ESCREVENDO A CIDADE: TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO DE GANDU – 1930-1958 Adriana Oliveira da SILVA [email protected] Universidade Estadual de Santa Cruz De Corujão à Gandu: a ocupação Dos tempos coloniais até a primeira metade do século XX, houve uma predominância pela ocupação das áreas rurais do território, as poucas vilas que existiam não despertavam o interesse da maioria dos habitantes da Colônia, afinal a riqueza estava no campo. Com exceção dos antigos lugarejos, existentes desde o começo do processo de povoamento, a região cacaueira foi marcada pelo aparecimento de aglomerados urbanos dependentes do campo, ou deles nascidos. Muitos desses lugares emanaram da latência da produção cacaueira. Milton Santos (1955) destaca que a lavoura de cacau não foi formadora de grandes núcleos urbanos, mas ao contrário, o povoamento dentro dessa área teria sido predominantemente rural. Em muitos casos, a fazenda produtora servia também como ponto de comércio, tanto devido ao fato de serem os grandes produtores, compradores de amêndoas provenientes das buraras, quanto por emprestarem parte de suas terras para o comércio de especiarias vindas de outras regiões, Maria Sylvia de Carvalho Franco (1964) menciona: Tais estabelecimentos combinam, de maneira imediata e em escala modesta, a exploração da terra e a colocação de seus produtos: a pequena fazenda fornece a mercadoria; o rancho, mais a venda, atraem provável comprador e possibilitam as transações. São assim, fazenda, rancho e venda, elementos cuja importância é equivalente no circuito completo da atividade da mesma pessoa, que enfeixa a posse de todos os três. O município de Gandu faz parte da zona de produção do cacau e não por acaso foi em nome da exploração do solo para o cultivo desse produto que Gandu surgiu. Depois de desbravadas as matas, o primeiro núcleo de povoamento nasceu na primeira década do século XX com a chegada da família Costa proveniente da antiga cidade de Areia, atual Ubaíra, os irmãos José Amado e Gregório Monteiro da Costa configuravam aqueles sujeitos vindos de lugares distantes para ‘arriscar a sorte’, ocupando lugares, explorando terras. Os dois adquiriram a gleba da terra por via de compra negociada com o governo do Estado da Bahia e de imediato começaram a cultivar o produto de que tiveram notícias em sua terra natal que não possuía tradição alguma no cultivo do cacau, Milton Santos (1955) afirma que “as regiões mais altas do sudoeste são pouco próprias ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 1 à produção do cacau, em Santa Inês e ‘Areia’ o cacaueiro produz poucas e pequenas frutas, com amêndoas imperfeitamente desenvolvidas e chatas”. Nessa época a microrregião sul do estado se encontrava no que Adonias Filho (1976) classifica como ‘terceiro ciclo da produção cacaueira’, período de ápice da comercialização do produto, especialmente para o mercado europeu, foi dessa época os maiores índices de lucratividade com a exportação de amêndoas do cacau, Adonias Filho (1976) acrescenta: [...] quando o cacau já é a base econômica do sul e mesmo de todo estado da Bahia, [...] quando as colheitas situam o Brasil entre os maiores produtores do mundo. É a fase também lendária, dos coronéis que, remanescentes ou descendentes dos desbravadores, consolidam economicamente a lavoura. E transformam povoados em vilas [...]. Com a construção da sede da fazenda, então denominada Corujão, por ser a área em volta das casas frequentemente visitada por uma coruja grande, a fazenda ganha o nome da ave. Desse período de instalação da família Costa não há muitos relatos, nem documentos, no entanto, é sabido que a fazenda Corujão aliada à fazenda Paó do Gregório Monteiro ampliou suas lavouras de cacau, empregando um número crescente de trabalhadores, muitos deles trazidos pela própria família, outros tantos egressos da sede, o município de Santarém, conforme cita Orlando Pitágoras de Freitas (1981). Era comum em toda a região que os trabalhadores residissem na própria fazenda, no meio do cacaual, para evitar perda de tempo com viagens cotidianas, dessa forma pequenas e grandes fazendas priorizavam a permanência do trabalhador próximo à lavoura, a fim de mantê-las sob seus cuidados, Milton Santos (1955) ainda informa: “Nas fazendas, o proprietário quase sempre presente, ao lado de barcaças, estufas, igreja, constrói a sua casa e a dos trabalhadores. Cada fazenda constitui um diminuto núcleo de povoamento, com seu pequeno grupo de casas e de pessoas. Aqui e ali alguns povoados, na verdade, surgem, à beira dos caminhos ou nos seus cruzamentos, para atender a aquisição das utilidades mais necessárias; e, mesmo, com origem na sede de antigas fazendas que pela sua posição regional se prestam a esse papel de condensadores de populações, algumas vilas maiores têm surgido”. A fazenda Corujão não foge a essa regra, uma parte da fazenda próxima ao Rio Gandu servia de ponto de parada de tropeiros que traziam mercadorias para suprir as necessidades dos trabalhadores e fazendeiros que viviam na localidade, visto que havia a predominância da monocultura do cacau em detrimento de outros cultivos de subsistência. Muitos produtos, incluindo gêneros alimentícios como banana, abóbora, milho, aves, ovos, eram adquiridos durante a passagem dos tropeiros pela fazenda. Poucos foram os produtos cultivados, até essa época, na localidade, somente décadas ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 2 mais tarde, outras lavouras foram incluídas no panteão agrícola local, conforme relatos de moradores antigos. Outros conglomerados existiram nas diversas fazendas espalhadas pelas terras do município de Santarém, a exemplo das Fazendas Balcão, Gavião, Paiol, e Bom Jardim, porém foi na sede da fazenda Corujão que nascera o