Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar da ANCED Subsídios para a construção do relatório alternativo da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Crianças das Nações Unidas Brasil, 2009 1 ANCED – Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente Rua Barão de Itapetininga, 255 – Sala 1104 – Centro – São Paulo – SP CEP 01042-001 tel.: (55 11) 3159-4118 tel.fax.: (55 11) 3257-0365 [email protected] www.anced.org.br Coordenação Nacional – Biênio 2007/2009 Eliana Augusta de Carvalho Athayde e Cláudio Augusto da Silva – Fundação Bento Rubião – Rio de Janeiro/RJ Margarida Maria Marques – CEDECA Ceará – Fortaleza/CE Djalma Costa – CEDECA Interlagos – São Paulo/SP Coordenação do Grupo de Trabalho para monitoramento da CDC Wanderlino Nogueira Neto (CEDECA Interlagos) e Nadja Bortolotti (CEDECA Ceará) Equipe Executiva responsável pelo texto Coordenação Michelle Gueraldi Relatores Fabiana Gorenstein Ivanilda Figueiredo Lia Cavalcante Ludmila Correia Marina Novaes Maurício Alto Raul Nin Ferreira Rosimere de Souza Salomão Ximenes Assessor Renato Roseno Consultor Leandro Lamas Valareli Apoio Embaixada Britânica no Brasil Save the Children Suécia Terre des Hommes Holanda OBS: Este é um texto preliminar para debate. Sua circulação é restrita. Sugestões, críticas e dúvidas, favor encaminhar para [email protected] São Paulo, Março/2009 Agradecemos a todas as pessoas e organizações que contribuíram com informações para este relatório. 2 Sumário Introdução.......................................................................................................4 Sistema Geral de Proteção e Medidas Gerais de Implementação.............................13 Comentários às Recomendações sobre Sistema Geral de Proteção......................39 Homicídios, Atentados à Vida, à Integridade Física, Tortura e Punições Corporais.....53 Homicídio...................................................................................................55 Tortura.......................................................................................................83 Punições corporais.......................................................................................93 Convivência Familiar e Comunitária ...................................................................98 Violências Sexuais.........................................................................................122 Exploração Econômica....................................................................................152 Direito à Saúde ............................................................................................182 Direito à Educação.........................................................................................233 Justiça Juvenil...............................................................................................269 Justiça Juvenil: O caso de São Paulo.............................................................298 3 INTRODUÇÃO Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar da ANCED Subsídios para a construção do relatório alternativo da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Crianças das Nações Unidas 4 Introdução O II Relatório Alternativo sobre os Direitos da Criança organizado pela ANCED e diversos parceiros expressa o olhar de uma parcela da sociedade brasileira, sobre a situação dos direitos da infância no Brasil, no fim do primeiro decênio do século XXI. A ANCED tem associados 33 Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, e são estas organizações políticas, que lidam cotidianamente com a defesa, a promoção e garantia dos Direitos da Criança, as autoras deste Relatório. Em 2004 a ANCED, em conjunto com outras organizações e coalizões, entre elas, o Fórum DCA Nacional, concluiu seu I Relatório Alternativo sobre a implementação, pelo Estado brasileiro, dos direitos previstos na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. A partir de então, foi seguida pela ANCED, uma trajetória, cada vez mais elaborada, de monitoramento dos direitos da criança no país. A ação de monitorar de forma contínua os direitos da criança tem sido desenvolvida e aprimorada pela ANCED. Este II Relatório representa, assim, o estágio em que nos encontramos, de amadurecimento e de conhecimento sobre como realizar esta árdua ação de monitorar os direitos da infância. Os Relatórios Alternativos produzidos pela ANCED não comentam ou refletem os relatórios apresentados pelo Governo Federal, ao Comitê de Direitos da Criança da ONU. Ambos foram balisados em opções políticas e ideológicas dos CEDECAS associados à ANCED e parceiros da sociedade civil. Este II Relatório é o resultado da construção de uma ‘matriz de monitoramento’ por descritores de situação e indicadores sobre a situação da infância no Brasil, com base nos direitos da infância, previstos na legislação internacional, sobretudo na CDC, no ECA e nas Recomendações feitas em 2004 pelo Comitê de Direitos da Criança da ONU ao Estado brasileiro (ver adiante as notas metodológicas sobre a construção deste relatório). A ‘matriz de monitoramento’ foi desenvolvida pela ANCED, no decorrer de 2005 e 2006, tendo como orientação superior, dar visibilidade às violações que atingem as crianças no Brasil, mas que, em especial, atingem aquelas que pertencem a grupos em situação de vulnerabilidade, e permitem uma análise do direcionamento dado às políticas públicas, tendo em vista a efetividade do princípio da não-discriminação. Neste contexto, o II Relatório abordará os seguintes temas: 1) Sistema Geral de Proteção – Medidas Gerais de Implementação, 2) Homicídios, atentados à vida, à integridade física, tortura e punições corporais, 3) Crianças privadas de seu ambiente familiar, 4) Violação do Direito à Educação, 5) Violação do Direito à Saúde, 6) Aplicação e Execução de MSE’s, 7) Violências Sexuais, 8) Exploração Econômica. Todo construído com dados disponíveis sobre cada uma das violações que se pretendia retratar, este relatório tem o objetivo de servir como um instrumento de denúncia, sobre a gravidade da situação de desrespeito aos direitos da criança no Brasil. Esta primeira versão é subsídio para o debate. As organizações estão convidadas a sugerir modificações. O processo continua. O relatório alternativo em sua versão final será enviado ao Comitê quando assim as entidades subscritoras convencionarem isto. Portanto, o momento agora é de partilha de um olhar (que não se pretende único nem superior, mas que deseja se somar a outros olhares). A etapa que concluímos agora foi de feitura de uma texto preliminar, logo não está fechado a contribuições, ao contrário, será objeto de apropriação e crítica. Ficamos felizes que um maior número de organizações esteja buscando participar do processo. Queremos isso e mais. Queremos que a participação se dê em todos os processos, sobretudo a participação de crianças. Este não deve ser um mecanismo somente de organizações, mas, na medida possível, da sociedade brasileira em sua pluralidade. 5 O Direito Internacional de Proteção à Criança A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CDC), aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, é o tratado internacional de direitos humanos mais ratificado da humanidade até o presente1. Sua elaboração e aprovação foram resultados de um esforço social e político singulares para a mudança paradigmática do status jurídico e político da infância nas sociedades contemporâneas a fim de alterar as relações e condições de vida das crianças em todo o mundo. Esta mudança gradual e profunda remonta à Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança (1924, portanto, anterior às Nações Unidas), continuada em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmada na Declaração dos Direitos da Criança (1959) e nos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Em síntese, foi no Séc. XX que a luta pelo reconhecimento de direitos humanos gerais e especiais avançou, alcançando também as crianças, forjando-se a concepção de proteção integral de seus direitos. Ressalte-se que este marco, no denominado mundo ocidental, somente foi possível em razão de uma nova visão social sobre a infância e sobre as experiências geracionais humanas, tendo em vista que outras civilizações, a seu modo e a seu tempo, construíram distintas relações inter-geracionais e, em muitas casos, muito mais protetoras que as sociedades ocidentais industriais. Ao declarar o ano de 1979 como o Ano Internacional da Criança, as Nações Unidas abriram o processo para, finalmente, adotar um tratado internacional específico para estas gerações. Em outras palavras, se por um lado era necessário afirmar a titularidade de direitos humanos universais das crianças, por outro, era necessário reconhecer em definitivo os direitos humanos especiais derivados de sua condição geracional. A mudança entre a “criança que necessita de proteção” (ainda na dimensão da vontade moral e na atitude protetiva) para a criança credora de direitos (sujeito e titular de sua condição humana) foi lenta e está sintetizada nos dez anos de debates para a aprovação da Convenção de 1989. Princípios A Convenção de 1989, elaborada a partir da iniciativa do Estado da Polônia que primeiro propôs em 1978 um texto para debate2, está baseada em quatro grandes princípios: • • • • Não discriminação (art.2º ) Melhor interesse da criança (art. 3º ) Sobrevivência e Desenvolvimento (art.6º ) Participação (art.12) Reconhece os direitos da criança, dispondo-os em oito grandes agrupamentos3: (a) Medidas Gerais de Implementação (arts. 4º , 42º e 44[6]); (b) Definição de Criança (art. 1º ); (c) Princípios Gerais (arts. 2º , 3º , 6º e 12º ); (d) Direitos Civis e Liberdades (arts. 7º , 8º , 13º ,17º e 37(a)); (e) Ambiente familiar e Cuidados Alternativos (arts. 5, 18.1, 18.2, 9, 10, 27.4, 20, 21, 11, 19, 39 e 25); 1 2 3 Com 193 ratificações, conforme informação disponível na página do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos - http://www2.ohchr.org/english/law/crc.htm Sobre o processo de elaboração da Convenção sobre os Direitos da Criança, sugerimos a leitura da obra Legislative History of the Convention on the Rights of the Child, editada pelo Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos e organização Save the Children Suécia (2007) Esta disposição foi adotada pelo Comitê dos Direitos da Criança em 24/10/1994 para organizar o processo de monitoramento. Ver: Overview of the reporting procedures, disponível em: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/ (Symbol)/CRC.C.33.En?Opendocument 6 (f) Saúde Básica e Bem-estar (arts. 6.2, 23, 24, 26, 18.3, 27.1, 27.2 e 27.3); (g) Educação, Lazer e Atividades Culturais (arts. 28, 29 e 31); (h) Medidas de proteção especial, que inclui: (i) Crianças em situação de emergência (arts. 22, 38 e 39); (ii) Crianças em conflito com a Lei (arts. 40, 37 e 39); (iii) Crianças em situações de exploração, incluindo recuperação física e psicológica e reintegração social (arts. 32, 33, 34, 35, 36 e 39); (iv) Crianças que pertencem a minorias ou a grupos indígenas (art. 30). Sobre o processo de monitoramento A Convenção, em seus artigos 43 e seguintes, estabelece os mecanismos de monitoramento de sua implementação. Para tal, determina, a exemplo dos outros tratados internacionais de direitos humanos, a criação de um comitê de especialistas (que inicialmente contava com dez membros e em 2002 foi ampliado para dezoito integrantes). Estes especialistas, eleitos pelos Estados-Partes, a partir de suas expertises e trajetórias em defesa dos temas tratados na Convenção, têm como principal atribuição o monitoramento das ações dos Estados com vistas à realização dos direitos reconhecidos neste Tratado. Neste mesmo sentido, o texto da Convenção determina que os Estados-Partes enviem ao Comitê relatórios periódicos. Inicialmente, ao completarem-se dois anos de ratificação e, a partir de então, de cinco em cinco anos (arts. 44 e 45 da CDC). Os relatórios devem conter informações que permitam ao Comitê ter conhecimento dos avanços e/ou fatores que dificultam a realização dos direitos da criança, com dados desagregados sobre a infância no Estado-Parte. Da mesma forma e para que o Comitê tenha informações de diferentes fontes, as agências do Sistema ONU (UNICEF, OIT...), os relatores especiais do Alto Comissariado para Direitos Humanos, organizações internacionais e organizações da sociedade civil também são estimuladas a enviar informações sobre o cumprimento das obrigações previstas na CDC. Em relação às organizações nacionais de sociedade civil, convencionou-se que estas devem ser estimuladas a enviar relatórios alternativos ao relatórios governamentais. De posse do relatório governamental, dos relatórios alternativos, bem como todas as informações do Sistema ONU, o Comitê realiza uma pré-sessão (privativa aos membros da sociedade civil e de agências do Sistema ONU). Com as informações da pré-sessão, o Comitê elabora um rol de perguntas ao Estado-Parte sob monitoramento. Com todas estas informações, finalmente, o Comitê realiza a sessão de análise do Estado-Parte e adota comentários e recomendações sobre a implementação da CDC no País. O Brasil ratificou a CDC em 1990. Deveria, portanto, ter enviado seu primeiro relatório em 1992 e, a partir de então, em 1997, 2002, 2007... Lamentavelmente, o primeiro relatório foi enviado com 11 anos de atraso em 2003. A sociedade civil brasileira, por meio da ANCED e do Fórum DCA Nacional elaboraram seu relatório alternativo. Em outubro de 2004, o Comitê adotou seu primeiro rol de comentários e recomendações sobre a implementação da CDC no Brasil4. Dentre as recomendações, a última destaca que, como medida excepcional: “[O] Comitê insta o Estado brasileiro, a fim de que se mantenha em dia com suas obrigações de monitoramento, a enviar ao Comitê até a data de 23 de outubro de 2007, o seu segundo, terceiro e quarto relatórios consolidado.” Além de seu texto principal, a CDC tem dois protocolos facultativos, um sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados e outro sobre exploração sexual, venda, pornografia infantil e tráfico de crianças para fins de exploração sexual. Os protocolos foram aprovados em 2000 (com vigência a partir de 2002). O Brasil ratificou ambos em 2004. O processo de 4 Para ter acesso aos documentos do processo de monitoramento da CDC no Brasil, sugerimos a leitura da página referente à 37a Sessão do Comitê: http://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/crcs37.htm 7 monitoramento dos protocolos facultativos segue o mesmo rito do monitoramento do texto principal da CDC. O Brasil deveria, portanto, ter enviado ao Comitê os relatórios de implementação dos protocolos em 2006, o que também ainda não o fez5. Sobre o presente relatório Em novembro de 2002, a ANCED adotou em sua Assembleia Geral, como uma de linha estratégica, o monitoramento da CDC. Naquele momento, a demanda imediata era que o Estado brasileiro então atrasado mais de 10 anos com o compromisso de enviar relatórios periódicos, assim procedesse. Além disso, formamos um grupo de trabalho com cinco CEDECAS que assumiram a tarefa de impulsionar o processo de elaboração do relatório alternativo da sociedade civil6. Para o I Relatório Alternativo, foram utilizados os seguintes critérios para escolha dos temas/direitos a serem monitorados: • Envergadura da violação (extensão da violação sobre a infância) • Gravidade da violação • Visibilidade (queríamos ver o que não estava nas agendas públicas) Com base nestes critérios, foram focados 4 direitos em duas partes. A primeira se propunha a abordar analiticamente: 1) direito à participação, tendo como enfoque a gestão da política para infância; 2) direito à sobrevivência, trabalhando o tema saúde, tendo como foco a desnutrição; 3) direito ao desenvolvimento, discutindo a educação a partir do direito à qualidade no ensino fundamental; e 4) direito à proteção, versando sobre o adolescente em conflito com a lei (acesso à Justiça/ garantia do devido processo legal na aplicação e na execução das medidas sócio-educativas) e o problema de assassinatos de jovens no Brasil. A segunda parte foi elaborada a partir da visão de crianças e adolescentes, organizados em grupos por projetos de intervenção direta, sobretudo com crianças em situação de rua7 8. O Fórum Nacional DCA (e entidades integrantes), coalizão à qual a ANCED filia-se, foi mobilizado desde o primeiro momento, bem como coalizões temáticas (violência sexual, trabalho infantil, educação, educação infantil...) que fizeram seus aportes ao informe. Em junho de 2004, houve a pré-sessão do Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas para debater os informes alternativos e informações do Sistema ONU. Em outubro de 2004, houve a sessão para debater com a representação do Estado brasileiro. Ainda em outubro de 2004 o Comitê aprova suas recomendações ao Brasil9 O processo de 2003/2004 nos ensinou que, mais que cumprimento de uma obrigação prevista em um tratado internacional de direitos humanos, o processo periódico de elaboração de informes (oficiais e alternativos) deve servir como oportunidade para debate público, mobilização, produção de informações sistematizadas e, sobretudo, adoção de atitudes que permitam a realização de direitos reconhecidos no Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos Para a ANCED, é imprescindível que o Estado tenha rotinas e profissionais dedicados ao permanente monitoramento (público, acessível e participativo) de direitos humanos. É absolutamente relevante que, além do cumprimento formal dos prazos - algo que deveria ser 5 6 7 8 9 Para ter acesso aos relatórios de monitoramento dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, acesse: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/NewhvVAllSPRByCountry?OpenView&Start=1&Count=250&Expand=24#24 Disponível em www.anced.org.br Informe alternativo sobre os Direitos da Criança, 2004 Os grupos com crianças de rua foram coordenados por entidades parceiras da organização Terre des Hommes Lausanne, nos Estados do Rio de Janeiro, Ceará e Maranhão. http://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/crcs37.htm 8 próprio do aparato estatal, mormente quando assume compromissos pela ratificação de instrumentos internacionais de direitos humanos – mobilize internamente suas diferentes expressões com responsabilidades na realização destes direitos. Isto quer dizer que nosso objetivo não deve ser o de simplesmente ter os relatórios de monitoramento tempestivamente (fato ainda não alcançado, ao menos em relação à CDC), mas, sobretudo, fazer do processo de monitoramento um processo que permita aos entes públicos e à sociedade refletirem sobre políticas que promovam direitos. Assim, tanto o Executivo, o Judiciário, o Legislativo nos três níveis federados têm a responsabilidade cumulativa no Sistema de Proteção dos Direitos Humanos de adotarem as medidas necessárias para a satisfação integral dos direitos humanos da criança. Se é verdade que cabe à União Federal representar o Estado brasileiro na esfera internacional, por outro lado, verdade também é que todas estruturas do Estado são alcançadas e responsabilizadas pelos compromissos decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos. Portanto, não cabe, como escusa, o fato do Brasil ser uma República Federativa com responsabilidades administrativas compartidas entre seus entes federados. Em resumo, o processo de monitoramento deve ser uma ação continuada de mobilização, produção de informações, análise e tomada de decisão entre os braços do Estado aparelho. De nada adianta cumprir prazos se o Juiz da comarca da cidade do interior ou o gestor da política pública não forem integrados pela lógica de que eles também são responsáveis pelo cumprimento dos tratados internacionais de direitos humanos. Ao mesmo tempo, cabe às organizações da sociedade civil e de cooperação internacional, a seu tempo e modo, colaborar com este desiderato seja na pressão pública legítima, seja na produção de informações. Aqui também cabe o mesmo raciocínio: não se pode limitar a ação dos organismos de sociedade civil exclusivamente à elaboração periódica de relatórios alternativos. Mas fazer buscar consolidar um sistema público de indicadores de direitos humanos que permita o controle social permanente do poder público. Neste sentido e com o intuito de dar sua contribuição ao debate sobre o monitoramento permanente dos direitos humanos, a ANCED buscou, a partir dos aprendizados vários de 2004 para cá, elaborar bases para o debate de uma matriz de monitoramento. Esta matriz estaria baseada em quatro grandes dimensões de análise que descreveremos a seguir. Como chegamos aos temas e recomendações analisados no presente relatório? Algumas notas metodológicas As recomendações feitas para ao Estado brasileiro pelo Comitê foram o ponto de partida. Assim, passamos a analisar as 76 observações e recomendações feitas ao Brasil. Elas foram analisadas sob os seguintes parâmetros: 2. Violação – A que grupo de direitos determinada observação e recomendação fazia parte 3. Recomendação – Qual a recomendação específica? 4. Adequação: Pertinência e Relevância – Qual a pertinência e eficácia da recomendação? 5. Viabilidade de monitoramento – Seria possível monitorar com base nos instrumentos (indicadores e descritores atuais e disponíveis)? 6. Nível de responsabilidade do Estado – Qual o nível de responsabilidade do Estado aparelho? 7. Agrega alianças – É possível estabelecer alianças com movimentos sociais e organizações de sociedade civil para produção de informações? 8. Permite análise de não discriminação – Para a ANCED, no exercício de monitoramento, destacamos o princípio da Não discriminação (art2o da CDC), dado que a conjuntura histórica brasileira permite concluir que as violações de direitos são havidas em razão da interseccionalidade entre raça, classe social, gênero, etnia, deficiências, local de moradia. 9. Contexto: Qual o contexto da recomendação? - A recomendação dedicava-se a produção de Impacto? Mudança no Marco legal? Alterações no Esforço 9 governamental sobre o tema? Feita esta primeira matriz, chegou-se a um conjunto de recomendações relativas a direitos (reconhecidos na CDC, mas não somente). Deliberamos pela necessidade de, partindo destas recomendações, elaborar uma matriz de estratégias de monitoramento que contemplasse o conteúdo do direito que ensejava a recomendação. Assim, aplicamos sobre o resultado da primeira matriz uma segunda a partir dos seguintes parâmetros: ➢ Tema – a qual tema ou grupo de temas determinada recomendação fazia parte ➢ Recomendação / Direito – qual a recomendação e qual o direito reconhecido que a sustenta? ➢ Âmbito do monitoramento – qual o âmbito de monitoramento: seria possível agregar informações dos três entes federados (União Federal, Estados e Municípios) ou somente de alguns deles? ➢ Dimensões a serem monitoradas e indicativo de método (Descrições e/ou Indicadores)10: • Situação: o quadro de vigência/violação de direitos • Marco legal e institucional: as normas, leis, políticas, e mecanismos institucionais de promoção, implementação, a gestão, participação e controle social • Contexto/Ambiente: a consciência e a legitimação dos direitos sociedade – indivíduos, grupos, instituições • Esforços: os recursos e insumos do Estado orientados para a garantia dos direitos e o grau de cobertura e alcance dos bens, serviços e políticas de caráter público necessários para promover ou assegurar estes direitos no âmbito da Feita esta matriz, chegamos ao conjunto de 8 grandes temas, divididos em subtemas, conforme a seguir: 1) Sistema Geral de Proteção – Medidas Gerais de Implementação, 2) Homicídios, atentados à vida, à integridade física, tortura e punições corporais 3) Crianças privadas de seu ambiente familiar 4) Violação do Direito à Educação 5) Violação do Direito à Saúde 6) Aplicação e Execução de MSE’s 7) Violências Sexuais 8) Exploração Econômica. Ao total, foram analisadas 37 recomendações ao Estado brasileiro. Para cada uma, foram pensados indicadores e/ou descritores (quando da ausência de indicadores). As fontes preferenciais foram oficiais. Todo este esforço somente foi possível graças ao apoio de uma equipe executiva viabilizada por projetos junto à organismos da cooperação internacional. Ressalte-se que, por todo o processo, foram buscadas alianças políticas com movimentos sociais e demais coalizões da sociedade civil, as quais foram fundamentais para a produção deste material. Este ainda é um texto inicial. Por razões óbvias, será devidamente atualizado quando da oportunidade de seu envio para o Comitê dos Direitos da Criança (ainda sem data definida). No entanto, está sendo preliminarmente divulgado de forma restrita neste seminário como 10 Contribuição de Leandro Lamas Valarelli 10 convite para reflexão, críticas e sugestões que possam aprimorar este processo. O Olhar das Crianças: o Relatório ‘Participativo’ da Sociedade Civil sobre os Direitos da Criança No decorrer do processo de desenvolvimento deste II Relatório Alternativo sobre a CDC, mais expandido e aprofundado, em relação ao primeiro relatório, pelo tratamento dado às violações relatadas, a ANCED igualmente buscou incluir a criança, através de sua participação na composição de um relatório sobre a efetividade de seus direitos. Ao invés de ouvir um grupo de crianças e incluir suas falas ao final ‘Relatório’, como um anexo de caráter ilustrativo da opinião dos adultos, a exemplo do que ocorreu no I Relatório, a ANCED procurou a adesão de organizações parceiras, como a TdH Lausanne, Save the Children UK, o MST, dentre outras, para que fossem formados grupos de crianças, a serem ouvidas sobre os direitos que balizam o II Relatório. Foram ouvidas crianças que pertencem a grupos em situações de vulnerabilidade, como, por exemplo, meninas, crianças com deficiência, sem-terrinha, crianças que vivem em áreas de conflito armado, indígenas, dentre outros. Os grupos foram reunidos a partir de setembro, até dezembro de 2008, somando aproximadamente 335 crianças, de várias partes do país, nas regiões sudeste e nordeste. Os registros das reuniões dos grupos foram sistematizados, e composto o relatório ‘participativo’ sobre a CDC, a ser enviado junto com o II Relatório ao Comitê de Direitos da Criança da ONU. O Relatório ‘Participativo’ da Sociedade Civil sobre os Direitos da infância é uma contribuição inicial para a efetividade do Direito à participação, previsto no art. 12 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. 11 Sistema Geral de Proteção e Medidas Gerais de Implementação Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar da ANCED Subsídios para a construção do relatório alternativo da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Crianças das Nações Unidas 12 Sistema Geral de Proteção e Medidas Gerais de Implementação Apresentação Este documento apresenta o texto referente ao temas elaborados pelo pesquisador para compor/subsidiar o Relatório Alternativo da CDC, de acordo com o planejamento realizado em conjunto com a contratante ANCED e demais pesquisadores. De acordo com sugestão da Anced os temas Sistema Geral de Proteção e Medidas Gerais de Implementação seriam elaborados por dois pesquisadores. Dessa maneira foi acordado, entre os pesquisadores, que ficaria sob a responsabilidade do pesquisador Mauricio a pesquisa e análise dos indicadores referentes às recomendações 16, 22 e 24 (apresentados nesse relatório) e para a pesquisadora Lia os indicadores referentes às recomendações 18, 20, 33 e 37. Foi adotada com estratégia pelo pesquisador responsável pela elaboração desse relatório iniciar a pesquisa bibliográfica e por dados estatísticos nas páginas eletrônicas de instituições que produzem conhecimento sobre os temas alvo dessa pesquisa. Mas tardiamente foram enviadas cartas a instituições mapeadas durante o planejamento e que poderiam enviaram sugestões de material para contribuir com o texto do relatório. Constituem temas do trabalho de pesquisa ora apresentado: Aqueles referentes à recomendação 16: • Descrição do atual sistema geral de proteção • Orçamento do sistema nacional de coordenação de políticas de DDHH para Infância e Adolescência. • Evolução do orçamento anual do órgão de coordenação. - inclusive com adequação da responsabilidade desta instância em relação à função de coordenação da política nacional) • Taxa de execução orçamentária em relação ao orçamento previsto • taxa % de municípios com Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente • taxa % de Estados com Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente • Nível/qualidade de funcionamento/operação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente dos municípios • Nível/qualidade de funcionamento/operação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente dos Estados • taxa % de municípios com instâncias do Poder Executivo na área de Assistência Social e/ou DDHH • taxa % de Estados com instâncias do Poder Executivo na área de Assistência Social e/ou DDHH Aqueles referentes à recomendação 22: • Série histórica da alocação orçamentária para infância e adolescência no últimos 4 anos • Movimento social para o controle social dos orçamentos públicos • Série histórica da alocação orçamentária diretamente voltada para grupos de crianças e adolescentes em situação de discriminação 13 • Análise política das possibilidades e esforços de destinação de recursos para infância e adolescência, considerando os recursos destinados ao pagamento da dívida pública, produção de superávit primário. • Análise do impacto da LRF nos gastos sociais • Análise da crescente importância do orçamento público na agenda e na ação das organizações da sociedade civil Aqueles referentes à recomendação 24: • Existência e qualidade de banco de dados relacionados aos direitos da infância e seu uso • Estudo sobre SIPIA 1) O Sistema Geral de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente Segundo a resolução nº 113 do Conanda11, os órgãos públicos e as organizações da sociedade civil, que integram esse Sistema, deverão exercer suas funções, em rede, a partir de três eixos estratégicos de ação: a) defesa dos direitos humanos; b) promoção dos direitos humanos; e c) controle da efetivação dos direitos humanos. Facultando a esses a possibilidade de exercer funções em mais de um eixo. O eixo defesa é composto por órgãos públicos judiciais (como as varas da infância e da juventude e suas equipes multiprofissionais, as varas criminais especializadas, os tribunais do júri, as comissões judiciais de adoção, os tribunais de justiça, as corregedorias gerais de Justiça), público-ministeriais (especialmente as promotorias de justiça, os centros de apoio operacional, as procuradorias de justiça, as procuradorias gerais de justiça, as corregedorias gerais do Ministério Publico), compõe ainda esse eixo as defensorias públicas, os serviços de assessoramento jurídico e assistência judiciária; advocacia geral da união e as procuradorias gerais dos estados, polícia civil judiciária, inclusive a polícia técnica, polícia militar, conselhos tutelares e ouvidorias. Integram esse mesmo eixo as entidades sociais de defesa de direitos humanos, incumbidas de prestar proteção jurídico-social, nos termos do artigo 87, V do Estatuto da Criança e do Adolescente, como é o caso dos Cedecas. Já o eixo estratégico da promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes operacionaliza-se através do desenvolvimento da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, prevista no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que integra o âmbito maior da política de promoção e proteção dos direitos humanos. E operacionaliza-se através de três tipos de programas, serviços e ações públicas: I - serviços e programas das políticas públicas, especialmente das políticas sociais, afetos aos fins da política de atendimento dos direitos humanos de crianças e adolescentes, promovidos pelo executivo e conselhos de direito, II - serviços e programas de execução de medidas de proteção de direitos humanos, executados pelos órgãos competentes do Poder Judiciário e dos Conselhos Tutelares e III - serviços e programas de execução de medidas socioeducativas e assemelhadas, executadas pelas unidades de atendimento públicas ou ONGs, conforme previsto no SINASE. O eixo controle destaca-se a atuação dos, Conselhos Estaduais e Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente, conselhos setoriais de formulação e controle de políticas públicas e os órgãos e os poderes de controle interno e externo definidos nos artigos 70, 71, 72, 73, 74 e 75 da Constituição Federal. O controle social é exercido também pela sociedade civil, através das suas organizações e articulações representativas. Destaca-se a partir de 2005 a atuação do Conanda em favor do estabelecimento de Parâmetros para a Criação e Funcionamento dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, bem como sobre a definição do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo 11 De 19 de abril de 2006, alterada pela resolução número 117, DE 11 JULHO DE 2006. 14 – SINASE, que estabelece os critérios para execução de medidas socioeducativas. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH Além do Conanda, integra o Sistema Nacional de Coordenação de Políticas de Direitos Humanos para crianças e adolescentes a Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH, que foi criada pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, no âmbito da Presidência da República, para: “assessorar direta e imediatamente o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes voltadas à promoção dos direitos da cidadania, da criança do adolescente, do idoso e das minorias e à defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência e promoção da sua integração à vida comunitária, bem como coordenar a política nacional de direitos humanos, em conformidade com as diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH, articular iniciativas e apoiar projetos voltados para a proteção e promoção dos direitos humanos em âmbito nacional, tanto por organismos governamentais incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, como por organizações da sociedade, e exercer as funções de ouvidoria-geral da cidadania, da criança, do adolescente, do idoso e das minorias.”12 Faz parte dessa estrutura uma Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, além de possuir como órgão colegiado o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda); Em junho de 2005 houve o rebaixamento da Secretaria Especial em uma Subsecretaria, integrante da estrutura básica da Secretaria – Geral da Presidência da República, em função da edição da Medida Provisória nº 259, de 21 de julho de 2005. Isso fez com que houvesse redução de competência e de autonomia da Subsecretaria para praticar atos de gestão administrativa, o que poderia comprometer a qualidade das atividades realizadas pela secretaria. Diante da pressão política de diversos setores sociais, especialmente aqueles ligados aos direitos humanos foi editada a da Lei nº 11.204, em 5 de dezembro de 2005, e a SEDH retornou a sua condição anterior, de Secretaria Especial, nos termos estabelecidos pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 200313. O Relatório de Gestão de 2007 é o primeiro que destaca a atuação da Secretaria na articulação e mobilização institucionais, coordenando ações entre Ministérios e Secretaria Especiais, assim como outros órgãos do Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e movimentos sociais. Salientado a atuação da Secretaria na organização da Conferências Nacionais Temáticas, como a dos Direitos da Criança e do Adolescente e na elaboração do novo PPA 2008/2011. Na área da criança e do adolescente se destaca a coordenação dos trabalhos de planejamento referentes a essa temática no PAC Social. A SEDH têm reforçado esse papel integrando e coordenando diversas estruturas governamentais para lidar com questões referentes aos direitos da criança e do adolescente, como a Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescente, o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescente e a Comissão Intersetorial de Acompanhamento da Implementação do Sinase. Orçamento da SEDH Ao analisar o orçamento da SEDH período compreendido entre 2005 e 2007, percebe-se que a taxa de execução do total orçamento disponível manteve-se praticamente idêntica nos dois primeiros anos, estando por volta de 70%, saltando para cerca de 95% em 2007. Uma parte desse crescimento se deve à maior liquidação dos recursos do Fundo Nacional da 12 SEDH/PR. RELATÓRIO DE GESTÃO 2005. Brasília, 2006. 13 Ibidem. 15 Criança e do Adolescente, o que se observa ao analisar separadamente as unidades financeiras, uma vez que a taxa de execução do Fundo foi de 32% em 2005, subindo para 46% em 2006 e chegando a 94,5% em 2007. O que significa que, em valores absolutos, foram executados cerca de 12,5 milhões do Fundo em 2005, saltando para pouco mais de 57 milhões em 2007. LOA Créditos + Disponibilizado (A) Executado (B) % B/A 57.044.210 55.799.392 97,8 8.255.829 5.778.950 70,0 G 110244 41.600.000 (FNCA)15 38.941.363 12.456.777 32,0 Totais 2005 124.050.255 104.241.402 74.035.119 71,0 LOA + Créditos Cota de Limite Executado (B) Orçamentário (A) % B/A 64.704.424 55.265.640 54.058.743 97,8 7.435.223 7.435.223 1.971.442 26,5 G 110244 50.838.412 (FNCA)* 50.838.412 23.607.621 46,4 Totais 2006 122.978.059 113.539.275 79.637.806 LOA + Créditos Cota de Limite Empenhado Orçamentário (A) Descentralizado (B) UG 200016 74.194.426 (SEDH) 2005 UG 110198 (UE)14 UG (SEDH) 2006 UG (UE)* UG (SEDH) 200016 110198 8.255.829 70,1 + % B/A 200016 93.605.625 76.301.925 75.758.839 99,3 110198 5.576.000 5.576.000 1.507.019 27,0 G 110244 60.231.649 (FNCA)* 60.231.649 57.047.735 94,7 Totais 2007 142.109.574 134.313.593 94,5 2007 UG (UE)* 159.413.274 Fonte: Relatórios de Gestão 2005, 2006 e 2007. Entre o período de 2004 a 2007 a Secretaria Especial observou crescimento de pouco mais de 20% da sua força de trabalho, ocasionado principalmente por adequações internas e otimização do contrato dos prestadores de serviço. O quadro a seguir, apresenta resumo geral da composição da força de trabalho. REQUISITADOS SEM VÍNCULO PRESTADORES ORGANISMOS INTERNACIONAIS CONTRATO TEMPORÁRIO ESTAGIÁRIOS GESTORES (SEM CARGO/FUNÇÃO) TOTAL 2004 83 41 48 10 5 16 0 203 2005 88 44 51 0 4 19 0 206 2006 88 51 60 0 3 20 0 222 2007 83 58 81 0 3 15 7 247 14 Recursos provenientes de doação da União Européia para o projeto “Assistência Técnica para Ouvidoria de Polícia e Policiamento Comunitário”. 15 Inclui recursos provenientes de doações ao Fundo Nacional da Criança e do Adolescente – FNCA 16 Contudo a SEDH afirma no seu Relatório de Gestão 2008, que a ampliação da capacidade de articulação política da Secretaria e, em particular, a assunção de novas responsabilidades como a coordenação de quatro temas da Agenda Social (Criança e Adolescente,Pessoas com Deficiência, Registro Civil de Nascimento e Documentação Civil Básica e Idosos) e a instalação da Comissão de Avaliação Interministerial dos casos de pessoas atingidas pela Hanseníase geraram aumento do volume de trabalho que não foi acompanhado na medida adequada pela expansão do quadro de pessoal e de colaboradores. 2) Os Conselhos na área da Criança e Adolescente O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente se estrutura sob três eixos: o da promoção de direitos, o do controle social e o da defesa de direitos, cabe aos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e Adolescente (CMDCA) de todos âmbitos garantir condições para realização desses eixos, enquanto aos Conselhos Tutelares (CT) cabe atuar especificamente sobre o eixo defesa de direitos. A simples criação dos conselhos não basta para garantir a efetividade dos direitos das crianças e adolescentes, pois constitui apenas no estabelecimento de um aparato legal, desse modo questões sobre a estrutura para cumprir seu papel, fatores que restringem sua capacidade de atuação são aspectos que necessitam ser fortalecidos. 2.1)Conselhos Municipais de Direito da Criança e do Adolescente (CMDCA) Segundo dados da Pesquisa Conhecendo a Realidade16 existiam no ano de 2006 apenas 8% dos municípios brasileiros que não contam com CMDCAs ativos17. Apesar disso, quando se analisam dados regionais, percebem-se marcantes diferenças. As regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste apresentam respectivamente 16%, 13% e 12% de municípios sem conselhos ativos, enquanto nas regiões Sul e Sudeste esta taxa é entre três e quatro vezes menor. Conselhos Municipais existentes por região Regiões Total de Municípios Total de CMDCAs Norte Nordeste Sudeste Centro-Oeste Sul Brasil 449 1793 1668 466 1188 5564 390 1570 1609 393 1141 5103 % CMDCAs existentes sobre o número de municípios 87% 88% 96% 84% 96% 92% A pesquisa analisou ainda a taxa de crescimento do número de CMDCAs por estados e chegou a conclusão que 4 estados, Bahia, Minas Gerais, Piauí e Rio Grande do Norte têm apresentado ritmo satisfatório de crescimento. Se esses estados mantiverem o andamento de criação de Conselhos que impuseram entre 2004 e 2005, terão CMDCAs em todos os seus municípios até o fim do ano 2008. Juntando-se assim aos estados de Alagoas, Ceará, Espírito Santo, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, estados que já apresentam cobertura total. Por outro lado, os estados com maior porcentagem de municípios sem Conselhos são a Paraíba, com 29% do total, o Maranhão, com 28%, Tocantins e Amazonas, ambos com 27%, todos estados das Regiões Norte e Nordeste. 16 A pesquisa foi realizada entre fevereiro e novembro de 2006 pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (CEATS) da Fundação Instituto de Administração (FIA). Para apuração do número de CMDCAs foram usados dados fornecidos pelos respectivos Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente, com exceção dos estados de AM, MA, MT, PB e SC cujos números foram retirados do levantamento realizado pelo IBGE no ano de 2002. Para todas outras análises foram utilizado os questionários respondidos entre os meses de maio e agosto. O retorno de questionários respondidos foi de 96% dos Conselhos Estaduais (25), 71% dos Conselhos Tutelares (3.476) e 49% dos Conselhos Municipais (2.474). 17 Este dado desconsidera 88 CMDCAs existentes, porém inativos, de acordo com os Conselhos Estaduais. 17 Fragilidades no funcionamento e organização Embora a implantação de CMDCAs venha crescendo em todos os estados, quando se analisam dados sobre formas e condições de funcionamento, organização e estrutura percebe-se que a situação não é tão otimista assim. Dados demonstram que a maior parte dos Conselhos estudados apresentam muitas fragilidades nesses quesitos. Merece destaque o fato de existir uma defasagem média de 3 anos entre a criação dos CMDCAs e o início de seu funcionamento. Mesmo depois de efetivamente iniciarem suas atividades, 47% dos conselhos estudados relataram que tiveram períodos de interrupção das atividades ou nunca desenvolveram ações efetivas no município. A dedicação dos conselheiros às atividades do Conselho mostra-se bastante baixa, cerca de 70% desses dedicam apenas até 5 horas mensais. O número de reuniões também é pequeno, 65% dos conselhos realizam apenas uma reunião mensal e outros 11% só conseguem se reunir a cada 2 meses. Fica evidente que o reduzido número de encontros e horas de dedicação de seus componentes compromete o funcionamento efetivo dos conselhos. Desse modo, quando se analisam atribuições dos CMDCAs e os instrumentos mais comumente utilizados para garantir a efetividade da Política Municipal de Atendimento, nota-se que apenas 20% dos conselhos estudados foram capazes de estruturar um diagnóstico sobre a situação da criança e do adolescente no município, e apenas 23% produziram um Plano de Ação documentado para o município, outros 16% alegam ter um plano, embora não-documentado. Sem o conhecimento sobre a realidade da infância e adolescência no município, os CMDCAs ficam impossibilitados de cumprir satisfatoriamente com algumas de suas principais atribuições, quais sejam, formular políticas que atendam a infância e adolescência em geral, participar da construção de um política de proteção integral para o município. Não surpreende que em apenas 30% dos municípios houve inclusão total do plano de ação no orçamento municipal. Ações de monitoramento e avaliação da implementação das políticas com foco na criança e no adolescente são ainda mais raras, apenas 17% dos Conselhos têm procedimentos estruturados dessa natureza e 46% não os possuem, estando os demais em fase de elaboração. Infra-estrutura deficiente e desconhecimento sobre Fundos Antes de tudo, cabe ressaltar que a infra-estrutura necessária para o bom funcionamento dos CMDCAs deve ser oferecida e garantida pelo Poder Executivo municipal, conforme resolução 105 do CONANDA, art. 4º. Dados sobre a infra-estrutura mostram que 17% dos conselhos estudados embora ativos, não dispõem de espaço físico, situação mais grave é enfrentada pelos conselhos da Região Norte, onde esse índice chega a atingir um quarto dos Conselhos. Apenas 54% dos conselhos relataram possuir equipe de apoio, a maior parte (91%) cedidos pelo poder público. É importante ressaltar que 3% dos Conselhos dizem dispor de pessoal de apoio mantido com recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o que se constitui em um equívoco já que os recursos do Fundo Municipal devem, obrigatoriamente, ser destinados ao atendimento das políticas, programas e ações voltados para a promoção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. A situação no que tange a criação dos Fundos também é grave, em 30% dos Conselhos estudados os Fundos não chegam a estar regulamentados e apenas 42% informaram já ter recebido algum recurso. Outra questão revela que pode haver desconhecimento sobre a natureza dos Fundos, quando indagados sobre quais as atuais prioridades, 59% dos Conselhos disseram ser criar e apoiar entidades, projetos e ações destinados para crianças e adolescentes, por outro lado, apenas 18 28% dos respondentes apontaram como prioridade a criação, regulamentação ou adequação da legislação do Fundo, divulgando e captando recursos para este. O que nos leva a crer que não há clareza de que a correta operação do Fundo, oferecerá aos CMDCAs a possibilidade de diminuir o déficit da rede de atendimento. Precário equilíbrio entre forças do poder público e sociedade civil e problemas com a independência dos poderes Dados sobre o perfil dos componentes, evidenciam que ainda persistem dificuldades de garantir o espírito paritário dos CMDCAs, já que 60% dos conselheiros declararam ser funcionários, empregados ou prestadores de serviço em órgãos públicos. Também chama a atenção que 63% dos presidentes são vinculados ao poder público. A predominância de representantes do poder público pode ser em parte explicada quando se analisam os requisitos para aceitação de candidaturas de representantes da sociedade civil, já que 9% dos conselhos admitem levar em conta como requisito para a candidatura a visão favorável do poder público sobre o candidato. Mesmo depois de acolhida a candidatura, 26% dos conselhos relataram que os representantes da sociedade civil são eleitos por escolha indireta, realizada conjuntamente por entidades da sociedade civil e representantes do setor governamental. Essa prática contraria a Resolução 105/2005 do CONANDA em seu Artigo 9º, que proíbe a ingerência do poder público sobre a escolha dos representantes da sociedade civil. A seleção realizada exclusivamente por representantes de entidades da sociedade civil ocorre em somente 18% dos casos. Outras distorções também são notadas quando se analisam separadamente os vínculos institucionais dos representantes do poder público, para o qual se observou que 13% declararam ser oriundos do Poder Legislativo e 3% do Poder Judiciário. Enquanto o grupo de conselheiros representantes da sociedade civil apresenta 8% representantes oriundos do Poder Legislativo e 4% do Poder Judiciário. É importante esclarecer que a participação de representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública no Conselho dos Direitos contraria o princípio constitucional da independência entre os poderes e, expressamente, a resolução 105/2005 do CONANDA, art.11, que determina que “representantes de órgãos de esferas governamentais – que não o executivo – não devem compor os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente no âmbito do seu funcionamento”. Nota-se também ingerência no que tange a gestão dos Fundos, uma vez que 20% dos Conselhos apontam que o responsável pela utilização dos recursos é poder público. Os autores da pesquisa concluem que “essa situação coloca em cheque a própria natureza dos Fundos Municipais, que representam a possibilidade de atuação mais efetiva dos Conselhos, de modo independente do executivo municipal, a partir das prioridades levantadas no colegiado e não por apenas uma das partes”. A adoção de tais práticas desviantes pode ser um indicador de baixa articulação entre os Conselhos em diferentes níveis. Em verdade, é isso que se nota quando se analisa as baixas taxas de conhecimento e incorporação das resoluções do CONANDA e dos Conselhos Estaduais por parte dos CMDCAs. Indicador da falta de articulação entre o Conselhos Para a orientação de suas políticas e de seus processos legais e administrativos, os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente podem contar com os atos normativos formais (Resoluções) elaborados por eles próprios, pelos Conselhos Estaduais e pelo CONANDA. É fundamental que haja o conhecimento em todas as esferas acerca de tais resoluções, as quais podem e devem auxiliar as localidades na formulação de suas políticas de atenção à criança e ao adolescente. 19 A pesquisa argüiu aos CMDCAs com que freqüência estes tomam conhecimento e incorporam em suas ações as resoluções do CONANDA e dos respectivos Conselhos Estaduais. Quanto as resoluções do CONANDA, apenas 30% dos CMDCAs estudados relatam que sempre tomam conhecimento dessas e apenas 29% incorporam essas resoluções em suas ações. Já no que tange as resoluções do Conselho Estadual, o número aumenta um pouco, já que 33% dos CMDCAs estudados relatam que sempre tomam conhecimento dessas e 30% passam a incorporam essas resoluções . 2.2) Conselhos Tutelares De maneira geral, os Conselhos Tutelares são órgãos permanentes e autônomos, independentes do Poder Judiciário, encarregados pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Suas principais atribuições são: receber denúncias de violação dos direitos e orientar e/ou promover medidas de proteção. Todo município brasileiro deve contar com, pelo menos, um Conselho Tutelar. Segundo dados da Pesquisa Conhecendo a Realidade18 existiam no ano de 2006 12%19 dos municípios brasileiros que não contam com CTs. Regiões Total de Municípios (IBGE/2005) Norte Nordeste Sudeste Centro-Oeste Sul Brasil 449 1793 1668 466 1188 5564 Total de (IBGE/2002 Conselhos Estaduais)* 395 1258 1676 430 1121 4880 CT e % CT existentes sobre o número municípios de 88% 70% 100% 84% 92% 88% A tabela acima mostra que algumas regiões do país já possuem cobertura adequada de conselhos tutelares, como podemos observar nas Região Sudeste e Sul do país. Já a situação no Nordeste é bastante diferente. É importante notar que não se pode falar de cobertura total para a Região Sudeste, uma vez que esta proporção poderá superar os 100%, já que os municípios de grande porte dispõem de mais de um Conselho Tutelar. Contudo, pode-se afirmar que há equivalência entre a quantidade de municípios e de Conselhos nessa Região. Funcionamento e organização Assim como o que foi constatado para CMDCA, existe um intervalo médio de três anos entre a implantação e o efetivo início das atividades do CT, nas Regiões Norte e Nordeste este intervalo é maior, sendo de 5 e 4 anos respectivamente. Dados da pesquisa confirmam que há 680 municípios no Brasil sem CT e naqueles que já existem, 4% encontram-se inativos. Conforme determinado no ECA, são requisitos para todo candidato à posição de conselheiro tutelar: reconhecida idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residência no município. A pesquisa constatou que os requisitos para aceitação de candidaturas ao cargo de conselheiro, conforme prescrito pelo Estatuto, foram adotados por 95% dos respondentes. As outras exigências mais comuns apresentadas pela pesquisa foram ter nível mínimo de escolaridade, mesmo que essa não tenha sido especificada (80%) e ter disponibilidade e tempo para dedicação integral. Um outro requisito registrado com menor freqüência (5%) é a necessidade do candidato contar 18 Para apuração do número de CTs foram usados dados fornecidos pelos respectivos Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente, e também do levantamento realizado pelo IBGE no ano de 2002. 19 Este dado desconsidera 103 CTs existentes, porém inativos, de acordo com os Conselhos Estaduais. 20 com indicação favorável de alguma autoridade do poder público local. Este critério pode fazer com que o Conselho torne-se subordinado às diversas instâncias do poder público, o que o descaracterizaria como órgão autônomo e não-jurisdicional. No que tange ao processo de escolha dos conselheiros informações obtidas mostram que 70% dos Conselhos tiveram seus membros escolhidos através de eleição direta e aberta a todos os eleitores do município. A análise do recorte regional mostra que a Região que apresentou menor percentual de eleição direta foi a Sul, com 58%, enquanto a Norte, com 83%, teve a mais elevada freqüência. A segunda forma mais comum de escolha dos representantes foi a eleição direta e aberta a todos os membros das entidades do município que atuam na área da criança e do adolescente – tanto as governamentais quanto as organizações da sociedade civil, 10% das respostas. A capacitação para o cargo não é obrigatória, embora desejável, uma vez que trata-se de uma atividade complexa que demanda conhecimento especifico e interação com agentes da sociedade civil e poder público. A pesquisa também demonstrou que em 68% dos CTs pelo menos um dos conselheiros recebeu capacitação, sendo que na maior parte destes todos os seus conselheiros receberam capacitação. Dados da pesquisa revelam ainda que a tempo médio de capacitação foi de 117 horas, sendo significativamente maior no Sul do pais, com 210 horas. Finalmente, verifica-se baixa (apenas 1/3) participação de membros dos CTs em fóruns ou associações de conselheiros. Um dado importante é que 96% dos CTs remuneram seus conselheiros, e a remuneração média é de R$ 504,00. O estudo também revela que 44% dos conselheiros trabalham mais de 40 horas semanais e outros 28% trabalham entre 31 e 40 horas. Para dar conta de estar disponível durante todos os dias da semana durante 24 horas, 83% dos CTs organizam esquemas de plantão que cobrem todos os dias. Infra-estrutura deficiente e carência de equipamentos A pesquisa mostrou que 12% dos CT não contam com espaço físico permanente, sendo mais grave essa situação no Norte, onde 29% não possuem espaço. Quanto a avaliação desses locais de trabalho, apenas 50% dos conselhos avaliam como bom o tamanho do espaço e 48% como boas as condições de conservação. Ainda sobre o espaço físico, o requisito que recebeu a pior média foi aquele que argüiu sobre as condições de privacidade, que só aparece como boa na avaliação de 32% dos CTs. “A privacidade está entre as características essenciais para que seja desenvolvido um trabalho sério, que proporcione segurança e sentimento de dignidade aos envolvidos. A falta de privacidade indica baixa prioridade, por vezes atribuída pelo Executivo Municipal, ao atendimento da população que procura sua proteção.”20 No que se refere à presença de equipamentos e materiais, constata-se que 15% não possuem mobiliário básico, 23% material de consumo e 30% textos legais. Outros equipamentos mais sofisticados, mas também necessários para exercer a função de recebimento denúncias e fiscalização, como telefone fixo e veículo automotivo também estão ausentes em 37% e 60% dos CTs, respectivamente. Avaliação do CTs sobre os problemas e violações Os CTs, que vivenciam cotidianamente as violações dos direitos de crianças e adolescentes, avaliam que no universo estudado o maior problema é o uso de álcool, seguido pela gravidez e paternidade precoces e pelo uso de drogas e substâncias tóxicas, sendo essa ultima um problema maior nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Vale destacar que quando se analisa os dados por porte do município, percebe-se que algumas 20 CEATS. Conhecendo a Realidade. 2006. 21 violações são típicas de cidades de grande porte. Caso de crianças em situação de rua e exploração de crianças e adolescentes por grupos envolvidos em atividades criminosas, que segundo o índice21 elaborado pela pesquisa Conhecendo a realidade é baixo para as cidades com faixa população com 17 anos ou menos de até 10 mil e alto para aquelas que possuem mais de 50 mil nesta faixa de idade. Auto-avaliação de desempenho e dificuldades Na auto-avaliação do desempenho dos CTs para o exercício de suas atribuições básicas, os respondentes afirmaram que se consideram muito eficientes na maioria dos itens sugeridos pela pesquisa, sendo que aqueles para os quais se consideram mais eficientes são respectivamente, encaminhar para a autoridade judiciária nos casos de sua competência, atender e aconselhar pais aplicando medidas previstas; promover execução de suas decisões requisitando políticas setoriais. As únicas funções que se consideram pouco eficientes são, fiscalização de entidades de atendimento e de contribuir, por meio do CMDCA, com a elaboração da proposta orçamentária municipal. Por outro lado, quando analisam as principais dificuldades que encontram no seu dia-a-dia do trabalho os conselhos são categóricos em afirmar que aquelas que apresentam alto índice22 de dificuldade são a falta de entidades que recebem crianças para aplicação de medidas de proteção (0,77) e a falta de entidades para atender a família (0,76). Causa espécie o fato das próximas dificuldades com maior índice estarem ligadas a dificuldade de relacionamento com os principais atores responsáveis por zelar pelos direitos da criança e do adolescente no âmbito municipal, como o fato do poder público não reconhecer a autoridade do CT (com índice 0,49), dificuldades dos conselheiros no relacionamento com o Poder Público (0,44) e dificuldades dos conselheiros com o CMDCA (0,37) Comunicação deficiente com o CONANDA e CMDCA É fundamental que haja o conhecimento por parte também do CTs acerca das resoluções elaboradas pelos Conselhos Estaduais e pelo CONANDA, as quais podem e devem auxiliar as localidades na formulação de suas políticas de atenção à criança e ao adolescente. Quando questionados com que freqüência os CTs tomam conhecimento e incorporam em suas ações as resoluções do CONANDA e dos respectivos conselhos estaduais, percebe-se um baixo índice, menor ainda do aquele apresentado pelos CMDCAs. Para as resoluções do CONANDA, apenas 17% dos CTs relatam que sempre tomam conhecimento dessas e apenas 19% incorporam essas resoluções em suas ações. Apresentando porcentagens idênticas, em ambos casos, no que tange as resoluções do Conselho Estadual. Os autores da pesquisa chegam a conclusão que enquanto os componentes do CT parecem propensos a considerar-se responsáveis pelo atendimento, seja por imprecisão no entendimento de suas atribuições, seja por se sentirem mais valorizados ao assumir ações concretas, seja ainda porque não obtêm resposta satisfatória dos demais órgãos competentes quando fazem encaminhamentos. Em uma inversão de papéis, os CTs passam de demandantes a demandados, na relação com as demais esferas dos serviços públicos, tornando-se, algumas vezes, a porta de entrada e o único espaço de atendimento para crianças e jovens carentes da proteção legal do Estado. 21 O índice de violações de direitos significa o impacto que o problema tem, em média, sobre a população local: 0 a 0,33, baixo impacto; 0,33 a 0,67, médio impacto, 0,67 a 1, alto impacto 22 O índice de grau de dificuldade indica em que medida o fator dificulta o trabalho no dia-a-dia dos Conselhos Tutelares pesquisados: 0 a 0,33, baixa dificuldade; 0,33 a 0,67, média dificuldade, 0,67 a 1, alta dificuldade. 22 2.3) Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente Os Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente, tem entre suas principais atribuições, elaborar a política estadual para promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente, além de estabelecer um elo de comunicação e promover a integração com CMDCAs e CTs do estado. Os Conselhos Estaduais foram criados em todos os estados brasileiros e segundo dados da pesquisa conhecendo a realidade23 o tempo médio de implementação destes foi de 3 meses, não obstante, 29% dos conselhos estudados admitiram que tiveram períodos de interrupção de suas atividades. Perfil e Cumprimento de atribuições Os Conselhos são formados por grupos entre 10 e 24 pessoas, sendo que a média nacional é de 18 integrantes. O Conselheiros Estaduais tendem a ter uma dedicação maior que no âmbito municipal, 57% dedicam entre 6 e 20 horas mensais e outros 32% até 5 horas. Também chama a atenção que 87% dos conselheiros tenham concluído o curso superior, um outro fator a ser considerado é a experiência em atendimento, 63% dos conselheiros relataram ter mais de 3 anos, sendo que a metade desses possuem mais de 10 anos de experiência nessa área. Aferiu-se que 54% dos conselheiros trabalham em órgãos públicos, predomínio que se mantém entre os presidentes, onde se observa que 63% são também representantes do poder público. Também na instancia estadual constata-se a existência de práticas que contrariam o princípio da independência dos poderes, já que 25% dos representantes do poder público informaram ser membros do Poderes Judiciário e Legislativo, da Defensoria Pública e do Ministério Público. Ao analisar o vinculo institucional dos conselheiros representantes da sociedade civil, constatou que 12% dos conselheiros tem vinculo com o Poder Legislativo, outros 12% da Defensoria Pública e 4% do Poder Judiciário. Quanto a manutenção de cadastro dos colegiados municipais, 86% do Conselhos Estaduais dizem possuir cadastros de CMDCAs e 85% cadastros dos CTs, para manter atualizados seu banco se utilizam de meios distintos, como telefonemas, cartas registradas ou encontros em seminários. Há ausência de um procedimento comum, que denota uma dificuldade de organizar o fluxo de informações. Infra-estrutura adequada A analisar as condições de infra-estrutura, 60% dos Conselhos consideram bom o tamanho do espaço, 64% atuam em espaços com boa conservação, o melhor índice foi para o quesito privacidade, para o qual 68% dos conselhos considera boa. A presença de equipamentos nos Conselhos Estaduais é significativamente melhor que nos colegiados municipais, todos possuem telefone, mobiliário básico, e mais de 90% textos legais, bibliografia específica e computador e impressora, índice parecido com os que possuem acesso a internet (88%). Equipes de apoio são mantidas pelo executivo em todos os conselhos estudados, chama a atenção que um conselho relatou também que mantém equipe remunerada com recursos do Fundo Estadual, o que constitui uma violação, já que os recursos não devem ser utilizados para tal fim. Organização e Funcionamento 23 A pesquisa obteve 96% de respostas ao envio de questionário, dado que apenas um Conselho não remeteu resposta. 23 Os Conselhos Estaduais são responsáveis pela formulação e monitoramento de políticas estaduais de defesa dos direitos da criança e do adolescente, devendo tomar providências administrativas quando não existir oferta dos programas de atendimento necessários. Devem participar ativamente da elaboração da Lei Orçamentária do estado e zelar para que o percentual de dotação orçamentária seja compatível com as reais necessidades de atendimento, fazendo valer o princípio constitucional da absoluta prioridade na efetivação dos direitos da população infanto-juvenil. Além disso, administram o Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, destinado a financiar os programas de atendimento, as atividades de formação de conselheiros e de comunicação institucional do Conselho junto à comunidade. Para que tais objetivos sejam executados, a gestão do Conselho deve incluir atividades que contribuam para sua eficiência e efetividade. Em 76% dos Conselhos os encontros são mensais e no restante os encontros são quinzenais. Mais da metade dos Conselhos pesquisados atua ser ter um diagnóstico da situação da Criança do Adolescente no estado, outros 36% dizem estar elaborando e somente 12% de fato já possuem este instrumento. Apesar da falta de diagnósticos, 58% afirmam que possuem uma política estadual de defesa dos direitos da criança e do adolescente que inclui o município. Outros 72% dizem contar com um plano de ação documentado e 24% dizem que estão em fase de planejamento para construção do Plano. Os autores da pesquisa questionam a precisão dos conteúdos presentes nos planos, uma vez que esses não foram baseados em diagnósticos. Os aspectos mais presentes nesses planos dizem respeito à ações de apoio e capacitação de conselheiros dos CTs e CMDCAs, ações de atendimento de adolescentes em conflito com a lei e forma de aplicação dos recursos do Fundo Estadual. No que diz respeito a influência na elaboração do orçamento estadual, 48% dos conselhos tiveram seu plano parcialmente incluído na peça orçamentária e outros 26% tiveram o plano totalmente incluído. Finalmente, cerca de 50% dos conselhos não possuem procedimentos estruturados para avaliação e monitoramento das políticas voltadas para crianças e adolescentes. Fundo Estadual – fragilidades na captação de recursos A destinação de aplicação dos recursos do fundo devem ocorrer somente por meio da deliberação política e técnica do conselho e a gestão é feita em cooperação técnica com a secretaria estadual apontada legalmente para cuidar dessa operação. A pesquisa revela que o Fundo foi criado em todos os estados estudados e em dois conselhos do Nordeste ainda não foram regulamentados. O ingresso de recursos tem-se mostrado bastante desigual entre as regiões brasileiras, em 2005 a o per capta na região Norte ficou em R$ 0,97, enquanto no Centro-Oeste foi de apenas R$ 0,06.As prioridades apontadas para destinação do recurso do fundo foram para programas e a entidades de atendimento, destes destacam-se os relacionados a medias socioeducativas, alem de realização de encontros e conferências. Quase a metade (46%) dos Conselhos disseram que não possuem procedimentos planejados para receber destinações de recursos de pessoas jurídicas e físicas. Assim como 43% dizem não ter realizado qualquer campanha para ampliar a captação de recursos. Por outro lado 40% dos Conselhos declararam divulgar o Fundo por iniciativa própria, relatando ainda que o problema grave nesse sentido é a falta de material para divulgação adequando e também de estratégias para abordagem dos potenciais doadores. Auto-avaliação Os Conselhos Estaduais se julgaram muito eficientes na utilização dos recursos do Fundo 24 Estadual e no fomento e apoio a criação de novos CMDCAs. Por outro lado, avaliaram-se como muito ineficientes no diagnóstico da situação da criança e do adolescente no estado e no monitoramento da política estadual de proteção integral à criança e ao adolescente, o que também pode ser um indicador da dificuldade encontrada para o pleno exercício de seu papel. Entre as principais dificuldades encontradas, destaca-se com índice24 0,66, a de causar impacto com suas políticas e ações em zonas rurais ou áreas urbanas de difícil acesso, seguido da dificuldade em obter informações sobre essas mesmas áreas, com índice 0,63. Isso complementa as informações anteriores sobre a deficiência no conhecimento das realidades locais. Segue-se a esses, problemas relacionados ao funcionamento, majoritariamente ligados a avaliação da atuação dos conselheiros provenientes do poder público: pouca disponibilidade de tempo para participar das atividades do Conselho (0,62), baixo poder de decisão e mobilização nas secretarias a que pertencem (0,58) e baixa freqüência nas reuniões do Conselho (0,50). Foi perguntado aos Conselhos Estaduais sobre que aspectos avaliam que necessitam de apoio ou aprimoramento. Os pontos considerado de mais alta importância25 foram, diagnóstico da criança e do adolescente no estado (0,88); captação e gestão de recursos do Fundo Estadual (0,86); controle e monitoramento dos programas de atendimento (0,82). 3) Existência e nível de funcionamento das instâncias públicas de Assistência Social Segundo dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MINC – de 200526 o país apresenta 99,7% de municípios com estrutura na área de assistência social. Vale acrescentar que, ao analisar os municípios pelo porte, todos os municípios com mais de 50.001 habitantes possuem estrutura de assistência social. Logo todos os 16 municípios no país que declararam não possuir estrutura específica para a assistência social, tem população menor que 50.000 habitantes. Quanto a caracterização do órgão gestor, a pesquisa constatou que 59,0% são constituídos por secretarias27 exclusivas de assistência social, 21,0% por secretarias ligadas a outras políticas setoriais, 12,9% por setores28 subordinados diretamente à chefia do executivo, 6,9% por setores subordinados a outra secretaria e 0,3% por Fundação Pública. A análise regional mostra que nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mais de 70% dos municípios tinham secretarias encarregadas exclusivamente da assistência social. Comportamento diferenciado tiveram as Regiões Sudeste e Sul, onde 45,5% e 35,2%, respectivamente, tinham seus órgãos gestores caracterizados como tal. A Região Sudeste apresentou a maior proporção de setor subordinado à chefia do executivo (31,2%), e a Sul de secretaria em conjunto (36,9%). Dentre os municípios com órgãos gestores associados, seja na forma de secretaria em conjunto, seja na forma de setor subordinado a outra política, aqueles vinculados à política de saúde são os mais comuns (52,8%), seguidos por trabalho (34,4%). Legislação e Instrumentos de Gestão 24 25 26 27 28 O índice de grau de dificuldade indica em que medida o fator dificulta o trabalho no dia-a-dia dos Conselhos Estaduais pesquisados: 0 a 0,33, baixa dificuldade; 0,33 a 0,67, média dificuldade, 0,67 a 1, alta dificuldade. Índice aponta o grau de importância visto pelos Conselhos Estaduais como sua necessidade de apoio ou aprimoramento nos temas e aspectos sugeridos: 0 a 0,33, baixa importância; 0,33 a 0,67, média importância; 0,67 a 1, alta importância. Levada a campo entre novembro de 2005 e abril de 2006, a MINC em sua quinta edição, focaliza pela primeira vez a questão da assistência social no âmbito municipal, por meio do Suplemento Assistência Social, que investigou todos os 5.564 municípios brasileiros. Secretaria é órgão subordinado diretamente ao Executivo, criado por lei. Setor é parte organizacional da prefeitura, sem status de secretaria. 25 Executar a política de assistência social é a principal competência do gestor municipal e, para isto, a organização da gestão das ações de assistência social devem ser disciplinadas por instrumentos que regulem e normatizem procedimentos, estratégias e o processo participativo da assistência social. A MINC constatou uma elevada proporção de municípios que regulamenta a assistência social através da Lei Orgânica Municipal ou de outro instrumento legal. No conjunto do País, 96,6% dos municípios declararam ter mais de um instrumento legal sobre essa matéria. Esta proporção foi mais elevada no grupo de municípios com população acima de 500.000 habitantes. Entre os instrumentos e estruturas mais comumente encontrados nos municípios brasileiros, destaca-se o Conselho Municipal de Assistência Social (presente em 98,8%) e o Fundo Municipal de Assistência Social (presente em 91,2%). O que justifica um número tão alto é que ambos necessariamente devem ser criados por lei. Além isso, a existência de conselho constitui uma condicionalidade para o recebimento de recursos. Segue-se a esses a existência de Plano Municipal de Assistência Social (presente em 91,4%), entre os quais 98,4% são paritários entre representantes da sociedade civil e do poder público municipal. Foi ainda constatada a existência de outros conselhos setoriais, temáticos ou de políticas públicas no país, a pesquisa destaca entre esses o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (presente em 93,5% dos municípios) Conselhos de Saúde (presente em 99,4%), de Educação (presente em 90,5%) e Tutelar (87,3%). 4) Controle Social sobre os orçamentos públicos Nos últimos anos vêm crescendo o número de instituições que destacam o orçamento público como uma ferramenta estratégica para o controle social, promovendo encontros, estudos, propondo metodologias e ações que visam intervir nas políticas públicas garantindo os direitos humanos de crianças e adolescentes. Neste contexto, vale destacar a criação do Orçamento Criança e Adolescente (OCA), que constitui a seleção de um conjunto de ações e despesas do orçamento público que foram classificadas, segundo uma metodologia específica29, como sendo destinadas à proteção e desenvolvimento da criança, tornando-se como um importante marco para o controle social do orçamento publico. A metodologia permite que um conjunto de gastos para esse segmento da população seja monitorado, o que certamente tem levado a uma maior efetividade, publicidade e clareza das ações e dos recursos para a área. Também em outros âmbitos, que não o federal cresce a aplicação da metodologia. Segundo o site da Rede ANDI Brasil30, o Distrito Federal e mais de dez municípios do país - incluindo as capitais Belo Horizonte (MG), Florianópolis (SC) e Recife (PE) - já transformaram o OCA em lei, tornando obrigatório o uso da metodologia nas prestações de contas do Executivo. E desde 2005, a implementação do Orçamento Criança também passou a ser pré-requisito para a participação dos municípios no projeto Prefeito Amigo da Criança, da Fundação Abrinq, esse projeto, realizado desde 1996, tem o objetivo de mobilizar os gestores municipais a implementarem ações locais em favor da criança e do adolescente, e em junho de 2008, quando findou a terceira edição do prêmio, iniciada em 2005, o Programa reconheceu 132 municípios brasileiros com o título de “Prefeito Amigo da Criança” e premiou cinco gestões destaques pela implementação de políticas integradas e de impacto para crianças e adolescentes e fortalecimento do sistema de garantia de direitos dessa população31. Merece destaque a Rede de Monitoramento Amiga da Criança, que é o resultado da união de 29 A Metodologia do Orçamento Criança e Adolescente (Metodologia do OCA) foi desenvolvida pela Fundação Abrinq, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Essa metodologia inclui ações voltadas diretamente para a promoção da criança e do adolescente (OCA-exclusivo) e também para melhoria das condições de vida das famílias (OCA Não- exclusivo). 30 http://www.redeandibrasil.org.br/em-pauta/orcamento-publico-iniciativas-de-participacao-social-se-multiplicamno-pais/ 26 organizações sociais nacionais e organismos internacionais com foco de atuação na infância e juventude, que tem como objetivo monitorar o cumprimento dos compromissos com a infância, assumidos pelo Estado brasileiro e pelo Presidente da República, e descritos nos documentos "Um mundo para as crianças, produzido na Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em 2002 e no "Termo de Compromisso Presidente Amigo da Criança", elaborado pela Fundação Abrinq e assinado pelo atual Presidente da República durante a campanha eleitoral e que resultou no apresentação em dezembro de 2003 do Plano de Ação para o quadriênio 2004-2007, que veio a se chamar Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente (PPAC). O plano incluiu recursos da ordem de 56 bilhões, e identifica 16 desafios que o governo se propôs a enfrentar, em mais de 200 ações.32 Embora a criação da Rede mostre-se um importante marco na construção do monitoramento da aplicação dos recursos federais, o diálogo com o Governo Federal mostrou-se frágil durante os últimos 4 anos. É o que aponta informações do segundo relatório Um Brasil para as Crianças e Adolescentes33, que indica que o governo federal deixou de cumprir com os prazos dos relatórios anuais de monitoramento que havia se comprometido no PPAC, impossibilitando que as informações prestadas pudessem ser utilizadas para avaliação e sugestões da Rede. As informações desses relatórios foram consideradas insuficientes em termos de análises e avaliações, como, por exemplo, no que tange a explicações e comentários a respeito da baixa execução de algumas ações ou mesmo de complementações significativas de verbas para outras ações. São feitas ainda críticas quanto a falta de investimentos federais para a produção de indicadores de resultado e de impacto para as várias metas. No contexto regional, destaca-se o pioneirismo das ações do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará, no monitoramento do Orçamento de Fortaleza desde 1999. "Temos aprendido algumas coisas dessa experiência. No começo, centrávamos a ação muito mais na apresentação de emendas. O que constatamos é que a maioria das emendas era aprovada, no entanto elas não eram executadas nunca", explicou a coordenadora do Cedeca Ceará, Margarida Marques, ao site da Rede Andi.34 A partir de 2003, o Cedeca Ceará iniciou um projeto para incluir também participação dos adolescentes na formulação e no monitoramento das leis orçamentárias de Fortaleza e do Ceará. O projeto focou seus esforços iniciais na capacitação dos jovens e no fim do curso, em 2005, foi criada a Rede Opa (Orçamento e Participação Ativa). Nos últimos anos, ações políticas de diversas naturezas, mostram um amadurecimento da idéia de controle social, a Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente de 2005 foi marcada pela ação política promovida pelo Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (Conanda) e Inesc junto ao Ministério Público Federal que, após ameaçar entrar com uma ação pública contra a União, forçou o governo a liberar os recursos dirigidos a programas destinados a crianças e adolescentes contingenciados até então e garantir a execução naquele ano35. Cresce também a participação das instituições na definição dos orçamentos, uma Articulação entre INESC, Conanda, Fórum DCA, Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e a Frente Parlamentar de Defesa da Criança e do Adolescente apresentou emendas ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2006 na ordem de 1,9 bilhões. 31 O prêmio Destaque foi para Rio Branco/AC, prefeito Raimundo Angelim Vasconcelos; Maringá/PR, prefeito Silvio Magalhães Barros II; Conchal/SP, prefeito Valdeci Aparecido Lourenço; Barra Mansa/RJ, prefeito Roosevelt Brasil Fonseca e Altamira/PA, prefeita Odileida Maria de Souza Sampaio. 32 Mais detalhes a esse respeito dos investimentos federais para a área da criança e do adolescente podem ser encontrados no capítulo específico sobre Orçamento. 33 REDE DE MONITORAMENTO AMIGA DA CRIANÇA. Um Brasil para as Crianças e os Adolescentes – A Sociedade Brasileira e os Objetivos do Milênio para a Infância e a Adolescência” – II Relatório. São Paulo, 2008. 34 http://www.redeandibrasil.org.br/em-pauta/orcamento-publico-iniciativas-de-participacao-social-se-multiplicamno-pais 35 INESC – Boletim Orçamento & Política da Criança e do Adolescente. Ano VII. No 21, julho de 2006. 27 O Senado também tem feito esforços para garantir a transparência das contas públicas, por meio do Siga Brasil, que é um sistema de informações que permite a qualquer indivíduo, por meio da Internet, acesso amplo e facilitado a diversas bases de dados sobre planos e orçamentos públicos federais. Essa base, inclui desde 2002 o tema criança e adolescente na lista de orçamentos temáticos. Pelo site é possível saber, por exemplo, que o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) recebeu, em 2007, R$ 177,9 milhões a menos do que em 2002. Destaca-se também as iniciativas da Controladoria Geral da União (CGU), que disponibiliza desde 2004, por meio do Portal da Transparência 36, informações sobre como o dinheiro público federal é aplicado, como as relativas a todas as transferências da União para estados, municípios e para o Distrito Federal. E também o portal “Criança Cidadã – Portalzinho da CGU”37, desenvolvida em conjunto com o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC), que é dirigido ao público infanto-juvenil e tem como objetivo despertar a consciência sobre a necessidade do controle social, com foco principal nos gastos públicos. O portal também reserva um espaço aos professores, com orientações de como desenvolver e explorar conteúdos referentes ao o aprendizado de noções como cidadania, ética e controle social. Embora possamos contabilizar avanços no controle social sobre o orçamento publico federal, um levantamento feito pelo site contas abertas38 demonstra que no fim de 2007 apenas oito das 27 UF tem portais que permitem à população consultar de maneira detalhada as receitas e gastos estaduais. Nesse âmbito destaca-se o site da Secretaria de Planejamento de Goiás, que oferece também um curso on-line de conceitos orçamentários e de planejamento público. 5) A Lei de Responsabilidade Fiscal e os gastos públicos A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) constitui-se como um mecanismo de disciplinação das contas públicas de municípios e estados que exige o cumprimento de determinadas metas de resultados no que tangem os gastos e o endividamento por parte de municípios e estados. Essa legislação fortaleceu a exigência transparência fiscal, obrigando municípios a realizar audiências públicas e emitir relatórios fiscais detalhados. Isso faz com que os municípios tenham que lidar com certos limites que segundo mostram alguns estudos tem prejudicado o investimento na área social. O Estudo publicado na Revista do Observatório Latinoamericano del Desarrollo Local e Economia Social39 mostra que “de maneira geral, é possível perceber, no Governo Federal, a baixa participação relativa do financiamento público nas áreas de saneamento, cultura, habitação e urbanismo, cuja parcela destinada a cada uma dessas funções não alcançou os 0,05% do orçamento total.” O estudo conclui que a análise da execução orçamentária das políticas sociais selecionadas durante o período 1996 a 2004 mostra “a intenção dos sucessivos governos do período foi de privilegiar a estabilização econômica a qualquer preço, já que o aumento da carga tributária não correspondeu a um aumento dos gastos sociais, mas à sua redução”. Estudos posteriores realizados pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) mostram que os avanços fiscais e na área de gestão não foram acompanhados na mesma proporção por melhorias ou maiores investimentos na área social. Na verdade, os investimentos em algumas áreas como a Saúde, “ocorreram, em média, pioras em todas as regiões do pais, principalmente no Nordeste (-5,66%) e Norte (-5,24%)”40. Isso levou o Fórum Brasil de Orçamento (FBO), que em 2008 congrega 57 instituições a 36 37 38 39 40 http://www.portaldatransparencia.gov.br http://www.portalzinho.cgu.gov.br http://contasabertas.uol.com.br. Revista OIDLES - Vol 1, Nº 2, diciembre 2007. CNM. Avaliação da Gestão dos Municípios do Brasil pelo IRFS - Índice de Responsabilidade Fiscal, de Gestão e Social. 2007. 28 apresentar ao Parlamento em 2006 o projeto de lei que visa incluir na LRF também mecanismos e normas que garantam por parte do poder público a prática da responsabilidade social, o projeto de lei de Responsabilidade Fiscal e Social – LRFS41. No fim de 2007 foi aprovada na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, o relatório sobre Lei de Responsabilidade Fiscal e Social. O Portal do CEDECACeará informa que “o projeto foi apresentado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), enquanto secretaria executiva do Fórum Brasil de Orçamento (FBO), e representa uma demanda do coletivo de organizações da sociedade civil, fruto de mais de dois anos de discussão, e pretende alterar a Lei Complementar nº101/2000 conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LFR)”. O objetivo seria é incluir metas sociais no mesmo patamar de prioridades das metas fiscais; e ainda criar um sistema de controle social sobre a execução dessas metas, tanto as fiscais quanto as sociais. 6) Análise do Orçamento da União e a destinação de recursos para a área da criança e do adolescente O olhar deste capítulo se dirige à análise da dotação e execução orçamentária de programas destinados a crianças e adolescentes no orçamento da União no período 2004/2007 e permite uma série de análises no que diz respeito ao planejamento e também ao gasto público federal para essa área, uma vez que é possível lançar um olhar tanto sobre o Plano Plurianual42, como também sobre as leis orçamentárias anuais43. De maneira geral, as análises feitas pelo Inesc44 para o período analisado apontam para uma diminuição/corte nos gastos das políticas selecionadas com crianças e adolescentes realizados pelo governo federal, quadro agravado pelos mecanismos de ajustes fiscais adotados pelo governo para obtenção de metas de superávit primário muito elevadas (4,25%, em média, do PIB para cada ano do período analisado), além disso nesse período incidiu a Desvinculação de Receitas da União - DRU, que consiste em permitir a retirada de 20% dos gastos obrigatórios constitucionais para que o governo utilize esses recursos da maneira que lhe convier. De acordo com o segundo relatório da Rede de Monitoramento Amiga da Criança os gastos anuais com o pagamento da dívida pública foram 21 vezes maiores que o gasto anual com o PPACA. Os primeiros representaram 56,2% e 57,7% dos valores liquidados em 2004 e 2005, enquanto desse mesmo total o PPACA consumiu 3,74% e 2,79% nos mesmos anos. Em outubro de 2007 o superávit primário alcançou 8,65 bilhões a mais que o previsto para o ano todo, conforme noticiou o Jornal Valor econômico em 29/11/07. Outro dado importante diz respeito a qualidade do gasto público, a análise do orçamento do governo federal voltado para crianças e adolescentes no ano de 2005, demonstra que houve uma enorme concentração dos gastos nos últimos três meses do ano.45 De maneira geral os dados apresentados contribuem para colocar em xeque a eficiência dos gastos federais para a área da infância e adolescência. A análise do total alocado para a área demonstra que o valor do gasto foi quase o mesmo para nos nove primeiros meses (15,2 bilhões) e nos três últimos meses do ano (14,9 bilhões). Essa perversa constatação, ao que tudo indica, é fruto de obsessão do governo federal em garantir um superávit primário, liberando recursos apenas depois de cumpridas as metas 41 http://www.ideiasocial.org.br/2006/05/especial-frum-brasil-do-oramento.html 42 Plano Plurianual (PPA) - lei que prevê a arrecadação e os gastos em programas e ações para um período de quatro anos. 43 LOA - estima receitas e fixa despesas para um ano, de acordo com as prioridades contidas no PPA e LDO, detalhando quanto será gasto em cada ação e programa. 44 Boletim Orçamento e Política da Criança e do Adolescente. Ano V, n. 19, novembro de 2004; Ano VII, n. 21, julho de 2006 e Ano VIII, n. 22, março de 2007. 45 De acordo com estudo feito em parceria entre o INESC e a Kindernothilfe e publicado no nº 17 do Boletim Orçamento e Política da Criança e do Adolescente. 29 fiscais, para tal o governo lança maio do artifício do contingenciamento, que no ano de 2005 atingiu mais de mais de 15 bilhões. O olhar sobre determinadas áreas mostra total ausência de um cronograma de desembolso que garanta a qualidade do gasto federal. É o caso da subárea habitação que teve uma execução de R$ 481 mil até setembro e fechou o ano como uma execução de R$ 233 milhões. Caso este similar ao gasto realizado com a rubrica Pesquisa, para qual o gasto subiu de R$ 3 mil até setembro e fechou o ano com quase 12 milhões. Torna-se mais grave quando se analisa gastos que deveriam ter uma taxa execução proporcional durante o ano, caso da merenda escolar. Para a qual se gastou R$ 364 mil até setembro e fechou-se o ano com a execução de quase R$ 700 milhões. Os gastos com o OCA em 2005 representam cerca de 2,7% do total dos gastos do governo federal. Mesmo com esse pequeno valor, somente cerca de 55% foi executado, número inferior a taxa de execução total do governo para esse ano, que foi de 67,7%. Nesse mesmo ano verifica-se que o gasto em para a população infanto-juvenil representa 1,6% o PIB brasileiro, enquanto para o pagamento de juros, encargos e amortização da dívida pública federal foram consumidos 33% do PIB. Finalmente o gasto com crianças e adolescentes representam 8,3% do total arrecadado pelo governo federal para atender a um parcela de 34% da população brasileira. Até junho de 2006, quase 50% de todos os programas executados pelo governo federal apresentavam uma execução inferior a 15%.46 6.1) O Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente e programas selecionados As análises da RMAC mostram que na distribuição das despesas do PPACA por órgãos de governo houve uma grande concentração de gastos no Ministério da Saúde, em 2005 representaram cerca de 63% dos recursos liquidados. Já a participação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome passou de 16% em 2004 para quase 22% em 2005. Quando se analisa a execução orçamentária por compromisso do PPACA47 é possível perceber que 99% dos recursos alocados no Ministério da Saúde se dirigiam a ações do compromisso Promovendo Vidas Saudáveis, que correspondem a cerca de 73% dos gastos totais em 2004 e 71% em 2005. As ações empreendidas em favor da diminuição da mortalidades infantil, por exemplo ainda não fizeram o efeito esperando, persistem desigualdades regionais, em 2004 a menor Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) foi de 57,7‰ em Alagoas e 15,4‰ no Rio Grande do Sul. Em 2005, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil para filhos de mães não brancas era muito superior ao de mães brancas. (37% maior para filhos de mães negras e 138% maior para filhos de mães indígenas). Destaca-se no período os esforços governamentais para a ampliação do Programa Saúde da Família (PSF)48, que após aumentar as equipes de Agentes Comunitários de Saúde em 15% entre 2004 e 2005, passou a atender a quase 90% dos municípios brasileiros. No que tange o compromisso Promovendo Educação de Qualidade houve uma diminuição do 46 INESC - nota técnica nº 111. Setembro de 2006. 47 Para maiores esclarecimentos a respeito das metas que compõem cada compromisso ver REDE DE MONITORAMENTO AMIGA DA CRIANÇA. Um Brasil para as Crianças e os Adolescentes – A Sociedade Brasileira e os Objetivos do Milênio para a Infância e a Adolescência”. agosto, 2004. 48 A Saúde da Família é entendida como uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. Estas equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais freqüentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. 30 total dos gastos de 8,5% para 7,8 entre 2004 e 2005. Segundo o estudo publicado pelo INESC49 é necessário que se analise os indicadores da política educacional com recorte por gênero e raça/etnia se quisermos ter um real diagnóstico da situação educacional em nosso país, uma vez que as desigualdades entre esses grupos mostram-se muito elevadas. Essa preocupação encontra respalda na recomendação 22 do Comitê, que sugere priorizar e aumentar a alocação orçamentária com especial atenção para àquelas crianças e adolescentes pertencentes a grupos marginalizados e economicamente em desvantagem. A PNAD de 2004 aponta que entre as crianças negras de 10 a 14 anos, o analfabetismo chega a 5,5% ficando em 1,8% para as crianças brancas da mesma idade. Já nos dados no ano seguinte (PNAD de 2005) há um nítido distanciamento entre as taxas de analfabetismo dos meninos e das meninas de 10 a 14 anos em decorrência das diferenças nos níveis de escolarização dos gêneros - 4,3%, para os meninos, e de 1,9% para as meninas. Nas faixas seguintes ainda persiste uma incidência maior de crianças e adolescentes do sexo masculino que não freqüentavam escola, para o grupo de 5 a 17 anos de idade, o percentual o foi de 9,1% o sexo masculino e 8,4% para o feminino. Em 2004, o MEC inaugurou uma secretaria destinada a lidar com a questão da inclusão educacional e da diversidade étnica, racial, cultural e regional da população brasileira, trata-se da Secad que entre outras deve tratamento e valorizar a diversidade étnico-racial, cultural, de gênero, social, ambiental e regional brasileira. A criação da secretaria pode ser fundamental para diminuir as grandes desigualdades. A título de exemplo, pode-se citar que a taxa de freqüência a escola para o grupo de 0 a 3 anos em 2004 foi de 8,5 para famílias que ganham até meio salário mínimo e de 35,3 par aquelas famílias que ganham mais de três salários mínimos e que a porcentagem de crianças analfabetas negras aos doze anos de idade é duas vezes maior do que das crianças brancas. Ou que a taxa de distorção aluno/série na 8ª série do Ensino Fundamental era de 26,6% no Sudeste e 53,4% no Nordeste. Dados do Censo Escolar INEP/MEC 2006 mostram que a oferta de educação escolar indígena cresceu 48,7 % entre 2002 e 2006, passando de 117.171 alunos freqüentando escolas indígenas em 24 unidades da federação para 174.255 estudantes em cursos que vão da educação infantil ao ensino médio, para esse último houve uma expansão de 566% no número de alunos que freqüentam escolas em terras indígenas entre 2002 e 2006. Entre 2004 e 2005 houve um crescimento de 13% das matrículas de crianças e adolescentes com deficiência na Educação Básica, além disso entre 2003 e 2005, a parcela de crianças e adolescentes matriculados em classes comuns do ensino regular passou de 28,8% para 41%., essa última recomendada pelo relatório da rede. Segundo a avaliação da Rede50, o governo não deve ter alcançado meta fixada para 2007, que seria uma taxa de freqüência escolar de 65 para a população de 0 a 6 anos. . O ultimo dado disponível é de 2005, e essa taxa girava em torno de 40,3. O mesmo relatório aponta que a situação para a faixa de 0 a 3 anos é mais grave, pois apresenta um evolução ainda mais lenta. Ainda sim, ao final do período analisado, percebe-se um esforço do governo central para aumentar os recursos na área. O recursos alocados no programa de Valorização e Formação de Professores e Trabalhadores da Educação Básica(Fundeb) foram de R$ 2,26 bilhões, segundo a LOA 2007. Isso significa que é 5 vezes maior que o valor programado para o fundo anterior (Fundef) que foi de R$ 450 milhões em 2006. Além disso no dia 31 de dezembro de 2007, a DRU deixou de incidir, o que, faz com que o percentual de 20% deixe de ser retirado dos gastos sociais. 49 Boletim Orçamento e Política da Criança e do Adolescente. Ano VIII, n. 22, março de 2007. 50 REDE DE MONITORAMENTO AMIGA DA CRIANÇA. Um Brasil para as Crianças e os Adolescentes – A Sociedade Brasileira e os Objetivos do Milênio para a Infância e a Adolescência” – II Relatório. São Paulo, 2008. 31 De acordo com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino – CONTEE – a determinação constitucional é que 18% do total de recursos arrecadados com impostos federais devem ser destinados à Educação. Mas, durante a vigência da DRU, esse percentual passou a ser calculado depois de descontados os 20% da desvinculação. Assim, os 18% do total de recursos federais que deveriam financiar a educação foram reduzidos para cerca de 14%. Por causa disso, o Ministério da Educação deixou de investir R$ 45,8 bilhões entre 2000 e 2007. A violência entre as minorias No Brasil, segundo dados de 2005 publicados pelo Laboratório de Estudos da Criança – LACRI o principal ambiente onde são cometidos violência contra crianças é o lar, seguido da escola, na qual o principal problema vem sendo o assédio por parte dos professores ou colegas. Segundo o relatório51, os meninos que pertencem a minorias étnicas ou têm alguma deficiência são os mais afetados por esse tipo de comportamento. O Inesc aponta que dentre as políticas públicas de enfrentamento às diversas formas de violência, destacam-se a proteção social e garantia de direitos de crianças e adolescentes, a erradicação do trabalho infantil, o combate à exploração e ao abuso sexual infanto-juvenil e a execução das medidas socioeducativas. Para algumas dessas demandas não existem planejadas políticas públicas e, por conseqüência, nem há previsão nos orçamentos públicos, o que faz o instituto concluir que, para alguns assuntos, o governo federal, não tem incidência para solucionar o problema. Uma análise mais detalhada dos programas relacionados ao combate a violência contra a crianças e adolescentes nos permite avaliar que o gasto federal para lidar com as situações de violência não tem sido suficiente para lidar com a questão. Uma primeira questão é o fato o programa Proteção Social à Infância, Adolescência e Juventude ter desaparecido das leis orçamentárias a partir de 2006, sem ter comprovado atingir a meta física de beneficiários presente no PPA. Em outro programa (Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), que possui uma ação intitulada Apoio a Projetos de Promoção, Defesa e Garantia do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, teve em 2007 uma perda de 25%, em relação ao valor aprovado e à previsão de crianças e adolescentes beneficiados, quando comparado ao ano anterior. Trabalho Infantil De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/2005. O número de crianças de cinco a 14 anos em situação de trabalho subiu 10,3% entre 2004 e 2005. Esse aumento ocorreu depois de 14 anos consecutivos de queda. No programa Erradicação do Trabalho Infantil, a liberação de recursos para os quatro anos do PPA também não teve um aumento gradativo. Em 2004 foram aprovados R$ 111,32 milhões; em 2005, R$ 583,67 milhões; Em 2006, R$ 375,12 milhões, dos quais somente 68% foram executados, nesse ano o PETI atendeu 1 milhão de crianças, cerca de 30% da meta programada na Lei Orçamentária Anual. Na LOA 2007 foram aprovados R$ 376,86 milhões. Para 2008 verificou-se uma acentuada queda, ficando em 335,7 milhões Pode-se constatar que houve concentração de recursos para o combate ao trabalho infantil, do contingente aprovado pelas LOAS nesses 4 anos, cerca de 68% dos recursos do Programa PETI foram destinados para a ação “Atendimento a Criança e ao Adolescente em Jornada 51 UNICEF. Situação da Infância Brasileira 2006 - Crianças de até 6 anos - O Direito à Sobrevivência e ao Desenvolvimento. 32 Ampliada”. De acordo com a entrevista ao site contas abertas Bicalho52 afirma que em 2006 a LOA teve como meta física o atendimento 3,2 milhões de crianças, ao final deste mesmo anos apenas foram realizados somente 1 milhão de atendimentos, logo apenas 30% da meta foi atingida. Só para o ano de 2007, o PPA previu o atendimento de 3,2 milhões de crianças/adolescentes, mas a meta da LOA 2007 foi de apenas 1,5 milhão. No que tange ao combate à violência sexual, o constata-se que embora essa apareça como prioritária no discurso governamental, o gasto social é muito baixo em relação à complexidade e à dimensão da demanda referente ao problema no país. De um lado os índices de execução do programa Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, nos últimos anos, têm sido superiores a 95%, demonstrando certa priorização do tema por parte do governo federal. A principal ação desse programa refere-se à “Proteção Social às Crianças e aos Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias”, que representa 87% do total do programa para 2007. Essa alta participação é verificada em todos os anos de vigência do PPA. Essa ação funciona como um serviço que oferece um conjunto de procedimentos técnicos especializados para atendimento e proteção imediata às crianças e aos adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual, bem como seus familiares. Por outro lado, quando se analisam atividades com caráter preventivo, como por exemplo o “Apoio a Projetos de Prevenção e Enfrentamento ao Abuso, Tráfico e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” verifica-se uma baixíssima taxa de execução. Em 2006, por exemplo, foram aprovados cerca R$ 5 milhões e executados somente R$ 100 mil, o que representa 1,94% do previsto inicialmente. Nesse mesma ação foram autorizados para 2007 R$ 6,55 milhões, um aumento de cerca de 26% em relação a 2006. Isso faz o INESC constatar que o governo federal no tocante ao combate à exploração sexual infantil tem um caráter eminentemente restaurativo, secundarizando ações preventivas, não direcionando, portanto, para o âmago da questão. O programa que compreende os gastos com o sistema socioeducativo — atendimento do adolescente em conflito com a lei - tem apresentado um crescimento da previsão orçamentária até 2006. Já para 2007, apresentou uma redução de aproximadamente 26%. A prioridade foi invertida em 2007. Até 2006, a maior parte dos recursos estava nas unidades de internação. Para 2007, 80,7% dos recursos foram alocados no atendimento socioeducativo. Isso sinaliza a opção política do governo federal em priorizar o atendimento socioeducativo em detrimento da privação de liberdade em unidades de internação, indo ao encontro do que rege o ECA. Proteção contra Maus-tratos, a Exploração e a Violência O Relatório da Rede afirma que “independentemente das iniciativas e programas conduzidos pelos governos, nos últimos anos, visando aprimorar os mecanismos de proteção e de garantia de direitos das crianças e adolescentes, as organizações da Rede ainda consideram que há um longo caminho a percorrer se o Brasil quiser, de fato, cumprir os compromissos assumidos internacionalmente.” A rede explicita ainda que uma das principais deficiências se refere à falta de informações e dados sobre metas assumidas pelo governo. O que impossibilita, por exemplo, o acompanhamento de metas pactuadas no sentido da proteção contra todas as formas de maus-tratos, abandono, exploração ou violência, tema para o não se possui dados sobre três quartos dos indicadores apontados para monitoramento. A rede também encontra problemas nos relatórios de acompanhamento do governo, quando constata que o governo deixa de mencionar importante programa como o Segundo Tempo. No seu relatório a rede adverte que com a mudança na forma de repasse dos recursos no 52 Disponível em www.contasabertas.com.br/noticias 33 âmbito do SUAS53, não se perca transparência quanto à destinação do gasto pelos diversos públicos, além de comprometer as séries históricas. Eixo Combatendo o HIV e a AIDS. A Rede avalia que as políticas de HIV e AIDS do governo federal dão pouca ênfase dada à prevenção e às iniciativas mais focadas na infância e adolescência. As organizações da Rede destacam que os Relatórios de Acompanhamento do governo federal consideraram somente uma parcela das ações existentes no Orçamento da União para o Combate ao HIV/AIDS, totalizando em 2005 R$ 108,8 milhões. As ações não incluídas somaram R$ 804,5 milhões, sendo que 60,2% dos recursos foram destinados para medicamentos e 13,6% foram destinados aos estados, para ações próprias. Os relatórios de acompanhamento do governo não explicitam nem como, nem onde, nem o volume de recursos alocados para nas iniciativas. O Relatório de Acompanhamento do Governo Federal informa que, ao longo de 2005, o Programa Nacional de DST/AIDS repassou R$ 968.349,01 para o financiamento de 27 projetos específicos de fortalecimento de Casas de Apoio a Crianças, que beneficiaram 795 jovens, confirmando a baixa cobertura das intervenções governamentais nessa área. Embora de uma maneira geral os investimentos federais para as áreas analisadas tenham ficado aquém do esperado é possível aferir uma melhora considerável nas condições de vida de crianças e adolescentes na maior parte dos estados brasileiros entre 2004 e 2006, é o que mostra o Índice de Desenvolvimento Infantil (IDI) calculado pelo Unicef, a agência da ONU para a infância. O IDI é composto por quatro indicadores básicos: número de crianças menores de seis anos morando com pais com escolaridade precária, cobertura vacinal em crianças menores de um ano, cobertura pré-natal de gestantes e crianças matriculadas na pré-escola. Em 2004, apenas o Estado de São Paulo era classificado como de desenvolvimento infantil elevado, com IDI superior a 0,8 numa escola de 0 a 1. No último relatório, com dados de 2006, também entraram nesta classificação os Estados de Santa Catarina (0,828) e do Rio de Janeiro (0,806), além da região Sudeste como um todo. São Paulo permanece na melhor posição (0,856). O avanço foi mais acentuado nos Estados de Alagoas e Amazonas, que no início do cálculo do IDI, em 1999, eram classificados como de desenvolvimento infantil baixo - menos de 0,5. Já em 2006, todos os Estados tiveram IDI superior a 0,5. 7) Dados relacionados aos direitos da infância Ainda existe uma grande carência na coleta e disponibilização de dados sobre os direitos das crianças e adolescentes. Essa realidade é mais preocupante no que diz respeito aos dados sobre a defesa dos direitos humanos, que constitui um dos eixos do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. É grande a dificuldade para obter dados em diferentes níveis de desagregação sobre homicídios, castigos físicos e tortura. As estatísticas oficiais sobre violência doméstica, por exemplo, são escassas no Brasil. O Relatório lançado pela Unicef, em dezembro de 200554, sobre a Situação da Infância Brasileira, mostra que os dados nacionais oficiais mais recentes datam de 1988. A despeito de uma carência de dados em alguns eixos, esforços do Instituto Brasileiro de 53 O SUAS, esta passando por um quadro de ajustes, que geram conseqüências na forma de financiamento, que dispensa a celebração de convênios e a prestação de contas para oferecimento dos que os principais serviços, além de não exigir que se defina previamente a finalidade do recurso transferido. 54 UNICEF. Situação da Infância Brasileira 2006 -Crianças de até 6 anos: O Direito à Sobrevivência e ao Desenvolvimento. Brasília, 2005. 34 Geografia e Estatística – IBGE – vem aumentando consideravelmente a disponibilidade de informações a respeito de crianças e adolescentes. É o que atesta a permanência do tema como um dos capítulos da Síntese de Indicadores Sociais 2008 - Uma análise das condições de vida da população brasileira, que é disponibilizada anualmente pelo IBGE. A edição de 200755 destaca que “as estatísticas sobre crianças, adolescentes e jovens têm sido sistematicamente apresentadas no contexto dos indicadores sociais. Tais informações objetivam fornecer subsídios para a configuração de um perfil das condições de vida deste grupo populacional, visando, principalmente, à implementação de políticas públicas mais adequadas.” Já a edição de 200856 é possível também encontrar informações desagregadas para as faixas de idade relativas às crianças e adolescentes em capítulos sobre educação, cor ou raça e mulheres, trás ainda dados comparativos sobre a proporção de crianças e adolescentes e o total da população vivendo com menos de meio salário-mínimo per capita. Em 2007 30% dos brasileiros viviam com este patamar de rendimentos, no caso das crianças e adolescentes de 0 a 17 anos de idade, a proporção de pobres era bem mais alta, 46%. Além disso, antigas desigualdades permanecem “as evidências trazidas pela PNAD 2007, especialmente no que diz respeito às desigualdades regionais, revelam uma situação desfavorável para as crianças e adolescentes que vivem nas Regiões Norte e Nordeste.” Isso significa a permanência históricas distorções sócio-econômicas regionais. No capítulo sobre educação são comparadas informações sobre proporção crianças e adolescentes até 17 anos de idade que freqüentam a escola, segundo os grupos de idade, para os anos de 1997, 2002 e 2007. São fornecidos dados ainda sobre a Proporção de crianças de 7 a 14 que não sabem ler e escrever, por idade, grandes regiões para o ano de 2007. Além disso, o instituto discute conceitualmente indicadores para área, a mais recente edição reelaborou o indicador “Proporção de estudantes em cada série do ensino fundamental com idade superior à recomendada” o IBGE passa a entender como defasadas as crianças com idade cronológica superior em 2 anos ou mais à idade considerada adequada em cada série escolar. O critério anterior era de apenas 1 ano. Essa mudança é fruto de conversas estabelecidas nas reuniões de estatísticos no âmbito do Mercosul e Eurostat e, segundo nota, o Instituto essa alteração leva em consideração o fato de que as estatísticas e indicadores calculados pelo instituto tendem a seguir as recomendações internacionais. Para monitorar a qualidade do sistema de ensino do País e facilitar diagnósticos e norteamento de ações e políticas focalizadas, o Ministério da Educação vem disponibilizando desde 2006 o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB. Trata-se de um indicador resultado da combinação do desempenho médio escolar (Prova Brasil e Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - SAEB) dos estudantes em exames padronizados ao final de determinada etapa do ensino fundamental (4ª e 8ª séries) e o 3º ano do ensino médio, com a taxa média de aprovação dos estudantes da correspondente etapa de ensino (fluxo apurado pelo Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira INEP).O IDEB é um instrumento de gestão e deve ser considerado como mais um subsídio ao diagnóstico da realidade escolar. Também se destaca os esforços da SECAD – para produção e sistematização de dados sobre educação indígena, quilombola, no campo e de jovens e adultos. Quanto ao esforço para sistematizar e disponibilizar dados que possam servir para o planejamento e produção de políticas públicas para a área da infância e adolescência merece destaque a os esforços empreendidos pela cidade de São Paulo, que por meio convênio estabelecido entre Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Secretaria Especial para Participação e Parcerias criou condições para o desenvolvimento Sistema de Diagnóstico da Situação da Criança e do Adolescente na cidade de São Paulo. 55 IBGE. Síntese de Indicadores Sociais - Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira . Estudos & Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica, número 21. Rio de Janeiro. 2007. 56 IBGE. Síntese de Indicadores Sociais - Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira . Estudos & Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica, número 23. Rio de Janeiro. 2008. 35 Esse produto que constitui-se como um sistema aberto, apresenta para cada uma das 270 Unidades de Planejamento Participativo, mais de 40 indicadores capazes de apontar caminhos para a compreensão da realidade de crianças e adolescentes da cidade de São Paulo. O sistema esta disponibilizado na Internet, garantindo o acesso universal e gratuito a todos, e possui um montante de quase 17 mil mapas, fichas e tabelas para facilitar o entendimento dos indicadores sociais selecionados. Ressalvas são feitas pelo próprios construtores do sistema sobre a dificuldade de se obter informações sobre questões relativas aos eixos controle da efetivação e defesa, uma vez que o tal diagnóstico fez a opção metodológica de se basear no eixos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). Confirmando a carência desse tipo de dados em todos os recortes territoriais. 8) SIPIA O SIPIA – Sistema de Informação para a Infância e Adolescência começou a ser desenvolvido em 1995, por uma equipe de técnicos de organizações governamentais e não-governamentais de 14 estados brasileiros, a partir da preocupação de sistematizar o trabalho dos conselheiros tutelares. É um sistema informatizado que coleta informações de violações de direitos de crianças e adolescentes, que procura dar um enquadramento objetivo da situação e indica o encaminhamento mais adequado para que o direito seja ressarcido e assegurado. Portanto, o SIPIA deve apoiar o trabalho do conselheiro tutelar no atendimento a denúncias. Como conseqüência de seu uso, constrói-se um banco de dados das denúncias que chegam até o CT, permitindo a geração de estatísticas que permitem visualizar um panorama da situação no município, no que concerne aos direitos promulgados pelo ECA. Atualmente, o Sistema é baseado em um portal de Internet. Para acessá-lo, o CT precisa de um computador munido de navegador. Caso esse acesso não seja possível, transmissões de dados periódicas através de mídias de dados. Não obstante os benefícios que o SIPIA pode trazer, dados da Pesquisa Conhecendo a Realidade apontam que apenas 19% dos CTs o sistema está instalado e ativo, outros 18% possuem o sistema instalado, mas não ativo e 63% destes não possuem o programa instalado. No contexto regional chama a atenção a Região Sudeste, que a despeito de estar bem equipada com computadores e conexão a internet em comparação com outras regiões, apresenta apenas 9% de CTs com SIPIA ativo. Do lado contrário a região Sul apresenta 41% dos CTs com SIPIA ativo. Para justificar um índice de adesão tão baixo, os CTs alegam problemas com aspectos técnicos, como falta de manutenção dos computadores (citado por 39%) e modernização dos equipamentos (apontado por 26%), além de dificuldade dos próprios conselheiros no uso do computador e do programa SIPIA. Não surpreende também que 37% dos CTs apontem que falta de treinamento para o uso do programa. Argüiu-se aos CTs que utilizam o SIPIA se atualizam constantemente as informações do município no programa e somente 47% disseram que sim, um número ainda menor (41%) disse que os relatórios e análises gerados pelo programa ajudam a melhorar a qualidade e produtividade do trabalho do CTs, e 46% admitiram que não produzem qualquer relatório ou análise a partir dos dados do programa. A falta de uso do SIPIA também compromete a realização do diagnóstico local sobre a situação da criança do adolescente. Apenas 18% dos CMDCAs declaram fazer uso dos dados do SIPIA para elaboração de diagnóstico, o que faz o autores da pesquisa constatarem que “a utilização do sistema como fonte de dados para o CMDCAs é proporcional ao funcionamento dele, o que sugere que onde o SIPIA está instalado e operante, ele passa a servir como fonte de 36 diagnóstico. Já no contexto Estadual, 46% dos Conselhos dessa instância dizem que se utilizam de dados do SIPIA como uma das fontes para a construção do diagnóstico, o que levanta uma questão sobre a confiabilidade dos diagnósticos, dada a baixa taxa de instalação e funcionamento nos CTs (19%). FONTES UTILIZADAS BRASIL. Presidente Amigo da Criança e do Adolescente. Plano de Ação 2004-2007. 