Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Nuno Micael Alvim Coelho da Silva ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE O CRIME E A FLORA URBANA NUMA METRÓPOLE PORTUGUESA Universidade Fernando Pessoa Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Criminologia Porto, 2013 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Nuno Micael Alvim Coelho da Silva ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE O CRIME E A FLORA URBANA NUMA METRÓPOLE PORTUGUESA Universidade Fernando Pessoa Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Criminologia Porto, 2013 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Nuno Micael Alvim Coelho da Silva Estudo da relação entre o crime a flora urbana numa metrópole portuguesa Monografia apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa como parte dos requisitos para obtenção do grau de licenciatura, sob a orientação da Professora Doutora Maria Francisca Rebocho. Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa RESUMO A investigação projectada visa explorar a relação entre a flora urbana e a criminalidade num cenário urbano português, testando a hipótese de que a vegetação contribui para a redução do crime através da mitigação de precursores psicológicos da violência e estímulo da vigilância informal, tal como formulado em estudos prévios. Empregandose um sistema de informação geográfica, índices de cobertura vegetal produzidos através de detecção remota orbital serão contrastados com os índices de criminalidade georreferenciada derivados de estatísticas oficiais, respectivos às áreas urbanas coincidentes, controlando-se por variáveis sócio-demográficas através de testes estatísticos. Presume-se que os níveis elevados de vegetação são preditores de taxas de criminalidade reduzidas, ou seja, uma correlação inversa entre as duas variáveis. Palavras-chave: vegetação urbana, crime, prevenção. ABSTRACT The investigation outlined in this work aims to analyze the relationship of vegetation with crime in a portuguese urban setting, focusing on testing the hypothesis that the vegetation cover contributes to the reduction of crime levels within the city thorough two previously postulated mechanisms, namely by mitigating psychological precursors of violence, and promoting natural surveillance of the streets. By employing a geographical information system, remotely sensed vegetation data is examined in comparison to official crime rates in the corresponding urban regions, while controlling for several social-demographic variables through statistical analysis. It is assumed that high levels of vegetation density are predictive of lower crime rates, which means a negative correlation between the two variables. Keywords: urban vegetation, crime, prevention. Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa DEDICATÓRIA À minha família, tudo o que frutifica começa por uma raiz que suporta e alimenta. E àqueles que regaram o broto para que não murchasse, ou sopraram as sementes que viriam a germinar. Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa AGRADECIMENTOS Uma nota de agradecimento à minha supervisora do projecto, pelo gentil tempo que dispôs na sua revisão e pelos conselhos orientadores. Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa ÍNDICE Introdução ......................................................................................................................11 Secção I − A Raiz: Modelos conceptuais basilares ....................................................14 Capítulo I: Criminologia ambiental .............................................................................15 1.1.Modelos criminológicos de oportunidade ..............................................................19 1.1.1. Teoria da escolha racional ..............................................................................20 1.1.2. Teoria das actividades rotineiras ....................................................................22 1.2.Modelos criminológicos de incivilidade ...............................................................24 1.2.1. Broken Windows ............................................................................................25 1.3.Modelos ambientais preventivos da criminalidade ...............................................30 Capítulo II: Psicologia ambiental ....................................................................................... 35 2.1. Ambientes restaurativos ........................................................................................35 2.2. Modelos teóricos explicativos...............................................................................40 2.2.1. Teoria da restauração da atenção ...................................................................42 Secção II − O Tronco: Enquadramento teórico .........................................................45 Capítulo III: Duas linhas de pensamento divergentes ...............................................46 3.1. A vegetação como promotora do crime ................................................................46 3.2. A vegetação como preventora do crime ................................................................50 3.2.1. Evidência indirecta ou sugestiva ....................................................................51 3.2.2. Evidência directa ............................................................................................55 Secção III − O Rebento: Objectivos ............................................................................60 Capítulo IV: Objectivos da investigação .....................................................................61 4.1. Objectivos gerais ...................................................................................................61 4.2. Objectivos específicos ..........................................................................................62 Secção IV – A Flor: Metodologia ................................................................................63 Capítulo V: Métodos de investigação ..........................................................................64 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa 5.1. Área de estudo.......................................................................................................64 5.2. Medidas de análise e métodos de recolha .............................................................65 5.3. Ferramentas de análise ..........................................................................................67 5.4. Procedimento ........................................................................................................68 5.5. Análise de dados ...................................................................................................73 Secção V – O Fruto: Resultados ..................................................................................75 Capítulo VI: Resultados e limitações ...........................................................................76 6.1. Resultados e planeamento de testes estatísticos....................................................76 6.2. Limitações da investigação ...................................................................................77 Secção VI – A Semente: Discussão ..............................................................................79 Capítulo VII: Considerações importantes ...................................................................80 Bibliografia .....................................................................................................................82 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1 − Ilustração exemplificativa de uma unidade geográfica de análise, a cidade do Porto, dividida em freguesias .........................................................................................64 Figura 2 − Ilustração exemplificativa de uma unidade geográfica de análise, a cidade do Porto, subdividida em múltiplas secções ou sectores estatísticas ...................................65 Figura 3 − Exemplo de um mapa coroplético ................................................................70 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa INTRODUÇÃO “Porque na verdadeira natureza das coisas, se bem considerarmos, cada árvore verde é bem mais gloriosa do que se fosse feita de ouro ou de prata”. Martin Luther É consabido que o contexto ambiental desempenha um papel fundamental na criminogénese, mediante as influências exercidas sobre o indivíduo pela dimensão física e dinâmicas sociais, as quais podem facilitar ou prevenir a actividade criminal (Brantingham & Brantinghamm, 1991). No que concerne a relação entre a vegetação e o crime, existem visões conflituosas e inconsistentes na literatura disputando validade científica. Tradicionalmente, a vegetação (e.g. plantas, árvores) existente é encarada como um elemento de elevado potencial criminógeno, na medida em que permite ocultar o eventual criminoso e impede um controlo visual quer formal como informal deste, facilitando assim a actividade criminal, ou então na qualidade de indicador de controlo social anómico do ambiente que fomenta a criminalidade quando a manutenção da vegetação é descuidada (Wilson & Kellington, 1982). Nesta linha de pensamento, áreas urbanas com arboreto denso são percebidas como locais inseguros e particularmente propícios ao crime, tendo assim se convertido em alvos de uma estratégia política de supressão (Kuo & Sullivan, 2001) Efectivamente, esta perspectiva criminológica encontra algum suporte científico, ainda que restrito na sua amplitude representativa (e.g. Nasar & Fisher, 1993; Michael & Hull, 1994; Michael, Hull & Zahm, 2001 cit. in Kuo & Sullivan, 2001a). O fundamento em que se estriba a noção da vegetação enquanto factor criminógeno é a de que arbustos compactos ou bosques densos diminuem significativamente a visibilidade e por conseguinte promovem a dinâmica criminal, numa análise simplista (Kuo & Sullivan, 2001). Porém, nem toda a vegetação encobre e bloqueia a visão; alamedas com árvores bem espaçadas entre si, árvores de copas altas, arbustos rasos e flores oferecem pouca ou nenhuma cobertura da actividade criminal, constituindo uma manifesta e significativa excepção à norma previamente explícita (ibidem). Conformemente, na última década de produção científica teve génese uma nova perspectiva ou corrente de pensamento que sugere um efeito antitético – isto é, que a presença e abundância de vegetação pode, ao invés, 11 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa prevenir a actividade criminal (Wolfe & Mennis, 2012). Num estudo pioneiro conduzido por Kuo & Sullivan (2001), verificou-se que a vegetação abundante estava significativamente correlacionada com reduzidas taxas criminais de diversos crimes sobre propriedade tal como o furto, assalto e roubo. Os autores procederam então a argumentar que a presença de vegetação em espaços urbanos públicos pode prevenir ou reduzir a criminalidade ao encorajar o uso do espaço público, deste modo aumentado a vigilância social que suprime eventuais intentos criminais. Paralelamente, um outro mecanismo preventor é postulado pelos mesmos investigadores com base em diversos estudos previamente conduzidos, notoriamente no trabalho desenvolvido por Kaplan (1987), em que é estabelecida a noção de que a vegetação poderá ter um efeito fisiológico restaurativo da mente, reduzindo os precursores psicológicos dos actos criminais, particularmente dos crimes violentos. Partindo desta premissa, Kuo & Sullivan sugerem que os espaços verdes urbanos poderão reduzir os níveis de crime violento mediante os seus efeitos atenuantes dos precursores da violência, nomeadamente a impulsividade e irritabilidade. Consistente com as perspectivas atrás apresentadas, vários estudos recentes têm vindo a confirmar o potencial das árvores como supressores de crime, deixando para trás a noção obsoleta da vegetação ornamental que não serve um propósito funcional, assim como também a realçar a significância particular que assume o tipo de vegetação como mediador desta controversa mas fascinante relação entre o crime e a flora urbana. (Li, 2008; Donovan & Prestemon, 2012). Na senda destes estudos, a investigação presente pretende inquirir a relação entre a flora urbana e a criminalidade num contexto urbano português, averiguando a hipótese de uma correlação inversa entre as duas variáveis, isto é, que valores elevados de densidade vegetal são fiáveis preditores de taxas de criminalidade mais baixas nos espaços da cidade correspondentes. Considera-se que este objecto de investigação comporta grande interesse científico, dadas as suas potenciais repercussões políticas e sociais, e que é sem dúvida bastante pertinente, na medida em que, no melhor do conhecimento do autor, se afigura como estudo pioneiro em Portugal, porventura também na europa, podendo despontar uma compreensão mais completa do fenómeno estudado, e esclarecer a sua eventual transversalidade. Em adição ao objectivo central desta investigação, delineiam-se outros objectivos específicos que poderão ser alcançados como um produto da investigação central a ser conduzida. Estes reportam-se, nomeadamente, ao estudo da relação entre o crime e a 12 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa vegetação nas suas variações específicas, em função do tipo de crime ou do tipo de vegetação versada, à compreensão do tipo de relação entre as duas variáveis, e ao desenvolvimento de modelos probabilísticos de previsão com base em análises e cálculos estatísticos. Tendo em mente a concretização destes objectivos, uma metodologia singular e específica é traçada para este estudo, prevendo a utilização de sistemas informáticos de informação geográfica como ferramenta de trave mestra que possibilita a integração de informação relativa aos níveis de vegetação, às taxas de criminalidade, e diversos indicadores sócio-demográficos, assim como subsequentes análises estatísticas que fornecerão as respostas procuradas. Os métodos e técnicas sugeridas são inspirados em estudos semelhantes conduzidos no passado, acreditando-se a sua viabilidade, não obstante de se reconhecer algumas eventuais dificuldades, mormente no que toca a aquisição dos dados empíricos fundamentais à realização da investigação, e também algumas limitações inerentes, essencialmente resultantes do design estrutural da investigação e das restrições económicas que naturalmente acometem a maioria dos estudos científicos. A estrutura e organização deste projecto almejam uma analogia figurativa com o tópico de investigação, salvaguardando-se a compatibilidade com as normas de edição exigidas. Numa primeira parte do trabalho descrevem-se os modelos teóricos fundamentais que servem de base compreensiva à premissa da investigação planeada, à qual se segue em complementaridade um enquadramento específico com a teoria e evidência científica desenvolvida nas últimas décadas em torno da relação entre o crime e a vegetação. Na terceira parte elencam-se os objectivos deste estudo, e a quarta parte é reservada ao esboço e planeamento da metodologia de investigação, da selecção da área de estudo, dos métodos de recolha de dados, das ferramentas de análise, e à descrição dos procedimentos. Segue-se depois na quinta parte com a previsão dos resultados e com a formulação de análises estatísticas finais que serão imprescindíveis ao teste da hipótese estabelecida e para resposta aos objectivos específicos, antecipando-se também potenciais limitações que a investigação comporta. Por fim, na sexta parte, conclui-se com uma discussão reflexiva do projecto e da investigação formulada, procurando-se elucidar para a sua importância e interesse científico. 13 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa SECÇÃO I A RAIZ: MODELOS CONCEPTUAIS BASILARES 14 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa CAPÍTULO I: CRIMINOLOGIA AMBIENTAL O controlo e a gestão do ambiente, entendido como o espaço físico e o meio social, é uma preocupação constante da história da humanidade, particularmente notória desde o estabelecimento do sedentarismo. Com efeito, a localização, estrutura, e organização das povoações humanas, desde a pré-história até à actualidade, sempre reflectiu o cuidado em garantir-se a segurança e bem-estar dos seus residentes. Encontramos evidência exemplificativa disto nos primórdios civilizacionais em que se privilegiava a construção das primeiras cidades junto de cursos de água e de fontes de outros recursos fundamentais, nas remanescências de fossos e imponentes fortificações dos castelos medievais, e nos mecanismos diversificados de segurança das cidades modernas como a iluminação e vigilância. Percorrendo esta sequência temporal observa-se uma progressão e optimização tecnológica articulada de uma adaptação às novas necessidades e adversidades contemporâneas, inerentes a uma dada época. As cidades actuais, produto de um processo contínuo de urbanização e industrialização, cadenciado de uma grande expansão geográfica e crescimento populacional, registaram a génese ou agudização de bem reconhecidos problemas e ameaças à segurança pública, como a sobrelotação, a pobreza, a poluição, a anomia social, e a criminalidade, atribuídas frequentemente a políticas de “laissez-faire” e ao planeamento urbano pouco circunspecto. O crime, em particular, tem sido causalmente associado a uma moldura socio-ambiental precária e anómica, patenteando assim a crescente necessidade de intervenção a esses níveis (Cozens, 2007). Isto conduz-nos à abordagem criminológica do contexto ambiental. Paradigmaticamente, mais de dois séculos de criminologia, desde que esta área científica emergiu em meados do século XVIII, tipificaram-se por um estudo centrado em duas unidades de análise, as questões ‘porquê?’ e ‘quem?’, em se focava enfaticamente a criminalidade estrita, o criminoso, e/ou as causas ou origens remotas do comportamento criminal, procurando-se fundamentalmente formular explicação sobre os factores biológicos, factores individuais, e as dinâmicas sociais que subsidiam a construção do indivíduo criminoso. Nesta óptica tradicional, há um foco binário de análise que tende a dicotomizar o mundo em criminosos e não-criminosos; o local e 15 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa momento da ocorrência criminosa veem a sua importância desprezada, sendo o crime encarado como a manifestação relativamente inevitável da predisposição desviante do ofensor; a prevenção, por sua vez, é essencialmente concretizada mediante a intervenção com o potencial criminoso (i.e. o jovem desviante) e a sua realidade social, ou então através de programas que visam a reabilitação e ressocialização do criminoso inveterado (Wortley & Mazerolle, 2008; Sherman, 1995). Os primeiros esforços pioneiros de conceber a criminalidade enquadrada no ambiente físico remontam a estudos de padrões de distribuição espacial do crime realizados pelas autoridades policiais francesas e inglesas do século XIX (Li, 2008), todavia, uma mudança central de paradigma com transição efectiva do enfoque criminológico para a questão ‘onde?’, os determinantes situacionais do crime, apenas se operou em meados do século XX (Wortley & Mazerolle, 2008), dinamizada por algumas figuras precursoras das quais se salientam Jane Jacobs (1961), o criminólogo C. Ray Jeffery (1971), e o arquitecto urbano Oscar Newman (1972), todos eles promotores da noção do crime enquanto fenómeno que pode ser malogrado pela modificação física do contexto ambiental onde este ocorre ou é potencial, visando portanto condicionar o comportamento humano, particularmente os padrões comportamentais dos ofensores, das vítimas, e dos vigilantes (Li, 2008). Os contributos específicos de Newman e Jeffery serão examinados em pormenor mais à frente, afigurando-se apenas necessário uma introdução sumária ao trabalho de Jacobs, teorista de planeamento urbano e uma das primeiras investigadoras a postular a relação entre o crime e o ambiente físico urbano; na sua obra célebre “The Death and Life of Great American Cities” (1961), a autora aventa a possibilidade de se reduzir o crime por meio da manipulação do ambiente físico que maximizasse a vigilância natural ou informal, aquilo que esta designou de “eyes on the street”1 (Paynich & Hill, 2010), um pensamento que se funda na lógica de que os virtuais criminosos evitam perpetrar os actos delituosos em locais onde há elevada probabilidade de serem observados por outras pessoas e haja maior probabilidade de interferência (Wolfe & Mennis, 2012). Esta lógica, apesar de estabelecida intuitivamente, é corroborada por vários estudos (Bennett, 1989, Bennett & Wright, 1984, Cromwell, Olson, & Avary, 1991, Poyner & Webb, 1992, Coleman, 1987, Macdonald & Gifford, 1989, Merry, 1981, Rhodes & 1 Na tradução adaptada para português: “olhos sobre a rua” ou “supervisão da rua”. 