núcleo formador da antiga vila de Gandu, (FREITAS, 1981). Por volta de 1919, esta fazenda já era considerada arraial e abrigava um número um pouco maior de habitações que variavam entre palhoças, casas acanhadas e precárias, até construções maiores, mais sólidas e mais confortáveis como as casas dos proprietários de fazendas e seus familiares. O pequeno aumento demográfico, aliado ao crescente comércio de mercadorias vindas da sede, gerou um crescimento da unidade produtora, essa realidade era funcional à acumulação de recursos pelos proprietários da fazenda, pois mantinha o trabalhador preso na roça, dependente de seus favores, entre os quais, empréstimos e adiantamentos de salário, quantias muitas vezes destinadas ao pagamento das dívidas nos armazéns e vendas da própria fazenda. No começo da década de 1920, o efêmero núcleo formado na fazenda Corujão deu origem ao distrito de Gandu, essa denominação foi em decorrência da suposta existência de jacarés chamados “gandus”, que segundo os moradores mais antigos habitavam as águas dos rios e lagoas das fazendas, (COUTINHO, 2001). As relações entre o novo distrito de Gandu e a sede tornaram-se cada vez mais intensas, notadamente as trocas comerciais, as relações de ordem econômica, já que as tropas que saiam de Jequié e Ipiaú com café e cacau em direção a Santarém passavam invariavelmente pelas terras pertencentes ao Distrito, também o cacau produzido nas fazendas de Gandu era destinado aos portos de Santarém e de lá era levado para Salvador por via marítima. O Distrito produzia, mas quem comercializava com a capital e com o mercado externo era a sede, Santarém, conforme menciona o Srº. Roberto Baiardi, morador antigo da cidade de Ituberá. Em sua obra Zona do Cacau, Milton Santos (1955) destaca que em terrenos sedimentares, próximos ao litoral, como Ituberá, o cacau não medra nesses locais onde há um domínio do coqueiro e da piaçava. Pois foi a estes produtos, além dos mariscos, que a antiga Santarém dedicara-se durante todo esse tempo, chegando a importar muitas manufaturas de Salvador para a sede e para o distrito. Distrito de Gandu: povoamento e crescimento econômico ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 3 O fluxo migratório de Santarém e de outras localidades para Gandu se estendeu pelas décadas seguintes e tornou-se uma constante durante as décadas de 1930 e 1940, é desse período o maior índice de ingresso de pessoas de outras regiões para Gandu, conforme atestam os depoentes entrevistados, Jonas Almeida e Hildebrando Vivas, o primeiro proveniente de Santo Antônio de Jesus e o segundo natural de Canavieiras. Ambos chegaram nas décadas de 1930 de 1940 respectivamente e assistiram outras chegadas. Pessoas dos lugares mais variados se instalaram em Gandu nesse período por conta das notícias de rápido crescimento em vista da larga produção de cacau. Alguns estiveram por pouco tempo, apenas de passagem, outros ficaram e fincaram raízes no Distrito, chegando a adquirir imóveis, constituir propriedades, comércio e família, alcançando muitas vezes à esfera política, como foi o caso da família do Srº. Jonas Almeida, seus irmãos mais velhos Antônio e Edésio Almeida, que ingressaram a princípio na atividade comercial, adquiriram terras, tornaram-se donos de uma das maiores compradoras e revendedoras de cacau do País à época, a empresa Calheira Almeida S/A. Filiaram-se ao Partido Social Democrático (PSD) e tiveram intensa participação político-partidária na localidade, indicando nomes e financiando campanhas eleitorais de membros do seu grupo de influência. Uma parcela dos migrantes, que chegaram, foi reforçar o quadro de trabalhadores das roças de cacau, trabalhou mais durante a época de colheita, muitos eram apenas contratados nesse período para serviços ligados à colheita, secagem, armazenagem e transporte, nos períodos de entressafras, porém, eram obrigados e a se deslocar para outras regiões ou dedicarem-se a algum outro tipo de serviço que lhes garantissem a sobrevivência. Chegavam sonhando em serem proprietários, mas acabavam apenas como força de trabalho, e mesmo quando adquiriam um pequeno lote de terra, estavam sujeitos à dura concorrência do grande produtor, que possuía barcaças e estufas apropriadas à secagem e à armazenagem das amêndoas, dessa forma o pequeno produtor da unidade de produção familiar era obrigado a aceitar os contratos de comercialização de suas escassas ‘sacas’, porque não possuíam nem a quantidade significativa, nem as condições necessárias de armazenagem do cacau. A unidade de produção familiar estava submissa tanto aos grandes fazendeiros, quantos aos comerciantes de cacau, Amílcar Baiardi (1984) salienta: O grau de submissão do burareiro ao comerciante, decorrência dessa dependência integral e do vínculo quase que estável, amplia-se e se desdobra entrando no terreno dos favores mútuos e da amizade ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 4 instrumental que são o passo para o clientelismo político, que se expressa em fiéis eleitores a serviço do comerciante. O fato de o distrito de Gandu estar na área de intercâmbio das transações comerciais entre os municípios de Jequié, Ipiaú e Santarém, acabou facilitando o desenvolvimento de suas atividades de ordem mercantil, além de favorecer largamente a interação entre seus habitantes e indivíduos vindos dos mais diversos lugares, cheios de novidades e inovações. De fato, Gandu se configurou como parte de uma rota estratégica que acabou incentivando sua ocupação e posterior aumento demográfico. Os depoentes falam de um quadro de dinâmica interna das atividades econômicas durante década de 1930, afirmam que o Distrito assistia a um crescimento da produção cacaueira e um aumento das atividades comerciais dentro da própria localidade, indo na contramão