Sentimento do Mundo 1 C arlos D rummond de A ndrade PARA LER O SENTIMENTO DO MUNDO Pincelada rápida de vida e obra Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, em 1902, em família de fazendeiros, de tradição patriarcal. Apenas essa informação já nos será útil para a investigação de um poema da obra Sentimento do Mundo, a “Confidência do Itabirano”. Como teremos a oportunidade de verificar juntos, a cidade natal de Drummond, em representação do universo rural que se opõe ao urbano, é tema recorrente em sua obra: imagens do ambiente rural contrastam com a vida que o autor experimentou, depois, na cidade grande, especialmente no Rio de Janeiro. No poema “Explicação”, da obra Alguma Poesia, de 1930, já se verificava claramente essa oposição, que causou forte impressão no poeta e que deixou marcas em toda sua obra: Aquela casa de nove andares comerciais é muito interessante. A casa colonial da fazenda também era... No elevador penso na roça, na roça penso no elevador. Em 1922, ano da Semana de Arte Moderna, Drummond tinha vinte anos – e o jovem poeta, que publicaria sua primeira obra oito anos depois, em 1930, sob larga influência do Modernismo, exatamente o livro Alguma Poesia que citamos logo acima, foi um dos fundadores de A Revista, em 1925, publicação que marcou a influência modernista em Minas Gerais. O autor completou sem muito interesse o curso superior de Farmácia, em Belo Horizonte, mas transferiu-se para o Rio de Janeiro entre 1933 e 1934, onde se tornou servidor público do Ministério da Educação, além de seguir a carreira literária e jornalística. A respeito da burocracia excessiva do serviço público, escreveu o breve poema “Escravo em Papelópolis”, em sua última obra, que teve o título sugestivo de Farewell, publicada postumamente, em 1996: Ó burocratas! Que ódio vos tenho, e se fosse apenas ódio... É ainda o sentimento da vida que perdi sendo um dos vossos. O título que escancara a submissão do homem ao papelório sem valor das instituições burocráticas; o sarcasmo do poema, dirigindo-se aos burocratas, ironicamente, na segunda pessoa do plural; e a repetição da palavra “ódio”, que se amplia na segunda ocorrência por meio das reticências — todos esses elementos apontam, de certa forma, para uma característica marcante da obra de Drummond: a rejeição à papelada sem sentido, diametralmente oposta à poesia como forma de mediação entre o sujeito poético e o “tempo presente”, os “homens presentes”, a “vida presente” — expressões do poema “Mãos Dadas”, de importância fundamental na organização interna do Sentimento do Mundo, e que analisaremos a seguir. Na obra Claro Enigma, de 1951, Drummond, em certa medida, abandonou o viés empenhado que imprimiu aos poemas das obras publicadas até então. O Sentimento do Mundo pertence a essa primeira fase, em que algumas preocupações sociais emergem, sempre a partir da perspectiva do sujeito poético dummondiano. São essas as preocupações, verificadas a partir da análise de alguns poemas, que serão investigadas nas análises a seguir. De forma geral, perceberemos que, apesar desse engajamento, Drummond não transformará jamais seus poemas em panfletos políticos — e é exatamente a tensão entre sujeito poético, de um lado, e mundo, de outro, que confere, de certa forma, a especificidade da obra poética de Drummond. Drummond faleceu em 1987, aos 84 anos, já consagrado como um dos maiores poetas da Língua Portuguesa. Para obter uma impressão mais viva do poeta, o candidato pode consultar na internet gravações de leituras que ele fez de seus próprios poemas. Autor: Carlos Rogerio Duarte Barreiros, professor de Literatura, Artes Visuais e Língua Portuguesa do CPV Vestibulares há dezoito anos, doze deles dedicados à preparação ao vestibular, sempre no CPV. Também é escritor, crítico literário e pesquisador de Literatura, doutorando na Universidade de São Paulo (USP). sentimento do mundo CPV Sentimento 2 PARA LER OS POEMAS DO SENTIMENTO DO MUNDO Para facilitar a leitura dos poemas de Drummond, seguem algumas orientações: a) a leitura atenta do poema mais de uma vez: poemas não são notícias de jornal, cujo sentido se apreende em apenas uma passada de olhos. Lembremos: de modo geral, e sem entrar em detalhes ou polêmicas, quem escreve poemas não tem a finalidade de contar uma história, mas de constituir uma imagem por meio das palavras (embora haja, é claro, poemas que contenham pequenas narrativas); b) se as afirmações anteriores são verdadeiras — e acreditamos que elas o são —, então é preciso entender que a constituição de imagens por meio de palavras se dá por meio de recursos de linguagem que, muitas vezes, não são usados na escrita cotidiana. O recurso de linguagem mais corrente é a metáfora, mas muitos outros podem ser identificados, de modo que o autor possa dar expressão poética à imagem que pretende constituir. Atenção, por exemplo, a recorrências; a palavras ou expressões utilizadas no sentido conotativo, isto é, figurado; à organização que o próprio sujeito poético dá aos versos e às estrofes. Finalmente: atenção a todos os fenômenos de linguagem que fazem a poesia, em alguma medida, distanciar-se do uso corrente da língua — mesmo que contenha expressões do dia a dia; c) as afirmações anteriores podem levar o candidato a pensar que, nos poemas que leremos a seguir, encontraremos meros exercícios egoístas de linguagem, por meio dos quais o poeta estaria expressando seus “sentimentos mais íntimos” — e que, portanto, a poesia de Drummond não guarda contato com a realidade. Trata-se, rigorosamente, do contrário: por meio das formas e recursos poéticos utilizados, poderemos observar, ainda que de forma rápida, conteúdos da realidade — não como meras descrições, mas como expressões artísticas dessa realidade; d) tudo isso significa que, neste roteiro de leitura do Sentimento do Mundo, partimos do pressuposto de que a obra de arte guarda, nas suas manifestações formais, traços do chão histórico em que se formou. Dessa forma, entre os recursos poéticos de Drummond e as relações que eles guardam com o conteúdo dos poemas, poderemos encontrar o Brasil — surpreendentemente, não apenas o Brasil da década de 1930, em que a obra foi escrita, mas também o Brasil que ainda conhecemos, já que alguns elementos formais utilizados por Drummond guardam em si elementos do que se poderia chamar brasilidade, grosso modo. Em outras palavras, para tentar facilitar a compreensão: a leitura atenta dos poemas de Drummond permite encontrar aspectos da vida nacional que se estendem até os dias de hoje. E talvez esteja aí um dos motivos que fazem de Drummond poeta grande da nossa literatura; CPV sentimento do mundo do Mundo e) finalmente, é preciso lembrar que é possível flagrar, na poesia de Drummond, passagens que dizem respeito não só ao Brasil, mas também ao mundo como um todo. Hoje entendemos com facilidade que somos país periférico no capitalismo internacional, e que somos parte integrante (e, de certa forma, importante) do sistema internacional do capitalismo. Assim, se deixarmos de lado o preconceito com nós mesmos, com nossa história e com nossa formação, poderemos perceber que o que pode ser entendido na vida, na literatura e na cultura brasileira como atraso ou desvio pode ser, por outro lado, lido como especificidade – que às vezes até permite observar melhor as contradições das falsas consciências que importamos compulsoriamente dos países centrais, especialmente dos Estados Unidos. A obra de Drummond é fonte abundante desse tipo de reflexão, como veremos. Nossa proposição é, portanto, a seguinte: que o candidato tente ler os poemas a seguir não como se contassem linearmente uma história (como se faz num filme de Hollywood, por exemplo), mas como se apresentassem uma imagem que guarda um enigma a ser decifrado. Esse enigma não guarda obrigatoriamente uma “grande” mensagem, ou alguma frase “edificante”, para “levar para a vida” ou “alcançar a felicidade e o sucesso” (como se propõem os autores de obras de autoajuda, ou religiosas): o gosto da leitura de poesia está exatamente, entre outras coisas, em desfrutar a leitura do poema em si. Especificamente na primeira fase da obra de Drummond, a relação dos conteúdos com os elementos formais guarda a senha