16 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Conley, 1981 cit. in Kuo & Sullivan, 2001; Groff & McCord, 2011). O conceito de vigilância influencia modelos posteriores e é um dos elementos teóricos fundamentais da criminologia ambiental, cobrindo-se de particular relevância para a hipótese formulada neste projecto, conforme será analisado adiante. Esta transformação do paradigma académico foi formalizada pelos criminólogos Paul e Patricia Brantingham na década de 1980, responsáveis por cunhar o termo ‘criminologia ambiental’2, e por conceptualizar a abordagem com base num estudo de todo o corpo teórico emergente de várias disciplinas, como a sociologia, a psicologia, a demografia, a geografia e a arquitectura, convergente sobre as dimensões espaciais e temporais do crime. Os dois investigadores estabeleceram o foco do estudo criminológico sobre os factores contextuais ou ambientais que exercem influência nos actos criminosos, os quais são concebidos, nas palavras dos mesmos, como o produto da confluência do ofensor, o alvo criminal (vítima), e de um contexto espácio-temporal específico. Identificam-se assim várias dimensões ou componentes fundamentais à consumação do delito, sine quibus non: o ofensor, a vítima, o espaço, o tempo, e a lei (Bratingham & Bratingham, 1991; Li, 2008). Comparavelmente à abordagem criminológica conservadora, a criminologia ambiental adopta uma perspectiva radicalmente díspar, em que o ofensor cessa de ser o objecto central de estudo e passa a ser compreendido como apenas um dos elementos protagonistas da dinâmica multidimensional do crime, que é analisada holisticamente. Trata-se de uma aproximação à criminologia de índole utilitária, e por isso relega as prevenções secundária e terciária em prol de uma abordagem de prevenção primária, generalizada, que visa efectivamente impedir a incidência criminal, removendo as oportunidades para o crime, e não “corrigir” ou “curar” o indivíduo desviante. Com efeito, a origem da disposição criminógena de um dado indivíduo, cujo estudo é de particular interesse às instâncias secundária e terciária de prevenção, assume escassa relevância imediata no âmbito da criminologia ambiental, que entende que todos os indivíduos estão capacitados para o crime, e prefere focar questões como – ‘onde e quando é que teve lugar o crime’, ‘quem esteve envolvido’, ‘como é que os envolvidos interagiram entre si e com o meio’, ‘onde é que há maior incidência de crime’, ‘que locais são especialmente propícios à criminalidade’, e em último lugar, ‘como se poderá intervir 2 Conhecida originalmente como “Environmental criminology”. 17 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa no meio para prevenir o crime’, que constitui o busílis desta abordagem (Wortley & Mazerolle, 2008; Carrabine et al, 2009). Em tese, esclarece-se a existência de três proposições fundamentais que embasam a perspectiva ambiental (Wortley & Mazerolle, 2008): i. Todo o comportamento é o resultado da interação entre o actor e o meio em que está situado; O ambiente não é uma cortina de fundo alheia ao exercício dos actores, mas sim um palco dinâmico que participa decisivamente no começo e progresso do acto; O comportamento delituoso é marcadamente influenciado pelas características do ambiente em que ocorre, os factores situacionais; consequentemente, o delito é causado pela convergência de um indivíduo criminógeno (actor com predisposição criminal) com elementos criminógenos do meio. ii. A distribuição espácio-temporal do crime não é homogénea nem aleatória. A dispersão da criminalidade ocorre em função das oportunidades criminais e outros elementos contextuais que facilitem a perpetração do acto criminoso. iii. Modificando-se ou neutralizando-se os elementos contextuais criminógenos poder-se-á reduzir a incidência do crime numa dada localização. Transversal a este novo corpo de teoria é a noção do crime como comportamento criminoso generalizado e frequente, produzido por padrões rotineiros da vida social, e que não tem implicado necessariamente qualquer tipo de motivação ou disposição criminógena específica, nem uma patologia ou anomalia moral. Neste prisma, o crime é um fenómeno previsível e que pode ser prevenido situacionalmente (Garland, 2001 cit. in Newburn 2007). A comprovar a relevância desta perspectiva, num estudo importante dos padrões de distribuição espacial do crime ocorridos em Minneapolis, EUA, Sherman e os seus colaboradores (1989) puserem em evidência a existência de hotspots3 criminais ao observarem que 50% das denúncias feitas à polícia no ano de 1986 emanavam de apenas 3% de toda a zona geográfica da cidade, e que a concentração espacial dos crimes de propriedade como o furto e roubo era ainda mais densa e circunscrita, sendo uns meros 5% do tecido geográfico urbano representativos de 100% das denúncias 3 Numa tradução para português: “pontos-quentes”. 18 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa respectivas a esses crimes (Sherman, 1995). Este achado reclama grande relevância para a abordagem da criminologia ambiental, especialmente se o contrastarmos com as conclusões de um outro estudo (Wolfgang et al, 1972) sobre a distribuição estatística individual das detenções criminais numa dada população, verificando que 50% do total das detenções envolviam 18% da amostra de indivíduos (ibidem), o que sugere que esta nova aproximação ao crime centrada no ambiente poderá ser tão ou mais pertinente do que uma centrada no indivíduo. Procede-se com uma apresentação concisa e sistemática dos modelos conceptuais que detêm mais relevância para o estudo projectado, sujeitos a uma selecção criteriosa dos conteúdos teóricos. Estes modelos derivam de um crescente cepticismo na criminologia positivista e na justiça criminal correctiva e reabilitativa, assim como de uma necessidade emergente de formular abordagens de compreensão interventiva com aplicação política e relevância prática imediata. Em seu cerne comum encontramos a proposta de manipular-se o ambiente ao invés dos humanos, procurando-se coibir os potenciais ofensores antes de os reabilitar (Newburn, 2007). 1.1. Modelos criminológicos de oportunidade Nas décadas posteriores ao advento da criminologia de foro ambiental surgem vários modelos conceptuais focados nos factores situacionais imediatos e maleáveis do crime, realçando a importância de compreender integralmente as escolhas feitas pelos ofensores em diferentes circunstâncias, e na subsequente análise, como a decisão dos ofensores e as localizações particulares ou oportunidades podem ser condicionadas com a finalidade de reduzir a criminalidade local (Newburn, 2007). Fundando-se na raiz comum da proposição criminológica clássica avançada por Jeremy Bentham, segundo a qual os humanos são seres racionais intrinsecamente hedonistas que se empenham em maximizar o seu prazer e minimizar a dor ou infelicidade, estas abordagens teóricas oferecem explanações complementares para a ocorrência e distribuição do delito, assentes no pressuposto de que os ofensores fazem escolhas racionais com base no balanço entre os custos e benefícios do acto. A Teoria da Escolha Racional sistematiza o processo de decisão dos ofensores, e a Teoria das Actividades Rotineiras delineia em articulação os elementos criminógenos do crime. Ambos os modelos analisam os variados contextos situacionais que fabricam a 19 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa oportunidade criminal, enfatizando a percepção que o ofensor tem desta e a sua influência no processo de decisão (Adler et al, 2004; Tillyer, 2011). Prossegue-se com uma análise em maior pormenor dos dois modelos: 1.1.1. Teoria da escolha racional Numa concepção mais ampla, a teoria da escolha racional é um quadro teórico padrão empregue no campo das ciências sociais e económicas, e que devido ao seu sucesso explicativo se alargou a outras disciplinas e ramos de saber, designadamente a criminologia (Gül, 2009). Nesta área, os maiores proponentes foram sem dúvida Cornish and Clark, que formularam em 1986 uma perspectiva das escolhas racionais aplicada aos indivíduos criminosos. Focando-se no processo de tomada de decisão na óptica do ofensor, a teoria visa compreender a sequência de escolhas feitas por este num cenário específico que proporciona as oportunidades para satisfazer o seu móbil (Newburn, 2007; Clarke & Felson, 1998). Os autores partem de três pressupostos: o argumento utilitarista que o Homem é um actor racional que procura sempre optimizar os seus ganhos (prazer) e minimizar os custos (dor); a pressuposição de que o comportamento seja ele conformativo ou desviante, é voluntário e deliberado; e a noção economicista de que as pessoas avaliam logicamente as suas opções e escolhem a via que acreditam ir ao encontro dos seus interesses, pelo que perpetram um crime quando percebem mediante o cálculo hedonístico que os virtuais benefícios desse acto suplantam o esforço e riscos envolvidos (Adler et al, 2004; Cornish & Clarke, 2008). Assim, constroem a imagem de um ofensor que pensa − mesmo que precariamente − antes de actuar, avaliando preliminarmente as consequências ou custos por oposição aos benefícios, e cujo comportamento transgressor consequente dessa avaliação é intencional e propositado, orientado para a obtenção de algum tipo de vantagem ou satisfação de uma necessidade, nomeadamente envolvendo bens materiais, dinheiro, estatuto, gratificação sexual, vingança, et cetera (Cornish & Clarke, 1986; Clarke & Felson, 1998; Cornish & Clarke, 2008). A decisão de cometer o crime ocorre quando o eventual perpetrador percebe a possibilidade de beneficiar amplamente deste e que as probabilidades de ser detectado ou detido são reduzidas (Adler et al, 2004). Uma consequência importante procede desta visão: se o contexto situacional for modelado no interesse de exponenciar os riscos e 20 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa custos do comportamento criminoso, o ofensor racional que analisa a situação achar-seá dissuadido ou descapacitado para cometer o acto delituoso, efectivamente prevenindose a ocorrência criminal (Paternoster & Bachman, 2001 cit. in Gül, 2009). Embora inspirados pela tradição criminológica clássica do homem dotado de razão e livre-arbítrio, Clarke e Cornish reconhecem a falibilidade do processo cognitivo inerente à decisão e a limitada racionalidade dos ofensores (Tillyer, 2011). De acordo com os mesmos, o processo de decisão será frequentemente bastante rudimentar, e a faculdade do ofensor de realizar escolhas lógicas é restringida por inúmeros factores, como a quantidade de tempo que este dispõe para tomar uma decisão, o grau de qualidade e disponibilidade relevante à tomada de decisão, o esforço deliberativo que este faz, e debilitação cognitiva resultante de, por exemplo, intoxicação alcoólica ou consumo de estupefacientes. Em adição, o ofensor raramente possui uma visão completa e transparente da situação pré-criminal, e faz muitas vezes uma análise imprecisa da mecânica custo-benefício, em consequência da sua óptica motivacional imediatista, que se baseia fundamentalmente na percepção do que é mais próximo e evidente, sujeitando a negligência os custos remotos do crime, assim como a sua prevenção (Cornish & Clarke, 1986; Clarke & Felson, 1998; Adler et al, 2004) O contributo importante de Clarke e Cornish à Criminologia é o de um modelo que versa a natureza cambiante do comportamento delituoso em função dos objectivos e necessidades dos ofensores, assim como das oportunidades que lhes são apresentadas (Newburn, 2007). Assumindo que os crimes consistem fundamentalmente na consubstanciação de escolhas racionais e adaptativas baseadas na análise antecipada dos custos e benefícios, conquanto sem negar a eventual ocorrência precipitante da impulsividade ou factores patológicos, no cerne desta perspectiva encontramos o apelo ao abandono da visão unitária e restritiva que foca unicamente o ofensor, convocandose para uma análise fenomenológica mais específica, e espacialmente orientada, que preste atenção não apenas ao criminoso, mas também à ocorrência criminal e elementos situacionais que a facilitam (Cornish & Clarke, 1986). Ao estabelecerem as bases teóricas essenciais à compreensão do processo de decisão do indivíduo que decide cometer um crime específico num momento e espaço particular, os dois teoristas desenvolvem assim uma perspectiva com grande potencial para a formulação de estratégias preventivas que visem frustrar a acção do virtual 21 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa criminoso (Adler et al, 2004). Com efeito, o modelo da escolha racional usufrui de grande relevância para as estratégias de prevenção situacional do crime, concebidas com o intento de limitar as oportunidades para o crime (Clarke & Felson, 1998). A prevenção é alcançada por via da intervenção que dificulta ou inviabiliza a prática do crime, ou que o torna arriscado ou pouco recompensante, repercutindo-se em alterações a nível do processo de tomada de decisão do virtual ofensor, o qual tem a percepção das potenciais consequências ou punições acarretadas pela violação da lei (Crawford, 2007; Gül, 2009). Embora os resultados produzidos pelo teste experimental da perspectiva da escolha racional sejam largamente ambíguos e controversos (Tunnel, 1990, 1992, Haan & Vos, 2003 cit. in Akers & Sellers, 2009), o modelo é empiricamente corroborável na suposição de níveis limitados de racionalidade criminal (ibidem). 1.1.2. Teoria das actividades rotineiras A abordagem das actividades rotineiras é um modelo ambiental de macro-escala que surgiu originalmente como paradigma explicativo dos crimes predatórios e da sua dispersão espácio-temporal, sendo os crimes predatórios entendidos como actos ilícitos deliberados contra a pessoa ou a propriedade alheia, pressupondo interacção ou contacto físico entre o agressor e o alvo. Este modelo tem por objectivo formal distinguir a origem das oportunidades criminais e compreender os padrões de crime (Cohen & Felson, 1979). Partindo do estudo compreensivo do crescimento substancial das taxas de criminalidade nos Estados Unidos posteriormente à segunda guerra mundial, Cohen e Felson argumentaram em 1979 que este fenómeno era resultado de uma transformação social e cultural que acarretou em significativas alterações das actividades de rotina da população, com efeito nas oportunidades para o crime. Baseando-se neste entendimento, propuseram um teorema orgânico do crime como hipótese central do seu modelo, nos termos do qual, para que um crime se materialize é necessário verificar-se uma convergência espácio-temporal de dois elementos, articulada da inexistência de um terceiro elemento (ibidem): 22 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Um potencial ofensor motivado para cometer o crime; Um alvo/vítima adequado; e (…) Ausência de um guardião capaz ou de uma autoridade eficiente. Deste modo, em tese, a probabilidade de um crime ocorrer num dado momento e local pode ser indicada em função da confluência de um provável ofensor e de um alvo apropriado, na ausência de guardiões capazes de o prevenir (ibidem). Estas três condições são necessárias e imperativas, embora possam por si não ser suficientes para que o delito se constate. Aquiescendo isto, Cohen e Felson admitem que o evento criminal estará também dependente do balanço custo-benefício feito pelo eventual ofensor (Newburn, 2007; Donovan e Prestemon, 2012). Por outro lado, um corolário deste teorema criminológico é que a ausência de qualquer um dos três elementos será suficiente para prevenir a ocorrência efectiva de uma ofensa criminal (Newburn, 2007). Os autores da teoria fornecem na sua publicação original explicações para cada um dos elementos: o potencial ofensor poderá ser qualquer pessoa com inclinação criminal (encarada como um dado adquirido) e com capacidade e motivação para exercer essa inclinação; aquilo que é entendido como alvo adequado poderá ser uma pessoa, ou uma propriedade (e.g. um carro, uma carteira, um objecto de valor), e a sua adequabilidade é determinada por quatro critérios, sendo eles o valor (o preço objectivo de algo; o grau de desejabilidade material ou simbólica de um alvo), a visibilidade (a notoriedade e perceptibilidade do alvo), a acessibilidade (facilidade de acesso ao alvo), e a inércia (características ou qualidades do alvo que oferecem resistência à perpetração criminal bem sucedida, como o peso, o tamanho, ou mecanismos físicos de segurança, no caso de propriedade, e a capacidade de resistir fisicamente ao ofensor, no caso de pessoas); por fim, os guardiões capazes não serão somente as figuras de autoridade formal, mas fundamentalmente os cidadãos comuns que partilham a rua com o eventual alvo e exercem alguma forma de vigilância informal e dissuasora do crime, especialmente pessoas conhecidas. A supervisão dos guardiões é por isso frequentemente inadvertida, embora tenha um impacto tremendo na criminalidade, pois a sua ausência torna o alvo particularmente vulnerável (Cohen & Felson, 1979; Felson, 2000). Ulteriormente, Felson (1998) derivou com base em pesquisa empírica um novo conceito que incorporou na química do crime postulada antes, o controlador pessoal ou 23 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa específico, uma pessoa com afinidade próxima com o virtual ofensor, e que o supervisiona e controla as suas actividades (Adler et al, 2004; Felson, 2008). A perspectiva das actividades rotineiras realça a importância das actividades quotidianas dos ofensores e dos alvos, ou seja, dos hábitos rotineiros prevalentes como empreendimentos laborais, ocupações recreativas, interacção social, afazeres comerciais, entre outros. São particularmente relevantes porque se tratam de dinâmicas sociais que permitem a intersecção dos potenciais ofensores com os potenciais alvos ou vítimas (Cohen & Felson, 1979; Adler et al, 2004), ou, tal como Felson expressa (2000), porque é mediante toda a organização e funcionamento sociocomunitário de macroescala que se produzem micro-situações de convergência mais ou menos propícias ao crime. Assim, alterações estruturais dos padrões de actividades rotineiras influenciam a convergência dos três elementos fundamentais, e por conseguinte afectam as taxas de criminalidade ao reduzir ou aumentar as oportunidades para a prática do crime predatório. Cohen e Felson extrapolaram que a transformação dos hábitos rotineiros seria um factor independente, pelo que teria implicações na probabilidade da incidência criminal mesmo que a proporção de ofensores motivados e alvos adequados se mantivesse estável numa dada comunidade (Cohen & Felson, 1979). Este modelo teórico teve uma repercussão académica relevante, pois ofereceu uma explicação persuasiva e adequada para vários fenómenos, tais como a existência de hot spots criminais (zonas de elevada e desproporcional concentração do crime), as taxas de vitimização de crimes específicos, e a taxa de homicídios urbanos (Adler et al, 2004). Apesar de não ter ser completamente testado empiricamente, encontra suporte científico de inúmeros estudos conduzidos até ao momento (Sherman, Gartin & Buerger, 1989; Messner & Tardiff, 1985, Kennedy & Forde, 1989 cit. in. Akers & Sellers 2009). 1.2. Modelos criminológicos de incivilidade Na óptica criminológica, as incivilidades são problemáticas de desviância e desordem pública, constituindo indicadores sociais e físicos de degradação e anomia comunitária com implicações graves para o bem-estar e sensação de segurança dos residentes urbanos e transeuntes. Neste largo espectro de inurbanidades podemos incluir condutas desordeiras (e.g. brigas), actos de delinquência (e.g. vandalismo, destruição de propriedade), comportamentos desviantes (e.g. uso público de drogas, embriaguez 24 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa pública) e deficiências de manutenção (e.g. casas devolutas, carros abandonados, acumulações de lixo em espaço urbano). Os modelos de incivilidade consistem de uma série de abordagens teóricas exploratórias que buscam compreender o impacto que as incivilidades têm na orgânica e funcionamento comunitário, estabelecendo a sua conexão com a criminalidade e as reacções sociais ao crime (Taylor, 1999). 1.2.1. Broken Windows4 Decorria o ano 1969 quando Philip Zimbardo, um psicólogo e académico da universidade de Stanford, concretizou uma experiência inovadora com vista a testar o efeito sociológico de actos de vandalismo. Dispondo dois automóveis simuladamente abandonados em localidades diferentes, o primeiro estacionado numa rua de Nova Iorque, e o segundo numa rua de Palo Alto, Califórnia, ambos sem chapas de matrícula e com o capô aberto, o investigador observou a reacção social à presença dos carros. No primeiro cenário registou-se um ataque de predação ao automóvel num espaço de dez minutos após o “abandono”, perpetrado por uma família que se aproximou do veículo e furtou o radiador e a bateria. A este acto de pilhagem seguiram-se outros, e num prazo de vinte e quatro horas, praticamente todos os objectos e componentes de valor tinham sido saqueados. Posteriormente o investigador testemunhou actos aleatórios e sucessivos de vandalismo (e.g. fragmentação de janelas, devastação da estrutura), e a apropriação do carro por crianças e adolescentes como espaço recreativo. Relevantemente, verificou-se que a maioria dos perpetradores adultos eram indivíduos caucasianos bem vestidos e aparentavam nível socio-económico médio. Já no contexto de Palo Alto o carro permaneceu intocado por mais de uma semana, estimulando assim a intervenção catalisadora de Zimbardo, que deliberadamente vandalizou o carro com uma marreta. Esta acção imediatamente produziu réplicas, convidando outros transeuntes a também vandalizar o carro. Em poucas horas o investigador constatou que o carro tinha sido completamente devastado. Verificou-se assim mediante esta experiência que a propriedade devoluta e negligenciada se torna num alvo legítimo de pilhagem e vandalismo, cometida inclusive por cidadãos que normalmente cumprem a lei (Wilson & Kelling, 1982). 