do que alguns pesquisadores chamam de período de crise do cacau. Porém, esse período foi assolado por uma crise mundial que afetou largamente as economias de muitos países, inclusive o Brasil. Houve recessão, e a exportação de cacau se viu abalada com a ausência de compradores, especialmente do mercado europeu. A crise afetou a região cacaueira, obstruindo os projetos de modernização de algumas cidades, como a ‘promissora’ Ilhéus e, fatalmente alcançou a economia do município de Santarém. Portanto, ainda que vivenciasse um crescimento do comércio local, o distrito de Gandu sentiu os efeitos do colapso econômico mundial, visto que o cacau, maior fonte de riqueza, sofria forte retração no mercado internacional. Um aspecto relevante durante esse período é a construção da estrada Gandu – Santarém, construída à mão segundo relato dos antigos moradores que assistiram sua inauguração no ano de 1935. A estrada de rodagem ligando o distrito à sede facilitou o elo de comunicação entres as duas localidades, o percurso que antes era feito no lombo de animais durante dias de viagem, agora poderia ser efetuado em questão de horas por via de automóveis, estes, conforme atestam alguns depoentes, não eram muitos, havia apenas dois carros, um caminhão e uma caminhonete, que fazia esse percurso levando e trazendo pessoas e mercadorias, sobre abertura de estradas e avanço dos meios de transporte Maria Sylvia de Carvalho Franco (1964) comenta que, “as tropas de burros começaram a desaparecer desde que os progressos modernos em ferrovias e linhas de diligência, estradas, tornaram os transportes mais fáceis. Até recentemente era a única maneira de fazer escoar a produção do interior”. Com o ímpeto da economia local, começaram a surgir as primeiras construções arquitetônicas de médio porte. Prédios e sobrados foram erguidos, a Igreja Matriz ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 5 passou por reformas e ampliou-se para atender ao número cada vez maior de habitantes. As antigas casas de taipa deram lugar às construções de cimento e tijolos, algumas ruas foram abertas, uma delas, calçada de pedra bruta, a Rua da Ladeira Grande, a mais antiga rua da localidade, conforme citada no Projeto de Lei nº 53 de 1959. A antiga fazenda Corujão ganhava ares de urbanização, ainda que fosse, à época, um processo incipiente. Uma boa parte da fazenda foi tomada por novas construções, especialmente no largo em frente à Igreja. É desse período, a foto (Figura 1) que mostra a construção de prédios nas elevações da Fazenda Corujão, próximos à Igreja Matriz: Figura 1 - Distrito de Gandu – Década de 30 do século XX É possível perceber na imagem (foto tirada da Igreja Matriz em direção ao largo), que algumas casas são de tijolos, o casarão e o prédio com sobrado (do lado esquerdo da imagem) poderiam representar, para habitantes da localidade, uma espécie de ‘progresso’ para o Distrito. Esses prédios foram construídos pelo senhor Antônio Araújo, mestre de obras apelidado de “João de barro”, este senhor responsável por muitas outras construções no Distrito no decorrer dos anos de 1940, conforme cita o entrevistando Jonas Almeida. A foto parece enquadrar o que teria sido o aglomerado formador do Distrito, não há pessoas na rua ou em volta das casas, o que sugere que a foto tenha sido preparada como forma de indicar um possível desenvolvimento do lugar, ao menos sob a ótica de seus moradores. Um dos depoentes, o senhor Jonas Almeida, que acompanhou todas essas alterações, destaca a presença de um considerável número de casas comerciais no Distrito, boa parte delas negociava o cacau, outras comercializavam produtos que atendiam as necessidades mais imediatas de fazendeiros e trabalhadores, um destes produtos chama a atenção por não ser um produto de tradição na Região, a farinha de mandioca. O senhor Jonas Almeida assegura que o distrito de Gandu chegava exportar farinha para Salvador e outras regiões do nordeste, segundo ele, este fato era um indicativo de desenvolvimento econômico local, visto que as demais vilas e cidades vizinhas não possuíam este diferencial, o cultivo de outros produtos, mas o depoente afirma que o cacau mantinha-se como o imperativo produto local. Nesse sentido, o comércio seguiu sendo, ao lado da produção cacaueira, um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento da efêmera infra-estrutura local. O comércio também ajudou a abrir estradas nas diversas fazendas, especialmente pela necessidade que tinham os pequenos agricultores e os trabalhadores rurais de irem até o ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 6 centro do Distrito, comercializar seus produtos de origem primária. Esse comércio era na verdade realizado por via de troca de produtos, estes eram intermediados nas ‘feiras dos sábados’, que reuniam pessoas dos diferentes lugares do distrito, realidade comum em toda a Região. Era comum que uma parte dos grandes proprietários partisse para outras regiões, consideradas mais modernas, para efetuar suas compras, normalmente adquira artigos de luxo, produtos avançados, considerados “novidades” no pequeno distrito. Milton Santos (1955) afirma que, via de regra, em todas as pequenas localidades da região cacaueira, o movimento aumentava aos sábados, por ser o dia de consagração, a feira semanal. O Distrito formava uma espécie de ‘agrovila’, pois o comércio era essencialmente vinculado à zona rural. Na foto (Figura 2) que segue, é possível visualizar o aglomerado de pessoas no centro vendendo e comprando produtos, outras chegando com seus animais de carga, transportando algumas mercadorias “in natura”. Tal foi a importância disso que a economia local ganhou fôlego no final da década de 1930, e a dependência sobre Santarém foi aos poucos diminuindo, mas em contrapartida toda