tem como objetivo fomentar a discussão no âmbito da teoria e
crítica literárias e culturais tendo como norte a discussão em torno
das diferentes literaturas e da pluralidade de experiências estéticas
possibilitadas por seus rastros. Com o intuito fundamental de promover
o pensamento acerca do literário tendo em vista seu ato produtivo,
o periódico busca desenvolver-se a partir de contribuições acadêmicas,
literárias e visuais nos âmbitos da literatura e suas inter-relações com
as artes, a filosofia e as ciências humanas.
2
editor-chefe Piero Eyben
organização desse número Piero Eyben
conselho editorial Andrea Potestà (Universidad Católica de Chile); Claudio
Daniel (poeta paulista); Elizabeth de Andrade Hazin (UnB) Evando Batista
Nascimento (Universidade Federal de Juiz de Fora); Fernanda Bernardo
(Universidade de Coimbra); Ginette Michaud (Université de Montréal); Ivan
Francisco Marques (Universidade de São Paulo); Jean-Michel Rabaté
(University of Pennsylvania); João Camillo Penna (Universidade Federal
do Rio de Janeiro); Junia Regina Barreto (Universidade de Brasília); Marc
Crépon (École Normale Supérieure); Mireille Calle-Gruber (Université Paris III
– Sorbonne Nouvelle); Paulo César Duque-Estrada (Pontifícia Universidade
Católica-RJ); Roberto Zular (Universidade de São Paulo); Silvina Rodrigues
Lopes (Universidade Nova de Lisboa).
editora assistente Fabricia Walace Rodrigues
editor da seção khôra Claudio Daniel
arte, edição e diagramação Rafael Machado da Cunha
revisão e preparação de textos Clara Teles Barreto Brandão, Gabriela
Lafetá Borges, Juliana Cecci Silva, Luísa Farias Caetano, Luísa Leite S.
de Freitas, Marcella Assis Moraes, Mariana Graça Lira, Maysa de Oliveira
Sales, Mônica Ferreira Gaspar de Oliveira.
curadoria visual Gregório Soares
correspondência Editorial
o mutum ◊ revista de literatura e pensamento
Prof. Dr. Piero Eyben – Grupo Escritura: Linguagem e Pensamento
Universidade de Brasília – Departamento de Teoria Literária e Literaturas
Campus Universitário Darcy Ribeiro – ICC Ala B, Sul, Sobreloja, sala B1-09
CEP 70910-900 – Brasília – DF.
[email protected]
Publicação do Grupo Escritura: linguagem e pensamento, dos
Programas de Pós-graduação em Literatura, da Universidade de Brasília,
a revista eletrônica tem periodicidade semestral.
3
literatura: escrever o pensar
01. janeiro-julho de 2013
Sumário
Editorial
Piero Eyben ..................................................................................................07
arquivos: literatura: escrever o pensar
Escrever o mutum
Piero Eyben ..................................................................................................10
Uma ética do indecidível
Gérard Bensussan ........................................................................................41
(tradução de Daniel Barbosa Cardoso)
A virada literária
Nicholas Royle ............................................................................................54
(tradução de Mariângela Andrade Praia)
O instante literário e a significação corporal do tempo – Levinas leitor
de Proust
Danielle Cohen-Levinas .................................................................................83
(tradução de Luísa Freitas)
Porém, sem medida
Silvina Rodrigues Lopes ................................................................................98
Kafka e Derrida: a origem da lei
Marc Crépon ...............................................................................................128
(tradução de Juliana Cecci Silva e William de Siqueira Piauí)
A palavra e o deslizamento: considerações sobre a literatura na obra
de Maurice Blanchot
Daniel Barbosa Cardoso ..............................................................................146
Corpo de estrela e sex machine – sobre a estética do glamour
Serge Margel ..............................................................................................161
(tradução de Marcos de Jesus Oliveira)
Leibniz e Benjamin: uma introdução às teorias tradicionais da tradução
ou às metafísicas da língua de saída e de chegada
Juliana Cecci Silva & William de Siqueira Piauí ...............................................183
ensaios
Ficção Moderna
Virginia Woolf .............................................................................................205
(tradução de Lucas Lyra)
khôra
olho por olho
Maria Alice de Vasconcelos ..........................................................................215
Astrolábio
Jônatas Onofre ............................................................................................216
Consciência Lenta
Francisco Alves Gomes ................................................................................217
Sonata Barroca
João Foti .....................................................................................................218
As guelras do mar
Maria Fátima ................................................................................................219
“É de um Par de Venezas o vaivém da Porta Bang-Bang à...”
Fabrício Slavieiro .........................................................................................220
Carta à distância
Francis Espíndola ........................................................................................221
“A vida é uma mulher negra”
Luiz Ariston .................................................................................................222
lumescrita
pairos
Gregório Soares .........................................................................................224
6
editoral
Piero Eyben
A estreia. Uma revista também se estreia. Esse é o primeiro de muitos números
por vir, de uma revista que pretende estar sempre porvir. Como fruto de um
trabalho coletivo, do Grupo de Pesquisa Escritura: linguagem e pensamento,
que tem por sede o Departamento de Teoria Literária e Literaturas da
Universidade de Brasília, o mutum ◊ revista de literatura e pensamento intenta
promover e divulgar as pesquisas teórico-críticas e artísticas não apenas de
seu grupo fundador, mas buscar o diálogo infinito com outros segmentos da
produção do saber, com uma diversidade de vozes que não estejam circunscritas
seja a região, seja a língua. A revista divulga estudos de caráter teórico e crítico
na área de estudos literários, filosofia, artes e ciências humanas, sob forma de
artigos, ensaios, textos literários e ensaios visuais. E está dividida em quatro
seções: (1) arquivos: dossiê sobre um assunto específico; (2) ensaios: textos
clássicos traduzidos; (3) khôra: lugar da escritura literária; (4) lumescrita: as
artes visuais em diálogo com o pensar.
Nesse número de estreia, o tema arquivo trata da literatura como
lugar da escritura, da escritura como lugar do pensar. Ao escolher por título
Literatura: escrever o pensar, a relação entre literatura e pensamento aparece
em primeiro plano e torna-se uma necessidade. Necessidade, como todas,
urgente e última. Assim, ao pensar os caminhos de inscrição da experiência
literária, o primeiro número da revista conta com nove textos que circundam
o assunto, nas mais diversas modalidades críticas. Com uma diversidade
importante de pensadores e lugares do mundo (que vão de Sussex à Paris e
Estrasburgo, de Sergipe a Brasília, de Lisboa a Genebra), alguns dos quais
já bastante representativos no ambiente acadêmico, o mutum ◊ revista de
literatura e pensamento tem seu lançamento marcado por uma definição da
desconstrução, talvez a única definição possível ofertada por Derrida, plus
d’une langue [mais de uma língua, nenhuma língua]. Assim, fazer pensar a
própria estrutura do texto literário, seja pelo artifício da nomeação, seja no
campo da indecidibilidade ou dos desvios, torna esse primeiro exemplar da
7
revista uma peça fundamental para a recepção dos pensadores que aqui se
propõem discutir e debater temas tão relevantes para a contemporaneidade,
para o saber que se coloca sob o risco do próprio literário.
Na seção ensaios, o leito encontrará o clássico Ficção moderna, de
Virginia Woolf, em uma nova tradução, que intenta colocar em recirculação
os problemas narrativos ali já sugeridos pela autora. Esse ensaio, por mais
controverso que pareça, representa, desde já, uma importante forma da
escritura pensar o pensamento e este escrever-se.
Na seção khôra, a produção poética recentíssima de autores que
ainda são uma promessa à vindoura literatura de língua portuguesa. Forma
distinta do pensar, adiamento condensado. E, por fim, na última seção,
lumescrita, o ensaio visual que reflete não apenas o lugar da fotografia, mas
a fenda, o rastro, o historial.
Deixo-os com a hipótese de se poder fazer ler o acontecimento, na
margem desses textos que ainda hão de demorar. Muito, multus. Mudos,
mutus. Tomando a palavra, a que se explica no texto que segue.
Piero Eyben
Brasília, 18 de fevereiro de 2012.
8
9
escrever
o mu tum
p i er o ey b e n
10
escrever o mutum
Piero Eyben1
Exergo – Datações
“Ligo tudo isso, aturdida, à ave que desce sobre meu ventre e, muitas
vezes, muitas, sondo as nuvens. Mas a ave não volta, nunca mais,
nunca, não reaparece.”
Osman Lins2
2. Lins, Osman. Avalovara.
Rio de Janeiro: Record,
1999, p. 41.
“Mas o que demora para vir, o que não vem, é mesmo esse fim da
noite, a aurora rosiclara. Onde agora, é o miolo maior, trevas. Horas
almas. A coruja, cuca. O silêncio se desespumava.”
João Guimarães Rosa3
3. Rosa, João Guimarães.
Corpo de baile. 2. ed. Ilustr.
de Poty. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1960, p. 432.
O mutum: entre a recusa e o erigir. Algo sempre é demovido da
figura, de sua capacidade figurativa. O mutum. Mutum. Tomas a palavra, à
letra. Algo, então, pode ser dito como se da figura a imagem se fizesse e, feita,
passasse a uma irrupção, à experiência do a mais, daquilo ter sido visto por
um e mesmo olho, a partir do outro, desde ali. Ardor tranquilo é o que pode
vir convergido da imagem. Ardência tumultuosa daquilo que permanece em
por vir, em chegância deliberada, sorte. A eficácia da imagem capaz de dizer
o acontecimento deste que é o visivo ou, dirias até, daquilo que foge e precisa
esvanecer. Limite invisto, rastro, do que se dá – na realidade tu me ofertas esse
espaço, um lugar – no impossível, na distância que, não sendo sensível, habita
apenas enquanto demora, enquanto objeto eternamente perdido: mutismo,
Universidade de Brasília. Professor Adjunto II de Teoria da Literatura. Bolsista de Produtividade do
CNPq. Líder do Grupo de Pesquisa Escritura: linguagem e pensamento.
1
11
mas apelo, escrito. Assim, o dizer do acontecimento guarda sua promessa,
sempre em mente, no aquém daquilo que ocorre, que chega a ocorrer, que tem
lugar. Toda imagem tem lugar? Em que espaço a imagem ganha sua existência,
fora do mundo?
Escrever tende a ser. Poderias escrever assim, intransitivamente? O
só espaço desse segredo, que frente ao outro, ao rosto outro, de qualquer
outro, emerge – se erige – como doação, de palavra, para fora do em si, do
mesmo, do ser-em-si. Talvez, aqui, já mais de um, e menos. Dirias, ainda, em
desconstrução. Sempre no campo do segredo, da necessária aventura em se
manter em segredo – tomado à prisão, dessa vinda oriental e do arresto – o
absoluto do segredo, tratas de escrever, manter a escritura como senda, ou,
e melhor, como acontecimento a-propriativo, ao que se verá. No entanto, se
está sempre à escuta, na preparação de um ato que se deslinda na figura, na
proibição de uma representação, em sua desconfiança. O que se guarda aqui,
como texto, é o ponto em que se pode trilhar o conjunto de diferenças daquilo
que se pode questionar pensando, manter em exame o impasse a ser escrito.
Dessa forma, o problema que surge, imediato ao texto e a sua figura é, por
certo, um conjunto que suplanta toda representação e, ao mesmo tempo – pois
se trata de simultaneidade, por fim –, destitui a dialética imagem e conceito na
história da literatura e das artes plásticas. O que se guarda, como todo segredo,
é um campo de promessa, de porvir. Guardar não é outra coisa senão manter
na posse de, proteger, impedir a fuga. Pode-se prometer apenas aquilo que
possa ser guardado, posto em caixa, hermético. Mas ao mesmo tempo toda
promessa, para que se mantenha como promessa, deve – tratando-se sempre
aqui de imperativos – manter-se como um futuro, uma guarda futura para a
escritura. Cada palavra, portando a natureza dessa promessa, permite uma
figura se fazer, se delinear como imagem e, logo, som. Eis alguns dos dilemas
da escritura, e também da imagem.
Torno ao mutum. Há alguns anos essa imagem me persegue4 – e, de
súbito, a ti também. Dessa ave, o espaço de reverberação. Não apenas nas
contas do acaso, mas já em termos de eficácia precisa, de apresentação moldada
na oportunidade e, desde esse movimento calculado, um distar que caotiza,
faz casar azar e sorte com engendramento porvindouro. Dessa ave, portanto,
derivei todo um sentido daquilo que começo a pensar sobre a escritura, sobre
4. Em 2001, escrevi um conto
intitulado “Dois mutuns”, que
permanecerá inédito, ou melhor,
restrito àqueles que o leram como
uma forma de exercício formal,
inaudito. Nele, estava aturdido
com uma representação, em
gravura, dessa ave, na capa de um
livro de ornitologia, ou de um
catálogo de aves brasileiras, não
me lembro bem. Dali, compus
um enredo na relação entre o
obscuro e o sublime, de uma
família em ruínas, em modus de
extinção. Ainda, agora em 2004,
escrevi um poema “mutum”, que
apareceu publicado em 2011, em
ocos (São Paulo: Lumme, 2011,
p. 19). Muito impressionado
que vinha da leitura das
novelas-poemas de Rosa, em
suas aparições de mutuns, que
analisarei mais abaixo. Naquela
altura, o problema da voz e
do segredo circundavam já
minhas preocupações acerca da
poeticidade e da nomeação, da
experiência violenta da figura
que emudece a posse
do representável.
12
a falência da designação e da metafísica do silêncio como solução ao problema
da comunicabilidade. Essa derivação, essa erosão de margens, de assimilações
e exclusões, pôde reconduzir certa lógica dual entre, de um lado, a figuração da
linguagem a partir do animal, do uso metafórico dos animais para redesenhar
o espaço da literatura e da filosofia, na tradição do eriçar contido em si, por
si; e, de outro, na busca da animalidade como lugar aporético por excelência,
lugar do impudor da própria vitalidade que circunda a escritura, que a faz
conduzir-se para além da técnica, em uma luta de sobrevivência, de caminho
que se busca decidir. Por isso, torno ao mutum, esse rastro inabordável desde
uma origem possível acerca do que é o escrever.
(a) Metáforanimal, duplo gênero: o ouriço, a ouriça. Logo, um primeiro
passo, diante do sentido. O animal sempre pôde ser tomado por metáfora,
símbolo; seja do incomunicável, seja de uma dada pobreza (“das Tier ist
weltarm”, nos dirá Heidegger), seja desde a fábula, seja como sintetizador de
todo um pensar poético que condensa o fragmentário, o absoluto, a finição. Essa
tomada, transitivo-predicativa – uma vez que se toma o animal por metáfora
–, além de uma posse, uma atribuição de propriedade, está implicada uma
hermenêutica. Desse modo, a pergunta sobre o ser da coisa, sobre o sentido
do objeto – no caso, um não-objeto –, encontra-se desde já no horizonte
da interpretação, desse ato sempre prévio e previsível, como movência de
uma totalidade conjectural compreendida a partir de uma apropriaçãode-compreensão [Verständniszueignung]5. Em outro sentido, o caminho
identificável que compõe a compreensão enquanto apropriação do próprio,
de certa unicidade, constitui o cerne da fábula, do uso indiscriminadamente
moral do animal para uma propriedade humana que o erija como ser dotado
de linguagem e espírito, distanciado do animal incompleto de alma, como
parece sugerir Aristóteles6, ao dá-lo tato e percepção. Assim, a compreensão
apropriativa da metáfora implicaria uma noção predicativa e, portanto, na
busca por aspectos inerentes à realidade a ser figurada, o que, no caso, emerge
do uso – do abuso – do animal como forma teriomórfica de representar o
próprio do homem. Eis aí uma aporia: nessas impossibilidades residem o que
é a destituição do próprio do que significa uma metáfora.
5. Heidegger, Martin. Sein
und Zeit. Frankfurt am Main:
Vittorio Klostermann, 1977,
Gesamtausgabe – I. Abteilung:
Veröffentlichte Schriften
1910-1976 – Band 2, p. 199.
6. Aristóteles. De anima.
Apres., Trad. e notas Maria
Cecília Gomes dos Reis. São
Paulo: 34, 2006, p. 76.
13
Retornemos à Ilíada, um instante duradouro apenas, dois versos:
ἠΰτε κίρκος ὄρεσφιν ἐλαφρότατος πετεηνῶν
ῥηϊδίως οἴμησε μετὰ τρήρωνα πέλειαν,
[feito gavião montês, a mais ágil das aves,
que, fulmíneo, cai sobre tímida columba]7
7. Campos, Haroldo de. Ilíada de
Homero – vol. 2. Ed. Bilíngue.
Trad. Haroldo de Campos. São
Paulo: Arx, 2002, c. XXII, v. 139140, p. 366-7.
Aqui, um rastro do problema. A assimilação do homem ao animal, do
guerreiro Peleio que se lança levemente, como um hábil projétil, feito falcão
[κίρκος], atacando violentamente [οἰμάω] sua presa, a tímida pomba [πέλεια],
o domador de cavalos, Héctor. A imagem substitui dois paradigmas: um de
movimento e estado – a habilidade de voo (πετεινός) do falcão e a timidez/
receio (τρήρων) da pomba – que fazem convergir duas imagens no segundo
paradigma, os inimigos em combate, Aquiles e Héctor, falcão (um jovem
falcão por sua hábil leveza) e a pomba, respectivamente. Todos os elementos
ausentes aqui parecem retomáveis, em um resgate típico do símile, se
compreendido como uma comparação sinônima, identificatória. A figuração
parece ater-se ao estereótipo da apresentação dos personagens, no sentido
de uma ferocidade inerente a Aquiles frente aos modestos golpes de Héctor
nessa batalha. O emprego da comparação parece, portanto, ser assimilação do
enredo, uma espécie de interlúdio imagético que diferiria a noção pragmática
de enunciação de uma guerra, de um combate, daquela que se modela a partir
de um uso retórico da figuração, ou seja, de um campo literário que representa
o mundo em novas feições.
A disrupção produzida pela figuratividade não seria tomada em conta
se continuássemos com essa limitante compreensão da metáfora. Tu bem a
sabes da necessária articulação entre dizeres. Muito além da modelagem e
do recurso estereotipado das imagens, Homero parece trabalhar uma espécie
de impossibilidade aquém da linguagem figurativa, uma forma de pensar
a metáfora desde si. O campo complexo desses paradigmas precisam ser
articulados, em termos paramórficos8, ou seja, por analogia formal, por uma
supressão sígnica, ou melhor, por seu campo quase-sígnico, como bem apontou
8. Pignatari, Décio. Semiótica &
Literatura. 6. ed. Cotia, SP: Ateliê,
2004, p. 170.
14
Décio Pignatari, em termos sugestivos. No campo da metáfora não cabe a mera
contemplação de um meio à mensagem, não se trata nunca de uma persuasão
constativa da verdade sígnica. Dirias antes que a metáfora é uma possibilidade
irruptiva de empréstimos e disseminações, a possibilidade de a linguagem
se tornar uma impossibilidade dizível. Sendo assim, a metáfora, entendida
como mera modulação discursiva, não constitui dilema ao pensamento, não
se engendra como substância e predicação de uma expressividade, de um
dizer que necessariamente se desliza do imperativo do outro. Nesse sentido,
a metáfora pode ser pensada como impulso à tradução, como movimento de
uma passagem a outra, de uma sentença a outra. É o que parece sugerir Paul
de Man, analisando Locke:
It is no mere play of words that “translate” is translated in German
as übersetzen, which itself translates the Greek meta phorein or
metaphor. Metaphor gives itself the totality which it then claims
to define, but it is in fact the tautology of its own position. The
discourse of simple ideas is figural discourse or translation and, as
such, creates the fallacious illusion of definition.9
A noção suplementar da tautologia tradutória implica uma releitura
do discurso de “simples ideias” como um discurso “figurativo”. Desse modo,
ao tentar definir algo está-se traduzindo figurativamente, transportando
a posição até outra posição, o que enreda a metáfora em uma rede de
complementaridades e correspondências, de impossibilidades definitórias
e, assim, de uma linguagem que não seja ela mesma uma figuratividade.
Sendo assim, o falcão-Aquiles e o pombo-Héctor não seriam meras imagens
facilitadoras do entendimento, mas antes questionamentos acerca do próprio
nome, do nome como posição e elemento actancial, que se transporta a uma
adulteração originária de tudo o que possa ser a essência de sua materialidade,
de sua disposição natural no mundo. A metáfora seria, portanto, uma
figura da desfiguração, um decurso ao discurso que, em certo sentido,
impede o conceito não estar em elo predicativo com o próprio tropo10. De
Man, ao analisar a operação mental em textos de Descartes e Condillac, a
definirá como metáfora de metáforas, justamente no sentido de, como ato
posicional, a mente/o espírito apenas poder ser verbal, ou seja, ser validado
9. De Man, Paul. The
Epistemology of Metaphor. In:
Aesthetic ideology. Introduction by
Andrzej Warminski. Minneapolis:
University of Minnesota Press,
1997, p. 38.
10. Ibidem, p. 43. De Man
sugere que “as soon as one is
willing to be made aware of their
epistemological implications,
concepts are tropes and tropes
concepts.”
15
por “illusory resemblances”11. O que parece estar em jogo, por conseguinte,
não é o contexto de enunciação, de enredo, mas a própria noção atributiva das
similitudes como elemento necessariamente ilusório, assumidamente ficto.
Nenhuma terminologia sai impune a isso, tu dirás. Todo esclarecimento deve
ser perpassado por essa representatividade exaustiva de uma remissão, de um
apartamento da linguagem frente a sua mediação, seus engajamentos fortuitos
e, logo, de suas necessidades comunicacionais. Dessa ficcionalidade, emerge o
problema da codificação, da atribuição do ser enquanto propriedade, ao que
Paul de Man propõe: “The attribute of being is dependent on the assertion
of a similarity which is illusory, since it operates at a stage that precedes the
constitution of entities”12. Assim, nessa anterioridade de estágio, a similaridade
pressupõe a retórica como um sistema “that is not itself a code”13, ou seja,
as estruturas retóricas, que, no caso dos versos de Homero, reconhecem
um estatuto de substituição homem-animal, não podem ser simplesmente
entendidas previamente, como uma teleologia de modos e categorias a serem
pinçadas de uma poética. A dependência da figuração produz não mero
prazer estético, mas uma estética na qual o “proliferativo e disruptivo poder
da linguagem figural”14 é concebido como uma forma de epistemologia, como
um ir-se ao outro, em sua extensão. Assim sendo, retorno a Homero, ainda
uma vez. Atendo-me a duas palavras, uma de cada vez: ἠύτε e πέλειαν.
A partícula ēute tem uso específico no idioma grego. Em situação quasedêitica, o termo refere-se à situacionalidade citacional que marca o processo
do símile. Como um este demonstrativo, ēute implica um gesto-de-palavras
que mostra a própria figuratividade, que a prova desde suas designações
indiciais, de uma dada situação enunciativa na qual, necessariamente, a
conjunção comparativa está implicada no fato. Sua tradutibilidade implica um
como, um necessário tal qual, do mesmo modo que, o que Haroldo de Campos
traduziu, regionalmente, por feito, potencializando o lugar da linguagem
como factum, o poema como uma ocorrência e um ter lugar do ser-dito, do
dizer que não é mero paradigma, mas como uma assunção acontecimental.
Haroldo está seguindo à risca o lugar do engendramento linguístico que é
possível na fala do povo, pois, como escreve em uma de suas Galáxias, “o
povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila o povo é o inventalínguas
na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso”15.
11. Ibidem, p. 45.
12. Ibidem, p. 45.
13. Ibidem, p. 49.
14. Ibidem, p. 50.
15. Campos, Haroldo de.
Galáxias. São Paulo:
Ex-Libris, 1984.
16
A malícia e o subterfúgio experimenta esquivas, desdobra-se em um feito,
feito fato ocorrido, feito história. E é nesse caminho que Homero constrói
uma sentença paratática que faz índice anafórico e catafórico sobre si, sobre
os partícipes do duelo. A imagem, estancada, emudecida, designa a si mesma
como uma imagem tal qual no mesmo instante em que ela jamais poderia ser
pensada como tal. Essa identidade da imagem, frente a sua estrutura dêiticoindicial, conserva-se em aporia pelo próprio uso esvaziado da partícula ἠύτε.
Como conjuntação não compreensiva, no entanto retórica, o feito (como
tal) rompe o cálculo diegético da história e torna-se trama, engendramento
figural, esvaziamento designativo. Enquanto partícula exclusivamente épica –
e mais exclusivamente, homérica, uma vez que substitui uma expressão como
ὡς ὅτε –, ἠύτε aponta como atores o próprio movimento figurativo, desloca-se
no sentido de inscrever a sentença – esses versos que seguem ao 139 do canto
XXII – uma evocação da própria linguagem, de sua modalidade e modulação.
Não sendo, além disso, declinável essa conjunção não une necessariamente
o comparado e o comparante, porém o faz dançar, o articula em uma
movimentação habitante que dá lugar à imagem como acontecimento.
A metáfora então é um feito e, para dizê-la, um locutor? Se sua estrutura
dependesse de um como tal, de sua mesmidade e do idêntico, daquilo que
para Benveniste torna a linguagem possível: “le langage n’est possible que
parce que chaque locuteur se pose comme sujet, en renvoyant à lui-même
comme je dans son discours”16. O eu pronominal tem força de reenvio a si,
ao si mesmo do sujeito e, nesse jogo discursivo, a apropriação faz sujeito,
constitui o sujeito como aquele que assume esse eu sem designação em uma
dada apropriação inteira da linguagem e de seu sistema. O eu do discurso
é a própria subjetividade do locutor estabelecendo-se dentro da linguagem
que não define nenhuma entidade lexical – a expressão é de Benveniste – a
essa “palavra”. Colocar-se como sujeito, então, pressuporia um eu tal qual o
eu, eu, esse que enuncia esse discurso (aponto a mim mesmo), é como, do
mesmo modo que o eu, pronome pessoal do caso reto que assume posição de
sujeito. Parece-me que aí reside um problema crucial, percebido por Derrida
em sua conversa com Nancy, em termos de uma possível calculabilidade do
sujeito, de uma definição desse que enuncia necessariamente tomado por uma
16. Benveniste, Émile. De la
subjectivité dans le langage. In :
Problèmes de linguistique générale
I. Paris : Gallimard, 2006, p. 260,
« Collection Tel ».
17
subjetividade, qualquer que seja. Diz Derrida: “il n’y a jamais eu pour personne
Le Sujet, voilà ce que je voulais commencer par dire. Le sujet est une fable”17.
A ninguém uma pessoa denominada O Sujeito. O imperativo da afirmação,
do sim anterior a todo assujeitamento faz do sujeito uma fábula escrita – é
do campo do escrito que se fala sempre em termos de sua inscrição subjetiva,
nunca da escritura – e, portanto, uma recondução ego-lógica ao em-si, ao
para-si. O imperioso de um ser-ante(s)-(d)a-lei faz com que o sujeito “s’il doit
y en avoir, vient après”18, de modo que a decisão não seja previamente tomada
em termos da satisfação ou complacência subjetiva daquele que enuncia, por
exemplo e extensão, “eu, o sujeito da frase”. A vinda, sempre postergada e
posterior, infinitamente, intenta levar o a si a um ato alocutório dissimétrico e
demovido de sua neutralidade. Derrida analisa que a afirmação do sujeito, de
sua calculabilidade enquanto subjetividade, sempre foi relacionada ao homem
em detrimento do animal – “l’animal ne sera jamais ni sujet ni Dasein”19 – e
se esse discurso sobre o sujeito continuar “à lier la subjectivité à l’homme”20
é porque não seria preciso tratar de responsabilidade ou ética ou liberdade
e direito frente ao animal, a essa generalidade não subjetiva. O próprio do
homem confundido com sua metaforicidade, com sua linguagem, é como
soa a análise discursiva dos pronomes como assunções de um sujeito a si,
de um antropocentrismo apropriante. Ora, é ainda Derrida quem reconhece
que a metaforicidade supõe uma ex-apropriação. E, nesse sentido, a prova
do incalculável prescreve uma responsabilidade maior do endereçamento, o
espaço excessivo não do reconhecimento, da dívida, mas da irredutibilidade,
da primazia do outro, seja ele animal ou homem. Se a ex-apropriação está no
campo da metaforicidade, é preciso uma dupla pergunta, em duplo elo: o que
implica a (1) ex-apropriação e (2) o como tal dessa metaforicidade. Derrida
enuncia: (1) “l’ex-appropriation (...) suppose l’irréductibilité du rapport
à l’autre. L’autre résiste à toute subjectivation, et même à l’intériorisationidéalisation de ce qu’on appelle le travail du deuil”21 e (2) “le « qui » de l’autre
qui ne pourrait jamais apparaître absolument comme tel qu’en disparaissant
comme autre”22. Dupla implicação, portanto. A resistência ao sujeito por
17. Derrida, Jacques. « Il faut bien
manger » ou le calcul du sujet. In:
Points de suspension: entretiens.
Choisis et présentés par Elisabeth
Weber. Paris : Galilée, 1992, p.
279.
18. Ibidem, p. 287.
19. Ibidem, p. 283.
20. Ibidem, p. 283.
21. Ibidem, p. 285.
22. Ibidem, p. 289.
18
sua irredutibilidade em relação ao outro inscreve justamente esse outro no
campo da ex-apropriação da subjetividade. Sem interioridade idealizante, o
outro não mais reside em uma humanidade que apenas trabalhe seu próprio
luto, mas a promessa de um luto impossível (de seu estado messiânico) – ou,
como aponta, Fernanda Bernardo: “o luto impossível é a própria essência deste
pensamento do impossível ou da alteridade absoluta. É, no próprio dizer de
Derrida, a essência da experiência do outro como outro. Como outro, isto é,
como uma alteridade ab-soluta. Ab-soluta, sim, mas, ainda assim, aqui, no
tecido esgarço da escrita”23. Nesse caminho de irredutibilidades, é preciso ter
em conta que o como tal não existe, não o há em essência ou o há apenas
em desaparecimento. Absolutamente, o “quem” do outro nunca surge como
tal, uma vez que precisaria deixar de sê-lo para como tal aparecer. Desse
modo, a fábula do sujeito excede-se enquanto metáfora – metaforicidade –
ex-apropriante, como responsabilidade diante do outro constitutivo dessa
instância comparativa, lançada ao aberto. Jean-Luc Nancy, em “Borborygmes”,
coloca-se à face atrás do detrás do nome de Derrida:
La matière première est la face arrière: c’est-à-dire ce qui n’a pas
de face, ce à quoi on ne peut faire face, mais qui ouvre et qui vient
dans l’ouvert, ou comme l’ouvert même. L’ouvert comme tel : ce
qui ne peut être indexé le « comme tel », n’étant comparable à rien
pas même à soi, puisque le « soi » lui est encore, infiniment, tout à
venir. L’ouvert tel, incomparable, mais qui, à peine ouvert, résonne
en soi comme lui-même, écho craquement, de son claquement e
de son claquage idiomatique.24
Desse modo, o feito a si, o deixar-se a si suspende-se no aberto,
naquele que surge como aberto – sem poder-se fazer face – e, logo, destitui
todo como tal, todo o indicial que retorne sobre si, que não permaneça no
campo de uma promessa (in)fiel de um colapso idiomático, de uma quebra
de eco, de egolatria. A face do nome, antes de qualquer sujeito, já engaja seu
endereçamento, sua evocação, o apelo ao outro como feito necessário, como
imperativo de toda demanda. Portanto, a sintaxe da metaforicidade homérica
escolhe uma derivação interna, uma volta sobre si, que não compõe apenas
uma autonomia, mas uma rota rúptil, um espaço de reversibilidade do dizer
não subjetivo direcionando-se ao outro.
23 Bernardo, Fernanda. Moradas
da promessa – demorança
& sobre-vivência: aporias da
fidelidade infiel (em torno do
pensamento e da obra de Jacques
Derrida). In: EYBEN, Piero
(org.). Demoras na aporia: bordas
do pensamento e da literatura.
Vinhedo, SP: Horizonte,
2012, p. 21.
24. Nancy, Jean-Luc.
Borborygmes. In : MALLET,
Marie-Louise (dir.). L’animal
autobiographique : autour de
Jacques Derrida. Paris : Galilée,
1999, p. 176-7.
19
De modo que a segunda (e última palavra) a ser tomada de Homero
seja uma derivação de um nome, de uma evocação: πέλεια. O pombo que
representa figurativamente Héctor é, no fundo, um paragrama do patronímico
de Aquiles, Πηλεΐδης. Isso implica dizer ligeiramente que a lógica do nome
resiste como uma lógica do vocativo, que o dizer derivado aqui não é de uma
causalidade infértil, mas de uma reverberação e ressonância importante e, por
isso, desconstitui o saber como saber prévio, hermenêutico. O nome, como
quase sempre aparece em Homero, indica uma espécie de destinação, de trajeto
traçado a ser cumprido. Nesse sentido, o patronímico que o envia a Peleu teria
uma dupla função narrativa. Primeiramente, pôr em mira a argila (πηλός)
e a união amorosa com Tétis que fez nascer o próprio guerreiro, no sentido
de um barro dos nascimentos, do monte Pélion. Desse modo, Peleu é assim
chamado quase que à inversão de sua paternidade. É por conta dessa cópula
geradora (dos seis filhos que Tétis, na ânsia de torná-los imortais, acaba por
matar e, principalmente, desse sétimo que, sendo temperado no fogo, tornase invulnerável) – por causa do filho então – que seu nome é Πηλεύς. E, em
um segundo aspecto, na própria construção da trama. O vínculo de Peleu e
Aquiles não seria mera distribuição familiar, mas uma forma de espelhamento
diegético necessário ao retorno à batalha de Troia. Peleu é participante da
caçada de Cálidon, a mesma que é contada por Fénix a Aquiles em embaixada
enviada ao herói para apaziguá-lo da ira contra Agamêmnon. Ora, é conhecida
a mise-en-abyme desses episódios, em um espelhamento de identidade brutal
entre Meléagro e Aquiles, com as mesmas demandas e resignações, com um
possível futuro trágico comum. Nesse sentido, Peleu, ou melhor, o Pelida seria
um indício a se cumprir da trama, “para que se repita una escena”, uma vez que
“al destino le agradan las repeticiones, las variantes, las simetrías”25.
No entanto, me interessaria muito mais uma cadeia apresentada pelo
texto homérico em que esse nome é paragramático e faz um caminho de, ao
menos, três versos até atingir seu alvo, seja no campo do sentido seja no campo
do enredo. O Peleide é colocado em uma circunstância metaforicamente
aporética bastante importante. Enquanto é chamado de “falcão montês”
(κίρκος ὄρεσφιν) seu patronímico parece deslizar em outros conjuntos
significantes que, em um primeiro momento, o caracteriza como o hábil no
25. Borges, Jorge Luis. La trama.
In: Obras Completas 2: 1952-1972.
Buenos Aires: Emecé, 2007,
p. 205.
20
voo, como a maturidade necessária a um voo perfeito, como “a mais ágil das
aves” (πετεηνῶν), e que, no entanto, se guia em direção ao inimigo, ao pobre
pombo (πέλεια) tímido e temeroso, que guarda muito de seu nome. Nesse
sentido, dentro dessa cadeia célere de ataque, convém uma dupla pergunta:
qual o sentido dessa nomeação se fazendo frente ao outro, desde o nome do
outro, mesmo o pior inimigo, em face a face, diante do rosto nu que Aquiles
precisa identificar e combater em si mesmo? E, ainda, como é/foi possível a
retração sonora, a diminuição da extensão de um eta (η) – marcadamente no
nome próprio – a um épsilon (ε) – como marca, acentuada no nome comum?
Inquietando-te desde dentro desse discurso, a forma desse rosto, portanto,
parece irrecuperável se entendido como parcela interessada, a dar-se a desvelar,
a uma apropriação que seja a de um sujeito. Nesse sentido, o desfazimento
dessa forma, digo, de um patronímico em um substantivo comum, de um
personagem em uma imagem animal, está em uma exterioridade que anuncia
não uma reconciliação, mas um acolhimento – algo que será configurado na
Ilíada com a entrega do corpo morto, mas preservado, de Héctor a Príamo –
do outro, em sua proximidade. Levinas propõe que:
Le visage de l’autre dans la proximité – plus que représentation –
est trace irreprésentable, façon de l’Infini. (...) C’est parce que dans
l’approche s’inscrit ou s’écrit la trace de l’Infini – trace d’un départ,
mais trace de ce qui, dé-mesuré, n’entre pas dans les présent et
invertit l’arché en anarchie – qu’il y a délaissement d’autrui,
obsession par lui, responsabilité et Soi.26
Algo do rastro do nome, modo infinito de acolher. Diria talvez que o
rosto do Pelida, diante da violência, diante do outro, que é Héctor, se lança
como um pélete; esse corpo demasiado pequeno e ágil, o projétil que se lança –
no fulmíneo de seu voo – na pressa. Leve projétil, a ave que representa Aquiles
é colocada como rastro, logo, irrepresentável, impossível de ser trazido à
presença, de uma partida sem origem, da própria anarquia turbilhonante que
faz sua presença estar antes de qualquer presença, do outro antes de qualquer
ontologia. Nesse sentido, há o nascimento da responsabilidade naquilo que
se pode chamar “die geheimste Gelassenheit”27, o mais secreto abandono (de
outrem). O que há aqui, em termos da cadeia expressiva do paragrama, é uma
proximidade e não uma representação, seja da ave, seja do movimento, seja
26. Levinas, Emmanuel.
Autrement qu’être ou au-delà de
l’essence. Paris: Le Livre de Poche
/ Kluwer Academic, 2011, p. 184.
27. Cf. Silesius, Angelus citado
por Derrida, Jacques.
Sauf le nom. Paris:
Galilée, 1993, p. 101.
21
do guerreiro. A metáfora produz essa proximidade e, ao mesmo tempo, um
abandono e uma negligência do feito, do ato, do próprio outro que deve assumir
a responsabilidade, de ser-si, ou nas palavras de Levinas: “Être-soi, autrement
qu’être, se dés-intéresser c’est porter la misère et la faillite de l’autre et même
la responsabilité que l’autre peut avoir de moi; être-soi – condition d’otage –
c’est toujours avoir un degré de responsabilité de plus, la responsabilité pour
la responsabilité de l’autre”28. Como refém, aumenta-se a responsabilidade
“pela responsabilidade do outro” não como intersubjetividade, como do eu ao
outro, mas desde si mesmo do rosto, logo, em seu face a face, naquilo que a
proximidade tem de irrepresentável, abertura ao aberto. O chamado do nome,
então, acolhe esse outro em sua disjunção, sua disposição de ressonância – é
como Nancy delimita o silêncio – para fazer tendre l’oreille, prestar atenção
às tensões, “tirer l’oreille du philosophe pour la tendre vers ce qui a toujours
moins sollicité ou représenté le savoir philosophique”29. Nesse sentido, o nome
– que é próprio no sentido de uma apropriação familiar, e impróprio enquanto
ex-apropriação de sua metaforicidade – permanece como um engajamento,
como rigor frente ao outro, que corre o risco de “de lier l’appelé, de l’appeler
à répondre avant même toute décision ou toute délibération, avant même
toute liberté” e, ainda, “alliance prescrite autant que promise”30. O luto a ser
guardado, no porvir desse combate, está na verticalidade dessa compreensão
metafórica do dom do nome.
28. Levinas, Emmanuel.
Autrement qu’être ou au-delà de
l’essence. Paris: Le Livre de Poche
/ Kluwer Academic, 2011, p.
185-6.
29. Nancy, Jean-Luc. À
l’écoute. Paris: Galilée, 2002,
p. 15.
30. Derrida, Jacques. Sauf
le nom. Paris: Galilée, 1993,
p. 112.
Dentro dessa cadeia nominal, o acolhimento é lido como um
recolhimento sonoro, como uma diminuição do η ao ε. Essa retração sonora
é, evidentemente, compensada pelo uso acentuado, por uma tonalidade que
confere não quantidade, mas qualidade silábica ao fonema. Dessa forma, a
variabilidade e transmutação dos sons passam a ressoar como elementos da
cadeia analógica que conduz o Pēleidēs (v. 138) ao peteēnōn (139) e, por fim,
chega ao péleian (140). Essa chegância faz ressoar um tempo em dobro, uma
durabilidade de Aquiles durante todo o percurso – que, na verdade, parece
ser mais um ex-curso – que compõe o ataque e sua transformação animal em
direção ao endereçamento ao outro. Essa habilidade aérea é sopro e precisa
ser lida como um caminho a se compreender o ritmo desde sua sacudidela
no tempo, como intensidade que se dá à escuta. Assim, essa transformação
rítmica como inscrição formal precisa ser repensada para além do sentido
histórico-lexical que a palavra ῥυθμός, tal como Benveniste a descreveu, por
22
exemplo, em termos de uma dança, desde o uso platônico, da “ordre dans
le mouvement, le procès entier de l’arrangement harmonieux des atitudes
corporelles combiné avec un mètre qui s’appelle désormais ῥυθμός”31. É talvez
Jean-Luc Nancy quem apresenta uma possibilidade ético-estética de se lançar
a esse outro do ritmo: “Ainsi, le rythme disjoint la succession de la linéarité de
la séquence ou de la durée: il plie le temps pour le donner au temps lui même,
et c’est de cette façon qu’il plie et déplie un « soi »”32. Algo da extensão dobrada
e desdobrada do si que se separa em uma temporalidade disruptiva, de uma
segregação infinita entre o Peleides e o péleian. Há algo aqui que eriça o som,
algo que é preciso se perguntar em termos do que é o próprio sentido. Decai o
nome próprio em comum, a nomeação da presença em um conjunto ausente,
um feixe de diferenças ressonantes. O sujeito, digo a ti e só a ti, se separa.
Aquiles torna-te um voo da escritura, um sopro que interrompe toda clausura.
A representação dá conta desse caminho? Há aqui, sem dúvida, abismo e “ein
Abgrund rufft dem andern”33 [um abismo chama outro].
Quanto a mim, diferindo de Friedrich Schlegel, Arthur Schopenhauer,
Lewis Carroll, Sigmund Freud, Jacques Derrida e João Cabral de Melo Neto,
que, a suas maneiras, tornaram o ouriço, o porco-espinho, o Stachelschweine,
o Igel, o hedgehog, o hérisson em metáforas de dilemas e da própria escritura,
quanto a mim, escolho o mutum. Essa teratologia implica um ponto a se
analisar, a se colocar como escritura, que desliza da fragmentação – do gênero
fragmento do romantismo alemão – até o lugar do coração, do poema, que é
também o da catástrofe, muito perto do perigo de uma carta, da letra impressa
e emprestada ao animal, “car la pensée de l’animal, s’il y en a, revient à la
poésie”34, digo, a sua sintaxe que é demanda, memória para além de todo
sentido.
Eis que surge o ouriço, um pequeno e espinhento animal. Dirias,
em um alemão seguido de sua potencial tradução: “[206] Ein Fragment
muß gleich einem kleinen Kunstwerke von der umgebenden Welt ganz
abgesondert und in sich selbst vollendet sein wie ein Igel”35, ou ainda, desde
a língua portuguesa, “é preciso que um fragmento seja como uma pequena
obra de arte, inteiramente isolado do mundo circundante e completo em
si mesmo, como um ouriço”. O bichinho desperta seu isolamento, produz
uma herança. E é na herança do fragmento que esse vivente completo, de
31. Benveniste, Émile. La notion
de « rythme » dans son expression
linguistique. In : Problèmes de
linguistique générale I. Paris :
Gallimard, 2006, p. 334-5,
« Collection Tel ».
32. Nancy, Jean-Luc. À l’écoute.
Paris: Galilée, 2002, p. 37-8.
33. Cf. Silesius, Angelus citado
por Derrida, Jacques. Sauf le
nom. Paris: Galilée, 1993, p. 97.
34. Derrida, Jacques. L’animal
que donc je suis (à suivre). In:
MALLET, Marie-Louise (dir.).
L’animal autobiographique: autour
de Jacques Derrida. Paris : Galilée,
1999, p. 258.
35. Schlegel, Friedrich. Conversa
sobre a poesia e Outros fragmentos.
Trad. Victor-Pierre Stirnimann.
São Paulo: Iluminuras, 1994, p.
103. Fragmento de Athenaeum
(A 206). Texto original disponível
em: http://www.zeno.org/
Literatur/M/Schlegel,+Friedrich/
Fragmentensammlungen/
Fragmente. Último acesso: 10 de
fevereiro de 2013.
23
carapaça armada e vitalidade mamífera, dentre os erinaceídeos, pôde chamar
atenção, impor um lugar no qual é possível pensar a obra de arte desde sua
noção de completude, finalidade e acabamento. O exercício finito da escrita
e da exigência fragmentária conduz o pensamento e a expressividade ao não
exaustivo e ao inacabado. O fragmentário é, então, algo que Lacoue-Labarthe e
Nancy compreenderam como “détachement, isolement, qui vient exactement
recouvrir la completude et la totalité”36. A lógica do fragmento precisa ser
pensada como um todo e em suas partes37, como a própria lógica do ouriço.
Assim, enquanto paradoxo do acabamento, o ouriço de Schlegel “fait et ne fait
pas Système”, que enuncia o ouriço como proposição e, portanto, “il énonce
simultanément que le hérisson n’est pas là”38. O que importa aqui é o gesto,
a parte mais dêitica, dirias, dessa escritura. Sua legitimidade reside, desse
modo, no rastro de uma presença possível, de uma forma que se caotiza desde
quando é enunciada, preparada, convertida.
O animal, ou melhor, esse animot é domesticável, é possível colocálo em um gênero? Diria, talvez, com Derrida: “às vezes público e privado,
absolutamente um e outro, absurdo de dentro e de fora, nem um nem outro,
o animal atirado no caminho, absoluto, solitário, enrolado em uma bola perto
de si. Pode fazer-se esmagar, justamente, por si mesmo, o ouriço, istrice”39.
Isolado completamente, sua designação precisa ser pensada na dualidade de
gêneros – talvez em uma gênese plural de gêneros – que não seja conduzida
a um assujeitamento do animal, a um olhar que esquece sua finalidade nua
de olhar, sem linguagem, por certo, porém conduzindo-se em um complexo
sentido de limite, sua conclusividade inconclusiva ou ainda a impossibilidade
de uma autobiografia genérica, digo, de um inaceitável contrassenso dos
limites quando se pensa a singularidade do animal em sua generalidade
abissal. Qual o risco em se enfabular o ouriço, domesticando o próprio do
pensamento da metáfora?
36. Lacoue-Labarthe, Philippe;
Nancy, Jean-Luc. L’absolu
littéraire: Théorie de la Littérature
du Romantisme Allemand.
Paris: Seuil, 1978, p. 63. [Trad.:
“A fragmentação é, portanto,
compreendida aqui como
separação, isolamento, o que
vem a reconduzir exatamente
à completude e à totalidade.”
(In: Lacoue-Labarthe, Philippe;
Nancy, Jean-Luc. A exigência
fragmentária. A Terceira
Margem: Revista do Programa
de Pós-Graduação em Ciência
da Literatura, Trad. João Camillo
Penna, UFRJ, ano IX,
n. 10, 2004, p. 73.)]
37. Ibidem, p. 64. [Trad.: “a
totalidade fragmentária, conforme
o que deveríamos nos arriscar a
nomear a lógica do porco-espinho,
não pode ser situada em nenhum
ponto: ela está simultaneamente
no todo e na parte. Cada
fragmento vale por si mesmo em
sua individualidade acabada.”
(In: Ibidem, p. 74.)]
38. Ibidem, p. 71.
39. Derrida, Jacques. Che cos’è la
poesia ? In: Points de suspension:
entretiens. Choisis et présentés par
Elisabeth Weber. Paris: Galilée,
1992, p. 304. [Trad. minha].
Exaustivas, essas leituras da herança eriçada ocupam vasta bibliografia
acerca da propriedade e da apropriação do bicho que se volta sobre si, que
retorna como proteção e abrigo. Uma, no entanto, parece-me merecer atenção
mais demorada. Aquela que, modificando o gênero do animal, faz construir
uma radicalidade sobre a linguagem, que o próprio animal não possui e que,
aliás, nem mesmo ao homem pode dizer-se própria, a si. Trata-se do poema
24
“Uma ouriça”, de A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto.
Se o de longe esboça lhe chegar perto,
se fecha (convexo integral de esfera),
se eriça (bélica e multiespinhenta):
e, esfera e espinho, se ouriça à espera.
Mas não passiva (como ouriço na loca)
nem só defensiva (como se eriça o gato);
sim agressiva (como jamais o ouriço),
do agressivo capaz de bote, de salto
(não do salto para trás, como o gato):
daquele capaz do salto para o assalto.
2
Se o de longe lhe chega (em de longe),
de esfera aos espinhos, ela se desouriça.
Reconverte: o metal hermético e armado
na carne de antes (côncava e propícia),
e as molas felinas (para o assalto),
nas molas em espiral (para o abraço).40
De quem o escreve, desde quem essas dezesseis linhas são escritas? Há
aqui um endereçamento, tal endereçamento no qual a palavra permanece em
uma deriva, paramórfica e sintagmaticamente deslocada em sua caoticidade
estruturante e da integralidade que é o próprio do poema. Fragmento isolado
de tudo, tu percebes bem essa condução. Como fragmento, não do mundo,
mas de todo um processo de criação, o poema não abarca o estar-no-mundo
do ouriço, dessa ouriça no cio, contudo oferece-se como abraço ao próprio
poema, àquilo que lhe é mais próprio, ou seja, uma distância infinda de
modalidades e proliferações disruptivas. Uma disjunção entre a primeira e
a segunda estrofe – o convexo reconverte-se em côncavo – e dois lados do
agressivo e da fragilidade, da nudez, por fim, do animal, é posto em aberto.
Sua consistência, pois, está inventariada no caminho da própria linguagem
que caminha e se descaminha, que se faz voltar sobre si. É fuga. Escape do
limite métrico, do limite sem inscrição de bordas, que irrompe do animal.
Há aqui uma soleira, um rasgo que se finda em uma sintaxe emudecida, esse
“metal hermético e armado”, o ter lugar em que se há de fechar. No entanto,
é preciso dizer ainda: há escape, desde a soleira. Um modo de escape, talvez,
possa ser respondido desde o sentido do poema em Derrida: “sem sujeito: há
40. Melo Neto, João Cabral de.
Uma ouriça. In: Obra completa
– volume único. Org. Marly de
Oliveira com assistência do autor.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2003, p. 346.
25
talvez do poema e que se deixa, mas não o escrevo jamais. O outro assigna.
O eu é somente na chegada desse desejo: aprender de cor”41. O limite do
sentido, como o limite da assinatura (da disseminação sígnica42) faz aqui o
nome da ouriça ser lembrado como acontecimento, como impossibilidade
de seu próprio resgate. Sem sujeito, apenas a negligência – o Gelassenheit, o
délaissement – de nunca escrevê-lo dá ao outro o lugar de sua assinatura, no
longe, na distância, portanto.
Em seu duplo começo, o poema estende-se sob o problema da lonjura.
Se o poema pretende montar uma imagem da ouriça, esses dois versos, que
compõem cada qual o início de suas estrofes, lança para outro espaço, para
o afastamento necessário do outro diante da necessidade de sua resposta.
Ao elemento conativo – aqui, estranhamente composto por esse “de longe”
– apenas é possível chegar indiretamente, por via oblíqua – como é marcado
pelo uso pronominal – e, por isso, o de longe apenas alça, aparece, é uma
manifestação e não necessariamente um movimento em direção à própria
chegada, ao espaço “doméstico”, logo, habitável, do poema, da ouriça. O texto
se dirige ao de longe, o de longe que é capaz de chegar-lhe, sobrevindo, portanto,
como acontecimento. É essa lonjura, esse apartamento circunstancial que será
determinado, delimitado, como elemento de referência alocutória e também
como dispositivo da condicionalidade da conjunção disseminante e hipotética
que principia o verso. Ora, o de longe parece executar dois processos actanciais
no poema. De um lado, ele “esboça lhe chegar perto”, o que implica projetar
o surgimento, projetar o próprio do caminho que se delimita – nada ainda
conclusivo – como do longe ao perto, do fora ao dentro, ao íntimo. O esboço
é um traço que compõe a chegada apenas como chegância, como eternamente
chegante. Está-se delimitada aqui justamente a falta de borda, o animalesco
da própria racionalidade em impor-se um limite a essa chegada e, sobretudo,
àquilo que se pôde definir como o de longe, mais afastado, estrangeiro,
digno de hostipitalidade. Essa condição primeira faz do perto uma ameaça
ao de longe. Nessa ameaça, sua expropriação é sentida como condição de
possibilidade, visto que não se trata apenas em “vindo de longe deve-se,
cautelosamente, chegar até muito perto da ouriça”, mas bem o contrário, a
ouriça parece ser esse de longe que está demasiado perto e se mostra, surge e
se alça a esboço de um movimento – que mais tarde será seu próprio nome, a
ouriça eriça. Por outro lado, a participação do de longe na chegada, ou melhor,
41. Derrida, Jacques. Che cos’è la
poesia ? In: Points de suspension:
entretiens. Choisis et présentés par
Elisabeth Weber. Paris: Galilée,
1992, p. 307-8. [Trad. minha].
42. Como ensaiei mostrar em
outro lugar a propósito de certa
falência sígnico-semiótica frente
ao desafio do impossível, à prova
do indecidível. A disseminação
sendo um dos pontos em que a
assemia se frustra e, logo, é capaz
de proliferar a retórica para além
de toda representatividade, em
um retorno incansável de suas
próprias dobras da linguagem.
(Permitam-me, então, referenciar
Escritura do retorno: Mallarmé,
Joyce e Meta-signo. Vinhedo, SP:
Horizonte, 2012).
26
a sua própria chegada, que inicia o segundo movimento do poema, é ainda
um alçamento, mas agora sem o complemento circunstancial de lugar como
elemento compositivo da própria sentença. Dando-se como expletivo, o
parêntese reitera o actante o de longe em uma dupla preposição (em de longe)
que marca a diferença entre o perto (proximidade adverbial, em estatuto
direto ao surgimento, à manifestação da lonjura) e o em de longe (distância
adverbial, em estatuto indireto à irrupção de si mesmo, da ouriça que se fecha
dentro de sua circunstancialidade e condicional). O ato de chegar – que dobra
o tempo, a duração em ritmo, tu me lembras do princípio de Nancy sobre o
ritmo e minha fixação pela natureza do pli, do plicare – faz João Cabral propor
a forma negativa de um nome, de um verbo-nome (desouriçar) que acontece,
que deixa de ser esboço e passa ao estatuto de uma chegada do longe no longe,
de “rastro uma partida” desmesurada.
Anterior a esse começo do de longe está a palavra que será
anagramatizada durante todo o texto. Em verdade, trata-se de uma só sílaba,
de um só som: se. A anarquia da arqui-escritura nos rasgos da anáfora43.
Remetimento infindo, a figuração dos três primeiros versos do poema
parece desmontar a previsibilidade do termo anafórico como mera ênfase,
como repetição de apenas uma sílaba expletiva. No fundo, por mais que
guardem a semelhança sonora e propositiva da conjunção (esse se), dados
os entremeios da pontuação, permitem leituras bastante distintas e de uma
anamorfose interessante ao poema. Esse processo figurativo impõe uma
leitura nunca partida, aos pedaços apenas do poema. É necessário casar
aqui a fonêmica, o aspecto mórfico e o sintático para conduzir uma possível
caoticidade, uma impossibilidade imagética dessa condição (do que seria a
própria possibilidade?). Poderia então propor uma cadeia criativo-produtiva
que pareça, em uma primeira vista, tautológica: se > se > se. Ao que poderia
escrever de outro modo, talvez menos tautologicamente: se1 > se2 > se3. Não há
uma mera anáfora reiterativa, mas de fato uma potencial alteração funcional
da conjunção condicional (se1) em uma indecidibilidade tanto pelo pronome
pessoal quanto pela própria conjunção (em se2 e se3). Algo como44:
43. Giorgio Agamben, ao analisar a
figura emblemática do Bartleby no
sentido da potência, constrói uma
teoria da anáfora que me parece
fundamental para o que proporei
aqui como perda da referência
lógica na linguagem. Diz o filósofo,
ao pensar a fórmula I would prefer
not to e a variante I prefer not to:
“É como se o to que a conclui, que
tem carácter anafórico porque
não reenvia diretamente a um
segmento de realidade mas a um
termo precedente do qual somente
pode obter o seu significado, ao
invés se absolutizasse, até perder
toda a referência, dirigindo-se, por
assim dizer, à própria frase: anáfora
absoluta, que gira sobre si, sem
reenviar já a um objecto real ou
a um termo anaforizado (I would
prefer not to prefer not to... ).” (In:
Agamben, Giorgio. Bartleby – escrita
da potência. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2007, p. 27)
44. Usarei uma marca sintagmática
específica para me referir a
elementos que apareçam ou não
na sentença, de acordo com o que
segue:
SNsubø: sintagma nominal com
função de sujeito suposto (que não
está explícito na sentença).
SNsub: sintagma nominal com
função de sujeito explícito.