93pp. CEATS / FIA. Conhecendo A Realidade. Coord. Rosa Maria Fische. 2006. 392pp. FUND. ABRINQ. Apurando o Orçamento Criança - Como calcular e analisar os gastos públicos em benefício da criança e do adolescente e adolescente. Outubro, 2005. FUND. ABRINQ. Conselhos e Fundos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente - Guia Para Ação Passo a Passo. 61pp. FUND. ABRINQ. De Olho no Orçamento Criança - Atuando para priorizar a criança e o adolescente no orçamento público. FUND. ABRINQ. E REDE DE MONITORAMENTO AMIGA DA CRIANÇA. Por um Mundo Melhor para as Crianças Brasileiras até 2015. IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros - Assistência Social 2005. MINC. Rio de Janeiro, 2006. 212pp. INESC.Aumento dos Gastos Públicos é de 3% no primeiro semestre de 2006. Nota Técnica n o 111, setembro de 2006. INESC. O Orçamento Federal e Déficit Nominal Zero. Nota Técnica no 113, outubro de 2006. INESC. Disputa no orçamento 2007 – entre o social e o ajuste fiscal. Nota Técnica no 118, novembro de 2006. IPEA. Gasto Social e Política Macroeconômica: Trajetórias e Tensões Texto Para Discussão No 1324 . Brasília, janeiro de 2008. no Período 1995-2005. IPEA. Gasto Social Federal: Execução Orçamentária dos Órgãos Sociais Federais em 2007 e Primeiras Impressões. Nota Técnica. Brasília, julho de 2008. IPEA. Lei de Responsabilidade Fiscal e Finanças Públicas Municipais: Impactos sobre despesas com pessoal e endividamento. Texto Para Discussão No 1223 Brasília, outubro de 2006. REIS, PINHEIRO, RIBEIRO e OLIVEIRA. Ajuste Fiscal e Gastos Sociais no Brasil: a estabilidade em detrimento da eqüidade a partir das influências do FMI e Banco Mundial. REDE DE MONITORAMENTO AMIGA DA CRIANÇA. Um Brasil para as Crianças e os Adolescentes – A Sociedade Brasileira e os Objetivos do Milênio para a Infância e a Adolescência” – I Relatório. 2004. REDE DE MONITORAMENTO AMIGA DA CRIANÇA. Um Brasil para as Crianças e os Adolescentes – A Sociedade Brasileira e os Objetivos do Milênio para a Infância e a 37 Adolescência” – II Relatório. São Paulo, 2008. SEDH/PR. Relatório de Gestão 2005, 2006 e 2007. UNICEF. Situação da Infância Brasileira 2006 - Crianças de até 6 anos: O Direito à Sobrevivência e ao Desenvolvimento Brasília, 2005. 38 Comentários às Recomendações sobre Sistema Geral de Proteção R18 - O Comitê encoraja o Estado-parte a assegurar que o novo plano de ação cubra todas as áreas dos direitos da criança e assegurar que recursos humanos e financeiros suficientes sejam providos em tempo hábil para sua implantação eficaz em todos os níveis. O Comitê também recomenda que o Estado-parte assegure ampla participação para a implementação desse plano. Não existe um Plano de Ação que cubra todas as áreas dos direitos da criança, e não há mecanismo específico para assegurar recursos humanos e financeiros conectado a uma política geral coordenada. Também não há existe movimentação no sentido de elaborar um plano desta natureza, e não há experiência atual no país em que os planos elaborados pelo governo em parceria com a sociedade civil (em diversas áreas específicas) contenham previsão ou sugestão de alocação orçamentária e/ou de recursos humanos compatíveis com os mesmos. Apesar do fracasso governamental em atender à Recomendação do Comitê dos Direitos da Criança, pela inexistência de um Plano de Ação abrangente, e pela inexistência de recursos humanos e materiais suficientes, a sociedade civil organizada tem conseguido fazer com que o governo brasileiro avance na elaboração de políticas públicas para crianças57, ao propor e participar da elaboração de planos setoriais. Nenhum dos Planos setoriais elaborados nos últimos cinco anos cumpre o papel de estabelecer uma política abrangente, coordenada e integrada, capaz de efetivar os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90) e na Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). De forma ainda mais grave, os Planos não estabelecem cronogramas, metas específicas ou planos de trabalhos, nem sugestão de orçamento. Apesar destas limitações, os diversos Planos setoriais apontam parte significativa dos desafios existentes, e sugerem medidas de diferentes naturezas para a superação dos mesmos. O Brasil não conta com órgão centralizado responsável pela coordenação das políticas para a infância no Brasil, ou que possa ser responsabilizado direta e claramente por falhas no funcionamento da política nacional. Há duas instâncias importantes no âmbito federal, que cumprem papel significativo neste campo, sendo elas a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), no âmbito da Presidência da República, e, ligado à Secretaria, o CONANDA, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. A Secretaria Especial de Direitos Humanos foi criada pela Lei 10683/03 e tem entre suas atribuições a coordenação da política nacional de direitos humanos 58. No âmbito da Secretaria está a coordenação de uma série de políticas setoriais, dentre as quais a que diz respeito aos direitos da criança. De acordo com a legislação que a cria, a SEDH também exerce as funções de ouvidoria, podendo receber denúncias sobre violações ou omissões na efetivação dos direitos dos segmentos sob sua responsabilidade. Em tese, a SEDH está apta a receber denúncias sobre violações de direitos fundamentais, inclusive direitos de crianças e 57 A palavra criança é utilizada ao longo do texto para expressar o conjunto de indíviduos entre zero e dezoito anos incompletos, de acordo com as normas internacionais. Em relação à legislação brasileira, criança aqui abrange os indivíduos que nossa legislação considera crianças (0 a 12 incompletos) e os que considera adolescentes (12 a 18 incompletos). 58 Art. 24. À Secretaria Especial dos Direitos Humanos compete assessorar direta e imediatamente o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes voltadas à promoção dos direitos da cidadania, da criança, do adolescente, do idoso e das minorias e à defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência e promoção da sua integração à vida comunitária, bem como coordenar a política nacional de direitos humanos, em conformidade com as diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH, articular iniciativas e apoiar projetos voltados para a proteção e promoção dos direitos humanos em âmbito nacional, tanto por organismos governamentais, incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, como por organizações da sociedade, e exercer as funções de ouvidoria-geral da cidadania, da criança, do adolescente, do idoso e das minorias. Parágrafo único. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos tem como estrutura básica o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, o Conselho Nacional de Promoção do Direito Humano à Alimentação, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, o Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, o Gabinete e até três Subsecretarias. 39 adolescentes. Esta atribuição específica tem algumas implicações relativas à Recomendação n. 20 do Comitê, que determina o estabelecimento de uma Instituição Nacional de Direitos Humanos, com base nos Princípios de Paris; examinaremos as mesmas no momento apropriado. No mesmo sentido de organismos centrais de coordenação, e em substituição a mecanismo das Nações Unidas, a SEDH foi designada para atuar como Autoridade Central nos termos da Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional e nos termos da Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças. Conquanto a criação e a atuação da SEDH sejam um avanço significatvio no que diz respeito aos direitos humanos no Brasil, não podemos deixar de notar que se trata de um órgão geral de direitos humanos, no qual a questão da criança é apenas um dos elementos. Ainda que um órgão autônomo não seja necessário, dada à urgência da questão da infância no Brasil, a solução atual fica a dever em termos de implementação dos direitos que pretende garantir, em especial em relação à coordenação e ao monitoramento do conjunto das políticas para a infância no país. Quanto ao CONANDA, trata-se de uma instância com competência específica para a área da infância, instância esta subordinada à SEDH. Se examinarmos detalhadamente a legislação que cria o Conselho, Lei 8242/91, em especial no que diz respeito a suas atribuições 59, veremos que ele poderia assumir o papel de coordenador da política nacional para crianças. Estão entre as responsabilidades do CONANDA a elaboração de normas gerais da política nacional, o zelo pela aplicação da política nacional (grifo nosso) e até mesmo a fiscalização das ações de execução. Ocorre que as alocações orçamentárias e as designações de recursos humanos e materiais relativas ao Conselho nunca foram compatíveis com a determinação legal das competências do mesmo. Por exemplo, em 2008, o Governo Federal destinou R$ 6.553.140,00 para a gestão de direitos humanos para a infância. De acordo com o INESC, até julho de 2008, deste total nada havia sido executado, 0% (zero porcento)60. É preciso lembrar que, apesar da necessidade irrefutável de uma política nacional, com um Plano de Ação exequível e implementador dos direitos da criança, tal como recomendado pela CDC, ela deve estar em consonância com as peculiaridades de um país extenso territorialmente, com diferenças regionais acentuadas, sob os aspectos culturais, políticos e, principalmente, econômicos. Em termos de participação da sociedade civil, é acertado dizer que a sociedade civil organizada tem tido voz no processo de elaboração da política nacional para os direitos da criança; ainda 59 Art.2º Compete ao Conanda: I. elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente; II. zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; III. dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais, e entidades não-governamentais para tornar efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; IV. avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente; V. (vetado) VI. (vetado) VII. acompanhar o reordenamento institucional propondo, sempre que necessário, modificações nas estruturas públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente; VIII. apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou violação dos mesmos; IX. acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente; X. gerir o fundo de que trata o art. 6º da lei e fixar os critérios para sua utilização, nos termos do art. 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; XI. elaborar o seu regimento interno, aprovando-o pelo prazo de, no mínimo, dois terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente. 60 http://protagonismojuvenil.inesc.org.br/biblioteca/informe-se/chinaglia-recebe-apelo-para-a-votacao-de-projetosem-favor-das-criancas-e-dos-adolescentes Em 27.09.2008, ver anexo. 40 que esta participação esteja longe do ideal. O CONANDA, um conselho paritário, com poderes deliberativos, é uma expressão importante desta participação. Outra forma de participação que deve ser ressaltada é o processo de conferências, que permite um debate constante sobre questões de alta relevância para a defesa e promoção dos direitos da criança. Apesar da importância destas duas formas de participação, é razoável afirmar que não há avanços significativos nos últimos cinco anos; desde a entrega do último relatório à CDC pouco ou nada melhorou nestes processos, e ambos têm limitações notáveis. Quanto à participação direta de crianças no CONANDA, ela é inexistente. O Conselho tem uma composição paritária tradicional, e abriga apenas órgãos governamentais e nãogovernamentais, representados por indivíduos com capacidade jurídica plena (maiores de 18 anos). Há uma crescente preocupação com a voz das crianças, e nas mais recentes Conferências houve participação das mesmas, ainda que separada da participação tradicional das organizações da sociedade civil, o que é um desafio a ser enfrentado em diversos espaços da política atual. A participação de crianças e o reconhecimento das mesmas como sujeitos de direitos e atores do processo de emancipação social e de efetivação de direitos é algo recente, que a Convenção sobre os Direitos da Criança e o ECA estabelecem, mas que ainda está em conflito com nossa sociedade predominantemente adultocêntrica – tal como descreve Wanderlino Nogueira Neto61. Examinaremos a questão um pouco mais a fundo ao tratarmos da Recomendação n. 37 do Comitê. Em relação a um Plano de Ação, o único documento com o objetivo de abranger todo o leque de direitos da criança estabelecidos na Convenção e no Estatuto é o Plano Presidente Amigo da Criança (PPAC), conforme notado pelo Comitê em sua recomendação n.17. Este é um plano elaborado a partir de um compromisso de campanha do atual presidente da república, Luiz Ignácio Lula da Silva, para com um conjunto de organizações da sociedade civil, e baseado nos objetivos estabelecidos na Sessão Especial das Nações Unidas sobre a Criança, no começo do milênio, no documento a World fit for children62. Trata-se de um plano com metas específicas, que foi elaborado por uma Comissão Interministerial, e foi apresentado ao público em 2003, com metas para o período inicial de 2004-2007. A despeito de se tratar de uma iniciativa extremamente interessante, em harmonia com muitas das lutas da sociedade civil organizada, e de estar em consonância com a legislação internacional de promoção e proteção aos direitos da criança, o Plano Presidente Amigo da Criança não pode ser considerado como um plano de ação nacional, nos moldes de recomendado pelo Comitê dos Direitos da Criança, tendo falhado em atingir a abrangência recomendada no item 18. Embora aborde áreas importantíssimas dentro do campo dos direitos da criança, como educação, saúde e proteção, de uma forma bastante ampla e com o estabelecimento de metas e prazos específicos, o PPAC não atende às recomendações do Comitê. Ele não estabelece marcos para uma política geral e coordenada, o que é, sem dúvida, sua maior fragilidade. O PPAC começa por estabelecer metas, supondo que a estrutura atual é suficiente para alcançar os desafios estabelecidos. Não se propõe a dar conta das necessidades políticas e administrativas de uma política nacional. Não é, neste sentido, um Plano de Ação nacional. Além disso, o PPAC ignora dimensões centrais dos direitos da criança, como o direito à participação, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de ir e vir, o direito à convivência familiar e comunitária e o direito ao lazer, entre outros. No tocante à ampla participação recomendada pelo Comitê no monitoramento do PPAC, é adequado dizer que ela também não foi alcançada. A sociedade civil organizada não se apropriou do Plano Presidente Amigo da Criança, e o monitoramento previsto pelo governo federal está significativamente atrasado. Em geral, o conhecimento da sociedade civil sobre as recomendações do Comitê é limitado, 61 NOGUEIRA NETO, Wanderlino. Enfrentando as diversas formas de violação dos direitos de crianças e adolescentes, a partir de um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. In http://200.155.18.61/informacao/a4bfe05_1149d8695df_-7f91.pdf em 27.09.2008 62 Em português, um mundo digno para as crianças ou um mundo adequado para as crianças. Em tradução livre, e a partir das traduções observadas em pesquisa online. 41 sendo também limitado o conhecimento sobre o que vem a ser um Plano de Ação específico. Seria interessante expandir este conhecimento e discutir a pertinência e a possibilidade de elaboração de um Plano com a natureza recomendada pelo Comitê. Além do Plano Presidente Amigo da Criança, os outros planos mencionados anteriormente que tratam diretamente dos direitos da criança e do adolescente são: o Plano Nacional de Direitos Humanos (1); o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2); o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil (3); e o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (4), para mencionarmos apenas os planos setoriais diretamente ligados à infância. Há elementos extremamente relevantes para a situação dos direitos da criança em planos voltado ao desenvolvimento da educação, da saúde e da segurança pública, mas estes serão abordados em outras sessões deste Relatório. Quanto aos planos relativos à criança, algumas considerações breves: • Plano Nacional de Direitos Humanos – o atual PNDH trata da questão da infância, de forma ampla, mas sem o detalhamento de um Plano específico, e sem o aprofundamento de um plano de ação. Um aspecto bastante positivo é que há questões relativas à coordenação nacional da política de direitos da criança presentes aqui. Há uma proposta para um novo plano nacional de direitos humanos, que dedica um capítulo extenso aos direitos da criança e do adolescente. Dentre as propostas e perspectivas estabelecidas nesta proposta, está a elaboração e a aprovação de um Plano Decenal de Atendimento aos Direitos da Criança e do Adolescente, a ser aprovado em 2009 na Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esta proposta também trata da política geral para crianças e adolescentes, com o aprofundamento da política de conselhos, a priorização das redes, o fortalecimento do CONANDA e da sociedade civil organizada, além de estabelecer o aprimoramento dos sistemas de informação e monitoramento das políticas para crianças. Embora estabeleça metas, estas têm diferentes níveis de profundidade, algumas específicas, outras gerais. O Plano aborda ainda melhorias no tratamento dado às crianças no âmbito do Judiciário, não só no que diz respeito a crianças em conflito com a lei, mas em relação à participação e proteção das crianças em geral em procedimentos judiciais. Tanto o PNDH atual, como a proposta atual, propugnam pela assinatura, ratificação e regulamentação de documentos internacionais relevantes. • Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC)– elaborado entre 2004 e 2006, este plano trata de maneira pioneira das crianças privadas do ambiente familiar. Embora faça significativas referências à legislação internacional, e mencione mesmo o Comitê dos Direitos da Criança, não há referência direta às Recomendações do mesmo. Esta abordagem é um exemplo da fragmentação da política para crianças no Brasil, não só na execução, mas também em termos de planejamento e de estratégia, problemas que poderiam ser resolvidos pela existência de um Plano de Ação efetivamente abrangente. Em sua recomendação 45, o Comitê é específico em relação a medidas a serem tomadas para a garantia dos direitos das crianças privadas de convivência familiar e comunitária, algumas cobertas pelo PNCFC. Na recomendação 48, o Comitê aborda especificamente medidas para evitar o abuso e a negligência em diversas instituições, dentre elas as de abrigamento. Apesar desta observação quanto às recomendações do Comitê, este Plano traz um elemento enriquecedor em sua elaboração, já que em sua coordenação encontramos uma parceria entre o CONANDA e o CNAS (Conselho Nacional de Assistência Nacional)63. Esta parceria amplia a quantidade e a qualidade da participação da sociedade civil organizada na elaboração deste documento. • Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil – este plano foi elaborado ainda em 2002, portanto, antes da entrega do primeiro relatório brasileiro ao Comitê. Contou com participação significativa da sociedade civil organizada, e estabeleceu metas a serem atingidas e estratégias de monitoramento. Sem dúvida há avanços marcantes na área, mas trata-se também de um plano específico. 63 Vide nota 7 42 • Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente – veio a público em 2004, e também não incorpora as recomendações do Comitê, mesmo por questões cronológicas. Há uma interação com o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, com a legislação internacional em vigor, incluindo a legislação sobre trabalho. Aqui mais um instrumento para a efetivação dos direitos da criança no Brasil, mas também estrategicamente limitado a uma violação específica. Apesar dos Planos desenvolvidos nos diversos segmentos garantirem uma atenção específica e detalhada a cada uma das situações de violação, é razoável afirmar que eles ensejam, pela falta de coordenação, um projeto fragmentado para a promoção e a proteção dos direitos da criança no Brasil. Os Planos dos diversos segmentos são bons instrumentos de defesa e promoção de direitos, mas não são suficientes para o objetivo de estabelecer uma política coordenada e efetiva, que garanta os direitos da criança no país 64. Todos os planos aqui abordados fazem exaustivas referências ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à Convenção sobre os Direitos da Criança; sem dúvida, as políticas são pensadas a partir destes marcos legais. Quase 20 anos após a ratificação e promulgação destes documentos, e após o reconhecimento por parte do Comitê que o Brasil cumpriu a adequação da legislação interna à normativa internacional, é urgente que os planos específicos sejam elaborados dentro de uma política ampla e coordenada. Um último elemento a ser tocado sobre esta Recomendação, mas que será aprofundado em outras partes deste Relatório, diz respeito à alocação dos recursos humanos e financeiros suficientes para a implementação de um Plano de Ação. Como foi mencionando anteriormente, o governo não tem priorizado a alocação e a execução de recursos financeiros, o que também impacta diretamente a destinação de recursos humanos, para a coordenação da política para a criança. A falta de priorização afeta a coordenação da política tal como ela é hoje, portanto, sem o cumprimento da Recomendação n. 18, e não aponta nenhum avanço no sentido recomendado pelo Comitê, já que não há recursos para a implementação das recomendações apresentadas. R2065 – À luz do seu Comentário Geral n. 2 sobre Instituições Nacionais de Direitos Humanos, o Comitê encoraja o Estado-parte a estabelecer um mecanismo independente e eficaz de acordo com os Princípios de Paris (Resolução 48/134 da Assembléia-Geral). Esta instituição deve ser provida de recursos humanos e financeiros adequados e deve ser de fácil acesso às crianças, lidando com as reclamações das crianças de forma sensível e expedita e fornecendo remédios para violações de seus direitos sob a convenção. O Comitê recomenda que o Estado-parte procure assessoria técnica do Escritório do Alto-Comissariado dos Direitos Humanos e o UNICEF. O Comitê dos Direitos da Criança considera uma obrigação dos Estados-membros da Convenção estabelecer um mecanismo de promoção e garantia dos direitos da criança, com base nos Princípios de Paris – ou seja, no marco das Instituições Nacionais de Direitos Humanos – INDHs. O Comitê considera essencial o estabelecimento de um mecanismo independente, capaz de monitorar a implementação da CDC no país, e também apto a receber denúncias sobre violações dos direitos humanos das crianças. Um dos elementos centrais aqui é que a Instituição esteja apta a lidar com denúncias feitas pelas próprias crianças, de forma sensível e eficaz. O Comitê considera que as crianças têm uma dificuldade maior para fazer valer seus direitos no Judiciário, em função de sua condição especial de pessoa em desenvolvimento, e aponta o estabelecimento de INDHs como um modo de minimizar o 64 A fim de esclarecer as bases teóricas da elaboração dos planos para os direitos da criança no Brasil, é relevante afirmar que a maioria dos Planos elaborados reflete uma visão multidisciplinar para a efetivação de direitos, com forte ênfase nas perspectivas provenientes dos campos do Direito e da Assistência Social. 65 Em relação à recomendação n. 20, ver o comentário geral n.2, do Comitê dos Direitos da Criança. CRC/GC/2002/2 15 November 2002. 43 problema. O Comitê é claro sobre a necessidade de um organismo específico, mas entende que em alguns lugares isto não é possível, dadas as limitações orçamentárias. Nestes casos, e apenas neles, deve existir uma INDH geral, a qual estabelecerá um organismo interno com competências específicas para lidar com a situação das crianças e de seus direitos 66. O Brasil não conta com instituições com as características pretendidas pelo Comitê – nem dedicada aos direitos humanos de crianças e adolescentes, nem aos direitos humanos da população em geral – e, não têm empreendido esforços no sentido de estabelecê-las. Como vimos ao analisarmos a Recomendação n.18, o Brasil conta basicamente com dois organismos de abrangência nacional que lidam com a situação da criança: a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH) e o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança). A SEDH tem entre suas competências, a de exercer a função de ouvidoria. A legislação que estabelece a Secretaria diz que esta tem, entre suas responsabilidades, a de: exercer as funções de ouvidoria-geral da cidadania, da criança, do adolescente, do idoso e das minorias. Como se pode perceber desta norma, trata-se de uma competência específica, mas não exclusiva para atuar com os direitos da criança. A recomendação do Comitê sobre os Direitos da Criança é clara: a expectativa é de que o Brasil estabeleça uma Instituição Nacional de Direitos Humanos, a fim de monitorar a implementação da CDC, responsabilizar-se pela periodicidade dos relatórios e receber denúncias sobre violações de direitos, contando com todos os meios e habilidades específicos para receber denúncias de crianças – capaz, portanto, de lidar com as necessidades e peculiaridades de pessoas em desenvolvimento. O Comitê entende que estes objetivos só podem ser alcançados se a Instituição estiver dentro dos marcos dos Princípios de Paris (Res.AG 48/134). Para que se enquadre neste marco, uma Instituição Nacional de Direitos Humanos deve: ser estabelecida constitucionalmente ou, pelo menos, por meio de lei (1), ser independente e autônoma (2), contar com recursos humanos e materiais adequados (3), não estar ligada nem ao Executivo, nem ao Legislativo (4), ser plural e representativa (5), ter membros escolhidos em processo transparente e com mandatos específicos(6), os eventuais membros governamentais não podem ter direito a voto (7). A SEDH não preenche os requisitos mínimos para ser considerada uma instituição nacional de direitos humanos, pelas razões elencadas a seguir: (1) Em relação à forma de constituição: este é o único aspecto em que a SEDH está de acordo com uma INDH, já que foi constituída por lei, e suas atribuições, entre elas a função de ouvidoria, também estão estabelecidas em lei. (2) Em relação à independência e autonomia: a SEDH está ligada à Presidência da República, e tem entre suas funções a assessoria direta e indireta ao Presidente da República sobre questões de Direitos Humanos. Trata-se de um órgão do Poder Executivo, com status de Ministério; o Secretário é, portanto, um subordinado hierárquico do Presidente, em cargo comissionado, devendo ao mesmo obediência funcional. (3) Recursos humanos e materiais adequados: a SEDH tem dotação orçamentária própria, o que não quer dizer que conte com os recursos necessários para empreender as atividades de uma INDH. Este relatório faz em uma outra secção, análise da situação orçamentária dos direitos da criança. (4) Não depender de nenhum dos “Poderes”: conforme mencionado anteriormente, a SEDH, apesar de não estar ligada ao Judiciário ou ao Legislativo, é um órgão do Executivo Federal, subordinado hierarquicamente à Presidência da República, não gozando da independência e da autonomia necessárias a uma INDH. (5) Pluralismo e representatividade: Não há na função específica de ouvidoria uma composição relativa ao pluralismo ou representatividade, esta última compreendida não 66 Idem 44 como representatividade de órgão ou instituições, mas como a possibilidade de refletir os diferentes grupos sociais, étnicos, econômicos e culturais do país. (6) Membros escolhidos em processo transparente e com mandatos específicos: os membros da SEDH são servidores públicos de carreira ou comissionados, ou ainda funcionários de projetos específicos, concursados ou indicados, por diferentes métodos, inclusive a discricionariedade do administrador. Esta forma de contratação não é compatível com o nível de independência esperado de um membro de uma INDH. (7) Membros governamentais não têm direito a voto: a SEDH, como foi estabelecido anteriormente, é um órgão governamental. Todos os membros da Secretaria são membros do Governo, atuando primordialmente no interesse deste. Um dos elementos caracterizadores de uma INDH é que seus membros governamentais não têm direito a voto e, não dispõem de nenhum outro tipo de poder de decisão. Examinando estes elementos, vemos que a SEDH não possui os elementos necessários para atuar como uma INDH. Além disso, vale lembrar que a INDH não é apenas uma ouvidoria, mas possui outras funções que também requerem um nível elevado de independência e autonomia. As INDHS são também responsáveis por uma espécie de “auditoria” da implementação da CDC no país e pela advocacy em prol da assinatura e ratificação de instrumentos internacionais. Funções que podem ser exercida de forma bem mais eficaz por uma instituição autônoma. Na atual configuração da SEDH, por mais sério que seja o trabalho desenvolvido, ele tem um caráter governamental, condicionado pelos interesses do Governo. Na abordagem específica que o Comitê sobre os Direitos da Criança faz sobre uma INDH voltada para a promoção e garantia da CDC, como já foi mencionado anteriormente, há uma preocupação central com a possibilidade de participação das crianças. O Comitê entende que a INDH deve viabilizar um espaço autônomo, como condição sem a qual não é possível garantir e proteger direitos humanos; mas também deve criar um espaço ao qual as crianças possam recorrer diretamente. Deve, portanto, ser um espaço child friendly (amigável para com a criança), com acesso real. Este é um elemento fundamental na proteção e promoção dos direitos da criança: a criação de mecanismos efetivos para a denúncia de violações e para a promoção pelas próprias crianças. O reconhecimento das crianças como sujeitos capazes de contribuir para o processo de efetivação de seus direitos é parte da efetivação destes direitos. Como se pode perceber, o governo brasileiro tem avançado no sentido de garantir os direitos das crianças, mas pouco foi feito em relação ao estabelecimento de um mecanismo efetivo para a denúncia de violações e para o monitoramento da Convenção. A sociedade civil organizada brasileira também não tem feito do estabelecimento de uma Instituição Nacional de Direitos Humanos uma de suas bandeiras. Dentro do âmbito geral da luta pelos direitos humanos, a questão já foi discutida de modo mais enfático em anos anteriores, e hoje encontra-se praticamente adormecida. O principal argumento para que as INDHs estejam relegadas a plano inferior diz respeito à necessidade de fortalecer as instituições brasileiras na promoção e proteção dos direitos humanos da população. De modo geral, a sociedade civil brasileira, em conjunto com os governos nacionais, tem discutido o estabelecimento de um Sistema Nacional de Direitos Humanos, que contemple as diferentes dimensões da implementação e garantia destes direitos. Conquanto o estabelecimento de um tal Sistema possa ser considerado um importante avanço, ele não responde às recomendações feitas pelo Comitê dos Direitos da Criança, no que concerne à criação de uma INDH. O Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH – tem sido uma das organizações fortemente envolvidas nesta discussão. O Movimento contribuiu significativamente para a ampliação da compreensão dos direitos humanos no país a partir de uma perspectiva internacionalista, e tem participado ativamente de todas as Conferências de Direitos Humanos organizadas no país. Além de ser um dos principais atores na tentativa de construir um sistema nacional de direitos humanos. Há uma proposta específica para XI Conferência de 45 Direitos Humanos, que deverá ser realizada em dezembro de 200867. Esta proposta, embora interessante no que diz respeito à organização de um sistema nacional de direitos humanos, e no que concerne à organização e fortalecimento da área da infância, não contém nenhuma discussão sobre instituições de direitos humanos no âmbito dos Princípios de Paris. Ainda que se possa concordar que o fortalecimento das instituições democráticas brasileiras nas últimas três décadas sugere uma maior confiança na capacidade das mesmas de responderem às violações de direitos humanos; e ainda que a sociedade civil organizada propugne pelo fortalecimento destas instituições, o Comitê dos Direitos da Criança continua a entender ser necessário o estabelecimento de uma INDH68. A fragilidade das instituições nacionais não é o fato gerador para o estabelecimento de uma INDH. As Instituições Nacionais de Direitos Humanos existem em países com sólidas e longas democracias, tais como: o Reino Unido, a Suécia, a Noruega, a França, a Irlanda do Norte, a Austrália, entre outros. Nenhuma instituição brasileira atual cumpre o papel de uma INDH, nem no âmbito geral dos Direitos Humanos, nem no âmbito específico dos Direitos Humanos de Crianças. Parte do movimento de direitos humanos brasileiro baseia-se na idéia de que a proposta atual para o estabelecimento de um Sistema Nacional de Direitos Humanos não contempla as diretrizes estabelecidas pelos Princípios de Paris considerados pela ONU como marco para Instituições Nacionais de Direitos Humanos, e que isto é um desrespeito aos acordos internacionais dos quais o Brasil faz parte69. Esta parcela entende, principalmente, que os mecanismos existentes atualmente não contemplam o caráter de independência e autonomia que é a condição fundante de uma INDH. De fato, como pode um organismo subordinado ao Presidente da República ser o principal responsável pelo monitoramento da implementação dos instrumentos internacionais no país? Como pode este mesmo organismo, governamental, possuir o monopólio das denúncias feitas sobre a questão dos direitos? Na discussão sobre a elaboração do III Plano Nacional de Direitos Humanos não há indícios de que se vá voltar a discutir o estabelecimento de uma Instituição Nacional de Direitos Humanos (11ª Conferência em oposição à 6ª)70. Em relação às discussões sobre o Sistema de Direitos Humanos, não há menção a cuidados específicos para com a participação de crianças, ou menção a métodos para garantir a ouvida efetiva das mesmas. Há apenas o reforço e consolidação dos órgãos já existentes. Sem dúvida, o Brasil tem passado ao largo de uma discussão efetiva sobre a importância de uma instituição nacional de direitos humanos, como se fosse algo que não pudesse contribuir para o avanço da questão no país. R33 – O Comitê recomenda que o princípio “interesse superior da criança” estabelecido no artigo 3 da Convenção esteja devidamente refletido em todos os atos legislativos, políticas e programas, bem como nas decisões judiciais e administrativas que afetem crianças. O Comitê recomenda também que o treinamento para profissionais, bem como a conscientização do público em geral sobre este princípio sejam reforçados. Uma análise do estado da normativa brasileira em relação aos direitos de crianças e adolescentes mostra uma situação com diferentes tendências. Enquanto o Judiciário brasileiro caminha, ainda que num ritmo lento, para uma compreensão em consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança; o Legislativo Federal discute propostas de Lei que são incompatíveis como a norma constitucional brasileira e com os documentos internacionais de direitos da criança. 67 http://www.mndh.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=22&Itemid=37 em 24.08.2008 68 E o mesmo entendem as Nações Unidas no âmbito geral. Dentre as recomendações feitas ao Brasil este ano, está a criação de uma INDH. http://www.estadao.com.br/nacional/not_nac157238,0.htm. 69 http://www2.abong.org.br/final/informes_pag.php?cdm=19085; http://www.nevusp.org/portugues/index.php? option=com_content&task=view&id=103&Itemid=29 70 http://www.11conferenciadh.com.br/ em especial: http://www.11conferenciadh.com.br/pndh/Revisao%20e %20Atualizacao%20do%20PNDH%2006.08.08.pdf 46 Uma pesquisa sobre as decisões judiciais dos Tribunais Superiores brasileiros mostra um acúmulo diferente nos dois principais órgãos. Examinando as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF – vemos que a cúpula do Judiciário brasileiro faz poucas (quase nenhuma) referências aos documentos internacionais sobre direitos da criança e do adolescente, e que não argumenta com fundamento em princípios básicos, como o do interesse superior da criança. A análise mostra que os documentos internacionais só são utilizados como referência explícita em casos de extradição, quando os réus têm filhos menores; sendo ignorados em outras matérias relativas à infância, entre elas, por exemplo, os julgamentos de adolescentes em conflito com a lei. A Convenção sobre os Direitos da Criança só é mencionada em dois julgamentos do STF71, em um dos casos por provocação da parte, que se baseia na CDC. Mesmos em decisões importantes do STF sobre os direitos da criança, decisões estas em harmonia com os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança, as menções são apenas à Constituição Federal e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, e aos princípios da “prioridade absoluta” e do “melhor interesse da criança”. Não há referências à Convenção e seus princípios, nem mesmo em decisões relativas, por exemplo, ao direito à educação.72 Em uma decisão extremamente interessante do STF, publicada em 08.07.2008, na qual se protege o direito de adolescentes em conflito com a lei, onde a fundamentação é estabelecida sobre o princípio da prioridade absoluta, não há referência à Convenção sobre os Direitos da Criança, nem a outros documentos internacionais sobre direitos humanos, que são pertinentes ao caso. Quanto ao princípio do interesse superior da criança, não há referência alguma, pelo menos não nas decisões dos STF. O Superior Tribunal de Justiça – STJ – faz referência à Convenção mais frequentemente, e ainda que em muitos casos também em ações relativas à guarda de filhos brasileiros de estrangeiros, é possível colecionar um número significativo de decisões que se baseiam no princípio do “interesse superior da criança”. Ainda que o princípio seja utilizado em geral, em específico tem sido referido para lidar com a situação de jovens em conflito com a lei, o que mostra um avanço significativo na compreensão do Judiciário sobre o uso de documentos internacionais. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem contribuído ativamente para a consolidação da cultura jurídica nacional em relação à CDC. Vale notar ainda que estas decisões, com referência à CDC e ao princípio do interesse superior da criança, concentram-se majoritariamente nos últimos cinco anos (entre 2003 e 2008) Esta situação não nos permite inferir que o STJ atua em prol dos direitos da criança, e o STF não. É possível, sim, afirmar que o STJ tem recorrido à Convenção sobre os Direitos da Criança com mais frequência que o STF. Sem dúvida, elementos de competência jurisdicional de cada um dos órgãos contribui para o volume de casos analisados sobre a questão da criança, mas é fato que o Superior Tribunal de Justiça tem estado mais atento às normativas internacionais sobre o direito da criança e contribuído mais, do ponto de vista da difusão do conhecimento sobre o direito internacional, para que estas sejam apreendidas pelo Judiciário em geral. No que diz respeito à Justiça de primeiro grau, não é possível contar com um apanhado de todas as decisões judiciais, mas há alguns dados relevantes coletados, principalmente através da ABMP73. A ABMP tem dado uma contribuição importante ao desenvolvimento dos Direitos da Criança no país. A compilação de informações jurídicas sobre a matéria, pela criação de banco de dados acessível, o debate doutrinário, o investimento na formação das categorias, as contribuições para o monitoramento da Convenção, tudo isto são exemplos desta atuação74. 71 HC 81681 MC / RS; HC 86289 / GO 72 AI 677274 / SP - SÃO PAULO EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). AGRAVO IMPROVIDO. 73 ABMP – Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude 74 www.abmp.org.br 47 Além disso, a Associação conduziu uma pesquisa sobre o sistema de justiça dos direitos da criança no Brasil, abordando diferentes aspectos do mesmo, fazendo um levantamento sobre a existência de varas especializadas, equipes interdisciplinares e formação profissional adequada, em comemoração aos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90)75. A pesquisa ilumina alguns pontos importantes, apontando avanços e desvendando atrasos incompreensíveis. Antes de tratar da pesquisa, vale ressaltar que, a partir do primeiro semestre de 2008, a ABMP ampliou seu escopo para passar a incluir as Defensorias Públicas estaduais. Embora a ABMP seja uma associação, órgão da sociedade civil organizada, esta inclusão tem um significado importante, já que se trata de uma organização de servidores públicos, que adota uma nova categoria funcional76, ampliando os esforços conjuntos para a efetivação dos direitos da criança. Há anos, os defensores públicos vêm lutando pela a efetivação dos direitos da criança, através, por exemplo, da garantia do devido processo legal (ao viabilizar, por exemplo, o direito à defesa), ou do direito ao acesso à justiça, através da defesa de direitos individuais de um sem número de crianças que não podem custear advogado. Neste sentido, a inclusão dos defensores públicos é um avanço, que contribui para a difusão do conhecimento sobre os direitos da criança, para a ampliação do debate sobre a matéria, e para a melhoria do acesso à justiça. Conforme mencionado anteriormente, os temas abordados na pesquisa da ABMP analisam alguns elementos importantes para a efetivação dos direitos da criança, diretamente ligados à consolidação dos princípios da Convenção, são eles: a análise da importância das varas especializadas em direito da criança (1); a existência ou não de equipes interdisciplinares voltadas para o acompanhamento de crianças e adolescentes nas Varas da Infância e da Juventude (2); e a formação dos profissionais do Direito, em específico os agentes jurídicos do poder público, ou seja, magistrados, promotores de justiça e defensores públicos (3). As varas especializadas permitem que as questões relativas aos direitos da criança e do adolescente sejam tratadas por magistrados, promotores e defensores com um conhecimento prático e teórico específico da matéria. Esta medida busca minimizar o paternalismo e o menorismo no trato de crianças e adolescentes no âmbito do Judiciário. Em geral, há um sentimento de que se trata de uma medida importante para a efetivação dos direitos da criança. As varas da infância e da juventude não são obrigatórias, elas podem ser criadas pelos estados, de acordo com previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com a pesquisa, não obstante esta previsão, apenas 92 comarcas no país contam com varas especializadas em direito da criança e do adolescente, embora a maior parte das capitais e das cidades com mais de 500.000 habitantes contem com este instrumento. A fim de garantir os princípios da Convenção (e os do ECA), o sistema de garantia de direitos prevê uma série de mecanismos para um cuidado interdisciplinar com crianças e adolescentes quando de seu contato com o Judiciário. Aqui, nota-se um avanço, a resolução n.2 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), recomendando e cobrando a estruturação destas equipes multidisciplinares. A ABMP examinou também este aspecto, da existência de equipes multidisciplinares junto às varas especializadas da infância e da juventude. Encontrou um quadro desigual. Há estados, como Minas Gerais e Mato Grosso, que contam com um número significativo de equipes técnicas, estados como Bahia, Pará e o Distrito Federal, que só têm equipe técnica na capital (ou sede), e os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, que não contam com uma equipe técnica estruturada e institucionalizada. A presença da equipe técnica é importante por várias razões, mas uma deve ser destacada aqui: a equipe é o principal instrumento para possibilitar que o acesso e a participação das crianças em procedimentos judiciários ocorra da forma mais tranqüila e eficaz possível. Este é um elemento fundamental, na organização de um sistema que tenha em conta a condição de sujeitos de direitos da qual gozam crianças e adolescentes. 75 ABMP. O Sistema de Justiça da Infância e da Juventude nos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: Desafios na Especialização para a Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes. Impressão: www.graficamundo.com.br São Paulo, 2008. 76 http://www.abmp.org.br/noticias.php?n=10 48 A ABMP levantou dados também sobre a formação de magistrados, promotores de justiça e defensores. A pesquisa teve como objeto identificar se a matéria direito da criança e do adolescente fez parte do último concurso para ingresso nas carreiras; saber se houve formação na matéria para os aprovados nos concursos, e se houve formação continuada na área nos últimos seis meses anteriores à pesquisa. A Associação constatou que em cerca de dois terços dos estados, os concursos para magistrado e promotor de justiça requerem conhecimento sobre direito da criança e do adolescente (em 16 e 20 estados, respectivamente). No caso da Defensoria Pública, em apenas 13 estados a matéria faz parte de concurso público. Em cerca de um terço dos estados há formação em direitos da criança para os aprovados em concurso, com variadas cargashorárias, nas três carreiras. Quanto à formação continuada, verificou-se que a maioria das Escolas da Magistratura e do Ministério Público não ofereceu curso na área nos últimos seis meses. A ABMP ofereceu cursos nos últimos seis meses, mas o alcance não é o mesmo de quando o curso é oferecido a todos os servidores, através de suas escolas funcionais. Como ponto positivo na formação dos profissionais em Direito, vale ressaltar que está em discussão no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) proposta que torna obrigatória matéria sobre os direitos da criança e do adolescente em concursos públicos. Caso aprovada, a proposta fará com que o estudo dos direitos da criança e do adolescente assuma um papel bem mais importante nos currículos dos cursos de direito existentes no país. Sem dúvida, uma medida que pode difundir e aprofundar o conhecimento sobre o direito da criança entre as carreiras jurídicas, desfazendo mitos, e contribuindo para o avanço da efetivação em todo o país77. Por fim, é importante mencionar que estão em trâmite, hoje, no Congresso Nacional, um conjunto de projetos de leis que visa a reduzir direitos das crianças. A maioria destes projetos trata de questões ligadas ao ato infracional, e costuma ser impulsionada por casos de violência envolvendo adolescentes. Entre eles, o projeto de lei n. 2847/00, que foi aprovado, em 2007, na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, prevendo o aumento no tempo de internação dos adolescentes infratores78. Sem dúvida, um exemplo de como a inépcia dos Poderes pode levar à “fácil” solução do recrudescimento das penas, ensejando violação dos direitos da criança, e pouco ou nada fazendo pelo fim da violência no país. R37 – O Comitê recomenda que o Estado parte assegure que as opiniões das crianças sejam levadas em devida consideração, de acordo com o artigo 12 da Convenção, em família, nas escolas, nos tribunais, e em todos os processos administrativos e outros informais que lhes digam respeito. Isso deve ser empreendido por meio, entre outros, da adoção de legislação e políticas apropriadas, do treinamento de profissionais, da conscientização do público em geral e do estabelecimento de atividades criativas e informais específicas dentro e fora das escolas. O comitê recomenda que o Estado-parte procure cooperação técnica do UNICEF. A Recomendação do Comitê representa um desafio para a sociedade brasileira. Apesar dos avanços dos últimos anos, é indubitável que prevalecesse uma cultura adultocêntrica79, fortemente arraigada à idéias de dependência e ignorância como caracterizadoras da infância e da adolescência. O princípio do melhor interesse da criança, e sua lenta absorção pela Corte Maior do país, conforme analisado em nota anterior, é um bom exemplo de como ainda estamos longe de entender e absorver as potencialidades da participação de crianças e adolescentes: é muito difícil para a sociedade brasileira em geral entender que crianças e adolescentes podem discordar e contrapor-se, de forma a razoável, a seus professores, pais e adultos em geral. O levantamento da ABMP sobre as equipes interdisciplinares mostra que ainda estamos longe 77 http://www.abmp.org.br/noticias.php?n=29 78 http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo/tabid/77/ConteudoId/d03d7ed7-c1f9-49db-80d4d2cf0e092948/Default.aspx 79 NOGUEIRA NETO, Wanderlino. Enfrentando as diversas formas de violação dos direitos de crianças e adolescentes, a partir de um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. 49 de garantir às crianças e adolescentes um ambiente “amigável” dentro do Judiciário. Do ponto de vista das normas jurídicas, pode-se afirmar que há algumas melhorias nos últimos anos, como um maior peso à opinião de crianças em questões que lhes dizem respeito diretamente, e com a tentativa de criar espaços mais acolhedoras, onde as crianças possam contribuir livremente para o processo. No âmbito do Poder Executivo, vimos algumas iniciativas, a maioria voltadas mais diretamente para o público adolescente e jovem, mas que avançam no quesito participação. No Governo Federal, o Conselho Nacional de Juventude é um exemplo significativo deste avanço. Nos governos municipais, em algumas cidades que adotam o orçamento participativo, como Fortaleza (onde crianças de até sete anos chegaram a participar do processo) e Belo Horizonte, vimos a participação de crianças e adolescentes na definição das destinações do orçamento público municipal e, portanto, das políticas públicas mais relevantes. Sem sombra de dúvida, a sociedade civil organizada é o espaço onde a participação de crianças e adolescentes mais tem se desenvolvido, além de ser o espaço da advocacy em relação ao Poder Público em seus diferentes níveis. O Unicef apresentou um relatório sobre a participação de crianças e adolescentes em projetos de mídia, educação, protagonismo, mostrando como é possível potencializar as capacidades deste grupo social, dando a ele liberdade para criar, ser ouvido e contribuir; e como isto contribui para o processo de educação destas crianças e adolescentes80. Indiretamente, o Estado participa de alguns deste projeto, por meio do financiamento dos mesmos. Em conjunto com organizações da sociedade civil, o UNICEF apresentou também um estudo sobre a percepção dos jovens sobre a política, sobre direitos, sobre violações de direitos e sobre participação81, com o objetivo explícito de que estas percepções sejam incorporadas nas políticas públicas voltadas ao segmento – portanto, como instrumento de participação. A ANCED e os Centros de Defesa da Criança e do Adolescente tem trabalhado arduamente neste campo, para garantir a participação eficaz das crianças. Neste sentido, têm lutado junto às crianças e adolescentes para garantir espaços e voz, de modo autônomo e engajado, em diferentes processos. O processo de elaboração deste relatório é um deles, dentre vários. Apesar da cultura adultocêntrica, e de uma legislação no mais das vezes, senão atrasada, pelo menos tímida em relação à participação de crianças e adolescentes; no conjunto, pode-se afirmar que este é um dos âmbitos em que mais se avançou nos últimos anos, em termos práticos. Há poucos dados objetivos sobre isso, e muitas controvérsias sobre que metodologias são adequadas e/ou efetivamente inclusivas. Os governos, via de regra, vieram a reboque da sociedade civil, não há como negar, no entanto, que a participação vem aumentando, e encontrando formas de se qualificar. 80 UNICEF. Projetos de educação, comunicação e participação: perspectivas para políticas públicas. 81 UNICEF ET ALLE. Adolescentes e jovens do brasil: participação social e política. 50 Anexo – INESC Infância Esquecida 51 Homicídios, Atentados à Vida, à Integridade Física, Tortura e Punições Corporais Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar da ANCED Subsídios para a construção do relatório alternativo da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Crianças das Nações Unidas 52 Homicídios, Atentados à Vida, à Integridade Física, Tortura e Punições Corporais APRESENTAÇÃO O presente relatório trata do esforço empreendido pelo Estado brasileiro82 no enfrentamento das situações de violência contra crianças e adolescentes, com foco no que dispõe a Recomendação 41 do Comitê da Criança da ONU ao Brasil ao relatório inicial do Brasil (CRC/C/ 3/Add.65) apresentado em 2003 e considerado nas 973ª, 974ª e 999ª reuniões, realizadas entre setembro e outubro do ano de 2004. Recomendação 41. O COMITÊ INSTA O ESTADO PARTE A IMPLEMENTAR SUA LEGISLAÇÃO E RECOMENDAÇÕES LEVAR DA EM CONSIDERAÇÃO RELATORA ESPECIAL AS SOBRE EXECUÇÕES EXTRAJUDICIAIS, SUMÁRIAS OU ARBITRÁRIAS E DO RELATOR ESPECIAL SOBRE TORTURA, EM PARTICULAR A RESPEITO DAS MEDIDAS EFETIVAS PARA COMBATER A IMPUNIDADE. O COMITÊ INSTA A ESTADO-PARTE A INCLUIR NO PRÓXIMO RELATÓRIO PERIÓDICO INFORMAÇÕES SOBRE O NÚMERO DE CASOS DE TORTURA OU TRATAMENTO DESUMANO OU DEGRADANTE DE CRIANÇAS RELATADAS ÀS AUTORIDADES OU AGÊNCIAS RELEVANTES, O NÚMERO DE PERPETRADORES DE TAIS ATOS QUE FORAM SENTENCIADOS PELOS TRIBUNAIS E A NATUREZA DESSAS SENTENÇAS. Resulta de estudos e análises acerca dos dados que tratam do direito à vida compreendendo os homicídios (violência letal), atentados à vida, à integridade física, tortura e punições corporais, cometidos contra crianças e adolescentes no período entre 2004 e 200783. Encontra-se estruturado conforme a Matriz da Estratégia Preliminar de Monitoramento elaborada pelo Grupo de Trabalho da Convenção dos Direitos da Criança (GT CDC) da ANCED e respectivo Plano de Trabalho. Sendo assim, os tópicos principais são: 1. Marco Legal: aborda a legislação acerca do direito à vida nos principais documentos jurídicos vigentes no ordenamento brasileiro. 2. Situação: retrata o cenário das mortes de crianças e adolescentes com destaque especial para as mortes por armas de fogo durante as ações da policial no combate 82 Para efeitos deste relatório entende-se que a responsabilidade do ente federado na proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes é do Estado brasileiro, signatário dos tratados e convenções em matéria de direitos humano. E o Estado brasileiro é a conjugação de todos os entes federados e mais os diferentes poderes. 83 Tal período compreende a data de entrega do último Relatório Brasileiro e a data na qual deveria ter sido apresentado relatório subseqüente,. 53 ao crime organizado, as mortes de crianças e adolescentes por omissão ou negligencia do Estado no campo da saúde e, as mortes de crianças e adolescentes indígenas. O Mapa da Violência é um dos mais recentes estudos de abrangência nacional sobre este tema e balisará as análises que serão feitas no decorrer do texto. A perspectiva internacional acerca da temática sistematizada na publicação do UNICEF intitulada “Direitos Negados – A Violência contra crianças e adolescentes no Brasil é outra renomada fonte de informações. Casos exemplares noticiados pela mídia e casos atendidos pelos Centros de Defesa também ilustrarão o texto”. 3. Esforço: traz algumas iniciativas do Estado brasileiro no sentido de atender ao que estabelece a Recomendação 41 do Comitê da Criança. 4. Ambiente: apresenta o contexto dos debates travados no seio da sociedade acerca da temática. 5. Conclusão: busca sistematizar os achados dos estudos sinalizando para algumas saídas possíveis para o Estado Brasileiro. 6. Recomendações: apresenta um conjunto de recomendações para a efetiva atenção aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. 7. Fontes Utilizadas: lista os principais documentos utilizados para a construção do relatório. Vale destacar que alguns fatores contribuíram para a limitação na coleta de dados na fase de mapeamento, a saber: • A ausência de indicadores para tratar de todos os temas selecionados. • Indisponibilidade de dados em meio digital (falta de registros mais completos em sites); • Falta de fontes suficientes que pudessem fornecer dados quantitativos mais detalhados para o período mencionado. • Falta de dados que pudessem favorecer uma caracterização mais específica sobre punições corporais. Tais fatores intercorrentes, apesar de dificultarem, não impossibilitaram o andamento do trabalho. 54 Homicídio MARCO LEGAL “Indiscutivelmente a vida se constitui como o mais importante, se não mais indispensável, de todos os direitos humanos até aqui constituídos natural e juridicamente em todos os tempos e épocas e especialmente nos ordenamentos normativos, nacionais e internacionais do mundo moderno”. (Carlos Nicodemos84) O direito à vida encontra-se amplamente amparado na legislação vigente. Os direitos fundamentais do ser humano tem sido preocupação constante e se reconhece cada vez mais a importância da vida humana, como se pode observar no preâmbulo da Carta das Nações Unidas de 1945, posteriormente no artigo terceiro da Declaração dos Direitos Humanos: “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade,à segurança pessoal”. A Convenção sobre os Direitos da Criança 85 reconhece o direito à vida, garantindo que o Estado a assegurará, assim como garantirá o desenvolvimento da criança, conforme se observa no artigo 6º: “(1) Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida”, (2) Os Estados Partes assegurarão o máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança “. Ao longo dos seus 54 artigos a Convenção traz quatro princípios que devem servir de marco para a aplicação de todos os direitos assegurados em seu texto, sendo um deles o direito à sobrevivência e desenvolvimento conforme o citado artigo sexto. Ressalta-se que assim ela amplia o conceito de direito à vida para além do direito à integridade física, abarcando a sobrevivência. Outros instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos como os Pactos de Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais da ONU de 1966 obrigam os Estados juridicamente na obrigação de assegurar todos os direitos ali enunciados, entre eles, especialmente, o direito à vida. Ainda tratam desta questão que orientando a ação do Estado brasileiro, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos da OEA e o Pacto de San José da Costa Rica que no artigo 4º, 1, estabeleceu que: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” No direito pátrio (a Constituição Federal) encontramos igual preocupação com a vida humana. Sendo o tema de especial importância que, se não bastasse o legislador constituinte de 1988 colocá-lo no caput do artigo 5º - Capítulo I (Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), preferiu esculpi-lo antes de qualquer outro, tais como a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. Inequivocadamente vislumbra-se aqui a importância que o legislador constitucional de 1988 imprimiu ao direito à vida. Este se coloca à frente de outros e afigura-nos no sentido de que a vida humana seja considerada um ponto central em relação aos demais direitos. Um eixo do qual emanam todos os outros. Para reforçar a prioridade estabelecida constitucionalmente o artigo 227 trata deste direito realçando a importância da família, do Estado e da Sociedade em assegurá-lo. “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, 84 O direito humano à vida e a política de enfrentamento ao extermínio de crianças no Brasil. In: A vida de crianças e adolescentes está ameaçada. Sabe o que pode fazer a diferença para salvá-la ? 2005. Projeto Legal. 85 Aprovada pelo Decreto Legislativo no 28, de 14 de setembro de 1990 e Promulgado pelo Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990. 55 à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal de julho de 1990, traça o mesmo caminho da Constituição Federal, já em seu artigo terceiro que diz: “Artigo 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (ECA) O artigo sétimo por sua vez estabelece que a criança tem direito à proteção de sua vida e saúde, cabendo às políticas sociais públicas garantir-lhe o nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, com condições de dignidade. Os diplomas legais, ou seja, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Convenção dos Direitos da Criança, reconhecem o direito à vida como ponto de partida aos demais direitos e ainda compõem um valioso instrumento jurídico para a proteção de crianças e adolescentes. SITUAÇÃO A crescente incidência de mortes por causas violentas tem conseqüências diretas nos padrões de mortalidade juvenil nos últimos anos. Neste contexto infelizmente o Brasil assume posição de destaque porque apesar de os homicídios afetarem a população como um todo, a população adolescente e jovem é especialmente vitimizada. As pesquisas revelam que são os adolescentes e jovens do sexo masculino as maiores vítimas de homicídios. E quando se trata de homicídios cometidos por agentes do Estado (polícias) as circunstâncias e os procedimentos seguintes para a apuração do caso são permeados de impunidade restando bastante prejudicados ou até mesmo inviabilizados. Os números mostram um claro recorte de classe, idade e cor. Segundo estudo elaborado pela Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) as mortes por homicídios no país concentram-se em 556 de 5.560 municípios brasileiros, ou seja, cerca de 10%. Dos 48.345 óbitos por esta causa, registrados em 2004, 34.712 – mais de dois terços – aconteceram nessas cidades. De acordo com o estudo - que ampliou as pesquisas sobre violência, até então realizadas nos grandes centros -, com base em dados de 1994 a 2004, isso mostra um crescimento da violência no interior do país, principalmente na região Centro-Oeste (que abrange estados que fazem fronteira com outros países latino americanos), e não só nas grandes capitais e regiões metropolitanas. Os dados da pesquisa "Mapa da Violência dos municípios brasileiros 2008" – estudo elaborado pela Rede de Informação Tecnológica Latino Americana (Ritla) -, referentes ao ano de 2006, confirmam que nada menos do que 73,3% do total de homicídios ocorridos no Brasil foram cometidos nos 556 municípios mais violentos86. Produzido a cada dois anos desde 1998, o estudo analisa a situação e a evolução da violência nas 27 capitais e nas 10 regiões metropolitanas87. O estudo classifica a violência em três pontos: acidentes de transportes, 86 Atualmente, o Brasil possui 5.564 municípios. 87 A última edição do "Mapa da violência dos municípios brasileiros" foi publicada em 2007, mas continha apenas informações e indicadores de mortalidade coletados até 2004. Como o Ministério da Saúde disponibilizou os dados até 2006, a Ritla decidiu elaborar uma nova pesquisa. 56 homicídios e óbitos por uso de armas de fogo. Recentemente, um novo fenômeno chamou a atenção dos pesquisadores: se até 1999 os pólos de violência eram as grandes capitais e metrópoles, depois disso observou-se o deslocamento da violência para o interior dos estados. Os dados da pesquisa indicam que esses 10% tendem a ser municípios de grande porte, pois concentram 44,1% da população do país. Se a média nacional de habitantes por município em 2006 era de 32,6 mil habitantes, a média desses 10% era mais do que quatro vezes superior: 143,9 mil habitantes por município. São territórios que apresentam organização social bastante complexa e diversificada onde se expressam a desigualdade econômica, social, política e cultural entre os diferentes grupos e também uma forma distinta de agir por parte de muitos governantes. Para Julio Jacobo Waiselfisz (responsável pelo Mapa da Violência 2006 – os jovens do Brasil), a violência está indo para o interior porque houve, nos últimos anos, um rápido crescimento no pólo industrial das cidades menores, o que, conseqüentemente, atraiu várias pessoas e aumentou o número da população. Alba Zaluar complementa esta colocação, inferindo que um dos motivos do crescimento da taxa de homicídios em municípios do interior deve-se ao uso dos mesmos como entrepostos para o tráfico de drogas e de armas. A Antropóloga aponta ainda que uma outra razão para esse fenômeno é o crescimento desordenado pelo qual algumas dessas cidades passaram nos últimos anos, como Macaé, no Rio de Janeiro. E no que diz respeito ao tráfico de drogas, observa-se o envolvimento de muitos adolescentes. Todos os 27 estados brasileiros possuem, pelo menos, um município fazendo parte desse grupo dos 10% mais violentos. Excluindo o Distrito Federal (DF), que não possui malha municipal, existem estados em que parte significativa dos municípios integra esse universo classificado como "crítico" no estudo: são os casos do Amapá, Pernambuco, Rio de Janeiro e Roraima, todos possuindo 40% ou mais de seus municípios nesta situação. O Mapa da Violência dos municípios brasileiros 2008 mostra que Coronel Sapucaia (MS) é o município com a maior taxa média de homicídios do país, levando-se em conta o número de mortes e o tamanho da população. Apesar de ter havido 13 homicídios na cidade em 2006 que ocupava, com dados de 2004, o 3º lugar da pesquisa -, o pequeno tamanho da população (14,6 mil habitantes) faz com que, na média, Coronel Sapucaia ocupe o topo do ranking. A cidade em que o número absoluto de homicídios foi maior em 2006 é São Paulo, com 2.546 mortes. O Rio de Janeiro vem em seguida, com 2.273. Recife está em 3º, com 1.375 homicídios. De acordo com o estudo, em 10 anos (1996-2006), o número total de homicídios registrados 57 em todo o Brasil passou de 38.888 para 46.660, representando um aumento de 20%, levemente superior ao crescimento da população, que, segundo a pesquisa, foi de 16,3% no mesmo período. Os dados do estudo mostram que o número de homicídios registrou um crescimento regular até 2003, com aumentos elevados em torno de 4,4% ao ano. Já em 2004, essa tendência história se reverte de forma significativa: o número de homicídios cai 5,2% em relação a 2003, fato diretamente ligado, para os responsáveis pelo estudo, à política de desarmamento desenvolvida pelo governo federal naquele ano. Nos anos seguintes, as taxas de homicídios continuaram caindo, mas em um ritmo menor, segundo a pesquisa. Dessa forma, entre 2003 e 2006, as quedas anuais são da ordem de 2,9%, fato também atribuído, pelo estudo, às políticas de desarmamento, incluindo o resultado do referendo, favorável à entrega das armas de fogo por parte da população. "Essa queda nos números se deu por causa da campanha do desarmamento, que produziu um efeito imediato nos números de homicídios", explicou o pesquisador e autor do estudo, Julio Jacob Waiselfisz. O Mapa da Violência dos Municípios Brasileiro aponta também que o número de homicídios sofridos por pessoas de 15 a 24 anos subiu de 13,1 mil, em 1996, para 17,3 mil, no ano de 2006 - um aumento de 31,3%. No mesmo período, o crescimento de homicídios entre a população total foi de 20%. Por outro lado entre 2004 e 2006, no entanto, o índice de homicídios entre jovens caiu 13% 88. Segundo Julio Jacobo, a queda se deve à adoção de políticas públicas específicas para a juventude nesse período. “Pela primeira vez se olha o jovem como objeto de política. Até o momento o jovem era uma entidade vista como fadada a desaparecer, no meio entre a criança e o adulto”. O estudo mostra também que os 200 municípios com o maior número de mortes juvenis por homicídio concentram 47,3% da população do país e 79,5% dos homicídios juvenis em 2006. De acordo com o gerente de Estatística Vital do IBGE, Claudio Dutra Crespo, as mortes nas grandes cidades estão ligadas diretamente à violência urbana. “O jovem é uma população-alvo específica da insegurança, dos homicídios e acidentes de trânsito”. Esta informação faz parte das Estatísticas do Registro Civil, divulgadas em abril de 2008 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes ao ano de 2007. 88 Vale destacar que o Brasil conta com 35 milhões de jovens entre 15 e 24 anos. 58 Nos últimos 16 anos, foi possível observar no país um aumento de 7,3 pontos percentuais nos óbitos violentos na faixa etária de 15 a 24 anos, que era de 60,6% em 1990 e pulou para 67,9% em 2006. O maior aumento foi registrado na região Sudeste, onde o percentual de mortes para jovens dessa faixa etária era de 64,1% em 1990 e bateu em 75,9% na mesma série histórica comparativa: um salto de 11,8 pontos percentuais. Esses dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2006, segundo a Agência Brasil.89 A violência no Brasil assume diversas facetas, mas uma das mais preocupantes é a institucional, aquela cometida justamente pelos órgãos e agentes públicos que deveriam se esforçar para proteger e defender os cidadãos. “A violência policial é a mais notória dentre as praticadas por agentes do Estado. Todos sabem de sua existência, apesar de não ser possível quantificá-la claramente, já que os dados referentes à segurança pública no Brasil não são tão confiáveis” ··· Violências contra os Povos Indígenas Muitos são os casos de morte de crianças e adolescentes indígenas nos diferentes povos. Há casos de homicídios, suicídios (bastante comum entre algumas etnias), mas principalmente morte por omissão do poder público (violência institucional). Segundo a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos (2007), em 2007, 58 indígenas foram assassinados, 35 do Mato Grosso do Sul, sendo que destes, todos, com a exceção de um, pertencentes ao povo Guarani-Kaiowá. Com relação à faixa etária, chama a atenção as ocorrências por extremos etários (muito idosos e muito jovens). Por outro lado, 13 jovens, de 14 a 20 anos foram mortos neste ano. Entre as 58 vítimas, 12 eram mulheres e 46 homens. Entre as mulheres, muitos casos de estupro seguido de morte. No ano de 2007, 36 indígenas foram vítimas de tentativas de assassinato em todo o país. Os casos de tentativa de assassinato ocorridos na Bahia, com o povo Pataxó Hã Hã Hãe, Ceará, com o povo Tapeba e Maranhão, com o povo Guajajara, dizem respeito à violência com que fazendeiros e demais invasores das terras indígenas atuam, invadindo comunidades e atacando pessoas impunemente. Comunidades foram invadidas nesses estados do Nordeste, os indígenas aterrorizados e ameaçados por pistoleiros armados. Foram notificados pelo menos 19 casos de morte, apenas no primeiro semestre de 2007, por desassistência, entre os Kulina, no Vale do Javari, no Amazonas. Entre as causas, várias doenças graves como hepatite, hepatite viral, malária, febre amarela, tuberculose e desnutrição. Segundo os informes, a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) não tem as mínimas condições de pessoal, recursos, equipamentos, nem embarcações para atender aquele povo indígena. Foram relatadas mortes de indígenas em 11 regiões dos DSEIs (Distritos Especiais de Saúde Indígena), de um total de 30 regiões, devido a doenças como sífilis, DST/AIDS e hepatite. Outro povo duramente afetado por mortes devido à inexistência de atendimento adequado na região é o Kaxinawá, no Acre, com relatos de mortes por malária, febre amarela, febre tifóide, viroses diversas e desnutrição infantil. Foram relatados também casos de morte devido a negligência no atendimento médico, o que causou as mortes de um cacique do povo Kaingang, em Santa Catarina, e de uma jovem parturiente de 24 anos, do povo Xokó, em Sergipe. Conforme informações dos próprios DSEIs, há casos de sífilis disseminados em indígenas em todas as regiões do Brasil. O povo Zoé, etnia isolada no Pará teve 80% de seus membros contaminado por malária. A devastação das matas do seu território e a presença dos invasores é a causa evidente desta 89 http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/12/05/materia.2007-12-05.1045027516/view. capturada em 05/07/2008. Informação 59 trágica contaminação. Foram feitas também muitas denúncias sobre a precária situação sanitária e alta contaminação por esquistossomose pelo povo Potiguara, na Paraíba, e de desassistência médica pelo povo Munduruku, no Pará. Denúncias deste último relatavam a demora de 2 a 6 meses para se ter acesso a um atendimento médico, superlotação e fome nos hospitais, desrespeito e abandono dos pacientes, com casos constantes de perdas dos resultados dos exames por funcionários que “se esquecem” de buscá-los, paralisando tratamentos e exigindo que exames sejam novamente refeitos, aumentando o sofrimento da população que deveria ser atendida. O quadro de abandono e desassistência a povos indígenas se reflete em denúncias como a da contaminação de córregos usados para o preparo de alimentos, pelo povo Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul; do corte de 11.000 cestas básicas pelo governo desse estado, que eram entregues a 8.000 famílias Guarani-Kaiowá, e da existência de famílias inteiras desse povo perambulando pelas cidades do Mato Grosso do Sul, buscando restos de comida em latas de lixo. Segundo funcionários da Funasa, o corte das cestas básicas refletiu imediatamente no aumento dos casos de desnutrição infantil. Enfim, são inúmeros os casos de violência contra os povos das florestas e no meio dele milhares de crianças e adolescentes. O governo brasileiro não toma uma atitude positiva em relação à questão deixando que a contradição entre a lei e a realidade se perpetue. Por seu turno os estados e municípios não se planejam para prestar a devida assistência a estes povos, em especial os indígenas, como se não fôssemos todos cidadãos brasileiros. Denúncias de casos de mortalidade infantil ocorreram nos estados do Amazonas, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Tocantins (povos Pirahã, Kanamari, Kulina e Tikuna). As doenças foram desidratação, complicações do parto, pneumonia, tuberculose, hepatite, gastroenterite e hidrocefalia e, segundo as denúncias, houve falta de atendimento a essas crianças, com descaso por parte da Funasa. No Mato Grosso do Sul (povo atingido Guarani-Kaiowá) as denúncias se referem a 8 crianças, têm como causa a desnutrição, quase todas eram recém-nascidas ou chegavam a dois anos de idade. Segundo as denúncias e avaliações de funcionários da Funasa, o pano de fundo dessas mortes e da desnutrição está na miséria, falta de terra, trabalho e de sustentabilidade nas comunidades Guarani-Kaiowá. Todas as crianças morreram internadas em hospitais do Mato Grosso do Sul. Segundo as denúncias, não existe transporte, tanto para levar as equipes médicas às aldeias, como para transportar os doentes aos hospitais e postos de saúde. No Tocantins, o povo atingido foi o Apinayé. As denúncias se referem às mortes de 3 bebês, com os sintomas de vômito, diarréia e desnutrição. Segundo estas denúncias, nas aldeias Apinayé as condições de higiene são muito precárias, sendo que adultos, crianças e animais convivem no mesmo ambiente, bebendo e utilizando água dos mesmos córregos, para todas as atividades da comunidade. ESFORÇO Alcançar o objetivo da Recomendação 41 do Comitê ao Estado brasileiro exige um esforço integrado dos três níveis de governo e dos poderes legislativo e judiciário principalmente. É tarefa para diversos setores das políticas públicas considerando a dinâmica e dimensões da violência. Como visto nos dados sobre mortes de crianças e adolescentes, observa-se que os nossos jovens são as maiores vítimas de mortes por arma de fogo, nossas crianças indígenas estão morrendo de desnutrição e por trás desses números muita miséria, negligencia e descaso dos 60 governos nos mais diversos níveis com relação ao respeito aos direitos humanos. Isto se agrava principalmente quando a vítima é pobre, de cor da pele não branca, e moradora de favelas ou outros assentamentos humanos (aldeias, assentamentos de sem terra). O Governo brasileiro na esfera federal afirma que desde 1999 vem enfrentando a situação dos homicídios contra crianças e adolescentes apoiando ações de prevenção dos casos de violência letal contra crianças e adolescentes. Desde então foram implantados os Programas de Proteção à Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte e outras de prevenção. A partir do ano de 2003 foi previsto recurso no orçamento para a implantação do Programa naqueles estados com as maiores taxas de homicídios contra crianças e adolescentes e em 2007 foi lançado o Programa Nacional de Segurança Publica com Cidadania, mas ainda há muito que ser feito para a efetiva proteção. Ao longo dos últimos anos, alguns governos estaduais a partir de políticas de fomento na área de segurança pública do nível federal implementaram programas sociais de atenção à violência letal como, por exemplo, o estado de Minas Gerais com o Programa Fique Vivo, mas esta iniciativa não foi seguida de forma assimétrica pelas demais unidades da federação. Por sua vez os municípios com os maiores índices de violência, nos quais se observou altas taxas de homicídios, também forma impelidos a pensar estratégias de enfrentamento ao problema. Criaram-se então as secretarias municipais de segurança cidadã em alguns municípios para dar concretude ao limitado papel deste ente na questão da segurança pública. A questão dos homicídios contra crianças e adolescentes tem sido tema de debates atualmente no seio da sociedade civil e do poder público, principalmente quando se trata de pensar ações preventivas contra a vulnerabilidade à violência letal. Nesta direção estão também algumas organizações da sociedade civil que executam programas de proteção à criança e ao adolescente ameaçado de morte, como por exemplo, nos estados do Rio de Janeiro, Pará, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais ou outros projetos de atendimento às situações de violências no Brasil. O Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte Tal programa, criado em 1999 está sob a coordenação da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SPDCA/SEDH-Pr), órgão especial vinculado à Presidência da República. O Programa é executado por governos e organizações da sociedade civil e do governo nos estados do Rio de Janeiro, Pará, São Paulo, Espírito Santo, Distrito Federal, Pernambuco e Minas Gerais. Cada Programa possui uma equipe específica para o atendimento emergencial e de acompanhamento e conta com recursos significativos para diversas despesas com a proteção que vão desde o fornecimento de um vale transporte até mesmo à montagem de uma casa para uma família inteira. As metas estabelecidas são qualitativas e não quantitativas uma vez que o processo de proteção envolve também o acompanhamento psico-social do caso. As maiores dificuldades que os programas encontram está na ausência de comprometimento do poder público estaduais e municipais e do judiciário com a proteção especial. Os primeiros por não assumirem o programa como uma de suas responsabilidades tendo em vista que se trata de proteção especial a crianças e adolescentes. Os segundos por recusarem em muitos casos a transferência de casos entre os municípios sem a carta precatória de um outro juiz com o encaminhamento. Além disto não se tem ainda um sistema de avaliação do impacto do Programa nas diversas unidades da federação onde é executado. Esbarra-se também na dificuldade de inserção social dos atendidos e suas famílias na rede socioassistencial publica e privada. 61 O projeto de lei que trata da sua instituição permanece tramitando no Congresso Nacional sem muita movimentação. Talvez o maior dos obstáculos que o poder judiciário o fato de agentes do estado representarem um número significativo entre os que atentam contra a vida de crianças e adolescentes. Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) O PRONASCI lançado no dia 20 de agosto de 2007 pretende articular programas de segurança pública com políticas sociais já desenvolvidas pelo governo federal, sem abrir mão das estratégias de controle e repressão qualificada à criminalidade. A novidade, segundo o governo federal, é que essa é a primeira vez que se associa segurança pública e políticas sociais. Estruturado em 94 ações, o PRONASCI dialoga pouco com a atividade policial direta. De acordo com organizações de direitos humanos no documento de recomendações ao relator da Onu Philip Alston tal programa foi concebido às pressas, basicamente no âmbito do Ministério da Justiça, sem a participação expressiva de outros Ministérios como Desenvolvimento Social, Planejamento ou, até mesmo, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Previsto para ser desenvolvido em 11 regiões metropolitanas (Brasília e entorno; Vitória; Belo Horizonte; São Paulo; Rio de Janeiro; Belém; Recife; Maceió; Salvador; Curitiba; Porto Alegre), escolhidas em função do índice de homicídios, o Pronasci tem como foco a juventude. Para a juventude excluída propõe a inclusão nos diversos programas sociais do governo, em particular os relativos à educação, realização de seminários, formação de multiplicadores em direitos da cidadania, reforma da legislação penal, tratamento diferenciado para os egressos, remição de pena para o jovem apenado que estuda, etc. O programa não apresenta nada de novo nesse quesito, tampouco fixa prazos, metas e orçamento para desenvolvimento dessas atividades. O PRONASCI simplesmente não se manifesta em relação a violência policial. Não há previsão de ações que reduzam o índice de homicídios cometidos por policiais, nem ações que retirem das ruas policiais envolvidos em mortes enquanto transcorrem as investigações. Essa é uma grande defasagem, pois o combate à violência policial e a corrupção deveriam ser eixos centrais do Programa. O contexto das mortes por arma de fogo envolve uma gama de atores e circunstâncias e uma resposta bastante policialesca do Estado marcada pela coerção, pela violência e pela falta de inteligência nas ações de investigação. Neste campo é o Estado quem mais mata. A polícia brasileira é conhecida como a que mais mata em todo o mundo. Sob o argumento de estar combatendo o crime organizado ou o tráfico de drogas e mantendo assim a ordem urbana a polícia brasileira em alguns estados tem ordem expressa para matar. Para a Anistia Internacional as ações dos governos federal e estaduais em resposta à atuação do crime organizado em áreas de comunidades carentes foram classificadas de "confusas". Segundo o documento, embora o governo federal tenha lançado iniciativas voltadas à prevenção do crime, como o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), que destina recursos à área da segurança pública, ainda se verificam "métodos violentos, discriminatórios e corruptos no combate ao crime", principalmente no Rio de Janeiro. Para reverter o quadro marcado pelo elevado número de mortes durante operações policiais, o pesquisador da Anistia Internacional sobre temas relacionados ao Brasil, Tim Cahill defende 62 uma política de segurança de longo prazo, baseada em uma atuação direcionada às necessidades de cada comunidade, aliada a investimentos sociais: "Se os governos estadual [do Rio] e federal não fizerem um plano de longo prazo baseado num policiamento que trabalha as necessidades dessas comunidades, direcionado aos locais onde os focos de crimes existem, vamos continuar tendo crimes violentos. Precisamos ter uma política que traga segurança verdadeira para essas populações, combinando investimento social e reforma concreta da estrutura do policiamento". Conclui sua entrevista afirmando que: "Reconhecemos que a polícia tem um trabalho muito difícil e que muitos perdem suas vidas na defesa dos direitos humanos, mas há uma falta de pensamento estratégico no nível superior e a presença de alguns maus policiais que reduzem a eficácia e a credibilidade da atividade da polícia", concluiu. No referido levantamento o Brasil também aparece como país em que o sistema judicial é ineficaz e lento. "A extrema lentidão e a ineficácia do sistema judicial reforçaram a impunidade para violações dos direitos humanos", diz o "Informe 2007 (...) Há informações de que as decisões judiciais teriam sido discriminatórias em alguns casos; em outros, as pessoas enfrentaram acusações criminais que teriam razões políticas". Impunidade No livro Impunidade – até quando a Associação Nacional de Centros de Defesa já apontava também os gargalos do sistema de apuração e investigação dos crimes contra crianças e adolescentes apontando algumas falhas como, por exemplo, o comprometimento dos agentes do estado com as circunstâncias que levaram à morte da criança ou do adolescente, erros cometidos no momento da apuração do homicídio, erros de interpretação do Ministério Público e por fim do judiciário. A prática dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECAs) vem, ao longo de alguns anos, identificando questões com forte ênfase na manutenção da impunidade e que podem ser itemizadas da seguinte forma: a) Polícia investigativa e violência policial – Observa-se que de determinado número de boletins de ocorrência somente uma pequena parte se transforma em inquérito policial, parte menor ainda é denunciada pelo Ministério Público e, finalmente, um mínimo caso resulta em condenação. E é a falta de provas o fator que mais contribui para que estas denuncias não se transformem em processo criminal, que decorre da ineficiência da própria polícia que não realiza os exames necessários à caracterização do delito. Isto ocorre por ausência de pessoal, material e instrumentos de trabalho mas também do comprometimento dos agentes no crime. b) Ministério Público – É hoje o setor mais moroso na aplicação da Lei 8069/90. A ANCED denuncia que as falhas na interpretação da lei em decorrência do desconhecimento por parte dos operadores dos princípios que orientam o Estatuto da Criança e do Adolescente; as falhas de análise dos inquéritos policiais. 63 c) Poder judiciário – O judiciário tem sido alvo de constantes denúncias de envolvimento com práticas criminosas durante o julgamento do processo concorrendo assim positivamente para a existência e permanência da impunidade. Trata de forma desigual à sociedade e assim impossibilita a efetivação dos direitos. Estes problemas são apontados também por numerosos organismos como a ONU através dos Relatores Especiais sobre Execuções Sumárias, Extrajudiciais e Arbitrárias, Asma Jahangir. A Relatora Especial afirmou que o fato de apenas 7.8 % dos homicídios cometidos anualmente no Brasil serem investigados e processados com sucesso “revelam a falha do Estado em exercer a devida diligência na realização de justiça”. A Relatora Especial expressou sua preocupação “de que esta situação permite que perpetradores [de homicídios] continuem a cometer graves violações de direitos humanos, incluindo execuções extrajudiciais, sabendo que seus crimes não resultarão em investigações ou processamento criminais”. Neste sentido, também é ilustrativo o último Relatório do atual Relator Especial da ONU sobre Execuções Sumárias, Extrajudiciais e Arbitrárias, Philip Alston, para quem “a maioria das recomendações não foram implementadas. A impunidade continua a ser a regra no Brasil, com poucas execuções extrajudiciais sendo efetivamente investigadas e julgadas. A violência policial continua sistemática e generalizada, afetando desproporcionalmente os elementos mais vulneráveis da população”. Os registros administrativos Os problemas com os registros administrativos acerca do óbito por sua vez também compõem este cenário. O homicídio como indicador de violência apresenta ótimas características tais como: • é um dos menos propensos a sub-registros; • o mais expressivos quando se fala de violência; • existem mais informações “confiáveis” para todo o Brasil, em diversas unidades no SIM/DATASUS; • segue um padrão internacional, CID (dentro dessa classificação encontram-se as mortes atribuídas a causas externas, entre essas os homicídios) Contudo são significativos os problemas atribuídos aos registros administrativos no Brasil que informa sobre a violência e que poderiam ajudar a contextualizar os homicídios, como por exemplo: • ainda não se tem dados confiáveis sobre quem mata e quem morre no Brasil; • instituições que possuem bases atualizadas, não as disponibilizam para análises de outros grupos da sociedade civil; • com exceção do SIM, as instituições de segurança do país não seguem um padrão de coleta e processamento nacional; • nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, apenas 60% dos municípios informam regularmente os óbitos registrados. Os autores do "Mapa da Violência", por exemplo afirmam que os dados sobre homicídios no 64 Brasil não refletem a realidade dos assassinatos no país. O problema ocorre em decorrência de uma falha no sistema de informação dos Institutos Médicos Legais. Muitas mortes são lançadas no sistema como "intenção indeterminada", uma espécie de limbo estatístico que não define o que é homicídio, acidente ou suicídio. Na dúvida, o IML simplesmente lança como caso não esclarecido. É evidente que em muitos casos, quando o óbito é registrado, não é possível identificar a causa. A questão é que nem sempre, após a investigação policial, o dado é atualizado. Além disso, há situações em não classificam a morte como afirmam considerar aceitável mortes por causa externa. No que, apesar das evidências, peritos e policiais deliberadamente homicídio com a intenção de maquiar estatísticas. Pesquisadores um índice de "intenção indeterminada" de até 5% do total de Brasil, desde 1996, ele nunca foi inferior a 8%. Como é um problema histórico da estatística nacional, essa distorção não afeta a conclusão de que o número de homicídios no país está em queda. Mas a proporção da redução pode ser menor do que a apontada pelo "Mapa da Violência". Além disso, pode ocasionar mudanças no ranking por 100 mil habitantes de municípios e Estados violentos. "Isso está maquiando toda a evolução. Talvez venha caindo mesmo o número de homicídios, mas a proporção de registros com intenção indeterminada é muito grande para afirmar que a queda é tão grande assim" (Ana Maria Nogales Vasconcelos, demógrafa, estatística e coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais da UnB Universidade de Brasília). Em 2005, último dado disponível pelo sistema Datasus, o Brasil teve 127.633 mortes por causa externa -homicídios, suicídios, afogamentos, acidentes de trânsito e complicações cirúrgicas. Desse total, 11.269 -8,83% do total- foram classificadas como "eventos cuja intenção é indeterminada", ou seja, o IML90 não informou se foi suicídio, homicídio ou acidente. No mesmo ano, foram registrados 47.578 homicídios. Esse dado mal registrado impede que o país e os próprios órgãos de segurança municipais e estaduais tenham a exata dimensão da violência em suas cidades. AMBIENTE O ambiente em torno da questão dos homicídios contra crianças e adolescentes é caracterizado pela existência de um debate maior sobre as suas dimensões e circunstâncias. Contudo quando se trata de homicídios cometidos durante ações de combate ao crime organizado empreendidas pela polícia, em comunidades carentes e favelas, a coerção e a violência estão presentes. Há claramente uma diferenciação da forma como a polícia entra em comunidades carentes e na Zona Sul. Por conseguinte há um clamor popular maior uma criança ou adolescente da Zona Sul ou de classe média é atingida por um disparo proferido pela arma de um policial durante uma incursão. Parece que estes fatores impulsionam muito mais o sistema de apuração e investigação do que as centenas de mortes dos filhos das classes sociais menos favorecidas. A morte de uma criança ou adolescente de classe alta estampa a mídia por mais tempo e cega a influenciar o congresso impelido a debater sobre o assunto e a mídia. O paradigma retributivo que caracteriza a justiça no Brasil contribui para reforçar este cenário. A opinião da sociedade é ditada pelo que é registrado e pelo que é visto na mídia. Desta forma vai se formando uma idéia homogênea de que as centenas de adolescentes mortos em 90 Os IMLs, responsáveis pelo preenchimento do formulário denominado Declaração de Óbito, são órgãos ligados aos governos estaduais, que têm a função constitucional de cuidar da segurança pública. 65 confrontos policiais não teriam outro destino senão este. O caso do Rio de Janeiro No Rio de Janeiro, por exemplo, o relatório da Anistia Internacional aponta, com base em dados oficiais, que a polícia matou pelo menos 1.260 pessoas no Rio em 2007 - o maior número já verificado no estado. Para o pesquisador da Anistia Internacional sobre temas relacionados ao Brasil, Tim Cahill, é preciso que as promessas que envolvem os programas lançados pelos governos sejam concretizadas: "Temos notado que o governo federal tem aumentado a visibilidade de suas preocupações, mas as promessas em relação às reformas, também anunciadas pelo governo do estado do Rio durante as eleições, não se concretizam para as pessoas que estão vivendo nessas comunidades [carentes]. Há esse grande espaço entre as promessas e a realidade e isso é um grande problema". (entrevista por telefone à Agência Brasil). Philip Alston, relator da ONU para Execuções Sumárias, Extrajudiciais e Arbitrárias, Philip Alston dedicou atenção especial ao Rio de Janeiro em suas declarações e no seu relatório durante e após sua visita ao Brasil: "Deixemos de lado por um momento o fato de que nenhum Governo pode se engajar em matanças ilegais, mesmo em nome de assegurar os direitos humanos e de proteger inocentes. A questão real seria então se essas mortes atingiram seus objetivos declarados ou se, essencialmente, mascaram a falência do Governo no controle do crime. A polícia do Rio matou 25% pessoas a mais em 2007 do que em 2006; quase todas estas mortes foram definidas como ‘autos de resistência’, classificação que dá à polícia carta-branca para matar e se beneficiar de ampla impunidade. Essa elevação dramática de mortes em 2007 foi acompanhada por uma redução de 5,7% na apreensão de drogas, redução de 16,9% no número de armas confiscadas e diminuição de 13,2% no número de prisões realizadas." "Em outras palavras, os cidadãos do Rio estão menos seguros, espectadores inocentes são feridos ou mortos em ‘confrontos’ com a polícia, a polícia tem falhado em ‘tomar de volta’ as favelas das gangues, o número de criminosos presos caiu e a quantidade de armas e drogas apreendidas diminui. Resumindo, a estratégia baseada na ação estatal de mortes extrajudiciais falhou totalmente de todos os pontos de vista." O relator se refere à opção política dos governos do Rio de Janeiro ao longo dos últimos anos no enfrentamento à criminalidade que está direcionada para um determinado segmento social. Há alguns anos os diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil que atuam na luta pelos direitos humanos têm identificado em práticas do estado brasileiro uma gestão violenta sobre as populações das comunidades populares. Tal projeto de tratamento penal da miséria, levado a cabo por instituições e agentes do poder estatal, vem se intensificando nos últimos anos num ritmo alarmante. A partir de uma cartografia da violência institucional do Estado brasileiro, vemos que o valor da vida e da dignidade de uma determinada parcela dos cidadãos (que podem ser recortados por sua etnia, faixa etária, classe social e geografia urbana ou rural) está se tornando "descartável" pelas estratégias gerais das políticas governamentais do país. 66 Hoje o Brasil lidera o ranking mundial nos índices de homicídio de jovens devido a armas de fogo, o Rio de Janeiro abriga a polícia que mais mata no mundo, há inúmeras denúncias de práticas regulares de tortura tanto no sistema prisional quanto no sistema sócio-educativo, e cada vez mais o regime político brasileiro desenvolve e aprimora um projeto militarizado de segurança pública. Mais recentemente, o então Secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Fernando Corrêa, em referência ao atual modelo de política criminal adotado no Rio de Janeiro, declarou que “os mortos e os feridos geram um desconforto, mas não tem outra maneira”. No plano da racionalidade governamental do Estado do Rio de Janeiro atualmente impera o uso oficial de um discurso que prega a necessidade de proteção da sociedade em situação de guerra. Tal ótica militarizada se baliza na demonização das áreas pobres da cidade e na glorificação do combate armado contra o atual “inimigo público” do Estado - o tráfico de drogas. O atual governo do Rio de Janeiro, sob o comando de Sérgio Cabral Filho, tem perpetuado e até mesmo ampliado a militarização do modelo de segurança pública no Rio de Janeiro. O próprio governador, em entrevista aos meios de comunicação defendeu o aborto como combate à criminalidade. De acordo com suas palavras: “A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência. Quem diz isso não sou eu, são os autores do livro "Freakonomics" [Steven Levitt e Stephen J. Dubner]. Eles mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela Suprema Corte", citou [na verdade, foi em 1973]” E complementa: “Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta”. Essa declaração por parte do governador do estado é a explicitação do processo de criminalização da pobreza no Rio de Janeiro que vem legitimando a atual intensificação das estratégias de militarização das ações policiais nos bairros pobres do estado. Na mesma linha, o Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, em declarações a imprensa afirmou que “tiro em Copacabana é uma coisa” e, no Alemão, "é outra" e ainda “Um tiro na [favela da] Coréia, no complexo do Alemão [nas zonas oeste e norte, respectivamente], é outra". O secretário disse ainda, que a aproximação entre as favelas e as "janelas da classe média" não vai evitar que a polícia realize operações nesses locais, mas será necessário "ter uma análise de critério muito grande". As incursões violentas da polícia nas comunidades pobres do Rio de Janeiro têm apresentado um aumento significativo no que diz respeito à letalidade. A atual política de segurança pública vem produzindo muito mais “inimigos mortos” do que orientando suas operações para a defesa da vida dos cidadãos. Alguns casos exemplares Os CEDECAs ao longo dos últimos anos vem atuando fortemente em ações de enfrentamento à violência letal contra crianças e adolescentes. Dessa experiência decorreu a legitimidade para 67 falar em nome dos muitos meninos e meninas mortos por ação ou omissão do Estado brasileiro. Seguem alguns casos selecionados no período de estatísticos apresentados nos capítulos anteriores. 2007 a 2008 que ilustram os dados Tais casos foram selecionados dentre algumas notícias de jornal que noticiaram caos de homicídios contra crianças e adolescentes. Homicídios motivados pelas mais diversas razões, como por exemplo: disputas entre grupos rivais de tráfico de drogas; queima de arquivo; execução sumária praticada por traficantes de drogas e gangues; passionais; acompanhado de violência sexual; etc. Esta síntese de 51 casos revela a idade das vítimas e as circunstâncias nas quais a morte ocorreu. CASO DATA O Liberal Belem (PA) "Adolescente levou um tiro durante assalto. Gilberto cursava o convênio no colégio Universo e iria prestar vestibular para o curso de Medicina". 06 de Julho de 2008 Zero Hora on line Alvorada (RS) "Adolescente morto por tiros durante uma festa julina". Ezequiel Cirino da Silva, 16 03 de Julho de 2008 O Norte - on line PB "Adolescente assassinado com um tiro de espingarda calibre 12 na cabeça" Alberes da Silva De lgado, 17 30 de Junho de 2008 Folha de Pernambuco PE "Adolescente assassinado com três tiros, um no dedo, outro no pescoço e o que atingiu a cabeça - o fatal. adolescente vendia drogas". 28 de Junho de 2008 O Liberal Guamá (PA) Adolescente executado com um tiro na nuca durante um acerto de contas ". • Gilberto Felipe Bar bosa Neto, 17 07 de Julho de 2008 • Filipe de Oliveir a, 15 • • • CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE Marapanim (PA) Lindisnei Silva do Vale, 13 • LOCAL: Estado e Município do Homicídio "A adolescente foi violentada sexualmente e assassinada. Principal suspeita é o excompanheiro da mãe ". • • VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Paulo Eduardo Panto ja Lopes, 17 Anderson dos Reis C ampos Silva, 17 Edvaldo dos Santos Albuquerq 11 de Julho de 2008 27 de Junho de 2008 26 de Junho de 2008 O Liberal O Liberal Belem (PA) Folha de Pernambuco Olinda (PE) "Adolescente morto numa troca de tiros com policiais. adolescente fugia de policiais durante assalto". "Cerca de oito homens invadiram uma residencia e atiraram num adolescente que foi morto por tiros no 68 CASO ue, 17 DATA VEÍCULO DE INFORMAÇÃO LOCAL: Estado e Município do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE rosto e no peito. O crime tem características de execução, o jovem estava sendo ameaçado de morte." 69 CASO • • • • • • Danilo dos Santos, 17 Anderso n Bezerra Nunes, 16 DATA 26 de Junho de 2008 16 de junho de 2008 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Diário de Cuiabá Verdesmares.com. br LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio Várzea Grande (MT) "Assassinado com dois tiros na cabeça. a vítima teve passagem na Delegacia Especializada do Adolescente (DEA) de Várzea Grande por tentativa de homicídio" CE "Executado com vários tiros à queima-roupa (...) A. estava na calçada de um estabelecimento comercial quando um carro com três homens parou na rua. Um dos passageiros desceu e disparou 3 tiros contra a cabeça do jovem, que morreu na hora" Carlos Maurício Amorim da Silva, 17 20 de Junho de 2008 O Liberal Belem (PA) Marcos Paulo Rodrig ues Campos, 17 19 de Junho de 2008 Folha de São Paulo Rio de Janeiro (RJ) Soraya Barbosa Marinho, 15 18 de Junho de 2008 Lívia Martins, 12 15 de Junho de 2008 O Liberal Campo Grande News CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE "Executado por cinco homens que invadiram a residência da mãe. A vítima possuía várias passagens pela Polícia e chegou a ser preso em um centro de recuperação acusado de um homicídio cometido no ano passado." "Jovens do Morro da Previdência são entregues a traficantes no do Morro da Mineira pela Polícia Militar e lá são torturados e assassinados com 46 tiros." Belem (PA) "Morta por uma colega de classe com dois golpes de faca de cozinha. O crime aconteceu na escola onde as jovens estudavam, a agressora já teve passagem pela polícia." MS "Índia de apenas 12 anos é espancada e morta em Amambai. A menina estaria jurada de morte por denunciar o uso de drogas na aldeia." 70 CASO • • • • • Francisco de Assis Oliveira, 17 Luiz André Mach ado, 13 Juliana da Silva Sa ntos, 16 Cosme Lourenço Bezerra, 7 Salatiel Lídio dos Santos, 17 DATA 13 de Junho de 2008 11 de Junho de 2008 10 de junho de 2008 10 de junho de 2008 07 de Julho de 2008 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Diário do Nordeste Diário Catarinense No Minuto.com Diário do Nordeste Folha de Pernambuco LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE Caucaia (CE) "Executado com um tiro no ouvido. Adolescente de 17 anos, com passagens pela Polícia, foi morto a tiros, num suposto crime ligado à dívida de drogas (...) Segundo os familiares, há sete meses, o rapaz estava trabalhando e não tinha mais envolvimento com o crime". Palhoça (SC) "Espancado e enforcado em uma árvore no Bairro Brejaru, em Palhoça (SC) (...) O corpo apresentava sinais de agressões nas mãos, braços, costas e rosto. As investigações revelaram que a vítima estava envolvida com furtos." RN "Assassinada com um tiro no olho esquerdo no início da tarde desta segunda-feira (9) pelo próprio marido. O crime foi cometido no quarto do casal, em uma casa no Arenã, distrito de São José de Mipibu (RN). A vítima era estdudante". CE "Estrangulado pela própria mãe que, em seguida, atirou o corpo num cacimbão no quintal de sua casa. A mãe disse que matou o garoto depois que este lhe 'fez raiva'. Ela teria mandado o filho ir apanhar lenha no mato e ele lhe desobedeceu". PE "Assassinado com vários tiros de revólver calibre 38 na cabeça (...) Dois homens abordaram Salatiel quando ele estava saindo de casa. Exinterno da Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (Fundac), estava em liberdade há cerca de seis meses". 71 CASO • • • • • DATA Ana Paula Cardoso de Oliveira, 13 22 de Maio de 2008 João Bezerra dos Santos Neto, 14 09 de Maio de 2008 Ana Alice Perpétu o Costa, 3 meses José Rodolfo Amo rim Fernand es, 16 Andryo de Souza Damázio , 16 04 de maio de 2008 03 de maio de 2008 24 de abril de 2008 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Nominuto.com Folha de Pernambuco Folha on Line O Liberal Folha de Pernambuco LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE RN "Morta com um tiro na cabeça na Vila de Ponta Negra. Ana Paula Cardoso de Oliveira pode ter sido morta por um namorado dela." PE "Morto com um tiro no tórax numa troca de tiros entre uma equipe do Batalhão de Polícia da Radiopatrulha (BPRp) e três bandidos". BH "Uma menina de três meses morreu afogada após ter sido atirada pela mãe em um rio no município de Ponte Nova (179 km de Belo Horizonte), na tarde de ontem. Segundo relato de testemunhas à Polícia Militar, a mãe jogou a menina e logo depois pulou no rio". Marituba (PA) "Executado com dois tiros. A Polícia credita a morte a 'acerto de contas' entre bandidos. A vítima, J.R.A. de 16 anos, tinha ligações com traficantes e foi baleado duas vezes." PE "Em menos de 24h uma criança de 8 anos e um adolescente de 16 foram mortos por disparo acidental de arma de fogo, provocados por outros dois jovens, dentro da própria residência." 72 CASO • Kleberson de Souza, 17 DATA 24 de abril de 2008 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO O Liberal (PA) • Igor Mathias, 8 28 de abril de 2008 Terra Notícias • Valdemar Martins, 13 21 de abril de 2008 Campo Grande News (MS) LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE Belem (PA) "Adolescente executado a tiros na Cremação. Vítima era suspeita de ter participado do assassinato de tenente bombeiro. De acordo com informações, o adolescente também tinha envolvimento com o tráfico de drogas. A família do rapaz não falou oficialmente com a imprensa, mas nega todas as acusações". "Morto por esganadura, em Limeira, pela mãe, que fugiu (...) Viúva e mãe do único filho, ela deixou cinco cartas manuscritas explicando que iria se matar, pois estava 'muito pertubada e deprimida." MS • Maira Kurz Scherd ien, 14 24 de abril de 2008 Zero Hora (RS) RS • Yuri Carlos Costa A lves, 11 23 de Abril de 2008 O Liberal (PA) Ananindeua (PA) "Morto por asfixia. O principal suspeito é o namorado da mãe" "Morta ao se recusar a fazer sexo com R.C.B, 36 (...) R. explicou que morava próximo à casa onde a vítima residia com os pais e que costumava pagar para ela fazer serviços de limpeza e capina em sua propriedade. Disse que, no dia do crime, tentou praticar relações sexuais com a adolescente. Com a negativa, acabou estrangulando-a e batendo com a cabeça dela em uma pedra" "assassinado com uma corda de nylon pelo padrasto (...), que foi preso em flagrante na terça-feira à noite e confessou com detalhes o plano por ele traçado para eliminar a criança, a forma que encontrou para se vingar da mãe da criança após a separação do casal". 73 CASO • • • • • Pethrus Augusto Maia Orosco, 4 Jefferson dos Santos Alves, 11 Bismarque Ribeiro Oliveira, 17 Maria Eduarda da Silva do Carmo, 1 Gustavo Rodrigues de Lima da Silva, 16 DATA 22 de abril de 2008 22 de abril de 2008 13 de abril de 2008 29 de março de 2008 19 de março de 2008 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO O Liberal Folha de São Paulo Jornal A Tarde Folha on line Folha de São Paulo LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio Bragança (PA) SP Jequié (BA) CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE "Raptado e assassinado (...) A Polícia suspeita que P. foi vítima de abusos sexuais antes de ser morto, possivelmente por asfixia (...) O principal suspeito de ter matado Pethrus é o exoficial de justiça A.S.B.S, de 47 anos" "Assassinado com um tiro na cabeça na favela da Vila União, Segundo a família, um desconhecido chamou a criança na porta de casa e pediu para que ela o acompanhasse. A vítima saiu e andou cerca de dez metros até o local do crime: um barraco vazio em um beco (...) Jefferson havia acabado de tomar banho e se preparava para dormir." "Executado pela polícia militar em Jequié, município do sudoeste do Estado, a 359 km de Salvador (...) se envolveu numa briga e os vizinhos chamaram a polícia. (...) Houve perseguição da polícia, que veio pela frente da residência .(...) Mandaram abrir a porta (...) colocaram Bismarque no chão e deram três tiros." Guapimirim (RJ); "Vítima de maus-tratos e espancamento (...) foi encontrada pela Polícia Militar e levada ao hospital da cidade, mas não resistiu aos ferimentos e morreu. Moradores que estavam no momento acusaram o suposto padrasto da vítima de ser o responsável pelo crime." SP "Encontrado morto com um tiro no peito próximo ao estádio do Morumbi (zona oeste de São Paulo) anteontem. Ele era filho de um policial civil e vestia uma camiseta de uma torcida organizada do time do São Paulo. A polícia investiga se o crime está relacionado a brigas de torcidas organizadas." 74 CASO DATA VEÍCULO DE INFORMAÇÃO LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio • Mariana Almeida Andrade, 16 20 de março de 2008 Jornal NH on line RS • Marcelo Vinícius Silva Santos, 17 15 de março de 2008 Folha de São Paulo SP • Ezequiel Oliveira Gomes, 7 06 de março de 2008 Campo Grande News Aldeia Jaguapiru (MS) • Ágata Marques dos Santos, 11 16 de fevereiro de 2008 Folha de São Paulo SP • Renato Santos Cândido, 16 31 de janeiro de 2008 UOL - Últimas Notícias SP CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE "Estrangulada por seu exnamorado, um jovem de 17 anos (...) o jovem descobriu que Mariana estava grávida dele de três meses. No entanto, ele não queria que a garota tivesse o filho porque já mantinha relacionamento com outra moça e exigiu que ela fizesse o aborto. Diante da recusa, o namorado acabou matando M." "M.V.S.S, 17, B.S, 16 e É.S.A., 19, (...) assassinados a tiros, no início da madrugada desta sexta-feira, no bairro de Chácara Santa Cecília, em Itapevi, região oeste da Grande São Paulo (...) a 10ª chacina do ano no Estado de São Paulo (...)" "Ezequiel Oliveira Gomes, 7 (...) morreu ontem à noite em Dourados após ter sido espancado, há cerca de uma semana, na saída da escola da aldeia Jaguapiru (...) foi atacado por cerca de quatro adolescentes também indígenas (...) levou diversos chutes na barriga e chegou em casa com hemorragia" "Ágata Marques dos Santos. 11 (...) morreu depois de levar um tiro durante incursão da Polícia Civil do Rio na favela da Rocinha. O pai de Ágata Marques dos Santos, atingida no ombro quando estava na janela de sua casa, acusou policiais da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) da Polícia Civil de fazerem os disparos. A Core nega." "Renato Santos Cândido, 16, Josias Soares Mariano, 18, e Aline Cruz Barbosa da Cruz dos Santos, 18 (...) executados a tiros (...) Chacinas deixam oito mortos em menos de 48 horas no Estado de SP (...) 18 pessoas já morreram em chacinas neste ano no Estado" 75 CASO • • Taciana Conceição Rodrigues, 17 Denis Henrique Francisco dos Santos, 13 DATA 16 de janeiro de 2008 15 de janeiro de 2008 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Folha de Pernambuco Extra on line LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE PE Taciana Conceição Rodrigues, 17 (...)encontrada com a cabeça enfiada no manguezal .... antes de ser assassinada a tiros, ela foi violentada sexualmente procura por ela foi iniciada na última quinta-feira, com a prisão do mecânico Bruno de Cássio Muniz do Nascimento, o Pé de Pato, de 18 anos. Com ele, a polícia encontrou dez pedras de crack, além de R$ 5 e um aparelho celular. Durante as ouvidas do homem, ele confirmou que a jovem cujo desaparecimento foi denunciado pelos pais, tinha sido assassinada pela quadrilha de que fazia parte, já a algum tempo PE "Denis Henrique Francisco dos Santos, 13 (...) morto a golpes de cassetete por policiais militares no Recife (...) Segundo testemunhas, Denis Henrique Francisco dos Santos, de 13 anos, acabou sendo agredido por policiais que tentavam conter uma briga num bloco de carnaval no bairro de Cordeiro no domingo (13). A irmã de Denis, Ana Cláudia Galdino dos Santos, disse que o menino não estava envolvido na briga, mas começou a apanhar, porque estava perto da confusão. (...) Quando perceberam que Denis estava muito machucado, os policiais deixaram o local sem prestar socorro, de acordo com a família. 'Eu fiquei gritando: 'vocês mataram meu irmão', disse a irmã de Denis, Ana Cláudia Galdino dos Santos. 'Meu irmão chegou a gritar várias vezes que não tinha nada a ver com aquilo, mas só o largaram quando ele estava desacordado. Ele foi brutalmente assassinado, e era uma criança. Espero que isso não fique impune' (...) A família de Denis terá acompanhamento jurídico do Centro Dom Hélder Câmara (Cendhec)" 76 CASO • Dejair Santana de Jesus, 16 DATA 15 de janeiro de 2008 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Bahia Já LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio Salvador (BA) CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE "Dejair Santana de Jesus, 16 (...) levou um tiro nas costas e outro na cabeça, após retornar de uma partida de futebol, na noite da última segunda-feira, 14. Os disparos teriam sido feitos por policiais militares. O adolescente chegou a ser encaminhada para o Hospital Ernesto Simões, no bairro do Pau Miúdo, mas já chegou ao local sem vida (...) o adolescente se defrontou com dois militares na ladeira e retornou correndo. 