí lá pro IML, depois trouxeram nós pra cá de novo. (Primário, Granja Portugal). Nós dobramo aí, aí ele (outro adolescente): vai mah. Nós não sabia que a vítima tava dentro da viatura não. Eu acho que a viatura era policial, a vítima. Aí na hora que nós dobra na rua, a vítima já vem é dentro da viatura já. Nós dobramo bem aí na rua, aí os cana fizeram só abrir a porta e pronto. A vítima queria bater em nós, no meio da rua e tudo, aí encheu um bocado de gente pra bater. Aí os cana: não, não deixa, deixa, já tá bom, tá bom. Aí botou nós na viatura e trouxe nós pra cá. (Primário, Presidente Kennedy). Os discursos demonstram que os adolescentes já percebem como função da polícia abordar, investigar, bater e prender. É interessante também observar como a polícia utiliza diferentes estratégias para exercer seu “poder de polícia”, seja pressionado um jovem, geralmente, pequeno traficante, para que ele entregue o traficante maior, em troca de sua liberação, seja batendo ou deixando que ele apanhe da população. Sabe-se que, cabe à polícia civil fazer o serviço de inteligência investigativa na perspectiva de prender traficantes. À polícia militar, que está na rua fazendo abordagens, não cabe julgar se o adolescente era usuário ou traficante: isto deve ser feito na delegacia pelo delegado de plantão. Eu torcendo que não chegasse nenhuma viatura que os camarada que me pegaram era mó limpeza né, nem... tava só conversando mermo, perguntando... aí os que chegaram era mais bichão. Aí teve um que chegou do meu lado assim como a falar: vai mah! entrega o cara, se entregar né, tu vai simbora daqui agora. Eu, não mah! tem cara não, é eu mermo. Tu é de maior? Não sou de menor. (Primário, Messejana). A vivência na Unidade me proporcionou o contato tanto com os adolescentes quanto com seus familiares, como já demonstrados nos capítulos anteriores. Em uma das rodas de conversa que indiretamente se forma entre as mães, à espera para entrada na sala do Promotor, o assunto foi a abordagem policial e ouvi narrativas sobre abordagens violentas e ilegais e, em menor escala, tranquilas: Aí foi que um rapaz disse: você não tem direito de fazer isso não, cidadão, ela é mãe dele e ele é de menor. E ele: pode voltar, pode voltar. Aí eu tive 78 que voltar e ele apontando a arma, era duas viatura nera, eu acho que é três né? Eu acho que é. Eles apontando a arma. Aí eu voltei em casa, me vesti, peguei o registro dele e fui deixar lá, lá onde eles tavam. E o [nome do policial] mandando eles invadir lá em casa. Invade a casa dela, invade a casa dela, a casa dela deve ter droga! - Quem é [nome do policial]? É o que trouxe ele pra cá na viatura [disse a numeração da viatura]. (Mãe, Não Identificada). Pois eu não tenho o que dizer não, me trataram bem. (Mãe, Não Identificada). Na perspectiva de melhor compreender a polícia, dialogo com Ricardo Moura (2011) quando este elabora uma análise teórica bem próxima das observações realizadas no campo de pesquisa. O autor compreende a categoria polícia como entidade complexa e contraditória. Ou seja, se por um lado a polícia mantém e restaura a paz/ordem, por outro, ela instiga a violência, a depender do contexto em que ela atua. Para Moura (2011) a polícia apresenta-se como entidade instigadora da violência quando pratica ações que excitam os grupos juvenis rivais a matarem seus desafetos; quando age arbitrariamente, invadindo residências sem autorização, expondo famílias a situações vexatórias; quando se exime de apreender e deixa que crimes por vingança ocorram. É interessante notar como as falas das mães se diferem das dos adolescentes. No discurso da mãe existe a ideia do direito, do ser cidadão, do dever de proteção ao menor. Mas ela também compreende a força coercitiva da polícia por meio da arma, pois a mãe, a exemplo do depoimento anterior, na tentativa de se aproximar do filho que estava dentro da viatura, foi impedida, tendo uma arma apontada em sua direção. Observa-se, no entanto, que nem todos os policiais agem da mesma forma. Prova disso é que outra mãe relata nada ter sofrido e ter sido bem tratada. Com isso, percebo que as significações e percepções vão sendo criadas pelos jovens, pelos familiares e pelos policiais como nova forma de lidar com a captura no cotidiano, para além das regras do mundo instituído. Assim, antes do regular encaminhamento à DCA, há capturas e solturas pela polícia mediante surras e deslocamentos nas viaturas, práticas ilícitas de concessões da liberdade aos jovens em troca de dinheiro, solturas e facilitação de fuga para não ter trabalho de levar o jovem à delegacia, demora na prestação de socorro e encaminhamento ao hospital em casos de jovens feridos. 79 Nota-se que, no contexto social-histórico dos adolescentes privados de liberdade na URLBM, a contraditoriedade da violência se dá por esta ser, por um lado, uma forma de visibilidade, reconhecimento social e instrumento influenciador da construção de identidades e, por outro, ela adentra no campo do indizível (VEENA DAS, 1999), daquilo que não se encontra palavras para ser dito, dada a sua conotação de horror. As narrativas, muitas vezes, encontra-se em um nó da contradição. Quando questionei sobre o motivo dá pratica infracional, a resposta foi: sei lá, deu vontade, nós saímos e fomos atrás. Assim, ao mesmo tempo em que a violência tem uma linguagem que se mostra, tem uma intenção de ser para identificação com o crime, ela se cala, se oculta, se recolhe. Penso que, a linguagem fortuita, calada, o não-dito, pode ser uma busca de redução das penalidades judiciais, ou a busca de ocultar um lado brutal do ser humano não aceito pela sociedade. Mas, também, pode ser o fato de não conseguir expressar o que aconteceu, não gostar efetivamente de relembrar da violência cometida, se envergonhar, se arrepender do ato praticado. A violência, deste modo, não se limita a mera relação causa-efeito, ação-reação: ela é categoria complexa, contraditória, linguagem que fala em silêncio, grito indizível. O que percebo é que tem emergido, entre os jovens, o conhecimento do que é concebido no imaginário social como uma conduta social correta e uma incorreta. É como se razão/lógica e psique, que formam o imaginário sócio histórico, estivessem cheias do conhecimento das regras do que é “certo” e do que é “errado”, mas também do que é possível ou do que querem fazer simplesmente porque se acostumaram a fazer. Compreendo que o que é considerado “errado”, vivido pelos jovens, é percebido por eles como algo possível de ser feito, não como algo “normal” no mundo da institucionalidade, mas como algo necessário à manutenção da vida social no contexto em que estão inseridos. Abaixo exponho um fragmento de entrevista em que se percebe que esse “o errado”, tanto pode ser expressão da proibição social, quanto é errado porque a polícia diz que é, tendo a polícia como representação da lei, da justiça, das regras. 80 - Tu falou abertamente o que tu faz... tu disse: eu roubo. Na liberdade e tudo. E assim como é que tu ver isso? Errado. Eu vejo que é uma coisa errada. - Mas, porque que é errado? Porque é errado. Eu tô pegando uma coisa que não é minha né. - E pegar uma coisa que não é tua é errado, por quê? Porque é roubo. - E quem diz que é roubo? A polícia né não? A polícia diz que é roubo. (Reincidente, Centro). Nesse contexto, articulo a polícia com a ideia de Wacquant (2001) quando este apresenta que a polícia deixou de ter apenas o papel de agente repressivo e passou a exercer a função de instituição educadora social. Ou seja, ao movimento da sociedade são apregoadas a polícia funções educativas e ressocializadoras, que não lhe são inerentes. Além do que, na atualidade, o que vemos é que a polícia é treinada para o confronto, para o embate e não para realizar atividades educativas e sociais. Pode ser essa uma das causas de termos conhecimento, no lócus da pesquisa, da realização de ações truculentas e agressões físicas aos jovens por coisas banais, como os jovens estarem falando alto, fazendo brincadeiras uns com os outros e/ou cantando alto. Wacquant, em As Prisões da Miséria traz, o discurso do Ministro do Interior francês e faz análise sobre as novas funções impostas à polícia: A polícia foi instituída para combater a delinquência, o flagelo do banditismo ou da criminalidade. Pede-se bem mais a ela atualmente: combater o mal da exclusão social e seus efeitos tão destrutivos, responder aos sofrimentos provocados pela inatividade, a precariedade social e o sentimento de abandono, colocar um freio na vontade de destruir para mostrar que existimos. É aí que se situa hoje em dia a linha principal de nossas instituições, a linha de frente onde se situa a ação cotidiana dos senhores. (Relatado pelo Libération, 1999). [...] Em termos claros, embora sua vocação não resida nisso e ela não tenha nem competência nem meios para isso, a polícia, deve daqui em diante fazer a tarefa que o trabalho social não faz ou já não faz mais desde que se admite que não há(verá) trabalho para todos. À regulamentação da pobreza permanente pelo trabalho assalariado sucede sua regulamentação pelas forças da ordem e pelos tribunais. (WACQUANT, 2001. p. 129). 4.1 PASSADA A PRÁTICA VIOLENTA DO ATO INFRACIONAL E A APREENSÃO PELA POLÍCIA: A INTERNAÇÃO Inicio este item com esta frase, mas considero que ela precisa de complementação. Passada a prática violenta do ato infracional e a apreensão pela 81 polícia, vem a internação e, com ela, todo um aparelho punitivo que não surte o efeito desejado pela família nem pelos operadores do sistema socioeducativo. Assim, a percepção sobre a privação de liberdade, para os adolescentes, tem relação com a punição e não com qualquer aspecto pedagógico da tentativa de socioeducação. Fazendo as devidas correções quanto ao tempo e contexto histórico temse como referencial teórico, sobre a categoria punição, as ideias de Michel Foucault (1997). Esta escolha tem relação com o fato de, no dia a dia da pesquisa, ter observado que os adolescentes não consideram o caráter socioeducativo da privação de liberdade, mas o aspecto punitivo. Observei, por meio de dados obtidos na URLBM e registrados em diário de campo, que a principal forma de punir jovens que praticaram ato infracional é o controle do corpo, dos atos, do ir e vir. Não “pode fazer isso, não pode fazer aquilo”, frase dita por um adolescente, representa a ideia de punição pelo controle, como contraposição ao livre arbítrio, à liberdade. - Como é está interno? É ruim né porque a pessoa tá presa né. A pessoa tá preso nunca é bom. É bom a pessoa tá solta né, preso não tem livre arbítrio, não pode sair, não pode assistir TV, não pode ver a família, a namorada, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo.... Então é ruim. (Reincidente, Caucaia). Neste sentido, a ideia foucaltiana do corpo como elemento central para exercício da punição se encaixa na realidade vivenciada na URLBM. Essa cultura da punição reflete na medida de privação de liberdade, que passa a ser considerada como a melhor maneira de tentar adestrar os comportamentos juvenis. Para isso há uma série de “rituais” (procedimentos) que vão desde a apreensão desses jovens pela polícia até sua liberação pelo poder judiciário. Todos esses “rituais” têm como fio condutor a compreensão de punição como controle do corpo, dos atos e o entendimento de que é por meio disto que pode haver o adestramento dos comportamentos juvenis. Nessa caminhada da pesquisa fui percebendo que as categorias se intercruzam e a discussão sobre violência e polícia sempre remete a outra categoria: a punição. Inicialmente, esta se personifica pelo fato dos adolescentes estarem privados de liberdade. Mas quando é percebido que os adolescentes parecem não sentir a punição com o fato de estar “parando num canto só”, isto se torna um ponto 82 reflexivo e gerador de uma mudança de comportamento. Assim, torna-se necessário criar novas formas de punição, que pode ser denominada de micro punições. Essas micro punições são outras formas de enquadramento dos adolescentes, mediante maneiras agressivas ou displicentes em relação ao atendimento e aos cuidados necessários. A ideia é mostrar para os jovens que, na