a arrecadação do distrito de Gandu era destinada a Santarém. Um dos entrevistados, o senhor Roberto Baiardi afirmou que boa parte dos lucros obtidos na praça do distrito de Gandu era encaminhada para a Sede. O Boletim de Arrecadação, de janeiro de 1938, assinado pela agente arrecadadora Maria Almeida (em anexo), atesta o elevado volume de recursos levados para Santarém à época. O crescimento do distrito foi acompanhado pela decadência da Sede. A economia da Região estava centrava fundamentalmente na produção e comercialização de cacau, o distrito de Gandu era produtor, porém, via a fonte de sua riqueza escoada para o porto de Santarém, mas, a partir da década de 1940, os produtores e comerciantes locais intensificaram as relações diretas com a capital por meio da BA 02, que passava por Gandu e ia em direção a Salvador. Além disso, o ICB (Instituto de Cacau da Bahia) inaugurou uma de suas filiais no distrito de Gandu, comprando boa parte do cacau ali produzido. Aos poucos Santarém perdia a fonte geradora de sua riqueza, o distrito de maior arrecadação, Gandu. A Sede entrou em uma terrível crise, conforme destaca o depoente Roberto Baiardi: Acabou Ituberá, daquela hora ali em diante ninguém mais, nenhum comprador de cacau da região, inclusive meus tios, meus parentes iriam mandar o cacau de braço pra levar três dias no mar, podendo despachar em horas pela estrada, matou completamente, então ituberá ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 7 (...) começou a entrar num estado de decadência na década de 40, de decadência, mas decadência terrível mesmo, o comercio começou a fechar, os italianos foram embora, inclusive meu pai (Entrevista com Roberto Baiardi, p. 4, 5) Em meio a tudo isso, um fato inusitado marcaria a década de 1940, o advogado da família Costa, então proprietária da fazenda Corujão, reivindica a garantia de posse da gleba de terra pertencente à fazenda que vinha sendo ocupada pelos habitantes do Distrito. No documento, em anexo, há uma clara tentativa de persuasão sobre o prefeito de Santarém na tentativa de impedir que o distrito de Gandu seja elevado à categoria de vila, o argumento utilizado pelo advogado da família Costa, o senhor Barachisio dos Santos Lisboa, foi que “o distrito de Gandu não possuía mais de mil habitantes, portanto não poderia tornar-se vila”, e ainda afirma: O espolio de José Amado da Costa, por seu advogado, conforme comprova a anexa certidão, vem na conformidade do quanto estabelece o art. 2º do Decreto Estadual nº. 12.693, de 10 de março de 1943, e em atenção ao convite que lhe fora feito atravez edital dessa prefeitura, exibir, como exibe, a V.S., o anexo título de domínio, indiscutível e irrefutável para comprovar lhe ter vendido o Estado da Bahia, ou melhor, ao falecido José Amado da Costa, os terrenos, sitos no lugar denominado “Corujão”, à época, e ora chamado Gandu, para o fim de ser reconhecido legitimidade do seu direito por parte de V. S., e, assinalada na planta cadastral a se proceder, a respectiva gleba de sua propriedade, como direito. O advogado faz questão de ressaltar a existência do título de domínio das terras adjetivando-o de indiscutível e irrefutável, não se sabe até que ponto esse direito de posse foi questionado e suplantado pelos moradores da localidadedo na onto esse direito de posse foi questionado ou ultrapassado na de sua propriedade, como direito.", ou se houve disputas entre os membros da classe abastada em torno dessas terras, tudo indica que a família Costa teve receio de perder parte de suas terras durante o processo de constituição da vila de Gandu. Contudo o argumento utilizado pelo advogado da família não foi capaz de impedir a elevação do distrito à categoria de vila, segundo o Srº. Roberto Baiardi, um censo realizado durante o ano de 1943 constatou que havia mais de mil habitantes no distrito, sendo possível, portanto, sua promoção hierárquica. Já na segunda metade da década de 1940, todo o país incluindo a região sulbaiana vivência um momento de crise, a vila de Gandu, como todas as vilas e cidades da Região, foi afetada com as conseqüências do colapso econômico pós II Guerra Mundial, segundo Orlando Pitágoras de Freitas (1981), o mercado local se retraiu sem os tradicionais compradores de cacau, os fazendeiros da vila lançaram sacas de cacau no Rio Gandu, mas o ICB prestou socorro aos produtores, comprando e armazenando parte ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 8 da safra colhida. (FREITAS 1981). Essa instituição estadual ainda foi responsável por investimentos na área de saúde, energia elétrica, construção de estradas e investiu na construção e manutenção da Cooperativa Mista de Crédito Agrícola. Algumas obras públicas também foram projetadas e iniciadas no final da década de 1940. A inauguração da Rua Érico Sabino Souza e das Praças Rui Barbosa e São José foi liberadas por lei municipal, 033 e 034, no início de 1949, e concluídas em outubro do mesmo ano. Vila de Gandu: a atuação dos mandões locais A aquisição e a posse da terra eram fonte de extrema preocupação para os fazendeiros daquela época, afinal era da terra que extraiam o manancial de riqueza de que precisavam para gestarem a atuação social. A vila de Gandu abrigou pessoas influentes tanto em Santarém quanto no próprio Distrito. Uma boa parcela dos fazendeiros-comerciantes se instalou no Distrito para estar mais próximos das propriedades que havia adquirido nas décadas anteriores. A classe dominante do município de Santarém residia no distrito de Gandu e ali se articulava para alcançar ou manter o controle político de toda localidade. O grande proprietário do distrito de Gandu era, como no resto da Região, um comerciante e não apenas um agricultor, e além do mais compartilhava do poder político, ou seja, era membro do