SPdat: sintagma pronominal com
função de complemento indireto.
SCONJ: sintagma conjuntivo.
27
(1)se1 → se2→ se3: na condição de o de longe esboçar, então se [SCONJ]
fecha, então se [SCONJ] eriça;
(2)se1 → se2 Λ SNsubø: na condição de o de longe esboçar, então a ouriça
[SNsubø] se fecha (pronome entendido como complemento verbal
reflexivo);
(3)se1 → se2 Λ SNsub: na condição de o de longe esboçar, então o se
[SNsub] fecha (pronome entendido como índice de indeterminação
do sujeito);
(4)se1 → se2 Λ SNsub: na condição de o de longe esboçar, então o de longe
[SNsub] se fecha;
(5)se1 → se3 Λ SNsubø: na condição de o de longe esboçar, então a ouriça
[SNsubø] se eriça (pronome entendido como complemento verbal
reflexivo);
(6)se1 → se3 Λ SNsub: na condição de o de longe esboçar, então o de longe
[SNsub] se eriça (pronome entendido como complemento de verbo
que exprime mudança);
(7)se1 → se3 Λ SNsub: na condição de o de longe esboçar, então o se
[SNsub] eriça (pronome entendido como complemento de verbo
que exprime mudança);
(8)SPdat ↔ SNsubø: o lhe é condição necessária para que haja a ouriça
[SNsubø];
(9)se1 → se2 Λ SNsubø V SNsub → se3 Λ SNsubø V SNsub: na condição de o
de longe esboçar, então se [SCONJ] fecha e a ouriça [SNsubø] se fecha
ou o se [SNsub] fecha, então se [SCONJ] eriça e a ouriça [SNsubø] se
eriça ou se [SNsub] eriça.
Essas transmutações anamórficas e sintagmáticas implicam a
condicionalidade de existência da própria ouriça e, em última instância, do
próprio poema. Há, evidentemente, aqui uma economia brutal – silábica,
para dizer mais especificamente – no uso e nas potencialidades ofertadas
pelo idioma. João Cabral leva ao limite o uso da conjunção como elemento
28
de neutralização actancial e subjetiva para compor sua imagem hermética
do poema como um ouriçar da própria espera. Trata-se claramente de uma
duração que faz “résonner le sens au-delà de la signification, ou au-delà de
lui-même”45, nunca para reencontrar um referente lógico a essas disjunções,
mas para manter-se na prova indecidível do próprio poema. Sua dinâmica é
a da lógica tradicional, do “na condição de, e”, como se completa no quarto
verso, no entanto, o texto subverte todas as transitividades verbais, delonga
expectativas e difere a constituição da metáfora dentro da metáfora. A ouriça
guarda intensidade corpórea no poema, retendo esse além sentido no limite de
sua animalidade, de sua irrupção linguageira. A tripla condicionalidade, em
sua fórmula mais completa (se1 → se2 Λ SNsubø V SNsub → se3 Λ SNsubø V SNsub),
produz um verso que meta-representaria – e ele se inscreve sob o signo dos
dois-pontos – uma espécie de tomada complexificada de seus suplementos: “e,
esfera e espinho, se ouriça à espera”. Ora, se não há mais um se aí (se4) que se
coloca deslocado, em um hipérbato irrecuperável.
45. Nancy, Jean-Luc. À l’écoute.
Paris: Galilée, 2002, p. 67.
É nessa transposição que podemos ver um processo ainda mais
engendrado, entramado de sua textualidade: os paragramas do se. Cabral
assinala um hipérbato na oração e constrói “hipérbatos” morfológicos de sua
sílaba genotípica. O que se intercala de palavra a palavra é o se transformado
em es. Há toda uma cadeia que caminha durante o poema: esboça > esfera >
espinho > espera > espiral. Essas transformações são frutos da condicionalidade
expressa pela primeira sílaba-palavra do poema. Na transposição do se
(conjuntivo e pronominal, condicional e eventivo) é que se torna possível a
sucessão anamórfica das imagens que compõem o esboçar, a esfera, o espinho,
a espera e a espiral, que, aliás, parece guiar todo o movimento interno do
texto. Essa tessitura paragramática ainda ocorre entre o nome que dá título ao
poema uma ouriça aos verbos que são desencadeados no poema: uma ouriça
> eriça > ouriça(r) > ouriço > desouriça. Verbo e nome, simultaneamente. Há,
talvez, aqui um processo que é aquele do desfazimento, do esgarçamento da
imagem da própria ouriça, que é vista negativamente, pela falência da espera,
pela ocorrência do próprio poema, no lugar das coisas, de seu estado de coisas.
A sentença final poderia ser tautológica (e infinitamente verdadeira)
ao dizer uma ouriça se desouriça, dois versos espelhados comprovam essa
possibilidade, o quarto e o décimo segundo: “e, esfera e espinho, se ouriça à
29
espera” e “de esfera aos espinhos, ela se desouriça”. A não-ouriça do poema
vai da agressividade de seu próprio feminino à defesa (do salto de gato) no
sentido daquilo que Derrida apontou como duas expressões para definir o
poema: l’économie de la mémoire (brevidade, elipse e Verdichtung) e le cœur (o
coração que existe em todo aprendizado de cor, desde um saber outro)46. No
poema, pode-se esperar? A atenção pode esperar, dizes, com Nancy, tendre
l’oreille. Cautela e salto. Digo, pode-se trocar o gênero, colocar-se no gênero
outro de um saber também ele outro. O que se põe para além do presente?
Para fora do presente? Assim, guardas uma dissolução. É preciso uma reação
que seja do pensamento, do fragmento não em si, não guardado por si, mas
sempre desarticulado na língua. Dirias talvez um ilusão, um lapso. O forte
sentimento que produz o vazio – “E a linguagem clara que impede esse vazio
impede também que a poesia apareça no pensamento”47 –, a escritura que não
permite senão ser nomeável, de uma distância animalesca.
46. Derrida, Jacques. Che cos’è la
poesia ? In: Points de suspension:
entretiens. Choisis et présentés par
Elisabeth Weber. Paris: Galilée,
1992, p. 304.
47. Artaud, Antonin.
O teatro e seu duplo. 2. ed. Trad.
Teixeira Coelho. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 79.
(b) Animalidade e nomeação: o mutum. É, portanto, necessário fazer
eriçar o animal. Tomar de sua animalidade o pedaço de um lugar outro ao
outro, a quem devo responder, evocar, dizer sim, sim. Prossegues, assim,
em tua exploração, à deriva, desse espaço aporético aonde a sobre-vivência
e o impudor do rosto conduz a uma ética e uma estética da palavra outra,
do nome como evocação, como reentrância do fora da linguagem – em sua
impossível tradução – ao imperativo de uma decisão, de tua indecidibilidade.
Disso que circunda a escritura, o lugar do rosto disposto ao infinito do outro
configura não o homem como ser de linguagem, mas como aporia dessa
decisão, desse emudecimento diante do animal que pode não responder. Para
além da metáfora – talvez em um campo que seja o da pura metaforicidade
– a nomeação guarda um silêncio ressonante, uma forma de adensamento
da voz que apenas ressoa, que é uma tomada da palavra, tomada frente
à palavra, que, aí, não tem gênero, é perpassada – se lhe for imposta – por
uma predicação outra, por um ajuntamento de outras vozes. Digo, não há
algo como a ouriça para o mutum, o designativo precisa romper a frase com
mais uma palavra. Por isso esse animal que muda o emudecimento do um ao
outro um, no reverso de seu palíndromo, na sustentação anagramática de sua
própria mudez. E, se o retiro das artes plásticas, tu me apontarias ainda em
Guimarães Rosa e todas aquelas passagens a que chama “os poemas” em Corpo
30
de baile. Lá no meio dos buritis, escuto: “No silêncio nunca há silêncio”48. O
texto que se escuta, em descarte, ressoa essa musicalidade que faz eco e se abre
à pluralidade, à diferença. Ali onde é possível “se o senhor quiser ouvir só o
vento, só o vento, ouve”49, um sopro de escritura, um sopro de voo no qual o
buriti toma lugar – e, nesse sentido, não há apenas o animal inscrito, mas o
fitomórfico, o disjuntivo ainda maior – em sendo “O buriti? Um grande verde
pássaro, fortes vezes. Os buritis estacados, mas onde os ventos se semeiam”50.
Um ao um, o mutum fecha-se em si, côncavo, expondo-se ao perigo,
à extinção. Se o buriti – o buriti-grande, diz Rosa – é capaz de ir “inventando
um abismo”51, a prumo, o poema também é assombrado pelo ininterrupto
abissal que se inventa a si. Sua finalidade desloca-se em uma autotelia – como
bem percebe Miguilim, no início de “Campo Geral”, um conceito de belo dito
pelo moço, acima da opinião de sua mãe, dizendo que o Mutum é belo pela
simples maneira: “de longe, de leve, sem interesse nenhum”52 – e lança-se em
uma urgência, em um ocorrer que ganha lugar, ocupa o espaço inominável
da própria declaração. Ou como melhor diz Giorgio Agamben: “no ponto em
que o som está prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema procura
uma saída suspendendo, por assim dizer, o próprio fim, numa declaração
de estado de emergência poético”53. Nessa unicidade, nesse lugar que é não
apenas o fragmento, mas o voltar-se de um inacabamento, o mutum parece
ser a palavra que, de súbito, pode se arruinar, que célere pode suspender-se
também. Algo aqui parece chegar-lhe (em de longe). O fim e sua propriedade
reside não em sua apropriação de outras propriedades, antes está no estado
de expropriação de tudo o que possa ser uma escuta previamente codificada,
uma recepção sempre à mão, um caminho muito bem trilhado e sopesado. O
mútuo do poema deve ser mudo, rosto, ou ainda, face a face de seus impudores.
Dessa forma, tu podes complexificar uma tão natural definição de poema,
como aquela ofertada pelo próprio Agamben: “E o poema é um organismo
que se funda sobre a percepção de limites e terminações, que definem – sem
jamais coincidir completamente e quase em oposta divergência – unidades
sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas”54.
48. Rosa, João Guimarães. Corpo
de baile. 2. ed. Ilustr. de Poty. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1960,
p. 427.
49. Ibidem, p. 427.
50. Ibidem, p. 399.
51. Ibidem, p. 421.
52. Ibidem, p. 8. Não seria
demasiado pensar um certo
kantismo de juízo estético nesse
meio de palavras?
53. Agamben, Giorgio. O fim do
poema. Trad. Sérgio Alcides. Revista
Cacto, n. 1, ago.2002, p. 146.
54. Ibidem, p. 143.
(Em Stephen hero, o narrador arruinado – essa instância ficta que não
chega a se cumprir enquanto obra, enquanto voz narrativa e que deve ser
confundido com uma vida não duradoura, com uma biografia que se estende
31
entre o século XIX e o início do XX – intenta dar voz a Stephen, ainda herói,
para que ele defina a própria literatura. Advém algo assim: “between poetry
and the chaos of unremembered writing” [“entre poesia e o caos da deslembrada
escritura”]. Aliás, duplamente caótico: “And over all this chaos of history and
legend, of fact and supposition, he strove to draw out a line of order, to reduce the
abysses of the past to order by a diagram.”55 [“E sobre todo esse caos de história e
lenda, de fato e suposição, ele se esforçou para rascunhar uma linha de ordem,
para reduzir os abismos do passado à ordem de um diagrama”]. Quase que ao
acaso dessa economia, dessa condensação que supera toda calculabilidade, eis
que, enquanto escrevo, penso em um duplo movimento – que se marca nesse
carnaval. O primeiro de um encontro, de um espaço íntimo, que ocorreu a
09 de fevereiro. Augusto de Campos, compartilhando a mesa, me diz, “já
respondi uma vez poesia é a dos outros”, entre muitas outras histórias que seu
rosto me foi possível dizer e compor toda uma memória literária. Traço a
traço de um movimento que finda, às 17h, com seus profilogramas em mãos.
E, ainda, nesse fim de carnaval, leio o fragmento de uma entrevista, concedida
pelo mesmo Augusto a Claudio Daniel, em que diz: “Trabalho todos os
dias, mas poemas, mesmo, faço muito poucos. Traduzo muito mais poemas
alheios do que faço os meus próprios. É uma forma de aprendizado, de crítica
criativa e de conversa inteligente. Armazeno informações e me preparo, sem
pressa. Mas não planejo racionalmente poemas. Uma forma, uma frase, uma
imagem, um fato, uma emoção, uma palavra podem constituir um indício e
precipitar um momento de tensão, a partir do qual se desencasula o poema,
que, então sim, depois da chispa inicial, pode ser controlado, desenvolvido e
aperfeiçoado com o know how adquirido. Não desdenho o acaso, ao qual até
já dediquei um poema”56. Aqui, muitas são as circunstancialidades que podem
assumir um nome. O impossível como incalculável é um dos lugares em que
a cada decisão, pelo nome, precisa ser tomada, repensada em sua escritura.)
55. Joyce, James. Stephen Hero.
17. ed. New York: New Directions,
1963.
56. Campos, Augusto de. Entrevista
concedida a Claudio Daniel – Um
poeta em busca da beleza difícil.
Disponível em http://www.
elsonfroes.com.br/acampos.htm.
Acesso: 14 de fevereiro de 2013.
Vestígios do nome, na divergência possível do olhar. Stephen Dedalus
põe a visibilidade no lugar tangível, do toque à lembrança esgarçada. Algo
aqui está posto como que de uma cisão entre o empírico literal e o empírico
da experiência da semelhança. Algo aqui do fundo rítmico do ato de olhar,
32
e também da matéria cega do próprio ver. Dizes sempre acerca da ruína
de uma imagem, que vocifera. Didi-Huberman reconhece em Stephen um
ensinamento, sobre o ver: “devemos fechar os olhos para ver quando o ato
de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em
certo sentido, nos constitui”57. Desse modo, o que se espectraliza no dizer
orgânico da literatura é certa incalculabilidade – o nefasto acaso – proveniente
do rastro, do indício habitável em uma ferida da própria linguagem, que não
supõe necessariamente uma mímesis, uma encenação visiva e explícita. Há um
fluxo de interrupções e disjunções nessas emergências que corrompem a mera
semelhança. Ao contrário do teatro, o que a literatura permite ver é justamente
aquilo que não se vê, o nome. O nome é a parte invisível do personagem. O
nomeável é em si uma substância, que, no texto, perde esse caráter essencial e
desloca-se em um conjunto de diferenças que é a sintaxe. Refletindo acerca de
Romeo and Juliet, Derrida analisa o teatro dessa conjunção que promete um
outro nome, sua demanda, como “anacronia aleatória”58, como ocorrência do
impossível, do amor que é, ele também, impossível: “j’aime parce que l’autre
est l’autre, parce que son temps ne sera jamais le mien”59. Um tempo outro, a
lógica do nome, como lógica da escritura, implica um ver do vestígio que não
se coaduna com a representação mimética, antes está ligada a um espaço que
não se vê, na noite, que é o próprio nome – “ce théâtre-ci appartient à la nuit
parce qu’il met en scène ce qui ne se voit pas, le nom”60. O tempo do amor
nunca meu é justamente o espaço do apelo ao outro, seu contratempo, sua
visão na qual se é necessário fechar muito bem os olhos e abandonar-se a esse
vazio que nos olha. Como interpelação de um mundo, que nunca é em si, para
si, o rosto é palavra ético-estética em uma significação que precisa emergir,
antes de todo velamento, no acontecimento da linguagem.
Pensas aqui em uma in-finição necessária, em um nome a ser dito e a ser
dado: sufoco, inspiração. Pucheu propõe, lendo Agamben, que “a inspiração,
insufladora do dar-se conta da passagem da poesia enquanto abertura da
linguagem, é anterior à Musa, é, na verdade, a condição de possibilidade de
sua figuração”61. Reverberam aqui os rastros da figura de uma metaforicidade?
Da passagem à disrupção que é proliferada pela retórica? Aquilo que Octavio
Paz chamou inspiração na revelação poética parece justo produzir elo entre
o rosto e a outridade. No sentido do nome do outro ser domado como duplo
57. Didi-Huberman, Georges. O
que vemos, o que nos olha. 2. ed.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: 34,
2010, p. 31.
58. Derrida, Jacques. L’aphorisme
à contretemps. In: Psyché :
l’invention de l’autre II. Nouvelle
ed. rev. et augm. Paris : Galilée,
2003, p. 133.
59. Ibidem, p. 134.
60. Ibidem, p. 138.
61. Pucheu, Alberto. Giorgio
Agamben: poesia, filosofia e crítica.
Rio de Janeiro: Beco do Azougue,
2010, p. 108.
33
genitivo: de um lado, o nome que é de sua propriedade, o pertence e o posso
chamar, convocar; por outro, o nome que vem da boca do outro, que é um
apelo, que me vem como uma chegada ao de longe. Diz Octavio Paz:
Lo distintivo del hombre no consiste tanto en ser un ente de palabras
cuanto en esta posibilidad que tiene de ser «otro». Y porque puede
ser otro es ente de palabras. Ellas son uno de los medios que posee
para hacerse otro. Sólo que esta posibilidad poética sólo se realiza
si damos el salto mortal, es decir, si efectivamente salimos de
nosotros mismos y nos entregamos y perdemos en lo «otro». Ahí,
en pleno salto, el hombre, suspendido en el abismo, entre el esto y
el aquello, por un instante fulgurante es esto y aquello, lo que fue
y lo que será, vida y muerte, en un serse que es un pleno ser, una
plenitud presente.62
A “diferença” possível do homem, trazida por Aristóteles e reiterada
por Heidegger, como zoon logon ekhon frente ao animal é rebatida nesse
fragmento de forma a dar a ele não o estatuto de linguagem, de “ente de
palavras”, mas capaz de ficcionalidade, desafio de ser-se outro pelo poema. Ato
duplo, ser outro é saltar no abismo e lançar-se no porvir que, aporeticamente,
se coloca na palavra poética como presença do outro. Urgente e perigoso é
o salto, premeditação do abismo, pois ficto. A palavra serve aqui não como
elemento que o dá soberania, ao contrário, a palavra é possibilidade outra no
outro. A isso Octavio Paz dá o nome de inspiração, de revelação poética. Em se
pensando o outro e sua contraparte inspiradora, vale lembrar o elo complexo
entre escritura e hospitalidade, entre o dever de hospitalidade e o dever da
escritura. A famosa primeira menção ao texto escrito na textualidade ocidental
ocorre ainda na Ilíada, canto VI. Ora, não apenas esse elemento está lá, na
história da tentativa de homicídio de Belerofonte, mas também o surgimento
de uma figuração absolutamente estranhada, um animal fantasmagórico.
Digo da Quimera63, que surge como entremeio fantástico entre homens e
deuses. Homero a define como “ἣ δ᾽ ἄρ᾽ ἔην θεῖον γένος οὐδ᾽ ἀνθρώπων”64
[“de inumana, divina estirpe”, na transcriação de Haroldo de Campos]. A
inspiração parece ocupar também esse lugar, do tout autre absolutizado, do
outro. A Quimera surge quando há a escrita. Quando os signos funestos são
estampados a Proito, seu dever de hospitalidade – de hostipitalidade – ativase enviando Belerofonte a morrer na mão da Quimera, do rosto violento do
outro. Entre escrita e quimera há, desse modo, perigos e extinções. O que
62. Paz, Octavio. La casa de la
presencia: poesía e história. 3. ed.
México, D.F.: Fondo de Cultura
Económica, Edición del Autor,
1999, p. 184. [Obras Completas,
Tomo I].
63. Derrida, em L’animal que donc
je suis, possui uma leitura bastante
intrigante dessa figura horrenda
(deinon, é a palavra de Homero)
que, vivendo entre a imortalidade
e a humanidade, desarticula os
princípios de uma soberania.
Por isso, não a retomarei aqui.
(In: Derrida, Jacques. L’animal
que donc je suis (à suivre). In:
MALLET, Marie-Louise (dir.).
L’animal autobiographique: autour
de Jacques Derrida. Paris : Galilée,
1999, p.292-7).
64. Campos, Haroldo de. Ilíada de
Homero – vol. 2. Ed. Bilíngue. Trad.
Haroldo de Campos. São Paulo:
Arx, 2002, c. VI, v. 180, p. 242-3.
34
inspira a voz do outro, como outro, está em uma articulação entre humano e
inumano, em uma racionalidade destituída.
Tu me falarias de uma lógica do nome como lógica do segredo
funesto, da Quimera como extratos de minhas próprias quimeras. Não estou
aí. Não sou uma cabra jovem. No entanto, penso ser importante estarmos
no χ do quiasma “tanto da ‘ética’ de Lévinas, como da ‘desconstrução’ de
Derrida: desta ênfase superlativa, marca ou sintoma da irredutibilidade do
tom ou do canto, isto é, do não-semântico, brota a incondicionalidade (para
além da condição) e a impossibilidade (para além do possível ou do poderdynamis-possibilitas) que caracterizam estes dois pensamentos”65, como o
disse Fernanda Bernardo. O khi de uma história animal, diria talvez, de uma
vida dos animais pode assumir um compromisso nomeável entre aquilo que
se registra como atividade intimamente humana, propriamente humana, e a
completa indiferença de uma resposta – por escrito? – do animal. Há, nessa
intensidade, um espaço outro, para além da representação, como pensaram
alguns autores que “avessos à ideia de circunscrever os animais aos limites
da mera representação, buscaram flagrá-los também fora desses contornos,
optando por uma espécie de compromisso afetivo ou de aliança com eles”66.
É, por exemplo, o caso da resposta de Elizabeth Costello, esse alter-ego de J.
M. Coetzee. Algo que me parece emblemático para se pensar a escritura do
animal, a escritura do nome do animal:
Not that animals do not care what we feel about them. But when
we divert the current of feeling that flows between ourself and the
animal into words, we abstract it forever from the animal. Thus
the poem is not a gift to its object, as the love poem is. It falls
within an entirely human economy in which the animal has no
share.67
Há algo no mutum que me permite permanecer nessa aporia. Por
isso a escolha, a herança? A lógica de seu nome implica uma não-presença,
a disposição de um som calado, assinado. Aquilo que é irrecuperável quando
“desviamos para as palavras a corrente do sentimento” está não apenas no
próprio nome, no próprio do nome, mas e, sobretudo, na própria condição
de extinção desse animal, especificamente dele. Sem abstração, portanto, o
65. Bernardo, Fernanda. Lévinas
e Derrida – “um contacto no
coração de um quiasma” I. Revista
Filosófica de Coimbra. n. 33, 2008,
p. 74.
66. Maciel, Maria Esther.
O animal escrito: um olhar sobre a
zooliteratura contemporânea. São
Paulo: Lumme, 2008, p. 19.
67. Coetzee, J. M. The lives of
animals. Princeton: Princeton
University Press, 1999, p. 51.
[Trad.: “Não que os animais não
se importem com o que sentimos
por eles. Mas quando desviamos
para as palavras a corrente de
sentimento que flui entre nós e
o animal, nós a abstraímos para
sempre do animal. Assim, o
poema não é um presente para
o seu objeto, como o poema de
amor. Ele fica dentro de uma
economia inteiramente humana,
da qual o animal não participa”.
In: A vida dos animas. Trad.
José Rubens Siqueira. São Paulo:
Companhia das Letras,
2002, p. 61].
35
mutum permanece sobrevoando o ato de nomeação, sua paixão nominal. A
“economia humana” da qual fala Costello é, sem dúvidas, um dos elementos
para que a personagem se volte tão violentamente contra os abusos dos animais.
No entanto, me interessa essa comparação entre o poema como gift (presente,
o poema como dom) que nunca chega, que permanece exilado de seu destino.
Tendo a considerar o mutum como uma ave sem destino, aliás, há um destino,
como veremos mais à frente, com Rosa, que confunde vitalidade, tempo e
espaço. A não participação do animal, no fundo, o seu não compartilhamento
(animal has no share), parece atiçar a lógica impossível de todo dom, do dom
que devo a todo outro. O outro, seja ele transformado, pela inspiração, seja o
rosto levinasiano, está implicado em um dar-se da linguagem, pré-original,
em um dizer partilhado, que vem do outro e nunca de uma margem de
subjetividade. Nesse sentido, o poema seria o lugar privilegiado para tornar
escrito o animal, uma vez que reflete a própria impossibilidade de dom, logo,
funda aí um ato antes de tudo ético, antes de tudo estético.
Estamos, evidentemente, em uma aporia que implica a demanda,
sempre produtiva, pela necessidade de tornar escrito o animal. Maria Esther
Maciel, analisando o mesmo episódio, propõe: “o poema do jaguar não deixa
de ser também sobre o jaguar, um olhar humano sobre o jaguar, por mais que
o autor tenha almejado se colocar sob a pele do animal, falar a partir dele. (...)
acaba por transformá-lo, inevitavelmente, (...) em um animal escrito”68. Dessa
forma, a movência do poeta implicaria sempre transformar em abstração,
metaforizar o animal em sua inscrição humana. No entanto, e essa pode ser uma
proposta positiva em se fazer pensar a animalidade, é preciso não o imaginar
como representificação de uma natureza em-destruição, mas a partir de uma
lógica outra, que se apropria da pobreza do mundo para indispor a linguagem
frente a si mesmo, diante do aberto. Ex-apropria-se o próprio das construções
em palavras para que deixe também dizer o silêncio do animal, que precisa
ser escrito e não emudecido. A urgência em se combater a crueldade contra o
animal não pode, porém, ofuscar a posição aporética dessa relação, desse lugar
em que preciso seguir (e lógico, ser) o animal, ter o direito de seguida, para,
em um instante que está implicado o imperativo do outro, possa a linguagem
estar “empobrecida” de mundo – em algo que se diria em Heidegger, e contra
68. Maciel, Maria Esther. O
animal escrito: um olhar sobre a
zooliteratura contemporânea. São
Paulo: Lumme,
2008, p. 57.
36
ele, Sprache ist verarmten Welt69 – e, assim, aquém de qualquer referência.
Desde esse abandono, Gérard Bensussan propõe a poética aporética
da animalidade, desde o lugar desse olhar, desse dom deixado – desistido – em
uma meditação enigmática, interjectiva à racionalidade:
69. A ideia de se poder repensar,
como fez Derrida em La bête
et le souverain, o lugar dos
fundamentos metafísicos
heideggerianos, sobretudo esse do
das Tier ist weltarm, me pareceu
implicar uma forma paródica
importante em deixar-se claro o
dilema da sobrevalorização do
Mundo, da presença.
O animal que nos olha, em compensação, nos mantém em um
enigma, o enigma de seu sem por que e da estadia intangível
de onde seu ser animal se dá como “pura e simples presença”
desdobrada até nós que o olhamos nos olhar. Provavelmente
pouco se pode dizer mais, exceto para cair em uma mania
antropomórfica que nunca faz justiça ao enigma animal. Mas
ao menos é preciso tentar se manter na extraordinária altura a
que nos obriga o enigma, o obstinado que ela impõe à ratio, ao
conceito, ao pensamento do dar-se conta, ao logos, ao que desde
o olhar animal escapa-se sempre já e antecipadamente em direção
ao poético, ao não calculável, à meditação muda, à malícia do
incompreensível. Tantos paradoxos, é preciso dizê-lo, ou mais
exatamente aporias. A poética da animalidade é uma aporética da
animalidade.70
70. Bensussan, Gérard. Jacques
Essa aporética envolve uma dupla origem da nomeação, portanto. A
lógica do nome como lógica da escritura, pertenceria ao incalculável – a uma
economia desastrosa, e não antropomórfica, ameaçada desde o hóspede –
de seu segredo e da frustração da semelhança, da similitude rasteira. Sendo
dupla, a origem participa por um lado do segredo que “reste inviolable même
quando on croit l’avoir révélé”, que “excede le jeu du voilement/dévoilement:
dissimulation/révélation, nuit/jour, oubli/anamnèse, terre/ciel”71 e que “reste
étranger à la parole, sans même qu’on puisse dire, syntagme distingué”72,
implicando não uma resposta imediata, imeditada, mas o direito a uma
não-resposta, ao porvir de uma resposta; e por outro lado, da extinção do
semelhante, da homoiosis, do tal qual, a dinâmica do ordinário, como jornalcomum, que reconhece apenas semelhanças e pensa em uma linguagem
comunicativa que seja explicitamente uma padrão “qual qual e tal talqualetal
igual a igual jornaljornada”73, como ironiza Haroldo de Campos. (No
palíndromo do mutum, dois uns, o qualquer e não o único, ao centro – quase
o tenet de Osman Lins, de seu quadrado mágico-narrativo – esse T, tal qual,
esse T intransigente. É preciso reimaginar os anagramas possíveis: mutema,
Maria Mutema, o mutum, Mutum, mudo, o um, o dum, tum). Não se trata,
Derrida – uma poética da
animalidade (sobre o anumano).
In: EYBEN, Piero (org.). Demoras
na aporia: bordas do pensamento
e da literatura. Trad. Piero Eyben.
Vinhedo, SP: Horizonte,
2012, p.37.
71. Derrida, Jacques. Passions.
Paris : Galilée, 1993, p. 60.
72. Ibidem, p. 62.
73. Campos, Haroldo de. Galáxias.
São Paulo: Ex-Libris, 1984.
37
portanto, de uma similitude, antes há uma deriva, suposições de origens,
deslocamentos. Ave e extinção, a literatura na dupla origem da nomeação.
Onoma, ao que retornas ao zero, ao O.
A essa tarefa, apenas a desconstrução, em que, como sugere Derrida:
je tente d’expérimenter dans mon corps un tout autre rapport
à l’incroyable « chose-qui-n’est-pas ». Ce n’est sans doute pas
possible, surtout si on veut en faire autre chose qu’une consolation,
un deuil, un nouveau bienêtre, une réconciliation-avec-la-mort,
sur laquelle d’ailleurs je ne crache pas. Mais cet impossible quant
à « la-chose-qui-n’est-pas » est la seule chose qui finalement
m’intéresse. Voilà ce que j’appelle, encore mal, le deuil du deuil.
C’est une chose terrible que je n’aime pas mais que je veux aimer.
Vous me demandiez ce qui me fait écrire ou parler, voilà. C’est
quelque chose comme ça : non pas ce que j’aime mais ce que
j’aimerais aimer, et qui me fait courir, ou attendre. Me donne et
me retire l’idiome. Et le re-bon.74
Luto do luto, o que faz escrever: tomar o bom, retomá-lo como bem. É
preciso sair do idioma. Mais de um língua, e já nenhuma. O que se quer amar,
reconciliado, ou mais, perdoado. A diferença faz pensar. Enuncio assim, sem
pensar, escrevendo. Seria preciso um lugar a se pensar a natureza e a natureza
da phúsis. A palavra está aí, no lugar do rosto, ética e estética da palavra outra.
A vinda da linguagem, aquela que é acolhida – toda ela. A palavra é sem ação.
O mutum já não mais pia, é extinto. Somam-se os riscos e o acaso, a linguagem
dá a si, ofertando o nome, como dom, como impossibilidade. Tratas aqui de
uma paixão, que acolhe – é uma cena. Um gesto de herança do um ti ao um:
mutum. Ao que te afirmas, nas distâncias. Estive sempre muito afetado com
a textualidade, a lei do texto de Guimarães Rosa. Isso, sobretudo, nos poemas
que compõem Corpo de baile. E, talvez isso me tenha dado tantos mutuns, a
escrever. Rosa diz que Miguilim morava “longe, longe daqui, muito depois da
Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas,
em ponto remoto, no Mutum.”75 A localidade geográfica ressoa não apenas
como espacialidade desses campos gerais que foram a representação do sertão,
para Miguilim (um certo Miguilim) é importante ouvir da voz do estrangeiro,
de “alguém que já estivera no Mutum”, a sentença “que o Mutum era lugar
bonito...”, e que, também guardava o sublime característico do entre morro e
74. Derrida, Jacques. Ja, ou
le faux-bonds. In: Points de
suspension: entretiens. Choisis et
présentés par Elisabeth Weber.
Paris: Galilée, 1992, p. 54.
75. Rosa, João Guimarães.
Corpo de baile. 2. ed. Ilustr.
de Poty. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1960, p. 7.
38
morro que, para sua mãe, “está tapando mim”, toda experiência com o fora (que
será a de seu filho), como se alguém dissesse: “distante de qualquer parte”76.
(1) O Mutum é às distâncias, então. Em “Buriti”, Rosa retorna a imagem, agora
dual. Primeiramente ele utiliza o pássaro mutum: “Outro barulhinho dourado.
Cai fruta podre. Daí, depois muito silêncio, tem um pássaro, que acorda.
Mutum.”, ou ainda: “O mutum se acusa. O mutum, crasso.” Depois de um
interlúdio com lobos, vem: “O mato do Mutum é um enorme mundo preto,
que nasce dos buracões e sobe a serra.”77 Nesse campo, pois trata-se de campo,
preto há apenas buracões onde “o silêncio se afunda, afunda – o silêncio se
mexe, se faz (...) tanto silêncio no meio dos rumores”78, onde o mutum se
espessa, se guarda como anúncio, como despertar. Mutum, dois só sons, que
“piam no voo”. O mutum expõe-se, como o ouriço de Derrida, ao perigo, à
urgência do coração. (2) O mutum executa um silêncio, deixa-se consistência,
em denso. E, por fim, trata-se também de tempo, de um passado, da feitura
da infância, mas também de uma experiência futura, experiência da própria
escritura: “A meninice é uma quantidade de coisas, sempre muros de pedra
sôssa. O Mutum. Assim, entre a meninice e a velhice, tudo se distingue pouco,
tudo perto demais. De preto, em alegria, no mato, o mutum dansa de baile.”79
Um luto guardado, preservado do Mutum no mutum que dança, no insípido
dessas paredes, há o que decidir-se: o distante de qualquer parte, no de longe,
é tudo perto demais, uma alegria. (3) O Mutum tumultua a memória, daquilo
que se pode amar, do mutum guardado – mudo – no infinito. Cabe decidir-se. E,
pensar a decisão, expô-la à prova infinda. O mutum diz a língua – “nada está
menos sob o poder dos homens do que a sua língua”80 – como esse lugar fora,
esse empobrecimento necessário. É preciso decidir-se desde o nome, mesmo
quando “tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo
são, por natureza, coisas simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa,
que chamamos decisão quando considerada sob o atributo do pensamento
e explicada por si mesma”81. É-se livre a decidir? Decides desde o nome. No
entanto, “pour nommer, il faut faire le nom. Cela se dit en grec onomatopeia,
production, création, poiésie du nom. Comme on le sait, il n’y a jamais dans
les langues de véritable onomatopée”82. Digo isso, o mutum.
Intentaria confessar algo dessa responsabilidade pelo nome, desse
caminho sentencioso no qual me repito. Derrida me dá uma pista, uma
senda talvez, no suplemento responsável diante do outro: “Le surcrôit de
76. Ibidem, p. 7.
77. Ibidem, p. 413.
78. Ibidem, p. 412.
79. Ibidem, p. 431.
80. Spinoza, Benedictus de.
Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009, p. 102.
81. Ibidem, p. 103.
82. Nancy, Jean-Luc.
Borborygmes. In : MALLET,
Marie-Louise (dir.). L’animal
autobiographique: autour de
Jacques Derrida. Paris: Galilée,
1999, p. 162.
39
responsabilité dont je viens de parler n’autorisera jamais aucun silence. Je repète:
la responsabilité est excessive ou n’est pas une responsabilité. Une responsabilité
limitée, mesurée, calculable, rationnellement distribuable, c’est déjà le devenirdroit de la morale”83. É preciso decidir-te, dizes com ar quase leve, como uma
adição, mas também numa sobrecrença naquilo que vem, agora mesmo, nesse
tal que compõe os anagramas, dessa voz que cala, certamente. Então, dirias,
talvez, esperando o inesperável:
83. Derrida, Jacques. « Il faut bien
manger » ou le calcul du sujet. In:
Points de suspension: entretiens.
Choisis et présentés par Elisabeth
Weber. Paris: Galilée, 1992, p. 300.
― Tudo está mudo. Silentemente paga tuas dívidas com Johannes de
Silentio, ou seria antes com a paixão de Silesius? Nicht du bist in dem Orth, der
Orth der ist in dir. Não a calar, implicação da palavra lógica, mas convertido
ao escrever a mim. Tu, tu escreves ainda agora a mim. Esta voz estancada,
tomada, posta à escuta, em silêncio. O mutum extinto.
Brasília, 14 de fevereiro de 2013.
40
uma ética do
indecidível
Gérard Bensussan
41
uma ética do indecidível
Gérard Bensussan1
-Nacionalidade ?
-Variável !
« Roma não está em Roma, ela está toda onde eu estou ».
« Minha cabeça está no espaço, mas o espaço inteiro em minha cabeça ».
Essas duas proposições, bem conhecidas, a primeira de Corneille, a segunda
de Schopenhauer – às quais poderíamos indefinidamente acrescentar outras
– abrem perspectivas perfeitamente desconjuntadas e seus registros são tão
disparatados que seria evidentemente cômico querer as reunir segundo um
sentido, segundo uma significação pertinente. Sua associação visa, todavia,
e apesar de tudo, à produção ou à sugestão de um efeito de desencaixe, isto
é, a uma indecidibilização de toda situação ou localização homogêneas.
Como decidir do lugar? E como localizar ou circunscrever uma decisão? E
quem decidirá da decisão? Onde é o lugar, onde está a decisão? Qual estatuto
conceder ao lugar que se faz lugar aqui, lá, alhures? A indecidibilidade desloca
enquanto é ela mesma uma autodivisão contínua, isto é, enquanto não se
decide, salvo para se programar ou performar-se. No que diz respeito a isso,
e contra um certo uso linguageiro derridiano, ela não desenha nenhuma lei
nem se constrói em teorema, ela não inaugura nenhum tipo de axiologia ou
axiotopologia. Ela dessitua e desregra.
1
Professor de filosofia da Université Marc Bloch – Strasbourg II.
42
Um lugar sem (aí) ser
Diremos então, para começar, que o indecidível consiste em não
co-locar2. Não sobre o modo de uma simples negatividade que tomaria
o avesso do co-locar ou do dar-lugar para indicar a via dialética do Lugar
de todos os lugares. Mas segundo a operação de uma entreabertura, de um
entredistanciamento. A porta do indecidível não estará jamais aberta ou
fechada. Nem cerrada nem escancarada, ela desafia a prescrição convencional
(« não é necessário senão uma porta... ») e assim desenha, apesar de tudo,
alguma coisa como um lugar que não se dá nem se faz. « Alguma coisa como
um lugar » não é fácil de figurar ou sugerir. Eu diria, sonhando aqui muito
precisamente com Heidegger, que o indecidível abre um lugar sem ser, um
lugar sem (aí) ser ou, em todo caso, sem poder aí deter-se como em um só
lugar. Em um texto de 1951, Construir, Habitar, Pensar, o autor de Sein und Zeit
propôs uma meditação profunda do ser do Lugar. Aí ele determina o Lugar
como « o que não existe antes » de sua colocação na posição ou no espaço pelo
que aí se constrói3. Como escreve Heidegger, o Lugar não devém um Lugar
senão « graças à ponte », para retomar um exemplo recorrente desse texto. O
espaço não é o que faz face aos homens como um objeto exterior, e não é mais
uma experiência interior que seria da ordem da representação. Conviria, pelo
contrário, reportar-lhe a essência ao que o limita e o organiza, a isso que abole
« o espaço a si parecido, quer se acresça ou se negue » (Mallarmé) para fazer
« um » espaço « colocado » (verstattet) por um lugar que aí dispõe os confins.
O lugar confere então seu ser, ou sua reunião « quadripartite », aos espaços
que nós habitamos. Ele é sempre um lugar-sede. Por outro lado, o lugar do
indecidível é certamente um não-lugar, um lugar sem comandante, sem cauda
nem cabeça. O indecidível decapita o lugar de seu ser, porque dele destitui a
essência localizável, decidível, e nele dissemina a citação4 a sua aumentação
interminável. De alguma maneira, o indecidível tem portanto « a ver » com
o lugar. Mas de qual lugar pode tratar-se? E por que esse ter-a-ver, de que
maneira e sobre qual modo? É a decisão que vem aqui cindir. O indecidível,
com efeito, não é tal senão em « seus lugares », mais de um lugar, sempre, e os
ditos lugares são os lugares mesmos da decisão, ou os lugares de seu não-lugar,
de alguma maneira. O indecidível nomeia então, fora de toda figura, o que se
faz lugar entre os lugares.
2 O autor joga com as expressões
‘faire lieu’ e ‘donner lieu’. Embora
ambas possam ser traduzidas por
‘dar lugar’ no português, optou-se
pelo neologismo e hifenização
do verbo ‘colocar’, de modo a
assinalar a diferença entre as duas
expressões. (N. do T.)
3. Essais et conférences, Gallimard,
p. 182-3, trad. A. Préau .
4. O autor faz um jogo com o
termo ‘assignation’, que em francês
quer dizer tanto citação (no
sentido jurídico) quanto hipoteca
(no sentido de uma garantia
jurídica, igualmente, constituída
ela mesma por um lugar).
43
Na trajetória derridiana, o indecidível obtém e retira seus problemas
de uma travessia e de uma meditação do espaço da verdade de uma escritura.
Que baste aqui reenviar ao pharmakon, ao hymen ou, ainda, e melhor ainda,
à flutuação. Um traço de indecidibilidade se marca e se remarca na operação
poética mallarmaica segundo a leitura que desenvolve « La double séance »5.
Esse traço subtrai. Ele inaugura uma condição e uma possibilidade: subtrairse à pertinência e à autoridade da verdade, aí onde a filosofia, e para além
dela toda sorte de escrituras, não autorizariam o acolhimento de semelhante
subtração. Trata-se, portanto, também de fazer lugar a esse não-lugar da
filosofia, mas não revertendo a verdade ou invertendo os signos, nem dandolhe lugar em uma nova escritura ou em novos « valores ». Fazer lugar a esse
não-lugar consistirá em deslocar o rastro da escritura de tal maneira que aí se
inicie um « des-encaixe »6, e em primeiro « lugar » um desencaixe do sentido.
« Enquanto depende deles, enquanto neles se dobra, o texto [mallarmaico]
joga então uma dupla cena. Ele opera em dois lugares absolutamente
diferentes, mesmo que eles não sejam separados senão por um véu, a uma só
vez atravessado e não atravessado, entreaberto »7.
Essa dupla cena, ou essa « estrutura bífide »8, é dita e longamente descrita
por Derrida como « dois sem um »9. Esta matriz, por assim dizer, do doissem-um significa fortemente a intenção expressamente antidialética aberta
pela possibilidade de proposições indecidíveis. Aqui uma grande sutileza é
requerida, pois se trata, com efeito, de esboçar proposições a que o idioma
metafísico não pode ar lugar e que não terão posição senão acontecimental,
como configurações inadmissíveis e singulares. A manobra antiespeculativa
é tão sutil que ela deve passar por uma « dialética imitada »10 sobre a qual
é capital não se equivocar. Com efeito, a estrutura de hymen e a lógica da
suplementaridade que ela vai introduzir parecem elas mesmas constantemente
levadas pela passagem decidida, decisiva, a um ultrapassamento. Elas evocam
ultra-passagem de uma na outra, de uma nas duas, a qual reconstituiria, sem
falhar, uma unidade de verdade na contradição dialética e sublimaria o dois
do dois-sem-um em um um-com-dois, assegurando assim a « felicidade »
especulativa do indecidível, de um indecidível que houvesse cedido à tentação
dialética do decidível nela houvesse se efetuado. Derrida é muito claro sobre
esse ponto: « é necessário sustentar a crítica sobre o conceito de Aufhebung
ou relève que, como motor último de toda dialeticidade, permanece o
5. La dissémination, Seuil, 1972,
p. 215-347.
6. Ibid., p. 238
7. Ibid., p. 273.
8. Genèses, généalogies, genres et
le génie. Les secrets de l’archive,
Paris, Galilée, 2003, p. 43 – esta
estrutura bífide caracterizaria a
forma literária enquanto, para
ela, “seu segredo é ainda melhor
selado e indecidível quando não
consiste, em última análise, em
um conteúdo oculto, mas em
uma estrutura bífida que pode
guardar em reserva indecidível
isso mesmo que ela confessa,
mostra, manifesta, exibe, expõe
indefinidamente.”
9. La dissémination, ed. cit.,
p. 334 – grifo meu.
10. Ibid., p. 282.
44
recobrimento o mais sedutor, o mais « relevante », porque o mais semelhante
a esta gráfica [aquela da suplementaridade e do hímem]. É por isso que
pareceu necessário designar a Aufhebung como a meta decisiva. »11 Não mais
do que um lugar-sede (Heidegger), o lugar fora-de-lugar do indecidível não é
um lugar de passagem (Hegel). Ele não garante nem trânsito nem transação
entre dois espaços releváveis em um lugar dialeticamente habitável. O desencaixe que ele efetua é uma dis-tensão, isto é, uma temporalização da
temporalidade da hesitação, do suspenso, da interrupção, da oscilação. Esse
tempo é passividade, afecção, destituição – do decidível pelo indecidível. Por
ele indica-se o que vem desassegurar todo domínio, que é sempre domínio
do tempo e da presença, empresa sobre um porvir decidido ou a decidir. Mas
esse tempo « bífido » emprega também uma tomada, o vencimento de uma
tomada de decisão, antes mesmo que ela o seja, antes de toda significação.
Eu diria do indecidível que ele é o tempo da decisão. Nela ele dis-põe, em
todo caso, o quase-transcendental como busca, como « espera sem desígnio
em vista », para retomar uma sentença de Levinas a propósito do tempo,
justamente. Portanto ele desfaz, evidentemente, toda possibilidade de sentido
como pressuposição, como disponibilidade, como reserva preliminar, quer
como aquilo de que se pode assegurar-se antes mesmo de possuir algo a
resolver ou a decidir. Não há indecidível senão do sentido e não há decisão
senão sobre o sentido e no tempo: o desencaixe não pode ocorrer senão como
deslocamento em direção a um certo in-sensato ou ainda como temporização
do tempo da decisão indecidível. Dito de outra forma, o indecidível se deporta de uma só vez para além ou para aquém de todo saber decisional ou
de toda organização sensata da solução, da resolução, da boa decisão. Podese sem hesitar determinar esses usos como éticos ou prático-éticos. Sempre
tenho que decidir sobre o que não sei, no elemento mesmo de um não-saber
ou de um não-sentido, no balanço angustiado entre as escolhas igualmente
decidíveis (ou indecidíveis, pois). Toda decisão se toma, ou ela toma aquele
que a « toma », em uma temporalidade do abandono, isto é, em um abismo de
indecidibilidade. De outro modo, Derrida o assinalou forte e frequentemente,
a decisão aí não é uma. Se ela sabe já o que tem a fazer, ela não faz senão
preceder a ela mesma até seu topos, sua possibilidade sempre-já atualizada.
Ela obedece portanto a um sempre mais-de-um (ou de uma) ou a um entreos-dois.
11. Ibid., p. 303-4.
45
Flutuação
Desse sintagma maior do indecidível, a flutuação de « La double
séance » oferece algo como um quase-conceito, radicalmente concorrente
da relève: « flutuação entre os textos : a flutuação, suspenso aéreo do véu, da
gaze ou do gás...evolui segundo o hymen. Cada vez que ela aparece, a palavra
flutuação sugere a sugestão mallarmaica, desvela com dificuldade, muito
próxima de desaparecer, a indecisão do que permanece suspenso, nem isso
nem aquilo, entre aqui e lá... Entre os dois, confusão e distinção... A hesitação
de um « véu », de um « voo », de um « obstáculo » » 12. Esta indecisão, em não
se decidindo, impede a decisão em sua indeterminação inata e a engaja no
que ela tem de incalculável. Ela forma em última instância uma ética que se
poderia nomear uma ética da flutuação. É necessário guardar-se de entender
demasiado apressadamente a expressão em um mau sentido, como o mau
flutuar do eterno indeciso ou a infeliz indecisão do fraco. Em jogo sobre sua
dupla cena dividida sem remédio, « sem um », implicado em sua estrutura
bífida e adialética, o indecidível atribui e expõe a decisão e a responsabilidade
às oposições, às distinções, às fronteiras, aos cortes « entre os dois » (conceitos,
territórios, línguas...). A ética da flutuação não se deixa aproximar senão
como truque da ubiquidade e, para dizer tudo, marranismo. Poder-se-ia
determinar elipticamente o marranismo como jogo ético do indecidível e
do impartilhável, oculto sob a moral exibida de uma decisão publicamente
partilhada. A ética marrana da flutuação é o mercúrio prático-moral ao uso
daqueles que se mantém alhures, os exilados do lugar-uno, os tenentes do
mais de um lugar. Ela é, pois, sob certos aspectos, uma ética dos dominados
– menos em um sentido político imediato que a prenderia em uma oposição
termo a termo dos dominados e dos dominantes, que em uma figura que
Derrida nomeia em algum lugar, em uma conversa, « estratégia do vivente »,
ou ainda « estratégia do desejo ». Se se pode dizê-lo assim, a máxima aí seria:
« você não me pegará! », em todo caso não aí onde eu teria podido me reunir
todo em um, e não de imediato, pois, divisível, eu voo, eu velo e eu salto13. O
desencaixe que se pode daqui em diante qualificar de marrano produz um
diferimento, um distanciamento ético. O indecidível contém um recurso,
12. Ibid., p. 292-3.
13. O autor faz aqui um jogo
com os verbos: je vole, je voile e je
voltige, dificilmente preservada em
português. (N. do T.)
46
uma reserva, uma guarda, mas também um risco sem mesura, uma extrema
exposição, esses se entre-implicando por aquelas. A morte pode sempre deterse no encontro de uma decisão que resolveria para um contra o outro desejo,
mesmo para um no outro, para o um do dois, como na dialética do mestre e
do escravo. Mas ela bem pode também encarnar-se, retorcida e inesperada,
na quase-desaparição do lugar realizada pela indecisão suspensiva do « nem
isso nem aquilo ». Aconteceu que Derrida relaciona expressamente a lógica
da flutuação ética e da suplementarização desconstrutiva a um biografema
preciso, a experiência de uma francesidade indecidível, de uma nacionalidade
flutuante, outorgada e retomada, concedida e ameaçada: « os Judeus da Argélia
de minha geração [os quais] não eram, de mil maneiras, indecidivelmente,
nem franceses nem não-franceses »14. Eu me permito aqui adicionar ou incluir
o seguinte: após a guerra, e uma vez reestabelecido o decreto Crémieux, que
lhe restituía seus direitos civis de Francês, Léon Bensussan, meu tio, um desses
Judeus da Argélia da geração de Derrida, respondia a um funcionário que lhe
questionava qual era sua « nacionalidade »: « variável ! ». Indecidível, portanto,
ou ainda: mais de uma, isto é: não tenho senão uma e não é a minha! A ética dos
dominados, como ética marrana, irônica, impaciente, certamente diz respeito
a uma certa recusa, mesmo à língua e seus retornos, de dar crédito a resultados
obrigatórios e institucionalmente enquadrados, tais como são propostos às
pertencenças exclusivas, às escolhas, às alternativas entre os conceitos, os
opostos contraditórios, às figuras ou mesmo às dobras internas às figuras.
Assim, não é necessário « escolher seu campo » e seu sedentarismo. Isso seria,
em menos de dois, renunciar. Seria necessário, pelo contrário, atravessar a
khôra, o que abre o lugar, todos os lugares, e faz nascer ao acontecimento de
uma decisão. O « nem isso nem aquilo » não significa o abandono resignado
dos dois – é o inverso. Importa que se tenha fortemente o esse e o aquele
na curvatura mesma da decisão indecidível, mais precisamente confiar-se a
ambos, às suas instâncias decisivas.
14. « Abraham, l’autre ». In:
Judéités, dir. J.Cohen et R.ZaguryOrly, Galilée, 2003, p. 28.
O tempo do outro: venha, me ame
47
Conformar-se da decisão, sem poder decidi-la ou mesmo decidir quanto
a decidir sem confiar em quem quer que seja – entre o indecidível, por onde
o lugar do cortar se desloca, e a decisão combinada, programada e calculada
nos efeitos que espera, se insinua nada menos que o outro, o outro da vontade
autônoma, o outro donde fulgura o que há lugar de decidir. Se o indecidível é
o tempo da decisão, esse tempo é sempre o tempo de um outro. Esta restituição
da decisão no indecidível do tempo de um outro não significa, novamente, um
consentimento inerte a minha própria despossessão e ao confisco de minha
potência de agir – como se pura, simplesmente e de uma ponta à outra, eu
deixasse fazer o outro em « preferindo não »15 decidir. O indecidível emprega
uma configuração bem diferente, uma vez que se mantém, foi dito, nos lugares
mesmos da decisão e de seu desencaixe. Eu faço, eu ajo, me mantenho sempre
à borda do decidir e nele me sustento tão longe quanto posso. E, no entanto,
eu « sei » que nada o fará : « minha » decisão obedece a coisa totalmente outra
que a minha liberdade, minha capacidade de iniciativa, minha consciência
antecipante – salvo se limitar-se, Derrida aí insiste sem cessar, a um programa
ou a um projeto, os quais serão eles mesmos incessantemente frustrados, pelos
azares do outro e pelas imprevisibilidades do tempo, pelo resto estritamente
indecidível de toda decisão. Decidir, ter a decidir, é deter-se diante do outro,
fazer com o outro, como se diz. O indecidível é sempre já tomado por esse
fazer-com. Uma decisão desligada desse com seria uma decisão « frágil » e
já comprometida, já decidida à contra-corrente dela mesma. Os acessos
indecidíveis da decisão, o que a bordeja antes dela e depois dela, podem ser
aproximados em uma certa língua messiânica, ou, muito mais precisamente,
nos clarões messiânicos que toda palavra falada manifesta em sua força
cotidiana.
15. O autor faz aqui um jogo
com os verbos: je vole, je voile e
je voltige, dificilmente preservada
em português. (N. do T.)
« Venha » é uma dessas explosões da língua das quais Derrida aplicouse a fornecer uma análise « subtrativa », tanto quanto semelhante sintagma
seria de uma só vez subtraído à ordem que o porta, à língua que o proíbe e o
autoriza de uma só vez. Eu aí ajuntaria a analítica rosenzweigiana do « Ameme », que atesta uma proximidade acentuada e mesmo uma profunda afinidade
« estelar » com o comentário derridiano. Esses dois curiosos imperativos
presentes na segunda pessoa do singular, « venha », « ame-me », impõem uma
48
aparente impossibilidade em um requerimento no entanto muito simples : a
língua lhes é inóspita e ela é no entanto o que os acolhe. Eles formam a instância
de um chamado que eu apreendo dizendo a tal outro para « vir » ou para me
« amar ». Eu « decido » dizer, e dizer imperiosamente, porque não posso fazer
de outra forma, não posso dizer numa não-língua. É-me necessário dizer
na língua do outro, na outra língua que eu jamais falarei. Tudo nesse dizer
é portanto radicalmente golpeado de indecisão ou de indecidível : a vinda, o
amor, o vindouro e o amado a que me remeto. O dizer, aqui, não tem outro
sentido senão o indecidível ao qual ele se expõe. Escutemos as duas vozes tão
próximas e tão díspares a um só tempo, de Derrida, e então de Rosenzweig.
« Venha não é uma modificação de vir […] Por consequência
minha « hipótese » não designa mais uma operação lógica ou
científica. Ela descreve sobretudo o avanço insólito de venha
sobre vir. É um passo a mais ou a menos sob vir. É subtrair alguma
coisa em toda posição, tal como ela se propaga e recita através dos
modos do vir ou da vinda, por exemplo, o porvir, o acontecimento,
o advento, etc., mas também através de todos os tempos e modos
verbais do ir-e-vir. Venha não dá uma ordem, ele não procede
aqui de nenhuma autoridade, de lei nenhuma, de nenhuma
hierarquia […] Uma « palavra », deixando inteiramente de ser
uma palavra, desobedece à prescrição gramatical ou linguística,
ou semântica, que lhe determinariam ser – aqui – imperativo,
presente, a tal pessoa, etc. Eis uma escritura, a mais arriscada
que seja, subtraindo alguma coisa à ordem da linguagem que ela
aí dobra em retorno com um rigor muito suave e inflexível […]
Venha não é um imperativo, não é um presente. Não sê-lo, eis o
que o que não lhe confere uma sorte de selvageria não linguística
deixando o acontecimento venha em liberdade. Isso insiste, pelo
contrário, na língua de maneira singular, inquietando todas as
seguranças linguísticas, gramaticais, semânticas. Venha não dá
uma ordem no presente a uma pessoa »16.
16. Parages, Galilée, 1986, p. 256. Não dou conta alguma aqui
da referência blanchotiana da
sentença.
« O amor não é somente livre oferenda? E eis que se o comanda?