teoria eles têm direitos, mas na realidade da URLBM, na privação de liberdade, existem as próprias leis dos instrutores e da polícia. Para essa discussão de punição e privação de liberdade juvenil trago como expoente referencial Michel Foucault (1997) e a sua análise sobre o disciplinamento dos corpos e da vigilância dos comportamentos. É importante entender que essas micro punições se dá em um contexto onde a maioria dos profissionais que mais lidam com os adolescentes tem a visão seguinte: A privação de liberdade em si pra eles quando se trata de, das, né nem preventivas, o termo certo é, é.. das provisórias. Quando tratam das apreensões que resultam em provisórias eles encaram como uma engorda, 99% não sei se só por uma questão de desabafo eles encaram como uma engorda. Ou seja, como um período em que eles ficaram livres durante um certo tempo de, de drogas, onde eles vão comer melhor do que comem em casa, vão ter uma assistência maior durante esses 45 dias. É como quem diz: eu vou recarregar as baterias pra quando sair voltar a cometer os atos infracionais. Agora quando se trata já de uma privação de liberdade maior, uma sentença de 06 meses a 03 anos já se nota uma preocupação maior do adolescente em não cumprir a medida, em querer surgir aí já se tem um cuidado maior ou então da contração de um advogado porque a defensoria pública ela tem muitos casos então ela não pode dá uma atenção diferenciada. Então já se nota uma preocupação maior nessa questão. Mas a privação de liberdade, as provisória ou então a semiliberdade eles encaram como um divertimento, mais ou menos como um divertimento. (Instrutor URLBM). Após essa entrevista, surgiu o seguinte questionamento: como é possível realizar um atendimento socioeducativo, que deve ter como embasamento as prerrogativas dos instrumentos de direitos das crianças e adolescentes, quando a visão é de atendimento de indivíduos infratores sem possibilidade de reeducação? Quando a certeza, por parte da instituição, é a de que, quando os adolescentes saírem da privação de liberdade, irão voltar a praticar atos infracionais? Então, qual a razão de tudo isso? O cenário é, então, realizar a punição mediante a medida de privação de liberdade, mas, quando esta não parece ser suficiente, o jeito é utilizar outras formas, que denominei de micro punições. Assim, tendo conhecimento da 83 ilegalidade de se praticar tortura e maus tratos e, sendo o espaço dá URLBM pequeno, o que faz com que familiares e outras pessoas escutem quase tudo o que lá acontece, essas micro punições ganham grande espaço nas práticas do cotidiano da Unidade. Interessante também notar quão diferente é a fala do Defensor Público sobre a Unidade. Qual foi a primeira impressão tida da Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro? O sentimento do atraso, da ignorância, da ausência deliberada de horizonte para os jovens em conflito com a lei, pois quase a unanimidade das crianças e adolescentes são pobres. Na pesquisa diária que elaboro, os casos típicos são: filhos de pais separados ou já falecidos, o que os obriga a residir com avós ou tios; deixaram de estudar de forma precoce; residem em subúrbios da capital cearense e são usuários de drogas. O Estado que não apresenta as políticas públicas na infância é o mesmo que se apresenta para punir na puberdade. Na sua concepção como os adolescentes percebem a privação de liberdade? O nome medida socioeducativa de internação é um eufemismo. Na verdade, trata-se de um presídio juvenil. A percepção, em regra, é negativa. (Defensor Público lotado na Delegacia da Criança e do Adolescente – DCA de Fortaleza, Ceará). Para o entrevistado, a questão do ato infracional praticado pelos adolescentes tem relação menos com tentativas de punição e mais com a condição social e juvenil dos adolescentes internos, que não recebem do Estado os cuidados necessários a sua fase de desenvolvimento, mas apenas a busca de resolver pela punição. A ideia foucaultiana dos modelos punitivos e que as formas de punição acompanham as exigências postas pela sociedade é base para se perceber como a busca por punição está enraizada na mente dos instrutores 49 da URLBM. Muitos operadores do Sistema de Justiça Juvenil não acreditam nela própria, considerando o descontrole da violência praticada pelos jovens. Diante disso, concebem formas maiores de punição como alternativa, ou, no máximo, concebem a ideia da educação para o trabalho, exigência da sociedade, como a melhorar maneira de viver em sociedade. Assim a profissionalização por meio do trabalho é vista como categoria central, ideal para o processo prático socioeducativo vigente. Para muitos, a educação é, geralmente, sinônimo de profissionalização e de trabalho, para o tipo 49 É válido salientar que os instrutores são as pessoas que mais tem contato com os adolescentes quando estes estão internos na URLBM. Muitas vezes chegando o adolescente a ter contato somente com eles. 84 criminal do jovem, em detrimento de outros aspectos fundamentais para o desenvolvimento integral da criança e do adolescente. A ideia é para a “pessoa viver melhor em sociedade”. Pra Unidade o que tá faltando mesmo, eu senti, no sistema é a falta de investimento em atividades realmente significativas. Nós temos notícias que nos Centros Educacionais algumas escolas como SANIANDS, não a SANIANDS ainda existe, como a de ferramentaria, carpintaria foram desativadas. E foram criadas atividades ligadas a hip hop, a capoeira, a parte cultural que não deixa de também ter o seu significado. Mas existe uma grande diferença do adolescente ele aprender uma profissão no Centro Educacional pra ele aprender a dançar ou somente a questão cultura. Entendo eu que na questão da profissionalização e da educação é que deveria ser investimento, os investimentos deveriam serem voltados pra isso. No próprio Centro deveria ser mostrado a questão da, da seriedade do ato infracional que esse jovem cometeu. A questão da, da... de tentar ensiná-los a questão da empatia se fosse com eles como seria, coisa parecida. Então o que existe, é isso, no Centro não existe a educação devida. Desativar uma marcenaria pra ativar uma escola de hip hop a gente nota que a sociedade só perde com isso. Não que o hip hop leve a alguma perca, ele tem o seu significado, ela poderia até existir, mas nunca desativar um curso profissionalizante onde se ensina uma profissão, onde se ensina a pessoa a viver melhor em sociedade. (Instrutor URLBM). Observei que, na tentativa de reflexão, muitos instrutores compreendem a socioeducação, mas acreditam que não funcionam, “poderia até existir” a cultural e a arte, mas o melhor é a profissionalização. Claro que a profissionalização é importante, considero, mas com qual medida é possível dizer que é mais importante do que a cultura e a arte dirigida à condição juvenil, ou vice-versa? Percebo que, ao invés de apostar nas medidas socioeducativas como reconstituição da responsabilização do adolescente mediante sua inserção no processo de seu desenvolvimento integral (educação, trabalho, saúde, cultura, arte, restabelecimento de vínculos e valores), prefere-se apostar em medidas como inserção em profissões, seja qual for, e as micro punições. Isto porque não há mais a crença no sistema e na possibilidade dessa reconstituição. O jeito é punir, constranger e enquadrar. A meu ver, estas manifestações, crenças e descrenças influenciam negativamente as percepções e condutas dos adolescentes em relação à medida de privação de liberdade, seja no sentido de também desacreditar, seja na forma de burlar a lei e continuar a vida, já que identificados criminalmente. Uma forma de micro punição, para mim, tem relação com o tratamento dado ao adolescente durante atendimentos de técnicos e como permanecem enquanto aguardam as escutas da promotoria, do juiz etc. Quanto iniciei minha 85 pesquisa os adolescentes esperavam para ser ouvidos pelo Promotor, sentados no chão, no fundo de um corredor que dá acesso a sala do Promotor, enquanto seus familiares também permaneciam no mesmo corredor, mas para estes haviam cadeiras de plástico. Achei constrangedor e desnecessário manter aqueles adolescentes, que já estão escoltados por policiais armados, algemas e sentados no chão em um corredor tão estreito e sem nenhuma possibilidade de fuga. Com o passar da estada na Unidade e esporadicamente assistindo algumas oitivas na Promotoria, notei que haviam colocado duas cadeiras e o restante dos adolescentes ficava sentado, às vezes, algemado. Figura – 3: Local onde os adolescentes são postos enquanto aguardam para realizar procedimento policial e para serem ouvidos pelo Promotor de Justiça. Outro meio de micro punição é a maneira como os instrutores tratam os adolescentes, sempre falam gritando ou de forma grosseira, quase sempre demorando para atender os pedidos feitos pelo adolescente em relação ao atendimento de suas necessidades básicas 50 . Isso é percebido, principalmente, quando os adolescentes solicitam para os instrutores telefonarem para as suas famílias e comunicarem sobre sua apreensão; ou, ainda, quando a família está na Unidade, mas o Serviço Social 50 51 está fechado, não havendo permissão, por parte Um pedido que nunca é negado é o de ir ao banheiro. No entanto, já tive conhecimento de um caso em que o adolescente defecou dentro do dormitório por demora do instrutor em atender ao pedido feito pelo adolescente. 51 O Serviço Social funciona apenas de 07h às 14h, que é responsável por realizar o atendimento à família e ao adolescente. 86 dos instrutores e policiais, para a família/mãe ver o adolescente; às vezes, ele 52 sequer sabe que a família esteve em busca de vê-lo : - E a sua mãe como tá? Ela chorou ontem, quando ela veio aqui de noite. (silêncio) - Ela te viu? Viu só uma vez que o policial não tava deixando não. - Como foi que ela viu? Foi só na hora que eu fui no banheiro que tem tipo um banco né? Que bota o cara algemado e bota no ferro. Aí ela viu só eu indo pro banheiro. - Aí ela disse o que? Ficou chorando. (Primário, Damas). - Como você está, tranquilo.. tá com medo? Tô com medo não. Quero só avisar pra minha mãe pra ela não ficar preocupada. Deixei o telefone com a mulher, aí eu pensei que ela nem tinha ligado por isso que eu fiquei perguntando direto. (...) Tô só pensando na 53 minha mãe que ela já tá preocupada né. Que ele ali caiu e pra poder avisarem a mãe dele, passou um dia todinho, à noite até 12 hora, ainda passou o outro dia. Aí todo mundo pensou que ele ali tinha morrido. Por isso que eu pedi logo pra avisarem. (Primário, Presidente Kennedy). Percebe-se, assim, que, mesmo antes do atendimento, a representação oficial é de que o corpo deve sofrer, deve ser punido pela espera, pela demora, pela escassez de acolhimento e atenção etc. Observei outros exemplos. Quando os adolescentes desobedecem a regra da espera e do silêncio e ficam cantando, por exemplo, ou gritando para falar com seus parentes que estão do lado de fora da Unidade, ou ainda, quando ficam “puxando” conversa com outros que estão em dormitórios diferentes, são ameaçados de serem algemados, de chamar a polícia para entrar no dormitório e fazer uma vistoria, enfim, práticas sobre o corpo, para o controle do corpo. Em um determinado momento em que estava observando, fui orientada a não sentar onde os jovens estão, porque “é sujo”, afirmou um funcionário em alto e bom tom: “sente aí não; esses menino passam por tanto canto imundo!”. Enfim, a punição também passa pela busca de isolar, inferiorizar, diminuir os jovens. Para Foucault, a sociedade monárquica é caracterizada pelo castigo corporal, sendo aplicado de forma regrada. Já a sociedade disciplinar é marcada pela existência do público e do privado em que o processo é o ato público e a prisão é a punição secreta. Neste tipo de sociedade ocorre a autonomização da execução 52 Às vezes chegam até a comunicar a família e não avisam ao adolescente. O fato da não comunicação fere art. 107 e a restrição da presença de pais ou responsável fere o art.111 §VI ambos presentes no ECA. 53 Expressão utilizada para dizer que o adolescente foi apreendido. 