estrato social mais influente, o que acabava desestimulando qualquer iniciativa que contrariasse seus interesses. Esse fato foi importante para o Distrito no sentido de que mantinha seus representantes no controle do executivo e do legislativo do Município, o que resultava em benefícios para o lugar. O maior número de obras de infra-estrutura era destinado a Gandu, Roberto Baiardi cita: Gandu teve o privilégio, quer dizer, pessoas radicadas em Gandu como políticos, tiveram o privilegio de governar o município de Ituberá, o que tá acontecendo é que atraia para Gandu os maiores benefícios, o que em parte não era justo também, eles pendiam mais para o lado de lá, Ituberá se tinha uma obrazinha, Gandu tinha uma obra, então com isso aí Gandu se desenvolveu. (Entrevista com Roberto Baiardi p. 7) O ingresso de novas obras aumentava o prestígio do “benfeitor”, o objetivo era mesmo ganhar o respaldo da população local para investidas políticas futuras ou a permanência das já bem sucedidas manobras eleitoreiras. Porém, os efeitos dessas benesses pouco se fizeram sentir sobre a camada mais baixa da população local, mantida distante desse processo por via de rígido controle, dado o grau de dependência que existia entre os mais pobres, tutelados pelos fazendeiros-comerciantes que os ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 9 exploravam como mão de obra e manipulavam suas decisões. Em Subordinação do Trabalho ao Capital na Lavoura Cacaueira da Bahia, Amílcar Baiardi (1984) endossa: Os assalariados, principalmente os residentes nos estabelecimentos rurais, pelo nível de dependência que aparentam ter em relação aos proprietários, também integram a massa dos submissos constituindose em bases eleitorais dos interesses locais articulados com o empregador (...) há um reforço dos laços de dominação econômica existentes, que são a gênese da coerção extra-econômica. A distribuição da renda não era eqüitativa e a diferença entre as classes sociais do Distrito se tornou cada vez mais acentuada, ainda que este estivesse passando por um período de crescimento econômico, o povo sempre esteve mantido afastado das decisões políticas. Segundo Selem Rachid Asmar (1985), (...) a elitização econômica e política não levava à preocupação com as diferentes categorias de baixa renda, de outro lado, os desafortunados do cacau não faziam valer seus reais interesses, sem força de representação, desintegrados, mal instalados, desorganizados. A vila servia não só de acomodação da família e alojamento de agregados, era também reduto onde os homens de poder do município expressavam sua capacidade de domínio, Wilson Lins (1988) enfatiza: Os grandes negociantes das pequenas cidades, que haviam substituído os antigos contratadores e sesmeiros no poder de mando, transferiam os lucros do comércio para o campo, comprando terras, por não haver poder que durasse muito, sem o respaldo da propriedade da terra, já que era a terra a fonte de dominação dos ricos e a poupança dos remediados. A ela o pobre continuava a não ter acesso, senão como servo, fosse trabalhador ou agregado. A família Libânio foi uma das que conseguiu interferir na política de Santarém mesmo instalada em Gandu. O fazendeiro-comerciante Manoel Libânio da Silva Filho foi o maior expoente entre os que controlavam os dois redutos distritais. Eleito prefeito de Ituberá na década de 1950 com maioria de votos dos habitantes de Gandu, Maneca Libânio, como era conhecido, atuou nas esferas econômica e política do município de Ituberá. Além dele, outros nomes aparecerem entre os que possuíam propriedades no Distrito e galgaram o poder político na sede, Nestor Lopes da Silva, Niomisio Lisboa, Querubim Leite, Marcionilio Cursino Barbosa, e alguns outros de menor expressão. Embora esse período tenha sido marcado pelo amortecimento das oligarquias regionais, estas continuaram exercendo forte influência no interior do Estado. Alfredo Matta (2002) fala de uma oligarquia submetida aos padrões de centralização de poder, progresso e modernidade, Adonias Filho acrescenta que esses novos padrões também geraram mudanças no tipo de político, a partir desse período era cada vez mais comum ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 10 que profissionais liberais, como advogados, médicos, engenheiros ocupassem cargos outrora controlados pela tradicional oligarquia agrária, representada pelos proprietários rurais, afinal os espaços de atuação política estavam sendo transferidos do campo para as cidades, muitas delas recém inauguradas. Mas, independente da origem, os velhos e novos coronéis atuaram de forma simultânea e utilizaram os mesmos artifícios e manobras para galgar o poder. Esses ‘mandões locais’ (CARVALHO, 1997) agarravam-se aos acordos que mais lhes interessasse, alianças e desacordos podiam se suceder tão rapidamente, quanto conviesse aos homens de poder. Mesmo sob as claras investidas da República em direção à modernização das regiões e das mentalidades, a classe fazendeira continuava sendo o sustentáculo da nação agro-exportadora que foi o Brasil. A política nacional de desenvolvimento industrial e de mercado, não foi capaz de impedir a continuação das velhas tradições políticas, o mandonismo mantinha-se vivo. Na Bahia, a maior parte do eleitorado encontrava-se na zona rural, portanto era o campo e as pequenas agrovilas o palco onde os performáticos coronéis atuavam. Em O mandonismo local na vida política brasileira, Maria Isaura de Queiroz (1969) enfatiza: Os mandões locais continuavam, nos municípios, dominando administração, poder judiciário, policia, câmara municipal; a oposição nem sequer podia votar, porque o processo eleitoral estando nas mãos da câmara ou do judiciário, era o mesmo que estar nas mãos do ‘coronel’ (...) o sistema de escolhas do candidato