Sim, certamente, não se pode comandar o amor; nenhum terceiro
pode comandá-lo nem obtê-lo pela força. Nenhum terceiro
o pode, mas o único o pode. O comando do amor não pode
vir senão da boca do amante. Somente aquele que ama pode
dizer: Ame-me […] O amor daquele que ama não possui outra
palavra para expressar-se senão o comando […] O comando
49
no imperativo, o comando imediato, jorrado do instante e já
em vistas de devir sonoro no instante de seu jorrar – pois devir
sonoro e jorrar são uma e mesma coisa no amor –, o « ame-me »
do amante, eis a perfeitamente pura linguagem do amor. Então
quando o indicativo tem detrás de si todas as circunstâncias que
fundaram a objetividade e o passado aparece como a forma a
mais pura, o comando é um presente absolutamente puro, sem
nada que o prepare. E não somente sem nada que o prepare, mas
absolutamente sem premeditação. O imperativo do comando não
faz previsão nenhuma para o porvir; ele não pode imaginar senão
a imediatez da obediência. Se ele fosse pensar em um porvir ou
um « sempre », não seria em nada um comando, não seria uma
ordem, mas uma lei ».17
Apesar das oscilações muito significativas quanto ao uso de alguns
termos, « comandar », « presente », « pessoa », que se poderia facilmente
explicar sem apaga-las nem força-las, essas duas meditações engajam-se, cada
uma à sua maneira, sobre a estreita passagem do acontecimento de uma palavra
viva, urgente e impossível, arrancando-se à ordem da língua. É em virtude
desta potência de arrancamento da palavra de sua « ordem », de uma palavra
à distância dela mesma, distanciada dela mesma, que pode-se aqui (« aqui »,
como insiste Derrida) evocar a messianidade da injunção indecisa, carregada
pelo instante e absolutamente não premeditada. A « subtração » para Derrida
ou o « devir-sonoro » para Rosenzweig são modos ou exercícios de palavra
em direção ao outro por onde o indecidível (« o avanço do venha sobre vir »
o qual, como « ame-me », não faria « previsão nenhuma para o porvir ») abre
fora-da-lei à resposta do outro. Este é de fato o decisor do indecidível, atando
o tempo e a espera, o incerto e o iminente.
17. Franz Rosenzweig, L’étoile de
la Rédemption, trad. Derczanski /
Schlegel, Paris, 2. ed., Seuil, 2003,
p. 251-2. Acrescento que Derrida
aventa, ele mesmo, a possibilidade
de que as duas sentenças sejam
assim justapostas, quando afirma,
repetidamente, “eu amo sempre o
que eu amei”.
1. O indecidível é o tempo da decisão (dizer: « venha », « ameme »).
2. Esse tempo indecidível é o tempo de um outro (a quem eu digo :
« venha », « ame-me »).
3. Esse outro ordena algo como uma esperança (de que isso venha
e de que isso ame, logo em seguida).
50
Esta tripla articulação permite compreender melhor ou melhor
determinar a ética da flutuação ou a ética dos dominados/marranos que
colocou-se em questão. Para dizer a coisa mesma, uma certa messianicidade
sem messianismo é muito profundamente implicada em uma possível ética
do indecidível, para além mesmo de seus esperados derridianos estritos. É
necessário precisar de uma vez o conteúdo da esperança no que ele se aglomera
ao tempo e ao outro no indecidível – não a esperança em geral, portanto, mas
a esperança pelo indecidível ou esperança enquanto ela comanda toda decisão
vivente.
Esperar pelo indecidível
Não se espera senão pelo que está em tensão no instante mesmo
em que o esperar se estabelece, de uma vinda, de um amor. Dito de outro
modo, não se espera pelas coisas longínquas – ou então trata-se de uma
esperança que constitui o esquema pelo qual se imagina o porvir e se dá
seu conceito. Espera-se portanto pelo que é muito próximo, seja o mais
incalculável, o mais não-pré-determinável, o mais im-pré-pensável, pelo
que está o mais carregado de espera e de inquietude, no instante. De um
lado « venha, ame-me » não pode dizer-se senão a partir de uma vinda já
vinda, um amor já aí – não se poderia endereçar-se a quem se apresenta,
que não entenderia, nesse sentido, nem o vir, nem o amar, nem a imperiosa
injunção. É bem necessário que alguma coisa dessa espera esteja já contida
no endereçamento que dela jorra para que ela possa somente proferir-se.
Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, esta atualização prévia não efetua
nenhuma reatualização automática, ela não é nem tem garantia de nada.
Pelo contrário, ela exacerba a questão de sua renovação indecidível, ela exige
que eu não saiba decidir, isso de que não há lugar para mim « decidir », que
é requerido e improvável a um só tempo. O esperar condensa assim o mais
próximo e o mais indecidível em uma intensidade temporal inaudita. Aí,
logo em seguida, isso acontece, isso vai acontecer; mas o acontecimento,
51
colocando-se assim na espera imediata dele mesmo, se suspende em sua
irresolução de cada instante : venha, ame-me. Assim aproximado em sua
condensação instantânea, o esperar se encontra descarregado de todos os
cálculos, de todos os investimentos de sentido e de todas as determinações
racionalizantes que o sobremarcam tão logo ele lide com as coisas distantes.
Ele poderia então escapar muito bem tanto de sua constante depreciação
pela filosofia e pelos filósofos quanto de sua redução concomitante a uma
virtude teológica, religiosa ou laica. A decisão ela mesma poderia ser o objeto
de uma distribuição inédita. Não se « decide » senão pelas coisas longínquas,
na ilusão do programa e da empresa. Quanto mais o objeto da decisão de
aproxima do instante do cortar, até confundir-se em um indecidível-im-prépensável, mais a decisão dá lugar a um confiar-se à tensão insigne do tempo
e ao esperar de uma de-tensão. É esse movimento de um dizer ininvestível
pela espera e atencipação que atesta o modo gramatical do imperativo da
segunda pessoa do singular, o único que possa manifestar uma ordem sem
ordem, um endereçar sem espera, uma afirmação e uma positividade sem
dialética e sem processo preventivo.
Há no indecidível uma aquiescência plena ao dois-sem-um – de que
foi dito que não se acomodava nem com uma resignação a um dos dois,
nem autorizava um ultrapassamento especulativo dos dois no um, nem
renunciava a agir e a decidir. Uma « razão », no sentido em que Pascal podia
escrever que trabalhar « pelo incerto » era o único fazer razoável, o único
fazer « para amanhã » – uma « razão », portanto, joga indecidivelmente contra
as racionalidades da decisão amadurecida e refletida: « Quantas coisas faz-se
pelo incerto, as viagens sobre o mar, as batalhas! Pois eu digo que não seria
necessário nada fazer do todo, pois nada é certo... Quando se trabalha para
52
o amanhã e para o incerto, age-se com razão »18. A afirmatividade essencial19
do indecidível e a gloriosa incerteza que o acompanha permitem que se
possa a ela associar o esperar pelo iminente, o quase-já-lá, o impossível.
Elas obrigam mesmo a se colocar ao lado desta esperança e a tentar pensar
uma ética desse esperar, flutuante, marrana e messiânica, votada à injunção
indecidível do outro, vinda dele e a ele endereçada.
18. Pensées (452/130), Œuvres
complètes, Pléiade, p. 1216.
19. Reenvio o leitor, se posso, a
“Oui, la survie... Note sur le carré
affirmatif de la déconstruction”.
In: Rue Descartes, “Pensar com
Jacques Derrida”, dir. J. Cohen,
n° 52, Paris, 2006.
(tradução de Daniel Barbosa Cardoso)
53
a virada
literária
Nicholas Royle
54
a virada literária
Nicholas Royle1
O morcego é sombrio, com enrugadas asas –
Como abandonado artigo –
Emily Dickinson 2 2. No original, The Bat is dun,
with wrinkled Wings – Like fallow
article – (N. da T.)
Girar sobre ou parafusar para ajustar; causar uma virada ou giro. (entre as
acepções em inglês para Desviar)3
3. No original, To Turn about or
screw in order to adjust; to cause to
revolve or whirl. Obs. (OED, ver v.
2, sentido 7) (N. da T.)
Você não está lá. Você se desvia por sobre uma dobra na pintura que
afinal iria te notificar a partitura que interpreta numa peça de teatro que se
atuava a si mesma antes que você nascesse e canta imperceptivelmente em seu
corpo como um morcego. É o fragmento de música que tentava ouvir, música
como um construto da arquitetura. “Escrevendo numa era pós-derridiana”?4
*
Tantas as viradas5 que você suspira. A virada linguística, a política,
a ética e tantas mais e etc., suficiente para te fazer virar no túmulo,
prematuramente, você pensa, sem necessidade de outrem, especialmente
não uma virada literária, só pode ser brincadeira, você pensa. Você sempre
considerou a frase “a virada linguística” como um tipo de piada, de alguma
forma um gesto cômico e, ao mesmo tempo, enganoso, que aparentemente
pretende se referir a uma nova tentativa à importância da linguagem no
pensamento, na filosofia e na cultura de maneira geral, como se houvesse algo
antes da virada, como se isso confirmasse que há escritos (os de Shakespeare,
por exemplo) que não tiveram uma virada e já estavam virados desde o
começo, como se as palavras “virada linguística” pudessem ser escritas, lidas,
Professor de English, Centre for Literature and Philosophy da University of Sussex. O texto
“The Literary turn” apareceu primeiramente em Veering – A Theory of Literature. Edinburg:
Edinburg University Press, 2011, p. 92-118. A autorização dessa tradução foi concedida pelo
próprio autor.
1
4. “A Virada Literária” nasceu
(numa forma mais condensada)
como uma aula na conferência
intitulada “Escrevendo numa era
Pós-derridiana”, na Universidade
de Vaxjo na Suécia, em Outubro
de 2008. Eu gostaria de registrar
meus agradecimentos a Vasilis
Papageorgiou por inicialmente
ter-me convidado a lecionar
este tópico.
5. Ao longo do texto, a palavra
turn se repete em vários lugares,
começando pelo título. A principal
referência se dá em torno de The
Turn of the Screw, de Henry James,
que no Brasil foi traduzido por A
outra volta do parafuso. Como o
título do livro se refere a uma fala
da personagem, traduzir turn por
volta parece o mais apropriado. No
entanto, em relação à referência
de literary turn, a tradução que se
impõe para o termo turn é virada.
Durante o texto, optei por traduzir
por volta ou virada conforme fosse
mais adequado. Nos lugares em
que turn ganha um complemento
que altera seu sentido e em que
não há palavra correspondente
no português capaz de manter a
relação com turn (volta/virada), a
palavra ganha uma nota de rodapé
para que o original seja marcado
no texto, dando a ver os jogos em
torno da palavra turn. (N. da T.)
55
faladas ou pensadas sem a necessidade de registrar ou tentar reconhecer a
lógica metalinguística ali escrita. Para pontuar rapidamente, a frase “virada
linguística” não pode simplesmente estar fora ou à parte da virada a que ela se
refere? Sua singularidade (conceitual e histórica) precisaria se relacionar com
a forma com que aquilo se engaja ao que Heidegger, Lacan e outros se referem
como a impossibilidade da metalinguagem. Em resumo, é sobre o que Jacques
Derrida está falando quando ele evoca a necessidade de uma “metalinguística
radical, que, no entanto, se integre consigo mesma, em seu próprio cais, a
impossibilidade da metalinguagem”6. Com essa metalinguística radical, a
virada literária já terá começado.
Mas você segura um riso, ou pelo menos um sorriso, bem como da
forma com que Derrida, pensador do rastro, de uma não-alfabética, nãolinearizada escritura, de uma não-antropocêntrica concepção da linguagem,
transportador marrano da desconstrução como “o que acontece” ou “o que
chega”, tão rápido e tão seguramente veio a ser chamado de “filósofo linguístico”.
Quão ridículas as pessoas podem ser, você pensa consigo mesmo, por que
elas não tentam ler algo que ele escreveu ou disse, por exemplo, na discussão
publicada em “I Have a Taste for The Secret”, em 1994, em que, de maneira
retrospectiva, ele enfatiza que a desconstrução era sobre “colocar em questão
a autoridade da linguística”, era, precisamente, “um protesto contra a ‘virada
linguística’”. Algumas pessoas interpretaram sua elaboração do rastro “como
um pensamento da linguagem” ao passo que “é exatamente o oposto”, ele disse.
Não o entendam mal, linguagem e retórica “merecem enorme consideração”,
ele salienta, “mas há um lugar em que a autoridade da jurisdição final não é
nem retórica, nem linguística, nem discursiva. A noção do rastro ou de texto
[ou de ‘escritura’, na elaboração que faz Derrida] é introduzida para marcar os
limites da virada linguística7”.
Você viu por que as pessoas falavam, especialmente nos anos noventa,
sobre uma virada ética ou política na obra de Derrida (associada em particular
com o ensaio de 1989, Força de Lei, O outro cabo, em 1991, Espectros de Marx,
em 1993 e Políticas da Amizade, em 1994) e na chamada “teoria” em geral,
a virada de uma está crucialmente ligada à virada de outra, ainda que tenha
boas razões para não ser levado por tais generalidades, necessariamente atento
à forma com que o trabalho de Derrida se engajou em questões políticas e
6. Jacques Derrida, ‘Some
Statements and Truisms about
Neo-Logisms, Newisms, Postisms,
Parasitisms, and other Small
Seismisms’, trans. Anne Tomiche,
in David Carroll (ed.), The States of
‘Theory’: History, Art and Critical
Discourse. New York: Columbia
University Press, 1990, p. 76.
7. Jacques Derrida, ‘I Have a Taste
for the Secret’, Jacques Derrida em
conversa com Maurizio Ferraris e
Giorgio Vattimo, in Derrida and
Ferraris, A Taste for the Secret.
Trad. Giacomo Donis. Cambridge:
Polity, 2001, p. 76.
56
éticas, em uma politização dos conceitos em geral, no questionamento de
todas as formas de etnocentrismo e em uma nova e catastrófica versão da
diferença, desde o princípio. Você assume que um argumento similar e uma
demonstração poderiam prontamente ser previstas em outras viradas direta
ou indiretamente associadas ao trabalho de Derrida, tais como a “virada
performativa”, a “virada pictórica” e a “virada animal”.
A noção de uma virada literária, por outro lado, poderia soar implausível
de outra forma. Não temos testemunhado, durante os últimos vinte anos ou,
ainda, participado do encorajar, ou do causar, o desaparecimento dos estudos
literários, o declínio ou até mesmo a morte da própria literatura? Como J. Hillis
Miller sugere, no começo do seu livro On Literature (2002): “O fim da literatura
está próximo. O tempo da literatura já está quase no fim”.8 E vai esclarecer essa
ideia fazendo referência ao que está acontecendo nas universidades:
Um dos sintomas mais fortes da iminente morte da literatura é a
forma com que os novos membros da faculdade, nos departamentos
de literatura por todo o mundo, estão se debandando9 dos estudos
literários para a teoria, os estudos culturais, pós-coloniais, estudos
de mídia (filme, televisão, etc.), estudos de cultura popular, estudos
feministas, afro-americanos e assim por diante. Eles comumente
escrevem e ensinam de uma forma que se aproxima mais das
ciências sociais que da forma tradicional em que se concebe as
humanidades. Seus escritos e aulas frequentemente marginalizam
ou ignoram a literatura. Isso é assim ainda que a muitos deles
tenham sido ensinadas a história literária e a leitura minuciosa de
textos canônicos à maneira antiga. (10)
Você poderia facilmente ser pego na imagem da virada que Miller evoca:
as pessoas estão se debandando dos estudos literários.10 Parece que qualquer
virada literária teria que provocar um retirar-se11 do literário. O enunciado
de Miller sobre o declínio dos estudos literários quase parece controverso.
Na verdade, na Inglaterra há poucos “departamentos de literatura” ao todo:
“literatura” saiu da maioria das divisões departamentais há algum tempo.
Todos os instrumentos concordam (como na frase de W. Auden),
e especialmente todos aqueles instrumentos tecnológicos que há muito
8. J. Hillis Miller, On Literature.
London: Routledge, 2002, p. 1.
Mais referências de página para
o livro de Miller aparecem entre
parênteses no texto.
9. No original, turn in droves
(N. da T.)
10. O idioma de Miller é
bastante familiar, embora o
Dicionário Oxford de Inglês
(sigla em inglês OED) não
faça referência a isso e não
tenha uma entrada separada
para “rebanhos” no plural.
O dicionário cita, porém,
um exemplo do plural de
Nathaniel Hawthorne, que
escreve (nos seus Diários em
francês e Italiano em 1857):
“Um fantasma em cada recinto
e rebanhos deles em alguns dos
recintos.” A fantasmaticidade
de “turning in droves” talvez
seja adequada.
11. No original, turning away
(N. da T.)
57
deixaram de ser (se é que eles foram um dia) instrumentos, mas se infiltraram
e se enredaram na própria textura do nosso ser, todos os instrumentos
concordam que a literatura está sob ameaça, e sob ameaça não por causa dos
instrumentos. Para recordar uma assertiva assombrosa de um dos “Envios”
(datado de 23.06.1979) em O Cartão-postal de Derrida: “uma época inteira
da assim chamada literatura, se não toda ela, não pode sobreviver a um certo
regime tecnológico de telecomunicações (a esse respeito o regime político
é secundário)”.12 Não apenas as universidades, em seu ensino, pesquisa e
publicações associadas mudaram significantemente o foco na literatura como
tal, mas a literatura está necessariamente ameaçada pela explosão de outros
tipos de telecomunicações e teletecnologias. Como Derrida deixa claro em
Mal de Arquivo e em outros lugares, televisão, internet, e-mail e telefones
celulares, por exemplo, não são meramente acessórios para a literatura mais
do que o são para a psicanálise ou para a filosofia. Eles geram um espaço do
que ele chama de “ficção científica retrospectiva”, que necessariamente define
“quando estamos [nous y sommes]” – se estivermos pensando sobre a história
da literatura, da filosofia ou da psicanálise.13
Você deveria tentar deixar claro, então, que por “virada literária” estava
pensando em algo bem singular. Ao tentar capturar o que a tão chamada
tradição literária entende pela frase “virada literária”, é impossível não deixar
de notar o jeito como Salman Rushdie a usa quando, em uma discussão com
Stuart Jeffries sobre sua recente viagem a vinte e nove cidades dos EUA para
promover seu romance A feiticeira de Florença (2008), ele sublinha: “Depois
de J. K. Rowling, eu acho que sou a maior virada literária do Reino Unido”.14
Isto é, certamente, um pouco distante da virada literária que você tem em
mente, ainda que permaneça vagamente intrigado com o que aconteceu na
programação da publicação da literária contemporânea e a quase pornográfica
indústria da “cultura de celebridades” (alguns oxímoros são mais estúpidos
que outros), para permitir que Rushdie use a frase a sua moda. Você pode
imaginar (alg)um porta-voz da indústria da publicação literária chegando e
dizendo: “sua noção particular de virada literária se refere presumivelmente
à expansão impressionante, sobretudo nos últimos 10 a 15 anos, daquilo que
tem acontecido sob o termo auspicioso de ‘escrita criativa’”. Você olha para
ele, você quer chorar, você quase não sabe por onde começar. Você pondera a
12. Jacques Derrida, “Envois”, em
The Post Card: From Socrates to
Freud and Beyond. Trad. Alan
Bass. Chicago: Chicago University
Press, 1987, p. 197.
13. Jacques Derrida, Archive
Fever: A Freudian Impression.
Trad. Eric Prenowitz. Chicago:
Chicago University Press, 1996, p.
16; Mal d’archive: Une Impression
freudienne. Paris: Galilée, 1995,
p. 34.
14 ‘Everybody Needs to Get
Thicker Skins’, The Guardian,
G2 (11 July, 2008), p. 5.
58
possibilidade de chegar a algum lugar respondendo: “antes de tudo, ninguém
disse que ‘particular’, era singular”. Se você for paciente, talvez fique claro: tem
a ver com o singular e a singularidade. E depois prosseguir com o que daqui
se segue. Boa sorte.
Mais germânico é o que Jonathan Culler fala sobre “a literatura em
teoria” em um livro com esse título publicado em 2007.15 Culler argumenta que
“o aparente eclipse da literatura é algo como uma ilusão” (5); “Há evidências”,
sugere, “de uma nova centralidade para o literário, tanto em um retorno às
questões estéticas, que durante um tempo foram tidas por retrógadas e elitistas,
quanto no uso das obras literárias para desdobrar argumentos teóricos e
questionar hipóteses teóricas.”(14) Com relação a esta última, Culler nomeia
Jacques Derrida e Giorgio Agambem como dois casos exemplares. Você gosta
das implicações espectrais dessa referência a Derrida: ele está morto, mas a
fraseologia de Culler implica que ele não está, ele ainda está ativo, um pouco
como no North London Book of the Dead de Will Self, em que as pessoas não
morrem, elas apenas se mudam para outra parte de Londres. “Há evidências
de uma nova centralidade do literário”, diz Culler, “como nos trabalhos de
Derrida sobre escritores como Celan...”. Aqui, ele parece estar (mesmo que
tacitamente) remetendo a alguns dos mais insistentes motivos da escritura
de Derrida: seguir vivendo; escritura enquanto estruturada pela necessária
possibilidade da morte; o morto pode ser mais poderoso que o vivo, não
há “pós-” para a desconstrução. Mas você também se sente inquieto com a
afirmação de Culler de que aquilo atrás do que está Derrida – nos escritos sobre
Celan e a poesia (como em Carneiros), postumamente reunidos na tradução
inglesa no livro Sovereignties in Questions – é “o uso das obras literárias para
avançar os argumentos teóricos e questionar presunções teóricas”.16
Você trava, não pode evitar, na palavra “uso”. Essa noção do uso de textos
literários carrega consigo associações instrumentalistas (linguagem como
algo que o escritor usa, a maestria e a autoidentidade do escritor, figurando
aqui como o que aparentaria ser precisamente uma suposição teórica) que são
radicalmente deslocadas nos escritos de Derrida. Você sabe disso e sabe que
15. Jonathan Culler, The Literary
in Theory. Stanford: Stanford
University Press, 2007. Mais
referências de página para o livro
aparecem entre parênteses no texto.
16. Jacques Derrida, Béliers:
Le dialogue ininterrompu: entre
deux inifinis, le poème. Paris:
Galilée, 2003. Foi publicado em
inglês como Rams: Uninterrupted
Dialogue - Between Two Infinities,
the Poem. Trad. Thomas Dutoit e
Philippe Romanski, em Thomas
Dutoit e Outi Pasanen (EDS),
Soberanias em Questão: A
Poética de Paul Celan. New York:
Fordham University Press, 2005,
p. 135-63.
59
Culler sabe. Sabe que ele sabe, em parte porque, como se alegra em recordar,
aprecia algo como uma relação telepática, não apenas acerca da questão da
literatura e da telepatia (como poderia manter um vocabulário instrumental,
você se pergunta, à luz do cenário telepático literário do “sendo-dois-a-falarou-pensar-ou-sentir e assim por diante?),17 mas, mais especificamente, você
sabe por causa dos primeiros trabalhos de Culler, como Sobre a desconstrução
(1983), em que ele oferece uma explicação clara e cuidadosa sobre como
o trabalho de Derrida interfere na noção de instrumentalidade ou uso:
desconstrução, Culler diz: “previne que conceitos e métodos sejam tomados
por certo e tratados simplesmente como instrumentos confiáveis. Categorias
críticas não são apenas ferramentas para serem empregadas na produção de
interpretações sonoras e sim problemas para serem explorados por meio da
interação entre texto e conceito”.18 Talvez a própria literatura esteja antes e,
sobretudo, entre esses conceitos ou categorias, como Culler sucintamente
reforça: “A essência da literatura é não ter essência, é ser prótea, indefinida, é
envolver tudo o que estiver situado fora dela”.19 Essa caracterização da literatura
é necessariamente ligada à concepção de linguagem, mais geral, de Derrida,
como formulada, por exemplo, em Memórias: para Paul de Man (1986):
“linguagem não é o instrumento que governa um ser falante (ou sujeito)”.20
A ideia de usar obras literárias, você pensa, é profundamente antiderridiana.
Isso pode ser um sinal do tão chamado tempos pós-derridianos, no
entanto, porque algo similar está sendo proposto, de um modo mais explícito
e sustentado, em um livro recente de Rita Felski intitulado Usos da literatura
(2008)21. A discussão de Felski sobre esses “usos” envolve fundamentar os
valores de “reconhecimento”, “encantamento”, “sabedoria” e de “surpresa” ao ler
ou pensar sobre literatura. Mas ela fala sobre isso de uma forma curiosamente
anestesiante, alternando-se entre o que ela chama de fazer “fortes alegações
pela alteridade literária” e um “esculpir de textos ao âmago das funções políticas
e ideológicas” Felski quer argumentar um “entendimento estendido do ‘uso’
que nos permitiria “comprometer os aspectos mundanos da literatura de um
jeito que é respeitável ao invés de redutivo, mais dialógico que arbitrário”
(7). Conforme ela avança, na defesa da palavra do título e conceito basilar
de seu livro: “‘Uso’ não é sempre estratégico ou propositado, manipulativo
ou compreensivo; ele não precisa envolver uma tendência à racionalidade
instrumental ou uma cegueira desejada de forma complexa” (7-8). Basta dizer
17. Veja Culler’s ‘Omniscience’,
in The Literary in Theory,
pp. 183–201. Sobre telepatia,
literatura e ser-dois-para-falar-oupensar-ou-sentir, veja Nicholas
Royle, ‘The “Telepathy Effect”:
Notes toward a Reconsideration
of Narrative Fiction’, em The
Uncanny. Manchester: Manchester
University Press, 2003, p. 256–76.
18. Jonathan Culler, On
Deconstruction: Theory and
Criticism after Structuralism.
London: Routledge and Kegan
Paul, 1983, p. 180.
19. Culler, On Deconstruction,
p. 182. Cf. also Culler’s citation
(217–18) da passagem de Of
Grammatology em que Derrida
comenta: “the writer writes in a
language and in a logic whose
own system, laws and life his
discourse by definition cannot
dominate absolutely. He uses
them only by letting himself,
after a fashion and up to a
certain point, be governed by the
system.” Ver Jacques Derrida,
Of Grammatology. Trad. Gayatri
Chakravorty Spivak. Baltimore:
John Hopkins University Press,
1976, p. 158
20. Jacques Derrida, Mémoires:
for Paul de Man. Trad. Cecile
Lindsay, Jonathan Culler e
Eduardo Cadava. New York:
Columbia University Press, 1986,
p. 96.
21. Rita Felski, Uses of Literature.
Oxford: Blackwell, 2008. Mais
referências de página para o livro
aparecem entre parênteses no
texto.
60
que Felski oferece pouca reflexão crítica às concepções utilitárias, humanistas
e antropocêntricas de “uso” que informam e estruturam suas considerações.
Os limites do “reconhecimento”, “encantamento”, “conhecimento” e “surpresa”
na literatura – e, portanto, de seus usos, nos seus termos – são marcados
previamente pela esquiva de qualquer coisa que pareça muito com uma
“alteridade literária”, especialmente na medida em que tal alteridade pode ser
vinculada a questões de política, começando, talvez, com reflexões profundas
que são encontradas nos trabalhos de Derrida sobre literatura e democracia
(você se lembra do quiasma meticulosamente analisado: “nenhuma
democracia sem literatura, nenhuma literatura sem democracia”22), assim
como no lugar da ficção e o “e se” no conceito da universidade e em relação ao
futuro das humanidades.23 A escala da tarefa de Felski e, num certo sentido,
de seus resultados nesse livro são, talvez, mais ressonantemente evocados
pelo fato dela conseguir evitar fazer uma única referência a Derrida. Assim,
Usos da literatura figura como um livro progressivo, não redutivo, sobre
o valor contemporâneo e a importância da literatura, no qual Derrida foi,
aparentemente, tirado de cena e apagado da história.24 Escritos e pensamentos
críticos posteriores a Derrida ou “posteriores à desconstrução” parecem, aqui,
ter se tornado, ao menos em parte, um tipo de exercício doloroso de supressão,
uma estranha negociação com aquele que não deve ser nomeado: escrevendo
numa pós-(shhh, shhh) era. Isso te faz pensar por onde queremos começar: A
outra volta do parafuso de Henry James.
22. Jacques Derrida, Passions:
An Oblique Offering. Trad. David
Wood, in On the Name, ed.
Thomas Dutoit. Stanford: Stanford
University Press, 1995, p. 28-ss.
23. Veja, em particular, Jacques
Derrida, ‘The University Without
Condition’, in Without Alibi, ed.
e trad. Peggy Kamuf. Stanford:
Stanford University Press, 2002,
p. 202–37.
24. Talvez se deva adicionar,
porém, que, de passagem, Felski
faz referência (mesmo numa
veia consistentemente negativa)
à desconstrução e à psicanálise.
Veja, por exemplo, Usos da
Literatura, p. 11, 59, 60, 80 e 119.
A virada literária seria ao mesmo tempo sobre o “literário em teoria”
(como Culler a chama) e mais especificamente sobre as novas formas de
registrar o lugar da literatura à luz do trabalho de Derrida. Como você, Culler
está interessado em “um retorno à fundamentação do literário em literatura”
(42). Como você e como Derrida, ele é fascinado pelo fato de, como coloca,
“trabalhos literários... possuem a habilidade de resistir ou de mostrar melhor
o que supostamente estão dizendo” (42). Mas a virada literária não é sobre
como usar obras literárias para avançar um argumento ou um entendimento
teórico: se muito, é sobre a lógica inversa de como nos encontramos sendo
usados – estruturados, assombrados, tocados – pela literatura. Culler procura
operar de maneira mais formalista, clínica e ostensivamente externa. Você é
chamado por alguma outra coisa, mais semelhante às aparições de vertigem
61
em Derrida, às possibilidades de revirar gêneros, à necessidade de acaso,
ao papel e aos efeitos da lógica de um corpo e uma cripta estrangeiros, um
hiperrealismo espectral, as provocações do pensamento mágico, telepatia e
clarividência como fenômeno estranhamente literário que clama por uma
resposta ou contra-assinatura na forma de tipos de escrita, que não poderiam
postular ser diretamente estrangeiro para o trabalho literário, mas poderiam,
em uma palavra, desviar-se.
Permanece crucial que vejamos Derrida como um filósofo e como
um pensador desconstrutivista de política e ética. O legado de seu trabalho
está sem dúvida mais urgentemente em operação, mais demandante de
contínua conversação e negociação nesses domínios – quer dizer, levando em
consideração aquilo que ele chamou de “um novo iluminismo”, a “democracia
por vir”, a questão e a ativação de novas formas de responsabilidade e a busca
por justiça no contexto da redemundial-ização25 (mondialization)26. Mas,
debruçando-se27 sobre tudo isso, oscilando e se enroscando, está a questão da
literatura. Então, com menos visibilidade, menos urgência, talvez, o trabalho
de Derrida também nos legou as demandas e provocações de uma virada
literária. É claro que ele não faz tudo isso sozinho: o voltear literário é evidente
em todos os lugares, voltando, como já proposto desde Henry James e além, e
passando pelos28 escritos de Maurice Blanchot, Paul de Man, Gilles Deleuze,
Hélène Cixous e outros, de maneira que mereceria pelos menos uma prateleira
inteira de outros estudos, mas é no trabalho de Derrida, pode-se dizer, que
essa virada está articulada de maneira mais lúcida, extensa e sustentada.
25. No original,
worldwide-ization. (N. da T.)
26. Para dois valiosos estudos
recentes nessa área, veja Michael
Naas, Derrida From Now On.
New York: Fordham University
Press, 2008 e Martin McQuillan,
Deconstruction after 9/11.
Abingdon: Routledge, 2009.
27. No original, turning about
(N. da T.)
28. No original, turning throught
(N. da T.)
*
A virada literária pode ser rastreada de acordo com três modos ou
registros interrelacionados:
1. É uma questão de como Derrida descreve e, se você preferir, teoriza
sobre literatura ou deixa a literatura teorizar, de acordo com um
62
conceito de literatura que é bem tradicional e reconhecível. (Aqui
a noção de deixar a literatura teorizar corresponderia com sua
sugestão de que “a desconstrução ... é um ‘chegar-a-um-acordo’ com
a literatura”.29) Sob essa rubrica, podemos pensar sobre como Derrida
elaborou novas formas de pensar o conceito de literatura, a natureza
da escrita poética ou literária, a leitura de autores e textos específicos
(canônicos e não canônicos) a história da literatura enquanto uma
instituição e por aí vai. Em questão estaria, por exemplo: a elucidação
da proposição de que “não há literatura sem uma relação suspensa
de significado e referência; a ênfase na interdependência da literatura
e da democracia vis-à-vis o princípio da liberdade de expressão e o
direito de dizer qualquer coisa (ou de não dizer nada); uma história do
conceito e da prática da literatura que implica (especialmente depois de
Mallarmé) uma crescente explicitação relativa à natureza e aos efeitos
da literalidade em e para a obra, a especificação da literatura como
“o dispositivo básico de ser dois-a-falar”, e a exploração da literatura
como constitutivamente ligada ao segredo.30
2. É uma questão da literatura de uma maneira mais fantasmal e
disruptiva, em outras palavras, da literatura ou dos efeitos literários
mostrando em que lugar você poderia pensar que eles não deveriam
ou que não parecem pertencer. Aqui é mais uma questão de abordar
os efeitos espectrais e assombrosos da literatura enquanto aquilo que
não tem essência, como aquilo que não é. Para recordar a frase de
Derrida em Demeure: “Não há essência ou substância na literatura:
a literatura não é. Ela não existe”31. Essa nãossice (notness) não é,
todavia, nada. Portanto, ainda há o que ele chama de “uma marca
de narrativa fictícia” no coração da lei, por exemplo, assim como na
base da fundação das instituições, seja a Declaração de Independência
Americana ou o estatuto que estabelece a universidade.32 De maneira
assombrosamente familiar, a literatura está em questão na noção do
testemunho e arrolamento de testemunhas. Como ele comenta em
Demeure:
se o testemunho é, por lei, irredutível ao ficcional, não há
testemunho que não implica estruturalmente, ele mesmo, a
29. Jacques Derrida,
“Deconstruction in America: An
Interview with Jacques Derrida”.
Trad. James Creech, Critical
Exchange, 17 (1985): 9.
30. Veja, em particular, Jacques
Derrida, “This Strange Institution
Called Literature”, Trad. Geoffrey
Bennington e Rachel Bowlby,
em Derek Attridge (ed.), Acts
of Literature. London and
New York: Routledge, 1992, p.
33–75, especialmente p. 37–43
e 48; Positions. Trad. Alan Bass.
Chicago: Chicago University
Press, 1981, especialmente p. 70;
‘Circumfession’, in Bennington &
Derrida, Jacques Derrida. Trad.
Geoffrey Bennington. Chicago:
Chicago University Press, 1993;
Given Time: I. Counterfeit Money.
Trad. Peggy Kamuf. London:
Chicago University Press, 1992,
especialmente p. 153; ‘Passions’,
especialmente
p. 27 e ss.
31. Jacques Derrida, Demeure:
Fiction and Testimony with
Maurice Blanchot’s The Instant
of My Death. Trad. Elizabeth
Rottenberg. Stanford: Stanford
University Press, 2000, p. 28.
32. Veja, por exemplo, Jacques
Derrida, ‘Before the Law’.
Trad. Avital Ronell e Christine
Roulston, em Derek Attridge
(ed.), Acts of literature. London
and New York: Routledge, 1992,
p. 183-220, especialmente p. 199;
‘Declarations of Independence’.
Trad. Tom Keenan e Tom Pepper,
em Negotiations: Interventions
and Interviews 1971–2001, ed.
Elizabeth Rottenberg. Stanford:
Stanford University Press, 2002,
p. 46-54; e ‘The Principle of
Reason: The University in the
Eyes of Its Pupils’, trad. Catherine
Porter e Edward P. Morris, em
Olhos da Universidade: Direito
de Filosofia 2. Stanford: Stanford
University Press, 2004,
p. 129-55.
63
possibilidade de ficção, simulacro, dissimulação, mentira e
perjúrio – quer dizer, a possibilidade da literatura, da inocente ou
perversa literatura que inocentemente joga pervertendo todas as
distinções.33
Aqui a literatura adquire um tipo de força neologística, uma forma
fantasmática indecidivelmente inocente e perversa, inocentemente
atuando no coração da lei e na realidade do testemunho, desviandose na promessa de fazer a verdade (como Derrida relembra a frase de
Agostinho) que guia, da mesma forma, autobiografia e testemunho34.
3. É uma questão da literatura com relação ao ‘performatismo poéticoliterário’ e o caráter inventivo da resposta crítica ou a contra-assinatura.
Como Derrida coloca em “Essa Estranha Instituição Chamada
Literatura”, é uma questão de escritura crítica ou teórica como “uma
experiência inventiva da linguagem, em linguagem”, de “invenções
‘críticas’ que pertencem à literatura enquanto deformam seus limites”35
. É um tipo de “duelo de singularidades” em que “uma contra-assinatura
vem tanto para confirmar, repetir e respeitar a assinatura do outro,
do trabalho ‘original’, quanto para levá-lo para fora para alhures”, em
outras palavras, para fazê-lo ou deixá-lo desviar.36 Há, a esse respeito,
um tipo de “imperativo” em funcionamento, sugere Derrida, a saber:
Para dar espaço a eventos singulares, para inventar algo novo
na forma de atos de escritura que não mais consistem num
conhecimento teórico, em novas proposições constativas, para
se doar a um performativismo poético-literário análogo, ao
menos, àquele das promessas, ordens ou atos de constituição ou
legislação que não apenas transformam a linguagem, ou que, em
a transformando, transformam mais que a linguagem.37
33. Derrida, Demeure: Fiction and
Testimony, p. 29.
34. Derrida, Demeure: Fiction and
Testimony, p. 27.
35. Derrida, “This Strange
Institution Called Literature”, p. 52.
36. Derrida, “This Strange
Institution Called Literature”,
p. 69. Aqui, o original francês
para “levar para outro lugar” é
“l’entraîner ailleurs”: ver ‘Cette
étrange institution qu’on appelle
la littérature’, em Derrida d’ici,
Derrida de là, ed. Thomas Dutoit
e Philippe Romanski. Paris:
Galilée, 2009, p. 287.
37. Derrida, ‘This Strange
Institution Called Literature’, p. 55.
É isso que está em questão na figura de uma “metalinguística
radical” evocada previamente, e na ênfase que Derrida dá, na sua
discussão com Elisabeth Roudinesco em De que amanhã, ao valor e ao
poder das “ficções teóricas”, essa última formulação surgindo de um
reconhecimento daquilo que ele chama “a dívida de toda postulação
64
teorética (mas também jurídica, ética e política) para com um poder
performativo estruturado pela ficção, por uma invenção figurativa”.38
Assim, a noção de virada literária implica um sentido bem diferente
da história intelectual e cultural pós-1960, um período marcado por (1)
um novo foco sem precedentes nessa “estranha instituição chamada
literatura” (na frase de Derrida), incluindo o florescimento acadêmico
da escrita criativa;(2) o surgimento da desconstrução (construída aqui,
em particular, como um “chegar-a-um-acordo com a literatura”;(3) um
novo foco sem precedentes nas ligações indissociáveis entre testemunho
e ficção, assim como, um tanto diferentemente, entre lei, instituições e
linguagem performativa e (4) a percepção aprofundada e a elaboração
em andamento de uma interdependência entre literatura e democracia
(liberdade de expressão, não censura, etc.). E isso para não mencionar as
noções de literatura e do fantasmagórico – deixando de lado a questão do
animal e da animalidade (“o homem não é apenas um animal político”,
como salienta Derrida), e a desconstrução do antropocentrismo,
especialmente no contexto da poesia...39
*
Você é como a tal criatura Weyward40. Nunca se sabe se está vivo ou
morto, ou se alguém jamais ouviu sua voz, se é você ou o efeito de algum
ventríloquo, ninguém sabe quem te inventou, a mesma coisa, diz, você não
tem nome, vira, desvia-se, chama
*
Uma coisa sobre Derrida, você deve lembrar, é que as pessoas pensam
que ele é difícil. Esse é o ponto de partida de uma entrevista com Catherine
David que apareceu no Le Nouvel Observateur, em setembro de 1983. Ela
começa observando que as pessoas dizem “(seus) textos são difíceis, no limite
da legibilidade” e pergunta sobre essa sua reputação de ser difícil: “Como você
vive com isso? É um efeito que você procura produzir, ou, ao contrário, você
sofre com isso?” Ao que Derrida responde: “Eu sofro com isso, sim, não ria,
e eu faço tudo o que acho possível ou aceitável para escapar dessa armadilha.
38. Ver Jacques Derrida
e Elisabeth Roudinesco,
For What Tomorrow . . . A
Dialogue. Trad. Jeff Fort.
Stanford: Stanford University
Press, 2004, p. 173.
39. Veja Jacques Derrida,
‘Afterword: Toward an Ethic
of Discussion”. Trad. Samuel
Weber, em Limited Inc
(Evanston, IL: Northwestern
University Press, 1988), p.
136. Mais geralmente sobre a
“questão animal”, ver Jacques
Derrida, The Animal That
Therefore I Am, ed. MarieLouise Mallet, trad. David
Wills. New York: Fordham
University Press, 2008, e The
Beast and the Sovereign, vol.1,
trad. Geoffrey Bennington.
London: Chicago University
Press, 2009; e sobre a
“poemática” animal em
particular, ver “Che cos’è la
poesia?” e “Istrice 2: Ick bünn
all hier”, trad. Peggy Kamuf,
em Points . . . Interviews, 1974–
1994, ed. Elisabeth Weber.
London: Routledge, 1995, p.
288-99 e 300-26.
40. Weyward faz referência
às três bruxas da peça
shakespereana Macbeth.
Weyward foi grafado
originalmente no folio, ao
longo do texto a palavra
também aparece como weyard.
Recentes edições do texto
alteraram a palavra para weird
(estranho). (N. da T.)
65
Mas alguém em mim deve tirar algum benefício disso: uma certa relação.”41
Ele observa que as pessoas não ficam bravas com físicos ou matemáticos por
serem difíceis, não mais do que ficariam com alguém que fala uma língua
estrangeira. O que irrita as pessoas é como alguém (e agora Derrida não está
mais falando de si mesmo em particular, mas do filósofo ou escritor, em geral)
“interfere com sua própria linguagem, com essa ‘relação’, precisamente, que é
a sua...” (115). Nessa breve passagem, Derrida mudou o termo “relação” (ou
no original em francês rapport: 124) de algo que tem ostensivamente a ver
com ele (“uma certa relação”, como ele enfaticamente coloca) a algo que tem
a ver com vocês (“essa ‘relação’, precisamente, que é de vocês...”). Interferir em
relação ou relações: é disso que trata Derrida. E ele continua para sugerir, na
verdade, que isso é o que acontece sempre que um escritor procura “inventar”
e “abrir novos caminhos” (116). É sempre um “escritor”, ele diz, “que é acusado
de ser ‘ilegível’.... (é alguém) que nem fala em um milieu puramente acadêmico,
com a linguagem, a retórica e o costume que são a força lá, nem naquela
‘linguagem de todos’ que sabemos que não existe” (116). Isso pode até resultar
em uma “escritura que, às vezes, pode ser lida com uma aparente facilidade”
(a entrevistadora, talvez prestativamente, apresenta o “Envios” de O cartãopostal como um exemplo), mas Derrida continua a esclarecer, é uma questão
de “uma escritura cujo status, de certa maneira, é impossível assinalar” e depois
ele delineia três questões que tal escritura coloca: “é ou não é uma asserção
teorética? Os signatários e os destinatários são identificáveis antecipadamente
ou produzidos e divididos pelo texto? As sentenças descrevem algo ou estão
fazendo algo?” (117). O exemplo que ele dá de tal locução é a frase de duas
palavras “você vem (tu viens).” (117/126).
41. Jacques Derrida, “Unsealing
(‘the old new language’)”. Trad.
Peggy Kamuf, em Points . .
. Interviews, 1974–1994, ed.
Elisabeth Weber. London:
Routledge, 1995, p. 115.
Uma biblioteca virtual irrompe, aqui, em testemunho a tudo que
Derrida diz sobre a palavra “vir” – do orgasmo cristão ao final da Bíblia, do
tom apocalíptico do “vir” na teologia, na filosofia e na literatura, para o gozo
da desconstrução, a experiência da promessa e da democracia por vir. Mas
aquilo do que você está tentando falar aqui implica outra versão, a saber, o
que é desviar-se, desviando-se, você desvia, vir a desviar, para desviar de você
vindo, é você.
66
Derrida fala sobre seu “primeiro” desejo, em citações assustadoras, em
citações que indicam o sentimento de precariedade que talvez marque tudo
que ele diz, seu “primeiro” desejo, diz ele, nesta entrevista de 1983, em um
ligeiro olhar para trás, até pelo menos o ensaio de 1963 “Força e Significação”:
meu “primeiro” desejo não me levou à filosofia, mas sim à literatura,
não, a algo a que a literatura abre espaço melhor que a filosofia.
Sinto-me comprometido, pelos últimos vinte anos, em um longo
volteio (un long détour) que irá me levar de volta a essa coisa,
essa escrita idiomática cuja pureza, eu acredito, é inacessível, mas
sobre a qual eu continuo a sonhar. (118/127)
Estranha imagem do longo volteio. Ele tem andado ocupado por anos,
de lado com a escrita de trabalhos que podem parecer mais classicamente
“filosóficos”: os ensaios que compõem A Escritura e a Diferença, Gramatologia,
A Escrita e o Fenômeno e Margens da Filosofia, por exemplo. Ele parece estar
falando em termos da figura de um volteio em sua versão mais confortante,
conforme é sabido que o volteio foi um volteio desde, a destinação está
inscrita antecipadamente, e essa coisa (cette chose), como ele a chama, é algo
ao qual voltar-se ou a replicar (rejoindre). Você imagina quão clara ou quão
esclarecedora é essa narrativa, a estória evocada aqui pelo escritor que, não
nos esqueçamos, repetidamente, clamou que nunca soube como contar uma
estória.42
Perceberemos as coisas bem erradas se supusermos que houve alguma
virada literária no trabalho de Derrida, rastreáveis, por exemplo, nos escritos
de Glas, A verdade na pintura ou em O Cartão-postal. Não é uma questão de
vê-lo (como ele parece querer se ver ou querer que sua entrevistadora o veja
em 1983) como um escritor que enveredou num volteio de vinte anos, por
ou para dentro das regiões da filosofia para, finalmente, voltar àquilo a que
a literatura melhor abre caminho, àquela “escrita idiomática” com a qual ele
continua a sonhar. Isso seria ignorar ou negar a força da destinerrância e dos
efeitos adiados, assim como os abismos e as complexidades do literário em
jogo em seus escritos desde o começo.
42. Ver, em particular,
Mémoires: for Paul de Man, e
suas observações sobre o filme
Derrida (dirigido por Kirby Dick
e Amy Ziering Kofman. USA:
Jane Doe Films, 2002).
67
Está lá, por exemplo, na “Introdução” de A origem da geometria (1962)
de Husserl, talvez mais notavelmente na celebrada passagem da equivocidade
e univocidade a propósito de James Joyce, no processo pelo qual Derrida
observa que “equivocidade é a marca congênita de toda cultura” e ele vai
argumentar que: “se, de fato, equivocidade é sempre irredutível é porque
palavras e linguagem em geral não são e nunca poderão ser objetos absolutos.”43
Mas, é claro, precisamente pela mesma razão, ela está lá por toda Introdução:
você vira a página, por exemplo, e nota a circunspecção ou circunscrição que
Derrida insinua com relação ao desejo ou a necessidade percebida de destruir
certa “Torre de Babel” a serviço da “linguagem escolástica” – algo que emerge
mais explicitamente nas meditações, nas viradas e reviradas, nas torres, tours
e détours, no turismo e o no deturismo [detourism] de Babel em “Torres de
Babel”, em 1985, e na conjução do erudito com a espectralidade no contexto
de Hamlet, de Shakespeare, e em Espectros de Marx, uns trinta anos depois da
Introdução a Husserl.44
A virada literária envolve as vozes dos fantasmas, o retorno ou
até mesmo a “primeira” vinda do morto, anacronicidade e lamento,
escritura-pensamento cuja aparição é mágica, os fantasmas, a vertigem e a
vertigemagórica [vertighosting] que só acontece com você.
Sobre a questão da “escrita idiomática” com a qual Derrida continua
a sonhar. Catherine David lhe pergunta o que significa “idiomática”. Ele
responde:
Uma propriedade que não se pode apropriar: ela te sinaliza sem
lhe pertencer; apenas aparece ao outro e nunca volta para você
exceto em flashes de loucura que trazem junto vida e morte (elle
ne vous revient jamais sauf en des éclairs de folie qui rassemblent
la vie et la mort), que te traz junto vida e morte ao mesmo tempo.
Você sonha, é inevitável, sobre a invenção da linguagem ou de
uma canção (vous revez, c’est fatal, l’invention d’une langue ou
d’un chant) que seria sua, não os atributos de um ‘eu’ (un ‘moi’),
talvez uma rubrica acentuada, ou seja, a assinatura musical de
sua história ilegível. Não estou falando de estilo, mas de uma
intersecção (un croisement) de singularidades, habitats, vozes,
grafismos, do que se move com você e do que seu corpo nunca
abandona (ce qui se déplace avec vous et que votre corps ne
quitte jamais).45
43. Ver Jacques Derrida, Edmund
Husserl’s Origin of Geometry: An
Introduction. Trad. John P. Leavey,
Jr. (1962; Stony Brook, NY: Nicolas
Hays, 1978), p. 102-4.
44. Ver Derrida, Edmund Husserl’s
Origin of Geometry, p. 100–1,
n.108; “Des tours de Babel”, trad.
Joseph F. Graham, em Psique:
Inventions of the other, vol. 1,
ed. Peggy Kamuf e Elizabeth
Rottenberg (1985; Stanford:
Stanford University Press,
2007), p. 191–225; Spectres of
Marx: The State of the Debt, the
Work of Mourning, and the New
International, trad.
Peggy Kamuf (London:
Routledge, 1994).
45. Derrida, “Unsealing (‘the
old new language’)”, p. 118–9;
“Desceller (‘la vieille neuve
langue’)”, p. 127.
68
Esse virar-se para “você” é estranhamente intrigante, você deve
confessar, aqui na forma não íntima de “vous”, alhures é “tu” – por exemplo,
em “Che cos’è la poesia?” – e é claro em “Envios”: você nunca sabe quem é
nesses textos, sabe? Por exemplo, em 28 de setembro de 1978: “Você fala e eu
te escrevo, como em um sonho, tudo que deseja me permitir dizer. Você terá
clamorosamente sufocado todas as minhas palavras.”46 Ou, aparentemente, de
outro modo, um cartão-postal de maio de 1979:
Tu és a única a entender porque era realmente necessário que eu
escrevesse exatamente o oposto, como preocupações axiomáticas,
do que eu desejo, do que eu sei que é meu desejo, em outras
palavras tu: discurso vivo, presença em si mesma, proximidade, o
adequado, o protetor, etc. Eu, necessariamente, escrevi de cabeça
pra baixo – e a fim de sucumbir à Necessidade.47
46. Derrida, “Envois”, p. 160.
47. Derrida, “Envois”, p. 194.
É o si poemático, a ferida de si, o seu sonho: rêve, circumflexivamente
desviando-se. É aqui nessa entrevista de 1983, a entrevista sobre esta
intersecção, no lugar de uma intersecção que está se movendo e se deslocando
com você.
Isso pode ser, na verdade, a descrição mais sucinta em qualquer
lugar de seu trabalho de “escrever numa era pós-derridiana”. A escritura que
Derrida evoca estar por vir é uma loucura, uma assinatura musical. Morto
e vivo, um sonho fatal, sonhando a invenção de uma linguagem ou uma
canção que seriam suas. Você ouve, ainda que fugazmente, algo como a voz
de Walter Pater. Quando Pater diz, em “The School of Giorgione” que “toda
arte constantemente aspira à condição de música” ele vai exemplificar, você
se lembra, pela referência à noção de poema (sem especificar nenhum em
particular), em que conteúdo e forma se tornariam indistinguíveis. Pater
admite que isso é uma “linguagem abstrata” e procura dar alguns “exemplos
de fato”, como ele coloca: “Em uma paisagem de fato vemos uma longa estrada
branca, subitamente perdida à beira da montanha”.48 É um “exemplo de fato”
fascinante e espectral, desorientante, constitutivamente duplo (um “exemplo
de fato”, um “cenário de fato”, que é, deveras, a imagem de uma paisagem):
Pater indica que ele tem uma gravura de Alphonse Legros em mente, mas
é claro que não podemos ver, realmente. É algo, diz Pater, “visto” ou “meio-
48. Walter Pater, ‘The School of
Giorgione’, in The Renaissance.
New York: Modern Library,
1919, p. 111.
69
visto”, o momento à deriva de “uma longa estrada branca, subitamente perdida
à beira da montanha”.49
49. Pater, ‘The School of
Giorgione’, p.111
Em resposta à evocação de Derrida de um sonho, de uma escritura
que poderia “juntar morto e vivo ao mesmo tempo”, “a invenção de uma
linguagem ou canção que seriam suas”, Catherine David pergunta: “Você irá
escrevê-la?” A princípio, Derrida responde: “Você deve estar brincando”, ou,
mais literariamente, talvez, “O que você acha? (Pensez-vous)”. Mas, então, ele
muda de rota:
Mas a acumulação de sonhos, projetos, ou notas, sem dúvida
pesa sobre o que é escrito no presente. Um dia, um pedaço de
livro pode cair como uma pedra que mantém a memória de uma
arquitetura alucinante a qual pode ter pertencido... a pedra ainda
vibra e ressoa, ela emite um tipo de bênção dolorida e indecifrável,
que já não mais se sabe de quem ou para quem...50
Essa bonita e assombrosa passagem gagueja (como diria Gilles
Deleuze), ela vira e deriva e interrompifica [interruptifes] tanto quanto
identifica, à deriva, em um refrão de elipses.51 Tem a ver com o que Derrida
chama de “velha nova linguagem”, algo ao mesmo tempo mais antigo do que
o conhecimento, absolutamente novo e inédito. É música em um momento,
memória de uma arquitetura alucinatória outra.52
O movimento dessa passagem ressoa, para você, com a sensação de
uma estranha deslugaridade [placelessness], o incessante deslocamento do
lugar da literatura, como Derrida fala em tantos textos. É uma questão, como
ele diz, de algo a que “a literatura abre caminho melhor do que a filosofia
(quelque chose que la littérature accueille mieux que la philosophie)”.53 Tem a
ver com o segredo. Isso é o que ele diz que mais gosta na literatura, uma
experiência da literatura enquanto “no lugar do segredo”.54
Você deve estar certo disso: não haveria virada literária sem vertigem.
A virada literária não pode ser situada ou mensurada, como virar uma esquina
ou conseguir fazer um perfeito retorno pela contramão55. Você deve imaginar,
ao contrário, que algo acontece em uma velocidade inimaginável, girando,
dobrando. Isso é desviando-se para você. Você não pode se decidir, de pronto,
50. “Unsealing (‘the old new
language’)”, p. 119, tr. sl. mod.;
“Desceller (‘la vieille neuve
langue’)”, p. 128.
51. Ver Gilles Deleuze, ‘He
Stutters’, em Essays Critical and
Clinical, trad. Daniel W. Smith e
Michael A. Greco (London: Verso,
1998), p. 107-14.
52. Isso traz à mente algumas
coisas que ele fala noutros lugares
acerca das relações entre música
e arquitetura. Ver, por exemplo,
Jacques Derrida e Peter Eisenman,
Choral Works, ed. Jeffrey Kipnis
e Thomas Leeser. New York:
Monacelli Press, 1997, p. 166-8.
53. Derrida, “Unsealing (‘the old
new language’)”, p. 118; “Desceller
(‘la vieille neuve langue’)”, p. 127.
54. Derrida, Passions: ‘An Oblique
Offering, p. 28.
55. No original, three-point turn.
(N. da T.)
70
se o que está sob consideração é uma virada literária ou uma virada literária,
se a virada seria ela mesma literária ou se a virada seria de alguma forma
além da literária, referindo-se a ela de um lugar não literário, literatura para
além de si mesma. Em 1997, no contexto de uma discussão sobre a noção de
“crença pura” (que, como ele diz, “só é possível acreditando no impossível”),
Derrida é levado a refletir sobre a célebre proposição em Gramatologia (1967)
de que “nós devemos começar onde quer que estivermos”, ou seja, “em um
texto em que já acreditamos estarmos”56. Ele escreve:
O ‘texto em que acreditamos estarmos’, outro nome para esse
lugar, lugar em geral, me interessa apenas onde o impossível, ou
seja, o incrível, o circunda e o assola, fazendo minha cabeça virar,
deixando um rastro ilegível com o tomar-lugar, aqui, na vertigem,
‘onde acreditamos estarmos’... (sic) para mim, Lugar é sempre
inacreditável, assim como a orientação.57
É uma questão sobre aquilo a que literatura abre lugar, ou acolhe, a
propósito desse “milagre” (como ele também o chama) do lugar, no lugar do
segredo. É o sonho de uma escritura idiomática no contexto de uma orientação
para além do crível, o que ele alhures chama de “indireção destinerrante” – ou
desvio – do rastro.58
*
Para terminar, você quer voltar, ou virar, como se, pela primeira vez,
para onde começou. Depois de um volteio de vinte anos, você volta para o
ponto de partida do primeiro livro que publicou,Telepatia e Literatura, em
outras palavras, o curto romance de Henry James A outra volta do parafuso
(1898).59 Naquele tempo esse romance seria seu assunto, você até mesmo
anunciou isso, mas então ele desapareceu. Você começou por sugerir que ele
operaria “como um texto-fantasma” e de certo desapareceria de vista.60 Você
não fingiria lê-lo agora, nem lê-lo ou relê-lo, nem fingir ou fingir que finge.
