CAPA CAPA Medicamentos Medicamentos O Idec apóia o decreto no 5.348. Publicado no Diário Oficial da União em 20 de janeiro deste ano, a iniciativa regulamenta a venda de medicamentos fracionados, de modo que o consumidor compre a dose certa do produto de acordo com a prescrição médica. Com o decreto – que não obriga, mas apenas autoriza os estabelecimentos a adotarem a medida –, o governo acredita que haverá uma redução no custo dos medicamentos para a população, além de reduzir as possibilidades de automedicação com sobras de medicamentos. Segundo a Fundação Osvaldo Cruz, cerca de 20% das intoxicações humanas devem-se à ingestão inadequada de medicamentos. É cada vez mais comum as famílias manterem as chamadas “farmácias caseiras”: se alguém tem uma infecção, basta abrir a gaveta ou um armário para se automedicar. O fato de ter o remédio em casa induz o consumidor a ingeri-lo sem uma prévia consulta médica, e muitas vezes a pessoa sequer se lembra de olhar sua validade. Guardar o remédio em casa também pode com- 16 Revista do Idec | Abril 2005 prometer a qualidade do medicamento, já que as condições de armazenamento doméstico nem sempre são adequadas por causa do calor e da umidade. Junto a remédios de venda livre, geralmente estão as sobras de outros medicamentos. São remédios comprados com receita médica (ou deveriam ser), mas que não foram utilizados na totalidade e que geram um enorme lucro à indústria farmacêutica. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estima que o desperdício de remédios nos hospitais, poder público e os adquiridos no varejo chega a 20%. Segundo a Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma), o faturamento desse setor no ano passado foi de R$ 19,8 bilhões, ou seja, o país desperdiça anualmente cerca de R$ 4 bilhões em medicamentos e somente o Estado, que compra 25% do total dos remédios vendidos, poderia economizar R$ 1 bilhão. Outro possível benefício da venda fracionada é o tratamento tornar-se mais acessível à população PHOTOS.COM O fracionamento de remédios abre a possibilidade de o consumidor conquistar um velho direito: pagar só por aquilo que consumir de baixa renda, que gastaria apenas com a quantidade exata de remédios a tomar. Para o médico José Erivalder Guimarães de Oliveira, presidente do Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo (SIMESP), esse é um aspecto importante da determinação do governo. “É bom para o paciente, porque se eu prescrever uma cartela e meia de medicamentos, possivelmente ele comprará apenas uma cartela e interromperá o tratamento porque não tem dinheiro para duas cartelas”, conta Erivalder. A INDÚSTRIA E A FARMÁCIA A própria indústria farmacêutica reconhece que essa é uma experiência de sucesso em alguns lugares do mundo, como os Estados Unidos, o Canadá, a Inglaterra, a Holanda, o Chile e a Austrália. Lá, a venda fracionada mostrou-se um avanço para o consumidor, para a saúde pública e para a economia dos países. Mas não é a primeira vez que a bandeira do fracionamento de remédios é levantada no Brasil. Em 1993, um decreto do então presidente Itamar Franco referia-se à venda fracionada, mas não vingou. “Ele lançou um ‘pacotão’ de resoluções para a Saúde, que incluía também os genéricos. Claro que a indústria farmacêutica boicotaria e pressionaria o governo porque as duas resoluções diminuiriam muito seu lucro”, explica a advogada do Idec Lumena Sampaio. Na época, as indústrias e farmácias alegaram que não tinham como bancar o custo com novas embalagens, bulas, mão-de-obra especializada e outras conseqüências do fracionamento, e não implantaram o sistema de venda. Evidentemente, esse é um dos argumentos que a indústria farmacêutica retomou para tentar brecar o atual decreto. Desta vez, entidades como a Febrafarma e a Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) divulgaram notas oficias afirmando estar “preocupadas” com a segurança do medicamento oferecido ao consumidor. A Febrafarma enviou uma carta à Anvisa com capítulos explicitamente intitulados: “ilegalidade”, “incoerência”, “inviabilidade”, “insegurança sanitária/fiscal” e “inviabilidade econômi- IZILDA FRANÇA Na dose certa ca”. Em comunicado, a Abrafarma diz que o principal prejuízo da medida é o retrocesso no controle de qualidade e procedência dos medicamentos, além dos riscos de subdosagem. Mesmo sendo evidente que a indústria está mais preocupada com seus lucros, ela aponta o fracionamento como inviável por um aspecto importante: a falta de fiscalização nas farmácias. Muitos estabelecimentos vendem remédios de tarja vermelha/preta sem receitas médicas, nem sempre existe um farmacêutico responsável presente no local (o que é determinado por lei) e as falsificações de medicamentos continuam. Mas essas são apenas três das irregularidades do setor que não serão modificadas com a