4 “Janelas partidas” na tradução literal para português. 25 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Inspirando-se nesta experiência, Wilson e Kelling apresentaram o modelo teórico ‘Broken Windows’ em 1982 num esforço de relacionar o crime com a desordem pública, assim efectivamente postulando que estes dois elementos se encontram intrincadamente ligados numa sequência expressiva de desenvolvimento urbano. Sucintamente, a teoria sugere que os criminosos são atraídos a locais urbanos que exibam elevada desordem e vestígios de vandalismo, na medida em que estes indícios visuais sugerem um fraco controlo formal e apatia comunitária (Wilson & Kelling, 1982). Em seu cerne reside o pressuposto de que a manutenção da ordem prevenirá o vandalismo e subsequente escalamento em crimes mais graves (Newburn, 2007). Os teoristas evocam as janelas partidas dos carros utilizados na experiência de Zimbardo como uma metáfora da ausência de ordem e controlo, interpretando-as figurativamente como um sinal primário de incivilidade e desordem que desencadeará um processo em espiral de decadência urbana, possivelmente conduzindo à falência do controlo e segurança comunitária caso não seja contido, e subsequentemente a eventuais formas de criminalidade mais graves (Wilson & Kelling, 1982; Crawford, 2007; Newburn, 2007). A lista de indícios de desordem ou incivilidades que podem ser observadas é no entanto exaustiva e transcende a metafórica “janela partida”, podendo ir do vandalismo, grafitis ilegais, prostituição, comportamento arruaceiro, embriaguez pública, presença de gangues, amontoamento de lixo, casas desabitadas, à deterioração física da infraestrutura urbana (Skogan, 2008), todos eles fomentando quer individualmente como em conjunção mais desordem e comportamentos desviantes. Assiste-se assim a um processo gradual de declínio em escalamento, exemplificado através da seguinte narrativa (Wilson & Kelling, 1982, p. 3): A piece of property is abandoned, weeds grow up, a window is smashed. Adults stop scolding growdy children; the children, emboldened, become more rowdy. Families move out, unattached adult move in. Teenagers gather in front of the corner store. The merchant asks them to move; they refuse. Fights occur. Litter accumulates. People start drinking in front of the grocery; in time, an inebriate slumps to the sidewalk and is allowed to sleep it off. Pedestrians are approached by panhandlers 5. 5 Uma propriedade é abandonada, as ervas daninhas crescem, uma janela é partida. Os adultos deixam de repreender as crianças desordeiras; as crianças, encorajadas pela indiferença, tornam-se mais ousadas e conflituosas. Famílias abandonam a vizinhança, e no seu lugar entram indivíduos desapegados à 26 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Uma “janela partida”, ou qualquer outro vestígio de incivilidade isolado, não são relevantes per si, visto que acontecem vulgarmente em qualquer sítio da cidade. Todavia, quando essa “janela partida” não é reparada, os residentes locais interpretarlha-ão como um sinal de indiferença social, de que ninguém se importa, intuindo um aumento da desordem pública e enfraquecimento do controlo informal. Na semiótica comunitária, a sua persistência transforma-se num símbolo de que o bairro é inseguro e desprotegido, e de que os residentes já não exercem um controlo eficaz de conformidade à norma sobre o comportamento público. Consequentemente, quando estes sinais não são rapidamente e eficazmente debelados, produzem-se respostas sociais como o medo de vitimização e retraimento comunitário; os habitantes perdem a confiança nas figuras de autoridade, ficam preocupados com a sua segurança e passam a evitar-se, tornandose relutantes em usar os espaços públicos ou intervir em situações desordeiras, ultimamente conduzindo à fragmentação do controlo social (Wilson & Kelling, 1982; Taylor, 1999). O medo do crime, ou receio de vitimização, é portanto um dos elementos teóricos fundamentais do modelo “Broken Windows”, tal como esclarece Ranasinghe (2011), uma vez que medeia a relação entre a desordem e crime, podendo considerar-se um vector intermediário. A desordem pública é problemática e criminógena porque produz medo, o qual exponencia em função da percepção crescente de desordem. Assim, à medida que as pessoas percebem indicadores ambientais e sociais de desordem que sugerem-lhes o risco de criminalidade, o sentimento de insegurança e o receio de ser vitimizado aumenta (Jackson, 2004, Farral, Jackson & Gray, 2009 cit. in Jackson et al 2010). Este receio, tal como referido atrás, induz as pessoas a evitarem-se e retraíremse, ou seja, provoca mudanças nas actividades de rotina dos residentes, que se mostram impotentes para intervir, inevitavelmente conduzindo ao enfraquecimento dos controlos informais e da coesão comunitária (Wilson & Kelling, 1982; Hale, 1996). Assim, e em intersecção com a teoria das actividades rotineiras de Cohen e Felson, os guardiões naturais tornam-se escassos e ineficazes (Taylor, 1999). comunidade. Grupos de adolescentes problemáticos reúnem-se diante de uma loja. O comerciante convida-os a abandonar o local mas eles recusam. Brigas ocorrerem. O lixo acumula-se na rua. Pessoas começam a embebedar-se frente a uma mercearia. Em pouco tempo encontramos indivíduos embriagados a dormir num passeio. Os peões são abordados por mendigos assediadores. 27 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Os potenciais ofensores modificarão também o seu comportamento concordantemente. Os indícios físicos persistentes de incivilidade comunicam-lhes que os residentes perderam o controlo eficiente da vizinhança, e que por receio ou indiferença não intervirão na actividade criminal. Ao perceberem a baixa probabilidade de serem intimados ou detidos num local onde as vítimas se encontram já retraídas e intimidadas pelas condições prevalentes, os ofensores sentem-se encorajados e desinibidos. Assim, a desordem e sinais de incivilidade aparecem-lhes como oportunidades para a delinquência prolífica e incontrolada (Wilson & Kelling, 1982; Kelling & Coles, 1996; Taylor, 1999). Mediante um mecanismo de feedback interdependente, residentes e potenciais criminosos adaptam-se ao comportamento uns dos outros. Com o aumento da desenvoltura e confiança dos ofensores, a apreensão e insegurança dos residentes também aumenta. Nesta altura a zona torna-se vulnerável e é provável que o crime floresça e se torne progressivamente mais radicado e violento (Wilson & Kelling, 1982). Deste modo, Wilson e Kelling argumentam que o vandalismo e crime podem ocorrer em qualquer local onde a persistência de vestígios de desordem, sinalizadores de apatia, rompem o contrato social de civilidade e respeito mútuo. Um bairro ou quarteirão estável e seguro com famílias responsáveis e moralmente honestas poderá converter-se num espaço inseguro e vulnerável à criminalidade no espaço de poucos meses ou anos (Wilson & Kelling, 1982). A prevenção, de acordo com os autores, é conseguida por meio da intervenção precoce, quando a ordem pública ainda não foi afectada irremediavelmente. Reparandose prontamente as “janelas partidas” é possível travar-se a espiral de declínio e evitar que outras “janelas partidas” ocorram, e proliferem. Reprimindo-se as formas mais triviais de criminalidade evita-se a ocorrência de crimes mais graves. Por outras palavras, a chave da solução reside na manutenção da ordem física e policiamento de incivilidades e outras formas primárias de criminalidade. Apenas assim se garantirá a robustez do controlo social natural e a preservação do compromisso moral comunitário (Wilson & Kelling, 1982; Crawford, 2007). Subentendido nesta proposta de prevenção, identifica-se a função crucial desempenhada pelas polícias ou forças de segurança na manutenção da ordem pública, através do reforço dos mecanismos de controlo informal da comunidade. Com efeito, 28 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa apesar de Wilson e Kelling atribuírem um papel fundamental aos cidadãos e ao insubstituível controlo informal exercido por estes sobre o comportamento ilícito, reconhecem que a polícia é a chave do problema. Mais precisamente poderíamos dizer que existe uma complementaridade entre a instância formal e a instância informal de controlo social, em que uma não poderá operar eficientemente na ausência da outra. Uma comunidade, mesmo que organizada e coesa, não consegue manter a ordem quando não é sentida a presença de uma autoridade formal, pela razão de que o cidadão comum não possui argumento plausível para assumir directa responsabilidade de intervenção diante de um acto de delinquência, e por isso poderá isentar-se dessa mesma responsabilidade que cabe oficialmente aos agentes de autoridade. A polícia, por outro lado, nunca poderá exercer um controlo omnipresente das ruas, nem preencher totalmente o papel dos cidadãos em reprimir informalmente a desviância sem empenhar recursos extraordinários (Wilson & Kelling, 1982). A perspectiva “Broken Windows” estabelece que os efeitos criminógenos da desordem resultam de um declínio contínuo do controlo social informal, podendo assim dar origem à prosperidade criminosa (Taylor, 1999). Contudo, a hipótese de que a desordem promove directamente o crime e os dois fenómenos estão causalmente relacionados carece de suporte empírico (Crawford, 2007). A relação pois, não é causal ou directa, mas envolve vários factores mediadores. Consistentemente, várias investigações científicas apuraram que a ocorrência de incivilidades e desordem pública estava relacionada com a diminuição da eficácia colectiva da comunidade, o enfraquecimento dos vínculos sociais e confiança mútua, percepções exageradas dos níveis de criminalidade e da probabilidade de vitimização, e o receio generalizado de vitimização (Taylor, Shumaker & Gottfredson, 1985 cit. in Perkins & Taylor 1996; Skogan, 2008; Ferraro, 1995 cit. in Jackson et al 2010), circunstâncias que, por sua vez, aumentam a vulnerabilidade ao crime (Sampson & Groves, 1989, Bellair, 1997, Warner & Rountree, 1997 cit. in Brown et al 2004). Corroborando também esta relação mediada, outros estudos observaram que a comparação entre os indícios de incivilidades e as estatísticas oficiais da criminalidade para uma dada localidade indica uma conexão consistente entre a desordem e formas variadas de crime (Taylor, Shumaker & Gottfredson, 1985, Sampson & Raudenbush, 1999, Taylor, 2001, Perkins et al, 1993, Kurtz, Koons & Taylor, 1998 cit. in Brown et al 2004; Wei et al 2005). 29 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Todavia, de maior relevância para a teoria são, porventura, estudos recentes conduzidos em Massachusetts (2005) e na Holanda (2007, 2008). Num estudo de hot spots (pontos quentes) de criminalidade em Lowell, Massachusetts, investigadores apuraram que a manutenção activa da ordem física de um local, por contraste ao serviço rotineiro e convencional de policiamento, produziu uma redução em 20% das denúncias de crime feitas à polícia, respectivas ao local (Braga & Bond, 2008). Oferecendo também importante suporte empírico ao modelo, um estudo experimental na Holanda chegou à conclusão de que a existência de sinais de desordem (e.g. acumulação de lixo, grafittis, janelas partidas) num ambiente específico promove mais actos desordeiros e a incidência do crime (Keizer, Linderberg & Steg, 2008). Não obstante, convém recordar que não existe consensualidade no que toca à solidez empírica da teoria, contestada por teóricos como Sampson e Raudenbusch (1999), que com base num estudo argumentaram que a desordem e crime possuem uma relação fraca, e que ambos derivam na realidade da falta de eficácia colectiva, isto é, da pobre coesão comunitária e falência do controlo social informal (Crawford, 2007). 1.3. Modelos ambientais preventivos da criminalidade Na década de 1970 e subsequentes observa-se o desenvolvimento de um novo e inovador corpo teórico de prevenção do crime do tipo situacional. Reportando-se ao ambiente mais imediato em que actuam potenciais ofensores e vítimas, a premissa fundamental desta modalidade de prevenção criminal é que os comportamentos desviantes e criminosos são amplamente influenciados pelo contexto situacional e factores ambientais, podendo assim ser reprimidos mediante a manipulação ambiental que reduza as oportunidades para o crime. O crime é pois encarado transversalmente como um fenómeno inevitável, que pode ser gerido mais eficazmente se a intervenção concentrar-se no meio, ao invés do ofensor, procurando regular-se a expressão delinquente dos indivíduos por oposição a suprimir a sua inclinação (Cornish, 1994; Newburn, 2007; Despard, 2012). Estas abordagens são pragmáticas e assentam numa panóplia de técnicas que os munem de instrumentalidade, visando prevenir, dificultar ou impedir a actividade criminal. Isto é alcançado através de métodos de manipulação do ambiente que aumentam os riscos/esforços e reduzem as recompensas associadas ao acto criminoso, reduzindo assim a probabilidade da sua ocorrência (Clarke, 1997). Os modelos de prevenção ambiental mais relevantes que serão discutidos doravante de 30 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa forma abreviada são o da ‘Crime Prevention Through Environmental Design’6 (1971), a ‘Defensible Space Theory’7 (1972). Optou-se por utilizar as designações originais inglesas uma vez que os modelos são largamente omitidos na literatura criminológica portuguesa e não existem termos oficiais de tradução. A abordagem ‘Crime Prevention Through Environmental Design’ (CPTED), ou Prevenção do crime através do Design Ambiental, foi formulada originalmente pelo criminólogo estadunidense C. Ray Jeffery no ano de 1971, inspirando-se vagamente no trabalho de Jane Jacobs. Com base num estudo de correlação entre o crime e o desenho urbano, o autor apresentou um modelo de prevenção criminal concretizada através da gestão e modelagem do ambiente físico por meios naturais, mecânicos, ou processuais que reduzam as oportunidades para o crime e provoquem alterações na dinâmica social – desencorajando o comportamento criminoso, reduzindo o receio de vitimização, e estimulando o uso legítimo e apropriado do espaço público (Cozens, 2002, 2007; Paynich & Hill, 2010; Marzbali et al, 2011). O modelo obedece, à semelhança de outras abordagens aparentadas, a três pressupostos que lhe conferem fundamento: primeiro, a suposição de que a maioria das ocorrências criminais são a consubstanciação de situações de oportunidade criadas pelo ambiente; em segundo, o argumento clássico de que os ofensores fazem escolhas racionais levando em consideração os custos e recompensas do acto criminoso; e por fim, a premissa de que o crime pode ser facilitado ou inibido por características do ambiente físico (Clarke, 1995 cit. in Adler & Laufer, 1999; Cozens, 2002; Marzbali et al, 2011). Desde então a abordagem CPTED foi sujeita a várias revisões, tendo-se constituído um corpo criminológico multidisciplinar de intervenção prática com ramificações económicas e sociológicas (Cozens, 2002, 2005), aprofundado pelo trabalho de Newman (1972, 1996) e Crowe (2000). Contudo, na sua essência identificam-se quatro estratégias que se inter-complementam: Vigilância natural – uso ponderado de variados engenhos e recursos com o propósito de maximizar a vigilância informal realizada pelos residentes, 6 Prevenção do crime através do design ambiental. 7 Teoria do Espaço defensível. 31 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa simultaneamente aumentando a percepção de risco de detecção dos eventuais ofensores, deste modo desencorajando a prática do crime. As técnicas de vigilância são diversas, e podem classificar-se como naturais (e.g. janelas, vegetação podada e visualmente permeável, remoção de obstáculos que bloqueiem linha de visão) e mecânicas (e.g. iluminação artificial) (Cozens, 2002; Crowe & Fennelly, 2013). Controlo de acesso natural – ambicionando reduzir as oportunidades para o crime, o objectivo destas estratégias é controlar o acesso a zonas específicas, encorajando a sua utilização exclusiva por utentes legítimos que aí são permitidos, e negando o ingresso de indivíduos indesejados. Pode-se referir o uso inteligente de elementos que dirijam o fluxo de pedestres e veículos, como pórticos de entrada, cercas, portões, arbustos, pavimentos, iluminação, sinalização de restrição, etc (Crowe & Zahm, 1994; Cozens, 2002; Crowe & Fennelly, 2013). Reforço da territorialidade – assumindo que as pessoas defendem naturalmente um território a que se sentem conectados, acções de design visam promover o sentido de territorialidade e pertença a uma zona mediante a delimitação dos espaços públicos e privados e criação de uma esfera de influência territorial, deste modo fortalecendo o controlo social exercido sobre intrusos que contrastam entre residentes bem familiarizados entre si. Isto é alcançado por meio de uso de elementos que expressem propriedade e desencorajem a sua ocupação por estranhos, tais como cercas, sebes, jardins ornamentais, passeios, alpendres, pórticos, e outros elementos paisagísticos que denotem manutenção activa (Cozens, 2002; Crowe, 2000, Parnaby, 2007 cit. in Marzbali et al, 2011; Crowe & Fennelly, 2013). Manutenção – considerada ambiguamente quer como uma estratégia ou um factor decisivo que assegura a eficácia das restantes estratégias, a manutenção é enfatizada como crucial ao sucesso geral das intervenções, particularmente contribuindo para o reforço da territorialidade. Admitindo que a dilapidação e desordem ambiental fomentam a anomia social e sinalizam um ineficaz controlo social, o cuidado e manutenção da qualidade padronizada de um espaço revelamse essenciais a preservar a funcionalidade dos elementos paisagísticos (Cozens, 2002; Crowe & Fennelly, 2013). 32 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa A abordagem CPTED preconiza uma inovadora aplicação utilitária da vegetação urbana na manutenção da ordem pública e promoção da segurança. A leitura bibliográfica sugere diversas formas, funcionais ou simbólicas, de como a vegetação poderá ser implicada no design ambiental: Como uma barreira simbólica, assinalando a transição entre zonas públicas e privadas (Gardner, 1981). Como uma barreira física, impedindo o acesso a zonas específicas do domínio privado, mediante o uso de sebes ou arbustos espinhosos (ibidem). Como um elemento embelezador da paisagem que estimula a utilização do espaço público e a interacção social, e por conseguinte fomenta a vigilância informal, deste modo fortalecendo a segurança comunitária (Sullivan & Kuo, 1996 cit. in Nowak & Dwyer 2007; Coley et al, 1997; Kuo, Bacaicoa & Sullivan, 1998; Sullivan, Coley & Brunson, 1998; Kuo, 2003; Kuo & Sullivan, 2001a; Sullivan, Kuo & DePooter, 2004). Como um elemento condicionador (e.g. sebes, canteiros de flores) que incentiva as pessoas a seguir um determinado curso ou a adaptar o comportamento às directivas de um local específico (Crowe, 2000 cit. in Despard 2012). Como um elemento paisagístico que quando bem cuidado e preservado induz a percepção de segurança e ordem nos residentes, contribuindo para o seu bem-estar e satisfação, e simultaneamente reforçando o sentimento de territorialidade e comunidade (Schroeder & Anderson, 1984; Kaplan, 2001 cit. in Westphal 2003; Kuo & Sullivan, 2001a; Kuo, 2003; Shehata, 2012). Importa notar que a simples presença do arvoredo urbano é recomendada pelas abordagens CPTED, mesmo quando não desempenha uma função óbvia. Todavia, tendo em conta o paradoxal efeito criminógeno que ocorre em determinadas situações, são formuladas de forma relativamente consensual directrizes que visam garantir que a sua presença não afecta a permeabilidade visual nem compromete o exercício eficaz de vigilância natural. Teóricos sugerem pois que as plantas sejam escolhidas em função das suas características naturais como o tamanho − é proposto na literatura que os arbustos não devam ter uma altura superior a 90cms e as árvores estejam limitadas na sua copa por uma altura mínima de 240cms, mantendo assim um plano médio de visibilidade à escala humana −, a taxa de crescimento e a configuração estrutural. Adicionalmente realça-se a importância do arranjo de disposição – desaconselhando-se o agrupamento 33 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa próximo de árvores −, e também a sua localização em relação a infraestruturas urbanas (Gardner, 1981; Despard, 2012). O modelo “Defensible Space” (DS), ou Espaço Defensível, possui afinidade estreita com a abordagem CPTED, embora tenha um escopo mais restrito que se circunscreve a áreas residenciais (Crawford, 2007). Partindo de pressupostos semelhantes aos do CPTED, o autor Oscar Newman argumenta na sua obra (1972) que o perfil arquitectónico de um espaço físico pode ser projectado de modo a optimizar a vigilância natural e reduzir as possibilidades para o crime, ao mesmo tempo fomentando o sentimento latente de territorialidade e de compromisso comunitário entre os habitantes. O objectivo é forjar um espaço defensível, isto é, um nicho social com que os residentes se identifiquem, levando-os a adquirir um sentido de responsabilidade em exercer vigia e manter a segurança. Um controlo social mais robusto corresponderia então a um aumento do risco de detecção para os intrusos, possivelmente conduzindo à redução do crime (Kuo, 2003; Adler et al, 2004; Crawford, 2007; Carrabine, 2009; Paynich & Hill, 2010). Em termos práticos, isto seria conseguido através de variados engenhos que maximizassem a permeabilidade visual (e.g. janelas com vista para as ruas; iluminação artificial; proximidade das edificações) e também o uso comum da rua (e.g. espaço recreativo) (Kuo, 2003; Paynich & Hill, 2010; Vivan & Saboya, 2012), para além de uma manutenção activa do espaço que preservasse o valor da comunidade e sugerisse a probabilidade elevada de detecção mesmo na ausência aparente de pessoas, um conceito que é designado por Newman como vigilância implícita (Kuo & Sullivan, 2001; Paynich & Hill, 2010). Kuo (2003) discute de que modo a vegetação poderia ser enquadrada na abordagem “Defensible Space”. Apesar de Newman não formular especificamente aplicações para a flora urbana no seu modelo teórico original, as suas proposições têm claras implicações nesse sentido, de acordo com Kuo (ibidem). Uma das premissas centrais do modelo DS é que o design arquitectónico de um espaço influirá nas dinâmicas de interacção entre residentes e de vigilância informal, que por sua vez estão relacionadas com a coesão comunitária. Sabendo-se com base em múltiplos estudos que a vegetação promove a utilização comum dos espaços públicos urbanos e a interacção social (e.g. Sullivan, Coley & Brunson, 1998; Kuo, 2003; Sullivan, Kuo & DePooter, 2004), então esta poderá desempenhar um papel fundamental em fortalecer uma comunidade residencial, contribuindo de forma relevante para a prevenção criminal (Kuo, 2003). 