Simplesmente quer observar umas palavras. Duas palavras para Henry James,
duas palavras de Henry James, no lugar de uma conclusão a propósito da
virada literária.
56. Derrida, Of Grammatology,
p. 162.
57. Jacques Derrida, em
Catherine Malabou e Jacques
Derrida, Counterpath: Travelling
with Jacques Derrida, trad.
David Wills. Stanford: Stanford
University Press, 2004, p. 147,
tr. sl. mod.; Jacques Derrida, La
Contre-allée. Paris: La Quinzaine
Littéraire–Louis Vuitton, 1999,
p. 147. O caráter desviante dessa
obra co-autorada está, talvez,
mais claramente anunciado
no subtítulo da publicação
francesa original: Dérive, Arrivée,
Catastrophe (Drift, Arrival,
Catastrophe).
58. Ver Derrida, Passions: ‘An
Oblique Offering, p. 30. Aqui,
de novo, está a questão daquele
desvio mais radical que Derrida
aponta em Rogues, quando
observa que “nunca houve nos
anos 80 ou 90 uma virada ética
ou política em ‘desconstrução’“.
Não se trata de supor que
desconstrução “se desvia, ou
muda de direção”, mas, sim, do
que tal imagem “ignora, ou se
contrapõe”, a saber, um pensar
do rastro, o desvio diferencial do
“descarte” (renvoi) em relação a
“o que resta a ser pensado”. Nesse
sentido mais radical, desviar
seria o abrir-se do próprio
futuro, indissociavelmente
ligado a um pensar do rastro
e da “democracia por vir”. Ver
Rogues: Two Essays on Reason,
trad. Pascale-Anne Brault e
Michael Naas. Stanford: Stanford
University Press, 2005, p. 39.
59. Henry James, A Volta do
Parafuso e Outras Estórias, Com
introdução de S. Gorley Putt
(Harmondsworth: Penguin,
1969). Demais referências
de página são desta edição e
aparecem parenteticamente no
corpo do texto, abreviadas “TS”
onde apropriado.
60. Nicholas Royle, Telepathy and
Literature: Essays on the Reading
Mind. Oxford: Basil Blackwell,
1990, p. 10.
71
*
A primeira palavra é “virada” – revirar-se61, se você puder dizê-lo.
Algo acontece à volta em A outra volta do parafuso: algo é estranhamente
inaugurado, talvez sem precedentes na história ou “uso” dessa palavra
aparentemente tão simples, dessa volta enquanto tropo e tropo enquanto
volta62. Você é tentado a datar “a virada literária” (como tem tentado evocá-la
no contexto da literatura inglesa) nesse pequeno texto de Henry James, assim
como uma mudança decisiva no sentido de “desvio” que pode ser tracejada
até ao Prelúdio de Wordsworth. Você gostaria de começar recordando, a fim
de prestar homenagem ao ensaio de Shoshana Felman “Virando o parafuso
da interpretação” (1977).63 É uma tour de force, na sua opinião, uma pièce de
résistance, crítica que fez por merecer, por sua vez, o mais detalhado e exaustivo
comentário. E, com tais pequenas viradas frasais (o tour de force, por sua vez64),
a loucura talvez já seja familiar. Poucos textos críticos conseguem conspirar,
como ela faz, traçar-se dentro da “loucura da literatura”, mostrando como essa
loucura é (como ela coloca) inabitual, unheimlich, até o preciso ponto em que
não pode ser situada, coincidindo com o próprio espaço da leitura (201). Em
cento e dez páginas, o ensaio de Felman se detém, vira e alterna sobre formas
que são fantasmagoricamente e singularmente responsivas ao caráter do texto
de James. É, portanto, parte do poder digressivo, porém peculiar de seu ensaio,
que apenas depois de oitenta e cinco páginas, finalmente, ela vira o foco de
maneira explicita às viradas da palavra “virada” em A outra volta do parafuso,
mesmo se você dificilmente deixasse de notar como ela joga a palavra no seu
texto, em vários momentos, desde o título do ensaio e adiante. 65
Você fala do retorno66 dos mortos, eis uma das frases mais engraçadas
que você pode pensar, ou assim agora ocorre a você, pela primeira vez, que
isso é o que o texto de Henry James sugere. A frase “o retorno do morto” vem
com tanta facilidade aparente, mas por que, você pensa consigo mesmo, por
que as pessoas dizem “retorno”? Não é um retorno – por mais “revoltante...
contra a natureza” (TS: 111) que isso possa parecer – é o morto vindo pela
primeira vez, é uma completamente outra volta67 no retorno, o desfazer de
61. No original, turn itself
(N. da T.)
62. No original, this turn as trope
and trope as turn.
(N. da T.)
63. Shoshana Felman, ‘Turning
the Screw of Interpretation’, in
Yale French Studies, 55/56 (1977):
94-207. Onde apropriado, demais
referências de página são dadas
entre parênteses no corpo do texto.
64. No original, in turn (N. da T.)
65. Ver, por exemplo, “in turn”
[retorna, revida], (120, 122),
“turning into” [reverte-se] (133),
“turns out” [revela] (130, 131,
147, 176).
66. No original, note que a
palavra no original – return –
contém turn. (N. da T.)
67. No original, turn (N. da T.)
72
todo o sentido de retorno. Há uma volta68 no retorno que o texto de James traz,
dá uma volta69 em, estabelece o giro, algo pequeno e fácil de perder talvez, mas
algo novo, no entanto, na história da literatura. Depois do que James fez com
e para com a “volta70”, na tortura e na felicidade de A outra volta do parafuso,
não há retorno.
A forma com que o texto trabalha com a “volta” faz a “volta” trabalhar
sobre o tempo, e como a “volta” trabalha sobre o texto, sobre o tempo... Você
poderia passar dias, semanas ou anos se voltando ao que acontece com todas
as versões de volta que voltam no texto de James, pelas “pequenas voltas
folclóricas” (20), a experiência do que é virar-se e ver alguém (20), “dan(do)
uma volta no terreno” (25), imaginando que alguém possa aparecer “na virada
do caminho” (26) a governanta sentindo que sua “imaginação em um instante,
tornou71-se real” (26), o sinal do que transparecia ser Peter Quint, um homem
morto visto (tão claro quanto “as letras... nesta página”) “in(do) embora72”(28),
a experiência de “voltar(se) sobre73” a questão da natureza da existência dessa
sua figura mortal (28,29), a suposição de que o mistério do que sucedeu ao
jovem Miles na escola tem a ver com a percepção de “diferenças” e “qualidades
superiores” “volta(ndo) para o vingativo” (30), a governanta “volta(ndo) para74
a chamada sala de jantar ‘dos adultos’ para “recuperar” sua luvas que caíram
(32), então uma nova visão do homem morto que a faz “segurar o (seu) fôlego e
ficar75 gelada” (32), saindo correndo da casa, “vira(ndo) uma esquina e (vindo)
(a ficar completamente) à vista” – de nada, pois o “visitante desapareceu (32)
e então quando Mrs. Grose vê a governanta “ela fica76 branca”(33), “volta(ndose) para (ela) com uma inconsequência abrupta”(35), afastando-se, revirandose77 (36), virando-se de costas, virando para “a esquerda e para a direita” (46),
fican(do)78 pálida”(47), voltando-se, virando (48), “a virada de uma página” e
“a grande volta da escadaria”(58) vendo a figura do homem morto desaparecer
“no próprio silêncio” ele “volta(se)”, escreve a governanta, “ao que (ela) pode
ter visto o pobre desgraçado a quem ele pertenceu um dia, virar ao receber
uma ordem” (59-60), ela prossegue “(dando) voltas silenciosas na passagem”
(62) então é compelida a “afastar-(se)”79 para longe da repugnância (63). Mrs.
Grose então “(virando-se) para tirar (dela) uma vista da parte de trás do tapete”
(65), a governanta diz algo e Mrs. Grose e “se vira”(70), a governanta pode vêla “visivelmente vira(ndo) as coisas”(70), é como se a governanta, em seu trato
68. No original, turn (N. da T.)
69. No original, give a turn
(N. da T.)
70. No original, turn (N. da T.)
71. No original, turned (N. da T.)
72. No original, turn(ing) away
(N. da T.)
73. No original, turning over
(N. da T.)
74. No original, turning in (N. da T.)
75. No original, turn (N. da T.)
76. No original, turn (N. da T.)
77. No original, turning away,
turning around (N. da T.)
78. No original, turning pale
(N. da T.)
79. No original, turn away
(N. da T.)
73
com “(seus) pupilos”, estivesse “perpetuamente vindo à luz de assuntos ante os
quais (ela) para subitamente, virando-se de uma vez para fora de becos que (ela
percebe) serem sem saída”(71-2) suas “maneiras” agora deram uma “virada”
(73), “o verão virou” (73) um “olhar amável” do garoto Miles voltou-se para
ela (74) e, quando ele quer saber quando estará pronto para retornar à escola,
ela faz sua “pose mais responsável” enquanto passa a diante80 (a questão) (79),
quando Miles está na igreja com os outros, ela pensa em “fugir juntos”, em
como seria mais simples “desistir de tudo – dar81 as costas e se retirar”(82),
ela diz algo possivelmente acusatório para a Mrs. Grose que “ficou82 um tanto
pálida” (86), ela diz a Miles algo e observa como ele volta-se sobre aquilo (89),
ela o pergunta se há algo que ele quer dizer a ela e ele “vira-se um pouco,
encarando a parede” como uma criança doente, e a governanta sente que “dar
as costas a ele” é “perdê-lo” (90), quando ela finalmente coloca sua questão
mais apavorante à pequena Flora, dizendo o nome pela primeira vez com as
palavras “onde, meu bichinho, está a Miss Jessel?” e a mulher morta aparece
subitamente, Mrs. Grose profere “o guincho de uma criatura assustada, ou,
antes, ferida, que, por sua vez, em alguns segundos, estava completo” lembra
a governanta, “por um suspiro próprio (dela)” (98), e então a menininha, ao
invés de olhar para o fantasma da Miss Jessel, “vira-se para (a governanta) com
uma grave expressão de dureza” em “um golpe” que “de alguma forma converte
a menininha na mesma presença que (faz a governanta) acovardar-se” (99),
e depois a especulação da governanta, ou a esperança declarada de que, se
ela saísse, apenas “fosse embora”, Miles “não ligaria”83 (105) mesmo assim,
pouco depois, a descoberta de que “ele roubou”, e, acima de tudo, de que “(ele)
roubou cartas”, a faz “se entregar”, tentando ser “mais judicial”(108) e uma vez
que Mrs. Grose vai embora da casa com Flora, ela deixa a governanta sozinha
com Miles “em um lugar menor do que (ela) já tinha se virado84”(109), e mais
tarde no jantar é Miles que “se vira” depois que o garçom saiu e declara “Bom
– então estamos sós!” (112), e depois novamente quando sua “insistência” é
tida como tendo “o tirado85 (dela)” e o mantido silente na janela (116), e o
verdadeiro fervilhar de viradas nas duas páginas finais em que a governanta
pergunta a Miles mais uma vez sobre o porquê dele ter “largado86” a escola e
ele “se afasta87” (119) e, finalmente, ela “se entrega” e ele “novamente vira para
(ela) seu lindo rosto febril” (120).
80. No original, turn over (N.
da T.)
81. No original, turn her back
(N. da T.)
82. No original, turn her back
(N. da T.)
83. No original, turn on
(N. da T.)
84. No original, turned around
in (N. da T.)
85. No original, turned him
from her (N. da T.)
86. No original, turned out
(N. da T.)
87. No original, turns away
(N. da T.)
74
E nenhuma dessas viradas da virada pode ser lida fora da questão da
chamada “narrativa de moldura” ou ainda da alternância de viradas em que
sua forma fantástica é projetada (fantástica na medida em que as molduras
acabam por não existir, já que a novela termina simplesmente com um virarse para o abismo), em outras palavras a cena de abertura da estória em que
vários personagens (Douglas, o narrador anônimo e outro personagem
anônimo referenciado simplesmente como “alguém”) pronunciam a frase
“vire o parafuso”88. Você se lembra que Douglas, dono do manuscrito do
texto da governanta, reflete sobre o fato de, se numa estória de fantasmas uma
criança for o objeto de uma visita fantasmagórica, isso “dá o efeito de mais
uma volta do parafuso” (7). E você já poderia dizer que a linguagem de James
está tramando algo esquisito [screwy]: nós já estamos na esfera da estranha
repetição, pois sabemos que o título do texto é A outra volta do parafuso – e
assim a palavra “outra” aqui é marcada por uma estranheza suplementar. E
o “efeito” a que Douglas se refere é correspondentemente peculiar, já que ele
dificilmente pode ser previsto sem que a volta seja invocada. A volta já é o efeito,
na realidade – é como se, aqui, “volta” estivesse operando como um substituto
para “causa”, como se a lógica de causa e efeito, de primeiro e segundo, tivesse
sido silenciosamente, porém irrevogavelmente desparafusada. Aqui está a
troca, seguindo com o que Douglas diz:
88. Para mais discussão da
“narrativa em abismo” como
uma ficção crítica, permitam-me
referir ao meu ensaio “Spooking
forms”, Oxford Literary Review,
26 (2004), 155–72.
“... mas não é a primeira ocorrência de seu tipo encantador que
soube ter envolvido uma criança. Se a criança dá ao efeito outra
volta do parafuso, o que você diz de duas crianças – ?”
“Nós diremos, é claro”, alguém exclamou, “que elas dão duas
voltas! E que também queremos saber delas” (7)
Entre a primeira e a segunda frase, a criança mudou de objeto (“envolveu
a criança”) a sujeito (“a criança deu”); ao mesmo tempo não é a criança, mas
o envolvimento que a criança “dá” (começamos, talvez, a sentir a volta desde
já inscrita no volver do “envolveu”); e não é o efeito que o envolvimento dessa
criança dá, mas a volta que o envolvimento dá para o efeito.
As frequentes pequenas voltas despercebidas, você quer dizer, que James
dá à linguagem conversacional, te coloca em contato com o belo axioma de
Elizabeth Bowen sobre a escrita do romance: “O diálogo deve parecer realista
75
sem o ser”89. Singular, perversamente verista, o diálogo aparentemente realista
de James é, na verdade, vinculado a duplos negócios de vários tipos. “Para
dois”: Douglas não está perguntando a seus ouvintes o que eles dizem de duas
crianças, mas, sim, o que eles dizem, ou diriam, da ideia ou do envolvimento
de duas crianças. De forma correspondente, um “alguém anônimo” pega
Douglas por suas palavras e as volta contra ele: “Nós dizemos, é claro...” (7).
Esse nós real já é, claro, uma duplicação ainda maior do narrador que é e
não é James, o “nós” e o “Eu” anunciados ainda nas palavras de abertura do
texto: “A estória nos segurou, ao redor do fogo, suficientemente ofegantes...
Eu lembro...” (7, grifos meus). “Nós dizemos, claro, que eles nos deram duas
voltas! E também que queremos ouvir sobre eles”: essa resposta dá mais uma
ou duas voltas por si mesma – ela se apropria do plural, multiplicando-se em
uma voz (“nós dizemos”, não “Eu disse”), então assimila o discurso ao desejo
(“nós dizemos” se torna “nós queremos”). Essa breve assertiva de ser dois (ou
mais) a falar – e de subsumir um conhecimento do desejo de outro ou outros
dentro de si mesmo – em um tipo de ilustração miniatura ou condensada do
que Jacques Derrida identificou como uma característica definidora da ficção
literária, a saber: “o dispositivo básico de ser-dois-a-falar”.90 E em James, você
deve enfatizar, sempre há mais de dois: mesmo quando há dois, há três. É uma
questão de como, nas palavras de Maurice Blanchot, James “consegue fazer
o papel do terceiro elemento na conversa, aquele elemento obscuro, que é o
centro e a causa de cada um de seus livros, e fazer dela não apenas a causa de
desentendimentos, mas a razão para ansiar por entendimentos profundos”.91
Assim, o próprio título do romance deve ser ouvido como um delírio
verístico de múltiplas vozes. Entre elas, está a voz da própria da governanta.
A frase-título é uma fala dela, com efeito, porém estranhamente, sem o
conhecimento do narrador, sem seu conhecimento ao menos dentro do espaço
do desdobramento linear, que o pensamento mágico, a telepatia, a clarividência
e a clariaudiência da narrativa literária terão lançado, pela mesma volta, ao
desvio desde o começo. Como a governanta observa, perto do fim: o que
sua “monstruosa provação” equivale a, embora “desconfortável” e embora
demandante de ir “numa direção incomum” é “apenas outra volta do parafuso
da ordinária virtude humana” (TS:111). É como se o próprio título fosse um
fantasma, vindo ou voltando, muito tarde, anacronicamente, desviando no
89. Elizabeth Bowen, ‘Notes on
Writing a Novel’, in The Mulberry
Tree: Writings of Elizabeth Bowen,
ed. Hermione Lee. London:
Virago, 1986, p. 41.
90. Derrida, Given Time: I.
Counterfeit Money, p. 153.
91. Maurice Blanchot, ‘The Pain
of Dialogue’, em The Book to
Come. Trad. Charlotte Mandell.
Stanford: Stanford University
Press, 2003, p. 153.
76
tempo. No processo de rejeição, como você poderia chamar, o narrador declara
que tem um título, mas Douglas não repara: “‘Ah, eu tenho (um titulo)!’ Eu
disse. Mas Douglas, sem me dar atenção, começou a ler com uma fina clareza,
que era como tradução aos ouvidos, da beleza das mãos do autor” (14). O
que se segue, o estranho zigzag no começo da narrativa da governanta (“eu
lembro de todo o começo como um sucessão de voos e quedas, uma pequena
gangorra da pulsação certa e da errada” (14)), já começou.
Oitenta e cinco páginas do ensaio, você dizia, e Felman finalmente
chega à volta, propondo que o romance de James é “organizado como uma
verdadeira topografia de voltas” (179), um labirinto no qual estamos frente
“à perda de todo o sentido de direção” (180). Ela destaca uma passagem no
capítulo 6 em que a governanta relata as considerações feitas a ela pela Mrs.
Grose sobre a morte de Peter Quint. Aqui, a governanta descreve a volta errada
ou ainda (para citar a própria inversão sintática da governanta) a “errada volta”
em que Peter Quint, deixando o bar no escuro, bêbado, pegando o “caminho
completamente errado”, escorrega fatalmente em uma “rampa de gelo” (TS:
42). Felman propõe que essa volta conte, no final, para o final – do romance e
daquele “outro acidente” de “morte” (aquela do jovem menino Miles). Isso dá
origem, ao mesmo tempo, ela sugere, a “um terrível e fatal erro de leitura” (180)
da parte da governanta. Aqui, Felman se concentra na “carga semântica” da
palavra volta [turn] como “conotando a possível ressonância de ‘um ataque de
loucura’ (cf. ‘tornar-se histérico92’)” (180) e continua para citar, do capítulo 20
do romance, o que ela considera ser “o momento crucial, quando a governanta
furiosamente acusa Flora de ver Miss Jessel e se recusa a admiti-lo, (e quando)
Mrs. Grose que, como a garota, não vê nada, protesta contra as acusações da
governanta” (180). Mrs. Grose exclama: “Nossa, que virada terrível, na certa,
Miss! Onde foi que você viu alguma coisa?” (TS: 100). (Felman coloca “Nossa
que virada terrível” em itálico: aqui, por um momento, Você imagina uma
digressão violenta e revoluta sobre a virada dada às palavras perpassadas pelo
itálico, os efeitos efervescentes, quase mesmerizantes do itálico que atua sobre
o texto de Felman, e em de Henry James, por sua vez93).
92. No original, turn of hysteria
(N. da T.)
93. No original, in turn (N. da T.)
Nesse momento em que a meditação mais extensa de Felman sobre a
palavra virada [turn] aparece. Ela escreve:
77
Aqui, a palavra ‘virada’ significa um ‘momento decisivo’, ‘uma
mudança de significado’, ‘uma mudança de eventos’, ‘uma
mudança de histeria, ‘um ataque de nervo’, ‘um ajuste’, ‘uma
formula mágica’? E se ela significa um momento decisivo (uma
mudança de significado), ela designa uma simples reorientação
ou uma desorientação radical, isto é, uma reviravolta delirante
ou um desvio? Ou a ‘virada’ nomeia precisamente a figura textual
irônica de sua própria capacidade de revirar-se, de se transformar
em loucura, de ‘projetar outro caso possível’ ou outra virada?
Qualquer que seja o caso, a metáfora da ‘volta do parafuso’, se
referindo a uma virada – ou uma torção – do sentido, estabelece
uma equivalência irônica entre direção e desvio, entre uma
virada de sentido e uma virada em loucura, entre uma virada
de interpretação e um momento decisivo94 para além do qual a
interpretação se torna delirante. (181)
Essa acumulação delirante de questões parece colocar o significado de
“virada” em termos de alternativas (ou isso ou aquilo) e equivalências (entre
isso e aquilo), concluindo pela “equivalência irônica” entre “a virada de uma
interpretação e o momento decisivo95, para além do qual a interpretação se
torna delirante”. Você coloca “irônica” em itálico, para sugerir que as próprias
noções de equivalência e de interpretação estão aqui dando um tipo de virada
engraçada, e imaginas o que, talvez, tenha se perdido com a decisão de Felman
de enquadrar sua análise em “termos de interpretação”, em primeiro lugar.
O tropo da “interpretação” anunciado em seu título (“Virando o parafuso
da interpretação”) sinaliza uma preocupação com a hermenêutica que está
funcionando em todo seu ensaio. Isso parece estar vinculado a uma confiança
na linguagem da volição e implica liberdade de escolha, quando ela pergunta
de modo declarativo: “mas qual, na verdade, é o significado de uma virada, se
não aquela de uma mudança, precisamente, de direção, de modificação de uma
orientação, isto é, tanto um deslocamento quanto uma escolha de sentido, de
significado?” (179). A virada literária, você se sente compelido a apontar, não
seria mais uma questão de “escolha” do que de “interpretação”.
94. No original, turning point
(N. da T.)
95. No original, turning point
(N. da T.)
Você sente que o que faz de A outra volta do parafuso uma obra-prima
tem a ver com as suas viradas e o que faz com a “virada”. Ela mostra um desvio
dentro da figura ou do tropo da virada. Ela deixa a “virada” se desviar de uma
maneira singular e ao mesmo tempo delirante ou até mesmo desconhecida.
78
Ela apresenta um caso clássico da grande obra literária como uma obra de
desvio dentro de seu duplo e aparentemente antitético sentido – de uma só
vez um exercício extraordinário de controle e uma liberdade impressionante.
Todos têm a impressão de James como um Mestre – e de quão à vontade e
conhecedor, controlador e calculista ele era em seus escritos. Você propõe
como indicativo um comentário em uma das entradas de seu caderno, de
abril de 1894, a propósito de uma estória não escrita: “eu sei que meus saltos
e elisões, minhas pontes voadoras e laços abrangentes (em uma ou duas
admiráveis vívidas sentenças) devem ser impetuosas e magistrais”.96 Ele sabe
tudo sobre saltos e laços, giros e parafusos. Mas essa arte de desviar, como
chamam, é também o que se permite ou se abre para o outro. É uma questão
das formas com que tal controle é inseparável do precipitado, do mergulhante,
a virada delirante do literário – desviando para além de qualquer ancoragem
em noções de intenção autoral, consciência ou inconsciência. Você pode
escolher, talvez, sobre todos os poréns, nos silêncios, no sentido de palavras
abandonadas, órfãs verbais, deixadas para brincar consigo mesmas o melhor
ou o pior, em seu próprio mundo orfantasmático [orphantasmatic].
96. Veja Cadernos de Henry
James, ed. F. O. Matthieseen e
Kenneth B. Murdock. New York:
Oxford University Press, 1961,
p. 161. A estória à qual se refere
James é “The Coxon Fund”
Estamos “no mesmo barco que a governanta” (182), aponta Shoshana
Felman. O tropo da navegação, de se estar num barco, de estar no mesmo
barco da governanta, talvez seja surpreendentemente central no trabalho de
James. A virada do parafuso pode muito bem parecer um tema terrestre, um
romance contado numa casa, sobre uma casa, sobre aquilo que assombra o
chamado território caseiro. Mas o barco desliza (por sobre isso). É uma “nave à
deriva”, com a governanta “estranhamente ao timão” (TS: 18), como ela coloca,
logo cedo, em sua narrativa. A governanta segue guinando, e com ela nós
guinamos. Somos – numa deriva transegmental – parte da tripulação [crew]
da governanta (seu parafuso) [screw]. Você está inclinado a supor que James
faz um jogo deliberado sobre a etimologia de “governo”, do latim gubernare,
e originalmente do grego kybernaein, de guinar (uma vela), assim como
joga com o nome de Mrs. Grose enquanto o adjetivante “crasso”, o advérbio
“crassidade”, a incômoda suspeita de algo que cresce [grows]. Mas quão longe
você supõe que isso vá? Enquanto escrevia o romance em seu flat em Londres,
na rua De Vere Gardens, 34, terá James tencionado deixar a “guinada” embutida
em “governanta” dar a volta, ou querido que víssemos as letras de “grose”
79
embutidas anagramaticamente em “governanta”? Teria um olho nas letras da
palavra “turn” em “Peter Quint”? Esse tipo de orfantasia (orphantasy) é, como
se diz, um efeito colateral, um efeito-colateral-de-leitura. Um tal jogo não é
algo que qualquer um escolha. Não mais uma questão de intenção autoral
que de inconsciência putativa. É o que está ocorrendo na virada literária. É
uma questão de abordagem da efervescência subatômica da linguagem, das
atividades e passividades infectadas e infecciosas de uma máquina de escrever
que, quando operando a todo vapor (como em Shakespeare, Wordsworth,
Dickinson, James, Freud, Bowen, Cixous), não obstante desdobra aquilo que
partilham a psicanálise e a literatura: “uma espécie de mágica” em movimento,
97. Sobre uma “espécie
os efeitos poético-performativos de desvio.97
Então, você se volta à estranheza da localidade, a um sentido de
orientação para além da crença. “Na certa, que terrível virada, Miss! Onde é
que foi que você viu alguma coisa?” Essa questão lembra e repete outra que
apareceu um pouco antes, novamente da boca da Mrs. Grose, com referência
a Flora depois que ela fugiu pelo lago em um pequeno barco: “mas se o barco
está lá, onde raios ela está?” (96). O interrogativo “onde”, certamente, é um
dos grandes ressonantes verbais, um sinistro insistir no texto de James. A
última palavra de Miles é, ao final, uma palavra literária, a palavra que, talvez,
mais nitidamente que qualquer outra, convida a uma compreensão da virada
literária, a vertigem de uma orientação para além da crença. A governanta vê
o homem morto na janela e o menino “aturdido, olhando em vão para o lugar
e sentindo falta totalmente... a ampla esmagadora presença”, diz a ela: “é ele?”
ela se vira:
de mágica, ver Sigmund
Freud, “The Question of Lay
Analysis: Conversations with
an Impartial Person’” (1926),
em SE 20: 187; “Uma Espécie
de Mágica” foi, também,
objeto de uma aula notável
de Hélène Cixous, lecionada
na Universidade de Leeds,
2 de Junho de 2007. Para
duas recentes e impactantes
elaborações sobre os
entrelaçamentos da literatura,
psicanálise e mágica, ver Elissa
Marder, ‘Mourning, Magic
and Telepathy’, Oxford Literary
Review 30: 2 (2008), 181–200;
e Sarah Wood, ‘Foreveries’,
Oxford Literary Review 31: 1
(2009), 65–77.
Eu estava tão determinada a ter toda minha prova que eu me atirei
no gelo para desafiá-lo. “Quem você quer dizer com ‘ele’?”
‘Peter Quint – seu danado!’ Seu rosto deu de novo, ao redor da
sala, sua súplica convulsiva. ‘Onde?’
Eles ainda estão nos meus ouvidos, sua rendição suprema ao
nome e seu tributo a minha devoção. ‘O que ele importa agora,
meu próprio? – o que ele jamais irá importar? Eu te tenho’, Eu
gritei para a besta, ‘mas ele te perdeu para sempre!’ (TS:121)
80
Virtualmente é o fim – a queda da narrativa no abismo, como Felman
e outros enfatizaram, em que somos deixados com a narradora governanta,
deixada, por sua vez98, com o belo garoto morto em seus braços, o fim “Onde?”
ainda lá, no ouvido, um estranho quadro em que qualquer assim chamada
narrativa de moldura foi irrevogavelmente cortada, não retornável, sempre a
desviar: “... te perdi para sempre...”.
98. No original, in turn
(N. da T.)
*
A segunda palavra, que aqui também é a última, é “você”. Se, como
Shoshana Felman argumenta, A outra volta do parafuso é exemplar em mostrar
o “estranho poder da armadilha” de um trabalho literário “como um efeito
de leitura inescapável” (102), seria sobre você, o você que você acha que se
tornou, o destinatário da carta chamada A outra volta do parafuso. Há um jogo
estranho e singular do “você”, ao longo de todo o Parafuso, começando com o
aparentemente alegre arquear sobre a questão do que “você irá julgar” (TS: 9),
com atenção à escrita que se segue, e que termina mais surpreendentemente,
talvez, nas palavras convulsionadas do garotinho: “Peter Quint – seu danado!”
(121). Você imagina se esse peculiar efeito-de-você não é algo que foi sugerido
ou sorrateiramente jogado naquele célebre comentário que James faz em seu
Prefácio para a New York editions:
Faz apenas a visão geral do leitor sobre o mal, intenso o bastante,
eu disse a mim mesmo – e isso já é um trabalho encantador – e
em sua própria experiência, sua própria imaginação, sua própria
simpatia (com as crianças) e o horror (de seus falsos amigos) irão
supri-lo suficientemente com todas as particularidades. Faça-o
pensar no mal, faça-o pensar por si mesmo, e você estará livre de
especificações fracas.99
99. Veja The Novels and Tales
of Henry James, New York ed.,
vol.12 (London: Macmillan,
1908), p. xxi–xxii.
É uma curiosa passagem encriptada dentro dos peritextos críticos, essa
reminiscência embutida de um solilóquio (“eu disse a mim mesmo...”). Que
começa com “Eu” e termina com um você: “você está liberado...”, quanto à
narrativa da governanta, você fica dentro da espiral, você se vê inscrito lá, em
81
fugazes vislumbres espectrais, apenas duas ou três vezes, quando a governanta
escreve: “pense no que você quiser” (TS: 27), “você vai ver o quê” (61) e então
“você pode imaginar” (62). Esses são momentos singularmente estranhos, nos
quais você mal pode deixar de se perguntar: a quem a governanta se dirige?
O desvio não pertence a nenhum -ismo ou escola de crítica ou de
teoria. Não é psicologia ou filosofia ou literatura. É uma força, alterando a
intimidade, desviando-se nela, desviando-se para fora.
Você diz isso tudo. Você para. Você sorri. Mas as lágrimas começam a
cair. Não tenho ideia de quem ou que raios você é.
(tradução de Mariangela Andrade Praia)
82
o instante literário e a
significação corporal
do tempo – Levinas
leitor de Proust
Danielle Cohen-Levinas
83
o instante literário e a significação corporal
do tempo – Levinas leitor de Proust
Danielle Cohen-Levinas1
Nós sabemos o quanto a relação com o outro é originariamente primeira.
Essa intersubjetividade não é em nada sinônimo de comunicação, mas “suprema
passividade da exposição a Outrem”, diz Levinas em Autrement qu’être2. Esse
movimento de exposição que pode chegar à substituição, à fissura do sujeito, ao seu
aniquilamento, “como uma pele se expõe àquilo que a fere, como uma face oferecida
àquele que bate”3, é vivida como trauma, como “dizer ao outro” incomensurável
relativo a um enunciado que se contenta em dizer qualquer coisa. O “dizer ao
outro”, constitutivo da subjetividade, atesta uma reviravolta da estrutura de
significação do dito.
Ao apresentar o motivo da “exposição” como aquilo que sempre
excede a ordem lógica daquilo que se mostra, Emmanuel Levinas terá
examinado a maneira como o sujeito desvela sua sensibilidade definida
como vulnerabilidade e como essa exposição que nos leva à transcendência
de outrem transforma profundamente os pressupostos fenomenológicos.
A exposição de um sujeito não é somente exposição do sujeito intimado ao
outro e pelo outro. Trata-se igualmente de uma exposição que faz emergir a
ideia mesma de intencionalidade e de teleologia. Esse pôr em abandono da
fenomenologia, que pode ser ainda interpretado como um gesto requerido
por ela, é que funda, em Levinas, a passagem da necessidade ao desejo e do
desejo à exposição de outrem, que é particularmente eloquente na obra de
Proust, lida por Levinas nos anos de cativeiro.
Há uma onipresença da literatura na obra filosófica de Emmanuel
2. LEVINAS, Emmanuel.
Autrement qu’être. Ed. Nijhoff,
La Haye, 1974; Le livre de poche,
1978. As referências bibliográficas
citadas por todo o texto remetem
às respectivas edições no original
e as citações aparecem aqui
traduzidas livremente do francês
para o português.
3. Ibidem, p. 83.
Levinas, mas essa onipresença não se limita a idiomas narrativos únicos ou a
Professora na Université Paris IV Sorbonne desde 1998, onde fundou o Centro de
Estética, Música e Filosofia Contemporânea, depois, em 2008, o Collège des études juives
et de philosophie contemporaine – Centre Emmanuel Levinas. Pesquisadora-associada nos
Arquivos Husserl de Paris na École Normale Supérieure.
1
84
referências pontuais. É este um dos traços característicos da modernidade do século
XX, o suscitar de uma proximidade de escritura e de pensamento entre filosofia e
literatura; quanto a isso, Proust representa a ele aquilo que Roland Barthes chamava,
em 1974, “um sistema completo de leitura do mundo. (…) Não há, em nossa vida
cotidiana, qualquer incidente, encontro, traço, situação que não tenha sua referência
4. BARTHES, Roland. Entretien
em Proust”4.
Se Emmanuel Levinas não rompeu com essa tradição, muito antiga
no que concerne à França, é preciso imediatamente acrescentar que ele foi
atento, como poucos filósofos o foram, à literatura e à poesia, e que a grande
originalidade de Levinas, ou mesmo a radicalidade de seu gesto, foi de
sustentar como hipótese ou, ao menos, de deixar entrever, em seu ensaio de
1948 em Les Temps Modernes, “La realité et son ombre”5, que a literatura não é
entendida como arte, que a palavra narrativa não se contenta em falar ou em
se imergir na paixão do verbalismo e do contentamento psicológico, mas que
ela é uma palavra que se faz ela mesma no movimento da narração, no ato de
escritura. Nesse sentido, ela é já, em si, um apelo a outrem – isso que Levinas
entende como a modalidade mais essencial do “desconfiar de si próprio” que
é, como sabemos, o adequado à filosofia e à crítica. A literatura moderna,
sincronizada com as preocupações e prioridades filosóficas, manifestaria a
certas considerações, mais que a filosofia, ou tanto quanto, aquilo que Levinas
chama de “uma consciência mais e mais certa dessa insuficiência basilar da
idolatria artística”6. O processo expresso de maneira bastante incisiva por
Levinas não é aquele da literatura, mas da arte, na medida em que ele não é
linguagem. Consequentemente, ele não está à altura da questão da verdade
e do bem que a filosofia, desde Platão, tenta articular. A tentação estética
rigorosamente condenada por Levinas no contexto do imediato pós-guerra
e já em De l’existence à l’existant7, começado em cativeiro, pelo motivo de que
ela constitui o evento mesmo da obscuridade do ser e que ela o conduz ao seu
assombramento não é comparável à tentação literária expressa por Levinas em
Carnets de captivité – tentação que se deve, creio, levar muito a sério e examinar
(ausculter) muito atentamente. Levinas, leitor de Proust, certamente, mas de
tantos outros escritores durante esse período em que interrogava tragicamente
por essa fórmula inscrita em Carnets, “Que dirá a história?”8, detecta na
literatura a possibilidade de reintroduzir, no cerne do rigor conceitual, uma
inteligibilidade do mundo em que a noção de “experiência” ocupa um lugar
central. Com a narração, tornada forma de relação a outrem, Levinas aborda
de Roland Barthes avec Claude
Jannoud (Le Figaro, 27 juillet
1974). In Œuvres complètes,
volume 3, Paris: Editions du
Seuil, 2002, p. 569
5. LEVINAS, Emmanuel. La
realité et son ombre. Texte repris
dans Les Imprévus de l’histoire.
Montpellier: Ed. Fata Morgana,
1994, p.123-148.
6. Ibidem, p.123-148.
7. LEVINAS, Emmanuel. De
l’existence à l’existant. Paris:
Librairie philosophique Vrin,
1ère édition 1947, réédition 1981.
8. LEVINAS, Emmanuel. Carnets de
captivité et autres inédits. Volume
publié sous la responsabilité de
Rodolphe Calin et de Catherine
Chalier (œuvre 1). Paris: Ed.
Grasset/Imec, 2009, p. 79.
85
o status do sujeito, da subjetividade que deve provar a modificação, até mesmo
da fissura e da devastação. Definitivamente, as narrações e os escritores que
retêm sua atenção estão todos marcados por aquilo que podemos chamar
de a extradição do sujeito, que será definitivamente o verdadeiro motivo das
narrações em torno de que se enlaça uma dramaturgia, uma intriga de acordo
com a experiência de Levinas, ou ainda, como ele escreve no sexto caderno:
O medo de ser simplório – não seria tal regra prática que me
parece absoluta, não é ela pura e simplesmente da ‘literatura’ –
essa esfera da literatura se alargou infinitamente. A virtude é ela?9.
Levinas então vivenciou o cativeiro, a condição de refém, como ele
mesmo o disse – referindo-se a diversas retomadas da palavra “refém”, ele a
conhece “desde a perseguição nazista”10, em “a passividade total do abandono,
no desprendimento em relação a todos os laços”11, e ao mesmo tempo como
um momento em que se revelam “as verdadeiras experiências”12. A narração
de Levinas é de uma força inaudita:
Sofrimentos, desesperos, lutos – certamente. Mas, sob tudo
isso, um ritmo novo de vida. Nós pisamos em um outro
planeta, respirando uma atmosfera de uma mistura incomum e
manipulando uma matéria que não pesa mais13.
A força singular do termo “refém”, que imediatamente entra em
ressonância com “cativeiro”, relaciona-se, sem dúvidas, com a maneira como
Levinas o desloca pelo registro conceitual, detectando, então, aí, a eminência
de um Dizer que se narra carregado de uma força ética irrecusável. Esforço
que tende ao que Levinas chama em Autrement qu’être de “tematização,
pensamento, história e escritura”14, que vem necessariamente para ser ferido
por, não somente o rastro da significância, do “fazer signo” e da proximidade,
mas pela experiência vivida e por sua temporalização no processo de escritura
e no exercício do pensamento. Levinas então viveu o cativeiro, ele foi, como se
diz, prisioneiro de guerra, dividido entre 1942 em Frontstalag, Rennes, Laval e
Vesoul, e, desde 1942 até o fim do cativeiro em 1945, foi prisioneiro em Stalag
XI B de Fallingbostel, na Alemanha, separado de outros prisioneiros franceses
9. Ibidem, p. 161.
10. Ibidem, p. 31.
11. Ibidem, p. 213.
12. Ibidem, p. 203.
13. LEVINAS, Emmanuel.
Carnets de captivité et autres
inédits. Volume publié sous la
responsabilité de Rodolphe Calin
et de Catherine Chalier (œuvre 1).
Paris: Ed. Grasset/Imec, 2009.
14. LEVINAS, Emmanuel.
Autrement qu’être. Ed. Nijhoff,
La Haye, 1974; Le livre de poche,
1978, p. 20.
86
e sob a obrigação de trabalhar em um kommando especial reservado aos juízes
que partiam à floresta todos os dias desde as quatro horas da manhã. Foi nessas
condições inumanas que ele confiou, cada dia, ao retornar da floresta onde ele
exercia o trabalho de lenhador sob os uivos e insultos de soldados alemães,
notas, aforismos e pensamentos a uma série de pequenos cadernos que hoje
em dia nós percorremos tentando reconstituir, tempos depois, a gênese de
sua obra, a partir da acumulação desses fragmentos em que se intercalam
reflexões filosóficas, referências à tradição bíblica e talmúdica, excertos de
textos romanescos que Levinas reescrevia rigorosamente e rascunhos de três
romances dos quais dois permaneceram inacabados, Eros e La dame de chez
Wepler. Porque a condição de refém tinha isto de paradoxal: autorizava os
prisioneiros que tivessem sido submetidos aos piores maus tratos durante o dia
a irem a bibliotecas no fim da tarde. Leitura, escritura e cópia representaram
para Levinas espaços de sobrevivência frente à “terrível realidade que se
tece”15. Mais tarde, em uma entrevista, Levinas voltou a essa experiência
que ele comparou em Carnets de captivité a uma “vida monástica ou moral”,
evocando as leituras que eles jamais teriam feito sem o cativeiro.
15. LEVINAS, Emmanuel. Carnets
de captivité et autres inédits. Volume
publié sous la responsabilité de
Rodolphe Calin et de Catherine
Chalier (œuvre 1). Paris: Ed.
Grasset/Imec, 2009, p. 72.
Fazendo de você um refém, puniria-se você por algum outro. Para
mim, esse termo não tem outra significação, salvo se ele recebe no
contexto uma significação que pode ser gloriosa. Essa miséria do
refém tem uma certa glória, na medida em que quem é refém sabe
que corre o risco de ser morto por um outro. Entretanto, nessa
condição de refém, que eu chamo ‘a incondição de refém’, não tem
aí, para além do destino dramático, uma dignidade suprema.
Condição e incondição
É possível expor e tematizar a figura do refém quando nós mesmos
o somos? É possível passar a experiência vivida da condição de refém à
experiência filosófica da incondição de refém, sem fazer degringolar essa
questão, tomada no trauma do tempo histórico, na ordem daquilo que Levinas
procura transpassar? O que é a passagem do Dito do cativeiro ao Dito do
refém, um pode traduzir o outro sem o trair? Isso seria por um retrair-se
jamais alcançado, sempre recomeçado, em que Levinas foi bem sucedido ao
87
interpretar a significação do Dito do refém da experiência vivida, submetendo-a
à irreductibilidade do Dizer da incondição do refém – o lugar onde se elabora
um pensamento filosófico que será abertura àquilo que Levinas chama, em
Carnets de captivité, “a significação corporal do tempo”16. Essa significação
aparece na obra de Levinas a partir de suas leituras incessantes de Proust,
feitas enquanto foi prisioneiro de guerra. Em Proust, a realidade humana não
se deduz da dialética única da totalidade histórica e da ruptura escatológica.
Ela está sempre em tensão constitutiva com a pura significância de outrem,
excluindo assim o desvelamento objetivo e se evadindo a uma ordem políticohistórica: “Toda a história de Albertine prisioneira – é a história da relação
com outrem”, escreve Levinas em Carnets de captivité�. Assim, em Proust, a
aproximação amorosa e erótica não é responsável pela justiça da face e da
palavra. Ela transita pelo silêncio duvidoso e significativo que, em Levinas,
tornar-se-á em Totalité et infini a intencionalidade da carícia como momento
“sensível que transcende o sensível” e que, ao transcendê-lo, permite acessar a
dualidade que é própria do mistério incomensurável de outrem. Esse mistério
é, para Levinas, “a base mesma do amor”17. O tema da sexualidade, muito
presente em Carnets, é a partir deles abordado como constitutivo da egoidade.
Em 1942, entre uma reflexão sobre Joseph de Maîstre e Alfred de Vigny, e uma
alusão à festa de Simha Torah (4 de outubro de 1942), Levinas recopia essa
breve passagem de Albertine desaparecida:
Eu não parei de me amar porque meus laços cotidianos comigo
mesmo não haviam sido rompidos como haviam sido aqueles de
Albertine. Mas se esses com meu corpo, comigo mesmo, também
o fossem? Certamente será a mesma coisa. Nosso amor à vida
não é nada além de uma velha ligação da qual não sabemos nos
libertar. Sua força reside em sua permanência. Mas a morte que a
rompe vai nos curar do desejo da imortalidade18.
16. Ibidem, p. 186.
17. Ibidem, p. 114.
18. Ibidem, p. 77.
Poderíamos listar temas muito precisos que, em Em busca do tempo
perdido, fundam a subjetividade proustiana, e poderíamos, de maneira
sistemática, colocá-los em relação com os idiomas levinasianos: amor, erotismo,
sexualidade, socialidade, significância e significação, exposição, estrutura
ética da subjetividade do o-um-pelo-outro (l’un-pour-l’autre), a morte oposta
à experiência, o momento em que o heterogêneo se impõe como Outro na
88
medida em que é Todo e qualquer Outro (Tout Autre), a impossibilidade de
uma retomada de todo e qualquer Outro no mesmo, o feminino assimilado
à figura de Outrem “antes que Outrem(,) seja uma outra pessoa”19. Esses
temas podem ser pensados como atestações narrativo-filosóficas em que se
encontra o rastro de uma arqueologia genética em Carnets, e que Levinas, em
Autrement qu’être, articulará em torno de uma única questão: o que há com a
subjetividade quando ela está exposta à alteridade do outro?
Essa dualidade de um sujeito simultaneamente exposto à alteridade do
outro e de um sujeito que repousa substancialmente sobre si, isso que Levinas
chama de “o outro no mesmo”, exposto a um “apesar-de-si” (malgré-soi),
caracteriza aquilo que chamamos aqui de “o instante literário” para Levinas,
em que as leituras de Proust representam um momento que consideramos
como fundador. Os temas proustianos são todos determinados por uma
identidade subjetiva que não coincide jamais consigo. Assim, poderíamos
inscrever o movimento especulativo do pensamento de Levinas no movimento
narrativo de escritura de Proust e aí deduzir, a partir das três ocorrências,
Amor, Alteridade, Subjetividade, no sentido fenomenológico do termo, o
que significa “mostrar isso que é uma pessoa frente a uma outra”20. Proust
é, portanto, um dos eixos para os quais se volta a ruptura de Levinas com o
substancialismo em prol do emergir efetivo da intersubjetividade do amor.
Essa ruptura só é possível se é operado um movimento de substituição, se se
passa do ato como manifestação primeira da substância à “volúpia que não é
nem ato nem pensamento”21. O esforço de Levinas consistirá em articular a
questão da volúpia com as da socialidade e da alteridade radical. Ele escreve:
19. Ibidem, p. 76.
20. Ibidem, p. 145.
21. Ibidem, p. 144.
Quando eu digo que Proust é um poeta do social e que toda a sua
obra consiste em mostrar aquilo que é uma pessoa frente a outra,
eu não quero evocar simplesmente o antigo tema da solidão fatal
de cada ser (Cf. – Solitudes d’Estaunié) – e a situação é diferente:
a um ser, tudo do outro é velado – mas não resulta disso uma
separação – é precisamente o fato de se velar que é o fermento
da vida social. Essa minha solidão que interessa a outrem e todo
seu comportamento é uma agitação em torno de minha solidão.
Marcel e Albertine – é isso. A obra tão vasta de Proust conduz
a esses dois temas de Albertine prisioneira e possessa que não
é distinta de Albertine desaparecida e morta. Seu tormento que
engendra seu laço com ela, isso que tem tantas coisas dela – de
coisas simples, atitudes, gestos, pose – que ele não conhecerá
89
jamais. E isso que ele conhece dela é dominado pelo que ele ignora
sempre – pois todas as evidências objetivas dela são menos fortes
que as dúvidas que restarão a jamais nele – e que são sua relação
com Albertine.22
22. Ibidem, p. 145.
Gênese e genética de um pensamento novo
Se a publicação do primeiro volume dos inéditos de Emmanuel
Levinas permite traçar e reconstituir de maneira quase genética as premissas
de um pensamento que interroga o status da escritura, isso se dá, em grande
parte, graças à descoberta, em Carnets de captivité, da abundância explícita
de referências literárias e, sobretudo, pela descoberta daquilo que poucos
exegetas e especialistas na obra de Levinas conheciam: a ambição, a vocação
claramente expressa por Levinas de conceber sua obra como uma constelação
que articularia a filosofia com a literatura e a crítica.
Levinas escreve desde o primeiro caderno de cativeiro, começado em
oito de setembro de 1937:
“Minha obra a fazer:
Filosófica: 1) O ser e o vazio
2) O tempo
3) Rosenzweig
4) Rosenberg
Literária: 1) Triste opulência
2) A irrealidade e o amor
Crítica: Proust”.23
23. Ibidem, p. 74.
É, portanto, em Proust que desejo me deter, insistindo na ideia de que,
se Levinas expressou a vontade de engendrar um trabalho crítico a respeito
da literatura – exatamente como seu amigo Maurice Blanchot, quem o fez
descobrir, nos anos 20, quando eram estudantes em Strasbourg, não somente
a obra de Proust, mas também a de Léon Bloy, de que medimos, com espanto
admirativo na leitura de Carnets, a importância capital para Levinas e as
páginas admiráveis que esse último consagra ao autor de Lettres à sa fiancée
90
(1889-1890). Dois escritores que Levinas recopia cuidadosamente ao longo
dos cinco anos de cativeiro em fragmentos de narração que são como a
possibilidade mimética de responder de sua própria língua, arrancando ao
“haver” impessoal e inumano da condição de refém, de maneira a fazer surgir
a materialidade da linguagem tornada coisa, a coisa experiência que Levinas
nomeia no sétimo e último caderno “a significação corporal do tempo”24.
Muitos escritores aparecem ao longo dos cadernos, numerosos demais
para serem citados na economia geral deste texto, mas Léon Bloy, sobre quem
não me demorarei, e Marcel Proust requerem cada um deles um gesto de
escritura que é um pulsante movimento de transcendência, essa liberação da
imanência do ser heideggeriano que Levinas vê se efetivar na literatura de
Bloy e de Proust. Levinas não hesita em dizer de Leon Bloy essa frase sobre
a qual nos faz meditar longamente, conforme ela coloca em abandono a
intencionalidade husserliana na qual Levinas se detém: “Ele sabe coisas que
não estão na fenomenologia”25. Admirável percepção do tempo narrativo
em busca de um verdadeiro a-além do ser, que tira sua inspiração de uma
meditação sobre a negatividade da morte desviando momentaneamente a
espiritualidade do idealismo alemão, que vê nela, na morte e em seu vazio, a
condição da vida e do Espírito. Isso está, então, no ponto extremo do excesso
e da excedência que Levinas, em cativeiro, lê e recopia de Bloy e de Proust, e
não está excluído, mesmo se Levinas se defende, que ele viveu esse instante
literário como uma experiência de “consumação”, de que fala em De l’existence
à l’existant26; como a possibilidade de vislumbrar, do interior mesmo de sua
reflexão, a exterioridade absoluta, o fora que ele alcançará no último capítulo
de Autrement qu’être. Como em Proust, a emoção e a significação portada pela
escritura são sempre acionadas por um movimento de reflexividade sobre sua
própria emoção, “e mais ainda”, especifica Levinas falando de Proust, “pela
reflexão sobre a emoção de outrem. Melhor ainda: essa reflexão é essa emoção
mesma”27.
Novamente o tropo do excesso contido na ideia de uma reflexão como
paradigma da emoção induz, em Levinas, a uma leitura de Proust da qual nós
já conhecemos um aspecto no ensaio que ele lhe dedica em Noms propres28,
“L’Autre dans Proust”. Em verdade, Levinas sempre teceu seu discurso sobre
Proust e a partir dele, ancorando-o em uma interpretação ambivalente que
24. Ibidem, p. 186.
25. Ibidem, p. 162.
26. Ibidem, p. 93-4.
27. Ibidem, p. 71.
28. LEVINAS, Emmanuel.
Noms Propres. Montpellier: Fata
Morgana, 1976.
91
se divide em dois movimentos contrários29 no cerne da transcendência,
suscitando assim uma diacronia irreconciliável na temporalidade da narração.
Tomo aqui de Jean Wahl os semantemas, forjados por ele, a partir da palavra
transcendência, para tentar descrever uma dupla transcendência que
detecta na relação kierkegaardiana da subjetividade ao absoluto. O primeiro
movimento, a “transcendência”, corresponderia, como seu nome indica, ao
retorno, a uma recaída no dentro-aquém do ser, no “há” obsessivo e sem saída,
como o é o enraizamento no solo primordial ou o enraizamento carnal que
pressuporia sempre a imprevisibilidade da interpelação de uma palavra vinda
a romper e interromper esse enraizamento. São esses os momentos em que,
de acordo com Levinas, Proust se livra das descrições concretas, até mesmo
exóticas, nas quais desaparece ou se dilui a estrutura ética da subjetividade do
face-a-face amoroso. É esse o momento em que, na obra de Proust, “a magia
começa, como um Sabá fantástico, desde que a ética é finda”30. Em Carnets de
captivité, são esses os momentos em que Levinas sublinha o caráter paradoxal
e inatingível, o enigma da atração irreprimível que opera Albertine em toda
a sua potência de aniquilamento que será anulação da face – o aniquilamento
abrindo sobre um nada que ele mesmo não abre sobre nada, se esse não está
sobre o incomensurável de uma subordinação a um outro que não reconhece
mais a travessia da alteridade, ou, para dizer como Hegel, que não reconhece
mais um pensamento da morte que deve provar do vazio “olhando-o no rosto”
– reflexão hegeliana com a qual Levinas estava rompido. Tão distante que ela
se abandona ou se espalha, qualquer que seja a alteridade objetiva e amada à
qual ela se refere, Albertine permanece sempre idêntica a ela mesma. Ela é,
poder-se-ia dizer, a identidade por excelência:
(...) Que é Albertine (e suas mentiras) – comenta Levinas – se não
a evanescência mesma de outrem, sua realidade feita de seu vazio,
sua presença feita de sua ausência, a luta com o imperceptível?
E além disso – a calma frente a Albertine que dorme, frente a
Albertine vegetal. O ‘caráter’, o ‘sólido’ = coisa31.
Três fragmentos depois, Levinas prossegue com sua reflexão, alternando
comentários e cópias de excertos de Albertine desaparecida:
29 .As duas expressões próprias
a esses dois movimentos
contrários, “transdescendência”
(transdescendance e
“transascendência”
(transascendance) são de
Jean Wahl; cf., Immanence et
transcendance, “La transcendance
intériorisée”. (N. da A.)
30. LEVINAS, Emmanuel.
Noms Propres. Montpellier:
Fata Morgana, 1976, p. 119.
31. LEVINAS, Emmanuel.
Carnets de captivité et autres inédits.
Volume publié sous la responsabilité
de Rodolphe Calin et de Catherine
Chalier (œuvre 1). Paris: Ed.
Grasset/Imec, 2009, p. 72.
92
Porque a questão não se coloca mais entre um certo prazer –
advindo do uso, e talvez pela mediocridade do objeto, quase nulo
– e de outros prazeres, aqueles tentadores, encantadores, mas
entre esses prazeres e qualquer coisa de muito mais forte do que
eles, a piedade pela dor32.
32. Ibidem, p. 73.
O segundo movimento, a “transascendência”, designa o movimento
metafísico em direção ao Outro, o movimento de afeto por outrem que passa
pelo corpo, por sua significação temporal e pela impossibilidade de satisfazer o
desejo metafísico de outrem – daí a ideia de que a sensibilidade é definida como
vulnerabilidade. Essa distinção entre transdescendência e transascendência
não é verdadeiramente tematizada por Levinas. Ela irriga, sobretudo, a
relação de Levinas com a literatura, e essa relação não é identificável com um
enunciado filosófico, mas antes de tudo a sua enunciação. É o Dizer narrativo
que age profundamente sobre o Dito filosófico. Não se trata de um discurso
de verdade, mas de uma palavra sobre a ambiguidade absoluta contingente à
oposição entre alteridade e saber; e é certo que na morte que Outrem é o mais
fixo, o mais atarraxado, que sua alteridade é ao máximo inatingível, o menos
redutível à matriz de um saber. Levinas escreve:
a doença ela mesma é esse pensamento da morte (e o
envelhecimento e o tédio) 2) Proust tem a noção desse pensamento
pela doença ou pelo envelhecimento que são um acesso positivo
(e apropriado) a uma noção e sem a qual podemos ter somente
um conceito negativo33.
O vazio de Albertine não é, portanto, um nada. É ele que, como destacou
Levinas em seu ensaio sobre Proust, “descobre sua alteridade total”. A morte
não é mais somente sua própria morte, “é a morte de outrem contrariamente
à filosofia contemporânea ancorada à morte solitária de si”34.