87 penal. É nela que a representação da punição é mais importante que a punição propriamente dita. Como se houvesse um raciocínio lógico que ditaria: ao pensar no delito, logo se pensaria na pena, como se um estivesse acoplado ao outro. Na URLBM a representação da privação de liberdade juvenil, como punição, é desacreditada por instrutores, policiais e adolescentes. Muitos fazem piada por estarem na Unidade ou em algum Centro Educacional cumprindo medida de internação provisória: é apenas um momento da “engorda”, do “comer e dormir”, relembrando os depoimentos. É também negativa, a punição propriamente dita é “mó paia”, “ficar o tempo todo num canto só”, “ver o sofrimento da minha mãe”. Assim, de uma forma ou de outra, ela perde legitimidade e relevância e crescem outas práticas que legitimam bem mais o modo de vida dos adolescentes: em especial, a certeza de que vão voltar, a identificação crescente com a criminalidade e a afirmação da masculinidade, da coragem, da força que parecem confluir com a violência cometida. Assim, a percepção da realidade desses jovens parece ser constituída sob uma arena de conflitos entre o instituído e o instituinte em que ao se perguntar sobre o que eles acham da internação eles respondem: - Ruim, preso né. (Silêncio) - Ruim como? Sei dizer não só sei que é ruim, ficar sem fazer nada. (Reincidente, Centro). - E que que tu acha da Unidade de Recepção? Boa. - Boa como? No modo de tratar aqui tá bem melhor do que a última vez que eu vim dá primeira queda não tinha... antes eles não dava colchão não, dava o colchão só na hora de dormir. Agora a pessoa fica com o colchão o dia todo. - E qual a diferença de está aqui e na liberdade? Tudo, tu é doido, ver minha mãe sofrendo. Só pagar pelo meu erro agora. [...] ela já sofreu demais, quase perdeu o emprego por causa de mim indo me visitar. (Reincidente, Parquelândia). - E como é está aqui? É ruim, porque é ruim mermo. Eles diz que ficar lá é bom, mas quando você chegar lá você, você vai só pensar só na sua família, nos seus amigo, vai ver como é ruim tá distante deles. Você com sua televisãozinha em casa você se senta assiste aqui a vontade lá não né. Que aqui é ruim mermo eu digo... Bagunça direto. - E tu já ouviu falar na engorda? Eles aí diz é muito: eu sou só pra engorda, eu lá acho ruim.. tô precisando engordar mermo. Os menino fica falando: eu vou só pra engorda. Eu não sou gordo de ruim mermo que lá em casa eu como mar que... direto comendo. Os menino aí fica só falando... negócio de Dom Bosco num sei nem o que é isso, Passaré, Patativa um negócio assim... ficam dizendo o 88 lugar que eles vai. Até o lugar que eles vai eles já sabe onde é. Tão dizendo que vão só pra engordar só 45 dia mermo e vão simbora. (Primário, Parque Santa Rosa). Eu tava aqui sábado, aí segunda foi.. levaram lá pro Promotor aí ele mandou nós vim pra cá que o Juiz ainda não assinou não, ele vai vim hoje de tarde. - Hoje é terça-feira e tu está aqui desde sábado... que tu está achando de tá aqui? Não né mah.. só sinto saudade da minha mãe, do meu pai e do meus irmão. [...] O pior é porque eu só sinto saudade da minha mãe. - E você já viu sua mãe esses dias? Só onti. Ela disse porque eu fiz isso, eu não!, porque eu tava dentro dum carro roubado... (Primário, Messejana). Eu pensei que eu ia logo era pro, pra FEBEM, os policial me trazendo só rodando comigo e eu com sono já. Eu imaginei né.. eles falou assim: vixe! vai dormir bem com um monte de macho. Eu, égua mah, chegar na cela bota logo a cara de mau pra eles se interar do movimento. Aí eu cheguei tinha só dois pivete, aí os pivete: qual é as área pivete? Aí eu dei a ideia de onde eu era né, aí perguntaram por que que eu cai né... aí começamo a conversar até umas hora ..... aí o carcereiro aqui: Ei mah! ó a zoada aí. Aí né.. conversamo, eu dormi, acordei hoje quase oito hora. - Fora isso, o que tu acha de está privado de liberdade? O melhor é que a gente tá guardado né... o pior é que o cara num sabe nem quando vai sair. (Primário, Messejana). - E como é tá preso? Sofrimento, sofrimento e a saudade. De não ter a família todo dia por perto. Como eu lhe disse eu tinha que fazer se não fizesse... as outras vezes foi coisa da cabeça mesmo, foi pela onda dos meu amigo. Aí fui fazer a primeira vez e fui preso. (Reincidente, Parquelândia). - E como é está interno? É ruim né porque a pessoa tá presa né. A pessoa tá preso nunca é bom. É bom a pessoa ta solta né, preso não tem livre arbítrio, não pode sair, não pode assistir TV, não pode ver, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo. Então é ruim. (Reincidente, Caucaia). E aí, o que que está achando daqui? Mó paia, na rua é muito melhor. Fica só nesse aí quartinho trancado. Esses outro aí só falando besteira. Negócio de... fica tirando prosa uns com os outro. Parece que é doido. [...] Eu nem sabia que aqui era desse jeito... que tinha esses negócio aí pro menor ficar. Ora fazia só passar aqui ou ganhava uma LA ou então ia preso. Só isso mermo. (silêncio). - Tu achava que era só passar aqui? Só passar ia pego aí trazia aqui só pá tipo na delegacia de maior? Né num passa dela delegacia né.. pronto a mesma coisa. (Primário, Presidente Kennedy). O melhor é que nós tamo protegido e o pior é por causa dos familiares que fica decepcionado com a pessoa... conhece outras pessoa e fica protegido. (Reincidente 2, Presidente Kennedy). Percebo que, apesar da descrença e falta de legitimidade na medida de privação de liberdade, algumas regras institucionais e de convívio entre seus iguais, neste espaço, parecem chamar atenção para o mundo instituído. Têm regras, sim, 89 mesmo que tentem burlá-las e precisam, muitas vezes, cumpri-las, até para poderem encontrar seus familiares e saírem de lá mais rapidamente. E, assim, comparam sua situação de privação com a de liberdade no cotidiano, no mundo instituinte da vida infracional e da relação com seus familiares, amigos e conhecidos. Eles mesclam seus sentimentos e práticas, ora abraçando a institucionalidade, ora criando práticas instituintes na tentativa de escapar da internação e continuar a ser reconhecido como igual pelos demais adolescentes. Em outras palavras, o discurso do arrependimento, do choro, do “nunca mais volto aqui” não nega a fala do “eu vou só pra engorda”, “acho ruim não, tô precisando engordar mermo”. Em uma das falas anterior, nota-se quanto a polícia instiga o adolescente: “vixe, vai dormir bem com um monte de macho”, e o adolescente cria logo uma resposta: “vou colocar logo a cara de mau”. Observa-se, aqui, a criação de um comportamento pela necessidade de demonstrar masculinidade, coragem e força. É nessa dualidade entre os „desconfortos‟ da perda de liberdade, sofrimento e decepção da família, mas também proteção à vida, comparada aos riscos e realizações da vida infracional que esses jovens vivem a privação de liberdade. Ela é percebida pela maioria dos informantes como um momento de “não fazer nada”, de provisoriedade, de dar um tempo na vida da rua, que serve para resguardar suas vidas, proporcionar melhoria nas condições físicas, mas também é desconfortante e causa decepção e sofrimento para suas famílias. De tanto os adolescentes relacionarem o caráter negativo da internação ao sofrimento de suas mães/familiares, busquei ouvir algumas mães e saber qual era a percepção delas sobre a privação de liberdade. - Como é que é está aqui? Como é que é ter um filho preso? Ah! ter um filho preso não é muito bom não né? Que a gente... é ruim? É ruim. Que a gente num quer um filho da gente atrás das grandes. É ruim pra gente, é só as mãe que sente é... o que que a gente passa. Na cabeça deles eles não sentem nada não. Pra eles num é nada, mas pra gente é. - A senhora acha que na cabeça dele ele pensa assim? Na cabeça deles eles pensam assim porque sai, vai fazer de novo. Tanto conselho não precisa tá fazendo o que não presta no meio do mundo, tem o que quer e vai fazer o que não presta aí, tá ai, ó, onde vai cair. É ruim, é né, que a gente não quer nada de ruim pro filho da gente. Que... uma coisa que aconteceu... como eles tavam dizendo que lá no Serviluz reconheceram ele, os cara já juraram de matar ele. De uma hora pra outra ele pode tá aqui, pode tá em qualquer canto, quando ele sai matarem ele aí, como é que fica? Ruim é, né, ninguém que nada de ruim prum filho da gente, quem procura é eles né? (Mãe, Reincidente, Mucuripe). 90 Interessante notar como é massifica por diferentes sujeitos a ideia da punibilidade pela privação de liberdade. A ideia da falta de funcionalidade da medida é construída por operadores do sistema socioeducativo, como também pelos adolescentes, pelas famílias e pela polícia. Seja no sentido de produzir no adolescente algum processo de autorreflexão e empenho na conduta de vida após a internação, seja no sentido de gerar dor e sofrimento ao ponto da internação ser temida. Para mim, apesar de não haver ênfase, observei, em campo, que a internação na Unidade atua na vida de muitos desses adolescentes como instrumento de restauração e fortalecimento de seus vínculos familiares, pelo menos naquele instante, laços que o crime, a droga e a violência trataram de dissolver. Ainda sobre as micro punições, há um dado relevante. Observei conversas sobre a impossibilidade de tratamento mais duro em relação ao adolescente. Acredito que, dentre outros fatores, pela inserção de um Defensor Público nesse contexto de apreensão, internação e apresentação à justiça. Em entrevista ao Advogado Público, que desde agosto de 2003 está lotado na DCA, este assim descreveu sua prática profissional: Eu participo das oitivas dos adolescentes perante o Ministério Público. Em primeiro lugar, antes das audiências, eu converso com todos eles e catalogo as informações sobre a vida pessoal e as peculiaridades do fato. Ciente destes dados, elaboro um plano de defesa. Em regra, temos obtido êxito. Os atendimentos envolvem os adolescentes e seus familiares. Nunca antes havia tido um advogado que atendesse os adolescentes dentro URLBM, que orientasse coletivamente todos os jovens antes da ida a Promotoria, que participasse veementemente das oitivas questionando de forma incisiva algumas medidas socioeducativas sugeridas pelo Promotor. Observei que quando o Defensor Público está presente o trato com os adolescentes é menos ríspido por parte dos instrutores, não ocorre truculência no diálogo entre policiais, instrutores e adolescentes e os pedidos dos adolescentes são brevemente atendidos. O que observei no contexto de controle do comportamento infracional juvenil cearense é uma sociedade resultado da mesclagem de características punitivas veladas, próprias do universo privado e, ao mesmo tempo, públicas, visíveis como que para servir de exemplo. Neste caso, há uma busca pela punição pública visível aos olhos de todos, como se o momento do linchamento, por 91 exemplo, já servisse como elemento restaurador do ato delituoso cometido. Fazer sentir dor, humilhar, tratar mal atuam como elementos punitivos e geram em seus executores uma sensação de justiça feita. Isso se dá talvez por estarmos vivendo a crise da representação da punição em que a coerção social não encontra mecanismos de se manter pela força; em que as maiores ações coercitivas se dão por meios ideológicos. Segundo o Professor Doutor George Mattar Villela 54 , na sociedade disciplinar ocorre à transfiguração da pena – educação, adestramento, cura e correção – que ocorre por meio do exercício da lei (essa ideia vai se desenvolver e globalizar, por exemplo: hospital, escola, indústria). Nela o juiz se transforma num gestor de sentenças e a prisão em 20 anos se tornou a única forma de punição. Este caráter de mero gestor de sentenças é facilmente perceptível quando se compreende a existência de um verdadeiro “percurso institucional” em que o adolescente é apreendido, sentenciado e, caso receba medida de privação de liberdade, é encaminhado a uma Unidade de internação provisória. Dependendo do comportamento e ato infracional cometido, o adolescente, após 45 dias (prazo máximo para realização de audiência), será encaminhado para a medida socioeducativa de liberdade assistida. Esse “percurso institucional” já está tão encrostado não apenas nos operadores do sistema sócio jurídico, mas também nos adolescentes que, antes mesmo de irem para audiência, já sabem para qual medida socioeducativa serão encaminhados. Eles absorvem as medidas instituídas e as representam como corriqueiras, como afirma um adolescente. - E como é a audiência? É falar lá com o Juiz pra ver se vai ser liberado ou não. Diz (o Juiz) que não é pra nós fazer mais isso. Dá um emprego, dá serviço comunitário, só isso mermo. Dá conselho pra nós não fazer mais isso os policial, mermo fala que é pra nóis sair dessa vida que não tem futuro não. (Reincidente 2, Presidente Kennedy). - E o que tu acha que vai acontecer contigo? Eu vou pro Passaré né não? [referindo-se a um Centro Educacional] -Por que? Porque tava roubando. - E por que não é o São Miguel? [Centro Educacional São Miguel] Porque eu tenho 13 anos, pode ir pra qualquer canto que eu vou. (Primário, Granja Portugal). 