34 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa CAPÍTULO II: PSICOLOGIA AMBIENTAL A psicologia ambiental é um ramo da psicologia que, ao contrário da psicologia tradicional focada nas populações, indivíduos, e nos processos psicológicos, dirige o seu enfoque ao ambiente, mais propriamente à interacção entre os indivíduos e os seus contextos físicos. O estudo desta interacção revela importantes dinâmicas em que os indivíduos modificam o ambiente em que actuam, e o ambiente por sua vez molda o comportamento e experiências dos indivíduos, sendo estas repercussões mútuas objecto de interesse e análise teórica, votada à compreensão de como a relação entre o Homem e o ambiente pode ser optimizada. O elemento ambiente resiste a uma conceptualização concreta, podendo considerar-se quer micro como macro escalas, e entender-se-lo na sua forma física ou conceptual, englobando os ambientes naturais, ambientes artificiais (antrópicos) e contextos sócio-ambientais (Kaplan & Kaplan, 2008; Gifford et al, 2011) Um dos sectores de análise da criminologia ambiental é a interacção entre os humanos e a natureza, sendo ela discutida de seguida. 2.1. Ambientes restaurativos Vivemos num mundo densamente urbanizado, em que 75% da população dos países desenvolvidos reside nas grandes urbes (Habitat, 2001 cit. in Grahn & Stigsdotter 2010). Confluem nestes espaços influências antagónicas que afectam a vida dos seus ocupantes; por um lado encontramos diversas amenidades e confortos que aí atraíram as pessoas, mas também agitação, multidões, tráfego intenso, poluição, ruídos agressivos, e criminalidade. Como resultado, estes habitantes das cidades modernas são assolados pelo bem documentado flagelo do stress, com repercussões de grande magnitude para a saúde pública, física e psicológica (Evans & Cohen, 1987 cit. in Ulrich et al 1991; Van den Berg et al, 2007). Convém, no entanto, discutir o conceito. O stress per si não é mórbido, mas sim uma reacção orgânica que acompanhou os humanos ao longo do seu percurso evolutivo, contribuindo de forma fulcral para a sua sobrevivência em meios naturais. Perante um estímulo de perigo ou a percepção de uma ameaça, o nosso organismo produz diversas respostas fisiológicas como o aumento da tensão muscular, o aumento do ritmo cardíaco 35 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa e da pressão arterial, a redução da função gastrointestinal, a secreção de adrenalina e cortisol, e a inibição da produção de melatonina. Isto constitui uma reacção de stress que predispõe o nosso corpo para uma luta ou para a fuga, aumentando a nossa aptidão física e acuidade sensorial. Originalmente, para as populações humanas ancestrais, o stress não só era funcional, como também fundamental. Consistia de um mecanismo de adaptação natural do nosso organismo aos ambientes naturais, servindo um propósito biológico bem definido (Atkinson et al, 1996 cit. in Grahn & Stigsdotter 2010; Grahn & Stigsdotter, 2003). O stress dos dias modernos, porém, carece da mesma funcionalidade de outrora. Vivemos em ambientes urbanos controlados onde raramente somos confrontados com ameaças físicas efectivas, e em que o stress opera frequentemente em situações de frustração ou impotência, quando há uma desarmonia entre as nossas capacidades e aquilo que nos é exigido da sociedade, induzindo as mesmas reacções de fuga ou luta que os nossos antepassados experienciavam. Como estas respostas fisiológicas já não têm a mesma utilidade biológica, tornam-se patológicas (Grahn & Stigsdotter, 2003, 2010). Segundo Kaplan (1992), fenómenos como o progresso industrial e tecnológico, o florescimento do conhecimento, e a explosão demográfica, catalisaram o aumento das pressões com que as populações urbanas lidam, acarretando em patológicas condições de stress que conduzem à fadiga mental. A fadiga mental manifesta-se de variadas formas, nomeadamente por défices de concentração, dificuldade em planear e em tomar decisões, propensão para fazer escolhas arriscadas, irritação, agressão, e comportamento intolerante ou pouco cooperativo (ibidem). A exposição contínua ao stress também contribui significativamente para uma saúde precária, estando associada a várias doenças do foro psiquiátrico como a esquizofrenia, síndromes de ansiedade e depressão (Tsigos & Chrousos, 2002, Aldwin, 2007 cit. in Grahn & Stigsdotter 2010). Uma problemática tão grave quanto premente como o stress incentivou à pesquisa teórica de soluções sustentáveis, despontando assim propostas de condições e ambientes restaurativos que restituam o equilíbrio psíquico, emocional e fisiológico (Ulrich et al, 1991). Uma resposta eminente é enunciada por Kaplan & Kaplan (1989), que estabelecem a natureza ou os espaços naturais urbanos como um ambiente restaurativo do stress e fadiga mental, e promotor da saúde pública. A proposição não é completamente nova nem estranha, e está radicada numa tradição histórica de crenças culturais e experiências intuitivas que sugerem os benefícios psicológicos e físicos da 36 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa exposição aos elementos da natureza como as árvores e a água, remontando às descrições médicas das suas vantagens e a relatos apologéticos que datam da antiguidade (Ulrich & Parsons, 1990 cit. in Ulrich et al 1991). Porém, apesar do relato empírico consistente trajar-se de relevância e oferecer um importante insight, é num corpo de evidência científica emergente do campo da psicologia ambiental nas últimas décadas que se respalda esta proposição. Investigações precursoras em 1958 (Yogendra cit. in Maller et al 2005) constataram que a contemplação da natureza reduzia o fluxo circulatório e mitigava a actividade do sistema nervoso, produzindo relaxamento, e em 1979 (Furnass cit. in ibidem), que a experiência em contacto com a natureza restaurava as funções cognitivas e o equilíbrio neurofisiológico. No mesmo ano, um estudo de Ulrich (1979 cit. in Ulrich 1985) com estudantes que experienciavam stress averiguou que a apresentação de diapositivos com fotografias a cor de cenas naturais evocava consistentemente sentimentos positivos e reduzia a ansiedade e medo, ao passo que a projecção de cenários urbanos destituídos de elementos naturais agravava a ansiedade, de acordo com o auto-relato feito por questionário. Este estudo de Ulrich foi replicado por Honeyman (1990 cit. in Ulrich et al 1991), cujo estudo produziu os mesmos resultados, com a adição de ainda ter apurado que um espaço urbano com vegetação produzia um maior efeito recuperativo do que um cenário urbano equivalente desprovido de vegetação. Numa continuação dos estudos dos efeitos contrastantes da exposição a meios naturais e meios urbanos, Ulrich viria a aprimorar o design da sua investigação em 1981 (Ulrich 1985; Dwyer et al, 1991), em que os questionários de auto-relato foram complementados de medições fisiológicas, e outras unidades de análise foram introduzidas, como a presença de água. Novamente, os auto-relatos da exposição prolongada a cenários fotografados determinaram que as paisagens naturais induziam sentimentos mais positivos do que as suas contrapartes urbanas, para além de também captarem a atenção e interesse mais eficazmente. De maior relevância, contudo, e corroborando os relatos empíricos, é a constatação de que os indivíduos que tinham visualizado cenários com vegetação apresentavam vários indicadores de maior relaxamento psíquico do que aqueles que observavam cenários urbanos sem vegetação, tal como o ritmo cardíaco mais lento, pressão arterial mais baixa, e padrões de actividade eléctrica cerebral que registavam em predominância ondas de frequência alfa de elevada amplitude, as quais sugerem um estado mental de relaxamento. Em 1984, num estudo pioneiro com pacientes de um hospital que tinham sido submetidos a cirurgias semelhantes, verificou-se que os pacientes instalados em 37 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa quartos providos de janelas com vista para espaços verdes (i.e. arvoredo) experienciavam uma recuperação pós-cirúrgica mais rápida e favorável do que outros pacientes com vista para uma parede tijolada, tendendo não somente a estadias mais curtas no hospital até ao despacho de alta, como também a um menor número de complicações pós-cirúrgicas, avaliações de recuperação feitas por enfermeiros mais optimistas, e administração de menor quantidade de medicações narcóticas para controlo de dor (Ulrich, 1984). Ainda um outro estudo de Ulrich e associados (1991 cit. in Tzoulas et al 2007) registou o decréscimo da pressão arterial, actividade electrodérmica, e da tensão muscular em indivíduos que assistiram a vídeos com paisagens naturais após a indução de stress, por contraste a indivíduos expostos a ambientes artificiais. O desenho deste estudo foi replicado em 1998 com resultados consistentes, registando outrossim uma recuperação mais eficaz do stress posterior à visualização de paisagens naturais (Parsons et al, 1998), e por investigadores holandeses, reportando melhorias significativas ao nível do temperamento dos indivíduos expostos às paisagens naturais (Van den Berg et al, 2003). É importante notar que os resultados destes estudos sugerem que a mera observação ou experiência estética de elementos naturais possui por si efeitos restaurativos da ansiedade e stress. Todavia, outros estudos investigativos exploraram a mesma relação in situ, observando que a interacção com a natureza, nomeadamente em regime de passeio, produz efeitos recuperativos semelhantes, pautando-se também pelo acréscimo dos afectos positivos, e sistemáticas reduções da pressão arterial, em contraste com padrões contrários emergentes em ambientes artificiais urbanos (e.g. Hartig et al, 2003). Outros estudos explorando medidas fisiológicas por vias distintas produziram achados consistentes com a hipótese da natureza restaurativa, como a redução das concentrações de cortisol e decréscimo da pressão arterial e ritmo cardíaco promovidas pelo contacto com espaços florestais (Park et al, 2007, 2010 cit. in Thompson et al 2012), e ainda relações significativas entre os níveis de secreção diurna de cortisol (um indicador biológico de stress), a quantidade de espaços verdes existentes no ambiente de residência dos sujeitos, e níveis auto-relatados de stress (Thompson et al, 2012). Num outro ângulo de pesquisa, determinou-se também correlações estatisticamente relevantes entre o uso dos espaços verdes urbanos e experiências auto-relatadas de stress (Grahn & Stigsdotter, 2003), assim como menor incidência de sintomas relacionados com o stress em residentes com bom acesso a zonas verdes das cidades, por contraste àqueles que tinham acesso reduzido (Gidlöf-Gunnarsson & Öhrström, 2007). Existe 38 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa inclusive alguma evidência de que a experiência subjectiva de stress é moderada pela distância do local de residência aos espaços verdes urbanos, e que aqueles que vivem mais próximos são menos afligidos pelo stress urbano (Van den Berg et al, 2010). De modo relevante, um estudo recente de 2009 apurou que a proximidade e disponibilidade de espaços verdes estava associada uma menor taxa de morbilidade, particularmente atinente a desordens de ansiedade e depressão (Maas et al, 2009). Os efeitos psicofisiológicos restaurativos dos elementos naturais estão documentados noutra variedade de contextos, como o contexto laboral (Lohr, PearsonMims & Goodwin, 1996; Leather et al, 1998 cit. in Maller et al 2005), e ambientes presidiários (Moore, 1981 cit. in Maller et al 2005), e não se restringem meramente ao estímulo visual, sendo de igual modo despoletados pelo estímulo auditivo; com efeito, os ruídos urbanos são reconhecidos como potenciais indutores de stress e irritabilidade, e alguns estudos indicam que a exposição a sons naturais favorecem a recuperação do stress psicológico (e.g. Gidlöf-Gunnarsson e Öhrström, 2007; Alvarsson et al, 2010). Invertendo o foco de análise, as consequências da pobre exposição à natureza sustentam também a hipótese estabelecida. Com a progressiva urbanização e centralização das populações, o acesso à natureza depauperou-se, e há alguma evidência científica de que a vivência num ambiente plenamente antrópico e a excessiva estimulação artificial poderão provocar exaustão e perda de vitalidade (Katcher & Beck, 1987, Stilgoe, 2001 cit. in Maller et al 2005). Complementarmente concluiu-se também que o acesso restrito a espaços naturais pode aumentar a vulnerabilidade das pessoas à repercussão física e mental de eventos stressantes (Heady & Wearing, 1989, Ormel & Neeleman, 2000 cit. in Van den Berg et al 2010). As limitações metodológicas ou teóricas de alguns destes estudos referidos são discutidas por Evans (2003), e por Bowler e colaboradores (2010). Vale a pena também salientar os mecanismos envolvidos nos efeitos restaurativos da exposição a elementos naturais. São propostos na literatura científica quatro diferentes mecanismos, que por vezes operam sinergeticamente (Ulrich, 1999 cit. in Grinde & Patil 2009; Thompson et al, 2012). São eles: a actividade física inerente à experiência em contacto com a natureza (e.g. caminhada pelo parque), que está bem documentada como promotora da saúde física e psicológica (e.g. Penedo & Dahn, 2005 cit. in Thompson et al 2012); segundo, as experiências em espaços verdes propiciam frequentemente o contacto social, que tem também consabidos efeitos positivos sobre o 39 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa temperamento e níveis de stress (e.g. Heinrichs, Braumgartner, Kirschbaum & Ehlert cit. in ibidem); terceiro, a natureza é procurada intencionalmente por indivíduos que a percepcionam como relaxante e esteticamente atraente, e que oferece uma possibilidade escapista com efeitos terapêuticos, facilitando a recuperação da exigente rotina diária (e.g. Kaplan, 1995; Kaplan & Kaplan, 1999; Grahn & Stigsdotter, 2003); por fim, os efeitos psicológicos independentes da mera exposição aos elementos naturais (Grinde & Patil, 2009). 2.2. Modelos teóricos explicativos Várias explicações das propriedades restaurativas dos elementos naturais emergem de uma revisão da literatura, oferecendo importante compreensão das conclusões anteriormente citadas. A afinidade harmoniosa do Homem com os ambientes naturais é de modo óbvio decorrente do facto dos humanos terem ocupado espaços predominantemente naturais durante quase duas centenas de milhares de anos, e se adaptado a estes, ao passo que a vivência humana em contextos altamente urbanizados se circunscreve a um número comparavelmente diminuto de gerações (Maller et al, 2005). Curiosamente, e tal como proposto por Frumkin (2001 cit. in Ewert et al 2011), se os últimos dois milhões de anos da história evolutiva da nossa espécie fossem reduzidos à escala do tempo médio de vida humana, setenta anos, então o oitavo mês posterior ao sexagésimo nono aniversário (aos 69 anos e 8 meses) assinalaria a edificação das primeiras cidades. Uma importante perspectiva, formulada por vários autores, é a da que os efeitos restaurativos dos elementos naturais reflectem uma herança evolutiva, uma reminiscência de um processo evolutivo de vários milhões de anos em ambientes naturais (Ulrich et al, 1991; Van den Berg et al, 2007) Em tese, os humanos terão desenvolvido uma propensão genética para concentrar a atenção e responder positivamente a cenários naturais aos quais se adaptaram, e que eram favoráveis à sua sobrevivência (Kaplan & Kaplan, 1989; Ulrich et al, 1991; Kellert & Wilson, 1993 cit. in Van den Berg et al 2010). No passado dos nossos antepassados humanos prémodernos, a facilidade em ter-se a atenção captada por elementos naturais (e.g. vegetação, água) ou configurações ambientais vitais à sobrevivência, seja para alimentação, abrigo, ou orientação, e a compensação psicofisiológica associada, 40 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa contribuíam decisivamente para o papel adaptativo e sucesso da espécie (Orians & Heerwagen, 1986; Ulrich et al, 1991; Van den Berg et al, 2007). Assim, uma disposição para reagir optimamente aos contextos naturais terá sido legada às gerações modernas, que ainda a conservam, mas por outro lado, não existirá uma disposição semelhante em relação aos ambientes artificiais que habitamos por um tempo consideravelmente mais curto, e aos quais não estamos adaptados simbioticamente (Ulrich, 1993), o que explica em parte os resultados contrastantes da exposição aos dois tipos de envolventes. Outra variação explicativa da perspectiva evolutiva, sugere alternativamente que os elementos naturais são mais facilmente e eficazmente processados pela mente humana, uma vez que o nosso sistema neurológico e sensorial evoluiu em contextos naturais, ao passo que os ambientes urbanos para os quais carecemos de sintonização adaptativa colocam maior pressão e exigência sobre os nossos recursos cerebrais, podendo comprometer as nossas capacidade adaptativas, e dificultar a recuperação do stress (Stainbrook, 1968, Wohlwill, 1983 cit. in Ulrich et al 1991). Uma segunda perspectiva, postulada por Ulrich (1983 cit. in Ulrich et al 1991), é a teoria psico-evolutiva, frisando o modo como a exposição aos elementos naturais produz respostas emocionais involuntárias que oferecem alívio paliativo das reacções de stress e influenciam substancialmente os estados mentais e comportamento humano. De acordo com este prisma teórico, os cenários naturais podem evocar diferentes respostas adaptativas, consoante as suas características, que vão do stress e evasão, à recuperação fisiológica complementar. A reacção de stress ocorre quando somos confrontados com um estímulo que ameaça a nossa integridade e bem-estar (e.g. presença de cobras venenosas), despoletando o alerta fisiológico que produz estados emocionais negativos como o medo, para além de desgaste cognitivo e energético. Por outro lado, outros elementos naturais com papel fulcral na subsistência e segurança dos humanos prémodernos tinham o mérito de gerar fascínio, calma, e conforto, proporcionando efeitos recuperativos através da restituição do equilíbrio psicológico e transição para afectos ou emoções mais positivas. Deste modo, os humanos terão adquirido uma propensão biológica para respostas fisiologicamente terapêuticas a estímulos naturais não ameaçantes, algo que já não se observa em relação aos estímulos urbanos artificiais, muitos dos quais análogos aos estímulos ancestrais indutores de stress. Relacionada com a teoria psico-evolutiva, uma outra perspectiva teórica designada ‘Biofilia’ (Wilson, 1984, Kellert & Wilson, 1993 cit. in Grinde & Patil 2009) propõe que os humanos possuem uma disposição inerente para se afiliar com a natureza, 41 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa partindo do pressuposto que uma raiz genética das respostas positivas aos elementos naturais implica uma significância adaptativa, isto é, a sua importância na promoção da sobrevivência da espécie (Ulrich, 1993). Semelhantemente, os seus proponentes argumentam que os ambientes naturais estão associados quer a perigos como recompensas, podendo evocar respostas biofóbicas (evasivas), ou biofílicas (restaurativas), estas últimas consideradas fundamentais ao bem-estar psicológico humano (Kellert & Wilson, 1993 cit. in Ulrich 1993). Conceitos teóricos como ‘incompatibilidades’8 − desvios no estilo de vida a que estamos adaptados como espécie, e ‘dissonâncias’9 – tipos de incompatibilidades com impactos negativos no bem-estar (e.g. indutores de stress), são evocados para o objectivo de explicar a relação relativamente discordante do Homem com os ambientes artificiais (Grinde & Patil, 2009). Sem negarem-se os resultados benéficos de algumas ‘incompatibilidades’ que proporcionaram mais conforto ao Homem (por exemplo, dormir em colchões ao invés de no chão), a estimulação artificial excessiva e contacto deficitário com elementos naturais são hipotetizados como uma potencial ‘dissonância’ que reduz a qualidade de vida e aumenta a vulnerabilidade a doenças do foro mental (ibidem). Ainda um outro corpo teórico de perspectivas (Berlyne, 1971, Mehrabian & Russel, 1974 cit. in Ulrich et al 1991) conjectura que os estados fisiológicos de alerta (i.e. stress) estão associados a determinadas propriedades do ambiente, como a complexidade, a intensidade, e movimento, pelo que a recuperação de uma condição de stress ocorre mais eficazmente em contextos onde os níveis destes indicadores são mais baixos como em espaços naturais abertos que são tipicamente pouco complexos ou pouco caóticos, por comparação com os ambientes urbanos (Wohlwill, 1976 cit. in ibidem). 