Esse passo essencial dado por Levinas, esse passo de-além (Blanchot),
terá sido em parte, não exclusivamente, graças à literatura e em particular
à obra de Proust. Esta tem de notável que não decide jamais entre a
“transdescendência” e a “transascendência”. Nela, os dois movimentos, de
um só inquilino, reúnem-se em uma recusa compartilhada de ceder ao ser
heideggeriano. Deixar a ambivalência a uma total tensão ética, isso é o que
fez dizer a Levinas que a obra de Proust é ao mesmo tempo “mais e menos
33. Ibidem, p. 73.
34. LEVINAS, Emmanuel.
Noms Propres. Montpellier: Fata
Morgana, 1976, p. 153-4.
93
que o ser”. É esse, creio, o papel essencial e decisivo das leitures proustianas
de Levinas em cativeiro, o lugar onde é constituída uma reflexão paradoxal,
ainda que husserliana, sobre a questão da experiência, que Levinas colherá
mais tarde nessa frase extraordinária que relaciono imediatamente à questão
da significação temporal do tempo: “As grandes experiências de nossa vida
jamais foram, propriamente dizendo, vividas”35.
A significação corporal do tempo
35. LEVINAS, Emmanuel.
En découvrant l’existence avec
Husserl et Heidegger. Paris: Vrin,
1994, p. 211.
Reencontramos aqui a análise husserliana da consciência íntima do
tempo, mas esta é articulada à modalidade da significação corporal do tempo,
à experiência vivida, à incessante passagem do Dito ao Dizer e ao Desdizer:
consciência íntima do tempo não mais vinda para apoiar totalmente o
conceito de uma consciência transcendental egoica e intencional. As grandes
experiências de nossa vida, que jamais foram, propriamente dizendo, vividas,
situam-se no ponto de intersecção em que a consciência íntima do tempo
está tomada na elipse da significação temporal, empurrando-a em direção a
limites extremos, ao ponto de ruptura com os objetos intencionais que não
pertencem mais à consciência como os momentos constitutivos, mas que são
primordialmente reconhecidos em sua plena transcendência e idealidade. A
experiência é, então, de natureza perceptiva, pré-predicativa, inteiramente
transformada pela temporalidade fluente do vivido e dos atos intencionais.
O fenômeno de retenção daquilo que foi vivido escorrendo-se e escoando-se
na protensão do que vai ao ser, do que precisamente não foi ainda vivido, do
que está no ponto de ser e ao mesmo tempo não chega, permanece sempre
suspenso à vinda ou sobrevinda de um acontecimento, a um “despertar” que
não tem nada a ver com um fenômeno de rememoração ou com uma síntese
de reconhecimento.
O gesto decisivo operado por Levinas consiste em não pensar mais
em dois tempos – um ativo, a retenção; o outro passivo, a protensão –, mas
a apreender o sujeito como “passividade em sua origem”, que não se tornará
ativo a não ser de forma secundária e lateral. As grandes experiências de
nossa vida que nós não vivemos – e toda a obra de Proust é uma admirável
exemplificação disso, isto é, uma verdadeira fenomenalidade narrativa – o
94
são, porque a passividade do sujeito não é mais pensada como o Mesmo já
constituído que, em seguida, reencontra o Outro. A passividade do sujeito é
pensada originariamente como Outro-no-Mesmo – o Outro que em Hegel,
ainda, abriu o Mesmo ao Outro. No caso de Proust, de acordo com a leitura
que Levinas fez em cativeiro, o interesse não tem a ver com uma percepção
que reduziria as fontes impressionais da consciência a uma análise psicológica
de personagens e da ação. O interesse se relacionava, como precisamente
esclarece Levinas, “ao tema: o social”36.
A maneira como Levinas faz intervir o motivo da socialidade é
verdadeiramente excepcional, pois isso não entra em contradição com a
ideia de um sujeito-refém que desfaz a relação da retenção à protensão, que
desfaz o momento preciso em que as intencionalidades, como objetivo e
acontecimento, coincidem. É preciso introduzir aqui um outro motivo, o da
passividade, de uma passividade mais passiva que toda passividade, segundo a
expressão de Levinas incessantemente rearticulada. O sujeito-refém se expõe
ao outro sem objetivo esperado, sem destinação já presente na consciência
íntima do tempo. Sua passividade é sem assunção, como “uma pele se expõe
àquilo que a fere”. Frente à intimação, por outrem, a passividade não se elimina
atrás de um tempo por detrás do tempo. A passividade deve ser compreendida
como um retorno ao tempo ele mesmo, um tempo social, portanto, que não é
contável frente a seus limites, sem, contudo, surgir de um lugar-nenhum ou de
um tempo nulo. A passividade não é mais negativada. Ela é tão infinita quanto
a responsabilidade, a proximidade e, consequentemente, tão impossível de
se ter. Isso porque a passividade é responsável por um atraso que ela não
saberia suprir. Sincronia alguma é possível, simetria alguma, porque ela é ao
mesmo tempo o retentivo e o protentivo disso que jamais poderá coincidir. A
passividade do sujeito-refém é passiva apesar dela. Ela vem de sua “paciência
integral”37, e nela vivendo ela atinge o outro sem jamais se mostrar. A
passividade, portanto, renunciou a ser o contemporâneo daquilo que ela deseja
atingir e tocar. Daí a ideia muito presente em Levinas, em Les carnets, de que
o desejo erótico, aquilo que ele chama de “sexualidade humana”, é a ordem de
uma irritação38. Eros está na base dessa irritação, como ele é a base de uma
socialidade para Levinas. Trata-se de uma questão central, de uma dimensão
do pensamento de Levinas que Les carnets nos revelam de maneira decisiva.
36. LEVINAS, Emmanuel. Carnets
de captivité et autres inédits. Volume
publié sous la responsabilité de
Rodolphe Calin et de Catherine
Chalier (œuvre 1). Paris: Ed.
Grasset/Imec, 2009, p. 70.
37. LEVINAS, Emmanuel.
Autrement qu’être. Ed. Nijhoff,
La Haye, 1974; Le livre de poche,
1978, p. 86.
38. LEVINAS, Emmanuel.
Carnets de captivité et autres
inédits. Volume publié sous la
responsabilité de Rodolphe Calin
et de Catherine Chalier (œuvre
1). Paris: Ed. Grasset/Imec, 2009,
p. 182
95
Por um lado, Levinas definia sua filosofia, desde o período de cativeiro, como
uma filosofia do face-a-face, do panim el panim, que, em hebraico não se diz
no singular, mas no plural – faces a faces. De outro, esse face-a-face, que é o
próprio da relação erótica, excede o motivo geral da existência. Em Levinas,
o motivo da existência significa penalizar, subjugação, preguiça de ser e não
passividade. Essa presença do mim por um ti escravizado constitui para
Levinas uma esperança. Se Eros está na origem do social, isso se dá porque
o social está já em um ser. Essa é a base mesma da dualidade do eu-por-si e
do mistério de outrem que se abre para uma intimidade que não é sinônimo
de fusão. É desde o motivo da concupiscência carnal que Levinas descreve o
processo dessa dualidade. Essa dualidade, não compreendida, não entendida
como fenômeno de fusão, abre-se então sobre uma intimidade que é “a soma
dos indivíduos”39, em outras palavras, o social. O elo dual temporaliza aqui a
relação do eu-por-si a outrem, na alforria dele mesmo. A dualidade já é em
si uma figura do tempo, de um tempo dramático porque sempre confrontado
com o mistério de outrem que ele não chegará a atingir. Precisamente, contudo,
esse desprendimento temporal entre a dualidade do eu-por-si próprio à
sexualidade como constitutiva da egoidade e o mistério de outrem é a condição
que permite ultrapassar o antagonismo entre egoísmo e altruísmo. Há aí uma
“ruptura com a concepção antiga de amor”40, a possibilidade, então, de uma
verdadeira exterioridade. Essa abertura é de duas ordens, simultaneamente,
sexual e social. O desejo erótico temporaliza a relação a outrem que impede
o ser de afundar-se e beneficiar-se de seu aniquilamento. Essa esperança por
um presente liberto Levinas chama de “carícia”: “Ela não é loquaz, ela não diz
que vai melhorar – mas ela compensa no presente mesmo. Com a carícia – nós
temos o terno e o carnal. Significação corporal do tempo”41
O sofrer puro não é então uma categoria. Ele não é a consequência de
uma simples sensação. É no sofrer e na punição, nessa passividade absoluta,
mais passiva que a passividade, que reside o estremecimento de uma eleição,
no sentido em que Eros traz em direção a outrem, no sentido de “o amor
de uma pessoa que te deflora (acaricia)”42. Esse trazer em direção a – que é
o exato contrário de uma visão arbitrária do mundo, o exato contrário do
entorpecimento do ser a ser, o exato contrário de um ser que é dois – abre-se
sobre um horizonte de socialidade e de filiação, pois se opera em uma relação
de assimetria a passagem de um ser que é dois a “dois seres no instante”.
39. Ibidem, p. 66.
40. Ibidem, p. 114.
41. Ibidem, p. 186.
42. Ibidem, p. 180.
96
Levinas especifica: “Aqui se pode soltar”. E ele adiciona: “Mas não soltamos”43.
O drama da temporalização do tempo do sujeito! Este último busca
interromper essa síntese de entendimento voluntário, ativo e triunfante,
opondo a ela uma síntese passiva que será síntese da temporalidade mesma da
passividade; única possibilidade – única esperança! – de interromper a surda
e tenaz perseverança do ser em seu ser de superar a obstinação ontológica do
ser-em-si e por-si. O que se dá, então, com a relação de transcendência? Não
será a esperança do pelo-outro no ser que se coloca?
Se a experiência vivida não pode ser pensada senão a partir da
relação do pelo-outro, desde a questão que coloca tanto a mortalidade de
Outrem quanto o desejo metafísico e erótico de Outrem, então, a relação de
transcendência é sempre reduzida a uma continuidade social que Levinas põe
em cena como uma relação de atraso, de distância irreconciliável entre aquele
que vem, aquele que vai e aquele que já está lá. Ter um encontro com outrem,
isso é estar em atraso em relação a ele, o que quer que venha.
As páginas de Proust comentadas por Levinas mostram bem que a
passiva e desmesurada relação amorosa que se ata em torno de Albertine já
está sempre encoberta na sociedade à qual pertence o sujeito. É por isso que a
exposição última e radical, esse gesto tão extravagante de Levinas, é necessário
para pensar – “sobre a loucura” – isso que cerca o humano e condiciona
imperativamente sua relação com o tempo, de que ele não pode se aproximar
senão em seu despojamento.
A convocação da interioridade própria à narração proustiana não é,
então, para Levinas, uma questão de escapar à experiência vivida da exposição
à morte. Ela permite cruzar as exigências e a vocação ética da narração para
além da factualidade da história que sempre busca se enunciar ou se denunciar
ao se tematizar. Mas a significação última o escapa, pois a exposição do
sujeito-refém ao outro é dissimétrica, como o é a irreversibilidade do tempo
ele mesmo, em que os rastros indeléveis na estrutura da significação que se
narra não pertencem a uma lógica formal, mas faz parte de um movimento
infinito de des-dizer e re-dizer que é uma das características do des-interessar
do amor.
43. Ibidem, p. 178.
(tradução de Luísa de Freitas)
97
Porém,
sem medida
S i lv i n a R o d r i g u e s L o p e s
98
porém, sem medida
Silvina Rodrigues Lopes1
Propõe-se neste texto uma leitura de Num ameno azul... [In lieblicher
Bläue...], de Hölderlin (ver tradução em anexo), onde o fundamental é um
pensamento da poesia como condição da vida dos homens, que em cada um
supõe singularidade e partilha sem fim de textos e imagens que dão forma
e transformam o viver-em-comum: não sendo apenas condição do fazer
poético ou artístico, poesia é sinónimo de afirmação do desejo como saída do
trágico, impulso de qualquer fazer ou gesto que se não isole numa finalidade.
Quanto às formas poéticas, ou artísticas, não só elas não supõem um poder
ou competência particular de quem as faz, mas testemunham a saída das
competências através do exercício de um fazer que é também desfazer de
significações e imagens. Fazem assim parte da resposta poética ao desejo de
individuação/desindividuação, manifestado no medo de morrer e no desejo
de morte.
Afastando-se do trágico como representação da existência centrada na
oposição vida/morte como sobredeterminante, Hölderlin afirma a estranheza
(o ser-estrangeiro de cada um) que mina o valor categórico daquela oposição
e com ela de todas as outras e dos sistemas que as organizam. Trata-se de uma
insubordinação ou insubmissão sem método ou programa, na qual se afirma
que os homens (como sabemos, dedicados a uma diversidade de práticas – seja
cultivar a terra, lançar as redes ao mar, produzir e usar a mais alta tecnologia,
ou qualquer outra actividade que vise a subsistência ou o conhecimento
–, e existindo em relação uns com os outros) participam igualmente na
transformação do mundo, a qual supõe a invenção do que escapando à
previsibilidade interrompe o que seria o curso da história (o termo sublinhado,
“igualmente”, não pretende significar igualdade estabelecida por uma medida,
Professora catedrática do Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
1
99
mas refere uma maneira de existir em comum, que, como adiante se dirá,
não tem medida). Ao designarmos essa transformação do mundo como
transformação poética, o qualificativo assume uma grande ambiguidade, pois
a palavra “poético” desdobra-se em significações, tais como: o sentido grego
de poiesis; um tipo de escrita caracterizada pela ficção; o género lírico; uma
forma literária. Esclarecer o termo “poético” pela busca de uma essência da
poesia seria situar-se imediatamente na continuidade da tradição metafísica
caracterizada como tradição do mesmo, seria ignorar a filosofia e poesia que
trouxeram para primeiro plano a importância da desconstrução e da sua relação
com o que é estrangeiro. Toma-se então aqui “poesia” como uma designação
para a intratável afirmação da singularidade na relação com o outro, sendo que
em todos os seus lances esta é também pensamento e como tal “exigência de
escrever”, num sentido mais vasto do que o da organização de signos sobre um
suporte materialmente delimitável (escreve-se ao pensar, e como tal nenhuma
actividade do homem pode ser colocada fora dessa exigência de escrita). O
fazer que consiste na construção do poema (que poematisa, recorrendo-se
à adaptação de poématiser, tradução de Dichten para francês) é apenas uma
das manifestações visíveis dessa exigência, aquela a que o homem responde
enquanto poeta no sentido de fazedor de uma certa forma escrita; como limite
genérico, essa forma é compreendida pela designação “literatura”.
Trata-se, em síntese, de ir ao encontro do que em Hölderlin é «exigência
de escrever», retirar-se da onto-teologia, o que implicará o diálogo e confronto
com diversos comentários seus e de outros sobre o que escreveu.
1.
Pode eleger-se a frase “De pleno mérito, mas poeticamente, assim habita
o homem nesta terra”, como abreviatura da referida saída do trágico, pois ela
pode ser desdobrada em várias implicações que, ao esboçarem sentidos para
o que seja habitar-poeticamente, acentuam o “próprio” do homem, de cada
um, como (des)apropriação. Heidegger apresenta aquela frase como um dos
100
Leitmotive, o último, da sua conferência “Hölderlin e a essência da poesia”2,
onde começa por esclarecer que a essência que pretende investigar não
corresponde a um conceito geral, porque este, aplicando-se indiferentemente
a qualquer particular, não pode tornar-se essencial, e que a sua busca é a da
“essência essencial da poesia”, que se tornará visível (ficará “diante dos olhos”)
através do seu discorrer sobre aquele que considera num sentido privilegiado
como o poeta do poeta, aquele que poematisa a essência (essencial) do poema.
Esse propósito de Heidegger retoma um propósito anunciado no Romantismo
e que veio a dar lugar ao que Alain Badiou designou como sutura da filosofia
ao poema.
2. HEIDEGGER, Martin.
Approche de Hölderlin. Trad.
Henri Corbin, Paris, 1951.
Interpretando o referido verso, ou frase, Heidegger chama a atenção
para o que considera “o vigor do contraste” (marcado na tradução portuguesa
por “mas”). Para além desse contraste, importa sublinhar a continuidade do
que contrasta: (habitar) de «pleno mérito» e (habitar) «poeticamente» não são
separáveis, partilham a composição do habitar; de imediato, o homem aparece
pleno de méritos, cheio de competências, e no entanto, apesar disso, ou seja,
sem que tal seja causa ou medida disso (pode até ser-lhe contrário, mas não
necessariamente), ele não habita apenas pelos méritos (aquilo que se pode
medir imediatamente pelo cumprimento de finalidades), o seu habitar não
é redutível ao mérito. Da pretensão heideggeriana de investigar a «essência
essencial do poeta e da poesia» sem ser pela construção de um conceito, mas
pelo «colocar diante dos olhos» destacam-se de imediato duas consequências:
1. ao fazê-lo, Heidegger está a instituir Hölderlin como o exemplo de «o poeta
do poeta e da poesia», iludindo que esse instituir supõe implícito um conceito
de poeta e de poesia que permitiu a escolha do exemplo, 2. aquilo que se
pretende «colocar diante dos olhos» implica uma hierarquização apresentada
como essencial – o poeta do poeta é o poeta (no sentido de poematizador)
como fundador, donde, habitar poeticamente é para uns fundar, para outros
serem fundados, viverem «poeticamente» por delegação, o que nunca se
poderia concluir de «De pleno mérito, mas poeticamente, assim habita o
homem nesta terra». Na frase de Hölderlin não se diz que é aquele que escreve
poemas que habita poeticamente, mas sim que é o homem. O propósito de
Heidegger, buscar a essência essencial do poeta e da poesia, é já limitação
101
da sua leitura, pois, partindo da crença naquela essência (em consonância
com uma concepção da essência da linguagem, que estrutura o seu sistema
filosófico), Heidegger vai projectá-la sobre a interpretação que faz, o que a
condiciona à partida.
Os homens não habitam senão nesta terra onde a habitação começa
com o nascimento e termina com a morte: o redobramento de habitar por
«nesta terra» vem então sublinhar a finitude do habitar, ao mesmo tempo que
«poeticamente» coloca a sua infinitude, a sua indefinição (o que não é mérito
não pode ser contido por um dispositivo limitador, não se apresenta como
tal). Ao falar do “trágico moderno”, Hölderlin toma-o como consciência da
descontinuidade que é a morte, sem divindade ou natureza que a resgate.
Mas na descontinuidade há a continuidade do continuar: aquilo que
(em) cada homem começa é participação do trans-individual: inflexão que se
sujeita às memórias do mundo interrompendo-as e assim delas participando.
A relação entre o começo e a morte é a mesma pela qual a morte não é um fim
absoluto, mas uma vida, sobrevida, em signos.
O que de uma existência não tem semelhança é o seu infinito, a
dissemelhança de cada um, a sua participação do que não tem fim, que não
acaba no corpo. Que a hipótese de abandonar a identificação da formaindivíduo com a forma homem, exigida para se sair do trágico moderno,
vem do trágico antigo, onde a forma-indivíduo ao colocar-se se coloca em
insubmissão, lemo-lo nas Notas de Hölderlin sobre Édipo e sobre Antígona.
Lemo-lo também em Num ameno azul, cuja última frase diz que nem o
nascimento nem a morte são em absoluto princípio e fim: «A vida é morte, e a
morte é também uma vida». Pelo que uma vida não é trágica nem não-trágica,
ela é o retirar-se (poeticamente) à fatalidade: não há um momento de plenitude
de uma vida, não apenas porque desde que se nasce se começa a morrer, mas
porque uma vida de homem na sua absoluta singularidade nunca é vida nua,
é inseparável da morte que a atravessa (o que morreu e retorna, diferente,
como morto-vivo) e a retira à jurisdição puramente bio-lógica. Por outro lado,
apenas da forma-indivíduo, o corpo, há morte certa: a certeza desta é sempre
desdobrada pela incerteza da vida que há na morte, pela sobrevida de uma
vida. É a junção de vida e morte em cada vida que impede que qualquer gesto
102
se esgote na plenitude de uma intenção ou num tempo definido, pelo que
“uma vida”, não sendo aquilo que se apresenta como “uma vida”, não se limita
ao que, corpo finito, conferindo semelhanças e dissemelhanças, desaparece na
morte. Há em cada vida uma sobrevida indeterminável e sem fim, em nenhum
sentido, a não ser na hipótese de um total desaparecimento dos homens da
superfície da terra.
2.
Não se diz no poema de Hölderlin em que consiste o habitar
poeticamente. Nunca é dito que seja através da escrita de poemas, no sentido
de construção de uma forma como tal identificável, nem que esta sirva de
mediação daquele. Diz-se que é o homem, pleno de méritos, que habita. O
homem, resposta de Édipo ao enigma da Esfinge, é bem o enigma colocado
por Édipo, o enigma mais profundo, como lhe chamou Blanchot. Em Num
ameno azul, ele é uma figura caracterizada pela plasticidade que decorre da
sua auto-apresentação, ou auto-encenação: a arbitrariedade do signo, pela
qual não há qualquer semelhança entre as palavras e o que elas designam,
implica que tudo na linguagem são convenções e que é através delas, e dos
seus vazios decorrentes da força deslocante do habitar, o poético, que cada um
é singularização-universalização na relação com os outros e com as coisas. A
convencionalidade não tem um exterior da linguagem que a garanta: apenas a
relação diferencial entre os signos constitui a significação, pelo que há sempre
uma cena da significação. Num ameno azul começa com essa evidenciação:
Num ameno azul floresce, com o telhado metálico, o campanário.
À sua volta pairam os gritos das andorinhas, cerca-o o mais
tocante tom azul. Acima dele ergue-se no alto o sol, e dá cor à
chapa metálica, ao vento porém, lá em cima, range tranquilamente
o catavento. Quando alguém desce então aqueles degraus, abaixo
do sino, é uma vida serena, pois quando assim tão isolada se
encontra a figura, a plasticidade do homem ganha então relevo.
As janelas por onde tocam os sinos são como pórticos para a
103
beleza. Pois, por serem ainda feitos à imagem da natureza, eles
parecem-se com as árvores da floresta.
Logo no início do poema (excerto acima) «florescer» e «erguer» são
aquilo que liga o artificial, as construções do homem, e a natureza, ligação que
se apresenta ela própria como uma construção, uma descrição, que como tal
se afirma através da ênfase num cenário: o «ameno azul» não existiria sem o
sol que dá cor ao que floresce, mas ao mesmo tempo delimita, ilimitando-o,
ligando ao infinito do «azul» (o do firmamento, simbólico; mas também o da
cor que ao ser sublinhada enquanto cor chama a atenção para um equívoco:
aquilo que aparece como suposta emanação do Sol é encontro luz-matéria,
no qual habitualmente esta é esquecida pela suposta invisibilidade do ar, e
para glória da luz) o espaço em que a cena se organiza como cena e assim
instaurando uma transição, uma passagem, em que o “sentir como” (ameno,
tocante) é iniludível como parte do cenário que apresenta uma única acção
– descer. Repare-se que esse espaço não aparece como espaço do voo das
andorinhas, mas sim dos seus gritos (naturais? não, porque se se chama grito
a esse som é porque há nele a projecção de um hábito de antropomorfização
da natureza), que se colocam em contraponto ao ranger (artificial? não, pois é
o vento que move o catavento).
O ameno azul é enquanto cenário algo de imanente-transcendente ao
representado, envolve-o vindo de dentro dele e retira à cena qualquer centro
estável: nem o sol nem a gramática a determinam completamente – descrevese o visível, porém nele se descreve o que não é visível, como o florescer, o
grito, o erguer-se, o dar cor. O cenário, na sua serenidade, participa do
conflito irreparável e criador entre o dizível (inteligível) e o visível (sensível).
Numa distância não-absoluta, o catavento, instrumento que o homem
construiu, lembra-lhe sobriamente a permanente deslocação que o envolve e
o constitui. É semelhante a distância do poema, o qual mostra o movimento
de combinações de palavras que rangem (o “porém”, ou o “mas” são signos da
descontinuidade que é como um ranger) pois, tal como o vento, aquilo que
as move sopra de muitas direcções. Enquanto construção, o poema está mais
próximo do ranger, mecânico, do que do grito ou do canto: nem desarmonia
nem harmonia, mas o choque monótono e repetitivo de variações, a alteração
104
sintáctica como processo de cura e não como sintoma. É de variabilidade
e semelhança que se trata em seguida no poema. Descendo os degraus do
campanário, colocando-se numa perspectiva mais terrena – mais afastada
daquilo que anuncia o culto (o sino) e mais ao rés do habitar quotidiano
– o homem (alguém, qualquer um) mostra-se na sua des-figuração, pois o
que ganha relevo é a sua plasticidade, a sua forma-em-devir, o seu habitar
poeticamente. Desse habitar são sinal as construções que faz à «imagem da
natureza», a qual por sua vez é formada de imagens, entre as quais a evocada
imagem das «árvores da floresta». A continuação da leitura faz-nos notar
que as imagens construídas, imagens «tão simples», não são substituíveis por
outras. Há o temor de as descrever. E isso poderá assinalar não só que do
visto ao dito se não encontra passagem sem alteração, mas também que na
descrição cada palavra é já oscilação entre imagem e significado.
Repare-se na passagem de «tão simples» a «tão sagradas»: «Tão simples
são porém as imagens, tão sagradas, que realmente muitas vezes se teme descrevêlas.» O «sagrado», entendido como o mais simples, o singular irredutível a
qualquer imagem e que por isso mesmo se dá em imagens – em cada descrição
há imagens que se formam e que mostram a sua insuficiência – é inseparável
do sofrimento de não haver, para o homem, o Todo, o dado acabado que
ele possa limitar-se a recolher. Essa mesma falha que o condena a errar é no
poema colocada em confronto com o mitológico enquanto palavra da origem,
a qual institui a crença na plenitude dos deuses : «Os celestiais, porém, sempre
clementes, tudo de uma só vez, como reinos, essas possuem, virtude e alegria».
A imagem que os homens fazem dos «celestiais» (aquilo em que os celestiais
consistem, pois são sempre os homens que os descrevem) é a de uma plenitude
dita como «virtude e alegria». Aquilo que nem os factos permitem ao homem
induzir, nem a lógica o conduz a deduzir, constrói-o ele como imagem ideal
a imitar, como qualquer coisa que, não sendo inteiramente ficção reguladora,
não deixa de dar resposta á contingência do existir, ao mínimo de estabilidade
que a consciência de si pressupõe e onde nasce a exigência ética.
Tudo isto pode o homem imitar. Pode um homem, quando a
vida não é mais do que a soma das suas penas, olhar para o alto e
dizer: assim quero eu ser também? Sim. Enquanto perdurar ainda
105
no coração a amabilidade, a pura, não será no infortúnio que o
homem se mede com a divindade. Será Deus desconhecido?
Será ele manifesto como o céu? – antes o creio. É do homem
a medida. De pleno mérito, mas poeticamente, assim habita o
homem nesta terra.
Ao homem é atribuído o desejo de plenitude, de escapar ao sofrimento e
perdoar as próprias faltas. Esse desejo está na base da imagem que ele faz dos
deuses, ou de Deus, a qual surge da amabilidade, e por conseguinte da relação
com os outros que afirma a sobrevida em cada um, deixando na distância,
inapropriável, o retirar-se da sua obscura singularidade: uma tal imagem de
Deus surgiria do luto enquanto exigência, face à perda, de relação com o outro
na sua irredutibilidade a uma imagem ou ideia. Deus não será desconhecido
porque ele não é senão a sua manifestação, a sua ficção, imagem/discurso,
mesmo se essa imagem é a da sua dissolução no azul do céu, por conseguinte
manifestação distante e próxima: o céu toca a terra, mas dela se afasta sem
limite visível. Essa pode também ser a imagem do «próximo», qualquer outro,
que na sua estranheza se distancia sem limite, como que absolutamente outro.
A imagem de deus vem da capacidade de imaginar sem modelo, da ficção que
é distanciação do conhecido e que nem pretende ser cópia nem garantia de
verdade. O homem tem o poder de inventar e a consciência de que participa
do inventado. Daí a duplicidade da medida que é sem medida: a expressão
«É do homem a medida» tanto pode referir-se a Deus, significando que é
este a medida do homem, como significar que o homem detém a medida –
duplicidade da poesia, ou do habitar poeticamente, que não decorrendo do
pleno mérito do homem, o qual inclui a sua capacidade de imitação eficaz,
vem de uma imitação cuja medida não é a da eficácia, mas a de ser-semmedida, por ser sempre já imitação de imitação, trazendo inscrito o vazio da
origem enquanto força alteradora, desejo. A duplicidade, que advém de no
funcionamento dos signos não haver senão semelhanças e diferenças e, por
conseguinte, não haver uma relação imediata entre signo e coisa – nunca se
suspende. Não há relação imediata com o incomensurável (o céu estrelado
por cima da nossa cabeça, exemplo que Kant dá de sublime), nenhuma falha
da faculdade de imaginação a suprir pela Ideia: a noite apresenta-se já como
sombra da noite, não como imediato puro choque do irrepresentável, que a
Ideia apazigua.
106
Mais pura porém não é a sombra da noite com as estrelas, se me é
permitido dizê-lo, do que o homem, que é chamado uma imagem
da divindade.
Por um lado, o nome do homem, isto é, «homem», é identificado com
uma imagem da divindade, por outro, tanto o homem como a divindade
(incomensurável como “a sombra da noite com estrelas”) se apresentam em
signos que enquanto relação não são mais puros ou menos puros uns que
outros. O signo «divindade» com o qual se funda uma hierarquização do
mundo que tem como centro um exterior dele pertence ao plano horizontal,
não hierarquizado, dos signos.
Apesar de se afirmar pouco depois que «o andamento do trovão,
nunca o impedirão os mundos do Criador» e isso ser dito decorrer de não
existir na terra, nos «mundos do criador» (no qual se inclui o nosso mundo,
o do homem), uma medida, tal não significa que essa medida exista fora
dela, isto é, que exista essa medida. Voltando à já analisada passagem da
primeira estrofe – «Será Deus desconhecido? Será ele manifesto como o céu?
– antes o creio. É do homem a medida» – repita-se por outras palavras o
que já se disse anteriormente: se Deus é manifesto como o céu e se este se
manifesta como indefinido, sem limite, sendo ele «do homem a medida» ele
nada mede, pois o indefinido não pode ser um padrão de medida. É então
uma medida que não mede: ele é a medida do homem na medida em que
este é sem medida. Mas assim sendo, também podemos ler «É do homem
a medida» como pertencendo a medida ao homem, o que implicaria que o
homem conhece Deus como conhece o céu, porque é capaz de colocar/aceitar
o indefinido, possui a medida sem medida, a qual lhe permite medir o que
não é comparável. Chamemos-lhe “medida poética”, querendo com isso dizer
que se trata de resposta, avaliação que é também promessa e que parte da
consciência de não ser um centro estável do mundo, de não haver centro do
mundo, nem dentro nem fora dele, de a consciência não ser ela própria um
centro do homem, pois se o fosse haveria uma medida na terra, aquela que
alguém teria de si. Porém, «nenhuma existe». Numa perspectiva mitológica,
a imaginação atesta a omnipotência de um Criador (os deuses, o sol, Deus),
107
que detém o poder absoluto de dar forma (entenda-se aí uma sinédoque do
poder), do qual a imaginação do homem seria mediadora. A inexistência,
na terra, de uma medida é então referida a uma suposta medida fora dela
(«a essência, a figura»). O que perturba esse quadro (violento e idílico) é a
consciência do natural-não-natural do sofrimento aos olhos dos que habitam
na terra. O que distingue os homens é o sofrimento – a consciência de na vida
não poderem excluir em absoluto o sofrimento e a morte (cada um morre no
seu corpo, com ele desaparece a sua absoluta singularidade; a sobrevida, o que
permanece, fica no sofrimento dessa perda, no luto).
Princípio do amor e do ser-em-comum, a consciência da mortalidade
põe em causa a omnipotência da natureza, mitologicamente figurada num
Criador, e abre a distância do pensamento como discórdia ou seja, como
liberdade: o sofrimento é necessário, mas, a partir dele se coloca o desejo, a força
de sair da arbitrariedade da natureza (é o que se chama liberdade) e com isso o
desejo de ser medida que não espelhe uma medida absoluta, aquela segundo
a qual tudo participa do idêntico. Desejar é pensar: diferenciação, poesia e
ética são indissociáveis. A Natureza não seria o paradigma da beleza (note-se
o «seriam» da primeira frase do excerto que se segue e o que ele implica como
modalização da afirmação, que sugere que dela não há justificação absoluta).
Isso di-lo o pensamento que pensa radicalmente a mortalidade: a morte sem
superação, sem além.
Tantas vezes encontra o olhar na vida seres que muito mais
belos ainda de nomear seriam do que as flores. Oh, sei-o bem!
pois sangrar do corpo e do coração, e deixar inteiramente de
ser, agradará isso a Deus?A alma, porém, assim o creio, deve
permanecer pura, de outro modo alcança o poderoso a águia,
levada pelas asas, com um cântico de louvor e a voz de muitos
pássaros. É isso a essência, a figura.
Assim, «sangrar do corpo e do coração, e deixar inteiramente de ser»,
poderia o homem partilhá-lo com aqueles animais para os quais a morte de
outros é sofrimento e que também eles deixam inteiramente de ser. Mas a
consciência da morte, na sua ligação com a vida, isto é, a consciência, seria
108
aquilo que separa o homem da natureza e que a ela o liga em ficção.
Independentemente de haver ou não resposta para a pergunta
formulada no excerto acima, isto é, independentemente de o sofrimento e a
morte agradarem ou não a Deus, diz-se: “A alma, porém, assim o creio, deve
permanecer pura”. Sublinho “porém” e “deve”: numa e noutra destas palavras
se diz a afirmação decisiva – apesar de tudo, para além de todas as razões, o
haver sofrimento exige. E o que exige ele? Que a alma permaneça pura, não se
retire da terra, não seja imitação do poderoso, de uma forma, essência, figura,
da qual não deve senão separar-se. A alma pertence ao mundo dos signos e à
sua duplicidade, de que se falou acima, manter-se pura será por conseguinte
permanecer como tal, única força de oposição ao que a devora, o Um (o
poderoso) suportado pelo uníssono das vozes que reduzem o seu artifício e se
assemelham num «cântico de louvor» (Note-se aqui a simetria com o início do
poema, onde o canto das andorinhas era «grito»). O poderoso, o Um (Deus),
confundindo-se com a Natureza, ou espelhando-se nela – «É isso a essência, a
figura». Note-se que o separar-se que aqui se propõe como leitura, ecoa uma
passagem do início do poema: «tão isolada se encontra a figura, a plasticidade
do homem ganha então relevo» (sublinhei «plasticidade»).
Na verdade, a primazia do visível (sinédoque do sensível), o que se
«coloca diante dos olhos», dada como manifestação de uma força, figurada no
«florescer», é a primazia da indiferença porque é a rasura da plasticidade do
homem. Repare-se que esta é indissociável do sentir enquanto nele o que passou
e o que é desejado se confundem, excedendo a síntese que é a consciência de
uma situação, aquilo a que chamamos memória ou conhecimento:
Tu, belo riacho, pareces comovente por correres com tanta clareza
como o olho da divindade através da Via Láctea. Conheço-te bem,
e todavia jorram-me lágrimas dos olhos.
O excesso inscreve-se na letra do poema através das relações diferenciais,
não lineares, entre palavras e grupos de palavras que o compõem (esse jogo não
pode ser circunscrito numa só descrição, mas dele pode haver sempre novas
descrições, pois o acaso sempre dele fará parte). Há no entanto no poema
109
passagens, como a comparação no excerto acima, em que o pensamento do
excesso (que não é o absolutamente grande ou pequeno mas o sem medida,
a sua singularidade, porque sem qualidades, ao mesmo tempo maravilhoso e
monstruoso, inidentificável, sem figura) se apresenta mais directamente.
O «como» da comparação poética não visa a analogia, ele liga o que não
se assemelha, essa ligação é corte com uma definição prévia dos elementos
em jogo e deslocação deles pela mútua interferência, pela criação de sentido
metafórico-metonímico. Sendo a capacidade de sofrer (e com ela de alegrarse) aquilo que impede o homem, em sentido genérico, de ser si-próprio, de ter
uma definição, uma figura, é também aquilo que permite a singularidade de
cada um. Nessa medida, o mitologema de que o alto e o baixo se espelham,
como no poema o riacho e a Via láctea, é um anestésico, mas a comparação
poética não o é. Sentir que cada coisa é só aquela coisa, incomparável, é sentila no seu desaparecimento, pois cada coisa só é aquela coisa no mundo (onde
faz sentido, mas não um sentido) que a dá retirando-a, isto é, já no seu luto
que faz as lágrimas jorrar, e com elas o visível turva-se. A crença numa força
primordial – o Criador, a Physis como dom, florescer, ou Luz que torna visível
– seria imediatamente a possibilidade de equivalências entre tudo. Mas não
existe essa medida Absoluta, medida de todas as coisas, o que há são tensões,
cortes, sobressaltos, e nisso os homens, «figuras da criação» (anteriormente
no poema lia-se «o homem, que é chamado uma imagem da divindade»)
destacam-se do resto pela quebra da monotonia.
Vejo florir à minha volta uma vida mais jovial nas figuras da
Criação, pois não é injustamente que a comparo com os tristes
pombos solitários no cemitério. O riso dos homens, porém,
parece encher-me de amargura, pois tenho um coração.
A comparação, da qual é dito não ser injusto fazê-la, opõe o «florir»
de «uma vida mais jovial» ao que seria ausência de emoção (os pombos são
solitários, a possibilidade da morte dos outros não os amargura, a vida deles
não os alegra, são tristes de indiferença). Os homens vivem no medo da
morte (dos outros) e isso retira-os da solidão, fá-los celebrar a vida com os
outros. Mas note-se, a «vida mais jovial» é também riso, corte. Consciência de
110
partilha e consciência de separação fariam ambas parte do sofrimento, relação
entre a vida e a morte, de dois modos diferentes, como se houvesse um riso
que fosse a absoluta solidão, a perda de si, perda das ficções, pura paixão.
Na escrita, «consciência» aguda da mortalidade e «experiência» do morrer,
ambos modos do sofrimento, são dilaceração.
A duração do riso é um corte que celebra a não naturalidade ou falha
do próprio, instaurando um contraste que põe em relevo que nada se separa
em absoluto, nada se isola completamente do fundo em que se recorta e que
lhe dá plasticidade. Contrapõe-se assim ao que seria o instante do fogo, o da
entrega ao Absoluto ou auto-sacrifício, como em Empédocles. Sem abdicar da
crença que alimentava esse desejo, mas aspirando à sobriedade, a Grécia terá
encontrado a jovialidade do «espírito solene», da medida ritual das musas, como
Érato, a amável fonte de júbilo, coroada com flores de mirto que superintendia
a poesia lírica: A «vida mais jovial» é a da saída do dispositivo unificador que é
o mito, é a vida das diferenças, do diferir de si no cálculo das formas. Depois de
desaparecidos os rituais de naturalização que lhes fixavam a letra, as narrativas
míticas, propiciaram motivos para celebrar e assim se distanciar da ligação da
palavra ao efeito imediato. «Mirtos, porém, há-os na Grécia». Num período
que o Romantismo inclinara para a vontade de remitologização, a qual se iria
prolongar pelo século XX, com as consequências que se conhecem, aquilo que
Hölderlin escreveu sobre o trágico a partir das tragédias de Sófocles Édipo Rei
e Antígona, que traduziu, veio perturbar ou interromper a lógica identitária,
a que não escapava a filosofia moderna, nem o conceito romântico de crítica.
Hölderlin encontra nessas tragédias um ponto de interrupção da significação,
que designa como cesura, o qual corresponde a uma viragem rítmica, cisão da
Unidade de uma Ordem, que Deleuze leu como apresentação da forma vazia
do tempo, um tempo fora-dos-eixos em que o anterior e o seguinte deixam
de rimar:
«A saída do kantismo não está em Fichte ou Hegel, mas somente em
Hölderlin, que descobre o vazio do tempo puro e, nesse vazio, o afastamento
contínuo do divino, a cisão prolongada do Eu e a paixão constitutiva do
Eu»3. A semelhança, o sofrimento, a luta com o divino e o fim da Ásia, são os
principais topos da 3ª estrofe de Num ameno azul, cujo início é:
3. DELEUZE, Gilles. Différence et
répétition. Paris : PUF, 1976, p. 161.
111
Quando alguém se olha no espelho, um homem, e aí vê a sua
imagem, como pintada; ela assemelha-se ao homem. Tem olhos a
imagem do homem, tem luz, em contrapartida a lua. O rei Édipo
tem um olho a mais, talvez. Estes sofrimentos deste homem
parecem indescritíveis, indizíveis, inexprimíveis. Se a peça
apresenta algo assim, é por isso.
A imagem que alguém vê quando se olha no espelho é «como pintada»
e «assemelha-se ao homem»: não se assemelha àquele que olha, «alguém»,
«um homem», mas sim ao homem, que não existe, que é conceito de um
indeterminado. Quem olha o espelho vê uma figura, mas não é essa figura
pois enquanto singularidade ele não tem figura (é esse o tema de Lacan num
texto sobre o estádio do espelho). Aquele que olha tem olhos, mas o que lhe
permite ver é a luz ou a capacidade de a reflectir, que ele não tem. Mas se «O
rei Édipo tem um olho a mais, talvez», ele vê diferentemente de quem olha o
espelho. O rei Édipo, na peça de Sófocles, pois é deste que se trata, vê através de
Tirésias, cego, vê através das palavras que ele lhe dirige, e que são, talvez, o seu
olho a mais. Ele apresenta-se como alguém (uma singularidade), por isso os
seus sofrimentos parecem «indescritíveis» «indizíveis», «inexprimíveis», são o
acontecimento, em ruptura com o destino, o tomar para si a responsabilidade,
não como inocente culpado, no dizer de Schelling, mas como responsável para
além da responsabilidade possível. Isso é o que acontece no poema: quando
aquele que escreve vê e se vê, ele vê-se outro, no que apresenta, o que descreve
ou põe em cena, ele vê-se indescritível e vê o indescritível (lembremos a
dificuldade de descrição declarada no início de Num ameno azul). Mas não
serão as narrativas míticas descrições do indescritível? Não o serão os mitos
de Édipo que conhecemos? E todos aqueles mitos que a escrita, desde sempre,
desviou da coincidência com uma acção, um sentido? A relação com o
indescritível – aquilo que o tempo traz em permanente perda, em sofrimento
(e em júbilo nele) –, não tendo um começo, vem dispersa em «riachos» (ver o
próximo excerto do poema), plural, estende-se «como a Ásia» (para a Grécia,
uma figura do estrangeiro). E isso que vem – o sentido de uma finitude que
se infinitiza – são mitos dispersos, detritos, fragmentos, eles próprios sempre
outros, lugares também do fim do mitológico, isto é, da crença no Um.
112
O que se passa comigo, quando penso agora em ti? Como
riachos, impele-me nesse sentido o fim de alguma coisa que
se estende como a Ásia. Claramente, este sofrimento – tem-no
Édipo. Claramente, é por isso. Terá Hércules sofrido também?
Certamente. Os Dioscuros, na sua amizade, não terão suportado
também o sofrimento? Pois lutar com Deus, como Hércules, é isso
o sofrimento. E a imortalidade, na inveja desta vida, partilhá-la, é
também um sofrimento.
A expressão «quando penso agora em ti», coloca o dirigir-se a alguém
não nomeado. Mesmo supondo que há ali pressuposto um destinatário, a
figura deste esbate-se na indeterminação e prevalece o «qualquer um», que
não é exactamente aquele que lê, mas apenas a confiança na resposta. O que
impele aquele que pensa, escreve, a dirigir-se ao outro é dito ser «o fim de
alguma coisa que se estende como a Ásia». Então, a expressão «Claramente
este sofrimento tem-no Édipo», refere-se ao sofrimento por uma perda.
Sofrimento que impele a pensar e que nesse movimento corresponde à paixão,
ao extremo da passividade, e à distanciação dela. A frase seguinte, «Claramente
é por isso», volta a leitura no sentido de se entender que o sofrimento de quem
escreve o texto Num ameno azul é idêntico ao sofrimento de Édipo, ambos são
impelidos, como riachos, pelo fim de alguma coisa que se tornou irrecuperável,
pois esse fim é um dispersar-se, um estender-se como a Ásia, um tornar-se
estrangeiro. Pelo sofrimento, quem escreve torna-se estrangeiro. Mas não
apenas isso: ele partilha o tornar-se estrangeiro. Pela dispersão, subtrai-se à
discórdia. Essa seria a saída do mito e de um certo tipo de heroísmo, o do
indivíduo que se auto-sacrifica a um fim. A haver sacrifício fora do mitológico
prevaleceria dele o que o anula, a sua impropriedade.
As perguntas e afirmações seguintes do poema (ver excerto acima)
parecem indicar que no heroísmo das narrativas míticas a discórdia e o
sofrimento se apresentavam como duas faces do mesmo: a imortalidade
dos filhos legítimos dos deuses introduzia necessariamente a inveja dos
heróis e com ela o sofrimento, o que significa que essas narrativas míticas
não colocavam explicitamente uma relação com o desejo, hipotecando-o à
crença unificadora, o que não significa que tais narrativas não inscrevam
113
na irredutibilidade da sua voz narrativa, no seu plural indefinido, a desconstrução dessa hipoteca, que se pode supor tão antiga como o mundo.
O desejo impossível de realizar, o desejo de fugir ao tempo (imortalidade),
tem como matriz o desejo de pertencer à natureza enquanto necessidade
de eterna repetição: eterno florescer, eterna manifestação de formas belas,
introduzindo assim o desejo de morte. O que retira o homem de tal desejo
é a inseparabilidade de medo e descrença, o atravessar do que unifica pelo
que interrompe – o espaço vazio do nascimento. Ao retirar-se do desejo do
nada, da necessidade, o homem não deseja nada senão esse retirar-se, isto
é, deseja, tem confiança e esperança no que vem, mas em nada que possa
representar como fim do sofrimento. É a partir daí que se coloca o bem e o
mal, ou o belo e o feio, como não necessários – até o sol, símbolo supremo
da natureza, essencial à vida, ao seu florescer e à sua visibilidade, pode causar
sofrimento (veja-se no poema a possibilidade de o sol causar manchas no
corpo e lhe retirar aquilo que se toma como uma primeira forma natural, sob
ele mesmo formada). Se, ao sentir-se estrangeiro à natureza pela reflexividade
da sua consciência, o homem a naturaliza e quer regressar a ela como paraíso
perdido; pela descrença no que essa consciência lhe traz, ele descobre-se sem
falta, em falta de nada, que é a «falta de alguma coisa». É isso, que desvia do
auto-sacrifício, que permite a um «pobre homem viver». Lamentar-se pela
falta de alguma coisa, é já desviar-se do acordo categórico.
Os sofrimentos que Édipo suportou parecem-se com um pobre
homem que se lamenta pela falta de alguma coisa. Filho de Laio,
pobre forasteiro na Grécia! A vida é morte e a morte é também
uma vida.
A semelhança entre o sofrimento de Édipo na tragédia de Sófocles, um
sofrimento intenso para o qual não há figuração exacta (anteriormente no
poema foi dito que «estes sofrimentos deste homem parecem indescritíveis,
indizíveis, inexprimíveis»), e «um pobre homem que se lamenta pela falta
de alguma coisa», é decisiva em Num ameno azul. Através dessa semelhança
coloca-se o habitar (poeticamente) em relação com o pensamento da vida e da
morte – da sua inseparabilidade, isto é, da sua insuperabilidade como condição
114
do pensamento e da historicidade. Édipo, figuração do ser-estrangeiro,
é figuração do sofrimento sem o heroísmo do herói, aquilo que na vida de
«qualquer pobre homem que se lamenta pela falta de alguma coisa» se dá na
não coincidência de si consigo, sem que ele deva essa falha ao Outro – a um
pai (protector ou ameaçador), ou a um destino como cômputo fatal –, pois
ela vem dos outros, do que o faz sofrer, alegrar-se, pensar, conhecer, habitar
poeticamente, do que interrompe as tristes certezas que conquista pelo mérito.
3
Segundo Hölderlin, é a intervenção de Tirésias que em Édipo-Rei instaura
a cesura, «a pura palavra, a interrupção anti-rítmica a fim de se encontrar a
alternância capaz de arrancar as representações numa tal culminância que
o que aparece não é mais a alternância das representações e sim a própria
representação»4. Esta anotação coloca no seu cerne a fala divinatória,
fala profética como vazio de significação que corta a representação, mas
não a faz desaparecer, antes lança sobre si a atenção, colocando em cena a
impropriedade da linguagem, a de os signos não encontrarem antes nem
depois que os justifiquem. A condição da escrita poética seria a desse intervalo
da significação. Daí a sua proximidade com o profético num sentido de fala
do deserto onde o múltiplo encontra uma forma que, não sendo arbitrária,
não tem outra necessidade senão a desse encontro. Uma tal proximidade da
escrita é da ordem da proximidade e do afastamento entre a escrita e a vida
de qualquer «pobre homem que se lamenta pela falta de alguma coisa» e que
promete cegamente pela simples afirmação do seu existir. A forma poética
faz da apresentação dessa indefinibilidade o princípio orientador da sua
construção.
No ensaio «Sobre “A Heroína” de Siegfried Schmid», Hölderlin, depois
de dizer que «os caracteres e as situações desta peça, tal como toda a intriga
são o que eles devem ser também nesse domínio da poesia», esclarece o
115
que deve ser a construção de um tipo de forma poética: «o reflexo fiel, mas
poeticamente percebido e artisticamente representado da vida comum, quer
dizer da vida cujas relações com o todo são mais fracas e mais longínquas e
que, por esse facto, concebida poeticamente é infinitamente significante, em
si altamente insignificante»�.
Não se trata de passar da dispersão (relações com o todo mais fracas e
longínquas) para a unificação. Trata-se de acentuar o movimento da dispersão,
de tornar o insignificante – aquilo que supõe a máxima singularidade –
infinitamente significante. Como se a escrita do poema correspondesse a
paragens da insignificante fluidez da vida, ao corte da fluidez como operação
de insuportável e indescritível implosão da significação insignificante. A forma
poética faz-se na relação com a vida comum, com o habitar poeticamente, em
si insignificante porque o hábito impede que se veja a sua cegueira, os seus
desvios das linhas previamente traçadas. O corte com a representação, em
que as palavras aparecem sem nada representar, é aquilo que as torna opacas,
aquilo pelo qual participam da significação infinita, e vêm assim fazer parte
do mundo, da «vida comum» insignificante, como parte da insubmissão que a
sustenta. Ao ser concebida poeticamente, a vida representada, em si altamente
insignificante, torna-se a matéria de uma invenção quase ilimitada em que
poesia e filosofia se reúnem desviando-se do mito, pois a vida concebida
poeticamente é infinitamente significante. Essa concepção da poesia como
relação poesia-filosofia em nada se assemelha à do texto intitulado O Mais
Antigo Programa do Idealismo Alemão. Ela supõe o completo afastamento,
quer em relação ao mitológico, quer à sutura da filosofia aos mitemas da
poesia.
4
Voltando agora ao texto de Heidegger inicialmente referido, nele a sutura
ao mitológico é claramente enunciada a partir de Hölderlin, referimo-nos aqui
116
apenas ao comentário de «De pleno mérito, mas poeticamente, assim habita
o homem nesta terra», que se pode sintetizar no seguinte: 1. uma definição de
poesia: «mas por poesia (Dichtung) o que nós entendemos agora é a nomeação
dos deuses e da essência das coisas, nomeação fundadora (…) a essência da
poesia deve ser concebida a partir da essência da linguagem (…) a língua
primitiva (Ursprache) é a poesia enquanto fundação do ser (…) Poematisar é
a original nomeação dos deuses (…) A fundação do ser está ligada aos signos
dos deuses. E ao mesmo tempo a palavra poética não é senão interpretação da
voz do povo»; 2. uma estipulação da missão do poeta: «Quanto ao poeta, ele
está no entre-dois, entre aqueles, os deuses, e este, o povo (…) É em primeiro
lugar e unicamente neste entre-dois que se decide quem é o homem e onde
ele estabelece o seu ser-aí. “É poeticamente que o homem habita sobre esta
terra” (…) fundando de novo a essência, Hölderlin começa por determinar
assim um tempo novo. É o tempo dos deuses retirados e do deus que vai vir».
A ideologia nazi é por demais evidente na missão atribuída por Heidegger à
poesia e ao poeta. Entre os deuses e o povo, o poeta é um segundo Führer.
Como nota Philippe Lacoue-Labarthe, existem em Hölderlin muitas passagens
que se adequariam ao comentário de Heidegger, porém, aquilo que ele traz de
importante é justamente o que com tal se incompatibiliza.
5
A noção de “missão do poeta” não é exclusivamente heideggeriana,
ela é pressuposta ou explícita noutras leituras de Hölderlin, nomeadamente
Adorno e Benjamin, com as quais Philippe Lacoue-Labarthe5 se confronta,
considerando por sua vez um imperativo categórico – é preciso – que, na
hipótese que a partir dele coloco é apenas, como o diz uma expressão de
Blanchot, “exigência de escrever”. A intransitividade de uma tal exigência não
remete a escrita para o campo da pura inspiração, no sentido de uma total
ausência de trabalho, de cálculo, pois supõe-se que quem escreve é “pleno
de mérito”, mas também não permite determinar as condições desse trabalho
nem atribuir-lhe uma finalidade, mesmo que fosse a de não ter finalidade.
5. LACOUE-LABARTHE,
Philippe. Heidegger. La politique
du poème. Paris : Galilée, 2002.
117
A exigência de escrever como a exigência de poesia que encontramos
em Hölderlin enquanto exigência colocada aos homens pelo seu serem
finitos-indefinidos, não é delegável em nenhuma figura, nem a do poeta,
nem a do filósofo, nem a do poeta-filósofo ou do filósofo-poeta. Ninguém
vive por um outro, assim como, na expressão de Paul Celan, “ninguém
testemunha pela testemunha” e por conseguinte cada um testemunha por si,
pela sua insignificância de que se tece a significância do mundo, a sua criação
anónima. No sentido em que cada um é, poeticamente, parte sem nome
da transformação do mundo, da sua destinerrância, não cabe a ninguém
traçar tarefas para o habitar poeticamente. Mas, pelo mesmo motivo,
também ninguém tem o poder de determinar qual é a tarefa do poeta em
sentido estrito (aquele que cria formas poemáticas, formas designadas como
poemas): isso aprenderíamos com Hölderlin, com a sua insistência no corte,
no luto, no nascimento – «operações» que não são apenas mérito. Habitar
poeticamente não é necessariamente escrever poemas, formas designadas
como tal, constituídas pela composição singular de palavras que se coloca à
disposição dos outros. Mas a exigência de escrever pode ser entendida como
uma exigência ética, a de participar da alteração do mundo, como acima se
disse, fora de qualquer determinismo e messianismo.
A transformação do mundo não é apenas a consequência de
competências, mas de desvios que (des)figurando aquilo que se apresenta
são, por não serem verbo divino nem tecnologia, manifestações precárias
que atravessam em graus diferentes de intensidade todo o viver-em-comum.
As artes, incluindo aquela que se designa por “poesia”, são lugares de intensa
(des)figuração, incompatíveis com uma figura ou solução final, e como tal
não são fundadoras, o que as colocaria a par do Estado. O poeta em sentido
estrito, aquele que compõe uma forma escrita cuja estranheza é irredutível,
não foi investido de nenhuma missão ou tarefa, e não pode sem autoritarismo
pretender estar no lugar de uma relação privilegiada com qualquer suposta
verdade (do ser, da vida, da linguagem). Aquele que o lê só arbitrariamente
pode atribuir-lhe esse lugar, mesmo que para tal encontre justificação no que lê.
118
A leitura que Heidegger fez de Hölderlin e deu continuidade à tradição
romântica enquanto prescrição de uma sutura da filosofia ao poema ou ao
mythos, tem como fundamento uma concepção da poesia que lhe atribui (e
ao poeta) a missão de “educadora da humanidade” – lugar de manifestação
da verdade fundadora e da profecia, sua desvelação antecipada – justificada
a partir da declaração de originariedade do mito como paradigma de uma
função por excelência da linguagem. Essa missão radica na sua identificação
com uma força superior da linguagem que faz dela escuta do ser, seu médium,
o que circularmente vai demonstrar recorrendo à poesia de Hölderlin, na qual
encontrou versos ou expressões em que essa crença é explícita.
Como por definição não pode haver verdade superior à verdade, a filosofia
só circularmente pode “justificar” a superioridade da poesia, isto é, só pode
apresentar como poesia aquilo que considera declarado na poesia instituindose como seu testemunho válido ao instituí-la como lugar da desvelação. Se
se entender que a sutura da filosofia à poesia corresponde à ocultação dessa
auto-instituição através da ilusão de um diálogo entre dois modos de relação
com a Verdade, e que como tal é da ordem da construção da crença numa
autoridade mística, o desfazer desse tipo de sutura implica o abandono do
mitológico ou do teológico, indissociável do pensamento das linguagens, dos
textos, das frases e dos versos na sua irredutível singularidade, pluralidade
e infinita abertura, o que significa um pensamento não-determinista da
origem, incompatível com qualquer tipo de messianismo. Vão neste sentido
as Anotações que Hölderlin fez das tragédias Édipo e Antígona, de Sófocles,
e outros textos do poeta que Heidegger não comentou e que constituem,
na sua enigmaticidade, uma possível afirmação de desvio da onto-teologia,
através da relação-separação finito-infinito, a qual se mostra indissociável da
tecnicidade da origem, da différance enquanto assemelhar-se na ausência de
algo a que se assemelhar, luto imperfeito, idealização impossível.