venda fracionada, segundo a ex-pesquisadora do Idec em Brasília e atual subsecretária de Saúde do Departamento de Saúde de Nova York, Lynn Silver: “o fracionamento é um sucesso em muitos países e ajuda a reduzir os preços. Hoje, há abusos muito graves como a venda sem prescrição médica, e a venda fracionada não vai mudar esse quadro. Erivalder: bom para o paciente Ora, é importante introduzir o fracionamento de forma que a economia atingida com a medida seja efetivamente repassada ao consumidor e não fique apenas para a farmácia”. O diretor da Anvisa, Dirceu Raposo, partilha da mesma opinião que Lynn. Em declaração à revista Carta Capital do dia 16 de março, Raposo argumenta que, apesar dos problemas e desafios enfrentados pela fiscalização, é possível implantar gradualmente o fracionamento nas vendas. “Nossa preocupação com falsificações e substituições indevidas de medicamentos é permanente e independe do fracionamento. E quanto à questão do aumento de custos das farmácias, há exageros. Não dá para reclamar, por exemplo, da exigência da presença do farmacêutico, que já é prevista por lei. O consumidor já paga por esse custo, que deve ser coberto pela margem de lucro da farmácia”, explica o diretor do órgão. Mas se em 1993 não deu certo, o que muda desta vez? “O consumidor está consciente de que é um direito dele pagar apenas por aquilo que consome”, explica Lumena. Desta vez a indústria farmacêutica está em dúvida se realmente não vale a pena introduzir a medida: “já existe no Brasil um tipo de fracionamento dos remédios de venda livre. Analgésicos, antitérmicos e outros medicamentos são vendidos em unidades ou cartelas com menos comprimidos, e isso representa a maior fatia do mercado”, afirma a advogada do Idec. Diante da polêmica, a Anvisa colocou o decreto em consulta pública por trinta dias. Quem acessou o site do órgão de 4 de março a 4 de abril, pôde dar suas sugestões e fazer suas críticas à venda fracionada. Depois dessa data, com algumas modificações, o fracionamento passa a valer. Revista do Idec | Abril 2005 17 CAPA CAPA Medicamentos Medicamentos Dúvidas Sugestões da Consulta Pública n 7* Onde é possível fracionar? É atividade privativa da farmácia. As farmácias devem solicitar a licença e alvará de funcionamento da vigilância sanitária e dispor de área de fracionamento específica. Quem pode fracionar? Somente o profissional farmacêutico inscrito no CRF (Conselho Regional de Farmácia) O que pode ser fracionado? Medicamentos na forma frasco-ampolas, ampolas, seringas preenchidas, flaconetes, comprimidos, drágeas, óvulos vaginais e supositórios O que o consumidor deve apresentar? Obrigatoriamente, a receita do médico ou dentista Quem controla o fracionamento? A vigilância sanitária do estado ou município fiscalizará o “livro de receituário ou meio eletrônico” da farmácia, no mínimo, uma vez por ano Como deve ser a embalagem? A indústria deverá acondicionar o medicamento em embalagem primária fracionada. A farmácia deverá vendê-lo em embalagem secundária preservando as informações Como deve ser a bula? A Anvisa estabelece normas para bulas de informação, e o medicamento deverá ser acompanhado de uma bula para cada paciente Como armazenar na farmácia? Em área específica, livre de contaminações ou outro tipo de contato que coloque em risco os medicamentos fracionados. A Anvisa estabelece os requisitos exigidos Substituição do medicamento prescrito É proibida a substituição dos medicamentos prescritos, vendidos de forma fracionada, por medicamentos manipulados O que é proibido? É proibida a venda fracionada de lotes ou fabricantes diferentes de um mesmo medicamento. A comercialização e intermediação de medicamentos fracionados e a terceirização entre estabelecimentos farmacêuticos Medicamento genérico pode ser fracionado? Para as embalagens de medicamentos genéricos fracionados, as empresas produtoras deverão atender a legislação específica, portanto é permitido Informações ao consumidor na embalagem Será afixada uma etiqueta na embalagem secundária com: nome do produto, identificação completa do fabricante e da farmácia; no de registro, no do lote, data de fabricação e validade, peso, volume líquido e quantidade de unidades, posologia e via de administração; precauções; nome, assinatura e CRF do farmacêutico; nome e inscrição do médico ou dentista o A receita fica retida? Não. Deve ser devolvida ao usuário, carimbada e assinada pelo farmacêutico com declaração do aviamento Quais informações devem estar na farmácia? Placa com o nome completo do farmacêutico e o horário em que está presente afixada na porta principal. Placa com o horário de funcionamento, foto com nome, inscrição e horários do farmacêutico afixada no interior, em local visível. Licença e alvará afixados em local visível. Lista com endereço e telefone das farmácias