2.2.1. Teoria da restauração da atenção Por fim, discutir-se-á uma perspectiva cognitiva formulada por Kaplan & Kaplan (1989), a ‘Attention Restoration Theory’ (ART) ou Teoria da restauração da atenção. Esta abordagem está radicada no trabalho precursor de William James (1892 cit. in Kaplan 1992), um psicólogo americano que distinguiu entre dois tipos de atenção, a 8 ‘Mismatch’ 9 ‘Discord’ 42 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa atenção voluntária e a atenção involuntária. A atenção voluntária, também designada por atenção directa (Stuss & Benson, 1986 cit. in Kaplan 1992), é uma forma de concentração mental deliberada que implica um moderado a elevado esforço cognitivo, sendo utilizada frequentemente na realização de tarefas que requerem um processamento selectivo dos estímulos, como a resolução de problemas lógicos, planeamento, ou actividades complexas como conduzir um carro. Uma vez que este tipo de atenção é psiquicamente exigente e a capacidade das pessoas em manter a concentração mental é limitada, o seu uso prolongado desgasta os mecanismos neurológicos e torna a pessoa susceptível à fadiga mental (James, 1892 cit. in Kaplan 1992; Taylor, Kuo & Sullivan, 2001). O outro tipo de atenção, que James designou de involuntária, é evocada espontaneamente por elementos interessantes de um meio. Uma vez que a concentração psíquica em ambientes ou formas cativantes exige pouco ou nenhum esforço mental, esta forma de atenção é vantajosa para o indivíduo na medida em que não provoca fadiga mental. Com efeito, o exercício da atenção involuntária pode inclusive contribuir para a recuperação da fadiga mental causada pela atenção directa ou voluntária (James, 1982 cit. in Kaplan 1992; Taylor, Kuo & Sullivan, 2001). Na sociedade moderna, somos bombardeados de estímulos nas nossas rotinas e tarefas diárias que sobrecarregam os nossos sistemas neurológicos de processamento de informação, desde o tráfego, aos telefones, ruídos urbanos ou laborais, conversas, e tomadas de decisão complexas (Kaplan, 1995). A crescente exigência sobre a atenção directa obriga as pessoas a fazerem grandes esforços psíquicos, e com o decréscimo contínuo das oportunidades para o descanso, isso conduz inevitavelmente à fadiga mental, que se manifesta pela experiência de stress, irritabilidade, impaciência, incapacidade de concentração, dificuldade de planeamento, impulsividade, propensão para a distracção, e para tomar decisões arriscadas (Kaplan, 1992; Wells, 2000). Estes sintomas são conhecidos precursores psicológicos da violência (Kaplan, 1987 cit. in Wolfe & Mennis 2012), pelo que podem incentivar à agressão em casos extremos, ou também (Kaplan, 1992) conduzir a outros comportamentos disruptivos como o consumo excessivo de álcool ou estupefacientes. Um ambiente fértil em estímulos inerentemente fascinantes que invoque a atenção involuntária e não requeira foco de atenção directo permitirá a um indivíduo mentalmente fatigado retemperar a sua capacidade de concentração voluntária, e assim efectivamente recuperar da sua fadiga psíquica (Kaplan, 1995; Van den Berg et al, 43 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa 2007). De acordo com Kaplan & Kaplan (1989), os ambientes naturais constituem um candidato primário a ambiente restaurativo da fadiga mental causada pela atenção directa, uma vez que as paisagens (e.g. pôr-do-sol, nuvens) ou elementos naturais (e.g. árvores, formas de vida selvagem, cursos de água, sons naturais) captam facilmente a nossa atenção, sem que seja para isso necessário realizar um esforço voluntário de concentração (Ulrich, 1981, Kaplan, 1983, Kaplan & Talbot, 1983 cit. in Taylor et al, 2001). Em conformidade com esta hipótese, inúmeros estudos mostram que as pessoas desempenham tarefas complexas e cognitivamente exigentes de forma mais eficaz após exposição a ambientes naturais (e.g. Tennessen & Cimprich, 1995; Lohr et al, 1996; Taylor, Kuo & Sullivan, 2001; Hartig et al, 2003; Laumann et al, 2003). Nos termos da ‘Attention Restauration Theory’ (ART), a experiência restaurativa da natureza baseia-se em quatro componentes (Kaplan & Kaplan, 1989; Kaplan, 1992; Hartig et al, 2003): o distanciamento psicológico das preocupações e dos condicionalismos rotineiros que colocam pressão sobre a atenção (alheamento)10, a absorção espontânea da atenção por elementos fascinantes (fascinação)11, a profundidade ou alcance da experiência (extensão)12, e a concordância entre as características do ambiente e as inclinações ou necessidades psicológicas da pessoa (compatibilidade)13. Compete referir que o modelo ART não concebe os espaços naturais como exclusivos ambientes restaurativos, antes, discerne um díspar potencial de restauração dos ambientes naturais e os ambientes urbanos (antrópico), consoante as suas propriedades e a compatibilidade. Por conseguinte, poderão também existir meios naturais que não propiciam efeitos paliativos em razão de serem percebidos como perigosos, e ambientes urbanos que fornecem a possibilidade de restauração quando os elementos restaurativos aí ocorrentes são mais facilmente acessíveis e compatíveis com as necessidades das pessoas (Van den Berg et al, 2007). 10 ‘Being away’ 11 ‘Fascination’ 12 ‘Extension’ 13 ‘Compatibility’ 44 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa SECÇÃO II O TRONCO: ENQUADRAMENTO TEÓRICO 45 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa CAPÍTULO III: DUAS LINHAS DE PENSAMENTO DIVERGENTES Convivem na literatura duas linhas argumentativas contraditórias no que concerne a relação entre o crime e a vegetação, cada uma reclamando evidência em seu favor. Por um lado existe a crença historicamente radicada de que a flora ou vegetação é facilitadora do crime, pelo motivo plausível de providenciar um encobrimento dos potenciais criminosos e da actividade criminosa, e também promotora do receio de vitimização, por limitar o campo de visão das eventuais vítimas ou guardiões em determinadas circunstâncias. Esta tradição de pensamento teve ampla repercussão no planeamento urbano, frequentemente motivando estratégias de remoção da flora (Kuo & Sullivan, 2001a; Wolfe & Mennis, 2012). Ombreando com esta perspectiva ortodoxa, uma nova escola de pensamento emergente nas últimas décadas salienta o potencial da vegetação na prevenção e redução da criminalidade, e associa a sua presença a um menor risco percepcionado do crime (Kuo, Bacaicoa & Sullivan, 1998; Kuo & Sullivan, 2001a). Algumas razões são invocadas para explicar estas visões contrárias, como o tipo de vegetação que é foco de análise (Troy, Grove & Dunne, 2012), e as variáveis confundidoras com que a vegetação pode estar correlacionada, como por exemplo, os níveis sócio-económicos, a composição étnica da população, estruturas urbanas, e elementos artificiais de vigilância (Donovan & Prestemon, 2012). Procede-se com a explicação e análise de ambas as linhas de pensamento. 3.1. A vegetação como promotora do crime Existe uma longa tradição histórica e política de conceber a vegetação presente no panorama como um elemento potencialmente criminógeno, isto é, como um constituinte do meio que possibilita a ocultação de um virtual ofensor e atrapalha ou impede completamente um controlo quer formal como informal desse, facilitando deste modo a actividade criminosa. Nesta óptica, as urbes e vias de deslocação humanas onde arboreto está presente são frequentemente reputadas de inseguras e vulneráveis ao crime, estimulando estratégias de supressão da vegetação em consequência (Kuo & Sullivan, 2001a; Wolfe & Mennis, 2012). Um primeiro exemplo histórico e paradigmático desta abordagem remonta ao século XII: 46 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa It is likewise commanded that the highways from market towns to other market towns be widened where there are woods or hedges or ditches, so that there may be no ditch, underwood or bushes where one could hide with evil intent within two hundred feet of the road on one side or the other, provided that this statute extends not to oaks or to large trees so long as iris clear underneath. And if by the default of a lord, who will not fill up a ditch or level underwood or bushes in the manner afore-said, robberies are committed, the lord shall be answerable: and if murder is committed, the lord shall be condemned to make fine at the king's pleasure. And if the lord is unable to cut down the underwood, the district shall help him to do it. And the king is willing for the roads in his demesne lands and woods, within forest and without, to be widened as aforesaid. And if perchance there is a park near the high-way, it will behove the lord of the park to reduce his park until there is a verge two hundred foot wide at the side of the highway as aforesaid, or to make a wall, ditch or hedge that malefactors cannot get over or get back over to do evil.14 − Estatuto de Winchester 1285 – Rei Eduardo I de Inglaterra Este trecho de um decreto emitido pelo Rei Eduardo I em 1285 oferece-nos uma importante visão sobre a postura apreensiva e circunspecta do Homem face à ocorrência de algumas formas de vegetação desde períodos mais remotos da urbanização, que enformaria um modo de pensamento tradicional que sobreviveu até aos tempos actuais, continuando a inspirar programas de controlo e remoção da flora (Kuo & Sullivan, 2001a). A ideia subjacente que preside estas políticas é a de que os bosques ou outras formas de vegetação densa diminuem substancialmente a visibilidade, e que por isso favorecem não apenas a ocorrência do crime, como também promovem o medo da vitimização, afectando o bem-estar dos cidadãos. 14 Na tradução para português: ‘É comandado por decreto que as estradas que fazem ligação entre os mercados de várias cidades sejam alargadas e desimpedidas onde existem bosques, sebes, ou valas, para que não haja nenhuma vegetação rasteira, arboreto, ou depressão num raio de sessenta metros da estrada onde um com intenção maliciosa se possa esconder, ressalvado que este estatuto não se aplique a carvalhos e outras árvores de grande porte. E se por negligência de algum suserano que não preencha uma vala ou não nivele arboreto conforme as prescrições decretadas, roubos forem cometidos, esse suserano será responsabilizado: e se um assassínio for cometido, o suserano será condenado a pagar uma taxa à discrição do rei. Se o suserano for incapaz de limpar a vegetação, o distrito ajudá-lo-á a fazê-lo. O rei irá também assegurar que as mesmas prescrições são concretizadas nos terrenos do seu domínio, quer em zonas florestais ou não. E se acaso existir um parque próximo de uma estrada, competirá ao seu senhor reduzir as suas dimensões até existir uma distância de sessenta metros entre este e as margens da estrada, ou construir uma muralha, um fosso, ou uma sebe que impeça os malfeitores de alcançar a estrada.’ 47 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Contudo, Wilson (2011) questiona se de facto ainda existe um fundamento para o medo e evitamento da vegetação. Não há dúvida que o imaginário individual e cultural tende reconhecer na vegetação um refúgio provável de perigos iminentes, nomeadamente criminosos que neles se poderão ocultar, mas em verdade a realidade de 1282 é uma distinta da moderna, os meios artificiais de locomoção não são os mesmos engenhos lentos e vulneráveis de outrora, e virtuais criminosos servem-se de uma grande variedade elementos do seu meio, e não exclusivamente ou preferencialmente da vegetação, para encobrir as suas práticas criminais, como carros, muros, becos, cercas, ou corredores com pobre iluminação. Não obstante (Kuo & Sullivan, 2001a; Wolfe & Mennis, 2012), há efectivamente alguma evidência científica recente de que a presença de vegetação densa e obstrutiva pode facilitar algumas formas de criminalidade, e também existem estudos investigativos a constatar uma associação entre a vegetação e a percepção do risco de vitimização criminal (ou medo do crime), muito embora não haja registo de qualquer estudo que examine e correlacione a densidade vegetativa com taxas de criminalidade mais elevadas. Reportando-nos à investigação da ligação entre a vegetação e o medo reportado do crime, evocam-se vários estudos de auto-relato conduzidos nos estados unidos. A pesquisa realizada em parques urbanos apurou de forma relativamente consistente que as zonas mais densamente arborizadas inspiravam insegurança e receio implícito do crime. O primeiro estudo a concluir nesse sentido foi o de Shroeder & Anderson (1984), que registou por meio da observação de fotografias um sentimento de maior vulnerabilidade em relação a paisagens onde a vegetação era compacta, e um sentimento de maior segurança face a zonas onde havia elevada visibilidade. Porém, as avaliações de alguns locais pareciam contradizer estas conexões, como se verificou no caso se áreas de piquenique próximas de arboreto denso, sugerindo assim que a densidade vegetal não pressupõe insegurança em alguns contextos. Resultados similares foram apresentados por Talbot e Kaplan (1984), associando também zonas de vegetação densa a percepções de perigo, e por um estudo de Shaffer & Anderson com estudantes (1985 cit. in Kuo & Sullivan, 2001a, Wolfe & Mennis 2012), que averiguou que os ambientes fotografados de parques de estacionamento revestidos de mais vegetação eram percebidos como mais inseguros, uma percepção que todavia se revertia quando a vegetação era manipulada e se apresentava bem cuidada. Não se esgotando aí a evidência, um outro estudo examinando especificamente a percepção do risco de crime e efectivo receio de vitimização num recinto universitário 48 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa (Nasar & Fisher, 1993 cit. in Wolfe & Mennis 2012) verificou por meio de inquérito que a percepção de zonas cobertas de arbustos espessos ou arboreto maciço, onde o campo de visão era restrito e a possibilidade de evasão limitada, evocava impressões de vulnerabilidade ou de impotência face a uma eventual agressão criminosa. Esta linha de investigação, porém, baseia-se fundamentalmente em percepções subjectivas de risco, em condições hipotéticas de estudo, sem examinar as taxas concretas de criminalidade, estando por isso limitada quanto às suas conclusões (Wolfe & Mennis, 2012). No que concerne a efectiva incidência do crime, dois estudos sugerem que a vegetação realmente pode desempenhar um papel facilitador da ocorrência criminal. O primeiro, de Michael e Hull (1994 cit. in Kuo & Sullivan, 2001a), apurou que a vegetação densa de parques urbanos americanos era utilizada regularmente por vários indivíduos para encobrir as suas actividades criminais, com base no relato dos gestores dos parques e das polícias locais responsáveis pela vigilância dos parques. Num estudo subsequente dos mesmos investigadores, com a colaboração ainda de outro teorista (Michael, Hull & Zahm, 2001 cit. in Wolfe & Mennis 2012, Kuo & Sullivan, 2001a), corroborou-se a relação entre o crime e a vegetação densa em parques urbanos, desta vez mediante o relato directo de assaltantes de automóveis. O inquérito de vários ofensores sugeriu que os mesmos se serviam de determinadas características dos parques, nomeadamente o arboreto compacto, para se encobrirem enquanto procediam com a selecção do alvo, e também para escapar a cena do crime ocultos. Todavia, os pesquisadores reconhecem que a vegetação não consiste por si um elemento fundamental ou suficiente para que o crime se materialize, pois os ofensores tendiam simplesmente a adaptar o seu comportamento na ausência da vegetação, procedendo na mesma com os seus intentos criminosos. Concluem pois que a vegetação funciona apenas como um potencial facilitador do crime em certas circunstâncias. Mais recentemente, um estudo de Groff e McCord (2011) apurou de modo relevante que os parques urbanos da cidade de Filadélfia estavam associados a índices de criminalidade mais elevada nas zonas circundantes, com uma correlação negativa entre o tamanho dos parque e as taxas de crime (quanto maiores eram os parques, menor a quantidade crime), explicada por um controlo informal mais eficaz em espaços largos onde existe mais actividade pedestre e mais “olhos na rua”. Não obstante, chegaram também à conclusão de que algumas características específicas dos parques promoviam uma redução dos níveis de crime, nomeadamente instalações ou estruturas que incentivassem actividades recreativas legítimas. O estudo sofre de várias limitações 49 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa contudo, sugeridas pelos próprios autores, como o fraco poder generalizador das conclusões atendendo às características singulares da cidade analisada, e também a potencial contaminação estatística de factores socioeconómicos e demográficos que não foram controlados neste estudo. Na senda do modelo teórico ‘Broken Windows’, pensa-se também que a vegetação poderá promover a criminalidade por meios indirectos, desempenhando um papel semiótico. Neste caso, na qualidade de indicador de desordem, apatia, e de um controlo social deficiente sobre o ambiente quando a vegetação se apresenta bravia e negligenciada, fomentando assim a oportunidade para o crime não vigiado (Wolfe & Mennis, 2012). A conexão da desordem com a criminalidade está bem estabelecida na literatura, tal como foi revisto anteriormente (ver capítulo do modelo “Broken Windows”). Ademais, encontra-se também alguma evidência científica a ligar especificamente a pobre manutenção da vegetação urbana a sentimentos de insegurança (Schroeder & Anderson, 1984; Kuo, Bacaicoa & Sullivan, 1998). Porém, no decreto de Eduardo I de Inglaterra entrevê-se também uma outra possibilidade quando o mesmo comanda a isenção de árvores de grande porte. O rei discernia que nem todos os tipos de vegetação comportavam um risco para a população, pois não ofereciam qualquer esperança de encobrimento para eventuais ladrões ou outros criminosos. Este fragmento de sabedoria seria evocado novamente uns setecentos anos depois. Tal como assinala Kuo & Sullivan (2001a), nem toda a vegetação, pelas suas características, concede encobrimento a potenciais criminosos, ou bloqueia a visão de eventuais vítimas e vigilantes; em verdade, alamedas com árvores bem espaçadas entre si, árvores de copas altas, arbustos rasos e flores oferecem escassa ou nenhuma cobertura da actividade criminal, constituindo uma manifesta e significativa excepção à norma previamente explícita. Alguma pesquisa teórica recente tem claramente indicado nesse sentido, sugerindo que a presença da vegetação pode na realidade contribuir para a prevenção da criminalidade. 3.2. A vegetação como preventora do crime Apoiada numa panóplia de investigação científica variada, uma nova linha argumentativa a respeito da relação entre a vegetação e o crime tem vindo a delinear-se 50 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa nas últimas décadas, disputando a visão tradicional persistente da vegetação criminógena, e promulgando a ideia de que a vegetação pode na realidade subsidiar a prevenção e diminuição da criminalidade de modos diversos. Fazemos uma revisão da evidência nesse sentido, quer sugestiva como directa. 