Importa salientar que, enquanto construção rigorosa, alguns poemas
de Hölderlin, nomeadamente os hinos tardios, colocam a exigência de não
serem lidos linearmente. Neste sentido é fundamental o texto de Adorno
«Parataxe», não só pela crítica das leituras de Heidegger, mas sobretudo por
aquilo que suporta essa crítica: a atenção ao desfazer da sintaxe enquanto
sistema de subordinações na poesia de Hölderlin. A composição poética
119
aparece aí justamente como saída dos constrangimentos da lógica e das suas
regras ou modelos de ordenação, e como construção de uma forma que, tendo
como matéria a linguagem não instrumental, é organização de um sistema de
tensões em que o que é histórico se dá de maneira original. Nesse texto, em
que também se demarca Hölderlin do «princípio realista da poesia», lê-se:
«fazendo voar em estilhaços a unidade simbólica da obra de arte [Hölderlin]
lembra o que há de mentiroso na reconciliação do universal e do particular
no seio do irreconciliado».6 Supõe-se aqui a relação da poesia com a história
enquanto processo que põe fim ao «irreconciliado». É a ficção de uma origem
que assim se coloca, o que permite a Adorno dizer a propósito dos últimos
hinos do poeta: «A língua pura, de que eles figuram a ideia, seria uma prosa
análoga aos textos sagrados»� . Continuando a poética do Romantismo de Iena,
Adorno reconduz a poesia a uma produção da linguagem: «Em Hölderlin o
movimento poético abala assim a categoria do sentido (…). Ao mesmo tempo
que o sujeito legislador, a sua intenção, quer dizer a primazia do sentido, é
cedida à linguagem (…) Hölderlin procurou salvar a linguagem ameaçada
pelo conformismo, o «uso», elevando-a, na sua liberdade de sujeito, ele próprio
acima do sujeito»7. Convocando Benjamin em apoio da sua concepção de
linguagem, Adorno considera que a poesia de Hölderlin não tem relação com
a teologia senão porquanto «ela é um ideal, ela não se lhe substitui. A distância
que ela toma em relação àquela é o que há nela de eminentemente moderno»8.
O ideal é a reconciliação, que «deve ser, concretamente, a do interior e do
exterior, ou, para falar uma última vez em termos idealistas, do génio e da
natureza»9. Opondo-se ao mito enquanto Mesmo eterno, a reconciliação
supõe uma afinidade entre génio (espírito) e natureza, baseada na assunção
da mortalidade enquanto perda da vontade de domínio, passividade. A
passividade aparece como fuga ao mito enquanto Unidade de significação, e
supõe uma outra Unidade, a da natureza perdida no espírito que a domina, a
do sem-sentido, em que a linguagem seria nomeação. O conteúdo da poesia
de Hölderlin, o seu teor de verdade, consistiria na passividade, na qual a
vida viria inscrever-se. Embora, como nota Lacoue-Labarthe, a poesia de
Hölderlin não seja de modo nenhum estranha ao desígnio remitologizador
e grecizante, a leitura de Adorno ao colocar a poesia como perda de sentido,
toca num aspecto fundamental, o da dispersão da significação, sem unidade
apresentável. E no entanto, não se pode deixar de pensar o sentido, isto é, as
6. ADORNO, Theodor W.
Notes sur la littérature. Paris :
Flammarion, 1974, p. 327.
7. Op. cit., p. 337.
8. Op. cit., p. 338.
9. Op. cit., p. 339.
120
tematizações em que o poema insiste e que estilhaça, as imagens que desloca
e tudo aquilo que uma mestria põe em jogo excedendo-se a si própria. O
problema é o do «próprio» da «poesia», nome dado ao que não é uma forma
construída de acordo com certos critérios, a sua historicidade implica que não
haja critérios prévios. Mas para Adorno a sua relação com a «vida comum»
impõe-lhe uma missão, a de vanguarda na destruição do sentido: o poeta não
é apenas um dos que habitam poeticamente na terra, mas é uma excepção, a
excepção da passividade na qual se expõe o que só pode ser obra da linguagem
que se desfaz do seu uso instrumental, dominador .
Essa ideia da excepção da arte em relação à «vida comum» é aquilo
que de algum modo aproxima Adorno e Benjamin de Heidegger: eles não
partilham apenas uma concepção da linguagem enquanto relação com
a origem, mas igualmente, no que vão ao encontro da tradição, a ideia do
génio como passividade (ao que antes supunha receber dos deuses o poema
feito substitui-se a ideia de um dom de, por um trabalho árduo da forma,
reconciliar interior e exterior) na qual vem eclodir a energia da linguagem,
a phusis que se desvela, ocultando-se. Enquanto em Heidegger a autoridade
da origem é a do mito, Adorno e Benjamin colocam uma autoridade mística
como origem da poesia. A partir da colocação dessa autoridade, embora em
novos moldes, coloca-se sempre uma transcendência, um exterior do mundo
do qual não se pode senão fazer derivar um sistema de hierarquias, um sistema
de competências. Ora, em certos momentos da poesia, em ensaios, cartas e nas
Anotações, Hölderlin vai justamente contra a tendência para assim proceder.
A poesia enquanto construção de uma forma escrita é então uma actividade
sem compromissos particulares ou universais, um jogo a que se não pode
pedir contas nem impor limitações, como a tudo o que da «vida comum»,
da habitação em comum, se não identifica com o mérito, sem deixar de o
pressupor. Não há então como atribuir ao poeta qualquer tarefa, nem à poesia
qualquer exemplaridade.
Philippe Lacoue-Labarthe chama a atenção para o facto de, no final de
O Conceito de Crítica no Romantismo Alemão – apoiando-se nas referidas
Anotações e chamando a atenção para o cálculo da forma, para o seu carácter
mecânico –, Benjamim se distanciar do esoterismo e messianismo para
colocar uma tese decisiva em relação a Hölderlin, a tese da sobriedade da
121
poesia, do devir prosa da poesia. Esta sobriedade não seria incompatível com
o mito, mas sim com a mitologia, tal como Benjamin o fez notar no texto
«Dois poemas de Friedrich Hölderlin», de 1915. Trata-se de, fora da crença
nos mitos como totalidades delimitáveis, entender os mitos no sentido em
que Thomas Mann usa a expressão “a vida no mito” que é “a vida em forma de
citação”, a vida na linguagem.
Colocar ou não uma «tarefa do poeta» depende de se esclarecer que
ficção se constrói quando se pensa essa vida em forma de citação: se a citação
do mito implica a repetição como estruturadora do mundo, ou se implica uma
escrita em que repetir é já da ordem do diferenciar, do diferir, do diferendo,
isto é, da iterabilidade, sem qualquer prevalência de um anterior enquanto
tal. A distinção que o texto de Thomas Mann faz entre a «vida no mito» –
«uma vida que se exprime em citações, a vida no mito, é uma cerimónia
religiosa; enquanto tal, ela torna-se uma cerimónia solene, a realização por
um celebrante de um rito prescrito, um ofício, uma festa [...]. Uma festa é
o eclipse do tempo, um acontecimento, uma acção solene que se desenrola
segundo os dados primitivos conservados pela tradição»10 – e a arte, embora
pudesse deixar em aberto o entendimento desta como desmitologização (a
relação da arte com o mito entendida como «farsa», «execução teatral do
rito» pela criação de um «presente facecioso»), inclina-se nitidamente para
a remitologização, e com ela investe o escritor de uma tarefa de formação
dos outros, conduzidos a partir de uma menoridade, um infantilismo que o
escritor retira ao inconsciente mítico e consegue fazer «jogar a cada instante na
limpidez da consciência tanto quanto na profundidade infantil da atenção» 11.
A tarefa do escritor, tarefa de formação, é então claramente a de proporcionar
um pai: « esta formação e esta marca que vos imprime o que se admira e o
que se ama, é a identificação com a imagem de um pai escolhido por simpatia
íntima» 12.
10. MANN, Thomas. Noblesse de
l’esprit. Paris, 1960, p. 206-207.
11. Op. cit., p. 209.
12. Op. cit., p. 208.
A ideia de citação como repetição de uma memória imemorial, de um
começo, justificaria uma exemplaridade colocada em bases místicas, uma
autoridade mística do escritor, que em última instância teria um fundamento
genético (a perigosa associação entre génio e genos): o poeta teria o dom
especial de desencadear a memória imemorial, aliando paradoxalmente esse
dom – a capacidade de auto-sacrifício, de passividade, que o colocaria em
122
contacto ou afinidade com aquilo que é negado pelo espírito, ou pela técnica –
ao mérito (cultura, erudição, raciocínio, etc.). Do poeta como figura exemplar
ao poeta como fundador, não haveria muita, talvez nenhuma, distância.
O problema que importa colocar não é o da figura do poeta, da
função que teve na conservação das tradições e na ruptura delas. Também
não é o do cânone, o daquilo que se foi sedimentando como história. É o da
essencialização da poesia e do poeta: qualquer pretensão de estabelecer uma
tarefa do poeta separa-o do habitar poeticamente que é o nosso, o de qualquer
um, e destaca-o como figura de pai.
A questão é justamente a do nascimento: quando é que se nasce? Nascese de uma vez por todas e fica-se preso à «cena primitiva»? O nascimento é a
morte? Lacoue-Labarthe, num texto com o título «O nascimento é a morte»
escreveu: «Qualquer existência – o facto de existir, ou de que há existência – é
a recordação daquilo de que não existe, por definição, nenhuma recordação:
o nascimento»13. Quanto à literatura: «a origem da literatura seria, também
ela, imemorial. Com a única diferença, todavia, de que ela se apoiaria numa
recordação ainda mais impossível, mesmo se constitui o seu reverso exacto,
do que a impossível recordação do nascimento: a recordação da morte».14
13. LACOUE-LABARTHE,
Philippe. Duas Paixões. Trad.
Bruno Duarte. Lisboa: Vendaval,
2004, p. 11-2.
14. Ibidem.
A distinção que Lacoue-Labarthe faz entre a existência, de qualquer
um, e a literatura, assenta na ideia de um irrepetível associado ao nascimento,
a qual só pode introduzir uma vinculação a um anterior, o Criador (mãe,
Deus, Phusis). O existir repetiria sem repetir (recordação sem recordação)
esse momento imemorial. Poderia então dizer-se, forçando a leitura, que
a repetição é já literatura, no sentido de ficção, o que implicaria que: 1. a
distinção proposta entre o existir e a literatura não existe. 2. o nascimento
é também morte, ou nos termos de Hölderlin: «a vida é morte e a morte é
também uma vida». Assim se desfaz uma outra hipótese de pensar a tarefa
do poeta: o que o distinguiria não seria o génio como dom à partida, mas a
entrega à literatura, a qual seria, ela, apenas nascimento e morte.
Colocar a relação entre vida e morte como a condição da existência é
deixar implícito que não se nasce e morre de uma vez: a cesura assinala isso, o
haver acontecimento, não apenas na literatura que o pensa, o assinala, mas no
existir como exigência de justiça. Daí que não seja justo falar da poesia como
123
«poesia da poesia» num sentido estrito (apenas se escreve poesia a partir da
poesia,ou a poesia só se pensa a si própria) ou defini-la como reflexo da vida,
ou afinidade com ela (o que quer que se entenda por vida). Impropriedade,
tanto a há no habitar poeticamente como no poema. Daí que deste não se
possam directamente tirar lições para a existência, que ele, ou o poeta, não
possa ser investido de qualquer tarefa. Da arte e do poema poderia dizerse: também aí a impropriedade se manifesta. Lacoue-Labarthe fala de duas
cenas que vêm dos poemas homéricos, a da cólera e a da experiência. Pode
dizer-se que nessas duas cenas – a da cólera como exigência de justiça sem
fim, sem juízo final, e a da experiência como confiança e risco – se trata de
impropriedade, desejo, abertura. Pelo que, só temos que as considerar como
não sendo apenas da literatura, nem do ocidente.
Concluindo, no seu mais imponderável, na sua máxima singularidade,
um poema toca-nos inexplicavelmente, de estrangeiro a estrangeiro. Disso
não há nada a dizer, ou a exaltar, ou a explicar, embora se possa querer
aprender o poema de cor. Não é que este não tenha consequências, mas a sua
extrema singularidade, que põe em jogo a nossa auto-imunidade, torna-as, se
elas existem, indetermináveis. Talvez não haja o poema puro, absolutamente
fechado e, no seu fechamento, defendendo-se, ameaçando o exterior. Se o
houvesse diríamos apenas que há poemas como há o ouriço: eles sujeitos
ao acidente e nós sujeitos a podermos ser feridos por eles15. Por conseguinte,
estamos sempre já na impropriedade literária, aquela em que poesia, ficção
e filosofia se contaminam. A exigência de justiça como exigência de (e da)
literatura só pode ser também exigência de experiência, pois da origem não há
senão ficções em permanente alteração, aquilo mesmo porque não há destino.
Destacando do poema Num ameno azul a frase final, «A vida é morte e a
morte é também uma vida», é preciso pensar a poesia como aporia, exigência
de «experiência interminável», que é preciso manter para que haja decisão,
constituindo-se assim, como escreveu Derrida, um duplo dever: «A forma
mais geral e portanto a mais indeterminada deste duplo e mesmo dever, é que
uma decisão responsável deve obedecer a um «é preciso» que não deve nada,
a um dever que não deve nada, que deve não dever nada para ser um dever, que
não paga nenhuma dívida, um dever sem dívida e portanto sem dever»16.
15. Alusão a Jacques Derrida que
em O que é a poesia comenta um
fragmento de F. Schlegel em que
o fragmento é apresentado como
um ouriço.
16. DERRIDA, Jacques. Apories.
Paris : Galilée, 1996, p. 37
124
A tensão, a discórdia, a parataxe do poema Num ameno azul,
«conduzidas», na leitura que neste texto se apresentou, a algumas teses, não
deixaram de existir. Teses e argumentos só serão justas em relação ao poema
pelo que nelas houver de experiência, de resposta – é esse o seu risco e a
sua nenhuma autoridade. Esquivar a leitura de um texto (e com mais razão
de um poema) à tematização, argumentação ou formulação de teses ou, pelo
contrário, pretender determinar o seu conteúdo de verdade, seria manter
a tradição da distinção entre forma e conteúdo, situando-se na história da
filosofia (isto é, do platonismo). «Literatura» para além de ser a instituição
moderna de um determinado tipo de direito à escrita, terá sido, desde sempre,
e não só no ocidente, a composição verbal que atravessando os discursos impede
que eles se fechem em histórias (da filosofia, da poesia, da literatura).
125
Anexo
Tradução de [In lieblicher Bläue...]
[No ameno azul…]
Friedrich Hölderlin
Num ameno azul floresce, com o telhado metálico, o campanário. À sua
volta pairam os gritos das andorinhas, cerca-o o mais tocante tom azul. Acima dele
ergue-se no alto o sol, e dá cor à chapa metálica; ao vento porém, lá em cima, canta
silenciosamente o catavento. Quando alguém desce então aqueles degraus, abaixo
do sino, é uma vida serena, pois quando assim tão isolada se encontra a figura, a
plasticidade do homem ganha então relevo. As janelas por onde tocam os sinos são
como pórticos na sua beleza. Pois, por serem os pórticos ainda feitos à imagem da
natureza, parecem-se com as árvores da floresta. Mas também a pureza é beleza.
No interior, a partir do que é distinto forma-se um espírito solene. Tão simples são
porém as imagens, tão sagradas, que muitas vezes realmente se teme descrevê-las.
Os Celestiais, porém, sempre clementes, tudo de uma só vez, como ricos, possuemnas, virtude e alegria. Tudo isto pode o homem imitar. Pode um homem, se a vida
não é apenas a soma das suas penas, olhar para o alto e dizer: assim quero eu ser
também? Sim. Enquanto perdurar ainda no coração a amabilidade, a pura, não será
infortunadamente que o homem se mede com a divindade. Será Deus desconhecido?
Será ele manifesto como o céu? — antes o creio. É do homem a medida. De pleno
mérito, é poeticamente que habita o homem nesta terra. Mais pura porém não é a
sombra da noite com as estrelas, se me é permitido dizê-lo, do que o homem, que é
uma imagem da divindade.
____________________
Existirá na terra uma medida? Nenhuma existe. Pois o andamento do trovão,
nunca o impedirão os mundos do Criador. Também uma flor é bela porque floresce
sob o sol. Tantas vezes encontra o olhar na vida seres que muito mais belos ainda de
nomear seriam do que as flores. Ó, sei-o bem! Pois sangrar do corpo e do coração, e
deixar inteiramente de ser, agradará isso a Deus? A alma porém, assim o creio, deve
permanecer pura, de outro modo alcança o poderoso a águia, sobre asas, com um
cântico de louvor e a voz de muitos pássaros. É a essência, a figura. Tu, belo riacho,
brilhas comovente, quando corres tão claramente como o olho da divindade através
da Via Láctea. Conheço-te bem, e todavia brotam-me lágrimas dos olhos. Vejo florir
à minha volta uma vida mais jovial nas figuras da Criação, pois não as comparo
injustamente com os tristes pombos solitários no cemitério. O riso dos homens,
126
porém, parece causar em mim uma amargura, pois tenho um coração. Gostaria eu
de ser um cometa? Acredito que sim. Pois têm a celeridade dos pássaros; florescem
ao contacto do fogo, e na sua pureza são como crianças. Aspirar a algo de maior, a tal
não pode afoitar-se a natureza do homem. Também a alegria da virtude merece ser
louvada pelo espírito solene que sopra por entre as três colunas do jardim. Uma bela
jovem tem de coroar a fronte com flores de mirto, porque é simples, de acordo com o
seu ser e com o seu sentimento. Mirtos, porém, há-os na Grécia.
____________________
Quando alguém se olha no espelho, um homem, e aí vê a sua imagem, como
pintada; ela assemelha-se ao homem. Tem olhos a imagem do homem, mas tem luz,
pelo contrário, a lua. O Rei Édipo tem um olho a mais, talvez. Estes sofrimentos
deste homem parecem indescritíveis, indizíveis, inexprimíveis. Se a peça apresenta
algo assim, é por isso. O que se passa comigo, que penso agora em ti? Como
riachos, impele-me nesse sentido o fim de alguma coisa que se estende como a Ásia.
Claramente, este sofrimento — tem-no Édipo. Claramente, é por isso. Terá Hércules
sofrido também? Certamente. Os Dioscuros, na sua amizade, não terão suportado
também o sofrimento? Pois lutar com Deus, como Hércules, é isso o sofrimento.
E a imortalidade na inveja desta vida, partilhá-la, é também um sofrimento. É
também um sofrimento, porém, quando um homem se vê coberto de sardas, e fica
completamente recoberto de inúmeras manchas! É o que faz o belo sol — pois tudo
puxa para cima. Rege o trajecto dos jovens com a atracção dos seus raios, como com
rosas. Os sofrimentos que Édipo suportou parecem-se com um pobre homem que se
lamenta pela falta de alguma coisa. Filho de Laio, pobre forasteiro na Grécia! A vida
é morte, e a morte é também uma vida.
(tradução de Bruno Duarte)
F. W. Waiblinger, Phaëthon, Stuttgart Verlag (Friedrich Franckh), 1823.
127
kafka e
derrida:
a origem
da lei
Marc Crépon
128
kafka e derrida: a origem da lei
Marc Crépon1
A partir do momento em que nos questionamos sobre a relação entre
direito e literatura, um terceiro termo logo vem à mente sem que saibamos
previamente que estatuto conferir àquilo que ele designa (o de uma disciplina,
de um saber ou de uma ordem do discurso): a filosofia. Antes de tudo, há
tempos ela faz tanto de um quanto de outro seu objeto: existe uma “filosofia
da literatura”, assim como existe uma “filosofia do direito”. Mas, acima de tudo,
ao fazer da origem da lei uma de suas questões recorrentes, ela não deixou de
apelar para as “ficções” a fim de tentar responder ao seu enigma. Só para citar
dois exemplos, é assim que acontece na narrativa proposta por Rousseau com
a saída do estado de natureza no Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens. E o mesmo acontece no modo com que
Freud relata a origem da culpabilidade, do interdito e da lei – logo, de todas as
instituições morais e jurídicas –, em Totem e tabu, com sua história da horda
primitiva e do assassinato do pai. Mas uma pergunta surge no mesmo instante:
podem tais textos ser considerados “literários”? Qual o estatuto deles? E quem
está em condições de julgá-los? A qual tribunal devem eles se submeter para
que um veredito seja pronunciado a seu respeito? O dos juristas, o dos teóricos
da literatura, o dos filósofos, ou dos psicanalistas?
Existem, sem dúvida, ao menos duas maneiras de pensar a relação entre
o direito e a literatura. A primeira, extrínseca, refere-se às novelas, romances
ou dramas que têm o rigor da lei, do aparelho ou da máquina judiciária
como objeto – que, em outras palavras, fazem da escrivania, da pretória, do
tribunal e dos processos, com seu cortejo de interrogatórios, de testemunhos,
Professor e Diretor de Pesquisa no CNRS (Archives Husserl). Diretor do Departamento de
filosofia da École Normale Supérieure.
1
129
requisitórios de veredictos, seu “assunto”. Como sabemos, a descrição
que implica uma tal relação pode, assim, pretender-se tanto realista, nas
fronteiras de uma pesquisa sociológica, quanto pode se mostrar fantasmática,
pesadelesca ou alucinatória. Nesse segundo caso de figura, não é apenas o
aparelho judiciário que está em questão, mas [também] o “imaginário sobre a
justiça”, tal qual ele determina nossa ligação com a lei, e as diferentes afeições
que o complexificam ou o contaminam. Se é verdade, com efeito, que a ligação
com a lei jamais é puramente racional, mas ao menos igualmente afetiva, e
por vezes até “mais-que-afetada” – ansiosa, angustiada, senão angustiante – é
evidentemente no espaço dessas afeições (e inclusive no desejo ou na loucura
pela lei) que a literatura também pode achar de fazer do direito seu objeto. Tal
contribuição, então, não é desprezível. Desde o instante que a ligação com a lei
é um elemento constitutivo da gênese de cada subjetividade – ou, para dizer
ainda de outro modo, que tal ligação ocorre na singularidade de cada um, tal
qual ela é para todos, impermutável e insubstituível –, é essa singularidade
que a literatura faz conhecer e que ela lembra ao direito.
Mas existe uma segunda relação (aquela que evocávamos no começo),
que é ainda de uma outra complexidade. Ela se constrói em torno de uma
dupla incerteza: a da origem da lei e a da literariedade do texto literário. Ou
mais, ela articula entre ambas duas questões essenciais: a da acessibilidade
(ou da inacessibilidade) dessa origem e a da possibilidade da narrativa (ou
de sua impossibilidade) que pretende lhe dar acesso. Acontece que, assim
que entramos na ordem desses prefixos negativos (a inacessibilidade da lei,
a impossibilidade da narrativa), uma obra logo chama a atenção: a de Kafka,
assentada sob o signo de uma dupla incompletude e de uma dupla busca
inalcançada; aquelas dos heróis kafkanianos que jamais chegam a saber de
onde vêm as leis, os decretos, os motivos do julgamento que lhes são aplicados
e aquelas das narrativas que, para muitos dentre eles, não alcançam seu fim.
Por isso, as narrativas de Kafka não são muito estranhas à primeira
relação descritiva, que acabamos de evocar. Se é verdade que elas permitiram
numerosos comentários, como é do conhecimento de todos, elas se distribuem,
em todo o caso, entre duas constelações receptivas que coincidem com essas
duas grandes orientações. A primeira reúne, nos anos 1930 e 1940 – marcados
pela ascensão dos fascismos na Europa, pelas políticas discriminatórias, pelo
130
exílio, pela deportação e pelo extermínio dos judeus da Europa –, as primeiras
leituras de Hanna Arendt, Walter Benjamin, Günter Anders ou, ainda, Thomas
Mann. O traço singular da constelação que esses primeiros leitores esboçam
é o que eles têm em comum ao ler, ao comentar ou ao prefaciar as narrativas
de Kafka, na situação de terem de fugir de seu próprio país – compartilhando
com K, o “herói” de O Castelo, essa situação de “estrangeiro” ou de “exilado”
que expõe aquele que a suportou para viver na expectativa de uma decisão
declarada que lhe reconheça o direito de existir no lugar em que chegou. No
universo de Kafka, eles descobrem sucessivamente a descrição ou a profecia
do pesadelo no qual a Europa está se precipitando, à medida que cada novo
decreto, cada nova lei, identifica-se com uma ameaça à liberdade e aos direitos
fundamentais. A segunda, 40 anos mais tarde, nos anos 1970 e 1980, agrupa
uma outra geração de filósofos: Gilles Deleuze e Félix Guatarri, Jean-François
Lyotard e Jacques Derrida; sem mencionar Maurice Blanchot que, dos anos 40
aos anos 80, não deixa de voltar a Kafka. Ainda aí suas diferentes abordagens
não deixam de ter correspondência: todas elas têm em comum se interrogar,
com base em propósitos diversos, a respeito da função política dessas narrativas
como “política da literatura”. De uma maneira ainda mais geral, elas se apoiam
nas narrativas de Kafka para pensar a “essência” ou a “função” da literatura,
naquilo em que esta é inseparável de uma reflexão sobre o direito.
Mas essas duas grandes orientações – a que busca na literatura uma
descrição de nossa relação, real ou fantasmal, com a lei e com o aparelho
judiciário e a que se questiona sobre a possibilidade de uma narrativa que
dê acesso à lei, a sua origem ou ao seu fundamento – são elas rigorosamente
separáveis? Ao contrário, não é seu entrelaçamento ou seu nó que as narrativas
de Kafka nos fazem experimentar e imaginar? Supondo que mantenhamos tal
hipótese, existe ao menos um texto que permitiria pensá-lo: a curta narrativa
intitulada Diante da lei – ainda mais se, de fato, quisermos nos lembrar que,
antes de ser desmembrada para constituir uma narrativa publicada à parte, ela
pertencia a O Processo. Ela é narrada a K, com efeito, pela boca de um padre,
embora este suspeite de todos aqueles que aparentam ter certa antipatia por ele.
No romance, por outro lado, essa narrativa dá lugar àquilo que se assemelha a
uma verdadeira exegese talmúdica que, a partir daí, universalizou-se a ponto
de não contarmos mais somente as interpretações em todas as línguas, mas
131
[também] as reexibições teatrais (reprises), as reescrituras que ele permitiu –
começando pelas de Coetzee em O Cio da Terra: Vida e Tempo de Michael K
ou de Boubacar Boris Diop.
Todavia, é seguindo os passos de uma delas em especial que nos
colocaremos nas páginas que se seguem. Trata-se da leitura que Derrida
propõe em um texto intitulado “Préjugés” e pronunciado por ocasião de uma
década de Cerisy dedicada ao trabalho de Jean-François Lyotard. Agradalhe, mais do que a ninguém, com efeito, ter reposto, na leitura de Kafka, a
dupla questão da acessibilidade da origem da lei e da possibilidade de uma
narrativa “literária” que permitiria pensar tal origem, lá onde se lança a tensão
paradoxal entre a generalidade ou a universalidade da lei e a singularidade
absoluta de toda ligação com essa mesma lei.
I
A narrativa é conhecida; conta a história de um “homem do campo” que,
tendo chegado à porta da lei, fica contrariado com a oposição do guardião que
lhe proíbe a entrada. Durante anos ele espera, contrariando-se com a mesma
recusa a cada vez que ele renova sua solicitação. Consumido, envelhecido, acaba
ficando surpreso por ser, há tanto tempo, o único a reivindicar um acesso à lei;
e ele obtém a seguinte resposta: “aqui, nenhum outro, a não ser você, podia
adentrar, pois essa entrada só foi feita para você, agora vou embora e fecho a
porta2.”. Por conseguinte, eis que aí se apresenta a questão da acessibilidade
à lei (ou, antes, de sua inacessibilidade, do mistério ou da opacidade de sua
origem), como Derrida não deixará de recordar. Mas de imediato o autor de
“Préjugés” igualmente faz a pergunta que associa à indagação sobre tal origem
uma interrogação sobre a definição ou a delimitação da literatura, como se as
duas temáticas fossem, em realidade, indissociáveis: “A dupla questão seria
então a seguinte, escreve ele: ‘quem decide, quem julga, e de acordo com quais
critérios, quanto ao pertencimento desta narrativa à literatura?’3”.
2. Diante da Lei de Kafka,
citada em: DERRIDA, Jacques.
“Préjugés” In: La faculté de juger.
Colloque de Cerisy: Les éditions
de Minuit, 1985.
3. DERRIDA, Jacques. “Préjugés”,
op. cit., 1985, p. 104. [N. do T.]:
a tradução dessa e de todas as
outras citações neste texto é nossa.
132
Não é por acaso que começamos aqui citando o fim do texto: “Aqui,
nenhum outro, a não ser você, podia adentrar”. Desde a primeira leitura, parece,
com efeito, que, se esse texto pode passar por emblemático das relações entre
o direito e a literatura, é na medida em que ele coloca em perspectiva a ligação
paradoxal entre a generalidade da lei e a absoluta singularidade daquele ao
qual ela se aplica. No que se refere à lei, poucas narrativas terão mostrado, de
fato, tanto quanto as de Kafka, a que ponto a ligação que se tem com ela se
inscreve singularmente no corpo de cada um, em sua voz, em seus gestos e em
suas posturas, em sua maneira de se manter ereto ou inclinado, à imagem das
silhuetas que o autor de O Processo desenhava. Longe de ser abstrata, estranha
(étrangère), a sua vida, ela pertence a sua história mais íntima. Ninguém sabe,
no mais, quando isso começou e como ela foi incorporada. Sem dúvida, essa
incorporação é ela mesma, com a consciência de nossa finitude, a parte mais
secreta daquilo que foi imposto a nós, a nossa revelia. Por isso, ninguém pode
ignorar que se tem de viver com ela, por toda sua vida. É por isso que, se a
origem da ligação com a lei permanece indeterminada, pelo menos seu fim
é conhecido. Essa longa duração é o primeiro tema de Diante da lei. Não
sabemos que idade o homem do campo tem quando ele se apresenta a sua
porta para adentrar na lei, mas sabemos quando a história termina: no limiar
da morte. Além do mais, a narrativa, não obstante muito curta, é pontuada de
observações que evocam o tempo que passa, inexoravelmente, esperando por
uma resposta e uma solução:
...o guardião lhe dá um banquinho e faz com que se sente ao
lado da porta, um pouco afastado. Lá ele permanece sentado
por dias, anos. [...] por anos e mais anos, o homem observa o
guardião, quase sem interrupção [...] mais tarde, ficando velho,
ele se restringe a resmungar. Ele volta à infância [...]. Agora, ele
não tem muito mais tempo de vida. Antes de sua morte, todas
as experiências, por tantos anos acumuladas em sua cabeça, vão
dar em uma pergunta que até o momento ele não tinha feito ao
guardião. Ele [então] lhe fez um sinal porque [já] não pode mais
mover seu corpo enrijecido4.
4. Diante da Lei de Kafka, citada
por Derrida em “Préjugés”, op. cit,
1985, p. 100-01.
133
Mas a lei não se deixa ser conhecida e o acesso continua fechado.
Em suma, desconhecemos inclusive que tipo de lei está em questão: lei da
natureza, lei moral, lei jurídica, lei fundamental. A ponto de se dizer que sua
generalidade se vê reduplicada. Existe mesmo uma “lei”, real ou fantasmal, que
atesta a singularidade da ligação que o homem do campo mantém com ela, mas
nada sabemos dela. Acima de tudo, a narrativa frustra em nós sabermos mais
a seu respeito. Ela não torna a lei mais acessível. A única coisa de que é capaz
é dizer e reproduzir, reduplicar, em sua própria escritura, a inacessibilidade
da lei. Eis o hiato: a lei diz o geral, ela se pretende universal, supõe-se dela
não ter que criar casos particulares, ela não tem de cuidar de eventualidades
subjetivas de sua incorporação, nem do enigma que constitui – para aqueles
aos quais ela se aplica – sua origem; enquanto a narrativa talvez trabalhe a
singularidade de uma expectativa, de uma exigência, de uma inquietude, de
uma angústia. Portanto, no que diz respeito à narrativa, poderíamos supor
que ela fornece um corretivo para essa generalidade, colocando-a em ligação
com a singularidade que julga, ela, ter o direito de saber. Tal como se poderia
supor em O Processo, quanto à tomada de conhecimento que, por fim, Joseph
K teve dos motivos de sua incriminação e, em O Castelo, o agrimensor
da fonte e da lógica dos decretos que regem sua chegada, ou ainda, em A
Metamorfose, da causa efetiva da repentina e imprevisível transformação de
Gregório Samsa em uma barata. Mas não é nada disso. Deve mesmo existir
aí, para dar conta de todos esses eventos “extraordinários”, uma lei que os
explique e os justifique, independentemente de qual seja sua natureza (natural,
moral ou jurídica). Mas, quanto mais aqueles parecem usuais, banalizados e,
por fim, considerados como ordinários, quanto mais parecem ingressar nos
costumes ou ter sempre lhes pertencido, menos essa lei se deixa conhecer.
Mais avançamos na narrativa, mais a perspectiva de ter acesso a ela se perde
na mesma proporção em infinitos rodeios.
Eis porque, ao ler Diante da lei, Derrida de imediato ressalta, como
tema central da narrativa, o fracasso do encontro entre a singularidade da
ligação com a lei e a essência geral ou universal dessa mesma lei:
Existe uma singularidade quanto à ligação com a lei, uma lei de
singularidade que deve se colocar em ligação sem jamais poder
134
realizá-la, com a essência geral ou universal da lei. Acontece que
tal texto, esse texto singular, talvez você já o tenha observado, ele
nomeia ou relata, a sua maneira, esse conflito sem encontro da lei
e da singularidade, esse paradoxo ou esse enigma do estar-dianteda-lei.5
5. DERRIDA, Jacques. “Préjugés”,
op. cit., 1985, p. 104.
E ele continua pouco depois:
Podemos supor, então, que aquilo que permanece invisível e
oculto em cada lei é a própria lei; o que faz com que essas leis
sejam leis. Inevitáveis são a pergunta e a investigação – ou seja,
o itinerário com vistas ao lugar e à origem da lei. Esta se dá ao se
privar, sem dizer sua proveniência e sua localização. Esse silêncio
6. DERRIDA, Jacques. “Préjugés”,
e essa descontinuidade constituem o fenômeno da lei.6
op. cit., 1985, pp. 109-110.
Se nos recordamos das duas questões que levantávamos no começo, o
que deve prender a atenção aqui é a maneira como a questão da acessibilidade
(ou da inacessibilidade) da lei se revela efetivamente indissociável daquela
da possibilidade (ou da impossibilidade) da narrativa e, em todo o caso, de
sua completude. Como todos sabem, essa inacessibilidade é, nos anos de
1980, uma das grandes questões sobre as quais se concentra o trabalho de
Derrida. Se é verdade que desde o início – isto é, os três grandes livros de
1967: Gramatologia, A escritura e a diferença e A Voz e o fenômeno – tem
por objeto a desconstrução do sujeito soberano em sua própria soberania,
esta adquire, naqueles anos, uma dimensão mais abertamente política, que
passa pela evidenciação daquilo que, na esteira de Montaigne, o autor de
Força de lei chama de “o fundamento místico da autoridade”. Também é nessa
perspectiva que devemos ler o comentário de Diante da lei. Nas narrativas de
Kafka, nada proíbe, com efeito, compreender o impossível acesso à lei como
uma outra figura ou, para ser mais exato, como o efeito, cada vez singular,
de tal “fundamento místico”. É isso que faz com que, em último caso, as leis
sejam leis e que a elas devamos nos submeter, quaisquer que sejam as razões
dadas para tal submissão; eis o “fundamento” que sempre nos escapa. E isso,
independentemente do que dizem os representantes da lei, não é estima pela
135
pátria, pela cidadania, pelo sentimento de dever e todas essas questões que
o guardião da lei propõe ao homem do campo “com indiferença, à maneira
dos grandes senhores” que mudam alguma coisa. Independentemente das
respostas que lhes são fornecidas – aquelas que uma filosofia do direito, uma
filosofia moral, ou um tratado de educação do cidadão, por exemplo, podem
lhe fornecer –, estas em nada resolvem o enigma de nossa ligação com a lei.
Acima de tudo, elas em nada diminuem o desejo pela origem.
II
Assim, três fatos exigem serem articulados. O primeiro é a resistência
da lei que só conserva sua autoridade categórica ao manter seu fundamento
em segredo. De fato, para respeitá-la, não há necessidade de se conhecer sua
história. Ao contrário, ela não apela, em si mesma e por si mesma, a qualquer
narrativa que pudesse vir condicionar tal respeito. É preciso, inclusive, que ela
se proteja de qualquer tergiversação histórica que pudesse vir a contestar tal
autoridade e colocá-la em questão. Tampouco há necessidade de se voltar para
si e interrogar seu passado, em alguma vã introspecção. Em suma, ninguém
sabe por quais boas ou más razões o homem do campo, na narrativa de Kafka,
apresentou-se à porta da lei. Seria isso para se dar um motivo a mais de se
submeter a ela? Ou para aprender a melhor se conhecer? Tão só está seguro
de que querer “entrar na lei”, como diz a narrativa, é um propósito legítimo?
O desejo de desvendar o mistério ou o segredo da lei é, contudo, inegável,
talvez até inevitável. E a narrativa nos diz, persevera por toda uma vida. É
por isso que o segundo fato que exige ser levado em conta e que tem de ser
articulado a essa resistência é a “pulsão genealógica” que daí resulta. Eis onde
nos encontramos: de um lado, há a soberania da lei que não se deixa aproximar,
que não exige justificação nenhuma, que só realiza casos particulares, que os
mantém a distância (não se sabe quantos guardiões a protegem), que não
deve satisfações a ninguém. E, além disso, há ao mesmo tempo o fato de que
ninguém no mundo vive assim sua ligação com a lei – pois cada um, com efeito,
está comprometido, em sua carne, com uma ligação absolutamente singular
com a lei (traduzida em seus gestos e em sua voz, em sua expressão verbal e
136
em seus silêncios). Para dizer tudo, acontece que essa ligação é precisamente,
sem dúvida, a experiência primeira de sua singularidade, na qual cada um está
inscrito de corpo e alma. Ele, o homem do campo, portanto, quer saber. Não
há nada que ele deseje mais conhecer. Ele quer entrar na lei, vê-la ou tocá-la.
Sua pulsão é irresistível – e ela só desaparece com a morte –, pois que se trata
da vida, porque conhecer o segredo da lei faria talvez, por fim, a vida mais
passível de ser vivida. Sim, é sempre assim que se apresenta a ligação com a
lei: com a vida com a morte.
Entrar em relação com a lei, aquela que diz ‘Você deve’, ‘você não
deve’, é de uma só vez fazer como se ela não tivesse história ou, em
todo caso, não dependesse mais de sua apresentação histórica e
de um só golpe abandonar-se à fascinação, ao desafio, ao insulto
causados pela história dessa não-história. É abandonar-se à
tentação causada pela impossibilidade: uma teoria sobre a origem
da lei e, por conseguinte, sobre sua não-origem, da lei moral, por
exemplo7.
7. DERRIDA, Jacques. “Préjugés”,
op. cit., 1985, p. 110.
O terceiro fato, então, é a própria possibilidade da literatura e da
língua que aí é inventada. Se é verdade que a origem da lei é inacessível,
que ela é ela mesma (a lei) imperiosa e que, ao mesmo tempo, cada um é
constituído, no mais íntimo de si, de uma ligação com a lei absolutamente
singular, irredutível, impermutável, então uma língua é invocada, procurada,
desejada para preencher esse hiato – isto é, para legitimar o desejo de conciliar
a singularidade da ligação com a generalidade da lei. Mas como dar direito ao
singular? O que é que faz a “singularidade do singular”? Primeiro, e antes de
tudo, é a sua história. O singular existe, como tal, ao ser contado. Eis por que
é preciso partir de uma narrativa; na esperança de que ela acabe chegando ao
lugar em que a lei surge – a lei que, apesar de tudo, permanece geral, ou seja,
que continua resistindo. Tal é a verdade que a narrativa de Kafka comporta: ela
é o enunciado desse difícil paradoxo – um enunciado ele próprio paradoxal,
considerando que a narrativa continua impossível. Para que ele tome corpo,
para que ele responda às expectativas que suscita, seria preciso, com efeito,
ao menos duas coisas. Seria preciso, em primeiro lugar, que a lei se tornasse
137
acessível; seria preciso, em seguida, que a singularidade daquele que pede para
entrar na lei respondesse.
Acontece que, de ambos os lados, a experiência da singularidade é
posta em xeque. A lei persiste em manter o segredo de seu fundamento e
a singularidade daquele que se compromete com a investigação da origem
esbarra na generalidade da linguagem. Em outros termos, é possível que o
guardião da lei não seja outra coisa senão a própria língua – que só diz o geral,
ao mesmo tempo em que traz consigo a promessa impossível de legitimar o
singular. Essa ligação entre a língua e a lei, Derrida a teria frisado inúmeras
vezes. Ela reaparece especialmente em O monolinguismo do outro [do qual
é importante lembrar aqui o subtítulo] ou a prótese da origem, texto escrito
uma dezena de anos depois de “Préjugés”. Dentre os múltiplos temas que
constituem a trama desse livro, há um, com efeito, que deve prender nossa
atenção. Derrida diz que sempre existe algo perdido (e até desorientado)
em nossa ligação com a língua, habitado para sempre pela nostalgia de uma
origem inencontrável: não temos senão uma língua, cada um de nós; nós nos
dobramos a sua lei – e, ao mesmo tempo, porque essa lei se impõe a nós, essa
língua nunca é a nossa. Essa é a razão pela qual não existe ligação com-sigo
transparente que possa assegurar o ego de sua identidade; na língua, somos
desenraizados, exilados, estrangeiros de nós mesmos, assim como o homem
do campo o é diante da porta da lei e como Kafka, se acreditarmos em seu
diário, tinha tão frequentemente o sentimento de sê-lo, em sociedade. Nada,
em outros termos, garante-nos ou atesta-nos que nós encontraremos a nós
mesmos naquilo em que dizemos, naquilo em que pensamos, naquilo em que
acreditamos poder estar convencidos de pensar e de expressar por intermédio
de nós mesmos.
Eis porque a questão da nossa ligação com a língua é indissociável
daquela da loucura, como o é, possivelmente, a de nossa ligação com a lei
também. Três formas de loucura, explica Derrida em O monolinguismo do
outro, espreitam a impossível identificação do ego, não diante da lei, mas
na e com a língua. A primeira é a “desintegração” completa da identidade –
uma ligação com-sigo e com a língua de tal forma fragmentada, de tal forma
desestruturada, que a própria possibilidade de qualquer invenção linguageira
singular (a mesma à qual Derrida dá o nome de idioma) encontra-se destruída;
138
portanto, uma quase afasia, como aquela na qual Hölderlin afunda, por sua
vez, abandonado aos cuidados do marceneiro Zimmer, ou aquela de Nietzsche,
que por anos recebeu os cuidados de sua irmã. Quanto à segunda forma de
loucura, jamais é assumida como tal. Longe de se ver dessa maneira, ela está
convencida, ao contrário, de sua “normalidade” – e, sem dúvida, nada é tão
louco ou ameaçador quanto tal convicção. Essa loucura é aquela que habita
qualquer identificação normativa, compreendendo aí o que ela pode ter de
exclusiva e de discriminante. Ela se opõe ao trabalho da diferença na ilusão
de ter uma identidade com-sigo que é, ao mesmo tempo e integralmente, a
da coletividade, com a qual ela se identifica. Ela é aquela com a qual, sem
duvidar disso, somos melhor preparados pela família, pela escola, assim como
por todas as forças que nos ditam sua lei. Mas ela não é mais estranha aos
romances e narrativas de Kafka que, definitivamente, talvez não narrem outra
coisa em O Processo, O Castelo, ou A Metamorfose que a disjunção de uma
integração social familiar (a relação com o pai), profissional ou outra, em um
assustador curto circuito da lei, do corpo e da linguagem.
E, quanto ao mais, há aquela terceira forma de loucura descrita por
Derrida nos seguintes termos:
A loucura de uma hipermnésia, um suplemento de fidelidade,
um acréscimo, verdadeiramente uma excrescência: engajar-se, no
limite de duas outras possibilidades, a partir de traçados (tracés)
– de escritura, de língua, de experiência – que levam a amnésia
para além da simples reconstituição de uma dada herança, para
além de um passado disponível. Para além de uma cartografia,
para além de um saber ensinável. Trata-se aí de uma amnésia
totalmente outra e mesmo de uma amnésia do totalmente outro8.
8. DERRIDA, Jacques. Le
monolinguisme de l’autre. Paris:
Édition Galilée, 1996, p. 116-17.
“Uma amnésia do totalmente outro”: na medida em que chegamos a
compreender do que se trata, pode ser que, retrospectivamente, consigamos
captar o que está em jogo em Diante da lei. Supondo, portanto, que recomecemos
do ponto que acaba de ser estabelecido, a falta de “identificação estável do ego”
pela (e na) língua, ou seja, pela (e na) dominação, pela (e na) possessão, pela
139
(e na) disposição de uma língua que seria nossa, perfeitamente nossa, com a
qual sempre seria possível nos encontrarmos e nos reencontrarmos. Supondo,
ainda, que não possamos nos assentar sobre a (sua) língua para responder à
questão “quem sou?”; seria preciso admitir, todavia, que cada um fala. Seria
preciso admitir que há, seguramente, uma língua para cada um: a língua que
ele fala. E mesmo que existe, na realidade, mais de uma língua. Cada evento
singular, cada percepção, cada emoção, cada sensação, tentamos, com efeito,
traduzir em uma língua que lhes seja apropriada – ou seja, que legitime aquilo
que faz de sua chegada um acontecimento singular. Dito de outro modo,
devemos, a cada vez, encontrar na língua, com a língua, uma singularidade
linguageira – não para legitimar nossa própria singularidade, mas para dar
[esse direito] àquela que chega e que produz o acontecimento.
Eis porque Derrida pode escrever, de maneira paradoxal, que nesse nosso
monolinguismo só existem “línguas de chegada”. Eis porque existe pluralidade
na chegada. Se não houvesse, se postulássemos de antemão que não devemos
tê-la, que é uma ilusão pensar que deveria haver, estaríamos, de súbito, no
limite daquela outra loucura (a da integração – a segunda possibilidade) que
há pouco evocamos: a loucura da dominação e da possessão, soberana, de uma
língua de saída.
Mas, na medida em que admitimos ou reconhecemos que ela não existe,
só nos restam efetivamente línguas de chegada – mas de uma chegada que
permanece indefinida, que não atinge seu termo, como diz Derrida: “que não
chega a chegar”. Por quê? Esse é, sem dúvida, o ponto mais decisivo ou mais
nodal que nos faz lembrar que o termo, o fim, a completude, são impossíveis.
Se esse não fosse o caso, não haveria loucura da língua, mas programas que
ela cumpriria e que voltariam toda vez à mesma coisa: a re-dução ao mesmo.
O que forma a loucura da língua, ao contrário, é a irredutível transcendência
daquilo que lhe chega, daquilo que vem a ela – ou seja, daquilo que nos faz
abrir a boca. Toda vez que falamos (ou que escrevemos), experimentamos essa
transcendência; experimentamos a irredutível alteridade daquilo que chega.
E não existe ipseidade (ligação com-sigo) livre dessa experiência. Não existe
ipseidade que se constitua fora do desejo de legitimar essa alteridade, lá onde,
de fato, jamais é possível chegar. Tudo se passa como se a constituição da
ipseidade, inacabável, estivesse sempre em suspenso – suspendida pelo desejo
140
de inventar uma língua, dobrada pela promessa de uma língua por vir.
Assim, a cada um se impõe a invenção de sua própria singularidade na
língua. Qual é, agora, a situação no que diz respeito à relação com o direito?
Qual é a situação do “homem do campo”? Se sua estada diante da porta se
assemelha a uma forma de loucura, de qual loucura se trata? A narrativa de
Kafka, já o dissemos, combina duas inacessibilidades da lei: a do homem que
se mantém a sua porta e a quem o guardião proíbe o acesso e a da própria
narrativa que não a encontra mais. Assim, a narrativa é simultaneamente
possível e impossível, legível e ilegível, necessária e interdita, ou, ainda, como
na maioria dos textos de Kafka, sua possibilidade e sua legibilidade não são
evidentes. Elas resistem assim como a lei resiste àquele que gostaria de vê-la
e tocá-la, entrar nela, de maneira direta e imediata, sem rodeios. O que o
guardião sabe, [e] que o homem do campo ignora, é que jamais acontece assim
– a ninguém. E que a lei, assim como todo texto, necessita ser decifrada por
cada um, de maneira absolutamente singular. Ela apela, como toda narrativa,
para a invenção impossível de uma língua que a decifre. Derrida destaca isso
fortemente:
A leitura pode, com efeito, revelar que um texto é intocável,
propriamente intangível, porque legível e de um só golpe ilegível,
na medida em que a presença nele de um sentido perceptível,
captável, permanece tão escondida quanto sua origem. Assim,
a ilegibilidade não se opõe mais à legibilidade. Mas talvez o
homem, também homem do campo, desde que não sabe ler, ou
que sabendo ler, ainda se comprometa com a ilegibilidade naquilo
mesmo que aparenta dar-se à leitura. Ele quer ver ou tocar a lei,
quer se aproximar dela, “entrar” nela porque talvez não saiba que
a lei não é para ser vista ou tocada, mas decifrada. Talvez seja
o primeiro sinal de sua inacessibilidade ou postergação que ela
impõe ao homem do campo.9
9. DERRIDA, Jacques. ”Préjugés”.
In: La faculté de juger. Colloque
de Cerisy: Les éditions de Minuit,
1985, p. 115.
É apenas nessa invenção – a de uma língua que decifra – que o hiato,
entre a generalidade da lei e a singularidade da ligação que cada um mantém
com ela, volta a ser passível de ser vivido. Ele não será preenchido, entretanto
141
– e é nisso que a narrativa, ainda que possível e necessária, continua in fine
impossível e interdita. Mas, ao menos ser-lhe-á prometido tornar possível
o impossível, com a certeza de que qualquer atitude contrária às portas da
lei conduz mais seguramente à margem da aniquilação. Se concordarmos
em recordar as três formas de loucura que O monolinguismo do outro
retrospectivamente nos permitiu identificar, parece, com efeito, que nenhuma
das duas primeiras está ausente na narrativa de Kafka. A primeira, inicialmente,
– aquela desestruturação completa que conduz progressivamente ao silêncio
ou, mais brutalmente, irrompe na afasia – descreve muito precisamente
o que acontece com o homem do campo e talvez dela não se tenha frisado
suficientemente a ligação com a linguagem tal qual ela evolui, ao longo dos
anos passados próximo às portas da lei. De início, “ele cansa o guardião com
suas súplicas”, em seguida, “com desprezo e em voz alta, ele passa a maldizer
seu azar”. Depois, “ficando velho, ele se limita a resmungar. Volta à infância”.
Ele fica, então, prostrado, silencioso. Apenas um último sobressalto lhe devolve
a palavra para que faça a derradeira pergunta: “Se todos aspiram à lei […] por
que durante todos esses anos, ninguém, além de mim, pediu para entrar?”.
Esgotado, consumido, o homem do campo se une, então, ao cortejo de todos
aqueles que a lei, inacessível e imperiosa, destrói por dentro.
Entretanto, a segunda forma de loucura descrita por Derrida não
está menos presente em Diante da lei. Ela se traduz por essa submissão, essa
resignação, essa aceitação dos códigos e das regras, sua incorporação passiva,
que são igualmente maneiras de querer, a todo custo, entrar na lei a fim de não
formar senão um (mais que um) com ela. Ela consona com aquela de K em
O Processo e com aquela do agrimensor em O Castelo, para com os quais os
primeiros leitores de Kafka foram tão sensíveis e que alguns, como Günther
Anders, chegaram até a reprová-lo. Ela espreita, na realidade, qualquer
veneração, qualquer sacralização da lei. Resta, então, essa “excrescência da
memória” que, [segundo] nos diz Derrida, aproxima-nos das outras duas
formas de loucura, de suas imediações e de sua ameaça, como o testemunham
o destino de Hölderlin, o de Nietzsche, ou de Artaud, “a partir de traçados
(tracés) – de escritura, de língua, de experiência – que levam a amnésia [ou
seja, a investigação da origem e notadamente da origem da lei]10 para além
da simples reconstituição de uma dada herança, para além de um passado
10. Os colchetes aqui são um
recurso do próprio autor do texto.
[N. do T.]
142
disponível. Para além de uma cartografia, para além de um saber ensinável.”11.
Ela surge de uma injunção que talvez já pudesse ser aquela que poderia
ter levado consigo em filigrana a última resposta do guardião, se não fosse
tarde demais e se não tivesse de fechar a porta: “essa entrada só foi feita para
você”. Em outras palavras: “ela exigia de você uma decifração, uma invenção
singular, um traçado (tracé) de escritura – uma narrativa talvez”. Pois essa
injunção é também aquela que comporta a própria narrativa, enquanto
“narrativa impossível do impossível”. Lá onde o homem do campo reivindica
um ingresso imediato na lei, a narrativa, por suas vias tortuosas, tenta em
vão encontrar um acesso, fazer o impossível – tornar possível o impossível.
Derrida recorda:
De certa maneira, Vor dem Gesetz é a narrativa de tal
inacessibilidade, dessa inacessibilidade à narrativa, a história dessa
história impossível, o mapa deste trajeto interdito: sem itinerário,
sem método, sem caminho para acessar a lei, aquilo que nela teria
lugar, o topos de seu acontecimento.12
Que vias são essas? Inicialmente, precisamos lembrar isso, decididos
a rir. Quanto à narrativa de Kafka, estaríamos enganados, com efeito, se
considerássemos pouco importantes os impulsos cômicos e as marcas de
humor que, sem dúvida, são uma maneira dentre outras de viver com o
interdito da lei. Em primeiro lugar, lembramo-nos que existe a descrição
caricatural do guardião que faz pensar nos retratos de Ivan, o Terrível, “em
seu casaco de pele, com seu nariz pontudo, sua longa barba de tártaro, rala
e negra”. Acontece, em seguida, a solicitação dirigida às pulgas: “como, por
ter examinado o guardião durante anos, acabou conhecendo até as pulgas
de seu casaco de pele, ele suplica às pulgas que o ajudem e que mudem o
temperamento do guardião13”, talvez exista, por fim, a diferença de proporções
invertidas no fim da narrativa. Rir da inacessibilidade da lei (rir e fazer rir
dela ao falar dela) em uma narrativa na qual é impossível manter a seriedade
diante dessa mesma lei, por mais soberana, por mais majestosa, por mais
imperiosa e misteriosa que ela seja, isso já é escapar das duas formas de loucura
que salientávamos ainda agora: a paralisia alienante e a incorporação cega
(ou seu fantasma).
11. DERRIDA, Jacques. Le
monolinguisme de l’autre. Paris:
Édition Galilée, 1996, p. 116-17.
12. DERRIDA, Jacques. Préjugés.
In: La faculté de juger. Colloque
de Cerisy: Les éditions de Minuit,
1985, p. 114.
13. Diante da Lei de Kafka, citada
por Derrida em “Préjugés”, op. cit.,
1985, p. 100.
143
Mas, sobretudo, a primeira via – a que toda obra de Kafka, talvez,
as narrativas, mas também os diários e a correspondência, permitiria
exemplificar – é a escritura, ela mesma; a escritura como adiamento. Sem
dúvida, cabe ao guardião intimar o homem do campo a experimentar um
acesso indefinidamente diferido da lei, mas essa inacessibilidade é, antes de
tudo, a narrativa que lhe dá forma. O que ela produz, tal como as histórias de
Sherazade em “As mil uma noites”, não é outra coisa, com efeito, senão o pôr em
movimento (ou o pôr em [uma] língua) da diferensa (différance)14 – como se,
no fundo, estivesse aí a razão de toda escritura, como se a impossível anamnese
com relação à origem nos comprometesse com o diferir indefinidamente seu
encontro na (e pela) invenção de uma língua e na (e pela) retomada de uma
narrativa que são igualmente suspensões da ligação com a lei, ou ao menos de
qualquer relação com ela que se pretenda direta, imediata, frontal. Sim, no fim
das contas, é bem possível que seja nesse lugar improvável, a literatura, que se
misturam, lá onde elas fazem o cadinho de toda singularidade, nossa relação
com a lei e nossa relação com a língua:
14. A fim de preservar ao
máximo a letra do neologismo
derridiano, optamos pela
fabricação de “diferensa”, termo
que, ao lado de “diferença”,
conserva respectivamente o
mesmo jogo de sonoridade e
escrita que há entre différance e
différence. Aqui e mais adiante,
vê-se que différance está
estritamente ligada ao sentido de
“protelação”, “de “postergação”,
de “demora” como espaço de
tempo que se estende para além
do esperado ou do desejável; por
fim, de différér, différé do francês.