'Vi ele sendo baleado pelas costas e arrastado', lembrou o rapaz. Vários vizinhos garantem ter ouvido o menino gritando pela mãe. 'Baleado, ele foi levado à entrada da comunidade, onde foi executado com outro tiro na cabeça', relatou outro morador (...) A mãe de Dejair: '(...) Uma pessoa me contou que Djair foi arrastado até a entrada. Chorava e me chamava (lágrimas). Depois foi baleado na cabeça e levado na viatura a um hospital." 77 CASO • • • Wesley Damião da Silva Saturnin o Barreto , 3 Andreu Luis Silva de Carvalho , 17 Leonard o Daniel Sales de Lima, 13 DATA 12 de janeiro de 2008 03 de janeiro de 2008 10 de dezembro de 2007 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Folha de São Paulo JB On Line Nominuto.com (RN) LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE SP "Sete pessoas morreram, entre elas uma criança de 3 anos, durante ação da Polícia Militar com apoio do Bope (Batalhão de Operações Especiais), anteontem, na favela do Jacarezinho, zona norte da cidade Wesley, 3, (...) atingido no tórax, ombro e braço esquerdos durante ação da Polícia Militar. Morreu ao chegar ao hospital Salgado Filho, no Méier (...) Wesley voltava do supermercado com a mãe, que levava no colo o outro filho, de seis meses (...) Wesley começaria a freqüentar a escola na próxima segunda-feira. Sua avó, a diarista Helena Damião da Silva, 38, contou que ele estava eufórico." RJ "Assassinado dentro do Departamento de Ações Socioeducativas (Degase), possivelmente durante o réveillon (...) 'Quebraram o pescoço dele, arrebentaram a cabeça e deram até facada (...) Eles tiraram meu neto da cela e o mataram a pauladas..." gritava, aos prantos, Julia Modesto da Silva, avó do rapaz (...) Chegamos lá e uma assistente social, uma psicóloga e um médico disseram que ele havia sido morto por outros internos(...)' afirma Iara, tia do Andreu. 'Nós não acreditamos, os agentes de lá tinham raiva dele porque ele denunciou maus tratos ao juiz na última vez que esteve lá' Natal (RN) "Alvejado com vários disparos de arma de fogo no loteamento José Sarney (...) O primeiro foi alvejado com vários disparos de arma de fogo no loteamento José Sarney. A suspeita é que ele tenha morto por estar envolvido com gangues de torcidas organizadas." 78 CASO • • • Fabiana Santos Mont eiro, 11 Carlos Rodrigu es Júnior, 15 Lucas Curys de Paiva, 12 DATA 16 de dezembro de 2007 16 de dezembro de 2007 06 de novembro de 2007 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO UOL - últimas notícias G.1 - Globo.com Comuniweb LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE Rio de Janeiro (RJ) "Atingida por uma bala perdida durante uma operação da polícia no Morro do Telégrafo, em Benfica, Zona Norte do Rio (...) Fabiana Santos Monteiro, de 11 anos, estava em casa, quando foi atingida na barriga." Bauru (SP) "Espancado até a morte por seis policiais militares. Os policiais arrombaram o portão e uma janela e, quando sua mãe abriu a porta, invadiram a casa, dirigindo-se ao quarto onde se encontrava o garoto, que foi algemado e agredido, enquanto era chamado de ' vagabundo'. Seis policiais militares foram autuados em flagrante e estão presos por suspeita de espancar até a morte um adolescente de 15 anos em Bauru, cidade a 343 km de São Paulo, na madrugada de sábado (15). Os policiais disseram que o jovem havia roubado uma moto." "Movidos por um ciúme doentio, um adolescente de 17 anos, e a irmã, de 13 anos, mataram o irmão caçula, Lucas Curys de Paiva, 12 anos, no final da tarde de ontem (...) Durante depoimento, o autor disse que levou Lucas ao local do crime, juntamente com a irmã, para pegarem alguns pássaros, e, pouco depois, o matou estrangulado." 79 CASO • • • Paulo Fernando Alves, 17 Leandro Cipriano da Silva, 15 Helen Ferreira Apariz, 17 DATA 15 de novembro de 2007 17 de novembro de 2007 15 de novembro de 2007 VEÍCULO DE INFORMAÇÃO Folha de São Paulo EXTRA ON LINE EXTRA ON LINE LOCAL: Estado e Municipio do Homicídio CIRCUNSTÂNCIAS DA MORTE Abreu e Lima (PE) "Uma nova rebelião em Pernambuco, desta vez em uma unidade de internamento de adolescentes infratores, resultou na morte de um interno, na noite de anteontem, em Abreu e Lima (20 km de Recife). Foi o quarto homicídio nesta semana em rebeliões no Estado. No presídio Aníbal Bruno, em Recife, três presos morreram durante motim que começou domingo e só foi controlado na tarde de terça. Todas as vítimas, segundo o governo, foram mortas pelos rebelados." SP "Leandro Cipriano da Silva, 15 anos, morto por policiais militares durante um falso alarme de roubo à estação Patricarca do metrô, na zona leste de São Paulo (...) foi baleado na boca, entre os lábios e o queixo, no tórax e nas duas coxas." Osasco (SP) "Quatro pessoas morreram e uma foi ferida numa chacina ocorrida na madrugada desta quinta-feira no Jardim Aliança, em Osasco. A chacina ocorreu por volta de 1h40 numa área considerada ponto de usuários de droga. A Polícia Militar informou que três pessoas já estavam mortas quando a viatura chegou ao local. Dois homens foram socorridos ao pronto-socorro, mas apenas um deles sobreviveu e está internado, em estado grave." 80 FONTES UTILIZADAS AGÊNCIA BRASIL. 2007. Especialista diz que Violência em Cidades Menores é Reflexo do Crime Organizado. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/02/27/materia.2007-0227.8987526977/view. Capturado em 17 de abril de 2008. Agencia Brasil. 2007. IBGE mostra que homens jovens são principais vítimas da violência nos centros urbanos http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/12/05/ materia.2007-12-05.1045027516/view. Capturado em 05 de julho de 2008. AGÊNCIA BRASIL. 2007. Maioria dos Homicídios Brasileiros Concentra-Se Em 10% dos Municípios. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/02/27/materia.2007-0227.3497955858/view. Capturado em 18 de abril de 2008. AGÊNCIA BRASIL. 2008. Tortura Policial Ainda é Realidade no http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/04/17/materia.2008-0417.7535526175/view. Capturado em 17 de abril de 2008. Brasil. Fonte: CFP - CFOAB. 2006. Um Retrato das Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei: relatório das visitas realizadas simultaneamente em 22 estados brasileiros e no Distrito Federal, no dia 15 de março de 2006. CIMI – Conselho Indigenista Missionário. 2007. Violência Contra os povos indígenas do Brasil – Relatório 2006 - 2007. CIMI – Conselho Indigenista Missionário. [S/D]. A Violência Contra os povos indígenas do Brasil – Relatório 2003 - 2005. COIMBRA. C.M.B. 2001. A Eficácia da Lei da Tortura: tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Brasília: R.CEJ. nº 14, p. 5-13. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS – CAMARA DOS DEPUTADOS. 2005. Relatório sobre Tortura no Brasil. Brasília. COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA. 2005. Projeto de Lei No 2.654. www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=348350. Capturado em 17 de maio de 2008. JARDON, C. & TOURINHO, G. 2008. 73,3% Dos Homicídios no Brasil Ocorrem em 10% dos Municípios. http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL277701-5598,00DOS+HOMICIDIOS+NO+BRASIL+OCORREM+EM+DOS+MUNICIPIOS.html. Capturado em 18 de abril de 2008. LONGO, C. DA S. 2002. A Punição Corporal Doméstica de Crianças e Adolescentes: O Olhar de Autores de Livros Sobre Educação Familiar no Brasil (1981-2000). São Paulo: Ieditora. MINGARDI. G. 2005. A Investigação de Homicídios: construção de um modelo. São Paulo: SENASP. O POPULAR. 2007 (14/01/2007). PL Estabelece Direito de Crianças e Adolescentes de não Serem Submetidos a Punição Corporal. http://www.redandi.org/verPublicacao.php5?L=ES&id=2994&idpais=9. Capturado em 08 de junho de 2008. 81 REDE NÃO BATA, EDUQUE. [S/D]. A Paz é a Gente Que Faz: e ela começa em casa. http://www.acabarcastigo.org.br. Capturado em 08 de junho de 2008. LYRA, D.A. (org.) et all. 2004. Relatório RIO: violência policial e insegurança pública. Rio de Janeiro: Justiça Global. Centro de Direitos Humanos (CDH). 2005). Tortura de Direitos Humanos. Coleção “Cartilhas Sobre Direitos Humanos”. São Paulo: CDH. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 2007. Relatório Direitos Humanos no Brasil 2007. São Paulo: [S/E]. 82 Tortura A tortura não foi sempre objeto de repúdio na sociedade. Sem necessidade de remontar a épocas muito distantes, podem ser constatados exemplos da tortura como meio legal de prova, visando a busca da verdade no processo ou então como espécie de pena cruel imposta para determinados crimes. Isso sem falar na tortura aceita ou tolerada informalmente pelo Estado e seus agentes, inobstante a imprevisão ou até mesmo proibição legais, que é, sem dúvida e lamentavelmente, uma realidade não só histórica como atual. MARCO LEGAL A prática da tortura que percorre a história do Brasil foi, durante séculos, utilizada como exercício de vingança sobre aqueles que insurgiam contra o poder e a força do rei; motivo porque os suplícios eram públicos. Era aplicada aos índios, negros – que não eram considerados humanos – aos perigosos de todos os segmentos e aos que praticavam crimes de lesa majestade. A ocorrência de casos que envolvem abuso de autoridade e violência, por exemplo, é histórica e tem sido registrada desde o período colonial. Há no país mecanismos de combate à tortura como o Comitê Nacional e o Plano Nacional de Combate. A Constituição Federal é expressa em repudiar a prática da tortura e penas degradantes, desumanas ou cruéis (artigo 5º. III, XLIII e XLVII), bem como em proteger a integridade física e moral do preso (art. 5º., XLIX). Entretanto, quando da promulgação da Carta Magna, nossa legislação ordinária encontrava-se em descompasso com tal preocupação, pois jamais havia sido elaborada qualquer normativa com o fito de proceder a uma definição do crime de tortura. O máximo existente era a menção, em alguns dispositivos legais, da palavra "tortura", prevista, por exemplo, como uma qualificadora no crime de homicídio (art. 121, § 2º., III, CP) ou como agravante genérica (art. 61, II, "d", CP). A própria Constituição Federal, embora mencionando o termo, não chegou a defini-lo, deixando essa missão ao legislador ordinário; procedimento, aliás, estritamente correto sob o aspecto da técnica legislativa. É a Convenção da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, de 10.12.84, que vem, em seu artigo 1º., a conceituar tortura como: "Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência". 83 Segundo a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, são consideradas somente as modalidades ‘Tortura-Prova’, ‘Tortura-Castigo’ e ‘Tortura Discriminatória’. A Convenção Européia para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, em 1º..02.89, apresenta uma série de medidas regulamentadoras da fiscalização entre os Estados Membros com respeito a práticas ilícitas relacionadas com atos de tortura. Assim também o faz a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, datada de 1985 e ratificada pelo Brasil pelo Decreto 98.386, de 09.11.89, trazendo, porém, em seu bojo uma conceituação própria de tortura: "Art. 2º. - Para os efeitos desta convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação ou castigo pessoal, como medida preventiva ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também por tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou psíquica". A Lei 9455, de 07.04.97, define o crime de tortura (e dá outras providências), conforme estabelece sua ementa. Essa lei revogou expressamente o art. 233 do ECA (art. 4º., da Lei 9455/97) e processou à previsão do crime de tortura através do disposto em seu artigo 1º., incisos, alíneas e parágrafos : "Art. 1º. - Constitui crime de tortura: I- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. 84 § 1º. - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança, a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal". A lei também prevê um crime específico para as autoridades que se omitirem diante das práticas acima elencadas (art. 1º., § 2º., da Lei 9455/97), com pena de detenção de um a quatro anos. No entanto, "esse delito, apesar de previsto na Lei 9455/97 não constitui crime de tortura". Segundo o direito penal-constitucional a tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (inciso XLIII, art. 5º , CF), e assemelha-se aos chamados crimes hediondos (Leis 8072/90 e 8930/94). SITUAÇÃO Entre outubro de 2001 e janeiro de 2004, foram recebidas 26.587 ligações pelo disque denúncia e registradas 2.532 alegações de tortura e crimes correlatos no banco de dados do SOS Tortura (Relatório sobre Tortura no Brasil – 2005). As alegações foram recebidas no período de funcionamento do SOS Tortura, entre 31 de outubro de 2001 a 31 de janeiro de 2004, totalizando 1.861 casos de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante, com dados suficientes para encaminhamento, que contam com o monitoramento das entidades filiadas ao MNDH91. Dentre as alegações, que foram recebidas de todos os estados do país, destaca-se o elevado número proveniente dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Pará, Bahia e Rio de Janeiro. ESTADOS QTD SÃO PAULO 306 MINAS GERAIS 283 PARÁ 168 BAHIA 145 RIO DE JANEIRO DISTRITO FEDERAL 96 82 MARANHÃO 74 PERNAMBUCO 72 PARANÁ 71 TOCANTINS 70 GOIÁS 60 CEARÁ 51 91 O Movimento Nacional de Direitos Humanos utilizou os parâmetros da lei brasileira com as seguintes observações: a tortura-castigo muitas vezes vem associada à tortura do encarcerado e a modalidade menos freqüente nas alegações recebidas é a de caráter discriminatório. 85 ESTADOS RIO GRANDE DO NORTE ESPÍRITO SANTO MATO GROSSO DO SUL QTD 41 41 34 RONDÔNIA 34 AMAZONAS 33 PARAÍBA 32 RIO GRANDE DO SUL 32 SANTA CATARINA 30 ALAGOAS 30 MATO GROSSO 28 PIAUÍ 18 SERGIPE 15 ACRE 8 AMAPA 4 RORAIMA 3 TOTAL 1861 Quanto à distribuição do fenômeno da tortura institucional dentro das unidades da federação, observa-se um predomínio de alegações nas cidades do interior (63,28%). Os dados nacionais indicam que menos da metade dos casos de tortura registrados no sistema SOS ocorreram nas capitais do país. A partir dos dados coletados pelo SOS Tortura, como principais motivações para a tortura estão os castigos (38%) - empregados em presos e suspeitos de crimes – e a obtenção de confissão ou informação (33%), que ocorre, em geral, no âmbito das investigações policiais e durante o policiamento ostensivo. Em 12% dos casos comunicados ao SOS tortura, não foi informado o motivo da violência empregada pelo agente do Estado. Em 9% dos casos, a tortura ocorreu com fins de intimidação e 8% tiveram motivos diversos. Com relação aos locais de ocorrência de tortura, de acordo com o banco de dados do SOS Tortura, a maior incidência de práticas de tortura continua sendo nas delegacias de polícia (40%), seguidas pelas unidades prisionais (21%). No que tange aos agentes agressores, o Relatório Sobre Tortura no Brasil (2005) aponta que o perfil dos agentes da tortura institucional também é recorrente. Destacam-se policias militares, seguidos por policiais civis e funcionários de prisão. Esclarecemos aqui policiais que militares às vezes cumprem a função de funcionários de prisão. 86 AGENTE AGRESSOR QUANTIDADE Polícia militar 1177 Polícia civil 1022 Funcionário de prisão 287 Não informado 146 Outros 179 Funcionário de unidade de internação de 52 adolescentes Polícia federal 32 Criminoso 15 Familiar 3 Policial não identificado 1 Outro funcionário 1 Considerando o número total de vítimas de tortura institucional inseridas no sistema durante o período analisado (que é maior do que o total de alegações, já que há diversos casos com mais de uma vítima), o Relatório Sobre Tortura no Brasil (2005) aponta que esta prática afeta principalmente a adultos. Em segundo lugar, aparecem os adolescentes. Quanto ao perfil das vítimas deste tipo de violência institucional, o padrão constatado – vitimização preferencial de homens, jovens, negros, pobres e com baixo nível de escolaridade - se repete. Vítima por Alegação QTD VÍTIMA POR ALEGAÇÃO QUANTIDADE Adulto 1937 Adolescente 288 Não informado 249 Criança 22 Outros 11 Deficiente 12 Gestante 3 UNIDADES DE INTERNAÇÃO No ano de 2006, uma parceria entre o Conselho Federal de Psicologia e a Ordem dos Advogados do Brasil, resultou em uma pesquisa que envolveu visitas simultâneas às Unidades de Internação de Adolescentes em conflito com a Lei, visando verificar as condições de atendimento. Das 30 unidades visitadas pelas equipes, em 17 delas (56,66%) a Comissão da OAB/CFP recebeu reclamações explícitas de espancamentos. Em muitas destas, os integrantes das Comissões puderam observar lesões (hematomas, inchaços, cortes) produzidos pelos 87 espancamentos. Os adolescentes acusaram os educadores sociais ou policiais militares que entram nas Unidades por estes maus-tratos. A tabela abaixo, extraída do Relatório, especifica as Unidades em que os espancamentos foram denunciados. ESTADO São Paulo Rio de Janeiro Minas Gerais Espírito Santo Amazonas UNIDADES FEBEM - Complexo do Tatuapé - UI 14 (Mogno); UI 19 (Araucária) e UI 23 (Rio Grande) Instituto Padre Severino-Unidade de Internação Provisória Centro de Internação de Adolescentes Santa Therezinha Unidade de Internação Provisória Centro Sócio-educativo Dagmar Feitosa Pará Espaço Recomeço - Unidade de Internação Masculina Rondônia Unidade de Internação Masculina Sentenciada Mato Grosso Goiás Distrito Federal Centro de Internação Feminina Centro de Internação para Adolescente – CIA Centro de Atendimento Juvenil Especializado (CAJE) Bahia Centro de Atendimento do Menor – CAM Ceará Centro Educacional São Miguel Paraíba Pernambuco Sergipe Centro de Triagem do Menor - CETRIM CASE Abreu e Lima Centro de Atendimento ao Menor Segundo os relatores da Comissão de Inspeção da OAB/CFP, considerando as denúncias de espancamento e as suas próprias observações, foi recomendado que o Ministério Público instaurasse, presidisse ou determinasse a abertura de procedimentos administrativos para apuração das denúncias e posterior proposição de ações civis públicas e/ou de ações penais públicas de suas atribuições. No caso específico da FEBEM-Tatuapé, o parecer da Comissão recomendou sua total e imediata desativação, responsabilizando o Estado de São Paulo pelos maus-tratos físicos e psicológicos sofridos pelos adolescentes internos. ESFORÇO No dia 26 de junho, o Brasil criou o Comitê Nacional para Prevenção e Controle da Tortura. O Comitê vai coordenar as atividades do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil, ainda sob consulta pública. 88 Além da própria SEDH, o Comitê será formado por representantes do Ministério das Relações Exteriores (MRE), do Ministério da Justiça e da sociedade civil (ONGs e acadêmicos especializados no tema). Também farão parte do Comitê a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (MPF), o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União e o Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça. A nomeação desses integrantes ainda não foi feita, mas uma das organizações civis que pretendem integrar o Comitê é o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Para o coordenador da Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência Institucional da SEDH, Pedro Montenegro, o papel da sociedade civil é reconhecer a tortura como um crime e se posicionar contra a tolerância a essa prática. Ele observa que para combater a prática da tortura nas prisões e delegacias brasileiras é necessário que as ouvidorias de polícia, as quais classifica como um desdobramento da sociedade civil no sistema de segurança pública, sejam fortalecidas: “Responsáveis pelo recebimento das denúncias de tortura cometidas por agentes públicos, as ouvidorias de polícia são o braço da sociedade civil no sistema de segurança pública. Sua atuação na punição exemplar de práticas de tortura cometidas por agentes públicos é de grande relevância neste combate, destaca”. O secretário da Divisão dos Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Alan Sellos, defende a reforma do sistema prisional brasileiro, assim como treinamento, capacitação e remuneração adequados aos agentes públicos, para que tenham condições de garantir a integridade física dos presos sob tutela do Estado. Para o secretário, o Comitê funcionará como um espaço de diálogo entre poder público e sociedade civil. Criado por decreto presidencial, o Comitê é visto por Rosiana Queiroz (MNDH) como uma primeira iniciativa de enfrentamento da tortura por parte do Estado e não apenas de uma secretaria. “É a primeira vez que o combate à tortura no país deixa de ser uma ação de uma secretaria específica, deixando de ser um tema marginal, passando a fazer parte de uma ação estratégica de governo”. O Comitê será responsável por monitorar e coordenar as ações do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil. Entre as ações propostas no Plano está a atribuição a juizes e integrantes do Ministério Público de inspeções mensais no Sistema Penitenciário e a criação de grupos especializados de promotores para o combate à tortura. “Diferentemente do governo, que defende ações como a formação de agentes públicos na área, o MNDH acha mais importante a criação de Comitês Estaduais de Combate à Tortura e o monitoramento dos casos já registrados, para que tenham sua punição”, destacou Rosiana. O MNDH defende ainda o fortalecimento das Ouvidorias e Corregedorias das Polícias, bem como a melhoria das condições de trabalho independente das Defensorias Públicas. Além disso, apóia a adesão do Brasil ao Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes. O Comitê também ficará encarregado de acompanhar no Congresso Nacional a tramitação dos projetos de lei relacionados ao enfrentamento da tortura; monitorar os projetos de cooperação 89 técnica sobre o tema entre o governo brasileiro e organismos internacionais; incentivar a realização de campanhas relacionadas ao enfrentamento da tortura; apoiar a criação de comitês ou comissões assemelhadas a serem constituídas na esfera estadual para monitoramento e avaliação das ações locais e manter contato com setores de organismos internacionais no âmbito do Sistema Interamericano e da Organização das Nações Unidas. Contudo, é imenso o descompasso entre os progressos normativos e institucionais citados e a realização prática dos direitos humanos, inclusive o direito a integridade física. Nesse sentido, há que se destacar uma realidade incontestável: a criminalização da tortura, por meio de lei de 1997, não gerou os efeitos esperados. Como já mencionamos, não se tem conhecimento de nenhuma condenação julgada em última instância por esse crime, depois de três anos de vigência da lei. As razões para as dificuldades que têm as vítimas e testemunhas da tortura para obter acesso à Justiça podem ser explicadas, inicialmente, pelo referido suporte cultural e político, remanescente de períodos históricos autoritários, cujas manifestações, por vezes sutis, são impassíveis de criminalização. Outras razões, mais evidentes, passamos a enumerar: • Ameaças de represálias contra os denunciantes - As ameaças dos torturadores inspiram muito temor, por que eles atuam em grupo, detêm poder de força, estão habituados à violência e não demonstram escrúpulos ou compaixão. Não raro as ameaças se concretizam no assassinato de vítimas e seus familiares e testemunhas. Policiais, membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, eventualmente podem também se intimidar e omitir-se de agir na plenitude de suas competências institucionais. • É difícil comprovar a tortura - Muitas técnicas de tortura de domínio de policiais brasileiros não deixam marcas nos corpos e as declarações de muitas vítimas, por serem autores ou suspeitos de atos infracionais, não é digna de credibilidade na concepção de muitas autoridades. E enquanto o ônus da prova couber à vítima, continuará extremamente difícil formar a prova. Há que se referir também que, frequentemente, faltam independência, recursos, tempo e coragem a muitos promotores, que acabam por determinar o arquivamento de inquéritos sem proceder a uma investigação mais acurada. Em outros casos o problema é com a falta de independência dos institutos de perícia e medicina legal, que no Brasil estão subordinados às Secretarias de Segurança Pública, que controla as polícias, no âmbito dos Estados. • Faltam organismos confiáveis para encaminhar os processos contra crimes de tortura - A maioria dos organismos de correição das polícias, as Corregedorias, pouco funcionam. Vejamos um exemplo: segundo o testemunho do promotor Mauro Faria de Lima, a Corregedoria de Polícia Civil do DF não apura a contento os casos de violência policial. "A Corregedoria tem um sentido corporativo. Serve para justificar os atos praticados pelos policiais e apura os casos com muita negligência". Para ele, o Poder Judiciário também é responsável por essa violência, na medida em que não pune, na maioria das vezes, o policial infrator. E o Ministério Público é 90 conivente quando não apura e leva os casos ao Judiciário. Uma experiência positiva mas ainda embrionária é a Ouvidoria da Polícia. Das 27 unidades da Federação brasileira, há ouvidorias instaladas em apenas 6 delas, sendo que há diferentes níveis de independência. Algumas são formadas por policiais, o que não as difere das corregedorias, que têm a citada prática corporativa. AMBIENTE A tortura quando emergida à sociedade, chega camuflada de argumentos que justificam os fins pelos meios. Por exemplo, uma pesquisa do Ibope revelou que uma a cada quatro pessoas concorda com esta prática como forma de pressão em depoimentos. Os casos de tortura contra crianças e adolescentes, praticadas por agentes do estado têm sido denunciados por muitos dos CEDECAs por todo o país. FONTES UTILIZADAS AGÊNCIA BRASIL. 2007. Especialista diz que Violência em Cidades Menores é Reflexo do Crime Organizado. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/02/27/materia.2007-02-27.8987526977/ view. Capturado em 17 de abril de 2008. Agencia Brasil. 2007. IBGE mostra que homens jovens são principais vítimas da violência nos centros urbanos http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/12/05/ materia.2007-12-05.1045027516/view. Capturado em 05 de julho de 2008. AGÊNCIA BRASIL. 2007. Maioria dos Homicídios Brasileiros Concentra-Se Em 10% dos Municípios. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/02/27/materia.2007-0227.3497955858/view. Capturado em 18 de abril de 2008. AGÊNCIA BRASIL. 2008. Tortura Policial Ainda é Realidade no Brasil. Fonte: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/04/17/materia.2008-04-17.7535526175/ view. Capturado em 17 de abril de 2008. CFP - CFOAB. 2006. Um Retrato das Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei: relatório das visitas realizadas simultaneamente em 22 estados brasileiros e no Distrito Federal, no dia 15 de março de 2006. CIMI – Conselho Indigenista Missionário. 2007. Violência Contra os povos indígenas do Brasil – Relatório 2006 - 2007. CIMI – Conselho Indigenista Missionário. [S/D]. A Violência Contra os povos indígenas do Brasil – Relatório 2003 - 2005. COIMBRA. C.M.B. 2001. A Eficácia da Lei da Tortura: tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Brasília: R.CEJ. nº 14, p. 5-13. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS – CAMARA DOS DEPUTADOS. 2005. Relatório sobre Tortura no Brasil. Brasília. COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA. 2005. Projeto de Lei No 2.654. 91 www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=348350. Capturado em 17 de maio de 2008. JARDON, C. & TOURINHO, G. 2008. 73,3% Dos Homicídios no Brasil Ocorrem em 10% dos Municípios. http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL277701-5598,00DOS+HOMICIDIOS+NO+BRASIL+OCORREM+EM+DOS+MUNICIPIOS.html. Capturado em 18 de abril de 2008. LONGO, C. DA S. 2002. A Punição Corporal Doméstica de Crianças e Adolescentes: O Olhar de Autores de Livros Sobre Educação Familiar no Brasil (1981-2000). São Paulo: Ieditora. MINGARDI. G. 2005. A Investigação de Homicídios: construção de um modelo. São Paulo: SENASP. O POPULAR. 2007 (14/01/2007). PL Estabelece Direito de Crianças e Adolescentes de não Serem Submetidos a Punição Corporal. http://www.redandi.org/verPublicacao.php5?L=ES&id=2994&idpais=9. Capturado em 08 de junho de 2008. REDE NÃO BATA, EDUQUE. [S/D]. A Paz é a Gente Que Faz: e ela começa em casa. http://www.acabarcastigo.org.br. Capturado em 08 de junho de 2008. LYRA, D.A. (org.) et all. 2004. Relatório RIO: violência policial e insegurança pública. Rio de Janeiro: Justiça Global. Centro de Direitos Humanos (CDH). 2005). Tortura de Direitos Humanos. Coleção “Cartilhas Sobre Direitos Humanos”. São Paulo: CDH. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 2007. Relatório Direitos Humanos no Brasil 2007. São Paulo: [S/E]. 92 Punições corporais SITUAÇÃO Punir significa “infligir pena a”; castigar. A punição corporal é um castigo - que atinge o corpo por faltas reais ou supostamente cometidas. Pressupõe, portanto, culpabilidade ou presunção de culpa, tendo uma intencionalidade punitiva. As raízes desta prática violenta – a punição corporal - comum em nossa cultura, e em muitas outras, remontam à Antigüidade. Basta estudarmos com atenção a História da Pedagogia, a História da Criança ou a História da Infância, para comprovarmos tal afirmação. Há em diversas sociedades e também na sociedade brasileira uma "cultura", comum a todas as classes sociais, que reflete a dificuldade de reconhecer o outro como um sujeito de direito, e que permite práticas de violência corporal das mais variadas; trata-se de uma verdadeira “mania de bater”, como bem apontam AZEVEDO & GUERRA (2001), que remontam ao período colonial (com a chegada dos colonizadores portugueses e dos padres jesuítas e seus métodos pedagógico-disciplinares). Essa cultura mantém a idéia de que os pais têm o direito e o dever de punir seus filhos no sentido de "melhor educá-los" para o convívio em sociedade, corrigindo sua "natureza pecaminosa", “perversa”, e enquadrando-os no "bom caminho". Para isso, os pais podem - e devem - punir corporalmente as crianças da maneira que for necessária, do modo mais “justo e adequado”. Trata-se de uma forma de intimidação e humilhação social, exercida através de uma Pedagogia Despótica. Para além do não rompimento da cultura que encara como normal o uso da violência para “educar” os filhos, encontramos vigente um sistema jurídico pátrio que apenas pune a prática de castigos “imoderados”, deixando a possibilidade para a prática da violência moderada, especialmente com a finalidade pedagógica. Punições corporais e psicológicas contra crianças e adolescentes, como palmadas, chineladas, ameaças, são práticas ainda habituais. São encaradas como ferramentas essenciais para a disciplina dos filhos. Embora nossa cultura e senso comum encarem as “palmadas” como instrumento corretivo ou preventivo ela encerra um problema maior, que é a banalização do uso da violência como meio de solucionar conflitos, e que imposta à infância poderá ter reflexos negativos ao longo da vida da criança. Além do que, castigos físicos e psicológicos constituem em violação aos direitos humanos fundamentais de crianças e adolescentes. Segundo os dados do programa governamental Disque-Denúncia, as crianças e adolescentes são as principais vítimas da violência doméstica. Em 2004, 6.110 denúncias se referiam a esses grupos. No espaço doméstico, crianças e adolescentes sofrem com os maus-tratos (71% das denúncias - 4.338 casos), sendo que a agressão física abarca 3.470 dos casos. Foram citadas diversas formas de castigo, que vão desde as mais tradicionais, como ajoelhar no milho, até aquelas em que as crianças são obrigadas a ingerir as próprias fezes ou mesmo transitar pela rua com o lençol em que fizeram xixi sobre a cabeça, configurando crueldade e 93 humilhação extremas. Os casos mais graves levam a morte da criança ou do adolescente que recebeu o castigo. É o exemplo de suma situação no norte do país em que uma menina morreu eletrocutada no banheiro após ser castigada pela “patroa”. ESFORÇO Os dados sobre punições corporais, aos quais se associam várias outras repercussões negativas na vida da família e na própria sociedade brasileira, deixam clara a premência de se iniciar, no País, um processo de construção da cultura da paz. E, sem dúvida, este processo deve iniciar-se no próprio ambiente doméstico, com a completa abolição dos castigos físicos, psicológicos e humilhantes contra as crianças e adolescentes – que, em última instância, servem para legitimar o uso da violência para resolver conflitos interpessoais. Por isso, o Comitê dos Direitos da Criança é enfático ao pregar a erradicação dessas práticas. Nas recomendações 42 e 43 ao relatório de cumprimento da Convenção apresentado pelo Brasil o Comitê instou o país a adequar sua legislação para abolir todas as formas de castigo físico e humilhante da vida das crianças brasileiras. Além disso, em 2001, foi criada a Iniciativa Global Para Erradicação de Todo e Qualquer Castigo Corporal de Crianças, que conta com o apoio da UNESCO, do UNICEF e de mais de 90 organizações não-governamentais de todo o mundo. O Programa Pela Erradicação dos Castigos Físicos e Humilhantes Contra a Criança e o Adolescente integra-se a essas iniciativas, buscando a construção de uma cultura de paz, tendo na família a sua base. Desde 1994, o Lacri luta pelo fim de punições corporais para crianças e adolescentes. A polêmica ganhou força com o Projeto de Lei nº 2.654/2003, da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que estabelece o direito da criança e do adolescente de não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, ainda que moderada. A proposta da deputada, em tramitação no Congresso Nacional, foi apelidada de Projeto da Palmada. A atual legislação ainda permite aos pais aplicarem castigos de tipo moderado nos filhos, explica a parlamentar. “Não pretendemos punir os pais, e sim retirar do Código Civil essa possibilidade, para incentivá-los a agirem de forma pedagógica”, explica Maria do Rosário. O Projeto da Palmada é resultado de um abaixo-assinado com mais de 200 mil assinaturas recolhidas pelo Lacri. Caso o projeto transforme-se realmente em lei, os flagrantes de punição corporal de crianças ou adolescentes sujeitarão os pais, professores ou responsáveis às medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 94 FONTES UTILIZADAS AGÊNCIA BRASIL. 2007. Especialista diz que Violência em Cidades Menores é Reflexo do Crime Organizado. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/02/27/ materia.2007-02-27.8987526977/view. Capturado em 17 de abril de 2008. Agencia Brasil. 2007. IBGE mostra que homens jovens são principais vítimas da violência nos centros urbanos http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/12/05/ materia.2007-12-05.1045027516/view. Capturado em 05 de julho de 2008. AGÊNCIA BRASIL. 2007. Maioria dos Homicídios Brasileiros Concentra-Se Em 10% dos Municípios. http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/02/27/materia.2007-0227.3497955858/view. Capturado em 18 de abril de 2008. AGÊNCIA BRASIL. 2008. Tortura Policial Ainda é Realidade no Brasil. Fonte: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/04/17/materia.2008-04-17.7535526175/ view. Capturado em 17 de abril de 2008. CFP - CFOAB. 2006. Um Retrato das Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei: relatório das visitas realizadas simultaneamente em 22 estados brasileiros e no Distrito Federal, no dia 15 de março de 2006. CIMI – Conselho Indigenista Missionário. 2007. Violência Contra os povos indígenas do Brasil – Relatório 2006 - 2007. CIMI – Conselho Indigenista Missionário. [S/D]. A Violência Contra os povos indígenas do Brasil – Relatório 2003 - 2005. COIMBRA. C.M.B. 2001. A Eficácia da Lei da Tortura: tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Brasília: R.CEJ. nº 14, p. 5-13. COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS – CAMARA DOS DEPUTADOS. 2005. Relatório sobre Tortura no Brasil. Brasília. COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA. 2005. Projeto de Lei No 2.654. www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=348350. Capturado em 17 de maio de 2008. JARDON, C. & TOURINHO, G. 2008. 73,3% Dos Homicídios no Brasil Ocorrem em 10% dos Municípios. http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL277701-5598,00DOS+HOMICIDIOS+NO+BRASIL+OCORREM+EM+DOS+MUNICIPIOS.html. Capturado em 18 de abril de 2008. LONGO, C. DA S. 2002. A Punição Corporal Doméstica de Crianças e Adolescentes: O Olhar de Autores de Livros Sobre Educação Familiar no Brasil (1981-2000). São Paulo: Ieditora. MINGARDI. G. 2005. A Investigação de Homicídios: construção de um modelo. São Paulo: SENASP. O POPULAR. 2007 (14/01/2007). PL Estabelece Direito de Crianças e Adolescentes de não Serem Submetidos a Punição Corporal. http://www.redandi.org/verPublicacao.php5?L=ES&id=2994&idpais=9. Capturado em 08 de junho de 2008. REDE NÃO BATA, EDUQUE. [S/D]. A Paz é a Gente Que Faz: e ela começa em casa. http://www.acabarcastigo.org.br. Capturado em 08 de junho de 2008. 95 LYRA, D.A. (org.) et all. 2004. Relatório RIO: violência policial e insegurança pública. Rio de Janeiro: Justiça Global. Centro de Direitos Humanos (CDH). 2005). Tortura de Direitos Humanos. Coleção “Cartilhas Sobre Direitos Humanos”. São Paulo: CDH. Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. 2007. Relatório Direitos Humanos no Brasil 2007. São Paulo: [S/E]. 96 Convivência Familiar e Comunitária Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar da ANCED Subsídios para a construção do relatório alternativo da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Crianças das Nações Unidas 97 Convivência Familiar e Comunitária 1. Introdução É recente o debate na sociedade brasileira em torno do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes. Inscrito na Constituição Federal (CF) de 1988, após mais de um século de políticas institucionalizantes, o direito à convivência familiar e comunitária começa a ganhar a atenção do Estado e da sociedade brasileira, reconhecendo-se a importância do desenvolvimento das crianças e adolescentes no seio de suas famílias. O grande avanço representado pelo reconhecimento deste direito na CF em seu Art. 227, bem como no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Art. 19, colide, entretanto, com o falta de promoção de políticas públicas que busquem efetivá-lo. Após a promulgação do ECA, em 1990, muitos anos se passaram sem que qualquer iniciativa fosse tomada a esse respeito. Somente em 2001, após o levantamento de dados alarmantes pela VI Caravana de Direitos Humanos, que traçou um panorama das instituições de acolhimento de crianças e adolescentes, é que se retoma na agenda de debates da sociedade o direito à convivência familiar e comunitária. Deu-se então um longo processo de discussão e proposição de ações, contando com a realização de um Levantamento Nacional de Abrigos e a elaboração de um plano de ação, o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), lançado em dezembro de 2006, de maneira a articular políticas públicas, a fim de garantir o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes. Porém, ainda resta certa desconfiança entre os setores da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, tendo em vista o histórico descaso do Estado brasileiro no cumprimento dos direitos estabelecidos na Constituição e nos marcos legais existentes. 2. A institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil Não há um diagnóstico preciso sobre a situação de crianças e adolescentes institucionalizados no Brasil. Como já mencionado, o tema foi retomado na agenda de debates da sociedade e do Estado brasileiros apenas recentemente. Apesar disso, a partir de algumas iniciativas, foram realizadas pesquisas que, se não trazem um diagnóstico preciso, ao menos tentam dimensionar o tamanho do problema. Nesse sentido, há, por exemplo, o Relatório da VI Caravana Nacional de Direitos Humanos promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, publicado em 2002, que estimava a existência de cerca de 200 mil crianças sobrevivendo em instituições no Brasil. O único diagnóstico de abrangência nacional existente, contido na publicação O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil (ora Levantamento Nacional de Abrigos) elaborado pelo IPEA92, apresenta um recorte muito pequeno da realidade das instituições brasileiras. Isso porque se optou naquele momento por restringir a pesquisa apenas às instituições da Rede de Serviços de Ação Continuada (Rede/SAC), vinculada à Secretaria de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, portanto, às instituições vinculadas financeiramente ao governo federal através de convênios. Não foram mapeadas e pesquisadas as instituições que possuem vínculos financeiros com os governos estaduais, municipais e aquelas que não possuem convênios com quaisquer entes do poder público, que representam a maioria das instituições dessa natureza no Brasil. Desse modo, o diagnóstico apresenta apenas uma amostragem da situação vivida por milhares de 92 ENID, Rocha Andrade da Silva (Coord.). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. 98 crianças brasileiras. Não se sabe, porém, quantas. No momento em que o debate sobre o direito à convivência familiar e comunitária ganhou maior relevância no Brasil, outras iniciativas de pesquisas surgiram, sendo realizadas pesquisas locais em estados e municípios, a fim de conhecer a situação com mais precisão. Os dados trazidos acerca do número de instituições e de crianças institucionalizadas por essas pesquisas locais refutam o diagnóstico esboçado pelo IPEA, principalmente quanto a sua grandeza. Assim, o IPEA mapeou apenas 589 entidades que prestam o serviço de abrigo, espalhadas em 327 municípios brasileiros, do total de 5.561 municípios existentes no país. Foram identificados, no total, 19.373 crianças e adolescentes abrigados nessas entidades. As pesquisas regionais, no entanto, demonstram que o número de instituições e de crianças que nelas vivem chega a ser 10 vezes maior que o número detectado pelo IPEA. No município de São Paulo93 foram constatadas 185 entidades, as quais abrigam 4.847 crianças e adolescentes94. No Rio Grande do Sul, segundo informações do Tribunal de Justiça 95, existem 117 entidades, que abrigam 3.757 crianças96. O estado do Rio de Janeiro97 contabilizou 235 entidades de abrigo e 3.732 crianças e adolescente abrigados. Em Minas Gerais, pesquisa realizada em 23 municípios que compõem a região metropolitana de Belo Horizonte/MG 98, aponta para a existência de 125 instituições, as quais abrigam 1.821 crianças. O mesmo se observa na pesquisa que avaliou as entidades de abrigo dos nove municípios que compõem a região metropolitana de João Pessoa/PB, que constatou a existência de 17 abrigos, nos quais 487 crianças encontram-se abrigadas99. No que refere à distribuição geográfica das instituições pelo Brasil, destaca-se a elevada concentração de entidades de abrigo no estado de São Paulo. Segundo o IPEA, o estado contava na época com 201 entidades, o que representa 34,1% do total existente no país. Os demais estados com elevado número de entidades são Rio Grande do Sul, com 58 (9,8%), o Rio de Janeiro, com 45 (7,6%), o Paraná, com 41 (7,0%), Minas Gerais, com 40 (6,8%) e Bahia, com 37 (6,3%). A tabela abaixo, extraída do Levantamento Nacional, traz a distribuição das entidades e das crianças abrigadas, segundo dados do IPEA. Número de abrigos da Rede/SAC e de crianças e adolescentes abrigados por Unidade da Federação100. 93 OLIVEIRA, Rita de Cássia Silva (Coord.). Por uma política de abrigos em defesa de direitos das crianças e dos adolescentes na cidade de São Paulo..., p. 29. 94 Das 201 entidades contabilizadas no estado de São Paulo, de acordo com o Levantamento Nacional de Abrigos, apenas 14 estavam no município de São Paulo/SP de acordo com a listagem da Rede Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes Cadastrados no SAC do Ministério da Assistência e Promoção Social, Abril de 2003. 95 Informações constantes do portal: http://www.tj.rs.gov.br/, atualizadas até 10/08/2006. 96 Neidemar José Fachinetto aponta número muito maior em estudo feito na Fundação Escola Superior do Ministério Público. Segundo levantamento do pesquisador, o estado conta com 256 entidades de abrigo, nas quais estão abrigadas cerca de 6.600 crianças. FACHINETTO, Neidemar José. Medida protetiva de abrigo: análise dialética e sua transformação social. p. 95. 97 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Censo da população infanto-juvenil abrigada no estado do Rio de Janeiro. p. 31. 98 FUNDAÇÃO CDL PRÓ CRIANÇA. Diagnóstico estadual sobre a criança e o adolescente institucionalizados. p. 21 e 25. 99 Em que pese os dados levantados por esses estudos regionais, mais fiéis a realidade encontrada, opta-se por abordar nesse relatório os dados do Levantamento Nacional de Abrigos pelo simples fato de ser o único estudo de abrangência nacional. Ademais, deve-se reconhecer que mesmo diante desse diagnóstico amostral, é o estudo mais completo no tocante a avaliação das condições e trabalhos desenvolvidos pelas entidades de abrigo. 100 Nota-se a ausência dos estados do Amazonas e Tocantins e do Distrito Federal, o que segundo o IPEA poderia ser explicado por razões históricas. A rede de instituições beneficiadas pela Rede/SAC são oriundas da antiga Fundação Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência (FCBIA), criada com a promulgação do ECA, em 1990, e extinta em 1995. A inclusão de instituições se dava em substituição a outras. Como os como o estado do Tocantins é recente e o Distrito Federal era administrado diretamente pelo governo federal, essas unidades da federação permaneceram muito tempo sem oportunidades para inclusão de ovas instituições. O IPEA não explica, no entanto, o porquê da ausência do estado do Amazonas. 99 Região Norte UF Percentual Freqüência Percentual Acre 1 0,2 14 0,1 Amapá 3 0,5 83 0,4 Pará 3 0,5 36 0,2 Rondônia 17 2,9 222 1,1 Roraima 1 0,2 15 25 4,2 370 1,9 Alagoas 7 1,2 290 1,5 Bahia 37 6,3 1.915 9,9 Ceará 14 2,4 1.353 7,0 Maranhão 11 1,9 631 3,3 Paraíba 9 1,5 286 1,5 Pernambuco 11 1,9 678 3,5 Piauí 1 0,2 15 0,1 Rio Grande do Norte 10 1,7 115 0,6 Sergipe 12 2,0 410 2,1 112 19,0 5.693 29,4 Espírito Santo 3 0,5 53 0,3 Minas Gerais 40 6,8 1.350 7,0 Rio de Janeiro 45 7,6 1.232 6,4 São Paulo 201 34,1 6.081 31,4 289 49,1 8.716 45,0 Paraná 41 7,0 1.082 5,6 Rio Grande do Sul 58 9,8 1.529 7,9 Santa Catarina 23 3,9 397 2,0 122 20,7 3.008 15,5 Goiás 4 0,7 416 2,1 Mato Grosso do Sul 23 3,9 375 1,9 Mato Grosso 14 2,4 795 4,1 41 7,0 1.586 8,2 589 100 19.373 100 Subtotal Sudeste Subtotal Sul Subtotal CentroOeste Subtotal Brasil Número de crianças atendidas Freqüência Subtotal Nordeste Número de abrigos Total 0,1 Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC. A distribuição geográfica das instituições de abrigo denota a concentração das instituições, principalmente nos estados da região sudeste e sul. Os números levantados em âmbito local, porém, dão conta da existência de um número ainda mais elevado de instituições de abrigamento nessas regiões, bem como de crianças institucionalizadas. No entanto, é ainda incerto o número de instituições e de crianças que se encontram abrigadas no Brasil, levando ao questionamento das políticas públicas lançadas pelo governo federal, voltadas para a promoção do direito à convivência familiar e comunitária, incluindo-se o reordenamento dessas entidades e o trabalho de reinserção familiar por elas desenvolvido. 100 2.1 As causas da institucionalização de crianças e adolescentes A atual situação de crianças e adolescentes institucionalizados no Brasil necessita ser compreendida em uma perspectiva histórica e socioeconômica. A institucionalização é uma prática largamente utilizada desde o século XIX, persistindo até o início deste século XXI, como forma de atendimento a crianças nascidas em famílias pobres, ou para crianças cujas famílias encontravam dificuldades para criá-las. Durante todo esse período, as crianças eram taxadas como órfãs, carentes ou abandonadas, e encaminhadas para essas instituições. No século XX, as práticas autoritárias de atendimento a crianças e adolescentes podem ser simbolizadas pela figura do juiz de menores, que, como afirma Rizzini (2004), funcionava como órgão centralizador do atendimento oficial ao menor, vigiando, regulamentando e intervindo diretamente sobre o destino dessa população; e também pela doutrina da situação irregular, criada sob a égide do regime militar no Brasil, que sintetizava a política de atendimento assistencialista e autoritária dispensada às crianças pobres e miseráveis, ou àquelas cujos pais encontravam dificuldade em prestar a educação esperada pela sociedade. Tanto o juiz de menores como a doutrina da situação irregular tinham como principal função o tratamento da infância pobre e desassistida, via de regra pela institucionalização em grandes complexos como orfanatos, educandários, internatos, etc., todos marcados pelo atendimento massificado e disciplinador. Nesse sentido, Rizzini (2004) considera que, ao longo da história, “se institui no Brasil uma verdadeira cultura da institucionalização”. A ruptura com essa tradição institucionalizante veio com a redemocratização brasileira e a ascensão dos movimentos sociais vivida no final dos anos 1980, momento em que se inscreveu na Constituição Federal, em seu artigo 227, o direito à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes. O ECA, posteriormente, determinou o fim da doutrina da situação irregular, ao instituir a doutrina da proteção integral, reafirmando o direito à convivência familiar e comunitária das crianças e adolescentes. Com o advento da proteção integral a institucionalização passa a ser medida de caráter protetivo para crianças que tenham seus direitos ameaçados ou violados (Art. 98 do ECA), sendo caracterizada pelos princípios da excepcionalidade e brevidade (Art. 101, parágrafo único, do ECA). O novo paradigma rompe também com a prática estigmatizante e autoritária em relação às famílias pobres, determinando que a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. Permanece, entretanto, o dilema da efetivação desses direitos e dos princípios que norteiam a medida protetiva de abrigo. A efetivação dos preceitos da proteção integral encontra grande dificuldade diante dessa “cultura da institucionalização”, ainda bastante enraizada na sociedade, aliada às condições socioeconômicas da população brasileira, que permanecem bastante excludentes e desiguais. O que se observa é que o Estado brasileiro reconhece, no âmbito da retórica, que as crianças deveriam ser institucionalizadas apenas como último recurso, mas pouco faz para que esse direito seja efetivado. O Estado brasileiro ainda não prioriza, como determina o ECA – princípio da prioridade absoluta –, a promoção de políticas públicas voltadas para essa camada da população, com a manutenção de equipamentos e serviços públicos essenciais, tais como creches, escolas e programas de apoio familiar. Vale lembrar que as crianças e adolescentes são a camada mais vulnerável à situação de miserabilidade da população brasileira. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2002), dos 57,1 milhões de crianças e adolescentes brasileiras, 48,8% das crianças e 40,0% dos adolescentes são considerados pobres ou miseráveis, pois são oriundos de famílias cuja renda familiar é igual ou inferior a meio salário mínimo101. Já a Fundação Getúlio Vargas aponta que 46% das pessoas 101 O salário mínimo da data de referência da realização da PNAD 2002 era de R$ 200,00. 101 com até 16 anos de idade é miserável, enquanto que o percentual para toda a população brasileira é de 29,3%102. A falta de políticas públicas para essa camada da população, aliada à dificuldade das famílias de criar e sustentar seus filhos num cotidiano miserável e conturbado, leva à violação dos direitos das crianças e adolescentes nas formas de abandono, negligência e vitimização pela violência. Neste quadro, a solução historicamente construída prevalece, fazendo com que milhares de crianças sejam separadas de suas famílias e encaminhadas às instituições de abrigo. Segundo determina o ECA, diante da ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes, poderão ser aplicadas as medidas de caráter protetivo elencadas no Art. 101, entre elas: a orientação, apoio e acompanhamento; a matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; a inclusão em programa comunitário e oficial, de auxílio à família, à criança e ao adolescente; e o abrigo em entidade; dentre outras. O que se percebe é que o abrigo em entidade é uma medida utilizada em larga escala, porém, quanto às outras medidas, sequer se tem notícia de sua existência, demonstrando-se quanto são preteridas pelas autoridades. O IPEA identificou a manutenção dessa política institucionalizante no atendimento de crianças oriundas de famílias pobres e miseráveis, ao questionar o motivo do abrigamento de crianças e adolescentes às instituições da Rede/SAC. Os principais motivos (84,8%) são: carência de recursos materiais da família (24,1%); abandono pelos pais ou responsáveis (18,8%); violência doméstica (11,6%); dependência química dos pais ou responsáveis (11,3%); vivência na rua (7%); orfandade (5,2%); prisão dos pais ou responsáveis (3,5%); violência sexual praticada pelos pais ou responsáveis (3,3%); dentre outros. O IPEA destaca que os motivos relacionados à pobreza (carência de recursos materiais da família; abandono pelos pais; vivência na rua; crianças submetidas a trabalho infantil), alcançam a taxa de 52%, demonstrando a permanência da política de institucionalização de crianças pobres e miseráveis. 2.2 O processo de abrigamento A “cultura da institucionalização” relatada pode ser compreendida ao se observar a prática cotidiana dos órgãos do sistema de proteção integral, revelando-se como são feridos os preceitos do ECA no momento da aplicação da medida protetiva de abrigo. A herança da tradição institucionalizante, ainda presente, faz com que os diversos atores ignorem a adoção de novas práticas e procedimentos visando a efetivar os direitos previstos no Estatuto. Os atores demonstram não conhecer plenamente suas funções, atuam de maneira não coordenada e não integrada à rede de proteção e freqüentemente recaem na usurpação de suas funções estabelecidas legalmente. Desse modo, um dos grandes entraves para a ruptura definitiva com a “cultura da institucionalização” apontada, está na prática cotidiana desses órgãos integrantes da rede de proteção integral. O problema é grave, considerando o bastante tímido tratamento da questão nos estudos sobre o assunto. Os poucos existentes, circunscritos às áreas da assistência social e da psicologia, normalmente pautam a inexistência de políticas públicas preventivas de apoio familiar. É evidente que a ausência de políticas públicas de apoio familiar constitui um dos principais fatores que levam crianças e adolescentes a serem institucionalizados. Mas é de extrema importância verificar como são aplicadas as medidas protetivas de abrigo na prática cotidiana dos órgãos responsáveis – o Conselho Tutelar e a Justiça da Infância e Juventude –, a fim de demonstrar que a permanência da tradição institucionalizante é também de caráter cultural. Neste ponto, há uma carência generalizada de estudos, notadamente no âmbito jurídico, que avaliem a atuação dos órgãos responsáveis pela aplicação das medidas 102 Segundo matéria publicada no jornal Folha de São Paulo de 10 de julho de 2001, página A12. 102 protetivas, entre elas a de abrigo. 2.2.1 A distribuição de competências entre o Juiz da Infância e Juventude e o Conselho Tutelar A criação do Conselho Tutelar no ECA teve como objetivo a descentralização da autoridade que regula a aplicação dos direitos das crianças e adolescentes previstos no Estatuto. O antigo juiz de menores monopolizava todas as decisões acerca das crianças e adolescentes que se encontravam na chamada situação irregular. Com a promulgação do ECA, o Conselho Tutelar assumiu muitas das funções que antes pertenciam ao juiz de menores, ao exercer a autoridade local, no âmbito do Poder Executivo Municipal, sendo encarregado pelo ECA por zelar pelos direitos das crianças e adolescentes. Tem-se, então, uma distribuição de atribuições e competências entre este órgão, o Juiz da Infância e Juventude e os demais atores do sistema de proteção integral. Nesse sentido, para Sêda (2008), o Conselho Tutelar cumpre a função de exercer “freios e contrapesos” a toda forma de ameaça ou violação de direitos da criança e do adolescente. No que se refere à aplicação de medidas protetivas, embora o ECA discipline expressamente as competências e atribuições do Conselho Tutelar e do Juiz da Infância e Juventude, é ainda assunto nebuloso e controverso, tanto no meio jurídico, quanto entre os movimentos sociais de defesa dos direitos das crianças e adolescentes, quem é a autoridade responsável pela aplicação das medidas protetivas relacionadas no Art. 101 do ECA. De acordo com o Art. 136, I, o Conselho Tutelar é o responsável pela aplicação das medidas protetivas previstas nos incisos I a VII do Art. 101, entre elas a medida de abrigo em entidade. Já o Juiz da Infância e Juventude, segundo determina o Art. 148, III, e parágrafo único, “a”, tem competência apenas para a aplicação da medida de colocação em família substituta, prevista no inciso VIII do Art. 101. É do Juiz da Infância e Juventude também a competência para reexaminar as medidas aplicadas pelo Conselho Tutelar, seja em caso de discordância de quem tem legítimo interesse (Art. 137), seja em caso de descumprimento injustificado da medida (Art. 136, III, “a”). Assim, segundo o ECA, o Conselho Tutelar é a instituição responsável pela aplicação das medidas protetivas, inclusive o abrigo em entidade, ao passo que o Juiz da Infância e Juventude é competente para a aplicação da medida protetiva de colocação em família substituta. Porém, a prática cotidiana dessas duas instituições revela que a descentralização da autoridade preconizada pelo ECA não se efetivou, acontecendo uma confusão de papéis e funções entre as instituições, contribuindo para a manutenção das violações dos direitos das crianças. Nesse sentido, o IPEA trata apenas tangencialmente o tema ao verificar as instituições que mais encaminham crianças e adolescentes para os abrigos da Rede/SAC. São elas103: o Conselho Tutelar (88,0%), a Justiça da Infância e Juventude (85,6%), o Ministério Público (29,5%), a família da criança/adolescente (11,1%), e programas de atendimento público estadual/municipal (10,8%), entre outros. Verifica-se então, que além de instituições que definitivamente não possuem poder para determinar a medida protetiva de abrigo, tais como o Ministério Público, a própria família e outras instituições de atendimento, há uma aparente concorrência de funções entre a Justiça da Infância e Juventude e o Conselho Tutelar, sendo ambas as instituições que mais encaminham crianças e adolescentes para as entidades de abrigo. Segundo relatos de defensores públicos militantes dos direitos da infância, bem como dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de várias regiões do país, o Conselho Tutelar vem extrapolando suas funções promovendo o abrigamento indiscriminado de crianças. Muitas vezes, ferindo gravemente o princípio da excepcionalidade, o Conselho Tutelar 103 A resposta a esse quesito da pesquisa do IPEA era múltipla, podendo o dirigente da entidade de abrigo assinalar no máximo três atores de um total de oito. 103 determina o abrigamento de crianças sem antes tomar outras medidas previstas no Art. 101, tais como inclusão em programas comunitários ou oficiais de auxílio à família, à criança e ao adolescente, entre outras possíveis. Outro grave problema se dá quando o Conselho Tutelar determina o abrigamento de crianças que se encontram sob a guarda de seus pais ou responsáveis. Essas situações acontecem, na maioria das vezes, quando o órgão recebe denúncia de que determinada criança está sendo vítima de negligência, maus tratos ou abuso por parte de seus genitores. Nesses casos, o Conselho Tutelar, que é uma autoridade administrativa, vale lembrar, determina o abrigamento, promovendo a separação da criança de seus pais sem observância do procedimento no qual é dada oportunidade aos pais para se defenderem das acusações que lhe são impostas. Sêda (2008) explica, entretanto, que o Conselho Tutelar somente poderia aplicar a medida protetiva de abrigo nos casos de crianças que não estejam na posse de “um responsável que os assista, crie e eduque”, tais como crianças e adolescentes em situação de rua desacompanhadas de um adulto responsável. Em tais situações, a medida protetiva de abrigo é emergencial e pode ser aplicada para que se resguarde o quanto antes as mínimas condições de sobrevivência das crianças e adolescentes. Nos demais casos, no entanto, de crianças que têm os pais ou responsáveis exercendo o poder familiar ou a sua guarda, o abrigamento somente poderia ser feito respeitados os preceitos do devido processo legal com amplo direito de defesa, isto é, em âmbito judicial. Em casos graves e excepcionais, o Conselho Tutelar poderia pedir ao Juiz da Infância e Juventude que, liminarmente, transfira a guarda dos pais ou responsável para o guardião do abrigo (responsável legal das entidades de abrigo pelas crianças). No caso de o Juiz acatar o pedido, poderia então ser determinado o abrigamento da criança. O ECA não é claro a esse respeito, dando margens para que práticas arbitrárias continuem persistindo e crianças sejam institucionalizadas indiscriminadamente, privando-as do convívio de seus pais, para inseri-las em instituições de abrigo. 2.2.2 Os procedimentos nas Varas da Infância e Juventude Em algumas regiões do país foi identificada, no entanto, uma outra maneira de promover o abrigamento de crianças e adolescentes, embora também ferindo preceitos básicos contidos no Estatuto e na Constituição Federal. Trata-se ainda da institucionalização de crianças que se encontravam sob a posse de seus pais ou responsável. De acordo com relatos de defensores públicos militantes dos direitos da infância, bem como de Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de várias regiões do país, o procedimento de abrigamento ocorre da seguinte maneira: O Conselho Tutelar é noticiado de que determinada criança ou adolescente está sendo vítima de maus tratos, negligência ou abuso. Frente a tal situação, comunica o fato à polícia, sendo os pais encaminhados à Delegacia de Polícia para elaboração de Boletim de Ocorrência104, realizando-se os procedimentos policiais. O Conselho Tutelar, então, a fim de promover a proteção da criança ameaçada ou violada em seus direitos, comunica ao Juiz da Infância e Juventude o caso. O Juiz, tomando conhecimento, inicia um processo denominado “procedimento verificatório”, ou “pedido de providências”, o qual servirá para avaliar o caso e a possibilidade de retorno da criança à família, ou para determinar o abrigamento da criança – o que ocorre na grande maioria dos casos. O processo se inicia de ofício pelo juiz, ferindo-se desde já o princípio da inércia do magistrado. Tal procedimento, tido como administrativo, não está previsto no ECA. O juiz, atendendo a 104 O Boletim de Ocorrência é um registro policial do acontecimento de um fato criminoso que dá início às investigações policiais. 104 uma regra geral procedimental contida no Art. 153 do ECA, abre oportunidade para o Ministério Público manifestar-se. Porém, os pais da criança não são intimados ou citados a fim de conhecer oficialmente os motivos que levaram ao abrigamento da criança. Não raro, sequer sabem do porquê de seus filhos terem sidos tirados de sua guarda e encaminhados para o abrigo. A avaliação do caso é realizada pelos assistentes técnicos do Juiz, constituídos de assistentes sociais e psicólogos, e são eles que ouvem os pais e as crianças. Muitas vezes determinam que os pais retornem diversas vezes ao juizado a fim de realizar novas entrevistas, sempre com o objetivo de reavaliar o caso e verificar a possibilidade do desabrigamento. No entanto, não é constituído um processo formal, seguindo os ditames dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Os pais, na ausência de notificação sobre o procedimento, não têm a oportunidade de se defenderem por meio de um advogado, de apresentar provas e arrolar testemunhas, frente às acusações feitas. O juiz também não promove a realização de audiências, momento no qual poderia ouvir a versão dos pais e da criança. Não há tampouco uma sentença fundamentada nas provas colhidas e nos preceitos legais contidos no Estatuto. Há apenas a decisão do magistrado determinando o abrigamento da criança com base na denúncia realizada e nos pareceres de sua equipe técnica. Muitas vezes a equipe técnica do magistrado também extrapola suas funções, ao trabalhar junto à família para que ela receba a criança de volta ao lar. Em muitos casos a equipe técnica do juízo chega a impor condições às famílias, inclusive sob pena de suspensão das visitas, ou de um parecer desfavorável a ser enviado ao juiz. Como se sabe, não é tarefa destes profissionais promover esse tipo de trabalho, que deve ficar a cargo dos profissionais do abrigo e dos serviços de atendimento da rede de proteção integral. Como determina o Art. 9º da Convenção dos Direitos da Criança, a decisão de separar as crianças de suas famílias estará sujeita à revisão judicial, modelo este incorporado pelo ECA em seu Art. 137, que determina a revisão judicial da decisão do Conselho Tutelar. Porém, da maneira que ocorrem os procedimentos relatados, quando é a autoridade judiciária que realiza o abrigamento, a decisão de separar as crianças de seus pais não é revista em instância superior, visto que os “procedimentos verificatórios” não contam com sentença, não estando sujeitos à apelação para a segunda instância105. 2.2.3 Institucionalização: de provisória a permanente Durante o processo de institucionalização observa-se um gradativo afastamento entre as crianças e suas famílias. Algumas vezes, as visitas das famílias às instituições são suspensas como forma de pressionar a família a cumprir determinadas exigências feitas pela equipe técnica do juiz, ou pelos técnicos que acompanham as crianças no abrigo. Em alguns casos, mesmo que todos os esforços de inserção da criança na família não tenham sido esgotados, o Ministério Público dá início à ação de destituição do poder familiar. Ressalte-se que apenas nesse momento os pais são cientificados oficialmente, obtendo oportunidade para oferecimento de sua defesa no processo. Ocorre que, nesse momento, o vínculo entre a criança e sua família já está bastante fragilizado, sendo cada vez mais difícil o seu restabelecimento. 105 Vale trazer aqui trecho da Opinião Consultiva oc-17/2002, de 28 de agosto de 2002, proposta pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a condição jurídica e de direitos das crianças e adolescentes, na qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos manifestou-se da seguinte maneira:“Que en los procedimientos judiciales o administrativos en que se resuelven derechos de los niños se deben observar los principios y las normas del debido proceso legal. Esto abarca las reglas correspondientes a juez natural – competente, independiente e imparcial –, doble instancia, presunción de inocencia, contradicción y audiencia y defensa, atendiendo las particularidades que se derivan de la situación específica en que se encuentran los niños y que se proyectan razonablemente, entre otras materias, sobre la intervención personal de dichos procedimientos y las medidas de protección que sea indispensable adoptar en el desarrollo de éstos.”. 105 Muitas das famílias, mesmo cientificadas do processo de destituição do poder familiar, deixam de comparecer às audiências, o que acarreta no prosseguimento do processo à sua revelia. Dificilmente os defensores públicos conseguem reverter o abrigamento da criança e a destituição do poder familiar dos pais. Ressalte-se a precariedade com que trabalham os defensores públicos, os quais possuem salários inferiores aos dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público na maioria dos estados, além do número reduzido de profissionais para uma grande demanda. Alguns, assim como os demais operadores do direito, demonstram não conhecer profundamente o paradigma da proteção integral, atuando segundo os vícios da prática cotidiana ao se valerem de argumentações preconceituosas e estereotipadas. Soma-se a isso a grande demora pelo julgamento dos recursos interpostos pelos defensores no segundo grau de jurisdição. Vale dizer que na ampla maioria dos casos a criança sequer é ouvida pelo juiz da infância, tanto no momento de seu abrigamento – o que é feito pelas assistentes técnicas do judiciário – quanto no momento da destituição do poder familiar. Somente é colhido o seu depoimento, dando-se oportunidade para dizer o que pensa, no momento de sua adoção. Por conta de tudo isso, muitas famílias se vêem destituídas de seu poder familiar. Nada significa, porém, que as crianças serão colocadas em família substituta, na modalidade de adoção. Isso explica o número de 10,7% de crianças nos abrigos da Rede/SAC que estão em condições jurídicas de serem adotadas, após a destituição do poder familiar, e permanecem abrigadas. A destituição do poder familiar finaliza dramaticamente o processo de culpabilização das famílias pobres, normalmente sob a justificativa do juiz de que elas não têm “responsabilidade” para cuidar de seus filhos. A criança, por sua vez, fica durante todo esse processo esquecida na entidade de abrigo, permanecendo longo tempo até ser desabrigada. O IPEA demonstra essa realidade ao verificar o tempo de permanência das crianças nos abrigos da Rede/SAC. Apurou-se que 52,6% das crianças e adolescentes vivia há mais de 2 anos no abrigo, sendo que 32,9% estavam num período entre 2 e 5 anos, 13,3% estavam entre 6 e 10 anos, e 6,4% estava há mais de 10 anos. A medida que teria caráter provisório, segundo os ditames do ECA, torna-se assim permanente. 2.3 Reinserção familiar e inclusão em família substituta Quanto às crianças abrigadas, seu destino fica a depender do trabalho desenvolvido pelos técnicos dos abrigos, na esperança de ser reinserida em sua família de origem, ou encaminhada a família substituta. Porém, assim como há ausência de políticas de proteção à família, de caráter preventivo, visando evitar o rompimento do vínculo entre a criança e seus pais, também se nota a ausência de trabalhos efetivos de reinserção familiar ou de colocação em família substituta. O IPEA demonstra essa situação ao avaliar os trabalhos de reinserção familiar e de inclusão em família substituta desenvolvidos pelas instituições de abrigo da Rede/SAC. A avaliação utilizouse dos seguintes critérios: a) preservação dos vínculos familiares, b) apoio à reestruturação familiar, c) incentivo à convivência com outras famílias. Percebe-se que a maioria das entidades realiza uma ou outra ação nesse sentido, mas é mínimo o número de entidades que possuem um trabalho coordenado voltado para o retorno da criança à sua família ou sua inserção em família substituta. Em relação às ações realizadas pelos abrigos com o objetivo de preservar o vínculo familiar das crianças e adolescentes abrigados, observou-se o atendimento a dois critérios: o incentivo à convivência com a família de origem e o não-desmembramento de grupos de irmãos. Assim, vê-se que 25,3% das entidades da Rede/SAC incentiva a convivência das crianças e adolescentes com família de origem, ao passo que 30,7% prioriza o não-desmembramento de grupos de irmãos, tal como preconizado pelo ECA em seu Art. 92, inciso V. As entidades de 106 abrigo que atendem aos dois critérios simultaneamente é bastante baixa: somente 5,8%. No tocante às entidades que realizam ações no sentido de promover a reestruturação familiar, os dados levantados mostram que a maior parte das entidades realiza algumas atividades, tais como visitas domiciliares às famílias das crianças e adolescentes abrigados (78,1%), mas é baixo o percentual de entidades que encaminham as famílias para programas de auxílio e proteção à família (31,6%), conforme determina o ECA (Art. 23, parágrafo único). As entidades que realizam todas as atividades (visitas domiciliares, acompanhamento social, organização de reuniões ou grupos de discussão e apoio, e encaminhamento para inserção em programas de auxílio e proteção à família), é muito aquém do esperado: 14,1%. O incentivo das entidades de abrigo à convivência das crianças e adolescentes com outras famílias, visando uma possível inclusão da criança e do adolescente em família substituta, é também muito baixo, sendo apenas 22,1% das entidades as que promovem ações nesse sentido. Assim, resumem-se na tabela seguinte os dados coletados acerca dos trabalhos de reinserção familiar e incentivo à convivência com outras famílias, desenvolvidos pelas entidades de abrigo da Rede/SAC: Trabalhos de reinserção familiar e inclusão em família substituta desenvolvidos pelos abrigos da Rede/SAC Critérios considerados Abrigos que atendem PRESERVAÇÃO DOS VÍNCULOS FAMILIARES Incentivam a convivência com a família de origem Não desmembram grupos de irmãos abrigados APOIO À REESTRUTURAÇÃO FAMILIAR Realizam visitas domiciliares Oferecem acompanhamento social Organizam reuniões ou grupos de discussão e apoio Encaminham para inserção em programas de auxílio/proteção a família 5,8% 14,1% INCENTIVO À CONVIVÊNCIA COM OUTRAS FAMÍLIAS 22,1% Incentivam a integração em família substituta (guarda, tutela ou adoção) Utilizam programas de apadrinhamento Enviam relatórios periódicos para a Justiça da Infância e Juventude Fonte: IPEA/DISOC (2003). Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede SAC. Diante da precariedade do trabalho das instituições de abrigo e da dificuldade em promover o retorno das crianças para suas famílias de origem, ou a sua aproximação a outras famílias, tem-se que é mínimo o número de crianças que efetivamente retornam às suas famílias ou são colocadas em família substituta, nas formas de adoção, guarda ou tutela. É difícil, porém, traçar o panorama da medida protetiva de colocação em família substituta em todas as suas modalidades, tendo em vista a total ausência de dados nacionais sobre o tema. Os poucos existentes são regionalizados e frutos de estudos acadêmicos ou de pesquisas incentivadas por alguns juízes em suas respectivas varas. Não há, entretanto, dados produzidos pelo Estado, através de sua Autoridade Central, de maneira a conhecer melhor essa realidade. No que se refere à adoção, sabe-se que são poucas as crianças que obtém sucesso em conseguir uma família que os acolha nessa modalidade. Estudos apontam que o perfil mais desejado por adotantes são crianças do sexo feminino, com até dois anos de idade, de cor 107 branca, que não estejam acompanhadas por grupos de irmãos e não sejam portadoras de enfermidades ou necessidades especiais. Muito poucos são os que demonstram predileção por crianças negras, com mais de sete anos de idade ou ainda que apresentem problemas de saúde (físicos, mentais e portadores de HIV, por exemplo). Assim, a adoção é uma possibilidade bastante improvável para as crianças abrigadas, caracterizando-se como mais uma marca da seletividade do processo de institucionalização. Nesse aspecto, vale ressaltar o uso equivocado da adoção, que não vem servindo como medida protetiva às crianças e aos adolescentes. A existência de um perfil desejado pelos adotantes revela que a adoção vem sendo utilizada segundo os interesses dos adultos ou pais adotivos, e não como medida protetiva excepcional que objetive garantir o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, de acordo com o que dispõe o ECA. Já quanto às outras duas modalidades de colocação em família substituta, a guarda e a tutela, também é flagrante a ausência de dados nacionais sobre a aplicação dessas medidas. A diferença reside no fato de que elas são ainda mais preteridas pelos estudos e pesquisas, bem como, evidentemente, pelos atores da rede de proteção integral no momento de sua aplicação. A ausência de dados e informações sobre a medida protetiva de colocação em família substituta evidencia que, ao longo dos anos, a política empreendida pelo Estado brasileiro sempre foi voltada para a institucionalização. 2.4 Seletividade da institucionalização A institucionalização de crianças e adolescentes mostra-se, sob todos os aspectos, um processo seletivo. Desde suas causas históricas e socioeconômicas, servindo para o “atendimento” de crianças oriundas de famílias pobres e miseráveis, passando pela intervenção jurídico-institucional, na qual apenas os mais “fortes” resistem, ao obter o retorno à família de origem, ou sua colocação em família substituta. Assim é que a grande maioria das crianças pobres e miseráveis permanece abrigada, sendo possível traçar um perfil característico da criança institucionalizada. Segundo o Levantamento Nacional de Abrigos106, a maior quantidade de crianças abrigadas encontra-se na faixa etária de 7 a 15 anos (61,3%), idade esta que inclusive corresponde àquela recomendada para o ensino fundamental e médio. Nesse contexto, a institucionalização pode revelar, como afirma o IPEA, as dificuldades das famílias pobres e miseráveis no acesso a equipamentos e serviços públicos que ofereçam cuidados e educação, tais como creches e escolas. Nesse aspecto, o IPEA revela que 60,8% das crianças de 0 a 6 anos abrigados na Rede/SAC freqüentam creches ou pré-escola, enquanto 95,9% das crianças de 7 a 18 anos estão na escola. O aparente elevado percentual de freqüência à escola nesta faixa etária, no entanto, deve ser olhado com reservas, visto que 16,8% das crianças abrigadas de 15 a 18 anos são analfabetas, ao passo que a média nacional para essa faixa etária é de 3%, segundo dados do IBGE. Ainda de acordo com o IPEA, há prevalência de meninos entre as crianças abrigadas, com 58,5%, sendo que 41,5% são meninas. Essa proporção se altera, entretanto, conforme se avança a faixa etária, a ponto de haver dois meninos para cada menina na faixa etária entre 16 e 18 anos. Em relação à raça/cor das crianças, observa-se a permanência da herança escravista brasileira e da política social excludente e racista, pois 63% das crianças são negras (21% pretos e 42% pardos), 35% brancos e 2% indígenas e da raça amarela. Observa-se também um aumento na proporção de crianças negras abrigadas com o avanço na faixa etária. 106 ENID, Rocha Andrade da Silva (Coord.). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. 108 Assim, o perfil característico da criança que se encontrada abrigada é: menino, na faixa etária de 7 a 15 anos, negro e, evidentemente, de família pobre ou miserável. 2.5 Violência cometida contra as crianças nas instituições Além de terem o direito à convivência familiar e comunitária violado ao serem colocadas em instituições de abrigo, não é incomum a ocorrência de casos de violência física e sexual contra crianças e adolescentes que permanecem nestas instituições. Porém é importante ressaltar a total ausência de dados e informações que procurem dimensionar o estas violações de direitos. Em contato com a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), através da coordenação do “Disque Denúncia 100”, o órgão responsável por coletar denúncias de violência contra crianças do governo federal, foi informado que o banco de dados das denúncias de violências contra crianças e adolescentes não possuía o campo “local de ocorrência”, sendo impossível se determinar qual o percentual desse tipo de violação nas instituições de abrigo. Segundo foi informado pela SEDH este campo do banco de dados foi recentemente acrescentado, o que permitirá uma análise destes casos futuramente. 2.6 Crianças e adolescentes em situação de rua As crianças e adolescentes em situação de rua representam mais um segmento da população infanto-juvenil que têm violado o seu direito à convivência familiar e comunitária. São fruto do mesmo contexto socioeconômico já relatado no tocante às crianças institucionalizadas, isto é, uma sociedade de extrema exclusão e um Estado omisso na promoção de políticas públicas destinadas ao apoio e ao auxílio à família. Embora bastante visíveis e incômodas aos olhos da sociedade, principalmente nos semáforos das grandes cidades, as crianças e adolescentes em situação de rua podem ser considerados os “esquecidos entre os esquecidos”. Isso porque há praticamente ausência de dados e informações sobre a realidade dessas pessoas. Nota-se um ou outro estudo local ou regional, procurando dimensionar o problema, mas não há qualquer informação sobre essa realidade em nível nacional. Diante desse quadro preocupante e da ausência de informações, foi lançada recentemente por entidades de defesa dos direitos da criança uma campanha de âmbito nacional, intitulada “Criança Não é de Rua”, visando chamar a atenção do Estado brasileiro para esse problema. Segundo estimativas da campanha, são cerca de 25.000 107 crianças sobrevivendo nas ruas de municípios com mais de 100.000 habitantes no Brasil. Na ausência de dados em nível nacional, utilizam-se aqui dados das poucas pesquisas locais existentes a fim de apontar o seu perfil: as dos municípios de São Paulo/SP e de Fortaleza/CE108, e as dos estados de Minas Gerais109 e do Rio Grande do Sul110. Vale ressaltar que os números trazidos pelos estudos não permitem afirmar com certeza se esse é o total de crianças sobrevivendo nas ruas nessas localidades, visto que há uma grande dificuldade na coleta dos dados, pois as crianças transitam muito entre os espaços das cidades, havendo também diferença quanto aos horários de permanência e aos dias da semana nas ruas. 107Segundo artigo “Criança não é de rua!”, publicado no jornal O Povo/CE, no dia 23 de julho de 2008. 108 A pesquisa do município de Fortaleza/CE somente conta com dados do número de crianças em situação de rua no município, e os recortes por idade e sexo. 109 Pesquisa realizada em 21 municípios do estado. São eles: Almenara, Belo Horizonte, Betim, Contagem, Divinópolis, Governador Valadares, Ibirité, Ipatinga, Janaúba, Januária, Juiz de Fora, Montes Claros, Muriaé, Ouro Preto, Poços de Caldas, Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia, Teófilo Otoni, Uberaba e Uberlândia, totalizando 21 municípios de MG. 110 Pesquisa realizada em sete municípios que compõe a região metropolitana de Porto Alegre. São eles: Alvorada, Cachoeirinha, Canoas, Esteio, Gravataí, Porto Alegre e Viamão. 109 No município de São Paulo/SP, segundo a FIPE111, em estudo realizado em 2007, foram contabilizadas cerca de 2.000 crianças em situação de rua. Em Fortaleza/CE, de acordo com pesquisa realizada pelo Núcleo Interinstitucional de Educadores de Rua 112 (organização de entidades na cidade de Fortaleza/CE) em 2006, eram cerca de 500 crianças em situação de rua. No estado de Minas Gerais, segundo estudo da Fundação João Pinheiro 113, do ano de 2007, foi constatada a existência de 3.028 crianças em situação de rua, sendo que a capital Belo Horizonte possui 990 crianças nessa situação. Por fim, no estado do Rio Grande do Sul, em estudo elaborado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul 114, foram contadas 825 crianças, sendo que 637 eram da capital Porto Alegre. Todas as pesquisas apontam para a existência de um perfil da criança que se encontra em situação de rua. Em todas as localidades predominam os adolescentes (73,6% em São Paulo/SP; 65,3% em Fortaleza/CE; 72,7% em Minas Gerais; e 63,8% no Rio Grande do Sul), do sexo masculino (77,7% em São Paulo/SP; 72,8% em Fortaleza/CE; 82,1% em Minas Gerais; 79% no Rio Grande do Sul) e negros115 (80,3% em São Paulo/SP; e 61,6% no Rio Grande do Sul)116. Assim, pode-se afirmar que o perfil característico da criança em situação de rua é um adolescente, do sexo masculino e de raça/cor negra. Outro aspecto importante levantado refere-se ao perfil contrastante com os adultos moradores de rua, que apresentam normalmente uma história de vida com vínculos e laços familiares rompidos. A grande maioria das crianças em situação de rua possui vínculos com seus familiares, algumas inclusive permanecem nas ruas durante a semana, retornando para casa nos finais de semana. Em São Paulo/SP, por exemplo, 49,6% das crianças em situação de rua dizem retornar para casa todas as noites; 23,2% afirma nunca voltar; 11,9% volta pelo menos 1 vez por semana; 15,4% volta menos de um vez por semana. Quando não retornam para casa, normalmente as crianças dormem em abrigo/albergue (24,4%); na rua (94,3%) e em casa de amigos (7%)117. Já em Minas Gerais, 80,5% das crianças afirmou dormir na casa dos pais; 10,1% diz dormir na casa de parentes; 3,9% dorme nas ruas; 1,6% dorme na casa de amigos; 0,8% dorme na rua com parentes. Além, disso, 13,1% afirma já ter dormido em alguma instituição. No Rio Grande do Sul, 77,8% das crianças dormem em casa com a família ou conhecidos; 11,7% dormem na rua; e 7,7% em abrigos. No tocante a volta para casa da família, 75,5% afirma voltar todos os dias; 4,0% volta às vezes na semana; 5,2% de vez em quando; e 4,0% nos finais de semana. A situação dessas crianças reflete, assim, os problemas ocorridos na família num contexto de miséria e exclusão social. Trata-se, portanto, de uma conseqüência da ausência de políticas públicas de apoio e auxílio familiar já tratada neste relatório. Nas ruas, as crianças ficam sujeitas a um amadurecimento precoce, abandonando a escola e assumindo a responsabilidade de obtenção de renda através da venda de produtos supérfluos, pequenos roubos, exibições artísticas como a prática de malabarismo, esmolas, entre outras atividades. As pesquisas demonstram, nesse aspecto, o alto índice de evasão escolar aliado ao trabalho e permanência nas ruas. Em São Paulo/SP, verificou-se que 54,5% das crianças em situação de rua abandonaram a escola e 1,4% delas nunca freqüentou, ao passo que, para obter renda, 28% das crianças 111 Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE). Censo de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo. 112 NÚCLEO DE ARTICULAÇÃO DE EDUCADORES SOCIAIS DE RUA. Perfil das crianças e dos adolescentes em situação de moradia nas ruas de Fortaleza. 113 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Crianças e adolescentes nas ruas em Minas Gerais: estimativa, condições de vida e trabalho. 114 GEHLEN, Ivaldo. Perfil e mundo das crianças e adolescentes em situação de rua na Grande Porto Alegre. 115 Os dados da população negra são tomados na soma das porcentagens de pretos e pardos. 116 Não há informações sobre a raça/cor das crianças e adolescentes na pesquisa de Minas Gerais. 117 Os números se referem à respostas múltiplas a esse quesito da pesquisa. 110 vende produtos, 25,8% pede esmolas e 17% presta pequenos serviços, entre outras atividades citadas. Em Minas Gerais, apurou-se que 22,4% das crianças não freqüentam a escola118, enquanto 92,5% afirma realizar alguma atividade para obter renda, tais como venda de produtos, esmola, prestação de pequenos serviços, entre outras atividades. No Rio Grande do Sul, 28,2% das crianças não estudam e 3,5% delas disseram nunca ter estudado, sendo que 54,2% das crianças afirmam ter como atividade principal na rua o trabalho. A ida das crianças para as ruas, portanto, está ligada à situação de miserabilidade dessas famílias, bem como à dificuldade de promover a educação de seus filhos no contexto de extrema exclusão social e ausência de políticas públicas destinadas a essa população. O resultado é que essas crianças acabam privadas dos mais básicos direitos, como o direito à saúde, à educação, ao lazer e à convivência familiar e comunitária. No que se refere a este último, as pesquisas demonstram que as crianças passam a maior parte do tempo em que estão nas ruas com outras crianças e adolescentes, algumas sozinhas, sendo poucas aquelas que permanecem na companhia de adultos, principalmente os pais. Em São Paulo/SP, observou-se que 31,8% das crianças permanecem com outras crianças e adolescentes em situação de rua, 24,6% delas fica com parentes em situação de rua, 17,8% fica sozinha; apenas 4% fica com a mãe e 1,2% fica com o pai. Em Minas Gerais, 29,1% das crianças afirma viver sozinha na rua, enquanto 69,3% delas afirma ter companhia na rua (dessas, 33,5% são amigos, 23,4% são irmãos, 22,8% são pais ou mães, e 9,8% são outros parentes). No Rio Grande do Sul, 39,2% das crianças afirmaram permanecer com companheiros/amigos, 25,4% com irmãos/companheiros/amigos, 12,9% com pais/irmãos, 5,2% com parentes (tios, avós, primos), e 13,7% ficam sozinhas. Desse modo, as crianças e adolescentes em situação de rua representam mais uma parcela da população que tem violado o seu direito à convivência familiar e comunitária. Os dados mencionados não permitem traçar um diagnóstico do problema, pois se referem a poucas localidades do Brasil, além de haver uma diferença metodológica entre os estudos, o que torna complicada a comparação. Assim, a informação mais relevante sobre as crianças em situação de rua é justamente a ausência de informação. Os dados trazidos possibilitam verificar que a situação dessas crianças é semelhante à realidade das crianças que se encontram institucionalizadas. As crianças em situação de rua também passam por instituições como abrigos e albergues, mas é sabido que essa passagem acontece por um curto espaço de tempo. Nesse sentido, é necessária a realização de estudos mais abrangentes e profundos, a fim de se conhecer melhor a realidade das crianças em situação de rua, para que se possa promover políticas públicas adequadas à peculiaridade de sua situação. 3. O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária Embora o direito à convivência familiar e comunitária esteja presente na legislação brasileira desde os anos 1990 – na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 –, somente cerca de dez anos depois é que a sociedade brasileira inicia um processo visando a ruptura com a política assistencialista e institucionalizante, a fim de efetivar o direito das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. A VI Caravana Nacional de Direitos Humanos promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, realizada em dezembro de 2001, pode ser considerada o marco inicial deste recente processo de mobilização da sociedade brasileira. Os dados coletados, trazendo um panorama preocupante da realidade de crianças e adolescentes institucionalizados, foram publicados em um caderno especial do jornal Correio Brasiliense intitulado “Órfãos do Brasil”, de 09 de janeiro de 2002. O quadro alarmante trazido pela Caravana provocou debate entre setores do governo e da 118 A Fundação João Pinheiro constatou que 44,5% das crianças em situação de rua afirma eram de famílias beneficiárias do programa Bolsa Família. 111 sociedade civil organizada, que culminou na realização do “Colóquio Técnico sobre Rede Nacional de Abrigos”, em agosto de 2002. Nessa oportunidade, percebeu-se a necessidade da realização de um censo nacional de crianças e adolescentes abrigados e das práticas institucionais, bem como da elaboração de um plano de ação visando o reordenamento dessas instituições. Criou-se então o “Comitê Nacional para o Reordenamento dos Abrigos”, composto por diversos setores governamentais e algumas organizações não-governamentais. O Comitê ficou encarregado de dar prosseguimento às decisões tomadas durante o Colóquio, entre elas a de pensar a realização de um levantamento nacional de instituições de abrigo. Foi então que se decidiu por limitar o levantamento nacional às instituições de abrigo da Rede de Serviços de Ação Continuada (Rede/SAC), vinculadas financeiramente ao governo federal, sob a justificativa da limitação de tempo e de recursos financeiros. Vale questionar, no entanto, se não seria mais válida a opção por um diagnóstico preciso, que permitisse conhecer melhor a realidade das crianças e adolescentes abrigados, como também das instituições existentes, considerando a grande variedade de concepções de atendimento entre elas. O princípio da prioridade absoluta não deveria implicar que o governo federal empregasse todos os esforços possíveis, a fim de se ter um diagnóstico mais preciso e, portanto, mais válido? Inclusive porque o diagnóstico seria usado, como efetivamente o foi, para a elaboração de um plano de ação para reordenamento dessas instituições. Mesmo frente aos apelos por parte dos setores da sociedade civil organizada, pela realização de um censo nacional de crianças e adolescentes institucionalizados, bem como das instituições existentes, a opção pelo levantamento limitado às instituições da Rede/SAC prevaleceu. O IPEA foi encarregado de realizar o Levantamento Nacional de Abrigos, entregando o texto final em dezembro de 2004. Nesse momento, o debate entre os atores envolvidos foi ampliado, com a finalidade de abranger temas como a família e adoção, redimensionando o plano de ação para uma política não apenas de reordenamento das instituições de abrigo, mas de promoção do direito à convivência familiar e comunitária. Para elaborar o plano de ação, foi criada em outubro de 2004 uma Comissão Intersetorial, composta por representantes dos três poderes, no âmbito das três esferas de poder, além dos mais diversos atores institucionais de política social e de planejamento, de atores que compõe o Sistema de Garantia de Direitos, bem como da sociedade civil organizada, e a UNICEF. Em abril de 2005, a Comissão Intersetorial apresentou o documento “Subsídios para a elaboração do Plano de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária” ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Em seguida, o documento foi submetido à consulta pública, obtendo diversas sugestões que foram analisadas e, conforme o caso, acrescentadas ao Plano. Em novembro de 2006, o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) e o CNAS (Conselho Nacional da Assistência Social), em reunião conjunta, aprovaram a versão final do plano de ação, que passou a se chamar “Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária”, que tem como objetivo principal traçar um novo patamar conceitual na elaboração de políticas públicas que visem à efetivação dos direitos de crianças e adolescentes se desenvolverem em suas famílias. 3.1 Elementos centrais do “Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária” — PNCFC O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) tem como premissa central a elaboração e promoção de políticas públicas voltadas para a família, como meio de se garantir o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes. Nesse aspecto, o Plano nada mais fez do que reconhecer o papel destinado à família nos marcos legais 112 existentes, inscrito na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Segundo a Constituição Federal, em seu Art. 226, a “família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. No § 8º deste mesmo artigo está inscrita a responsabilidade do Estado em assegurar assistência à família, na pessoa de cada um de seus membros. Já o Art. 227 afirma ser dever da família, da sociedade e do Estado a garantia dos direitos previstos às crianças e adolescentes, entre eles o direito à convivência familiar e comunitária. No mesmo sentido, afirma a LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), no Art. 2º, que a assistência social tem como objetivo a proteção à família, à infância e à adolescência. No Art. 4º prevê como princípio da assistência social o respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e à convivência familiar e comunitária. O ECA, por sua vez, garante às crianças e adolescentes o direito à convivência familiar e comunitária (Art. 19). Determina ainda, em seus artigos 92 e 101, que o acolhimento institucional terá caráter excepcional e provisório. Assim, o PNCFC, antes de simbolizar um esforço da sociedade e do Estado na promoção do direito à convivência familiar e comunitária, bem como da centralidade da família na promoção de políticas públicas, reflete a dificuldade existente no Brasil de se cumprir os direitos já estabelecidos nos marcos legais. Em suma, se fossem cumpridas as normas garantidoras dos direitos das crianças e adolescentes, seria desnecessário um plano de ação visando a ruptura com a situação já exposta nesse relatório. É nesse sentido que paira a dúvida quanto ao cumprimento efetivo das ações previstas no Plano, visto haver um histórico descaso do Estado e da sociedade brasileira para com os direitos preconizados às crianças e adolescentes. Resultado de um longo processo de discussão entre diversos setores do governo, da sociedade civil organizada e de organismos internacionais, o PNCFC é apresentado pelo governo federal como um marco nas políticas públicas no Brasil, traçando estratégias para a prevenção do rompimento dos vínculos familiares, na qualificação dos serviços de acolhimento institucional e no investimento do retorno da criança à família de origem, no caso de o vínculo mostrar-se fragilizado ou rompido. Afirma que somente no caso de esgotadas todas as possibilidades para essas ações é que será realizada a inclusão da criança e do adolescente em família substituta. Com essa finalidade, foram estabelecidas diversas diretrizes, objetivos, resultados programáticos, um sistema de implementação, monitoramento e avaliação, além do plano de ação propriamente dito, que foi dividido em quatro eixos estratégicos: 1) o de Análise da situação e sistema de informação compreende ações visando o aprofundamento do conhecimento sobre o contexto socioeconômico e cultural das crianças, adolescentes e suas famílias, bem como das políticas de apoio familiar e das instituições de acolhimento, e a melhoria dos sistemas de informação sobre crianças, adolescentes e famílias; 2) o de Atendimento engloba ações que visam à articulação, integração e ampliação das políticas de apoio familiar e atendimento às crianças e adolescentes, o reordenamento das instituições de acolhimento e o aprimoramento dos procedimentos relativos à adoção; 3) o de Marcos normativos e regulatórios comporta ações de aprimoramento e aperfeiçoamento dos marcos normativos existentes; e 4) o de Mobilização, articulação e participação, envolve ações que visam articular as diversas instituições e instâncias governamentais e não-governamentais, de forma a integrá-las numa política coordenada de promoção do direito à convivência familiar e comunitária. O Plano foi estruturado para ser implantado e implementado num horizonte de nove anos (2007-2015), sendo que as diversas ações previstas possuem os seguintes prazos para efetivação: Curto Prazo (2007-2008), Médio Prazo (2009-2011), Longo Prazo (2012-2015), e Ações Permanentes (2007-2015). 3.2 Implementação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária O PNCFC prevê uma série de mecanismos para sua implementação, bem como instrumentos que propiciem o seu monitoramento e avaliação, tanto pelo governo, quanto pelas 113 organizações da sociedade civil. O primeiro mecanismo previsto é a Comissão Nacional Intersetorial, para o acompanhamento da implementação do Plano, instituída através de um Decreto da Presidência da República em 11 de outubro de 2007. É composta por representantes da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR), dos Ministérios da Educação (MEC), Saúde (MS), Trabalho e Emprego (MTE), e dos Conselhos Nacionais do Direito da Criança e do Adolescente (CONANDA) e da Assistência Social (CNAS). Esta Comissão tem como principais atribuições: articular os atores envolvidos na implementação do Plano para a consecução dos objetivos propostos nos quatro eixos estratégicos; acompanhar o desenvolvimento das ações e tarefas referentes à execução do Plano; controlar as ações, as atividades e os resultados propostos no Plano, para cumprimento do cronograma previsto; socializar informações periodicamente com os diferentes atores do Sistema de Garantia de Direitos e com os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social, dos entes da federação; avaliar continuamente a implementação do Plano nas diferentes esferas, ajustando as condições operacionais e correção de rumos durante o processo de execução; dentre outras. Outro mecanismo constitui na distribuição de atribuições e competências entre os entes federativos das três esferas de governo (federal, estadual e municipal). As esferas estadual e municipal devem, nesse sentido, elaborar seus respectivos planos estadual e municipal e manterem-se em permanente diálogo com a esfera federal na implantação e implementação do Plano. Nesse aspecto, vale dizer que a Comissão Nacional Intersetorial encontra-se no momento em processo de discussão do documento que traça os parâmetros para a constituição das comissões estaduais e municipais, bem como dos planos estaduais e municipais de convivência familiar e comunitária. É causa de preocupação, porém, a efetiva implantação do Plano nas esferas estaduais e, principalmente, nas municipais. Isso porque apenas 49,5% (ou 2.754) dos municípios realizaram as Conferências Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, que tiveram como um dos temas o PNCFC. Desse modo, mais da metade dos 5.561 municípios existentes no Brasil sequer tomaram conhecimento a respeito do Plano. Mesmo os municípios que participaram da VII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em dezembro de 2007, demonstraram pouca afinidade com as diretrizes contidas no PNCFC, visto que reclamaram mais incentivos às instituições de abrigo e à adoção, justamente as últimas medidas a serem tomadas segundo os preceitos do Plano. Na esfera estadual a realidade não muda muito, embora não se tenha notícia sobre o andamento das discussões nos estados. Outro fator que causa preocupação refere-se ao controle social das políticas públicas empreendidas pelo governo, que constitui inclusive uma das diretrizes do Plano. É de responsabilidade do governo federal a produção e socialização de informações consolidadas sobre a implementação do Plano, bem como a apresentação anual de um Relatório de Implementação, inclusive com informações sobre orçamento. Esse aspecto é de grande relevância, tendo em vista a grande dificuldade encontrada quando da elaboração desse relatório na obtenção de informações sobre a implementação do Plano. Diversos contatos foram feitos com a SEDH, através da Subsecretaria de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA), que integra o núcleo executivo da Comissão Nacional Intersetorial, solicitando informações a respeito da implementação do Plano. Porém, observouse omissão por parte desta Subsecretaria em disponibilizar as informações solicitadas. As justificativas dadas para esse descaso foram que seria necessária a sistematização das informações dos diversos ministérios responsáveis pelas ações previstas no Plano, o que seria impossível num curto espaço de tempo. De fato, as poucas informações obtidas foram 114 fornecidas pela SEDH/SPDCA e pelo MDS separadamente. Ocorre, entretanto, que é de responsabilidade da Comissão Nacional Intersetorial “avaliar continuamente a implementação do Plano nas diferentes esferas”, tendo ainda o governo federal a incumbência de produzir informações consolidadas a respeito da implementação do Plano. Vale lembrar que o instrumento hábil para a sistematização das informações a respeito das ações implantadas, bem como de sua socialização, é o Relatório de Implementação anual que, evidentemente, não foi produzido. Sendo assim, é difícil saber se as ações apresentadas pela SEDH/SPDCA e pelo MDS representam o conjunto das ações realizadas até o momento ou não, dificultando sobremaneira o controle social das políticas públicas. O monitoramento da implementação do Plano fica, desse modo, bastante prejudicado, sendo impossível verificar o andamento do processo de ruptura política e cultural com a situação de crianças e adolescentes privados de sua convivência familiar e comunitária já relatada. Atendo-se às informações prestadas pela SEDH/SPDCA, as ações empreendidas até o momento consistiram: - na integração de programas destinados ao fortalecimento dos diversos atores que compõe o Sistema de Garantia de Direitos, entre eles os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e Conselhos Tutelares119; – em ações visando a implantação e implementação do Sistema de Informação para a Infância e a Adolescência (SIPIA) I e II – que tratam de medidas protetivas e medidas sócio-educativas respectivamente – em nível nacional; – no apoio à produção de Material de Formação para Abrigos, elaborado pelo Grupo de Trabalho Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária120, o qual discute princípios relacionados ao direito à convivência familiar e comunitária e ao acompanhamento da família de origem e famílias acolhedoras, servindo de orientação para o trabalho das instituições de abrigo, bem como dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares; – na realização da campanha “Não Bata, Eduque”, visando à prevenção de violência doméstica; – na formulação de Projeto de Lei substitutivo ao que já se encontra em tramitação no Congresso Nacional, dispondo sobre adoção; - por fim, num projeto visando readequar a rede de serviços de acolhimento à realidade indígena (população Kaiowáe Ñandéva). Já o MDS relatou as seguintes ações: – ampliação dos municípios contemplados pela rede CRAS e CREAS, que se constituem de unidades públicas prestadoras de serviços de Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, no âmbito da LOAS, realizando trabalhos de acompanhamento às famílias em situação de vulnerabilidade e às famílias em situação de violação de direitos; – reformulação e integração do Programa Projovem Adolescente, que envolve transferência de renda aliada ao trabalho de incentivo à convivência familiar e comunitária, tendo como público alvo jovens de 15 a 17 anos, que se encontrem: nas famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família; que tenham estado ou ainda estejam em cumprimento de medidas sócio-educativas; que se encontrem sob medida protetiva; e os egressos do PETI e de programas de enfrentamento à violência, abuso e exploração sexual; – criação de programa que visa garantir o acesso à escola a crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais, do Programa Benefício de Prestação Continuada da 119Atualmente existem no Brasil 5.104 Conselhos de Direitos e 5.004 Conselhos Tutelares. 120 O Grupo de Trabalho Pró Convivência Familiar e Comunitária é uma rede de organizações da sociedade civil organizada, formada para fornecer alternativas à institucionalização por meio de subsídios teórico-práticos sobre o tema da convivência familiar e comunitária. 115 Assistência Social; – realização de um levantamento sobre a rede de acolhida junto a 200 municípios com mais de 100.000 habitantes, que subsidiou um reordenamento dos serviços de abrigo e apoio a programas de famílias acolhedoras e repúblicas, inclusive para sua implementação; – elaboração de documento que estabelece os parâmetros de funcionamento dos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes, trazendo orientações metodológicas para o atendimento; - lançamento de programas e projetos que visam à capacitação de gestores de programas sociais no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Observando-se apenas as ações previstas no Plano como de Curto Prazo, cuja implementação deveria ocorrer nos anos de 2007 e 2008, nota-se a ausência de ações fundamentais, algumas inclusive de caráter emergencial, mas que não foram relatadas pelos dois órgãos mencionados, concluindo-se então que não foram implementadas. Entre elas temos: – realizar pesquisas sobre crianças e adolescentes em situação de rua para conhecer a sua realidade em níveis nacional, estaduais e municipais; – promover um “mutirão interinstitucional” para revisão dos casos de crianças e adolescentes sob a medida protetiva de abrigo em entidade (artigo 101, VII, do ECA), iniciando pelos programas de acolhimento institucional co-financiados pelo governo federal; – adequar os programas de acolhimento institucional ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), à Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), às diretrizes deste Plano Nacional e aos parâmetros básicos estabelecidos para o reordenamento institucional, monitorando seu funcionamento; – elaborar e aprovar parâmetros precisos para aplicação da provisoriedade e excepcionalidade no acolhimento institucional previstos no artigo 101 do ECA; – estabelecer mecanismos de fiscalização para os programas de acolhimento institucional, para que apliquem os conceitos de provisoriedade e excepcionalidade; - mobilizar nacionalmente a sociedade para a adoção de crianças e adolescentes, cujos recursos de manutenção dos vínculos com a família de origem foram esgotados, com ênfase nas adoções de crianças maiores e adolescentes, afrodescendentes ou pertencentes a minorias étnicas, com deficiências, necessidades específicas de saúde, grupos de irmãos e outros. De acordo com as informações prestadas, o PNCFC não vem sendo implantado nos termos previstos em seu texto. Seja pelo grande atraso na articulação política com os estados e municípios, que passados praticamente dois anos de sua aprovação, sequer têm conhecimento dos termos nele contidos, seja pelo atraso em ações que já deveriam ter sido realizadas, mas ainda não foram. Dentre as medidas emergenciais que não foram realizadas, destaca-se a realização de pesquisas sobre a realidade de crianças e adolescentes em situação de rua, que continuam sendo tratadas com descaso no momento da elaboração de políticas públicas. Além disso, o “mutirão interinstitucional” para a revisão dos casos de crianças abrigadas também figura como ação emergencial não realizada. Por fim, a regulamentação dos conceitos de excepcionalidade e provisoriedade, contidos no ECA, reclamam por atenção, visto que a distorção desses dois conceitos é uma das principais causas para a má utilização da medida protetiva de abrigo. Vale destacar duas medidas tomadas por outros atores institucionais que não estão diretamente ligados a implementação do Plano, no que diz respeito à adoção. A primeira é o Cadastro Nacional de Adoção, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em abril de 2008, que tem como objetivo unificar e compartilhar informações de crianças e adolescentes em condições de serem adotadas e de pessoas dispostas a adotar. O Cadastro Nacional de Adoção é uma medida fundamental a fim de dar agilidade ao penoso 116 processo de adoção, principalmente para aquelas crianças que se encontram à espera de uma família que os acolha, nessa modalidade de inclusão em família substituta. Permitirá que crianças sejam adotadas por pessoas de outras localidades do país e, esgotadas todas as alternativas de adoção no Brasil, por pessoas de outros países. No entanto, persiste ainda uma preocupação no tocante à forma de utilização do cadastro. Ao reunir os perfis das crianças em condições de serem adotadas, nada garante que as crianças preteridas no momento da adoção (meninos, negros, e portadores de necessidades especiais) consigam agora encontrar famílias dispostas a adotar. Corre-se ainda o risco de se estabelecer uma “vitrine” de crianças que estarão à espera de adotantes. Se assim for feito, a adoção, que é uma medida protetiva para crianças e adolescentes, continuará distorcida, isto é, servindo aos interesses dos adultos adotantes e não ao interesse superior da criança, como determina o ECA. A outra medida mencionada é o Projeto de Lei que dispõe sobre adoção, atualmente em trâmite em regime de urgência no Congresso Nacional. O Novo Código Civil, que entrou em vigência em 2002, trouxe alguns retrocessos no tema da adoção já disciplinada no ECA, fazendo com que diversos projetos de lei sobre o tema fossem apresentados. A maioria deles implicava em retrocesso, por exemplo, colocando a adoção como um “direito” da criança e do adolescente, implicando evidentemente numa distorção do direito à convivência familiar e comunitária. A maioria desses projetos já foi arquivada, permanecendo um que versa sobre o aumento do prazo do estágio de convivência para a adoção internacional. Face à elaboração do PNCFC, foi apresentado o projeto substitutivo ao Projeto de Lei que dispunha sobre a adoção, propondo alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente de forma a atualizar as disposições contidas no ECA no que diz respeito ao exercício do direito à convivência familiar e comunitária. O projeto substitutivo, porém, aguarda a apreciação do parlamentares envolvidos nas discussões. 