para o ingresso no Brasil — que, de certa forma, ainda está por ser descoberto, como veremos. Finalmente, pedimos, ainda, um voto de confiança daqueles candidatos que não encontram na Literatura o desfrute que nós encontramos. O objeto das questões de vestibular é exatamente a relação entre elementos formais do poema e seu conteúdo, como teremos, também, a chance de demonstrar. As análises a seguir foram escritas com bastante prazer, com o máximo de clareza e simplicidade que nos foi possível, tendo em vista que nosso público leitor são candidatos a vagas em cursos de graduação, não alunos do curso de Letras, nem leitores acostumados à linguagem especializada da crítica literária. Assim, pedimos também a benevolência dos professores que lerem este trabalho e dele se utilizarem, porque ele está repleto de generalizações e algumas superficialidades, inevitáveis em textos deste tipo, com este público leitor. Quando utilizarmos explicitamente as proposições de algum crítico literário, indicaremos em nota de pé de página, sobretudo por honestidade intelectual: a experiência em sala de aula, especialmente em preparatórios para vestibulares, diz que nosso mérito, se temos algum, não está na formulação de novas interpretações, mas na ordenação clara de interpretações já consagradas, que deem aos candidatos a capacidade de observar a organização profunda de elementos internos que transformam uma obra como Sentimento do Mundo, de Drummond, em um todo coerente. Sentimento do Mundo 3 Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. De fato, todos os elementos rejeitados pertencem ao plano do ideal: a “mulher” é a musa cantada nos poemas, sempre idealizada e distante; a “história” cantada em versos é a dos heróis clássicos, como Ulisses; “suspiros ao anoitecer” e “paisagem vista da janela” sugerem imagens românticas, de sujeitos poéticos distantes de seus objetos de desejo; os “entorpecentes” e as “cartas de suicida”, “as ilhas” e o rapto “por serafins” podem ser todos entendidos como fugas que os poetas de diferentes momentos da literatura souberam transformar em temas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. São todos lugares-comuns, temas poéticos do passado, que a liberdade formal herdada do Modernismo rejeita generalizadamente: as novidades poéticas, de certa forma, estão guardadas no plano da forma (ausência de métrica e de rima) e no do conteúdo (a matéria presente, não o passado idealizado, nem o futuro a esperar). Acreditamos que o poema “Mãos Dadas”, didaticamente, é adequado para dar início à reflexão a respeito de Sentimento do Mundo. De certa forma, trata-se de uma “poética” — isto é, de um texto em que o sujeito poético explica os procedimentos que utiliza no ato da criação — desse livro: um poema com função metalinguística, portanto, debruçado sobre si mesmo, investigando o objeto da poesia. Nesta altura da análise, é importante que o candidato perceba que nossas hipóteses foram todas formuladas com base em elementos do poema, especialmente a associação entre as afirmações iniciais e as finais no plano do conteúdo (passado idealizado e futuro superestimado versus presente concreto) e a utilização do vocábulo “cantar”, que no texto assume o sentido de “celebrar por meio da poesia”. "Mãos Dadas" A escrita como mediação entre o sujeito e o mundo Primeiramente, do ponto de vista formal, trata-se de texto sem métrica regular ou rima, nos modelos tradicionais, o que significa que Drummond já assimilou plenamente a proposta de liberdade formal dos Modernistas de 1922. Por outro lado, é preciso verificar que o poema é cadenciado sonoramente por outros elementos. Na primeira estrofe, por exemplo, são os pontos finais que dão o andamento do texto: cada verso contém uma frase categórica, encerrada pelo ponto final, como se lêssemos uma lista de recomendações para ler o Sentimento do Mundo — pelo menos para lê-lo nos termos em que o próprio sujeito poético propõe. Os dois primeiros versos contêm a formulação fundamental do poema, que será retomada nos dois últimos: o sujeito poético não cantará — esse verbo, aqui, assume o sentido de “celebrar em verso” — nem o mundo caduco, velho, nem o mundo futuro. Seu objeto de celebração será “o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Já podemos, por meio da associação entre os elementos iniciais e finais, que dão coerência interna ao poema, lançar algumas hipóteses. Celebrar a matéria presente pode significar opor-se às idealizações negadas na segunda estrofe, cujo andamento é mais acelerado, com a repetição insistente do “não” (chama-se anáfora à repetição da mesma palavra no início de diferentes versos) e com a fluência dada pelas vírgulas. Em poucas palavras, repetimos: “Mãos Dadas” é poema metalinguístico. O sujeito poético expressa a rejeição ao passado e ao futuro, em oposição à valorização do presente. E faz isso no plano da forma — utilizando-se da forma livre do poema, sem rimas ou métrica clássica — e no do conteúdo — rejeitando o passado e o futuro, afirmando o presente. Mas nossa análise estaria incompleta se desconsiderássemos o título do poema — “Mãos Dadas” — e os “companheiros” citados pelo sujeito poético. Verificamos que o sujeito se diz “preso ao mundo” — e percebemos, na utilização do adjetivo “preso”, certa adversidade. Se está “preso” ao mundo, o sujeito poético não está livre — e essa simples observação dá a medida da afirmação a respeito dos companheiros: estão taciturnos, isto é — se consultarmos o Dicionário Houaiss —, estão calados, talvez melancólicos ou tristes, carrancudos, talvez cheios de pensamentos mórbidos. Em poucas palavras: o sujeito poético e seus companheiros estão tolhidos em suas liberdades, talvez daí a melancolia. Note-se que “estar preso à vida” não precisa significar, necessariamente, “estar pensando ou desejando a morte”, embora essa leitura seja possível; “estar preso à vida” também pode significar “ter os pés no chão, por mais que as idealizações do passado e do presente possam tentar-me e desviar-me o olhar”. sentimento do mundo CPV Sentimento 4 A importância dos companheiros está na capacidade que eles têm de mediar a relação traumática do sujeito poético com a vida e com a realidade. Leiamos juntos: a vida aprisiona; a realidade e o presente são enormes ..., considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. A vida é fator limitante, a realidade e o presente assustam pela amplitude. É de mãos dadas que o sujeito poético prefere trilhar sua passagem pela vida: amparado pelos companheiros que “nutrem grandes esperanças” talvez seja mais fácil passar pela vida. Não nos esqueçamos, agora, de cotejar (comparar) essa passagem com o fim do poema: a vida presente (que aprisiona), o tempo presente (que assusta, pelo tamanho) e os homens presentes (que medeiam a relação do sujeito poético com a vida e o tempo) são a matéria da poesia de Drummond. E podemos ampliar nossa leitura: a escrita da poesia é também uma forma de mediação entre o sujeito e o mundo. É por meio da escrita que o sujeito “dá as mãos” ao mundo, à vida, ao tempo, aos homens, já que eles todos são sua “matéria”, serão seu objeto de observação. Já fica sugerido aqui, para analisarmos, juntos, depois: no último poema do livro, "Mundo Grande", investiga-se exatamente a desproporção entre o mundo objetivo, de um lado, e a percepção que o sujeito poético tem desse mundo, de outro. O crítico literário Antonio Candido sintetizou brilhantemente essa característica da obra de Drummond que é perfeitamente adequada para entender “Mãos Dadas” e o Sentimento do Mundo. Para esse estudioso, o próprio título do livro indica “a polarização” da obra madura de Drummond: “de um lado, a preocupação com os problemas sociais; de outro, com os problemas individuais, ambos referidos ao problema da expressão, que efetua sua síntese”1. O que Antonio Candido quer dizer é que o sujeito poético de Drummond vive um dilema entre os temas sociais de sua época — a matéria presente, os homens presentes, a vida presente — e entre suas impressões subjetivas sobre esses temas. A tentativa de constituir uma síntese desse dilema em palavras é o “problema da expressão” a que se refere o crítico. Em palavras simples, percebe-se na obra de Drummond, especialmente (mas não exclusivamente) em Sentimento do mundo, um sujeito que se pergunta sempre o seguinte: “Em que medida este poema dialoga com o mundo concreto, com o tempo presente, se ele foi escrito a partir de uma perspectiva rigorosamente pessoal e subjetiva?”