3.2.1. Evidência indirecta ou sugestiva Em contradição com algumas das conclusões teóricas supramencionadas (Shroeder & Anderson,1984; Talbot & Kaplan, 1984; Nasar & Fisher, 1993), pesquisas recentes constataram uma relação negativa entre a vegetação e o receio de vitimização, isto é, que pelo contrário os ambientes mais verdes inspiram mais segurança às pessoas. Em 1982, Nasar (cit.in Kuo & Sullivan, 2001) estabeleceu um contraste da relação vegetação-medo conforme o contexto citadino, averiguando que em zonas residenciais a quantidade de vegetação estava inversamente relacionada com o receio do crime. Um ano depois, em 1983, um novo estudo verificou por intermédio da avaliação de desenhos arquitectónicos que as propriedades com a presença de arboreto suscitavam uma percepção de maior segurança por contraste a residências sem arboreto (Brower, Docket & Taylor cit. in ibidem). Uma investigação mais tardia de Kuo, Bacaicoa e Sullivan (1998), baseando-se na avaliação de fotografias manipuladas, apurou que a densidade e manutenção da vegetação estavam ambas positivamente relacionadas com a preferência e sensação de segurança. Os investigadores propõem que a relação parece depender do tipo de vegetação em apreço, e que enquanto algumas formas de vegetação obstrutiva podem induzir medo, vegetação não obstrutiva promove o sentimento de segurança. Num importante estudo de continuidade focando as experiências contrastantes de residências revestidas de vegetação com residências análogas relativamente “estéreis”, concluiu-se com base nos auto-relatos dos próprios residentes que a percepção de segurança era mais forte nas zonas de residência providas de vegetação (Kuo, Coley & Brunson, 1998). Os sentimentos relatados de segurança na presença de vegetação e percepções subjectivas do risco de vitimização são relevantes na medida em que a insegurança incita ao evitamento, desconfiança, e retraimento comunitário (e.g. Garofalo, 1981, Smith, 1987, Doeksen, 1997, Ross & Mirowsky, 2000 cit. in Doran & Burgess 2012), conduzindo à erosão do controlo social, à disrupção da coesão comunitária, e à quebra da ordem social (e.g. Jacobs, 1961, Box et al, 1998, Ross & Mirowsky, 2000, Samuels & Judd, 2002 cit. in ibidem), circunstâncias que por 51 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa sua vez aumentam a vulnerabilidade de um local a várias formas de criminalidade (e.g. Sampson & Groves, 1989, Bellair, 1997, Warner & Rountree, 1997 cit. in Brown, Perkins & Brown 2004). Isto conduz-nos ao seguinte ponto de investigação. Para além de promover a segurança, existe evidência robusta de que a existência de vegetação enquanto elemento arquitectónico de uma vizinhança estimula a utilização de espaços públicos, a interacção social, e a vinculação interpessoal (Coley, Kuo e Sullivan, 1997; Kuo et al, 1998; Sullivan, Kuo & DePooter, 2004), assim fortalecendo a coesão comunitária e promovendo um controlo social eficaz do espaço – ao introduzir mais olhos na rua (Kuo et al, 1998; Kweon, Sullivan & Wiley, 1998 cit. in Maas et al 2009), uma noção que se enquadra bem com o modelo ‘Defensible Space’ ou ‘Espaço defensível’ de Newman (ver capítulo 1.2). Por controlo social (Sampson, Raudenbush & Earls, 1997) podemos entender a capacidade de um grupo ou comunidade em exercer a conformidade dos indivíduos integrantes às normas ou princípios genericamente aceites, operando por meio de mecanismos como a vigilância informal. O controlo social constitui um meio importante através do qual a comunidade controla as oportunidades para o crime numa dada vizinhança. A eficácia deste controlo está dependente da disposição dos membros da comunidade em intervir em defesa dos interesses colectivos, a qual não pode existir em comunidades onde o sentimento de confiança mútua e solidariedade colectiva está ausente; por esse motivo, o controlo social informal é mais eficiente nas comunidades mais coesas (ibidem). Com efeito, a literatura sugere que as vizinhanças unidas por fortes laços comunitários estão mais capacitadas para monitorizar a actividade urbana e de intervir quando desviâncias problemáticas surgem (Taylor, 1998 cit. in Kuo 2003), para além de serem também comprovadamente mais eficazes na defesa informal dos seus espaços contra a criminalidade (e.g. Taylor, Gottfredson & Brower, 1981, Perkins et al, 1990 cit. in Sullivan, Kuo & DePooter 2004), e por isso são constituem comunidades colectivamente eficazes (Greenbaum, 1982 cit. in Kuo 2003). Relevantemente, um estudo de Kim e Kaplan (2004 cit. in Tzoulas et al 2007) estabeleceu que os elementos naturais como a vegetação, ao promoverem a interacção social, desempenham um importante papel na consolidação dos laços comunitários, evocando sentimentos de conexão e identificação com o espaço e a comunidade, o que aventa a possibilidade da eficácia colectiva na prevenção do crime, potenciada pela vegetação. Em adição, a vegetação presente pode também contribuir para a redução do 52 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa stress diário e melhoria do funcionamento cognitivo e temperamental dos indivíduos (rever evidência do capítulo 2.1), estando estes associados a modos de relacionamento social mais salutares (Kuo & Sullivan, 1995 cit. in Kuo, Bacaicoa & Sullivan 1998). A eficácia colectiva, definida como a coesão social combinada da predisposição para intervir na salvaguarda do interesse comunitário, está, de acordo com um estudo de Sampson e outros (1997), relacionada com taxas de criminalidade mais reduzidas. Recorde-se também o modelo ‘Broken Windows’, que estabelece que indícios de desordem, vandalismo e outras formas de incivilidade comunicam uma fraca coesão comunitária e controlo social deficiente, tornando uma vizinhança mais susceptível ao alojamento e florescimento da criminalidade, tese apoiada em inúmera evidência teórica (rever capítulo 1.2.1). A vegetação bem mantida poderá virtualmente afectar o crime ao sinalizar que um espaço é bem cuidado e atendido, sugerindo tacitamente a probabilidade elevada de ser-se vigiado e detectado pelos residentes (Brown & Altman, 1983 cit. in Kuo 2003). Consistente com esta hipótese, alguns estudos constataram que a frequência com que ocorrem incivilidades (e.g. vandalismo, graffiti) era significativamente menor em zonas urbanas com presença de vegetação, por comparação a zonas urbanas onde a vegetação é escassa (Stamen, 1993, Brunson, 1999 cit. in Kuo & Sullivan 2001a; Brunson, Kuo & Sullivan, 1997 cit. in Kuo et al 1998). Adicionalmente, a vegetação bem cuidada poderá funcionar como um marcador territorial (Chaudhury, 1994 cit. in Kuo & Sullivan 2001a) e indicador de que a propriedade é vigiada. Existe alguma evidência de que sinalizadores de territorialidade como plantas podem tornar as propriedades privadas menos atractivas para eventuais assaltantes (Brown & Altman, 1983 cit. in ibidem). Evidência indirecta adicional provém de várias investigações da relação entre a vegetação e diferentes distúrbios psiquiátricos. Um estudo de 2009 (Maas et al) notou que alguns problemas psiquiátricos como a depressão clínica e distúrbios de ansiedade eram menos prevalentes em zonas residenciais mais próximas de espaços verdes. Este tipo de distúrbios estão ligados a várias condutas disruptivas como o consumo de substâncias ilícitas (Swendsen, Merikangas & Kathleen, 2000 cit. in Anderson, Cesur & Tekin 2012), e aumentam a propensão para comportamentos agressivos e violentos, assim como para a delinquência (Donnellan et al, 2005, Trzesniewski et al, 2006 cit. in ibidem; Choe, Teplin & Abram, 2008; Elbogen & Johnson, 2009). Um estudo 53 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa longitudinal mais específico com pacientes padecedores de Alzheimer averiguou que a incidência de episódios agressivos diminui ligeiramente em clínicas onde jardins foram deliberadamente acomodados, ao passo que em clínicas sem jardins a incidência de episódios agressivos aumentava drasticamente com o tempo, tal como é característico deste tipo de pacientes (Mooney & Nicell, 1992 cit. in Kuo & Sullivan 2001a). Também de grande relevância é uma investigação conduzida sobre crianças com défice de atenção (distúrbio de deficit de atenção sem hiperactividade). Este distúrbio está manifestamente associado a diversas desordens e problemas comportamentais, existindo ampla evidência de que as crianças afectadas tendem a exibir mais comportamentos agressivos e anti-sociais (Hinshaw, 1994, Barkley, 1997 cit. in Taylor, Kuo & Sullivan, 2001a). Os autores do estudo observaram que as crianças tinham melhor desempenho cognitivo do que é habitual após exposição a ambientes naturais no contexto de actividades recreativas, e que os sintomas da atenção deficitária diminuíam em proporcionalidade ao aumento da quantidade de vegetação presente no ambiente (Taylor, Kuo & Sullivan, 2001a). Estes achados são concordantes com a hipótese da natureza restaurativa da fadiga mental e capacidade de atenção directa (Kaplan & Kaplan, 1989), provando que o modelo aplica-se de igual modo a crianças, tal como já antes tinha sido sugerido por um estudo semelhante com crianças normais (Wells, 2000). Após a apresentação desta evidência, afigura-se pertinente referir que diversos estudos apuraram uma prevalência elevada de distúrbios psiquiátricos em populações presidiárias de vários países, e em proporções significativamente mais elevadas do que aquelas que se encontram na população geral (e.g. Teplin, 1990; Steadman et al, 2009; Marcotte & Markowitz, 2011 cit. in Anderson et al 2012). Por fim, analisamos o modo como a vegetação poderá influenciar indirectamente os índices de criminalidade ao afectar os níveis de agressividade e violência comportamental. Evocando novamente o conceito de ambiente restaurativo, sabe-se que os espaços naturais propiciam a recuperação de indivíduos acometidos de stress e fadiga mental (ver capítulo 2.1 para uma revisão da evidência). Kaplan (1987 cit. in Kuo & Sullivan 2001b) propôs que uma das consequências da fadiga mental, quando não gerida adequadamente, é o aumento da propensão para episódios de raiva e violência. Efectivamente, três sintomas tipicamente associados à fadiga mental – a desatenção ou incapacidade de concentrar, a irritabilidade, e a impulsividade, estão todos eles empiricamente relacionados com a agressividade (estudos citados por Kuo & Sullivan, 54 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa 2001b), constituindo por isso precursores da violência. Reproduzindo as previsões de Kaplan, um estudo de Kuo & Sullivan (2001b), demonstrou que os residentes urbanos com acesso a um ambiente restaurativo, nomeadamente a vegetação abundante presente na área residencial neste caso, apresentavam menores níveis de fadiga mental e de comportamento agressivo ou violento auto-relatado, por contraste a taxas mais elevadas quer de fadiga mental como de agressividade e comportamento violento relatadas por habitantes de zonas residenciais desprovidas de vegetação. Adicionalmente, uma investigação em prisões verificou que o envolvimento de reclusos em programas de jardinagem promovia a redução da hostilidade, não obstante os resultados não terem sido consistentes para todas as unidades de análise (Rice & Remy, 1998 cit. in Kuo & Sullivan 2001b), e ainda um outro estudo constatou indicadores de melhor autodisciplina em crianças residentes em espaços com abundante vegetação, muito embora a relação fosse apenas verificável no caso de crianças do sexo feminino (Taylor, Kuo & Sullivan, 2001b). Reportadamente, a ocorrência de vegetação abundante poderá também afectar o crime doméstico que ocorre na esfera privada, tal como é indiciado por um estudo de Kuo e Sullivan (1996) em que os indivíduos residentes em áreas urbanas com arboreto relatavam utilizar abordagens mais construtivas e menos violentas na resolução de conflitos pessoais em casa, por contraste a residentes de áreas desprovidas de vegetação. O stress, também ele comprovadamente mitigado pela percepção ou contacto com elementos naturais restaurativos, pode potencialmente conduzir á agressão (Chang, 1994, Bolger et al, 1997 cit. in ibidem). 3.2.2. Evidência directa A primeira evidência directa de uma correlação negativa entre a vegetação e o crime emerge de um estudo teórico realizado por Kuo e Sullivan em 2001. Os autores hipotetizaram com base numa revisão da literatura científica que a presença de formas de vegetação não obstrutivas (e.g. árvores de copa alta; relva) em zonas pobres do centro da cidade de Chicago poderiam inibir ou prevenir o crime através de dois mecanismos específicos: ao potenciar a vigilância ou controlo informal, e ao mitigar alguns precursores psicológicos da violência resultantes da fadiga mental e stress, como a irritabilidade e impulsividade. Procurando testar esta hipótese, examinaram as estatísticas policiais de criminalidade compiladas em dois anos- concretamente para crimes contra a propriedade e crimes violentos - referentes a 98 apartamentos, e os 55 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa níveis de vegetação variáveis nas imediações de cada local de residência, tal como mensurada por fotografias aéreas e avaliações independentes. Alguns cuidados específicos foram tidos na selecção dos apartamentos que foram objecto de análise, como as proporções arquitéctonicas análogas e o número semelhante de residentes, e também a exclusão de residências próximas de esquadras policiais. Em adição, a amostra seleccionada usufruía também da vantagem metodológica de se constituir de uma população residente homogénea no tocante a vários indicadores demográficos como a educação e o nível socioeconómico apesar dos níveis notavelmente heterogéneos de vegetação, possibilitando o despiste seguro de variáveis confundidoras que tendem a enviesar os estudos teóricos. Comparando os dois elementos de análise concluíram que a densidade vegetal estava negativamente correlacionada com diferentes medidas de crime de modo consistente e sistemático, um padrão que se mantinha quer para crimes violentos como para crimes contra a propriedade, mesmo após controlar outras variáveis confundidoras. Noutras palavras, verificou-se que as taxas de criminalidade eram mais reduzidas em locais onde havia mais vegetação. Notavelmente, registaram que os edifícios com elevados níveis de vegetação apresentavam menos 52% de criminalidade do que edifícios com reduzidos níveis de vegetação (Kuo & Sullivan, 2001a). Este estudo focou-se em parcelas da cidade, mas outros seguir-se-iam tendo por unidade de análise geográfica todo o perímetro de uma cidade. Num estudo subsequente que analisou a quantidade de vegetação por contraste aos níveis de criminalidade na área metropolitana da cidade de Austin, Texas, usando estatísticas oficiais, medidas indexadas de densidade vegetal baseadas em fotografias aéreas infravermelho, e um sistema geográfico de informação para análise computorizada (Snelgrove et al, 2004), observou-se também uma correlação negativa estatisticamente significante entre os níveis de vegetação e as taxas de crime relativas ao ano de 1995, apesar de não ter sido identificada relação com o grau de severidade dos crimes, nem tampouco com os níveis sócio-económicos. Partindo de um valor médio percentual da densidade vegetal fixado em 34%, registaram que 83% dos crimes ocorridos no período de tempo investigado ocorreram em locais onde os valores de vegetação eram inferiores ao valor de referência médio. Os investigadores constataram assim que os locais mais desprovidos de vegetação exibiam maiores índices de criminalidade. Um estudo com design semelhante do mesmo ano (Lorenzo & Wims, 2004), investigando especificamente uma relação entre a incidência dos crimes contra a 56 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa propriedade (e.g. furtos de veiculo; furtos em residência; assalto) e os níveis de vegetação em diferentes estratos da cidade americana de Tallahassee, Florida, registou uma relação negativa entre as duas unidades de análise com significância estatística, ou seja, a zonas com maior índice de densidade vegetal correspondiam menores taxas de crimes contra a propriedade. Variáveis potencialmente confundidoras como os níveis de renda familiar, densidade populacional, número de residências, percentagem de propriedade privada e taxas de desemprego foram analisadas, e não evidenciaram qualquer papel mediador ou correlação significante com as taxas de crime estudadas, embora mostrassem forte correlação com os níveis de vegetação no caso particular das taxas de desemprego (em proporcionalidade inversa), da renda familiar (em p. directa), da percentagem de propriedade privada (p. directa), e densidade populacional (p. directa). Explorando também a relação entre os níveis de vegetação e os índices de crimes contra a propriedade, embora em menor escala, um estudo conduzido em Houston (Gorham et al, 2009) averiguou a existência de eventuais discrepâncias entre locais com jardins comunitários e outros locais urbanos aleatoriamente selecionados para as estatísticas criminais recolhidas no ano de 2005. Em incongruência com achados anteriores de outros estudos, os resultados não revelaram diferenças estatisticamente significantes dos índices das zonas de jardim e os índices de outras zonas aleatoriamente selecionadas, nem a presença de jardins como um factor preditor de taxas mais baixas de crime contra a propriedade após análises de regressão e ajustes metodológicos. Todavia, entrevistas conduzidas pelos investigadores com residentes e utilizadores dos jardins assinalaram percepções de segurança e de uma influência positiva dos jardins na comunidade e espaço residencial, reportando menos incivilidades e um florescimento da vizinhança. Evidência adicional advém de um sector de análise mais remoto, os espaços devolutos da cidade e intervenções nestes baseadas na plantação e arboricultura. Um estudo longitudinal (Branas et al, 2011) em articulação com um programa urbano de reabilitação e manutenção de espaços abandonados em Filadélfia com duração de dez anos (1999-2008) realizou uma análise comparativa dos espaços reabilitados e outros espaços devolutos aleatoriamente selecionados e que não tinham sido objecto de reabilitação. As análises evidenciaram que os espaços devolutos que foram alvo de um processo de tratamento paisagístico (e.g. plantação de árvores e erva; remoção de lixo e detritos; instauração de cercas e sebes; manutenção) mostravam uma melhoria notável 57 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa dos níveis de segurança, com taxas substancialmente mais baixas de crime violento como roubos à mão armada associadas a todos estratos ou secções urbanas analisadas, e também reduzidos índices de vandalismo em pelo menos um dos sectores analisados, resultados que são consistentes com o modelo teórico “Broken Windows”. Voltando às análises tradicionais dos níveis de vegetação, um estudo mais recente (Troy, Grove & O’Neil-Dunne, 2012) averiguou a existência de uma correlação estatisticamente significante com formas de criminalidade específica (e.g. roubo, furto, assalto, e homicídios) na cidade de Baltimore e condado de Baltimore, a maior unidade de análise geográfica até à altura. Mesmo após controlar por variáveis socioeconómicas potencialmente confundidoras como a etnia, idade, tipo de habitação, renda familiar, ruralidade e zonas de agricultura, e densidade populacional, os resultados indicaram uma forte correlação negativa entre os índices oficiais de criminalidade e a quantidade de arboreto, variando de forma significante entre a propriedade pública e a propriedade privada, a última apresentando uma correlação de maior magnitude. Modelos conservadores de análise sugeriram que um aumento em 10% da densidade vegetal previa uma redução de 12% da criminalidade. Contudo, apesar de os resultados aplicarem-se a uma larga extensão geográfica analisada, algumas faixas isoladas apresentavam uma correlação oposta, explicada pela presença de terrenos devolutos onde o arboreto era bravio. O estudo de Baltimore seria replicado na cidade de Filadélfia por Wolfe e Mennis (2012), que também examinaram a relação entre a vegetação, tal como medida por imagética infravermelho de satélite, e crimes específicos, nomeadamente assaltos, roubos e furtos, despistando factores socioeconómicos comummente associados ao crime urbano. Mapas coropléticos com a distribuição destacada da magnitude de vários atributos foram elaborados. Níveis de escolaridade apresentaram coincidência com a densidade vegetal com a excepção de algumas zonas, muito embora sem significância estatística em quaisquer modelos de análise. Os níveis de pobreza estavam em proporcionalidade inversa à densidade da vegetação e proporcionalidade directa aos índices de criminalidade. Comparações visuais e correlações de variáveis revelaram que índices mais elevados de vegetação previam taxas mais baixas de todas as formas de criminalidade analisadas, com a excepção do furto; a correlação mais forte foi com o crime de roubo, um achado tão interessante se considerarmos que se trata de um crime com uma componente violenta, e que a exposição à natureza atenua os precursores psicológicos da violência tal como hipotetizado. Mesmo depois de se efectuarem 58 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa análises de despiste para as variáveis socioeconómicas, a correlação mantinha-se, indicando que a relação entre a vegetação e o crime é independente, e não uma mera consequência do facto da vegetação estar concentrada em zonas de elevado nível socioeconómico. Finalmente, um estudo na cidade de Portland (Donovan & Prestemon, 2012) consagrou-se à exploração das estatísticas criminais relativas a um período de três anos consecutivos (2005-2007) e referentes a uma amostra de 2813 residências, analisando o contraste com índices de distribuição da vegetação, e diferentes tipos de vegetação. Tal como os autores hipotetizaram, o grau e direcção de influência da vegetação nas taxas de crime mostrou estar dependente quer do tipo de vegetação como da sua localização. Em conformidade com o modelo das actividades rotineiras de Cohen e Felson (1979), os resultados indicaram que as árvores que obstruíam o campo de visão estavam associadas a uma maior incidência criminal, pois reduziam a probabilidade de um ofensor ser observado por um guardião, ao passo que árvores residenciais de copa alta e outras árvores altas em espaço público denotavam um menor incidência criminal, explicada também à luz da teoria das actividades rotineiras, que pressupõe que elementos urbanos promotores do uso dos espaços públicos aumentam a probabilidade de um ofensor ser observado, efectivamente demovendo-o do seu propósito, e também consistente com os princípios do modelo ‘Broken Windows’, na medida em que as árvores bem cuidadas fornecem indícios de uma forte eficácia colectiva e de que a vizinhança é vigiada e há elevada probabilidade de ser-se observado. 