54 George Luiz Mattar Villela é Doutor em Antropologia Social e Professor Adjunto do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e lecionou o Curso: “Sobre Vigiar e Punir de Michel Foucalt”, promovido pelo Laboratório de Estudos da Violência, nos dias 31 de julho, 01 e 02 de agosto de 2013, na Universidade Federal do Ceará, com duração de 6 horas/aula. 92 Os menino aí fica só falando... negócio de Dom Bosco num sei nem o que é isso, Passaré, Patativa um negócio assim... ficam dizendo o lugar que eles vai. Até o lugar que eles vai eles já sabe onde é. Tão dizendo que vão só pra engordar só 45 dia mermo e vão simbora. (Primário, Parque Santa Rosa). A ideia de mandar “sair dessa vida” e “não tem futuro não”, acaba por colocar os adolescentes como indivíduos que vivem uma vida no crime, como se o jovem não tivesse somente praticado um ato infracional, mas como se ele estivesse imerso em uma vida criminal. O termo vida, aqui, traz com ele uma amplitude do crime no indivíduo e participa, assim, do processo de internalização da identidade criminal juvenil. No discurso de uma mãe de adolescente é visto essa ideia de vida do crime e aqui se ver como essa identidade é construída não apenas pelos jovens, mas pelos discursos instituídos dos policiais, dos operadores do sistema socioeducativo. Eu chamo ele pra dentro de casa ele não quer, mulher. Eu chamo ele pra tentar, pra arrumar... pra butá ele no colégio, tentar arrumar um curso pra ele, uma coisa... ele num quer. Então pronto. - Mas ele diz por que ele não quer? Ele diiiz, ele diz, ele diz. Nam mãe, num quero estudar não. E eu (disse o nome do Filho) o que é que tu quer? É Nêgo nasceu pra ser é... Nêgo nasceu pra ser vagabundo vai morrer vagabundo. (Mãe, Reincidente, Mucuripe). Percebe-se, assim, que parte significativa dos adolescentes recebe a 55 mesma sentença , não havendo um atendimento individualizado, permeado pela escuta ativa do indivíduo que, além das representações sociais internalizadas, detém a significação imaginária social, ou seja, aquilo que é absorvido pelo instituído ao mesmo tempo relacionado ao instituinte. As revelações mais interiores que o adolescente poderia fazer, caso efetivamente fosse ouvido, na maioria das vezes, ficam na obscuridade e não são levadas em conta para a devida sentença e posteriormente responsabilização do adolescente. Destarte a prática do ato infracional ultrapassa a palavra dita e o ato consubstanciado na legislação e na cabeça do juiz que sentencia. A ideia da significação imaginária social pode nos fazer compreender que o dito e o não dito, o revelado e o não revelado, ao lado da história social do adolescente, tem muito a 55 A predominância do emprego de uma medida socioeducativa vai depender do Promotor que está lotado na Promotoria – Projeto Justiça Já – na prática, o Juiz “assina” a sentença que o Promotor indica. Quando iniciei a pesquisa (setembro de 2013) a medida de Liberdade Assistida era a mais deliberada; ao final da pesquisa (fevereiro de 2014) foi a Prestação de Serviço à Comunidade. 93 revelar sobre qual medida seria mais apropriada a cada indivíduo, para efetivamente responsabilizar e levar a reflexão sobre o ato infrator e não apenas levar a compreensão de mais uma repetitiva medida de privação que todos já sabiam ser a sentenciada. 4.2 O “NÃO FAZER NADA” NA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE COMO VIABILIZADOR DAS PROSAS, CONVERSAS E CANTORIAS Neste momento do trabalho, saliento que, ter conhecimento do que os adolescentes ficavam fazendo nos “dormitórios”, foi elemento significativo para compreender a dimensão do instituinte e me aproximar da subjetividade desses adolescentes, daquilo que, muitas vezes, é velado na dimensão instituída pelo sistema sócio jurídico policialesco vigente. Observei que o tirar “prosa” é o que eles mais fazem, além de ser a ação mais citada durante as entrevistas. Ao que parece e por informações dos jovens o tirar prosa tem sentido negativo, se dá quando um jovem fica caçoando do outro, praticando bulliyng, chamar de homossexual é um exemplo. São Miguel só num, São Miguel só não é melhor por causa das prosa. Dou valor muito não. - E o que é “prosa”? Pessoal frescando com a cara do cara. Os menino lá frescando com a cara da pessoa todo tempo. [...] Fala num sei o que.. chama o cara de viado, 56 num sei o que.. chama o cara de ducento é prosa. (Reincidente, Parquelândia). - E o que que ficam fazendo aqui? Rapaz eu tava refletindo na vida né... ver se vale a pena ficar aqui ou ver se vale a pena na liberdade. Eu sei que vale a pena ficar na liberdade mermo né... [...) Rapaz os outros ficam só fazendo baderna aí, bagunça... essas coisa assim. A única pessoa que pensa lá mermo onde eu to só é eu e o menino que caiu mais eu. [...] Conservinha, assim, assim, assim, sabe sabe conversa dos menino... brincadeira, march! eu não sei tirar prosa né, fico só na minha mermo. (Reincidente, Caucaia). Se pensar é se valer das representações e as representações se constroem ao nível do imaginário, observo que o imaginário é necessário ao pensamento. Segundo Castoriadis (1982) os esquemas de imaginação somente se tornam pensamento devido à presença dos signos. É por meio desses signos que o 56 Ducento referência ao artigo 200 do Código Penal que faz menção ao acusado de ato violento ao pudor, conhecido popularmente como estupro. 94 fluxo representativo se “materializa”, sendo a linguagem o signo de maior relevância. É por meio da linguagem que a consciência se comunica com ela própria e com as demais consciências. Assim para passar esse tempo “ruim” os adolescentes conversam, cantam, tiram prosa e picham as paredes dos dormitórios com seus nomes, apelidos e siglas das gangues dos quais fazem parte. As conversas entre os adolescentes se dão bastante no sentido de saber de qual território o adolescente é (qual é as área pivete?), qual o ato infracional praticado (caiu pelo quê?), se é primário ou reincidente (1ª queda é?) e como foi a abordagem policial. No tocante a conversa me surpreendi como é dada importância ao território, como o território fala por si só, como ele traz consigo uma identidade basicamente marcada pela violência Fiquei só pensando lá né, aonde eu moro lá... uma hora dessa era pra mim tá era lá. Livre lá, solto, ir aonde eu quero, esperando só o horário da minha mãe ligar e mandar eu ir pra casa e as hora aqui custa a passar que nem presta, custa a passar demais. [...] ficam cantando aí direto [...] tinha um cantando aí num sei o que papai Noel de preto veio me buscar, um negócio assim. Eu esqueci o nome da música. (Primário, Parque Santa Rosa). - E de ontem pra cá, o que os menino ficam fazendo? Muitas coisa... só brincando, tirando umas prosa. (...) umas prosas que eles tem de mal gosto, falando de partes íntimas. [...] conversa, vários tipo de música funk, forró, música romântica. (silêncio). - Já falaram aqui pra mim de um homem de preto, papai Noel de preto? Brinquedo Assassino, o nome da música. [...] a vida do crime né. O brinquedo assassino é a arma, que é um brinquedo assassino. Dizer mais não. (Reincidente, Centro). Brinquedo Assassino Grupo: A Família Toda criança sonha em ser feliz Jogada no mundão, do crime um aprendiz Cheiro de morte espalhado no ar... Papai Noel de preto veio me buscar Deus ilumine o paraíso da criança Mesmo seus problemas vem do jardim de infância Mesmo se a policia não matasse fosse um bem Mesmo se um pastor no psico rouba alguém... Porque a vida sempre ofereceu pra mim a morte A morte me chamou pra brincar me oferecendo a sorte Nunca ninguém me deu um ponto positivo Quando fui roubar me chamaram de agressivo Vim de uma família desestruturada Que a fome fez da mãe de um homem uma empregada Pro boy pisar, me enfurecer, me enlouquecer Foi nessa que um "tiozinho" veio me dizer: Primeiro te darão um oitão e umas paradas Pra vender na esquina e viciar a molecada 95 Depois darão Carro, casa com piscina e pá... Depois o diabo vem na porta me chamar Refrão: brinquedo assassino não sai da minha mente... Era de ferro, com doze balas no pente Brinquedo assassino não sai da minha mente E o fim de ano foi melhor pra muita gente(x2) Jogava vídeo game quando alguém me chamou Levantei, abri a porta nem vi quem atirou Minha mão tá gelada, não sinto meu braço Não posso me mover do pescoço pra baixo Pelo corpo todo o gelo amargo do frio O eco da quadrada Do monstro me ferindo Se eu tivesse tido chance seria jogador Cantor de rap pra expressar minha dor Sei o que o mundo sempre ofereceu para nós Vem a parte podre muitos contra nós pobreza e frustração Na alma a revolta na calma se sente o trauma em sua volta o Paraíso é meu paradeiro Normal pra mim Assim, ao analisar a letra de Brinquedo Assassino, vê-se que um jovem narra o que se passa em sua mente enquanto agoniza após uma tentativa de homicídio. A música é um nítido signo de linguagem que materializa o fluxo representativo da vida juvenil. Esse fluxo se dá entre a consciência do jovem com ela mesma e as consciências que o cercam. O cantar Brinquedo Assassino é parte integrante do processo de tornar a imaginação um pensamento. O fato de a canção representar ações que os jovens internos na URLBM também praticam e sentem, como jogar videogame, jogar bola, ter medo de morrer, entre outras, faz com esses jovens se enxerguem na letra. Cantar ajuda a legitimar as razões de estar ali, seja pela “família desestruturada” que traz a letra, seja pela “pobreza e frustração”. Por fim, abordo também sobre as pichações que observei quando fui até a porta de alguns dormitórios. É interessante observar que somente nos últimos dormitórios há pichações. Indaguei-me sobre o motivo de ser delas e como os adolescentes faziam aquilo se até mesmo suas unhas eram cortadas quando entravam na Unidade, ou seja, os internos não tem acesso a qualquer tipo de material que pudesse produzir as pichações. 96 Figura – 4: Espaço de espera para audiência com o Juiz Figura – 5: Dormitório URLBM 97 Quanto às razões dos nomes riscados nas paredes obtive como respostas: É pra quando... se interar que, ele fala assim né: ei mah taca nome aqui que, que vim pra cá, vai se interar né dá onde é que o nego é, aí eles bota nome. Deixa o nome dele lá, tem lá um bocado de nome lá DD num sei o que, Carlinho um bocado. (Primário, Parque Santa Rosa). Só pra marcar que passou aí, faço, nem impede de botar nome aí. (Reincidente, Parquelândia). Também busquei saber como conseguiam fazer aquilo, porém nunca obtive nenhuma resposta. Já o instrutor da URLBM disse 57 que: Sim, a pichação é uma forma é... aqui na Unidade a gente tentou diminuir, eles fazem pichação muito com doce. - Com doce? Com doce, depois da refeição era servido o doce e eles pichavam aí, nós retiramos o doce e agora eles picham com fezes. Eles fazem as necessidades e com as fezes eles riscam as paredes. É nojento mais é assim mesmo. Assim, observei que existem estratégias de sobrevivência às horas, noites e até dias passados privados de liberdade e que, ao mesmo tempo, possibilitam sobrevivência, essas estratégias são mecanismos de uma identidade criminal juvenil. Tanto esta identidade quanto as percepções sobre a privação de liberdade vem sendo construída antes mesmo da privação de liberdade, em seus espaços de socialização primária e secundária (família, escola e rua). Compreendendo a dinâmica da Unidade foi possível notar algumas semelhanças nas histórias de vida dos adolescentes, semelhanças estas que deram subsídios para um olhar mais adensado sobre a existência de diferentes formas de se perceber a privação de liberdade juvenil. Com isso o próximo capítulo delineia essas características de vida e os tipos de percepção de privação de liberdade. 