. 1Antonio Candido. Inquietudes na poesia de Drummond. in: Vários Escritos. 3a Edição revisada e ampliada, Duas Cidades, p. 112.A CPV sentimento do mundo do Mundo “Sentimento do Mundo” Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite. Além de coincidir com o título do livro, o poema acima é o primeiro da obra. Ganha, por esses motivos, relevância para nosso roteiro de leitura. Comecemos pelo título em si: Sentimento do mundo é expressão que guarda duplo sentido, rico para nossa análise, afinal a polissemia — isto é, a multiplicidade de sentidos — é valiosa na leitura de poesia. A expressão “do mundo” pode ser entendida como paciente ou como agente da ideia expressa no substantivo abstrato “sentimento”. Em termos simples: entendemos facilmente que, no verbo “sentir” e no substantivo “sentimento”, subentendemse aquele que sente — o agente — e aquele sobre o qual recai o sentimento. Desse modo, podemos entender que a expressão sentimento do mundo quer referir-se às impressões que o sujeito poético tem a respeito do mundo ou aos sentimentos que o próprio mundo tem — que, por sua vez, causam efeitos no sujeito poético. Sentimento A dupla possibilidade de leitura do título é fundamental porque remete à mediação citada na análise do poema “Mãos Dadas”. O sujeito poético tenta, por meio da poesia, encontrar a si próprio, isto é, tenta identificar o papel que ocupa na “enorme realidade”, no “presente grande”, no mundo. Mais uma vez, o crítico Antonio Candido nos ajuda a entender o conflito pelo qual passa o sujeito poético: “Trata-se de um problema de identidade ou identificação do ser, de que decorre o movimento criador da sua obra [...], dando-lhe o peso da inquietude que a faz oscilar entre o eu, o mundo e a arte, sempre descontente e contrafeita”. Demos um passo adiante: a escrita da poesia é, ao mesmo tempo, a tentativa de sintetizar e organizar a relação do sujeito poético consigo próprio e com mundo. Sua arte será sempre “descontente e contrafeita” porque haverá incongruências entre o universo subjetivo e o objetivo — e é nessas incongruências que poderemos encontrar o toque particular de Drummond à poesia brasileira, porque o dilema de seu sujeito poético é radicalmente brasileiro. Uma informação de cada vez. Primeiramente, avaliemos a primeira estrofe do poema: Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Podemos entender que as “duas mãos” aludem à ação — já que é com as mãos que se fazem as coisas — e que o “sentimento do mundo” alude à percepção — aquela com que o sujeito poético tomará a consciência do mundo. Tudo isso é pouco: note-se que ele tem apenas as mãos e o sentimento. Acresça-se que a conjunção adversativa “mas” opõe “mãos e sentimento”, de um lado, a “escravos”, “lembranças escorridas”, “transigência” e “confluência”. Um elemento por vez, para que todos, juntos, componham sentido: as lembranças escorridas e os escravos parecem aludir a um universo passado — nostálgico, de certa forma — associado à sociedade patriarcal escravista: é o que veremos com mais clareza na “Confidência do Itabirano”. Por enquanto, notemos que a transigência do corpo na confluência do amor é expressão que alude, mais uma vez, à ideia de mediação, como vimos em “Mãos Dadas”. O verbo “transigir” está carregado do sentido de conciliar por meio de concessões, de ceder, de tolerar. A “confluência do amor” sugere, também, ideia de movimento, sem contradições. Assim, a imagem constituída na primeira estrofe pode ser a seguinte: por mais que tenha a percepção do mundo e as mãos com as quais pode atuar para interferir no curso da história, do Mundo 5 o sujeito poético também está repleto de elementos do passado que o levam a certa sensação de completude — e, por extensão, de imobilidade: ele está “cheio” de escravos, as lembranças — o passado — escorrem (como suor, talvez lhe recobrindo o corpo) e o corpo cede às tentações do amor. De modo geral, as ações por meio da percepção do mundo parecem estar, no mínimo, obstruídas por um corpo em que fazem peso o passado e desejos menos nobres. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Na segunda estrofe, o verbo “levantar-se” pode ser associado à ideia de despertar — talvez, à ideia de tomar ciência do mundo. Em versos acelerados pela pontuação, pelas repetições e pelo efeito do enjambement — isto é, do encadeamento da leitura do texto, em que um verso puxa outro, de modo que o sentido só estará completo ao final da leitura da estrofe — o sujeito poético revela a aceleração do mundo que lhe é externo: antes que o homem possa se dar conta do que está acontecendo, a realidade concreta tomou-lhe o céu, os bens e a própria vida. Retomando a primeira estrofe, aprimorando-lhe a leitura por meio da segunda: o sujeito poético tem a intenção de tocar o mundo com as mãos, tem a percepção do mundo, mas está imobilizado pelo passado, que o impede de “acordar pro mundo” antes de poder agir efetivamente. É o mundo que invade a vida do poeta e a coloca de ponta cabeça, chegando ao extremo de tomá-la a ele. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Mais uma vez, o mundo externo e objetivo surge no poema como elemento que “passa a perna” no sujeito poético, cuja sensibilidade tem ritmo muito menos acelerado — ele é “disperso, / anterior a fronteiras”: para ele, a guerra, embora esteja presente por meio das premências, não faz muito sentido. Os companheiros de “Mãos Dadas” são aqui “camaradas” — termo de tratamento usado entre membros do Partido Comunista. O sujeito poético está atrasado em relação a eles, pois não sabia que havia guerra nem necessidades urgentes que precisavam ser atendidas. O desajuste entre sujeito poético — desatento, talvez autocentrado em exagero — e mundo objetivo — imerso na guerra — é flagrante. Só resta ao sujeito pedir perdão pela dispersão em que está envolvido. sentimento do mundo CPV Sentimento 6 Mas o mundo objetivo guarda o apelo mais dolorido: o da morte de pessoas comuns — o sineiro, a viúva e o microscopista —, ou o “amanhecer mais noite que a noite”, em que a violência do mundo real se impõe sobre o sujeito. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite Se a violência se impõe sobre o sujeito, impõe-se também sobre sua produção poética. Eis aí o motivo pelo qual o título do poema coincide com o título da obra: estamos diante da dinâmica interna fundamental da obra, aquela em que o sujeito poético é tocado pelas impressões — muitas vezes violentas — do mundo objetivo, que lhe é externo e que não coincide com sua experiência objetiva, deflagrando, portanto, os poemas que pretenderão, como veremos a seguir, mediar esses dois universos desencontrados. “Confidência do Itabirano” Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres [e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval2; este couro de anta, estendido no sofá de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! 