59 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa SECÇÃO III O REBENTO: OBJECTIVOS 60 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa CAPÍTULO IV: OBJECTIVOS DA INVESTIGAÇÃO 4.1. Objectivos gerais O objectivo central desta eventual investigação é explorar a relação do crime com a flora urbana numa das grandes áreas metropolitanas de Portugal, idealmente numa das cidades mais populosas e urbanizadas do país, Porto ou Lisboa. Concretamente, averiguar a hipótese da existência de uma correlação negativa (inversa) entre a vegetação e o crime, ou seja, que índices mais elevados de vegetação são preditores de taxas de criminalidade mais reduzidas nas áreas coincidentes, particularmente de crimes violentos (crimes contra as pessoas) e crimes contra a propriedade (crimes contra o património). Esta pesquisa empírica pressupõe a existência de dois mecanismos através dos quais a vegetação opera uma redução nos níveis de criminalidade: Promovendo a vigilância natural (controlo social informal): a existência de vegetação fomenta a utilização dos espaços públicos, deste modo introduzindo mais olhos sobre a rua e possibilitando o controlo informal sobre potenciais criminosos cujas inclinações são reprimidas pela elevada probabilidade de detecção; em consequência do aumento da afluência e utilização comum dos espaços públicos, estimula também a interacção social e contribui para a coesão comunitária, fortalecendo assim o controlo informal, e igualmente dispondo alguns dos residentes ou pedestres a intervir perante actos desviantes ou intentos criminosos. Isto seria concordante com o modelo das actividades rotineiras, que estabelece que um crime só poderá acontecer quando convergem um potencial ofensor e um potencial alvo na ausência de um guardião eficaz, e também com o modelo das escolhas racionais, de acordo com o qual um criminoso decide o seu curso de acção com base numa avaliação prévia dos riscos e benefícios que o crime pressupõe, pelo que árvores e outras formas de flora urbana que não afectem a permeabilidade visual e atraiam pessoas às ruas aumentam a percepção de risco do eventual ofensor, assim demovendo-o da prática do crime. Em adição, numa inversão da lógica do modelo ‘Broken Windows’, a existência de vegetação bem cuidada e mantida denota que o espaço é controlado e será defendido, 61 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa sinalizando uma vigilância implícita, isto é, causará ao eventual ofensor a percepção de uma elevada probabilidade de ser vigiado e detectado. Mitigando precursores psicológicos da violência: a percepção ou contacto com a vegetação contribui para a redução do stress ou fadiga mental, os quais se podem traduzir sintomaticamente na atenção volúvel, irritabilidade, e impulsividade, potenciais precursores da agressão e violência. Assim, operando uma redução da fadiga mental, poderá indirectamente reduzir o crime, uma conjectura que é consistente com o modelo do ambiente natural restaurativo. 4.2. Objectivos específicos Outros eventuais objectivos específicos desta investigação consistem em: Estudar as variações da relação vegetação-crime em função do tipo de crime (e.g. ofensa à integridade física, furto, roubo). Isto poderá adicionalmente permitir discernir qual dos mecanismos propostos prevalece em poder de influência, dado que os crimes contra a propriedade são fundamentalmente crimes “racionais” e frequentemente premeditados, sobre os quais actua o mecanismo preventor da vigilância natural, e os crimes violentos são frequentemente de natureza impulsiva, e com elevada carga emocional, sobre os quais actua o mecanismo preventor da mitigação dos precursores psicológicos da violência. Estudar as variações da relação vegetação-crime em função do tipo de vegetação (e.g. árvore de copa alta, arbusto, relva) e da sua localização. Averiguar mediante o estudo da variação das taxas de criminalidade consoante a graduação da densidade vegetal (i.e. reduzida, moderada, elevada) se a relação entre a vegetação e o crime é linear ou não-linear. Desenvolver um modelo preditor da probabilidade da ocorrência de um crime violento ou um crime contra a propriedade consoante a densidade vegetal das diferentes zonas da cidade. 62 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa SECÇÃO IV A FLOR: METODOLOGIA 63 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa CAPÍTULO V: MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO O desenho deste estudo inspira-se no modelo metodológico de outras investigações análogas realizadas nos estados unidos (Kuo & Sullivan, 2001; Lorenzo & Wims, 2004; Snelgrove et al, 2004; Troy, Grove & O´Neil-Dunne, 2012; Wolfe & Mennis, 2012; Donovan & Prestemon, 2012). 5.1. Área de estudo No caso do estudo presente será talvez mais adequado referirmos-nos a uma unidade geográfica de análise, e não a uma população estatística tradicional. A selecção desta unidade estaria sujeita a alguns critérios que garantissem maior vantagem metodológica, nomeadamente: elevados contrastes ou amplitude de densidade da floresta urbana, distribuições heterogéneas da criminalidade na cidade, taxas moderadas ou elevadas de crime contra a propriedade e crime violento, heterogeneidade de indicadores demográficos, eventual pronta disponibilidade de fotografias aéreas da rede urbana para análise ou mesmo de índices de vegetação pré-existentes, a ocorrência de um programa autárquico de florestação. Por outro lado, critérios exclusivos incluiriam a predominância de terrenos agrícolas ou a subdensidade populacional. Adicionalmente, e por motivos pragmáticos, seria privilegiada uma área de estudo geograficamente próxima da área de residência do investigador. Esta unidade geográfica de análise estará subdividida em outras unidades geográficas específicas, nomeadamente as circunscrições administrativas ou freguesias de uma cidade, e estas, por sua vez, divididas em sectores estatísticos, que são pequenas regiões geográficas delimitadas para o propósito de recenseamento. Figura 1. Ilustração exemplificativa de uma unidade geográfica de análise, a cidade 64 do Porto, dividida em freguesias (Câmara Municipal do Porto, 2001). Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Figura 2. Ilustração exemplificativa de uma unidade geográfica de análise, a cidade do Porto, subdividida em múltiplas secções ou sectores estatísticos (Câmara Municipal do Porto, 2001). 5.2. Medidas de análise e métodos de recolha Para efeitos da realização deste estudo serão compilados três diferentes tipos de dados relativos a toda a unidade geográfica em análise: base de dados estatísticos da criminalidade em bruto ou já existentes padrões de dispersão geográfica do crime, índices de vegetação, e índices sócio-demográficos representados geograficamente. Proceder-se-á ao levantamento autorizado das estatísticas oficiais do crime junto dos órgãos de polícia criminal com jurisdição legal sobre a área urbana que é objecto de estudo. Serão solicitadas estatísticas anuais relativas às categorias de crimes violentos e crimes contra a propriedade, e especificamente de vários tipos de ilícitos enquadrados nestas categorias, contemplando detalhes fundamentais à análise como a morada ou localização correspondente a cada crime, e a data da ocorrência. Se existentes, solicitarse-ão registos estatísticos de distribuição geográfica do crime. Naturalmente privilegiar-se-á a recolha de estatísticas actuais, de modo a garantir uma concordância temporal com os níveis de vegetação e a validade da correlação observada. Os índices ou padrões de cobertura vegetal, em caso de não existirem dados disponíveis para a unidade geográfica de análise, poderão ser medidos empregando uma das seguintes técnicas de detecção remota: utilizando fotografia aérea ou imagens de satélite de alta resolução que registem a interacção da radiação electromagnética com a superfície terrestre, isto é, a emissão infravermelha. A quantidade relativa de vegetação de uma determinada área ou porção de terra pode ser aferida comparando-se os espectros de emissão da luz visível e luz infravermelha do espectro electromagnético. O pigmento das plantas, a clorofila, absorve grande parte do comprimento de onda do 65 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa espectro de luz visível (de 0.4 a 0.7µm15) para a produção fotossintética, ao passo que a estrutura celular da folhagem (mesófilo) reflecte a luz no comprimento de onda infravermelho (0.7 a 1.1 µm). Enquanto que o mapeamento do espectro de emissão de luz visível revela as áreas de vegetação em tom escuro e regiões desertas (ou sem vegetação) num tom claro, o espectro de emissão de infravermelho configura uma imagem em que a vegetação é revelada por tons muito claros. A emissão de luz infravermelha varia com a densidade da vegetação, e o seu rastreio por fotografia aérea ou satélite com tecnologia de detecção de infravermelho permite assim estabelecer índices para a vegetação.16 Os dados poderão ser recolhidos por meio de vários sensores de radiação electromagnética orbitais, como o ‘Enhanced thematic mapper Plus’ (ETM+) do satélite da NASA ‘Landsat-7’, distribuídos gratuitamente através do sítio da web oficial17, ou alternativamente através de sensores mais sofisticados e contempladores de várias vantagens tecnológicas, mas cujo acesso aos dados imagéticos produzidos requer pagamento, tal como o sensor hiperespectral ‘Hyperion’ do satélite ‘Earth Observing-1’ (EO-1)18, ou ainda o sensor MODIS (Moderate Resolution Imaging Spectroradiometer) do satélite ‘Terra’ ou ‘Aqua’19. Se possível, e em complementaridade, derivar-se-ão também dados de detecção remota das propriedades da luz reflectida obtidos por tecnologia óptica LIDAR (Light Detection and Ranging) de satélite, os quais permitiriam diferenciar diferentes tipos de vegetação (e.g. árvores, arbustos, relva), e também a detecção de vegetação oculta ou obscurecida por sombras. Ter-se-á em atenção o facto dos níveis de vegetação serem variáveis consoante a época do ano, apresentando demarcados contrastes entre a época estival (Março-Outubro) em que a vegetação se apresenta mais vigorosa e plena, e a época invernal (Outubro-Março) em que as árvores caducas perdem muita da sua folhagem. Por fim, os indicadores sócio-demográficos respectivos à unidade geográfica de análise consistirão de diversas variáveis potencialmente confundidoras, e cuja análise e controlo estatístico será fundamental para derivar-se uma correlação significante entre o crime e a vegetação, tais como: densidade populacional, densidade de alojamento, densidade de ocupação, distribuição étnica, renda familiar, dimensão familiar, níveis de 15 Comprimento de onda. 16 http://earthobservatory.nasa.gov/Features/MeasuringVegetation/measuring_vegetation_2.php 17 http://landsat.gsfc.nasa.gov/ 18 http://eo1.usgs.gov/ 19 http://modis.gsfc.nasa.gov/ 66 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa escolaridade ou habilitação académica, e taxas de desemprego. Representações cartográficas recentes destes indicadores serão procuradas em censos nacionais concebidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE)20 e em censos municipais elaborados pelas câmaras autárquicas. Em adição, proceder-se-á eventualmente à recolha e controlo de dados geográficos significativos que poderão contaminar a análise, como a proximidade de esquadras da polícia, contiguidade de bairros ou nichos urbanos reconhecidamente problemáticos, a proximidade geográfica de estruturas urbanas como escolas e áreas comerciais, e ainda também de dados relativos à vegetação, como o tipo de vegetação predominante numa área específica, o nível de compactidade ou opacidade, e a qualidade da manutenção. 5.3. Ferramentas de análise O mapeamento e análise da incidência criminal e da densidade vegetal serão feitos por intermédio de um sistema de informação geográfica (SIG), um sistema computorizado que estratifica informação e possibilita a visualização, interpretação, manipulação e análise de dados georreferenciados, revelando padrões espaciais e relações entre variáveis, consubstanciados em mapas ou gráficos (Harris,1999; Matos, 2008). Vários sistemas automatizados poderão ser utilizados com esta finalidade, o mais notável e mais frequentemente utilizado sendo o ‘ArcGis’, desenvolvido pela empresa ASRI, e que contempla diversos programas de software com diferentes níveis de sofisticação, como o ‘ArcGis for Desktop Basic’ (ArcView), ou o ‘ArcGis for Desktop Advanced’ (ArcInfo), distribuídos também em Portugal21. Embora estes softwares sejam comercializados a preços bastante elevados, existem também planos de licenciamento anual a preços mais acessíveis, como o ‘ArcGis for Home Use’22, e um plano de licença anual do ‘ArcGis for Desktop Advanced’ vocacionado para o âmbito do ensino e investigação23, que oferece inclusive a possibilidade de licenciamento gratuito para docentes e estudantes universitários que solicitem uma licença para a 20 http://www.ine.pt 21 http://www.esriportugal.pt/ 22 http://www.esriportugal.pt/solucoes/sig-profissional/arcgis-for-home-use/ 23 http://www.esriportugal.pt/mercados/ensino-e-investigacao/solucoes/estudantes-docentes-e- investigadores/ 67 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa respectiva entidade universitária24. Alternativamente, também poderão ser utilizados softwares gratuitos como o ‘Quantum Gis’25, ou o ‘MapWindow’26, conquanto estas sejam opções mais limitadas. Estes sistemas automatizados de informação geográfica são a ferramenta de análise ideal na medida em que processam dados de forma inteligente e geram mapas ou outras interfaces que permitem visualizar e analisar informação de forma mais intuitiva, para além de permitirem também a integração das estatísticas criminais com outros tipos de informação espacial, como a distribuição da flora urbana, e também com estatísticas demográficas de censos (Murray et al, 2001). 5.4. Procedimento O Sistema Geográfico de Informação (SIG) será utilizado nesta investigação com as seguintes finalidades: Fixar espacialmente os locais ou coordenadas das ocorrências criminais na área de estudo delimitada (processo de georreferenciação). Este processo possibilita a conexão entre a base de dados criminal e o mapa de referência. Gerar valores de densidade da cobertura vegetal para a área geográfica de estudo. Indexar características ou atributos específicos que distingam categorias de crime, datas de ocorrência, ou tipos de vegetação, e permitam filtrar os dados geográficos. Construir mapas temáticos ou representações cartográficas da criminalidade e da densidade vegetal. Estratificar os mapeamentos feitos e efectuar análise dos dados. É importante notar que a informação geográfica comporta dois tipos de componentes de dados (Ahmadi, 2003): Dados espaciais: posicionamento geográfico de um evento ou fenómeno mediante a utilização de um sistema de coordenadas (em que a localização é fixada por uma coordenada X de longitude e uma coordenada Y de latitude). 24 http://www.esriportugal.pt/mercados/ensino-e-investigacao/solucoes/site-license/ 25 http://www.qgis.org/ 26 http://www.mapwindow.org/ 68 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Dados atributivos: informação qualitativa referente às propriedades ou características das entidades geográficas e com importância para a análise estatística, como a área total, comprimento, e população. Caso não existam representações cartográficas da dispersão geográfica da criminalidade para a respectiva cidade seleccionada para este estudo, será feita uma análise das estatísticas criminais em bruto que foram recolhidas para se proceder à sua realização. Após a efectiva delimitação territorial, proceder-se-á com a georreferenciação das coordenadas correspondentes às moradas dos crimes, associandolhes também atributos nominais como o tipo de crime (e.g. crime violento; crime contra a propriedade; homicídio; furto) e a data de ocorrência para fins de filtragem e análise estatística posterior. Estes atributos serão introduzidos como registos numa tabela de atributos vinculada às unidades de ponto geográfico (incidências). Em seguida, efectuarse-ão medições da distribuição do crime com o auxílio das ferramentas do SIG, uma tarefa que poderá ser concretizada através de dois métodos de interpolação (Harries, 1999; Ahmadi, 2003): Densidade absoluta: a densidade da ocorrência criminal num tracto ou secção estatística é estabelecida com base no número total de incidentes registados nessa área. Processos mecânicos de redução de escala conhecidos por processos de normalização poderão ser aplicados a fim de pragmatizar o mapeamento, ora dividindo o número total de crimes por tracto pelo número total de crimes registado em toda a unidade geográfica de análise, ou alternativamente, dividindo o número total de crimes registados num tracto pelo número de crimes registados no tracto com maior densidade de crime (o máximo). Densidade relativa: a magnitude do crime por tracto ou secção estatística é expressa através de uma taxa relativa ao número de habitantes que residem nesse tracto, o denominador: nrº de incidentes criminais registados na secção “x” Densidade = nrº de habitantes da secção “x” Supondo então que, a título de exemplo, ocorreram 500 incidentes criminais numa 69 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa dada área, e que o número de habitantes aí residentes é 3500, expresso em decimais como 3.5 milhares, a taxa de criminalidade será de 500/3.5, ou então, aproximadamente de 142 por cada 1000 pessoas (142.86 per 1000). Eventualmente serão também empregues métodos de normalização por área da secção estatística com vista a contornar a possibilidade de um viés estatístico. Por fim, com estes valores de densidade poderão ser concebidos mapas temáticos que contrastem as diferenças de distribuição entre as secções pelo uso de cores, como os mapas coropléticos, escolhidos pela razão de facilitarem a comparação com os níveis de vegetação. Os valores de densidade são intervalados em classes, correspondendo a cada um deles uma tonalidade diferente, que varia de intensidade com a sequência de valores ou magnitude do crime (Harries, 1999; Ahmadi, 2003). Figura 3. Exemplo de um mapa coroplético (Câmara Municipal do Porto, 2001). Este processo é conhecido por classificação, em que se atribui uma cor ou tonalidade a cada unidade geográfica que corresponde a um intervalo de densidade, uma classe. Enumeram-se alguns dos mais correntes métodos de classificação de valores, cada um deles podendo gerar interpretações diferentes dos mapas: classificação em intervalos iguais (1) – em que os valores aumentam em incrementos iguais (e.g. 1-3, 4-6, 7-9); classificação por pontos de quebra (2) – o sistema informático identifica pontos de quebra da distribuição dos valores da densidade, permitindo discernir padrões; classificação em áreas iguais (3) – a divisão de classes é feita em função da equivalência de área das secções estatísticas; classificação por desvio padrão (4) – a média dos valores é calculada, e as classes diferenciadas em função do valor de desvio à média. Geralmente é recomendada a utilização de um mínimo de quatro classes, e um máximo de seis (Harries, 1999). 