tresandava ainda a tempos imperiais, para penetrar na política era preciso, pois, um bom padrinho. Gandu, no decorrer do tempo, passou a ter uma população equivalente a de Ituberá, antiga Santarém. Em 1950 Ituberá possuía 2.143, enquanto a vila de Gandu possuía cerca de 2.057 habitantes, no aglomerado urbano, chegando a aumentar esse número no decorrer dos anos 1950, (BARROS, 1958). Esse número simbolizava os votos que poderiam ser adquiridos tanto pelos velhos conhecidos coronéis locais, como pelos ‘super-coronéis’ da esfera estadual. Outro fator que interessava aos dirigentes locais era o crescimento econômico da vila, Milton Santos (1955) chega a destacar Ituberá como 6ª em produção de cacau entre os anos de 1953 e 1954, com uma porcentagem de 3,83% sobre o total do Estado, o correspondente a 75.200 arrobas, porém esse número fora alcançado pelo de fato de Gandu ainda pertencer ao município de Ituberá nesse período. A Vila era sinônimo de fartos lucros e manipulação do poder político. Gandu: tramitações políticas em prol da emancipação Durante toda a década de 1950 a vila de Gandu e a cidade de Ituberá estiveram ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 11 sob o controle de Maneca Libânio e seus escolhidos. Maneca era filiado à UDN (União Democrática Nacional) que se formara com a aliança da burguesia nacional e os dissidentes das oligarquias, alijados do poder desde 1930. Com apoio do governo do estado da Bahia, Maneca enfrentou apenas algumas dissidências dentro da própria sede. As famílias Lisboa e Costa membros do PSD (Partido Social Democrata) formavam o grupo de oposição a Maneca em Ituberá, e no geral pertenciam à cadeia autocrática da localidade. André Luiz Ribeiro (2001) em sua obra Família, poder e mito: o município de S. Jorge de Ilhéus (1880 – 1912) salienta: O coronel organizava a política e complementava a administração pública no município dentro de um partido único estadual tumultuando na base eleitoral. Essa base municipal dividia-se em grupos antagônicos, em que não raras eram as dissidências internas (...). Esse coronel local, Maneca Libânio, conseguiu empreender uma rede de alianças e conchavos de seus redutos eleitorais, embora não possuísse uma ideologia de partido definida. Esse fato mostra claramente que, ainda durante os anos de 1950, o velho jogo de poder das oligarquias era o fundamento do domínio regional, tanto que a máquina eleitoral se configurou na região com a formação dos “currais eleitorais” e com o predomínio dos “votos de cabresto”. Maneca Libânio possuía uma boa relação com o governo estadual, trocava proveitos, apoiava os governadores da época, Regis Pacheco e Antônio Balbino, e barganhava o prestígio e os recursos de que precisara para conduzir suas manobras político-eleitoreiras, uma delas foi o processo que culminou com a sua eleição para prefeito de Gandu depois da emancipação. Prefeito de Ituberá por duas vezes, Maneca Libânio conseguiu deixar um sucessor de sua confiança no controle da Cidade, o senhor Nestor Lopes da Silva também residente de Gandu, a intenção era manter o controle da cidade, mesmo estando fora do executivo local. O grupo formado pela família Libânio e seus agregados cogitavam a possibilidade de garantir para si uma área geográfica que ampliasse o poder político e resguardasse para eles um curral eleitoral seguro e fiel. Em resultado dessas conversações, surge a proposta de emancipação da vila de Gandu, em nenhum momento o povo da localidade fora convidado a participar dessas discussões e foi mantido marginal durante todo o processo. Não há duvidas de que a população era queixosa de melhorias urbanísticas para a Vila, mas daí a cogitar a idéia de emancipação era um ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 12 passo que só poderia ser dado pelas ditas forças representativas da época. Gandu interessava aos dirigentes locais por ser reduto eleitoral e por configurar, naquele momento, um estrato importante da região cacaueira. O fato de o prefeito de Ituberá ser um morador de Gandu fez com ele não só facilitasse toda a tramitação política como fosse um dos defensores ferrenhos do desligamento dos distritos. A cena política estava sendo engendrada por ‘detrás das cortinas’. Duas figuras surgiram para consolidar o já bem estruturado projeto de emancipação política da vila de Gandu. Uma, foi a senhora Ceres Libânio, professora, esposa de Durval Libânio da Silva, irmão de Maneca. Segundo relatos, D. Ceres foi uma das poucas, senão a única mulher da vila a interferir diretamente nesse processo, sendo considerada representante das classes populares nas tramitações. O outro, foi o deputado Nelson David Ribeiro, médico, membro do PSD, filho de um dos desbravadores da localidade, seu Nestor Ribeiro. Nelson David encaminhou à Câmara Estadual o Projeto de Emancipação e serviu de elo entre os dirigentes locais e o governo estadual. O senhor Roberto Baiardi destaca: Nelson David era deputado, era Drº Nelson era médico, entendeu, ele influenciou também bastante, porque ele foi consultado na ocasião e como ele foi eleito por Gandu, ele teve peso decisório no meio, até porque isso precisava, é lógico, de aprovação da Câmara e ele tava lá, ele conseguiu as assinaturas necessárias, então apesar de ser de partido diferente do governador se aliaram. Como as linhas partidárias da época não possuíam muitas barreiras, os interessados na emancipação, provenientes dos dois partidos UDN e PSD, se aliaram em torno da independência político-econômica de Gandu. Justificavam o interesse afirmando que não podiam permitir que toda a renda de Gandu fosse canalizada para Ituberá e através do ‘boca a boca’ e de alguns discursos desenrolados nas portas dos botequins, armazéns e ruas da Vila. Dessa forma, conseguiram convencer as