2“Santeiro” é aquele que fabrica santos, para decorar igrejas ou altares particulares. Alfredo Duval de fato existiu e tornou-se célebre graças a Carlos Drummond de Andrade. Leia mais sobre ele no site da cidade de Itabira: www.vivaitabira.com.br. CPV sentimento do mundo do Mundo Um cuidado que é necessário tomar antes de ler o poema anterior é o de não identificar necessariamente o sujeito poético do poema com o sujeito empírico Carlos Drummond de Andrade. Devemos assumir, primeiramente, que o poema representa o ponto de vista de um setor da classe dominante — aquele que teve “ouro”, “gado” e “fazendas”, mas que não se modernizou no ritmo do país e que acabou ocupando cargos públicos, muitas vezes de alto escalão3. Trata-se do processo pelo qual passou parte da elite agrária brasileira na Era Vargas. No título, chama a atenção o termo “confidência” — porque só se confidencia com o outro aquele que sente culpa pelos erros cometidos. Talvez seja essa a chave para entender a frase exclamativa do último verso: apesar de estar ciente de que o patriarcado agrário ficou no passado, o sujeito poético ainda têm saudades dele. Na verdade, a sensação é ainda pior: Itabira não está completamente abandonada no passado, na medida em que esse passado ainda se faz presente. Na primeira estrofe, o itabirano é definido como triste, orgulhoso, de ferro: Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. A cidade-natal parece determinar a impermeabilidade do sujeito, derivada da impermeabilidade do ferro: E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. Os versos são, como os da primeira estrofe das “Mãos Dadas”, encerrados por pontos finais sensivelmente expressivos da intransigência do Itabirano: não há poros que permitam a comunicação do sujeito-Itabira com o mundo que lhe é externo. Se quiséssemos voltar ao “Sentimento do Mundo”, diríamos que a guerra, embora possa até ter sido noticiada em Itabira, não interferiu na estabilidade ferrosa da cidade — e de seu filho, daí seu descompasso temporal com a aceleração do mundo. “Alheamento” e “alheio”, “alienação” e “alienado” guardam origem comum, segundo o Dicionário Houaiss: a sensação de alheamento é a de estar afastado, separado; em casos extremos, chega-se o limite da perturbação ou do delírio; finalmente, o vocábulo também está associado a sensação de ser estrangeiro. O itabirano talvez seja isto: estrangeiro em sua cidade, ciente de que o mundo exterior é bem mais acelerado; estrangeiro no Rio de Janeiro, saudoso do ritmo ainda précapitalista de Itabira; estrangeiro de si4, cindido (separado) entre dois mundos incompatíveis — ainda que o ferro de Itabira possa ser entendido como matéria-prima do mundo acelerado. Os costumes de Itabira são idílicos, típicos de sociedade periférica do capitalismo, e opõem-se ao mundo do trabalho, isto é, da cidade grande: a vontade de amar vem de Itabira 3A análise da dinâmica interna da obra e do poema não teria sido possível sem a leitura de A Nação Drummondiana, Alexandre Pilati, Editora 7 Letras. 4A afirmação de que o brasileiro é um estrangeiro em sua própria terra está nas primeiras linhas das Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Sentimento — e paralisa o trabalho; o hábito de sofrer é herança de Itabira — e diverte, exatamente o oposto do que representa o trabalho alienante. É importante perceber que Itabira, embora seja cidade do passado, ainda se faz presente: o advérbio “ora”, o presente do indicativo na forma verbal “ofereço” e a recorrência do pronome demonstrativo “este” na terceira estrofe asseveram essa hipótese. A dinâmica Itabira versus cidade grande, ou ainda a dinâmica subjetividade poética versus mundo objetivo — que, no nível profundo da análise, é a mesma coisa — parece encontrar solução apenas por meio dos poemas. É neles que esses dois mundos contraditórios se encontram e ganham expressão artística. No mundo concreto, a contradição segue insolúvel — trata-se da experiência nacional, em muitos sentidos. Até hoje o Brasil e os brasileiros somos atrasados e modernos, a um só tempo. O “São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval”; o “couro de anta, estendido no sofá de visitas”; o “orgulho”, a “cabeça baixa”: todos são elementos que aludem ao arcaísmo periférico de Itabira, mas que são resquícios ainda vivos e atuais da cidade que está em fotografia na parede. A própria fotografia parece sintetizar a dinâmica passado versus presente: é por meio de uma inovação tecnológica que as imagens do passado são repostas. É exatamente essa a mediação simbólica que também se manifesta no poema de Drummond: a confidência está em assumir ao leitor, o confidente da segunda pessoa De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço: que o sujeito poético não só é impermeável às modernizações representadas pelo funcionarismo público, como também sente saudades de Itabira — saudades que chegam a doer. DESDOBRAMENTOS Agora que já encontramos a dinâmica interna geral de Sentimento do Mundo, podemos verificar desdobramentos dos temas e das dinâmicas que observamos acima, em diversos poemas. Na “Tristeza do Império”, a dinâmica passado versus presente se repete, agora alçada ao plano nacional: Os conselheiros angustiados ante o colo ebúrneo* das donzelas opulentas que ao piano abemolavam “bus-co a cam-pi-na se-re-na pa-ra li-vre sus-pi-rar”, esqueciam a guerra do Paraguai, o enfado bolorento de São Cristóvão, a dor cada vez mais forte dos negros e sorvendo mecânicos uma pitada de rapé, sonhavam a futura libertação dos instintos e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com rádio [e telefone automático. * ebúrneo: semelhante ao marfim na cor ou lisura do Mundo 7 Nesse poema, observa-se claramente a contaminação do universo público pelos interesses privados da classe dominante5. O título de conselheiro — típico do universo político brasileiro do século XIX, imortalizado por Machado de Assis no Conselheiro Aires dos romances Esaú e Jacó6 e Memorial de Aires — era dado a homens de meia-idade e de longa carreira política, aos quais cabia a responsabilidade de aconselhar o imperador em momentos de gravidade. No poema de Drummond, observamos os conselheiros tomados por desejos sexuais e esquecidos dos eventos nacionais — a “guerra da Paraguai”, com a palavra guerra grafada com letra minúscula, perdendo o alcance histórico; o “enfado bolorento de São Cristóvão”, isto é, os trabalhos de formulação da Constituição da República, concluídos em 1891, ocorridos no Palácio de São Cristóvão, antiga residência do imperador; o abolicionismo. Evidentemente o vocabulário afetado utilizado na descrição da cena acaba por ridicularizar os conselheiros e as donzelas: “ante o colo ebúrneo” é retomada irônica do formalismo dos poetas parnasianos, “passadistas” e “oficiais”, do final do século XIX, a que os modernistas se opuseram violentamente; “abemolavam” significa “colocar bemóis em”, isto é, abaixar ou enfraquecer os componentes de alta frequência de um som (sem contar a semelhança do verbo abemolar com o verbo amolar). Tudo soa a passado, a século XIX: os conselheiros, o vocabulário, a modinha “Busco a campina serena”, de Cândido Inácio da Silva — que pode ser ouvida no Youtube — e os eventos históricos. Em contrapartida, o sonho dos conselheiros aponta para as inovações tecnológicas do século XX: os arranha-céus — contribuições definitivas do pragmatismo norte-americano à arquitetura7 — seriam habitações coletivas e símbolos da democracia, mas no Brasil retratado no poema acabam por assumir ares de leviandade: os homens do século XX desejam a chegada de apartamentos, rádio e telefone apenas para a realização de desejos meramente pessoais, não para o desenvolvimento do país. Atenção aos desdobramentos: primeiramente, percebemos, por meio da leviandade dos conselheiros, que o próprio ideal de liberdade de que está investido o arranha-céus norte-americano é o que chamamos na introdução deste trabalho de falsa consciência. Em palavras simples, deposita-se no edifício a ideia da democracia, mas a sua utilização leviana e personalista, no Brasil, revela que as ideologias estrangeiras são falseadoras da realidade. O edifício é lucrativo para os empresários da construção civil e para seus fornecedores de matérias-primas, além de sê-lo, 5Mais uma vez, foi Sérgio Buarque de Holanda que cunhou nas Raízes do Brasil a análise de que, em nosso país, o universo público é largamente utilizado em benefício dos interesses privados das classes dominantes. 6Em Esaú e Jacó, de Machado de Assis, observa-se claramente como as diferenças de dois irmãos gêmeos (assunto de foro íntimo e familiar) podem interferir nos destinos do Brasil como um todo. Trata-se exatamente do mesmo tema investigado por Drummond no poema. 