70 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa Convém no entanto ressalvar que estes métodos tradicionais de cálculo da densidade, embora simples e eficazes, são susceptíveis de enviesar os dados estatísticos, sobretudo quando não são admitidos na análise características geográficas da unidade de análise como a área (Ahmadi, 2003). Por isso poderão ser utilizadas em complemento diversas técnicas de interpolação, que visam estimar o valor de um atributo (i.e. o crime) em locais não referenciados a partir de pontos referenciados na mesma secção, criando assim padrões de distribuição. Alguns softwares SIG como o ArcGis estão apetrechados de ferramentas de interpolação automática que realizam estas tarefas (Childs, 2004). Diferentes mapeamentos da criminalidade, em função do tipo de crime e dos meses de ocorrência, poderão ser produzidos através do filtramento da informação introduzida no sistema geográfico de informação. Em relação aos níveis de vegetação, a partir dos dados de satélite recolhidos poderão ser criadas medidas radiométricas ou índices de vegetação que identifiquem a abundância relativa de vegetação nas imagens digitais coincidentes com a área de estudo. Os sensores de satélite captam a radiação em determinadas bandas do espectro electromagnético, armazenando a intensidade do valor de radiação recebido para cada célula de uma matriz (pixel), que é designado por nível radiométrico (Matos, 2008). O índice mais frequentemente empregue para quantificar a densidade de cobertura vegetal a partir destes níveis radiométricos é o Índice de Vegetação por Diferença Normalizada (IVDN ou NDVI27). Este índice é calculado mediante a diferença entre a reflectância no infravermelho (Rinf) e a reflectância do espectro visível (Rvis), dividida pela soma das duas reflectâncias28. Matematicamente a fórmula pode ser representada da seguinte forma: (Rinf - Rvis) IVDN = (Rinf + Rvis) Assim pode calcular-se o índice de vegetação para cada pixel da imagem, gerandose um valor que pode oscilar entre -1 a 1. A vegetação é sempre indicada por valores positivos (pois reflecte mais radiação infravermelha do que vermelha), ao passo que solos áridos ou rochosos, e sintéticos por extensão, produzem valores neutros, próximos 27 Normalized Difference Vegetation Index (NDVI) 28 http://earthobservatory.nasa.gov/Features/MeasuringVegetation/measuring_vegetation_2.php 71 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa de 0 (pois a reflectância das duas radiações é semelhante), e áreas húmidas, nuvens ou volumes de água registam valores negativos (reflectem mais radiação vermelha do que infravermelha). Valores elevados (0.8-0.9) sugerem elevadas concentrações de vegetação. Tipicamente, plantas saudáveis e vigorosas produzem valores de IVDN superiores a 0.5, e as árvores produzem valores superiores aos produzidos pela erva baixa ou arbustos (Wolfe & Mennis, 2012). Softwares como o “Erdas Imagine”29 poderão ser utilizados como ferramenta de auxílio no cálculo (Lorenzo & Wims, 2004). É importante contudo notar que o índice IVDN é susceptível a influências que podem enviesar os cálculos, nomeadamente a contaminação de pixels por nuvens, e perturbações atmosféricas causadas por aerossóis ou pela absorção do vapor de água e ozono, produzindo dispersões da radiação electromagnética e ocasionando a redução dos valores reais de vegetação que de outro modo seriam registados pelo sensor orbital. Em adição, efeitos de refração atmosférica ou variações da geometria de observação dos satélites podem também causar distorções geométricas das imagens, afectando os cálculos do IVDN (Matos, 2008; Bugalho & Pessanha, 2009; Simplicio Eduardo & Ferreira Machado e Silva 2013). A correcção poderá ser feita por calibragem da imagem de maneira a que se verifique uma perfeita coincidência entre o fluxo electromagnético e os níveis radiométricos registados pelo sensor, para todos os pixels que constituem a imagem. Todavia, as imagens de satélite são frequentemente adquiridas com uma correcção geométrica e radiométrica já implementada (Matos, 2008), ou alternativamente poderá ser utilizado também o software “Erdas Imagine” para esse efeito. Após se calcularem os índices de vegetação para todos os pixels ou células da imagem então finalmente proceder-se-á com o mapeamento da cobertura vegetal com a ajuda de um software SIG. Obtêm-se frequentemente matrizes com índices ou valores muito dispersos, pelo que é frequente utilizar-se filtros informáticos que reduzem a amplitude de valores e agregam células isoladas a fim de se obter áreas de mapeamento mais homogéneas (ibidem). A interpolação ou agregação dos índices NDVI para cada secção estatística de análise será feita através do cálculo do valor médio NDVI dos pixels inerentes a essa secção. Finalmente, com recurso ao software SIG será feita a incorporação dos 29 http://geospatial.intergraph.com/products/ERDASIMAGINE/ERDASIMAGINE/Details.aspx 72 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa mapeamentos do crime e da cobertura vegetal, em conjugação com as representações cartográficas dos dados demográficos, um processo designado de estratificação. O processo consiste em organizar a informação na forma de dados geográficos digitalizados, dividindo-a em categorias e dispondo-a em estratos separados de um mapa, que se sobrepõem. Deste modo realçam-se as correlações existentes entre diferentes fenómenos geográficos (Maantay & Ziegler, 2006). Para além das representações cartográficas de natureza bidimensional que se sobrepuseram, podemos ainda considerar os dados atributivos (e.g. tipo de crime, tipo de vegetação) como uma terceira dimensão, e ainda a evolução temporal como uma quarta dimensão, que possibilitam a filtragem e modelação para análises estatísticas significantes. 5.4. Análise de dados Recorde-se que a hipótese primária a testar é que o crime e a vegetação estarão inversamente correlacionados na área de estudo. Esta é uma hipótese conceptual e do tipo correlacional, que pressupõe a existência de uma variável dependente, os níveis de criminalidade, e uma variável independente, os níveis de vegetação. A sua verificação depende também do controlo de eventuais variáveis parasitas ou contaminadoras. O primeiro passo da análise consistirá na observação dos mapas coropléticos criados a fim de examinar eventuais padrões de coincidência espacial entre a distribuição do crime e da vegetação, e também averiguar a existência de relações espaciais com outras variáveis sócio-demográficas. Embora esta tarefa possa fornecer uma boa pista intuitiva da validade da hipótese estabelecida, exames estatísticos são imprescindíveis. Vários tipos de análises estatísticas podem ser concretizadas. Primariamente começar-se-á por realizar análises de regressão simples, uma técnica que permite explorar e deduzir uma relação entre uma variável explicativa (independente) e uma variável de resposta (dependente). Este tipo de análise requer a construção de diagramas de dispersão que contraponham os valores médios de vegetação com os valores de densidade média ou relativa do crime para cada sector estatístico de análise, e verificar como se comportam os valores da variável dependente em função da variável independente, para além de subsequentes cálculos estatísticos. Ao nível do diagrama, quanto maior for a concentração de pontos (X,Y) em relação à recta de regressão, maior será a correlação entre as variáveis Para determinar-se a relação entre as duas variáveis utiliza-se a seguinte equação (Sykes, 1992; Cottrell, 2011): 73 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa onde Yi corresponde á variável dependente (i.e. níveis médios de crime), Xi corresponde à variável independente (i.e. níveis médios de vegetação), e constituem parâmetros ou coeficientes de regressão e são valores constantes, sendo que o primeiro corresponde ao ponto de intercepção da recta de regressão com o eixo Y do diagrama de dispersão, e o segundo corresponde ao declive da recta de regressão. Por fim, corresponde a uma variável exógena que captura eventuais factores residuais que influenciam a variável dependente. Será também apurado o valor-p e eventualmente realizados testes t de student para testar a hipótese nula. Complementarmente utilizar-se-á também o coeficiente de correlação de Pearson (r) para determinar uma correlação efectiva entre as duas variáveis. Este coeficiente assume valores que oscilam entre -1 e 1. Valores superiores a 0 sugerem uma correlação positiva (em que uma aumenta proporcionalmente em relação ao crescimento da outra), e valores inferiores a 0 indicam uma correlação negativa ou inversa (variam em sentido oposto); o valor 1 indica uma correlação perfeita entre as variáveis, o valor aponta para a inexistência de uma correlação linear, e -1 indica uma correlação negativa perfeita (Naghettini & Pinto, 2007). O coeficiente de Pearson é expresso pela seguinte equação: σ x, y x,y = σx σy Em que ‘σ x, y’ corresponde à covariância entre as variáveis X e Y, e ‘σx’ e ‘σy’ são os desvios-padrão das variáveis X e Y, respectivamente. Para apurar ainda o poder explicativo da variável independente (i.e. os níveis de vegetação), empregar-se-á o coeficiente de determinação (R²), cujo valor varia entre 0 e 1, em percentagem. Quanto mais próximo o valor estiver de 1, melhor explicará a variável independente os níveis de criminalidade. A título de exemplo, um valor de 0,7139 significará que a 71,39% da variável dependente é explicada pelos níveis de vegetação. O coeficiente de determinação consiste no quociente da variação explicada de Y (variável dependente) pela variação total de Y (Naghettini & Pinto, 2007). 74 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa SECÇÃO V O FRUTO: RESULTADOS 75 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa CAPÍTULO VI: RESULTADOS E LIMITAÇÕES 6.1. Resultados e planeamento de testes estatísticos Sendo nesta etapa ainda difícil fazer uma previsão fundamentada dos resultados desta investigação, visto que não se procedeu a qualquer tipo de recolha de dados empíricos nem se definiu ainda uma área de estudo concreta, vai-se pressupor de qualquer modo resultados favoráveis à hipótese formulada. Após a eventual verificação da hipótese, será ainda necessário realizar mais alguns testes estatísticos para controlar variáveis contaminadoras. O coeficiente de correlação de Pearson será empregue para testar o poder correlativo de cada variável, a independente (i.e. índices de vegetação) e as variáveis confundidoras (e.g. densidade populacional, densidade de ocupação, taxas de desemprego) com os níveis de criminalidade. Uma regressão múltipla dos mínimos quadrados ordinários (MQO) será utilizada para averiguar o poder explicativo dos níveis de criminalidade pela vegetação, controlando as outras variáveis explicativas (i.e. as variáveis confundidoras). Adicionalmente, outros testes estatísticos afiguram-se importantes para controlar alguns dos problemas mais frequentes que surgem de regressões estatísticas, como a multicolinearidade (em que duas ou mais variáveis preditoras estão correlacionadas) e a autocorrelação (influência que a variável dependente exerce sobre si mesma em espaços contíguos). Para controlar a multicolinearidade poderá ser empregue um diagnóstico de factor de inflação de variância, ao passo que a autocorrelação poderá ser controlada mediante a aplicação da estatística Moran´s I e de modelos de regressão espacial. A fim de obter resposta para cada um dos objectivos específicos propostos para esta investigação, outras análises estatísticas serão realizadas. De modo a distinguir-se qual dos mecanismos propostos (v. objectivos) exerce maior influência na prevenção da criminalidade, contrastar-se-ão os mapas da criminalidade violenta e da criminalidade contra a propriedade com o mapeamento da cobertura vegetal, e conduzir-se-ão análises de correlação estatística de Pearson. Em relação ao segundo objectivo, este será concretizável caso tenha sido possível distinguir e indexar os diferentes tipos de vegetação pelo uso da tecnologia LIDAR; nesse caso, realizar-se-ão exames de comparação empírica entre os mapeamentos de cada tipo de vegetação e os níveis de 76 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa criminalidade, e novamente recorrer-se-á ao coeficiente de correlação de Pearson. Em terceiro lugar, para se averiguar se a relação entre o crime e a vegetação é linear ou nãolinear, definir-se-ão valores baixos, médios e elevados de densidade vegetal, comparando-se o crescimento da variável dependente (os níveis de crime) consoante esses valores; em adição, far-se-ão regressões estatísticas para testar a linearidade da relação. Por fim, a fim de desenvolver um modelo preditor da probabilidade de ocorrência de uma incidência criminal do tipo violento ou contra a propriedade consoante a densidade de cobertura vegetal, realizar-se-á uma regressão logística, computando-se as concentrações variáveis da criminalidade e da vegetação. Através de uma equação preditora chegar-se-á a um valor probabilístico da variável dependente (i.e. probabilidade da ocorrência) em função da variável independente, para cada secção ou tracto estatístico da unidade geográfica. 6.2. Limitações da investigação No concernente às dificuldades desta investigação, pode-se referir como primárias a eventual dificuldade de aquisição de um software GIS, que é a engrenagem fundamental à realização eficaz deste estudo, e também a dificuldade de obtenção de estatísticas criminais que sejam suficientemente representativas da criminalidade na unidade geográfica sob análise, tendo-se em consideração a existência de múltiplos órgãos de polícia criminal em Portugal, alguns dos quais com jurisdições geográficas coincidentes, e muito embora apenas um − a Polícia de Segurança Pública − tenha regularmente jurisdição sobre as áreas metropolitanas, as suas competências de investigação criminal são limitadas, sendo alguns crimes como o homicídio da competência exclusiva da Polícia Judiciária, o que naturalmente gera uma dispersão dos dados oficiais de criminalidade que é adversa a uma recolha adequada das estatísticas necessárias à realização desta investigação. Em relação às limitações da investigação, mais concretamente dos resultados que esta possa produzir, enumera-se de seguida algumas das principais: o design transversal deste estudo, cujas limitações são bem conhecidas por comparação aos estudos do tipo longitudinal, nomeadamente o problema de discernir uma simples correlação de uma relação de causalidade (de Vaus, 2001); o dito calcanhar de Aquiles das abordagens ambientais, o deslocamento criminal, na base do qual está a ideia de que a redução ou prevenção do crime num dado local implica na realidade a deslocação do crime para 77 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa outras áreas onde o crime regista um aumento, traduzindo assim um esforço de prevenção limitado ou nulo (Hesseling, 1994). Neste ângulo de investigação, e tal como salientam Kuo e Sullivan (2001a), a resposta para o problema da deslocação poderá depender do tipo de criminalidade em apreço, nomeadamente se considerarmos os dois tipos de mecanismos através dos quais a vegetação poderá contribuir para a prevenção do crime. Se por um lado o aumento da vigilância informal tal como promovida pela presença de vegetação poderá conduzir à deslocação do crime para zonas ou alvos mais vulneráveis, pois a vigilância não produz uma redução efectiva dos impulsos criminais, por outro lado o deslocamento do crime é menos provável quando a vegetação previne a criminalidade violenta mediante a redução da irritabilidade e impulsividade associada ao stress e fadiga mental. Ademais, nem sempre a redução do crime num local pressupõe o deslocamento para outro local, e o deslocamento nunca é completo. Um criminoso que é obrigado a deslocar-se em razão do aumento da vigilância poderá simplesmente desistir de cometer um crime ou então selecionar um local ou alvo que impliquem um maior risco de captura, pelo que as medidas de prevenção ambiental traduzemse numa redução efectiva de alguma forma de criminalidade (Clarke, 1997; Cusson, 2002; Weisburd et al, 2006 cit. in Donovan & Prestemon 2012); uma limitação mais específica deste estudo é a utilização do índice de vegetação IVDN, que embora seja um indicador fiável dos níveis de cobertura vegetal de uma dada região, é limitado na sua capacidade de distinguir diferentes tipos de vegetação cuja análise seria pertinente, para além do estado de manutenção dessa vegetação (Wolfe & Mennis, 2012). Todavia, a eventual utilização de outros métodos de recolha como a tecnologia LIDAR poderia compensar por essa limitação; uma outra limitação é fruto do tipo de procedimento estatístico utilizado, concretamente a interpolação ou agregação de dados por secção estatística, o que poderá produzir um tipo de falácia ecológica30 (ibidem); tendo em consideração a complexidade das dinâmicas sociais em jogo num local urbano, é também impraticável controlar todas as variáveis que poderão influenciar a criminalidade tacitamente ou em conjugação com a vegetação, constituindo também essa uma potencial limitação do estudo; por fim, o problema da representatividade dos resultados, que não serão absolutamente generalizáveis a outras metrópoles dada a grande heterogeneidade das características que definem e distinguem cada uma dela (ibidem). 30 Modifiable Areal Unit problema (MAUP). 78 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa SECÇÃO VI A SEMENTE: DISCUSSÃO 79 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa CAPÍTULO VII: CONSIDERAÇÕES IMPORTANTES As vantagens de uma abordagem ambiental por contraste à abordagem tradicional que se foca no criminoso, na sua socialização, ou ressocialização, são inúmeras. Admitindo-se que é uma abordagem menos específica e personalizada, e certamente ineficaz na supressão das inclinações ou impulsos criminais, os quais em boa verdade nunca poderão ser absolutamente debelados, é igualmente válido caracterizá-la como mais abrangente no seu foco de intervenção, e mais parcimoniosa no custo intelectual e custo económico. A abordagem ambiental é uma abordagem utilitária, de prevenção primária, de natureza sistemática e autonomizável, e de aplicação ecuménica, configurando por isso uma forma de combater a criminalidade com relevância política e prática imediata. Conforme foi referido no início deste trabalho, a génese das abordagens ambientais remonta ao descontentamento político com as abordagens preventivas do tipo secundário ou terciário, e à desacreditação social dos modelos de justiça correctiva, desenvolvendo-se por isso no sentido de colmatar algumas das falhas ou deficiências dessas abordagens tradicionais, sem contudo negar as suas próprias insuficiências. Abordar a criminalidade do ponto de vista ambiental é uma tendência científica em crescimento, e esta investigação, na calçada de outros estudos realizados nos últimos anos, visa elucidar para uma possível nova forma de combater o crime indirectamente, de modo inovador e atractivo, sem incorrer em grandes despesas, valorizando a manipulação do ambiente e dos seus elementos no interesse de rentabilizar o seu poder preventivo e de capitalizar a capacidade da comunidade em se auto-defender. A proposta de se reduzir o crime através da simples plantação ponderada e manutenção de vegetação urbana é aliciante, e não de todo implausível, conforme se demonstrou neste trabalho, muito embora não possa ser vista como uma panaceia ou antídoto do crime. Reconhecendo-se isto, é importante notar que não se pode dispensar o controlo formal ou policiamento das urbes, assim como outras estratégias sociais e individualizadas de prevenção, cuja complementaridade é fundamental à eficácia deste e outros tipos de abordagem ambiental. Com efeito, algumas problemáticas sociais estão profundamente enraizadas na organização e dinâmica sócio-espacial, podendo-se considerar estruturais, e por isso a mera intervenção ambiental revelar-se-ia infrutífera. Constituem exemplos 80 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa disto nichos urbanos desfavorecidos onde prevalecem vários indicadores sócioeconómicos de precariedade como a pobreza e o desemprego, e onde proliferam problemas sociais como o consumo de drogas e outras formas de desviância inveterada, situações agravadas pela marginalização e estigmatização das populações residentes, e onde a mera plantação de árvores ornamentais ou a edificação de jardins num esforço de debelar os problemas existentes é uma tentativa irrazoável e inevitavelmente relegada ao fracasso, embora pertinente se devidamente conciliada de outras intervenções. Os atractivos desta abordagem ambiental não se circunscrevem porém aos seus potenciais efeitos preventores da criminalidade, conjugando-se ainda uma multiplicidade de outras vantagens sociais, económicas e ecológicas que pressupõe, transcendendo largamente as habituais motivações estéticas ou recreativas que incentivam à instalação da vegetação. Quando devidamente planeada e gerida, a floresta urbana promove a saúde pública, ao reduzir o stress, melhorar a qualidade do ar, reduzir a poluição sonora, e incentivar ao exercício físico (Lee & Maheswaran, 2010; Bowler et al, 2010), mitiga o impacto ecológico da poluição urbana de variadas formas, a mais óbvia através da absorção e redução do dióxido de carbono e ozono atmosférico, mas também ao reduzir as necessidades de consumo energético, reduz o efeito da precipitação, subsequentes inundações, e custos económicos associados, reduz a erosão do solo, regula o clima urbano, tornando-o mais propício e ameno, promove a biodiversidade urbana, e de modo bastante relevante, a presença e proximidade de vegetação está associada a um aumento do valor de mercado dos imobiliários, e até mesmo a efeitos catalisadores do consumo comercial (para uma revisão da literatura, ver Dwyer et al, 1992; Tyrväinen et al, 2005; Nowak & Dwyer, 2007; Heidenreich, 2008; Carvalho, 2009). Embora a maior parte destes achados se refiram ao contexto urbano estadunidense, um estudo recente em Portugal produziu algumas conclusões semelhantes, fazendo previsões ainda mais optimistas das vantagens que a presença da vegetação nas cidades portuguesas oferece (Soares et al, 2011). Na eventualidade desta futura investigação corroborar a noção emergente do potencial preventivo da vegetação sobre a criminalidade, mais uma outra razão lúcida e pertinente deverá incentivar à revisão das políticas de planeamento urbano no sentido de incluir estratégias que visem todo o potencial da vegetação em contribuir para o bemestar e segurança dos habitantes urbanos. 81 Estudo da relação entre o crime e a flora urbana numa metrópole portuguesa BIBLIOGRAFIA Adler, F. & Laufer, W. S. (1999). The criminology of criminal law. New Jersey, Transaction Publishers. Adler, F., Mueller, G. O. W. & Laufer, W. S. (2004). Criminology and the criminal justice system (5th edition). New York, McGraw-Hill. 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