57 A Assistente Social da Unidade nem os adolescentes entrevistados fizeram nenhuma menção que se assemelhasse com a fala posta pelo instrutor. 5 “AQUI CADA DIA É O CAPÍTULO DE UMA NOVELA... SÓ FAZ MUDAR OS PERSONAGENS, MAS AS HISTÓRIAS SÃO QUASE AS MESMAS, SÃO MUITO PARECIDAS”. É com essa frase dita por uma Assistente Social da URLBM que inicio este capítulo, apresentando outras características dos adolescentes observados no decorrer da minha pesquisa na URLBM. Para além do perfil estatístico da Unidade e das representações sobre eles, há outros termos que configuram suas vidas e modos de ser e, por isso, continua aqui a pergunta “quem são os jovens da URLBM?” Tratam-se da construção de outro perfil, uma novela, cujos capítulos repetem as histórias dos personagens, os adolescentes em conflito com a lei. Apesar de toda pesquisa existir um planejamento prévio de ações a ser desenvolvido, meu campo de estudo se mostrou bastante flutuante devido à rápida 59 conturbada 58 e permanência dos adolescentes na Unidade, o que me impossibilitou de realizar mais de uma entrevista com o mesmo adolescente. No entanto comecei a notar que os adolescentes possuíam histórias de vida muito parecidas e que essas semelhanças ainda não constavam em nenhuma estatística ou documento da Unidade, tampouco da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social. 60 A privação de liberdade parece ser uma das fases de um processo que aqui definirei como construção de uma identidade criminal juvenil. É nesse processo de identificação criminal que surge a percepção da privação de liberdade na linguagem dos meus informantes. Assim, essa “identidade juvenil do crime” se constitui mediante uma espécie de conglomerado de acontecimentos, que seguem uma recorrência tamanha, chegando a parecer regra geral. Desta forma, a vida desses jovens é marcada por algumas ocorrências comuns que, nos próximos parágrafos, tento reconstituir em pelo menos seis aspectos mais recorrentes. 58 59 Por lei os adolescentes devem permanecer somente 24 horas na Unidade. A permanência dos adolescentes é conturbada, pelo fato de sofrerem condução sistematicamente de manhã para Promotoria e à tarde para o Juizado. No intervalo desses atendimentos fazem as refeições e em alguns casos veem a família. 60 Órgão responsável pelo gerenciamento da URLBM. 99 1. Alterações nos arranjos familiares e/ou falta de legitimidade desses arranjos, como se percebe nos seguintes diálogos: - E a família? Tá com um ano. Tá com um ano e dois mês por ai. Só que daquele tempo ela separou porque meu pai bebia muito, fazia muita confusão em casa. Ela não tava aguentando mais não. Eu também não achei muito ruim não porque o cara que tá com ela é legal que só, ajuda é muito ela e gosta dela que nem presta „aff Maria‟. (Primário, Messejana). - E teu Pai? Faleceu. Ele morava lá no Curió. Faz uns três anos, 2011 eu acho. -De que? AVC, deu de um lado depois deu do outro. Depois de um tempo ele ficou andando normal, não normal né, puxando uma perna, mas ele tava andando já, depois deu do outro, ele ficou internado um tempo, aí ele faleceu no hospital. - E tua mãe? Minha mãe não era junta com ele, era separada já há muito tempo uns 10 anos. (Reincidente, Centro). - E a senhora falou muito da avó né que é uma pessoa que lhe ajuda e o Pai dele.. tá vivo? Tá, o pai dele tá. Eu não tenho muito contato com o pai deles não que ele me abandonou com eles tudo pequeno. Aí a minha mãe que foi meu marido e tudo pra mim né. Ela sempre assim ficou presença de mim né [...] me ajuda muito, me ajudou a criar eles, trabalhava, que ela trabalha ainda. Que essa doença, eu agradeço a eles, porque ela vive porque ela trabalha a noite sabe... pá me ajudar, pá não faltar nada o que eles quer. Porque ela com... se eles disser assim: Mãe eu quero uma bermuda? Que eles chama ela de mãe né, e eu chama de Cintia. Mãe, eu quero uma bermuda, aí ela vai e compra. Às vezes eu acho que foi eu e ela que nós botamo ele a perder. Porque nós demo tudo a ele. (Mãe, Primário Messejana) Três falas, três cenários diferentes, que muito bem representam o dia a dia observado na Unidade. Arranjos familiares em que a mulher é a chefe da família, sendo a ausência do pai oriunda da separação, ou de seu falecimento, ou ainda de seu abandono da família. A avó surge como figura secundária, mas de grande representatividade quando a mãe, por algum motivo, não tem condições de cuidar dos filhos. Observa-se, também, a presença da violência nas relações familiares, aspecto aqui trazido em uma fala, mas muito presente em depoimentos de outros adolescentes. 100 2. Abandono da escola: Saí da escola porque eu tava trabalhando; aí ficava cansado pá acorda de manhã pá ir pro colégio; aí não ia não. Trabalhava de montador de portão. Automático. (Reincidente, Parquelândia) Normal, eu não fazia nada. Acordava tomava banho, merendava e ia dormir. - Ia dormir de manhã? Ahram. Aí quando era 12:30 eu ia pro colégio. -Tá em que série? Tava na 4ª. Aí eu viajei pá Sobral pá corrida dos cavalo, aí faltou muito, aí eu num estudo mais não. Má, [macho] era pra mim começa a estudar onti. [ontem] (Primário, Palmeiras) Normal, ajudando minha mãe, não tava trabalhando nem estudando. - E por que não tava estudando? Porque eu não queria mesmo. Dor de cabeça. Muito barulho. (Reincidente, Centro). De todos os adolescentes entrevistados somente três afirmaram estar estudando, sendo que um deles disse: “[...] não quero fazer faculdade não, só o 3º grau pra mim tá bom mermo [silêncio]; arrumar um trabalhozinho melhor né. [...] estudo demais vai deixar eu é doido, já fico impacientezim já no colégio.” Desta forma, percebe-se que, por algum motivo, a escola é vista como local onde os adolescentes não se sentem bem, não se identificam, ficam impacientes, não querem estar. A escola parece perder sua funcionalidade na vida desses jovens. Outro adolescente que disse permanecer estudando relatou que: [...] porque os professor lá são tudo novo, a maioria lá é substituto. Porque fica faltando direto os professor lá. Lá os Professor ficam é com negócio de confusão, falar do outro. Teve um que pegou no flagra um falando do outro, aí começou maior confusão lá. Em vez deles ensinar, eles faz é piorar. (Primário, Presidente Kennedy) Essa fala é de grande valia para não reproduzir um discurso somente de culpa do adolescente pelo seu abandono escolar. Sabe-se da precarização do ensino público, que se inicia com a desvalorização dos profissionais da educação fazendo com que parte deles encontrem mecanismos para pedirem afastamento do trabalho, assumido em seu lugar, professores substitutos ou temporários. Estes, algumas vezes, ainda não estão aptos para assumirem o espaço da sala de aula e acabam por apresentar condutas não condizentes com o esperado. Tal realidade é aprofundada pelas políticas governamentais de contratação de terceirizados para o serviço público para evitar concursos públicos e pela desvalorização crescente da 101 escola e dos professores. Nesse contexto, a escola se apresenta como um espaço não atrativo aos adolescentes. 3. Influência das novas “amizades” feitas: Assim né porque eu tenho um filho né. Aí tava jogando bola, aí começou assim as amizades sabe [...] ontem, eu ia até jogar porque vai ter o negócio da CUFA [Central Única das Favelas] que é tipo das favela pra ganhar dois mil reais. Aí eu ia jogar agora sub 17. Aí o menino me chamou pra mim dá uma voltinha né... (Reincidente, Aldeota) - Como é que tava a vida antes de vim pra cá? Como antes de eu me envolver com coisa errada? - Pode ser. Não eu estudava [...] estudava, trabalhava. Aí comecei a me envolver com maus amizade [...] aí fui preso a primeira vez. Aí pá pagar um erro [...] que eu fiquei devendo num negócio que eu perdido aí, um revolver, fiz pra pagar um erro que eu fiquei devendo um negocio que eu tinha perdido aí [...] um revólver. Aí eu tive que roubar de novo pra pagar esse revolver. Aí eu paguei, aí fui preso. (Reincidente, Parquelândia) Nas falas tanto dos adolescentes quanto de seus familiares é reiterada a ideia de que as amizades são fator preponderante para a mudança de comportamento e o início da prática de crimes. O se envolver com “coisa errada” é associado ao se envolver com “maus amizades”. O caráter negativo dessas amizades parece se dá pela visão de que o elemento legitimador delas é o crime e o uso de drogas. Todavia, para além de ações delituosas, esses adolescentes são amigos por possuírem semelhantes necessidades de identificação, de pertencimento, de reconhecimento social, de proteção e estarem inseridos em contextos culturais, sociais e econômicos bem parecidos. 4. Mudanças de comportamento: - E como tava o teu dia antes de vir pra cá? Eu acordava né [...] ia pro colégio, aí voltava, ia buscar minha irmã. Aí voltava pra casa, almoçava, aí saia pro meio da rua e pronto. Aí voltava de tarde, merendava, tomava banho e saia de novo. Direto indo e voltando de casa e saindo. E fazer as coisa que minha avó pedia, só isso. Só que ela ficava sozinha, aí ela fazia só ligar que aí eu lá em casa pra comprar as coisa pra ela. Que ela não pode sair. - E o que tu mais gostava de fazer no meio da rua? Antes era só jogar de bola né, mas aí parei de jogar. - E por que parou de jogar de bola? 102 Sei lá, perdi a vontade de ir e num fui mais não. Passou a idade lá no círculo militar também, lá do círculo militar, o treino, conhece? - Tu treina lá? Treinava lá, aí passou a idade, os menino do seu Antônio são muito grande, aí não dá pra mim treinar não. Aí, a minha idade era pra mim tá com eles, os grande, só que eu sou muito pequeno. Aí eu nem fui mais não. (Primário, Presidente Kennedy). - Como é que tava a vida de vocês antes de isso acontecer? Bem. Eu trabalho eu é [...] é eu e minha mãe, são três filhos que eu tenho. Eu tenho ele de quatorze, tenho uma de oito anos e tenho uma de quatro meses. Licença maternidade. Ele começou assim saindo de casa, chegava do colégio, saia de casa, voltava, almoçava, saia de casa, ia jogar porque ele joga bola né [...] Então quando ele chegava do jogo ele saia, aí começava a chegar 08:30, aí eu fui deixando chegar 09h horas, aí passou pra 10h, aí começou a chegar 11h da noite. Mas eu deixava sempre assim, não aquela saída assim pra longe, ele saia e eu ali tava: tô no portão, vem, tô te esperando ou então tava na esquina, tô indo, ia buscar. (Mãe, Primário Presidente Kennedy). É interessante perceber como as falas de mãe e filho se complementam ao relatar as mudanças no comportamento do adolescente. Para ele a saída do projeto social, devido a sua inadequação entre tamanho/idade, fez com que o futebol perdesse relevância na sua vida, abrindo espaço para o surgimento de outras atividades para preencher o tempo que ele dedicava ao futebol. A mãe, que trabalha o dia todo e deixa os filhos sob os olhares da avó, que já parece ter idade avançada, fala com naturalidade que o adolescente passa o dia “saindo para rua”; parece não perceber que o adolescente sentiu bastante a saída do projeto e que as mudanças de horário de chegada e saída de casa podem estar relacionadas à mudança de grupo social que o adolescente institui. Antes gozava da companhia dos “meninos do futebol”; depois, dos “meninos da esquina”. 5. Realizações de marcas corporais (tatuagem, luzes, cortes nas sobrancelhas) e o uso de drogas: - O que é tá “flagrantoso”? É andar todo assim, todo marginal [...] andar assim, com umas roupa assim que [...] da periferia, tá ligado?! Assim que malandro anda. Assim essas roupa da Smolder, calção de veludo, bermuda, chinela kenner. Aí eu vim todo social né, porque pra eles não me parar né, que eu tava com o flagrante. Aí não deu certo não dessa vez. Toda vida dava certo, aí dessa vez não deu. Escapei sábado e fui preso onti. Que eu ia pegar né, na hora que eu ia pegar não deu certo. Aí o cara aqui: ei má [macho] dá certo não. Aí foi os homi [homem = policial] parou né, eu tava assim em frente o muro escondido né, aí eu peguei [...] Bora para! Aíi ele: não revista ele não, aí pronto. Tava com nada não [...]