massas que, mal informadas, não lhes restou outra coisa senão aceitar a novidade. Os ‘poderosos’ transmitiam a ideologia que justificava seus interesses e legitimavam sua ação política. Sobre este aspecto comenta Charles de Sá (2000): Linguagem e poder estão assim relacionados. Hipnotizados pelas belas palavras de um agente da super-estrutura a massa permanece inerte, desejosa em seguir a liderança naquela pessoa que se expressa (...) o consentimento das massas transforma-se assim, no mais poderoso agente a classe dominante pode desejar. O voto e a opinião pública precisam ser buscados e angariados constantemente. Só assim ocorrerá um verdadeiro domínio da sociedade por meio de uma classe dirigente”. Entre as décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960 ocorreu um surto de emancipações ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 13 em todo o território nacional, na Bahia não foi diferente, muitos aglomerados sem condições nenhuma que lhes rendesse a categoria de cidade foram emancipados. Fazem parte desse quadro: Camacã, Ubatã, Ibicaraí, Mascote, Buerarema, Itajibá, Floresta Azul, Gandu e vários outros. Essa onda de emancipações se inicia no final da década de 1930, durante o Estado Novo, quando o Decreto Lei 311 determinou a anômala divisão territorial, partindo do princípio que a sede do município poderia tornar-se cidade independentemente de suas características estruturais e funcionais, José Eli da Veiga (2003) em sua obra Cidades Imaginárias: O Brasil é menos urbano do que se calcula, acrescenta: Da noite para o dia, ínfimos povoados, ou simples vilarejos, viraram cidades. Vilas e cidades surgiam até sem a púvia existência de freguesias, a decisão de criar ou elevar uma localidade á categoria de vila, ou de cidade, não respeitavam qualquer norma. Iniciativas estaduais de uniformização desse quadro territorial surgiram, mas foi o Estado Novo que estabeleceu as regras de divisão territorial que permanecem em vigor. Gandu ainda não apresentava as condições de infra-estrutura necessárias a uma cidade, porém o que interessava era o controle dessa área como reduto eleitoral, como mecanismo de controle dos recursos públicos pela iniciativa privada. A emancipação foi negociada como barganha entre o governo local e o estadual, a política populista do governador Antônio Balbino facilitou a promoção do projeto, o depoente Roberto Baiardi enfatiza: (...) eu tenho uma gama de eleitores pra lhe oferecer, eu tenho direito de lhe pedir (...) troca de favores, isso vai existir a vida toda numa democracia fajuta como essa nossa e aconteceu o seguinte: Maneca virou pra ele e disse: “tenho tantos votos lá em Gandu, em troca quero a emancipação”, então acabou meu filho, não se fala mais nada, vai sair a situação e acabou, peso político, peso político não se discute. (Entrevista com Roberto Baiardi, p. 9) O depoente propõe que a essa altura Maneca tenha se afastado dos holofotes, das atenções gerais, a fim de melhor gerenciar todo o processo emancipatório, segundo o entrevistado, isso aconteceu pelo fato de Maneca evitar expor sua opinião sobre algo que ele próprio cogitava, dessa forma impedia um desagravo com os moradores de Ituberá, também eleitores seus. Porém, a informação passada por este depoente choca-se com outras versões. Alguns moradores antigos afirmam que Manoel Libânio da Silva Filho foi contra a emancipação de Gandu por fazer parte da elite dirigente do município de Ituberá, o depoente Jonas Almeida enfoca: Não, ele era contra, porque ele é oriundo lá de Ituberá, os parentes dele, o velho Barachísio, depois Niomísio Lisboa, depois veio o neto Barachísio, um grande advogado também, mas esse já não fazia parte ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 14 da política de Gandu, eles eram de Ituberá e pressionavam para não perder este distrito que era o braço direito de Ituberá, (...) então Maneca nunca quis a emancipação, Eliseu leal foi quem cavou e conseguiu contra a vontade de Maneca. (Entrevista com Jonas Almeida p. 11) O depoente chama a atenção para a figura do jovem Eliseu Leal, recém ingresso na carreira política, porém os documentos e a bibliografia referente à história do município não faz referência a ele durante o processo de emancipação. Segundo Coutinho (2001), A emancipação política de Gandu ocorreu de forma polarizada: de um lado, tinha um forte aliado na pessoa do Deputado pedessista Nelson David Ribeiro, filho de um dos desbravadores e de outro, encontrava-se a oposição do situacionismo local liderado por Maneca Libânio, que defendia a integralidade do município de Ituberá. Orlando Pitágoras de Freitas, que viu de perto toda a tramitação política sobre a emancipação, confirma a opinião contrária de Maneca sobre a questão, em seu livro Freitas (1981) afirma: Sabendo o vereador Moisés Silva, líder da oposição em Gandu, que o chefe do situacionismo, vereador Maneca Libânio era contrário à subdivisão do município de Ituberá, apresentou o Projeto de Resolução à Câmara na ausência deste e pediu o apoio do Vereador Rosentino Botelho de Assunção Filho, o qual, não obstante sua condição de liderado de Maneca, não se opunha à emancipação de Gandu. Todavia, condicionou sua adesão ao Projeto, ao apoio também da Vereadora D. Ceres Libânio, a qual o subscreveu de imediato, permitindo assim que todos os demais o fizesses, à exceção de Maneca Libânio, o qual chegara pouco antes da votação e se retirara logo em seguida, para não assistir, ao que considerou, cheio de emoção, o retaliamento de um grande e próspero município. Chama a atenção o fato de Maneca não está presente justamente na sessão da Câmara destinada à votação sobre a emancipação e mais, espanta que um de seus aliados tenha se voltado contra sua decisão e que o próprio Maneca tenha chegado ao