4. Pobreza e exclusão social no contexto do direito à convivência familiar e comunitária A efetivação do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes brasileiros encontra muitos entraves representados pela situação de pobreza e exclusão social de grande parte da população brasileira. A situação que hoje se vê é resultado de um longo processo histórico, marcado pela emergência de sistemas de assistência ao menor durante regimes políticos autoritários, como por exemplo a PNBEM (Política Nacional de Bem-Estar do Menor) e FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor), surgidas sob a égide da Ditadura Militar, a partir de 1964. Rizzini (2004) observa que, durante esse processo histórico, as políticas autoritárias eram acompanhadas por ideologias que procuravam justificar a institucionalização dos menores carentes e abandonados, sempre embasadas nas ciências humanas e sociais (como, por exemplo, a construção da categoria menor, ainda bastante utilizada no Brasil). A autora afirma ainda haver um paradoxo entre os discursos de combate às instituições e as políticas que propiciavam o crescimento do número de instituições. Assim, o discurso “‘internação como último recurso’ sempre foi repetido, mas pouco seguido”. Essas políticas assistenciais, que implicavam na institucionalização de crianças e adolescentes, permitiram que fosse iniciada a prática de retirada das crianças pobres e miseráveis do poder de seus pais para transferi-las ao Estado, sob a justificativa de que iriam “preservar o menor do ‘perigo que representa, para si e para sociedade’, pelo seu ‘estado de carência afetiva e material’”. Ao assumir a responsabilidade pela tutela das crianças e adolescentes pobres, o Estado promove também a culpabilização das famílias, sempre embasado pelos saberes científicos, segundo a concepção de que elas são incapazes de cuidar e educar seus filhos. Esse arcabouço 117 político, ideológico e cultural ainda persiste no Brasil, representando o grande impasse para a efetivação do direito à convivência familiar e comunitária. Nesse sentido, Fávero (2001), ao analisar os motivos que levam à destituição do poder familiar em processos nas Varas da Infância e Juventude, observa a culpabilização das famílias nas interpretações dos assistentes técnicos e operadores do direito como negligência, abandono, violação de direitos, dentre outras. No que diz respeito às acusações de negligência, por exemplo, a grande maioria se refere a mães que deixam em casa filhos de 7 ou 8 anos de idade cuidando de filhos de 2 ou 3 anos de idade enquanto trabalham. Tal situação, que é reflexo da falta de equipamentos e serviços públicos como creches e escolas, por vezes é interpretado como abandono ou negligência por parte das mães, sendo alvo de denúncias por parte de Conselhos Tutelares, ensejando o abrigamento de crianças e o processo de destituição do poder familiar. Como já apontado, as práticas dos órgãos da rede de proteção integral, tais como o Conselho Tutelar e o Juiz da Infância e Juventude e seus assistentes técnicos, demonstram a permanência das políticas, ideologias e culturas autoritárias e paternalistas, sempre com a justificativa do interesse superior da criança e do adolescente. A permanência desta “cultura institucionalizante” pode também ser observada nas próprias instituições de acolhimento. Com a ruptura de paradigma trazida pelo ECA, muitas delas procuram se adequar aos preceitos estatutários, reduzindo o seu tamanho e obedecendo alguns preceitos contidos no ECA. Porém, de modo geral, as instituições de abrigo preservam muito do caráter paternalista e assistencialista do período anterior ao ECA. O IPEA, por exemplo, afirma que 67,2% das entidades de abrigos da Rede/SAC possuem vinculação religiosa. Destaca também que o elevado número de entidades que prestam serviço de abrigo na região sudeste coincide com a distribuição de entidades filantrópicas no Brasil, que registra 59% de entidades nessa região. O estado de São Paulo, que possui 34,1% das entidades de abrigo, segundo o IPEA, é o que conta também com o maior número de entidades filantrópicas, com 34% das entidades do país121. Oliveira (2001) conclui, portanto, que a medida de abrigo em entidade, colocada no ECA como medida protetiva às crianças e adolescentes que tenham seus direitos ameaçados ou violados, torna-se uma forma de assistencialismo, de caridade e filantropia, que conta geralmente apenas “com a vontade de fazer o melhor pelas crianças”. Há, assim, uma cultura fortemente enraizada na sociedade brasileira, impregnada no imaginário social, principalmente nos atores da rede de proteção integral, de que a institucionalização de crianças é uma medida eficaz para oferecer cuidados às crianças e adolescentes pobres e miseráveis, visto que não podem obtê-los de suas famílias. Tal cultura está presente inclusive nas próprias famílias, já que muitas das crianças são institucionalizadas por iniciativa das próprias mães das crianças, como demonstra o IPEA ao verificar as instituições que mais encaminham as crianças para os abrigos da Rede/SAC, tendo a família das crianças e adolescentes obtido 11,1% das menções. 5. Sugestões de Recomendações 1. Realizar um censo das instituições de acolhimento de crianças e adolescentes, a fim de conhecer melhor o problema da institucionalização de crianças e adolescentes; 2. Realizar estudos destinados a conhecer melhor a situação de crianças e adolescentes que se encontram em situação de rua; 3. Promover a articulação entre programas de distribuição de renda e programas voltados para 121 MINISTÉRIO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL. Conselho Nacional de Assistência Social. Balanço da filantropia no Brasil. Brasília, 2003. Disponível em: http://www.assistenciasocial.gov.br, na página do CNAS in: IPEA (2004). 118 o apoio sócio-familiar como forma de prevenção do rompimento do vínculo entre crianças e adolescentes com suas famílias por motivo de pobreza; 4. Garantir, em lei, os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, bem como demais princípios processuais estabelecidos na Constituição Federal, nas ações que envolvam a institucionalização de crianças, de forma a se assegurar a defesa dos pais ou responsáveis nos procedimentos, antes que a criança seja separada do convívio de seus pais ou responsáveis; 5. Garantir o direito de crianças e adolescentes expressarem suas opiniões nos procedimentos que implicam sua institucionalização e nos de destituição do poder familiar; 6. Assumir a prioridade absoluta no desenvolvimento de ações que visem a reduzir o número de crianças institucionalizadas, na elaboração de políticas de prevenção do rompimento do vínculo entre crianças e suas famílias, bem como no desenvolvimento de ações voltadas para reinserção da criança prioritariamente em sua família de origem e, como último recurso, para sua inclusão em família substituta; 7. Promover ações que busquem por fim à discriminação e à seletividade no atendimento a crianças e adolescentes em programas de apoio sócio-familiar, em programas alternativos à institucionalização, e principalmente nas instituições de acolhimento e na inclusão em família substituta; 8. Assumir a prioridade absoluta na implantação e implementação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, inclusive com destinação orçamentária necessária para a realização de todas as ações programadas, garantindo-se também o efetivo monitoramento pela sociedade civil com a sistematização e divulgação das ações empreendidas em todas as esferas de poder. FONTES UTILIZADAS ALMEIDA, Bernadete de Lourdes Figueirêdo de. Realidade dos abrigos para crianças e adolescentes de João Pessoa/PB: desafios e perspectivas. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2007. BRASIL, Presidência da República, Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência familiar e Comunitária, 2006. ENID, Rocha Andrade da Silva (Coord.). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. 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Esse documento apresenta o marco jurídico nacional e internacional, a descrição da situação atual, as principais políticas públicas existentes com uma análise crítica de suas limitações, e por fim, indícios que demonstrem como a sociedade brasileira percebe e compreende essa questão. Também serão oferecidas recomendações para subsidiar o Comitê no processo de análise do relatório oficial, produzido pelo Governo Brasileiro. A Associação Nacional dos Centros de Defesa de Crianças e Adolescentes – ANCED entende que a violência sexual é uma das principais formas de violação de direitos humanos, conforme a Declaração Final do I Congresso Mundial de Estocolmo, que afeta meninos, meninas e adolescentes em todo o país. Sua importância não decorre só da natureza da violência, mas também de sua disseminação e banalização no Brasil contemporâneo. É possível afirmar que a amplitude da violência sexual permance desconhecida, uma vez que invisível em função de uma cultura violenta, adultocêntrica e machista que não a percebe como uma violação de direitos. Ainda que os dados oficiais estejam longe de retratar a realidade, a violência sexual é reconhecidamente um fato cotidiano. Esse capítulo trabalhou com o período de 2004 a 2006 para fins de recolhimento de informações e dados. Embora não se tenha a pretensão de descrever de forma completa a realidade brasileira, a intenção da ANCED é chamar atenção para essa situação particular de violência uma vez que o Estado Brasileiro não tem oferecido respostas adequadas. Também pretende oferecer ao Comitê de monitoramento da Convenção dos Direitos da Criança a visão da sociedade civil sobre o tema, sendo esse esforço uma colaboração política para a consolidação dos marcos democráticos e da luta pela garantia de direitos. Embora o enfrentamento da violência sexual esteja incluído na agenda política do país desde a década de noventa, influenciado pelos processos internacionais e especialmente pelos Congressos Mundiais de Estocolmo e Yokohama respectivamente, a posição da sociedade civil é que o Governo Brasileiro ainda não encontrou uma forma eficaz de garantir e proteger os direitos sexuais e reprodutivos de crianças e adolescentes. Esse relatório pretende contribuir para que essa discussão ganhe maior dimensão e que o Estado Brasileiro se empenhe para que crianças e adolescentes possam (re)construir um projeto de vida digno, autônomo e livres de violência sexual. 2. Metodologia Para organizar o recolhimento da informação, a ANCED - Associação Nacional dos Centros de Defesa de Crianças e Adolescentes criou alguns descritores e indicadores que compõem a estrutura desse capítulo, na intenção de montar o quebra-cabeça de informações que oferecem possibilidades de compreensão a realidade brasileira. Repita-se: esse capítulo não tem o objetivo de retratar a realidade, mas de demonstrar a ausência de cumprimento das obrigações de respeitar e garantir os direitos expostos na Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes em relação à situação de violência banalizada em que vivem milhares de crianças brasileiras obrigadas a conviver com situações de violência sexual. Os 122 descritores criados para dar sistematicidade às informações coletadas são: α. Marco Legal e Institucional: descrição do marco legal nacional e internacional adotado pelo Governo Brasileiro. Comenta-se nessa seção a legislação brasileira e a necessidade de reforma para se atingir os patamares estabelecidos na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. β. Esforço: descreve as políticas e programas governamentais implementados no Brasil, de 2004 a 2006 para dar conta das situações de violência sexual. Aqui serão abordadas as ações da Secretaria Especial de Direitos Humanos, do Ministério da Educação, do Ministério da Justiça, do Ministério do Desenvolvimento Social, do Ministério da Saúde. χ. Situação: seção dedicada ao diagnóstico e a análise de dados que demonstram a disseminação e banalização da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes no Brasil contemporâneo, nas modalidades abuso sexual, exploração sexual, turismo sexual, pornografia na internet e tráfico de crianças e adolescentes. δ. Contexto e Ambiente: descreve a compreensão da sociedade brasileira a respeito da violência sexual. Serão utilizados casos coletados pelas organizações integrantes da ANCED que sejam representativos e medianos, ou seja, não se optou por trabalhar com casos de violações de direitos especialmente críticos, mas casos médios e cotidianos. Também serão utilizados pesquisas de informações a esse respeito coletadas pela ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Criança, para que se veja como os meios de comunicação difundem e formam opinião a esse respeito. Ao final de cada seção serão oferecidas as recomendações da ANCED para que o Governo Brasileiro possa cumprir seu papel de garante dos direitos de crianças e adolescentes. Deve-se deixar claro que a violência sexual não é compreendida como um fenômeno pontual ou isolado porque sua ocorrência é nacional e generalisada. Há por certo uma discrepância entre quantidade de notificações, presença de equipamentos públicos e uma diversidade cultural nos 26 Estados brasileiros mais o Distrito Federal que contribui para garantir invisibilidade dos casos. Por isso, ainda que não existam denúncias feitas através dos canais oficiais em diversos Estados não se pode dizer que não existam ocorrências de violência sexual. Aparentemente isso é mais um indicador que a sociedade local não está suficientemente informada a respeito dos direitos que deveriam gozar crianças e adolescentes. Uma das mais perversas consequências da violência sexual registradas pelas entidades de atendimento é que crianças, adolescentes e suas famílias são com frequência responsabilizados pela violação que vivenciaram. Os princípios do interesse superior afirmado pela Convenção, ou sua tradução para a legislação brasileira, que é a garantia de ser tratado com prioridade absoluta, presente no Art. 227 da Constituição Federal, ainda não foram incorporados pela cultura nacional. A sociedade brasileira é permeada pela visão de que crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual ou de tráfico de seres humanos devem ser tratadas como responsáveis pela suas próprias escolhas, aumentando sua vulnerabilidade social e reafirmando o ciclo de impunidade. Nesse documento se recusa a visão de que a violência sexual seja pontual e localizada em alguma região do país ou mesmo algo que diz respeito somente as classes sociais mais baixas. Recusam-se os clichês argumentativos que afirmam ser a violência sexual parte intrínseca de uma cultura local ou consequência exclusiva da pobreza. Aqui se afirmam análises estruturais e soluções coletivas que possam atacar as causas que empurram crianças e adolescentes para o mercado do sexo ou para a reafirmação do pacto do silêncio. A violência sexual é compreendida como uma violação de direitos humanos, e que, portanto, tem natureza pública e é de responsabilidade coletiva da sociedade brasileira. Também se percebe a violência sexual como conseqüência de um projeto de desenvolvimento 123 com resquícios de colonialismo, que segue reforçando as desigualdades e assimetrias sociais. Dessa forma, embora visto internacionalmente como um país hospitaleiro, a sociedade brasileira produz violência estrutural em larga escala, especialmente contra crianças e adolescentes, e dentre esses, particularmente contra os mais pobres. Aqui se somam múltiplos fatores de discriminação, tais como idade, raça ou etnia no acesso aos direitos básicos. 3. Recomendação do Comitê dos Direitos da Criança sobre Violência Sexual para o Estado Brasileiro: O monitoramento internacional das ações do Estado no campo dos direitos humanos visa apoiar os Estados a implementar progressivamente os padrões estabelecidos pelos tratados internacionais de direitos humanos. Tal processo de acompanhamento das ações estatais deve ser progressivo, observando a evolução do Estado em adequar sua estrutura aos patamares mínimos estabelecidos na Convenção dos Direitos da Criança. A elaboração de um relatório alternativo é parte de um processo dialógico impulsionado pelas Nações Unidas como uma forma de obter uma opinião diferenciada da governamental sobre o processo de implementação dos Direitos da Criança. Nesse sentido, com base no primeiro relatório oficial apresentado pelo Governo Brasileiro ao Comitê de monitoramento da implementação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 2004 e na visita do então Relator Especial Juan Miguel Petit para a Comissão de Direitos Humanos para a venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil, foram apresentadas as seguintes recomendações ao Governo Brasileiro sobre esse tema: Forneça proteção às vitimas de exploração sexual e tráfico, especialmente prevenção, reintegração social, acesso a atenção de saúde e assistência psicológica de uma maneira coordenada e culturalmente apropriada, incluindo a cooperação com organismos nãogovernamentais e com países vizinhos; Implemente a recomendação feita pelo Relator Especial de que sejam estabelecidas varas criminais especializadas para crianças vítimas de crime, bem como promotorias especializadas e delegacias especializadas para a proteção de crianças e adolescentes. 4. Conteúdo das Seções sobre os indicadores e descritores estabelecidos pela Anced: 4.1 Marco Legal e Institucional: A partir da Constituição Federal promulgada em 1988, o Brasil começou a se integrar ao grupo de países que adequaram sua legislação à Teoria da Proteção Integral, em substituição a antiga Doutrina da Situação Irregular. No entanto, vinte anos depois essa mudança de paradigma ainda não se completou, dando origem a uma situação paradoxal no qual a legislação brasileira está em sua maior parte adequada aos padrões estabelecidos pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, mas a cultura brasileira não. A atuação dos agentes do Estado em diversas ocasiões é abertamente menorista e tutelar. O processo de mobilização em defesa dos direitos das crianças e adolescentes desenvolve-se no Brasil a partir da década de 1990. No mesmo ano, surge a Lei 8069, o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a concepção de que “a criança e o adolescente é pessoa na condição peculiar de desenvolvimento e com absoluta prioridade no atendimento de suas necessidades, e ainda atribui à família, à sociedade e ao Estado a responsabilidade pela garantia dos direitos assegurados em lei” (CASTANHA, 2008. p.11). Essa norma foi um marco legal importante porque transferiu o espaço de discussão do espaço privado para o âmbito público, entretanto, o tema ‘violência sexual contra crianças e adolescentes’ somente passou a fazer parte com mais densidade da agenda oficial do Brasil em 124 2003, quando o Presidente Luís Inácio Lula da Silva admitiu ser esse um problema grave e complexo que precisa de políticas direcionadas. A proteção à criança e ao adolescente está amparada em um marco legal específico que envolve não apenas as normas nacionais, mas um significativo conjunto de disposições internacionais. De modo sintético, a Assembléia Geral da Nações Unidas delineou o tema principalmente na Declaração dos Direitos da Criança (Resolução nº 1.386, de 20 de novembro de 1959), nas “Regras de Pequim” (Resolução nº 40/33, de 29 de novembro de 1985), na Convenção sobre os Direitos da Criança (Resolução nº 44/25, de 20 de novembro de 1989) e nas “Diretrizes de Riad” (Resolução nº 45/112, de 14 de dezembro de 1990). Há ainda a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e seus dois protocolos, o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativos ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados e o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda de de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantil. No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, o Brasil ratificou a Convenção no. 182, sobre a proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação. Outros atos e acordos internacionais foram estabelecidos posteriormente, seguindo, de modo geral, essas deliberações das Nações Unidas. O Brasil acompanhou essa tendência e estabeleceu normas nacionais específicas nesse tema. O principal marco normativo está expresso na Constituição Federal de 1988, que concedeu (no seu art. 227) “absoluta prioridade” aos direitos das crianças e adolescentes e sua proteção contra os diversos tipos de violência. Essas diretrizes gerais foram disciplinadas com mais precisão no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que delineou a política de proteção e atendimento dos direitos da criança e do adolescente, criando o que hoje se conhece como o “Sistema de Garantias”. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) foi criado pela Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991, órgão deliberativo nacional daquela política. O funcionamento desse órgão público foi regulamentado pelo Decreto nº 408, de 27 de dezembro de 1991, posteriormente revogado pelo Decreto nº 5.089, de 20 de maio de 2004, atualmente em vigor. O CONANDA é um órgão paritário, composto por representantes de Governo e da sociedade civil com a atribuição de deliberar sobre políticas públicas. Há, ainda o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, que homologado pelo CONANDA. O plano é dividido em seis eixos, para orientar a construção políticas e ações, a saber, análise da situação, mobilização e articulação, defesa responsabilização, atendimento, prevenção e protagonismo infanto-juvenil. O plano nasceu um esforço da sociedade civil em agendar o tema e pautá-lo na vida pública do Brasil. foi de e de Além das normas atualmente vigentes, diversas propostas de modificação legislativa interferem diretamente com os direitos garantidos à criança e ao adolescente. As primeiras iniciativas no âmbito do legislativo foram frutos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito instalada em 1993 para verificar os casos de “prostituição infantil”. Embora não hajam muitos resultados concretos, essa CPI serviu para colocar o tema em uma situação de alta visibilidade e chamar atenção para várias ocorrências regionais de violência sexual no Brasil, com variados recortes locais. Em maio de 2003 o Congresso Nacional, atendendo a requerimento de março do mesmo ano, constituiu uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (mista porque reunia representantes da Câmara dos Deputados e do Senado) com o objetivo de “investigar as situações de violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil”. Em julho de 2004 foi apresentado o relatório final da Comissão, que, entre outras medidas, recomendou a adequação do marco normativo vigente. De modo específico, a Comissão apresentou de imediato três Projetos de Lei (PL): PL 4850/2005, para tipificar crimes sexuais; o PL 4851/2005, para tipificar a pedofilia por via eletrônica; e o PL 4852/2005, para responsabilizar os estabelecimentos que hospedam crianças e adolescentes desacompanhadas dos pais. Todas essas iniciativas, ainda pendentes 125 de apreciação final pelo Legislativo, visavam a suprir lacunas identificadas na legislação, decorrentes em especial do contraste entre as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente e aquelas das leis penais vigentes. Deve-se registrar o pouco empenho do Governo Brasileiro em pressionar o Poder Legislativo para aprovar os PL’s que atualizariam o marco legal. Afinal, do ponto de vista da comunidade internacional, a partir da ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, o Governo Federal representado pelo Poder Executivo assumiu o compromisso de respeitar e garantir os direitos estabelecidos pela Convenção. Nesse sentido, é de se avaliar que não houve uma ação efetiva do Poder Executivo perante o Legislativo para aprovar esses PL´s. Desde então, a sociedade civil anualmente no 18 de Maio, dia dedicado ao tema na agenda federal, cobra-se do Governo empenho para aprovação dessas mudança. E nesse momento está ativa uma CPI do Senado Federal que trata da utilização de internet para fins de pedofilia. Essa CPI foi criada nos termos do Requerimento nº 200, de 2008, para, no prazo de cento e vinte dias, apurar a utilização da internet na prática de crimes de "pedofilia", bem como a relação desses crimes com o crime organizado. Um dos produtos dessa CPI é o projeto de lei do Senado de número 250, de 2008, cuja ementa propõe “Altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, para aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet. Embora haja necessidade indiscutível de adequar o marco legal nacional para fazer face aos desafios trazidos pela utilização de novas tecnologia para fins de violações de direitos humanos não se pode dizer que essa CPI tenha se orientado no sentido de contar com a estreita colaboração da sociedade civil organizada. Percebe-se uma tendência a espetacularização de casos de violência com exposição das vítimas acima do desejável e do que determina o Princípio do Interesse Superior. Essa CPI também fez propostas de alterações legislativas, como é o caso do Projeto de Lei do Senado (PLS) 126 de 2008, que altera cuja ementa dispõe sobre a prisão provisória em situações de extradição de estrangeiros, e do PLS 275 de 2008, que altera o ECA para “criar o art. 244-B para criminalizar expressamente a conduta de quem se aproveita sexualmente de adolescentes”. É de se chamar atenção para que alguns desses PLS não são harmônicos com a Teoria da Proteção Integral, sendo potencialmente novos violadores de direitos com a reprodução dos estigmas e das discriminações. Também é importante registrar o Projeto de Lei nº 4126/2004, que estabelece as bases do procedimento que veio a ser conhecido como “Depoimento sem Dano”. Essa técnica foi implantada inicialmente na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, em maio de 2003, com o intuito de evitar que a criança ou adolescente vítima de abuso sexual passasse por mais de uma inquirição durante o processo judicial. Introduzindo recursos eletrônicos como câmeras filmadoras, pontos eletrônicos e equipamentos de gravação em audiências, o projeto tem como principal objetivo promover a proteção psicológica da criança vítima de violência sexual, evitando seu contato com o acusado e a repetição de interrogatórios que causam a revitimização. A metodologia propõe que a inquirição seja feita por um assistente social ou psicólogo, em uma sala adaptada para esse fim. O objetivo é evitar o contato da vítima com o suposto agressor e seu advogado, além de produzir uma prova que possa ser utilizada diversas vezes sem que a vítima seja submetida aos vários momentos processuais em que seria necessário uma repetição de seu depoimento. Utiliza-se um ponto eletrônico para que as perguntas do Juiz, do Promotor ou dos advogados possam ser repassadas ao profissional que está realizando conduzindo a sessão. A técnica do Depoimento sem Dano tem por objetivo criar um procedimento de escuta para vítimas de violência sexual, evitando a revitimização que é consequência de um procedimento judicial burocrático, moroso e no mais das vezes, ineficiente. A proposta prevê que um psicólogo orientado pelo Juízo inquirisse a vítima, de forma a coletar as informações minorando o trauma, sendo o depoimento gravado para ser utilizado sempre que necessário. A 126 proposta vem causando polêmica inclusive entre os próprios profissionais de psicologia e necessita ser melhor debatida pela sociedade. Há um acordo de que há que se implementar algo que diminua as situações de revitimização que violam direitos, mas não há um consenso de que a proposta apresentada pelo PL seja a melhor possível. Entende-se que o PL que tramita no Poder Legislativo não ataca algumas causas de sofrimento de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual porque se detém em apresentar uma metodologia e não uma reforma de um sistema que viola direitos. A sociedade civil gostaria de sugerir que o Governo Federal abrisse uma série de debates sobre esse tema. As normas brasileiras, em geral, perfazem dois aspectos cruéis do problema da violência sexual contra crianças e adolescentes. De um lado, de posse das denúncias e dos dados sobre a violência, o Estado não promove a proteção da vítima, conduzindo-a a outro processo de vitimização. Por vezes, no entanto, é dado andamento ao processo, mas sem o devido cuidado com a vítima, considerando-a tão somente como fonte de informações do processo penal, maltratando a vítima sob o argumento da necessidade de punir o agressor ou agressora 122. E ainda assim, pode-se dizer que na maioria dos casos o Brasil tem uma situação generalizada de impunidade persistente. Quadro: Marco Legal Brasileiro Constituição Federal de 1988 http://www.planalto.g ov.br/ccivil_03/constit uicao/constitui %C3%A7ao.htm Lei 8.069/1990 Estatuto da Criança e do Adolescente http://www.planalto.g ov.br/ccivil/LEIS/L806 9.htm Código Brasileiro Penal Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (...) § 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente Art. 5° - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Art. 86 - A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Art. 87 - São linhas de ação da política de atendimento: (...) lII - serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. Art. 244-A. Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2o desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual: Pena - reclusão de quatro a dez anos, e multa. § 1o Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas no caput deste artigo. § 2o Constitui efeito obrigatório da condenação a cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento. Estupro. Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de seis a dez 122 Proteger e responsabilizar. O desafio da resposta da sociedade e do Estado quando a vítima da violência sexual é criança e adolescente. Texto elaborado pelo consultor Renato Roseno para o Comitê Nacional de Enfrentamento Sexual contra Crianças e Adolescentes. 2007. 127 http://www.planalto.g ov.br/CCIVIL/DecretoLei/Del2848.htm Lei 8.072/1990 Lei dos Crimes Hediondos http://www.planalto.g ov.br/CCIVIL/LEIS/L80 72.htm anos. Atentado violento ao pudor. Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena - reclusão, de seis a dez anos. Posse sexual mediante fraude. Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher, mediante fraude: Pena - reclusão, de um a três anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado contra mulher virgem, menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos: Pena reclusão, de dois a seis anos. Atentado ao pudor mediante fraude. Art. 216. Induzir alguém, mediante fraude, a praticar ou submeter-se à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Pena - reclusão, de um a dois anos. Parágrafo único. Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. Assédio sexual. Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função: Pena detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. Corrupção de menores. Art. 218 - Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo: Pena - reclusão, de um a quatro anos Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, consumados ou tentados: (...) V – estupro; VI atentado violento ao pudor. Dentre essas normas, é importante destacar ainda no Código Penal, o art. 224, que estabelece a presunção de violência no caso de vítimas com até 14 anos de idade, ainda que haja consentimento, por levar em consideração sua situação de vulnerabilidade. Além disso, a Lei 8.072/1990, Lei dos Crimes Hediondos, assegura pena e execução penal mais rigorosas123. Além das normas vigentes apresentadas, estão em trâmite no Poder Legislativo projetos de alteração a essas, com objetivo de alterar principalmente a amplitude de reconhecimento das vítimas. Há, por exemplo, a inclusão não somente de vítimas do sexo feminino como também do masculino. Este é um avanço considerável para se promover a proteção e responsabilização efetivas, entretanto, os projetos estão em trâmite desde 2005. Projeto de 4850/2005 Lei Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, em especial do seu Título VI. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: Estupro. Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. § 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2º Se da conduta resulta morte: Pena – 123 FARIA, Thais. Violência Sexual de Crianças e Adolescentes: a Legislação Brasileira. In 18 de Maio. Caderno Temático. Direitos Sexuais são Direitos Humanos. Brasília: Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Criança e Adolescente, 2008. pp. 59-64. 128 Projeto de 4851/2005 Lei Projeto de 4852/2005 Lei reclusão, de 12 (doze) a 20 (vinte) anos. Violação sexual mediante fraude. Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. Estupro de vulnerável. Art. 217. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com pessoa menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. § 2º A pena é aumentada da metade se houver concurso de quem tenha o dever de cuidado, proteção ou vigilância. § 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 24 (vinte e quatro) anos. Art. 218. Induzir pessoa menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. Altera o art. 241 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º O art. 241 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 241. Apresentar, fotografar, filmar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores (‘internet’), cenas de sexo explícito ou pornográficas envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. § 1º Incorre na mesma pena quem: I – agencia, autoriza, facilita ou, de qualquer modo, intermedeia, a participação de criança ou adolescente nas cenas a que se refere o ‘caput’ deste artigo; II – assegura os meios ou serviços para o armazenamento, físico ou digital, de fotografias ou imagens que reproduzam as cenas a que se refere o ‘caput’ deste artigo; III – assegura, disponibiliza ou facilita, por qualquer meio, ainda que gratuitamente, o acesso de usuários da rede mundial de computadores (‘internet’) às cenas a que se refere o ‘caput’ deste artigo. Art. 1º O art. 250 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 250. Hospedar criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, ou sem autorização escrita destes, ou da autoridade judiciária, em hotel, pensão, motel ou congênere: Pena – multa de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) salários de referência; em caso de reincidência, a autoridade judiciária poderá determinar o fechamento do estabelecimento por até 15 (quinze) dias, ou definitivamente se verificada a contumácia” Há várias questões que perpassam a análise do marco legal brasileiro e que devem ser olhadas com maior atenção. É certo que estão sendo feitas as adequações necessárias na legislação para que ela atenda aos padrões internacionais de proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes, bem como investimentos em capacitação para que hajam mudanças na cultura 129 dos agentes públicos responsáveis pela aplicação da lei. Consegue-se facilmente perceber que o marco legal avançou antes da cultura jurídica de aplicação, que permanece ainda francamente menorista. Nesse sentido, o marco legal, embora seja um bom indicador de evolução do compromisso brasileiro, ele por si só não é capaz de garantir os direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência. Por mais que o marco legal afirme que crianças são vítimas de exploração sexual muito frequentemente os juízes acatam a tese de que a conduta pregressa da vítima invalida a situação de violência e exploração. Outro ponto que deve ser observado é o foco da legislação, que ainda se dirige mais concentradamente aos instrumentos de punição e não de restituição de direitos. Embora ainda tenha que se reconhecer que, no Brasil, ambos são ineficientes, pouco se fez para que vítimas de violência sexual sejam tratadas de forma digna. A maior parte dos PLs apresentados diz respeito ao aumento de penas já estabelecidas ou a criação de novos tipos penais. Não é que isso não seja suficiente, mas uma análise a luz dos direitos humanos exige uma atuação holística, com a preocupação da garantia do Interesse Superior. Nesse ponto, é necessário uma atuação integrada entre o esforço de melhorar o marco legal, mas também de estabelecer políticas públicas de atendimento para vítimas. A Teoria da Proteção Integral exige que os esforços sejam feitos em várias direções de forma simultânea. 4.2 Esforço Governamental: programas e ações do Estado Nos últimos anos, houve um relativo aumento do orçamento destinado ao combate da violência sexual contra crianças e adolescentes no país. A quantidade de recursos e atendimentos frutos destes triplicou. Entretanto, estão beneficiadas por esse aumeno de recursos apenas as capitais, especialmente aquelas da costa atlântica do Brasil, embora o resto do país seja deixado à margem. Há, neste sentido, a necessidade de redimensionar não apenas os valores, mas sobretudo, a estratégia de execução da política pública, sob o risco de comprometer sua efetividade. Dotação orçamentária de 2004 a 2007 – evolução do co-financiamento ANO 2004 2005 2005 (pós-expansão) 2006 2007 Recurso R$(Ano) 24.351.571,00 35.591.200,00 53.781.600,00 57.172.800,00 62976573 Municípios 307 314 1075 1080 1108 Atendimento 17.770 18.630 51.330 54.160 65.900 O Programa 0073 - Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes é o grande marco quanto à proposta de enfrentamento efetivo. É proposto sob a perspectiva de ações variadas, com o proposto de atuar em diversas frentes: Ações do Programa 0073 - Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes 8788 8791 8954 2C61 Apoio a Comitês de Enfrentamento da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes –SEDH A Apoio a Projetos Inovadores de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes - Secretaria Especial de Politica para as Mulheres Apoio Educacional a Crianças Adolescentes e Jovens em Situação de Discriminação e Vulnerabilidade Social- SEDH Disque Denúncia de Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes – SEDH 130 90CH 2272 4641 2383 Fortalecimento de Rede Mundial de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes – SEDH Gestão e Administração do Programa – SEDH Publicidade de Utilidade Pública - Ministério do Turismo Serviços de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias – MDS Verificando especificamente as ações, observa-se que essas não estão apenas direcionadas à ação apenas do Estado como provedor da política pública. Além dos serviços especializados de proteção social, há apoios a comitês e projetos inovadores e fortalecimento de redes de enfrentamento à violência sexual. Marco legal dos programas e ações do Governo Federal: • Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS - Lei nº.8742/1993 • Política Nacional de Assistência Nacional - PNAS/2004 • Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990- Estatuto da Criança e do Adolescente. • Portaria MDS nº. 440/2005 • Portaria nº.225/2006 • Portaria nº. 222/08 No site do CONANDA, há um link possivelmente indicando o “número de conselhos de direito e tutelares cadastrados, por Estado”, entretanto esse não abre124. Tal informação somente foi conseguida pelo intermédio do CECRIA, por telefone, como uma necessidade de complementação de dados institucionais: 4.3 SEDH – Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual contra Criança e Adolescente – Disque 100 O disque denúncia é coordenado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), em parceria com a Petrobrás e o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA). O Cecria é o parceiro executor do convênio. O Disque Denúncia ou Disque 100 é um serviço de denúncias gratuito disponível em todo o território nacional. O objetivo principal é “acolher denúncias de violência contra crianças e adolescentes, buscando interromper a situação revelada. Outro tipo de denúncia acolhida pelo serviço é a de crime de tráfico de pessoas, independentemente da idade da vítima. Este tipo de denúncia é repassado imediatamente à Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal”. Desde 2004, o Disque Denúncia funciona das 8h às 22h todos os dias da semana, fins de semana ou feriados, segundo o relatório da SEDH sobre o serviço. Houve uma revisão da estratégia de ação que permitiu a expansão do horário de funcionamento, fazendo com que o Disque Denúncia passasse a contar com um sistema de informação para registro das denúncias, além do desenvolvimento de ferramenta informatizada para o encaminhamento e o acompanhamento on line de denúncias. Mesmo com o processo de revisão alargando o horário de funcionamento, ainda se lamenta que o serviço não fique disponível para a população durante de forma ininterrupta. Embora haja uma associação da modalidade exploração sexual com a atividade de prostituição e o turno da noite, isso não necessariamente pode ser verificado. Um serviço de denúncia deveria estar à disposição vinte e quatro horas. Em 2006, adotou-se o número 100 como referência em substituição ao 0800990500 e, segundo as informações constantes no sítio oficial do Governo Federal, passou-se a oferecer atendimento especializado e uma ferramenta para extração de dados como subsídios para produção de relatórios. Não é possível verificar informações sobre o resultado prático de tais mudanças transcritos em números oficiais ou pesquisas avaliadoras do programa. 124 https://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/conselho/conanda/cons 131 Segundo o Relatório do programa deste ano, em 2007, o Disque Denúncia registrou 845.686 atendimentos, num total de mais 49.577 denúncias em todo o país, desde seu surgimento, com uma média de 2.532 atendimentos diários. Comparados a 2003, o número de denúncias chegou a ser cinco vezes maior em 2007, entretanto o relatório não revela o porquê do aumento do número de denúncias, se aumento dos casos de violência ou maior informação da população quanto ao Disque, por exemplo. Disque Denúncia Nacional - 100 Total de Atendimentos Brasil por ano 2500000 1995504 2000000 1500000 940919 1000000 617073 388669 500000 4499 3774 40570 0 2003 2004 2005 2006 2007 2008 -jan/jul Total geral Disque Denúncia Nacional - 100 Total de Denúncias Brasil por ano 80000 72071 70000 60000 50000 40000 30000 24942 20000 10000 19893 13830 4494 3774 5138 0 2003 2004 2005 2006 2007 2008 -jan/jul Total geral Fonte: Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes – 100. Relatório de julho de 2008. As denúncias são recebidas conforme as categorias: tráfico de pessoas, pornografia (impresso, Internet e vídeo), exploração sexual comercial (com intermediários, sem intermediários e prostituição), abuso sexual, negligência e violência (com lesão corporal, violência física, violência psicológica, violência com morte). Os funcionários atendentes recebem um treinamento anterior que os prepara para o discernimento quanto às denúncias; em caso de dúvida, há ainda um supervisor que os auxilia. O caso é relatado pelo denunciante e os atendentes registram com base nas informações que adquiriram nas oficinas preparatórias; na dúvida, há ainda um supervisor à disposição. O disque denúncia possui limitações de caráter operacional, com contratações e condições de trabalho precárias. Destaca-se entre os problemas, a forma frágil eleita para dar concretude a essa política pública como é a relação de convênio entre a SEDH e a organização executora. É de se temer pela sustentabilidade dessa política que deveria ser permanente, e não fruto de um convênio. Eventualmente, imagina-se ser mais estável fortalecer canais de denúncias já existentes porque fazem parte da função de alguns órgãos governamentais, como são as 132 polícias federal, rodoviária federal, militar e civil. Todas mantém serviços equivalentes, embora não estejam treinados para atender a situações de violência sexual. Obstáculos da adequada comunicação sobre o Disque 100 também prejudicam o acesso direto da população a informações. Faltam campanhas permanentes e reproduzidas em larga escala que publicizem e esclareçam sobre o serviço e façam com que a sociedade efetivamente o conheça e o utilize. Há campanhas sendo promovidas é certo, mas de forma pontual obedecendo a um calendário associado a festas como o carnaval ou durante o 18 de maio. No entanto, a abrangência e a duração das campanhas é limitada. Pesquisa ainda não publicada pelo Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília demonstra que apenas 1% dos empregados de turismo consultados conhecia o disque 100. Há informações esparsas sobre a existência de outros disque-denúncias que funcionam em âmbito estadual e municipal no país. Só que lamentavelmente não há relatos oficiais da SEDH sobre a compatibilização dos serviços a fim de manter estatísticas nacionais mais próximas da realidade. Há grandes dificuldades de dimensionar a quantidade de casos de crianças e ou adolescentes em situação de exploração sexual e falta de integração entre os serviços de denúncia colabora para manter os níveis de violência desconhecidos. Existe ainda a falta de acompanhamento da interlocução entre o Disque e os demais agentes envolvidos, ou seja, depois de registrada a denúncia e repassada ao órgão responsável, a Secretaria não necessariamente tem acesso ao caminho percorrido para o efetivo combate à violência sexual. Há um convênio firmado entre a SEDH e as centrais operacionais dedicadas aos direitos de crianças e adolescentes dos Ministérios Públicos estaduais. Só que como não há hierarquia, muitos casos não tem seu andamento informado. Adicionado a esse complicador, há o fato de os resultados da denúncia terem um efeito de mobilizar o sistema de repressão para que a violência cesse, mas não necessariamente o sistema que garante as medidas de proteção são mobilizadas. Além do Disque Denúncia, a SEDH dispõe de linha de financiamento de projetos relacionados ao tema. A política é priorizar o apoio aos projetos ligados as redes nacionais de enfrentamento da violência e aos movimentos sociais. A estratégia para formulação de projetos segue um plano georeferencial para garantir a pluralidade de iniciativa apoiadas com base em alguns indicadores, como o apoio a projetos inovadores, as organizações participantes do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto juvenil no Território Brasileiro (PAIR) e do Disque Denúncia, já mencionado. Em geral, boas iniciativas têm sido efetivadas pela SEDH, mas a grande maioria permanece na condição de ação extra-oficial e não como política pública institucionalizada. O apoio aos bons projetos da sociedade civil devem continuar e ser institucionalizados, mas está na hora de avançar para que alguma dessas boas iniciativas possam ser avaliadas e eventualmente convertidas em políticas públicas nacionais. Outro ponto relevante na atual dinâmica da SEDH é a proposta de avaliação do PAIR. O PAIR é o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto juvenil no Território Brasileiro, mas que não se não confunde com uma política pública porque funciona como um projeto que articula as redes locais. A idéia é disseminar esse projeto para que as instâncias locais possam garantir às vítimas de violência sexual um atendimento coordenado e efetivo. O PAIR tem uma abrangência espacial muito limitada e deveria ser ampliado para mais cidades. 133 4.5 MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes/CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social. O Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes veio substituir o antigo Programa Sentinela, no âmbito das políticas de assistência social. O Sentinela funcionou até 2004, quando em função da implementação do SUAS – Sistema Único de Assistência Social, foi substituído para se adequar às novas exigências legais. Os CREAS - Centros de Referência Especializados de Assistência Social – CREAS representam um esforço de estabelecer uma ação continuada e com co-financiamento municipal. Essa política responde ao Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes e foi criada em resposta às determinações expressas na Constituição Federal, do ECA e da Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS. A cobertura de atendimento é de 1109 municípios, com a implantação de 933 CREAS. Os locais de implantação foram selecionados a partir de critérios como os dados de ocorrência levantados na Matriz Intersetorial da SEDH e demandas emergenciais.125 O objetivo do CREAS é, de acordo com a descrição feita pelo MDS, “assegurar proteção imediata e atendimento psicossocial às crianças e aos adolescentes vítimas de violência (física, psicológica, negligência grave), abuso ou exploração sexual comercial, bem como a seus familiares. Para tanto, oferece acompanhamento técnico especializado, desenvolvido por uma rede de serviços socioassistenciais e das demais políticas públicas, bem como com o Sistema de Garantias de Direitos.” Os CREAS implantados prestam serviços de média complexidade da Proteção Especial de Assistência Social. Para orientar a implementação do CREAS junto aos municípios, o MDS elaborou uma matriz que deveria orientar as equipes locais na implantação, consolidação do modelo e avaliação das equipes. Só que não se têm notícias da resposta dada pelos municípios em relação a essa matriz, que permitiria à sociedade civil fazer o controle social sobre a política. Sem esse retorno, há apenas informações fragmentadas e parciais sobre as condições dos CREAS. A observação da realidade decorre mais da experiência local das várias organizações de defesa dos direitos de crianças que compõem a ANCED do que de pesquisas e monitoramento da política. Os CREAS trabalham com diversas metodologias de acordo com a realidade local, tais como busca ativa, acolhida, diagnóstico da situação, plano de atendimento, acompanhamento psicossocial e articulação intersetorial. Só que a falta de acompanhamento e monitoramento nacional das realidades locais faz com que os CREAS atuem de forma desorganizada e não uniforme. Nesse sentido, a falta de acompanhamento central faz com que os CREAS não ofereçam o mesmo cardápio de serviços em todos os locais, nem que haja um atendimento padrão em todo o país. Um exemplo é o CREAS de Brasília que não realiza atendimentos, por não conseguir dar conta da grande demanda. Outros CREAS enfrentam dinâmicas locais bastante complexas, como é o caso do CREAS de Corumbá, que por estar perto de importante hidrovias e da fronteira com a Bolívia tem que lidar com casos de tráfico internacional. Falta uma orientação mais segura por parte do MDS para que as equipes possam manejar tais dificuldades. A pesquisa Avaliação de Políticas e Programas do MDS, contratada pelo MDS e publicada em 2005126, fez algumas constatações que ainda não encontraram soluções, e por isso, devem continuar sendo repetidas. Ela indicou dificuldade dos gestores em articular as especificidades da própria temática relativa a violência sexual, mostrando que essa dificuldade diminui a 125 Essas informações foram obtidas a partir de entrevista feita com a gestora do MDS encarregada da Proteção Especial. Nessa oportunidade, foram entregues documentos impressos com esses dados que não fazem menção a datas ou ao exercício no qual esses dados estão válidos. 126 A Avaliação de Políticas e Programas do MDS, embora requerida e publicada pelo Governo, é extremamente reveladora dos limites do Programa. 134 medida em que o gestor é mais próximo do campo de ação. Assim, os superiores foram os que menos ficaram à vontade para falar sobre os programas e ações. É de se preocupar que os encarregados da gestão da política local possam estar reproduzindo critérios de discriminação e de estigmas. Outro problema apresentado foi a dissonância de compreensões sobre o tema entre os gestores, que dificulta o processo de construção da política nacional unificada, já que ela acaba por ficar refém das diversas concepções locais. Nesse sentido, não há que se transigir em que a política e seus executores devam atuar dentro da perspectiva de direitos e não de uma visão moralista ou assistencialista. Se isso não fica claro e demarcado, não há segurança sobre a qualidade do atendimento oferecido. Outro ponto limitante de efetividade apresentado na avaliação foi a precariedade do armazenamento de dados e informações, sendo ainda constante a presença de arquivos de papel e pouco aparato tecnológico. A escassez de recursos tecnológicos limita as possibilidades de armazenamento de dados estatísticos sobre o programa e, portanto, o controle de sua adequação e efetividade para cumprir os objetivos a que se propõe. A avaliação revelou, em resumo, a dificuldade do programa reduzida à precariedade quanto a equipamentos tecnológicos (recursos de uma forma geral), espaço físico dos agentes envolvidos, harmonia dos discursos entre os gestores e a clareza sobre seus papéis dentro do processo. A situação precária em que se encontrava o programa nos municípios 127 os torna vulneráveis, por um lado, à corrupção, por outro, ao risco de utilização do espaço público como se privado fosse, característico do histórico de coronelismo em que se construiu o Brasil. Juntas, essas condições de vulnerabilidade que se instalam contribuem no mínimo para a redução dos impactos sociais positivos do programa e no máximo para sua total ineficiência. A rotatividade dos gestores e agentes envolvidos também foi apontado pela avaliação como preocupante e potencial prejudicador da efetividade do programa. E a rotavidade é causada pelas más condições de contratações dos profissionais que compõem as equipes locais. No mais, foram apresentados como resultado de pesquisa questões reveladoras da participação da sociedade como um todo dentro do processo: as famílias entrevistadas não sabiam exatamente quem havia implementado o programa, ou o porquê de seu município fazer parte do programa. De fato, o que se pode avaliar em relação ao programa é sua potencialidade, constituindo-se em essência uma proposta capaz de, se bem implantada e gerido, trabalhar na restituição de direitos para crianças e adolescentes em situação de violência. A ANCED entende que os CREAS precisam ser dotados de mecanismos mais eficientes de gestão, capazes de pensá-lo e geri-lo como uma verdadeira política pública nacional. Sugere-se que se repense os critérios de sua implantação, de sua gestão, e um acompanhamento em termos de eficiência e efetividade do serviço. Afora o detalhamento constante na pesquisa citada acima, o programa possui ainda como limites para sua efetividade a abrangência geográfica limitada. Os CREAS só estão presentes nas regiões que compreendam capitais dos estados e Distrito Federal; grandes regiões metropolitanas; pólos turísticos; regiões portuárias; grandes entrepostos comerciais; entroncamentos rodoviários; zonas de garimpo e regiões de fronteira, regiões consideradas de risco, para fins desse programa, segundo o MDS. Um outro importante limite é a falta de integração entre as políticas do Governo Federal. Um exemplo disso é que o Disque 100 da SEDH e os CREAS não cruzam ou partilham os dados. Assim, desperdiça-se recursos e potencialidades da distribuição dos serviços caso as políticas 127 Os municípios pesquisados não são a totalidade, pela própria expansão geográfica do país, entretanto buscou-se representar a maior diversidade possível, segundo os critérios metodológicos descritos na pesquisa avaliativa. 135 se integrassem. Até porque eventualmente uma vítima de um caso denunciado ao 100 poderia ser encaminhado para atendimento em um dos CREAS. A própria categorização dos municípios de acordo com dada potencialidade de risco é capaz de comprometer a efetividade da política, já que a violência contra crianças e adolescentes não é um problema de uma região ou outra do país. Além disso, nem mesmo todos os municípios considerados ‘em risco’ são assistidos em sua totalidade. Em São Paulo, por exemplo, 23,1% dos municípios em risco não era atendido pelo programa, em 2005 (MDS, 2007. p.173). O monitoramento de tal programa pela sociedade é restrito, os dados somente estão disponíveis no âmbito da generalidade teórica, em outras palavras, não há dados concretos. Além disso, os dados estão apresentados em porcentagem e com o referencial de ‘região em situação de risco’ adotado especificamente para esse programa. “É sempre possível calcular um número grande demais de indicadores, os quais nem sempre conseguem expressar os fenômenos ou as condições mais significativas para o programa” (UNESCO, 2006. p.30). Quanto ao orçamento destinado ao programa, os dados de março 2005, disponíveis no Catálogo de Monitoramento dos programas do ministério, indicam que no Brasil o total foi de 2.055.000 reais/mês. É possível perceber a desproporcionalidade dos valores investidos nas regiões128; desses, o maior valor (29,17%) é destinado à região Sudeste, enquanto que outras regiões com históricos mais complicados quanto ao tema recebem valores inferiores129. Do ponto de vista da abrangência territorial, o Guia de Orientação nº1 do MDS, sobre o CREAS, explica que esse “poderá ser implantado com abrangência local ou regional, de acordo com o porte, nível de gestão e demanda dos municípios, além do grau de incidência e complexidade das situações de risco e violação de direito” (MDS, [?]. p.6). Não foi possível verificar com facilidade dados referentes à quantidade de municípios que preenchem tais quesitos, o número de unidades CREAS em funcionamento, ou ainda os dados de notificação dos atendimentos. As referências dos documentos de análise e monitoramento da política, como dito, são apresentadas em números percentuais, o que dificulta a avaliação da efetividade do programa. 4.6 Ministério da Educação - Programa Escola que Protege O Programa Escola que Protege tem como objetivo “promover, no âmbito escolar, a defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situações de violência física, psicológica, negligência, abandono, abuso sexual, exploração do trabalho infantil, exploração sexual comercial e tráfico para esses fins, em uma perspectiva preventiva”. O Escola que Protege está organizado com base nas Unidades Federativas (UF) que integram o Projeto Escola Aberta e as UFs com a parceria do ICA/Partners (algumas têm ações do PAIR). Mais detalhadamente, dos 26 Estados e Distrito Federal, temos: a) no Escola Aberta, 7 Estados (BA, ES, MG, MS, PE, RJ, RS), com 70 municípios, sendo 6 Regiões Metropolitanas (Salvador, Vitória, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre e 1 Capital: Campo Grande; b) no PAIR/ICA/Partners, são 12 Estados (AC, AM, AP, RR, PA, MA, CE, PB, BA, RN, MS, PR), com 14 municípios: Rio Branco, Manaus, Macapá, Pacaraima, Boa Vista, Belém, São Luis, Fortaleza, João Pessoa, Campina Grande, Feira de Santana, Natal, Corumbá e Foz de Iguaçu. As metas do Programa são (entre Escola Aberta e PAIR): 17 Unidades Federadas, 84 Municípios, 6.200 Profissionais de Educação, 900 Operadores da Rede de Proteção Integral e um total de 7.100 profissionais capacitados. A coordenação é feita por professores e professoras universitárias. E resumo, em termos de abrangência territorial nacional, o Escola que Protege encontra-se em: 128 Porcentagem aproximada. 129 Em ordem decrescente (porcentagem aproximada): Nordeste, 27,52%; Sul, 16,82%; Norte, 16,43% e CentroOeste, 12,53%. 136 NORTE NORDESTE SUL SUDESTE CENTROOESTE UFPA UFPB UFPEL UFES UEMS UFAC UFRN UFSM UFMG UFMT UFRR UEPB UFPR UFRJ UNB UFAM UNEB UFT UPE UFMS UFPI UFC 5 7 3 3 4 22 Os participantes do Programa dividem-se entre professoras e professores da rede pública de ensino, gestoras e gestores de educação: secretárias e secretários de educação; diretoras e diretores; coordenadoras e coordenadores etc., funcionárias e funcionários administrativos dos estabelecimentos Secretarias de Estado e Municipais de Educação, funcionárias e funcionários em geral: psicólogas e psicólogos; supervisoras; merendeiras e merendeiros; serventes; assistentes, membros dos Conselhos Tutelares, membros do Conselho de Direito de Crianças e Adolescentes e profissionais de saúde e do desenvolvimento social. Entretanto, não foi possível estabelecer a proporção. Fundamentação Legal do Programa Escola que Protege CF/88, art. 227; EC Nº 31, de 13 de dezembro de 2000; Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Nº 8.069, de 13 /07/1990; Lei Nº 4.320, de 17/03/1964; Lei Nº 8.666, de 21/06/1993; Lei Nº 9.394, de 20/12/1996; Lei Complementar Nº 101, de 04/05/2000; Lei Nº 10.707, de 30/07/2003; Lei Nº 10837, de 16/01/2004; Lei Nº 10.172, de 10/01/2001; Instrução Normativa Nº 01, 15/01/1997. Decreto Nº 4229 de 13/05/2002, Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil; Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos; Plano Nacional de Políticas para as Mulheres; Programa Brasil sem Homofobia; Plano Nacional de Prevenção e Erradica do Trabalho Infantil e Proteção aos Adolescentes; Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária; Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Recursos orçamentários disponibilizados para o programa Escola que Protege: 26000-Ministério da Educação Quadro Síntese Código Total Exec 2006 23.925.513.474 LOA 2007 27.580.147.716 PLO 2008 31.246.828.910 LOA 2008 31.714.041.624 0073 Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes 3.004.110 3.900.000 6.500.000 6.500.000 Fonte: Secretaria do Orçamento Federal. https://www.portalsof.planejamento.gov.br/sof/2008/ O orçamento garantido para o programa de enfrentamento à violência sexual nas escolas também teve um aumento significativo nos últimos anos. No ano de 2008, foram destinados R$ 6.500.000,00 para as ações voltadas para crianças e adolescentes. Com a Resolução n°37 CD/FNDE, de 22 de julho de 2008 foi aberta a possibilidade para ampliação dos apoios a 137 projetos. Segundo informações do próprio órgão, os projetos de expansão têm sido pautados nesta expectativa. Foi realizada entrevista com uma gestora do MEC para saber quais as perspectiva para o Escola que Protege nos próximos exercícios. A resposta dada foi que o Ministério deseja canalizar recursos para a área de construção da futura BR-163. Nessa área, os índices de violência são altos e quase não há presença ou equipamentos do Governo Federal capazes de melhorar a situação. Como a notícia da construção da BR já é pública, sendo os recursos assegurados pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, um enorme contingente populacional vem se deslocando para a área, agravando ainda mais uma situação que já é crítica. A Presidência da República solicitou a Secretaria de Direitos Humanos que preparasse um plano para orientar as ações sociais que poderiam ser implementadas ao longo da BR-163, mas isso foi feito tardiamente. Isso quer dizer que a construção de uma obra do porte dessa a ser feita em uma área aonde não estão presentes as redes sociais de crianças e adolescentes é motivo de extrema preocupação. É de se reconhecer o esforço do MEC em canalizar seus esforços e recursos para a área, mas chama-se atenção desde já que sozinho os esforços do Ministério da Educação não serão suficientes. Outras alteração apontadas pela gestora foram a abertura do marco do Programa de violência sexual para outros tipos de violência, como aqueles que incluem violência física, doméstica etc. Não é que o Ministério da Educação não deva ampliar sua área de abrangência no que diz respeito às violações de direitos que sofrem crianças e adolescentes, mas também não há que se perder o foco. Ou seja, é muito possível que quando todas as violências sejam objeto de uma política que no fim não se trate aprofundadamente de nenhuma delas. A grande recomendação é que o MEC não perca o foco na violência sexual, uma vez que esse é o único programa na área da educação que trata do tema. E não se discute a importância de contar com professores e diretores de escola treinados e atentos para a questão da violência sexual. 4.7 Ministério da Justiça Secretaria Nacional de Justiça/Combate ao Tráfico de Seres Humanos O Brasil ratificou, em março de 2004,o principal documento internacional de combate ao crime organizado com o foco no tráfico de pessoas, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, também conhecido por Protocolo de Palermo. Na legislação brasileira o crime de tráfico de pessoas tem uma definição diferente da do Protocolo de Palermo, sendo tifipicado no Código Penal Brasileiro, nos artigos 230 e 231-A, conforme a seção Legislação, desse capítulo. Isso cria dificuldades porque alguma situações tipificadas como tráfico de seres humanos pela legislação brasileira não encontram cobertura em Palermo. Para dar conta dos desafios estabelecidos no Protocolo de Palermo, o Governo Brasileiro promulgou através do Decreto 5.948/2006, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, elaborada por representantes do Ministério Público Federal e do Trabalho e do Executivo Federal. Posteriormente foi aberto uma fase de consulta pública via internet para que a sociedade civil pudesse se manifestar sobre o produto. A política tem por objetivo estabelecer princípios, diretrizes, e ações nos eixos de prevenção e repressão e atendimento às vítimas do tráfico de pessoas. Para dar concretude à Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, o Ministério da Justiça elaborou ainda um Plano Nacional com duração de dois anos para orientar as ações a serem tomadas no âmbito do Executivo Federal, através do, pelo Decreto nº 6.347, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP), que tem o objetivo de prevenir e reprimir o tráfico de pessoas, responsabilizar os seus autores e garantir atenção e suporte às 138 vítimas. Para garantir a implementação do Plano, foi criado um grupo assessor com representação de outros ministérios e secretarias do Executivo que têm a meta de colocar em prática as ações do Plano, fazer o seu monitoramento e as devias avaliações. Há várias críticas que podem ser feitas à atuação do Governo Brasileiro em relação ao tráfico de seres humanos. Uma delas é que tem havido nos últimos tempos uma sequência de substituições de pessoal, que culminaram com uma redução da posição hierárquica da coordenação do programa na estrutura do Ministério da Justiça. Antes, o para dirigir o Programa e o Plano se contava com uma função gratificada de nível DAS 04, que equivale a coordenação-geral. Hoje, conta-se apenas com uma função gratificada de nível DAS 03. Em uma estrutura burocrática e verticalizada como a do Executivo Federal isso revela uma clara opção pela retirada de poder e importância do tema. Embora o Protocolo de Palermo não seja um instrumento de direitos humanos e sim um marco de luta contra o crime organizado, não se pode dizer que o Brasil foi crítico suficiente na hora de ratificar o Protocolo e produzir sua legislação nacional para que o foco fosse o exercício dos direitos humanos. Afinal, sendo o Brasil um país exportador de migrantes e pessoas em situação de tráfico, o Governo Federal deveria estar mais preocupado com a garantia dos direitos de seus cidadãos no exterior. Infelizmente, o foco da ações contra o tráfico é muito frequentemente na repressão policial e pouco na área da prevenção. Atualmente as estruturas do Governo Brasileiro para dar conta do tráfico de seres humanos são muito frágeis. Conta-se com um posto de atendimento no Aeroporto de Guarulhos em São Paulo que, gerido por uma ONG, presta assistência e informações a potenciais vítimas e pessoas deportadas ou trazidas de regresso ao país. O Posto de Atendimento Humanizado a Migrantes começou a funcionar em dezembro de 2006. O posto de atendimento tem sido útil para a elaboração de pesquisas e produção de dados sobre o perfil as pessoas em situação de tráfico, mas há problemas com relação a sua capacidade de atender uma vítima quando do retorno ao país. O Governo Federal não conta com um fundo de assistência à vítima que permita o seu deslocar de São Paulo, aonde ela ingressa no Brasil, até o seu município de origem. Não há recursos para garantir alimentação, hospedagem ou deslocamento no Brasil. A vítima acaba retornando ao País e tendo que enfrentar grandes dificuldades burocráticas para manter padrões mínimos que lhe permitam estabelecer um projeto de vida autônomo e independente. Esse ano, o Ministério da Justiça iniciou a instalação de 05 centros de referências a serem localizados em alguns estados tidos como críticos. Os centros de referência serão compostos por equipes multidisciplinares que atuarão em nível estadual e municipal no cumprimento das determinações da Política e do Plano. Apesar de todos os esforços, o Governo Brasileiro vem atuando pouco no que diz respeito à prevenção e a melhoria das pessoas em situação de vulnerabilidade social. Algumas pesquisas indicam que a maior parte das pessoas que cai nas mãos das redes de aliciamento possui algum conhecimento sobre o perigo da situação. Só que se mesclam fatores tais como, a situação social de vulnerabilidade, o sonho de ascensão social ou de um emprego que permita manter a família em condições melhores do que as encontrada no Brasil e a adrenalina da aventura. Essa combinação de fatores não será reduzida com ações de cunho policialesco ou repressiva, mas com ações que identifiquem os locais em que atuam as redes de aliciamento e um investimento massivo para diminuir vulnerabilidade e garantir cidadania para as pessoas desse local. Há ainda um disque denúncia que funciona através do número 180, mas o site do Ministério da Justiça não informa dados ou a forma de funcionamento das denúncias. E muito menos como é que esse número se integra com o disque denúncia mantido pela Secretaria de Especial de Direitos Humanos, o que atende pelo número 100. 139 Em relação a crianças e adolescentes percebe-se através dos relatos de organizações comprometidas com os direitos de crianças e adolescentes grande número de casos de tráfico interno. Só que os casos não são catalogados como casos de tráfico e as vítimas não são tratadas como tal. As meninas, meninos e adolescentes em tal situação acabam por ser confinados em instituições totais, como abrigos e outros nos quais a perspectiva de restituição de direitos ainda não está solidificada. Em algumas regiões de fronteira a situação é especialmente crítica, como é o Estado do Pará. Lá, em função da proximidade com a Guiana e com o Suriname é fácil de recolher relatos de casos de tráfico de seres humanos, especialmente quando dizem respeito a uma criança e adolescente. Não há qualquer dificuldade em conseguir um documento falso que ateste a maioridade e que permita a uma adolescente viajar sozinha para outro país. E as autoridades locais não estão sensibilizadas para tratar de crimes contra a pessoa, uma vez que as prioridades institucionais são o combate ao tráfico de drogas, armas e o contrabando. A organização de direitos humanos com sede em Belém do Pará, a Sodireitos – Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais da Amazônia atendeu a uma adolescente vítima de tráfico de seres humanos. O seu relato é representativo de inúmeros outros casos ainda invisíveis : “LA, 17 anos, tem uma filha de dois anos e está grávida pela 2ª vez. Estudou até a 5ª série do ensino fundamental. Morava com a mãe. O pai foi embora quando LA era pequena. Ela foi traficada, aos 14 anos, para uma boate no Oiapoque, indo depois, por sua conta, para a Guiana Francesa e para um garimpo no Suriname. Foi convidada por uma 'conhecida' para morar em Macapá e ser babá. A mãe não deixou, mas LA fugiu de casa. 'Eu não sabia o que ia acontecer, eu só queria trabalhar pra ajudar minha família', conta. Na boate do Oiapoque, ela ficou apenas quatro dias porque chegou lá, era pra se prostituir. A gente era de menor e ele não quis aceitar a gente. A gente teve que ficar quatro dias só pra pagar a passagem e depois ele mandou a gente embora”. “LA ficou na rua e depois morou com um “amigo” na casa dele. Foi depois para Caiena e para o garimpo no Suriname. Nas boates por onde passou, era chamada de vários nomes. 'Me chamavam de Darla, Darling e Darlene”. “No garimpo viveu com um surinamês, de quem engravidou e teve a filha mais velha. 'Ele bebia e me batia muito, fugi dele e pedi ajuda pra polícia da França”. “LA foi deportada para o Brasil depois de um ano e oito meses. Voltou grávida. Ela ficou durante três meses num albergue da FUNCAP, sendo depois levada para morar com a mãe. Fez denúncia, mas não sabe como anda o caso. Hoje LA vive com um companheiro de quem espera o segundo filho. Não estuda e trabalha em casa”. “Recebe-nos para a entrevista em sua casa, com a filha no colo; enquanto conversamos, ela penteia o cabelo da boneca de sua filha”. “Ao perguntarmos por que ela acha que tal situação ocorrera com ela, ela responde, com voz tranqüila e resignada: 'Se eu tivesse outra situação, isso não tinha acontecido'. Seus planos? 'Não dá pra fazer muita coisa, ele (marido) não quer que eu volte a trabalhar, pra estudar não dá, ele não deixa eu sair de casa” “Quando cheguei, fiquei três meses no albergue com uma mulher chata lá, que prendia, não deixava fazer nada. Não tive nenhum tipo de ajuda ou assistência. Marcaram pra gente ir lá, mas a gente foi e não conseguiu nada. A gente ficou sem dinheiro de passagem e não fomos mais. Pra fazer exame médico é difícil, não tem passagem, aí eu não vou. Quando eu tava no albergue, tinha uma psicóloga”. “Me ofereceram pra entrar no programa de proteção. Mas a gente não quis. Porque era dois anos e depois como ia ficar? Se pelo menos eles oferecessem emprego pra gente trabalhar, né? Mas não oferecem nada, depois de dois anos acabava o contrato e a gente ia pra onde? O que a gente ia fazer? Teve uma moça que entrou e, quando acabaram os dois anos, ela não teve pra onde ir, aí ela voltou pro albergue. Tava lá de novo”. (LA). Sobre o caso de LA, a equipe da Sodireios produziu um relatório, abaixo se reproduz um trecho significativo: 140 “O único relato de experiência de atendimento, a partir da vivência no tráfico de pessoas, mostra o completo despreparo dos serviços e da rede de atendimento à mulher, lembrando que pelo menos duas famílias procuraram ajuda na Polícia federal, e outras quatro mulheres entrevistadas figuraram como vítimas num processo judicial.” 4.8 Ministério do Turismo Embora haja pronunciamentos oficiais de diversas naturezas, é certo afirmar que o Brasil é um destino de turismo sexual e que há ocorrências não esporádicas de exploração sexual de crianças e adolescentes no turismo. Até a década de noventa, a publicidade oficial do turismo brasileiro promovia a mulher brasileira como objeto sexual motor da visitação turística. Em 2004, o recém criado Ministério do Turismo proibiu a veiculação de ações de promoção que utilizassem homens ou mulheres do país como ferramentas de captação de turistas. Embora isso tenha causado relativo impacto ao alterar a forma como o país é promovido na feiras internacionais, isso falhou em regulamentar a publicidade de operadoras e agências de turismo privadas que seguem promovendo o país como um paraíso sexual. Embora não seja visível como era em décadas passadas, os pacotes que incluem programas sexuais com adolescentes seguem existindo e sendo uma opção real de sobrevivência. A partir de 2004, o Ministério do Turismo deu início a algumas ações de prevenção da exploração sexual, através do Programa Turismo Sustentável & Infância. Uma de suas prioridades era trabalhar o conceito de responsabilidade social corporativa e mobilizar as empresas de turismo para que aderissem ao Código de Conduta contra a exploração sexual de crianças e adolescentes e ao Código de Ética do Turismo, da Organização Mundial do Turismo. Também investiu-se em campanhas e ações de sensibilização de trabalhadores do setor do turismo sobre a temática. Nos anos de 2007 e 2008, o Ministério do Turismo passou a oferecer um programa de capacitação de 360 jovens de municípios turísticos para fins de geração de emprego e renda no turismo. Foi realizado um projeto piloto em Fortaleza com o apoio do Governo do Estado, do Município e da iniciativa privada ao custo de R$ 390.000,00. Vários dos jovens capacitados encontram-se trabalhando nas empresas parceiras. O Ministério do Turismo espera ampliar essas ações para alguns municípios em Pernambuco, Rio de Janeiro em São Paulo em 2009. Ainda que se reconheçam os esforços do Ministério do Turismo é de se afirmar que pouco foi feito para melhorar as condições de vulnerabilidade em que se encontram crianças e adolescentes pobres desses lugares. O desenvolvimento do turismo nas capitais da costa atlântica se deu, majoritariamente, de forma perversa, centralizadora, elitista e orientada para o turista. Não houve preocupação com o beneficiamento da sociedade local. Em alguns locais somou-se à exclusão social a exclusão espacial. Afinal, as áreas que antes eram compartilhadas pela sociedade local passaram a ser usufruídas unicamente por turistas ou pela elite local em função dos altos preços, da privatização de espaços que antes eram públicos e da exploração da mão de obra da local. Por fim, mais do que promover campanhas, o Governo Federal deveria rever sua política de desenvolvimento do turismo para que ela possa corresponder aos desejos da comunidade, beneficiando a todos e não a um pequeno grupo. Afinal, o ciclo do turismo se não manejando adequadamente produz diversos efeitos nocivos, especialmente para crianças e adolescentes. 141 4.9 Situação Essa seção se baseia em dados coletados a partir do disque denúncia da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Ainda que hajam críticas em relação a abrangência do serviço, o disque 100 acaba sendo a única fonte de dados nacional para que se obtenha alguma informação sobre a ocorrência de violência sexual. Através da análise desses dados é possível fazer algumas constatações para elucidar a ocorrência de violência sexual ou ainda perceber a insuficiência dos mecanismos de coleta de dados. Em primeiro lugar, é de se verificar a distribuição regional das denúncias. O Nordeste aparece como sendo a região que mais faz denúncias e o Norte do Brasil, como a que menos faz. Há um consenso de que esses números não são representativos da maior ou menor incidência de violência, mas sim de maior presença de campanhas ou de outros instrumentos de esclarecimento sobre violência sexual. Assim, é mais provável que a tese seja, quanto mais informação, mais denúncia. Esse gráfico deveria ser inspirador de um novo mapa de distribuição de recursos para desvelar situações de violência sexual pouco conhecidas. DDN - 100 Denúncia Recebidas por Região - 2003 a setembro de 2008 7.805 10.461 26.008 25.175 Norte 7.805 denúncias Nordeste 26.008 denúncias Centro-Oeste 7.571 denúncias Sudeste 25.175 denúncias Sul 10.461 denúncias 7.571 Em relação às vítimas, percebe-se a predominância de vítimas do sexo feminino. Na verdade, há relatos de casos esparsos envolvendo meninos ou adolescentes do sexo masculino. Mas, as situações mais freqüentes envolvem meninas ou adolescentes o que demonstra uma forte conexão com a discussão sobre gênero e sexualidade. As mulheres ainda são mais vulneráveis à violência sexual em função de fatores de diversas ordens, tais como o machismo, o sexismo e o patriarcalismo que caracterizam a sociedade brasileira. Nos últimos anos foram detectados casos de redes de exploração sexual e tráfico que aliciavam meninos e adolescentes do sexo masculino. Esses casos foram uteis para desvelar um novo universo de violência e para indicar a necessidade de verificar melhor o universo da violência sexual cometida contra meninos e adolescentes. Disque Denúncia 100 - maio de 2003 a setembro de 2008 Sexo das Vítimas em Porcetagem, por Tipo de Violência % vítimas do sexo masc. % vítimas do sexo fem. 100 19 90 80 44 45 56 55 37 70 60 50 81 40 30 63 20 10 0 Violência Sexual Negligência Violência Física e Violência Psicológica Total geral 142 Embora o disque 100 seja promovido como uma política para receber denúncias contra situações de violência sexual, a maior parte dos casos ali denunciados recebe categorização como “negligência”. É certo que tipo penal que se refere a negligência tem uma âmbito maior de condutas ali abarcadas, mas causa alguma perplexidade a constatação de que a violência sexual é a categoria com menor número de registros em serviço que se pretende especializado em violência sexual. Há de se questionar se as campanhas de meios de comunicação estão sendo efetivas para comunicar para a população a especialidade do serviço ou se há necessidade de ampliar o espectro de atuação do 100. No entanto, é certo que não há dados suficientes para que se constate que a violência sexual é uma forma menos freqüente de violência. Pode-se dizer apenas que há menos registros coletados. Porcentagem de Registros por Macro Categorias de Violência nas Denúncias Categorizadas DDN 100 - maio de 2003 a setembro 2008 36,00 35,04 35,00 34,00 33,60 33,00 32,00 31,36 31,00 30,00 29,00 Negligência Violência Física e Psicológica Violência Sexual Embora se reconheça que a estratégia de elaborar rankings ou listas sujas com os Estados com maiores índices de denúncia de violência sexual, a tabela abaixo nos permite fazer constatações no mínimo interessantes. O fato do Distrito Federal -DF ser o local com mais denúncia nos faz assumir que a sua proximidade com o Governo Federal e com as políticas públicas federais faz a informação chegar mais perto da população do que em outras unidades da federação. Ou seja, não se levanta a tese que a situação no DF seja mais ou menos crítica que em outros Estado, mas que o DF por ser sede do Governo Federal receba mais atenção que outros estados da federação. Também é de se levantar a ausência municipais ou estaduais. Uma vez que, para a população a utilização do serviço entre os serviços federais, estaduais e acerca desse universo. de conexão do 100 com outros disque denúncias havendo um bom serviço local sendo disponibilizado nacional é menor. Só que com a ausência de conexão municipais não permite retirar lições ou conclusões Nesse sentido, essa tabela pode ser interpretada para que se verifique em que Estados da federação a divulgação do serviço disque 100 está sendo eficiente ou não. Mas, em definitivo não serve para se medir a ocorrência maior ou menor de violência sexual. 143 Ranking das Denúncias de maio de 2003 a setembro de 2008 Posição no Ranking Unidade Federada 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º 11º 12º 13º 14º 15º 16º 17º 18º 19º 20º 21º 22º 23º 24º 25º 26º 27º DF MA MS PA AM BA CE RN GO PE TO RS RO AC MT RJ ES AL PI RR MG PB PR SC SE SP AP Não Informada BR Denúncias Média de denúncias para grupo de 100 mil hab. UF 1.891 4.416 1.555 4.228 1.759 7.484 4.207 1.536 2.848 4173 599 5.033 662 294 1.277 6.760 1403 1.189 1.169 141 6.863 1.277 3.496 1932 557 10.149 122 869 77,00 72,17 68,65 59,84 54,59 53,15 51,40 50,97 50,43 49,18 48,17 47,56 45,54 44,86 44,73 43,84 41,86 39,15 38,55 35,63 35,61 35,07 33,99 32,93 28,72 25,48 20,77 77.889 42,33 Fonte: DDN 100 - Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República Números de Varas e Delegacias Especializadas Embora sejam uma determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Brasil ainda não conta com um número adequado de equipamentos especializados em crimes cometidos contra crianças e adolescentes. Embora presentes majoritariamente nas capitais, as estruturas estaladas não atendem em sua maioria aos casos do interior do País. Não há estrutura ou recursos para que os policiais se desloquem para as operações. Isso faz com que crianças e adolescentes que sofreram violência em municípios longe das capitais sejam atendidos em locais não adaptados para o atendimento especializado, sendo atendido ao lado de adultos e acompanhados por equipes não especializadas em violência sexual. Tudo isso contribui enormemente para o aumento do sofrimento de uma vítima de violência, sem falar na questão da impunidade. Afinal, várias famílias decidem não procurar os serviços públicos em função de sua baixa qualidade. Os dados que compõem a tabela baixo foram fornecidos pela Secretaria Especial de Direitos Humanos. 144 UF DELEGACIAS ESPECIALIZADAS Acre Alagoas Amazonas Amapá Bahia Ceará Distrito Federal Espírito Santo Maranhão Mato Grosso Minas Gerais OUTROS VARAS ESPECIALIZADAS AC - No estado do Acre não existe uma delegacia especializada de atendimento às crianças e adolescentes vítimas. Existe duas DPCA(s), uma na cidade de Arapiraca que abrange somente o próprio Município e outra em Macéio. Neste estado existe apenas uma especializada na capital Manaus que abrange todo o estado do Amazonas. Existe apenas uma especializada, na capital Macapá. Tem duas DPCA(s), uma na cidade de Feira de Santana e outra na capital, Salvador. Neste estado tem apenas uma especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, localizada em Fortaleza. A capital federal possui apenas uma especializada que abrange as regiões administrativas do DF. Existe apenas uma especializada, porém esta abrange somente a área da Grande Vitória. Existe apenas uma Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente que está localizada na capital, São Luis. 1ª Especializada Criminal Infância Juventude Vara pela e 12ª Vara criminal da Comarca de Fortaleza Existe apenas uma Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente que está localizada em Campo Grande, esta especializada atua somente na área de Campo Grande. Existe apenas uma DPCA, localizada na capital Cuiabá, que abrange somente a área desta cidade. Belo Horizonte – Existe uma DPCA que diligencia somente na área de BH. 145 São Paulo Tocantins Pará Paraná Pernambuco Piaui Paraíba Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Roraima Rondônia Rio Grande do Sul Santa Catarina Uberlândia – Existe uma DPCA que atua somente na área de Uberlândia. São 12 especializadas que realizam o atendimento às crianças e adolescentes vítimas, estão distribuídas nas seguintes cidades: Araraquara , São José do Rio Preto, Franca, Registro, Ribeirão Preto, Santos, São José dos Campos, Sorocaba e São Paulo. Delegacia Estadual de Proteção à Criança e ao Adolescente Existe somente uma Delegacia de Atendimento ao Adolescente, localizada na capital. Existem três especializadas em Curitiba, em Foz do Iguaçu e Cascavel. Existem duas especializadas, a Delegacia de Atend. ao Adol. Infrator que atende a capital e a Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente, que atende ao Estado. Existe uma especializada em Teresina. Existe uma especializada em Nova Iguaçu. Existe uma especializada em Natal, que atende todo o estado. Existe uma especializada em Porto Velho. Existe uma especializada em Boa Vista. Existem cinco DPCAS, em Porto Alegre, Santa Maria, Caxias do Sul, Uruguaiana e Cachoeira do Sul. Existem quatro unidades em Joinville, Florianópolis, Balneário do Camboriú e Criciúma. Vara de Crimes contra crianças e adoelscentes Vara privativa de crimes contra crianças e adolescentes Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre 146 Porcentagem de Registros dos Tipos de Violência Sexual registrada nas denúncias categorizadas DDN 100 - maio de 2003 a setembro 2008 70,00 57,76 60,00 50,00 40,45 40,00 30,00 20,00 10,00 0,80 1,79 Tráfico de Crianças e Adolescentes Pornografia 0,00 Exploração Sexual Comercial Abuso Sexual A análise da tabela anterior caminha no mesmo sentido: embora a maior parte das denúncias se refira a situações de abuso sexual também não há dados que nos permitam afirmar a maior ocorrência de uma modalidade de violência sexual em detrimento de outra. Por fatores culturais poder-se-ia levantar a tese de que a ocorrência de uma situação de abuso sexual de crianças é mais facilmente perceptível como violência para cidadãos médios, do que a de exploração sexual, especialmente quando diz respeito a adolescentes. É comum que crianças seja mais vitimadas pelo abuso sexual, enquanto adolescentes de exploração sexual. Isso causa diversas dificuldades em função de como a sociedade vê e percebe as situações de violência. Enquanto as crianças vítimas de abuso até conseguem acessar serviços públicos, adolescentes vítimas de exploração sexual na maior parte das vezes não são percebidas como vítimas. São tratadas como adultas responsáveis pela condição de violência em que se encontram. A sociedade não vê o contexto de violência e não as trata como pessoas em especial condição de desenvolvimento. Também é de se demonstrar preocupação com a invisibilidade dos crimes de tráfico de seres humanos e de pedofilia na internet, observando-se a baixa incidência das denúncias. No caso de tráfico de seres humanos, o Código Penal, nos artigos 231 e 231- A restringem a abrangência do tipo penal ao exercício da prostituição, excluindo outras situações de trabalho forçado. O fato é que são frequentes situações de deslocamento interno de adolescentes para exploração sexual só que normalmente esses casos não são denunciados ou catalogados como tráfico, permanecendo invisíveis. Em relação à utilização da internet para pornografia, ver comentários feitos acima sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito. Embora haja algum esforço para alterar o marco legal, não se percebe uma atuação forte na conscientização da população sobre essa nova forma de violência. Outra fonte de dados sobre violência sexual é o coletivo dos centros de defesa de crianças e adolescentes que compõem a ANCED – Associação Nacional dos Centros de Defesa de Crianças e Adolescentes. A ANCED está estruturada em grupos de trabalho e um desses grupos se dedica à impunidade. Nesse contexto, GT Impunidade realizou em 2006 uma pesquisa com casos acompanhados pelos Centros de Defesa no qual são percebidas a ineficácia do acesso à Justiça nos crime cometidos contra crianças e adolescentes, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Este estudo apontou que 37% dos casos acompanhados pelos CEDECAs diziam respeito à crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes, e podese constatar que 85% destes crimes sexuais, acompanhados pelos CEDECAS nas quatro 147 regiões, permaneciam sem solução ou resposta do sistema de justiça e segurança. Para 2009, a ANCED está propondo uma pesquisa com maior profundidade para levantar a situação e elaborar propostas. Nesse momento, o que se quer ressaltar é a baixa cobertura das políticas federais de atendimento à vítimas de violência sexual e a situação de impunidade generalizada. 5. Contexto e ambiente Ausência de projeto de vida digno no qual a exploração sexual é a grande possibilidade de ascensão social (caso exemplar para turismo sexual e tráfico) Contexto nacional de cultura da violência, invisibilidade da violência e atendimento de má qualidade aos casos denunciados (taxa de retorno do 100 e relatório casos CPMI) Diferença de tratamento para as vítimas de abuso para as vítimas de exploração sexual, no qual as políticas públicas acabam se destinando para as vítimas de abuso (ver dados CREAS) Resistência dos setores da saúde, educação e assistência social em função da questão social (discussão sobre a ficha catalográfica, resistência à notificação obrigatória) como questão de fundo. Conclusões Há efetivamente um aumento no espectro de políticas públicas do governo federal direcionadas para a violência sexual, ainda que com abrangência territorial bastante limitada. É certo que o Governo Federal avançou em algumas áreas ao admitir que esse era um grave problema que ocorre na sociedade brasileira em todas as regiões, resguardadas as especificidades locais. No entanto, deve-se considerar que a violência sexual é causada por situações estruturais, mas que não se fez um efetivo esforço para alterar esse cenário. Optou-se por agir não na diminuição da demandas, mas no atendimento de situações de violência já existentes. E ainda assim é certo afirmar que a reduzida presença dos equipamentos destinado a atender crianças e adolescentes faz com que a maioria das vítimas permaneça sem atenção do Estado. Enquanto não houve uma ação eficaz com o objetivo de garantir direitos através de um compromisso forte de equipar o Brasil com a estrutura adequada para responder a situação atual de violência, não é de se esperar a sua diminuição. A falta de um diagnóstico nacional que permita dimensionar o nível de violência sexual que a sociedade brasileira expõe suas crianças e adolescentes inviabiliza a construção de políticas públicas verdadeiramente universais. O Governo Federal ainda não garantiu que seus equipamentos estejam disponíveis na mesma medida em todo o território, sendo que a ausência de dados prejudica ainda a tomada de decisões baseadas nas necessidades reais. FONTES UTILIZADAS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Avaliação de políticas e programas do MDS: resultados. Volume 2 – Bolsa Família e Assistência Social. Brasília, DF: MDS; SAGI, 2007. NAÇÕES UNIDAS. Assembléia Geral. 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Regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.242, de 12 de outubro de l991, que cria o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0408.htm>. Acesso em 11 ago 2008. BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 5.089, de 20 de maio de 2004. Dispõe sobre a composição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5089.htm#art16>. Acesso em 11 ago. 2008. BRASIL. Congresso Nacional. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito criada por meio do Requerimento nº 02, de 2003-CN, “com a finalidade [de] investigar as situações de violência e redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil”. 13 jul. 2004. 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Acrescenta o art. 161-A ao Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal - para prever regras especiais quanto à realização de laudo pericial e psicossocial nos crimes contra a liberdade sexual de criança ou adolescente. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=240909>. Acesso em 11 ago. 2008. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Catálogo de indicadores de monitoramento dos programas do MDS. Júnia Valéria Quiroga da Cunha (Org.). Brasília, DF: MDS; SAGI, 2007. UNESCO. O Sistema de Avaliação e Monitoramento das Políticas e Programas Sociais: a experiência do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do Brasil. Brasília. UNESCO, 2006.CASTANHA, Neide. Violência Sexual contra criança e adolescente: uma questão em debate. In 18 de Maio. Caderno Temático. Direitos Sexuais são Direitos Humanos. 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(Artigo 2°, Estatuto da Criança e Adolescente) O termo “trabalho infantil” é considerado como as atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 (dezesseis) anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze) anos, independentemente da sua condição ocupacional. Estas duas definições, que orientam esta pesquisa, são retiradas do Estatuto da Criança e Adolescente e do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente. Tal Plano, elaborado pelos membros do CONAETI (Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil), tem como finalidade “coordenar diversas intervenções e introduzir novas, sempre direcionadas a assegurar a eliminação do trabalho infantil”. Deve-se ressaltar a importância do Plano para orientar a construção de um país livre do Trabalho Infantil, e dar o devido valor para a iniciativa, que em si, representa um grande avanço nas políticas nacionais deste setor. Porém a realidade, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio de 2006130, é de 5,1 milhões de meninos e meninas entre 5 e 17 anos trabalhando no Brasil. Um recorte para as crianças e adolescentes de 5 a 13 anos, mostram que 62% trabalham em atividades agrícolas. Número bastante elevado, principalmente em épocas de desenvolvimento econômico, expansão do setor sucroalcooleiro, e de fechamento do agronegócio no ano de 2007 com um Produto Interno Bruto (PIB) recorde de R$ 611,8 bilhões. Historicamente o desenvolvimento econômico no Brasil funciona como um indutor da desigualdade. E fica muito evidente quando se trata de exploração econômica de crianças e adolescentes. Como exemplo, o informe da Missão de Investigação sobre os impactos das políticas públicas de incentivo aos agrocombustíveis sobre o desfrute dos direitos humanos à alimentação, ao trabalho e ao meio ambiente, das comunidades campesinas e indígenas e dos trabalhadores rurais no Brasil, que aponta como um dos principais problemas o trabalho infantil. A Comissão Pastoral da Terra também assinala que, com as isenções fiscais no setor de álcool de açúcar, e o aparecimento de diversas usinas, a mão de obra começa a ficar rarefeita, propiciando a exploração do trabalho infantil. São só exemplos da falta de sintonia entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social, este sempre subordinado àquele. Políticas públicas de erradicação ao trabalho infantil terão muito mais eficiência, quando o crescimento econômico for revertido em crescimento da dignidade. Recomendações 61. O Comitê recomenda que o Estado-parte: 130 Divulgada em 28 de março de 2008 152 a) Fortaleça o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil por meio do apoio a iniciativas de geração de renda para as famílias das crianças atendidas pelo programa; b) Aperfeiçoe o sistema de inspeção do trabalho e em particular os habilite a monitorar e relatar as práticas de trabalho infantil doméstico; c) Forneça aos antigos trabalhadores infantis recuperação apropriada e oportunidades educacionais. Recomendação 61 a Estrutura da fiscalização Entre 2000 e 2004, o Brasil contava com uma estrutura de fiscalização dedicada exclusivamente ao trabalho infantil, através dos Grupos Especiais de Combate ao Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalhador Adolescente – GECTIPAs, nas Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs). A Portaria nº 541 de 2004, do Ministério do Trabalho e Emprego, MTE, extinguiu os GECTIPAs, para adequar às novas regras da carreira dos auditores fiscais. Com o seu fim, os fiscais deixaram de ser específicos para o enfrentamento da exploração de mão-de-obra de crianças e adolescentes e passaram a ter que cumprir metas individuais e institucionais para conseguirem gratificações. A pontuação para receber tal benefício não inclui o controle sobre o trabalho infantil, e sim para cumprir metas ligadas à fiscalização do registro empregatício, da arrecadação de FGTS, das condições de saúde do trabalhador nas empresas e para ações de fiscalização do cumprimento de lei de aprendizagem para adolescentes. Este sistema leva a crer que as metas com gratificações é que terão prioridade, desestimulando os fiscais a atuar no campo do combate ao trabalho precoce. O fim dos GECTIPAs foi entendida como um desprestigio para a causa e representou uma perda, pois eles contribuíram decisivamente para a diminuição dos índices de trabalho infantil, inclusive para a eficácia do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), e o seu fim tirou o foco da prioridade do enfrentamento ao fenômeno, e os fiscais perderam a autonomia para se dedicar à inspeção de casos que evolvem meninos e meninas. A fiscalização era apenas um aspecto do trabalho realizado pelos Gectipas, que desenvolviam diversas ações, como o mapeamento do trabalho infantil, coleta de dados, descoberta dos focos, definição das prioridades de atuação e ações de capacitação para grupos que trabalham com o combate ao trabalho infantil e de sensibilização das famílias. Cuidavam também de fiscalizar a qualidade e a realização das Jornadas Ampliadas (atualmente chamada Ação Socioeducativa e de Convivência), que consistem em atividades de lazer, esportivas, culturais e de reforço escolar, no contra turno da escola, previstas no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). As demandas do Grupo eram enviadas aos setores responsáveis, como o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), que encaminhavam as crianças e adolescentes para serem incluídos nos programas do Governo Federal (como o PETI). Com este fluxo, os GECTIPAs influenciavam as políticas públicas nacionais e locais, criando demandas com os números e as informações fornecidas. Para tentar responder a lacuna do fim dos GECTIPAs, no final de 2004, o MTE criou Grupos Especiais Móveis de Combate ao Trabalho Infantil, nos moldes dos já existentes grupos de 153 combate ao trabalho escravo. Centralizado em Brasília, seus procedimentos eram padronizados e supervisionados. Apesar de atuação nacional, os Grupos Especiais Móveis tinham como foco especial o Norte e Nordeste brasileiro. Porém o esforço não teve o mesmo impacto e incidência que os GECTIPAs tiveram, e foi extinto em 2006. A portaria que extinguiu os Grupos Especiais Móveis de Combate ao Trabalho Infantil, é a que atualmente rege a estrutura de fiscalização do trabalho infantil, a Instrução Normativa da Secretaria de Inspeção do Trabalho, SIT, nº 66 de 13.10.2006. Hoje em dia são 3.169 Auditores Fiscais do Trabalho (AFT) no Brasil, que recebem ordens de serviço mensalmente com a obrigação de verificar a existência de trabalho infantil no local a ser inspecionado, o que faz com que para qualquer denúncia seja levado em conta o trabalho infantil. Os auditores fiscais do trabalho também procedem à fiscalização provocada mediante denúncia. Além disso, segundo o Diretor do Departamento de Fiscalização do Trabalho do MTE, anualmente, cada uma das 27 Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego realiza quatro operativos, sendo: dois deles de âmbito nacional, em datas previamente definidas pela SIT e; os outros dois regionais, de acordo com definição do MTE. Estes operativos constituem de ações repressivas de fiscalização; ações de sensibilização, com seminários, oficinas de trabalho e palestras e; ações de divulgação através da mídia. Para dar conhecimento e publicidade aos dados obtidos pela fiscalização do trabalho infantil, foi lançado em junho de 2008, pelo MTE, o Sistema de Informações Sobre o Trabalho Infantil, (SITI), que reúne informações referentes aos focos de trabalho infantil identificados no Brasil. O Sistema, em formato eletrônico, veio substituir o Mapa de Indicativos do Trabalho da Criança e do Adolescente, que desde 2005 não era atualizado e que era composto pelas informações das fiscalizações dos GECTIPAs. O SITI é munido de informações quantitativas e qualitativas, agrupadas em níveis nacional, estadual e municipal, com dados como número, gênero e faixa etária das crianças e adolescentes, além de detalhes sobre a fiscalização e as providências tomadas em decorrência da ação. Foi desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e doado ao MTE. De janeiro de 2003 a dezembro de 2007, as fiscalizações da SIT, encontraram 44 mil crianças e adolescentes trabalhando. Dados de 2008, até junho, já somam 2.037 meninos e meninas. O resultado das fiscalizações do ano passado aponta que o estado do Ceará apresentou o maior número de crianças na condição de trabalho, com 1.696 delas, seguido pelo Maranhão com 1.603 crianças e pela Bahia com 1.334. Cruzando estes dados com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) de 2006, observa-se que estes estados não são os que possuem o maior número absoluto de crianças e adolescentes trabalhando. São Paulo, Minas Gerais e Bahia, encabeçam a lista, seguido do Ceará, Maranhão e Rio Grande do Sul. Fiscalizar o trabalho infantil não gera arrecadação, de crianças e adolescentes na economia informal âmbito de atuação da fiscalização trabalhista. Mas importância, como preconiza a Constituição Federal além do que há uma grande concentração e no trabalho doméstico, campos fora do essas ações têm um papel social da maior no seu artigo 227131. 131 “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 154 Frente aos 5,1 milhões de trabalhadores infantis, a fiscalização precisa ser mais intensa e efetiva. E uma estrutura especial de fiscalização, com o compromisso exclusivo de combater focos de trabalho infantil, como já experimentado pelos Grupos Especiais de Combate ao Trabalho Infantil e de Proteção ao Trabalhador Adolescente, é fundamental para o comprometimento em relação ao combate à prática no país. Número de crianças trabalhando e número de crianças no PETI A PNAD 2006 aponta que 5,1 milhões de crianças e adolescentes, com idade entre 5 a 17 anos de idade, estavam trabalhando. Este número ainda é muito elevado, mas ao longo dos anos é observada uma queda neste número, apesar de, em 2005, ter um ligeiro aumento em relação a 2004132. Reflexo desta queda verifica-se entre os anos de 2004 e 2006, em que o nível da ocupação era de 11,8% e 11,5%, respectivamente. Porém, a inserção na atividade econômica para a população de 5 a 13 anos de idade, apesar de a legislação brasileira proibir o trabalho sob qualquer forma para as crianças e adolescentes com menos de 14 anos, não apresentou alteração no nível de ocupação (4,5%), ao se comparar os anos de 2004 e 2006. Em números absolutos, são cerca de 2,71 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos que estavam ocupadas. Ao desagregar os dados, verifica-se que 237 mil crianças de 5 a 9 anos de idade estavam trabalhando, o que representava 1,4% da população total desta faixa etária. De igual forma, da população de 10 a 13 anos de idade 8,2% trabalhavam. Dos adolescentes com 14 ou 15 anos de idade, 1,3 milhão de pessoas trabalhavam, o que representava, aproximadamente, 19,0% da população desta faixa etária. Para a legislação brasileira estas crianças e adolescentes podem trabalhar, desde que estiverem inseridos em atividades relacionadas à qualificação profissional, na condição de aprendizes. Os 2,4 milhões de adolescentes com 16 ou 17 anos de idade, ocupados, são aptos ao trabalho segundo a legislação brasileira, desde que não estejam envolvidos em atividades noturnas, perigosas e insalubres. Eles representavam em 2006, aproximadamente 1/3 da população com esta faixa etária. Na Região Nordeste, o nível da ocupação das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade é de 14,4%, superior aos observados nas demais regiões. Em seguida vem a Região Sul, 13,6%, Norte, 12,4%, Centro Oeste, 9,9% e Sudeste 8,4%. Em todas as regiões, o nível da ocupação das crianças e adolescentes do sexo masculino é superior ao do feminino, em todas as faixas etárias. Do total de crianças e adolescentes que trabalham 64% são meninos e 36% são meninas. Quanto a cor/raça133 das crianças e adolescentes que trabalhavam, 52,89% é parda. Em seguida vem a branca, com 41%; preta, 6,18%; indígena, 0,29% e amarela, que chega a quase 0,1%. Este recorte demonstra a cor da desigualdade social brasileira, considerando que os negros são representados por pretos e pardos, são a grande maioria (59,07%) de meninos e meninas trabalhadores. 132 Vale ressaltar que desde 2004 a PNAD alcançou a totalidade da cobertura do Território Nacional, ao incluir as áreas rurais de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá: 133 Segundo Nota Técnica da PNAD; “Cor ou raça: característica declarada pelas pessoas com base nas seguintes opções: branca, preta, amarela (pessoa de origem japonesa, chinesa, coreana etc.), parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça) ou indígena (pessoa indígena ou índia)”. 155 A questão do trabalho infantil nas faixas etárias de 5 a 13 anos ocorre principalmente em atividades agrícolas (62,6%), enquanto no grupo de 14 a 15 e 16 a 17 anos, o trabalho é predominantemente em atividades não-agrícolas (56,4% e 72,2%, respectivamente). Em quase todas as regiões, o percentual de ocupados de 5 a 13 anos em atividades agrícolas era superior ao daqueles envolvidos em atividades não agrícolas. Na Região Nordeste, este índice era de 69% e a Região Sudeste, exceção entre as regiões, tinha 43,7% destas crianças ocupadas nestas atividades. A atividade agrícola é tradicionalmente masculina e esta tendência é confirmada entre as crianças e adolescentes de 5 a 17 anos, já que os meninos somam cerca de 75,1% dos trabalhadores nestas atividades. Mais da metade (53,69%) dos meninos e meninas que trabalhadores agrícolas estão nos estados nordestinos. Das 4,9 milhões de crianças e adolescentes de 10 a 17 anos ocupados, analisou-se o local de trabalho, e a maior parte trabalha em loja, oficina ou fábrica (36,2%) ou em fazenda, sítio ou granja (29,3%), seguindo-se os que trabalham no domicílio do empregador (9,1%) ou no próprio domicílio (5,9%). Havia ainda 4,8% que trabalhava em via pública. A pesquisa também aponta que das crianças e adolescentes ocupados, com idade entre 5 a 17 anos, 45,9% estão contratados como empregado ou como trabalhador doméstico, e 36,1% como trabalhador não-remunerado. Observou-se, também, que, à medida que aumenta a faixa etária, cai a proporção de trabalhadores não-remunerados e aumenta o percentual de empregados e trabalhadores domésticos. Aproximadamente 60% das crianças e adolescentes ocupados, de 5 a 13 anos desenvolviam atividades não-remuneradas. Entre os de 14 ou 15 anos esta proporção era pouco mais de 40% e, entre os de 16 ou 17 anos, os nãoremunerados representavam pouco mais de um quinto. No Brasil, 83,8%, das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade envolvidos em atividades agrícolas não recebia remuneração por suas tarefas. Na Região Sul, este percentual chegou a 91,0%, e no Sudeste, menor índice, é de 67%. Ao analisar a jornada de trabalho semanal, dos trabalhadores que por lei são proibidos de trabalhar, ou seja, os de 5 a 13 anos, 51,2% trabalham até 14 horas por semana, e 4,6% trabalham 40 horas ou mais. Importante inovação na PNAD 2006 foi a pergunta sobre o principal motivo que levou ao trabalho. Havia duas alternativas de resposta: queriam trabalhar ou os pais ou responsáveis queriam que trabalhassem Das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos, cerca de 77,9% dos ocupados, queriam trabalhar. A análise desta investigação por sexo não indica muita diferença, pois entre os homens, 76,6% queriam trabalhar e, entre as mulheres, este percentual foi estimado em 80,3%. O percentual de crianças e adolescentes ocupados que queriam trabalhar, era inferior nas Regiões Norte e Nordeste, 67,8% e 69,7%, respectivamente. Na Sudeste o índice era o maior, 88,6%, seguido da Região Centro Oeste 85,1% e Sul 82,7%. O destino do rendimento proveniente do trabalho também foi um tema abordado. A maior parte das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade ocupados e remunerados (63,9%) não entregava os rendimentos recebidos para os pais ou responsáveis. Cerca de 1/3 tinha o seu rendimento entregue para seus pais ou responsáveis por eles mesmos ou diretamente pelo seu empregador. 156 O percentual de homens que não entregava o rendimento (61,1%) era inferior ao de mulheres na mesma condição (68,2%). Nas Regiões Norte (50,1%), Nordeste (51,1%) e Sul (52,6%) o percentual de crianças e adolescentes de 5 a 13 anos de idade, cujo rendimento não era entregue aos pais, era inferior ao verificado nas Regiões Sudeste (68,2%) e Centro-Oeste (68,5%). Em cada uma das regiões, mais de 60% das crianças e adolescentes na faixa etária de 14 a 17 anos de idade não entregavam o rendimento a seus pais ou responsáveis. A Região Centro Oeste foi a que apresentou o maior percentual de crianças e adolescentes trabalhadores dessa faixa de idade que não entregavam os rendimentos recebidos para os pais ou responsáveis (74,7%). A trajetória decrescente do percentual geral de trabalho infantil, não é suficiente para dispensar o empenho no combate à pratica. Além do número ainda ser muito grande, desde 2004 há uma estagnação na redução de trabalho infantil para crianças entre 5 e 13 anos. Isso demonstra a necessidade de combater o trabalho precoce, concentrado no trabalho familiar não remunerado, agrícola, e em especial nas cidades da Região Nordeste e Norte do Brasil. Fatores determinantes do Trabalho Infantil O Brasil possui leis e restrições com relação ao trabalho infantil, entretanto, os dados da PNAD mostram que as leis não são cumpridas e que o fenômeno está longe de ser erradicado. Analisando os principais gargalos à erradicação do trabalho infantil, é possível verificar seus fatores determinantes. Tem-se de um lado a demanda por trabalho infantil, afetada pela estrutura do mercado de trabalho e tecnologia, facilitada pela pouca fiscalização e o baixo custo que as crianças e adolescentes representam para os empregadores, pois, uma vez ilegal, elas não são membros de sindicatos, não têm direitos como trabalhadores, recebem baixos salários e podem ser despedidas mais facilmente do que os adultos. Do outro lado a família, arraigada de valores tradicionais e culturais, como a centralidade da noção de reciprocidade no ambiente familiar, na qual se acentua o compromisso dos filhos de ajudarem no funcionamento do grupo como um todo. Estudos enfatizam dois aspectos básicos que afetam a oferta de trabalho infantil: tamanho da família e a sua renda. Os pais colocam os filhos menores para trabalhar para aumentar sua renda e para minimizar o risco de interrupção do fluxo contínuo da mesma, causado por perda de emprego, perda de safra agrícola, etc. Ana Lúcia Kassouf134, a partir de um estudo de métodos estatísticos de análise de dados e problemas econômicos, aponta que os determinantes mais importantes para explicar o trabalho infantil são: a pobreza, a escolaridade dos pais, o tamanho e a estrutura da família, local de residência e a idade em que os pais começaram a trabalhar. A pobreza é um forte determinante para o trabalho infantil, mas não é o seu principal. Vários estudos mostram que o aumento da renda familiar reduz a probabilidade de a criança trabalhar. É sabido também que nações que se tornaram mais ricas, como a Índia e China, apresentaram uma redução no trabalho infantil. Entretanto, a pobreza não explica por si só as crianças trabalhando. Embora seja observada 134 Professora da Universidade de São Paulo, e Coordenadora de publicações da OIT, em seu artigo O que conhecemos sobre o trabalho infantil? 