7Em Artes Plásticas na Semana de 22, Editora Perspectiva, Aracy Amaral afirma que o skyscraper, o arranha-céu, é a contribuição norte-americana à arquitetura do século XX. sentimento do mundo CPV Sentimento 8 do Mundo também, para os grandes proprietários de terras e para os especuladores imobiliários. Essas atividades todas geram empregos para as populações mais pobres — outro atrativo enaltecedor da construção de edifícios. O verniz moderno transforma o arranha-céu em produto atraente para as elites e para as classes médias ascendentes. Mas as motivações reais das construções são os interesses meramente privados. Aos olhares das classes dominantes, o morro guarda a ameaça da violência, mas também guarda as senhas da identidade nacional: é das comunidades que partem praticamente todas as manifestações culturais com que se identificam todos os brasileiros — o samba, o carnaval, o futebol. O poema curto de Drummond dá a medida do alcance das ideologias estrangeiras: elas nada mais são do que tentativas de universalizar ideais que, na verdade, privilegiam apenas as classes dominantes. No Brasil, elas guardam raízes no Império, por mais que soem modernizantes pelos ideais estrangeirados a que aspiram8. É evidente que esses dois aspectos não estão desligados um do outro: a violência é gerada em larga medida pela lógica de exploração das classes pobres, cujas expressões artísticas servem de mediadoras simbólicas de um abismo social intransponível. Se o primeiro desdobramento, descrito no parágrafo anterior, diz respeito ao alcance da poesia de Drummond no que se refere às ideologias estrangeiras, o segundo dá a medida da atualidade de sua poesia. Com efeito, as classes dominantes brasileiras seguem repetindo cegamente — Mário de Andrade diria “macaqueando” — as modas que vêm de fora, seja nos negócios, seja nas artes. E se essa prática se repete, a poesia de Drummond continua valendo. Leia, por exemplo: Simplificando: as classes dominantes se apropriam das manifestações populares de cultura na tentativa de criar um elemento identitário que não permita que os conteúdos subversivos dessas manifestações se transformem em mobilizações sociais efetivas9. Em oposição ao espaço do morro, habitado pelos mais pobres, leia o poema a seguir, em que o espaço retratado é o das classes dominantes: “Morro da Babilônia” “Privilégio do Mar” À noite, do morro descem vozes que criam o terror (terror urbano, cinquenta por cento de cinema, e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral). Neste terraço mediocremente confortável, bebemos cerveja e olhamos o mar. Sabemos que nada nos acontecerá. Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro, o quartel pegou fogo, eles não voltaram. Alguns, chumbados, morreram. O morro ficou mais encantado. Sabemos que cada edifício abriga mil corpos labutando em mil compartimentos iguais. Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador e vêm cá em cima respirar a brisa do oceano, o que é privilégio dos edifícios. Mas as vozes do morro não são propriamente lúgubres. Há mesmo um cavaquinho bem afinado que domina os ruídos da pedra e da folhagem e desce até nós, modesto e recreativo, como uma gentileza do morro. Em plena década de 1940, é possível observar no poema de Drummond a imagem do morro carioca já nos termos simbólicos que esse espaço ganhará no final do século, especialmente no cinema nacional, nos filmes Como nascem os anjos (1996), Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007). O edifício é sólido e o mundo também. O mundo é mesmo de cimento armado. Certamente, se houvesse um cruzador louco, fundeado na baía em frente da cidade, a vida seria incerta... improvável... Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis. Como a esquadra é cordial! Podemos beber honradamente nossa cerveja. O espaço privilegiado do terraço, pairando plácido, desocupado e fútil sobre tudo e todos, pode ser entendido como alegoria do lugar social das classes dominantes. No Rio de Janeiro, o morro é o espaço de moradia das camadas mais pobres da sociedade — espaço onde fervilham, ao mesmo tempo, a criminalidade e as manifestações artísticas populares. 8A investigação das deformidades que as ideologias europeias acabam por sofrer no Brasil é o objeto de investigação de Roberto Schwarz na obra Ao vencedor, as batatas, especificamente no Capítulo 1, “As ideias fora do lugar”. Toda nossa análise da obra de Carlos Drummond de Andrade tem por base de sustentação esse texto. CPV sentimento do mundo 9A afirmação de que os conteúdos das expressões musicais populares são virtualmente subversivos pode ser encontrada no texto “Algumas questões de música e política no Brasil”, de José Miguel Wisnik, no livro Sem receita: ensaios e canções, Publifolha. Sentimento O tom do sujeito poético é mais uma vez irônico: o terraço é mediocremente confortável, o ambiente é de desfrute gratuito, alienado e excessivamente autoconfiante: acredita-se na solidez do edifício (mais uma vez representando o progresso de inspiração norte-americana) e do mundo (“de cimento armado”, isto é, alicerçado nas novas tecnologias da construção civil), e na cordialidade dos marinheiros que guardam a baía (uma das forças armadas guarda a segurança das elites: mais uma vez observamos que interesses privados são guardados por um braço do poder público). O poema guarda ainda a ideia de reificação, isto é, a de que os homens são cada vez mais semelhantes a mercadorias produzidas em escala — vazios de identidade, iguais uns aos outros, inseridos na lógica de mercado, sem que possam questioná-la ou rompê-la, porque são também alienados. Trata-se dos ...mil corpos labutando em mil compartimentos iguais. Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador e vêm cá em cima respirar a brisa do oceano,... Observa-se aí, também, a estratificação social: no topo do edifício, as classes dominantes que tomam cerveja “honradamente” e despreocupadas; nos mil compartimentos iguais, as classes médias, que vez ou outra sobem ao topo para gozar por momentos efêmeros o “privilégio dos edifícios”. Nos morros — e em outros poemas, portanto em outros espaços geográficos e simbólicos — figuram as classes sem privilégios. Temática semelhante pode ser observada em “Inocentes do Leblon” Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar. Trouxe bailarinas? trouxe emigrantes? trouxe um grama de rádio? Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, mas a areia é quente, e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem. Nesse poema pode ser observada com clareza a alienação das próprias classes dominantes, apenas gozando de seus privilégios. Por meio da insistência no adjetivo “inocentes”, o sujeito poético coloca-se na perspectiva de alguns setores dessas classes — às vezes tão distantes da realidade concreta que se veem como inocentes, sem perceber que seus benefícios são oriundos da exploração do trabalho. Essa percepção ocorre, por exemplo, na viagem rápida do Rio a Minas, no “carro” (o vagão do trem) — outro elemento diretamente associado ao progresso — que se observa no poema a seguir, “Revelação do Subúrbio”. do Mundo 9 “Revelação do Subúrbio”: Quando vou para Minas, gosto de ficar de pé, contra a vidraça do carro, vendo o subúrbio passar. O subúrbio todo se condensa para ser visto depressa, com medo de não repararmos suficientemente em suas luzes que mal têm tempo de brilhar. A noite come o subúrbio e logo o devolve, ele reage, luta, se esforça, até que vem o campo onde pela manhã repontam laranjais e à noite só existe a tristeza do Brasil. O subúrbio passa rapidamente aos olhos do sujeito poético, em que aquela mediação inexistente entre, de um lado, o progresso dos edifícios das classes dominantes — e às vezes das classes médias — e, de outro, o suposto atraso dos bairros pobres é feito por meio de uma outra inovação tecnológica: o trem. O subúrbio “se condensa” — à moda de uma embalagem de produto — para poder ser visto; ele “reage, luta, se esforça”, mas acaba por dar lugar aos laranjais (o ambiente rural, em que ainda predominam o poder oligárquico e os costumes atrasados) e a tristeza do Brasil (exatamente as práticas políticas e sociais mais atrasadas, associadas a esse poder), que existe à noite: o poema seguinte é “A noite dissolve os homens”, dedicado a Portinari. Nos últimos versos de “Elegia 1938”, a impotência do sujeito poético em alterar a ordem vigente está escancarada: Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. CONCLUSÕES: O Mundo é Grande Já exploramos os aspectos gerais do Sentimento do Mundo. Resta agora investigar o último poema do livro e verificar se, da mesma forma que há uma lógica interna entre os poemas, há alguma espécie de conclusão ou fechamento da obra. Seguem trechos