. - Outra coisa que você acha que a polícia aborda que não seja por causa da roupa? 103 Tava no meio da favela, como ele [policial] mermo deu a ideia, ele tava caçando, abordando uns e outros. Aí como [...] sabe que toda favela tem né, eles dizendo. Aí eu: é. Eu dei a ideia que era usuário pra eles me soltar, só que não deu certo não. (Primário, Messejana). Já foi posto anteriormente como as roupas são vistas como símbolo de acesso ao consumo e status social entre os adolescentes em seus contextos sociais. Agora, as vestimentas, junto com outros acessórios e o meio social intitulado “favela”, são ditos pela polícia e legitimadas pelos adolescentes como significativos de envolvimento com o crime. Na fala anteriormente, o adolescente coloca esses símbolos (roupas, acessórios) como sendo o estilo da periferia, o que corrobora com a constituição de um estigma, estendendo-o a todos os que residem na periferia e não somente àqueles adolescentes envolvidos diretamente com ações delituosas. No tocante ao uso de drogas, apesar de não ter sido mencionado em entrevista no cotidiano da pesquisa de campo, notei que quando inquiridos sobre o uso de drogas pela Justiça ou no preenchimento da ficha de recepção da Unidade, existe quase uma unanimidade em dizer “só maconha”, embora seja flagrante o uso de outros entorpecentes. Ao que parece a maconha é vista pelos adolescentes como algo mais aceitável no mundo instituído, o que pode amenizar sua situação criminal, como também, uma droga leve frente às demais existentes, dentre os próprios relacionamentos. 6. Prática do ato infracional: Eu tava na Praça aí o menino me chamou pra roubar, eu fui, aí fui preso. Ia passando uma viatura na mesma hora, pronto. Aí mandou, a gente parou pronto. (Reincidente, Centro). Eu tava jogando de bola, aí fui pra Pracinha, passou um bocado de gente correndo aí um deles, caiu o celular deles, aí, nós, aí o menino que tava comigo pegou, aí o celular tava sem chip bem na hora que o policial abordou. Aí levaram nós pra cá. (Primário, Damas). Narrada sem receios ou contada de forma confusa, na tentativa de se eximir do delito feito, a prática do ato infracional é momento determinante para a construção de uma identidade criminal. Todos os outros traços apresentados acima parecem não ter sua representatividade completa se o adolescente não cometer um ato infracional. O abandono escolar, o uso de entorpecentes, as mudanças de comportamento, o afastamento da familiar, as novas amizades nada disso produz 104 tanto reconhecimento social, seja no campo restrito das vivências com os demais adolescentes ou no âmbito do contexto social em que o adolescente esta inserido, do que a prática do ato infracional. A coragem, a masculinidade, a força, a periculosidade são densamente legitimadas neste momento. Saliento que a apreensão policial e a privação de liberdade são fases seguintes desse processo de construção de uma identidade criminal juvenil. Apesar de as regras postas pela Unidade parecerem mínimas, são muitas vezes as primeiras regras que eles estão seguindo após terem iniciado, na liberdade, esse processo de abandono escolar, novas amizades, mudanças de comportamento, prática infracional, apreensão e internação. Nesse processo de construção de uma identidade criminal juvenil, por ocasião da passagem pela URLBM, mesmo que essa identidade seja momentânea e somente preexista no período em que eles estejam internos na Unidade, há um confronto com a existência das regras. Estas foram postas por um adolescente da seguinte forma: - Que foi que tu ficou fazendo de ontem pra hoje? Só dormi. - Só fez dormir? E jantei onti de noite aqui. - E hoje? Merendei. E os orientador aí disse que [...] deram como é o nome? Deram as regra: que não era pra derramar água, essas coisa assim. - Que outras regras ele deu que tu lembra? Sei não lembro muito não [...] pra não ficar falando com as menina daqui, uma cela não falar com a outra, só sei disso mesmo. - E o que tu achou dessas regras? Sei não. (silêncio) (Primário, Granja Portugal). Essas considerações me fazem entender que há uma edificação e internalização de uma identidade criminal juvenil de modo a construir quase um “novo jovem”. Isso é de fundamental importância para este estudo, pois é essa identidade criminal que irá contribuir com a constituição da percepção de privação de liberdade pelo adolescente. Com efeito, esta construção identitária e a decorrente percepção da liberdade e não liberdade está em confronto com suas práticas e maneiras de se relacionar com os diferentes indivíduos pertencentes a sua história, seja em seu mundo vivido, seja no mundo institucional. No intuito de ser didática e precisa quanto às características dos adolescentes, que participaram desta investigação, e para responder questionamento sobre quem são eles, para além das estatísticas, construí ao 105 especificamente os seguintes tópicos representativos: Primário A, Primário B, Reincidente A, Reincidente B. Lembro que tais características são decorrentes de suas “novelas” comparadas, constituindo um perfil articulado a outras histórias de adolescentes em conflito com a lei. Primário A: trata-se de adolescentes que foram apreendidos por ocasião da prática de seu primeiro ato infracional. Neles, ainda não é notável uma identidade infracional. Com esses jovens os contatos fluíram mais facilmente: eles narraram suas trajetórias de vida de forma confiante, solta e com detalhes. A percepção sobre a estadia na Unidade e a captura, que, a meu ver, tem relação com a concepção sobre a privação de liberdade, é sempre negativa: Eu não gosto de bagunça; fico lá sentado na minha. O senhor aqui pergunta se eu posso ajudar a ele a encher as garrafa. Eu ajudo ele aí. Fico mais é quieto lá. Não consegui dormir né... consegui dormir num canto desse aí. Porque eu não se acostumo, um colchão duro desse aí, tô é com dor nas costas aqui. Calor medonho, o calor é grande aí. Lá onde eu moro não, tenho meu quarto lá com ventilador, tem tudo dentro, quando não tô com sono vou jogar vídeo game. As hora aqui demora muito pra passar. - E como é tá aqui? Eu vou dizer que é ruim, porque é ruim mermo. Eles diz que ficar lá é bom, mas quando você chegar lá você vai pensar só na sua família, nos seus amigo, vai ver como é ruim tá distante deles. Se com sua televisãozinha em casa você se senta, assiste aqui à vontade, lá não. Que aqui é ruim mermo eu digo logo. Bagunça direto, ver o que não presta. [...] E as hora aqui custa a passar que nem presta, custa a passar demais. (Primário, Parque Santa Rosa). Esse tipo de adolescente procura o tempo todo se diferenciar dos demais apreendidos. Ele não aceita ser visto como marginal, vagabundo e se expõe como adolescente comum, que tem casa, família, amigos, que se envergonha do constrangimento ao ser capturado pela polícia, enfim, busca a qualquer custo uma distinção da identificação criminal que já se lhe impõe. O fato de estar no mesmo espaço de outros adolescentes, lhe dá a ideia de que a privação de liberdade, na Unidade, é espaço de aprender o que não presta. É por meio desta noção que me embaso para entender que o espaço de privação da URLBM é um dos cenários de aprendizado e construção de uma identidade criminal juvenil, que pode ser observada pela forma como o adolescente percebe a reclusão. É em outra narrativa do mesmo adolescente que compreendo mais bem o exposto acima: 106 - Então, quando falam pra ti de ficar preso, o que tu pensa? Rapaz (sorriso) sem nem o que dizer [...] falar de ir preso perto de mim, dizendo que vou preso, menos chegar um carro lá dizendo que eu vou preso, eu saio é correndo. Eu vou é me embora pra bem longe, negócio de ir preso [...] só tem coisa ruim, só aprende o que não presta, o cara tiver a mente fraca, o cara entra no mundo errado bem ligeirinho. - Aprende o que? Aprende as coisas desses menino aí. Ficam falando que maconha é bom. Assim né ó [...] né, querendo muito dizer deles aí não [...] que Deus o livre eles souber, que eu sei que eles não vai saber. Eles fica pedindo remédio aí, dizendo que tá com dor, eu não sei pra que remédio é esse, mas eles pisa e parece que cheira. Ficaram me oferecendo, mas eu, não, macho, quero não. (Primário, Parque Santa Rosa). Primário B: são adolescentes que foram apreendidos pela primeira vez, mas que já praticaram atos infracionais outras vezes. Os contatos e entrevistas com esses jovens ocorreram de forma um tanto quanto truncada: eles se mostraram desconfiados e desatentos e há sinais da identidade infracional já alicerçada. O diálogo abaixo é longo, mas elucidativo sobre a caracterização desse grupo: O que é entrevista? [perguntou um adolescente] - É eu te fazer perguntas. E eu vou falar o que? - Eu vou te perguntar como estava a vida, como foi a apreensão, essas coisas. Como estava a sua vida antes de vir pra cá? Tava bem.Tava Normal. (silêncio) - Normal como? Normal né. Sei lá. - Estava indo pra escola? Tava não, parei na 4ª. (silêncio) - E tu é de que região de Fortaleza, de que bairro? Granja Portugal. - E como é que tá lá a vida na Granja? Tá bom lá. - Dá pra andar em todas as áreas? Dá pra andar. - E por que tem tanta gente morrendo lá? Lá? É porque acabou né, os que já, já tinha gangue, já morreram. Dá Granja não podia passar pro Bom Sucesso não. - E por que tu acha que acabou? Porque morreram tudim. Os que brigava, nera. - Mas morreram faz tempo? Nesses tempo agora. - Quem foi que morreu? Morreu uns lá, num conheço não. Morreram de Bala. - Tu morava aonde? Lá no Alvorada, perto do Shopping Via Sul. Na Piçaceira, sabe onde é? - E vocês se mudaram por quê? Porque a mãe não queria morar mais lá não, era briga de gangue direto. - E qual era a gangue que tinha lá? Nenhum não, só as gangue mermo, tinha nome não. - Era rua contra rua? Nera na rua não, era longe. - E vocês se mudaram lá pra Granja, está com quanto tempo? Sei não, tá nem com um ano não. 107 - E como foi a apreensão? Roubando ônibus. Nós fomo pego lá na praia. Nós ia pra praia e roubemo o ônibus. Nós tinha descido e tava correndo aí os homi pegaram nós, lá na frente. Nós tinha acabado de descer do ônibus. - E a polícia pegou, e ai? Meteu a péia, foi lá pro IML [...] trouxeram nós pra ir, aí lá pro IML, depois trouxeram nós pra cá de novo. - Tu tá aqui desde ontem, o que que tá achando daqui? Sei não. - Mas assim, tu não sabe? (tosse) - E, aí, o que que tu acha que vai acontecer contigo? Eu vou pro Passaré né não? - Por que? Porque tava roubando. - E por que não é o São Miguel? Porque eu tenho 13 anos, pode ir pra qualquer canto que eu vou. - Chegou aqui ontem, dormiu aqui né [...] e o que é que tá passando pela tua cabeça? Sei lá. - Mas sempre passa alguma coisa pela cabeça da gente né... (tosse) - Tem irmão? Seis comigo, três homi e três menina. - E tu é o mais velho ou o mais novo? Sou o mais novo. - Tua mãe tá aqui e o teu pai? Tá aqui não. - Mas tu conhece? Conheço, moro com ele. Deve tá olhando a casa. Ei, pode parar de falar mais não? (Primário, Granja Portugal) O início da entrevista é marcado pela indagação sobre o que é entrevista e, mesmo após minha explicação, há o questionamento de quais perguntas seriam feitas. Exceto o desconhecimento, de fato, sobre o que é entrevista, isso demonstra receio e desconfiança por parte do jovem, perfeitamente compreensível em sua situação. Apresento essa circunstância como característica identificadora do tipo primário B. Outro aspecto interessante é a declaração do adolescente de que estava roubando. Percebe-se que, diferentemente do tipo anterior, o adolescente não utiliza subterfúgios para explicar a prática do ato infracional e diz claramente que o estava cometendo, apresentando ter lucidez de que aquilo é considerado como errado. Não apresenta receio ao falar de um provável encaminhamento de medida de internação, afirmando que “pode ir pra qualquer canto