157 uma associação negativa entre a incidência do trabalho infantil e o nível de renda familiar per capita, esse dado é insuficiente para que a pobreza seja considerada a causa principal do trabalho infantil no país sem que se atrele aos incentivos e oportunidades que surgem com as imperfeições no mercado de trabalho. Outra relação que explica o trabalho precoce é o efeito negativo da escolaridade dos pais. Como a escolaridade é uma das principais variáveis relacionadas a melhores salários e entrada no mercado de trabalho, é fundamental que o nível educacional dos adultos aumente. A importância da escolaridade vai mais longe, incluindo não só o efeito direto nos salários e no emprego, mas também o efeito indireto, pois pais mais educados são capazes de entender a necessidade das crianças estudarem e, portanto, as encorajariam a irem à escola ao invés de trabalhar. A composição familiar é outro importante determinante do trabalho infantil. Muitas crianças trabalham mais quanto maior é o número de irmãos. Ana Lúcia Kassouf, diz que o aumento do tamanho da família, implica em um aumento da participação das crianças na força de trabalho. Há um estudo baseado na PNAD de 1998, que estabelece uma relação entre a ordem de nascimento e a propensão de a criança trabalhar ou estudar em famílias pobres. O irmão mais novo tem menor probabilidade de trabalhar do que seu irmão mais velho, o que significa que algumas crianças trabalham para permitir que outras estudem. Quanto ao local de residência, apesar de a população brasileira ser sobretudo urbana, proporcionalmente, a área rural tende a ter mais crianças e adolescentes trabalhadores em atividades agrícolas. Além de possuir uma porcentagem grande de trabalhadores infantis 135, a infra-estrutura escolar é mais fraca e a taxa de inovação tecnológica é menor na área rural, o que podem desencorajar a freqüência escolar. Há também a maior facilidade de a criança ser absorvida em atividades informais e de desempenhar trabalhos agrícolas no âmbito residencial. Quanto à idade, de certa forma, há menos tolerância ao trabalho imposto à criança, visto como uma violação ao direito de desenvolvimento integral, do que com os adolescentes. O término do ensino compulsório e a maior oferta de trabalho disponível às crianças maiores também contribuem para o aumento do trabalho numa faixa etária mais avançada. Outro determinante do trabalho infantil, ligado a aspectos sociais e culturais, é a idade que os pais entraram no mercado de trabalho. Pais que foram trabalhadores na infância tendem a enxergar com mais naturalidade o trabalho infantil e são mais propensos a colocar os filhos para trabalhar. Como conclui o estudo citado, há outros determinantes do trabalho infantil, que ainda precisam ser analisados, como salário, idade e ocupação dos pais, tamanho da propriedade agrícola onde as crianças trabalham, custos relacionados à escola, medidas de qualidade do estabelecimento de ensino onde a criança está inserida, entre outros. Especificamente sobre os fatores determinantes do Trabalho Infantil Doméstico, a OIT tem um estudo em três municípios brasileiros136 que, entre outros diagnósticos, elenca as variáveis que levam ao trabalho doméstico precoce. Da análise destes determinantes, a escolaridade da mãe é um indicativo que explica a inserção precoce de crianças e adolescentes no mercado de trabalho, em todas as faixas etárias, a proporção de ocupados diminui com o aumento da escolaridade da mãe. Outro indicador, 135Segundo a PNAD, 41,4% de pessoas ocupadas de 5 a 17 anos em atividade agrícola. 136 O Trabalho Infantil Doméstico nas cidades de Belém, Recife e Belo Horizonte: um diagnóstico rápido 158 também do ambiente familiar, é a renda domiciliar per capita, uma vez que a proporção de trabalhadores desse público cai conforme aumenta o nível de renda dos domicílios. O estudo também aponta que a entrada precoce no mercado de trabalho doméstico, tem impactos negativos sobre a escolaridade, limitando o nível de instrução atingido pelas crianças e adolescentes. A pobreza também é encarada com ressalvas, pois da mesma forma que o trabalho infantil, ela sozinha não explica as taxas de crianças que desempenham o trabalho doméstico. Deve-se levar em conta, as características do mercado, como sua estrutura de empregos e salários, e também os aspectos culturais que envolvem o trabalho infantil. Porém não são só os aspectos econômicos as condicionantes do trabalho infantil doméstico. O diagnóstico da OIT aponta a socialização diferenciada de meninos e meninas de grupos familiares populares, mostrando como o trabalho doméstico vai se revestindo de um conteúdo de obrigação para as meninas e de ajuda para os meninos, revelando a lógica de gênero que organiza as relações no grupo doméstico. Aliado a este raciocínio é apontado também como condicionante de uma trajetória feminina de trabalho a posição no grupo de irmãos e irmãs, recaindo sobre as mais velhas a responsabilidade do funcionamento do lar. Sobre a significação do trabalho infantil doméstico, pelas próprias crianças e adolescentes, é apontado o seu caráter dúbio, uma vez que os motivos alegados para se iniciarem no trabalho é querer trabalhar e comprar coisas pessoais, e, ao mesmo tempo, quase todas desejam sair do trabalho doméstico, devido ao baixo prestígio social desse tipo de trabalho. Este paradoxo aponta para a necessidade de busca de alternativas que possibilitem a expansão de horizontes e a abertura de oportunidades. Uma política eficaz de combate ao trabalho precoce não pode colocar seu foco, unicamente, na repressão desta atividade, e sim em criar condições para que ela seja descontinuada, com uma ampliação no sistema educacional de qualidade, e a criação de programas de geração de emprego e renda para as famílias. Claro que existem situações que o trabalho deve ser banido, como no caso do trabalho perigoso, que pode causar danos à saúde, segurança ou à moral das crianças. Implementação do PETI O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) é um programa de transferência direta de renda do Governo Federal para famílias de crianças e adolescentes envolvidos com o trabalho precoce, e compõe o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) com duas ações articuladas: o serviço socioeducativo ofertado para as crianças e adolescentes afastadas do trabalho precoce e; a transferência de renda para suas famílias. Seu objetivo é erradicar a prática do trabalho infantil. Para tanto, é concedido um auxílio financeiro às famílias dessas crianças e adolescentes, em substituição à renda do trabalho infantil. Em contrapartida, os pais têm que matricular seus filhos na escola e fazê-los freqüentar as ações socioeducativas e de convivência. Foi criado em 1996, como uma experiência piloto implantada nas carvoarias do estado do Mato Grosso do Sul, onde crianças e adolescentes trabalhavam nos fornos de carvão e na colheita da erva-mate. 159 No ano de 1997, foi implantado nos canaviais de Pernambuco e na região sisaleira da Bahia, ampliando-se o atendimento também aos estados do Amazonas e de Goiás. Em 1998, foi estendido para a região citrícola de Sergipe, para áreas de garimpo em Rondônia e para canaviais no litoral fluminense do Rio de Janeiro. A partir de 1999, o Programa teve sua abrangência ampliada para diversas atividades nos demais estados do País. Sua ação tinha como referência principal o núcleo familiar e, subsidiariamente, a escola e a comunidade. O público-alvo era constituído, prioritariamente, de famílias com renda per capita de até ½ salário mínimo, com filhos na faixa de 7 a 14 anos em situação de trabalho consideradas perigosas, insalubres, penosas ou degradantes. No Programa Plurianual (PPA) 2000-2003, as ações orçamentárias estruturadas para a implementação do PETI eram: concessão de Bolsa Criança Cidadã; atendimento a criança e ao adolescente em Jornada Escolar Ampliada; geração de ocupações produtivas para as famílias do PETI; fiscalização para erradicação do trabalho infantil; mapeamento dos focos de trabalho infantil por município; Estudos e pesquisas sobre trabalho infantil; Promoção de eventos para sensibilização da sociedade sobre o trabalho infantil; Campanha para sensibilização da sociedade quanto ao trabalho infantil; Edição e distribuição de publicações institucionais sobre trabalho infantil. Já no PPA 2004-2007, o PETI passou a compreender as seguintes ações: Bolsa CriançaCidadã; Apoio aos Fóruns de Erradicação do Trabalho Infantil; Atendimento à Criança e ao Adolescente em Jornada Ampliada; Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil; Publicidade de Utilidade Pública; Atualização do Mapa de Focos de Trabalho Infantil e; Apoio Técnico à Escola do Futuro Trabalhador. Conforme estudo do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) o PETI apresentava as seguintes características: 137 , em 2006, O valor da bolsa para as famílias residentes em áreas rurais ou em municípios com menos de 250 mil habitantes era de R$ 25,00, e para as famílias residentes em áreas urbanas com mais de 250 mil habitantes, o valor era de R$ 40,00 por criança retirada do trabalho. Não havia limite do número de bolsas por família. Além da bolsa, era repassado aos municípios um valor de R$ 20,00 por criança ou adolescente beneficiário das atividades socioeducativas e de convivência no horário extra-escolar. A faixa etária das crianças e adolescentes beneficiárias, inicialmente de 7 a 14 anos, passou a ser de 7 a 15 anos, e o Programa começou a atender também a crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual comercial. Para receber o benefício, a família obrigatoriamente deveria: retirar das atividades laborais todos os filhos menores de 16 anos; assegurar que as meninas e meninos tivessem freqüência mínima de 75% às atividades escolares e atividades socioeducativas e de convivência. As ações de controle do cumprimento das contrapartidas exigidas pelo Programa deveriam ser executadas pelos municípios. Para serem atendidos pelo Programa, inicialmente os Estados deveriam efetuar um levantamento dos casos de trabalho infantil que ocorrem em seus municípios. Esse estudo diagnóstico era apresentado às Comissões Estaduais de Erradicação do Trabalho Infantil, para 137 Avaliação da integração do programa de erradicação do trabalho infantil (PETI) ao programa bolsa-família (PBF). Janeiro de 2007. 160 validação e estabelecimento de critérios de prioridade para atendimento às situações identificadas. Com isso, priorizava-se o atendimento a municípios em pior situação econômica ou que apresentassem atividades mais prejudiciais, em termos comparativos, à saúde e à segurança da criança e do adolescente; Em 2005, a partir da portaria 666 de 28 de dezembro de 2005, foi estabelecida a integração do PETI ao Programa Bolsa Família (PBF). O PBF é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 60,01 a R$ 120,00) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 60,00), de acordo com a Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004 e o Decreto nº 5.749, de 11 de abril de 2006138. Programa integrante do Fome Zero, unificou os procedimentos de gestão e execução das ações de transferência de renda do Governo Federal, com os objetivos de promover o acesso à rede de serviços públicos, (em especial, de saúde, educação e assistência social); combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional; estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza; combater a pobreza e; promover a intersetorialidade, e a complementaridade das ações sociais do Poder Público. O grande instrumento de gestão do PBF é o CadÚnico139, e tem como condicionalidades: freqüência escolar de 85% para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos e de 75% para adolescentes entre 16 e 17 anos; acompanhamento do calendário vacinal e do crescimento e desenvolvimento para crianças menores de 7 anos, pré-natal das gestantes e acompanhamento das nutrizes e; acompanhamento de ações socioeducativas para crianças em situação de trabalho infantil. A junção dos referidos programas visou aprimorar os processos de gestão do PBF e do PETI, pela obrigatoriedade de pagamento do benefício por meio de cartão magnético e pela inclusão de todas as famílias no CadÚnico, eliminando a duplicidade de benefícios e otimizando o repasse de bolsas. Porém, a integração ao focar o principal objetivo do Programa Bolsa Família, que é o combate a pobreza, deixa de lado o foco no combate ao trabalho infantil, cujos fatores causais não se limitam à baixa renda. Reflexo disso é a queda no número de atendimento das crianças e adolescentes pelo PETI. Em 2006, ano de sua implementação, eram 1 milhão de crianças e adolescentes atendidos, em 2007, este número era de 872 mil. Dados de janeiro a julho de 2008 indicam que 875,1 mil meninas e meninos estão sendo beneficiados com o programa. 138 Site MDS www.mds.gov.br/bolsafamilia 139 Cadastro Único para Programas Sociais regulamentado pelo Decreto n° 6.135, de 36 de junho de 2007, é um instrumento de coleta de dados e informações com o objetivo de identificar todas as famílias de baixa renda existentes no país. 161 O orçamento executado para o enfrentamento ao trabalho infantil, conforme a Lei do Orçamento Anual (LOA) também foi menor ao se comparar os anos140: PROGRAMA 0068 - ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL ANO Dotação Inicial Valor Autorizado (LOA + Créditos) Empenhado 2005 541.647.036 544.147.036 541.285.635 2006 375.124.786 359.606.914 245.639.088 2007 376.875.885 297.126.761 273.724.048 200 8141 335.786.445 312.019.035 135.523.874 O referido estudo do FNPETI ouviu gestores públicos, que disseram que a ausência de um incentivo específico não prejudica a política de combate ao trabalho infantil, pois “... em todos os benefícios existe uma condicionalidade ao trabalho infantil, e isso é uma restrição de fato e não uma regra de entrada ou uma condicionalidade142”. O que preocupa é que, para que essa restrição seja observada, a situação de trabalho infantil deve ser informada, constatada, registrada, e o principal obstáculo ao combate ao trabalho infantil é a omissão dessa informação. Acredita-se que no questionário do CadÚnico, de responsabilidade do órgão da Prefeitura Municipal mediante o preenchimento de um caderno de questionários aplicados por um entrevistador, o entrevistado informará, no “campo 270” se participa de algum programa do Governo Federal ou recebe algum benefício social, entre eles listada a categoria “Bolsa Criança-Cidadã-PETI”. E que esta resposta poderá identificar as situações de trabalho infantil. Porém, em tal caderno de questionários, não existe uma única pergunta direcionada à existência de meninos e meninas em situação de trabalho infantil. E, importante ressaltar que, o registro do que é trabalho infantil resulta do entendimento do próprio gestor municipal sobre o seu conceito. Sem uma definição precisa do que é o trabalho infantil, somado a fatores culturais que permeiam a sociedade sobre o tema, dificulta ainda mais a sustentabilidade da política de erradicação do trabalho infantil. O PETI é uma política publica crucial para o enfrentamento ao trabalho infantil, e o seu desafio é priorizar a retirada das crianças e adolescentes do trabalho e definir novas estratégias que tenham eficácia no combate ao trabalho infantil na informalidade, nas atividades ilícitas e em regime de economia familiar. A integração dos programas, ao equalizar o tratamento das famílias que têm e que não têm 140 Conforme publicação da UNICEF ORÇAMENTO PÚBLICO: DECIFRANDOALINGUAGEM: DOTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA: Valores monetários autorizados na LOA para atender despesas com projetos ou atividades. EMPENHO: Ato administrativo do ordenador de despesa que cria para a Administração Pública a obrigação de pagamento a determinado fornecedor de bens, prestador de serviços ou empreiteira, de acordo com as condições contratuais estabelecidas (art. 58, Lei 4.320/64). Através do empenho, o ordenador de despesa compromete parte do valor de determinado crédito orçamentário vinculado a um elemento de despesa de um projeto/atividade orçamentário. 141 Dados referentes até junho de 2008 142 Pagina 26. 162 filhas e filhos em situação de trabalho infantil, elimina os incentivos das famílias à retirada das crianças e adolescentes do trabalho precoce. Sem dúvidas que o Cadastro Único traz ganhos de transparência e pode contribuir para o aprimoramento da gestão dos programas. Mas, segundos especialistas143 teria sido possível, por intermédio do CadÚnico, gerenciar melhor a alocação dos benefícios, monitorar o cumprimento das condicionalidades e a oferta e comparecimento às atividades socioeducativas e de convivência, sem substituir o critério do trabalho infantil pelo da renda. O conjunto de mudanças implementadas durante o ano de 2006 evidencia o fato de que a política governamental priorizou o critério da renda ao critério do trabalho infantil. E essa iniciativa não é consistente aos esforços de combate ao trabalho infantil, reconhecidamente, um fenômeno complexo, envolvendo tanto as dimensões da pobreza e renda familiar, como também da cultura e da dinâmica do mercado. Opinião Legitimadora do Trabalho Infantil Estão presentes no imaginário da sociedade brasileira várias justificativas que naturalizam o trabalho infantil, o que contribui para a sua difícil erradicação. O fenômeno do trabalho infantil encontra suas raízes e características na história brasileira. Desde o século XVI, crianças indígenas, negras e mestiças eram levadas ao trabalho pelos colonizadores. A história da industrialização do Brasil contou com o esforço das crianças, acompanhando a tendência que vinha da Inglaterra. A mão de obra infantil também foi constante no processo de urbanização. Na medida em que o a economia do país se diversificava, as crianças iam ocupando espaço. Até os anos oitenta, a sociedade e o estado brasileiro conviveram de uma forma pacífica com o trabalho infantil, que até então nunca tinha sido representado pelo aspecto negativo. Tanto a elite, como as classes mais pobres entendiam que o trabalho era um fator positivo para crianças que viviam em condições de pobreza, de exclusão e risco social. É por isso que até hoje persistem uma série de mitos como: “o trabalho enobrece”; “é determinante na formação dos jovens”; “afasta das ruas e da marginalidade”, “na falta de condições de sobrevivência da família, natural que suas crianças e adolescentes se voltem ao trabalho para suprir sua subsistência” 144. Se para a elite social o trabalho precoce era alternativa à marginalidade e solução ao problema da miséria e pobreza, para os pobres era uma maneira de sobreviver. Daí vem o encorajamento existente nas próprias famílias para que o trabalho tivesse início mais cedo. Explica um estudo da OIT145, que dois fatores contribuem para compreender o início do trabalho infantil dentro da própria família: 1) os que estão na sua origem, como a tradição do grupo social e; 2) fatores macroestruturais, ou seja, fatores sociais, políticos e econômicos, que geram pobreza, desemprego e salários insuficientes para o sustento da família, sendo o trabalho infantil uma conseqüência. 143 Conforme referido estudo do Fórum Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Infantil 144 Arenque, Eliane. A naturalização do trabalho infantil. 145 O trabalho infantil na cultura do abacaxi no município de Santa Rita - PB: um diagnóstico rápido à luz das piores formas do trabalho infantil no Brasil. Maria de Fátima Pereira Alberto, (coordenadora). OIT Brasil. 163 Estes mitos culturais estiveram presentes nas ações das instituições públicas também. O Código de Menores de 1926 define, em seu artigo 4°, que menor “vadio” (o equivalente à criança em situação de rua) eram “os que se mostram refratários a receber instrução ou entregar-se a trabalho sério e útil vagando pelos logradouros e ruas públicas, sem domicílios, sem meios de vida regular”. Ainda em seu artigo 101, proíbe o trabalho antes dos 12 anos. Hoje com a proteção integral, consagrada pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, Constituição Federal e Estatuto da Criança e Adolescente (E.C.A), a criança e o adolescente são sujeitos de direitos, tendo prioridade porque pessoas especiais, em desenvolvimento. A tutela do Estado, ou seja, o controle sobre as crianças e adolescentes, explicitada nos dois Códigos de Menores, não mais atende a esse paradigma. Contudo, o Estado deve atender, em conjunto com a família e a sociedade, às suas necessidades, garantindo-lhes os seus direitos com prioridade absoluta. À falta de condições da família para cumprir essas necessidades, cabe ao Estado dar-lhe proteção e amparo, de forma a que cumpra o seu papel, uma vez que a família constitui o espaço de crescimento e bem-estar. No entanto a luta contra o trabalho infantil não pode ser uma luta isolada do Estado. Há políticas públicas insuficientes para lidar com a questão, mas é necessário uma mudança cultural na sociedade, que está acostumada a ver ou saber do trabalho infantil: “em vez de denunciar, as pessoas se compadecem e compram a mercadoria das crianças que vendem na rua. Além de compaixão, é a lógica do mercado, os produtos são mais baratos.” 146 A pesquisa de opinião pública sobre o trabalho infantil, encomendada pela OIT, ANDI e Fórum Nacional de Proteção e Erradicação do Trabalho Infantil, ao IBOPE, em outubro de 2006, evidencia as premissas acima. Entretanto, mostra que há avanços na forma em que a sociedade vê o trabalho infantil. Diante da pergunta “qual a idade mais adequada para que uma pessoa começasse a trabalhar”, 54,7%, respondeu que deveria ser a partir de 16 anos. Entre os mais jovens, com idade entre 16 a 24 anos, 77,3% respondeu de igual maneira. Em contraposição, essa opção foi escolhida por 37,3% dos entrevistados com idade a partir de 50 anos. Sobre a mesma pergunta quanto maior nível de instrução, maior o percentual das pessoas que acham que 16 anos ou mais é a idade adequada para se iniciar o trabalho (75,7%). O mesmo ocorre para as pessoas com rendimento familiar de mais de 10 salários mínimos (65,2%). A pesquisa também comprova outra medida de avaliação de rejeição ao trabalho infantil, quando demonstra que 84,2% dos entrevistados concordam com a afirmação de que “as pessoas que utilizam mão de obra infantil, expondo a criança a riscos deveriam ir para a cadeia”. Dos entrevistados na faixa etária de 16 a 24 anos, 90% concordam com a responsabilidade penal de quem utiliza a mão de obra infantil. A frase “o trabalho infantil gera pobreza, desemprego e é prejudicial para a economia do país” reflete a opinião de 55,5% dos entrevistados. Para a população jovem, com ensino médio ou superior, com renda superior a 10 salários mínimos e que residem em municípios que são capitais do Estado, tal afirmação representa 60%. Em contrapartida, menos da metade da população de 50 anos ou mais, com até a 4ª série do ensino fundamental, com até 1 salário mínimo de renda familiar e, residentes em municípios com até 20 mil habitantes pensavam da mesma forma. Dos resultados por região geográfica, o maior percentual dos que discordam totalmente de que o trabalho infantil gera pobreza está na região Sul (26%). Uma situação levou uma parcela dos entrevistados a se posicionarem favoravelmente ao trabalho infantil. Para quase um terço da população, 31,4%, ainda “é preferível a criança 146 Jornal do Brasil, 2 de julho de 2008. “Trabalho e drogas andam lado a lado” 164 trabalhar a estar na rua”. Conclui-se que essa alternativa constitui uma opção para afastar as crianças e adolescentes dos chamados “perigos da rua”. A tendência a pensar dessa forma é mais presente nos grupos da população menos instruída e com menor renda familiar, justamente aqueles nos quais as crianças estariam mais sujeitas a viver a situação, seja pelo fato de não estudar, ou seja, pelo número de horas de permanência na escola é pequeno. Sobre a responsabilidade por não permitir o trabalho infantil no Brasil, 44,4% atribuem ao Estado, 32,5% à família da criança e 18,6% responderam que é da sociedade em geral. Especificamente sobre o adolescente, o receio do contato com as drogas e a idéia de que o trabalho poderia protegê-lo, fez com que a frase “um adolescente que trabalha tem menos chance de se envolver com drogas” fosse acordada por 89% dos entrevistados, não havendo mudanças significativas nos grupos definidos pela a pesquisa. A pesquisa, e a análise dos seus dados, pretendeu verificar os impactos da mobilização social, das políticas sociais adotadas e da consciência subjetiva da sociedade sobre o nível de assimilação dos compromissos assumidos pelo Governo Brasileiro. De fato, demonstrou que a maioria da sociedade é contra o trabalho infantil. Constatou também que os jovens, os mais instruídos, e os que vivem uma situação econômica melhor, ou seja, aqueles que tiveram acesso a mais informação e à educação de qualidade, têm uma consciência mais apurada sobre o trabalho infantil, tendem a se sensibilizar com a situação, além de uma posição mais crítica frente a realidade social, mas que não o isentam ainda de considerá-lo. Já os mais velhos, com condições econômicas desfavoráveis e os que freqüentaram menos tempo a escola, representantes da grande parte da população brasileira, o trabalho precoce é mais aceito, refletindo, não só menos informação sobre as conseqüências negativas do trabalho, como também uma visão mais tradicional e conservadora, tendendo ainda a considerar legítimo o trabalho infantil. As raízes simbólicas necessárias para a existência do trabalho infantil continuam vivas na cultura brasileira. A mentalidade que durante séculos levou crianças e adolescentes ao trabalho ainda esta presente em muitos setores da população brasileira. O fim da desigualdade social ainda é uma utopia distante de se conquistar. Recomendação 61 b Normativa específica (penal e trabalhista) em relação ao Trabalho Infantil Doméstico O Trabalho Infantil Doméstico – TID é o trabalho de crianças e adolescentes, realizado no domicílio de terceiros, remunerado ou não, de natureza contínua e, de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial, indiferente se for espaço urbano ou rural. Consiste em geral, em fazer faxina na casa, lavar, passar, cozinhar e cuidar dos filhos dos donos da casa. A legislação brasileira sobre o TID envolve normativas nacionais e internacionais. Além das normas que especificamente disciplinam o trabalho doméstico e o trabalho infantil (art. 7°, inciso XXXIII, e 227 da Constituição Federal e arts 60 a 69 e 248 do Estatuto da Criança e do Adolescente), outras lhe são aplicáveis por determinação legal, seja por não excluírem expressamente o trabalho doméstico, ou por consolidado entendimento da doutrina e jurisprudência. 165 A Constituição Federal, em seu art. 7º, XXXIII, proíbe “o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. No inciso XXXIV e no parágrafo único são enumerados os direitos dos empregados domésticos. Nos artigos 8 e 9, é assegurado o direito à sindicalização. O artigo 227 diz que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, direito à profissionalização sempre a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. No parágrafo 3º do mesmo artigo, determina que a proteção especial implica no respeito da idade mínima, garantia de direitos trabalhistas e previdenciários e acesso do adolescente à escola. Os artigos 60 a 69 do ECA compõem o capítulo V, intitulado “Do direito à profissionalização e à proteção no trabalho”. E o artigo 248 penaliza quem “deixar de apresentar à autoridade judiciária de seu domicílio, no prazo de cinco dias, com o fim de regularizar a guarda, adolescente trazido de outra comarca para a prestação de serviço doméstico, mesmo que autorizado pelos pais ou responsáveis”. Ora, a guarda, como regra, possui caráter temporário e apenas em casos excepcionais, poderá ser deferida com vistas a suprir situações especiais ou a eventual falta dos pais, mas sempre com o escopo de apoio e proteção à criança ou adolescente, tendo em vista, acima de tudo, o seu superior interesse. Tal artigo 248 criou uma figura de guarda diferente da ‘comum’, em que há um guardião que é ao mesmo tempo empregador, confrontando com a irregularidade de utilizar crianças e adolescentes no trabalho doméstico. O TID, pelas suas próprias peculiaridades, não permite uma adequada e efetiva fiscalização das autoridades públicas competentes, sendo que frente a prática deste trabalho precoce o adolescente lesado necessitaria enfrentar o seu empregador, e também guardião, não fazendo sentido ao enfrentamento ao TID situação preconizada pelo art. 248. Das convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, apenas duas são aplicáveis ao emprego infantil domésticos, as convenções da OIT 138 (Idade Mínima) e 182 (Piores Formas de Trabalho). A primeira foi aprovada em 1973, e ratificada pelo Brasil em 2002 e a outra foi aprovada em 1999 e ratificada pelo Brasil em 2000. A demora da vigência da Convenção 138 no âmbito nacional decorreu do retardamento do Brasil indicar a idade mínima básica. As duas convenções são compatíveis com as normas nacionais sobre a matéria. Aliás, no âmbito nacional a Convenção 138 da OIT se aplica integralmente e sem limitações ao trabalho doméstico infantil. Ressalta-se que a legislação nacional, pelo artigo art. 7°, inciso XXXIII da Constituição Federal, é mais dura que a Convenção 138 em dois pontos: no ordenamento jurídico nacional não permite trabalhos leves antes dos 16 anos (art.7 da convenção); não há a faculdade de autorizar o trabalho a partir dos 16 anos em locais insalubres e inseguros (art. 3, § 3 da Convenção). Porém, a Convenção 138 prevê que o Estado estabeleça sanções para descumprimento dos seus dispositivos (art. 9º). O Brasil, ao ratificar a convenção, assumiu o compromisso de prever sanções, fato que inexiste na legislação brasileira. Como já assinalado, a Constituição Federal e a Convenção 138 da OIT prevêem a idade mínima 166 de admissão ao emprego e ao trabalho, seguindo os seguintes parâmetros: é proibido qualquer emprego ou trabalho abaixo dos 14 anos; a partir dos 14 aos 18 anos é permitido o trabalho em regime de aprendizagem; 16 anos é a idade mínima básica para admissão para emprego ou trabalho; abaixo dos 18 anos é proibido, sem exceção, qualquer trabalho perigoso, insalubre, penoso, noturno, prejudicial ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. O trabalho doméstico se realiza em âmbito residencial, e para haver a aprendizagem, em uma correlação “teoria e prática”, atrelada a um contrato de trabalho doméstico, seria indispensável uma parte “teórica” em um centro de formação e outra “prática” monitorada no emprego. Conclui-se daí que, antes dos 16, o adolescente não pode ser admitido como empregado doméstico, uma vez que, as normas brasileiras disciplinam a aprendizagem em empresas, e não âmbito residencial. Porém, era o entendido até junho de 2008. O Decreto nº 6.481, de 12 de Junho de 2008, listou as piores formas de trabalho infantil, incluindo em suas 109 atividades o trabalho infantil doméstico147. De acordo com o já mencionado, artigo 7º, XXXIII da Constituição Federal, por ser uma das piores formas de trabalho, fica proibido o TID antes dos 18 anos de idade. O trabalho infantil também pode ser entendido como o trabalho realizado pela menina e menino, no próprio lar. Neste caso, o “tomador de serviços” não é um terceiro como é o caso do empregado nos demais contratos de trabalho, não se constituindo em uma relação de prestação de serviços, onde não há obrigação de remuneração. Porém não deixa de ser considerado trabalho infantil doméstico, bem mais invisibilizado, e tão prejudicial quanto. Quanto a normas penais, é inexistente, em nosso ordenamento, leis que punam os agentes que empregam a mão de obra infanto-juvenil, e que são violadores de vários direitos fundamentais, como, o direito ao convívio familiar, ao lazer, à escola, entre outros. É perceptivo que o marco legal ainda é inadequado para classificar e combater o trabalho infantil doméstico Mecanismos acessíveis de denúncia do Trabalho Infantil Doméstico O Trabalho Infantil Doméstico, TID, é considerado pela OIT como uma das piores formas de trabalho infantil, através de sua Convenção 182, a qual o Brasil é signatário desde setembro de 2000. Porém, cada país tem a autonomia para criar e atualizar a sua própria lista e, depois de oito anos, o Decreto nº 6.481, de 12 de Junho de 2008 aprovou nova lista brasileira das piores formas de trabalho infantil, que estabeleceu, entre 109 atividades que passam a ser proibidas para crianças e adolescentes de até 17 anos, o trabalho infantil doméstico. No entanto, o TID é considerado difícil de ser combatido porque: é um trabalho oculto, que acontece dentro de residências; é invisível, pois normalmente é informal e a relação entre empregado e empregador pode ficar mascarada pelo eventual direito de guarda do patrão e; é inacessível, pois segundo a Constituição Federal em seu artigo 5°, inciso XI, o domicílio é inviolável, não viabilizando a fiscalização como feita aos empregadores em geral, salvo no caso de denúncias. Desta forma, não há um mecanismo de denúncia exclusivo para o Trabalho Infantil Doméstico. Mas, em caso de denúncia, é necessário se valer das portas de entrada para apuração de qualquer crime ou violação contra crianças e adolescentes. 147 Até então as piores formas de trabalho infantil eram regulamentadas pela Portaria nº. 20, de 13 de setembro de 2001, da Secretaria de Inspeção do Trabalho. 167 Os Conselhos de Direitos, de âmbito Nacional, Estadual e Municipal e os Conselhos Tutelares, criados respectivamente pelos artigos 88, 131 e 132 do ECA, são co-responsáveis na ação de combate ao trabalho infantil doméstico, juntamente com a Delegacia de Proteção da Criança e Adolescente, a Delegacia Regional do Trabalho, a Promotoria da Infância, o Ministério Público do Trabalho, o Juizado da Infância e da Adolescência e, os órgãos responsáveis à proteção da criança (como por exemplo, o S.O.S. Criança, e o Disque Denúncia - Ligue 100). Outro espaço que as crianças e a sociedade em geral têm para denunciar esta prática são os Fóruns Estaduais de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. É visível que o marco legal ainda é inadequado para classificar e combater o trabalho infantil doméstico. Não há programas ou estratégias governamentais específicas destinadas ao enfrentamento, erradicação, combate e a proteção do trabalho infantil doméstico. Tampouco existem políticas públicas, apesar de existir algumas ações locais148. As que existem, visando o trabalho infantil em geral não voltam suas ações para o doméstico. Número de denúncias e inspeções Com a dificuldade de fiscalizar o Trabalho Infantil Doméstico, considerando que ele acontece dentro do âmbito familiar que é inviolável constitucionalmente, (salvo se houver consentimento, ou caso de fragrante delito ou desastre, para prestar socorro ou, durante o dia, por determinação judicial), as inspeções realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego não atingem o TID. Se é difícil de ser fiscalizado, conseqüentemente é difícil de ser mapeado e quantificado, e dados confiáveis são recursos de fundamental importância para estudar o trabalho infantil em geral e recomendar políticas governamentais. E o trabalho doméstico, assim como o trabalho informal ou rural, por exemplo, não requerem habilidades especiais, e podem facilmente ignorar restrições legais, o que faz com que meninas e meninos atuem por longos períodos de tempo, muitas vezes em ambientes sujos e perigosos, recebendo baixos salários, e com a dificuldade de o Estado saber a dimensão de quantas pessoas são, as meninas e meninos acabam ficando à margem dos programas sociais. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), e seu levantamento suplementar sobre o Trabalho Infantil e Aspectos Complementares de Educação de 2006, procurou captar informações sobre crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade que realizam afazeres domésticos149, através de duas perguntas. Uma, que investigava se a criança e adolescente cuidava dos afazeres domésticos na casa e a outra, quantas horas era dedicada a aos afazeres. É importante ressaltar que o intuito destas perguntas era o de retratar o número de crianças e adolescentes que exerciam afazeres domésticos em casa, e não na de terceiros. E de todo modo, tais trabalhos, para a manutenção da moradia ou cuidar de um parente, não deve recair sobre a criança. Segundo a pesquisa, do total de pessoas de 5 a 17 anos de idade, estimou-se que 49,4% 148 Pesquisas realizadas em 2000 e 2007, encomendadas pelo CEDECA Pe. Marcos Passerini e pelo Sindicato dos Empregados Domésticos (Sindoméstico), os servidores públicos aparecem entre os maiores exploradores de mãode-obra infantil doméstica no Maranhão. A partir desta constatação, está sendo discutido no estado um projeto de lei que penalizará administrativamente o servidor público estadual que utilizar a mão de obra infantil no trabalho doméstico. 149 Compreendendo, como afazeres domésticos, aquelas tarefas realizadas dentro do próprio domicílio, tais como: arrumar a casa, cozinhar, lavar ou passar roupas, cuidar de crianças, limpar quintal, entre outras. 168 exerciam afazeres domésticos, o que corresponde ao contingente de 22,1 milhões de brasileiros. O exercício de afazeres domésticos também obedece a lógica da tradição que cercam a família brasileira, e quem o desempenha em sua maioria são as meninas (62,6%). Dos meninos, 36,5%, cuidam dos afazeres. Geograficamente, das Regiões em que mais crianças e adolescentes que exercem afazeres domésticos, a Norte (54,1%) e a Sul (54,5%) apresentam os maiores percentuais, e a Sudeste o menor (45,2%). O Centro Oeste e o Nordeste representam respectivamente 49,3% e 50,8%. As análises mostram, que as crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade dedicam, em média, cerca de 10,4 horas semanais aos afazeres domésticos (as pessoas que tem mais de 18 anos ou mais, dedicam 21,2 horas). Mais da metade (52,2%) das crianças e adolescentes que realizam afazeres domésticos dedica até 7 horas semanais a essas atividades e 26,2% gastam de 8 a 14 horas semanais nas tarefas em casa, ou seja, 78,4% despendem até 14 horas semanais em afazeres domésticos (média de até 2h por dia). Separando por gênero, as crianças e adolescentes do sexo feminino exercem as tarefas com mais intensidade. Cerca de 16,2% delas trabalham mais de 21 horas por semana. Ao passo que, para os do sexo masculino, este percentual era de 7,5%. A pesquisa apontou também que, 45,6% das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade estão concentradas em domicílios cuja renda per capita é de até meio salário mínimo150 . Para as crianças e adolescentes que exercem e não exercem afazeres domésticos, essas proporções eram de 47,2% e 44,1%, respectivamente. Na região Nordeste, 70,5% das crianças e adolescentes que fazem afazeres domésticos estão em domicílios com rendimento per capita de até um e salário e meio; já na região Sul esse percentual não atingiu 30,0%. O rendimento domiciliar médio mensal per capita dos domicílios em que vivia alguma criança ou adolescente de 5 a 17 anos de idade que exercia afazeres domésticos foi estimado em R$ 278, inferior ao dos domicílios daqueles que não exerciam afazeres domésticos (R$ 361). O suplemento da PNAD ainda investigou os aspectos socioeconômicos do trabalho infantil, e nele aponta os dados de meninos e meninas que exercem como principal ocupação serviços domésticos. Do total de 5,1 milhões de crianças e adolescentes entre 5 a 17 anos, trabalhadoras infantis, 411.368 são empregados domésticos. Deste total, 25.080 são meninos, o que representa 6,2%. Já as meninas, comprovando que a ocupação remunerada mais comum na infância e adolescência é o serviço doméstico, são 386.288, ou 93,9%. Quanto a raça e etnia, a grande maioria é parda, 59,70%. Em seguida vem a branca, 32,40%, a preta, 7,50%, a indígena, 0,27% e amarela 0,13%. Considerando que os negros são os pardos e pretos, 67,20% das crianças e adolescentes são negras e realizam serviços domésticos. Entre as meninas que são trabalhadoras domésticas não é diferente. 58,93% é parda, 32,65 é branca, 8,05% é preta, 0,23% é indígena e 0,14% é amarela. Assim, as negras representam 150 À época da PNAD 2006, o valor do salário mínimo era de R$350,00. Hoje é de R$ 415,00 (Lei 1.709/2008) 169 66,98% da população feminina de 5 a 17 anos que é trabalhador infantil doméstico. Entre as Regiões brasileiras, o Nordeste é o que concentra o maior número de crianças e adolescentes em TID, 141.210 (34,7%). O Sudeste, em segundo, tem 120.622 (29,6%). A Região Sul vem a seguir, com 56.488 (13,9%), a Norte tem 48.700 (12%) e a Centro Oeste 39.843 (9,8%). Sobre a faixa etária dos trabalhadores domésticos infantis, a grande maioria (59,80%), tem entre 16 e 17 anos, o que à época da pesquisa era permitido, mas que hoje em dia não é 151 . Em seguida vem as meninas e meninos de 14 a 15 anos, representando 27% do total, as de 10 a 13 anos 12,70%, e as de 5 a 9 anos, 0,5%. Os dois recortes, feitos pela pesquisa, demonstrou que as meninas brasileiras em situação de risco social, têm mais chances de trabalhar como empregadas domésticas, onde reproduzem o que já fazem em casa. E este tipo de atividade é a sua porta de entrada no mercado de trabalho, partindo da experiência adquirida em longas jornadas de trabalho nos afazeres domésticos de suas próprias casas, onde sofrem da mesma invisibilidade que oculta o trabalho de suas mães, tias e avós. Comparando os dados de 1992 até 2008, percebe-se uma drástica queda no número de crianças e adolescentes trabalhadores infantis domésticos (882.807 em 1992 e 406.863, em 2008). Mas mesmo assim, o número ainda é enorme, e não há o que comemorar esta evolução numérica. Número de infrações O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é responsável por fiscalizar o trabalho infantil, seja através de suas ordens de serviço mensais, seja através de denúncias. Há também os operativos, que acontecem em nível nacional e regional. Conforme os Resultados da Fiscalização do Trabalho Infantil, divulgado no website do MTE, não há menção ao trabalho infantil doméstico, há apenas o registro do número de infrações sobre o trabalho infantil. Observando a Lei Orçamentária Anual, e o orçamento destinado ao Programa de Erradicação ao Trabalho Infantil, fica claro como o TID fica ausente das ações dos Auditores Fiscais do Trabalho. Há rubrica apenas para a “Fiscalização para Erradicação do Trabalho Infantil”, em ações que competem ao Ministério do Trabalho e Emprego (que faz a fiscalização) e Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (responsável pelo PETI/PBF). Sensibilização, percepção e mobilização da sociedade, especialmente crianças e adolescentes, em relação ao Trabalho Infantil Doméstico O Trabalho Infantil Doméstico, considerado pela OIT, através de sua convenção 182 como uma das piores formas de trabalho infantil, recentemente foi assim considerado pelo Governo Brasileiro. No Brasil, 411.368 mil crianças e adolescentes na faixa etária entre 5 e 17 anos exercem trabalho doméstico, sendo um dos principais setores de ocupação de crianças no país. 151 Decreto nº 6.481, de 12 de Junho de 2008, que listou as piores formas de trabalho infantil, incluindo em suas 109 atividades o trabalho infantil doméstico. 170 As meninas são maioria, com maior incidência de negras (pretas ou pardas). As crianças que trabalham como domésticas em casa de terceiros, segundo a OIT, sofrem com o afastamento de suas famílias e da vida comunitária e muitas vezes não têm oportunidade de estudar ou brincar. Compõem um "exército invisível" de mão-de-obra, sujeita a todo o tipo de exploração. Por ser um trabalho realizado dentro de um lar, as meninas e meninos acabam não tendo a proteção do Estado. Vale registrar que o trabalho infantil doméstico, diferente das demais formas de trabalho infantil, por estar fora do sistema econômico, não visa lucro, ou seja, a criança trabalha sem a perspectiva de remuneração e de angariar mais dinheiro para o seu patrão. Contradiz com a jornada de trabalho, se comparada com outras formas de trabalho infantil. Um dos grandes obstáculos para o combate ao TID é a questão cultural. Para o seu enfrentamento há uma rejeição grande, dado o conteúdo cultural da utilização dessas meninas e meninos no trabalho doméstico, com uma permissividade, pois a sociedade acha que não é tão grave a “ajuda nos afazeres domésticos”. E a desvalorização do trabalho doméstico em geral está diretamente relacionada a quem o realiza (93,9% de meninas segundo PNAD 2006) e ao tipo de trabalho que se faz (doméstico). O tempo despendido com a reprodução da vida, com o cuidado de pessoas que não podem se “autocuidar” (idosos, crianças, doentes), com ações essenciais para a manutenção das atividades produtivas como educação, vestimenta, alimentação, saúde e abrigo, não é contabilizado como válido para a organização social do trabalho. Há estudos que dizem que as meninas pobres são introduzidas no trabalho doméstico familiar por volta dos sete anos, cuidando dos irmãos mais novos e ajudando nos afazeres domésticos. Muitos citam também casos de meninas que são levadas de cidades do interior ou das periferias para casas de família de classe média nos grandes centros urbanos para ajudar nos serviços domésticos. Normalmente elas recebem propostas de trabalho com promessas para morar e estudar, mas normalmente a promessa de estudo não é cumprida, seja porque há uma sobrecarga de trabalho, seja porque o emprego acaba se transformando numa forma moderna de escravidão, com jornadas de trabalho excessivas, proibição de estudar, retribuição do trabalho doméstico com roupas usadas da família, e sem a garantia de seus direitos trabalhistas. Culturalmente, essas famílias consideram estar ajudando estas crianças de origem pobre, ao oferecer “oportunidades” que elas não teriam se continuassem com suas famílias. E dentro de suas próprias casas, a família da criança ou adolescente não entende que, quando uma menina ou menino assume o cuidado de irmãos menores e outras tarefas que devem ser feitas por adultos, ela está trabalhando. Estudo feito no Pará, por um juiz, a partir de classificados de jornais, encontrou anúncios que diziam: “Precisa-se de babá com idade entre 10 e 40 anos, que durma no emprego, não estude e goste de criança.” “Precisa-se de uma moça de 12 a 17 anos, com referência, que durma no emprego, que não esteja estudando, com folga quinzenal e que goste de criança.”. Apesar de os exemplos serem de um jornal de Belém, esse tipo de anúncio é publicado, segundo o estudo, de norte a sul do país. É comum encontrar, ao lado de exigências como ‘ser limpa’, ‘não ter vícios’, ‘dormir no emprego’, ‘não ter filhos’, ‘ser educada’, a condição de que a pretendente ao emprego doméstico não estude’. 171 Tais classificados alertam para três pontos sobre o TID: a atualidade, a invisibilidade e a tolerância da sociedade em relação a esse problema. É atual, porque, mesmo que o estudo tenha sido feito no começo de 2000, os anúncios são recentes. Invisibilidade e tolerância porque o emprego de crianças e adolescentes no trabalho doméstico é encarado de forma tão natural que havia anúncios em jornais de grande circulação frisando a exigência de que essas meninas não devem estudar, prática ilegal que afronta diretamente o princípio e garantia fundamental à educação de toda e qualquer pessoa. Segundo os dados da PNAD e a pesquisa da OIT, a maioria das meninas que trabalham com serviços domésticos são negras (pretas e pardas). E a explicação para este quadro é histórica. A matriz ideológica do trabalho doméstico brasileiro se estrutura no viés do processo de transição entre trabalho escravo para o trabalho livre, cujo marco institucional foi a urbanização sem planejamento, a industrialização, a imigração e a transformação espacial da casa grande e senzala em favelas e sobrados. Refletir sobre a maior categoria sócio-profissional feminina e negra no mundo do trabalho brasileiro pressupõe olharmos como se estruturam as desigualdades de tratamento, de oportunidades e de condições no trabalho doméstico. A relação do trabalho doméstico infantil, que ocorre em âmbito feminino, acaba sendo “de mulher para mulher”, onde configuram três “atrizes”: a menina trabalhadora, a mãe dela e a patroa. Na casa de origem, é a mãe que se envolve mais com a decisão de a filha começar a trabalhar. Depois, quando ela já está empregada, quem lhe passa as tarefas e fiscaliza o trabalho é geralmente a patroa, e não o patrão. O contexto maior em que está inserido esse assunto questiona construções culturais impostas por gêneros, especialmente na sociedade capitalista pautada no sistema patriarcal, que prioriza a posição hierárquica dos homens e subordina as mulheres. O trabalho doméstico remunerado é a maior profissão feminina do país. E foi destinado às mulheres como exercício de atividades “naturais” do sexo feminino. E numa perspectiva sem horizontes, as meninas com menos oportunidades continuam este ciclo. Sendo assim, é um trabalho visto sem necessidade de remuneração, pois muitas vezes nem é visto como profissão, ou ainda, um trabalho ao qual sociedade, governos e famílias não conferem qualquer valor contributivo para as riquezas do país. A Lei Orçamentária Anual (LOA) 2008 não amplia a perspectiva das trabalhadoras domésticas. Os recursos destinados à qualificação social e profissional delas e outras populações em situação de alta vulnerabilidade foram reduzidos em R$ 1,8 milhão durante a tramitação no Legislativo. A proposta enviada pelo Executivo previa R$ 9 milhões para atingir os objetivos de elevação de escolaridade; fortalecimento da organização das trabalhadoras domésticas; intervenção em Políticas Públicas, prevendo a valorização do trabalho doméstico a partir de campanhas, parcerias, ações nas áreas de direitos humanos e enfrentamento da violência contra as mulheres, moradia, saúde, trabalho, previdência social e erradicação do trabalho infantil doméstico. Outra dificuldade é a fiscalização, pois ocorre em ambiente familiar, dificultando o combate ao trabalho infantil doméstico. E a ideologia que recobre a questão, muitas vezes vem com valores aceitos de modo incontroverso, como a caridade, a filantropia e a solidariedade através de sentimentos como “é como da família”, “nós pegamos para criar”, “que nós praticamente adotamos”. E tais desaparecem das estatísticas, pois, do ponto de vista da ideologia, permanecem “protegidos” 172 de todos os perigos que rondam a vida dos mais pobres, embora tenham que se esforçar em troca desta proteção. As famílias têm que ser apoiadas pelo Estado, que deve assegurar os direitos fundamentais mais básicos, como o direito à saúde, ao direito à educação. É inaceitável e perverso que se responsabilize a criança pela pobreza de sua família. E esta percepção tem que partir da sociedade. O Trabalho Infantil Doméstico é uma questão transversal que perpassa pelas questões de idade, gênero e raça. E estes dois últimos fatores são o que determinam, em grande parte, as possibilidades de acesso ao emprego, assim como as condições em que esse se exerce. É fundamental que o TID tenha a mesma visibilidade que o Trabalho Infantil, tanto através de Políticas Públicas e como de Campanhas para seu combate e erradicação. Caso Exemplar Em 2005, quando um casal propôs a Maria Benedita da Silva levar sua filha Marielma de Jesus Sampaio, de 11 anos, para morar com eles em Belém, ela vislumbrou a possibilidade de uma vida melhor para a menina, uma vez que na cidade de Vigia, no litoral paraense, onde trabalha na lavoura, ela tinha dificuldades para sustentar os quatro filhos com o salário de R$ 10 por semana. Além de escola o casal prometeu roupa, calçado, tudo o que ela precisasse. Cerca de quatro meses depois, após ter trabalhado como babá para a família e sem ter freqüentado a escola nem um dia, Marielma morreu após uma sessão de espancamento. O laudo médico realizado após a morte de Marielma indicava que ela tinha três costelas quebradas, rins e pulmões perfurados, além de cortes e queimaduras por todo o corpo. O exame também indicou a presença de sêmen no corpo da menina, indicando uma possível violência sexual. O casal que empregava Marielma foi preso, e se acusam mutuamente pelo assassinato. Imediatamente após o crime, a patroa de Marielma, o assumiu, dizendo que a adolescente havia molestado sua filha de um ano. Os exames no bebê, porém, descartam a tese. Posteriormente, ela mudou sua versão e passou a acusar o marido, pelo crime. Ela disse ter assumido o espancamento, no primeiro momento, por lealdade ao marido e por medo de suas agressões. Ambos foram condenados por homicídio quaduplamente qualificado, pelo crime que ocorreu em dezembro de 2005. Este foi o primeiro caso de condenação por um crime relacionado ao trabalho infantil doméstico. Recomendação 61 c Evasão escolar e repetência associada ao Trabalho Infantil. O direito à educação ocupa uma posição central entre os direitos humanos, pela essencialidade 173 ao desenvolvimento e exercício de outros direitos. Nesta esteira, constitui o meio pelo quais as crianças e adolescentes, econômica e socialmente excluídos, podem sair desta condição. Além disso, como já visto, crianças que se beneficiem com a educação são mais propensas a proporcionarem a educação a seus próprios filhos. Sem dúvida, a educação configura-se como um grande aliado para o fim do trabalho infantil. Tanto é que o Programa de Erradicação ao Trabalho Infantil, do Governo Brasileiro, condiciona a concessão do benefício às crianças afastadas do trabalho e inseridas na escola. O mesmo ocorre com o Programa Bolsa Família, que exige uma freqüência escolar mínima para crianças e adolescentes. Faz parte de ambos os programas, que foram unificados em 2005, ações socioeducativas e de convivência, que se desenvolvem no horário oposto ao da escola, complementando a educação e evitando que os atendidos pelo o programa voltem a trabalhar. Analisando os dados, de acordo com a PNAD 2006 e seu levantamento suplementar sobre o Trabalho Infantil e Aspectos Complementares de Educação de 2006, no Brasil, cerca de 19% das crianças e adolescentes entre 5 a 17 anos que trabalhavam, estavam fora da escola ao passo que 6,4% dos que não trabalhavam, não freqüentam a escola. Há um grande percentual de crianças e adolescentes que continuava freqüentando a escola mesmo quando trabalhavam. Isso acontece com as crianças e adolescentes entre as idades de 5 a 13 anos. Eram 95,5% das pessoas entre esta faixa etária que estavam ocupadas e estudando, enquanto as que não trabalhavam e freqüentavam a escola representavam 95,3%. Já entre os adolescentes de 14 a 17 anos, é possível verificar que o trabalho infantil tem reflexos na taxa de freqüência à escola. A referida pesquisa demonstrou que das pessoas de 14 a 15 anos, 84,2% trabalhavam e freqüentavam a escola e 93,7%, não trabalhavam e estavam estudando. Porém a evasão escolar tem seu maior número entre as meninas e meninos de 16 a 17 anos. Dos que trabalhavam, 70,8% estudavam, e 82,4% que não trabalhavam estavam na escola. Das crianças e adolescentes de 5 a 17 anos, a Região Norte, apresentava as menores taxas de escolarização (79,5% para as que trabalhavam e 90,3% para as que não trabalhavam). Já a Região Sudeste abrigava a maior diferença entre as taxas das crianças e adolescentes, ocupadas ou não e que freqüentavam a escola (78,9% e 95,3%). Em relação à escolaridade, a pesquisa estimou que o percentual de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade ocupados sem instrução ou com menos de um ano de estudo, era 28,0%, número superior ao dos não-ocupados (15,7%). O percentual dos que trabalham e que tem de 8 a 10 anos de estudo é 10,0%, índice inferior ao dos não-ocupados (14,2%). Mesmo a pesquisa não ter identificado o número de adolescentes que trabalhem conforme permissão da legislação é muito grande o número dos que não estão na escola. E um dos principais motivos apontados está relacionado ao trabalho ou afazeres domésticos. De fato, a PNAD concluiu que, 20,4% das crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos que deixaram de freqüentar a escola, o fazem para ajudar nos afazeres domésticos, trabalhar ou procurar trabalho. 174 Quanto ao trabalho infantil doméstico, pesquisa coordenada pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, nas cidades de Belo Horizonte, Belém e Recife, em 2002, revelou que dois terços das meninas domésticas que residem no emprego, e quase um terço das não-residentes não freqüentam a escola. É importante, considerar que o direito à educação não se reduz à freqüência à escola formal. E uma educação que contribua para a inclusão social deve contemplar tanto a democratização do acesso às instituições educacionais quanto à permanência na escola, com aprendizagem efetiva e principalmente de qualidade. Para as crianças trabalhadoras, os elevados índices de evasão escolar reforçam a necessidade de combater o trabalho infantil. Dado a gravidade e a relevância do assunto, o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil (12 de Junho), em 2008, foi marcado, no mundo inteiro, por uma campanha com atividades para a sensibilização através da mensagem “Educação: resposta certa contra o trabalho infantil”, e a partir das seguintes premissas: a educação integral, de qualidade e inclusiva para todos os meninos, meninas e adolescentes, até a idade mínima para admissão ao emprego; políticas educativas que previnam o problema do trabalho infantil pela garantia de educação de qualidade, com recursos e qualificação adequadas e; uma educação para a sensibilização sobre a necessidade de debater o problema do trabalho infantil. Políticas de proteção ao ex-trabalhador infantil e reingresso educacional O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), como descrito anteriormente, se caracteriza por um tripé: uma bolsa mensal para as famílias de crianças e adolescentes que trabalham; a promoção social dessas famílias por meio de ações sócio-educativas e de ampliação e geração de renda; e a participação de meninos e meninas na jornada escolar ampliada, que inclui atividades de lazer, esportivas, culturais e de reforço escolar. Essa terceira “perna” é considerada por especialistas uma estratégia fundamental, por manter a criança, que antes era trabalhadora, ocupada em atividades e longe da exploração, através de esporte, arte e de reforço escolar no turno contrário ao da escola. É por isso que a qualidade das ações socioeducativas e de convivência tem que estar em primeiro plano. Esta é a política pública do Governo Brasileiro para a proteção ao ex-trabalhador infantil. Com a integração entre o PETI e o Programa Bolsa-Família (PBF), o primeiro passou a limitarse às ações sócio-educativas e de convivência e àquelas que, sob a condução do MTE, orientavam-se para a fiscalização do trabalho infantil. Já as ações do PETI relativas à transferência de renda foram transferidas para o PBF. Houve um aumento no orçamento destinado ao pagamento das bolsas às famílias beneficiadas. Mas o valor previsto às ações socioeducativas e de convivência, não acompanhou o incremento no número de atendidos. É o que se observa ao acompanhar a Lei Orçamentária Anual, na ação 2060 Ações socioeducativas e de Convivência para crianças e Adolescentes em situação de Trabalho152 : Ano 2005 2006 2007 2008 Valor (R$) 205.078.92 5 198.384.21 3 215.764.58 8 115.312.220 152 Ver nota de rodapé 10 175 Vale ressaltar que no ano de 2005 a integração entre os programas ainda não tinha sido feita, e quando o foi, a expectativa era de que número de atendidos, que era quase 1 milhão passasse para 3,2 milhões, conforme meta do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS). Claramente os valores não tiveram mudança expressiva. O principal problema, é que nessa situação os meninos e meninas correm grande risco de continuarem no trabalho infantil, mesmo recebendo o benefício, pois podem utilizar o tempo livre para aumentar a renda familiar. Análise produzida pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, FNPETI153, revela que a retirada das crianças e adolescentes do trabalho, principal objetivo do PETI, acabou dando lugar ao combate à pobreza, foco prioritário do Programa Bolsa-Família. Com isso, os gestores municipais preocupam-se em checar apenas se a renda das famílias permite que as mesmas sejam inseridas no PBF, mas deixam de verificar se os filhos estão trabalhando ou não. Se a informação sobre a condição de trabalho infantil é omitida, a família recebe o benefício em dinheiro do PBF, mas o jovem deixa de ser atendido. O documento do FNPETI diz que, se por um lado há descuido das prefeituras no registro, por outro há o interesse de muitos pais de que os filhos continuem trabalhando para ajudar no sustento. Com a fraca fiscalização, e com a pequena política de sensibilização das famílias, é fácil que o trabalho precoce passe despercebido. O estudo aponta ainda os problemas recorrentes com a realização das ações socioeducativas e de convivência. Há uma ausência de definição sobre o que devem ser tais ações, e a falta de uniformização e a ineficácia do controle sobre a prestação, pelos municípios, pode também comprometer a eficácia do Programa. Outro esforço governamental para que as ações socioeducativas sejam implementadas é o Sistema de Controle e Acompanhamento das Ações Ofertadas pelo Serviço Socioeducativo do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (SisPETI). Criado em 2007, como uma ferramenta para que MDS monitore a freqüência das crianças e adolescentes na jornada ampliada escolar. Atualmente, 50% dos municípios que tem o PETI (do total de 3.361) alimentam o sistema com dados de 590.791 crianças (que representam 68,43% dos 875 mil meninos e meninas registrados no Cadastro Único do Governo Federal como em situação de trabalho infantil). E este levantamento, feito em janeiro de 2008, aponta que 321.944 crianças e adolescentes podem não estar sendo atendidos nas atividades desenvolvidas no contraturno escolar, porque esses meninos e meninas são apresentados no sistema como não vinculados a nenhum núcleo executor dessas ações. E este número pode ser ainda maior, considerando que os outros 50% dos municípios brasileiros ainda não estão abastecendo o sistema, impossibilitando seu acompanhamento. Por mais que possa haver falha no preenchimento do SisPETI, o número é muito expressivo, sendo claro que há muitos beneficiários sem o atendimento próprio. E para as meninas e meninos que são atendidos, é necessário que haja uma constante fiscalização para saber se os núcleos responsáveis por estas ações socioeducativas têm reais condições para o atendimento. É consenso que a criança e o adolescente retirados do trabalho infantil precisam ter acesso à 153 Ver nota de rodapé 7 176 educação de qualidade em tempo integral. Eles têm que ter a oportunidade de estar num espaço de proteção e adequado pedagogicamente para que ela melhore seu desempenho escolar e possa buscar profissionalização e uma inserção no mercado de trabalho em condições dignas, rompendo o ciclo da pobreza. Qualidade da informação sobre Trabalho Infantil Da década de 80, a partir de denúncias internacionais, o Brasil foi sinalizado como um dos países com os maiores índices de desigualdade econômica e maior injustiça social. No âmbito nacional, uma ampla mobilização social se formou para exigir o estabelecimento de princípios constitucionais que, entre eles, priorizassem a criança e o adolescente. Como resultado tem-se a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e a aprovação do ECA, em 1990 e no mesmo ano a ratificação da a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. A apropriação de um discurso garantista, e a pressão internacional sobre o tema trabalho infantil, deram início a um processo de disseminação e apropriação do tema. Nesse âmbito, em 1992 a OIT implementou, em escala mundial, o Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil - IPEC, abrigado pelo Brasil nesta ano mesmo. O Programa constituiu-se em um instrumento de cooperação em que se pode articular, mobilizar e legitimar as iniciativas nacionais de combate ao trabalho infantil. A partir daí, entidades governamentais, e não governamentais adotaram o tema “trabalho infantil” como prioridade de investimento e de ação. A imprensa, tanto escrita como falada, abriu espaços importantes para a difusão e discussão da problemática. Pesquisadores se dedicaram ao tema, criando uma literatura específica, com abordagens profundas, que permitiram a consolidação de uma reflexão teórica e histórica sobre o trabalho infantil. Os sindicatos se apropriaram da idéia e incluíram cláusulas nas convenções e acordos com restrições ao trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente. Espaços como seminários, congressos, debates e fóruns foram criados. Campanhas de divulgação e de denúncia foram lançadas. Foi aberto um lugar importante para relações interinstitucionais em volta da erradicação do trabalho infantil. Um exemplo é a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI), que permitiu, entre outros ganhos, a concepção de novos termos legais, ratificações de tratados e convenções internacionais, elaboração de um Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente e a criação e implementação de políticas públicas. Outro espaço interinstitucional criado foi o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), em 1994. Seu estabelecimento foi um avanço no quadro político institucional por ser uma instância permanente de articulação, informação e mobilização dos agentes institucionais envolvidos com políticas e programas de enfrentamento ao trabalho infantil e de proteção ao adolescente trabalhador. O Fórum possui representações em cada uma das unidades da federação, os Fóruns Estaduais de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. O Portal do FNPETI, lançado em 2006, tem como objetivo facilitar e centralizar o acesso informações de qualidade sobre o trabalho infantil, além de servir como espaço para a troca de discussões a respeito do trabalho precoce. De fato, o portal é referência nacional sobre tema, pois além de informar, ele atua como um espaço recebimento de denúncias apresentação de propostas. 177 a e o e Outra iniciativa, não governamental, que tem um papel de destaque na informação de qualidade, é o Programa de Comunicação para Erradicação das Piores Formas de Trabalho Infantil, executado desde 2004 pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), em parceria com a OIT, no âmbito do IPEC. Com o objetivo de dar visibilidade às Piores Formas de Trabalho Infantil154, a partir do reconhecimento que a imprensa é ator fundamental no agendamento e na qualidade das discussões na pauta pública, foi dedicado atenção à mobilização e qualificação de jornalistas, além de capacitar os atores envolvidos na prevenção e na eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil. Sabendo que o conceito de trabalho infantil não é novidade para a imprensa brasileira, a idéia foi de trabalhar os conceitos de “piores formas de trabalho infantil” e “trabalho decente”. Como conseqüência da ação, foram feitas duas publicações: “Piores Formas de Trabalho Infantil – Um Guia para Jornalista” e “Boas Práticas em Comunicação. Um guia para fontes de informação”. O esforço para uma informação de qualidade sobre o tema também tem iniciativas do Governo Brasileiro. O PETI, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, em seu PPA 2004-2007, tem como uma de suas ações a “publicidade de utilidade pública”, a qual faz o papel de disseminador da informação. Conforme o orçamento previsto para a referida ação na Lei Orçamentária Anual, a partir do ano de 2006, houve uma queda significativa nos valores destinados para tal ação. Vale lembrar que em 2006 foi feita a integração dos Programas PETI e PBF: PROGRAMA 0068 - ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL AÇÂO 4641 – PUBLICIDADE DE UTILIDADE PÚBLICA ANO Dotação Inicial Valor Autorizado (LOA + Créditos) Empenhado155 2004 920.000 920.000 819.599 2005 853.737 853.737 767.493 2006 80.000 80.000 34.568 2007 142.000 142.000 142.000 200 8156 142.000 142.000 5.000 Dos órgãos responsáveis pela execução do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome e, Presidência da República, apenas no primeiro é que se encontra no website uma seção especial sobre o tema trabalho infantil. Nos demais, as informações encontradas estão na parte “notícias”, junto com outros temas. É notável a evolução na mudança no comportamento da sociedade em relação ao trabalho infantil no país. A pesquisa encomendada pela OIT, ANDI e FNPETI ao IBOPE, procurou também mostrar os avanços no sentido de promoção de uma conscientização sobre o trabalho infantil no Brasil, através da informação. A pesquisa perguntou se, nos últimos três anos, as 154 Ver Convenção 182 da OIT 155 Ver nota de rodapé 10 156 Dados referentes até junho de 2008 178 pessoas tinham visto ou ouvido notícias sobre o trabalho infantil, e através de quais meios de comunicação. Os resultados apontaram que 78,6% dos entrevistados já viu ou ouviu alguma notícia sobre o tema. Destes, 73.9% afirmaram ter visto e ouvido na televisão, 21,8% em jornais impressos, 14,8% nas rádios, 10,5% em revistas e 5,7% na Internet. A televisão se consagrou como o maior difusor de informações em todos os grupos, (separados por perfis de perspectiva demográfica, sócio-econômica e, por distribuição espacial). Importante frisar que o acesso a Internet para este tipo de informação claramente ficou restrito às capitais das regiões mais desenvolvidas do país, para aquelas pessoas com uma renda familiar de mais de 10 salários mínimos. Quanto a média das pessoas que afirmaram não ter visto ou ouvido sobre trabalho infantil alcançou 18,5%, atingindo seu ápice com 30% entre aquelas cujo perfil escolar não superou a 4ª série do fundamental, com 50 ou mais anos de idade, com até 1 salário mínimo, das classes D e E, do interior da região Nordeste, em municípios de até 20 mil eleitores. A pesquisa permitiu verificar o comportamento da opinião pública e afirmar o papel da sociedade civil, através de suas campanhas e mobilizações, e o da imprensa na qualificação do debate. O governo brasileiro também participa deste processo, assumido a importância do tema e destinando recurso para o mesmo, porém não cumpre o papel principal de interlocutor da informação qualificada. 179 180 Direito à Saúde Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar da ANCED Subsídios para a construção do relatório alternativo da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Crianças das Nações Unidas 181 Direito à Saúde 1. Marco legal e institucional do direito à saúde de crianças e adolescentes O direito à saúde está previsto em diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988: seja através do próprio direito à vida, no caput do artigo 5º, seja como direito social no artigo 6º, seja através da garantia do salário mínimo no inciso IV do artigo 7º ou da redução dos riscos do trabalho no inciso XXII deste mesmo artigo. No que diz respeito à competência para atuação no cuidado da saúde e assistência pública, é competência concorrente dos entes públicos nos termos do inciso II do artigo 23 e do inciso VII do artigo 30. A Constituição Federal (CF), no seu artigo 196, refere-se à saúde como “direito de todos e dever do Estado” a ser garantido através de políticas sociais e econômicas. Nesse caso, conforme afirma Pereira (2008, p. 631), “a possibilidade de alcance do usuário à rede de serviços básicos deve orientar a distribuição de recursos e a ampliação dos serviços existentes”. Compreendido como direito humano de todas as pessoas, o direito à saúde no Brasil é garantido através do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como princípios a universalidade, a eqüidade e a integralidade. Como o SUS é um sistema amplo e complexo, apesar de todos os esforços que vêm sendo envidados para a sua implementação, ainda apresenta problemas de acesso, resistência do setor privado e de profissionais da saúde, tencionando permanentemente o sistema público, o que dificulta o acesso por parte de amplos contingentes, incluindo-se aí os grupos em situação de maior vulnerabilidade social (MISEREOR, 2007), como é o caso de crianças e adolescentes. Assim, no que diz respeito à saúde infanto-juvenil, é necessário assimilar o princípio do interesse superior da criança, o qual aponta diretrizes para o atendimento nas esferas pública e privada. O direito à saúde da criança e do adolescente está previsto na CF, no seu artigo 227, que afirma, ainda, o interesse superior deste grupo social, tal como consta na Convenção dos Direitos da Criança (CDC) da Organização das Nações Unidas (ONU). Na CF consta a obrigação do Estado quanto aos programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, com prevenção e atendimento especializado para aqueles que possuem deficiência física, sensorial ou mental. Cuida a Constituição da promoção da integração social do adolescente com deficiência, através de treinamento para o trabalho e a convivência, com a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, bem como a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. Ademais, ao tratar, no referido artigo 227, dos aspectos que envolvem o direito à proteção especial, abrange, no inciso VII, programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins. A Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), regulamentando o artigo 227 da CF, trata da proteção do direito à saúde nos artigos 7º a 14, reafirmando que tal direito deve ser efetivado mediante políticas sociais públicas que permitam o desenvolvimento sadio e harmonioso da criança e do adolescente em condições dignas de existência. Conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especificamente no seu artigo 11, deve ser garantido o “acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”. A partir desse marco legal, situa-se o direito das crianças e adolescentes a um atendimento integral, integrado e intersetorial em saúde. Nesse caso, registre-se que a forma descentralizada e o atendimento municipalizado orientarão a política de atendimento às crianças e aos adolescentes, para facilitar a integração entre os diversos setores responsáveis pelo planejamento e pela articulação das políticas comuns de atenção a esse grupo social a partir da sua realidade local (BRASIL, 2005). Visando a garantia deste direito a crianças e adolescentes, deve-se atentar para a destinação de recursos e sua efetiva aplicação pelo Estado. E como afirma Pereira (2008, p. 635), a 182 “proteção integral é um dever social e, como norma constitucional, não é sugestão ou conselho, é determinação”. Outro instrumento normativo de proteção do direito à saúde no âmbito nacional é a Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), que prescreve diretrizes e princípios que deverão nortear as ações e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e as políticas de atenção à saúde das crianças e dos adolescentes. De acordo com Pereira (2008, p. 642-43), o “SUS está em plena sintonia com os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente para proteção da população infanto-juvenil na prevenção ou no atendimento, antes e/ou após o nascimento”. A Lei nº 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), por sua vez, também traz determinações que visam a proteção de crianças e adolescentes, através da efetivação dos direitos sociais, como o direito à saúde. Nesse sentido, a lei institui o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o qual se propõe a melhorar as condições de vida de pessoas com deficiência através da concessão de um salário mínimo mensal, devendo, assim, ser concedido a crianças e adolescentes com deficiência. Vale ressaltar que no ECA contém previsão específica para assegurar o atendimento especializado da criança e do adolescente com deficiência, de acordo com o § 1º do artigo 11. Percebe-se, assim, a existência de um ordenamento jurídico interno adequado à normativa internacional e voltado à proteção, à promoção e à garantia do direito à saúde das crianças e dos adolescentes. E, como afirma Lima (2002, p. 89), “a afirmação do direito à saúde e do conjunto de direitos da infância e da adolescência previstos na Carta de 1988 constitui não uma pauta de negociação política em torno da qual se façam ajustes de natureza alheia ao interesse público: constitui uma pauta de direito para ser garantida e implementada”. Ademais, no plano internacional configurou-se, a partir de 2007, a conquista normativa mediante a adoção da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Este novo documento, que foi ratificado pelo Brasil no ano de 2008, juntamente com a CDC, subsidiará o fundamento para a defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes com deficiência. Além da CDC, é importante elencar outros instrumentos internacionais para a defesa do direito da criança e do adolescente à saúde, dos quais o Brasil é signatário, quais sejam: Declaração Universal dos Direitos Humanos; Declaração dos Direitos da Criança de 1959; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o seu Protocolo Facultativo; Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) de 1969; Declaração sobre o Progresso e o Desenvolvimento Social de 1969; e Declaração Mundial sobre a sobrevivência, a proteção e o desenvolvimento da Criança (Nações Unidas) de 1990. Por fim, cabe acrescentar que o Governo Brasileiro criou políticas, programas e fóruns específicos para assegurar o direito à saúde de crianças e adolescentes, quais sejam: a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens, o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil e o Programa Nacional de Triagem Neonatal. Ademais, ressalte-se a existência, no âmbito do Ministério da Saúde, das Áreas Técnicas da Saúde da Criança e da Saúde do Adolescente e do Jovem, setores responsáveis pela elaboração e monitoramento das políticas de saúde para o público infanto-juvenil. 2. Implementação do direito à saúde de crianças e adolescentes Considerando o amplo sistema normativo constituído do conjunto de documentos internacionais relativos aos direitos humanos e aos direitos da infância e da adolescência, juntamente com os artigos específicos da CF, os do ECA e os princípios do paradigma da proteção integral, identifica-se um grande elenco de possibilidades legais para articular a exigibilidade dos direitos das crianças e adolescentes. De acordo com Lima (2002, p. 170), “o desafio, ao longo do processo da agenda democrática, na qual a discussão do conteúdo normativo vem sendo possível através de diversos meios de participação e representação, tem 183 sido o de implementar as leis e não de elaborá-las”. A concepção do direito à saúde vem sendo ampliada ao longo dos séculos e ganhou visibilidade político-jurídica também quando, inserida nas cartas constitucionais mediante um diferenciado processo de conjuntura nacional, passou a ser um direito tanto exigível judicial quanto extrajudicialmente em face das realidades específicas (LIMA, 2002). A garantia do direito à saúde como afirmação das obrigações do Estado deve ser implementada mediante a realização de políticas públicas que contem com a participação da sociedade na sua formulação e execução, atentando-se para as especificidades dos grupos considerados vulneráveis, como o infanto-juvenil. A implementação da garantia do direito à saúde da infância e da adolescência implica não só o conhecimento das características das suas fases de crescimento e de desenvolvimento, mas também a atuação de operadores sociais e de operadores do direito de forma integrada. Segundo Lima (2002, p. 105), o direito à saúde do segmento populacional infanto-juvenil configura-se como “o direito ao desenvolvimento integral do seu ser, sem restrição de qualquer espécie à sua potencialidade, com efetivo acesso a todos os meios, serviços ou programas que assegurem e promovam a sua saúde, com respeito e integração do seu acervo étnico, familiar, cívico, cultural no projeto que poderá cultivar para a sua vida pessoal e comunitária, ressignificando a sua existência pelo compromisso com as gerações futuras”. Pode-se afirmar que houve melhoria em diversos indicadores de saúde do Brasil, porém, ainda persistem situações que revelam a necessidade de se garantir o direito à saúde de crianças e adolescentes, conforme prevê a CDC e o PIDESC. No presente relatório, serão analisadas as situações das seguintes áreas: saúde mental de crianças e adolescentes, crianças com deficiência e saúde sexual e reprodutiva de adolescentes. 2.1. Saúde Mental 2.1.1. Marco legal e institucional A Política Nacional de Saúde Mental foi objeto de recentes reformulações no Brasil: uma nova perspectiva no ordenamento jurídico do país em relação à pessoa com transtorno mental, ensejou a Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Esta legislação especial dispõe “sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”, responsabilizando o Estado e a sociedade pela superação do modelo assistencial até então vigente baseado, exclusivamente, na internação tradicional. Sob o advento desta nova política se identifica o paradigma da co-responsabilidade da sociedade e do Estado, com evidente perspectiva da descentralização administrativa que já fora inaugurada em normas anteriores relativas ao segmento infanto-juvenil e à saúde, através das Leis Orgânicas de Saúde e da própria Lei Orgânica da Assistência Social. O novo modelo prevê a estruturação de uma rede de serviços de atenção diária em saúde mental de base territorial, com destaque para os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cujo projeto integra os usuários de tais serviços às suas respectivas famílias e comunidade. O CAPS constitui a principal estratégia do processo de reforma da assistência pública em saúde mental promovido pelo Ministério da Saúde em todo o país, sendo que tal reforma foi desencadeada com os primeiros Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial, a partir da década de 1980, e com a promulgação da lei retrocitada. A definição e as diretrizes para o funcionamento dos CAPS estão previstas na Portaria nº 336/ GM, de 19 de fevereiro de 2002, os quais estão categorizados por porte e clientela, recebendo 184 as denominações de CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPSad. Ademais, registre-se a Portaria nº 189, de 20 de março de 2002, que institui nova sistemática de financiamento para os procedimentos que podem ser cobrados pelos CAPS cadastrados no Sistema Único de Saúde (SUS). Além dos CAPS, compõem a rede de atenção em saúde mental outros serviços, como os hospitais especializados, os leitos psiquiátricos em hospitais gerais, os ambulatórios e clínicas ampliadas, as residências terapêuticas e o Programa de Volta para Casa. Os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) foram criados para atender crianças e adolescentes na área da saúde mental e somente começaram a ser implantados a partir de 2002 (BRASIL, 2004d). O CAPSi é um serviço de atenção diária destinado ao atendimento de crianças e adolescentes gravemente comprometidos psiquicamente, constituindo-se na referência para uma população de cerca de 200 mil habitantes, ou outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local, atendendo a critérios epidemiológicos (BRASIL, 2004c). A atenção e cuidado neste serviço são destinados a crianças e adolescentes com transtornos mentais severos, tais como psicose infantil, autismo, deficiência mental com co-morbidade psiquiátrica, uso prejudicial de álcool e outras drogas e neuroses graves (BRASIL, 2003a). Como afirmam Hoffman, Santos e Mota (2008, p. 634), “Os CAPSi foram planejados para atender prioritariamente às demandas de transtornos psiquiátricos severos e persistentes, empregando alternativas de tratamento apoiadas em uma proposta terapêutica individualizada, articulada com diferentes serviços extra-hospitalares como residências terapêuticas, ambulatórios, leitos em hospitais gerais, oficinas de geração de renda, entre outros”. Com a finalidade de expandir a implantação dos CAPSi no Brasil, foi publicada a Portaria nº 1.947/GM, de 10 de outubro de 2003, que aprovou o Plano Estratégico para a Expansão dos CAPSi, destinando recursos para a implantação destes serviços em municípios estratégicos. Esta portaria elenca 63 municípios prioritários: os que são populosos e não possuem CAPSi, e aqueles que, embora possuindo CAPSi, por caracterizarem-se como grandes centros urbanos, apresentam uma baixa cobertura na atenção à saúde mental na área da infância e adolescência. Estes serviços possuem papel de ordenador da rede, devendo identificar o hospital geral ou pediátrico do território onde se insere como local de acolhimento, caso haja a necessidade de internação (BRASIL, 2004c). Além dos CAPSi, as crianças e os adolescentes devem ser atendidos também nos outros dispositivos da rede integral de saúde, como a atenção básica, os ambulatórios ampliados, os centros de convivência e os leitos de suporte em hospital geral, além daqueles da rede social, de tal modo que operem de forma articulada entre si e com todos os demais recursos intersetoriais e territoriais disponíveis, responsabilizando-se, assim, pelo atendimento da população infanto-juvenil. Cabe ressaltar que em obediência ao preconizado no ECA, os leitos de suporte aos usuários, assim como as estruturas assistenciais, deverão dispor de leitos para familiares/responsáveis. Na área da Atenção Básica, o Ministério da Saúde lançou em 2003 o documento “Saúde Mental e Atenção Básica: o vínculo e o diálogo necessários”, o qual prevê que a assistência na rede básica deva ser realizada através do apoio matricial às equipes da atenção básica, explicitando que: “a responsabilização compartilhada dos casos exclui a lógica do encaminhamento, pois visa aumentar a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe local.” (BRASIL, 2003b, p. 4). O referido documento aponta, ainda, a importância em dar prioridade para a formação, no desenvolvimento dessa política, e para a inserção de indicadores da saúde mental no Sistema de Informações da Atenção Básica (SIAB) como forma de avaliar e planejar ações nessa área. No seu texto consta: “Está em discussão a introdução, no SIAB, de indicadores de monitoramento baseados no conceito de território, problema e responsabilidade sanitária, para evitar a exclusão do cuidado de casos graves na Atenção Básica e seu encaminhamento para a institucionalização.” (BRASIL, 2003b, p. 6). 185 No âmbito da Constituição Federal e do SUS, é garantido aos usuários de serviços de saúde mental – e, conseqüentemente, aos que sofrem por causa de transtornos decorrentes do consumo de álcool e outras drogas – a universalidade de acesso e direito à assistência. A descentralização do modelo de atendimento também é uma das diretrizes, quando se determina a estruturação de serviços mais próximos do convívio social de seus usuários, devendo-se configurar redes de cuidado mais atentas às desigualdades existentes, ajustando as ações às necessidades da população de forma equânime e democrática. Ademais, a CF, ao tratar dos direitos da criança e do adolescente no seu artigo 227, e, especialmente dos aspectos que envolvem o direito à proteção especial, abrange, no inciso VII, “programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins”. Ainda acerca do marco legal e institucional na área do uso de substâncias psicoativas, ressaltese a publicação pelo Ministério da Saúde da “Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas” no ano de 2003 (BRASIL, 2003c). A partir daí, outros instrumentos normativos foram criados pelo Governo Brasileiro, como as Portarias do Ministério da Saúde: Portaria nº 2.197/GM, de 14 de outubro de 2004, que redefine e amplia a atenção integral para usuários de álcool e outras drogas, no âmbito do SUS; Portaria nº 1.059/GM, de 04 de julho de 2005, que destina incentivo financeiro para o fomento de ações de redução de danos em CAPSad; Portaria nº 384, de 05 de julho de 2005, que autoriza os CAPS I a realizarem procedimentos de atenção a usuários de álcool e outras drogas; e a Portaria GM/MS nº 1.612, de 09 de setembro de 2005, que aprova as normas de funcionamento e credenciamento/habilitação dos serviços hospitalares de referência para a atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas. Tem-se também a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; além de estabelecer normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e definir crimes. Nesta lei, consta que as atividades de prevenção do uso indevido de drogas dirigidas à criança e ao adolescente deverão estar em consonância com as diretrizes emanadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Além disso, a lei atenua a punição às pessoas que usam drogas, pois prevê outras medidas, como a prestação de serviços à comunidade e medidas educativas, e não mais a prisão como ocorria com a legislação anterior. Porém, com esta nova lei, ainda persiste a criminalização das pessoas que usam drogas ilícitas, haja vista a previsão de penas para esta conduta. Sendo assim, constitui-se dever dos gestores públicos assegurar a construção das ações de atendimento e cuidado a crianças e adolescentes, segundo os princípios da atual política pública de saúde mental; do plano nacional de promoção, proteção e defesa do direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária e do ECA. 2.1.2. Situação De acordo com o Relatório Mundial da Saúde publicado em 2001 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), quatro em dez países não possuem políticas específicas de saúde mental e cerca de um terço não tem políticas sobre álcool e outras drogas, sendo que a situação se agrava quando se verifica a falta de uma política especificamente relacionada com a criança e o adolescente (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001). Independentemente de faixa etária, em torno de 3% da população geral necessita de cuidados contínuos em saúde mental por apresentarem transtornos mais severos e persistentes como psicoses, neuroses graves, transtornos de humor e autismo, e, de acordo com esse percentual, estima-se que mais de 2 milhões dentre os 74 milhões de brasileiros com menos de 21 anos poderiam se beneficiar com a implementação de uma rede pública de atenção em saúde mental (HOFFMAN, SANTOS, MOTA, 2008). Para Fleitlich (2002a, p. 1), os transtornos mentais são importantes porque interferem no desenvolvimento psicossocial e educacional, “podendo gerar problemas psiquiátricos e problemas no relacionamento interpessoal na vida adulta”. E, 186 conforme afirmam Bordin e Paula (2007), são freqüentes os problemas de saúde mental entre as crianças e adolescentes brasileiros. O Censo Demográfico brasileiro, realizado no ano 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), identificou 61 milhões de crianças e adolescentes (idade entre 0 e 17 anos), sendo que a população entre 0 e 9 anos somou 33 milhões. Considerando as estimativas de prevalência de transtornos mentais de até 20% nestes grupos (BENETTI, 2007), ressalta-se a importância da necessidade de atenção à saúde mental desta faixa etária. Santos, Carvalho e Pinho (2005) afirmam que acerca dos problemas mentais infanto-juvenis, poucos são os estudos epidemiológicos brasileiros de base comunitária, porém, os que já foram realizados revelaram prevalência de desordens psiquiátricas de 10% a 13%, na faixa etária entre 5 e 14 anos. Os autores acrescentam, ainda, que em investigações realizadas na região sudeste do país, foram encontradas taxas de prevalência em torno de 12% para crianças de área urbana e rural, na faixa etária entre 7 e 14 anos. De acordo com Fleitlich (2002b), no Brasil, um estudo recente encontrou taxas de prevalência de aproximadamente 10% em áreas urbanas de classe média e em áreas rurais carentes (agricultura de subsistência), semelhante à população de classe média dos países desenvolvidos. Porém, registrou também que “áreas urbanas e carentes (favelas) apresentaram taxas mais elevadas, em torno de 20%, sugerindo a presença de outros fatores socioculturais, além do econômico, que diferenciam as duas populações de baixa renda estudadas, como a área rural de subsistência e a favela” (FLEITLICH, 2002a, p. 1). Para a OMS há situações prioritárias na adolescência, como depressão, suicídio e psicoses. Benetti (2007) afirma que além destas, também devem ser considerados os transtornos de ansiedade, transtornos de conduta, uso abusivo de substâncias, transtornos alimentares e as condições médicas associadas, como diabetes e epilepsias. Ainda segundo Benetti (2007), a abordagem deste tema na adolescência é importante em função do reconhecimento das consequências negativas dos problemas de saúde mental e a constatação da menor atenção dedicada a esta faixa etária em relação às demais. Sendo assim, faz-se necessária a formulação de ações na área da saúde mental da criança e do adolescente a partir da identificação das situações e da elaboração de diretrizes políticas, com a implantação e a implementação de serviços de saúde mental comunitários para crianças e adolescentes no país. Historicamente, a atenção pública em saúde mental voltada ao grupo infantojuvenil tem sido marcada por um vazio em sua cobertura, havendo o atendimento ao longo dos anos por instituições de natureza privada ou filantrópica, em sua maioria, tornando-se as únicas opções de cuidado disponíveis às crianças e jovens (HOFFMAN, SANTOS, MOTA, 2008). A internação em abrigos e educandários acabou configurando, a partir da década de 1920, segundo Hoffman, Santos e Mota (2008), a resposta à tendência à psiquiatrização e medicalização de problemas de ordem comportamental ou educacional, justificada pela suposição de que muitas famílias não apresentavam condições de cuidar e de se responsabilizar pelo bem estar dos seus filhos. Além disso, a longa peregrinação pelos serviços, ocasionada, muitas vezes, pela incapacidade de acolhimento dos casos envolvendo crianças e adolescentes com transtorno mentais, quer pela existência de longas filas de espera ou pela ausência de profissionais habilitados, gerava uma outra face da institucionalização: o isolamento domiciliar (PEREIRA, 2003). Com a nova Política Nacional de Saúde Mental, construída a partir da Reforma Psiquiátrica, o atendimento a crianças e adolescentes com transtornos mentais, transtornos globais do desenvolvimento ou deficiência mental deve ser realizado nos dispositivos da rede integral de saúde, tendo o CAPSi papel estratégico, tendo em vista que é voltado especificamente ao público infanto-juvenil, como já exposto acima. 187 O Ministério da Saúde disponibiliza, através de algumas publicações e de sistemas de informações, os dados de implantação da rede de saúde mental no Brasil. No que se refere à coleta dos dados realizada nos meses de abril a julho deste ano, é válido ressaltar que esta pesquisa utilizou dados dos seguintes sistemas de informação do Ministério da Saúde: DATASUS, Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) e Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA). Vale frisar que com relação a este último, o objetivo do registro de informações é pautado por necessidades administrativas, para o pagamento de procedimentos referentes aos atendimentos realizados. Portanto, verifica-se uma precariedade das informações sobre a demanda infanto-juvenil em serviços de saúde mental, o que dificulta o conhecimento do perfil epidemiológico dos transtornos mentais em crianças e adolescentes atendidos na rede pública de atenção, gerando repercussão sobre a organização das ações de cuidado no âmbito do SUS (SANTOS, CARVALHO, PINHO, 2005). Mesmo com as dificuldades de obtenção dos dados (incompletos ou não desagregados por faixa etária), optou-se pela utilização deste banco de dados, por ser a única fonte com dados nacionais disponível. Antes de elencar tais dados, é importante registrar que, segundo estimativa do IBGE, o Brasil tinha em 2007 (último ano com dados disponíveis) 189.335.187 habitantes. A população na faiza etária de 0 a 19 anos somava o total de 76.201.963, na qual se inclui o grupo de crianças e adolescentes, com base nas informações do DATASUS, a partir de estimativas realizadas pelo IBGE com base no último censo realizado no ano 2000, pode ser visualizada na tabela abaixo: População residente no Brasil por ano e faixa etária – Período 2004 a 2007 1a4 5a9 10 a 14 15 a 19 ANO Menor 1 ano anos anos anos anos TOTAL 13.918.81 17.471.26 2004 3.399.251 5 0 18.298.595 18.927.614 72.015.535 14.331.21 17.977.87 2005 3.500.554 0 1 18.817.108 19.466.191 74.092.934 14.541.57 18.236.10 2006 3.552.258 0 3 19.081.361 19.740.804 75.152.096 14.750.04 18.492.11 2007 3.603.429 7 3 19.343.411 20.012.963 76.201.963 Fonte: IBGE - Censos Demográficos e Contagem Populacional; para os anos intercensitários, estimativas preliminares dos totais populacionais, estratificadas por idade e sexo pelo MS/SE/Datasus. Com base nos dados coletados nos referidos sistemas, mais especificamente relativos aos CAPS implementados no Brasil, nos anos de 2004 a 2008157, apresentam-se os seguintes números: Números de Centros de Atenção Psicossocial no Brasil – Período 2004 a 2007 CAPS 2004 2005 2006 2007 (tipos) CAPS I 218 283 430 508 CAPS II 236 271 320 341 CAPS III 29 26 37 38 CAPSi 44 56 75 83 CAPSad 78 102 138 153 TOTAL 605 738 1.011 1.123 Fonte: Saúde Mental em Dados. Ministério da Saúde. Ano II, nº 4, agosto de 2007. 2008, Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde do Brasil/ Ministério (CNES/MS), até 25/06/2008. 2008 542 353 72 86 166 1.219 A partir de da Saúde Números de Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) no Brasil por região em 2008 157 Os dados referentes ao ano de 2008 foram atualizados até 25/06/2008. 188 Região 2008 Região Norte 1 Região Nordeste 21 Região Sudeste 37 Região Sul 22 Região Centro-Oeste 5 Brasil 86 Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde do Brasil/ Ministério da Saúde (CNES/MS), até 25/06/2008. Os dados referentes ao número de CAPSi implantados demonstram que de 2004 a 2008 houve um aumento da ordem de quase 100% deste serviço no Brasil. Este aumento foi impulsionado pela Portaria nº 1947/GM, de 10 de outubro de 2003, que previu a implantação de 70 CAPSi em municípios estratégicos, até dezembro de 2004, porém, percebe-se que até o final daquele ano, 44 CAPSi haviam sido implantados. Deve-se registrar também que no Brasil existem 108 municípios com mais de 200 mil habitantes, e os CAPSi implantados totalizam 86, o que demonstra que a cobertura é da ordem de 79,6%. Ocorre que, de acordo com as normas que regem esses serviços, tal parâmetro populacional não é absoluto, podendo ser adotados critérios epidemiológicos. Assim, observa-se uma maior concentração destes serviços na região sudeste do país, com apenas um CAPSi implantado na região norte (no Estado do Pará). Ademais, o que se percebe é que os instrumentos que regem a Política Nacional de Saúde Mental (BRASIL, 2004c) não determinam o atendimento de crianças e adolescentes pelos outros tipos de CAPS (I, II, III e ad), o que fragiliza a atenção em saúde mental a esse público, deixando-o, muitas vezes, desassistido. Vale frisar que esta fragilidade é acentuada no caso dos CAPS III, que disponibiliza acolhimento noturno, mas, além de ser voltado para o atendimento de adultos (BRASIL, 2004c), somente pode ser implantado nos municípios com mais de 200 mil habitantes. Por isso, observa-se como o número deste serviço ainda é insuficiente para atender os casos que demandam um cuidado diferenciado de acordo com a sua complexidade, e sobretudo, no caso de crianças e adolescentes. Quanto ao atendimento prestado nos CAPSi, a sua modalidade é definida em três categorias: intensivo, quando a frequência ao serviço ocorre cinco dias por semana; semi-intensivo, quando ocorre até quinze dias no mês; e não-intensivo, quando a frequência é quinzenal ou três vezes no mês. Os dados do DATASUS demonstram o número de procedimentos realizados por cada modalidade, conforme os quadros a seguir. Número de Acompanhamentos a crianças e adolescentes com transtornos mentais em Cuidado Intensivo por região Região 2004 2005 2006 2007 Total Região Norte 468 445 1.397 2.744 5.054 Região Nordeste 10.031 33.756 64.854 113.906 222.547 Região Sudeste 22.453 36.464 58.163 73.436 190.516 Região Sul 7.709 17.871 25.836 48.112 99.528 Região Centro-Oeste 769 1.733 2.775 3.797 9.074 Brasil 41.430 90.269 153.025 241.995 526.719 Fonte: Ministério da Saúde/DATASUS. Número de Acompanhamentos a crianças e adolescentes com transtornos mentais Cuidado Semi-intensivo por região Região 2004 2005 2006 2007 Região Norte 1.714 1.326 3.984 2.817 Região Nordeste 11.171 37.091 76.161 138.841 Região Sudeste 57.582 81.146 108.578 142.851 Região Sul 21.408 39.978 51.165 89.008 Região Centro-Oeste 4.355 5.190 10.873 21.856 em Total 9.841 263.264 390.157 201.559 42.274 189 Brasil 96.230 Fonte: Ministério da Saúde/DATASUS. 164.731 250.761 395.373 907.095 Número de Acompanhamentos a crianças e adolescentes com transtornos mentais em Cuidado Não-intensivo por região Região 2004 2005 2006 2007 Total Região Norte 1.782 1.466 3.819 3.934 11.001 Região Nordeste 2.140 8.297 19.000 32.918 62.355 Região Sudeste 17.182 22.833 25.593 36.065 101.673 Região Sul 11.278 16.973 22.631 32.146 83.028 Região Centro-Oeste 2.174 2.446 3.496 4.749 12.865 Brasil 34.556 52.015 74.539 109.812 270.922 Fonte: Ministério da Saúde/DATASUS. Conforme pode-se observar, as modalidades semi-intensivo e intensivo absorveram o maior número de pessoas, o que pode sugerir que a maioria dos serviços ainda funciona privilegiando o atendimento contínuo. A modalidade não-intensiva foi a menos utilizada, sendo predominante na região sudeste do país. A região nordeste é a que apresentou o maior número de acompanhamentos na modalidade de cuidado intensivo, somando 113.906 no ano de 2007, embora seja a terceira região em números de CAPSi implantados (21). Por outro lado, o número de acompanhamentos na modalidade de cuidado não-intensivo é maior na região sudeste, que apresenta o maior números de CAPSi implantados (37). Uma outra questão que diz respeito ao cuidado em saúde mental é o atendimento a crianças e adolescentes com deficiência mental, com autismo ou outros tipos de transtornos globais do desenvolvimento, que, historicamente, foram objeto de uma política assistencialista, empreendida por organizações não governamentais, em sua maioria, por conta da ausência de políticas públicas na área da saúde voltadas especificamente a esse público infanto-juvenil, enfatizando a institucionalização (BRASIL, 2005c). Vale frisar que essas instituições iniciaram tal atendimento a partir da educação especial às pessoas com deficiência mental, se organizando como atendimento educacional especializado substitutivo ao ensino comum, como foi o caso da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e da Sociedade Pestalozzi, determinando formas de atendimento clínico-terapêuticos que, através de diagnósticos, definem as práticas escolares para os alunos com deficiência (GRUPO DE TRABALHO, 2008). Atualmente, apesar da previsão normativa para a atenção em saúde mental desse grupo social pelos CAPSi, o que se observa, ainda, é a prevalência do seu atendimento por instituições não governamentais, filantrópicas ou privadas, situadas em diversos municípios do país. Esta realidade é patente quando se verifica que tais instituições recebem recursos públicos para atender crianças e adolescentes com as características acima mencionadas, em conformidade com a Portaria nº 1.635/GM, de 12 de setembro de 2002, que inclui no Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA - SUS) os procedimentos relacionados aos pacientes com deficiência mental ou com autismo (BRASIL, 2002e). Vale destacar que boa parte destas instituições justificam o atendimento que prestam por conta da deficiência das políticas públicas nessa área, alegando que o Estado ainda não consegue prover o cuidado e o tratamento adequado a tal grupo social, relatando as dificuldades encontradas nos novos dispositivos de saúde mental em atender este público. Porém, deve-se atentar que, no campo da saúde mental, diversas delas desenvolvem iniciativas que se superpõem ou se contrapõem, dispersando esforços (BRASIL, 2005c). A falta de uma rede de serviços capaz de responder adequadamente e com agilidade aos quadros apresentados por estas crianças, bem como as adversidades enfrentadas por seus familiares, são apontados por tais instituições como os motivos para o encaminhamento dessas crianças a entidades especiais. Destacam a morosidade do atual sistema e a falta de opções para as crianças e as famílias, fazendo com que o encaminhamento a tais entidades seja o único caminho possível. Ocorre que a sensação do desamparo leva, muitas vezes, à institucionalização enquanto solução considerada apropriada tanto para a família como para a criança (RIZZINI, 2008). Esta situação se perpetua no atendimento a crianças e adolescentes 190 com deficiência mental, desenvolvimento. com autismo ou outros tipos de transtornos globais do Além disso, uma das grandes dificuldades apontadas pelos pais e mães de crianças autistas é que os profissionais da Pediatria não detectam as características da doença desde o início do atendimento, e essa demora no diagnóstico acaba gerando uma série de problemas, e, como eles próprios afirmam, uma peregrinação por profissionais de diversas especialidades e realização de exames diversos (otorrinolaringologista, neurologista, psicólogo, além de teste de audiometria, eletroencefalograma). Segundo eles, a formação do médico pediatra é deficitária com relação ao autismo e há poucos psiquiatras infantis no Brasil (em torno de cem), demonstrando a fragilidade e até mesmo a ausência do diagnóstico precoce nessa área. Por outro lado, cabe assinalar também que uma pesquisa realizada em CAPSi de três regiões do país, no ano de 2003, constatou que, apesar da oferta dos CAPSi para atender as necessidades de saúde mental entre jovens brasileiros, a freqüência elevada de diagnósticos relativos a problemas de habilidades escolares coloca a necessidade de investimento na articulação e discussão entre profissionais da saúde e da área educacional, para reduzir encaminhamentos a esses serviços especializados de atenção à saúde mental, perante dificuldades relacionadas exclusivamente aos problemas do aprendizado (HOFFMAN, SANTOS, MOTA, 2008). Os CAPSi têm papel fundamental na atenção à saúde mental infanto-juvenil no SUS, por se estabelecerem como uma forma de atenção de base comunitária, contrapondo-se ao modelo hospitalocêntrico, porém, as ações de saúde mental voltadas a esse grupo específico não podem estar restritas a estes serviços, mas serem realizadas junto à atenção básica. Uma das funções dos CAPS é dar suporte e supervisionar a atenção à saúde mental na rede básica Programa de Saúde da Família (PSF) e Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) (BRASIL, 2004c), através do matriciamento das equipes da atenção básica (BRASIL, 2003). Quando estas equipes forem insuficientes ou os CAPS inexistentes (para os municípios menores de 20 mil habitantes não há indicação de implantação de CAPS, segundo a Política Nacional), teria a equipe de apoio matricial em saúde mental para no mínimo 6 e no máximo 9 equipes de PSF, ou para grupos populacionais entre 15 a 30 mil habitantes. Conforme informação da própria Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, “56% das equipes do Programa Saúde da Família já atendem regularmente situações de saúde mental, porém sem apoio técnico adequado” (Jornal do CONASEMS - Agosto/2007 - nº 08). Assim, o PSF precisa assimilar os princípios e diretrizes da saúde mental infanto-juvenil e implementar ações nessa área nas suas intervenções junto às famílias, principalmente, tendo em vista que os CAPSi estão implantados apenas nos municípios com mais de 200 mil habitantes. A inserção de uma equipe mínima de Saúde Mental na Atenção Básica é fundamental para se promover a lógica da integralidade no SUS. Rabelo e Santos (2007), citando um documento da OMS158, afirmam que nenhum sistema sanitário estará completo se não atender às necessidades de saúde mental da população. As ações de prevenção, promoção, tratamento e reabilitação foram pensadas pela reforma psiquiátrica do Brasil a partir da lógica da desospitalização. Sendo assim, a inserção das ações de saúde mental na atenção básica configura-se uma diretriz estratégica, tendo em vista que a Atenção Básica acaba sendo a porta de entrada do sistema de saúde, permitindo que os sintomas de sofrimento psíquico sejam detectados e tratados precocemente, evitando-se internações desnecessárias. Porém, observando as ações previstas para o aprimoramento da atenção básica nessa seara, verificase que a inserção de indicadores da saúde mental no SIAB ainda não foi implementada pelo Ministério da Saúde. A atenção hospitalar nessa área também é muito importante, tendo em vista que os serviços comunitários para os transtornos mentais mais comuns não eliminam a necessidade de serviços hospitalares especializados para uma parte menor do público infanto-juvenil com 158 A introdução de um componente de Saúde Mental na Atenção Primária. Genebra: 1990. 191 transtornos mais graves e mais resistentes ao tratamento, como é o caso de adolescentes com transtorno psicótico, de acordo com Fleitlich (2002a). Nesse caso, os serviços comunitários e os leitos de atenção integral à saúde mental devem coexistir, complementando-se. Quanto aos dados coletados, com relação ao número de leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais em funcionamento no Brasil, verifica-se, no período de dezembro de 2005 a abril de 2008, o quadro seguinte: Número de leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais 2005 2006 2007 Leitos Psiquiátricos em Hospitais 3.647 3.531 3.733 Gerais Fonte: Ministério da Saúde/CNES. A partir de 2008, até o mês de abril. 2008 3.937 Estes números representam uma grande dificuldade da implementação da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a qual optou pelo cuidado em saúde mental no território, desativando os hospitais psiquiátricos paulatinamente e implantando leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais para atenção de maior complexidade nessa área. Em quase três anos, houve um crescimento de apenas 7,4% no número destes leitos (290), o que denota uma fragilidade da rede de atenção em saúde mental no Brasil. Uma outra questão pertinente quanto a esta informação é que não há registro, no sistema de informações pesquisado, do número destes leitos voltado à internação de crianças e adolescentes, diante das suas especificidades. Assim, cabe salientar que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança considera que as crianças e adolescentes têm direito a serviços apropriados. Ainda na área da saúde mental, outra questão importante diz respeito ao uso e à dependência de álcool e outras drogas por adolescentes, que vêm aumentando nos últimos anos, trazendo desdobramentos nos diversos níveis de sua vida, como conseqüências orgânicas, comportamentais, nas relações com a família e na estrutura de desenvolvimento da sua personalidade. Segundo pesquisas já realizadas em todo o mundo, as bebidas alcoólicas são as substâncias psicotrópicas mais utilizadas por adolescentes, apontando que tal consumo pode trazer diversas conseqüências negativas, como problemas nos estudos, problemas sociais, praticar sexo sem proteção e/ou sem consentimento e acidentes relacionados ao consumo. Além disso, o álcool é uma das substâncias psicoativas mais precocemente consumidas pelos jovens, e, de acordo com a literatura internacional, a dependência das drogas é o problema de saúde mental mais prevalente entre adolescentes, com o álcool em primeiro lugar (PECHANSKY, 2008). No Brasil, o consumo de bebidas alcoólicas é legalmente proibido às pessoas com menos de 18 anos de idade, porém, são poucos os mecanismos utilizados para dificultar a compra e o consumo de álcool por adolescentes. Ademais, iniciar tal consumo precocemente pode influenciar problemas futuros com o álcool. De acordo com o “I Levantamento Nacional sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira”, realizado entre novembro de 2005 e abril de 2006, os adolescentes estão iniciando o consumo de álcool cada vez mais cedo. Uma das conclusões deste estudo (LARANJEIRA, 2007, p. 8) é que o fenômeno do beber precoce e regular está realmente acontecendo com os jovens, de acordo com as informações coletadas, e ele informa, ainda, que “Até o momento, foram realizados cinco levantamentos mais amplos com essa população. Os resultados do último levantamento, do ano de 2004, mostram um uso na vida de álcool (definido como qualquer consumo em qualquer momento da vida) de 65% para todos os estudantes, com 41% das crianças da faixa etária de 10-12 anos já tendo experimentado bebidas alcoólicas ao menos 1 vez na vida. O consumo freqüente de bebidas alcoólicas (definido como 6 ou mais vezes no último mês) aumentou nos quatro primeiros levantamentos e foi de cerca de 11% em 2004. Além disso, o uso pesado (definido como 20 vezes ou mais no último mês) foi de quase 7% (...), o que é uma razão para preocupação. Entre todas as substâncias psicotrópicas 192 avaliadas no levantamento, o álcool apresentou a menor média de início do consumo, pouco mais de 12 anos de idade”. Acerca da intensidade do consumo de álcool entre todos os adolescentes da amostra (não apenas os bebedores), o referido estudo mostra que 13% do total dos adolescentes (17% para os meninos) apresenta padrão intenso de consumo de álcool; outros 10% dos adolescentes consomem ao menos 1 vez no mês e potencialmente em quantidades arriscadas; e há uma tendência de diferença entre o consumo de meninos e meninas, mas esta diferença não chega a ser estatisticamente significante. Para examinar como o Brasil vem enfrentando esta questão, analisaremos os dados referentes aos dispositivos que prestam atendimento a esse público, bem como aqueles referentes ao uso e à dependência nesta faixa etária. Com referência ao atendimento prestado, atualmente, às pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, existe uma política específica, e o CAPS para usuários de álcool e drogas (CAPSad) constitui-se como o dispositivo central de atenção. É importante ressaltar que embora os CAPSad tenham um papel central no atendimento às pessoas que apresentam transtornos mentais em decorrência do uso de substâncias psicoativas, os CAPSi, por sua especificidade no atendimento a crianças e adolescentes, também deveriam atender o público infanto-juvenil nesta condição, conforme preconizam as normas do Ministério da Saúde. Ocorre que, de acordo com a pesquisa realizada em CAPSi já citada acima, constatou-se que nenhum dos CAPSi estudados registrou atendimento de pessoas com transtornos mentais e comportamentais devido ao uso daquelas substâncias (HOFFMAN, SANTOS, MOTA, 2008). Neste caso, deve-se atentar para tal questão, tendo em vista que diversos estudos demonstram uma alta prevalência destes problemas, e, de acordo com a OMS, cerca de 10% da população dos centros urbanos em todo o mundo consomem abusivamente substâncias psicoaticas, independentemente de sexo, idade ou condição social. Hoffman, Santos e Mota (2008) apontam que esta dificuldade no atendimento também está aliada ao entendimento dos profissionais acerca da necessidade de capacitação técnica específica para a detecção desses problemas. Vale salientar que os profissionais de saúde mental dos CAPSi deveriam atender tais casos e, quando necessário, fazer o encaminhamento de crianças e adolescentes aos CAPSad. De acordo com o “Mapeamento das Instituições Governamentais e Não-governamentais de Atenção às Questões Relacionadas ao Consumo de Álcool e Outras Drogas no Brasil” (CARVALHO, 2007), publicado em 2007 pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), das 1.256 (100%) instituições que realizam atividades de tratamento no Brasil, 389 (31%) são governamentais e 850 (67,7%) não-governamentais. Destas 1.256 instituições, 483 são comunidades terapêuticas (destas, 9 são governamentais e 469 são não-governamentais159), o que corresponde a 38,5%, ou seja, mais de um terço das instituições de tratamento nessa área no Brasil atua sob a lógica do tratamento institucionalizado. Vale acrescentar informação mais atualizada acerca de tais comunidades, fornecida pelo Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID)160, que afirma que foi realizado um “mapeamento das instituições nacionais de atenção aos problemas decorrentes do uso de drogas e foram cadastradas 576 comunidades terapêuticas no Brasil”, ou seja um aumento de quase 20% do número da pesquisa anterior. E acrescenta que este não é o número total, mas o das que se conseguiu mapear, e quanto à questão do financiamento (se tais instituições contam com recursos públicos), informa que esse dado não está disponível. Na pesquisa publicada pela SENAD, os CAPSad totalizavam 153 (no ano de 2007), sendo 131 governamentais (CARVALHO, 2007). Ressalte-se que a Portaria GM nº 816, de 30 de abril de 2002, que institui, no âmbito do SUS, o “Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários de Álcool e Outras Drogas”, estabeleceu a expansão da rede de CAPSad com a meta 159 Observa-se que a soma destes números (9+469) é 478, não totalizando, assim, o número de 483, conforme consta no referido mapeamento. 