[N. do T.]
A interdição da lei não é, portanto, uma interdição, no sentido da
constrição imperativa, é uma diferensa. [...] o homem dispõe da
liberdade natural ou física para adentrar nos lugares, exceto na lei.
Assim, ele deve e precisa, precisa constatar isso, interditar-se a si
mesmo de entrar. Ele deve obrigar-se a si próprio, dar-se a ordem
não de obedecer à lei, mas de não acessar a lei que, em suma,
faz-lhe dizer ou lhe permite saber: não venha a mim, ordeno-te a
não vir ainda até mim. É nisso e naquilo que sou a lei e que você
atenderá meu pedido. Sem me acessar.
Pois a lei é a interdição [...]. Não podemos chegar até ela e para ter
ligação com ela, de forma respeitosa, não é preciso, não é preciso
ter ligação com ela, é preciso interromper a ligação [como o faz
a narrativa]. É preciso não entrar em relação senão com seus
representantes, seus exemplos, seus guardiões. E esses são tanto
interruptores quanto mensageiros. É preciso não saber quem ela
é, o que ela é, onde ela está, onde e como ela se apresenta, de onde
ela vem e onde ela fala.15
15. DERRIDA, Jacques.
“Préjugés”, op. cit., p. 120-21.
144
Assim, não é de se surpreender que, in fine, Derrida atribua essa
diferensa (différance) da lei a uma loucura – um riso, uma loucura, mas talvez
também um desejo subversivo. Pois aquilo que a narrativa opõe à língua da lei
é inicialmente, e antes de tudo, a singularidade de seu idioma, do mesmo modo
que ela é compartilhada com todos aqueles que a entendem – é mesmo, para
dizê-lo mais precisamente, sem jogar com palavras, a lei dessa singularidade.
Eis onde reside, diz-nos Derrida, a subversão! A literatura “impõe a sua lei”
que, diante da lei (vor dem Gesetz), coloca-a para fora da lei. Ela resiste à
resistência da lei na (e pela) invenção repetida de seu idioma. Não existe outra
via. É isso que o homem do campo ignora, para quem ela permanece fechada.
(tradução de Juliana Cecci Silva e William de Siqueira Piauí)
145
a palavra e o deslizamento:
co n s i d e r a ç õ e s s ob r e a
l i t e r at u r a n a ob r a d e
ma u r i c e bla n c h o t
Daniel Barbosa Cardoso
146
a palavra e o deslizamento:
considerações sobre a literatura na obra
de maurice blanchot
Daniel Barbosa Cardoso1
“Nunca temos diante de nós o espaço puro, nem mesmo um único dia,
para onde as flores desabrocham sem fim - Sempre é o mundo e nunca o
em-parte-alguma, sem nada: o puro, o inesperado, que se respira e sabe
infinito, sem cobiça”. (Rainer Maria Rilke2)
« Peut-être faut-il dire que l´artiste, cet homme que Kafka voulait être
aussi, en souci de son art et à la recherche de son origine, le ‘poète’ est celui
pour qui il n´existe pas même un seul monde, car il n´existe pour lui que le
dehors, le ruissellement du dehors éternel. » (Maurice Blanchot 3)
2. RILKE, Rainer Maria. Sonetos a
Orfeu-Elegias de Duíno. Bragança
Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2005.
3. BLANCHOT, Maurice. L´Espace
Littéraire. Paris: Gallimard, 1955.
A literatura, para Blanchot, carrega consigo uma questão limítrofe.
Tanto sua literatura como seu discurso crítico carregam consigo essa
necessidade do estrangeiro, do estranho que não se deixa situar segundo os
limites da inteligibilidade, do mundo, que não se deixa perscrutar sob a face
do dia. Este outro, que para Levinas é a condição crítica de toda possibilidade
de linguagem e de todo mundo, como em Totalidade e Infinito, em que critica
Heidegger justamente por sua noção de horizonte, entendido aqui como o
horizonte neutro e impessoal que antecede toda significação. A literatura
blanchotiana parte do pressuposto, mais radical, de que uma relação com o
outro é impossível; ou poderíamos dizê-lo de outra forma: no que diz respeito
a sua obra, há relação com um outro, mas essa relação é compreendida como
distanciamento infinito, como a incapacidade de percorrer a distância infinita
estendida entre o um e o outro, incapacidade do mesmo de preencher os nexos
Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília. Doutorando do Programa de Pósgraduação em Literatura da Universidade de Brasília.
1
147
significativos de sua própria linguagem, uma relação precisamente impossível,
isto é, que excede o quadro do possível. A literatura, na obra de Blanchot, é
essa curiosa arte das antecâmaras, em que personagens espectrais (dos quais
nem o leitor, nem Blanchot, nem eles mesmos conhecem os desígnios) são
obrigados a efetuar travessias inúteis, a passar por umbrais e corredores vazios
que não levam a lugar algum; em que o próprio narrador não sabe dizer o que
se passa com seus personagens, que desconhece por completo; esses romances,
enfim, sobre o nada, mas sobre a parcela do nada que não edifica, sobre as
cercanias das clareiras do possível, que não participam do caráter construtivo
do mundo, a narrativa da potência anti-criadora do λόγος grego e cristão, a
literatura edificada sobre as ruínas do que o movimento da dialética não pode
sublimar; esse é o romance de Blanchot, e essa é sua narrativa. Basta folhear as
primeiras páginas de Thomas o Obscuro ou de Aminadab para perceber que se
trata de uma escritura em que o que é posto em questão é o próprio estatuto
da escritura, do romance, da narrativa.
Mas não basta dizer isto do romance de Blanchot: como afirmou
Georges Poulet, o «universo» literário de Blanchot é um universo «vestibular»,
um mundo oco, uma escritura em que tanto o leitor com o próprio
protagonista do romance são postos diante da necessidade e da possibilidade
da tarefa infinita da redução, ou da impossibilidade e necessidade de leitura
e interpretação do texto. Trata-se de um mundo feito de vestíbulos, de
corredores que não levam a lugar algum, de espaços que são perpetuamente
percorridos e que nunca levam a estadia alguma, qualquer que seja. Esta é,
de fato, uma das características fundamentais das narrativas de Blanchot.
Encontramos referências a esses corredores mal iluminados, a esses espaços
obscuros constantemente percorridos em vão, citados por Poulet e por
Michel Foucault4, em praticamente todas as obras «literárias» de Blanchot, e
especialmente em Aminadab, de que colhemos ao acaso alguns exemplos:
4. POULET, Georges. Maurice
Blanchot, Critique et Romancier.
Revue Critique, Nº 229, Paris, Jun.
de 1966.
148
Il pénétra dans un couloir long et spacieux où il fut surpris de
ne pas voir tout de suite l’escalier. D’après ses calculs, la chambre
qu’il cherchait se trouvait au troisième étage, peut-être même à un
étage supérieur; il avait hâte de s’en rapprocher en montant aussi
vite que possible. Le couloir semblait sans issue. Il le parcourut
rapidement et en fit le tour. Puis, revenu à son point de départ,
il recommença, en ralentissant cette fois le pas et en se collant
contre la cloison dont il suivait les anfractuosités.5
Il suivit le jeune homme qui l’entraîna dans un couloir sombre
où l’obscurité ne l’empêcha pas de marcher avec rapidité. De
chaque côté du couloir, il y avait des portcs qui ressortaient dans
l’ombre à cause de la couleur noire dont elles étaient recouvertes.
Thomas ne pouvait pas voir grand-chose. L’une de ses mains était
liée au poignet gauche du nouveau venu qui le tirait en avant
sans précaution. Après quelques pas d’une démarche saccadée, le
couloir se resserra et il ne fut plus possible d’avancer.6
Além de Poulet, Sartre também assinalou – em um artigo talvez algo
desatento, mas que permanece sendo, com toda sua virulência, uma das
grandes análises da narrativa de Blanchot – a curiosa inversão presente em sua
literatura, que diz respeito especialmente a sua filiação ao «fantástico»: pois,
segundo Sartre, os escritos de Blanchot – e os de Kafka – não são simplesmente
absurdos, dado que o absurdo seria a ausência total de qualquer fim, e seria
ainda o objeto possível de um pensamento que se posiciona ainda diante de
um objeto, o construto do pensamento soberano de um sujeito soberano, o que
tornaria o absurdo ele mesmo um dos objetos possíveis do sentido, absorvido
pelo horizonte do mundo. A literatura do absurdo, portanto, produz ainda
sentido. Na obra de Blanchot, de modo radicalmente distinto, o que vemos é a
aniquilação de todo sentido (e de toda subjetividade), isto é, a aniquilação de
toda permanência possível. Nos seus relatos certos fins são perseguidos, mas
são fins de que nem os personagens nem os leitores tomam consciência, não
existe para o pensamento, nesses textos, a possibilidade de totalizar a coisa
narrada e o relato em um só tecido.7 Experiência, portanto, de um espaço
limitado, percorrido incessantemente, e também experiência de um tempo «
hors temps », desde sempre já iniciado, recomeço que é a única possibilidade do
relato, um passado absoluto e um presente inexoravelmente atravessado pelo
devir, esse é o tempo do récit blanchotiano – sempre tarde demais, sempre cedo
demais. A tentativa de relatar o irrelatável leva às dobras da linguagem, e aos
seus limites, no intento talvez ingênuo de que assim possam ser ultrapassados.
5. BLANCHOT, Maurice.
Aminadab. Paris:
Gallimard, 1942, p. 9.
6. Ibidem, p. 25.
7. « (...) No mundo maníaco e
alucinante que tentamos descrever
o absurdo seria um oásis, um
repouso, de modo que aí não há
lugar algum para ele. Nesse mundo
não posso me deter por um só
instante: todo meio me remete sem
descanso ao fim fantasmagórico
que o assombra e todo fim me
reenvia ao meio fantasmagórico
pelo qual eu poderia realizá-lo.
Não posso pensar coisa alguma, a
não ser por noções escorregadias
e cintilantes que desagregam sob
meu olhar. » - SARTRE, Jean-Paul.
Situações, Vol. 1: Críticas Literárias.
São Paulo: Cosac & Naify, 2006,
p. 140.
149
Esta borda, contudo, não se desfaz de bom grado; não é simples a superação
dos limites, não se trata de uma linha que se pudesse simplesmente romper.
Há aí uma questão de «método».
Não basta, por exemplo, que a linguagem literária se torne totalmente
opaca, impenetrável, de modo que a experiência – a experiência da literatura,
se podemos ainda falar de «experiência» nesse caso – seja apenas a experiência
do ser «bruto, escarpado» da linguagem, em que a linguagem dobra sobre
si mesma e torna-se sólida como um bloco, de modo frontalmente oposto
à linguagem do realismo, que pretendia tornar-se tão transparente quanto
possível, e mostrar, em sua translucidez, o evento em si, o relatado (supondo
que fosse possível dizer o mínimo necessário e assim conter o deslizamento
do significante). Blanchot sempre tratou da linguagem literária partindo
de uma concepção semelhante à de Mallarmé, como se nota desde Faux
Pas até L´Entretien Infini, e talvez até mesmo em seus últimos livros, no
que diz respeito à diferença entre a linguagem cotidiana e a linguagem
literária. No começo de sua obra ainda se conserva, em certa medida, como
podemos ler em La Part du Feu, essa divisão clara entre os dois registros da
linguagem (que é antes uma diferença de grau, mas, como toda diferença
de grau, uma diferença ontológica), mas já nesse livro a linguagem, mesmo
a linguagem cotidiana,que pretende conter o deslizamento do significante,
que pretende bastar para o que diz, que pretende, enfim, estabelecer uma
ordem entre as palavras e as coisas que elas «representam » – não pode ser
contida em seus limites:
(...) Comment l´absence infinie de la compréhension pourrait-elle
accepter de se confondre avec la présence limitée et bornée d´un
mot seul? Et le langage de chaque jour qui veut nous en persuadér
ne se tromperait-il-pas? En effet, il se trompe e il nous trompe. La
parole ne suffit pas à la vérité qu´elle contient. Qu´on se donne
la peine d´écouter un mot, en lui le néant lutte et travaille, sans
relâche il creuse, s´efforce, cherchant une issue, rendant nul, ce qui
l´enferme, infinie inquiétude, vigilance sans forme et sans nom.
Déjà le sceau qui retenait ce néant dans les limites du mot et sous
les espèces de son sens s´est brisé; voici ouvert l´accès d´autres
noms, moins fixes, encore indécis, plus capables de se concilier
avec la liberté sauvage de l´essence negative, des ensembles
instables, non plus des termes, mais leur mouvement, glissement
sans fin de “tournures” qui n´aboutissent nulle part.8
8. BLANCHOT, Maurice.
La Part du Feu. Paris: Gallimard,
1949, p. 315.
150
O relato fundado nesta linguagem que rompeu o receptáculo da
palavra não pode aceitar mais a estrutura tradicional da narrativa9, em que
os personagens tem vontades, anseios, características delimitáveis de uma
subjetividade, de um sujeito soberano no qual se confundem as pessoas do
escritor, do personagem e do leitor. O mundo relatado nessas narrativas é um
mundo críptico, opaco, mas somente até certo ponto. Pois a narrativa deve dar a
ambos, leitor e personagem, alguma chave para sua decifração, algo como uma
senha que desse acesso à antecâmara do relato; mas nunca a chave que permita
decifrar por completo do relato, que permita o comentário, que permita dizer,
por exemplo, o que se passou no relato, o que foi relatado, de que experiência se
dá testemunho. Pois o relato, em Blanchot, não é relato de um acontecimento
da experiência, isto é, não dá a ver essa experiência, qualquer que seja, isto é, a
linguagem não chega nunca a garantir a transparência absoluta do relato, mas
também nunca se materializa por completo, nunca se torna totalmente opaca,
não-portadora de sentido. Um mundo profundamente estranho, de fato, mas
um mundo – talvez mais estranhamente ainda – compreensível.
Levinas diz em Totalidade e Infinito que a palavra orienta o mundo,
o dota de significação. Pois é através da palavra que « (...) o sistema de
reenvios a que se reduz toda a significação recebe o princípio do seu próprio
funcionamento, a sua chave »10. Para o filósofo, a palavra – expressão do
rosto do outro, contato imediato com o rosto do outro – é a promessa sempre
renovada de esclarecer o que nela havia de obscuro, promessa da vinda do
mundo à proposição, «retomada do que foi um simples sinal lançado por ela».
Para Blanchot, como se pode notar, o evento que se dá na palavra é também
uma promessa, mas que se dá estritamente enquanto promessa: que não
promete o além da promessa. O fato de a palavra trazer consigo a promessa
sempre renovada de esclarecimento do que ficou obscuro na última palavra,
do comentário que vem para trazer luz ao texto hermético é a maior prova,
para Blanchot, do caráter paradoxal da própria palavra. Ou poderíamos dizer,
uma vez mais opondo sua posição à de Levinas: em Blanchot, especialmente
em sua literatura, há ênfase no aspecto indicativo da linguagem. Linguagem
que, portanto, não revela, mas não oculta. O espaço descrito por esse
9. Subscrevemos, aqui, a posição
de Manola Antonioli em
L´Écriture de Maurice Blanchot:
Fiction et Théorie: « Qu´est-ce
que reste à dire quand toutes
les garanties du langage et du
récit ont été retirées? Le langage
est rendu a son danger, à son
désordre originelle; il sollicite
et interroge ses limites, mais il
ne peut le faire qu´à travers des
mots, dans un récit qui pose
la question même du récit, de
la fable, de la narration. C´est
là souvent le paradoxe de la
recherche de Blanchot: il s´agit
de mettre en question l´espace
de la littérature, l´espace du livre,
la dimension d´un langage réglé
et des règles du langage, tout en
étant dans un discours qui hérite
des ces codes, de ces structures,
d´une certaine organization du
sens. » - ANTONIOLI, Manola.
L´Écriture de Maurice Blanchot:
Fiction et Théorie. Paris: Éditions
Kimé, 1999, p. 25.
10. LEVINAS, Emmanuel.
Totalidade e Infinito. Lisboa:
Edições 70, 2008, p. 89.
151
discurso é, talvez, ainda o espaço de uma revelação, é ainda, talvez, o de um
acontecimento da verdade, mas de uma revelação do próprio limite, de um
acontecimento da verdade enquanto limite: para Blanchot, a literatura é, ao
lado do exílio bíblico, o lugar da «errância»; e, na errância, nada se abre, nada
está fechado, e portanto não há horizonte algum11.
O relato, nesse caso, não é um ente à parte do que relata: é precisamente
o acontecimento do relato que é relatado. No espaço do relato não se delimita
com clareza as distâncias, não situa-se o sujeito, ou esse não participa ao modo
da visão, as coisas não se mostram, não se apresentam – não mais do que
não se ocultam. Nessa concepção da linguagem, o relato, diferentemente do
romance, que seria ainda o relato de um acontecimento, de uma experiência,
é o próprio acontecimento. Esta é talvez a contribuição maior da escritura
de Blanchot para uma fenomenologia da experiência literária, e uma de suas
formas condensadas se mostra de forma mais intensa no relato que, editado
uma vez sem nome em 1949, ganhou na segunda, em 1973, o nome de La
Folie du Jour.
À questão da literatura, portanto, sempre foi associada uma certa
questão do limite em Blanchot, do limite da experiência ou da experiência
do limite. A própria noção de experiência limite, tal como Blanchot a lia em
Bataille – especialmente no ensaio que porta esse nome, L´Expérience Limite,
presente em L´Entretien Infini, assinala esse caráter liminar do próprio espaço
literário. A experiência limite é a experiência, de certo modo, de um outro que
não se deixa absorver. É esse « étrange surplus » anterior à própria experiência,
que impede que ela aproprie-se de si mesma, pois quando o «homem» constrói
o mundo do dia, da inteligibilidade, e dá sentido às coisas, essa decisão – e é
de uma decisão que se trata, sempre – é de antemão sulcada por um excesso,
inscrita por este «evento que não pertence à possibilidade», que excede mesmo
o trabalho da potência da linguagem erguendo o mundo do sentido e o sentido
do mundo. E é esse excesso que, junto a todos seus espectros e consequências,
pode ser entendido como a grande constante da obra de Blanchot – excesso
que abre no ser realizado e finito um « ínfimo interstício » pelo qual o sentido
transborda, rompendo o limite sem rompê-lo, relação dupla que faz com que
tudo que é compreendido, totalizado, dominado, tudo que dá e que recebe
11. BLANCHOT, Maurice.
L´Entretien Infini. Paris:
Gallimard, 1969, p. 36.
152
o sentido seja excedido de antemão por esse «acréscimo de negatividade»12.
Ao referir-se à noção de Bataille de experiência « interior », Blanchot diz:
(...) Et cependant l´expérience intérieure exige cet événement
qui n´appartient pas à la possibilité; elle ouvre em l´être achevé
un infime interstice par où tout ce qui est se laisse soudainement
déborder et déposer par un surcroît qui échappe et excède. Étrange
surplus. Quel est cet excès qui fait que l´achèvement serait encore
et toujours inachevé? D´où vient ce mouvement d´excéder dont
la mesure n´est pas donné par le pouvoir qui peut tout? Quelle
est cette ‘possibilité’ qui s´offrirait après la réalisation de toutes les
possibilités comme le moment capable de les renverser ou de les
retirer silencieusement?13
12. Não é a intenção do presente
artigo, mas vale assinalar a
importância das lições sobre a
Fenomenologia do Espírito e a obra
de Hegel em geral de Alexandre
Kojève, ministradas nos anos 30
e por tantos assistidas, em um
certo enriquecimento da noção de
negatividade.
13. BLANCHOT, Maurice.
L´Entretien Infini. Paris: Gallimard,
1969, p. 307.
É também nesse sentido que pode-se dizer que toda experiência é uma
experiência liminar. Pois somos obrigados a viver sob o duplo registro do
dia: ora o mundo do sentido e da inteligibilidade, ora a face noturna de toda
presença ou obliteração. Assim como diversos outros conceitos da obra crítica
de Blanchot, há uma ambiguidade irredutível nas múltiplas experiências da
linguagem. É o caso, talvez, de todos seus romances e de todas suas narrativas.
Especialmente da que recebeu o nome de La Folie du Jour, que incorpora em
uma narrativa extremamente densa e curta alguns dos temas fundamentais de
Blanchot.
Em La Folie du Jour somos apresentados, subitamente, ao relato. A
sentença que destacamos a seguir dá início à narrativa:
Je ne suis ni savant ni ignorant. J´ai connue des joies. C´est trop
peu dire: je vis, et cette vie me fait le plaisir le plus grand. Alors, la
mort? Quand je mourrai (peut-être tout à l´heure), je connaîtrai
un plaisir immense. Je ne parle pas de l´avant-goût de la mort
qui est fade et souvent désagréable. Souffrir est abutissant. Mais
telle est la vérité remarquable dont je suis sûr: j´éprouve à vivre
un plaisir sans limites et j´aurai à mourir une satisfaction sans
limites.14
14. BLANCHOT, Maurice. La Folie
du Jour. Paris: Gallimard, 1973, p. 9.
O relato, aparentemente, é autobiográfico: fala-se de uma vida
aparentemente vulgar, de alguém que foi rico, que foi pobre; que amou,
que possuiu, e que perdeu; que urrou, vagou pelas ruas vazias, alguém que
participou da loucura do mundo, de alguém que viveu e participou da ruína
do mundo. Alguém, enfim, que encontrou satisfação na ordem das coisas,
153
na ordem visível das coisas. Alguém que, como Dostoievski, como Blanchot,
viveu o momento da iminência maior, o da iminência de uma execução por
fuzilamento que não se realiza de fato. Alguém satisfeito com o devir das
coisas, com a vida e com a morte, com a infinitude e a finitude das coisas. Mas,
também subitamente, esse alguém passa por um acontecimento traumático,
que é impossível determinar com clareza qual: uma experiência limítrofe, se nos
é permitido dizê-lo. Atiram-lhe vidro nos olhos. Esse acontecimento tornará
todo o relato impossível. O narrador-personagem perderá a capacidade de
relatar, mas lhe será necessário relatar, de dar testemunho de sua experiência.
Figuras da autoridade e da lei exigem do personagem que ele relate tudo
que se passou, exigem o testemunho do que aconteceu, em especial do evento
traumático que lhe danificou os olhos, que o afastou da experiência do dia
(que o tornou excessivamente luminoso). Médicos lhe questionam: inquirido,
o narrador diz que não pode relatar, não pode agir segundo a vontade da lei,
não pode dar testemunho do que se passou. Quando, por fim, é vencido pelas
autoridades, que pretendem descobrir «o que se passou de fato», excluindo
toda possibilidade de segredo, o narrador diz as seguintes palavras:
On m´avait demandé: Racontez-nous comment les choses se
sont passées ‘au juste’. – Un récit? Je commençai: Je ne suis ni
savant ni ignorant. J´ai connu des joies. C´est trop peu dire. Je
leur racontai l´histoire toute entière qu´ils écoutaient, me semblet-il, avec intérêt, du moins au début. Mais la fin fut pour nous une
commune surprise. ‘ Après ce commencement, disaient-ils, vous
en viendrez aux faits.’ Comment cela! Le récit était terminé.15
No momento de relatar, isto é, no momento da consumação do récit, o
texto repete as mesmas palavras com que começa o próprio relato que o leitor
tem em mãos, há vinte páginas. O récit que estamos lendo, e essa narrativa
sobre um acontecimento que deixa o narrador cego, incapaz de relatar, é a
narrativa do próprio acontecimento da narrativa; mas não da narrativa
enquanto adequatio do relato com a experiência de que pretende dar conta,
não a narrativa enquanto o acontecimento da verdade, em que ela é sempre
capaz de relacionar-se com os entes a que se refere, em que a verdade é a
própria coincidência do relato com o que o relato relata; mas sim a narrativa
que é a própria disjunção entre relato e experiência, disjunção do relato que
15. BLANCHOT, Maurice.
La Folie du Jour. Paris: Gallimard,
1973, p. 29.
154
cinde tanto o relato como a experiência que ele relata. E a prova maior da
disjunção é que o récit que o leitor tem em mãos, lhe é revelado no final da
narrativa, é o récit que o narrador inicia quando uma das figuras da lei lhe
exige que diga a verdade, que diga o que aconteceu. O relato, portanto, já
havia iniciado, já é ele mesmo um recomeço, isso mesmo quando se o lê
pela primeira vez. E o fim aparente também é provisório, dado que retoma
o início do relato, evidenciando a impossibilidade do testemunho, e, por que
não, dando testemunho – um testemunho impossível – da impossibilidade do
testemunho. Situação limite: um narrador incapaz de narrar, um relato que
hesita em produzir sentido, mas contudo um relato.
Esta pequena porém incisiva « mise en abîme », ao lado de outros
recursos, coloca o leitor no contato impossível com o próprio espaço literário,
o espaço do récit que, não mais pretendendo reproduzir ou replicar o espaço
do mundo, como o vidro que funciona como lente, isto é, em que a linguagem
é perfeitamente transparente para o que pretende representar (tornar presente
uma vez mais), mas um espaço em que o vidro, introjetado nos olhos, introduz
uma disjunção essencial entre a visão e a linguagem. O vidro impede o olho de
agir enquanto olho, como o forro do fundo de um espelho que cria a reflexão16,
a reflexão infinita, que não permite nunca que o relatum encontre, de fato, seu
referente. Interrupção do circuito do mundo, suspensão dos limites entre a
linguagem e o que supostamente ela « representa ».
O que dizemos aqui de Blanchot vale, talvez, para toda a literatura
influenciada pela obra de Martin Heidegger. Foi Heidegger que inverteu,
em sua leitura da fenomenologia, a noção de que a verdade corresponde à
adequação entre o juízo apofântico e um determinado estado de coisas. Já não
se trata, no entanto, de meramente inverter os termos dessa noção de verdade,
e de mostrar assim o âmbito pré-predicativo, ontológico, da « verdade do
ser », que corresponderia totalmente ao « ser da verdade ». Como Levinas
já havia assinalado em um de seus ensaios sobre Blanchot, o vidro que se
aloja nos olhos do narrador-personagem – que mencionamos anteriormente
– é uma imagem precisa do acontecimento da verdade do mundo levado ao
paroxismo, em que o leitor é levado à face fulgurante do dia, à experiência da
luz excessiva que não permite que se enxergue, que se defina com clareza os
contornos, que não torna visível forma e conteúdo. A abertura da verdade, do
16. Jacques Derrida diz, referindose à literatura de Mallarmé,
algo que é perfeitamente válido
também para a literatura de
Blanchot, em especial La Folie
du Jour: « (...) Dans ce speculum
sans réalité, dans ce miroir de
miroir, il y a bien une différence,
une dyade, puisqu´il y a mime et
fantôme. Mais c´est une différence
sans référence, ou plutôt une
référence sans référent, sans unité
première ou dernière, fantôme
qui n´est le fantôme d´aucune
chair, errant, sans passé, sans
mort, sans naissance ni présence.
» - DERRIDA, Jacques. La
Dissemination. Paris: Éditions du
Seuil, 1972, p. 255.
155
mundo visível, torna-se, por assim dizer, demasiado obtusa em Blanchot. A
claridade, aqui, queima as retinas de quem a experimenta. E é este o « símbolo
central » da narrativa.17 O dia que fere os olhos de quem o enxerga é o dia da
reiteração, da repetição infinda da narrativa, do acontecimento propriamente
mimético da literatura. Poderia-se falar, em termos fenomenológicos, de um
evento no qual o personagem não consegue dar conta de seu mundo, mas é
obrigado a viver sob seu signo. Um relato, enfim, em que é narrado um evento
inapropriável sob o horizonte do mundo. Um nexo de significação, como foi
dito, mas limitado em seu próprio ser. Como Blanchot já havia dito em La
Littérature et le Droit à la Mort, um dos ensaios cruciais reunidos em La Part
du Feu, o dia da literatura não é o dia enquanto transparência, desvelamento da
verdade do ser, mas o dia enquanto inevitabilidade, enquanto impossibilidade
de cessar a visão. Como escapar ao domínio do sentido? Qual a literatura,
se há, que dará testemunho do impossível sentido do que não se dá sob o
horizonte do sentido? Como operar sob o registro duplo da linguagem, dado
que esta é a linguagem que edifica o próprio dia? É possível escapar ao poder
realizador da linguagem ?
En niant le jour, la littérature reconstruit le jour comme fatalité;
en affirmant la nuit, elle trouve la nuit comme l’impossibilité de la
nuit. C’est là sa découverte. Quand il est lumière du monde, le jour
nous rend clair ce qu’il nous donne à voir il est pouvoir de saisir,
de vivre, réponse « comprise » dans chaque question. Mais si nous
demandons compte du jour, si nous en venons à le repousser pour
savoir ce qu’il y a avant le jour, sous le jour, alors nous dévouvrons
qu’il est déjà présent, et ce qu’il y a avant le jour, c’est le jour encore,
mais comme impuissance à dis paraître et non comme pouvoir
de faire apparaître, obscure nécessité et non liberté éclairante. La
nature donc de ce qu’il y a avant le jour, de l’existence prédiurne,
c’est la face obscure du jour, et cette face obscure n’est pas le mystère
non dévoilé de son commencement, c’est sa présence inévitable,
un « Il n’y a pas de jour » qui se confond avec un « Il y a déjà
du jour », son apparition coïncidant avec le moment où il n’est
pas encore apparu. Le jour, dans le cours du jour, nous permet
d’échapper aux choses, il nous les tait comprendre et, en nous les
faisant comprendre, il les rend transparentes et comme nulles; mais le jour est ce à quoi on n’échappe pas : en lui nous sommes
libres, mais lui-même est fatalité, et le jour comme fatalité est l’être
de ce qu’il y a avant le jour, l’existence dont il faut se détourner
pour parler et pour comprendre.18
17. « Pero lo día no es solamente
la sincronía de lo sucesivo,
la presencia donde el tiempo
se abisma, donde se envuelve
en las horas sin que él nada
se ensombrezca, y donde el
ensombrecimiento mismo tiene
su hora; el día no es solamente
el énfasis de una existencia
que, a fuerza de ser, se muestra
e resuena y resplandece en
conciencia. En cuanto claridad
y visión, la conciencia es
también una modalidad del ser
que toma distancia en relación
consigo mismo, representacion
que no pondera ya a sí misma
ateniéndose a su propia medida
en la transparencia de la verdad;
transparencia donde se disuelven
las pantallas y se disipan las
sombras que crean contrastes y
encierran el ser en contradicciones;
transparecia donde el ser se hace
verdad. Que esta apertura de la
verdad – esta claridad que adviene
en la transparencia del vacío –
pueda herir la retina como un
cristal que se rompe sobre ele ojo
agudizando su vista, y que esta
herida sea buscada, sin embargo,
como lucidez e y desencantamiento,
he ahí nuevament en qué consiste
la locura del día. Iteración
infinitamente repetida de la locura
deseada como luz del día que hiere
el ojo que lo busca. ‘ A punto estuve
de perder la vista por haberme
machacado alguien cristal en los
ojos’ – aquí tenemos el símbolo
central de la Locura del día.
» - LEVINAS, Emmanuel. Sobre
Maurice Blanchot. Madrid: Trotta,
2000, p. 85.
18. BLANCHOT, Maurice. La
Part du Feu. Paris: Gallimard,
1949, p. 318.
156
É da visão que a palavra nos liberta, diz Blanchot, pois a palavra é
responsável pela derrubada de um certo paradigma ótico da tradição ocidental
do pensamento. Pois a visão supõe a separação, e a separação que a noção de
horizonte sugere, isto é, a separação que opera enquanto mediação entre a
distância e a presença; como a linguagem cotidiana que supõe transparecer o ser
das coisas, a ênfase na visão supõe a transformação da distância em imediata,
em « i-mediatriz », nos termos de Blanchot, trazendo ao olho a presença total
de um horizonte, em que a linguagem é toda ela preenchida por significações
que se preenchem de intuições. A visão define com clareza os seus limites. É
por isso que « falar não é ver »: enquanto a visão nos retém nos limites de um
horizonte, as palavras desorientam, suspendem a relação entre a percepção e
o horizonte, contra a soberania do olhar. « la terrible parole passe outre à toute
limite et même à l´illimité du tout », nos diz Blanchot. São vários os textos
que exploram esse aspecto central da obra de Blanchot, e que diz respeito
também a sua relação com a fenomenologia, não somente a fenomenologia
tratada topicamente em seu texto, mas o que há de crítica fenomenológica
em seus escritos. O de Marlène Zarader é um exemplo recente. 19 A autora
explora algumas das possíveis leituras fenomenológicas da obra de Blanchot,
e busca demonstrar que não se trata em sua obra somente de uma descrição
do fenômeno do Neutro, do Fora ou da Literatura, mas também a tentativa
de mostrar como esses eventos impossibilitam sua reinscrição sob a própria
noção de horizonte. O « dado» que aparece do mundo e do horizonte, na
obra, é para Blanchot seu próprio «éclatement», uma experiência – se é que
continua sendo uma experiência – de sua própria impossibilidade. Trata-se
de procurar pensar, uma vez e sempre, qual o papel da literatura em pensar
esse evento do fora do horizonte do mundo. Como diz Blanchot em Le Livre à
Venir, « mais decisiva que o dilaceramento dos mundos, é a exigência que rejeita
o próprio horizonte de um mundo » 20.
Não somente nos ensaios recolhidos em La Part du Feu, como pode-se
notar acima, mas também em L´Espace Littéraire, e no Le Livre à Venir, toda
a literatura e crítica de Blanchot é um esboço das formas possíveis de acesso
à esta experiência liminar. Este esforço se acentua em seus escritos literários,
mas sua crítica não cessou nunca de buscar esse lugar limítrofe, a que se
deu diversos nomes: neutro; literatura; obra; desastre. A sucessão dos nomes
dissimula, talvez, a dificuldade de acesso de cada um desses fenômenos, se
19. Referimo-nos a L´Être et
le Neutre: à partir de Maurice
Blanchot. A autora explora as
relações de Maurice Blanchot
com a noção de horizonte.
Dele extraímos a seguinte
passagem, se referindo à postura
“fenomenológica” da obra
de Blanchot: “ (...) la donnée
phénoménologique est aytre: ce
qui apparaît du monde, c´est son
éclatement, et ce qui est vécu
au cours de cette expérience,
c´est son impossibilité. C´est
une telle donnée que Blanchot
s´emploie à décrire. Et c´est en
parfaite conformité à l´expérience
dans laquelle elle se donne
qu´il la nomme: le Dehors.
Cette expérience en effet ne se
situe pas dans le monde (ce qui
reconnaissait Maldiney), elle
n´ouvre pas non plus un autre
monde (en tout cas, rien en elle ne
permet de l´affirmer), elle désigne
bien plutôt l´autre de tout monde:
ce qu´Yves Bonnefoy nommait
(pour s´en détourner) ‘le revers
inhabitable du monde’. C´est parce
qu´elle est vouée à se déployer
hors du monde qu´elle peut et doit
être dite ‘dehors’.” – ZARADER,
Marlène. L´Être et le Neutre:
à partir de Maurice Blanchot.
Lagrasse: Verdier,
2001, p. 105-6.
20. BLANCHOT, Maurice. Le
Livre à Venir. Paris: Gallimard,
1959, p. 278.
157
podemos ainda chamá-los assim. Poderíamos dizer que se trata sempre da
mesma « experiência-limite », termo que Blanchot utiliza ao falar de Georges
Bataille, se a sucessão dos nomes não mostrasse precisamente que os termos,
ainda que somente indicativos, não bastam para dar conta do que pretendem
indicar. Na experiência-limite, a negação dialética da atualidade cessa de
operar; e o que o mesmo Bataille denominou « excesso do trabalho », trabalho
responsável por erguer o mundo do sentido, torna-se o excedente sempre
presente e ausente, inacessível à apropriação do próprio trabalho.
Os procedimentos textuais utilizados por Blanchot são muito variados,
mas alguns exemplos podem ser dados, e definitivamente merece destaque o
que Evelyne Grossman apontou em L´Angoisse à Penser: o uso que Blanchot
faz dos anagramas. De maneira análoga à de Saussure em seus Anagramas,
Grossman busca no texto de Blanchot (em especial em Thomas l´Obscur) a
repetição de sílabas e letras, a ida e vinda de sílabas e letras, jogo que fica
muito claro em certos momentos dos récits e romances de Blanchot. Podemos
estender esse argumento e dizer que em Blanchot a concepção da própria
escritura é anagramática, a escritura é entendida enquanto retorno sempre
possível do anagrama: nela as palavras são antecipadas, adiadas, retomadas,
suspendidas, tornando o movimento do texto (que, como foi mencionado,
já carrega consigo certo efeito de estranheza) um movimento de vai e vem,
de relação e derrelição, de idas e voltas, e não somente ao nível da narrativa
como um todo, mas ao nível das sílabas, das letras, ao nível dos fragmentos
indetermináveis de palavras (e este é um dos sentidos em que se pode afirmar
que a escritura de Blanchot é fragmentária). A questão que jamais é deixada
de lado é se há uma linguagem que possa agir sem edificar, sem participar da
constante retomada da realização do mundo do dia.
Não se poderia deixar de lado, em uma análise da questão do limite
na obra de Blanchot, a função que a imagem desempenha em seus textos.
A imagem é esse âmbito que apresenta uma dimensão ontológica irredutível
à significação e à verdade. Pois existem duas dimensões do imaginário para
Blanchot: há a imagem enquanto imitação de um modelo disponível de
antemão, a imagem enquanto mímese, repetição bem ou mal sucedida de
algo que lhe é anterior; e há a noção de imagem explorada pela literatura,
a imagem enquanto o próprio movimento da alusão e da analogia. Nesse
domínio, a imagem se relaciona à fascinação: distintamente de quem vê, isto
158
é, quem domina a distância, quem tem ainda o poder de manter à distância
cada elemento do horizonte, que pode evitar se confundir com as coisas que
vê, a imagem enquanto fascinação remete a um outro tipo de visão. No caso
de quem sofre a atração da imagem, o ver é entrar em contato, é confundir-se
com a coisa. Levados pela força da imagem, perdemos a capacidade de dotar
toda experiência de um sentido, isto é, de doar-lhe um limite. A imagem faz o
mundo recuar, se afirmando em uma presença constituída de ausência, uma
presença estranha à toda presença temporal ou espacial. Uma vez atingida
pelo fascínio – pela « paixão da imagem » – a visão se confunde com o visto.
Perdido o foco do olhar, a visão não é mais entendida como a possibilidade de
ver, mas sim como « impossibilidade de não ver ».
Como no récit – é essa uma das faces da Folie du Jour –, quem se
encontra sob o domínio da fascínio não percebe objeto algum, não vê nada
senão o « meio indeterminado da fascinação », meio absoluto em que os
limites são destroçados pela profundidade sem limites da própria imagem,
« absolutamente presente embora não dada», em que os objetos afundam,
deslizam para o horizonte indeterminado e absoluto da imagem. Não se
delimita mais um começo e um fim do horizonte, um começo e um fim da
atração, quando é do imaginário que se trata. A imagem, no domínio do
imaginário, não é mais o que alude a outra coisa, mas, como foi dito, o próprio
movimento infinito da alusão. E a literatura – a escritura – é a entrada no
abismo da fascinação, no domínio do imaginário. É deixar que a linguagem
seja arrebatada pelo fascínio, por essa « ouverture opaque et vide sur ce qui est
quand il n´y a plus de monde, quand il n´y a pas encore de monde ». A obra
de Blanchot é cheia dessas pequenas lacunas, desses buracos que vazam o ser,
dessas aberturas que deixam vazar o mundo, figuradas também nesses olhos
abertos sobre si mesmos, refletindo o vazio de seu próprio olhar, aparição
da dissimulação enquanto dissimulação. Em Thomas l´Obscur temos um
exemplo citado à exaustão desta visão opaca, voltada sobre si mesma.
Les mots, issus d’un livre qui prenait une puissance mortelle,
exerçaient sur le regard qui les touchait un attrait doux et paisible.
chacun d’eux, comme un œil à demi fermé, laissait entrer le regard
trop vif qu’en d’autres circonstances il n’eût pas souffert [...] Il se
voyait avec plaisir dans cet œil qui le voyait. Son plaisir même
devint très grand. Il devint si grand, si impitoyable qu’il le subit
avec une sorte d’effroi et que, s’étant dressé, moment insupportable,
159
sans recevoir de son interlocuteur un signe complice, il aperçut
toute l’étrangeté qu’il y avait à être observé par un mot comme par
un être vivant, et non seulement un mot, mais tous les mots qui
se trouvaient dans ce mot, par tous ceux qui l’accompagnaient et
qui à leur tour contenaient eux-mêmes d’autres mots, comme une
suite d’anges s’ouvrant à l’infini jusqu’à l’œil absolu.21
A própria linguagem poética é redefinida, por Blanchot, em uma das
notas mais importantes do Espace Littéraire, não como a linguagem figurativa,
comparativa, metafórica e metonímica, mas a linguagem que não produz
imagem, que não figura. Não signos, mas « imagens, imagens de palavras e
palavras em que as coisas se fazem imagens ». No mundo do dia, as coisas, os
entes são transformados em objetos, de modo que se estabelece entre elas uma
divisão clara, garantindo a continuidade do espaço, mantendo as distâncias
conhecidas em seu lugar e garantindo, talvez, uma estadia. No imaginário as
coisas são levadas à aporia de sua aparição, e é nessa interrupção do circuito
do mundo – que, de certa forma, era já a concepção heideggeriana da obra de
arte22, sempre presente nos escritos de Blanchot, ainda que de forma negativa – é
que inopera a literatura, retirando-nos o abrigo possível do mundo, sacudindo
mesmo o limite entre o sujeito e o mundo e marcando a descontinuidade entre
a palavra e o mundo, sulcando no seio do mundo a profundidade ilimitada
da imagem, imagem essa que, diferentemente do signo, não significa, não
acena, não desvenda, não alude, ou deixa plenos de intransitividade todos
esses verbos, não restando senão o movimento metonímico da alusão. Não o
além, mas o aquém do mundo, a sua eterna iminência.
Uma literatura que se detém na soleira do mundo, que busca na
linguagem os artifícios e a potência capaz de interromper as realizações da
própria linguagem, « o sol situado eternamente abaixo do horizonte, a mancha
cega que o olhar ignora, ilhota de ausência no seio da visão », é o que Blanchot
procurou insistentemente ao longo de toda sua obra. Pois a palavra, em
Blanchot, e é isso que deveria ter ficado evidente, talvez, nesse ensaio, sempre
já deslizou – o que torna a narrativa, sempre, a narrativa de um interlúdio, em
que o prelúdio era já o reinício do relato, o lugar em que esse «acontecimento
ainda por vir » do próprio relato é chamado a realizar-se.
21. BLANCHOT, Maurice.
Thomas l´Obscur. Paris:
Gallimard, 1950, p. 27-28.
22. HEIDEGGER, Martin. A
Origem da Obra de Arte. Lisboa:
Edições 70, 2005.
160
corpo de estrela
e s e x mac h i n e :
sobre a estética
d o g lamo u r
Serge Margel
161
corpo de estrela e sex machine:
sobre a estética do glamour
Serge Margel1
Convidado por Christian Indermuhle, no âmbito de um seminário
sobre a questão do “corpo-máquina”, este texto foi tema de uma conferência
na École Polytechnique Fédérale de Lausanne, em 13 de outubro de 2010.
Passos de corpo em corpo/ nem palavra nem fala, o gesto, atitude,
som, grito, suspiro,/ insuflação profunda que inspira ao homem o
esquecimento,/ o esquecimento do que quer que seja que pudesse estar
à volta do corpo simples/ O corpo humano./ Mas quem disse que era
um ser e que existia?/ Ele vive./ Isto não lhe basta?/ Ganharei o nada
antes de ti, deus,/ dizia o corpo ao espírito, porque vivo./ E o que é um
corpo? / Ao que chamamos um corpo?/ Chamamos corpo a tudo o que
é feito sobre o modelo do homem,/ que é um corpo./ E quem jamais
disse ou acreditou que este corpo era o finito, estava finito?/ Cessou já de
viver,/ de avançar,/ até onde irá,/ não na eternidade certa mas no tempo
ilimitado?/ E isto que nunca o disse/ onde iria?/ Ninguém./ Até agora
ninguém. O corpo humano nunca está acabado./ É ele que fala, / ele que
bate,/ que marcha,/ que vive./ Onde está o espírito,/ que nunca se viu/
exceto para lhes fazer crer,/ nos corpos/ à sua volta, / como uma besta,
uma doença.
É assim que o corpo é um estado ilimitado que necessita que o
preservemos, / que preservemos o seu infinito./ E o teatro foi feito
para isto./ Para pôr o corpo em estado de ação ativa,/ eficaz/ efetiva,/
para devolver ao corpo o seu registo/ orgânico inteiro/ no dinamismo
e na harmonia./ Para não fazer esquecer ao corpo/ que é dinamite em
atividade. / Mas isto que ainda em um mundo em que o corpo humano
ainda só serve/ para comer/ para dormir,/ para chiar e/ para fornicar./
Quando o corpo humano se completou no coito disse tudo,/ pois o
Professor na Université de Lausanne e na Haute école d’art et de design de Genebra. O presente
texto apareceu em francês em La société du spectral, Éditions Lignes, 2012, p. 11-44.
1
162
coito da sexualidade apenas foi feito para fazer esquecer ao corpo pelo/
heretismo do orgasmo que é uma bomba,/ um torpedo enamorado/
perante o qual a bomba atômica de biquíni não têm mais, e não é mais,
que a/ ciência e a consistência/ de um velho talismã regressado.
Antonin Artaud, O corpo humano, maio de 1947.
Corpo híbrido, corpo fronteira
§ 1º – Esse texto de Artaud, que cito em destaque, abre aqui um
horizonte de leitura sobre o corpo-máquina e suas representações, seu teatro
ou sua cena. Entre a hipótese de um “corpo reprimido”, fechado, limitado,
censurado, dobrado sobre si mesmo, oprimido, vigiado, controlado, sempre
“mergulhado”, escreve Foucault, “em um campo político”, preso em relações de
poder “que o investem, marcam-no, domesticam-no, supliciam-no, obrigamno a trabalhar, forçam-no a cerimônias, exigem dele sinais”,2 e a hipótese de um
“corpo utópico”, aberto a forças múltiplas e infinitas, em “um estado ilimitado”,
como sob influência, e atravessado por potencialidades, por virtualidades ou
poderes, que fazem “o corpo entrar”, diz Foucault, “em comunicação com
poderes secretos e forças invisíveis”,3 entre repressão e utopia, fechamento e
abertura, na fronteira dos extremos, no limiar de uma tensão, é para aí que
seguem todos os seus sentidos, o que chamamos de “corpo-máquina”, mas
é aí que sobretudo o corpo mantém uma relação secreta com sua própria
morte, com seu espectro ou seu fantasma. Partindo disso, adoraria mostrar,
finalmente, ou sugerir algo bastante simples: a expressão “corpo-máquina”
pode ser traduzida como “poder de morte”, um poder, uma força, uma virtus,
que opera sempre entre a repressão e a utopia, fechamento e abertura, censura
e liberdade. Um poder que sobretudo se exprime, encena, em nossa cultura
ocidental, greco-romana e judaico-cristã, por essa cadeia significante de
exemplaridades, ou esse desafio de corpos exemplares, corpos híbridos, mistos
ou misturados, do herói, do mártir, do santo, do anjo, ou de “dois corpos de
Rei”, e hoje mais do que nunca da estrela.4
2. FOUCAULT, Michel, Surveiller
et punir – Naissance de la prison.
Paris, Gallimard, 1975, p. 30.
3. Idem. Le corps utopique,
les hétérotopies. Paris, Éditions
Lignes, 2009, p. 15.
4. Cf. MORIN, Edgar, Les stars.
Paris, Éditions du Seuil, 1972,
p. 38, e DYER, Richard. Le starsystème hollywoodien. Traduzido
do inglês por N. Burch. Paris:
L’Harmattan, 2004, p. 18-20.
163
O corpo de estrela, ou a exemplaridade de um poder de morte próprio
ao mundo ocioso, desencantado, livre, da modernidade, que nos convida a
pensar, a repensar hoje o que representa um tal poder no corpo, desde que se
diz “corpo-máquina”. Des jarretelles de Marlene Dietrich aux James Dean, eis o
que poderia ter se tornado o título deste texto, eis sobretudo duas modalidades
exemplares, poderíamos dizer de modo mais simples, duas formas, duas
formatações ou encenações dessa máquina de morte, que diz o corpo em
seu hibridismo. Evocando aqui a máquina, a maquinaria, entre produção e
estratagema, engenhosidade e embuste, da mercadoria à farsa, é sobre a cena
que gostaria de falar, a encenação, mas também o obsceno, o fora de cena, uma
cena que se dobra sobre si mesma, como quando arregaçamos as mangas, ou
viramos do outro lado o invólucro de uma luva. O obsceno, escreve Baudrillard,
é o corpo que se reveste de suas próprias secreções,5 que surge, representa-se,
é mostrado descoberto ou livre de seus segredos. É um corpo que é encenado
naquilo e por aquilo que oculta, um corpo que se manifesta para o exterior,
ou que torna visível o que produz para o interior, e em segredo. A “secreção”
é evidentemente a questão do segredo, “poderes secretos e forças invisíveis”
de que fala Foucault, que se desdobram em toda obscenidade e ainda em toda
discrição, na cadeia significante das exemplaridades, aqui para nós este corpo
de estrela – sua estética, sua retórica, sua gramática, nomeada glamour. E este
é, talvez, a única tese que defenderei aqui: o glamour é a gramática do obsceno.
5. “Um corpo suado já oferece
uma relutância e atração erótica.
A tentação primordial do corpo
de se revestir de suas secreções”,
em: BAUDRILLARD, Jean. O
que você esta fazendo depois da
orgia?.Traverses, 29 (L’obscène),
1983, p. 8.
Mas voltemos ao corpo-máquina, à sua expressão e seu “traço”: um
corpo “que é” máquina, que é “apenas” máquina, poderíamos dizer também
“que maquina”, que, portanto, “forma em segredo”, segundo a definição de
Robert, “desenhos, combinações contrárias à honestidade, à legalidade”.
Maquinar significa urdir, combinar, conspirar, conluiar, entrançar, tratar, mas
também conspirar e intrigar. Ora, onde podemos dizer do corpo-máquina
que ele “maquina”, e como compreender o que liga do interior, secretamente
tanto quanto soberanamente, a máquina e a maquinação? Há sem dúvida um
segredo – “maquinar é formar em segredo” –, mas também uma secreção,
que secreta o poder de morte do corpo-máquina. E, para ir rapidamente,
talvez um pouco rápido demais, já poderíamos dizer que o corpo-máquina
é o corpo que forma em segredo uma relação soberana com sua morte, com
164
seu próprio desaparecimento, ou que produz o segredo de sua morte – nós o
veremos, que secreta sobre seu corpo uma superfície de ilusão, a imagem de
seu desaparecimento, de seu fantasma ou de seu espectro. Quando se diz em
latim machina, é preciso ouvir uma “maneira engenhosa usada para alcançar
um resultado”. E é nisso que consiste a “máquina”: um meio, porém engenhoso,
um meio como nenhum outro, que permite alcançar um resultado, visar a um
fim, a um objetivo, a atingir um propósito, ou ainda um meio que permite
produzir algo para alguém.
Voltemos um pouco mais atrás: da máquina, em latim machina,
chegamos ao machana em grego, aí também a máquina, mas que provém, por
um lado, de mèchos, meio, expediente, preservativo ou remédio, e, por outro,
de mèchanè, invenção engenhosa, máquina de guerra ou máquina de teatro –
aqui vemos a questão da cena reaparecer – a máquina de artifícios, de truques
ou de subterfúgios, que fabrica algo que afeiçoa e dissimula. Continuando o
jogo lexical do termo machana, vemo-lo relacionado ao verbo alemão e eslavo
mag, alto-alemão antigo magen, megin, hoje mögen, e Macht, “o poder”, “a
força”. O mogol, o mongul, este “personagem potente, importante, influente”,
que designa ainda hoje e especialmente na indústria do cinema o grande
proprietário hollywoodiano, que determina, possui e domina o mercado. A
máquina tem um poder, uma força que lhe permite ao mesmo tempo exercer
uma influência, ou produzir uma rede de influências, e formar em segredo as
combinações fora de controle, de inventar truques, subterfúgios para frustrar
soberanamente os olhares e burlar qualquer espera. A máquina é enganada,
a máquina é um engano, um passe, um bom dito, um chiste. Ela sempre
age em segredo, ela sempre engendra um segredo, um deixar de lado, um
deixar em permanência, que produz algo, um objeto ou um corpo, secretando
sua própria morte, uma relação com sua morte, como uma imagem de seu
desaparecimento.6
A máquina é um corpo como o corpo é uma máquina, ou “maquina”,
urde, combina, manipula e intriga. Ora, no “corpo-máquina”, há máquina,
e há corpo. Há “o que maquina”. E este corpo, poderíamos dizer doravante
seu “dispositivo”, significa, em primeiro lugar, em grego o “cadáver”, o corpo
inanimado, ou o corpo morto. E se a invenção da filosofia – outra máquina,
outro truque – opõe tão radicalmente o corpo à alma, a sôma e a psyché, a
6. É o que destaca Derrida
em sua leitura de Freud e da
máquina do aparelho psíquico:
“A máquina não anda sozinha,
isso significa outra coisa:
mecânica sem energia própria.
A máquina está morta. Ela é a
morte. Não porque arrisquemos
a morte ao brincarmos com as
máquinas, mas porque na origem
das máquinas está a relação com
a morte”. (DERRIDA, Jacques.
Freud et la scène de l’écriture. In:
L’écriture et la différence. Paris: Le
Éditions du Seuil, 1967, p. 335).
A este respeito, remeto ao artigo:
SZENDY, Peter. Machin, machine
et mégamachine. In: FAROCHI,
Harun, GRAHAM, Rodney.
Paris: Black Jack Éditions, 2009,
p. 66-75.
165
razão, a palavra, o logos, é que o termo sôma, vemo-lo em Homero, designa
precisamente o “corpo morto”, ou mais exatamente o “corpo de morte”, morte
em combate, fria, dura, imóvel, e se opõe não à psyché, mas ao démas, “o
corpo vivo”, a postura, a marcha, a torção. Não há corpo unificado que viva
submetido aos princípios de um logos, em Homero, mas há várias posturas,
várias torções, que cortam membros, braços, pernas, mãos, sexos, olhos,
bocas, ou que articulam gestos, atos, olhares e palavras na trama de um
muthos, de uma história, uma narrativa, uma odisseia. Quando falamos de
sôma, de corpus, então a história se conclui, a narrativa é fechada, o corpo
está morto, cadáver, algo que cai no chão. E, se a máquina é um poder, uma
força que produz sempre secretamente alguma coisa para alguém, o corpo
é um cadáver, é sempre o corpo de uma morte, do morto ou da morte.
Daí essa tradução possível, esta transcrição do “corpo-máquina” para “o poder
de morte”.
Dizer do corpo-máquina que ele é como um poder de morte propõe
finalmente uma pista de leitura, uma aproximação, uma perspectiva ou um
ponto de vista para abordar este desafio de exemplaridades, do herói à estrela.
Como falar do corpo, uma vez que sua potência ou sua força está sempre
investida pelo próprio corpo, como um poder de morte? Spinoza e Deleuze
diriam que o corpo expressa maquinalmente suas potências, que ele as
contém e ao mesmo tempo as manifesta, expõe-nas, mas sempre como um
poder da morte, isto é, como um poder sobre a morte, que se exerce no sujeito
da morte, por diferentes formas de representações, de produções, físicas,
biológicas ou simbólicas, até mesmo sociopolíticas, mas também como um
poder da morte, em que é a morte, se assim podemos dizer, que opera, produz,
trabalha e mesmo representa, agindo sobre o corpo por seus próprios meios.
No e por meio do corpo-máquina, a morte é também um meio, um mèchos,
uma ferramenta, um expediente, um remédio. A morte nunca se reduz ao
simples fato de um acidente que acontece ao corpo. A morte não é – ou não é
somente – o que acontece ao corpo acidentalmente, ela constitui, muito pelo
contrário, sempre o que o corpo produz maquinalmente. Como uma “força
produtora”, uma força de trabalho, uma força útil, que afeiçoa e dissimula, a
morte permite ao corpo “se produzir”, como dizemos de um ator no palco que
ele se produz em cena, que ele se apresenta, ou se representa “em comunicação
166
com poderes secretos e forças invisíveis”. Ela lhe permite, lhe dá, lhe oferece,
nós veremos lhe prometer uma relação em segredo, a seus poderes secretos,
a suas próprias secreções. Ela promete soberania, ou lhe promete revelar seu
segredo pela metamorfose de sua realidade em ilusão, ou formando a imagem
de seu desaparecimento.