do “Mundo Grande”, que encerra o livro, sempre com o coração a contrapelo* do mundo, em retomada da dinâmica que observamos anteriormente. *contrapelo: ao revés, ao contrário, às avessas sentimento do mundo CPV Sentimento 10 Nos primeiros versos, além desse tema, observam-se também a metalinguagem e a necessidade de manter as mãos dadas com os companheiros, mediadores entre o sujeito poético e o mundo: Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos. As “dores” — a percepção doída que o sujeito poético tem do mundo (ou simplesmente o sentimento do mundo) — não cabem no coração, por isso é preciso escrever e estar ao lado de todos: retoma-se, portanto, a ideia de que a escrita da poesia e o contato com os companheiros são elementos que se equiparam no contato do sujeito com o mundo externo. Na segunda estrofe, o mundo assume proporções ainda maiores: é maior que o coração do sujeito e maior ainda do que a rua, que o sujeito pode observar — talvez indicando a dinâmica entre o Brasil (a rua que o sujeito tem diante dos olhos) e o mundo (que chega ao sujeito por meios como a imprensa e as ideologias). Na terceira, quarta e quinta estrofes, alude-se ainda à imensidão do mundo e à impossibilidade de suportá-lo sem sofrer. Na sexta e na sétima, retoma-se a ideia de que é possível o refúgio em lugares-comuns poéticos para fugir a tanta amplitude e a tanta dor (de certa forma, a mesma temática explorada na segunda estrofe de “Mãos Dadas”). Interessam-nos nesta conclusão as duas últimas estrofes: Entretanto alguns [homens] se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor. Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. — Ó vida futura! nós te criaremos. Os homens que “se salvaram”, citados no primeiro verso, são alguns dos amigos do sujeito poético, que foram às ilhas e nelas se perderam. De acordo com a coerência interna da obra, acreditamos que esteja aí uma referência aos artistas que se deixaram, de alguma forma, alienar-se, abandonando a poesia ou a prática combativas, ou cooptar-se* — integrando o sistema, produzindo obras inofensivas, ou até mesmo favoráveis a ele. *cooptar: agregar, associar CPV sentimento do mundo do Mundo Mas há os que se salvaram e que, mais uma vez, medeiam a relação entre o sujeito poético e o mundo — trazendo as notícias de que este está crescendo “entre o fogo e o amor” — expressão fundamental para compreender o fechamento da obra. Acreditamos que o fogo remeta à evolução tecnológica, à lógica de mercado e ao desenvolvimento desigual do capitalismo. Note que o fogo é o elemento fundamental do funcionamento das máquinas e que o calor é uma forma de energia utilizada para produzir trabalho — ambos forças-motrizes fundamentais do mundo moderno. Ao afirmar que seu coração, isto é, seu mundo subjetivo, pode crescer Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, o sujeito poético equipara sua poesia, em potência, ao “grande mundo” — daí seu potencial explosivo, revolucionário, desorganizador; daí, também, a apóstrofe ou invocação ao “mundo futuro”, que será criado por “nós”. De forma singela, pode-se afirmar que o sujeito poético acredita que a dinâmica que aliena e reifica o homem guarda em seu seio as alternativas para emancipar o homem. O descompasso entre o sujeito poético e o mundo pode alcançar uma intensidade tal que levará aquele a tentar interferir neste — no nosso caso, por meio da poesia. A primeira pessoa do plural certamente soa como chamado ao leitor que, caso tenha compreendido a obra como um todo, terá, ele próprio, sentido o mundo de forma mais aguda, percebendo que o sujeito poético — e outros tantos sujeitos empíricos, pessoas comuns, como o sineiro, a viúva e o microscopista — são esmagados pela realidade concreta, objetiva, em que prevalecem as leis do mercado, que acabam por alienar os homens e transformá-los em coisas. Para o leitor do século XXI, depois da Queda do Muro de Berlim e do predomínio das ideologias neoliberais, o apelo engajado do poema final de Sentimento do Mundo talvez soe utópico demais — no sentido mais pessimista que pode ter esse adjetivo, isto é, o de que as utopias rumam a espaços e a tempos inalcançáveis, a fantasias impossíveis. Em contrapartida, perguntemo-nos se, no cotidiano em que vivemos, nos é permitido sonhar para além das práticas de mercado. É bem possível que a resposta seja não. E, nesse sentido, se, ao observarmos o mundo ficamos taciturnos, mas nutrimos grandes esperanças — porque ao homem, ainda, tudo é possível fazer, desde que de mãos dadas com outros —, é porque as impressões do sujeito poético de Drummond a respeito do mundo seguem atuais: sua matéria, como ele próprio propunha, eram o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Sentimento EXERCÍCIOS OBJETIVOS 01. Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptados por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. A respeito da função metalinguística do poema é correto afirmar que: a) a reflexão sobre a criação poética é meramente formal, evidenciado a preocupação do autor em corresponder às premissas da estética modernista. b) o sujeito lírico refere-se ao ato de criação como a expressão idealizadora da realidade, por filiar-se à expressão do sentimento sem o compromisso com o presente. c) ao expressar o desejo de ser poeta de seu tempo, o sujeito lírico rejeita a liberdade formal dos Modernistas de 1922 sem, contudo, abandonar o prosaísmo característico dos autores de sua época. d) ao expressar sua celebração à matéria presente, o sujeito poético opõe-se às idealizações negadas nos quatro primeiros versos da segunda estrofe. e) a criação poética, assunto do poema, é de pouca importância, considerando-se os conflitos que exigem do sujeito poético atuação política mais efetiva. Mundo 11 Texto para as questões de 02 a 04. Sentimento do Mundo Mãos Dadas do Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microcopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. 02. As três primeiras estrofes reforçam uma constatação do sujeito poético. Entre as assertivas abaixo, qual delas expressa tal constatação? a) O sujeito tem consciência, sentimento pelo mundo ou conhece aquilo que o mundo sente, entretanto as lembranças e expressões do sentimento individualista impedem-no de vivenciar a realidade concreta. b) O sujeito lírico constata sua atuação afirmativa para transformação de seu tempo, mas prevalece a visão pessimista de um possível fracasso caso empreenda lutas sociais. c) Escravos, lembranças, morte e guerra evitam a dispersão do sujeito lírico. Dessa forma, suas ações são compelidas pelo perdão e pelo sentimento que compactua com seus camaradas. d) As mãos são suficientes para que o sujeito lírico se envolva politicamente. Elas são ilimitadas para evitar a morte, trazer fogo e alimento. Elas são, portanto, a expressão redentora para os tempos sombrios, que contextualiza o poema. e) “As lembranças que escorrem” estabelecem elo com o “pântano sem acordes” e com a “guerra”. Assim, a memória evoca um lugar lúgubre e inóspito, que exige a expressão plena do sentimento que o poeta nutre pelo mundo. sentimento do mundo CPV Sentimento 12 03. A oposição entre os sentimentos do sujeito lírico e a realidade objetiva alcança seu embate mais violento em: a) “minhas lembranças escorrem / e o corpo transige na confluência do amor”. b) Quando os corpos passarem, / eu ficarei sozinho / desfiando a recordação / do sineiro, da viúva e do microscopista / que habitavam a barraca / e não foram encontrados / ao amanhecer”. c) “Os camaradas não disseram / que havia uma guerra”. d) “Sinto-me disperso, / anterior a fronteiras / humildemente vos peço / que me perdoeis”. e) “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo”. do Mundo c) As vozes do morro não refletem somente a violência, mas também melodias de sua expressão popular, interpretadas pelo sujeito poético como manifestação de gentileza. d) Os conflitos registrados pelo poema são apropriados à temática social da obra Sentimento do Mundo. e) A expressão cultural que vem do morro é parte da identidade nacional. 06. Poema da Necessidade É preciso casar João, é preciso suportar Antônio, é preciso odiar Melquíades é preciso substituir nós todos. 