160 Informação encaminhada à ANCED pelo Coordenador-Geral do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID), através de e-mail, no dia 08 de julho de 2008. 193 de 250 CAPSad em 2004 (o que não ocorreu, pois, em 2008, o Brasil conta com 166 destes serviços). Além dos CAPSad, existem em todo o Brasil espaços que oferecem tratamento de desintoxicação que também atendem adolescentes: as comunidades terapêuticas. Estas são instituições filantrópicas, e, na sua maioria, religiosas, que atendem pessoas que fazem uso abusivo de drogas, em regime de internação. Elas têm um papel importante como rede de proteção e como instituições de atenção nessa área. Com o crescente aumento no consumo de drogas e com a ausência de possibilidades para a reabilitação das pessoas com dependência do álcool ou de outras drogas no setor público de saúde, houve uma expansão dessas comunidades no Brasil sem qualquer regulamentação, e os principais problemas encontrados foram a má qualidade de atendimento prestado por algumas comunidades e a falta de adequação para abrigar as pessoas que buscavam tratamento. No sentido de solucionar tais problemas, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) editou a Resolução nº 101/2001, publicada em 31 de maio de 2001, que estabelece o Regulamento Técnico para o Funcionamento de Serviços de Atenção a Pessoas com Problemas Decorrentes do Uso ou Abuso de Substâncias Psicoativas, dentre eles, as comunidades terapêuticas existentes no país (BRASIL, 2003c). Vale acrescentar que tal normatização, embora necessária ao estabelecimento de condições dignas para as pessoas que ali se tratam, “favoreceu a organização da demanda das comunidades terapêuticas por financiamento público, reforçando uma tendência histórica de manutenção dessa atenção fora do âmbito do setor público de saúde” (MACHADO, 2006, p. 52). Porém, apesar da pressão política destas junto ao Governo Federal, inclusive com apoio da SENAD, prevaleceu, no Ministério da Saúde, a posição daquelas pessoas que defendiam a inclusão da atenção aos usuários de álcool e outras drogas no SUS, e as comunidades terapêuticas permaneceram sem receber financiamento do SUS (MACHADO, 2006). É importante observar também que “as instituições voltadas para as questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no Brasil são ainda pouco conhecidas das esferas governamentais responsáveis pela elaboração e execução da Política Nacional sobre Drogas”, sendo que “a maioria das instituições de tratamento brasileiras é definida por seus dirigentes como comunidades terapêuticas” (CARVALHO, 2007, p. 86). Nesse caso, é fundamental conhecer o funcionamento e o atendimento de tais instituições para a consecução de ações de redução da demanda de drogas no país, inclusive porque muitos adolescentes são encaminhados a elas. Outra informação relevante constante na mencionada pesquisa é que a maioria das instituições nesta área presta atendimento à população adulta, na faixa etária compreendida entre 18 e 59 anos, e das 251 instituições que prestam atendimento a crianças, 41,8% são governamentais e 57,4% não-governamentais, sendo que das 728 instituições que atendem adolescentes, 32,1% são governamentais e 66,8% são não-governamentais (CARVALHO, 2007). Isto demonstra, ainda, o atraso histórico na articulação entre a área de álcool e outras drogas e o campo da saúde pública (MACHADO, 2006), especialmente, com o SUS, como o próprio Governo Brasileiro assumiu ao apresentar suas diretrizes nessa área através do Ministério da Saúde (BRASIL, 2003c). Esta questão ganha mais relevo ainda com relação aos adolescentes, pois um percentual destes acaba sendo processado pela justiça juvenil por conta do consumo habitual de drogas (VICENTIN, 2007). Ademais, o referido Mapeamento (CARVALHO, 2007, p. 92) aponta que “(...) os recursos governamentais da rede de atenção à população com problemas decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas que visam dar suporte aos CAPSad, como os Hospitais Gerais, 8 (2,1%); Hospitais-dia, 4 (1,0%); e Residências Terapêuticas, 2 (0,5%); ainda se encontram bastante incipientes, somando, aproximadamente, 3,5%”. Assim, com a criação dos serviços abertos em substituição à internação em hospitais psiquiátricos, tais serviços (NAPS, CAPS, Centros de Convivência, dentre outros) é que devem ser priorizados no atendimento das pessoas que demandam atenção nessa área. 194 Com relação ao uso prejudicial e à dependência de substâncias psicoativas, os dados mais recentes disponíveis constam no “II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil”, realizado pelo CEBRID no ano de 2005, nos 108 municípios brasileiros com mais de 200 mil habitantes. A comparação entre os levantamentos de 2001 e 2005 revelam um aumento no uso de 7 das 9 drogas mais usadas no país. A dependência de drogas como o álcool, o tabaco e a maconha também aumentou, porém, é considerado um aumento “não estatisticamente significante”, levando-se em conta também o aumento da população (CARLINI et al, 2007). Os dados referentes ao uso e à dependência de álcool e outras drogas por adolescentes no Brasil constam nas tabelas seguintes. Comparação entre os levantamentos de 2001 e 2005, uso na vida e dependência de Álcool distribuídos, segundo o sexo e a faixa etária dos entrevistados das 108 cidades com mais de 200 mil habitantes do Brasil Faixa etária USO NA VIDA EM % DEPENDÊNCIA EM % (anos)/sexo 2001 2005 2001 2005 12 – 17 48,3 54,3 5,2 7,0 Masculino 52,2 52,8 6,9 7,3 Feminino 44,7 50,8 3,5 6,0 Fonte: II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, CEBRID, 2007. Comparação entre os levantamentos de 2001 e 2005, segundo o uso na vida e dependência de Tabaco, distribuídos segundo o sexo e a faixa etária dos entrevistados das 108 cidades com mais de 200 mil habitantes do Brasil Faixa etária USO NA VIDA EM % DEPENDÊNCIA EM % (anos)/sexo 2001 2005 2001 2005 12 – 17 15,7 15,2 2,2 2,9 Masculino 15,2 16,8 2,2 3,2 Feminino 16,2 11,3 2,2 2,0 Fonte: II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, CEBRID, 2007. Comparações das freqüências de uso na vida de drogas no Brasil, em 2001 e 2005 (em %). Jovens de 12 a 17 anos Período de tempo DROGAS Uso na vida 2001 2005 M F Total M F Total Maconha 3,4 3,6 3,5 3,9 2,5 4,1 Cocaína 0 0,9 0,5 0,4 0,4 0,5 Crack 0,2 0,4 0,3 0,1 0 0,1 Heroína 0 0,2 0,1 0 0 0 Alucinógenos 0,2 0,4 0,3 0,7 0,1 0,7 Solventes 3,0 3,8 3,4 2,7 3,2 3,4 Codeína 0,6 2,7 1,6 0,7 2,0 1,4 Benzodiazepínicos 1,3 0,4 2,2 0,9 0,7 1,0 Estimulantes 0 0,4 0,2 1,6 0 2,9 Barbitúricos 0 0,2 0,1 0 0,3 0,2 Álcool 52,2 44,7 48,3 52,8 50,8 54,3 Tabaco 15,2 16,2 15,7 16,8 11,3 15,2 Fonte: I Levantamento Domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil. 2001 e 2005. Entre os adolescentes de 12 a 17 anos, o uso na vida de álcool atingiu o índice de 54,3% e os problemas relacionados ao consumo de álcool foram relatados por 5,7% dos entrevistados 195 nesta faixa etária. Tanto quanto ao uso e à dependência do álcool, constata-se um aumento significativo entre adolescentes do sexo feminino, sendo que a taxa de dependência para estas, quase duplicou. Já quanto aos adolescentes do sexo masculino, a taxa relativa ao uso manteve-se praticamente estável, e quanto à dependência desta droga entre estes adolescentes houve um aumento. Com relação ao tabaco, a diminuição no uso desta substância foi mais significativa entre adolescentes do sexo feminino, havendo um pequeno aumento no uso por parte dos adolescentes do sexo masculino. Já quanto à dependência desta droga, houve aumento insignificante entre os adolescentes do sexo masculino e quase a mesma taxa para adolescentes do sexo feminino. No que se refere às outras drogas, em relação ao uso na vida, registre-se o aumento no uso da maconha, sendo que este aumento ocorreu por parte dos adolescentes do sexo masculino. O que resta claro é que o consumo de drogas entre adolescentes aumentou nos últimos quatro anos. A prevalência de dependência de álcool, em adolescentes de 12 a 17 anos, teve aumento de 5,2% para 7,0%. Ademais, há maiores índices de dependência de tabaco, assim como do uso na vida de maconha e estimulantes. Neste caso, vale observar que esta situação pode ser agravada quando ocorre a comorbidade psiquiátrica relacionada ao uso de drogas nessa faixa etária. Em outra pesquisa, publicada em 2004, realizada junto a estudantes do ensino fundamental e médio da rede pública de ensino de 27 capitais brasileiras, foram coletados os dados abaixo sobre uso de drogas psicotrópicas. Uso na vida de drogas psicotrópicas por estudantes do ensino fundamental e médio das redes municipal e estadual do Brasil, levando-se em conta sexo, idade e as diferentes drogas individualmente (em %) DROGAS Sexo %*** Idade (anos) %*** M F NI** 10 13 16 12 15 18 >18 NI** Maconha 7,9 4,1* 7,0 0,6 3,9 11,2 17,7 9,5 Cocaína 2,8 1,3* 2,7 0,5 1,4 2,8 6,8 4,2 Crack 1,1 0,4 1,1 0,2 0,6 1,1 2,0 1,5 Anfetamínicos 3,0 4,3* 3,5 1,7 3,9 4,8 4,7 4,9 Solventes 16,9 14,3* 15,3 9,9 16,9 19,1 19,9 13,8 Ansiolíticos 3,1 5,0* 4,4 1,5 4,1 5,8 7,0 6,3 Anticolinérgicos 1,3 1,0 1,3 0,9 1,2 1,3 1,8 1,3 Barbitúricos 0,7 0,8 0,8 0,3 0,8 1,0 1,2 1,0 Opiáceos 0,4 0,3 0,4 0,1 0,4 0,4 0,7 0,5 Xaropes 0,4 0,4 0,6 0,3 0,4 0,4 0,3 0,6 Alucinógenos 0,6 0,6 0,6 0,2 0,6 1,0 1,0 0,8 Orexígenos 0,4 1,0 0,7 0,3 0,6 0,9 1,3 1,1 Energéticos 14,9 9,4* 12,4 4,3 12,8 18,9 20,0 11,0 Esteróides/Anabolizan tes 1,7 0,2* 1,8 0,3 0,6 2,0 2,4 1,5 Total tipos de uso**** 23,5 21,7* 23,7 12,6 23,2 29,6 34,9 25,8 Tabaco 25,2 24,7 25,3 7,0 24,7 39,7 41,3 34,6 Álcool 64,5 66,3* 60,2 41,2 69,5 80,8 82,1 69,2 Fonte: V Levantamento Nacional sobre o consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e médio da rede pública de ensino nas 27 capitais brasileiras. *Diferença estatisticamente significante entre os dois sexos (Teste do X², p < 0,05) **NI significa dados não informados pelos alunos ***As porcentagens representam os dados expandidos ****Tipos de uso exclui tabaco e álcool Observa-se, na faixa etária de 10 a 18 anos, uma média de 63,8% de uso na vida de bebidas 196 alcoólicas, o que representa um alto índice entre os adolescentes, confirmando as pesquisas que têm sido realizadas neste âmbito, com um índice de uso maior entre adolescentes do sexo feminino (66,3%). Além disso, verifica-se uma precocidade no uso do álcool, tendo em vista o percentual de 41,2% em crianças de 10 a 12 anos, configurando-se um alto índice, inclusive, quando comparado com o uso das outras drogas nesta mesma faixa etária (12,6%). A taxa de uso na vida é de 15,3% no caso dos solventes e de 12% nos energéticos, demonstrando que embora haja uma predominância do uso do álcool entre adolescentes, outras drogas começam a fazer parte da vida destas pessoas. Por fim, vale frisar que embora a “Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas” (BRASIL, 2003c) trate da prevalência do uso de drogas por adolescentes, ela não se traduziu em ações concretas para a redução do consumo nesta faixa etária, como ações de prevenção e de educação específicas voltadas para este público. O que se verifica são iniciativas isoladas, implementadas através de projetos com escolas, a partir da Política Nacional de Educação, como é o caso dos municípios de Salvador-BA e Vitória-ES. Além disso, outra estratégia que tem sido adotada pelo Ministério da Saúde é a da redução de danos, de acordo com a Portaria nº 1.028, de 1º de julho de 2005, porém, ainda de forma incipiente para os adolescentes. 2.1.3. Esforço Com referência ao esforço do Governo Brasileiro na área da saúde mental de crianças e adolescentes, cabe ressaltar a criação do Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil, pelo Ministério da Saúde, através da Portaria GM nº 1.608, de 3 de agosto de 2004, com o objetivo de fortalecer as diferentes iniciativas na área da atenção à saúde mental infantojuvenil e otimizar as ações propostas e desenvolvidas pelos diferentes setores governamentais e não-governamentais (BRASIL, 2004b, 2005c). Este Fórum conta com a participação do Governo, da sociedade civil, de agentes da Justiça e Promotoria da Infância e Adolescência, e busca incorporar as orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente para assegurar a implantação da Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil (BRASIL, 2006). Acerca dos princípios para reger esta Política (BRASIL, 2005c, p. 11), cabe assinalar que “Antes e primeiro que tudo, é preciso adotar como princípio a idéia de que a criança ou o adolescente a cuidar é um sujeito. Tal noção implica, imediatamente, a de responsabilidade: o sujeito criança ou o adolescente é responsável por sua demanda, seu sofrimento, seu sintoma. É, por conseguinte, um sujeito de direitos, dentre os quais se situa o direito ao cuidado. Mas, a noção de sujeito implica também a de singularidade, que impede que esse cuidado se exerça de forma homogênea, massiva e indiferenciada”. Em que pese a criação do mencionado Fórum e as reuniões plenárias já realizadas (nos anos de 2004, 2005, 2006 e 2007), algumas das ações prioritárias nesta área ainda continuam pendentes, a exemplo do mapeamento da rede ampliada de atenção à saúde mental infantojuvenil. Houve um mapeamento preliminar, o qual foi elaborado a partir de informações fornecidas pelas representações do Fórum, com lacunas em algumas regiões do país (BRASIL, 2005c, p. 75). Com referência ao esforço empreendido na área da atenção básica, foi publicada pelo Ministério da Saúde, em 24 de janeiro de 2008, a Portaria nº 154, que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Dentre as determinações contidas nesta Portaria, está a recomendação de que cada NASF conte com pelo menos 1 (um) profissional da área de saúde mental, tendo em vista a “magnitude epidemiológica dos transtornos mentais” (BRASIL, 2008, p. 3). Com referência às ações em saúde mental, este documento prevê que os NASF devem se integrar à rede de atenção em saúde mental (que inclui a rede de Atenção Básica/Saúde da Família, os CAPS, as residências terapêuticas, os ambulatórios, os centros de convivência, os clubes de lazer, entre outros), “organizando suas atividades a partir das demandas articuladas 197 junto às equipes de Saúde da Família, devendo contribuir para propiciar condições à reinserção social dos usuários e a uma melhor utilização das potencialidades dos recursos comunitários (...)” (BRASIL, 2008, p. 10-11). Na área do uso de substâncias psicoativas, ressalte-se a edição do Decreto nº 6.117, de 22 de maio de 2007, que aprova a Política Nacional sobre o Álcool e dispõe sobre as medidas para redução do uso indevido de álcool. Nesta constam diretrizes e medidas como a inclusão de ações de prevenção ao uso de bebidas alcoólicas nas instituições de ensino, em especial nos níveis fundamental e médio; o acesso ao tratamento para usuários e dependentes de álcool aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS); e intensificar a fiscalização quanto ao cumprimento do disposto nos arts. 79, 81, incisos II e III, e 243 do ECA. Estes artigos prevêem, respectivamente: que as revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas e tabaco; a proibição da venda à criança ou ao adolescente de bebidas alcoólicas e de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida; que é crime vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida. Merece destaque a Agenda Social do Presidente 161, lançada em 11 de outubro de 2007, que tem como foco crianças e adolescentes em situação de violência, e prevê, através do Projeto “Bem-me-quer” o “Fortalecimento e ampliação dos programas federais de atendimento (CREAS/CAPSi e CAPSad, Saúde da Família e Jovens Promotores de Saúde)”, com a abrangência de 45 municípios162. Porém, o documento refere-se apenas às metas dos Centros de Referência de Assistência Social - CRAS (227) e os Centros de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS (14), ficando de fora os CAPSi e os CAPSad, e as outras ações de saúde, mas com um orçamento do Ministério da Saúde em torno de R$ 1.212.825.000,00 (previsto no Programa Mais Saúde - PAC Saúde). Este valor consta na Ação “Ampliar a rede de CAPSi e CAPSad, Saúde da Família e Jovens Promotores de Saúde” do Cronograma Orçamentário: “Quem ama, protege”, no período de 2007 a 2010, porém, como já afirmado, sem a previsão de metas. No que se refere à garantia do direito à saúde no sistema socioeducativo, há o Projeto “Na medida certa”, que prevê o fortalecimento do atendimento em saúde, a partir da “implantação de atenção à saúde integral, com ênfase na saúde mental, articulada ao SUS”, tendo abrangência nas unidades de internação nos 27 Estados do país, e como meta a implantação em 23 Estados, com um orçamento de R$ 14.223.000,00. Este valor consta na Ação “Implementação de atenção à saúde integral, com ênfase na saúde mental, em articulação com a rede de atenção básica do SUS” do Cronograma Orçamentário: “Pro-SINASE”, no período de 2007 a 2010, porém, sem a previsão de metas. Ademais, ressalte-se também o Plano Presidente Amigo da Criança163, que apresenta os Programas de Atenção à Saúde de Populações Estratégicas em Situação de Agravos, de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência e à Saúde Mental. Na área da saúde mental de crianças e adolescentes, a principal orientação do Ministério da Saúde foi ampliar a implantação dos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil – CAPSi e dos serviços de referência para o atendimento dos transtornos relacionados ao consumo de álcool e outras drogas – CAPSad, os quais trabalham de forma integrada com outros setores, tais como: a justiça, a educação, os direitos humanos e a assistência social; buscando articular suas ações às diferentes redes existentes nos seus territórios. Vale observar que no referido documento consta que outros tipos de CAPS, ou seja, os tipos I, II e III, têm por orientação atender toda a demanda populacional, incluindo a população infanto-juvenil, em não existindo serviços 161 Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.arquivos/.spdca/agenda_social.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2008. 162 Estes municípios fazem parte do elenco do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), que prevê ações nos municípios brasileiros que apresentam altos índices de violência. 163 Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/spdca/p/>. Acesso em: 20 jul. 2008. 198 específicos para a referida clientela, e coloca a meta de implantação de 50 CAPSad e 30 CAPSi. Ocorre que, na prática, tais serviços atendem predominantemente pessoas adultas. 2.1.4. Ambiente Apesar das mudanças implantadas na área da saúde mental no país, ainda percebe-se no imaginário social uma predominância da cultura da exclusão com relação às pessoas com transtornos mentais, demonstrando a situação de desinformação da população de uma maneira geral. A loucura foi historicamente produzida e constantemente reiterada, e, por isso, observa-se na sociedade brasileira um discurso preconceituoso com relação às pessoas com transtorno mental, que delimita apenas o espaço asilar para estas (RIBEIRO, 1999), sendo, neste caso, o hospital psiquiátrico o local demandado para tratamento, seja para adultos ou adolescentes. Ainda existe muito preconceito com relação aos transtornos mentais e desinformação na sociedade. As pessoas, de um modo geral, não sabem lidar com essa realidade e, na maioria das vezes, depositam num hospital a solução para os casos. No que se refere ao grupo infantojuvenil, esta situação se agrava, tendo em vista que a falta de informação dos pais acaba gerando desassistência e situações de violência, como o cárcere privado praticado contra crianças e adolescentes em diversos municípios do país. Ademais, a internação num hospital psiquiátrico é vista como a única medida para cuidar destas pessoas. Diante do modelo da psiquiatria hospitalocêntrica, o louco é apenas um doente sob os seus cuidados, sem vontade, e, ainda, aquele lhe retira a qualidade de sujeito. Resta, apenas, o cuidado com o controle da pessoa com transtorno mental, que deveria estar sempre sob custódia de uma instituição submetida a um tratamento farmacológico, reforçando as finalidades de exclusão social e de cura trazidas pelo isolamento terapêutico. No Brasil, o debate sobre saúde mental e direitos humanos se ampliou na década de 1970, a partir do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, que passou a denunciar as violações de direitos civis e o modelo privatizante e hospitalocêntrico adotado pelo Estado e a elaborar propostas visando uma transformação da assistência psiquiátrica. Foi a partir desse Movimento, que fundou a Luta Antimanicomial e originou o Movimento pela Reforma Psiquiátrica, que se iniciou a crítica, no Brasil, da psiquiatria como prática de controle e reprodução das desigualdades sociais, e o debate acerca da necessidade da desinstitucionalização (AMARANTE, 1998). Assim emerge a luta pela extinção do hospital psiquiátrico e sua substituição por um modelo de assistência substitutivo, pautado pelo respeito à liberdade e à diferença, sendo estes, princípios de direitos humanos e princípios orientadores para o desenvolvimento da atenção em saúde mental nas Américas164. Ao reconhecer a titularidade de direitos da pessoa com transtorno mental, o Movimento da Luta Antimanicomial traz à tona um aspecto importante: a visibilidade desse ator social, que, historicamente foi tratado como objeto nas instituições nosocomiais (CORREIA, 2006). Daí a necessidade de lutar por uma vida digna, livre e independente para essas pessoas, com o respeito às suas escolhas e o incentivo às suas produções, assegurando sua presença e atuação no espaço social. Nesse caso, o próprio reconhecimento do paciente como sujeito e igual faz parte dos princípios que norteiam os direitos humanos. A partir de tal reconhecimento, percebe-se uma nova postura dos profissionais que atendem esses usuários nos serviços de saúde mental. O hospital psiquiátrico foi o grande “acolhedor” das pessoas com transtornos mentais, porém, com uma estrutura alicerçada na violência. Atualmente, com o Movimento da Luta Antimanicomial e com o advento da Política Nacional de Saúde Mental, busca-se a socialização e a integração dessas pessoas à comunidade, o que traz efeitos positivos, pois supera muitos mitos em torno da loucura. A adoção dos CAPS como estratégia para o cuidado em saúde mental aponta para uma mudança cultural, na qual se deseja romper com os desejos de 164 Declaração de Caracas, 1990 - Documento que marca as reformas na atenção à saúde mental nas Américas. 199 manicômio (PELBART, 1990). Alguns fatos ocorridos no país denotam a fragilidade do modelo hospitalocêntrico em saúde mental, por conta das graves violações de direitos humanos que aconteceram no atendimento a adolescentes: em 2005, sem poder se defender, amarrado na cama, um adolescente de 14 anos foi asfixiado com a fronha de um travesseiro durante a noite (o garoto era um dos pacientes do Hospital Colônia Adauto Botelho, em Pinhais-SP, que abriga pessoas com transtornos mentais e dependentes de drogas); no dia 5 de julho de 2006, três adolescentes morreram carbonizadas no Hospital Psiquiátrico da Santa Casa do município de Rio Grande, no Rio Grande do Sul; em 2008, um adolescente de 13 anos morreu vítima de queimaduras no Hospital Regional de Campina Grande, ele teve braços e tórax queimados quando ateou fogo ao mosquiteiro da cama onde estava internado, há cerca de seis meses, no Hospital Psiquiátrico João Ribeiro. Sendo assim, para o Movimento da Luta Antimanicomial, crianças e adolescentes que precisam de cuidados em saúde mental não devem ficar fadados à reclusão institucional, mas devem estar inseridas na rede de atenção em saúde mental, superando, assim, o modelo asilar que não se coaduna com o referencial dos direitos humanos e com os princípios éticos que fundamentam a legislação e as diretrizes políticas em curso nessa área. A Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial realizou seu II Encontro no ano de 2007, em Goiânia165, contando com a participação de representantes dos vinte núcleos filiados à Rede, localizados em 12 Estados do país e no Distrito Federal. O Encontro teve como objetivos, dentre outros, discutir e avaliar a realidade da assistência em saúde mental no país e traçar estratégias de intervenção na luta pela conquista de uma sociedade sem manicômios e pela efetivação da Reforma Psiquiátrica como política pública de saúde mental no Brasil. Para este Movimento, a rede substitutiva deve oferecer um tratamento de qualidade que atenda à demanda da população brasileira, efetivando, assim, a Reforma Psiquiátrica. Além disso, os princípios que fundam esses serviços devem ser muito claros, a fim de fortalecer a ressignificação do lugar social dos usuários, tendo em vista que muitos CAPS acabam por reproduzir uma postura manicomial em seu dia a dia de atendimento. Ressalta, ainda, que continuam ocorrendo mortes dentro dos manicômios, inexistindo um sistema nacional de vigilância, sendo que a comunicação e a troca de informações dentro da rede sobre todas estas questões continuam falhas. Por fim, no que se refere às propostas relativas à responsabilização do gestor, destaca: “Implementar a política de Saúde Mental Infanto-Juvenil, inclusive junto aos órgãos competentes de proteção a esta população.”166 No campo da responsabilização juvenil o quadro não é diferente, não havendo especialização nem individualização no atendimento de adolescentes com sofrimento mental que cumprem medida socioeducativa de internação, sendo que, muitas vezes, a determinação de internação dos adolescentes em conflito com a lei ocorre sob a justificativa de que a promoção de atenção na área da saúde é inexistente nos municípios de onde eles são oriundos. Esta prática do Poder Judiciário vem ocorrendo, por exemplo, no Estado da Bahia, onde unidades de atendimento socioeducativo como a CASE Salvador possuem registros de internação de adolescentes sob o argumento da necessidade de tratamento. 2.1.5. O caso da Unidade Experimental de Saúde do sistema de justiça e de socioeducação juvenil de São Paulo No ano de 2002, estudos realizados pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) apontaram uma frágil condição na atenção à saúde ofertada aos adolescentes privados de liberdade em instituições que executam as medidas socioeducativas de internação e internação provisória em todo o país167. 165 Disponível em: <http://www.osm.org.br/view_noticia.aspx?id=51>. Acesso em: 20 jun. 2008. 166 Idem. 200 Após alguns encontros para discutir e dar encaminhamento a esta questão, a Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem do Ministério da Saúde, juntamente com as Secretarias Especiais dos Direitos Humanos e de Políticas para as Mulheres, aprovaram e regulamentaram as diretrizes para a saúde integral dos adolescentes em conflito com a lei, em regime de internação e internação provisória, através da Portaria Interministerial nº 1.426 e da Portaria SAS nº 340, ambas de 14 de julho de 2004 (BRASIL, 2005b). Esta última, no seu Anexo I, prevê que, dentre as ações de atenção à saúde deste grupo específico, devem ser realizadas ações de saúde mental. Cabe acrescentar também a Portaria SAS nº 328, de 22 de junho de 2005, que inclui no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o Serviço de Atenção à Saúde dos Adolescentes em Conflito com a Lei. Ademais, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos e o Ministério da Saúde, através das Áreas Técnicas de Saúde Mental e da Saúde do Adolescente e do Jovem, iniciaram, no mês de julho de 2008, o “Levantamento Nacional da Atenção em Saúde Mental aos Adolescentes Privados de Liberdade e sua Articulação com as Unidades socioeducativas”, com o intuito de conhecer a realidade do atendimento em Saúde Mental para adolescentes e jovens privados de liberdade no Brasil nos municípios que possuem unidades de internação e internação provisória. Porém, em que pese tais instrumentos, ações e a Política Nacional de Saúde Mental, uma situação específica no Estado de São Paulo, sobretudo no ano de 2007, começou a chamar a atenção de profissionais da área da saúde mental e do Movimento da Luta Antimanicomial, que já reivindicou uma profunda mudança no modelo envolvendo as ciências psi, as técnicas e a própria cultura vigente em relação à loucura, sendo contrário ao encarceramento. O tema da saúde mental nos sistemas de justiça e de socioeducação juvenil do Estado de São Paulo começa a ter maior visibilidade no ano de 1999, quando a noção de transtorno de personalidade ganhará centralidade na decisão judicial, passando a dificultar as possibilidades de desinternação do jovem. Após pesquisas realizadas na FEBEM168 de São Paulo, de 1999 a 2001, Vicentin (2005, 2007c) afirma que se iniciou uma intensa utilização do aparato psi na gestão das problematizações e dos conflitos que setores da juventude vêm colocando ao campo social, com o crescente encaminhamento de adolescentes cumprindo medida socioeducativa para perícias, objetivando aferir sua periculosidade e com proposta de lei de aplicação de medida de segurança e internação psiquiátrica169 para adolescentes com transtornos mentais que não têm condições de assimilar um processo de ressocialização. A referida autora ressalta o caso “Champinha” 170 (no qual, o uso do diagnóstico de deficiência mental dava subsídios para justificar a necessidade de maior tempo de internação, e não os três anos definidos pelo ECA) e a solicitação pelo Poder Judiciário de interdição civil de jovens por razões psiquiátricas visando manter a tutela jurídica indefinida, a despeito dos três anos de internação, no máximo, conforme o ECA. Com base nisso, Vicentin (2007a, p. 53) sustenta que “o tema da saúde mental surge na perspectiva de forçar uma ampliação do tempo de internação para alguns setores dos jovens internos”. Além disso, ela registra a luta do Ministério Público pela maior qualificação das políticas de saúde destinadas aos jovens internos, após mapeamento para identificar demandas de tratamento em saúde mental 167 Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=28146&janela=1>. Acesso em: 30 jun. 2008. 168 A FEBEM (Fundação do Bem Estar do Menor) é a antiga denominação da atual Fundação Casa, no Estado de São Paulo, a qual se constitui unidade de cumprimento de medida socioeducativa de internação por adolescentes em conflito com a lei. 169 No Brasil, as pessoas com transtornos mentais que cometem delitos, quando consideradas inimputáveis (isentas de responsabilidade pelo crime que cometeram), de acordo com o Código Penal, são submetidas ao cumprimento de medida de segurança em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), a qual tem tempo indeterminado. 170 Roberto Aparecido Alves Cardoso, o “Champinha”, participou, em 2003, do homicídio de um casal de jovens, na cidade de Embu-Guaçu, na Grande São Paulo. À época, ele tinha 16 anos de idade e ao mesmo foi aplicada medida socioeducativa de internação. Depois de passar por diversas unidades da Fundação Casa (antiga FEBEM), onde foi ameaçado várias vezes, e de empreender uma fuga em maio de 2007, ele está internado, atualmente, na Unidade Experimental de Saúde da Fundação, no Estado de São Paulo. 201 (jovens com dependência de drogas, com retardo ou quadro de psicose) e exigir estratégias para isso junto à FEBEM-SP. Com a realização das perícias junto aos jovens, verificou-se os denominados casos de transtorno de personalidade anti-social, aparecendo, assim, o tema da periculosidade, com a finalidade de determinar um prazo maior de internação ou a interdição. Quanto à pesquisa realizada a partir da análise de cem processos judiciais de jovens internos na FEBEM-SP, de 1999 a 2004, Vicentin (2007c, p. 4) informa: “identificou-se que é o próprio percurso institucional que coloca esses jovens em risco, expondo-os ao diagnóstico de transtornos de personalidade ou de periculosidade. Outra pesquisa, realizada pela Universidade Federal de São Paulo em 2000, a pedido da Febem-SP, alertou para o fato desse transtorno ser compatível com a lógica institucional”. A solução proposta por setores dos sistemas socioeducativo e de justiça para estes casos é a criação de um lugar separado e definido - unidade de tratamento ou hospital de custódia – já que este grupo oferece um “risco-perigo” (VICENTIN, 2006). Assim, foi criada a primeira Unidade Experimental de Saúde (UES), inaugurada em dezembro de 2006, destinada a jovens submetidos a medida socioeducativa de internação que apresentassem “distúrbio psicológico”. Ressalte-se que em 29 de novembro de 2007, as Secretarias de Estado da Saúde, da Administração Penitenciária e da Justiça, esta última por intermédio da Fundação Casa, firmaram um Termo de Cooperação Técnica171, que tem como objetivo a “conjugação de esforços entre os partícipes visando propiciar aos adolescentes/jovens adultos, internados na unidade cujo uso foi permitido à Saúde, tratamento adequado à patologia diagnosticada, sob regime de contenção conforme determinação do Poder Judiciário”. O referido documento aponta que a UES será utilizada para abrigar adolescentes/jovens adultos autores de atos infracionais, que cumpriram medida socioeducativa na Fundação Casa e tiveram esta medida convertida pelo Poder Judiciário em medida protetiva, por força do disposto no §3º do art. 121, do ECA, por serem estes portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade e/ou possuírem alta periculosidade em virtude de seu quadro clínico. Ainda segundo o mesmo documento, nessas situações, o Poder Judiciário “determina que a medida protetiva seja cumprida em local onde o adolescente/jovem adulto deverá permanecer sob contenção, dispondo de tratamento psiquiátrico compatível com sua patologia”. Tais jovens não teriam como ser encaminhados para hospitais psiquiátricos, já que esses últimos “obedecem às diretrizes da política de saúde mental do SUS, caracterizada por serviços que não dispõem de espaços físicos de contenção” (VICENTIN, 2007b, p. 3). Segundo Vicentin (2007b), em pouco mais de dois meses de existência, a UES, além do jovem que lá se encontrava quando da edição do Decreto nº 52.419/2007, já recebeu mais cinco internos. A autora acrescenta que a maior parte deles não se encontra naquela unidade por “conversão da medida socioeducativa de internação em medida de proteção”, como consta no Termo de Cooperação. Eles estão ali recolhidos, sob contenção, por ordem proferida em procedimento estranho à apuração da infração cometida e à execução da medida socioeducativa aplicada; são decisões proferidas por juízos cíveis (vara cível/família e sucessões) em processos de interdição nos quais o Ministério Público requer a internação compulsória dos jovens; e a ordem de recolhimento à Unidade se baseia num suposto risco de infração futura atestado por algum psiquiatra. Ressalte-se que as ordens de internação 171 Diário Oficial do Estado de 04/01/2008. Extrato de Termo de Cooperação Técnica. Processo SS: 01/0001/004. 735/2007. Partícipes: O Estado de São Paulo por intermédio da Secretaria de Estado da Saúde - SES e da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania - SJDC, por intermédio da Fundação Casa e Secretaria da Administração Penitenciária - SAP. Objeto: Conjugação de esforços entre os partícipes visando propiciar aos adolescentes / jovens adultos, internados na unidade cujo foi permitido uso à Saúde, tratamento adequado à patologia diagnosticada, sob regime de contenção conforme determinação do Poder Judiciário. Vigência: 05 (cinco) anos, a partir de 29 de novembro de 2007. 202 oriundas desses processos de interdição têm como característica a absoluta indeterminação do tempo de privação de liberdade (VICENTIN, 2007b). Tal situação se assemelha à dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), onde pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos cumprem medida de segurança, por prazo indeterminado, até que cesse a sua periculosidade. Cabe aqui assinalar os avanços na atenção aos internos de HCTP no Brasil, com a edição da Resolução nº 05, de 04 de maio de 2004, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que estabelece as diretrizes para a adequação das medidas de segurança às disposições da Lei nº 10.216/2001, dentre as quais, a de que “O tratamento aos portadores de transtornos mentais considerados inimputáveis ‘visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio’”, privilegiando o tratamento a tais pessoas nos novos dispositivos de saúde mental do SUS. No momento em que o país passa por avanços na área da saúde mental, justamente porque optou pela desinstitucionalização, com a reforma psiquiátrica, soluções como a criação de uma unidade de contenção aparecem imediatamente, demonstrando um grande retrocesso, sobretudo, porque voltada aos jovens. Nesse caso, vale citar a Recomendação nº 01, de 10 de fevereiro de 2005, do Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil, que estabelece diretrizes para o processo de desinstitucionalização de crianças e adolescentes em território nacional. Este documento recomenda, dentre outras coisas, a “implementação imediata de ações que visem a reversão da tendência institucionalizante de crianças e adolescentes, sejam, no campo da saúde mental, da assistência social, da educação e da justiça.” Não há previsão legal que autorize o recolhimento dos jovens ora internados na Unidade Experimental de Saúde. A conversão de medida socioeducativa de internação com aplicação de medida protetiva de encaminhamento a equipamento de saúde que garanta contenção é absolutamente ilegal e contrária às diretrizes e normas da atual Política Nacional de Saúde Mental. Conjugando os princípios insculpidos na CF, no ECA e, mais especificamente, o que prevêem o parágrafo primeiro do art. 11 do ECA e o art. 121 deste mesmo diploma legal, compreende-se que os adolescentes com transtorno mental em conflito com a lei e em privação de liberdade devem ter uma atenção diferenciada para o acesso aos serviços de saúde mental. Ademais, não se pode invocar o art. 112, § 3º do ECA (prevê que os adolescentes com doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições) para justificar a criação e manutenção desta UES, pois este dispositivo apenas ressalta a necessidade de um cuidado específico para tais adolescentes, não significando, portanto, a manicomialização dos mesmos. E como bem coloca Vicentin (2006), não se trata de desconsiderar as ações de saúde mental nos processos socioeducativos de adolescentes autores de ato infracional, mas, principalmente, de refutar a noção de periculosidade, considerando o adolescente como sujeito singular e as múltiplas causas para a ocorrência do ato infracional. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), por sua vez, também fez constar, dentre os princípios do atendimento socioeducativo, os da incolumidade, integridade física e segurança do adolescente (artigos 124 e 125 do ECA). Ademais, nas dimensões do referido atendimento, com referência às ações de atenção à saúde mental, consta que as entidades de atendimento socioeducativo deverão garantir a “inclusão em atendimento à saúde mental aos adolescentes que dele necessitem, preferencialmente, na rede SUS extrahospitalar”. Ademais, nos parâmetros socioeducativos do SINASE, encontra-se o eixo Saúde, no qual destacam-se, para a área de saúde mental, parcerias com as Secretarias de Saúde, a garantia do acesso à rede do SUS e o encaminhamento no caso de uso/dependência de drogas a partir de diagnóstico preciso e fundamentado. Sendo assim, a situação do município de São Paulo ora apresentada é totalmente contrária aos princípios do ECA, da Lei nº 10.216/2001, da Política Nacional de Saúde Mental e da Recomendação 01/2005 do Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil. Ao construir unidades de contenção para jovens, retoma-se a exclusão e o sequestro da cidadania e da vida das pessoas com transtornos mentais, colocando-se a serviço do encarceramento juvenil. 203 2.1.6. Recomendações - A rede pública ampliada de saúde mental para crianças e adolescentes deve operar sob o princípio da intersetorialidade e do cuidado territorial, estabelecendo estratégias de pactuação coletiva e de verificação permanente de sua efetividade. - As diretrizes para a execução de ações concretas na garantia do direito à saúde de crianças e adolescentes com transtorno mental devem observar os eixos da organização e expansão da rede de cuidados, formação e qualificação de recursos humanos, elaboração de estratégias de gestão e de política específica de financiamento, além da produção de conhecimento, informação qualificada e difusão da política de saúde mental. - Realizar pesquisas referentes às características sociodemográficas das crianças e adolescentes com transtornos mentais, com deficiência mental, com autismo e com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. - Realizar estudos epidemiológicos nas diferentes áreas geográficas para conhecer as taxas de transtornos mentais na população infanto-juvenil, o que auxilia no planejamento dos serviços de saúde oferecidos à comunidade e para apresentar evidências aos serviços e atender de forma adequada as necessidades da referida população das diferentes regiões do país. - Identificar os fatores de risco ou de proteção associados aos principais transtornos para servir de base para a indicação de tratamentos e para o desenvolvimento de programas de prevenção. - Realizar censos populacionais (destacando as condições clínicas e psicossociais da população institucionalizada) e mapeamento das instituições governamentais e não-governamentais para instrumentalizar a política de desinstitucionalização de crianças e adolescentes. - Produzir informações que auxiliem no diagnóstico de morbidade para o planejamento dos serviços de atenção e cuidado em saúde mental de crianças e adolescentes no SUS. - Aprimorar o sistema de registro de informações sobre os procedimentos de atenção à saúde a crianças e adolescentes, especialmente, em saúde mental. - Realizar estudos sobre a eficácia das técnicas terapêuticas utilizadas para o tratamento de adolescentes que fazem uso de álcool e outras drogas. - Formar os profissionais dos serviços de saúde mental para atender problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas na população infanto-juvenil. - Realizar ações de prevenção no tratamento de transtornos mentais na infância e na adolescência. - Realizar diagnóstico sobre os serviços de atenção em saúde mental infanto-juvenil. - Realizar estudos para orientar a organização do cuidado especializado na atenção básica, sobretudo de saúde mental infanto-juvenil. - Incluir ações em saúde mental na atenção básica. - Realizar atividades de educação permanente sobre saúde mental, em cooperação com as equipes da atenção básica. - Realizar trabalho intersetorial nas ações de cuidado em saúde mental infanto-juvenil, fazendo a integração dos serviços de natureza clínica (CAPSi com outros CAPS, ambulatórios, hospitais e PSF) e outras entidades sociais não clínicas que atuam junto ao grupo infanto-juvenil, como a escola, os órgãos da Justiça, conselhos tutelares, conselhos de direitos, Ministério Público, igreja, instituições de esporte e lazer. - Realizar análises, diagnósticos e ações articuladas para optar por encaminhamentos que impeçam qualquer forma de confinamento e separação da criança e do adolescente de seu meio. - Promover interlocução com os profissionais do Direito no sentido de que as suas ações estejam em conformidade com os princípios das ações de atenção e cuidado em saúde mental. 204 - Construir, na ação socioeducativa, as condições para o desenvolvimento pessoal e social do adolescente e informar o Sistema de Justiça sobre o percurso que o adolescente fez sem tecer valoração criminológica. - Melhorar a atenção primária à saúde no sistema socioeducativo (especialmente nas unidades de internação). - Ampliar e qualificar a inclusão dos jovens no cumprimento de medida socioeducativa na rede pública de serviços de saúde. 2.2. Deficiência 2.2.1. Marco legal e institucional A articulação do direito com a saúde reforça a idéia de que crianças e adolescentes não devem mais ser tratados como objetos de intervenção do Estado e sim através do paradigma da proteção integral. Segundo Lima (2002, p. 108-109), “neste encontro, mais um dos múltiplos possíveis em torno do interesse da dignidade humana, há muito para se trocar sobre o planejamento em saúde e a compreensão do interesse superior deste segmento populacional.” A Constituição Federal de 1988 significou um marco em relação aos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, na medida em que passou a tratá-los como sujeitos de direitos, reservando-lhes tratamento de respeito, resguardando a sua dignidade, impondo-lhes proteção e, no caso dos adolescentes com deficiência, ressaltando as questões da reabilitação e da acessibilidade. Assim, com a CF de 1988, inicia-se uma nova formulação teórica sobre o direito à saúde dos adolescentes com deficiência. No Brasil existem normas que garantem os direitos das crianças e dos adolescentes com deficiência. Cuida a Constituição Federal (CF), no seu art. 227, § 1º, inciso II, da promoção da integração social do adolescente com deficiência, através de treinamento para o trabalho e a convivência, com a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, bem como a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. Neste caso, é importante ressaltar que tal dispositivo não insere as ações de prevenção, referindo-se apenas ao adolescente, sem mencionar a criança com deficiência. Isso revela uma fragilidade no marco constitucional, que não traz a questão do diagnóstico precoce e é silente com relação às crianças com deficiência, que também merecem atenção diferenciada, como as ações de reabilitação e acessibilidade. Como bem assinala Pereira (2008, p. 168), “Ao assumirmos o ‘cuidado’ como valor jurídico e como denominador comum do sistema especial de proteção para a infância e juventude, devemos configurá-lo na dimensão da responsabilidade, pressupondo a clarificação de valores essenciais à convivência humana.” Ademais, vale lembrar que o treinamento para o trabalho previsto no mencionado inciso refere-se ao adolescente a partir dos 16 anos de idade, que constitui a idade laboral conforme a legislação brasileira. Além disso, a CF garante um benefício assistencial correspondente a um salário mínimo mensal às pessoas com deficiência que comprovem não possuir meios de prover à própria subsistência ou de tê-la provida por sua família, conforme prevê o artigo 203, inciso V. As crianças e adolescentes com deficiência também têm direito a este benefício, denominado Benefício de Prestação Continuada (BPC) e regulamentado pela Lei nº 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS), a qual prevê que para o recebimento do mesmo, além da deficiência, deve ficar demonstrada a total incapacidade para o trabalho e para a vida independente, além de exigir que a renda máxima per capita da família seja inferior a um quarto do salário mínimo. Trata-se de um benefício assistencial, pois não exige que o beneficiário tenha contribuído para o sistema previdenciário. Vale assinalar que o critério para recebimento do BPC referente à renda não representa carência econômica, mas miserabilidade. Segundo Fávero (2004), os requisitos previstos na LOAS não só contrariam a própria CF, como dificultam imensamente o recebimento do benefício. Como acentua esta autora, a LOAS deveria conter definições sobre o que significa 205 “ausência de meios de prover à subsistência”, porque esta é a condição imposta pela CF para o recebimento do benefício, porém, não o fez. Analisando o texto da referida Lei, no artigo 20, § 2º, define-se o termo “pessoa portadora de deficiência”, como se fosse necessária tal definição e a mesma já não constasse de outros diplomas legais. Então, para efeito deste benefício, definiu pessoa com deficiência como aquela incapacitada para o trabalho e para a vida independente, o que vai de encontro ao movimento mundial pela inclusão das pessoas com deficiência, justamente no momento em que se procura ressaltar as potencialidades e as capacidades dessas pessoas. Além disso, a CF não foi observada pela LOAS, tendo em vista que estabeleceu este benefício para a pessoa com deficiência e não para a pessoa incapaz, termos que não são sinônimos e não deveriam ser associados, pois pode estimular a não preparação dessas pessoas para a vida em sociedade. Fávero (2004) afirma que é isso que vem acontecendo na prática, em razão da forma determinada pela LOAS: quando o benefício é concedido para uma criança ou adolescente com deficiência, os pais acabam impedindo esses filhos de fazer tratamento, de estudarem e de se qualificarem, pois, do contrário, passarão a ser considerados “capazes” para alguma coisa, perdendo, assim, o direito ao benefício. Sendo assim, a CF, ao colocar como exigência apenas a ausência de meios de subsistência, destinou o benefício àquelas pessoas com deficiência que não têm acesso a qualquer fonte de renda, seja por suas limitações pessoais ou pelas limitações do ambiente externo. E a LOAS acaba transformando o BPC num instrumento de exclusão da cidadania e não da sua promoção, o que contraria o espírito da CF, que, em consonância com diversos documentos internacionais nesse sentido, contém dispositivos voltados à melhoria das condições de vida e à promoção da cidadania das pessoas com deficiência. Ressalte-se, ainda, que no que se refere à incapacidade para o trabalho, não cabe fazer a sua análise no tocante a crianças e adolescentes sem idade para o trabalho. Em caso de benefícios requeridos por crianças e adolescentes até 16 anos de idade, não se pode fazer essa verificação, bastando apenas que se verifique se a deficiência se enquadra nas definições legais. Este entendimento foi pautado pelo Ministério Público Federal, que, em 2001, determinou que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não avaliasse a incapacidade para o trabalho no caso de crianças e adolescentes que não atingiram a idade laboral, tendo em vista que essa incapacidade é presumida em face da tenra idade, bastando somente a verificação da existência da deficiência (BRASIL, 2007). No ECA, a proteção a este grupo social está prevista no artigo 11, que no seu § 1º determina que a população infanto-juvenil com deficiência receberá atendimento especializado e o § 2º prevê que o Poder Público deve fornecer gratuitamente aos que necessitarem medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, à habilitação ou à reabilitação. Outra lei importante nessa área é a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que assegura o pleno exercício dos direitos básicos das pessoas com deficiência, incluindo as áreas de educação, saúde, formação profissional e trabalho, recursos humanos, edificações (acessibilidade), além do direito ao lazer e à previdência social. No que se refere às medidas na área da saúde, no artigo 2º, parágrafo único, consta: “a promoção de ações preventivas, como as referentes ao planejamento familiar, ao aconselhamento genético, ao acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério, à nutrição da mulher e da criança, à identificação e ao controle da gestante e do feto de alto risco, à imunização, às doenças do metabolismo e seu diagnóstico e ao encaminhamento precoce de outras doenças causadoras de deficiência”. Nesse caso, verificam-se ações preventivas voltadas diretamente à garantia do direito à saúde das crianças. Registre-se, também, o Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamentou a referida lei, pormenorizando as ações e diretrizes referentes à pessoa com deficiência, especificamente em relação à saúde, ao acesso à educação, habilitação e reabilitação profissional, acesso ao trabalho, cultura, desporto, turismo e lazer. No âmbito internacional, registre-se a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, promulgada no Brasil 206 em 2001. Além desta, recentemente o Brasil ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o primeiro tratado com status constitucional da história do país, de acordo com a Emenda Constitucional nº 45/2004. É válido frisar que foi um processo longo, impulsionado, principalmente, pelos movimentos e organizações não governamentais de defesa dos direitos das pessoas com deficiência. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) é a primeira convenção sobre Direitos Humanos do século XXI, tendo sido adotada pela Assembléia Geral da ONU no dia 13 de dezembro de 2006 e aberta à assinatura dos Estados-partes em 30 de março de 2007. Ela entrou em vigência no dia 3 de maio de 2008, com a vigésima ratificação deste instrumento. Seus princípios prevêem a garantia da autonomia individual, a não-discriminação, a igualdade de oportunidades, o respeito à diferença, a acessibilidade, a participação, o respeito pelas capacidades em desenvolvimento de crianças com deficiência e a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade em todas as áreas da vida, incluindo o trabalho, a educação, os serviços de saúde, transporte e acesso à justiça. Segundo Dhanda (2008, p. 45), a CDPD fez o seguinte pelas pessoas com deficiência: “assinalou a mudança da assistência para os direitos; introduziu o idioma da igualdade para conceder o mesmo e o diferente a pessoas com deficiências; reconheceu a autonomia com apoio para pessoas com deficiências e, sobretudo, tornou a deficiência uma parte da experiência humana.” Ademais, cabe acrescentar que o artigo 7º da CDPD trata especificamente das crianças com deficiência, assinalando que a estas deve ser assegurado, dentre outras coisas, o pleno exercício de todos os direitos humanos em igualdade de oportunidades com as demais crianças. No que se refere à saúde, o artigo 25 da Convenção prevê que deverão ser propiciados serviços de saúde que as pessoas com deficiência necessitam especificamente por causa da sua deficiência, incluindo diagnóstico e intervenção precoces, bem como serviços projetados para reduzir ao máximo e prevenir deficiências adicionais, inclusive entre crianças. Outra questão importante é que esta Convenção deverá orientar, sobretudo, os casos em que o discurso da incapacidade das pessoas com deficiência é predominante no país, para que tais pessoas possam ter apoio para exercer suas capacidades. Como afirma Dhanda (2008, p. 50), “Ao estabelecer o paradigma da tomada de decisões com apoio, a CDPD declara de modo inequívoco que é possível obter apoio sem ser rebaixado ou diminuído,” ou seja, “a busca explícita de apoio torna possível o reconhecimento da interdependência humana, o qual não é uma declaração de incapacidade”. O Brasil assinou a CDPD e seu Protocolo Facultativo, sem reservas, em 30 de março de 2007, encaminhando-a ao Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal) para incorporá-la à legislação nacional com equivalência de emenda constitucional, prerrogativa dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, de acordo com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45 em 2004 ao §3º do artigo 5º da Constituição Federal172. A CDPD foi aprovada em dois turnos com quórum qualificado173 na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, passando a viger em 09 de julho de 2008, com a promulgação do Decreto Legislativo nº 186. Devido ao status constitucional, toda legislação elaborada a partir de agora, seja ela municipal, estadual ou federal, deve ser redigida à luz da nova CDPD. É importante destacar a participação ativa e política das pessoas com deficiência, familiares, militantes, entidades de defesa dos direitos humanos, representantes e membros da 172 Conforme CF, artigo 5º: “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” 173 Neste caso, o quórum qualificado refere-se ao quórum exigido para aprovar emendas à Constituição, ou seja, é necessária a aprovação em dois turnos, devendo a proposta de emenda obter o voto de três quintos no mínimo do número total de deputados da Câmara em cada turno da votação. Após a aprovação, a proposta é encaminhada ao Senado, e também deverá ser aprovada em dois turnos, com votação favorável mínima de três quintos dos senadores em cada um dos turnos. 207 Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) e do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE) na Câmara dos Deputados, ficando demonstrada a organização do movimento de defesa dos direitos humanos dos cidadãos e cidadãs com deficiência no Brasil. Para esta mobilização, o movimento social das pessoas com deficiência uniu-se e organizou-se desde o começo do mês de abril de 2007, promovendo mobilizações e enviando mensagens aos parlamentares, exercendo, assim, a sua cidadania. O CONADE, composto por representantes de organizações governamentais e da sociedade civil, fez uma convocação para a organização de atos por todo o país para lembrar a importância da Convenção e da ratificação da mesma com quórum qualificado. Foi realizada a campanha “Assino Inclusão”, com coleta de adesões de apoio à Convenção, em locais públicos no Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Amazonas e Distrito Federal, dentre outros Estados. Além disso, listas de discussão na internet foram usadas para multiplicar o número de mensagens e telefonemas enviados aos congressistas, de representantes dos diversos tipos de deficiência para pedir pressa na votação. Além disso, as Conferências Nacionais de Educação Básica e da Juventude, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Federal de Psicologia, o Grupo Tortura Nunca Mais, dentre muitas outras entidades e movimentos, declararam seu apoio à CDPD. Vale lembrar também que este processo amplo de mobilização refletiu o novo paradigma para a participação popular trazido pela CDPD, tendo em vista a forma como se deram as negociações da mesma, bem como o texto que surgiu delas, com a militância de pessoas com deficiência e suas organizações em diversos países, como as entidades da sociedade civil brasileira, que tiveram participação significativa no processo de discussão que resultou na aprovação da Convenção (MISEREOR, et al, 2007). Diante do exposto, como um dos países membros da ONU que já possuem legislação específica voltada às pessoas com deficiência, o Brasil precisa, a partir de agora, fazer com que a Convenção traga resultados imediatos para este grupo social. A atenção às pessoas com deficiência no Brasil surgiu com o caráter de atendimento elementar, nas áreas de educação e de saúde, “desenvolvida em instituições filantrópicas, evoluindo depois para o atendimento de reabilitação, sem assumir, contudo, uma abordagem integradora desse processo e preservando, na maioria dos casos, uma postura assistencialista” (BRASIL, 2002d, p. 8). A superação do caráter filantrópico, traço do paradigma da situação irregular, para o de política pública, constante do paradigma da proteção integral, envolve diversos atores e abrange amplo conteúdo normativo, como afirma Lima (2002). Para esta autora, após a CF e o ECA, não há como pensar em garantia de qualquer direito do segmento infanto-juvenil apenas com os atores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Destaca, assim, a atuação da sociedade civil através das novas institucionalidades democráticas, prevista na dimensão participativa da democracia nacional, que estabeleceu uma nova agenda para a infância. De acordo com Lima (2002, p. 107), “A mudança de fundamento de base assistencialista para a dimensão de direito subjetivo é essencial também na área do direito à saúde, pois o serviço, o equipamento, o programa de integração psico-pedagógica, a urbanização de uma área de lazer, a limpeza da praia, as atividades de estimulação precoce ou de prevenção à violência, entre diversas outras, são, todas elas, conectadas com o direito de cada um individualmente e do segmento populacional infanto-juvenil como um todo em face das obrigações do Estado em pólo oposto. E o que era de obrigação exclusiva da União passou a ser executado pelos Estados e/ou Municípios, conforme a magnitude e a complexidade”. A Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência, instituída pela Portaria GM/MS nº 1.060/2002, tem como propósito “reabilitar a pessoa com deficiência na sua capacidade funcional e desempenho humano – de modo a contribuir para a sua inclusão plena em todas as 208 esferas da vida social – e proteger a saúde deste segmento populacional, bem como prevenir agravos que determinem o aparecimento de deficiências” (BRASIL, 2002d). Estabelece as diretrizes que deverão orientar a definição ou readequação dos planos, programas, projetos e atividades voltados à sua operacionalização. Dentre as suas diretrizes, esta Política Nacional trata da prevenção de deficiências, determinando que “a responsabilidade fundamental de prevenir as condições que conduzem ao aparecimento de incapacidades e de fazer frente às suas conseqüências recai, em toda parte, sobre os governos.” De acordo com a mesma, as ações de saúde para a pessoa com deficiência terão como eixos fundamentais “o diagnóstico e o encaminhamento corretos dos procedimentos referentes às deficiências, imprescindíveis para prevenir e mesmo inibir ou minimizar as limitações e desvantagens delas decorrentes.” (BRASIL, 2002d, p. 11). Assim, prevê que o diagnóstico da deficiência incluirá a doença e suas causas, bem como o grau de extensão da lesão e pontua que o “diagnóstico presuntivo da deficiência precocemente formulado por profissionais que atuam principalmente nos serviços de saúde de menor complexidade será fundamental na orientação da família para a busca de atenção necessária no local adequado.” (BRASIL, 2002d, p. 12). O documento ressalta a importância da implementação de estratégias de prevenção para a redução da incidência de deficiências e das incapacidades delas decorrentes, afirmando que “as medidas preventivas devem trazer ações de natureza informativa e educativa dirigidas à população, relacionadas ao atendimento prénatal adequado e à detecção precoce de deficiências, bem como de conscientização e formação de recursos humanos qualificados para a prestação de uma atenção eficiente neste contexto.” (BRASIL, 2002d, p. 13). Ademais, preleciona que deverá ser promovido o acesso da população aos exames mais específicos para detecção de doenças genéticas que determinam deficiência, como: fenilcetonúria, hemoglobinopatias, hipertiroidismo congênito, entre outras. Além disso, também deverão ser promovidos serviços de genética clínica para que se proceda a um adequado aconselhamento genético às famílias. Quanto ao nível de atenção básica, a Política prevê que os serviços deverão estar qualificados a desenvolver “ações de prevenção primária e secundária – como, por exemplo, controle da gestante de alto-risco, atenção à desnutrição –, detecção precoce de fatores de riscos – como controle da hipertensão arterial e combate ao tabagismo (...)” (BRASIL, 2002d, p. 14). No que se refere à ampliação e ao fortalecimento dos mecanismos de informação, assinala que deverão ser criados mecanismos específicos para produção de informação a respeito de deficiências e incapacidades no âmbito do SUS, adequando-se às normas que disciplinam a criação de fontes de dados e ajustando-se às condições propostas nos fundamentos da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA). E destaca (BRASIL, 2002d, p. 13): “O monitoramento permanente da ocorrência de deficiências e incapacidades, assim como as análises de prevalência e tendências, constituirá prioridade do SUS nas três esferas de governo. Tais iniciativas visarão o provimento oportuno de informações para a tomada de decisões quanto à adoção das medidas preventivas e à organização dos serviços especializados de assistência reabilitadora, além de subsídios para a identificação de linhas de pesquisa e a organização de programas de capacitação de recursos humanos”. O documento prevê, ainda, a realização de estudos epidemiológicos e clínicos, com periodicidade e abrangência adequadas, para produzir informações sobre a ocorrência de deficiências e incapacidades. No tocante aos censos demográficos, consta que deverá buscar-se, através dos órgãos competentes, o estabelecimento de articulação com o IBGE, “visando o ajuste dos quesitos específicos das planilhas censitárias, favorecendo, assim, a adequada e real apuração dos casos de deficiências e incapacidades existentes na população, bem como o detalhamento 209 necessário à tomada de decisões dos gestores do SUS”. Acrescenta que “promover-se-á a compatibilização de quesitos que permitam a extração de dados e informações específicos das Pesquisas Nacionais por Amostragem Domiciliar” (BRASIL, 2002d, p. 14). Por fim, cabe salientar que, nesse âmbito, o mencionado documento assevera que o “cruzamento das informações tornadas disponíveis pelas diversas fontes de dados será essencial para o adequado equacionamento das questões relativas à saúde da pessoa portadora de deficiência. Continuamente, estudos analíticos serão promovidos mediante a superposição crítica dos resultados dos censos periódicos, das pesquisas censitárias domiciliares anuais, dos estudos epidemiológicos e clínicos, dos cadastramentos e dos levantamentos de infra-estrutura.” (BRASIL, 2002d, p. 14). 2.2.2. Situação De acordo com o Censo Demográfico realizado pelo IBGE – amplo levantamento estatístico realizado pelo Governo Federal a cada dez anos – no ano 2000, o Brasil possuía 169.590.693 habitantes, dos quais 50,8 % pertenciam ao sexo feminino e 49,2% ao masculino. A população brasileira com idade entre 0 e 17 anos era de 61 milhões de pessoas, o que significa que aproximadamente 37% da população brasileira era formada por crianças e adolescentes. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) para o ano de 2005 mostram que “dos 184,3 milhões de brasileiros/as, 21,3 milhões (11,6%) têm de zero a seis anos; 27,4 milhões (14,9%) têm de sete a catorze anos; e 10,6 milhões (5,8%) têm de quinze a dezessete anos.” (MISEREOR, et al., 2007, p. 123), ou seja, em 2005, no Brasil havia 59,3 milhões de crianças e adolescentes. Em 2007, este grupo somava aproximadamente 76.201.963, com base nas informações do DATASUS, a partir de estimativas realizadas pelo IBGE174. Estimativas da ONU apontam que 10% da população brasileira possui algum tipo de deficiência. Segundo o Censo do IBGE175 em 2000, cerca de 14,5% da população brasileira são pessoas com deficiência, o que corresponde a cerca de 24,5 milhões de pessoas. Cerca de 17,4% que vivem no meio rural apresentam alguma deficiência e nas áreas urbanas essa incidência é de 14,33% (IBGE, 2000). O Censo 2000 registra, ainda, a existência de 2.850.604 crianças e adolescentes com alguma deficiência (sendo que 1.602.606 destas estão na faixa etária dos 7 aos 14 anos), o que corresponde a aproximadamente 4,7% da população infantojuvenil à época. De acordo com dados de 1995 da Organização Mundial da Saúde (OMS), dentre as causas da deficiência, os transtornos congênitos e perinatais atingem o índice de 16,6%, que podem ser consequência da falta de assistência às mulheres na gravidez. Cerca de 45% das causas de deficiência mental decorrem de causas essencialmente orgânicas, que incidem precocemente, nos períodos pré e perinatal (NERI, et al, 2003). Tendo em vista que uma em cada dez pessoas tem algum tipo de deficiência, a prevenção deve interessar a todos os cidadãos. O conhecimento da prevalência de doenças e de deficiências potencialmente incapacitantes configura subsídio essencial para o desenvolvimento de ações de prevenção e para a adoção de medidas destinadas a reduzir ou eliminar as causas de deficiências. As medidas preventivas são fundamentais para a redução da incidência de deficiência e incapacidades, pois cerca de 70% dos casos de deficiência são evitáveis ou atenuáveis (BRASIL, 2006a). As ações preventivas em relação à deficiência são a primeira garantia prevista na Lei nº 7.853/1989 e têm como objetivo evitar a ocorrência da deficiência ou o seu agravamento. De acordo com o Decreto nº 3.298/1999, “prevenção compreende ações e 174 População residente no Brasil na faixa etária de 0 a 19 anos. 175 Registre-se que os resultados do Censo de 1991 indicam um percentual de 1,14% de pessoas com deficiências na população brasileira. Nesse Censo, foram consideradas apenas as pessoas que responderam de forma positiva aos quesitos de maior grau de deficiência. 210 medidas orientadas a evitar as causas das deficiências que possam ocasionar incapacidade e as destinadas a evitar sua progressão ou derivação em outras incapacidades” (BRASIL, 1999). Fávero (2004) destaca algumas ações preventivas: planejamento familiar; aconselhamento genético; acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério; nutrição da mulher e da criança; imunização às doenças do metabolismo e seu diagnóstico; encaminhamento precoce de outras doenças causadoras de deficiência; desenvolvimento de programas especiais de prevenção de acidente do trabalho e de trânsito e de tratamento adequado de suas vítimas. Ressaltem-se, ainda, as ações referentes à identificação e ao controle da gestante e do feto de alto risco e à detecção precoce das doenças crônico-degenerativas e as outras potencialmente incapacitantes. Para Lima (2002, p. 188), na mesma linha de caráter preventivo, identifica-se que esta etapa de cuidados do binômio materno-infantil constitui-se “a condição de ‘ponto de partida’ na garantia do direito à saúde da criança.” E acrescenta que “A ênfase na concepção de direito à saúde com caráter preventivo tem uma natureza diversa da concepção de caráter promocional.” No que tange às ações relativas ao acompanhamento da gestante, as medidas preventivas devem ser adotadas no período pré-concepcional (antes da gravidez), pré-natal (durante a gestação), perinatal (no momento do parto) e pós-natal (após o nascimento). Neste último caso, ainda na maternidade, a criança recém nascida deve fazer o teste do pezinho, através do qual é possível detectar a existência de duas doenças congênitas: o hipotireoidismo congênito e a fenilcetonúria, que é uma alteração no metabolismo. Tais doenças não causam nenhum problema se diagnosticadas e tratadas precocemente. Sendo assim, o teste do pezinho jamais poderá ser dispensado (PEREIRA, 2008). No Brasil, as políticas oficiais de diagnóstico precoce ainda são incipientes, tendo maior visibilidade o Programa Nacional de Triagem Neonatal, o qual prevê a obrigatoriedade de realização do Teste do Pezinho. Quanto aos demais tipos de exames para detectar precocemente deficiências, como a auditiva e a visual (teste da orelhinha e teste do olhinho ou triagem visual), ainda não estão contemplados numa política nacional, como se verá a seguir. Quando as crianças não são submetidas a programas de Triagem Neonatal e, conseqüentemente, não são tratadas precocemente, o crescimento e o desenvolvimento mental ficam seriamente comprometidos. Já as crianças que realizam diagnóstico precoce através dos programas de Triagem Neonatal não apresentam qualquer sintomatologia clínica, desde que a terapia de reposição hormonal seja iniciada precocemente (BRASIL, 2002f). Para alcançar índices menores de pessoas com deficiência, deve-se realizar o Teste do Pezinho, que detecta duas doenças: o hipotireoidismo congênito, que afeta 1 em cada 3.500 recémnascidos, e a fenilcetonúria, que afeta 1 em cada 10 a 12 mil. Se não tratadas a tempo, tais doenças podem ocasionar deficiência mental. Sendo assim, o diagnóstico precoce é essencial para que a criança se desenvolva, visto que é implementado o tratamento preventivo. A Triagem Neonatal (Teste do Pezinho) foi incorporada ao SUS em 1992, através da Portaria GM/MS nº 22, de 15 de Janeiro de 1992, com normas que determinavam a obrigatoriedade do teste em todos os recém-nascidos vivos e incluía a avaliação para fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito. O referido procedimento foi incluído na tabela SIA/SUS 176, na seção de Patologia Clínica, podendo ser cobrado por todos os laboratórios credenciados que o realizassem (BRASIL, 2002f). No ano de 2001, o Ministério da Saúde promoveu a reavaliação da Triagem Neonatal no SUS, culminando na publicação da Portaria GM/MS nº 822, de 6 de junho de 2001, que criou o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN). De acordo com o Manual de Normas Técnicas e Rotinas Operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal (BRASIL, 2002f, p. 7): 176 Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde. 211 “Dentre os principais objetivos do programa, destacam-se a ampliação da gama de patologias triadas (Fenilcetonúria, Hipotireoidismo Congênito, Anemia Falciforme e outras Hemoglobinopatias e Fibrose Cística), busca da cobertura de 100% dos nascidos vivos e a definição de uma abordagem mais ampla da questão, determinando que o processo de Triagem Neonatal envolva várias etapas como: a realização do exame laboratorial, a busca ativa dos casos suspeitos, a confirmação diagnóstica, o tratamento e o acompanhamento multidisciplinar especializado dos pacientes. Dessa forma, o PNTN cria o mecanismo para que seja alcançada a meta principal, que é a prevenção e redução da morbimortalidade provocada pelas patologias triadas”. Porém, como assinala a Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal177 (SBTN), trata-se de um recurso sofisticado e ainda bastante caro, não disponível na rede pública de saúde. Informa, ainda, que todos os estados brasileiros estão habilitados no PNTN com pelo menos um serviço de referência credenciado pelo Ministério da Saúde. Tais serviços, denominados Serviços de Referência em Triagem Neonatal (SRTN), são credenciados pelo Governo para realizar o Teste do Pezinho, dentre outras ações a ele pertinentes, e, até o ano de 2007, totalizavam 34 núcleos operacionais178. Vale lembrar que boa parte destes serviços é constituída por instituições não governamentais, de cunho filantrópico, como é o caso das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), ou seja, a rede de coleta para a Triagem Neonatal é predominantemente terceirizada. Acerca do Sistema de Registro e Informação, previsto no PNTN como uma importante ferramenta para montar um banco de dados com todas as informações relevantes das crianças, orientar o trabalho dos profissionais nessa área e permitir o registro de todas as informações da maneira mais completa e automática possível (BRASIL, 2002f), o mesmo ainda não funciona devidamente, o que denota uma precariedade do Estado brasileiro na criação e manutenção de sistemas de informações para o planejamento das políticas públicas. Nesse sentido, é importante ressaltar que no maior sistema de informações sobre atendimento em saúde do Brasil, o DATASUS, não foi possível encontrar informações acerca do número de crianças submetidas ao testes de triagem neonatal. Neste banco de dados, há registros do número de exames relacionados à triagem neonatal realizados anualmente em cada Estado do país, porém, não permite saber a quantidade de crianças submetidas aos mesmo, tendo em vista que uma mesma criança pode ter sido submetida a mais de um procedimento. No que se refere à legislação sobre diagnóstico precoce, é importante registrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê no seu artigo 10, inciso III, que “Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e particulares, são obrigados a proceder a exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido, bem como prestar orientação aos pais”. Com isso, percebe-se a tentativa de formalizar a obrigatoriedade dos testes em todo o país. Com a publicação da Portaria GM/MS nº 22, de 15 de janeiro de 1992, pelo Ministério da Saúde, já citada acima, há um reforço à legislação federal nessa área, na qual fica determinado que a Fenilcetonúria e o Hipotireoidismo Congênito serão as patologias a serem triadas: “Torna obrigatória a inclusão no Planejamento das Ações de Saúde dos Estados, Municípios e Distrito Federal, públicos e particulares contratados em caráter complementar, do Programa de Diagnóstico Precoce de Fenilcetonúria e Hipotireoidismo Congênito”. Porém, de acordo com Moraes, Magna e Marques-de-Faria (2007, p. 404), “tais exames não estavam disponíveis em todas as regiões e, na maioria delas, também não havia condições para confirmação diagnóstica, avaliação clínica, tratamento, orientações aos familiares e aconselhamento genético.” 177 Disponível em: <http://www.sbtn.org.br/>. Acesso em: 15 jul. 2008. 178 Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/INDICADORES_TRIAGEM_NEONATAL.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2008. 212 Assim, em 2001, foi instituído o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) no âmbito do SUS, através da Portaria GM/MS nº 822, de 6 de junho de 2001, também já mencionado acima. Este Programa tem como objetivos garantir diagnóstico precoce, tratamento e acompanhamento a todos os recém-nascidos, além de ampliar o programa nacional anterior, ao introduzir a pesquisa da doença falciforme e outras hemoglobinopatias e da fibrose cística (BRASIL, 2001). Observando os instrumentos federais citados acima, a legislação nacional existente sobre diagnóstico precoce diz respeito, basicamente, à Triagem Neonatal, através das diversas Portarias publicadas pelo Ministério da Saúde, de 2001 a 2006179. Acerca das legislações estaduais, segundo o “Levantamento Epidemiológico Brasileiro da Triagem Neonatal”180, realizado em 2001 e 2002 pela SBTN, e apresentado no II Congresso Brasileiro de Triagem Neonatal, dos estados que responderam aos formulários da pesquisa, 14 possuíam legislação estadual sobre a Triagem Neonatal, enquanto 5 ainda não possuíam. Ao contrário do Teste do Pezinho, que é conhecido nacionalmente (inclusive, por ser obrigatório), os Testes da Orelhinha e do Olhinho são muito menos conhecidos, até porque são realizados apenas em alguns Estados e Municípios do país. No que se refere à deficiência auditiva, quando não há a identificação precoce (o diagnóstico audiológico antes dos 12 meses de idade), seguida pela intervenção imediata e adequada, será difícil para muitas crianças adquirirem habilidades fundamentais de linguagem, sociais e cognitivas (ISAAC, MANFREDI, 2005). Quando a identificação e a intervenção precoces ocorrem, crianças com deficiência auditiva obtêm grande progresso em diversos âmbitos da sua vida, como na escola e no convívio social. A Triagem Auditiva Neonatal ou Teste da Orelhinha, como também é conhecido, constitui-se um programa de avaliação da audição em recém nascidos para diagnóstico precoce de perda auditiva, tendo em vista que sua incidência, na população geral, é de 1 a 2 por 1.000 nascidos vivos. Apesar da sua eficácia, o Teste da Orelhinha, ainda não é realizado em larga escala. Apenas alguns municípios brasileiros incluíram o tema na pauta municipal obrigando a realização do teste, como é o caso de alguns municípios do Estado de São Paulo. Isaac e Manfredi (2005) afirmam que é essencial que todos os bebês recebam testes de acompanhamento para confirmar ou excluir uma deficiência auditiva e que esse tem sido um objetivo difícil de ser atingido. Porém, para elas (ISAAC, MANFREDI, 2005, p. 242), “fica evidente que, apesar do consenso a respeito da importância do diagnóstico precoce para o melhor desenvolvimento da linguagem, cognição e socialização da criança portadora de deficiência auditiva, na prática não se consegue atingi-lo de forma sistematizada.”. Embora os gestores públicos ressaltem que a dificuldade em realizar o Teste da Orelhinha decorra do alto custo do equipamento (em torno de R$ 30.000,00), profissionais especialistas nessa área asseveram que na hipótese de serem implementadas as outras fases do processo de tratamento das pessoas com deficiência (diagnóstico, protetização e reabilitação), a Triagem Auditiva possui uma grande vantagem sobre a triagem de risco: “ela é menos custosa para a sociedade, pois os recém-nascidos devidamente tratados conseguem ouvir, desenvolver a fala e não necessitam serviços educativos especiais para surdos.”181. Ao detectar a deficiência precocemente, havendo a adaptação ainda quando criança, os custos para o SUS serão menores. A situação em relação a Triagem Auditiva Neonatal não é claramente conhecida apesar das pesquisa realizadas pelo Grupo de Apoio a Triagem Auditiva Neonatal Universal (GATANU). Fundado em 1998, o GATANU busca cadastrar os serviços das maternidades e clínicas do país 179 Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=24991&janela=1>. Acesso em: 15 jul. 2008. 180 Disponível em: <http://www.sbtn.org.br/>. Acesso em: 15 jul. 2008. 181 Disponível em: <http://www.gatanu.org/atualidades/06-p19-23-Depistage-OK.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2008. 213 que implementam um tipo de programa de triagem auditiva neonatal. De acordo com o recenseamento do GATANU realizado em 2005, o Brasil182 “contava com 237 serviços em 22 estados, número em forte crescimento desde 1998 quando haviam sido registrados 5 serviços em 4 estados. Para se ter uma idéia, os serviços listados em 2005 representavam aproximadamente 4% das maternidades brasileiras, a maioria sendo instituições privadas com mais equipamentos e melhor preparadas que os hospitais públicos”. Este Grupo registra que mesmo sem o Estado Brasileiro aplicar a triagem a todos os recémnascidos com indicadores de risco para perda auditiva, não se pode negar que a situação está melhorando, por conta da atuação dos profissionais, por meio de grupos e sociedades científicas e da publicação de leis municipais e estaduais. Em termos de legislação, o que existe nessa área em âmbito nacional são algumas portarias publicadas pelo Ministério da Saúde, das quais destacam-se: a Portaria GM/MS nº 2.073, de 28 de setembro de 2004, que institui a Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva; e a Portaria nº 587, de 07 de outubro de 2004, que regulamenta os procedimentos e o acompanhamento de pacientes com deficiência auditiva, definindo as Ações de Saúde Auditiva na Atenção Básica, os Serviços de Atenção à Saúde Auditiva na Média Complexidade e os Serviços de Atenção à Saúde Auditiva na Alta Complexidade. Esta última prevê que o Serviço de Atenção à Saúde Auditiva na Média Complexidade deve oferecer triagem e monitoramento da audição de neonatos. Com esta Portaria, o Teste da Orelhinha passou a constar na tabela de procedimentos do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS. A professora da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e integrante do GATANU, a fonoaudióloga Tânia Tochetto passou a pesquisar os textos legislativos que tratam da triagem auditiva neonatal183. Até outubro de 2007, esta profissional encontrou 24 leis municipais e 7 estaduais que impõem a triagem (entre elas, 15 leis municipais e 4 estaduais tratam da Triagem Auditiva Neonatal). Ainda nessa seara, registre-se que em 2005, o Projeto de Lei nº 6.951/2002, que previa a obrigatoriedade de realização do Teste da Orelhinha em todas as maternidades e serviços hospitalares do SUS foi rejeitado pela Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados184. Quanto à deficiência visual, ressalte-se que pelo menos 60% das causas de cegueira ou de grave seqüela visual infantil podem ser prevenidos ou tratáveis se fossem detectadas precocemente, antes de se agravarem. Segundo o Instituto VER 185, organização não governamental brasileira que visa a prevenção da cegueira infantil e atende crianças com deficiência visual no Estado do Rio Grande do Sul, na maioria dos serviços de neonatologia do país, os olhos dos recém-nascidos não são adequadamente examinados. Daí a importância do chamado Teste do Olhinho, conforme se verá a seguir. De acordo com informações da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica (SBOP)186, “Estima-se que existam 400.000 crianças cegas no mundo, sendo que 94% delas encontram-se nos “países em desenvolvimento”. Aproximadamente, uma criança fica cega a cada minuto no planeta. Devido à alta expectativa de vida de uma criança cega, atualmente, a cegueira infantil é responsável por 30% do total de gastos com cegueira no mundo”. 182 Idem. 183 Idem. 184 Disponível em: <http://www.direito2.com.br/acam/2005/jun/6/comissao-rejeita-obrigatoriedade-do-teste-daorelhinha>. Acesso em: 20 jul. 2008. 185 Disponível em: <http://www.institutover.org.br/?artigos,2>. Acesso em: 20 jul. 2008. 186 Disponível em: <http://www.sbop.com.br/>. Acesso em: 24 jul. 2008. 214 Ainda segundo a SBOP187, no Brasil, “estima-se que existam entre 25.000 a 30.000 crianças cegas, aproximadamente 150 a 180 crianças cegas para cada milhão de habitantes, e 600 a 720 crianças com visão subnormal para cada milhão de habitantes.” Outras informações, disponibilizadas pela Universidade Federal do Ceará através do Programa de Educação Tutorial de Medicina, dão conta desse quadro188: “quando se fala em pessoas com idade até 15 anos que não possuem capacidade de enxergar, o número chega perto de 32 mil, o que representa 0,6/1000 crianças. O universo de crianças entre 0 e 15 anos no País é alto: 54 milhões, ou cerca de 30% dos 180 milhões de habitantes. Isso sem falar nos quase 10% da população infantil – cerca de 5,4 milhões –, que têm algum tipo de problema de acuidade visual. A justificativa para números tão altos está na falta de um exame detalhado dos olhos do bebê, logo após o nascimento”. O Teste do Olhinho (ou teste do reflexo vermelho) “é um exame que deve ser realizado rotineiramente em bebês na primeira semana de vida, preferencialmente antes da alta da maternidade, e que pode detectar e prevenir diversas patologias oculares, assim como o agravamento dessas alterações, como uma cegueira irreversível” 189. Este teste previne e diagnostica doenças como a retinopatia da prematuridade, catarata congênita, glaucoma, retinoblastoma, infecções, traumas de parto e a cegueira. De acordo com dados estatísticos, essas alterações atingem cerca de 3% dos bebês em todo o mundo. Além disso, segundo a SBOP, mais da metade das crianças recém-nascidas só tem o problema descoberto quando estão cegas ou quase cegas para o resto da vida, e esta organização prevê cerca de 710 novos casos de cegueira por ano190. É válido ressaltar que a obrigatoriedade de realizar o Teste do Olhinho na sala de parto existe apenas em alguns poucos Estados e Municípios do país, como é o caso dos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, que possuem uma lei específica prevendo a realização desse exame antes dos recém-nascidos receberem alta. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a SBOP pleiteiam que o Ministério da Saúde recomende a realização do teste em todo o território nacional. Para oftalmologistas, a reivindicação das entidades é justa, pois o Teste do Olhinho pode resguardar muitas crianças da cegueira ou do desenvolvimento de doenças oculares 191. Além disso, o Instituto VER e a SBOP vêm trabalhando para a criação de uma Lei Federal que torne obrigatória a realização do Teste do Olhinho em todo o país. Por fim, é importante ressaltar que em 07 de maio de 2008 foi realizado em Fortaleza-CE, o Seminário Estadual do Teste do Olhinho, que teve como objetivo principal alertar para a importância deste exame no diagnóstico precoce das doenças oculares, visto que a prevenção à cegueira infantil é uma das cinco prioridades da Organização Mudial da Saúde (OMS) e a catarata congênita é uma das principais causas de cegueira tratável em crianças na América Latina192. Diante do exposto, observa-se que o único programa que tem abrangência nacional, financiado com recursos federais, é o Teste do Pezinho. Os outros testes existentes para diagnosticar precocemente deficiências auditivas e visuais em crianças, o Teste da Orelhinha e o Teste do Olhinho, são realizados obrigatoriamente apenas em alguns municípios e estados do país, não configurando, portanto, uma política nacional. 187 Disponível em: <http://www.sbop.com.br/>. Acesso em: 24 jul. 2008. 188 Disponível em: <http://www.fisfar.ufc.br/petmedicina/index.php? option=com_content&task=view&id=109&Itemid=2>. Acesso em: 20 jul. 2008. 189 Disponível em: <http://guiadobebe.uol.com.br/recemnasc/teste_do_olhinho.htm>. Acesso em: 20 jul. 2008. 190 Disponível em: <http://www.sbop.com.br/>. Acesso em: 24 jul. 2008. 191 Disponível em: <http://www.fisfar.ufc.br/petmedicina/index.php? option=com_content&task=view&id=109&Itemid=2>. Acesso em: 20 jul. 2008. 192 Disponível em: <http://www.sbop.com.br/sbop/site/interna.asp?campo=164&secao_id=6>. Acesso em: 24 jul. 2008. 215 Uma outra questão que precisa ser estudada é a existência de bancos de dados relacionados às pessoas com deficiência no Brasil, diante da necessidade de conhecer as características e necessidades deste grupo social, para a formulação e implementação de políticas públicas para a garantia dos seus direitos, conforme preconiza, inclusive, a CDPD, no seu artigo 31, que versa sobre estatísticas e coleta de dados. No Brasil, até a década de 1990, não existiam informações oficiais sobre pessoas com deficiência. Pela primeira vez, o IBGE inseriu o tema no Censo de 1991, melhorando a forma de coleta dos dados no Censo de 2000. Assim, os dados disponíveis atualmente são os do Censo de 2000, demonstrando que este tema ainda não é amplamente tratado em outras formas de produção de informações pelos organismos oficiais (MISEREOR, et al, 2007), conforme se verá a seguir. O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), lançado em 1996 pelo Governo Brasileiro, dentre as propostas de ações governamentais voltadas às pessoas com deficiência, previu como ação de longo prazo: “Conceber sistemas de informações com a definição de bases de dados relativamente a pessoas portadores de deficiência, à legislação, ajudas técnicas, bibliografia e capacitação na área de reabilitação e atendimento.” Além disso, em 1999, com a publicação do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, foi criado o Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência (SICORDE), previsto no seu art. 55: “Art. 55. Fica instituído, no âmbito da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, o Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência, sob a responsabilidade da CORDE, com a finalidade de criar e manter bases de dados, reunir e difundir informação sobre a situação das pessoas portadoras de deficiência e fomentar a pesquisa e o estudo de todos os aspectos que afetem a vida dessas pessoas. Parágrafo único. Serão produzidas, periodicamente, estatísticas e informações, podendo esta atividade realizar-se conjuntamente com os censos nacionais, pesquisas nacionais, regionais e locais, em estreita colaboração com universidades, institutos de pesquisa e organizações para pessoas portadoras de deficiência”. Com este Decreto, o SICORDE assumiu o papel catalizador e disseminador de informações sobre políticas e ações na área da deficiência 193. Para a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, o SICORDE, “além de responder à proposta de ação governamental do PNDH, que recomenda a criação de sistemas de informações na forma de Base de Dados concernentes a pessoas com deficiência, vem resgatar compromissos assumidos pela Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), em 1993, em nome do Governo Brasileiro, com a Red Iberoamericana de Cooperación Técnica para el Desarollo de Políticas de Atención a Personas Mayores y Personas com Discapacidad”194. Ademais, vale frisar que em 2000 foi lançada nova versão do PNDH, no qual constam diversas ações visando garantir direitos das pessoas com deficiência, como a de nº 271: “estender a estados e municípios o Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência – SICORDE”. Atualmente, o Brasil conta com o Sistema Nacional de Informações da Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (SICORDE) da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). Porém, mesmo com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU), da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e do Ministério das Relações Exteriores, o SICORDE ainda não se constitui enquanto base de dados, principalmente no que se refere aos dados estatísticos, conforme previsto no PNDH. Constam no SICORDE195, apenas, os dados referentes aos dois censos 193 Conforme sítio eletrônico da Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/sicorde/sicorde.asp#conteudo>. Acesso em: 26 abr. 2008. 194 Idem. 195 Idem. 216 realizados no Brasil, o de 1991 e o de 2000, além de uma pesquisa intitulada “Relatório sobre Prevalência de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens”. A Coordenadora Geral substituta da CORDE, em e-mail enviado à ANCED em junho de 2008, informa que a referida Coordenação não possui dados relativos a pessoas com deficiência, principalmente crianças. Segundo ela, a CORDE tem uma base de dados de instituições de e para pessoas com deficiência que se cadastram voluntariamente. Quanto a dados estatísticos, o que dispõem são os dados do Censo 2000, disponibilizados pelo IBGE, e ela acrescenta que tem trabalhado junto a este instituto no sentido de aprimorar/ampliar a informação no próximo censo, tanto na área da pessoa com deficiência como na área de Direitos Humanos. Além disso, é importante destacar que na Agenda Social do Presidente 196, na área da criança e do adolescente, não consta nenhuma medida para criação de um sistema de informações desse público com deficiência, para conhecer a sua realidade atual e para a elaboração de políticas públicas nesta seara. Diante deste quadro, pode-se afirmar que as ações nessa área precisam de estudos mais consistentes e atualizados, tendo em vista que um sistema de informações específico e atualizado permite identificar o público a ser alcançado pelas políticas públicas de acordo com as suas diferentes necessidades e potencialidades. Outra questão importante na área da proteção dos direitos das crianças e adolescentes com deficiência refere-se à assistência social, tomando como objeto de análise a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) a este grupo social, conforme já citado acima. Este benefício está previsto no artigo 20 da Lei nº 8.742/1993 (LOAS) e regulamentado pelo Decreto nº 1.744/1995. As normas para sua obtenção estão estabelecidas na Resolução nº 435/1997 do INSS. O BPC é o segundo maior programa não contributivo de transferências de renda do Brasil, sendo menor apenas do que o Bolsa Família. O programa coexiste com outras formas de transferências de renda para pessoas com deficiência como é o caso das aposentadorias por invalidez, e o que o torna peculiar é seu caráter não contributivo, estando focalizado na política de assistência social (MEDEIROS, DINIZ, SQUINCA, 2006). Medeiros, Diniz e Squinca (2006) afirmam que as crianças e adolescentes seriam os principais beneficiários do BPC, pois é nesta população que está a maior parcela de pessoas com deficiência com graves restrições de habilidades e em situação de pobreza. Conforme estudo realizado por estes pesquisadores (2006, p. 26), “As informações de caráter demográfico sobre a concessão de benefícios para pessoas deficientes no ano de 2004, obtidas no processo de cadastramento dos novos beneficiários processado pelo Dataprev indicam que grande parte das concessões por deficiência ocorre entre crianças e jovens (Dataprev, 2005). Cerca de 42% dos benefícios foram concedidos a pessoas em idades entre 0 e 24 anos, sendo boa parte deles concentrados nas idades mais jovens”. O quadro abaixo contém o número de Benefícios de Prestação Continuada concedidos a crianças e adolescentes com deficiência, por Estado, no período de 2004 a 2007, de acordo com informações encaminhadas à ANCED pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (MDS) em julho de 2008. Vale lembrar que o Censo 2000 registra a existência de 2.850.604 crianças e adolescentes com alguma deficiência no Brasil. Número de Benefícios de Prestação Continuada concedidos a pessoa com deficiência com idade de 0 a 17 anos por Estado – Período 2004 a 2007 196 Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.arquivos/.spdca/agenda_social.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2008. 217 Estado Acre Alagoas Amapá Amazonas Bahia Ceará Distrito Federal Espírito Santo Goiás Maranhão Mato Grosso do Sul Mato Grosso Minas Gerais Pará Paraíba Paraná Pernambuco Piauí Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul Rondônia Roraima Santa Catarina São Paulo Sergipe Tocantins 2004 12 a até 11 17 anos anos 325 97 832 218 163 35 943 249 2.709 977 1.693 392 2005 12 a até 11 17 anos anos 336 71 1.072 310 194 57 667 158 2.509 871 1.413 283 2006 12 a até 11 17 anos anos 273 74 1.299 450 295 77 637 137 2.904 972 2.107 483 2007 até 11 12 a 17 anos anos 348 105 1.569 584 249 82 598 141 3.251 1.033 2.075 603 724 172 699 207 728 216 642 203 464 676 1.630 125 164 557 460 677 1.872 128 174 554 544 775 1.772 148 212 484 607 713 1.688 199 206 447 518 470 3.491 1.602 862 1.794 2.147 689 149 196 1.118 463 247 548 644 161 520 537 3.191 1.612 820 1.926 2.080 640 132 161 950 436 227 541 620 162 508 565 3.187 1.636 888 1.954 2.298 665 143 171 919 476 268 616 689 165 467 445 3.528 1.562 876 1.807 2.555 773 137 171 1.057 453 283 623 788 217 2.016 524 2.074 501 2.430 653 2.575 761 734 250 719 232 665 187 716 229 1.957 376 107 605 113 32 1.902 364 179 616 128 48 1.915 469 135 628 172 56 2.010 426 153 676 171 65 741 320 736 263 853 367 902 359 6.139 2.089 5.417 1.845 5.328 1.810 5.588 1.874 413 130 450 137 542 172 650 201 363 145 301 136 324 107 304 102 34.57 10.72 33.36 35.69 10.85 37.07 Brasil 8 0 7 9.948 6 2 7 11.770 Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social (Suíbe/Dataprev, em 09/07/2008). Número de Benefícios de Prestação Continuada concedidos a pessoa com deficiência com idade de 0 a 17 anos – Período 2004 a 2007 Ano de concessão do 2004 2005 2006 2007 TOTAL BPC Número de BPC 45.298 43.315 46.548 48.847 184.008 concedidos Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social (Suíbe/Dataprev, em 09/07/2008). Além disso, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza informou que o número dos benefícios mantidos no ano de 2007 para pessoas com deficiência na faixa etária de 0 a 17 anos de idade compreende 344.745 (em dezembro de 2007). A partir destes dados, observa-se que nos Estados que compõem a região Nordeste (que 218 concentra a maior proporção de pessoas com deficiência, segundo o Censo 2000) registrou-se a concessão do maior número de benefícios, ao tempo em que a região Centro-Oeste detém a menor parcela de crianças e adolescentes com deficiência assistidas. Ressalte-se que esta região não é a que apresenta o menor número de pessoas com deficiência no país. Verifica-se, também que boa parte dos benefícios está concentrada na faixa etária de 0 a 11 anos de idade, o que pressupõe uma maior prevalência de deficiências entre as crianças. Ademais, houve um aumento do número de BPC concedidos a este grupo infanto-juvenil, passando de 45.298 benefícios em 2004, para 48.847 em 2007, um crescimento de apenas 7,26% em três anos. E quando se compara o contingente deste grupo registrado no Censo 2000, nota-se que o número de benefícios concedidos é bastante inferior, correspondendo a 12,09% do total de crianças e adolescentes com deficiência, sendo importante assinalar que tal pesquisa utilizou um conceito de deficiência mais abrangente, permitindo classificar um número bastante expressivo de pessoas com deficiência. Assim, o BPC poderia ser solicitado, se não para todas, mas para muitas dessas crianças e adolescentes com deficiência no Brasil. Esta situação enseja a necessidade de se pesquisar os motivos que levam as famílias a não pleitearem esse benefício. Vale observar, ainda, que os benefícios concedidos no período de 2004 a 2007 correspondem a 53,37% do total de benefícios mantidos (344.745) no ano de 2007, o que significa que, em quatro anos, mais da metade destes foram concedidos, enquanto que de 1996 (ano em que o BPC foi implantado) a 2003, período este que soma oito anos, o percentual de benefícios atingiu 46,63% (total de 160.737 benefícios concedidos e mantidos). Este incremento nos últimos quatro anos pode ser explicado pela instituição da Política Nacional de Assistência Social no ano de 2004, que tem como um dos seus focos a proteção das pessoas com deficiência, priorizando também a distribuição de renda, o que inclui a universalização do BPC. 2.2.3. Esforço O atendimento integral à pessoa com deficiência, por parte do Poder Público, ainda é precário. A Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência ainda não demonstrou avanços significativos no que diz respeito à promoção de ações preventivas, sobretudo, visando a universalização dos exames de detecção precoce de deficiências. Tem-se notícias, através da Área Técnica da Pessoa com Deficiência do Ministério da Saúde, que esta tem dialogado com a Área Técnica da Saúde da Criança, para formular as políticas nacionais referentes aos Testes do Olhinho e da Orelhinha, o que já originou a criação da Caderneta de Saúde da Criança. O que predomina são ações isoladas (como um projeto piloto que está sendo implantado no Estado da Bahia, para realizar o Teste da Orelhinha em cinco maternidades), faltando um contato maior com a Atenção Básica. O Ministério da Saúde, através da Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno, criou a Caderneta de Saúde da Criança, que deve ser utilizada por todas as crianças brasileiras nascidas a partir de 2005. Trata-se de uma revisão do Cartão da Criança, com o objetivo de “promover a vigilância à saúde da criança e de incorporar a resolução do Mercosul de ‘Informação Básica Comum para a Caderneta da Criança’” 197. É importante salientar que nesta ferramenta há um espaço reservado para os dados do nascimento, que incluem a triagem neonatal, com o teste do reflexo vermelho (Teste do Olhinho), o Teste do Pezinho e a triagem auditiva (Teste da Orelhinha). O objetivo é que as famílias se apropriem da Caderneta de Saúde da Criança, podendo, assim, acompanhar o cuidado integral com a criança. Nesse caso, vale frisar que este acompanhamento depende do preenchimento dos dados da Caderneta pelos profissionais de saúde. E somente a partir dessas informações será possível examinar qual será o tratamento necessário diante do diagnóstico identificado. Ademais, no ano de 2006, foram realizadas Oficinas Regionais de Qualificação da Gestão do Programa Nacional de Triagem Neonatal, que ocorreram nos meses de março e abril. Vale lembrar que o processo do PNTN envolve as estruturas públicas nos três níveis de governo, municipal, estadual e federal 197 Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=24225>. Acesso em: 24 jul. 2008. 219 proporcionando uma mobilização ampla em torno das ações relacionadas à Triagem Neonatal como um programa de saúde pública no país. No que se refere ao Sistema de Informações, vale destacar o plano de ação de 2007 da CORDE, no qual consta: “c) Encontro Nacional do SICORDE – Sistema Nacional de Informações sobre Deficiência – foi instituído pelo Art. 55 do Decreto 3.298/99 e estão sob sua responsabilidade a produção de estatísticas e informações, pesquisas e divulgação de dados sobre as pessoas com deficiência. No PPA/2004-2007, no Programa 1086, está a ação Implantação e Manutenção do SICORDE, com vistas à criação de uma rede de informações em todas as unidades da federação. Este Encontro tem como proposta rediscutir a implementação e acompanhamento do SICORDE. g) Sistema de Informação sobre Deficiência – SICORDE – É responsabilidade da CORDE manter em funcionamento página acessível na internet, com acervo legislativo, dados estatísticos, artigos, estudos, temas mais procurados, normas da ABNT, lista de entidades, link para os parceiros do SICORDE e outras páginas não comerciais, relatórios de gestão, convênios celebrados etc, bem como prestar serviço de manutenção e atualização da página do CONADE. Em 2007, será instalado o Banco de Talentos, ferramenta que facilita a ligação entre vagas oferecidas no mercado de trabalho e candidatos com deficiência. Dentro do Plano de Revisão do SICORDE, encontra-se a manutenção de biblioteca e acervo.” Ocorre que a maior parte das referidas ações não foi realizada, sobretudo a criação de uma rede de informações em todos os Estados do país. No âmbito da Assistência Social, mais especificamente sobre o BPC, foi instituído pela Portaria Normativa Interministerial nº 18, de 24 de abril de 2007, o Programa BPC na Escola198, que é uma ação articulada entre o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o Ministério da Educação (MEC), o Ministério da Saúde (MS) e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR). Este Programa foi criado porque no Brasil um grande percentual (71%) das 369.745 crianças e adolescentes com deficiência que recebem o BPC não está na escola. Assim, pretende contribuir para que crianças e adolescentes de até 18 anos de idade beneficiários do BPC tenham condições de acesso à escola e de permanência na rede de ensino. A atuação do BPC na Escola está voltada para quatro eixos: (1) identificar entre os beneficiários do BPC até 18 anos aqueles que estão na escola e aqueles que estão fora da escola; (2) identificar as principais barreiras das pessoas com deficiência beneficiárias do BPC para o acesso e permanência na escola; (3) realizar estudos e desenvolver estratégias conjuntas para superação dessas barreiras; e (4) realizar acompanhamento sistemático das ações e programas dos entes federados que aderirem ao Programa199. Outra questão que pode ser citada como esforço do Estado brasileiro na garantia dos direitos das crianças e adolescentes com deficiência é a aprovação do Estatuto da Pessoa com Deficiência 200(Projeto de Lei do Senado, nº 06, de 2003), já aprovado pelo Senado Federal e em tramitação na Câmara dos Deputados. Porém, deve-se ressaltar que para diversas entidades de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, o referido Estatuto apresenta um caráter segregador, como o Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD) e a Associação Brasiliense de Deficientes Visuais, que defendem que a construção do estatuto 198 Disponível em: <http://www.mds.gov.br/noticias/programa-bpc-na-escola-vai-incluir-educacionalmentebeneficiario>. Acesso em: 24 jul. 2008. 199 Idem. 200 Disponível em: <http://www.ibdd.org.br/html/ibdd_noticias_v146.asp>. Acesso em 10 ago. 2008. 220 seja feita com a participação da sociedade civil, assim como ocorreu com a da CDPD, para que tenha um resultado efetivo. Outras entidades criticam o estatuto e pedem rejeição do texto. Já o coordenador nacional da discussão do Estatuto, Santos Fagundes201, é favorável ao mesmo e informa que foram realizados 1.168 encontros em todo o país para discutir o assunto, ressaltando que o estatuto começou com 56 artigos e já tem 257. Muitas instituições filantrópicas que se destinam ao atendimento de pessoas com deficiência ainda são procuradas, frequentemente, para o atendimento de crianças e adolescentes, pois recebem verbas públicas para este tipo de serviço. O que se percebe são apenas ações isoladas, instituídas por alguns municípios e estados no país. Isso demonstra que embora haja uma vasta legislação que garante os direitos das pessoas com deficiência, o Estado brasileiro ainda não conseguiu implantar uma política pública que priorize a atenção a este grupo social garantindo o seu direito à saúde, e, sobretudo, ao grupo infanto-juvenil. 2.2.4. Ambiente As pessoas com deficiência compõem um grupo cuja política pública é do tipo mais assistencialista, “vista por muitos quase como uma esmola” (NERI, et al, 2003). Estereótipos e discriminações são constantes e acabam dificultando a vida destas pessoas. Ainda predomina o preconceito da sociedade, o qual estimula a discriminação e é um obstáculo à inclusão das pessoas com deficiência (estigmatizadas como “inúteis”, coitadinhas”, “inválidas”). “Há poucas informações adequadas divulgadas na sociedade, e as pessoas recebem informações preconceituosas sobre pessoas com deficiência por meio da mídia, educação, religião, etc.” (VIDA BRASIL, 2007, p. 542). Há uma cultura que ignora ou não reconhece os potenciais das crianças com deficiência (RIZZINI, 2008). Diversas representações que se têm da criança e do adolescente com deficiência são corroboradas pelas próprias famílias, que se sentem sobrecarregadas nos cuidados com seus filhos e apontam as dificuldades em prover o tratamento necessário, delegando, muitas vezes, a instituições assistenciais o cuidado com as crianças. Com frequência, ouve-se discursos que potencializam as dificuldades que as famílias têm no manejo diário com este público. De acordo com Rizzini (2008, p. 13), é preciso desconstruir ou desnaturalizar as práticas discursivas que “aglutinam em torno da experiência da deficiência e dos transtornos mentais graves os sentimentos de rejeição, de pena e de medo, pois que são efetivos entraves a uma perspectiva de mudança do olhar”. As organizações que atuam nessa área tem exigido o cumprimento das leis e o respeito aos direitos humanos destas pessoas, como é o caso do Centro de Apoio a Mães de Portadores de Deficiência (CAMPE), que no ano de 2008 realizou seminário que debateu o direito à saúde de crianças e adolescentes com deficiência. Durante este evento, foi realizada uma vivência que promoveu uma visita a um posto de saúde com jovens com deficiência. Conforme consta em documento enviado à ANCED por esta instituição, restaram demonstradas as questões de insegurança de alguns profissionais da saúde no que diz respeito aos procedimentos e condições reais de atendimento das pessoas com deficiência na dinâmica funcional da unidade de saúde visitada. Ainda de acordo com o CAMPE, naquela vivência, todos os profissionais que concederam entrevista aos jovens e aceitaram ser filmados, confirmaram o respeito aos direitos da pessoa com deficiência no atendimento de saúde naquela unidade. Porém, por ser uma unidade de saúde básica, não conta com especialidades médicas necessárias ao atendimento emergencial às pessoas com determinadas deficiências, como, por exemplo, um neurologista. Ademais, um médico da unidade falou sobre o direito e a importância do diagnóstico precoce de diversas deficiências como suporte de tratamento adequado, porém, reconhece que esse serviço como direito fundamental ainda está longe de ser cumprido na rede pública de saúde. 201 Idem. 221 Por fim, vale citar o empenho das organizações e associações de profissionais da área médica, como é o caso da SBOP, da SBTN e da GATANU, que têm defendido a realização obrigatória dos Testes do Olhinho e da Orelhinha. 2.2.5. Recomendações - Conscientizar e orientar a população para maior controle dos fatores etiológicos dos distúrbios da audição e orientação a profissionais da área da saúde e da educação, através de programas de educação permanente, ressaltando-se a importância da prevenção e da intervenção precoce para a deficiência auditiva. - Promover processos educativos e campanhas de comunicação que estimulem e orientem a população para a realização de exames de diagnóstico precoce. - Criar mecanismos de difusão das normas específicas sobre o diagnóstico precoce. - Criar programas de intervenção no casos de constatação de deficiência auditiva. - Investir em mecanismos de comunicação alternativos para crianças e adolescentes com deficiência auditiva. - Expandir a realização do Teste do Olhinho em todos os municípios brasileiros. - Promover a formação dos neonatologistas para a realização do Teste do Olhinho. - Inserir a assistência à saúde da pessoa com deficiência nas ações das equipes de saúde da família e dos agentes comunitários de saúde. - Os agentes comunitários de saúde e os profissionais que atuam nas equipes de saúde da família deverão receber capacitação que os habilite para o desenvolvimento de ações de prevenção, detecção precoce, intervenção específica e encaminhamento adequado das crianças e adolescentes com deficiência. - Capacitar profissionais da saúde para o atendimento à criança e ao adolescente com deficiência. - Criar e implementar normas específicas que tornem obrigatórios os Testes do Olhinho e da Orelhinha. - Valorizar procedimentos de acompanhamento do desenvolvimento infantil nos seus aspectos motor, cognitivo e emocional, nos programas de saúde da criança, como uma importante estratégia de prevenção de deficiências nesta população. - Melhorar o acesso aos recursos materiais que a rede de saúde já dispõe, bem como da qualidade dos serviços de saúde. - Criar e manter atualizado um sistema nacional de informação sobre crianças e adolescentes com deficiência. - No âmbito do BPC, que o critério de “incapacidade para o trabalho e para a vida independente” seja abandonado, adotando-se critérios mais claros e objetivos. - Modificar o critério de renda para a concessão do BPC, ampliando o universo de pessoas potencialmente beneficiadas com base na aplicação do conceito de vida autônoma. 