de plantão autorizadas a fracionar afixada no exterior, em local visível Quais são as sanções para quem descumprir as normas? Serão aplicadas as sanções previstas para as infrações sanitárias conforme a Lei no 6.437. Podem culminar em interdição, cancelamento de licença, além de multa e notificação obrigatória ao Ministério Público Federal e Conselho do profissional Como será a fiscalização? O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária articulará os órgãos de fiscalização, de exercício profissional e outras entidades da sociedade civil para a implementação da fiscalização. *A tabela acima foi baseada na Consulta Pública encerrada dia 04/04, data do fechamento desta edição. As normas adotadas podem não ser exatamente essas, que são as sugestões feitas à Anvisa. 18 Revista do Idec | Abril 2005 Papel da sociedade civil E m prol da venda fracionada estão dezenas de entidades que se uniram para manifestar apoio à medida. Um grupo formado por associações de classe, sindicatos, ONGs e outras organizações da sociedade civil elaborou um documento e o entregou ao ministro da Saúde, Humberto Costa. “O governo agradeceu o apoio e disse que vai se empenhar na fiscalização das irregularidades diante de todas as dúvidas que expusemos”, conta o médico Erivalder, que liderou o manifesto e esteve representando o Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo. Apesar da certeza de que o fracionamento é bom para os consumidores e para o Brasil, não deixa de haver preocupação entre seus defensores. Para o Idec, a venda fracionada dará certo se realmente forem seguidas algumas determinações, como, por exemplo, a presença do farmacêutico nos estabelecimentos e a disponibilidade de embalagens fracionáveis que garantam a qualidade do medicamento e a informação ao consumidor. A delimitação do universo de remédios a serem fracionados é também muito importante (ver tabela ao lado). A VOZ DO POVO Durante o mês de fevereiro, o Idec lançou no site (www.idec.org.br) uma enquete sobre esse tema, e 64% dos consumidores foram favoráveis à medida. Em pesquisa realizada pelo Departamento de Ouvidoria do Ministério da Saúde esse número é maior: 86%. No estudo feito em 276 municípios das 5 regiões do país (com 1.406 pessoas), apenas 14% dos entrevistados foram contra a medida. Como o decreto é somente um adendo à lei dos remédios de 1973 e não obriga as farmácias a adotarem tal sistema de venda, é importante que o consumidor faça a sua parte. Junto com os direitos, Fala, Idec! O Idec entende que o fracionamento de medicamentos é uma medida que irá beneficiar os consumidores, desde que sua operacionalização seja adequada. Receitar na exata medida da necessidade clínica do paciente consiste em uma mudança de paradigma: o foco passa a ser o tratamento. É muito importante esse direcionamento, porque poderá desencadear uma série de mudanças necessárias para que a política nacional de medicamentos possa ser desenvolvida. O próprio conceito de medicamentos, hoje distorcido, terá o devido reparo. O medicamento não é um produto de uso ordinário, não é uma mercadoria, fruto de uma produção em massa que se coloca à disposição do mercado de consumo. A produção, distribuição, comercialização e publicidade exigem regras rígidas da vigilância sanitária, de informações e de segurança. Isso diz respeito à vida das pessoas. Na manifestação à Anvisa durante a Consulta Pública, o Idec reiterou também a necessidade de que o decreto preveja uma ampla campanha de informação aos consumidores sobre como deve ser o fracionamento. Para o Instituto a atitude do consumidor é fundamental para a implementação da venda fracionada de medicamentos. PHOTOS.COM Resultado geral da análise Fracionamento: além da economia, importa garantir a segurança também existem os deveres. “A prioridade de compra deve ser dada à farmácia que vender os remédios fracionados”, argumenta Lumena. É necessário estar atento e denunciar as situações que coloquem em risco a saúde do consumidor. A informação também é um de seus direitos básicos (ver tabela ao lado). Caso o consumidor sinta-se prejudicado em seus direitos, deve denunciar aos órgãos competentes. A central de atendimento da Anvisa atende pelo telefone 0800 644 0644, mas é possível denunciar pelo “Fale Conosco” do site do órgão (http://www.anvisa.gov.br). Também há no site uma lista completa das Vigilâncias Sanitárias municipais e estaduais. Na ausência de um farmacêutico responsável, o consumidor deve denunciar o estabelecimento ao Conselho Regional de Farmácia. O do Estado de São Paulo atende pelo telefone (11) 30671450, ou pelo e-mail (denuncia@ crfsp.org.br). O endereço da instituição de São Paulo na internet é o (www.crfsp.org.br); o do Rio de Janeiro é (www.crf-rj.org.br); e o de Minas Gerais é (www.crfmg.org.br). Revista do Idec | Abril 2005 19