04.Assinale a alternativa que apresenta uma interpretação pertinente ao poema acima, da obra Sentimento do Mundo de Carlos Drummond de Andrade. 05. a) O eu lírico discute as mazelas do mundo sob um ponto de vista místico, defendendo a importância da poesia para superar a situação presente. b) O eu lírico defende uma posição pacifista, mostrandose disposto a suportar os problemas do mundo, sem se opor, para evitar a guerra. c) O eu lírico trata sua realidade sob um ponto de vista pessimista, destacando suas limitações para enxergar o mundo e o caráter desafiador de sua época. d) O eu lírico trata da morte com uma concepção niilista, segundo a qual ela seria o fim da existência. e) O eu lírico discute a efemeridade da existência humana e a insuficiência da poesia para superá-la. É preciso salvar o país, é preciso crer em Deus, é preciso pagar as dívidas, é preciso comprar um rádio, é preciso esquecer fulana. É preciso estudar volapuque, é preciso estar sempre bêbado, é preciso ler Baudelaire, é preciso colher as flores de que rezam velhos autores. É preciso viver com os homens é preciso não assassiná-los, é preciso ter mãos pálidas e anunciar O FIM DO MUNDO. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Assinale a alternativa que não apresenta uma característica do poema acima. a) b) c) d) e) Morro da Babilônia À noite, do morro descem vozes que criam o terror (terror urbano, cinquenta por cento de cinema, e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral). Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro, o quartel pegou fogo, eles não voltaram. Alguns, chumbados, não morreram. O morro ficou mais encantado. Mas as vozes do morro não são propriamente lúgubres. Há mesmo um cavaquinho bem afinado que domina os ruídos da pedra e da folhagem e desce até nós, modesto e recreativo, como uma gentileza do morro. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. 07. Uso de anáforas. Ritmo acelerado. Destaque de elementos da realidade. Referências intertextuais. Posicionamento político radical. Inocentes do Leblon Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar. Trouxe bailarinas? trouxe emigrantes? trouxe um grama de rádio? Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, mas a areia é quente, e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. De acordo com a leitura do poema é incorreto afirmar que: O caráter de inocência a que se refere o poema relaciona-se a: a) A visão negativa expressa pelo sujeito lírico em relação ao morro evidencia sua vinculação a um pensamento extremamente conservador. b) A imagem do morro carioca no poema revela um problema de integração motivado pela exclusão social. a) b) c) d) e) CPV sentimento do mundo pessoas distantes de uma realidade concreta. indivíduos politizados. engajados que lutam contra privilégios. turistas contentes nas areias do Leblon. artistas estrangeiros. Sentimento 08. Os Ombros suportam o Mundo Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. do No fragmento do poema “O Mundo é Grande”, “as dores” referem-se: a) b) c) d) e) 10. a) O sujeito lírico constata um determinado tempo na vida humana regido pela apatia, na primeira parte do poema; na segunda, essa apatia também se abate sobre o interlocutor da voz lírica; e, na terceira e última parte, essa voz também mostrou-se impassível. b) A vida prossegue cíclica e sem emoções uma vez dominada pelos tempos a que se refere o sujeito lírico. c) No verso “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios”, o substantivo “fomes” significa unicamente privação de alimentos. d) Nos versos “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, / preferiram (os delicados) morrer.” o termo entre parênteses esclarece a indefinição da palavra “Alguns”. e) Nos versos “Teus ombros suportam o mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança.”, é possível interpretar que o peso do mundo é determinado pelos desejos e pela paixão. 09. Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto de me contar. Por isso me dispo, por isso grito, por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias preciso de todos. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Convite Triste Vamos fazer um poema ou qualquer outra besteira. Fitar por exemplo uma estrela por muito tempo, muito tempo e dar um suspiro fundo ou qualquer outra besteira. Vamos beber uísque, vamos beber cerveja preta e barata, beber, gritar e morrer, ou, quem sabe? beber apenas. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. ao autoisolamento do sujeito lírico. à percepção doída que o sujeito lírico tem do mundo. à incapacidade física de transformar a realidade. à alienação consciente do sujeito lírico. à percepção individualista da sociedade no contexto contemporâneo. Meu amigo, vamos sofrer, vamos beber, vamos ler jornal, vamos dizer que a vida é ruim, meu amigo, vamos sofrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação. Das assertivas abaixo assinale a que não interpreta corretamente o poema. 13 Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, preferiram (os delicados) morrer. Mundo Vamos xingar a mulher, que está enevenando a vida com seus olhos e suas mãos e o corpo que tem dois seios e tem um embigo também. Meu amigo, vamos xingar o corpo e tudo que é dele e que nunca será alma. Meu amigo, vamos cantar, vamos chorar de mansinho e ouvir muita vitrola, depois embriagados vamos beber mais outros sequestros (o olhar obsceno e a mão idiota) depois vomitar e cair e dormir. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Dentre as assertivas abaixo, é possível afirmar que: a) a penúltima estrofe evidencia o que provoca o desejo de sofrer e de beber do sujeito lírico. b) a busca pelos prazeres hedonistas está relacionada somente à insatisfação do sujeito lírico com o tempo em que vive. c) o desejo de se embriagar evidencia a indolência do sujeito lírico e seu apego aos prazeres fugazes. d) o desfecho do poema é expressão do lirismo consagrado pela poética drummonianna. e) o caráter escapista dos versos, até a publicação deste poema, era inédito na poesia brasileira. sentimento do mundo CPV Sentimento 14 11.Na análise do livro Sentimento do Mundo de Carlos Drummond de Andrade só não está correto o que se afirma em: a) a linguagem empregada nos poemas mescla registros coloquial e formal de linguagem. b) o presente é referenciado tematicamente em muitos poemas. c) o ritmo dos poemas é caracterizado pela construção de versos livres. d) a metalinguagem é forma constante de expressão do sujeito lírico. e) o caráter imagético dos poemas é prejudicado por longas digressões. (FUVEST-SP/Nov-2012) Texto para as questões 12 e 13. Morro da Babilônia À noite, do morro descem vozes que criam o terror (terror urbano, cinquenta por cento de cinema, e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral). Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro, o quartel pegou fogo, eles não voltaram. Alguns, chumbados, não morreram. O morro ficou mais encantado. Mas as vozes do morro não são propriamente lúgubres. Há mesmo um cavaquinho bem afinado que domina os ruídos da pedra e da folhagem e desce até nós, modesto e recreativo, como uma gentileza do morro. do 13.Guardadas as diferenças que separam as obras a seguir comparadas, as tensões a que remete o poema de Drummond derivam de um conflito de: I. No conjunto formado pelos poemas do livro, a referência ao Morro da Babilônia — feita no título do texto — mais as menções ao Leblon e ao Méier, a Copacabana, a São Cristóvão e ao Mangue, — presentes em outros poemas —, sendo todas, ao mesmo tempo, espaciais e de classe, constituem uma espécie de discreta topografia social do Rio de Janeiro. II. Nesse poema, assim como ocorre em outros textos do livro, a atenção à vida presente abre-se também para a dimensão do passado, seja ele dado no registro da história ou da memória. III. A menção ao “cavaquinho bem afinado”, ao cabo do poema, revela ter sido nesse livro que o poeta finalmente assumiu as canções da música popular brasileira como o modelo definitivo de sua lírica, superando, assim, seu antigo vínculo com a poesia de matriz culta ou erudita. Está correto apenas o que se afirma em: CPV a) I. b) I e II. c) III. d) II e III. e) I, II e III. sentimento do mundo a) caráter racial, assim como sucede em A Cidade e as Serras. b) grupos linguísticos rivais, de modo semelhante ao que ocorre em Viagens na Minha Terra. c) fundo religioso e doutrinário, como o que agita o enredo de Til. d) classes sociais, tal como ocorre em Capitães da Areia. e) interesses entre agregados e proprietários, como o que tensiona as Memórias Póstumas de Brás Cubas. 