222 - Melhorar a coleta e o uso das informações no BPC, para avaliar o impacto e possíveis modificações do Programa. 3. Considerações finais Diante de todo o exposto, conclui-se que no Brasil existem leis e políticas fundadas nos princípios éticos de direitos humanos, que, se priorizadas e implementadas, certamente conduzirão a outros tipos de resposta nos campos de intercessão entre a saúde, a saúde mental, a assistência social, a educação e a justiça. Elas têm como objetivo principal o respeito aos direitos das crianças e adolescentes à vida, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, ao cuidado e tratamento adequados, visando o seu desenvolvimento integral. A carência de dispositivos de atenção e cuidado na área de saúde mental para infância e adolescência e de políticas públicas direcionadas a esta área revela um quadro que deve ser revertido pelo Estado brasileiro através da intersetorialidade e da co-responsabilidade. No que se refere à garantia do direito à saúde das pessoas com deficiência, há questões específicas, sobretudo relativas ao grupo infanto-juvenil, porém, apesar de todos os direitos previstos na legislação nessa matéria, ainda faltam maiores investimentos do Poder Público para que eles sejam implementados de forma satisfatória. Assim, é importante que o Estado brasileiro execute ações e ofereça serviços capazes de responder às demandas nessa área. Vale lembrar que tais questões não pertencem exclusivamente à área da saúde, mas a múltiplos setores. FONTES UTILIZADAS AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. ARAÚJO, Luís Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 1994. 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Marco Legal Previsão legal e inovações legislativas no último período O direito à educação é reconhecido na Constituição Federal de 1988, arts. 6° e 205, sendo mais amplo que o direito à escolarização, chamado de “ensino” pela legislação (Lei n° 9.394/1996, art.1°). Assim, em seu aspecto amplo, a educação é um direito de todos, que igualmente deve ser assegurado por uma ampla gama de agentes – Estado, sociedade e família (CF/88, arts .205 e 227). Já o ensino é dever específico do Estado, podendo ser oferecido pela iniciativa privada, mediante credenciamento e autorização junto aos órgãos públicos específicos (CF/88, arts. 206, 208 e 209). Internamente, o direito à educação e ao ensino também estão assegurados em leis federais, sobretudo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei n° 8.069, de 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei n° 9.394, de 1996) e Plano Nacional de Educação – PNE (Lei n° 10.172, de 2001). Somente a partir de 1996, com a Lei n° 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, passou-se a admitir finalidade lucrativa às instituições privadas de ensino, preservadas as formas não-lucrativas até então previstas na legislação – confessionais, filantrópicas e comunitárias. As escolas públicas, por sua vez, devem ser gratuitas em todos os seus níveis e modalidades, excepcionando-se aquelas instituições educacionais estaduais ou municipais que, em 1988, não fossem total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos (CF, art.206, IV, e art.242)202. Assim, nos termos das normas de direito interno, pode-se dizer que no Brasil a educação escolar é pública e gratuita, assegurada a liberdade de ensino à iniciativa privada e aos pais, os termos dos arts. 13.6 e 13.7 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. No entanto, além dos graves entraves na realização prática do direito à educação, sobretudo no que concerne à efetiva democratização e igualdade do acesso à escola pública de qualidade, há ainda fortes assimetrias jurídicas, financeiras e de políticas públicas entre os diferentes níveis, etapas e modalidades de ensino. Sobretudo no campo do financiamento educacional, a própria institucionalidade estatal incorpora e reproduz as desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Tais questões foram parcialmente enfrentadas nos últimos anos, período em que se processaram relevantes alterações legislativas em nível federal. No entanto, como demonstrado adiante, apesar de promover alguns avanços, a nova estrutura jurídica não foi suficiente para tornar efetivos os princípios e direitos assegurados na Convenção. Em 2006, através da Lei n° 11.274, o ensino fundamental obrigatório foi ampliado de 8 (oito) para 9 (nove) anos, antecipando-se em 1 (um) ano a matrícula escolar obrigatória, que deve ser realizada a partir dos 6 (seis) anos de idade, quando antes a idade de ingresso compulsório era a de 7 (sete) anos203. Apesar de elogiada em função do aumento da escolaridade obrigatória, esta medida foi criticada por não ter sido precedida de maiores debates e esclarecimentos sobre seus impactos pedagógicos. Além disso, criticou-se o fato de tal norma, ao invés de estender os anos de escolarização escolar básica, retendo por mais tempo os jovens e adolescentes na escola, simplesmente reduziu o período de préescola (4 e 5 anos de idade), que viu seu último ano ser renomeado. Na prática, em muitos 202 No entanto, em geral é permitido o apoio privado complementar ao ensino público, sendo relativamente comum sobretudo nas regiões Sul e Sudeste a previsão legislativa de constituição de Associações de Pais e Mestres, organizadas como associações civis sem fins lucrativos, e que funcionam tanto como mobilizadoras de recursos da comunidade como em caráter de receptoras de recursos públicos direcionados a pequenas compras e repasses nas escolas. 203 O ensino obrigatório com duração de 8 (oito) anos vigora no Brasil desde a edição da Lei n° 5.692, em 1971. Apesar da nova lei determinar sua ampliação para 9 (nove) anos, as redes de ensino têm até 2011 para implementar integralmente tal determinação, período de transição estabelecido na própria Lei n° 11.274/2006. 233 casos, a mudança foi meramente burocrática, uma vez que a grande maioria das crianças com 6 (seis) anos de idade já estava na escola. O ensino fundamental obrigatório continua a ser, assim, o mais forte dos deveres estatais em relação à escolarização, devendo ser universalmente assegurado, sendo que há expressa disposição constitucional e legal quanto à sua exigibilidade e justiciabilidade. Além disso, sua violação pode implicar em responsabilização política da autoridade pública. (CF/88, art.208, §§ 1° e 2°, art.211, §3°; LDB, art.5°). Durante muito tempo a força normativa do ensino fundamental obrigatório ofuscou a exigibilidade das demais etapas de ensino, sobretudo a educação infantil, ofertada em creches (zero a 3 anos) e pré-escolas (4 e 5 anos). No entanto, após mais de uma década de debates judiciais, em 2005 o Supremo Tribunal Federal – STF decretou que esta também é dever do Estado, sendo “prerrogativa constitucional indisponível deferida à criança”, não podendo o administrador público eximir-se com argumentos genéricos de “oportunidade e conveniência”204. Na decisão, o STF elevou a força normativa da educação infantil sem que para isso fosse necessária a edição de nova norma sobre o assunto, dizendo então que tanto as creches como as pré-escolas devem ser imediatamente asseguradas a todos que as demandarem, sendo irrelevante seu caráter não-obrigatório. Também o direito à escolarização regular das pessoas com deficiência tem sido objeto de reconhecimento por parte das autoridades judiciárias, que com alguma freqüência determinam a matrícula ou a adaptação de prédios escolares. No entanto, o direito à nãodiscriminação escolar das pessoas com deficiência exige maior pró-atividade das autoridades judiciárias, uma vez que há casos graves de decisões jurídicas nas quais este direito é negado ou mitigado.. Nesse campo, também é flagrante a contradição entre o discurso inclusivo da maioria das autoridades públicas e as políticas públicas realmente implementadas, as quais continuam a fomentar modalidades educacionais discriminatórias. Por sua complexidade, tais questões mereceram um tópico neste documento. Sob o ponto de vista da força normativa, a etapa escolar mais frágil é o ensino médio, período idealmente oferecido à população entre 15 e 17 anos. Ainda hoje o dever do Estado é relativizado na Constituição, uma vez que deve ser “progressivamente” implementado (CF/88, art.208, II). Apesar de serem raras as ações jurídicas a questionar esse aspecto, a progressividade constitucional, juntamente com outros fatores, tem historicamente levado a uma precarização dessa etapa da educação básica, o que leva a uma profunda dificuldade na formação profissional dos adolescentes e jovens da rede pública e em sua preparação para a continuidade dos estudos. Como resposta a essa menor juridicidade da educação infantil e, sobretudo, do ensino médio – o que é reconhecidamente incompatível com seu grau de importância no processo educacional -, está em discussão no País a ampliação da faixa de ensino obrigatório, que passaria dos atuais 9 (nove) anos para 14 (quatorze) anos, o que colocaria o Brasil no topo do ranking mundial nesta meteria. Segundo as informações oficiais, tal ampliação se daria justamente com a incorporação da pré-escola e do ensino médio ao ensino obrigatório, devendo a matrícula compulsória ser efetuada a partir dos 4 (quatro) anos de idade e assim permanecer até a maioridade. No entanto, independentemente de torná-los obrigatórios (medida que exigiria um debate cuidadoso sobre a medida de responsabilidade dos pais opu responsáveis, sobretudo quando nos referimos ao público adolescente), é importante que o Estado brasileiro avance na garantia jurídica de toda a educação básica, tornando-a plenamente exigível, o que pode ser feito por reforma normativa. Nesse sentido, merecem destaque as alterações normativas que tiveram como escopo a superação da focalização de recursos e programas no ensino fundamental, passando a incorporar toda a educação básica. São elas: a Emenda Constitucional n° 53/2006, que cria o FUNDEB, amplia a base de beneficiários da Contribuição-social do salário educação e prevê a criação do Piso Nacional Salarial dos Trabalhadores da Educação Básica; e a Medida Provisória nº 455/2009, que amplia o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o 204 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ag.Reg.Recurso Extraordinário 410.715-5. Segunda Turma, em 22/11/2005. 234 Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) para toda a educação básica. Vejamos abaixo um quadro com as principais alterações legais promovidas em nível federal desde 2004: Quadro 1 Principais Normas Jurídicas Nacionais Editadas no Período 2004 – 2009 Ano: 2004 Lei n° 10.845, de 5.3.2004 Institui o Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência, nos termos do inciso III do art.208 da Constituição, possibilitando o repasse de direto de recursos públicos federais às entidades privadas que prestem serviços gratuitos na modalidade de educação especial. Lei n° 10.880, de 9.6.2004 Institui o Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar PNATE e o Programa de Apoio aos Sistemas de Ensino para Atendimento à Educação de Jovens e Adultos. Além disso, dispõe sobre o repasse de recursos financeiros do Programa Brasil Alfabetizado, destinado à alfabetização de adultos. Ambos os programas consistem no repasse federal de recursos suplementares aos Estados, Município e ao Distrito Federal, tomando-se como base o número de estudantes atendidos por cada rede de ensino. (modificado pela Medida Provisória n° 455, de 2009) Decreto n° 5.154, de 23.7.2004 Regulamenta a educação profissional, possibilitando, na educação básica, sua articulação com o ensino formal – ensino médio técnico-profissionalizante. Prevê ainda, nesta modalidade, a formação inicial e continuada de trabalhadores e a educação profissional tecnológica de graduação e de pósgraduação. Ano: 2005 Lei n° 11.096, de 13.1.2005 (conversão da Medida Provisória n° 213, de 10.9.2004) Institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI, destinado à concessão de bolsas de estudo integrais ou parciais para cursos superiores, em instituições privadas de ensino superior, na proporção de 1 (uma) bolsa integral para o equivalente a 10,7 (dez inteiros e sete décimos) estudantes regularmente pagantes, tendo como contrapartida a isenção fiscal de determinados tributos. As bolsas são destinadas a estudantes da rede pública cuja renda familiar não exceda 1,5 salários mínimos per capita (3 salários no caso de bolsas parciais de 50% e 25%). Lei n° 11.114, de 16.5.2005 Tornar obrigatório o início do ensino fundamental aos seis anos de idade, com duração mínima de 8 (oito) anos. Lei n° 11.161, de 5.8.2005 Dispõe sobre o ensino da língua espanhola, de oferta obrigatória pela escola e de matrícula facultativa para o aluno, nos currículos plenos do ensino médio. Decreto n° 5.622, de 19.12.2005 Regulamenta a educação à distância, autorizando-a, na educação básica, exclusivamente para: complementação de aprendizagem ou em situações emergenciais. 235 Ano: 2006 Lei n° 11.274, de 6.2.2006 (altera a Lei n° 11.114, de 2005) Determina a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. Emenda Cria o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Constitucional n° 53, Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – de 19.12.2006 FUNDEB, ampliando, em relação ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, a subvinculação de receitas de impostos em Estados e Municípios, a complementação da União ao Fundo e a base de distribuição de recursos arrecadados à sua conta. Também possibilita a aplicação de recursos oriundos da Contribuição-social do salário educação em toda a educação básica e obriga a criação do Piso Nacional Salarial dos Trabalhadores da Educação Básica. Ano: 2007 Decreto n° 6.093, de 25.4.2007 Dispõe sobre a reorganização do Programa Brasil Alfabetizado, a ser executado prioritariamente nos municípios de menor Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB. Decreto n° 6.094, de 25.4.2007 Regulamenta o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, dispondo sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito Federal e Estados, segundo o qual se prevê o repasse de recursos federais mediante a assunção de compromissos e o cumprimento de metas educacionais quantitativas e qualitativas. Lei n.º 11.494, de 20.6.2007 (conversão da Medida Provisória n.º 339/2006) Regulamenta a Emenda Constitucional n.º 53, de 2006, que cria o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB, implementado progressivamente a partir de 2007. Lei n° 11.525, de 25.9.2007 Obriga o ensino dos direitos das crianças e dos adolescentes no currículo do ensino fundamental, tendo como diretriz o Estatuto da Criança e do Adolescente, prevendo-se a produção e distribuição de material didático adequado. Decreto n° 6.253, de 13.11.2007 Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, com disposições complementares à Lei n° 11.494, de 2007. Decreto n° 6.278, de 29.11.2007 Determina a contabilização no Fundeb, para efeito de recebimento de recursos públicos oriundos do Fundo, das matrículas efetivadas na educação especial oferecida por instituições privadas sem fins lucrativos, com atuação exclusiva na educação especial. Decreto nº 6.286, de 5.12.2007 Cria o Programa Saúde nas Escolas (PSE), integrando ações educativas de saúde pública na rede de ensino. Emenda Prorroga a vigência da Desvinculação de Receitas da União Constitucional n° 56, (DRU) até 2011. de 20.12.2007 236 Ano: 2008 Decreto-legislativo n° 186, de 9.7.2008 Aprova, com status constitucional, o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo (ONU), assinados em Nova Iorque, em 30.3.2007. Lei nº 11.645, de 10.3.2008 Obriga a inclusão do ensino de história e cultura indígena brasileira no currículo das escolas públicas e particulares de nível fundamental e médio. Lei nº 11.684, de 2.6.2008 Estabelece a inclusão de Sociologia e Filosofia como disciplinas obrigatórias nos currículos das escolas de ensino médio. Lei nº 11.700, de 13.6.2008 Trata da garantia de vaga em escola pública de educação infantil ou de ensino fundamental próxima à residência às crianças a partir dos 4 (quatro) anos de idade. Lei n° 11.738, de 16.7.2008 Institui o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica, previsto pela Emenda Constitucional n° 53, de 2006, com o valor inicial de R$ 950,00, a ser corrigido anualmente com base no mesmo índice do valor por aluno do Fundeb, pago aos profissionais em regime de 40h e formação de nível médio. Previa a vinculação do piso à carreira docente e a garantia de, no mínimo, 1/3 de horasatividades remuneradas, dispositivos suspensos até julgamento final pelo STF, em 17.12.2008. Lei n° 11.741, de 16.7. 2008 Reforma a educação profissional e tecnológica, determinando sua integração com a educação de jovens e adultos e as demais etapas e modalidades do ensino. Lei nº 11.789, de 18.8.2008 Estabelece o ensino de música como conteúdo obrigatório no ensino da arte. Ano: 2009 Medida Provisória nº Amplia o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o 455, de 28.1.2009 Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) para toda a educação básica. Tais programas repassam recursos suplementares federais, respectivamente, para as redes de ensino e para as escolas, proporcionalmente ao número de estudantes matriculados. Decreto nº 6.755, de 29.1.2009 Institui a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, com o objetivo de disciplinar a formação inicial e continuada de professores da educação básica. Além de estabelecer os princípios e objetivos que devem servir como parâmetro para sua implementação, o decreto determina a criação dos Fóruns Estaduais Permanentes de Apoio à Formação Docente, responsáveis por diagnosticar e planejar as ações de formação em parceria com as instituições públicas de ensino superior. Trata ainda das formas de apoio da União federal às políticas de formação. Quadro institucional: federalismo e educação Outro debate bastante recorrente no campo das normas educacionais é a relação entre políticas públicas e estrutura institucional brasileira, caracterizada por uma multiplicidade de atores estatais responsáveis pela garantia do direito à educação. Tal questão já foi objeto 237 de preocupação do Comitê em sua última sessão sobre o País (CRC/C/15/Add.241, parágrafo 15). De fato, a questão das disparidades internas quanto às normas jurídicas, as estruturas institucionais e o financiamento educacional é especialmente relevante no Brasil, dada sua peculiar organização federativa, na qual tanto os 27 estados membros como os 5.564 municípios (IBGE/2007), além da União, têm atribuição de garantir a oferta do ensino, dispondo todos de relativa autonomia na organização de seus sistemas próprios (ver Quadro 1). A Constituição Federal de 1988, além de reconhecer o direito à educação, distribui as responsabilidades pela oferta e manutenção do ensino, cabendo aos municípios cuidarem, prioritariamente, do ensino fundamental e da educação infantil, enquanto aos estados cabe oferecer prioritariamente ensino fundamental e ensino médio. À União federal cabe organizar o sistema federal de ensino e manter a rede de instituições federais de ensino técnico e superior (CF/88, arts. 23, V; 211). Nesse quadro de repartição de competências, cabe aos estados e municípios oferecer diretamente a educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) voltada às crianças e adolescentes, devendo a União federal exercer, em relação a este nível de ensino, “função distributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios” (CF/88, art.211, §1°). No campo da produção de normas sobre o direito à educação também há distribuição de competências, sendo que à União federal cabe estabelecer as diretrizes curriculares gerais da educação e suas bases normativas comuns (incluindo-se o padrão mínimo nacional de qualidade). Enquanto isso, aos estados e ao Distrito Federal cabe suplementar a legislação federal (CF/88, art.24, IX, §§ 1° a 4°). Já os municípios não dispõem de competência legislativa autônoma em matéria de educação e ensino, podendo, no entanto, estabelecer programas educacionais e pedagógicos ajustados às suas peculiaridades econômicas, geopolíticas e culturais (CF/88, art.30, I e II). Assim, quando da análise sobre o nível de implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança no Brasil e, principalmente, sobre os eventuais avanços obtidos após as últimas recomendações do Comitê, é importante averiguar os esforços de cada esfera de governo, tanto daquelas diretamente responsáveis pela execução da política educacional infantojuvenil, que é o caso dos Estados e dos Municípios, como da União federal, que tem como atribuição enfrentar as iniqüidades regionais e assegurar os patamares qualitativos adequados a serem assegurados em todo o território nacional. Vinculação de recursos para a educação Na estrutura federativa da organização do ensino brasileiro há ainda outra peculiaridade, a qual já foi objeto de apreciação pelo Comitê em 2004, que é a vinculação constitucional de recursos tributários para o ensino, ou seja, a reserva de parte da receita de cada um dos entes federados para aplicação obrigatória em educação, estabelecida, sobretudo, no art.212 da Constituição. À vinculação articula-se um sistema de transferência obrigatória de receita tributária entre os entes federados. Essa vinculação se dá basicamente através de dois mecanismos: a) Vinculação de parte da receita resultante de impostos à manutenção e desenvolvimento do ensino205, sendo 18% na esfera da União206, abatidos os recursos arrecadados em âmbito federal e transferidos aos demais entes federados; e 25% em Estados, Municípios e Distrito 205 A categoria de despesas admitidas como de manutenção e desenvolvimento do ensino é representada pelos gastos diretamente vinculados à atividade educacional, estando os mesmos regulamentados nos arts. 71 e 72 da LDB. 206 Como será demonstrado adiante, este valor de 18% não tem sido respeitado pelo governo federal. 238 Federal207, incidente tanto sobre a receita de impostos diretamente arrecadada como pelas receitas distribuídas internamente a título de transferências obrigatórias (CF/88, art.212, §1°). Nesse caso, por “manutenção e desenvolvimento do ensino” são entendidos apenas algumas despesas educacionais, o que é regulamentado pela Lei n° 9.394/1996, arts. 71 e 72. Com esses recursos podem ser custeadas ações tanto da educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) como na educação superior, conforme o âmbito de atribuição do ente federativo respectivo. b) Vinculação da contribuição social do salário-educação, arrecadado pelo governo federal com base na alíquota de 2,5% sobre a folha salarial das empresas. Até 2006, esses recursos eram destinados exclusivamente para o custeio do ensino fundamental, sendo repassados 2/3 (dois terços) da receita para Estados e Municípios conforme o número de matrículas em cada ente e 1/3 (um terço) executado diretamente pela União, em programas de apoio aos demais entes federados. Uma reforma importante ocorrida no último período, com a promulgação da Emenda Constitucional n°53, de 19 de dezembro de 2006, autorizou a aplicação dos recursos oriundos do salário-educação em toda a educação básica, mantendo a mesma estrutura de arrecadação e de distribuição federativa. Situação Alguns aspectos gerais da escolarização no Brasil Publicada em setembro de 2008, a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE 2007) apresenta, por um lado, informações que indicam uma lenta melhora de alguns indicadores educacionais brasileiros e, por outro, demonstram a persistência de graves violações de direitos educativos, bem como a existência de profundas desigualdades no interior da rede pública e entre esta e a rede privada. Ora nos detemos em alguns aspectos gerais de escolarização da população brasileira, por entender que os mesmos ajudam a delinear o contexto no qual estão inseridas as crianças e adolescentes. A taxa de analfabetismo da população com 15 (quinze) anos ou mais, indicador universalmente difundido, foi reduzida em somente 7,4% da população entre 1992 e 2007, persistindo ainda hoje uma vergonhosa taxa de 10% (14,6 milhões). Não bastasse isso, no período de 2004 a 2007 o ritmo de redução do analfabetismo foi significativamente desacelerado, uma vez que naquele ano a taxa era de 11,4%. Vale destacar que muitos foram os planos de “erradicação” do analfabetismo aprovados nos últimos anos, a começar pela própria Constituição Federal de 1988, que estabelecia o prazo de uma década para esta tarefa. Todos esses planos, como bem demonstram os próprios dados oficias, mostraram-se pouco eficazes, sendo bastante difundida a análise de que falta maior determinação do Estado no enfrentamento do problema: “A partir de 2002, pode-se notar uma estagnação na queda, motivada, provavelmente, pela ausência de programas de alfabetização ou pelas dificuldades destes programas em atingir setores remanescentes com elevadas da taxas de analfabetismo”. Não bastasse a calamidade geral nesta matéria, há ainda profundas desigualdades na distribuição do analfabetismo entre as regiões brasileiras: se por uma lado a taxa é de 5,7% e 5,4%, respectivamente, no Sudeste e no Sul, alcança 19,9% no Nordeste, sendo de 21,7% entre os homens nordestinos e de 18,3% entre as mulheres daquela região. Ademais, o analfabetismo está enormemente concentrado na população de mais baixa renda, alcançando 17,7% da população com renda per capita de até meio salário mínimo e 13,2% para os com rendimento de até um salário mínimo. Por outro lado, dentro os com rendimento superior a 2 (dois) salários mínimo per capita o analfabetismo se encontra praticamente erradicado, com taxa de 1,4%. Ao se articular os recortes regional e de renda, percebe-se que 24% da população nordestina com renda per capita de até meio salário mínimo era analfabeta em 2007, persistindo a taxa em 22,9% quando se eleva o rendimento a um salário de referência. 207Há estados e municípios que vinculam percentual maior de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino e/ou à educação em geral. 239 Ao se deter no recorte de raça/etnia também se constata profundas desigualdades, uma vez que a taxa de analfabetismo entre os brancos – 6,1% - é muito inferior à dos pretos e pardos, de, respectivamente, 14,3% e 14,1%. Por esta razão, segundo a PNAD 2007, 68,8% das pessoas analfabetas eram negras. Evidentemente, tal situação de exclusão educacional absoluta só fortalece a profunda e rígida desigualdade brasileira, retirando de amplos contingentes populacionais já marginalizados em função da pobreza atual qualquer possibilidade de mudança efetiva de sua condição, com impactos igualmente nefastos nas crianças e adolescentes a elas vinculadas. Por sua vez, a média de tempo que um brasileiro maior de 15 anos passou na escola é de apenas 7,3 anos208, sendo inferior, portanto, aos oito anos de escolaridade mínima obrigatória. Além de baixa, a escolaridade do brasileiro é profundamente desigual entre as regiões; entre os habitantes das zonas urbanas e rurais; entre os brancos e os pretos e pardos; e entre pobres e ricos. Assim constatou o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, órgão consultivo vinculado à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República: “Dessas diferentes estratificações da população, a maior desigualdade é observada quando se comparam os 20% mais pobres aos 20% mais ricos. Mostram os dados de 2006 que, entre os mais pobres, a média de anos de estudos é 4,7 e, entre os mais ricos, alcança 10,3 anos. A desigualdade entre pobres e ricos é, portanto, de 5,6 anos de estudo. Os habitantes do Brasil urbano apresentam 7,6 anos de estudo e os do rural 4,3, o que os distancia em mais de três anos de escolaridade. Segue-se a essas desigualdades, uma diferença regional observada especialmente entre o Sudeste (7,8) e Nordeste (5,8), uma distância de 2 anos de estudo. A escolaridade média da população branca é de 8,1 anos e a dos pretos e pardos 6,4 anos, desigualdade mensurada em 1,7 ano de estudo, favorável aos brancos.” (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – Observatório da Eqüidade, 2007, p.15). Além de ficar pouco tempo na escola, 32% da população da mesma faixa etária (a partir de 15 anos) é incapaz de decifrar códigos lingüísticos e matemáticos elementares, segundo dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF - 2007) 209. Ou seja, mesmo após anos de escolarização formal, muitas pessoas seguem iletradas ou com baixíssima capacidade de comunicação escrita, configurando os chamados analfabetos funcionais, senão vejamos: 208Todos os dados têm como origem: IBGE/PNAD. 209 Definições de alfabetismo / INAF: 1. Analfabetismo: Corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes consiga ler números familiares (números de telefone, preços etc.); 2. Alfabetismo nível rudimentar: Corresponde à capacidade de localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares (como um anúncio ou pequena carta), ler e escrever números usuais e realizar operações simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita métrica; 3. Alfabetismo nível básico: As pessoas classificadas neste nível podem ser consideradas funcionalmente alfabetizadas, pois já lêem e compreendem textos de média extensão, localizam informações mesmo que seja necessário realizar pequenas inferências, lêem números na casa dos milhões, resolvem problemas envolvendo uma seqüência simples de operações e têm noção de proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitações quando as operações requeridas envolvem maior número de elementos, etapas ou relações; 4. Alfabetismo nível pleno: Classificadas neste nível estão as pessoas cujas habilidades não mais impõem restrições para compreender e interpretar elementos usuais da sociedade letrada: lêem textos mais longos, relacionando suas partes, comparam e interpretam informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de área, além de interpretar tabelas de dupla entrada mapas e gráficos. (Fonte: INAF 2007 - http://www.ipm.org.br). 240 Tabela 1 - Evolução do Indicador de Alfabetismo Funcional - 2001/2007 RESPOSTA / ANO 2001-2002 2002-2003 2003-2004 2004-2005 2007 BASE 4.000 4.000 4.002 4.004 2.002 Analfabeto 12% 13% 12% 11% 7% Rudimentar 27% 26% 26% 26% 25% Básico 34% 36% 37% 38% 40% Pleno 26% 25% 25% 26% 28% Analfabetos funcionais 39% 39% 37% 37% 32% Alfabetizados funcionalmente 61% 61% 63% 63% 68,00 % Fonte: INAF / IBOPE – Instituto Paulo Montenegro / Ação Educativa Os dados gerais, contudo, novamente escondem a enorme desigualdade do sistema educativo brasileiro, expressa no indicador de analfabetismo por região do País. A partir desse recorte, constata-se que enquanto as regiões Sul e Sudeste alcançam, respectivamente, 72% e 67% de alfabetizados funcionais, esse índice chega a somente 54% na região Nordeste, onde praticamente a metade das pessoas é iletrada: Tabela 2 - Indicador de Alfabetismo Funcional – Regiões - 2007 Norte / RESPOSTA / CentroREGIÃO Brasil Oeste Nordeste Sudeste Sul BASE 12.006 1.764 3.120 5.330 1.792 Analfabeto 11% 18% 15% 8% 5% Rudimentar 26% 23% 31% 25% 24% Básico 37% 35% 35% 38% 38% Pleno 26% 24% 19% 28% 33% Analfabetos funcionais 37% 41% 46% 33% 28% Alfabetizados funcionalmente 63% 59% 54% 67% 72% Fonte: INAF / IBOPE – Instituto Paulo Montenegro / Ação Educativa Como detalharemos adiante, apesar de termos praticamente universalizado o acesso ao ensino fundamental para as crianças e adolescentes brasileiros com idade entre 7 e 14 anos, as taxas de conclusão são muito baixas. Além disso, dos que conseguem concluir esta etapa, apenas 55% o fizeram na idade correta em 2007 (IBGE/PNAD – 2007). Aqui se repete novamente a marca da desigualdade: “A situação desfavorável do Nordeste fica mais evidente na taxa média esperada de conclusão. Segundo a estimativa para 2006, realizada pelo INEP, apenas 53,8% dos que ingressam no ensino fundamental, no Brasil, chegam a concluí-lo. Para o Nordeste, essa estimativa é de que apenas 38,7% concluem, ou seja, pouco mais de um terço dos que ingressam. No Sul, esse percentual é bem mais elevado (69,1%), porém, ainda muito abaixo do desejável. Também nesse indicador, a posição mais favorável no ano anterior era a da Região Sudeste. Observa-se que os problemas ocorrem desde o início do ensino fundamental, o que leva a que a taxa esperada de conclusão da 4ª série seja de 87,6% para todo o Brasil, ou seja, mais de 12% já estão excluídos. A desigualdade entre as regiões se revela, nesse caso, na distância dessas taxas do Nordeste, com 79,4% e do Sudeste, com 94,5%.” (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – Observatório da Eqüidade, 2007, p.22). Nas demais etapas da educação básica, assim como em relação às pessoas com deficiência 241 em geral, o desafio ainda é torná-las acessíveis a todos, uma vez que enorme contingente de crianças, adolescentes, jovens e adultos sequer tem possibilidade de cursar a educação infantil, o ensino médio e o ensino profissionalizante e/ou superior. A situação daqueles que estão na escola tampouco é animadora. Dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF-2007) mostram que dentre os estudantes de 1ª a 4a. série do ensino fundamental, 73% não estão alfabetizados, 24% são medianamente alfabetizados e apenas 3% são alfabetizados funcionais. A situação não melhora muito nos 4 anos seguintes da educação formal: dentre os matriculados entre a 5ª e a 8 a. série do ensino fundamental, 12% não são alfabetizados adequadamente; 52% são alfabetizados de forma rudimentar, enquanto apenas 36% podem ser considerados alfabetizados funcionalmente. Tabela 3 - Indicador de Alfabetismo Funcional por Nível de Escolaridade - 2007 RESPOSTA / ESCOLARIDADE DE 1ª DE 5ª A ENSINO A 4ª 8ª ENS. SUPERIOR SÉRIE SÉRIE MÉDIO Brasil SEM ESCOLARIDADE 12.006 1.182 3.356 3.238 3.112 1.118 Analfabeto 11% 73% 12% 1% 0% 0% Rudimentar 26% 24% 52% 26% 8% 2% Básico 37% 2% 31% 53% 45% 24% Pleno 26% 1% 5% 20% 47% 74% Analfabetos funcionais 37% 97% 64% 27% 8% 2% Alfabetizados funcionalmente 63% 3% 36% 73% 92% 98% BASE Fonte: INAF / IBOPE – Instituto Paulo Montenegro / Ação Educativa As informações acima apresentam um dado assustador: apesar de terem passado 8 anos no ensino formal, um quarto dos adolescentes que estão na 8a. série não são sequer alfabetizados. Enquanto isso, na outra margem de desempenho, menos de 10% dos estudantes podem ser considerados, repita-se, após 8 anos na escola, como plenamente alfabetizados. A habilidade básica para a leitura e para a compreensão matemática é um indicador síntese das condições de implementação do direito à educação, pois tais habilidades são fundamentais para o acesso à informação, para a produção de conhecimento e para o exercício da cidadania (CF/88, art.206). Como exigir leitura e apreensão de conteúdos de história, geografia, literatura, conteúdos elementares do ensino médio, se sequer a alfabetização está garantida? Alfabetização não envolve apenas a leitura, mas também outra capacidade fundamental para a inserção de qualquer cidadão em uma sociedade: habilidade para se expressar na língua oficial de seu país. Informações gerais sobre o funcionamento do sistema de educação básica no Brasil Segundo o Censo Escolar 2008 (MEC/INEP), levantamento oficial que registra todas as matrículas e estudantes vinculados aos sistemas de ensino, incluindo as escolas privadas, havia, naquele ano, 53.232.868 matrículas, representando um pequeno crescimento em 242 relação ao número registrado em 2007 - 53.028.928 matrículas210. No entanto, quando comparado ao ano de 2004, constata-se uma queda de 6,4% no total de matrículas na educação básica, o que é parcialmente explicado pelo aperfeiçoamento da metodologia do Censo no ano de 2007. Vejamos adiante um quaro demonstrativo da evolução das matrículas no Brasil no período analisado: 210 Censo Escolar, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, vinculado ao MEC, coleta suas informações a partir de declaração das redes de ensino. Em 2007 houve uma mudança importante na metodologia, passando a ser exigida a identificação de cada estudante matriculado, bem como dos professores, assegurando maior confiabilidade aos dados. Segundo o próprio MEC, havia superdimensionamento das matrículas nos anos anteriores. Tal fator deve ser levado em conta sobretudo na contabilização das matrículas, sendo irrelevante em relação a outros aspectos do levantamento. Segundo o Censo, as matrículas na educação básica totalizaram 56.174.997 estudantes em 2004, 56.471.622 em 2005 e 55.942.047 em 2006. As informações do Censo balizam todas as políticas públicas de redistribuição de recursos, p. ex., Fundeb e Cota-parte do salário-educação, bem como o apoio da União aos sistemas de ensino. 243 Tabela 4 - Número de Matrículas na Educação Básica, por Etapas e Modalidades – Variação no Período - 2004/2008 Ano Etapa ou modalidade Variação 04 – 08 (%) 2004 2005 2006 2007 2008 C reche 1.348.237 1.414.343 1.427.942 1.579.581 1.751.736 29,9 Pré-escola 5.555.525 5.790.670 5.588.153 4.930.287 4.967.525 -10,6 34.012.434 33.534.561 33.282.663 32.122.273 32.086.700 -5,7 9.169.357 9.031.302 8.906.820 8.369.369 8.366.100 -8,8 Ed. Especial 371.383 378.074 375.488 348.470 319.924 -13,9 Ed. Profissional 676.093 707.263 744.690 693.610 795.459 17,7 5.718.061 6.109.142 5.616.291 4.985.338 4.945.424 -13,5 EJA - Ens. Fundamental 4.009.008 4.391.550 3.865.629 3.367.032 3.295.240 -17,8 EJA - Ens. Médio 1.709.053 1.717.592 1.750.662 1.618.306 1.650.184 -3,4 56.851.090 56.965.355 55.942.047 53.028.928 53.232.868 -6,4 Ens. fundamental Ensino médio Ed. de Jovens e Adultos Total Fonte: MEC /INEP. Como se pode ver, com exceção das creches e da educação profissional, há uma permanente tendência de queda no número de matrículas registradas nas redes de ensino, o que se justifica por diferentes aspectos além da mudança metodológica já mencionada. A queda geral no número de matrículas, a ser posteriormente detalhada, representa um grave indicador de insucesso das políticas educativas, sobretudo nas etapas ainda distante da universalização, como é o caso da pré-escola e do ensino médio; ou do atendimento de toda a demanda social, quando nos referimos à educação profissional e à educação de jovens e adultos. No caso da educação pré-escolar, além da incapacidade do Estado de incluir a todos, o principal motivador da queda no quantitativo de matrículas é o processo de transferência das crianças de 6 (seis) anos idade para o ensino fundamental. Mas é curioso notar que nesta etapa, por sua vez, o processo de ampliação de sua duração para 9 (nove) anos não foi capaz de provocar uma reversão da tendência de queda nas matrículas, o que se justifica, neste caso, pela rápida diminuição das taxas de natalidade no Brasil e pela melhoria do fluxo escolar. Já a diminuição das matrículas na educação especial, ao contrário, pode representar um indicador de avanço, uma vez que no Censo esta categoria se reserva aos estudantes atendidos em regime não inclusivo, ou seja, em escolas exclusivas ou em classes especiais. Neste caso, a crítica deve ser feita à relativa lentidão no processo de inclusão escolar das crianças já atendidas em educação especial. Tomando como referência o ano de 2008, cerca de 70% das matrículas na educação básica estão concentradas nas regiões Sudeste (38,8%) e Nordeste (31,5%). Além disso, os dados demonstram a predominância do atendimento público na educação básica, sendo que 46.131.825 estudantes estão em escolas públicas (86,7%) e 7.101.043 estudam em escolas da rede privada (13,3%). Por outro lado, as redes públicas municipais contam com a maior parte dos alunos, respondendo por 24.500.852 matrículas (46%), enquanto as redes estaduais têm 40,3% das matrículas. A rede federal atende somente 0,4% do total, concentradas, sobretudo, nos centros federais de educação profissional, que são considerados, como se verá adiante, a melhor experiência do país em matéria de educação pública de qualidade – por sua vez, restrita a poucos. No entanto, há diferenças significativas quanto à distribuição do atendimento, prevalecendo 244 maior participação privada justamente onde há maior omissão estatal na garantia do direito: educação infantil (creches e pré-escolas) e educação especial inclusiva. Além disso, comparando-se os levantamentos de 2004 e de 2008 é possível constatar uma lenta ampliação da participação relativa do atendimento público-estatal em relação ao privado, com exceção do ensino fundamental, no qual houve ligeira privatização. Assim, enquanto no ensino fundamental as matrículas privadas representaram, em 2008, 11,3% do total, contra somente 9,8% em 2004; nas creches e pré-escolas esse índice foi de, respectivamente, 34,7% e 22,5% das matrículas, contra 37,39% e 26,7% em 2004. Enquanto isso, também como expressão desse fato, 54,3% das matrículas na educação profissional se deram na rede privada em 2008, contra 58,1% em 2004. Os dados do Censo 2008 também demonstram a consolidação na prática da referida distribuição constitucional de competências em matéria de ensino. Em função da organização federativa, 72,6% das matrículas na educação infantil são municipais, enquanto 85,8% das matrículas no ensino médio são estaduais. O ensino fundamental, cuja responsabilidade pela oferta é dividida entre estados e municípios, tem 34,3% das matrículas sob a responsabilidade dos primeiros e 54,4% vinculados aos segundos. Nesta etapa de ensino (fundamental) os dados mais recentes apresentam uma continuidade do chamado “processo de municipalização”, implementado principalmente a partir de 1996, com a Emenda Constitucional n° 14 e a criação do Fundef, que provocaram a rápida transferência dos estudantes de ensino fundamental das redes estaduais para as redes municipais de ensino. Em geral, esse processo de rápida municipalização não veio acompanhado do devido suporte técnico e financeiros aos Municípios “receptores”, cuja infra-estrutura escolar, em geral, ainda é bastante precária. Os dados da matrícula não correspondem exatamente ao quantitativo de estudantes matriculados, uma vez que é possível, embora pouco usual, a realização de mais de uma matrícula. Assim, o Censo 2007211 registrou 52.179.530 estudantes vinculados à educação básica, sendo 50,25% homens e 49,75% mulheres. Somente 27.821 eram estrangeiros, estando 43% dos não-nacionais no estado de São Paulo. Segundo o Censo, havia, em 2007, 42.485.199 crianças e adolescentes (zero a 17 anos) matriculados na educação básica, de um total de 58.552.000 habitantes nesta faixa etária (IBGE/PNAD, 2007). Ou seja, cruzando tais bases de dados pode-se concluir que cerca de 72,5% das crianças e adolescentes brasileiras e estrangeiras residentes no país estavam matriculados na escola em 2007. No entanto, como passamos a demonstrar a seguir, as oportunidades de acesso à educação formal variam muito em função da faixa etária, da origem regional, da raça ou etnia, da renda familiar e da proteção jurídica do direito. Observações finais do Comitê quanto à escolarização e à não-discriminação Por ocasião de suas Observações Finais emitidas em 2004, o Comitê elogiou o progresso brasileiro em termos de “freqüência escolar e os resultados positivos considerando o acesso de meninas na escola”. Também destacou como aspecto positivo as iniciativas de “incluir assuntos relacionados com o desenvolvimento da personalidade, os direitos humanos e a cidadania no currículo escolar”. Por outro lado, manifestou preocupação “com as notáveis disparidades de acesso, freqüência regular, repetência e permanência de crianças nas escolas pelo país, que afetam particularmente as crianças pobres, as mestiças, as afrodescendentes e as crianças que vivem em áreas remotas” (CRC/C/15/Add.241/58). Tal preocupação quanto à implementação eqüitativa do direito à educação coaduna-se com a situação geral de discriminação constatada pelo Comitê, que “ainda está presente contra alguns grupos étnicos tais como os brasileiros afro-descendentes em algumas práticas culturais e sociais, e com o nível persistente de desenvolvimento social desigual nas regiões, 211 Até o fechamento do texto os dados detalhados do Censo 2008 não haviam sido divulgados. 245 especificamente nas regiões Norte e Nordeste, que em muitas instâncias resulta em discriminação” (CRC/C/15/Add.241/28). Após isso, o Comitê recomenda que o Brasil adote todas as medidas adequadas ao enfrentamento, gerais e especiais, das “desigualdades um tanto persistentes que existem contra alguns grupos étnicos tais como os brasileiros afrodescendentes (CRC/C/15/Add.241/30). Em outro ponto de seu relatório, o Comitê manifestou relevante preocupação com a exclusão escolar das crianças com deficiência (CRC/C/15/Add.241/50), recomendando ao Brasil que fossem estabelecidos “programas de educação especial para crianças com deficiência e as inclua no sistema regular até onde possível, que fossem aumentados os recursos para esta área e que, nesta matéria, fossem tomadas como referências os documentos do sistema internacional de proteção dos direitos humanos (CRC/C/15/Add.241/51, itens e, g e h). Por fim, o Comitê também recomenda que o Estado brasileiro “aumente a taxa de conclusão da educação primária e garanta que a educação primária seja sempre gratuita (CRC/C/15/Add.241/59.c). Assim, além da implementação geral do art. 28 da CDC, cabe averiguar com especial atenção em que medida o Brasil enfrentou as violações constatadas pelo Comitê, implementando suas recomendações, especificamente: i) Se foram enfrentadas as disparidades de acesso, freqüência e fluxo escolar entre as regiões do País , assim como a persistente discriminação educacional em função da renda, da raça, da etnia e da origem (urbana ou rural; áreas adensadas ou remotas); ii) Se as crianças com deficiência tiveram reconhecida sua necessidade educacional especial e se foram incluídas na rede regular de ensino; iii) Se foi elevada a taxa de conclusão da educação primária e se esta é gratuita. Para isso, respeitando o modelo de organização da educação básica, optamos por averiguar tais questões em cada uma de suas etapas e modalidades específicas. Educação Infantil – Creches e Pré-escolas (CDC, arts. 18.2, 18.3 e 28.1) No Brasil, a educação infantil é dividida em duas etapas: creches, destinadas às crianças de 0 (zero) a 3 anos de idade, e pré-escola, destinada atualmente às crianças de 4 e 5 anos de idade. A partir de 1996, com a LDB, toda a educação infantil foi definitivamente incorporada à educação básica, reconhecendo-se legalmente sua importância no cumprimento dos objetivos educacionais. No entanto, ainda hoje é restrito o acesso à educação infantil, sendo este profundamente marcado por desigualdades de oportunidade em função da renda familiar, sobretudo quando nos referimos às creches. Na faixa etária de 0 (zero) a 3 anos somente 17,1% das crianças freqüentaram creche ou escola em 2007, contra 13,7% em 2004 (PNAD/IBGE), o que representa um crescimento pouco significativo frente à dimensão da exclusão educacional dessa população. A pequena dimensão desse crescimento se destaca, principalmente, quando tomamos em conta as metas estabelecidas no PNE (Lei n° 10.172/2001) de atender, ainda em 2006, a 30% da população, atingindo no mínimo 50% em 2011. Tais metas estão longe de ser alcançadas em todas as regiões do País. Vejamos abaixo o detalhamento da evolução da taxa de escolarização da referida população: 246 Tabela 5 – Taxa de Escolarização (%) – 0 a 3 anos, por região – 2004/2007 Região Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil 2004* 5,7 11,8 16,2 18,5 8,8 13,4 Ano 2005 7 11,7 15,8 16,1 10 13,3 2006 8 13,3 19,2 18,3 11,5 15,5 2007 7,5 14,1 22,1 21,3 13,3 17,1 Fonte: I BGE /P N A D Além de baixo em geral, é também nesta faixa etária que se percebem as maiores desigualdades de acesso. Em termos regionais, enquanto a taxa de freqüência das crianças até 3 anos é de apenas 7,5% no Norte e 13,3% no Centro-Oeste, é de 21,3% na região Sul e de 22,1% na região Sudeste. Ou seja, pode-se dizer que, mesmo neste quadro, uma criança nascida no Sudeste tem praticamente três vezes mais oportunidades freqüentar uma creche que uma criança natural da região Norte. Essa desigualdade é ainda maior entre os estados da federação, chegando a mais de cinco vezes a diferença entre os estados de Santa Catarina (27,5%) e Amazonas (5,1%). Evidentemente que diante de tamanha exclusão em todo o País, o desafio primordial que se coloca é acelerar o processo de expansão da rede de educação infantil em todo o território. No entanto, do referido quadro também merece destaque a rigidez das desigualdades regionais brasileiras, sendo que o pequeno avanço na taxa de escolarização no período não implicou em maior equidade, não havendo convergência em relação à meta nacional e sim duas realidades claramente delimitadas entre os estados do Sul e do Norte geográfico, numa espécie de “desenvolvimento desigual e combinado”. Na verdade, os dados demonstram um alargamento das disparidades. No entanto, é o no aspecto da renda familiar que se apresentam as maiores injustiças. Entre as crianças que vivem em famílias consideradas pobres (com rendimentos de até ½ salário-mínimo per capita), a taxa de freqüência era de apenas 10,8%, menos de quatro vezes que a taxa alcançada pela população mais rica (com rendimentos superiores a 3 salários-mínimos per capita) – 43,6%. Ou seja, a oferta de vagas é praticamente inexistente justamente para a população que mais necessita do serviço público e que não dispõe de meios econômicos de remediar a questão, o que se agrava quando lembramos que a creche, por sua natureza, tem funções tanto educativas quanto de cuidado da criança pequena, configurando-se, ao mesmo tempo, em exercício dos direitos à educação, à alimentação, à saúde e ao desenvolvimento da criança; e em direito ao trabalho dos pais ou responsáveis. Nesse quadro, a exclusão das crianças pobres reforça as dificuldades econômicas de sua família, gerando um ciclo de reprodução da pobreza, por este mecanismo transmitida entre as gerações. Como a matrícula em creche não é obrigatória e sim uma prerrogativa da criança de 0 (zero) a 3 anos e de seus pais ou responsáveis, não podemos dizer que a demanda por vagas coincida com a quantidade de crianças na faixa etária (como ocorre no caso do ensino fundamental), sendo necessária a realização de levantamentos específicos da demanda popular. Um parâmetro para verificação da exclusão educacional nesta etapa é justamente a diferença da taxa de freqüência entre a população mais pobre (10,8%), que não acessa por falta de vagas públicas e gratuitas, e a população mais rica (43,6%), que, em tese, não sofre constrangimento econômico para matricular seus filhos na creche, podendo acessar a rede privada de ensino. Outro parâmetro para o levantamento da exclusão é justamente a diferença entre taxa de crianças atendidas (17,1%) e meta mínima legalmente estabelecida no PNE com base em estimativas oficiais (50%). Interessante perceber que adotando um ou outro critério o resultado é o mesmo: no mínimo cerca de 33% das crianças com idade entre 0 (zero) e 3 anos estão excluídas das creches, isto é, não as freqüentando por 247 omissão do Estado em lhes propiciar o exercício desse direito. Decorre da omissão do Estado neste campo a grande participação relativa da iniciativa privada na oferta das poucas vagas disponíveis no País. Essa situação pode ser visualizada a partir do detalhamento dos dados da matrícula no último quinqüênio, senão vejamos: Tabela 6 - Número de Matrículas em Creches, por Dependência Administrativa – Variação no Período – 2004/2008 Dependência Administrativa Ano 2004 2005 2006 2007 2008 Variação 04 – 08 (%) Pública 844.066 879.117 917.460 1.050.295 1.143.430 35,5 Federal 721 893 933 974 1.121 55,5 Estadual 14.993 17.264 17.582 8.651 7.365 -50,9 Municipal 828.352 860.960 898.945 1.040.670 1.134.944 37,0 Privada 504.171 535.226 510.482 529.286 608.306 20,7 1.348.237 1.414.343 1.427.942 1.579.581 1.751.736 29,9 Total Fonte: MEC/INEP. Por isso, a etapa escolar constituída pelas creches representa uma exceção na recente tendência nacional, marcada por uma certa estagnação e até mesmo diminuição da rede privada de ensino em decorrência da ampliação da disponibilidade de vagas públicas e gratuitas. É bem verdade que a relativamente pequena diferença entre a expansão da rede pública (35,5%) e da rede privada (20,7%), em favor da primeira, dá um certo alento a este quadro. Em relação à população de 4 a 6 anos os dados demonstram uma maior taxa de escolarização global. No entanto, aplicam-se a esta segunda etapa da educação infantil as mesmas conclusões quanto ao caráter discriminatório do acesso, tanto em função da renda familiar como da região nacional de origem. Um elemento que complexifica a análise da escolarização e das matrículas deste público é o já mencionado fato de que nos encontramos, sobretudo a partir de 2006, em um processo de transição das crianças de 6 (seis) anos para o ensino fundamental, o que deverá ser concluído até o ano de 2011. Por isso, no quadro abaixo, disponibilizamos também nos dois últimos anos o novo recorte etário da pré-escola, uma vez que a inclusão das crianças de 6 (seis) anos já matriculadas no ensino fundamental motivaria distorções neste momento da análise: Tabela 7 – Taxa de Escolarização (%) – 4 a 6 anos e 4 e 5 anos, por região – 2004/2007 Região Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil Ano/Faixa de idade 2004* 2005 2006 2007 4 a 6 anos 4 a 6 anos 4 e 5 anos 4 a 6 anos 4 e 5 anos 4 a 6 anos 57,9 65,5 54,6 64,2 59,7 68,2 75,7 77,6 73,8 80,4 76,8 82,7 74,8 75,9 73,5 80,9 75,2 81,7 60,2 62,1 53,7 66,4 56,9 67,7 61,7 62,8 54,7 67 54,9 66,2 70,5 72,7 67,6 76 70,1 77,6 Fonte: I BGE /P N A D Como se vê, mesmo numa situação de maior escolarização global, alcançando uma média de 70,1% das crianças com 4 e 5 anos, subsistem significativas e rígidas desigualdades regionais. Quando se considera o recorte etário de 4 a 6 anos o que salta aos olhos é, mais uma vez, o lento ritmo de expansão do atendimento, mesmo sob o impacto da ampliação do ensino fundamental. 248 Também merece destaque neste caso uma inversão da realidade normalmente encontrada, uma vez que a região Nordeste se destaca em termos de escolarização das crianças em idade pré-escolar. Tal fato decorre de pelo menos dois fatores, ambos relacionados à capacidade de indução das políticas públicas recentemente implantadas: primeiramente, pode-se perceber neste dado uma espécie de efeito secundário da rápida ampliação das matrículas no ensino fundamental, pois foi justamente no Nordeste onde o Fundef mais gerou efeitos neste sentido; além disso, há o resultado de um longo processo de intervenção do Unicef na região, tendo como uma de suas agendas prioritárias, principalmente junto às administrações municipais, a questão da educação infantil. Apesar desse diferencial importante, em geral as disparidades regionais em termos de oportunidades educacionais têm como pano de fundo as desigualdades econômicas. No caso da pré-escola, é significativo perceber que esta se encontra quase que universalizada dentre as crianças de famílias mais ricas, nas quais alcança, em média, 94,7% de cobertura. Nesta faixa de renda praticamente não há disparidades regionais quanto a este indicador. Já na faixa mais pobre da população, a taxa de escolarização é insatisfatória e as disparidades regionais ressaltam, demonstrando ausência de escolas públicas em grandes porções do País: a taxa de escolarização das crianças de 4 a 6 anos das famílias mais pobres é de 71,4%, sendo que nas regiões Sul e Centro-Oeste este indicador alcança somente 54,3% e 55,5%, respectivamente. Há ainda desigualdades, embora em menor escala, quando o enfoque é a taxa de escolarização da população infantil em função da cor ou da raça, sendo que dentre as crianças brancas com idade de 5 a 6 anos (quando este critério passa a ser considerado nas informações censitárias) a taxa de exclusão escolar é de 12,2%, enquanto dentre as crianças negras é de 15,5%212. A quase-universalização do acesso à pré-escola por parte da população mais rica, ou seja, daquela que não encontra barreiras de ordem econômica no exercício do direito à educação, demonstra a importância social que se tem dado a esta etapa de ensino, na qual se inicia a escolarização propriamente dita. Tal fato, por si, justificaria os esforços de universalização da pré-escola, inclusive através da implantação do ensino obrigatório. Por outro lado, como têm reiteradamente demonstrado os dados oficiais, o atual estágio de discriminação das oportunidades de acesso em razão da renda tem impacto direto no desempenho acadêmico dos estudantes em todo seu percurso escolar, determinando, de antemão, muitas de suas oportunidades futuras. Ou seja, mais uma vez o aspecto da discriminação econômica da criança aparece como um reprodutor infinito das desigualdades sócio-educacionais. Por fim, este grande vácuo ainda existente no atendimento pré-escolar, torna injustificável, senão pela própria omissão estatal, a queda no número de matrículas públicas registrada pelo Censo, senão vejamos: 212Todos os dados dos últimos parágrafos são da PNAD, 2007. 249 Tabela 8 - Número de Matrículas em Pré-Escolas, por Dependência Administrativa – Variação no Período2004/2008 Dependência Administrativa Ano Variação 04 – 08 (%) 2004 2005 2006 2007 2008 Pública 4.071.879 4.277.350 4.148.226 3.898.095 3.849.829 -5,5 Federal 1.637 1.668 1.538 1.167 1.117 -31,8 Estadual 277.613 249.001 225.397 168.994 105.181 -62,1 Municipal 3.792.629 4.026.681 3.921.291 3.727.934 3.743.531 -1,3 Privada 1.483.646 1.513.320 1.439.927 1.032.192 1.117.696 -24,7 Total 5.555.525 5.790.670 5.588.153 4.930.287 4.967.525 -10,6 Fonte: MEC/INEP. O simples argumento de que a redução decorre da antecipação da idade de matrícula no ensino fundamental não pode ser admitido, pois, diante de uma taxa nacional de exclusão de 29,9% das crianças de 4 e 5 anos, encontrada em maior ou menor escola em todas as cidades do País, nada justifica o fechamento de turmas em pré-escolas. Ou ainda, como tem sido muito comum pelo País, a simplória “substituição do letreiro” na porta da sala de aula ou da escola, sem a abertura de novas vagas ou ainda a adaptação pedagógica da mudança imposta pela Lei. Ensino Fundamental (CDC, art. 28.1, alíneas a e e) Em contrapartida à situação da educação infantil e do ensino médio, o acesso ao ensino fundamental está quase universalizado, com 94,4% da população de 7 a 14 incluídos nesse nível de ensino (taxa de frequência líquida). Somados aos da mesma faixa etária que freqüentam a pré-escola ou o ensino médio, esse percentual alcança 97% (taxa de frequência bruta). Como decorrência lógica da quase-universalização, as disparidades regionais e econômicas quanto ao acesso são reduzidas, apesar de persistirem em alguma escala quanto à população rural. Vejamos uma boa síntese das informações sobre acesso e disponibilidade nas tabelas abaixo: 250 Tabela 9 - Taxa de escolarização – 7 a 14 anos – Brasil e grandes regiões – 2004/2007 Região Ano 2005 96,7 96,5 98,2 97,9 97,6 97,4 2004 94,9 96,1 98,1 97,8 97,2 97,1 Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil 2006 96,0 96,9 98,3 98,4 98,1 97,6 2007 96,2 97,1 98,1 98 97,7 97,6 Fonte: I BGE /P N A D Tabela 10 - Taxa de freqüência líquida – 7 a 14 anos, situação do domicílio – Grandes Regiões – 2005/2007 Região Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil Ano / Localização 2005 Total Urbano Rural 93,9 93,8 92,4 93 95,8 96 95,9 96,1 94,7 94,8 94,5 95 2007 Total 95,9 93,2 91 93,6 94,1 95,4 95,2 95,2 94 94,7 92,5 94,6 Fonte: I BGE /P N A D Tabela 11 - Número de Matrículas no Ensino Fundamental, por Dependência Administrativa – Variação no Período- 2004/2008 Dependência Administrativa Ano 2004 2005 2006 2007 2008 Variação 04 – 08 (%) Pública 30.680.954 30.157.792 29.814.686 28.928.605 28.468.696 -7,2 Federal 24.633 25.728 25.031 24.276 25.622 4,0 Estadual 12.695.895 12.145.494 11.825.112 11.332.963 11.000.916 -13,4 Municipal 17.960.426 17.986.570 17.964.543 17.571.366 17.442.158 -2,9 3.331.480 3.376.769 3.467.977 3.193.668 3.618.004 8,6 34.012.434 33.534.561 33.282.663 32.122.273 32.086.700 -5,7 Privada Total Fonte: MEC/INEP. Por outro lado, muitos dos que têm acesso não concluem o ensino fundamental, ou o fazem em mais tempo que os oito anos necessários, e, além disso, a aprendizagem dos alunos mostra-se muito aquém da esperada. Alguns indicadores revelam com clareza os problemas que se referem ao fluxo escolar, ou seja, ao comportamento da progressão dos alunos pelas séries, ano após ano. Esse comportamento inclui as possibilidades de promoção de uma série para outra, a repetência da série e a evasão. Quadro 3: Educação Infantil 251 A taxa de evasão é a proporção de alunos que, tendo freqüentado a escola em determinado ano, não se matriculam no ano seguinte. Esses alunos podem ter sido reprovados ou aprovados ou terem saído antes de o ano terminar. Os dados do INEP mostram que, dos alunos matriculados em 2004 no ensino fundamental, 6,9% não se matricularam em 2005. No Nordeste, esse percentual alcançou 8,8% e no Sudeste, 5,1%, o que revela pronunciada desigualdade regional. A posição desfavorável do Nordeste é ainda mais evidente na taxa média esperada de conclusão do ensino fundamental, ou seja, na percentagem estimada dos alunos que concluem esse nível de ensino, calculada a partir das taxas de promoção, repetência e evasão vigentes. A taxa é, portanto, um cálculo de probabilidade que leva em conta taxas reais do fluxo escolar. Segundo essa estimativa, calculada pelo INEP, apenas 54% dos que ingressam no ensino fundamental, no Brasil, chegam a concluí-lo. O gráfico abaixo ajuda a visualizar a tendência geral de diminuição das matrículas nos ensinos fundamental e médio ao longo do percurso escolar: Gráfico 1 - Evolução das Matrículas - Ens. Fundamental e Ens. Médio, por série ou ano escolar - 2004/2007 6000000 Matrículas 5000000 4000000 2004 3000000 2005 2006 2007 2000000 1000000 0 Ano 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª EM – EM – EM – Inicial s érie série série série série série série série 1° 2° 3° ano ano ano Série / Ano Escolar Como se percebe, com exceção do ano inicial em implantação, a coluna de todos os anos escolares apresenta praticamente a mesma tendência de diminuição no quantitativo de matrículas, o que é grave no caso do ensino médio, uma vez que, como veremos adiante, está longe da universalização. Outra tendência comum é justamente a redução progressiva no quantitativo de estudantes matriculados, sendo que, ao final do ensino médio restam somente metade das matrículas. As exceções à regra são as séries marcadas pelo reingresso de novos estudantes: 5ª série do ensino fundamental e 1° ano do ensino médio. Para o Nordeste, essa estimativa é de que apenas 38% concluem, ou seja, pouco mais de um terço dos que ingressam. No Sudeste, esse percentual é bem mais elevado (69,3%), porém ainda muito abaixo do desejável. Observa-se que os problemas ocorrem desde o início do ensino fundamental, o que leva a que a taxa esperada de conclusão da 4ª série seja de 89% para todo o Brasil, ou seja, 11% já estão excluídos. A desigualdade entre as regiões se revela na distância dessas taxas do Nordeste, com 79% e do Sudeste, com 96%. Como decorrência dos entraves no fluxo escolar, muitos dos estudantes do ensino fundamental estão em idade inapropriada a esta etapa, com uma ligeira tendência de melhora nos últimos anos, senão vejamos: 252 Tabela 12 - Número de Matrículas no Ensino Fundamental, por faixa etária – 2004/2007 * Matrículas no Ensino Fundamental Ano Faixa Etária Total De 0 a 6 anos ** De 7 a 10 anos ** De 11 a 14 De 15 a 17 De 18 a anos anos 19 anos De 20 a 24 anos De 25 a 29 anos Mais de 29 anos 2004 34.012.434 722.598 13.569.062 13.501.449 4.382.765 778.255 499.723 207.640 350.942 2005 33.534.561 765.809 13.454.320 13.608.936 4.097.332 677.827 419.859 183.671 326.807 2006 33.282.663 901.297 13.392.126 13.735.410 3.895.969 591.443 337.212 152.653 276.553 2007 31.733.198 22.352 13.714.588 13.329.989 3.578.100 472.280 278.273 108.195 229.421 Fonte: M E C /I NE P . * E m funç ão da mudanç a na metodologia do C ens o E s c olar, a partir de 2 0 0 7 é c ons iderado o número de es tudantes e não mais o número de matríc ulas . * * A partir de 2 0 0 7 , em razão da inc orporaç ão das c rianç as de 6 anos ao ens ino fundamental, onde s e lê “de 0 a 6 anos ” leia-s e “de 0 a 5 anos ” e onde s e lê “de 7 a 1 0 anos ” leia-s e “de 6 a 1 0 anos ”. Concluir a série e ser promovido para a seguinte parece não significar, necessariamente, ter aprendido as habilidades e conhecimentos requeridos, como evidenciam os baixos resultados nos testes realizados sistematicamente pelo INEP no âmbito do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e no Prova Brasil. Os dados de 2003, mostram que o percentual dos que atingem o desempenho esperado é extremamente baixo, persistindo tal situação em 2007 (ver quadro sintético dos resultados em 2005 e 2007 em anexo). Na avaliação dos alunos da 4ª série em Língua Portuguesa, o SAEB de 2003 apontou que apenas 4,8% dos alunos tiveram desempenho condizente com o esperado. A Região Norte, que mostrou o pior desempenho, teve apenas 1,7% dos alunos com desempenho adequado, enquanto no Sudeste essa proporção foi de 7,7%. Na 8ª série, em todo o país, apenas 6,4% mostraram desempenho adequado, e nesse indicador também a maior desigualdade é revelada entre o Norte e o Sudeste (4,9 e 11,7% dos alunos, respectivamente). O desempenho em Matemática mostra-se igualmente inadequado, sendo as proporções dos alunos brasileiros que atingiram o esperado na 4ª série de apenas 9,3%, variando de 2,3% na Região Norte a 10,5%, no Sudeste. Na 8ª série, o percentual chega a ser mais baixo: 3,3%, para todo o Brasil, sendo 0,7% e 4,9% para as regiões Norte e Sudeste, respectivamente. Esses dados evidenciam o quanto são urgentes políticas públicas adequadas para a reversão do quadro de tal gravidade no ensino brasileiro. No aspecto da infra-estrutura escolar, os dados do Censo (2005) revelam que mais da metade dos alunos (57,9%) estudam em escolas que não possuem biblioteca. Quanto à quadra de esportes, aspecto da infra-estrutura de destacado relevo tanto para o desenvolvimento físico-motor quanto para a sociabilidade, também se aproxima da metade (46,3%) a proporção de alunos que não contam com essa dependência em suas escolas. Quanto à valorização dos trabalhadores da educação, que engloba tanto aspectos referentes à formação e ao reconhecimento público do papel social atribuído ao professor, por meio de remuneração, carreira, condições adequadas de trabalho, entre outras. As competências necessárias ao exercício do papel docente levaram a legislação educacional a definir a exigência de licenciatura para o professor desse nível de ensino, ainda que considere aceitável o mínimo de nível médio na modalidade normal para os professores de 1ª à 4ª série. No que tange a essa dimensão da qualidade do ensino, dois indicadores podem ser acompanhados anualmente. O primeiro diz respeito à remuneração por hora e pode ser calculada com base na PNAD;o outro é a formação dos ocupantes das funções docentes, levantada pelo Censo Escolar. Quanto à remuneração, os dados de 2005 evidenciam baixos valores e uma grande diferença entre o que percebem, em média, os professores do 253 Nordeste (R$5,80 por hora) e os do Sudeste (R$9,20). Sobre a formação, observa-se, no caso das quatro primeiras séries, que mais da metade dos postos docentes (56,9%) são ocupados por professores que não possuem a licenciatura. Nas quatro últimas séries, esse percentual é de 22,2%, tratando-se, nesse caso, de grau de formação abaixo daquele legalmente exigido. Uma informação não sistematicamente levantada, porém evidenciada em muitos sistemas de ensino, e que contribui para a desigualdade, é a alocação de professores menos experientes nas escolas públicas de periferia e na área rural. A ausência de incentivos para os professores que trabalham nessas escolas e a possibilidade de solicitar transferência após algum tempo de experiência, contribuem para essa situação. Os anos de experiência dos professores das diferentes escolas seria o indicador necessário para mensurar essa situação. Conforme mencionado anteriormente, também não estão disponíveis indicadores sobre gestão e sobre avaliação continuada. Ensino Médio, Ensino Profissional e Acesso ao Ensino Superior (CDC, art. 28.1, alíneas b a e) Como não poderia deixar de ser, o ensino médio é vítima direta dos problemas do ensino fundamental. Os entraves observados no fluxo escolar do ensino compulsório, sua elevada taxa de evasão e baixa taxa média esperada de conclusão comprometem o acesso ao ensino médio. Assim, a proporção de jovens de 15 a 17 anos que, segundo a PNAD/2007, encontram-se cursando o ensino médio, é de apenas 48%, ou seja, menos da metade daqueles que estão na faixa etária adequada a esse nível de ensino: Tabela 13 - Taxa de freqüência líquida – 15 a 17 anos, situação do domicílio – Grandes Regiões – 2005/2007 Região Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil Ano / Localização 2005 Total Urbano Rural 35,4 35,7 30,1 37,4 57,4 59,4 53,6 55,5 45,9 47,6 46 50,4 2007 Total 26,9 15,1 38,1 45,4 36 25,7 36 34,5 58,8 55 49,6 48 Fonte: I BGE /P N A D As desigualdades nesse acesso são pronunciadas, especialmente quando considerada a renda das famílias desses estudantes: entre os 20% mais pobres, menos de 1/4 (24,8%) dos jovens de 15 a 17 anos cursam o ensino médio, proporção que, para os 20% mais ricos, é de 76,1%. Nordeste e Sudeste também se distanciam nesse indicador, apresentando o primeiro 34,5% e o Sudeste 58,8%. Entre os jovens residentes da zona rural, apenas 25,7% estão incluídos no ensino médio na faixa etária adequada, chegando-se ao à taxa absurda de apenas 15,1% no Nordeste. Jovens de cor preta ou parda também se encontram em desvantagem (com percentagem de 35,6%) em relação aos brancos (56,6%). Tal situação se agrava sobremaneira quando percebemos que parte significativa da população com idade entre 15 e 17 anos não freqüenta nenhuma etapa escolar. Tal exclusão é relativamente homogênea em todo o país, cuja média de escolarização desse adolescente atinge somente 82,1%, sendo que praticamente não houve progresso neste campo, o que demonstra uma evidente estagnação das políticas estatais, incapazes de tornar a escola pública viável e significativa para os jovens: 254 Tabela 14 - Taxa de escolarização – 15 a 17 anos – Brasil e grandes regiões – 2004/2007 Região Ano 2005 81,4 79,3 84,6 80,7 81,9 82 2004 78,6 78,9 85,4 81,7 79,9 81,9 Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil 2006 79,1 79,6 85,2 80,7 83,0 82,2 2007 80,1 80,8 84,3 80,7 81,7 82,1 Fonte: I BGE /P N A D Esta estagnação também é perceptível no quantitativo do vagas públicas ofertadas, as quais foram reduzidas em nada menos que 8,2% no período: Tabela 15 - Número de Matrículas no Ensino Médio, por Dependência Administrativa – Variação no Período2004/2008 Dependência Administrativa Ano Variação 04 – 08 (%) 2004 2005 2006 2007 2008 Pública 8.057.966 7.933.713 7.838.086 7.472.301 7.395.577 -8,2 Federal 67.652 68.651 67.650 68.999 82.033 21,3 Estadual 7.800.983 7.682.995 7.584.391 7.239.523 7.177.377 -8,0 Municipal 189.331 182.067 186.045 163.779 136.167 -28,1 Privada 1.111.391 1.097.589 1.068.734 897.068 970.523 -12,7 Total 9.169.357 9.031.302 8.906.820 8.369.369 8.366.100 -8,8 Fonte: MEC/INEP. Como vimos no gráfico acima, os problemas de fluxo escolar repetem-se no ensino médio, o que acarreta taxas médias esperadas de conclusão também inadequadas. A estimativa é de que apenas 69% dos alunos que ingressam no ensino médio o concluem. A maior desigualdade observada entre regiões, nesse indicador, é entre o Centro-Oeste (com 59,6%) e o Sudeste (70,5%). Por isso, boa parte dos estudantes matriculados no ensino médio são adultos, situação que pressiona ainda mais as taxas de abandono e evasão: 255 Tabela 16 - Número de Matrículas no Ensino Médio, por faixa etária – 2004/2008 * Matrículas no Ensino Médio Faixa Etária Ano Total De 0 a 14 anos De 15 a 17 anos De 18 a 19 anos De 20 a 24 anos De 25 a 29 Mais de 29 anos anos 2004 9.169.357 64.710 4.660.419 2.231.158 1.523.534 337.450 352.086 2005 9.031.302 81.887 4.687.574 2.159.570 1.431.557 316.125 354.589 2006 8.906.820 89.872 4.723.399 2.122.633 1.330.380 298.392 342.144 2007 8.264.816 82.266 4.539.022 1.958.859 1.079.570 276.492 328.607 Fonte: MEC/INEP * Em f unção da mudança na metodologia do Censo Escolar, a partir de 2007 é considerado o número de estudantes e não mais o número de matrículas. Tal situação leva o ensino médio a ser ofertado, em grande medida, no período noturno, contando com uma menor disponibilidade de carga-horária e com praticamente nenhum suporte pedagógico. Na verdade, em grande medida é possível dizer que não existe no Brasil uma rede de escolas de ensino médio, e sim escolas de ensino infantil e fundamental que, durante a noite, são ocupadas pelos estudantes do ensino médio e da educação de jovens e adultos. Tal situação de enorme precariedade infra-estrutural contribui com dificuldade dessa etapa de ensino em definir sua identidade político-pedagógica. O desempenho nos testes que buscam avaliar a aprendizagem dos alunos evidenciam ano a ano essas graves insuficiências. Observa-se que a proporção de alunos do ensino médio com desempenho adequado em Língua Portuguesa é de apenas 6,2%, valor que na Região Norte é de somente 2,5%. Um pouco mais elevado no Sudeste (7,6%), o indicador evidencia que nem mesmo um aluno em dez atinge o desempenho esperado. A situação não é diferente em Matemática, cuja proporção média de desempenho adequado para todo o País é de 6,9% dos alunos. Nesse caso, a distância mais elevada encontra-se entre a região Norte (2,1%) e a Região Sul (10,1%). Ou seja, a educação básica é ineficaz do ponto de vista do aprendizado para a grande maioria dos estudantes brasileiros. Quanto à infra-estrutura das escolas que oferecem turmas de ensino médio, a pior situação é apresentada quanto ao acesso ao laboratório de ciências: metade dos estudantes (51%) do ensino médio público não o têm presente em suas escolas. Quanto às bibliotecas, esse percentual é de 38,1% e ao laboratório de informática atinge 39,5%. Considerando-se a relevância da informática na vida contemporânea, a necessidade do domínio de habilidades nessa área para a obtenção de emprego, e a dificuldade de acesso a equipamentos e conhecimentos nessa linguagem para alunos de nível mais baixo de renda, a existência de mais de 1/3 de alunos em escolas que não possuem laboratório de informática revela a distância da qualidade da oferta do ensino médio público a padrões mínimos desejáveis. Da mesma forma que no ensino fundamental e a educação infantil, observam-se deficiências quando se trata da formação e valorização de professores. A proporção de professores sem licenciatura, mínimo exigido pela legislação, ainda atinge 11,7%. Especialmente grave é o déficit de professores habilitados nas disciplinas de Matemática e das ciências. Em Matemática, somente 20,4% têm habilitação específica; em Biologia, esse percentual é de 44,4%; em Química, 22,2%, e em Física os habilitados somam apenas 10%. A dificuldade no recrutamento de professores licenciados nessas áreas é generalizada em todo o país, o que está associado à desvalorização da profissão docente. Mesmo tendo a remuneração/hora mais elevada que nos outros níveis da educação básica (R$10,20), a carreira de magistério no ensino médio parece não ser suficientemente atrativa para os jovens no momento de sua escolha profissional ao se dirigirem ao ensino superior, razão 256 pela qual os últimos levantamentos têm demonstrado uma redução no quantitativo de licenciados. Educação Especial Inclusiva A despeito do reconhecimento formal do direito à educação às pessoas com deficiência, muitas escolas e sistemas de ensino não incluem tais alunos e grande parte delas não tem as condições necessárias para fazê-lo. Um indicador da dimensão do problema é a baixa proporção de escolas de ensino regular que incluem alunos com deficiência. No Brasil, um quinto das escolas (20,3%) o fazem e, nesse aspecto, as escolas públicas podem ser consideradas mais inclusivas que as instituições privadas, com proporções de 21 e 14%, respectivamente. A maior desigualdade encontra-se entre as regiões Norte, com apenas 11% de escolas que realizam a inclusão, e Centro-Oeste, onde esse percentual é de 34,1%. A despeito disso, o último ano teve como marca inédita a superação do número de matrículas em escolas exclusivas ou em classes especiais (319.924 alunos) pelas matrículas em educação inclusiva, ou seja, em escolas regulares, que passaram a atender 375.775 alunos com necessidades educativas especiais: Gráfico 2 - Número de Matrículas em Educação Especial, por tipo de atendimento - 2004/2008 400000 371383 378074 348470 Matrículas 340000 325136 319924 306136 310000 280000 375775 375488 370000 Escolas exclusivas e classes especiais Escolas comuns 262243 250000 220000 195370 190000 160000 130000 100000 2004 2005 2006 2007 2008 No entanto, para a realização da inclusão com qualidade, algumas condições são fundamentais e a sua ausência pode estar entre as principais causas do acesso restrito dos alunos com deficiência. Indicadores sobre essas condições são escassos, considerando-se os diferentes campos de deficiências. Ao mesmo tempo que registrou o crescimento nas matrículas inclusivas, os últimos levantamentos oficiais apontam que a grande maioria dos estabelecimentos responsáveis por tais avanços o fazem muito mais por compromisso ético com o respeito aos direitos dessas pessoas do que por suporte institucional de políticas públicas específicas. Em 2007, por exemplo, de todos os estabelecimentos que realizaram educação inclusiva, a grande maioria – 43.520 escolas - o fez, como se costuma dizer no jargão futebolístico, “no peito e na raça”, contra somente 22.148 escolas que contaram com algum tipo de apoio pedagógico para esta tarefa. Outras informações levantadas pelo Censo Escolar do INEP, entretanto, revelam que até mesmo as escolas que contaram com apoio pedagógico não estão adaptadas às crianças 257 com deficiência. Atinge 93,2% a proporção de escolas que não possuem sanitário adequado a alunos com deficiências. A situação é pior nas escolas públicas, em que 94,2% não apresentam tal condição, proporção que nas escolas privadas é de 85,6%. Tais proporções se repetem para a existência de vias e dependências adequadas a alunos com deficiência: 94,8% do total de escolas não as possuem, proporção que chega a 95,9% nas escolas públicas e 86,6% nos estabelecimentos privados. Ou seja, apenas uma em cada vinte escolas regulares de ensino fundamental apresenta condições mínimas de infra-estrutura para receberem alunos com deficiência. Como já registramos, a imensa maioria do atendimento inclusivo se realiza na rede pública e gratuita de ensino, enquanto que o atendimento não inclusivo é sustentado pela rede privada. Vejamos o quadro abaixo, que registra a participação das redes pública e privada na manutenção de escolas exclusivas e salas especiais: Tabela 17- Matrículas de Alunos com Necessidades Educacionais Especiais em Escolas Exclusivamente Especializadas ou em Classes Especiais, por dependência administrativa - 2004/2008 Dependência Administrativa Pública Ano 2004 2005 2006 2007 2008 136.711 134.311 132.350 124.358 114.449 747 922 888 830 820 Estadual 71.546 65.206 62.595 55.151 46.795 Municipal 64.418 68.183 68.867 68.377 66.834 234.672 243.763 243.138 224.112 205.475 371.383 378.074 375.488 348.470 319.924 Federal Privada Total Fonte: I N E P /M E C Ou seja, das 319.924 pessoas que foram atendidas em instituições de educação especial, a grande maioria – 205.475 o foi na rede privada de ensino. Assim, ao contrário do que sucede em relação ao atendimento inclusivo, a chamada “educação especial” é ofertada pela rede privada, a qual, por outro lado, é a mais apresenta resistências à inclusão. Contraditoriamente à necessidade de se priorizar os investimentos no atendimento inclusivo, tal rede privada é em grande medida mantida com recursos públicos. Hoje há um importante embate político e jurídico sobre a natureza do atendimento oferecido por tais instituições, uma vez que a condição de pessoa com deficiência, a qual demanda atenção educacional complementar e especializada, não desobriga os familiares e a comunidade de matricular as crianças e adolescentes no ensino fundamental regular. No entanto, a despeito de tais princípios serem em geral reconhecidos pelas autoridades estatais, a política educacional do Estado brasileiro para as pessoas com deficiência é claramente contraditória, pois, ao tempo que tem ampliado gradativamente o atendimento inclusivo, contribui ostensivamente para a manutenção do quadro geral de segmentação da população com deficiência, financiando, direta e indiretamente, o atendimento em instituições de ensino especiais e regulares e, sobretudo, em instituições não vinculadas aos sistemas de ensino, que nem sequer podem oferecer o ensino obrigatório. Exemplo dessa situação é dado pela Lei do Fundeb e por sua regulamentação, que abre uma exceção na política do Fundo para possibilitar a contabilização de matrículas de pessoas com deficiência em modalidade educacional não inclusiva ofertada pela rede privada conveniada com o poder público. 258 Esforço Observações finais do Comitê quanto ao financiamento da educação Nas Observações Finais ao Estado brasileiro (CRC/C/15/Add.241), o Comitê deu especial destaque à questão do financiamento, recomendando que o Estado “Aumente suas despesas em educação e assegure a alocação de recursos em todos os níveis e, ao formular políticas, leve em consideração o Comentário-Geral n°1 do Comitê, sobre os objetivos da educação.” (D6/59.a.). Tal recomendação baseou-se na constatação de que havia uma significativa disparidade entre os desafios educacionais apresentados pelo país e o volume de recursos alocados ao setor. Além desse aspecto geral, o Comitê manifestou preocupação com as disparidades internas ao financiamento público das políticas educacionais, uma vez que “a aplicação de parte considerável da Convenção recai sob a competência dos estados e municípios”, levando “a situações em que os padrões mínimos da Convenção não se aplicam a todas as crianças devido a diferenças legais, financeiras ou de políticas nos níveis estaduais e municipais” (D1/13). Por fim, o Comitê manifestou preocupação “com a falta de informação sobre alocação orçamentária em nível municipal e estadual” (D1/20). Cabe, portanto, por ocasião do presente contra-informe de seguimento, averiguar: (i) Se houve aumento no montante de despesas estatais em educação; (ii) Se a alocação das despesas orçamentárias em educação levou em conta todos os níveis e modalidades escolares (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, educação profissional, ensino superior etc) e governamentais (federal, estadual e municipal); e (iii) Se a alocação de despesas orçamentárias em educação levou em conta os objetivos da educação, estabelecidos no Comentário-Geral n°1. As despesas do Estado em educação A primeira perspectiva de análise dos gastos públicos em educação diz respeito ao esforço orçamentário da União. Sob esse enfoque, pode-se dizer que houve aumento nominal das despesas federais na função “educação”213 entre 2004 e 2008, sendo que também houve ligeira recuperação em termos relativos, ou seja, quando considerada a participação da educação no total do gato público da União. Em 2004, foi gasto R$ 18,32 bilhões, representando 2,67% do gasto federal; sendo que em 2006 o valor nominal alcançou R$ 22,99 bilhões, enquanto a participação relativa caiu a 2,44%; já em 2007 e 2008 houve maior avanço, atingindo neste último ano um gasto de R$ 28,25 bilhões, correspondente a 2,88%. Vejamos a distribuição dos gastos orçamentários da União federal por função: 213 Função é a maior agregação temática de despesas em uma determinada área do orçamento público, sendo subdividida em subfunções. 259 Tabela 18 - Despesas da União federal por função (2004-2008)* R$ 1 milhão DESPESA LIQUIDADA FUNÇÃO 2004 % 2005 R$ % 2006 R$ % Legislativa 0,65 4456 0,63 4527 Judiciária 1,94 13271 1,76 12695 Essencial à justiça 0,39 Administração 1,64 Defesa nacional 2,5 2679 0,38 11262 1,5 17105 2,54 Segurança pública 0,51 3488 Relações exteriores 0,24 1653 0,25 Assistência social 2,55 Previdência social 30,44 17471 0,5 2,6 1,8 % 2008 R$ % R$ 5564 0,58 5509 0,54 5307 16982 1,89 17864 1,92 18795 2772 0,38 3592 0,44 4154 0,47 4572 10805 1,37 12948 1,66 15690 1,51 14773 18341 2,09 19696 2,3 21764 2,29 22471 3589 0,48 4573 0,62 5888 0,67 6581 1818 0,17 1633 0,17 1645 0,2 1922 18797 2,67 25198 2,91 27491 2,94 28845 248963 27,6 260717 26,36 258586 Saúde 6,06 41553 6,01 43388 5,03 47436 5,38 50851 5,11 50138 Trabalho 1,97 13493 15124 2,05 19352 2,33 21972 2,31 22695 Educação 2,67 18315 2,67 19251 2,44 22991 2,87 27084 2,88 28251 C ultura 0,06 408 0,08 588 0,07 679 0,09 842 0,09 898 0,1 694 0,14 985 0,12 1149 0,11 1053 0,15 1510 Direitos da cidadania 208578 31,1 0,59 2007 R$ 224181 26,39 2,1 Urbanismo 0,22 1503 0,35 2511 0,27 2515 0,52 4927 0,44 4341 Habitação 0,09 617 0,09 678 0,14 1364 0,07 668 0,11 1045 Saneamento 0,01 96 0,01 105 0,01 66 0,18 1730 0,18 1782 Gestão ambiental 0,22 1504 0,33 2369 0,2 1882 0,38 3604 0,38 3754 C iência e tecnologia 0,48 3285 0,54 3894 0,47 4463 0,51 4814 0,53 5225 1,4 9623 1,37 9904 1,26 11864 1,34 12619 1 9773 Organização agrária 0,48 3299 0,59 4261 0,53 4967 0,57 5399 0,46 4522 Indústria 0,28 1951 0,25 1778 0,26 2416 0,33 3137 0,23 2279 C omércio e serviços 0,38 2627 0,47 3382 0,35 3264 0,34 3199 0,34 3375 C omunicações 0,09 626 0,08 572 0,06 559 0,11 1008 0,05 531 Energia 0,07 499 0,08 560 0,06 525 0,06 604 0,05 534 Transporte 0,67 4602 1,11 7995 0,86 8142 1,44 13608 1,34 13114 503 0,09 862 0,17 1574 0,1 964 469616 45 424979 47,35 464494 47 0 100 944.441 100 Agricultura Desporto e lazer Encargos especiais** Não aplicável TOTAL 0,05 43,82 0 100 342 0,07 300256 42,5 0 685.256 100 306424 49,79 0 721.798 100 943.264 981.080 Fonte: SI GA Bras il / Senado Federal * V alor atualizado c om bas e no I GP -DI . * * E xc etuados os valores referentes ao refinanc iamento da dívida públic a. Na verdade, tomando em conta a oscilação negativa verificada no período, pode-se dizer que a educação perdeu espaço no orçamento federal executado nos últimos anos, chegando, em 2006, a seu menor patamar: 2,44%. A recuperação apresentada em 2007 (2,87%), por outro lado, apenas repõe a participação relativa executada em 2003 (2,88%), o que significa dizer que, ao final do quinquênio, as despesas executadas na função educação cresceram na exata medida das despesas orçamentárias gerais. Ressalte-se ainda que, em 2002, a educação participou com 3,1% dos gastos orçamentários federais. Nesse sentido, caso se houvesse, no mínimo, mantido o patamar de 2,88% nos exercícios de 2004 a 2006, os gastos em educação teriam sido significativamente maiores. Entre os chamados “gastos sociais”, os únicos que alcançaram elevação significativa no primeiro mandato do presidente Lula foram: urbanismo, habitação, organização agrária e assistência; esta última ultrapassou paulatinamente a função “educação”, chegando em 2006 a um dispêndio de R$ 25,144 bilhões, ano em que assumiu sua atual formatação. No primeiro ano do segundo mandato, seguiu sendo ampliada a participação da assistência no total das despesas, alcançando-se 2,91% (R$ 27,43 bilhões). Outras funções que mereceram destaque por seu significativo fortalecimento em 2007 foram trabalho (2,33%) e saneamento (R$ 0,18%). O crescimento da assistência no orçamento se deve, sobretudo, à ampliação do Programa Bolsa Família, o qual alcançou, em 2006, um dispêndio de R$ 9,6 bilhões, quantia 31,9% 260 superior à aplicada em 2004 (R$ 7,28 bilhões)214,A menção a esse programa é importante porque uma das condicionalidades para o recebimento dos benefícios por parte das 11.035.371 famílias cadastradas215 é que assegurem, em relação a seus filhos, “(...) freqüência escolar de 85% em estabelecimento de ensino regular (Lei no 10.836/2004, artigo 3o)”. Além de considerar as dificuldades enfrentadas pela administração central em fiscalizar o cumprimento dessa condição216, alertamos para a necessidade de que a ampliação dos benefícios seja acompanhada de melhorias diretas na própria rede de ensino, pois a política pública assistencial somente se justifica se acompanhada de políticas sociais capazes de enfrentar a questão da exclusão. Outra perspectiva de análise possível diz respeito à avaliação da proporcionalidade entre capacidade fiscal do ente federado (ou do Estado nacional) e distribuição de encargos em matéria de financiamento da educação. Neste ponto, no Brasil há um marcante desequilíbrio, uma vez que a União é, ao mesmo tempo, quem mais arrecada e quem menos gasta em educação, seja sob o ponto de vista relativo, seja sob o absoluto. Nesse sentido, apesar de a União ser o ente que mais arrecada, sendo responsável por 58% da receita tributária líquida217, contra 26% dos Estados e 16% dos Municípios, não é ela a responsável pela maior parte dos gastos educacionais no País. Na verdade, entre 2004 e 2006 houve uma pequena redução da participação da União no gasto em educação, que caiu de 17,2% a 17%. Enquanto isso, no período referido, a participação dos estados foi de 41,4% a 42,8%, enquanto a dos municípios foi de 41,4% a 40,2% (Fonte: Inep/MEC). Por esse motivo, na atual realidade brasileira, para se considerar o esforço de todas as esferas estatais no financiamento da educação o melhor e mais sintético indicador é o percentual do gasto educacional em relação ao PIB. Sob esse enfoque, nota-se uma sensível melhora no período considerado, quando a despesa pública direta218 em educação em relação ao PIB foi de 3,9% entre 2003 e 2005 a 4,4% em 2006. Responsáveis por este ligeiro crescimento são, sobretudo, os estados e os municípios, uma vez que, como já afirmamos, a participação da União federal manteve-se praticamente estagnada neste período. Enquanto o gasto público direto da União em relação ao PIB passou de 0,6% em 2004 a 0,7% em 2006, o mesmo indicador em relação aos estados saltou de 1,6% a 1,9% , enquanto em relação aos municípios foi de 1,6% a 1,8% do PIB. Um fator positivo baseado neste indicador, quando considerado o público infanto-juvenil, é que o aumento do gasto público educacional em relação ao PIB se deu, principalmente, na educação básica, que passou a representar 3,7% do PIB em 2006, contra 0,7% da educação superior. Por outro lado, não se pode deixar de considerar que o menor aporte no ensino superior tem reflexo direto na educação básica, sobretudo na carência de professores adequadamente qualificados. Quando considerada a participação de cada nível ou etapa no gasto educacional total, percebemos que houve, no período, uma concentração das despesas nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio, que passaram a representar, respectivamente, 31% e 13,2% em 2006, contra 28,4% e 11,7% em 2004. A participação do gasto nas séries 214 Fonte: Siga Brasil, corrigido pelo IGP-DI de 2006. 215 Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social (www.mds.gov.br), acessado em 20 de abril de 2007. 216 FOLHA DE S.PAULO. São Paulo, 28/2/2007. “Controle do governo sobre o Bolsa Família é precário. (...) O Ministério do Desenvolvimento Social recebe hoje apenas 70% dos dados sobre freqüência escolar dos beneficiados com o Bolsa Família, o que equivale a 11,4 milhões de crianças. A União ignora se 4,9 milhões de alunos cumprem as exigências do programa. Segundo dados divulgados pelo próprio ministério, o governo federal é informado precariamente pela maior parte dos municípios brasileiros sobre a freqüência escolar e o cumprimento das exigências de saúde dos beneficiados pelo Bolsa Família, duas contrapartidas impostas pelo programa para manter os repasses”. 217 A receita tributária líquida é o valor à disposição do ente federado após as transferências constitucionais e legais obrigatórias. No Brasil a receita tributária bruta é assim arrecadada: 70% na União, 26% nos Estados e 4% nos Municípios. Os dados são da Receita Federal (2006). 218 Não se incluem nas despesas públicas diretas os gastos com aposentadorias e pensões, investimentos com bolsas de estudo, financiamento estudantil e despesas com juros, amortizações e encargos da dívida da área educacional. 261 iniciais do ensino fundamental passou de 33,7% em 2004 a 32,6% em 2006, enquanto a educação infantil foi reduzida de 9% em 2004 a 7,7% em 2006. Tais indicadores demonstram, por um lado, o impacto da melhoria do fluxo escolar nos gastos educacionais, com uma maior quantidade de estudantes chegando às séries finais da educação básica; por outro lado, demonstram a pouca prioridade que é vítima a educação infantil. Por outro lado, é importante destacar que essa ampliação do gasto educacional em 0,5% do PIB nos últimos anos ainda deixa o Brasil longe de alcançar o patamar de gastos mínimo determinado pela UNESCO e que serve como referência internacional, que é de 6% do PIB para os países em desenvolvimento. Em nosso caso, qualquer programa ou política de ampliação do gasto público educacional que tome como referência este patamar implica em reformar significativamente a postura até então adotada pela União federal em relação, sobretudo, à educação básica. Isso porque há unanimidade de que tanto Estados como Municípios se encontram praticamente esgotados quanto a esta possibilidade de ampliação (ao menos em relação à escala referida). Ademais, fica evidenciada da análise das profundas desigualdades regionais e intraregionais em matéria de oportunidades educacionais, amplamente constatadas neste documento, que somente a ação de um ente nacional (supraregional) seria capaz de enfrentar esta questão, injetando mais recursos e redistribuindo-os entre os demais entes federados. Há recursos no orçamento federal brasileiro para o enfrentamento deste desafio. No entanto, como veremos no próximo tópico, estes têm sido canalizados em favor da concentração de riqueza via sistema financeiro, em detrimento da ação estatal com vistas à realização dos direitos humanos em geral e dos direitos infanto-juvenis, cujo interesse superior enunciado na Convenção tem sido quotidianamente violado também em matéria de orçamento. A educação é um exemplo típico dessa situação. Desvio de recursos educacionais, ajuste fiscal e impacto da dívida na educação O sistema de vinculação de recursos assegura certa estabilidade na manutenção do sistema de ensino, no entanto, como será demonstrado adiante, não foi capaz de isoladamente atender à recomendação do Comitê quanto ao aumento dos gastos públicos em educação e sua melhor distribuição. Isso se deu basicamente em razão do descumprimento, pelo próprio Estado, das vinculações asseguradas na Constituição, o que é conseqüência direta da falta de prioridade orçamentária à educação, sobretudo na esfera federal – justamente aquela responsável pela equalização de oportunidades educativas. O principal mecanismo responsável pelo desvio de finalidade dos recursos originariamente destinados à educação é a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que se opera no orçamento federal. Criado em 1994219 como mecanismo provisório destinado a custear a reforma monetária que deu origem à atual moeda brasileira – O Real, a DRU vem sofrendo, desde então, sucessivas prorrogações, sendo que a última delas se deu em 2007, estendendo sua vigência até 2011220. A DRU permite a liberação de 20% do total de receitas vinculadas da União, antes destinadas principalmente às áreas de seguridade social (saúde, previdência e assistência social) e educação, permitindo sua aplicação em finalidade diversa daquela originalmente determinada pela Constituição. São excluídos da incidência da DRU os recursos arrecadados através da contribuição social do salário-educação221. 219 Através da Emenda Constitucional de Revisão n° 01/1994. 220 Emenda Constitucional n° 56, de 20 de dezembro de 2007: "ADCT. Art. 76. É desvinculado de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2011, 20% (vinte por cento) da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais”. 221 Sobre a forma de incidência da DRU em relação aos recursos educacionais, consultar. AÇÃO EDUCATIVA. Boletim Eletrônico OPA: informação pelo direito à educação. Ed. n° 36. Maio de 2007. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/portal/opa/opa36.html. 262 Somente entra 2004 e 2008, a DRU desviou da educação R$ 26,38 bilhões, recurso que seria direcionado à manutenção e desenvolvimento do ensino. Com a DRU, a vinculação de receita de impostos da União, que seria de 18%, na prática variou de 12% a 13% no período analisado, com exceção de 2006, quando alcançou 17,41% (Tabela 2, linha l)222. Tais recursos somaram-se aos desvinculados de outros programas, sobretudo vinculados à seguridade social, resultando em R$ 208,18 bilhões retidos através da DRU nos últimos cinco anos (Tabela 2, linha e) e canalizados de tais programas diretamente ao sistema financeiro nacional e internacional através do mecanismo do superávit primário obrigatório223 e do pagamento da divida pública. Esta dívida, sob a qual o Estado brasileiro não admite auditoria apesar de expressa disposição constitucional, é a grande responsável pela carência de recursos nas áreas sociais, como já constatou o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, inclusive destacando a temática da crise de liberalização financeira, cuja atualidade é evidente: “16. El Comité toma nota de que la reciente recesión económica, junto con ciertos aspectos de los programas de ajuste estructural y de las políticas de liberalización económica, han surtido algunos efectos negativos en el goce de los derechos económicos, sociales y culturales consagrados en el Pacto, en particular, entre los grupos más desvalidos y marginados.” (E/C.12/1/Add.87, 26 de junho de 2003). No período analisado, entre 1/3 (um terço) e um ¼ (um quarto) de toda a despesa pública foi consumida pela dívida, sendo a maior parte perdida na remuneração de seus serviços, ancorados em altíssimas taxas básicas oficiais de juros. Em 2004, excluída a rolagem da dívida vencida e não paga, 26,85% do orçamento público foi gasto com a dívida, sendo 13,68% em juros e encargos e 13,17% em amortizações; em 2006 esses índices alcançaram, respectivamente, 33,72%, 18,73% e 14,99%; em 2008 foram direcionados 12,01% dos gastos públicos federais para o pagamento de juros e encargos e 18,65% para amortizações. Em média, nada menos que R$ 642 bilhões foi gasto somente em juros e encargos da dívida pública entre 2004 e 2008, o que corresponde a quase seis vezes o gasto federal em educação. Apesar de sua enorme dimensão, o ajuste fiscal não dá conta da questão da dívida, o que tem como efeito a perenidade do problema. Segundo as informações oficiais recentemente divulgadas, em 2008 o superávit primário atingiu R$ 71,4 bilhões, equivalentes a 2,46% do PIB estimado para o exercício, frente a um superávit de R$ 57,8 bilhões no ano anterior, correspondentes a 2,23% do PIB. Considerando-se a poupança recentemente criado do Fundo Soberano Brasileiro, o esforço primário do ano foi de R$ 85,6 bilhões, representando 2,95% do PIB. No mesmo ano, R$ 289 bilhões foram canalizados para a dívida, incluindo amortizações e serviços. Reformas constitucionais e legais no campo do financiamento da educação No período analisado, duas iniciativas legislativas do governo federal merecem destaque no campo do financiamento educacional, sendo uma positivas e outra negativa. A iniciativa considerada positivas é a criação do Fundeb, com a aprovação da EC (Emenda Constitucional) no 53/2006, com a inclusão das creches no referido Fundo (Fundo de 222 Sobre os impactos da DRU no orçamento federal da educação, consultar. XIMENES, Salomão Barros. A execução orçamentária da educação no primeiro mandato do governo Lula e suas perspectivas. In: CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO. Insumos para o debate: financiamento da Educação no Governo Lula. São Paulo: CNDE, 2009. p.08 a 32. 223 O superávit primário obrigatório é anualmente estabelecido nas leis orçamentárias e visa à colabora dos entes da administração direta e indireta, bem como das empresas públicas, na produção de um saldo orçamentário mínimo destinado ao programa de ajuste fiscal. Caracteriza-se o superávit como primário porque nela não se contabiliza como despesa o pagamento de serviços da dívida pública. A DRU representa o principal mecanismo do governo na produção desse excedente orçamentário primário. 263 Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), além de todas as demais etapas e modalidades da educação básica não incluídas no Fundef224. Há ainda a garantia constitucional de elevação da participação da União no custeio das etapas e das modalidades da educação básica, com previsão de que passe a financiar no mínimo 10% do total das receitas vinculadas ao novo Fundo nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios a partir de 2010.225 No entanto, como demonstrado anteriormente, os ganhos decorrentes do Fundeb não são capazes de suplantar as perdas decorrente da medida de natureza negativa representada pela prorrogação da DRU até 2011. Sugestões de recomendações ao Estado Tomando em conta as questões anteriormente colocadas, entendemos cabíveis as seguintes recomendações ao Estado brasileiro: 1. Que o Estado-parte leve em conta na formulação e implementação de suas políticas que a educação é um direito a ser exercido durante toda a vida e que valorize o desenvolvimento de sinergias entre as diferentes etapas escolares, assegurando significativa melhoria tanto à educação destinada às crianças e adolescentes quanto àquela voltada aos jovens e adultos e que tome como prioridade nesse sentido o enfrentamento ao analfabetismo absoluto e funcional, elevando a escolaridade geral da população; 2. Que o Estado-parte reveja sua atual postura em relação à educação infantil, sobretudo quanto as creches, que tem sido sistematicamente colocadas em segundo plano no âmbito das políticas até então adotadas, com graves prejuízos justamente às crianças com maior vulnerabilidade social e econômica; 3. Que o Estado-parte dê maior atenção, inclusive através de esforço legislativo e da destinação de mais recursos públicos, às políticas de equidade na educação básica que tenham como objetivo corrigir as graves discriminações constatadas nos diferentes níveis escolares, seja em função da origem regional, da raça ou etnia, do gênero ou da orientação sexual, dando especial atenção aos mecanismos de exclusão econômica de crianças e adolescentes que levam, por um lado, à indisponibilidade de escolas públicas justamente para os mais pobres, e por outro, à inserção precária desta população no sistema de ensino; 4. Que o Estado-parte reveja seus currículos e propostas educacionais para o ensino secundário e técnico-profissional, uma vez que está evidenciada a dificuldade em atingir parcela significativa da população na faixa etária própria, seja pela ausência de incentivos pedagógicos e econômicos à permanência na escola, seja pela não adaptação das atuais propostas aos interesses do público juvenil; e que na revisão desses conceitos os adolescentes e jovens exerçam papel decisório juntamente com os demais atores interessados; 5. Que o Estado-parte reveja e fortaleça sua política de inclusão das crianças e adolescentes com deficiência na rede regular de ensino e que as escolas sejam dotadas de capacidade infra-estrutural, técnica e pedagógica de lidar com as necessidades educacionais especiais da população em geral e, especialmente, das crianças e adolescentes com deficiência; e que na política de financiamento do ensino seja dada absoluta prioridade aos entes subnacionais e às escolas que promovam fortemente a inclusão educacional de todos na rede regular de ensino; 6. Que o Estado-parte enfrente decididamente a questão da desvalorização dos professores da educação básica pública e dos demais trabalhadores da educação, situação que tem levado ao afastamento dos melhores quadros do magistério, com reflexos inclusive no desinteresse geral dos jovens em seguir esta carreira, levando à 224 Instituído pela Emenda Constitucional no 14, de 12 de setembro de 1996, o Fundef entrou em vigor em nível nacional em 1o de janeiro de 1998 e expirou em 28 de fevereiro de 2007, data em que passou a vigorar o Fundeb. 225 Para uma análise completa das modificações introduzidas pela EC no 53/2006, consultar: AÇÃO EDUCATIVA. A Emenda Constitucional no 53/2006 e o novo fundo de financiamento do ensino básico. Boletim OPA, no 32, ano III, janeiro de 2007 (disponível em www.acaoeducativa.org/acaonajustica). 264 esdrúxula situação na qual vagas são abertas em concursos públicos sem que para elas concorram candidatos; que na valorização do magistério público os profissionais de mesma formação sejam tratados de forma eqüitativa, independentemente da etapa da educação básica a que se dediquem; 7. Que o Estado-parte amplie o gasto público direito educacional, atingindo, no mínimo, o valor equivalente a 7% do PIB, e que na distribuição dos recursos seja priorizado o enfrentamento das desigualdades econômicas entre os entes federados, de forma a que o valor gasto por aluno a cada ano leve em conta o princípio da não discriminação, assegurando-se, em todo seu território, que este valor respeite um custo-aluno capaz de assegurar condições adequadas de inserção e desenvolvimento escolar de qualidade; que na ampliação dos gastos públicos educacionais e na formulação de seus orçamentos o Estado-parte leve em conta a persistente realidade de exclusão educacional, de forma que seja assegurada a todos a garantia do acesso à escola acompanhada de maior gasto público, de forma que a inclusão de novos estudantes não leve à ainda maior precarização da condição dos que já estão na rede; 8. Que o Estado-parte reveja sua atual política de ajuste fiscal, que inviabiliza boa parte das políticas sociais destinadas à garantia e promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais e, principalmente, dos direitos de crianças e adolescentes, e que passe a levar em conta em suas decisões os compromissos internacionalmente assumidos em matéria de direitos humanos. Anexos QUADRO 2 Quadro institucional: competências das três esferas de governo em relação ao ensino No campo da produção de normas sobre o direito à educação também há distribuição de competências, sendo que à União federal cabe estabelecer as diretrizes curriculares gerais da educação e suas bases normativas comuns (incluindo-se o padrão mínimo nacional de qualidade). Enquanto isso, aos estados e ao Distrito Federal cabe suplementar a legislação federal (CF/88, art.24, IX, §§ 1° a 4°). Já os municípios não dispõem de competência legislativa autônoma em matéria de educação e ensino, podendo, no entanto, estabelecer programas educacionais e pedagógicos ajustados às suas peculiaridades econômicas, geopolíticas e culturais (CF/88, art.30, I e II). Esfera Competências • CF/1988 – “A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios”. (CF/88, art. 211, §1º) • CF/1988 – “Compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional”. (CF/88, art.22, XXIV) • CF/1988 – Compete à União estabelecer normas gerais sobre educação e ensino (CF/88, art.24, IX, §1º) União • LDB – A União incumbir-se-á de: I – elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios; II – “organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais do sistema federal de ensino e o dos territórios”; III – prestar assistência técnica e financeira aos estados, ao Distrito Federal 265 e aos municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva. (Lei n° 9.394/1996, art. 9º) • LDB – “O Sistema Federal de ensino compreende: I – as instituições de ensino mantidas pela União; II – as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada; III – os órgãos federais de educação”. (art. 16) • LDB – “Caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas”. (art. 55) • A União, de acordo com a alínea d, do inciso VII, do art. 60, do ADCT, complementará os recursos do Fundeb, a partir de 2010, sempre na razão mínima de 10% da receita total vinculada ao fundo em estados e municípios. • A União deve definir o padrão mínimo de qualidade do ensino, bem como seu custo-aluno, a ser assegurado por todos os entes federados (ADCT, art.60, §1º). • CF/1988 – “Os Estados e DF atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio”. (CF/88, art. 211, §3°) • CF/1988 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal suplementar a legislação federal e exercer competência legislativa plena na inexistência de lei federal (CF/88, art.24, IX, §§ 2º a 4º) Estado s • LDB – “Os Estados incumbir-se-ão de: II – definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino fundamental, as quais devem assegurar a distribuição proporcional das responsabilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder Público; (...) VI – assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio”. (art. 10) • LDB – “Os sistemas de ensino dos Estados e do DF compreendem: I – as instituições de ensino mantidas, respectivamente, pelo Poder Público estadual e pelo DF; II – as instituições de educação superior mantidas pelo Poder Público municipal; III – as instituições de ensino fundamental e médio criadas e mantidas pela iniciativa privada; IV – os órgãos de educação estaduais e do DF, respectivamente”. (art. 17) • A forma de distribuição do Fundeb entre os estados e seus municípios será proporcional ao número de alunos matriculados nas respectivas redes de ensino. (ADCT, art.60, II). • CF/1988 – “Os municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil”. (CF/88, art.211, §2º) • CF/1988 – Compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (CF/88, art. 30, I e II) • CF/1988 – Compete ao Município – “Manter, com a cooperação técnica e 266 Municí pios financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental”. (CF/88, art. 30, VI) • LDB – “Os municípios incumbir-se-ão de: I – organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados; (...) V – oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino”. (art. 11) • LDB – “Os sistemas municipais de ensino compreendem: I – as instituições do ensino fundamental, médio e de educação infantil mantidas pelo Poder Público municipal; II – as instituições de educação infantil criadas e mantidas pela iniciativa privada; III – os órgãos municipais de educação”. (art. 18) Elaboração: Autor, a partir de original em IPEA, TD 1352/2008. 267 Justiça Juvenil Análise sobre os direitos da criança e do adolescente no Brasil: relatório preliminar da ANCED Subsídios para a construção do relatório alternativo da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Crianças das Nações Unidas 268 Justiça Juvenil Introdução Recentemente foi lançado um documentário sob o sistema de Justiça Juvenil brasileiro e diversos/as cidadãos/as ficaram chocados com o modo arbitrário através do qual a vida dos jovens em conflito com a lei é decidido. A dosimetria da pena não lhes parece mais algo técnico, mas uma mera conversa amigável entre juízes, promotores e defensores que são capazes de produzir resultados totalmente diversos sobre o mesmo fato. Alguns desses resultados são internamentos dos adolescentes por até três anos. 226 Assistiu-se-também na ocasião ao mal causado pela inacessibilidade da linguagem jurídica. Na última cena do documentário o corpo jurídico está confuso como um adolescente detido espera em frente a eles o resultado de sua sentença se havia juridicamente obtido liberdade assistida. Após longas discussões a questão é elucidada. O adolescente obtivera liberdade assistida em audiência que ocorrerá dois anos antes. Mas, não tendo entendido o que se passará viu uma oportunidade de fuga e a aproveitou na mesma tarde que iria ser legalmente solto. No sistema passou a constar como fugitivo o que ocasionou nova detenção. Todos riem e é dito ao adolescente, que continuava nada entendendo, que ele está livre. O mostrado no filme não nos parece nada risível, trata-se da dura realidade de um sistema que deveria ser pedagógico, porém está bem longe desse objetivo e o pior é que essas não são nem mesmo suas piores faces. O documentário apenas mostra locais limpos e sem violência. Não foi isso que documentamos nas páginas a seguir. Adolescentes do sexo feminino presas em celas com homens adultos, adolescente acorrentado a grade da delegacia, revista íntima de familiares, torturas... Uma das instituições retratadas no documentário, o Instituto Padre Severiano227, é assim descrita pelo desembargador Siro Darlan após visita surpresa ao local onde só cabem 130 jovens em cumprimento de medida havia 230. Horrorizada a equipe que visitava o Padre Severiano constatou que o lugar que chamam de cama era um beliche de cimento sem colchão, onde dormem dois, as vezes três jovens adolescentes. Escova de dente só tem aqueles que recebem dos familiares. Assim mesmo, é cortada pela metade pelos agentes de segurança. O local destinado a higiene pessoal estava infestado de ratos e baratas e a comida era servida em quentinhas frias e com limite de cinco minutos para engolirem o que é servido duas vezes ao dia. Há atitudes positivas, mas elas ainda são isoladas e representam muito pouco, se vistas a partir da carência do sistema. Esse relatório tem por intuito de modo imparcial apresentar o sistema de justiça juvenil hoje em todas as suas faces, esperando que desse modo os mecanismos de controle do sistema internacional possam servir como aliados na busca da verdadeira justiça para os/as jovens brasileiros/as. Entendemos que o Sistema Global de Direitos Humanos pode ter papel decisivo na consecução desse objetivo, tornando Estado e sociedade mais responsivos e conscientes. Especialmente em relação aos direitos das crianças e adolescentes expostos na Convenção sobre os Diretos da Criança que são reiterados e aprofundados pelas normas jurídicas constitucionais e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Tais normais devem ser a base para a definição das políticas sociais, de investimentos e econômicas que favoreçam os direitos humanos dos/as cidadãos/as em geral e em especial dos setores mais vulnerabilizados que no caso específico deste relatório são os adolescentes em conflito com a lei. 226 Tempo máximo atual que diversos projetos de lei tentam aumentar. Vide anexo n. 01 227 O CEJIL denunciou a situação de inadequação e violação de direitos doas unidades que compõem o Degase (Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas do RJ) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Diante da inação do estado do Rio de Janeiro em responder adequadamente as exigências da Comissão, a denuncia encontra-se hoje na espera do Relatório Final da Comissão com possibilidade de envio do caso para julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 269 Recomendação 70 - a) Implemente plenamente as regras relevantes do Estado relativas à Justiça Juvenil, incluindo as medidas sócioeducativas em todo o território do Estado-parte. 