que eu vou”. Notei que o adolescente, por várias vezes, utilizou-se da tosse para truncar a entrevista e não completar o raciocínio até chegar ao ponto de pedir para encerrar a entrevista: “Ei pode parar de falar mais não?” 108 No discurso do adolescente, que fisicamente mais se parecia com uma criança, tamanha a miudeza da estatura de seu corpo, observei a desenvoltura ao falar do delito. O que sua narrativa me faz pensar é que a razão deste discurso tem relação com o fato de ser oriundo de um ambiente violento, em que sua família teve de se mudar de um lugar para outro em consequência das brigas de gangue existentes no bairro de origem. Houve, ao que parece, e foi confirmado por observações e conversas na Unidade, uma tentativa de fuga da violência. No entanto, a família acaba indo para outro bairro onde também se encontra com alguns tipos de violência e conflitos existentes na periferia da cidade de Fortaleza, como brigas de gangue. Saliento que essa entrevista me marcou por ver um menino tão pequeno e tão desconfiado, tão rude quando me dizia: Sei lá. Não deixei de observar um corpo hoje representado como identificado ao crime, assim como uma autoidentificação: as luzes no cabelo, as tatuagens, a voz rouca embargada pela forte tosse, sempre monossilábico, a noção da previsibilidade da pena. Percebi que aquele menino estava passando pelo processo identitário com o crime, desde as prováveis e reiteradas práticas de roubo até a apreensão, encaminhamento ao IML, a URLBM, sua apresentação a mídia (televisiva e escrita) e a posterior internação. No entanto, nada disso fez com ele tomasse para si o discurso formalizado na fala de tantos jovens em que as amizades, a família, a falta de oportunidade de emprego ou os baixos salários, são postos como condutores da infração. Naquele adolescente, este discurso instituído parecia não se sobrepor e, mesmo, quieto, aflorava sua subjetividade mediante seu silêncio e frases monossilábicas, como tentativa simples de se desvencilhar. Quando lhe perguntava, com outras palavras, sobre qual era sua percepção sobre a perda de liberdade, ele me respondia com um rude sei lá. Provavelmente o medo do novo, o medo de deixar transparecer fraqueza ou simplesmente o desejo de silenciar, de não dizer nada, fizeram aquele menino encerrar a entrevista. Reincidente A: são jovens que já passaram por algum Centro Educacional. Em maioria, já deixaram as residências de suas famílias para morar próximo ou na casa de amigos/namoradas. Esse grupo é bastante interessante, pois os jovens relatam coisas densas de suas vivências, mas não afirmam diretamente a identidade infracional. Nesses jovens é possível notar vários traços 61 61 de uma O afastamento da família, já que o adolescente mora em uma casa ao lado da casa de sua avó que é já idosa, a existência das amizades inclusive algumas já assassinadas devido aos conflitos 109 identidade infracional e o delito cometido acaba sendo consequência do cotidiano criminal que, muitas vezes, mantém a sobrevivência desses jovens. Esse tipo de jovem pode ser identificado no seguinte diálogo: - Como é aqui? Mais ou menos né? Tem comida, é bom. É bom que aqui nós tá protegido. É bom, melhor do que ficar no meio da rua. Pelo menos nós aqui come direito. É bom porque a pessoa tá protegido, mas é ruim porque a pessoa não tá com os familiares. Tá aqui é bom, se alimenta, conhece outras pessoas e tá protegido. - Por que na rua não tá protegido? Por causa da violência. Por causa dos inimigo. E tu tem inimigo? Já sofreu alguma tentativa? Só uma vez. Tava em frente de casa, aí chegou uma moto com dois cara atirando, aí eu corri. E porque tu acha que estavam querendo te matar? Por causa de território. -E tem negócio de território ali? Tem contra outro bairro, Alvaro Weyne ali, o Terreno. - Já morreu alguém por causa disso? Já. Ano passado, morreu o Danielzim e o David. - E como é a tua família? Eu moro com minha avó [...] tenho uma casa que é do lado da minha avó. É mermo que morar com ela, só que é só pra mim, que a minha mãe e meu pai separou, aí eu decidi morar com minha avó. - Aí, ela veio pra cá? Não, quem veio foi meu pai. (silêncio) E quando ele ti viu aqui como foi? Ficou decepcionado porque nenhum pai que ver um filho preso. Falou que era pra mim se comportar. -E o que é o melhor e o pior de tá aqui? O melhor é nós tamo protegido e o pior é que por causa dos familiares que fica decepcionado com a gente. (Reincidente 2, Presidente Kennedy) Na fala do jovem é possível notar que, mesmo reiterando morar com a avó, ele mostra que tem um espaço sozinho em uma casa ao lado da casa dela, ou seja, a presença da instituição família no modelo da vida comum na casa assume outras formas, mas ainda há algum tipo de vínculo retratado nos arranjos da convivência. Depois da entrevista, o jovem foi informado pela Assistente Social que sua mãe havia ligado e dito que queria que ele fosse morar com ela. No entanto, ele hesitou exclamando: “dá certo não, ela fica só passando as coisas na minha cara”. Percebe-se o conflito familiar crescente entre os jovens deste grupo, embora ainda existam vínculos, haja vista que o adolescente afirma que a única coisa ruim de estar na Unidade é pensar na decepção da família. A família parece ser uma instituição paradoxal. Sabe-se que o afastamento e o desejo em relação à família entre gangues, a prática de outros atos infracionais já que o adolescente é reincidente. Além de em outro trecho da entrevista o mesmo ter informado que não estava mais estudando. 110 têm razões diversas diante da condição social e cultural, das particularidades de cada uma, mas, entre estes adolescentes, a crescente proximidade com a identidade criminal tem contribuído significativamente para a manutenção deste paradoxo. Outro fator que ajuda a perceber nesse grupo a presença da identificação criminal, é que, além de praticar roubos, o referido adolescente é integrante de uma gangue, já sofreu uma tentativa de homicídio e estava ameaçado de morte. Esse jovem possui uma percepção sobre a privação de liberdade de modo diferente dos outros tipos de jovens. A estadia na URLBM e provável encaminhamento para uma internação provisória é também vista de forma positiva, pois ali ele tem proteção, é o lócus que permite a manutenção da vida, é um lugar de refúgio. O único ponto que o adolescente colocou como negativo foi em relação à decepção dos familiares. O jovem entra no jogo da institucionalidade em nome da própria sobrevivência, “está protegido” pelo Estado, mas sabe que é por algum tempo. Reincidente B: trata-se de jovens que já passaram por vários Centros Educacionais, são reincidentes várias vezes e identificados com o crime. Interessante é que, em seus depoimentos, percebe-se que eles ainda colocam a família como unidade de referência. Na maioria dos casos observados, não se desvincularam da família. Observei que essa funcionalidade dada a família tem relação, bem mais neste caso, com a combinação entre aspectos da dimensão instituída do universo institucional sociojurídico da socioeducação e elementos da própria subjetividade dos adolescentes. Ter família garante a dimensão instituída, certo reconhecimento pelo fato de pertencer a um grupo social aceito, correto, mas também garante a afetividade, a proteção, o acompanhamento dos procedimentos do sistema socioeducacional, embora marcados por desencontros. A família é bem mais um subterfúgio e também lugar de descanso. Assim como no depoimento anterior, aqui também aparece o aspecto ruim da internação, que é o afastamento da família, sendo isto uma criação, pois, muitas vezes, em liberdade, neste caso, muitos jovens já estavam afastados dos familiares. A entrevista desses jovens é marcada por falas institucionalizadas que demarcam certo molduramento do jovem, tendo em vista a postura de assim se portar frente a tudo que ele veja como relacionado à Justiça e ao Sistema Socioeducativo, para aproveitamento próprio. A identidade infracional também 111 parece já estar plenamente constituída, com uma ressalva sobre a relevância da figura materna que sempre é mencionada. Diferente do outro tipo de reincidente, esses jovens tem no ato infracional uma forma do que denomino de “sobrevivência social”. Compreendendo que o crime é efêmero e o poder e a consideração oriundos dele requerem uma constante afirmação de coragem e periculosidade. Os jovens reiteram a prática infracional e o ciclo prática-internação-liberdade. - Como estava a vida antes de vir pra cá? Como antes de eu me envolver com coisa errada? - Pode ser. Não, eu estudava, estudava, trabalhava. Aí comecei a se envolver com maus amizades, aí fui preso a primeira vez pra pagar um erro que eu fiquei devendo um negócio que eu tinha perdido aí. Um revólver aí, eu tive que roubar de novo pra pagar esse revolver. Aí eu paguei, aí fui preso. - Tu foi apreendido agora por um? Um por assalto, tô sendo acusado por um assalto. Mas eu não fui pegue sem nada, só tô sendo acusado e a vítima me reconheceu. - E quando foi da última passagem pra cá? Vixeee! faz pouco tempo. Num sei se foi [...] foi mês retrasado. Comecinho do mês retrasado. - Já passou por qual Centro? O São Miguel e São Francisco. - E qual dos dois é melhor? São Francisco, porque a qualidade de lá é melhor. - Qualidade como? Qualidade assim de se aprender alguma coisa, a dormida é melhor, o ambiente também é melhor na cela. Só isso mermo. O São Miguel também só, só não gosto muito por causa das “prosa”. Num dou valor muito não. - E o que é “prosa”? 62 Pessoal frescando com a cara do cara. Os menino lá frescando com a cara da pessoa todo tempo. Fala num sei o que [...] chama o cara de viado, 63 num sei o que [...] chama o cara de ducento ; é prosa. - E daqui, o que tu acha da Unidade de Recepção? Daqui? É boa. Do modo de tratar aqui tá bem melhor do que da última vez que eu vim da minha primeira queda. Não tinha, antes eles não davam colchão não. Dava o colchão só na hora de dormir, agora a pessoa fica com o colchão o dia todinho. - Qual a diferença de tá aqui e tá na liberdade? Tudo. Tu é doido ver minha mãe sofrendo. Só pagar pelo meu erro agora. - E tu acha que vai sair ou vai ficar? Sei não, eu acho que vou pegar outra provisória. Se eu não for é sentenciado passar bem um ano preso. - Um ano? É que já é a segunda vez que eu faço. Eu só fiz essa vez aí porque eu tava devendo, aí eu não quero pedir dinheiro a minha mãe. (Reincidente, Parquelândia). 62 “Frescar” é zoar com alguém. Ducento referência ao artigo 200 do Código Penal que faz menção ao acusado de ato violento ao pudor, conhecido popularmente como estupro. 63 112 É percebido na narrativa esse caráter de sobrevivência social pela reiteração da prática infracional. O adolescente afirma que roubou novamente, porque perdeu um revólver, possivelmente emprestado ou alugado. Desta forma reincidiu no mesmo delito para pagar a arma, sendo, então apreendido. Porém, em nossa conversa, percebi que apenas o fato de perder o revólver não justifica a prática de novo roubo, tendo em vista que, segundo o adolescente, quando foi apreendido, ele já havia pagado o valor referente ao revólver. Assim, a reincidência não tem relação somente com uma motivação factual, e não está ligada apenas a preservação da vida (honrar a dívida criada pela perda do revólver), mas também se vincula a uma necessidade social de se manter no grupo. Neste grupo é bem mais perceptível o conhecimento da linguagem relativa ao sistema jurídico. O adolescente já faz a previsão da medida socioeducativa que lhe será deferida pelo juiz: uma provisória, falando da medida socioeducativa de internação 64 provisóri . É interessante também notar a propriedade com que ele fala sobre a dinâmica de diferentes instituições socioeducativas (São Miguel e São Francisco) detalhando os pontos positivos e negativos das instituições. Em busca de mais compreensão sobre os adolescentes da URLBM, entrevistei um instrutor indagando se ele notava alguma diferenciação de comportamento entre adolescentes primários e reincidentes. Ele classificou os adolescentes de forma bastante parecida com a que eu observei, com a ressalva de assemelhar muito o comportamento do primário e do reincidente, sem fazer as devidas conexões e diferenças. - Você acha que tem diferença no comportamento de um menino primário pra um reincidente? Sim, sim com certeza. Se bem que os primários já chegam aqui é na Unidade já bem informado pelos que já não são primários. Então eles sabem que aqui eles não vão enfrentar nenhum castigo ou coisa dessa natureza e ficam bem à vontade. Acontece casos em que o adolescente é primário, nunca passou pelo sistema de proteção social, mas que ele tem um comportamento que se assemelha ao de um que já passou 10, 15 vezes, como acontece. - E como é o comportamento do reincidente? O reincidente ele tem dois comportamentos: o que realmente oferece perigo a sociedade que tem consciência disso, ele geralmente não dá trabalho no sistema. Ele sabe que vai ter que passar por um Promotor, por um Juiz e enfrentar uma medida socioeducativa. Então ele geralmente não esboça nenhuma reação violenta, geralmente esboça muito respeito. Geralmente 64 Além da internação provisória existem a internação sanção (30 a 90 dias) e a internação (30 dias a 3 anos). O adolescente que recebe esse último tipo de internação é popularmente dito como sentenciado. 