14. (PUC-SP/2013) A obra Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. 12. Leia as seguintes afirmações sobre o poema de Drummond, considerado no contexto do livro a que pertence: Mundo a) aborda temática fundamentalmente lírica e exalta as relações positivas entre o indivíduo e o mundo. b) preocupa-se com procedimentos metalinguísticos na medida em que, em seus poemas, volta-se para a explicação do processo de produção poética. c) despreza a abordagem de sentimentos negativos e, ignorando a questão do medo, enaltece as ações vitoriosas. d) desenvolve temas de caráter político e social e faz da poesia um instrumento de denúncia das dilacerações do mundo. e) valoriza a temática social, de um tempo marcado pela resistência aos totalitarismos, em detrimento dos aspectos estéticos do texto. EXERCÍCIOS DISCURSIVOS 15. Mãos Dadas Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptados por serafins. O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. Explique por que para o sujeito lírico o ato de escrever representa sua relação com o mundo. Fundamente sua resposta com trechos do texto. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Sentimento 16. Sentimento do Mundo do 18. Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. 17. Explique a imagem constituída na primeira estrofe do poema. Tristeza do Império Os conselheiros angustiados ante o colo ebúrneo das donzelas opulentas que ao piano abemolavam “bus-co a cam-pi-na se-re-na pa-ra li-vre sus-pi-rar” esqueciam a guerra do Paraguai, o enfado bolorento de São Cristóvão, a dor cada vez mais forte dos negros e sorvendo mecânicos uma pitada de rapé sonhavam a futura libertação dos instintos e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático. Privilégio do Mar O edifício é sólido e o mundo também. Sabemos que cada edifício abriga mil corpos labutando em mil compartimentos iguais. Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador e vêm cá em cima respirar a brisa do oceano, o que é privilégio dos edifícios. O mundo é mesmo de cimento armado. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. esse amanhecer mais noite que a noite. 15 Neste terraço mediocremente confortável, bebemos cerveja e olhamos o mar. Sabemos que nada nos acontecerá. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microcopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer Mundo Certamente, se houvesse um cruzador louco, fundeado na baía em frente da cidade, a vida seria incerta... improvável... Mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis. Como a esquadra é cordial! Podemos beber honradamente nossa cerveja. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Explique a ironia latente nos versos do poema. Texto para a questão 19 e 20. Confidência do Itabirano Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. 19. Cite dois trechos em que se destacam elementos contrastantes. Há neste poema observações sobre a contaminação do universo público pelos interesses privados das elites. Em que medida, a linguagem empregada na construção do texto expressa a crítica feita pelo sujeito lírico? 20. Identifique o tema central do poema. Como o uso de expressões contrastantes colabora para o desenvolvimento desse tema? sentimento do mundo CPV Sentimento 16 Texto para as questões 21 e 22. Elegia 1938 do Mundo 25. (FUVEST-SP/Jan-2013) Leia o seguinte poema. Tristeza do Império Os conselheiros angustiados ante o colo ebúrneo das donzelas opulentas que ao piano abemolavam “bus-co a cam-pi-na se-re-na pa-ra-li-vre sus-pi-rar”, esqueciam a guerra do Paraguai, o enfado bolorento de São Cristóvão, a dor cada vez mais forte dos negros e sorvendo mecânicos uma pitada de rapé, sonhavam a futura libertação dos instintos e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana, [com rádio e telefone automático. Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. Praticas laboriosamente os gestos universias, sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção. À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas. Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras. Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. A literatura estragou tuas melhores horas de amor. Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear. Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. a) Compare sucintamente “os conselheiros” do Império, tal como os caracteriza o poema de Drummond, ao protagonista das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. b) Ao conjugar de maneira intempestiva o passado imperial ao presente de seu próprio tempo, qual é a percepção da história do Brasil que o poeta revela ser a sua? Explique resumidamente. 21. Explique o título do poema, a opção pela segunda pessoa do discurso, a fuga na literatura e a referência à Grande Máquina expressas pelo poema acima transcrito. 26.(UNICAMP-SP/2013) O excerto abaixo foi extraído do poema Ode no Cinquentenário do Poeta Brasileiro, de Carlos Drummond de Andrade, que homenageia o também poeta Manuel Bandeira. 22.Para o leitor atento aos acontecimentos, a última estrofe pode parecer um prenúncio de um fato da História recente. De qual se trata? 23. Os Mortos de Sobrecasaca Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava que rebentava daquelas páginas. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. 24. Explique o significado simbólico do “verme” que “roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos”. Revelação do Subúrbio Quando vou para Minas, gosto de ficar de pé, contra a vidraça do carro, vendo o subúrbio passar. O subúrbio todo se condensa para ser visto depressa, com medo de não repararmos suficientemente em suas luzes que mal têm tempo de brilhar. A noite come o subúrbio e logo o devolve, ele reage, luta, se esforça, até que vem a campo onde pela manhã repontam laranjais e à noite só existe a tristeza do Brasil. Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. CPV Explique por que o subúrbio “se condensa” para ser visto depressa, / com medo de não repararmos suficientemente / em suas luzes que mal têm tempo de brilhar”. sentimento do mundo (...) Por isso sofremos: pela mensagem que nos confias entre ônibus, abafada pelo pregão dos jornais e mil queixas operárias; essa insistente mas discreta mensagem que, aos cinquenta anos, poeta, nos trazes; e essa fidelidade a ti mesmo com que nos apareces sem uma queixa no rosto entretanto experiente, mão firme estendida para o aperto fraterno — o poeta acima da guerra e do ódio entre os homens -, o poeta ainda capaz de amar Esmeralda embora a alma anoiteça, o poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte — mas haverá lugar para a poesia? Efetivamente o poeta Rimbaud fartou-se de escrever, o poeta Maiakovski suicidou-se, o poeta Schmidt abastece de água o Distrito Federal... Em meio a palavras melancólicas, ouve-se o surdo rumor de combates longínquos (cada vez mais perto, mais, daqui a pouco dentro de nós). E enquanto homens suspiram, combatem ou [simplesmente ganham dinheiro, ninguém percebe que o poeta faz cinquenta anos, que o poeta permaneceu o mesmo, embora alguma [coisa de extraordinário se houvesse passado, alguma coisa encoberta de nós, que nem os olhos [traíram nem as mãos apalparam, susto, emoção, enternecimento, desejo de dizer: Emanuel, disfarçado na meiguice elástica dos abraços, e uma confiança maior no poeta e um pedido [lancinante para que não nos deixe sozinhos nesta cidade em que nos sentimos pequenos à espera dos maiores acontecimentos. (...) Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo. a) O que, no poema, leva o eu lírico a perguntar: “mas haverá lugar para a poesia?” b) É possível afirmar que a figura de Manuel Bandeira, evocada pelo poeta, se contrapõe ao sentimento de pessimismo expresso no poema e no livro Sentimento do mundo. Explique por quê.