final da sessão, retirando-se sem maiores discussões ou tumultos, o inconformismo parece ter durado pouco. Certo é que, em 28 de julho de 1958, conforme Lei Estadual de nº 1008, publicada no Diário Oficial (em anexo), Gandu tornou-se emancipada politicamente. O movimento em prol da emancipação da vila de Gandu foi fundamentalmente político, não houve insurreição ou qualquer tipo de revolta entre os moradores da localidade frente à situação de dependência quanto à Ituberá, o objetivo era de ordem econômica e política, salvaguardar um bom número de eleitores para o grupo partidário envolvido no processo. Segundo Orlando Pitágoras de Freitas, o panorama político de Gandu e Ituberá ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 15 em nada se modificou no pós emancipação. Mas, consta no Diário Oficial que as eleições para prefeito e vereadores próprios do novo município seriam realizadas junto com as eleições gerais em abril do ano seguinte, ficando Gandu até esse período sob a tutela de Ituberá, sendo este obrigado a destinar 70% da renda distrital arrecadada para as instalações de natureza política e social do novo município. Gandu seguiu a legislação do município de Ituberá até elaborar a sua, os funcionários de Ituberá que moravam em Gandu puderam permanecer em suas propriedades sem incorrer em qualquer ônus para os mesmos. Como se vê, os laços existentes entre Gandu e Ituberá não foram rompidos bruscamente, de uma hora para outra. Passado os dias de festejos na localidade, a emancipação não gerou muitas mudanças para Gandu, que seguiu seu curso normal até a chegada das eleições municipais e, um velho e conhecido nome surgiu novamente no cenário político local, Manoel Libânio da Silva Filho representando a situação (UDN) disputou as eleições para prefeito de Gandu, contra ele apareceu a figura de Adelino Tavares Roseira do PSD. Político experiente, conhecedor dos costumes do povo e adaptado à conjuntura local, Maneca venceu as eleições com tranqüilidade, tomando posse do executivo local em 07 de abril de 1959, conforme consta na Ata de Posse da Câmara de Vereadores do município (em anexo). O governo do Estado só se posicionou, manifestando seu julgamento após o resultado das eleições, já que era costume dos governadores esperarem o término das disputas internas para daí dar a palma ao vencedor. Gandu permaneceu sob o domínio das mesmas figuras políticas que por décadas se aproveitaram da condição de dirigentes para ‘mandar’ e fazer valer a sua influência política, em vista do elevado grau de dependência existente entre os trabalhadores com relação aos políticos num regime de dominação pessoal, (FRANCO, 1964). Alguns conflitos existiram, moradores antigos relatam tiroteios entre os capangas de cada coronel-prefeito ou de cada coronel-vereador, o depoente Hildebrando Vivas relata: Na bala, não, palavra aqui era o calibre de cada um, os políticos daqui, todos tinham dentro de suas fazendas homens à sua disposição pra pegar na arma, eu conheço histórias daqui de pessoas que tinham essa ligação, (...) a coisa era meio braba, tinham aí os que mandavam (...) A emancipação atendeu muito bem os anseios da classe dominante local, já que fazem uso da máquina administrativa pública em beneficio próprio, André Luiz Ribeiro (2001) salienta: O processo era levado a termo pelo controle dos cargos públicos e eletivos, confiados de preferência às famílias dominantes, os quais ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História. 16 eram muitas vezes criados para atender aos chefes políticos. O momento das eleições era farsa com aparência de legalidade. O que realmente valeria para o poder verificador estadual, seriam as atas lavradas posteriormente na casa do chefe político local. Estava formado então todo o aparato necessário ao fortalecimento do poder dos dirigentes locais, defensores da manutenção do estado de coisas vigente e do arcabouço ideológico legitimador de suas atuações ecléticas no cenário político regional. À medida que esse contexto ia se alterando, principalmente com as exigências da ordem neoliberal, esse quadro se adequava e procurava manter a velha estrutura de sempre, camuflada nos novos moldes da sociedade pós-moderna. Wilson Lins (1988) destaca: Em lugar dos velhos duques do trabuco, tem-se, agora, os cabos eleitorais, mas nem por isso o coronelismo pode ser dado como morto, porquanto subsiste, na prática do mandonismo e no próprio espírito repressivo das leis, muitas delas mais duras e cruas do que as impostas nas brenhas pelo autocratismo atávico dos coronéis. O que se pode observar, modernamente, é que o coronelismo se desencarnou das pessoas, para se encarnar nas leis, daí já não haver lugar para os ungidos pela pólvora dos bacamartes. A formação histórica de Gandu e o processo de construção da identidade cultural de seu povo agregaram em si a natureza das práticas políticas que se coadunavam nas relações de cunho social e nas atitudes ora populistas, ora opressoras que se arrefeceram durante todo esse tempo no município. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AB’SABER, Aziz N.. Fundamentos Geográficos da História Brasileira.- São Paulo: Difel, 1976. AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. São Paulo: Martins, 1961. ANDRADE, Maria José de Souza. A Estrutura e os Fundamentos da Colonização portuguesa no Brasil do século XVI, in: As Terras do Brasil e o mundo dos descobrimentos. - Salvador: Boanova, 2000. ASMAR, Selem Rachid. Economia da microrregião cacaueira. Ilhéus, 1985. BAIARDI, Amílcar. Subordinação do trabalho ao Capital na lavoura cacaueira da Bahia. Salvador: Hucitec: 1984. BARBOSA, Carlos Roberto Arléo. Notícia Histórica de Ilhéus. 4ª Edição,2003. BARROS, Francisco Borges. 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