113 essa vertente, mas existem aqueles que já ficaram muito tempo no sistema que são os que puxam rebeliões ou coisas parecidas, eles já são desrespeitosos com a polícia militar, polícia civil e os instrutores com a própria instituição em si. Eles já não levam tanto a sério a questão das medidas socioeducativas. Apesar de não compreender da mesma forma como o instrutor educacional, é possível dizer que o primário que ele apresenta como conhecedor das regras institucionais e com comportamento igual ao do reincidente se assemelha ao Primário B, que acima apresentei, e o reincidente que ele coloca como “realmente perigoso [...] que geralmente não dá trabalho” é correlato ao Reincidente B que pontuei. Para êxito deste estudo é importante observar como esses diferentes tipos juvenis interagem no mesmo espaço – no caso, a URLBM – que tipo de contatos eles realizam e que ações desenvolvem no tempo e espaço da sua identificação criminal. Estes quatro tipos formam um retrato dos adolescentes da URLBM na intenção de apresentar características dos adolescentes desta investigação, mas não significa que representam, de forma geral, todos os adolescentes que passaram pela Unidade. A ideia é apresentá-los, aproximar para melhor compreender sua condição social e criminal, para também conceber como se identificam e percebem sua vida criminal que lhes levam à privação da liberdade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Eu acho que é muito triste sabe assim é.. eu acho que é uma maneira pra eles seria, teria que ser uma maneira deles começarem a refletir sobre, naquilo que fizeram. Porque só em eles estarem aqui longe da família, longe do aconchego do lar que eles têm né, alguns têm, e longe da mãe, longe do conforto do lar né.. longe das coisas que eles gostam de fazer, da vida cotidiana que eles levam normalmente, aí de repente se veem aqui preso dentro de um quarto desse, eu acho que deve ser muito triste. - Mas você percebe eles tristes? É... apesar da minha opinião ser essa, deles sentirem essa tristeza por estarem longe do lar e longe do aconchego de tudo o que eles gostam, mas é incrivelmente muitos deles não ficam tristes aqui. Eles ficam alegres, conversando um com o outro, fazendo novas amizades. Quer dizer assim eu não sei se é uma maneira que eles têm de burlar tudo aquilo ali que tão sentindo e ultrapassar aquele trauma, aquela decepção até talvez um arrependimento num sei... eles, quer dizer, eles demonstram alegria. Apesar de tarem preso dentro de um quarto. Apesar de eu acho que aqui acolá alguns deles têm que... que a ficha tem que cair de dizer: ah! isso aqui não é o que eu quero pra mim, eu queria nesse momento... como hoje eu atendi um que dizia assim: não era pra mim tá aqui não, era pra mim tá em casa uma hora dessa, de noite eu vou pra aula, de noite eu tenho que ir pra aula. Eu disse: é, mas hoje eu acho que não vai dá pra você ir pra aula. Quer diz muda completamente a rotina deles né, um dia deles aqui. [...] é a maneira que eles têm de enfrentar isso daí. A fala da Assistente Social da URLBM pode ser dita como o senso comum do contexto de apreensão, internação na Unidade e apresentação a Justiça dos adolescentes em conflito com a lei. Tanto os familiares como grande parte dos operadores do sistema socioeducativo percebem a privação de liberdade como um momento de refletir sobre o delito praticado e não voltar a cometê-lo. No entanto, pelas narrativas e depoimentos trazidos aqui os adolescentes já sabem que estão cometendo “coisa errada” 65 . Percebi que o fato de estar privado de liberdade em um “dormitório” 66 não produz uma autorreflexão no adolescente ao ponto dele desejar não mais voltar a praticar ato infracional. O dito “não tem nada pra fazer” dá espaço para o canto, as prosas, as pichações, as conversas, os gritos, muitos vezes, de uma mente perturbada pela abstinência da droga; também ao choro tão reprimido e indesejado pelo estigma da privação de liberdade ser espaço de legitimação pela maldade, pelo crime, pela falta de educação, pela violência. 65 Expressão dita por um adolescente quando perguntei como era a vida privado de liberdade. Ele me indagou: Como antes de cometer coisa errada? 66 Dormitório que se diferencia da concepção de cela de um presídio, somente pelo fato do SINASE trazer tal terminologia em seu tópico 7. PARÂMETROS ARQUITETÔNICOS PARA UNIDADES DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO subitem 7.4. 115 Do ponto de vista da criação de formas de sobreviver, a privação de liberdade não é tão ruim, ao ponto de não ser superada, mas também não é tão boa como a ideia da “engorda”. O discurso de um adolescente bem explica isso: Vou mentir não né, tô afim de mais vender não. Mas sabe que sempre acontece uns atraso né ai o cara piora. Tô nem aí pra voltar mais pra cá não, já fica de maior já. - Que que é um atraso? Mah todo muito que vai preso né tem uns nego que cresce o olho: já foi preso daqui a pouco tá matando. Aí é só isso daí que eu digo: vim pra matar o cara. Por isso que eu digo se não rolar nenhum atraso eu saiu, se não aí... num posso fazer. (Primário, Messejana). São os “atrasos” da realidade regida pela sociabilidade violenta, desigual e injusta, que fazem com que os adolescentes vivam esse ciclo de vida marcado por quedas 67 e levantes. A percepção dita pelos adolescentes é que a internação é consequência do ato infracional cometido, em uma espécie de causa e efeito em que a privação de liberdade na URLBM é ruim porque causa sofrimento e decepção à família, fica-se sem fazer nada e o “tempo todo no mesmo canto”. Positivamente ela é o momento em que os jovens conhecem outros adolescentes, têm o conhecimento de como estão outras regiões da cidade de Fortaleza, socializam suas ações e as reações da polícia e sociedade frente a elas, é o momento em que estão protegidos, “guardados” das violências que possam vir a sofrer se na liberdade estivesse. Para se entender essa percepção de privação de liberdade é importante ter noção da conjuntura em que são executadas as demais medidas socioeducativas, ditas de caráter mais leve sendo elas: Prestação de Serviço à Comunidade - PSC e Liberdade Assistida - LA. Fala de um entrevistado e observação feita por mim reiteradamente em campo foi a não operacionalização do ECA no que tange ao cumprimento das medidas socioeducativas. A medida é muito branda, a medida é muito... uma Liberdade Assistida pra eles é sinônimo de assinar. A própria instituição a Prefeitura, no caso quem é responsável pela Liberdade Assistida, pela Prestação de Serviço à Comunidade a colocação do adolescente. A própria Prefeitura em si parece não levar o trabalho a sério. Então resume é aquela questão do adolescente ir numa Unidade ouvir uma palestra muitas vezes uma palestra técnica que não vai agradar de nenhum jeito e ao final eles assinam uma frequência... então LA virou sinônimo de ir assinar. Então eu vou... o que é a medida? É só assinar? Isso é péssimo. Eu acredito que a própria Instituição ela não 67 Expressão utilizada pelos adolescentes para dizer que foram apreendidos e internos. 116 aplica a medida como ela deveria ser aplicada, não existe aquele acompanhamento psicológico, acredito... não existe, eles falam que não existe acompanhamento psicológico, não existe aquele acompanhamento mais sério da medida. A Prestação de Serviço à Comunidade, geralmente quando eles recebem essa medida não cumprem, é tanto que a maioria dos mandados de busca e apreensão ou são porque deixaram de comparecer a ato processual ou foi por descumprimentos dessas medidas. Eles levam tão pouco a sério que nem assinar eles vão ou sequer comparecem ao local onde deveriam prestar o serviço a comunidade. (Instrutor URLBM). Como se cumprir com seriedade uma medida de internação se todas as outras medidas socioeducativas não são efetivadas na prática? O que vi foram adolescentes sendo apreendidos e encaminhados à internação antes mesmo de começarem a cumprir a medida em meio aberto pelo qual haviam sido sentenciados pela prática anterior de outro ato infracional. A visão concebida no cotidiano da URLBM não é nada animadora quando se busca a redução da violência sofrida e praticada por adolescentes. Mães que veem a internação como um bom momento, pois ou é cadeia ou morte. Operadores do sistema socioeducativo que atuam diariamente com a percepção da privação de liberdade como meio dos infratores 68 potencializarem suas forças físicas para praticarem crimes quando libertos forem. E adolescentes com perspectivas de futuro ralas e abstratas, o “não sei” predominou como resposta à indagação: e o futuro? Contudo, observei que há perspectivas de mudança em relação a busca de cumprimento da socioeducação, a exemplo da lotação de um Defensor Público para a DCA. Notei ter surtido efeito também na URLBM, pois a presença do Advogado ali, bem próximo aos adolescentes, diariamente os orientado, explicando mesmo que brevemente sobre seus direitos, coíbe ações autoritárias da policia/instrutores para com os adolescentes. Entendo que pensar nos direitos dos adolescentes em conflito com a lei é pensar não somente na efetivação do ECA, mas na garantia dos direitos a saúde, a educação, a cultura, a segurança, ao lazer de qualidade pois antes de violarem a lei o Estado lhes violou esses direitos. Enfim, todo esse percurso teórico metodológico me fez acreditar que, para os adolescentes da URLBM, a privação de liberdade, na dimensão instituída – as regras e deveres, o afastamento da família e da rua – é um inferno, é ruim, mas, ao mesmo tempo, tem sua razão de ser, porque lá mesmo, é possível instituir, criar formas de sobrevivência, gozar até mesmo da estadia para comer, se proteger por 68 Termo utilizado por instrutor da URLBM durante entrevista. 117 um tempo. Neste sentido, a privação de liberdade é o previsível, pois os adolescentes têm consciência de que a prática infracional irá a algum momento lhe levar a prisão. Subjetivamente a privação de liberdade parece ser vista como suportável, no jogo de forças pelo autocontrole, pela imposição de limites aos desejos (MACHADO SILVA, 2004). Os jovens parecem enfrentar seu maior inimigo, saber como é a força dele (no caso a polícia, o Estado, a internação). Além do mais, passar pela privação de liberdade pode lhe proporcionar a sensação de ter reconhecimento entre seus iguais. É, também, momento de criação de novas formas de se legitimar, pois quando privado de liberdade estão impedidos de terem acesso a vários elementos que lhe identificam (roupas, armas, drogas, a posse de seu corpo). É, portanto, nesse jogo entre as dimensões racional e subjetiva que a percepção dos jovens sobre a privação de liberdade se constrói. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABOIM, Sofia; VASCONCELOS, Pedro; Neves; Dulce. Gênero e adultícia: continuidade e mudança em três gerações. In: Jovens e Rumos. Lisboa: ICS, 2011, p.59-78. ABRAMO, Helena Wendel. 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