60 anos da Carta da ONU. 20 anos de Constituição. 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Importantes marcos normativos aos quais o Brasil está vinculado e que asseguram um cabedal de direitos fundamentais a todos/as. Os direitos neles elencados são trunfos contra maiorias ocasionais e modificações cíclicas de pensamento derivadas de acontecimentos de grande impacto para a opinião pública. Ainda assim há tempos não se via manifestação tão intensa no Congresso na tentativa de se subtrair direitos elementares de crianças e adolescentes envolvidos em infrações. São mais de 30 projetos em discussão no momento.228 A legislação brasileira pertinente às crianças e adolescentes e, especialmente, em relação aos adolescentes em conflito com a lei é extremamente avançada. O país além de ser signatário da Convenção dos Direitos da Criança e das Regras de Beijing possui um avançado Estatuto da Criança e do Adolescente que considera a sanção sócio-educativa como uma medida direcionada a educação e a inclusão social. Entretanto, a realidade ainda encontra-se bastante longe da realização desses preceitos em sua integralidade. Ainda é generalizado o pensamento de que a repressão realizada aos adolescentes em conflito com a lei deve retribuir-lhes o mal feito e se tornar cada vez mais dura.229 O Brasil precisa tomar uma decisão política condizente com seus estatutos legais. É importante deixar claro que a maioridade penal aos 18 anos se baseia sim na concepção de que os jovens são sujeitos em estágio de desenvolvimento mas é também uma decisão política de Estado que demonstra a crença na possibilidade de recuperação de nossos jovens e demonstra que a criminalidade não lhes é algo intrínseco. “Significa antes de mais nada que a sociedade está oferecendo ao adolescente, mediante um proposta sócio-educativa bem definida outra opção de vida que não permanecer na criminalidade.”230 Reduzir a maioridade penal, considerar a infração cometida pelo adolescente como reincidência se cometido o mesmo crime na idade adulta, aumento do tempo de internação. Pululam propostas no Congresso Nacional com o intuito de recrudescer o sistema. Laura Frade destaca que justiça juvenil é um dos temas que gera maior movimentação de propostas no Congresso.231 As proposições são diversas, mas se direcionam ao mesmo objetivo diminuir direitos materiais e processuais dos adolescentes. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes aos anos de 2005 e 2006, o Brasil tinha 24.461.666 de adolescentes entre 12 e 18 anos. Desse total, apenas 0,1425% representava a população de adolescentes em conflito com a lei. Tal porcentagem, em números absolutos, significa 34.870 adolescentes autores de atos infracionais cumprindo algum tipo de medida socioeducativa em todo o Brasil. Desses, mais de 1/3 estão nas unidades de internamento. De cada 10.000 adolescentes brasileiros 6 estão em unidades de internamento. 232 No entanto a percepção da violência é bem maior do que sua ocorrência real e o clima atual é de alarde. A imprensa destaca a participação de adolescentes em crimes bárbaros mais do que dá cobertura apropriada ao próprio crime, a sociedade responde com altos índices de apoio ao 228 Vide anexo 01 229De acordo com levantamento realizado pela socióloga Laura Frade, dos 230 projetos sobre questões criminais propostos entre os anos de 2003 e 2007, 224 tratavam de agravar o tratamento dados aos acusados. Desses, 30 tratavam sobre justiça juvenil (29 com o intuito de recrudescer as regras e 01 com o objetivo de abrandá-las.) FRADE, Laura. O que o congresso brasileiro pensa sobre a criminalidade (UNB, dissertação de mestrado, mimeo). 230 Arantes, Ester. Sobre as propostas de redução da maioridade penal. In A Redução da Maioridade Penal vai resolver o problema da violência? Publicação do Cedeca D. Luciano Mendes de Almeida. 231 FRADE, Laura. O que o congresso brasileiro pensa sobre a criminalidade (UNB, dissertação de mestrado, mimeo). 232 Vide anexo V. Fonte IBGE/PNAD 2006 270 recrudescimento da legislação e no congresso proliferam projetos de lei com esse intuito. Em 2007, foi realizada pelo CNT/Sensus pesquisa em diversos estados brasileiros e 81,5% se posicionaram como favoráveis à redução da maioridade penal. Um estudo realizado pelo DataSenado nos meses de março e abril deste ano mostrou que 87% dos entrevistados defendem que os menores de 18 anos recebam a mesma punição dos adultos ao infringirem a lei.233 Ambas as pesquisas foram realizadas após o triste assassinato do menino João Hélio em fevereiro de 2007, crime bárbaro que chocou a sociedade pela criança ter sido arrastada do lado de fora do carro por vários quilômetros e que teve a participação de um adolescente. A participação desse adolescente, embora não se saiba o grau em que esta se deu, foi extremamente explorada pela mídia e reacendeu o debate na sociedade e no Congresso Nacional. O fato dos demais acusados terem sido condenados a um total de total de 167 anos de prisão, mais de 30 anos cada, e o adolescente aos três anos permitidos pela lei revoltou grande parte da sociedade. O mais grave é que a pesquisa do DataSenado apesar de ter sido feita no clamor do momento, logo após o grave crime citado, tinha por intuito “municiar a votação dos projetos de lei sobre segurança pública que estão tramitando no Senado”. Apesar dos esforços do Executivo e de diversas entidades de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, em 26 de abril de 2007, a Comissão de Justiça e Constituição do Senado exarou parecer favorável a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 20/99 234, de autoria do então senador e hoje governador do DF, José Roberto Arruda que reduz a maioridade penal para 16 anos. A sociedade civil tem se mobilizado, elegeu inclusive, o dia 10 de abril de 2008 como Dia Nacional Contra a Redução da Maioridade Penal e diversas ações foram realizadas em todo o país. O Executivo, por seu turno, tem se mostrado contrário a propostas de recrudescimento do sistema. Como respostas institucional criou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. O SINASE resgata a diretriz pedagógica das medidas socioeducativas e prioriza o nãoencarceramento através de medidas em meio aberto (prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida) em detrimento das restritivas da liberdade (semiliberdade e internação em estabelecimento educacional, a serem usadas em caráter de excepcionalidade e brevidade). Enquanto instrumento do Executivo para responsabilizar-se por políticas públicas que possam aprimorar as redes de atendimento aos adolescentes o SINASE compõe-se de um instrumental de interesse a defesa dos adolescentes em conflito com lei, não pode ele no entanto converter-se em esvaziamento do poder do Judiciário para tratar dessas questões e assegurar direitos dos adolescentes. A formulação do programa iniciou-se há dois anos, data de 2006, mas o Projeto de Lei 1627 foi proposto em 2007 e ainda não foi aprovado. Vale ressaltar mais uma vez que tal proposição encontra-se em discussão em meio a toda essa pressão interna no Congresso Nacional e posicionamento social em favor de tratamento mais severo. A ANCED apóia a implantação e implementação do SINASE contanto que sejam obedecidos os parâmetros essenciais a uma política socio-educacional democrática e eficaz quais sejam: a) seja assegurado o respeito à diversidade social e cultural das regiões do Brasil, b) todas as ações de implantação e implementação do sistema estejam sob a égide da orientação internacionalista do melhor interesse da criança 233<http://www.senado.gov.br/sf/senado/centralderelacionamento/sepop/pdf/Pesquisa%20Viol%C3%AAncia%20no %20Brasil%20-%20comunicado%20%C3%A0%20imprensa.pdf> 234 A votação do projeto está marcada para o dia 07 de outubro no Senado Federal. 271 c) sejam incentivadas ações que privilegiem a participação da família e da sociedade no processo de implantação e implementação do sistema sócio-educativo d) assegure-se uma gestão participativa na qual todos os atores envolvidos sejam escutados especialmente, a sociedade civil e) existam mecanismos que assegurem, através dos Conselhos de Direito, na esfera do município, do estado (e distrito federal) e da União, orçamento público, neutralizando toda forma de descontinuidade da política sócio-educativa f) esteja sob a tutela jurídica, administrativa e política de Secretária própria, in tempore, na Secretaria Especial de Direitos Humanos, vinculada a Presidência da República, não se restringindo conceitualmente como plano, programa ou política de assistência social g) respeite-se os limites e competências do poder público e da sociedade civil organizada, à luz da Constituição Federal Republicana, não delegando e declinando ações de caráter estratégico para o campo não governamental, afastando assim a tendência minimizadora de transferência da gestão pública do Estado para a sociedade civil. Além disso, o SINASE consubstancia em termos normativos a concepção de que o pacto federativo brasileiro com a divisão do país em União, Estados e Municípios não pode servir de escusa para a União quando do fornecimento de relatórios ao sistema internacional como o argumento de não poder ser responsabilizada por atos de seus entes federados. Descabe a alegação de que certas atitudes seriam dos estados federados ou dos municípios e que a União não teria como controlar. O SINASE prova que há sim formas de controle. Uma das razões básicas é que são recursos provenientes da União que possibilitam a implantação e execução de programas nos níveis estaduais e municipais, portanto, a União pode (e deveria) exigir que certos parâmetros mínimos fossem cumpridos. Veja-se as disposições do projeto de lei do SINASE relativas à União: I - formular e coordenar a execução da política nacional de atendimento socioeducativo; II - elaborar o Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo, com a colaboração dos Estados, Distrito Federal e Municípios; III - prestar assistência técnica e suplementação financeira aos Estados, Distrito Federal e Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas; IV - colher informações sobre a organização e funcionamento dos sistemas, entidades e programas de atendimento e oferecer subsídios técnicos para a sua qualificação; V - estabelecer diretrizes gerais sobre a organização e funcionamento dos programas de atendimento e sobre as condições adequadas das estruturas físicas e dos recursos humanos e materiais dos programas e unidades destinados ao cumprimento das medidas de internação e semiliberdade; VI - instituir e manter processo de avaliação dos sistemas, entidades e programas de atendimento; VII - coordenar o Sistema de Informações da Infância e do Adolescente - SIPIA II; e VIII - co-financiar a execução de programas e serviços destinados ao atendimento inicial de adolescente em processo de apuração de ato infracional, ou que esteja sob medida socioeducativa com os demais entes federados, de acordo com as especificidades das políticas integrantes do SINASE. Fica claro que na proposta do programa a União detém o controle dos parâmetros gerais de execução e é a fornecedora dos recursos. Independentemente da implantação do SINASE, isso já é realidade. Os entes federados implantam tais programas com verbas repassadas pela União. Portanto, a exigência de adequação a parâmetros legais (ao ECA, por ex.), o controle e a fiscalizam são sim de responsabilidade da União. Portanto, embora a União não possa simplesmente interferir em políticas que cabem, ao\s estados federados, ela tem si em mãos um trunfo de pressão política muito poderoso: a liberação de recursos. Até 2006, a maior parte dos recursos liberados se destinavam a apoiar a criação e reformas de unidades de internação num claro apoio a institucionalização dos adolescentes. A partir de 2007, 80,7% dos recursos foram alocados no atendimento socioeducativo.235 Essa é uma mudança de direcionamento da União, mas que se refletirá, se 235 Estudo realizado pelo INESC. Disponível em www.inesc.org.br 272 realizado o devido controle, nas opções políticas dos entes federados. Ainda assim é preciso dizer que pressão e articulação política necessárias a implantação das políticas de proteção aos adolescentes ainda precisam de maior empenho da União, pois uma boa parte dos recursos destinados não foi executada: Programa Atendimento socioeducativo do adolescente em conflito com a lei Promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente Dotação Inicial Autorizado Empenhado Liquidado (Subelemento) % de execução 24.526.462,00 48.226.462,00 47.837.789,04 25.704.810,04 53,30021937 19.821.112,00 24.154.351,00 22.528.803,79 18.029.920,03 74,64460556 A liberação de recursos orçamentários é o grande trunfo da União para direcionar o debate em torno de políticas de proteção e defesa dos adolescentes, inclusive daqueles em conflito com a lei, compelindo os entes federado a respeitarem os direitos estabelecidos na normativa pertinente. É importante que seja exigido e fiscalizado o uso desse instrumento de pressão política. Recomendação 70 - b) Forneça os meios e encoraje que as pessoas menores de 18 anos em conflito com a lei sejam tratadas, tanto quanto possível, sem recorrer para procedimentos judiciais; (OBS: pertinente para o BR de 0 a 12 anos) Importante ressaltar inicialmente que a recomendação bem como qualquer abordagem que não diferencie os adolescentes das crianças pode ser prejudicial e ensejar um retrocesso de direitos. Aos adolescentes, entre 12 e 18 anos, são reconhecidas medidas de caráter sóciopedagógico quando do cometimento de ato infracional. Já as crianças entre 0 e 12 anos não passam por essa clivagem do sistema e têm suas atitudes sob inteira responsabilidade dos pais e/ou responsáveis. Quando uma criança, assim considerados/as os menores de 12 anos, incide em uma atitude considerada um ato infracional, ela jamais deve ser encaminhada a policia. Deve ser levada ao Conselho Tutelar que irá tomar conhecimento de sua situação familiar e social e olhar o ato praticado como um grito de alerta da criança, procurando assim aplicar medidas preventivas para atendê-la e protegê-la. As medidas podem incluir desde apoio aos pais ou responsáveis como perda do poder familiar e o envio da criança a abrigos.236 É importante que a Comissão como instância internacional de proteção ao direito das crianças e adolescentes enfatize essa diferenciação de modo a assegurar o direito de ambos, crianças e adolescentes. Propor meios extrajudiciais que possam lidar com os adolescentes em conflito com a lei é ir contra a corrente majoritária que visualiza nesses jovens uma grande ameaça a paz e a segurança publicas. Embora os dados demonstrem que a maior parte dos jovens em cumprimento de medida não foram condenados por ações violentas, mas por infrações ao patrimônio ou envolvimento com drogas. Em relação ao envolvimento com drogas a situação é ainda mais grotesca pela existência clara de uma clivagem social ignóbil. O jovem pobre pego com certa quantidade de drogas é considerado como se traficante fosse, embora se saiba que ele é só um intermediário na maior parte dos casos, entre o traficante e os usuários de classe média e alta. Tais jovens de periferia são submetidos a medida de internamento. Já os jovens de classe média e alta pegos com drogas são encaminhados para tratamento contra o vicio.237 236 Vide o capitulo específico referente a abrigos. 237 Tais infornmações são corroboradas por estudos divulgados pelo ILANUD. Disponível em: http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo/tabid/77/ConteudoId/5cee9119-d9c6-453d-a6e1eca9eac94c1f/Default.aspx Acesso em: 23/06/2008 273 Recomendação 70 - c) Considere a privação da liberdade somente como medida de último recurso e pelo mais curto período de tempo possível, limite por lei a duração da detenção antes do julgamento e garanta que a legalidade dessa detenção seja revisada por um juiz sem atraso e regularmente; A privação de liberdade é vista como recurso principal e tem no clamor social seu principal referencial, pois a sociedade com a manutenção dos adolescentes em unidades de internamento se sente livre dos mesmos. O anteriormente referenciado medo que a sociedade sente dos adolescentes em conflito com a lei faz com que o encarceramento seja a medida mais popular em diversos extratos sociais. A maior parte dos adolescentes em conflito com a lei está entre os 16 e 18 anos. Ou seja, no estágio no qual vivenciam o auge das transformações psicológicas e biológicas bem como o período-chave de construção da identidade do adolescente o que advoga para corroborar a tese de que estes merecem tratamento diferenciado pois o ato infracional não é o reflexo de um mal intrínseco em sua personalidade mas o reflexo de vulnerabilidades pessoais e sociais. Porém, os argumentos psicológicos, biológicos e sociais em volta da questão são ignorados ante o interesse por livrar-se desses jovens e isolá-los pelo máximo de tempo possível. Vejamse os diversos projetos de lei em discussão, antes citados, com o intuito de aumentar tal interregno. No entanto, basta uma rápida olhada nos dados para se verificar que o aumento do encarceramento é priorizado em detrimento de outras medidas menos gravosas e baseia-se no temor público e não no comportamento anti-social e perigoso dos adolescentes e mais que isso se pode verificar que há cor e estrato social definido para tal atuação estatal. Em 10 anos, ouve um aumento de mais de 300% no uso de medidas de internação 238, vide anexo III. No entanto, os crimes violentos praticados por adolescentes não acompanharam esse crescimento. Além disso, há uma inversão simétrica entre a lotação das unidades de internação e as instituições de semiliberdade. A lotação das unidades de internamento é de 90%, remanescendo 10% das vagas. Já na semiliberdade há apenas 10% de ocupação e 90% de vagas.239 Não se esqueça que essa sobra de 10% nas unidades de atendimento verifica-se porque algumas unidades realmente possuem lugares em aberto, mas muitas outras ao contrário têm déficit e a superlotação ainda grassa. As medidas socioeducativas de meio aberto deveriam ser de responsabilidade do Executivo Municipal, mas na maior parte dos municípios brasileiros persiste sendo executada pelo Judiciário. Recomendação 70 - d) Forneça às pessoas menores de 18 anos assistência jurídica ou (OBS: e, no BR) outra assistência em estágio antecipado dos procedimentos judiciais; A legislação brasileira não prevê o atendimento técnico especializado ao adolescente acusado de um ato infracional. Na verdade, a lei prevê a defesa técnica mas o entendimento prevalente é que ela só é obrigatória após o adolescente ser formalmente acusado. É uma luta da sociedade civil demonstrar que os adolescentes precisam poder contar com tal defesa na fase policial. A posição majoritária contraria o art. 37, d, do CDC e nega direito elementares ao adolescente, direitos esses que são assegurados aos acusados adultos. Em inúmeras ocasiões o adolescente conta com a presença do conselho tutelar nesta fase, mas só tem a presença no advogado na fase posterior. Por mais bem intencionado que possa ser o conselheiro sua presença não pode de modo algum ser considera como defesa técnica pois lhe falta 238Vide anexo III 239 Vide anexo IV 274 conhecimento jurídico para tanto. O adolescente fica privado da presença do advogado/a na hora da coleta de provas, inclusive de testemunhos e de seu depoimento pessoal. Ora, é basilar que qualquer acusado/a tem direito a conversar com seu/ua advogado/a antes de se posicionar sobre os fatos que lhe impingem (art. 5, LV da CF). Só um/a advogado/a pode verificar se as hipóteses de flagrante que possibilitam a detenção foram cumpridas. O próprio Estatuto da OAB garante o direito de se comunicar com o/a acusado/a, bem como, de compuscar os autos do inquérito. Como tais garantias podem ser asseguradas aos acusados adultos e não aos adolescentes? Para tornar ainda mais grave a situação, finda a fase policial o adolescente, ainda sem a presença do/a advogado/a, é levado a presença do Ministério Público para ser ouvido. Por a legislação asseverar que esse é um momento de oitiva informal, há a convicção da desnecessidade da presença do/a advogado/a. No entanto, esse é um momento decisivo para o adolescente. É nele que o Ministério Público forma sua convicção sobre a necessidade de representar (processar) o adolescente e começa a cogitar as medidas socioeducativas que lhe cabem (inclusive a privação de liberdade) e mais é nesse momento que o MP pode decidir por aplicar a remissão e se o adolescente esperará o julgamento em liberdade ou não. Vejam o relato dos advogados André Hespanhol e Francisca de Assis Soares240 que trabalham diretamente com o tema: Raramente o encontro do jovem com o promotor é decisivo para inspirar proposta de remissão, a qual tem sido concedida quase que exclusivamente em razão da natureza mais ou menos grave do ato infracional. Não tem sido a presença do Ministério Público estimuladora de arquivamento nem tampouco momento privilegiado de controle da atividade policial. O que se vê, na prática, é a condução do ato exclusivamente como colheita de provas contra o adolescente, especialmente, se ele confessa.241 Como se vê em nada tal encontro com o Ministério Público favorece ao adolescente, pelo contrário só o prejudicam, os autores continuam com denúncias ainda mais graves: A oitiva informal é vislumbrada sempre que o adolescente assume a infração, como uma produção antecipada de culpa. Tanto que, de modo absolutamente ilegal, a oitiva ilegal de que fala a lei é, pasmem, formalizada, convertendo-se em assentada para tomada de confissão “espontânea”. E a confissão apresentada diante do Ministério Público, não obstante sua colheita à revelia de qualquer supervisão de defesa, será iterativamente lembrada como prova de autoria ao longo de todo procedimento judicial.242 Além disso, ultimamente o Ministério Público tem cumulado a remissão com medidas socioeducativas. É comum juntamente com a remissão aplicar-se a pena de advertência. Ora, por total impossibilidade jurídica poder-se-ia perdoar o adolescente e ao mesmo tempo lhe aplicar uma medida socioeducativa. Ou o Ministério Público opta por uma hipótese ou por outra. Como pode o perdão ser cumulado com uma advertência verbal que irá gerar antecedente? Se o adolescente é perdoado não cabe ser constrangido através de tal advertência. Discorda o Supremo Tribunal Federal e mais uma vez o adolescente é punido sem a defesa adequada. Veja-se: “(...)O acórdão recorrido declarou a inconstitucionalidade do artigo 127, 240 André é Advogado do Projeto Legal e Francisca do Centro de Defesa Ezequiel Ramim. HESPANHOL, André e SOARES, Francisca. A Oitiva informal e o respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa In Apuração de ato infracional e execução de medida socio-educativa: considerações sobre a defesa técnica dos adolescentes 241 Referencia 242 referencia 275 in fine, da Lei n. 8.089/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), por entender que não é possível cumular a remissão concedida pelo Ministério Público, antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, com a aplicação de medida sócio-educativa. A medida sócio-educativa foi imposta pela autoridade judicial, logo, não fere o devido processo legal. A medida de advertência tem caráter pedagógico, de orientação ao menor e em tudo se harmoniza com o escopo que inspirou o sistema instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A remissão pré-processual concedida pelo Ministério Público, antes mesmo de se iniciar o procedimento no qual seria apurada a responsabilidade, não é incompatível com a imposição de medida sócio-educativa de advertência, porquanto não possui este caráter de penalidade. Ademais, a imposição de tal medida não prevalece para fins de antecedentes e não pressupõe a apuração de responsabilidade. (...) Recurso Extraordinário conhecido e provido.” (RE 248.018, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 6-5-08, DJE de 206-08) Apesar de o Ministro assumir que a advertência não gera antecedentes esse entendimento não é pacífico e tem sido sim a advertência usada para fins de antecedentes em diversos processos contra adolescentes. Apesar do Superior Tribunal de Justiça já ter sedimentado o entendimento através da Súmula 108 de que apenas o juiz pode aplicar medidas socioeducativas, tal questão ainda é polêmica. Ainda mais depois que o próprio STJ contrariou esse entendimento quando decidiu pela possibilidade do juiz homologar a decisão do Ministério Público que impõe remissão cumulada com medida socioeducativa.243 Tal entendimento tem levado a decisões cada vez mais abrangentes em relação as possibilidades de punição dos adolescentes sem o devido processo legal haver sido instaurado e sem a defesa técnica jamais ter sido concedida, veja-se: "HABEAS CORPUS– MENINA MENOR INFRATORA QUE MERECEU SER SUBMETIDA ÀS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DE ADVERTÊNCIA E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE EM REMISSÃO SEM O DEVIDO PROCESSO LEGAL. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM QUE SE DENEGA. Não se apresenta inconstitucional e abusiva a imposição de medidas socioeducativas de advertência e prestação de serviços à comunidade em remissão, se tais medidas estão expressamente contempladas nos artigos 126 e 127 do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. A ressalva se prende às medidas de internação e semiliberdade. In casu, como deflui das judiciosas informações do MM Dr. Juiz a quo apontado como autoridade judiciária coatora, de se aplicar até mesmo a Súmula 108 do STJ. Se se trata de medidas provindas de negócio bilateral objetivando evitar a instauração de procedimento infracional, não há violação a qualquer princípio de natureza constitucional ou processual, até porque tal procedimento está previsto na própria lei de menores, e, na verdade, o due process of law é justamente aquele previsto na norma legal. Logo, não há que falar em quebra do devido processo legal e, muito menos, em inconstitucionalidade. Writ, pois, que se denega". (TJRJ – HC n.2001.059.03175 – 2a Câmara Criminal – Des. J. C. Murta Ribeiro – Julgado em 11/12/2001) – GRIFO NOSSO. Há um total descumprimento da recomendação do Comitê sem que durante o período tenha havido um movimento consistente de quaisquer poderes do estado para assegurar aos adolescentes o direito a defesa técnica na fase pré-processual. Esse é um direito que exige tanto posicionamento legislativo, para tornar clara a previsão legal e impor a necessidade da defesa técnica, quanto uma atuação da defensorias no sentido de disponibilizar defensores 243 (STJ – RESP 200201045409 – (457684 SP) – 6ª T. – Rel. Min. Hamilton Carvalhido – DJU 13.12.2004 – p. 00465). 276 públicos para tais atendimentos,244 quanto posicionamentos judiciais firmes que quando percebam que o adolescente foi prejudicado pela falta de defesa técnica nesta fase préprocessual e declarem a nulidade do julgamento. Recomendação 70 - e) Proteja os direitos das pessoas menores de 18 anos privadas de sua liberdade e melhore suas condições de detenção e internação, particularmente pelo estabelecimento de instituições especiais para pessoas menores de 18 anos com condições adequadas à sua idade e necessidades e garantindo a acessibilidade aos serviços sociais em particular atenção à saúde e educação, em todos os centros de detenção do Estado-parte; e, nesse ínterim, pela garantia de separação de adultos em todas as prisões e locais de detenção antes do julgamento em todo o país; 5400 adolescentes. 5400 vítimas individualizadas. O maior caso com vítimas individualizadas de tortura, com lesões corporais e mortes, presente na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.245 Esses são os números coletados em cinco anos de investigação em unidades de internação de adolescentes de São Paulo. Mas, esse não é um caso paulista, não é uma exceção a regra geral. Pelo contrário, é a regra. Tortura, danos físicos permanentes, mortes, falta de atendimento, psiquiatrização dos adolescentes (com imposição de remédios controlados), péssimas condições de habitabilidade são as características encontradas de norte a sul nas unidades de internamento brasileiras. Mesmo antes os apelos da sociedade civil e as recomendações realizadas pelos organismos internacionais a situação permanece inalterada. Nas primeiras horas de 2008 o jovem Andreu, 17 ano, foi morto no Centro de Triagem e Recepção de Menores Infratores no Rio de Janeiro por traumatismo craniano. Cinco agentes são suspeitos. Todos continuam na ativa, trabalhando normalmente. Apesar do crime ter sido testemunhado por outros adolescentes que o narraram em detalhes. A ONG Projeto Legal, que defende a mãe de Andreu, pediu o afastamento dos agentes do trabalho até o fim do inquérito e ofereceu a entrada das testemunhas —que continuam no sistema— em um programa de proteção, mas a Justiça não concedeu nenhuma das duas medidas. Há alguns dias, precisamente no mês de agosto do corrente ano, o Movimento Nacional de Direito Humanos denunciou ao Conselho de Defesa dos Direitos Humanos violações extremas que vinham sendo relatadas por mães de adolescentes internos na Unidade Dom Bosco (Mato Grosso do Sul). Alguns depoimentos relatam que os adolescentes sofrem violência por parte dos policiais, tanto no momento da apreensão, quanto nas operações de repressão à rebelião ou motim na Unei. As famílias afirmam que é comum a ocorrência de espancamentos e tortura psicológica e física (choques, ameaças com revólver, ameaças à família, etc.) para que confessem a prática do ato infracional até mesmo de delitos que não cometeram. Depois que são encaminhados para a Unei, é comum o uso de força policial e violência para repressão de tentativas de evasão e motim. Nesse sentido, o CDDH foi informado, anonimamente, da existência de “auto de resistência” – que normalmente é registrado quando os agentes ou a própria força policial tentam conter os internos e encontram resistência – revelando que nos últimos autos elaborados, os exames de corpo de delito apontam lesões nas costas e nas mãos, indicando que os internos não estavam em posição de ataque aos agressores, mas sim de defesa. Outra denúncia 244 Vale ressaltar que desde a Emenda Constitucional 45/2004, Reforma do Judiciário, a defensoria pública recebeu autonomia para reger-se administrativamente. 245 O caso, enviado pelo CEJIL em parceria com outras organizações de defesa das crianças e adolescentes, foi admitido pela Comissão (RELATÓRIO Nº 39/02) e agora aguarda o relatório final e o provável envio para julgamento perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. 277 trata de dois casos de abuso sexual de menores dentro da Unei Dom Bosco, ocorridos nos últimos três meses. No episódio mais recente, relatado no dia 22 de Agosto, um jovem teria sofrido violação dentro do banheiro da unidade. Outros três adolescentes o chutaram ininterruptamente e, após a agressão física, praticaram sexo anal a força com o jovem, tendo ficado bastante machucado e necessitado de atendimento médico, sendo encaminhado para a Santa Casa de Campo Grande e para exame de corpo de delito. Relata, ainda que, logo que foi transferido para a referida unidade também sofreu abuso sexual e que, mesmo informando os agentes, só foi encaminhado para outra cela seis dias após o ocorrido. Esse é o retrato particular de uma unidade mas poderia ser também o retrato de muitas outras. A Human Rights Watch recentemente definiu as unidades cariocas como verdadeiras masmorras. Como se não bastasse do ano passado para cá foram registrados pelos menos três casos de adolescentes detidos em celas de delegacias com adultos nos estados do Pará, Mato Grosso do Sul e Goiás foram relatados. Em Abaetuba (PA), uma jovem de 16 anos acusada de furto foi mantida presa por 27 dias numa cela com 20 homens. Em fevereiro, novo escândalo ganhou o noticiário. Adolescente de 14 anos denunciada por assalto a farmácia ficou detida por 11 dias em cadeia de Planaltina de Goiás destinada a adultos. Na semana passada, mais um caso ocupou as manchetes. Menina de 12 anos acusada de agredir delegado ficou dois dias detida à vista dos demais encarcerados. O caso mais grave foi o da adolescente de Abaetuba que relatou ter sido submetida a vários tipos de constrangimentos e torturas, como queimaduras e constantes abusos sexuais. Situações inadmissíveis como essas ainda são constantes no noticiário e na realidade brasileira. Um país signatário da Convença-o de Direitos da Criança e de diversas outras normas internas e internacionais não pode mais estar investigando tais casos depois de denunciados, tem de simplesmente garantir que eles não venham a existir. O fato de ser um estado federativo não diminui a responsabilidade de nenhum dos entes da federação por assegurar o respeito aos direitos humanos e garantir um tratamento digno aos adolescentes em conflito com a lei. O Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados Brasileiros OAB através de suas secções regionais fez uma inspeção no dia 15 de março de 2006 em unidades de internamento de 22 estados e do Distrito Federal. A situação encontrada foi de desamparo, sujeira, falta de serviços essenciais, prédios similares as prisões dos adultos, inexistência de refeitórios com comidas sendo servidas em quartos fétidos e lotados, denúncias de maus tratos e tortura, precariedade e negligência no atendimento a saúde, punições disciplinares “pseudopedagógicas” para melhorar o comportamento dos adolescentes que vão desde proibição do banho de sol ao isolamento. Ou seja, total inadequadação a uma pretensão socioeducativa. As unidades visitadas têm escolas, mas estas se encontram bem longe de representar uma garantia ao direito a educação. Fomos informados de que as salas de aula são multiseriadas, sendo os alunos agrupados em três níveis: de 1ª a 4ª séries; de 5ª a 8ª séries; e de ensino médio. Observamos que os adolescentes na sala de aula utilizavam apenas caderno e lápis como material didático. Não havia livros ou quaisquer outros materiais, tampouco uma biblioteca na unidade. Os adolescentes reclamam, relatando que as aulas são de apenas 15 minutos para cada grupo de cinco a oito pessoas, em virtude do grande número de internos. Eles mencionam ainda que as aulas são somente de algumas matérias. (Espaço Recomeço – EREC, Pará)246 246 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA E CONSELHO FEDERAL DA OAB. Um retrato das unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, 2006. 278 Adolescentes no auge do aflorar sexual têm sua sexualidade e sua saúde deixadas ao léu quando confinados/as. A educação sexual, a distribuição de preservativos, as visitas íntima e os exames médicos preventivos e diagnosticadores de doenças sexualmente transmissíveis são ignorados. Não só a saúde sexual e reprodutiva, mas também os casos de atendimento de emergência não são realizados. No Centro de Internação Provisória Dom Bosco - Ceip I, Minas Gerais foi encontrado um adolescente baleado sem atendimento médico e jogado numa cela superlotada.247 Em relação a drogadição permanece na unidades o entendimento referenciado anteriormente de que os adolescentes de classe média e alta são usuários, mas os pobres são traficantes e portanto a atenção e atendimento aos adolescentes usuários de substâncias ilícitas inexiste nas unidades. São situações como essa que nos fazem pensar que no ano de comemoração dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente estamos ainda exaltando uma norma que é pura ficção e não se realiza, nem se concretiza no dia-a-dia de nosso jovens, especialmente, daqueles em conflito com a lei. A nudez obrigatória de adolescentes, quando existem rebeliões e após o recebimento de visitas é prática comum em grande parte das unidades. A submissão dos parentes à revista intima simplesmente por que a unidade não possui detector de metais também. As unidades não possuem defensores públicos lá lotados e o acesso aos mesmo é, em geral, difícil para os adolescentes. A melhor das realidades é a do defensor que visita a unidade de 15 em 15 dias para prestar assessoria a todos os internos. No pior, chega-se ao absurdo, relatado pela própria instituição, Espaço Recomeço – EREC (Pará) de que há pelo menos dois anos os adolescentes não recebem a visita do juiz, nem da Defensoria Pública.248 Será que assim dá para recomeçar? A manutenção das unidades de internamento é de responsabilidade dos estados federados, porém do mesmo modo que destacamos quando tratamos do SINASE aqui é importante levantar que apesar da atribuição ser das unidades federadas é da União que provem diretrizes nacionais e recursos. Portanto, a União não pode usar o manto do pacto federativo para se excluir da responsabilidade de controlar o sistema. Na verdade o modo como se estrutura a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei demonstra exatamente nosso argumento: a União pode e deve controlar o modo como são executadas medidas socieducativas por estados e municípios pois dela (da União) provêm os recursos. Recomendação 70 - f) Investigue, processe e puna qualquer caso de maus tratos cometidos pelos agentes de aplicação da lei, incluindo guardas de internação, e estabeleça um sistema acessível e sensível à criança para receber e processar reclamações; A impunidade é a regra. Quando denúncias de torturas e maus-tratos vem à tona, o máximo que se tem conseguido é o afastamento do acusados. No entanto, em muitos casos eles são tão somente realocados em outras unidades para cessar o clamor social por sua punição. Condenações judiciais de acusados de tortura são casos raríssimos. Desafortunadamente, a tortura, não. Continuam diariamente a surgirem novas denuncias de torturas sem que a necessária sanção seja implementada. As organizações que realizaram e continuam a realizar visitas as unidades recebem 247 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA E CONSELHO FEDERAL DA OAB. Um retrato das unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, 2006. 248 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA E CONSELHO FEDERAL DA OAB. Um retrato das unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, 2006. 279 constantemente relatos de tortura. O Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Federal da OAB, A Human Rights Watch e os CEDECAS recebem constantemente novas denúncias de violações de direitos e violência cometidas contra adolescentes. Mais do que falar de casos de tortura, como os narrados no tópico acima e no capitulo específico sobre tortura, gostaríamos de aqui demonstrar a total inadequação do sistema para lidar com a questão do adolescentes, especialmente, os em conflito com a lei. E mais a total falta de preparo do sistema para executar o controle da atividade policial e coibir a tortura. A situação é tão grave que a Secretaria de Direitos Humanos recentemente lançou uma cartilha sobre a tortura, outra sobre ouvidoria de policia e por fim uma cartilha intitulada “A Policia me Parou. E Agora? Como se comportar e quais são seus direitos diante da abordagem policial.” No ato de lançamento da cartilha a pesquisadora Silvia Ramos, do Centro de Estudos da Violência da Universidade Cândido Mendes, lançou artigo para tratar do tema intitulado Carta Aberta a um Jovem de Periferia. Nele, além de expor que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro” traz o seguinte dado, 62% da população nunca foi parada pela polícia, alguns já foram abordados mais de dez vezes. Estes são quase todos jovens, do sexo masculino, negros e moradores de periferias. É o que chamamos taxa de risco IGCC: idade, gênero, cor e classe. Quando articulada com territórios excluídos forma uma “geografia da dura”, que descreve não só aqueles que são mais parados pela polícia como a qualidade do tratamento dispensado. (...) Eles vivem experiências reiteradas, muitas vezes humilhantes e algumas vezes violentas, de serem parados,tratados como criminosos e em seguida dispensados por policiais que se mostram frustrados por não terem encontrado nada como elemento suspeito.249 Há 75 delegacias especializadas em atendimento a crianças e adolescentes no Brasil, destas 56 responderam a questionário do Ministério da Justiça sobre seu funcionamento em 2006. A média é de duas delegacias por estados da federação, número esse completamente insuficiente e que acarreta os já narrados casos de detenção de adolescentes junto com adultos. Dentre as delegacias especializadas que deveriam ser lugares mais adequados para lidar com adolescentes, a inadequação é patente: a)apenas 52% promoveram cursos para que seus funcionários fossem capacitados na temática do atendimento à criança e ao adolescente; b) 46% das delegacias especializadas não possuem salas especializadas de atendimento a crianças vitimas de violência; c) 89% não possibilitam o banho de sol dos/as detidos/as; d) 93% não dispõe de atividades recreativas para os/as detidos/as; e) 44% admitiram ter tido problemas com superlotação no último ano. Quanto as ouvidorias de policias, no Brasil, apenas 14 estados possuem ouvidorias de policiais e mais a própria Secretaria de Direitos Humanos admite que a maior parte não dispõe de parâmetros mínimos capaz de torná-las adequadas, quais sejam: a) a ausência de vínculo entre o Ouvidor e as polícias; b) que a nomeação do Ouvidor se dê com base em lista tríplice confeccionada por conselhos estaduais de direitos humanos; c) a atribuição de autonomia política ao Ouvidor por meio de mandato para exercício do cargo; d) a atribuição de corpo próprio de funcionários e autonomia administrativa e financeira às Ouvidorias; e e) o poder de requisição de informações. Recomendação 70 - g) Garanta que as crianças permaneçam em contato regular com suas famílias enquanto no sistema de justiça juvenil particularmente por meio da informação aos parentes quando a criança estiver detida; A garantia do acesso das famílias aos adolescentes em conflito com a lei é parte essencial do processo pedagógico de recuperação dos mesmos. No entanto, tal contato não é favorecido 249 RAMOS, Silvia. Carta Aberta a Um Jovem de Periferia. Publicada no Estado de São Paulo e disponível em: http://www.ucamcesec.com.br/md_art_texto.php?cod_proj=62 280 nem valorizado pela unidades de internamento. Pelo contrário, eles se tornam objeto de barganha sendo dada a punição de não ter contato com a família aos adolescentes que de modo totalmente arbitrário os agentes entendem não apresentarem bom comportamento. A violação do sigilo de correspondência por questões de segurança é realizada na maior parte das unidades, isso impossibilita qualquer denúncia de maus tratos e tortura pelos adolescentes aos seus familiares ou acarreta represálias quando as denúncias são realizadas. A maior parte das unidades não possui um conceito ampliado de família, pelo contrário, considera a família de modo restritivo apenas pelo critério biológico e adoção quando legalizada. As inúmeras formas alternativas de constituição de família existentes são simplesmente ignoradas. O número de famílias que são permitidos visitar os adolescentes são limitados e em diversos casos o número torna-se ainda mais reduzido por conta da constante violação de direitos e humilhação que sofrem pelo simples fato de terem ido visitar um interno. A revista íntima com desnudamento ainda é prática comum mesmo nas instituições que possuem detectores de metais. Até adolescentes que vão visitar seus irmãos, primos, maridos são submetidas ao constrangimento de terem de ficar nuas e se abaixarem várias vezes para provar que não estão levando nenhum instrumento ou substância ilegal. Tal procedimento inibe as visitas aos adolescentes que permanecem muitas vezes sem qualquer contato com familiares e amigos durante o período de internação fazendo-se assim com que se dissolvam os vínculos existentes e retraiam a possibilidade de reinserção social do adolescente quando de sua libertação. Recomendação 70 - h) Introduza exames médicos regulares para pessoas menores de dezoito anos privadas de sua liberdade por uma equipe médica independente; O direito à saúde não é assegurado dentro das unidades de internação. Exames médicos periódicos necessários não são realizados. Nem mesmo para detecção do HIV. Também não são distribuídos preservativos. As condições de higiene necessárias para evitar doenças não são cumpridas. Pelo contrário, o relato mais comum é de sujeira e insalubridade que se reflete tanto em micoses e outras doenças de pele como em casos de tuberculose. Tratamentos para a drogadição também não são realizados e há falta de medicamento e deficiência no corpo técnico (número insuficiente de profissionais). Tanto isso é verdade que o Ministério da Saúde, a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres elaboraram diretrizes para garantir a atenção integral à saúde dos adolescentes privados de liberdade em todas as unidades socioeducativas do Brasil através da Portaria Interministerial nº1426 e a Portaria SAS/MS nº340 na qual formalizam a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória – PNAISARI.250 A premissa da política é de que a atual formação de saúde das unidades de internamento é insuficiente e ineficaz, por isso propõe-se a organizar a atenção em saúde dentro dos princípios do SUS, da Constituição Federal e do ECA,. Para tanto, é fornecido um fornecida uma complementação financeira das ações de atenção integral à saúde dessa população, que será repassado às secretarias estaduais ou municipais de saúde, perfazendo um total aproximado de R$ 9.140.480,00 por ano. Mais uma vez, visualiza-se que o grande volume de recursos investido na política provem da União e propõem uma uma equipe mínima de saúde de referência formada por médico, cirurgião-dentista, auxiliar de consultório dentário, enfermeiro, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional e auxiliar de enfermagem que já deveria existir, mas não é realidade. Infelizmente, informações do próprio Ministério da Saúde dão conta de que até agosto de 2008, 89% dos estados ainda não estavam habilitados. 250 Todas as informações abaixo foram fornecidas pelo próprio Ministério da Saúde. 281 A tabela abaixo demonstra o panorama nacional do processo de implantação das referidas portarias até maio do corrente ano: Região NORTE Nº Estados 07 Termo de Adesão 5 (18,51%) Diagnóstico de Saúde 3 (11,11%) Aprovação do Poe* 2 (7,40%) NORDESTE 09 7 (25,92%) 6 (22,22%) 2 (7,40%) CENTROOESTE SUDESTE 04 4 (14,81%) 2 (7,40%) 2(7,40%) 04 4 (14,81%) 4 (14,81) 2 (7,40%) SUL 03 2 (7,40%) 3 (11,11%) 1 (3,70%) *nos conselhos de Direitos, de Saúde e na Comissão Intergestores Bipartite A Portaria SAS/MS nº340 estabelece uma série de requisitos para que os Estados e Municípios se habilitem às normas de atenção à saúde de adolescentes privados de liberdade que que podem ser divididos em duas etapas: 1ª etapa – assinatura do Termo de Adesão, elaboração e aprovação pela área técnica do Ministério da Saúde do Plano Operativo Estadual(POE), aprovação do POE no Conselho Estadual de Saúde, de Direitos da Criança e do Adolescente e na Comissão Intergestores Bipartite; 2ª etapa - Cópia do Protocolo de encaminhamento do projeto físico do estabelecimento de saúde junto à Vigilância Sanitária estadual ou municipal, com vistas ao licenciamento do serviço, quando necessário; Relatório de avaliação sanitária de funcionamento, Cadastro no CNES e, se o município assumir a gestão do plano, deverá ser elaborado o plano de ação municipal de atenção integral e aprová-lo no conselho municipal de saúde e no conselho municipal de direitos da criança e do adolescente. O repasse do incentivo e a publicação da portaria de habilitação somente ocorrerão após o cumprimento das duas etapas. Recomendação 70 - i) Introduza programas de treinamento de acordo com os padrões internacionais relevantes de todos os profissionais envolvidos no sistema de justiça juvenil; A Associação das Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e Juventude recentemente realizou um levantamento sobre a estrutura do sistema e a capacitação do próprio corpo técnico em relação a temática. Os resultados são desanimadores. O Conselho Nacional de Justiça através de sua Resolução n. 02 asseverou a necessidade de 282 uma equipe técnica especializada para as varas da infância e juventude. Ainda assim 03 estados não possuem tal equipe e aqueles que dispõem de tais profissionais (assistentes sociais, psicólogos, educadores, antropólogos) só possuem tais equipes na capital e nas cidades de maior expressão e em muitos casos em número completamente insuficiente.251 Dentre os mais de cinco mil municípios brasileiros, há apenas 92 comarcas com varas especializadas em relação a infância e a juventude, com uma média de duas varas por comarca. Veja-se a comparação entre o número de varas especializadas por habitantes: A aplicação do direito das crianças e adolescentes está à mercê, em grade medida, do modo como são formados os operadores de direito que serão responsáveis por assegurar-lhes implementação. Com um intuito de buscar um diagnóstico a esse respeito a ABMP levantou resposta a três questões: 1. Se o Direito da Criança e do Adolescente foi contemplado como matéria a ser estudada no último edital para ingresso na carreira (magistratura, MP ou defensoria pública); 2. Se houve formação inicial para os aprovados em Direito da Criança e do Adolescente (se possível indicando o tempo); 3. Se nos últimos seis meses houve algum curso de formação continuada em Direito da Criança e Adolescente, no âmbito da instituição respectiva (não considerando ação da ABMP). Todas as questões receberam respostas que não permitem se tenha uma garantia do devido conhecimento dos direitos da criança e adolescentes por juízes, promotores e defensores públicos. A exigência do conhecimento básico para a prova de ingresso ainda é uma constante mais a preocupação com formação quando do ingresso e formação continuada deixa em muito a desejar.252 Os órgãos de grande acesso da população e que têm, apesar da falta de conhecimento técnico, tentado atender as demandas da população e com isso ganho sua confiança são os conselhos tutelares e conselhos de direitos. Wanderlino Nogueira destaca em recente texto que tais conselhos têm de fortalecer seu papel dentro da burocracia estatal exigindo condições dignas de instalação, capacitação de seus membros e condições de trabalho, bem como têm de 251 Não há equipe técnica: Ceará e do Rio Grande do Norte. Há mais com composição bastante limitada e apenas em pouscas cidades nos estado do: Acre, Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Piauí, Tocantins, Pará. ABMP. O Sistema de Justiça da Infância e da Juventude nos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, 2008. 252 ABMP. O Sistema de Justiça da Infância e da Juventude nos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, 2008. 283 fortalecer seu papel político como instância de mediação entre o governo e a sociedade.253 Sua afirmação é corroborada por recente pesquisa realizada à pedido do CONANDA e da SEDH. Apesar de se um dos principais modos da sociedade civil se fazer presente dentro da estrutura de atenção a crianças e adolescentes é com sua participação em nos Conselhos de direito municipais, estaduais e tutelares, ainda há diversas carências que precisam ser limadas para fortalecer o papel institucional destes entes.. Os conselhos de direitos municipais devem estar presentes em todos os municípios e têm como principais atribuições: deliberar sobre a política municipal para atendimento, promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente; registrar entidades de atendimento e estruturar – como também apoiar – os CTs, ou Conselhos Tutelares do município. A maior parte dos Municípios possuem conselhos, 92%. Esses 8% restantes ainda representam um grande contingente de 461 municípios. Além disso, um grande número de conselhos não têm ação efetiva ou possui descontinuidade de serviços.254 Um outro dado preocupante é que os Conselhos são um espaço da sociedade civil, mas um número significativo de conselheiros faz parte do Poder Público. 255 Além disso, “mais da metade dos Conselhos tem deficiências de comunicação, com ausência de telefone fixo e de acesso a internet indicados por 54% de Conselhos. Mobiliário básico e material de consumo também não estão disponíveis para mais de um terço dos Conselhos.”256 O mais preocupante, no entanto, é que 49% dos Conselhos existentes responderam a pesquisa. Desses mais de 70% ainda não possuía um diagnóstico da situação das criança e adolescentes do município 257 e mais a pesquisa comprovou que As funções mais nobres e essenciais dos CMDCAs não vêm sendo executadas ou têm sido realizadas de forma precária por grande parte deles. Os Conselhos Tutelares são órgãos permanentes e autônomos, independentes do Poder Judiciário, encarregados pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Suas principais atribuições são: receber denúncias de violação dos direitos e orientar e/ou promover medidas de proteção. Todo município brasileiro deve contar com, pelo menos, um Conselho Tutelar. Há 4888 Conselhos Tutelares no Brasil o que indica que mais de 12% dos Municípios ainda não possuem tal estrutura de atendimento, dos existentes 71% dos responderam a pesquisa. “Há mais de 680 municípios brasileiros desprovidos de Conselhos Tutelares, no Brasil. Dos que existem, pelo menos 4% estão inativos. E o ritmo de criação de novos CTs não indica que essa carência venha a ser totalmente suprida dentro dos próximos dois anos.” Outro dado preocupante é o fato de que o problema mais frequentemente apontado pelos conselheiros são questões relativas ao álcool e a drogadição, mas na falta de programas de atendimento essa medida de tem baixa utilização (0,26 numa escala de 1). 258 Mais uma vez corroborando a afirmação feita linha acimas de que nos casos de adolescentes pobres quando o problema da drogadição aparece o encaminhamento é feito através do sistema de justiça juvenil como se fossem responsáveis por tráfico, já quando o problema aparece na classe média ou alta os pais enviam os jovens para tratamento em clinicas privadas. Os Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente, entre suas principais atribuições, elaboram a política estadual para promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente. Outro importante encargo consiste em estabelecer um elo de comunicação e promover a integração com conselhos municipais e tutelares do estado. Todos os estados 253 ABMP. O Sistema de Justiça da Infância e da Juventude nos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, 2008. 254 Vide anexo VI. 255 CEATS / FIA – Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da Fundação Instituto de Administração. Os Bons Conselhos: pesquisa conhecendo a realidade, 2006. 256 CEATS / FIA – Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da Fundação Instituto de Administração. Os Bons Conselhos: pesquisa conhecendo a realidade, 2006. 257 Anexo VIII. 258 CEATS / FIA – Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da Fundação Instituto de Administração. Os Bons Conselhos: pesquisa conhecendo a realidade, 2006. 284 brasileiros contam com um Conselho. Sendo uma de suas principais funções a comunicação e integração entre os conselhos municipais e tutelares é de se notar que, especialmente na região norte, um número significativo não possua registro dos conselhos municipais.259 Recomendação 70 - j) Faça todo o esforço para estabelecer um programa de recuperação e reabilitação social dos jovens após os procedimentos judiciais; As medidas socioeducativas podem ser estabelecidas em regime de progressão. Um adolescente que foi condenado a cumprir tempo em unidade de internação pode diante de seu comportamento e de avaliação técnico jurídica ser transposto para medida de semi-liberdade. Acontece que grande parte das unidades não disponibilizam as adolescentes atendimento psicológico, nem atendimento jurídico. Para piorar alguns estados como Mato Grosso, Espíritos Santo, Rondônia e Tocantins não possuem sequer sistema de semi-liberdade que dirá sistema de reinserção de egressos. Os adolescentes não têm o apoio sociopedagógico necessário quando estão dentro do sistema que dirá quando saem dele. Há atuações positivas com resultados excelentes provando que a reincidência se baseia num sistema que não oportuniza opções ao seus jovens, porquanto quando é ofertada oportunidade diferente a reincidência dimunui vertiginosamente. Veja-se o exemplo dos programas de profissionalização e educação executados pela Secretaria da Assistência Social e Cidadania (Sasc) do Piauí. Lá o intuito pedagógico e ressocializador dos programas executados está muito claro e a ênfase dada é sim na oportunização de opções outras aos jovens e na crença de sua recuperação. Há programas de apoio a saúde, educativos, desportivos e uma ênfase no convívio familiar. Aliando-se isso aos programas de profissionalização, o resultado, é uma baixa de mais de 90% no número de adolescentes levados aos juizados das infância por prática de atos infracionais. Segundo o juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude, Antônio Lopes, antes, a média de entrada no Complexo de Defesa da Cidadania era de 50 adolescentes por dia. Agora, esse número baixou para 3 ou 4.260 No Recife, o programa Retome sua Vida iniciou sua execução há 14 anos através das varas da infância. Em atendimento ao disposto no ECA foi municipalizado e hoje conta com diversos programas de apoio profissional e educacional ao jovem que se estruturam em três vértices: 1. Atividades educacionais e de formação social: alfabetização, reforço escolar, atividades voltadas para a formação cultural. (dança, música, literatura); 2. Atividades de iniciação profissional e preparação para o mundo do trabalho: capacitação em informática, cursos pré-profissionalizantes; e 3.Prestação de Serviços Institucionais: orientação a adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas, orientação psicológica e religiosa, entre outros. O Programa de Profissionalização atende jovens em situação de3 risco e vulnerabilidade social, especialmente os em cumprimento de medidas socioeducativas, e é atualmente focado na área da construção civil, privilegiando habilitações em: eletricista predial, Alvenaria e serralheiro com carga horária de cada um dos cursos é de 600h em 10 meses. Apenas dois programas destacados num contingente de mais de 5000 municípios demonstra que não há grande empenho do Poder Público na recuperação dos jovens. Com certeza, há outros programas que poderiam ser destacados mas eles continuariam sendo a exceção. A regra é a inexistência de programas de apoio, programas executados diretamente pelo Judiciário em total afronta aos direitos dos adolescentes e inexistência de apoio político institucional aos adolescentes que saem do sistema. A equação continua a mesma de anos passados. Os jovens têm seus direitos negados desde a mais tenra infância, ao serem presos por atos infracionais se deparam com um sistema injusto que não lhes possibilita alternativas, são jogados em unidades de internamento similares as prisões de adultos e por anos e anos nenhuma oportunidade lhes é concedida. Ao se tornarem 259 Vide anexo X. 260 http://www.pi.gov.br/materia_especial.php?id=12886 285 egressos, não possuem qualquer apoio. Mas, espera-se que eles estejam recuperados e não reincidam. Como se espera isso se nenhuma condição lhes foi dada para tanto ainda é um mistério. Mas os índices de criminalidade e reincidência continuam a alarmar a sociedade que assustada exige punição, recrudescimento. O jovem dentro desses circulo nefasto do sistema continua a ser jogado de um canto para outro do sistema de Justiça Juvenil até a ele não mais pertencer e ser então absolvido pelo sistema de Justiça Penal. 286 ANEXOS AO RELATÓRIO SOBRE JUSTIÇA JUVENIL I. PROJETOS DE LEI EM TRAMITAÇÃO QUE REPRESENTAM O ANSEIO DE TRATAMENTO JURIDICO-PENAL MAIS DURO EM RELAÇÃO AOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI. N. do projeto PLS 8 de 2004 Sen. Ney Suassuna ( PMDB / PB ) PEC 26 de 2002 - Senador Iris Rezende ( PMDB / GO ) Proposta OBJETIVO: REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL Acrescenta parágrafo ao art. 104 da Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente, e ao art. 27 do Decreto Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal , para introduzir regra especial de imputabilidade penal dos maiores de dezesseis anos reincidentes na prática de homicídios ou de crimes hediondos. Altera o artigo 228 da Constituição Federal, para reduzir a idade prevista para a imputabilidade penal , nas condições que estabelece. PEC 26 de 2007 Senador Eduardo Azeredo ( PSDB / MG ) Altera o art. 228 da Constituição Federal, para prever a imputabilidade do menor com mais de dezesseis anos de idade, na hipótese que especifica, com redução de pena. PEC 20 de 1999 - Senador José Roberto Arruda ( PSDB / DF ) Altera o artigo 228 da Constituição Federal, reduzindo para 16 (dezesseis) anos a idade para imputabilidade penal se seu constatando o amadurecimento intelectual e emocional. PEC 3 de 2001 Senador José Roberto Arruda ( PSDB / DF Senador Papaléo Paes ( PMDB / AP ) Altera o artigo 228 da Constituição Federal, reduzindo para dezesseis anos a idade para imputabilidade penal . PEC 9 de 2004 PEC 73/2007 Autor Alfredo Kaefer PSDB/PR e coautores. Status Atual Tramitando em Conjunto. Apensado ao PEC-382/2005 (cuja situação é: CCJC: Aguardando Devolução - Saída de Membro da Comissão). Acrescenta parágrafo ao artigo 228 da Constituição Federal, para determinar a imputabilidade penal quando o menor apresentar idade psicológica igual ou superior a dezoito anos. Estabelece que a autoridade judiciária decidirá sobre a imputabilidade penal do menor de 18 (dezoito 287 TODAS AS PROPOSTAS ABAIXOS ESTÃO APENSADAS A PEC-171/1993 E TEM COMO OBJETIVO A REDUÇAO DA MAIORIDADE PENAL PEC-171/1993 BENEDITO Altera a redação do artigo 228 da Constituição Federal (imputabilidade penal Pronta para pauta. DOMINGOS - PP do maior de dezesseis anos) /DF Explicação da Ementa: IMPUTABILIDADE PENAL DO MAIOR DE DEZESSEIS ANOS, ALTERANDO A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. PEC-150/1999 Marçal Filho - PMDB /MS PEC-489/2005 edeiros - PL/SP co-autores. PEC 64/2003 André Luiz PMDB /RJ PEC 150/1999 Marçal Filho - PMDB /MS PEC 167/1999 Ronaldo Vasconcellos - PFL / MG Nelo Rodolfo PPB /SP PEC 169/1999 e PEC 633/1999 OSORIO ADRIANO PFL /DF PEC 260/2000 Pompeo de Mattos PDT /RS PEC 321/2001 Alberto Fraga PMDB /DF PEC 37/1995 Telmo Kirst - PPR / DISPONDO SOBRE A IMPUTABILIDADE PENAL DO MAIOR DE DEZESSEIS ANOS, ALTERANDO A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Submete o menor de 18 (dezoito) anos acusado da prática de delito penal à prévia avaliação psicológica para que o juiz conclua sobre sua inimputabilidade; altera a Constituição Federal de 1988. Estabelece que lei federal disporá sobre os casos excepcionais de imputabilidade para menores de dezoito anos e maiores de dezesseis; altera a Constituição Federal de 1988. Dispondo sobre a imputabilidade penal do maior de dezesseis anos, alterando a constituição federal de 1988. Alterando o limite de idade para dezesseis anos da responsabildade penal, alterando a constituição federal de 1988. Alterando o limite de idade para quatorze anos da responsabilidade penal; alterando a constituição federal de 1988. Estabelecendo que o menor entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos de idade, sendo ou não emancipado, poderá responder a processo judicial. Dispõe que são penalmente inimputaveis os menores de dezessete anos, sujeitos as normas da legislação especial. Estabelece que a maioridade penal será fixada em lei, devendo ser observados os aspectos psicossociais do agente, aferido em laudo emitido por junta de saúde que avaliará a capacidade de se autodeterminar e de discernimento do fato delituoso. Dispondo que são penalmente inimputaveis os menores de dezesseis anos, 288 RS PEC 91/1995 PEC 301/1996 PEC 531/1997 PEC 68/1999 PEC 133/1999 PEC 377/2001 PEC 582/2002 Aracely de Paula PFL /MG Jair Bolsonaro - PPB /RJ Feu Rosa - PSDB /ES Luiz Antonio Fleury - PTB /SP Ricardo Izar - PMDB / Jorge Tadeu Mudalen - PMDB /SP Odelmo Leão PPB /MG sujeitos as normas da legislação especial, alterando a constituição federal de 1988. Declara inimputaveis os menores de dezesseis anos, alterando a constituição federal de 1988. Estabelecendo que os menores de 16 (dezesseis) anos são inimputaveis, sujeitando-se as normas da legislação especial, alterando a constituição federal de 1988. Determina a imputabilidade penal do maior de dezesseis anos. Estabelecendo a imputabilidade penal do maior de dezesseis anos, alterando a Constituição Federal de 1988. Declara inimputaveis os menores de dezesseis anos, sujeitos as normas da legislação especial, alterando a constituição federal de 1988. Reduzindo para 16 (dezesseis) anos a imputabilidade penal; alterando a Constituição Federal de 1988. Estabelecendo que serão penalmente inimputáveis os menores de 16 (dezesseis) anos; alterando a Constituição Federal de 1988. Estabelece que lei federal disporá sobre os casos excepcionais de imputabilidade para menores de dezoito anos e maiores de dezesseis; altera a Constituição Federal de 1988. PEC 64/2003 André Luiz PMDB /RJ PEC 179/2003 Wladimir Costa PMDB /PA Estabelece que serão penalmente inimputáveis os menores de 16 (dezesseis) anos; altera a Constituição Federal de 1988. PEC 272/2004 Pedro Corrêa PP/PE e coautores. Dá nova redação ao artigo 228 da Constituição Federal. Explicação da Ementa: Reduz para 16 ( dezesseis) anos a idade para que o menor seja penalmente inimputável; altera a Constituição Federal de 1988. PEC 302/2004 Almir Moura - PL/RJ e co-autores Dá nova redação ao art. 228, da Constituição Federal, tornando relativa a imputabilidade penal dos dezesseis aos dezoito anos. PEC 345/2004 Silas Brasileiro PMDB/MG e coautores. Rogerio Lisboa PFL/RJ e coautores. Declara inimputáveis os menores de 12 (doze) anos; altera a Constituição Federal de 1988. PEC 48/2007 Reduz a idade penal para 16 (dezesseis) anos, considerando os maiores de dezesseis anos imputáveis 289 PEC 73/2007 -> Alfredo Kaefer PSDB/PR e coautores. Dá nova redação ao artigo 228 da Constituição Federal. Explicação da Ementa: Estabelece que a autoridade judiciária decidirá sobre a imputabilidade penal do menor de 18 (dezoito) anos. Altera a Constituição Federal de 1988. PEC 85/2007 Onyx Lorenzoni DEM /RS PEC 87/2007 Rodrigo de Castro PSDB/MG e coautores. Torna imputável o agente com idade entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos que tenha cometido crime doloso contra a vida, nos casos em que for constatado em laudo técnico que ao tempo do ato infracional o mesmo tinha perfeita consciência da ilicitude do fato. Altera a Constituição Federal de 1988. Altera o artigo 228 da Constituição Federal de 1988. Indexação: Alteração, Constituição Federal, imputabilidade penal, menor, adolescente, execução, crime doloso, crime contra a vida, crime inafiançável, crime imprescritível, impossibilidade, graça, anistia, exceção, incapacidade, responsabilidade : PEC 125/2007 Fernando de Fabinho - DEM /BA PLS 38 de 2004 PEC 18 de 1999 PL-938/2007 PL-934/2007 Torna penalmente imputável o adolescente; estabelece que a imputabilidade será determinada por decisão judicial, baseada em fatores psicossociais e culturais do agente, e nas circunstâncias em que foi praticada a infração penal. OBJETIVO RECRUDESCER A MEDIDA NA HIPÓTESE DE REINCIDÊNCIA Senador Gerson Altera o Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal , Camata ( PMDB / para tornar reincidente o agente que voltar a cometer crime hediondo ES ) quando já houver cometido crime da mesma natureza quando menor . Senador Romero Altera a redação do artigo 228 da Constituição Federal para *** Jucá Márcio França - PSB : Altera o Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal /SP para estabelecer a obrigatoriedade de consideração dos antecedentes infracionais do agente, quando da fixação da pena-base, disciplinada no art. 59 do Código Penal. Ayrton Xerez - DEM Aumenta para 8 (oito) anos o período máximo de internação do adolescente /RJ infrator. Altera a Lei nº 8.069, de 1990. 290 II. PESQUISA DATASENADO SOBRE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL Datasenado, Pesquisa Violência no Brasil. Dos 87% de entrevistados (entre 1068 em 130 municípios) que concordam com a redução da maioridade, qual a idade sugerida? III. CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO DE ADOLESCENTEN EM CONFLITO COM A LEI SOB MEDIDA DE INTERNAÇÃO NO TEMPO III.I Gráfico com o crescimento total. 2006 2002 1999 1996 4245 8579 9555 15426 291 III.II Tabela com o crescimento por região IV. Região/An 1996 os 1999 2002 2006 % Crescimento Norte 207 351 469 1083 523% Nordeste 413 920 1696 2815 591% CentroOeste 494 645 626 1234 248% Sudeste 2403 5665 5460 8382 349% Sul 728 998 1304 2277 313% Total 4245 8579 9555 15426 363% COMPARAÇÃO DA POPULAÇÃO DE ADOLESCENTES EM INTERNAÇÃO E EM SEMILIBERDADE TABELA 6: COMPARAÇÃO DA POPULAÇÃO EM INTERNAÇÃO E SEMILIBERDADE ESTADO E REGIÃO INTERNAÇÃO SEMILIBERDADE LOTAÇÃO % LOTAÇÃO % MG 304 93,83% 20 6,17% RJ 615 65,92% 318 34,08% SP 4.806 93,63% 327 6,37% ES 128 100,00% 0 0,00% 5.853 89,80% 665 10,20% RN 123 80,92% 29 19,08% AL 56 84,85% 10 15,15% SE 60 74,07% 21 25,93% PI 49 80,33% 12 19,67% PE 720 93,63% 49 6,37% PB 187 89,47% 22 10,53% MA 82 97,62% 2 2,38% SUDESTE 292 CE 379 81,33% 87 18,67% BA 100 84,03% 19 15,97% 1.756 87,49% 251 12,51% GO 164 91,11% 16 8,89% MS 195 95,12% 10 4,88% MT 157 100,00% 0 0,00% DF 320 81,63% 72 18,37% 836 89,51% 98 10,49% PR 371 89,18% 45 10,82% RS 891 97,59% 22 2,41% SC 90 83,33% 18 16,67% 1.352 94,08% 85 5,92% AP 70 63,06% 41 36,94% PA 213 88,75% 27 11,25% TO 28 93,33% 2 6,67% AC 51 71,83% 20 28,17% AM 62 72,09% 24 27,91% RO 239 93,73% 16 6,27% RR 9 64,29% 5 35,71% NORTE 672 83,27% 135 16,73% TOTAL 10.446 89,43% 1.234 10,57% NORDESTE CENTROOESTE SUL 293 V. COMPARAÇÃO ENTRE POPULAÇÃO TOTAL DE ADOLESCENTES ENTRE 12 E 18 ANOS, E AQUELES EM CONFLITO COM A LEI – 2005 / 2006 VI. FUNCIONAMENTO DOS CONSELHOS MUNICIPAIS. 294 VII. NÚMERO DE CONSELHOS MUNICIPAIS EXISTENTES. VIII. PERCENTUAL DE CONSELHOS QUE POSSUEM DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES DO MUNICÍPIO. 295 IX. NÚMERO DE CONSELHOS TUTELARES EXISTENTES. X. CADASTRO PELO CONSELHO ESTADUAL DOS CONSELHOS MUNICIPAIS E TUTELARES. 296 297 Justiça Juvenil: O caso de São Paulo 1. Introdução O sistema de justiça juvenil no estado de São Paulo é ilustrativo de como ocorrem as violações dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei no Brasil. Em 2004, foi relatado ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU um panorama das unidades de execução de medida socioeducativa de internação no estado de São Paulo, em que se explicitou a situação caótica de unidades do Complexo do Tatuapé, de Franco da Rocha, além da Unidade de Internação Provisória (UIP 6) e da Unidade de Atendimento Inicial (UAI). Passados quatro anos, pode-se dizer que o panorama apresentado naquele ano não mudou muito, a despeito de medidas tomadas pelos governos federal e estadual no intento de fazer valer o ECA em relação ao cumprimento de medidas socioeducativas. Uma importante mudança ocorrida no estado paulista foi o relativo aumento do controle pelas organizações da sociedade civil sobre as instituições responsáveis pela execução das medidas socioeducativas. Neste relatório, contudo, será abordado também outro aspecto da justiça juvenil no estado de São Paulo, ainda desconhecido pela sociedade brasileira, que é a fase judicial de apuração do ato infracional atribuído ao adolescente. As violações dos direitos dos adolescentes não ocorrem apenas na execução das medidas socioeducativas, mas sim em todas as fases do sistema de justiça, desde o momento de sua apreensão pela polícia, passando pelos procedimentos judiciais de apuração do ato infracional, culminando nas instituições responsáveis pela execução das medidas socioeducativas. O que se observa é que o estado paulista, sob o pretexto do combate à violência urbana, vem fortalecendo um processo de criminalização dos adolescentes, atendendo aos reclames de setores conservadores da sociedade, por repressão cada vez maior contra essa população. Nesse sentido, as medidas tomadas pelo governo do estado de São Paulo mostram-se muito aquém do necessário para a ruptura com esse processo de criminalização dos adolescentes e ainda mais distantes dos preceitos contidos na Convenção dos Direitos da Criança e na recente Observação Geral nº 10, declarada pelo Comitê dos Direitos da Criança em 2007. 2. A criminalização dos adolescentes Em que pese a existência de um marco legal “garantista”, isto é, voltado para a proteção integral dos direitos dos adolescentes, o efetivo funcionamento do sistema de justiça no cotidiano paulista demonstra que esses direitos não são cumpridos por nenhum dos atores envolvidos – da apreensão policial à execução das medidas socioeducativas, passando também pela audiência com magistrados e promotores de justiça. Para Nicodemos (2006), o abismo que separa o ECA e sua efetiva aplicação evidencia a existência de um processo de criminalização dos adolescentes oriundos das classes populares, normalmente moradores das periferias das grandes cidades, entre as quais a cidade de São Paulo é o maior exemplo. Desta mesma visão comunga Batista (2006), observando também a correlação existente entre o grande número de adolescentes vítimas de homicídios e a crescente criminalização dessa população, concluindo que desde os anos 1990 “percebe-se uma progressão geométrica na criminalização, encarceramento e extermínio da juventude popular brasileira”. O sistema de justiça juvenil paulista se revela seletivo, isto é, alcança principalmente os jovens pobres e negros moradores da periferia. Dificilmente jovens das classes mais abastadas entram na grande teia repressora do sistema de justiça juvenil, o que não significa que não cometam delitos. Sabe-se, por exemplo, que muitos jovens dessas classes são usuários de drogas e alguns, inclusive, as comercializam261. Não obstante, é praticamente impossível encontrar jovens dessas classes apreendidos pelos órgãos policiais e tampouco em cumprimento de medidas socioeducativas. Assim, o tratamento dispensado aos jovens 261 A esse respeito, ver “O crime na classe média”, publicada na Revista Época, nº 384, de 26 de setembro de 2005. 298 acusados da prática de ato infracional é caracterizado por seu público preferencial: os jovens pobres e negros. 2.1 Apreensão dos adolescentes pela polícia Procurando conhecer como ocorre a apreensão de adolescentes pela polícia, o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA), sediado em Interlagos, na periferia de São Paulo, realizou a pesquisa “Segurança pública para qual público?”, na qual conclui que na cidade de São Paulo, na periferia da zona sul, basta ser adolescente (pobre e “preto”) para que seja alvo de abordagem policial, revista pessoal e, não raro, violência por parte dos policiais262. Segundo os dados coletados, 96% dos adolescentes pesquisados263 já sofreram abordagem policial. Entre esses jovens, 86% foram abordados 3 vezes ou mais. Além disso, em 86% dos casos os policiais não se identificaram, conduta que contraria a Constituição Federal (Art. 5º, LXIV) e o ECA (Art. 106, parágrafo único). A imensa maioria dos jovens relatou, ainda, sofrer agressões por parte dos policiais: 51% dos adolescentes diz ter sofrido violência física, 43% afirma ter sofrido violência psicológica e apenas 5% diz não ter sofrido qualquer tipo de violência. Segundo a pesquisa, em 70% dos casos os agressores eram da Polícia Militar e em 27% da Guarda Civil Metropolitana. A prática de agressão por parte dos agentes de segurança é recorrente, visto que 47% dos jovens afirma já ter sido agredido por policiais quatro vezes ou mais, 12% três vezes, 20% duas vezes e 21% apenas uma vez. Outro dado importante refere-se ao número de apreensões nas residências dos adolescentes efetuadas sem autorização judicial, em contrariedade com o que afirma a Constituição Federal (Art. 5º, XI). Nesse aspecto, 42% dos adolescentes afirma que os policiais que efetuaram a apreensão em sua residência não portavam autorização judicial. Por fim, a pesquisa registrou que 71% dos adolescentes não foram liberados na delegacia – contrariamente ao que dispõe o Art. 174 do ECA, que determina a liberação imediata como regra –, sendo encaminhados para a Unidade de Atendimento Inicial (UAI), pertencente à Fundação CASA e responsável pela apresentação do jovem à justiça. 2.2 A situação da Unidade de Atendimento Inicial (UAI) A Unidade de Atendimento Inicial (UAI), responsável pela recepção dos adolescentes apreendidos pela polícia, cumpre a função de realizar a triagem dos adolescentes antes de serem encaminhados para a oitiva informal com o Ministério Público (Art. 179 do ECA). Tal unidade, que já foi alvo de denúncias no relatório anterior, continua sendo motivo de preocupação por conta de violações dos direitos dos adolescentes que ali se encontram internos. Desde o ano de 2000 as violações aos direitos dos adolescentes ocorridas nesta unidade vêm sendo apuradas pelo Poder Judiciário, resultando na determinação do seu fechamento em abril de 2002. Diversas irregularidades foram reconhecidas judicialmente, entre elas a superlotação da unidade, a permanência de adolescentes que deveriam estar cumprindo a medida socioeducativa de internação em unidades apropriadas, bem como a ocorrência de maus tratos e tortura por parte dos funcionários264. A decisão de fechamento da unidade, no entanto, demorou mais de 3 anos para ser executada, ocorrendo somente em setembro de 2005. A antiga FEBEM (Fundação Estadual para o BemEstar do Menor), ainda assim, descumpriu as determinações judiciais para o seu fechamento, 262 CEDECA Interlagos. Segurança Pública para qual público? Pesquisa sobre a trajetória de adolescentes autores de ato infracional: da abordagem à delegacia, p. 68. 263 O universo da pesquisa era de 116 adolescentes, de ambos os sexos, com idade entre 12 e 20 anos, que se encontravam em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto acompanhados por esta entidade. 264 Segundo notícia publicada na Revista Consultor Jurídico, intitulada “Ordem descumprida” de 22 de maio de 2002, disponível em: http://www.conjur.br/static/text/55867,1. 299 resultando em novo processo que acabou por afastar provisoriamente, em maio de 2007, a presidente da Fundação CASA (antiga FEBEM). A presidente da instituição foi reconduzida ao cargo poucos dias depois por decisão do Tribunal de Justiça. Durante esse período, a UAI aumentou a capacidade de adolescentes internos de 62 para 96, porém as condições dispensadas a eles permaneceram as mesmas. Inspeções promovidas pela equipe técnica do Departamento de Execuções da Infância e Juventude (DEIJ), órgão competente para fiscalizar as unidades de internação, realizadas em janeiro e em junho de 2006, constataram a superlotação na unidade, que contava com 164 adolescentes na primeira inspeção e 225 na segunda. A maioria deles permanecia na unidade indevidamente, já que muitos tinham suas medidas socioeducativas de internação já determinadas e outros adolescentes estavam em internação provisória. Para além da superlotação, constatou-se uma rotina de regras extremamente rígidas, a prática de maus-tratos, tortura e adolescentes em estado de ócio permanente, cuja rotina consistia apenas em assistir televisão. 2.3 A apuração do ato infracional Quando o adolescente é apresentado à justiça, diversas outras violações são cometidas, agora pelos atores envolvidos no processo de apuração do ato infracional supostamente cometido pelo jovem. No entanto, é importante destacar a quase absoluta falta de informações, principalmente de estudos e pesquisas que avaliam a atuação dos membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos defensores, envolvidos no procedimento de apuração do ato infracional atribuído aos adolescentes. Alguns poucos existentes, partindo da premissa da não aplicação das garantias processuais aos adolescentes acusados da prática de ato infracional, buscam debater uma solução. Mas são poucos os que buscam diagnosticar a situação. Assim, utilizam-se como fonte para este relatório dois estudos: um feito no ano de 1999 por Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian265 e um feito no ano de 2002 por Paula Miraglia266. Ambos os estudos, apesar de não recentes, são bastante significativos no tocante ao retrato que trazem sobre os procedimentos realizados pelas Varas Especiais da Infância e Juventude do município de São Paulo267, mostrando-se ainda bastante atuais. Vale ressaltar que a situação a ser relatada não implica de forma alguma afirmar que em todas as varas e comarcas os procedimentos se dão dessa forma. A efetiva aplicação do ECA nos procedimentos judiciais da infância e juventude pode ser muito diferente a depender dos atores envolvidos, especialmente quanto a membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, ou seja, se os profissionais possuem um perfil mais “conservador” ou mais “garantista”268. Não se comete, porém, nenhuma impropriedade, ao afirmar que, de modo geral, a situação é essa269. Em primeiro lugar, é necessário dizer que o sistema de justiça da infância e juventude conta com número reduzido de defensores públicos, o que dificulta muito a realização de uma defesa efetiva dos adolescentes. As Varas Especiais da Infância e Juventude do município de São Paulo contam hoje com 10 defensores públicos, sendo que 5 deles acompanham processos de 265 PIMENTEL, Silvia & PANDJIARJIAN, Valéria. Aplicação do ECA: ainda repressora ou protetora? Ensaio que problematiza a incorporação do novo paradigma pela justiça de São Paulo. 266 MIRAGLIA, Paula. Rituais da Violência, a FEBEM como espaço do medo em São Paulo. 267 Deve-se levar em consideração que a situação aqui exposta refere-se às Varas da Infância e Juventude do município de São Paulo, que são especializadas e apenas julgam atos infracionais cometidos por adolescentes. Isso leva a pensar como é a realidade em outros municípios no interior do estado que não contam com varas especializadas e, portanto, onde juízes e promotores provavelmente possuem menos afinidade com o tema da proteção integral dos adolescentes. 268 Especificamente no município de São Paulo, em que existem 4 varas especializadas para a apuração de atos infracionais e uma para o acompanhamento da execução das medidas socioeducativas, pode-se dizer que houve uma mudança pontual com a recente nomeação de dois juízes com perfil “garantista” para duas delas. 269 Nesse aspecto, é de grande valia o filme documentário lançado em 2007 no Brasil, intitulado “Juízo”, da cineasta Maria Augusta Ramos, o qual registra as audiências nas varas da infância e juventude no Rio de Janeiro/RJ (preservadas as identidades dos jovens), demonstrando o funcionamento cotidiano dos julgamentos a que estão submetidos os jovens em conflito com a lei naquela cidade, situação esta muito semelhante à que aqui se relata. 300 apuração de ato infracional, e 5 acompanham processos de execução de medida socioeducativa270. Soma-se a isso a desvalorização da carreira de defensor público, a qual tem remuneração inferior à dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. Vale dizer, ainda, que cerca de 90% dos adolescentes em conflito com a lei se utilizam dos defensores públicos para a realização de sua defesa no processo, já que são poucos os jovens cujas famílias possuem recursos para a contratação de advogado, demonstrando também qual é o “público” prioritário para o qual se dirige o sistema de justiça juvenil no estado de São Paulo. Mas não só em número de defensores carece a justiça da infância e juventude: o número de juízes e promotores de justiça também é reduzido, o que acarreta o acúmulo de processos entre os profissionais existentes; porém, a falta de defensores é muito mais patente e significativa, causando maior prejuízo aos adolescentes. A grande demanda de processos para o número reduzido de profissionais, faz com que a maioria deles tome conhecimento do processo apenas no momento da audiência de apresentação, quando o adolescente é apresentado ao juiz. Nesta audiência estão presentes, além do juiz e do adolescente, o promotor de justiça, o advogado (normalmente defensor público) e os familiares do jovem (na maioria das vezes a mãe), embora seja muito comum a ausência de familiares. Miraglia (2002) descreve a audiência da seguinte maneira: “o caso é apresentado, o jovem é questionado quanto à veracidade das acusações que lhe são feitas, sendo a resposta, na maioria das vezes, afirmativa. Uma vez admitido o ato infracional por parte de acusado, o juiz determina a medida socioeducativa que o adolescente vai receber”. As audiências raramente contam com debates entre promotores e defensores, o que contraria o ECA (Art. 186, § 4º), cujo objetivo seria a exposição dos argumentos acerca da efetiva responsabilidade do adolescente pelo ato infracional. Neste mesmo momento, o promotor e o defensor poderiam opinar pela medida socioeducativa mais adequada a ser aplicada, no caso de comprovada participação do jovem na infração apurada. No entanto, como observa Miraglia (2002), na prática “a apuração da culpabilidade em si parece ser uma mera formalidade, a solução para o conflito apresentado na audiência é resultado da decisão quase que exclusiva do juiz”. Pimentel e Pandjiarjian (1999) explicam que, na verdade, a decisão resulta de um acordo informal existente entre o juiz, o promotor e o defensor. Os atores envolvidos têm previamente decidido os “casos” em que deve ser aplicada a medida socioeducativa de internação, os “casos” em que deve ser aplicada a medida socioeducativa de liberdade assistida, e assim por diante. Há, então, uma correlação quase direta entre a infração cometida e a medida a ser aplicada. Por exemplo, roubo certamente redundará em internação do adolescente, não importando suas circunstâncias pessoais e as ligadas à infração, bem como a capacidade do adolescente de cumprir a medida socioeducativa, elementos estes previstos no ECA (Art. 112, § 1º), que devem ser avaliados pelo juiz no momento da aplicação da medida socioeducativa. Tanto Miraglia (2002), quanto Pimentel e Pandjiarjian (1999) notam a rara presença de testemunhas de acusação e de defesa nos procedimentos de apuração de ato infracional. As poucas vezes em que são ouvidas testemunhas, são principalmente as de acusação. Nesse aspecto, vale ressaltar que normalmente as testemunhas acusatórias são os policiais militares responsáveis pela apreensão do adolescente, e quase nunca testemunhas presenciais da infração. As autoras concluem que há uma aparente falta de espaço, tempo e interesse na produção de provas testemunhais, notadamente de defesa. Sendo assim, o direito dos adolescentes a uma defesa efetiva no processo, com respeito às garantias processuais, tais como a defesa técnica por advogado e a “igualdade na relação 270 Em contato com Defensores Públicos do município de São Paulo/SP, foi informado que o volume de processos na fase de apuração do ato infracional consiste em cerca de 3.000 a 4.000 em andamento, e na fase de execução de medida socioeducativa são cerca de 8.000 a 9.000 em andamento. Vale dizer que os Defensores Públicos não realizam o trabalho voltado apenas para o acompanhamento processual, mas também fazem visitas periódicas das unidades de execução de medidas socioeducativas. 301 processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa”, previstas no ECA (Art. 111, II e III), ficam bastante prejudicadas. Miraglia (2002) assinala que, na prática, há uma verdadeira submissão do adolescente ao jogo processual, o que pode ser comprovado pela confissão dos adolescentes na maioria dos processos. Nesse contexto, o trabalho dos defensores se coloca como um dilema. Frente a tantas adversidades, por vezes acabam não tendo “saída”, senão participar do jogo. Muitas vezes, em face desta lógica perversa, os defensores explicam ao adolescente as duas possibilidades que ele possui: confessar a infração, o que demonstrará “arrependimento”, podendo ser beneficiado com uma medida em meio aberto; ou não confessar, e enfrentar o jogo processual, no qual sua responsabilização poderá advir pelo testemunho, por exemplo, dos policiais responsáveis pela sua apreensão, sendo então aplicada a medida de internação. Desse modo, para Miraglia (2002) as “audiências acabam funcionando como um corredor de triagem para as unidades da FEBEM, fracassando como instância de debate e decisão sobre a reeducação do infrator”. A escolha da medida socioeducativa a ser aplicada demonstra a preferência do sistema de justiça pela privação da liberdade, revelando seu viés puramente repressor. Algumas vezes juízes e promotores, em uma total subversão do disposto no ECA, concluem pela responsabilidade maior do adolescente sob o argumento de que a infração cometida é crime hediondo271, justificando assim a medida de internação aplicada. Nesse sentido, é crescente o número de adolescentes internados por tráfico de drogas, sob o argumento de se tratar de infração equiparada a crime hediondo. É bom ressaltar que o ECA (Art. 122) afirma categoricamente que a medida de internação só será aplicada quando “tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa” e “por reiteração no cometimento de outras infrações”. Como é sabido, o tráfico de drogas realizado por adolescentes é parte do grave problema vivido principalmente nos centros urbanos brasileiros, com o surgimento e crescimento de organizações narcotraficantes que arregimentam adolescentes para a realização de atividades ilícitas272. Contudo, o tráfico de drogas não é uma infração cometida mediante grave ameaça ou violência a pessoa. Além disso, contrariando entendimento jurisprudencial consolidado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que afirma que a reiteração infracional ocorre somente quando cometidas 3 ou mais infrações, a medida socioeducativa de internação têm sido aplicada seguidamente para adolescentes primários. Há, portanto, um claro posicionamento dos juízes no sentido de aumentar a repressão dos adolescentes acusados por esta infração, em afronta, ressalte-se, ao disposto pelo ECA. Dados da Fundação CASA dão conta desta elevação de internações de adolescentes por tráfico de drogas. Em 2004, cerca de 10,6% dos jovens internados haviam cometido esta infração, número esse que saltou para 18,1% em 2006 e para 28% em 2007. Ao mesmo tempo, o número de internações por roubo qualificado caiu de 53,3% em 2004, para 43,9% em 2007. A possibilidade de os adolescentes obterem a garantia dos direitos previstos no ECA, no entanto, também esbarra no segundo grau de jurisdição, quando da interposição dos recursos pelos defensores. No estado de São Paulo, os recursos atinentes à infância e juventude são processados e julgados pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, composto pelos 25 desembargadores mais antigos do tribunal, ou seja, via de regra, por aqueles mais “conservadores”. Desse modo, é praticamente impossível os adolescentes obterem sucesso de reversão de uma sentença de primeira instância que conclui pela responsabilização do adolescente, impondo a medida socioeducativa de internação. 271 Os chamados crimes hediondos são considerados crimes graves pela legislação penal e definidos em lei. O tráfico de drogas, embora não seja crime hediondo, é equiparado a crime hediondo. 272 Trata-se na verdade, segundo a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de uma das piores formas de trabalho infantil, o que demanda a promoção de políticas públicas preventivas por parte do Estado, e não de simples repressão através da privação de liberdade. 302 A título demonstrativo, para este relatório foram coletados 273 os resultados dos recursos interpostos por defensores públicos com o objetivo de reverter os termos da sentença “condenatória” imposta ao adolescente no primeiro grau, bem como dos recursos interpostos por membros do Ministério Público com o intuito de reverter absolvição obtida pelos adolescentes em primeira instância. Na coleta feita, o Ministério Público obteve provimento em 27 recursos, dos 28 interpostos. A Defensoria Pública, por sua vez, teve todos os seus 26 recursos negados. Isto significa que quase 100% dos recursos interpostos pelo Ministério Público obtêm reforma da sentença no sentido de “agravar” a situação do adolescente, enquanto que 100% dos recursos interpostos pelos defensores com o intuito de “melhorar” a situação do adolescente são negados. 2.4 As unidades de execução de medida socioeducativa de internação As unidades de execução das medidas socioeducativas de internação no estado de São Paulo são conhecidas internacionalmente pelo histórico de violações aos direitos dos adolescentes. Nos últimos anos, embora tenham sido adotadas algumas medidas pelo governo estadual paulista no sentido de realizar a implementação do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) no estado, observa-se a permanência do descaso em relação à efetivação dos preceitos do ECA no sistema socioeducativo paulista. As medidas tomadas, visando um reordenamento das unidades de internação, se mostram ainda bastante tímidas, concentradas principalmente nas unidades do interior do estado. Enquanto isso, na capital do estado de São Paulo, ainda prevalecem unidades de arquitetura prisional, forte aparato de segurança e intenso controle disciplinar. Em tais unidades são recorrentes denúncias de maus tratos e tortura de adolescentes por parte de funcionários. Segundo a entidade Conectas Direitos Humanos, desde o ano de 2004, 20 adolescentes morreram nas dependências das unidades de internação. Nesse contexto, as unidades dos complexos Tatuapé274, Raposo Tavares e Vila Maria, além da unidade de internação Vila Leopoldina, são as que apresentam a situação mais preocupante. Estas unidades são atualmente destinadas aos adolescentes reincidentes em crimes considerados graves. Por conta desse histórico de violações de direitos, aproveitando a experiência acumulada pela Inspeção Nacional às Unidades de Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei 275, foi constituído um grupo de organizações com o objetivo de realizar uma fiscalização permanente das unidades de internação no estado de São Paulo. O grupo foi formado pelo Departamento de Execuções da Infância e Juventude (DEIJ) 276, Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/SP), Conselho Regional de Serviço Social (CRESS), Conselho Regional de Enfermagem (COREN) e Vigilância Sanitária (VISA). As visitas de inspeção foram realizadas entre dezembro de 2006 e agosto de 2007, principalmente naquelas unidades que se tinha notícia de que a situação era mais grave. No complexo Tatuapé foram visitadas as unidades de internação 12, 15 e 39. Nas unidades 15 e 39 a situação era mais complicada, havendo um estado de abandono por parte da Fundação CASA aos adolescentes internos. Observou-se a precariedade das atividades educacionais, falta de professores, condições estruturais ruins, ausência de materiais pedagógicos, baixa freqüência dos adolescentes às aulas ministradas e ausência de cursos profissionalizantes. Foi verificada também a existência da chamada “cultura prisional” nas unidades, isto é, os adolescentes considerados líderes exercem um domínio sobre a unidade, determinando regras 273 A coleta dos resultados dos recursos foi realizada em 11 de julho de 2008, na sala da Defensoria Pública no fórum das Varas Especiais da Infância e Juventude no município de São Paulo. Foram coletados os resultados de 54 recursos interpostos (28 do Ministério Público e 26 da Defensoria Pública). 274 O complexo Tatuapé acabou sendo desativado em outubro de 2007, depois de ter sido alvo de condenação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a partir de denúncias apresentadas por diversas entidades de proteção dos direitos humanos. 275 A Inspeção Nacional foi promovida pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), através de visitas simultâneas realizadas em unidades de internação de 22 estados brasileiros e no Distrito Federal, no dia 15 de março de 2006. 276 O DEIJ é a vara judicial responsável pelo acompanhamento dos processos de execução de medidas socioeducativas na cidade de São Paulo/SP, atuando também como instância Corregedora das unidades de internação. 303 de disciplina e aplicando sanções aos demais jovens, impondo também restrições ao trabalho socioeducativo. Na unidade 15, a direção procurou pôr fim ao controle dos adolescentes através da imposição da sanção disciplinar de “tranca”, consistente no isolamento do adolescente em seu quarto por período de até 15 dias. Em decorrência desse conflito entre adolescentes e funcionários, são constantes os chamados “tumultos” e “rebeliões” entre os jovens, momento em que a direção da unidade chama para intervir o Grupo de Intervenção Rápida, popularmente conhecido como “choquinho” – em alusão à tropa de choque da Polícia Militar –, que põe fim ao conflito com o uso generalizado de agressões físicas e psicológicas. No complexo Raposo Tavares foram realizadas visitas às unidades de internação 37 e 38 e a um anexo, conhecido como Núcleo de Inclusão de Adolescentes. Durante a inspeção, verificouse novamente a existência da “cultura prisional” e o constante conflito entre funcionários e adolescentes internos, principalmente na unidade 38, o que acarreta muitas vezes sanções disciplinares de “tranca” e, por vezes, agressões por parte dos próprios funcionários da unidade. Na unidade 38, além das más condições de higiene e habitabilidade, os adolescentes reclamaram do tempo estipulado para visita dos seus familiares, de apenas 15 minutos uma vez por semana. Mencionaram também que as visitas são constantemente humilhadas ao entrar na unidade, tendo que tirar a roupa para submeter-se a revista íntima, e “pagar canguru”, além de casos de famílias agredidas por funcionários. Na unidade anexa, o Núcleo de Inclusão de Adolescentes, constataram que a unidade é destinada aos jovens que estão no “seguro” (separados dos demais por estarem ameaçados), e também como medida de sanção para aqueles que cometem faltas graves em outras unidades do complexo, permanecendo lá por cerca de um a dois meses. A unidade se caracteriza pela existência de regras extremamente rígidas, como o isolamento dos jovens nos dormitórios, a permissão para banho de sol de apenas uma hora por dia e o tempo de visita dos familiares de 15 minutos uma vez por semana. Os adolescentes manifestaram permanecer ociosos o dia todo e ser freqüente a ocorrência de agressões físicas e psicológicas. Alguns afirmaram tomar medicamentos “calmantes”. Mencionaram, ainda, que as luzes permanecem apagadas a maior parte do tempo e que a alimentação é de má qualidade. No complexo Vila Maria, as unidades de internação estão sendo desativadas, mas há ainda algumas remanescentes. Na unidade de internação “Tietê”, verificou-se que os adolescentes estão ociosos, sem atividades educacionais e profissionalizantes; as instalações se encontram em péssimas condições de higiene e habitação e a unidade está sob o controle dos jovens. Os técnicos da unidade justificam a situação afirmando que hoje os adolescentes têm “menos responsabilidade e mais direitos”, referindo-se ao fato de haver uma redução do número de espancamentos dos jovens. O relatório de inspeção aponta que o trabalho dos funcionários se restringe a conter as tentativas de fuga dos adolescentes. No ano de 2005 o complexo Vila Maria foi palco de uma sessão de espancamentos de adolescentes. Funcionários da unidade de internação “Uirapuru”, afastados por suspeitas de agressões aos adolescentes e, posteriormente, reconduzidos aos seus cargos, armaram uma ação de represália aos jovens, praticando tortura contra 112 adolescentes internos, utilizandose de porretes de madeira e barras de ferro, além do conhecido “corredor polonês”. Em virtude desses fatos, 53 funcionários da então FEBEM estão sendo processados criminalmente no município de São Paulo. Não se tem notícia se tais funcionários foram exonerados de seus cargos. Sabe-se, porém, que funcionários afastados por denúncias como essas são normalmente reconduzidos aos cargos em outras unidades, o que aconteceu inclusive neste caso. A unidade de internação “Vila Leopoldina” apresenta uma situação muito semelhante da observada nas demais. Constatou-se a precariedade das atividades pedagógicas e profissionalizantes, bem como agressões físicas e psicológicas freqüentes aos adolescentes, por parte de funcionários, como forma de “controlar” a unidade. Relatou-se também que internos recém chegados à unidade são agredidos e permanecem isolados por dois a três dias, numa espécie de ritual de entrada. 304 A situação de todas essas unidades de internação reflete o descaso da Fundação CASA e do governo estadual paulista com o atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei. De modo geral, as atividades pedagógicas, educacionais e profissionalizantes são precárias. No caso das atividades profissionalizantes, quando existentes, não envolvem qualquer qualificação, mostrando-se totalmente inúteis para a efetiva inclusão do jovem no mercado de trabalho. Como visto, impera nessas unidades o que os funcionários denominam de “cultura prisional”, que se caracteriza pelo controle da unidade pelos adolescentes, tal como ocorre em muitos presídios brasileiros, o que denota a influência de organizações criminosas sobre os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Mas a assim chamada cultura também pode ser percebida na imposição de regras disciplinares rígidas (como a raspagem do cabelo quando o adolescente chega à unidade) e na prática freqüente de agressões físicas e psicológicas aos jovens por parte dos funcionários, além do emprego recorrente da sanção disciplinar de isolamento (“tranca”). Em algumas unidades há uma política de “apaziguamento”, em que adolescentes recebem certos “benefícios” da direção das unidades, tais como televisão e visitas íntimas, em troca de se absterem de provocar tumultos e rebeliões. Segundo técnicos entrevistados durante as inspeções, a dita “cultura prisional” começou a se instalar nas unidades de internação da Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), antiga FEBEM, no ano de 2005, quando internos foram transferidos para o sistema prisional por ausência de vagas no sistema de atendimento socioeducativo. De fato, em março de 2005, mais de 500 adolescentes internos em unidades do município de São Paulo foram transferidos para a Penitenciária do município de Tupi Paulista, localizado a 663 quilômetros da capital, sob a alegação da ausência de vagas no sistema socioeducativo. É vasto o rol de violações aos direitos dos adolescentes ocorridas neste episódio 277, que se iniciou pelo transporte dos adolescentes, ocorrido em caminhões do tipo “baú” da Secretaria de Administração Penitenciária, numa viagem com duração aproximada de 10 horas, na qual os adolescentes foram impedidos de fazer necessidades fisiológicas e não receberam alimentação. Ao chegar à Penitenciária, os adolescentes permaneceram 10 dias trancados em suas celas e foram submetidos a regras próprias de presídios de segurança máxima, com permissão de “banho de sol” por apenas 3 horas diárias. As condições de higiene eram precárias, fazendo com que muitos adolescentes apresentassem doenças de pele. Além disso, a ausência de atendimento médico adequado ocasionou a morte de um adolescente portador do vírus HIV/AIDS. Foi relatada também a ocorrência de tortura contra os jovens e aplicação de sanção disciplinar de isolamento por 30 dias. 3. Implantação do SINASE no estado de São Paulo Pode-se dizer que historicamente São Paulo é o estado brasileiro que encontra as maiores dificuldades para a efetivação dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei. Trata-se do estado com maior número de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas e também o estado com o maior número de adolescentes privados de liberdade. . Diante da situação exposta no relatório anterior, bem como da apresentada agora, vale dizer que algumas medidas foram e estão sendo tomadas no sentido de efetivar os direitos dos adolescentes previstos no ECA. Não resultam, entretanto, do esforço do governo estadual paulista, que sempre demonstrou descaso com a situação dos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas. Com o lançamento do SINASE, no âmbito nacional, o governo estadual foi obrigado a dar mais atenção ao problema, o que implicou na realização de algumas medidas. 277 As informações aqui trazidas foram coletadas em relatórios de inspeção da entidade de direitos humanos Conectas, do Ministério Público Federal e da Procuradoria de Assistência Judiciária (atual Defensoria Pública) das Varas da Infância e Juventude do município de São Paulo. 305 Entre elas, destaca-se primeiramente a mudança tardia do nome da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM) para Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), ocorrida em dezembro de 2006, instituição essa responsável pela implantação da política de atendimento socioeducativo aos adolescentes no estado de São Paulo. Em janeiro de 2006, a instituição apresentou o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo, propondo-se a reordenar o sistema socioeducativo no estado de São Paulo. Entre as principais diretrizes estabelecidas no plano, tem-se: ▫ a construção e reforma de unidades de internação visando cumprir as diretrizes de atendimento estabelecidas no ECA, devendo cada unidade possuir capacidade para 56 adolescentes (40 internos e 16 em internação provisória); ▫ a realização do atendimento socioeducativo em parceria com a família, a sociedade civil e os municípios; ▫ o apoio à municipalização do atendimento em relação às medidas em meio aberto; o desenvolvimento de um sistema de atendimento destinado ao egresso do sistema socioeducativo. Porém, a despeito das transformações apresentadas pelas autoridades estaduais, percebe-se o pouco caso destas em cumprir as diretrizes estabelecidas no ECA na recente política nacional sobre a questão, o SINASE. Tal descaso pode ser visto, por exemplo, na previsão da capacidade de atendimento das unidades de internação contida no plano estadual, em número de 56, ao passo que o SINASE e o CONANDA 278 determinam que seja de no máximo 40 adolescentes. Além disso, a dita realização do atendimento socioeducativo em parceria com a família e a sociedade civil é mera retórica, pois desde o ano de 2005 a Fundação CASA impede a entrada de organizações da sociedade civil nas unidades de internação. Tal restrição, adotada através da portaria nº 90/2005, e posteriormente prevista no Regimento Interno das Unidades de Atendimento de Internação e Semi-liberdade da Fundação CASA, instituído através da portaria normativa nº 136/2007, foi contestada por meio de ação civil pública por diversas organizações de defesa de direitos humanos, resultando na determinação judicial para que a instituição permita o ingresso das organizações civis a fim de realizar a fiscalização das unidades. A parceria com as organizações da sociedade civil mencionada relaciona-se ao novo modelo de gestão compartilhada das unidades de internação, implantado pela Fundação CASA em algumas de suas unidades do interior do estado. Este modelo de gestão das unidades se estabelece através de convênios firmados entre a Fundação CASA e organizações da sociedade civil, no qual a contenção e segurança são realizadas pela instituição estadual, enquanto que o projeto pedagógico é de responsabilidade da organização não governamental. Embora seja ainda uma experiência recente e de difícil avaliação no tocante à qualidade do atendimento prestado, é importante fazer a ressalva de que a maioria das organizações da sociedade civil que firma os convênios com a Fundação CASA são de cunho religioso, o que em si já causa desconfiança quanto ao caráter do atendimento prestado. Atualmente a Fundação CASA conta com 119 unidades (internação provisória, semi-liberdade e internação) no estado de São Paulo. Destas, 80 unidades permanecem sob administração e atendimento realizado pela Fundação CASA. As demais funcionam sob o modelo da gestão compartilhada. 4. Experiência de Justiça Restaurativa em São Paulo Frente à situação de inúmeras violações aos direitos dos adolescentes cometidas por todos os 278Segundo a Resolução nº 46/96 do CONANDA de 29 de outubro de 1996. 306 atores do sistema socioeducativo (ora processo de criminalização dos adolescentes), vale relatar um bom exemplo de sistema socioeducativo que garante os direitos inerentes à proteção integral dos adolescentes, buscando evitar a judicialização dos conflitos. Trata-se da experiência de Justiça Restaurativa implantada no município de São Caetano do Sul (pertencente à região metropolitana de São Paulo), por iniciativa de um Juiz da Vara da Infância e Juventude deste município. No ano de 2005, a Vara da Infância e Juventude de São Caetano do Sul, contando com o apoio da Secretaria Estadual de Educação, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Conselho Tutelar, dentre outros, criou o projeto “Justiça e Educação: parceria para a cidadania”, que objetivava construir uma prática inovadora de resolução de conflitos em 3 escolas do município. O projeto envolvia o encontro entre “ofensores”, “ofendidos”, familiares, educadores das escolas e conselheiros tutelares nos denominados Círculos Restaurativos, que por meio do uso do diálogo entre todos os presentes buscava solucionar o conflito, principalmente por meio da reparação. . Em 2006 o projeto foi ampliado de modo a incluir todas as demais escolas da rede pública estadual do município, totalizando 12 escolas. Neste mesmo ano, outro projeto foi criado a fim de que a prática alcançasse o contexto comunitário, sendo criado o projeto “Restaurando justiça na família e na vizinhança: Justiça Restaurativa e comunitária no bairro Nova Gerty”. Este novo projeto, focado inicialmente para a resolução de conflitos domésticos e de vizinhança no bairro de Nova Gerty, foi aos poucos ampliando sua atuação para englobar também os conflitos envolvendo adolescentes, familiares e os conflitos ocorridos nas escolas não participantes do projeto anterior. Neste projeto tomou-se como exemplo o modelo de justiça comunitária desenvolvido na África do Sul, no qual a administração do conflito se dá menos pelas necessidades individuais ou pela divisão de responsabilidades individuais, mas aborda o conflito como uma situação vivida pela comunidade, buscando-se uma transformação da própria comunidade para a solução do conflito. Os projetos de Justiça Restaurativa implantados no município de São Caetano do Sul mostraram-se promissores. Até o ano de 2007 foram instalados 260 Círculos Restaurativos, sendo realizados 231 acordos (sendo que 223 deles foram cumpridos) e um razoável envolvimento da comunidade e dos demais atores envolvidos. Os projetos, agora, foram ampliados para o bairro de Heliópolis, no município de São Paulo (contíguo a São Caetano do Sul) e no município de Guarulhos, e se avalia a possibilidade de implantação em outros municípios. FONTES UTILIZADAS BATISTA, Vera Malaguti. Filicídio: a questão criminal no Brasil Contemporâneo. Texto apresentado no “I Seminário Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza – A situação de crianças e adolescentes na América Latina hoje” – PROEALC/CCS – UERJ, Rio de Janeiro, 2006. CEDECA Interlagos. Segurança Pública para qual público? Pesquisa sobre a trajetória de adolescentes autores de ato infracional: da abordagem à delegacia. São Paulo: CEDECA Interlagos, 2006. MIRAGLIA, Paula. Aprendendo a lição: uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da Juventude. Novos estud. - CEBRAP, Julho 2005, n.72, p.79-98. MIRAGLIA, Paula. Rituais da Violência, a FEBEM como espaço do medo em São Paulo. Dissertação de Mestrado defendida no Departamento de Antropologia da USP, 2002. NICODEMOS, Carlos. A natureza do sistema de responsabilização do adolescente autor de ato 307 infracional. In: ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA (orgs.). Justiça, Adolescente e Ato Infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006. PIMENTEL, Silvia & PANDJIARJIAN, Valéria. Aplicação do ECA: ainda repressora ou protetora? Ensaio que problematiza a incorporação do novo paradigma pela justiça de São Paulo. São Paulo: EDUC, 1999 (mimeo). MELO, EDNIR &YAZBEK, Eduardo Rezende, Madza & Vania Curi. Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. 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