§ 2º – Todos os corpos exemplares secretam, todos expressam
secretamente uma relação com a morte. O herói, morto na batalha, o mártir,
morto por sua fé, o santo, que morreu de amor, todas essas mortes são
narrativas, como em Homero, narrativas, encenações, retóricas, gramáticas
do desaparecimento, diremos hoje, estéticas, especialmente quando se trata
do corpo exemplar da estrela, e de sua estética chamada glamour. Mas prefiro
falar em gramática. Vamos ver rapidamente o porquê. Segundo a hipótese que
coloquei em debate aqui, o glamour estará para a estrela assim como o combate
está para o herói, o sacrifício para o mártir, a devoção para o santo. Este é o
lugar secreto de um poder de morte em que se encena, forma-se em segredo,
digamos, maquina-se uma força produtora de morte e de desaparecimento.
Em suma, é um lugar de secreções, entre o corpo e sua própria morte. Mas a
que chamamos glamour? Trata-se de um anglicismo, que nada tem nada a ver
com a morte, nem mesmo com o amor. Citemos a descrição de von Sternberg,
o diretor que “inventa” ou “maquina” Marlene Dietrich:
O glamour é a qualidade que consiste em provocar, deslumbrar,
seduzir, fascinar, encantar, enfeitiçar, todas coisas que submetem
a estrutura emocional do espectador a um estado de vibração e de
torção. O glamour pode igualmente, embora raramente, produzir
uma satisfação puramente estética, distinta de qualquer impulso
primitivo, começando por esvaziar o corpo de todo seu sangue.7
A sedução, o fascínio, o arrebatamento, o encantamento, todos termos
aqui para denotar uma retórica da submissão, da caça e da captura – “todas
coisas que submetem a estrutura emocional do espectador a um estado de
vibração e de torção”. Muitos termos, especialmente, para dizer a magia de
um segredo e, ao mesmo tempo, para expressar um poder de secreções.
Na verdade, e contra todas as expectativas, a palavra glamour provém de
7. Artigo: GRAEFE, Fr. “Marlene,
Sternberg. Glamour, beauté née
de la caméra”. In: G. FARINELLI,
G.; PASSEK, J.-L. (orgs.). Stars
au féminin: naissance, apogée et
décadence du star system. Paris:
Éditions du Centre Pompidou,
2000, p. 124-5.
167
“gramática” e designa esta gramiae, esta remela em francês, essa secreção
remelosa, este líquido pegajoso que se acumula sobre a borda das pálpebras.
Falamos de remela viscosa, dizemos, os olhos estão remelosos. “Ele lava os
olhos”, escreve Lesage em Gil Blas, “para remover uma espessa remela de que
estavam cheios”. Nossa fonte latina é o gramático Festus, diz precisamente
Festus grammaticus, ao fim do século II d.C: “Gramiae oculorum sunt vitia,
quas alii glamas vocant”.8 Gramiae é outro termo para glama, do grego glamôn,
“remeloso”, que encontramos em vários termos bálticos e em outros: em
lituano gléimes, em polonês gléimes, ou em inglês clemmy “pegajoso, tenaz”,
em seguida, em nosso glamour, essa secreção viscosa, este líquido espesso que
se acumula na borda das pálpebras, e que às vezes cobre os olhos – como para
velá-los, perturbá-los, enfeitiçá-los. A palavra remelosa também o diz muito
bem, do francês antigo chacie, do latim vulgar caccita, derivado de cacare,
merda em francês, ou mais precisamente, excretar, secretar algo de dentro.
8. A palavra francesa grimoire
significa livro de magia, conforme
o próprio autor esclarece.
Optamos por não traduzi-la
com o intuito de acompanhar
as relações etimológicas que seu
texto pretende estabelecer com
outras palavras. (N. do T.)
E não há somente glama em glamour, mas há também gramma.
Citemos ainda uma definição de dicionário:
Do escocês gramarye (“magia, encantamento, feitiço”), glamour
vem de uma longa história, da palavra francesa gramática, que
originalmente significava praticamente tudo o que poderia se
relacionar com áreas de difícil compreensão ou dissimuladas.
A palavra grimoire [livro de magia] tem a mesma origem.
Encontramos o termo gramarye, que evolui para glamour, e
designa a magia, ou pelo menos um encanto ou encantamento.
Com o cinema, o significado se restringe ao encanto feminino.
Isso é um pouco parecido com o emprego da palavra “magia” ou
“mágica” para descrever um ambiente extraordinário.9
Mais uma vez o encantamento, o arrebatamento, o fascínio, a sedução,
o encanto. O glamour é mágico, mas uma magia secreta, criptografada,
cifrada, obscura ou incompreensível. Como em “gramática”, que significava
precisamente em latim medieval os regimes de ininteligibilidade, daí esta
alteração do termo em gramoir, depois grimoire, livro de magia, livro misterioso,
livro secreto de feitiçaria. Em Igitur, de Mallarmé, o livro de magia [grimoire],
o lugar onde está guardado o segredo do Livro. Um livro a decifrar, um livro
em que se deve decifrar o segredo, digamos, naquilo que nos diz respeito, tudo
9. Cf. fr.wiktionary.org/wiki/
glamour. Sobre a complexidade
do termo inglês glamour, e seus
derivados, leremos também
The Century Dictionary and
cyclopedia. New York: Century
co, 1896.
168
o que submete “a estrutura emocional do espectador a um estado de vibração
e de torção”.
Mas a corrente continua. De gramática para gramoir, de gramoir
para grimoire, encontramos ainda em franco “grima”, máscara, como em
grimace [careta], grimaud [trombudo], grimage [caracterização para teatro],
ou simplesmente grimer [caracterizar-se], para dizer pintar, maquiar,
especialmente quando um ator marca linhas para envelhecer o rosto. Um
termo que também pode significar até mesmo, por metonímia ou sinédoque,
a própria cabeça, o ar ou a expressão. Faire la grime [fazer careta] é fazer
beicinho, fazer cara feia, mostrar-se enfadado, como se diz. Encontramos
também em alemão moderno Grimm haben (estar com raiva) ou grimmig
gucken (olhar com raiva), e, em russo, grim significa simplesmente maquiagem.
Mas grima é também no saxão antigo “espectro”, que encontramos hoje no
inglês Grim Reaper, bicho-papão ou ceifeiro de cabeça, alegoria da morte.
Há tudo isso na palavra glamour, a secreção, o livro de magia [grimoire] e
a face da morte. Um ar, uma expressão, um olhar, um look, que expressam
uma relação secreta com a morte ou que secretam algo da morte – digamos,
que encenam um líquido viscoso, uma cor verde-azul da morte. O glamour
é o corpo-máquina da estrela, o corpo que maquina e engana, urde e trama,
trata, entrança e combina um segredo de morte, para soberanamente lançar
um feitiço, para enfeitiçar, como enredar, ou enganar os olhos do espectador.
O glamour diz respeito a uma questão de olhos, não diretamente a partir da
visão, do visual ou do visível, mas a partir do olho, de sua esfera globular,
que engloba tudo, secretando um líquido viscoso, tal como o muco, em que
imagens se aglutinam. Mas o que dizer deste corpo-máquina exemplar, desde
que seu glamour se restringe ou se reduz unicamente ao “encanto feminino”?
O corpo de estrela é sempre um corpo de mulher, um corpo feminino, um
corpo no feminino? O corpo-máquina não pode maquinar mais do que o
corpo feminino, embuste de feminilidade? Em suma, há apenas sex machine
feminino? E o corpo exemplar, protótipo de uma modernidade desencantada,
não pode mais produzir ou encenar o único nome de uma mulher, ou seu
nome de batismo: Marlene, Greta, ou Marilyn?
Lembremo-nos da palavra de Sternberg: “Marlene, sou eu”. Eu vou
estar de volta em um instante, o tempo para citar uma longa passagem sobre
o glamour no feminino:
169
Como qualquer coisa, o glamour conhece estilos; em alguns anos,
ele enfatiza as senhoras gordas em calças justas, empoleiradas
sobre bicicletas, como nos primeiros daguerreótipos; mais um
ano, ele se casa com seios roliços, pernas enfeitadas com ligas,
os véus e outros chapéus extravagantes, características de figuras
estáticas, de olhos angelicais, de meladas nudezas afligidas pela
síndrome de pin-up; e agora é o reinado de tristeza documentária.
Mas uma das características – a principal – do glamour que
permanece inalterada é que ele promete algo que não pode oferecer.
Na fotografia, o glamour é o tratamento da superfície, uma superfície
que ainda não tem a espessura da epiderme; ela é apenas a espessura do
papel que reproduz a imagem. Para o caso de que ainda não tenhamos bem
compreendido, beleza interior e beleza exterior não compartilham o mesmo
endereço.
Diz-se que o glamour era uma arte perdida. Eu não acho que ele nunca
tenha sido um produto atual com uma estreia e um fim. Não é uma invenção
nascida com a fotografia. Lendas de glamour estão enraizadas na história. Para
citar alguns, aqui Helena e seus mil navios, Phryne que turva as ideias de
seus jurados, Cleópatra e o tapete enrolado, e mais recentemente Duse que
decide rastejar diante de Annunzio; as mulheres de glamour são uma legião. É
preciso naturalmente considerar que o ápice do glamour só é acessível desde
que se disponha de uma grande personalidade. Seja qual for seus poderes de
sedução, uma mulher nua em um calendário é apenas uma entre milhares
de outras, até que ela seja identificada com a personalidade de uma Marilyn
Monroe.
As duas representações mais populares de glamour nos primeiros
anos do cinema, antes de ser reduzido a esqueleto visual nas vozes que se
entrechocam, foram Garbo e Valentino. De Valentino é melhor dizer o menos
possível; suas maneiras beiravam o ridículo. Mas a imagem de Garbo, que se
diz ser glamour, tem mostrado uma permanência extraordinária. Da Suécia
e formada por um mestre artesão, Mauritz Stiller, ela conseguiu tomar a
consciência do mundo inteiro com sua elegância e personalidade. Uma análise
objetiva de sua imagem, que ainda pertence à aparência glamourosa, revela
uma aparência lânguida, quase anêmica, uma voz grave, quase masculina, e
170
um luminoso par de olhos trágicos que parecia ir mais em direção ao interior
do que em direção ao que havia para ver. Mas é difícil examinar objetivamente
o glamour. A imagem de Garbo teve um impacto não só sobre a maioria dos
homens, mas também sobre quase todas as mulheres. Ela não se considerava
uma imagem de glamour – longe disso –, mas apenas a menção de seu nome
despertava êxtase em outras mulheres. Que isso afetou outras pessoas do
mesmo sexo é digno de nota, já que o glamour de uma mulher não se destina
a provocar apenas a emoção masculina.10
§ 3º – O glamour é a moda, a arte do efêmero, da passagem, da mudança;
do “transitório”, diria Baudelaire; hoje falamos de tendências.11 O glamour
é tendência, por vezes valorizando um corpo em bicicleta, às vezes “pernas
enfeitadas com ligas”, mas quase sempre há corpos femininos. E, se há Valentino,
seu glamour é grotesco, seu olhar, sua aparência, suas maneiras são ridículas:
“De Valentino é melhor dizer o menos possível; suas maneiras beiravam o
ridículo”. Enquanto Valentino cria maneiras, assume aparências educadas,
afetadas, comprimidas, carecendo assim de naturalidade, de simplicidade, e
de consistência, Garbo “tem mostrado uma permanência extraordinária”. Ela
provou a permanência de uma personalidade, “uma grande personalidade”,
embora ainda condicionada ou formada por um “mestre artesão”. “Da Suécia
e formada por um mestre artesão, Mauritz Stiller, ela [Garbo] conseguiu
tomar a consciência do mundo inteiro com sua elegância e personalidade”.
Como um demiurgo, aqui o mestre artesão, de sua mão firme e hábil, revela ao
mundo, destaca e traz à consciência as potencialidades da mulher, as virtudes
adormecidas, os poderes secretos, as forças latentes e invisíveis de elegância,
de fascínio, de êxtase, de sedução e de provocação que habitam como um
sex machine o corpo enfeitiçante da mulher. A mulher não tem acesso a suas
próprias forças. Sem a intervenção de um mestre artesão, um intérprete, um
hermeneuta, um tradutor de encanto em algum feitiço, ela jamais poderá
liberar, expressar, expor ou usar à luz do dia, fazer ouvir, encenar ou produzir
suas propriedades essenciais, seus atributos especificamente femininos,
seus atrativos sexuais, suas atrações maquinais, da graça à elegância, ou
ainda revelar seu segredo, que a natureza levou tantos milênios para criar.
Escreve Sternberg:
10. “The von Sternberg
Principle”, op. cit.,
p. 124, grifo nosso.
11. Cf. CHASTELLIER, Ronan.
Tendançologie. La fabrication du
Glamour. Paris: Eyrolles, 2008,
spéc. p. 13-15.
171
Eu não tinha a intenção de reduzir a grandiosidade da feminilidade,
porque nada no mundo é mais gracioso e sedutor do que uma
mulher em plena floração. A natureza fez muitos experimentos
antes de chegar a uma versão perfeita. Mas o homem não se
satisfaz em reconhecer às mulheres as extraordinárias qualidades
que levaram milhões de anos para eclodir e prefere muitas vezes
uma imagem cujas qualidades nascem da fração de segundo que
foi usada para encerrar a realidade em uma caixa preta para fazer
dela uma ilusão.12
12. “The von Sternberg
Principle”, op. cit., p. 124.
Ouvimos não apenas ressoar aqui o antropofalocentrismo “Marlene,
sou eu”, mas vemos como sobretudo o glamour, sua gramática, sua retórica,
sua estética, inscreve-se como um momento de ruptura, descontinuidade,
utopia no curso da história. Por um lado, “a natureza fez muitos experimentos
antes de chegar a uma versão perfeita [da mulher]”. Vimos acima que “as
lendas de glamour estão enraizados na história”, “Helena e seus mil navios”,
“Cleópatra e o tapete enrolado” e muitas outras histórias poderiam confirmar
essas “experiências” da natureza para alcançar a sua própria realização.
Mas, por outro lado, o homem, o masculino, o mestre de obra, o artesão,
ou demiurgo, não se contentam, “se satisfazem” com essas qualidades
excepcionais, extraordinárias, incomuns, entre todos os seres que a natureza
criou. O homem nunca poderá reduzir seu gozo, seu olhar, sua escuta a este
único estado de exceção, seja ele dos mais extraordinários. O gozo masculino
nunca se contentará com a realidade da natureza, mas sempre procurará a
imagem ou a ilusão, a máquina sexual por excelência, e o que Sternberg diz
sobre este ponto é esplêndido, esplendidamente perturbador. Para colocar em
competição o homem e a natureza, até mesmo o homem e Deus, o masculino
e o divino, ele compara, segundo uma escolha de preferência, os “milhões de
anos” que a natureza terá usado para criar a realidade da mulher e a “fração
de segundo” que bastou ao cinema para transformar esta realidade em ilusão.
Mas o homem não se satisfaz em reconhecer às mulheres as
extraordinárias qualidades que levaram milhões de anos para eclodir e prefere
muitas vezes uma imagem cujas qualidades nascem da fração de segundo
que foi usada para encerrar a realidade em uma caixa preta para fazer dela
uma ilusão.
172
A caixa preta, o livro de magia (grimoire), o glamoir, ou a gramática do
glamour, atolada de remela, de líquido viscoso, os olhos glaucos, pertubações,
os olhos perturbados, enfeitiçados, despossuídos de espectadores. A perfeição
masculina da mulher é aqui revelada em e por essa fração de segundo, esta
irrupção fulgurante da máquina, do sex machine, que transforma a realidade
natural em gramática da ilusão, um grammage, uma caracterização para o
teatro (grimage) ou um rosto encaretado (visage grimé). Não demorará um
segundo, no cinema, não se poderá contar ou medir o tempo que tomou o
masculino, digamos, o “cinemasculino”, para encerrar no livro de magia
[grimoire] a realidade da mulher, para reduzir o “tratamento de superfície”,
não tendo mais a aparência de uma pele, mas a espessura de uma película,
“que reproduz a imagem”. Mal dando tempo para um piscar de olhos, para
produzir esta metamorfose, que nenhum milhão de anos nunca poderia
alcançar. Essa é a “versão perfeita” da mulher: uma ilusão, o tratamento
de uma superfície, secretamente escondida no livro de magia [grimoire],
maquinalmente mas soberanamente conservada no caixa preta do cinema. E,
se há de fato glamour neste momento deslumbrante da metamorfose, assim
por mais de um milhão de anos, mas sem nunca alcançá-lo, a natureza sempre
terá tendido para o glamour, como em direção a seu fim, seu telos, então se o
glamour terá sido sempre a tendência ou o princípio teleológico da natureza,
ou terá sempre sido “tendência”, para a natureza, como o que atrai ou seduz,
provoca ou enfeitiça os olhos atônitos da natureza, é que o glamour contém ou
detém, fecha ou oculta no livro de magia [grimoire], caixa preta do cinema, o
segredo da natureza, o segredo de seu fim, a sua morte e seu desaparecimento.
Em suma, o glamour já terá sempre desempenhado, na natureza, o papel do
princípio transcendental de vontade de potência, de vida e de conservação.
Pode-se dizer do glamour segundo Sternberg o que Kant dizia da
metafísica: de um lado, é tudo e nada; de outro, é tudo ou nada. A natureza
é inerentemente glamour, e o glamour, a ilusão que deseja a natureza. Daí o
segredo do glamour, o segredo contido na caixa preta, ou mais precisamente a
ilusão que secreta a caixa, quando metamorfoseia a realidade natural da mulher
em sua versão perfeita, de Greta, de Marlene ou de Marilyn. E, se “é difícil,
diz Sternberg, examinar o glamour objetivamente”, dizer o que é o glamour
como tal, defini-lo em um conceito, a realidade secreta, ou simplesmente o
173
segredo, que dá este poder soberano para encantar os olhos de quem vê, ou
para esvaziar o corpo de seu sangue, ainda podemos construir, entre seus
diversos estilos, um personagem principal e imutável​​, diz Sternberg. “Mas
uma das características – a principal – do glamour, que permanece inalterada,
é que ele promete algo que não pode oferecer”. Já podemos ouvir o eco aqui
da definição lacaniana do amor: “dar algo que não se tem a alguém que não
o quer”. Mas Sternberg fala principalmente da promessa, que não deve ser
entendida ou apreendida entre a verdadeira e a falsa promessa, como quando
dizemos manter ou não manter uma promessa. Aqui não oferecer, não dar
aquilo que se promete, não quer dizer quebrar a promessa, nem fazer uma
falsa promessa. Não se trata de uma falta, de um defeito, de uma falha, ou
mesmo de um engano ou de uma mentira, mas sim de uma perfeição – ou “de
chegar a uma versão perfeita” da mulher.
O corpo da mulher, o corpo-máquina da estrela, ou sex machine,
é perfeito, finalmente chegou a sua perfeição, finalmente reduzido à sua
superfície, tratado como uma superfície, papel ou película, quando “promete
algo que não pode oferecer”. E o corpo sexuado, o que desempenha o sexual
no corpo, só faz maquinar esta promessa, agitar e combinar, engendrar e
tramar, ou “formar em segredo” a promessa disso mesmo que não se pode dar.
Veremos mais adiante a ligação direta, objetiva, é preciso dizer da objetiva,
entre a promessa e a ilusão, que se trata de uma promessa de ilusão ou a ilusão
de uma promessa. O que importa agora é que tal promessa, esta promessa, o
tipo singular e único de promessa, tipicamente masculina, diria Sternberg,
produziu as condições de possibilidade da caixa preta, onde se formou a
ilusão de realidade. Prometer algo que não se pode oferecer, isto é, em suma,
ser glamour, ser um corpo de estrela, um sex machine, o único exemplar de
uma superfície de papel, equivaleria a produzir uma imagem completamente
singular, eu diria sem igual na história antiga da representação, da imagem,
da cópia, da imitação ou da mimese. Essa imagem, esta superfície, esta tela,
esta cena não se destaca pelo duplo, nem pela reprodução, nem mesmo pelo
mimético para falar propriamente, mas de fato por certa promessa. Esta
imagem de papel, na verdade, não pertence mais ao registo de oposições, do
modelo para a sua cópia, do autêntico ao simulacro. Esta imagem não reproduz
nem representa nada, ela não imita nada nem é o duplo de nada; mais ainda,
174
ela não diz nada, não se expressa sobre nada, nem se afasta de qualquer coisa,
ela não nos informa nada nem apreende nada sobre a realidade que ela encerra
“em uma caixa preta para fazer dela uma ilusão”. Esta imagem transcendental
do glamour não é nada mais do que uma promessa, nem verdadeira nem
falsa – uma promessa que não promete nada, nem fazer nada mais, do que
não dar o que promete. A magia desta promessa, o que seduz e encanta os
olhos do espectador, seu encanto, é que ela promete justamente não dar o
que promete. É a única promessa que promete isso – contradizendo por aí
também as leis formais, habituais e convencionais, as leis performativas da
promessa em geral. Em outras palavras, e, finalmente, essa promessa é a única
que promete não manter sua promessa. E isso, para Sternberg, é a versão ideal
do corpo da mulher, o corpo da estrela, sexo e máquina e ao mesmo tempo
superfície, “tratada, formada” pelo livro de magia [grimoire] cinematográfico
de um mestre artesão – digamos, o “cinemasculográfico”.
Caixa preta e corpo de estrela
§ 1º – Vou apresentar uma nova hipótese sobre a caixa-preta do corpomáquina. Esta caixa conteria o duplo horizonte ou a tensão, mencionada
anteriormente, entre a repressão e a utopia, fechamento e abertura, censura e
liberdade. Esta metamorfose da realidade em ilusão, em que se promete o que
não pode oferecer, é na verdade uma economia da censura, um novo espaço
para a repressão interna na fábrica de imagens pegajosas, enfetiçantes. E o
segredo da caixa inteira nesta economia plástica, em que a censura reproduz o
erotismo de imagens tanto quanto o erotismo desempenha papel de transgredir
a censura. Desde 1930, como também se sabe, a indústria cinematográfica
de Hollywood foi submetida ao famoso Código Hays ou MPPC (Motion
Picture Production Code). Um código de censura que regula a produção de
filmes, preparado pelo senador William Hays, um representante legal do
poder, e escrito por dois clérigos, Quigley Martin e Daniel Lord, guardiões
da moralidade do poder. Um código de autocensura imposta pelo governo, e
que diz respeito à criminalidade, à sexualidade, à decência, à patria, à família
e à religião, que consiste ainda em proteger a moral burguesa e os valores
175
tradicionais. Este código de censura representa o espaço de repressão interna
à caixa preta cinematográfica, ao livro da magia [grimoire] do corpo da estrela,
ao sexo de papel que maquina, ou forma em segredo um novo mundo de
promessas e ilusões.
Não haveria nenhuma estética de glamour sem um código de censura,
que dita suas regras de gramática, seus gestos, suas atitudes, sua aparência e
suas posturas. Cito um texto de Eric de Kuyper, crítico de cinema:
É preciso considerar esta estética [do glamour] como intimamente
ligada ao código de censura que dita, a partir dos anos trinta, suas
regras estritas relativas a tudo em que há traço de sexualidade.
Ela, em todas as suas formas, é um tabu. Mesmo sugerida
indiretamente por meio, por exemplo, da nudez corporal, ela
é ainda muito explícita para os censores. Trata-se, portanto, de
encontrar um vocabulário estético, por meio do qual o erotismo e
a sensualidade são exploradas ao máximo, sem que de nenhuma
maneira a fronteira que cerca o campo sexual seja atravessada. Nesta
estética de erotismo, o corpo da estrela é central e fundamental
porque sempre presente na tela: este corpo está necessariamente
sexuado, mas as técnicas de glamour, ao apagar seu aspecto
puramente sexual, permitem de alguma maneira aguçar a sua
dimensão sensual. Essa estética, que joga com a sexualidade física,
negando-a para melhor destacar indiretamente, exige obviamente
uma arte e um dedilhado mais sutil. A atratividade física – o sexappeal – das estrelas, mais do que seu talento de ator, torna-se
assim para Hollywood uma verdadeira obsessão. Constantemente
equilibrada entre o Código Hays – que rejeita qualquer alusão
explícita ou mesmo implícita – e a necessidade essencial de usar
e de encenar ao máximo todo o potencial do corpo da estrela,
Hollywood, ao longo de todos estes anos, coloca em prática a
máxima de Cocteau: “saber quão longe se pode ir muito longe...”.
O código antigo garante a estrita observância das regras; o sistema,
ao aceitar, experimenta continuamente processos para transgredir
estas regras, respeitando-as.13
A regra das regras, própria à gramática do glamour, é produzir e
organizar “processos para trangredir estas regras, respeitando-as”. Seja qual
for o código, e quaisquer que sejam as regras, o que é preciso sempre colocar
em cena é uma transgressão que as respeita. Nada, portanto, opõe-se portanto
aqui à observância de regras e sua transgressão, mas tudo repousa sobre uma
certa encenação das regras, uma representação do espaço repressivo interno à
13. KUYPER, Eric de. La guerre
des sexes: corps féminins et corps
masculins. In: Stars au féminin.
op. cit., pp. 31-32. Poderíamos ler
ainda do mesmo autor. Le corps:
fabrication Hollywood. Trafic,
24, 1997.
176
caixa preta cinematográfica – ou do corpo da estrela. E, se as coisas mudaram
para a indústria econômica e sociocultural de Hollywood desde os anos 50, se
o Código Hays se viu cada vez menos obrigatório, até finalmente desaparecer
em 1966, o “código” sempre representa normas, que regem o movimento
dos corpos, ditam-lhes as formas de inscrição social e determinam seus
comportamentos, seus afetos, seus desejos. O código e suas regras de uso,
plásticas e lábeis, permanecem sempre criptografadas na gramática do corpomáquina. Assim, releiamos Foucault, quando ele descreve as regras repressivas
que oprimem o corpo:
Mas o corpo está também diretamente imerso em um campo
político; as relações de poder operam sobre ele uma tomada
imediata; elas investem-no, marcam-no, domesticam-no,
supliciam-no, obrigam-no a trabalhar, forçam-no a cerimônias,
exigem dele sinais. Este investimento político do corpo está
ligado, segundo relações complexas e recíprocas, a seu uso
econômico; é, em grande medida, como uma força de produção
que o corpo é investido pelas relações de poder e dominação;
mas, em contrapartida, sua constituição como força de trabalho
só é possível se ele está preso em um sistema de sujeição (em que
necessidade é também um instrumento político cuidadosamente
projetado, calculado e utilizado), o corpo se torna força útil se for
tanto o corpo produtivo e corpo assujeitado. Este assujeitamento
não é alcançado somente por instrumentos de violência ou
ideologia, ele pode muito bem ser direto, físico, jogar a força
contra a força, desgastar seus elementos materiais, e ainda assim
não ser violento, pode ser calculado, organizado, tecnicamente
pensado, pode ser sutil, não fazer uso de armas ou terror, e ainda
permanecer na ordem física. Isto quer dizer que pode haver um
“conhecimento” sobre o corpo que não é exatamente a ciência do
seu funcionamento, e um domínio de suas forças, que é mais do
que a capacidade de superar: este saber e este domínio constituem
14. Surveiller et punir, op. cit., p. 30-1.
o que poderia ser chamado de tecnologia política do corpo.14
Esse texto, famoso, celebrado por um grande número de Estudos de
Gênero, entre outros, também é um texto que fala – sem nomear ou até mesmo
indicar – da caixa preta, ou o livro de magia [grimoire] cinematográfico, que
encerra a realidade do corpo, que o aprisiona em uma folha de papel, que
o reduz à superfície de uma película, para fazer uma ilusão, para fazer um
corpo de estrela, enfeitiçante. “Mergulhado em um campo político”, o corpo
177
é sempre e ao mesmo tempo “corpo produtor e corpo assujeitado”. O corpo
da estrela também produz algo estando assujeitado a alguma coisa. “Tornase também força útil”, instrumento político, ferramenta, meio, mèchanos,
máquina uma vez mais, ou sex machine. Mas ele produzirá apenas seu próprio
assujeitamento. É aqui que Foucault chama de “tecnologia política do corpo”.
Não há necessidade de fazer violência ao corpo, de submetê-lo à tortura, ao
trabalho forçado, de supliciá-lo, de marcá-lo a ferro quente, nem mesmo de
aterrorizá-lo por ideologias, de obrigá-lo a cerimônias, rituais e crenças. Um
“saber” sobre o corpo é o suficiente, mas um saber que é somente a simples
“ciência do seu funcionamento” ou a vitória sobre suas próprias forças. É uma
tecnologia política, ou, diz Foucault,
uma microfísica do poder que as instituições colocam em jogo,
mas cujo campo de validade é colocado de alguma forma entre
esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua
materialidade e suas forças.15
A caixa preta cinematográfica é ela mesma um “aparelho”, e, ao mesmo
tempo, esta “instituição” por si só representa a máquina industrial, que
envolve, que coloca em jogo, que encena relações de poder nas quais o corpo
está mergulhado, fechado, sua materialidade deformada, e suas próprias
forças transformadas. Esta caixa é um saber tecnológico, uma “tecnologia
política do corpo” ou uma modalidade estratégica ou uma manobra pela qual
o corpo “se torna força útil”, ao mesmo tempo corpo produtor, de fascínio,
de sedução, de feitiçaria, e corpo assujeitado, livre, privado, despossuído, que
antes do “Marlene, sou eu” de Sternberg, a faz dizer a si própria, “sem você
eu não sou nada”.16 Todo o mistério da caixa preta está aí, seu encantamento
milagroso, nesta metamorfose tecnológica das forças vivas do corpo em
força de trabalho, “poderes secretos e forças invisíveis do corpo” em forças
úteis para a manutenção do poder soberano. Uma metamorfose instantânea,
invisível, indiscernível, que, de acordo com as regras socioeconômicas, bem
como político-teológicas, que ela transgride, inventa um novo corpo, uma
nova maquinaria sexual do corpo, uma nova manobra ou artifício, que
produz e processa uma superfície capaz de gerar em si e e de exemplificar por
si as condições materiais, instrumentais, tanto ideológicas e institucionais, de
15. Ibid., p. 31.
16. Cf. HASKELL, Molly. La
femme à l’écran. De Garbo à Jane
Fonda. Traduzido do inglês por B.
Vernet. Paris: Seghers, 1977, p. 85.
178
autorreprodução do poder – uma gramática, uma retórica, uma “estética da
superfície”, capaz de reinventar, ou repetir indefinidamente o poder soberano.
§ 2º – O corpo da estrela, uma superfície de película, representa o corpo
novo do poder, o poder das imagens, ou o poder que produz a ilusão da imagem.
O corpo da estrela, sua “força útil” ao poder, o que faz ou maquina toda a
força sexual do poder é a ilusão de que o corpo já não tem segredo, que ele é a
própria revelação do segredo, ou que se tornou ele mesmo o acesso direto ao
segredo – como o obsceno de que fala Baudrillard17. Não se diz nada quando
se trata de glamour. Para este tratamento de superfície, o corpo finalmente
revela seus segredos, suas potências, suas forças ou seus poderes – “que ele
promete algo que ele não pode oferecer”. Seu segredo é a sua promessa, e essa
promessa, o novo poder do corpo-sexo-máquina. Podemos chamá-lo assim,
de autoerotismo de exposição, que produz uma ilusão, como um verdadeiro
striptease. O glamour do corpo da estrela poderia, assim, ser definido como
o striptease da realidade, esta máquina de incomodar o real, quando ela “dá a
impressão de mostrar a verdade nua e crua”, escreve Alain Bernardin, antigo
diretor de Crazy Horse Saloon, em uma texto célebre, citado e comentado por
Baudrillard. Texto célebre, mas do meu conhecimento não encontrado em
nenhuma biblioteca pública ou universitária. Aqui, no entanto, um fragmento
decisivo: “Nós não strip nem tease... fazemos paródia... Eu sou um fraudador:
damos a impressão de mostrar a verdade nua, a falsificação não pode ir
mais longe.”
17. “O que você esta fazendo
depois da orgia?”, op. cit., p. 2.
Isto é o oposto da vida. Porque, quando ela está nua, ela é muito mais
decorada do que vestida. Os corpos são maquinados com fundos especiais
tingidos extremamente bonitos, que tornam a pele sedosa... Ela tem luvas que
cortam os braços, o que é sempre bonito, as partes inferiores verdes, vermelhas
ou pretas, que também cortam a perna na coxa...
Striptease de sonho: a mulher do espaço. Ela dançava no vácuo. Porque,
quanto mais uma mulher se move lentamente, mais erótico é. Então eu acho
que o ápice seria uma mulher na leveza.
179
A nudez das praias nada tem a ver com a nudez da cena. Em cena, elas
são deusas, elas são intocáveis... A onda de nudez, em teatro e em outros
lugares, é superficial, ela se limita a um ato mental: eu vou nu, eu vou mostrar
atores e atrizes nus. É irrelevante para os seus próprios limites. Além disso,
apresentamos a realidade: aqui estou sugerindo apenas o impossível.
A realidade do sexo que exibe em todos os lugares diminui a subjetividade
do erotismo.
Irridescente de luzes vivas, decorado com joias, adornada com uma
peruca laranja grande, Usha Barock, um meio-sangue austro-polonês,
continuará a tradição do Crazy Horse: criar aquilo que não se pode prender
em seu sutiã. 18
Como Sternberg, Bernardin também fabrica ilusão, trata as superfícies,
máquinas de aparições, ele também é um mestre artesão, um mestre de obra,
que produz uma mistificação – do corpo da mulher. Tanto a “caixa preta”
de Sternberg transforma a realidade natural da mulher em uma ilusão
que aperfeiçoa ou completa, como a “cena” de Bernardin não representa a
realidade, ainda muito “mental”, mas “sugere apenas o impossível”. Por um
lado, prometemos algo que não podemos oferecer, por outro lado, sugerimos
o impossível. E, quando Bernardin diz o que não quer dizer, para ele, e para
toda “a tradição” do Crazy Horse Saloon, “eu sou um mistificador”, ainda se
pode ouvir ressoar a voz de Sternberg. Mistificar, “dar a impressão de mostrar
a verdade nua e crua”, é “criar aquilo [mulher] que não pode prender em seu
sutiã”. De certa forma, podemos dizer que Bernardin “percebe”, produz ou
encena a promessa de Sternberg. O que não se pode prender em seu sutiã, do
corpo glamour da mulher, do sexo feminino, que máquina o corpo de ilusão,
é justamente esse “algo” que ela promete não poder dar. Mais uma vez um
segredo que sobe, revela-se, manifesta-se, mas lentamente, diz Bernardin.
Aqui temos de analisar o que é dito sobre a lentidão, encontrando nos opostos
esta instantaneidade da caixa preta de Strenberg: “quanto mais uma mulher se
move lentamente, mais erótico é”, incluindo que o “ápice”, ou a “versão perfeita”,
“seria uma mulher na leveza”, sem peso corporal, portanto, nenhum peso,
sem gravidade, massa ou volume, como sem corpo, como uma pluma, nem
18. Texto citado por:
BAUDRILLARD, J., L’échange
symbolique et la mort. Paris:
Gallimard, 1976, p. 165.
180
mesmo a consistência da carne e a espessura da pele. É lento este movimento
do corpo, porque o seu objetivo não é se colocar nu, ou mostrar sexo nu, mas
a fabricação de ilusão, todo o processo discursivo, o dispositivo tecnológico,
digamos, o processamento tecnodiscursivo, ou a implantação maquínica
“sexomaquínico” de uma superfície pela qual o corpo se metamorfoseia em
poder de sedução, fascinação e encantamento.
O striptease é uma dança, escreve Baudrillard: a única talvez, a mais
original do mundo ocidental contemporâneo. O segredo está na celebração
autoerótica por uma mulher de seu próprio corpo que se torna desejável nessa
medida [...]. É por isso que o striptease é lento: ele deveria ir o mais rápido
possível se o fim fosse o desnudamento sexual, mas é lento porque é discurso,
construção de signos, desenvolvimento cuidadoso de um sentido diferido.19
A lentidão do movimento do corpo não é aqui uma exposição pura, um
véu simples levantado, que mostra o sexo, mas uma elaboracão discursiva,
uma produção técnica de signos, de sentido, “que consiste”, diria Sternberg,
em ser lembrado, “para provocar, deslumbrar, seduzir, fascinar, encantar,
enfeitiçar, todas coisas que submetem a estrutura emocional do espectador
a um estado de vibração e de torção” para esvaziar o corpo de seu sangue.
É autoerotismo do corpo-máquina, que produz o desejo do espectador. Um
erotismo que inventa seu próprio discurso, ou o dispositivo tecnodiscursivo
– da caixa preta do cinema na cena de striptease – digamos, que produz ou
maquina o tratamento de uma superfície pela qual o corpo, tornando-se
“força útil”, transforma-se em ilusão, a toda velocidade ou muito lentamente.
Estamos aqui mergulhados diante do autoerotismo da máquina, que manipula
suas próprias regras de gramática, ou forma em segredo essa gramática de
ilusão de um corpo desejante, “que não se pode prender em seu sutiã” , de
um corpo cujo encantamento é a promessa de não dar o que promete. Esta
fabricação, a maquinação, a formação secreta de uma superfície, que não é
mais a ilusão de corpo, mas o corpo mesmo da ilusão, o corpo de um fantasma
ou de um espectro, como nova utopia do corpo, ou o novo corpo utópico,
novo exemplaridade da modernidade desencantada.
19. Ibid., p . 165-68.
E a “contradição” do striptease,
do qual fala Roland Barthes:
“dessexualizar a mulher no
momento em que é desnudada”
(Striptease. In: Mythologies. Paris:
Éditions du Seuil, 1957, p. 147.
181
Digamo-lo para terminar. O corpo da estrela representa “algo” do
corpo-máquina, algo da superfície que o corpo “maquina”, fabrica ou trata,
entrança ou combina, mas que não se pode dar, ou oferecer, nem abraçar, ou
tocar. O que o corpo “maquina” de sua própria superfície, o que ele “forma
em segredo”, promete-se sempre como algo de impossível. E é nisso que
consiste finalmente o corpo-máquina da estrela, ou o sex machine: a promessa
do impossível – uma promessa que dá um corpo à ilusão. Igualmente, o que
chamamos de um corpo de estrela, seu glamour, sua produção maquinal e
mágica, ou seu encanto que perturba e enfeitiça os olhos do espectador, não
representa mais a ilusão fantasmática de um corpo, Bernardin diria “o ato
mental” de uma nudez, mas constitui de outra forma o corpo real de uma ilusão,
a superfície sensível da aparência de um espectro. O corpo de estrela é um
espectro, o glamour é espectral, fantasmagórico. Mais ainda, podemos dizer
que o glamour do corpo da estrela é uma máquina para produzir a superfície
sensível de um espectro, uma máquina que secreta superficialmente, que cria
artificialmente a aparência de seu próprio fantasma. Diante de um corpo de
estrela, o espectador vê apenas um espectro ou um fantasma, um corpo já
morto ou ausente, embora bem real, bem sensível, bem aí e bem presente. Ele
vê “algo de impossível”, um corpo “natimorto”, um corpo de morto “vivo”,
como um “morto-vivo”, um sex machine da morte que passa, que se desloca,
que se move lentamente, e que também fala, e que fala com ele, mas que é
apenas a superfície e aparece somente como um piscar de olhos. Tempo de
um desaparecimento, de um desmaio. Esta é a realidade do corpo-máquina da
estrela, a superfície deslumbrante de um instante, como a obscenidade de uma
visão pura e absoluta. Um corpo-máquina, com o seu próprio tempo: uma
fração de segundo, que encerra a realidade em uma caixa preta para fazer dela
uma ilusão. Um corpo-máquina, com o seu próprio espaço: uma superfície
sensível, que tem apenas a espessura de uma película na qual se projeta sua
imagem e se produz a ilusão.
(tradução de Marcos de Jesus Oliveira)
182
le i b ni z e benjam i n: uma
introdução às teorias
tradicionais da tradução
ou às metafísicas da língua
de saída e de chegada
J u l i a n a C e c c i S i lva e
William de Siqueira Piaui
183
leibniz e benjamin: uma introdução
às teorias tradicionais da tradução
ou às metafísicas da língua de saída
e de chegada
Juliana Cecci Silva1 e William de Siqueira Piauí2
Considerações preliminares
No que diz respeito à possibilidade da tradução, uma das perguntas
que poderíamos fazer seria: os Nouveaux essais sur l’entendement humain par
l’auteur du système de l’harmonie prétablie do filósofo alemão Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646-1716) são uma obra de arte? Acreditamos que se nos ativermos
ao que o filósofo, também alemão, Walter Benjamin (1892-1940) diz no início
de seu texto Die Aufgabedes Übersetzers (A tarefa do tradutor), a saber: “se ela
[a tradução] estivesse destinada ao leitor, também o original o deveria estar”3,
teríamos, pois, de nos perguntar primeiro: a obra Novos ensaios está destinada
ao leitor? Ora, parece-nos que essa obra está expressamente destinada aos
leitores, aos filósofos ingleses e aos empiristas em geral e, mais especificamente,
ao filósofo inglês John Locke (1632-1704)4; e pretende, de acordo com seu
título, dar a conhecer, informar, comunicar, aos filósofos insulares o essencial
quanto ao sistema da harmonia preestabelecida ou aquilo que o filósofo alemão
costumava chamar de sua hipótese da harmonia pré-estabelecida, a qual ele fez
o personagem Filaleto defender em sua conversa com Teófilo. Nesse sentido,
talvez pudéssemos dizer que essa obra está comprometida ou se autorregistra
no âmbito da concepção burguesa de linguagem5.
3.BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG, 2008, p. 83.
4. Um leitor defunto. Leibniz
chegou a adiar a publicação
dos Novos ensaios (doravante
simplesmente N.E.) por conta
da morte do filósofo inglês. Os
N.E. foram escritos em forma
de diálogo, uma conversa entre
os personagens Teófilo (amigo
de Deus) e Filaleto (amigo da
verdade), o primeiro defendia as
opiniões de Leibniz e o segundo
as de Locke, em geral repetindo
apenas o que o inglês afirmava
em An essay concerning human
understanding (publicado em
1690). Quanto ao sistema da
harmonia preestabelecida, cf.
também Monadologie, § 80.
Daqui em diante mencionaremos
a obra de Benjamin também
com a sigla A.U.
5. BENJAMIN, Walter. Escritos
sobre mito e linguagem. Org.
1
Tradutora e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Jeanne Marie Gagnebin. Rio de
Universidade de Brasília (Postrad – UnB), sob orientação do Prof. Dr. Piero Eyben, é membro Janeiro: Duas cidades, 2011, p. 55.
do grupo de pesquisa Escritura: Linguagem e Pensamento; e-mail: [email protected].
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, FFLCH – USP, e, atualmente, é professor
adjunto do Departamento de Filosofia e Letras da Universidade Federal de Sergipe (DFL–
UFS); e-mail: [email protected].
2
184
Isso quer dizer que é necessário tomar algum cuidado quando se usa
o texto de Benjamin para uma discussão geral da tradução: nem todo texto é
sagrado ou obra de arte! É necessário, no mínimo, problematizar os critérios
que definem a informação a ser veiculada e até que ponto trata-se de um texto
sagrado ou obra de arte a ser traduzida. Como vimos, os N.E. não parecem
ser uma obra de arte no sentido oferecido naquele início6; além disso, indo
ao final do texto de Benjamin, se pensarmos que os “grandes textos, e em
mais alto grau os sagrados”7 têm como característica “conter nas entrelinhas
a sua tradução”, novamente, os N.E. não parecem poder ser considerados um
grande texto, menos ainda um texto sagrado e, certamente, não contêm em
suas entrelinhas a sua tradução, aquilo que faria o tradutor vislumbrar uma
“língua pura” (die reine Sprachen) a partir do original8 9. Vale lembrar inclusive
que Leibniz escreve na língua francesa e tem como ponto de partida uma obra
escrita na língua inglesa, ou seja, nem o que escreve nem o que lê está em sua
língua materna, a alemã10.
Contudo, dadas as características dos N.E., não são certamente
essas as questões que nos permitiriam comparar o que pensavam Leibniz e
Benjamin; além disso, até onde pudemos saber, em nenhum momento dos
N.E. a tradução de uma obra de uma língua para outra é a questão principal.
Resta saber, todavia, se lá encontraríamos algo que permitisse uma possível e
pertinente oposição ou, quem sabe, um acordo entre esses autores quanto à
verdadeira natureza desse tipo de tradução.
Dito assim, se atentarmos para o que é afirmado ainda bem no início
da A.U., poderíamos vislumbrar uma pergunta possível e pertinente: se, como
quer Benjamin, “a tradução tem por finalidade dar expressão à relação mais
íntima das línguas umas com as outras”11, o que dizer de uma obra que supõe
um forte e amplo acordo entre as línguas e nações? De uma obra que, nesse
sentido, seria ela mesma a expressão da possibilidade fácil e tranquila da
tradução? Uma obra que teria sido escrita tendo em vista o que há de comum
entre os seres humanos quando se trata das várias línguas que estes criaram
na história, seus variados parentescos, e que tomou como ponto de partida as
conexões entre todos os povos ou nações que tiveram ou têm uma determinada
língua? Eis que adentramos nos temas desenvolvidos no início do livro III –
11. WALTER, Benjamin. A tarefa do tradutor (quatro traduções para o português). Org. Lúcia
Castello Branco. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 83.
6. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco.
Belo Horizonte:
UFMG, 2008, p.82.
7. Idem, p. 98.
8. BENJAMIN, Walter. A tarefa do
tradutor (quatro traduções para
o português). Org. Lúcia Castello
Branco. Belo Horizonte:
UFMG, 2008, p.89.
9. Se lembrarmos o comentário
que Derrida faz ao texto de
Benjamin, para além do fato que
a comunicação não é o essencial,
o texto sagrado faz cessar a
transferência óbvia, isso é, põe
em cheque a noção comum de
sentido, e por isso mesmo nos
colocaria diante da essência
da tradução (DERRIDA, 2006
[Torres de Babel], p. 34 e 71).
10. No final do prefácio dos
Ensaios de Teodiceia: sobre a
bondade de Deus, a liberdade
do homem e a origem do mal,
doravante E.T., que foi publicado
cerca de sete anos depois do
término dos NE, Leibniz chega
a mencionar seu estranhamento
com a língua francesa: “On a
écrit dans une langue étrangère,
au hasard d’y faire bien des fautes,
parce que cette matière y été
traitée depuis peu par d’autres,
et y est lue davantage par ceux à
qui on voudrait être utile par ce
petit travail. On espère que les
fautes du langage qui viennent
non seulement de l’impression
et du copiste, mais aussi de la
précipitation de l’auteur, qui a été
assez distrait, seront pardonnées;
et si quelque erreur s’est glissée
dans les sentiments, l’auteur sera
des premiers à les corriger, après
avoir été mieux informé: ayant
donné ailleurs de telles marques
de son amour de la vérité, qu’il
espère qu’on ne prendra pas cette
déclaration pour un compliment”.
(LEIBNIZ, 1969, p. 49). Podemos
dizer que, feita como resposta a
Bayle, diferentemente dos N.E.,
pois, esta obra estava dirigida
principalmente aos filósofos do
continente.
185
Des mots, isso é, nos objetivos que fazem o fundamento dos capítulos I a III
do livro III dos N.E.: os aspectos materiais das palavras (le matériel des mots).
Uma obra que estaria diretamente associada com essa peculiaridade da “vida
linguística”12.
Assim, os capítulos I e II do livro Des mots dos N.E. de Leibniz podem
ser considerados, com bastante pertinência,o pano de fundo da seguinte
afirmação de Benjamin:
aquela relação muito íntima entre as línguas, em que estamos
a pensar, é a de uma convergência original [ou própria] (einer
eigentümlichen Konvergenz), que consiste em as línguas não serem
estranhas uma às outras, mas sim, a priori e sem pensar agora
em todas as relações [ou referências] históricas, aparentadas
[mutuamente ou] umas com as outras naquilo que querem dizer.13
12. No original o termo aparece
negado “des nicht sprachlichen
Lebens”. (BENJAMIN, 2008, p. 12).
13. BENJAMIN, Walter. A tarefa
do tradutor (quatro traduções
para o português). Org. Lúcia
Castello Branco. Belo Horizonte:
UFMG, 2008, p. 86.
Se, pensando no que enunciamos mais acima, prestarmos atenção às
opiniões aparentemente semelhantes de Leibniz e Benjamin, ou seja, que para
ambos as línguas não são estranhas umas às outras (die Sprachen einander
nicht fremd), mas sim mutuamente ou umas com as outras aparentadas
(verwandt), e que justamente isso fundamentaria a possibilidade de tradução,
a partir da presente citação da A.U., veremos que a simples aparência se revela
na própria advertência de Benjamin, qual seja: a relação muito íntima entre
as línguas é a de uma convergência original ou própria (einer eigentümlichen
Konvergenz) – com o que Leibniz concordaria –, a priori – daqui em diante
não mais – sem pensar em todas as relações ou referências, ou quem sabe
ainda conexões históricas (historischen Beziehung); e esse final, precedido
pela conjunção adversativa sondern, indica muito exatamente o limite da
concordância aparente. Mas, para compreendê-lo adequadamente é preciso
fazer uma pertinente parada.
Da transferência óbvia e da língua radical primitiva
186
Leibniz já havia se detido em um possível a priori, que poderia fazer
compreender uma primeira tradução (transfer), ao tematizar as afirmações
feitas por Locke em seu An essay concerning human understanding14 quanto à
“origem de todas as nossas noções e conhecimentos”, e, a esse respeito, advertia:
C’est que nos besoins [da nossa espécie] nous ont obligés de quitter
l’ordre naturel des idées, car cet ordre serait commun aux anges et aux
hommes et à toutes les intelligences en général et devrait être suivi
de nous, si nous n’avions point égard à nos intérêts: il a donc fallu
s’attacher à celui [ordem] que les occasions et les accidents, où notre
espèce est sujette, nous ont fourni; et cet ordre ne donne pas l’origine
des notions, mais pour ainsi dire l’histoire de nos découvertes.15 16
Ou seja, um a priori que dissesse respeito à ordem natural das ideias
que constituiriam os objetos próprios não de uma, mas da língua primitiva
está vedado à espécie humana, e o filósofo inglês estava enganado quanto
à obviedade daquela transferência; além disso, se era dessa maneira que se
pensava a significação da língua adâmica, que poderíamos associar à teoria
mística da linguagem17, tal ordem estava perdida para todos nós, incluindo
Adão. Leibniz teria, então, explicitado, mas talvez sem coragem de levar tal
reflexão ao seu limite, os principais termos e lugares da crise do sentido18.
14. “It may also lead us a little
towards the original of all our
notions and knowledge, if we
remark how great a dependence
our words have on common
sensible ideas; and how those
which are made use of to stand for
actions notions quite removed from
sense, have their rise from thence,
and from obvious sensible ideas
are transferred to more abstruse
significations, and made to stand
for ideas that come not under the
cognizance of our senses (…)”.
LOCKE, 1952 [III, II, §5], p. 252
(A), grifo nosso. Cf. DERRIDA,
2006 [T.B.], p. 28.
15. LEIBNIZ, G. Nouveaux essais
sur l’entendement humain. Paris:
GF-Flamarion, 1990, p. 215,
grifo nosso.
16. A desatenção a essa afirmação, o que ela compreende e suas consequências, levou alguns
comentadores a considerarem equivocadamente Leibniz como um nominalista, é o que afirma, por
exemplo, Frédéric Nef em seu Leibniz et le langage (cf. também A linguagem: uma abordagem filosófica,
pp. 115-6); sobre esse ponto em específico, cf. nosso artigo “Leibniz e a linguagem: uma introdução”, no
prelo. De qualquer modo, essa afirmação também nos adverte a tomar algum cuidado ao comparar o
modo como Leibniz pensava a linguagem e o modo como Agostinho pensava que aprendemos a falar.
O “diálogo solitário” e, quanto a Locke, “a transferência” exigiam que o conceito de ideia e a noção
de expressão fossem problematizados adequadamente; certamente parte dos motivos que levaram
Leibniz a escrever seu texto Quid sit idea. Quanto ao problema da língua de Adão e sua associação
à natureza mais própria das coisas, cf. todo o capítulo “A prosa do mundo” de As palavras e as coisas
(especificamente, FOUCAULT, 2002, p. 49); cf. também MERLEAU-PONTY, 2002 [A prosa do mundo],
p. 26 e DERRIDA, 2006 [Gramatologia], p. 93.
17. BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Org. Jeanne Marie Gagnebin.
Rio de Janeiro: Duas cidades, 2011, p. 63.
18. Cf. DERRIDA, 2006 [T.B.], pp. 30-1.
187
De acordo com Leibniz, assumida tal impossibilidade, só restava então
tentar reconstituir parte da história das nossas descobertas19 no que diz respeito
às várias línguas que a espécie humana criou; e aqui é preciso fazer algumas
outras advertências, não mais a partir dos N.E., mas de um texto escrito um
pouco depois, o Brevis designatio meditationum de originibus gentium ductis
potissimum ex indicio linguarum, de 171020; isso porque, no Brevis, afirmava o
alemão: “nascidos pouco a pouco conforme a ocasião [ou seja, por acaso], os
vocábulos surgem nas línguas a partir da analogia dos sons emitidos (vox) com
as paixões (affectus); de algum modo a sensação é comparada com a coisa (qui
rei sensum comitabatur)21. Tenho para mim que não foi de outro modo que
Adão atribuiu nomes (nec aliter Adamum nomina imposuisse crediderim)”22.
Essa afirmação completava a advertência feita um pouco antes no texto, a
saber: “as línguas nem surgiram ex instituto [nem], por assim dizer, foram
estabelecidas por convenção; mas certo ímpeto natural nascido dos homens
(sed naturali quodam impetu natae hominum); dos sentimentos e paixões
que se ajustam aos sons (sonos ad affectus motusque animi attemperatium) [é
que as fez surgir]”. Ou seja, de uma só vez era necessário também recusar as
opiniões de Crátilo e Hermógenes, extremos das opiniões de que as línguas
eram naturais ou de que as línguas eram por convenção (ou ex instituto)23.
Quando se trata de línguas derivadas, o que temos é a mistura (mêlé – NE
III, III, §1) da escolha e do acaso; por consequência, tinha de ser recusado
o contemporâneo convencionalismo extremo de Locke. Por outro lado, tal
afirmação também atingia o “mito” em que acreditava toda uma longa lista
de autores que buscavam encontrar uma língua de ordem superior que havia
sido utilizada por Adão, defensores da posição extremada de que as línguas
eram naturais ou dadas por Deus e partiam da língua universal primitiva, uma
linguagem pura histórica associada a um acontecimento não babélico24.
22. LEIBNIZ, G. W. “Breve plano das reflexões sobre as origens dos povos traçado principalmente a
partir das indicações [contidas] nas línguas”. Intr. Olga Pombo, trad. e notas de Juliana Cecci Silva e
William de Siqueira Piauí. In: Kairos Revista de Filosofia & Ciência – Universidade de Lisboa, nº 4, 2012,
pp. 119-149. Disponível em: http://kairos.fc.ul.pt/nr%204/Kairos%204.pdf (último acesso: 02 fev. 2013),
pp. 126-127.
23. Cf. Platão, Crátilo, 383 a-b; 2001, p. 145.
24. Cf. DERRIDA, 2006 [T.B.], p. 66-71; quanto à menção ao mito, cf. MERLEAU-PONTY, 2002,
p. 27.
19. O uso do termo “descoberta”
e não “invenção”, pelo filósofo
que gostava de dizer que a lógica
aristotélica é suficiente para julgar,
mas não para inventar, certamente
indica o afastamento da noção de
convenção ou artificialidade dessa
parte de suas investigações sobre a
linguagem. Contudo, se pensamos
no que dizia Benjamin, Leibniz,
ao contrário de Locke, parece
não ter esquecido que as coisas
só têm nome próprio, em seu
sentido primeiro, em Deus, daí
que as línguas nomeiam de fato
utilizando apelativos, marcando
sua distância da palavra de fato
criadora. Cf. BENJAMIN, 2011,
p. 61.
20. A tradução integral do Brevis
(de Brevis designatio meditationum
de originibus gentium ductis
potissimum ex indicio linguarum,
em português: Breve plano das
reflexões sobre as origens dos
povos traçado principalmente a
partir das indicações [contidas]
nas línguas) pode ser encontrada
em Kairos Revista de Filosofia &
Ciência – Universidade de Lisboa,
nº4, 2012, p. 119-49.
21. Vejam que a transferência
não é tão óbvia, é difícil dizer
exatamente como a sensação é
comparada com a coisa, e como
determinadas paixões parecem dar
origem a determinados sons, em
muitos casos obras do acaso; talvez
por isso mesmo também era difícil
dizer até que ponto o Aristóteles
do De interpretatione devia ser
considerado um convencionalista;
cf. DERRIDA, 2006 [G], p. 13 e
HEIDEGGER, 2003 [O caminho
para a linguagem], p. 193. Nos
N.E. Leibniz afirmava: “Sans parler
d’une infinité d’autres semblables
appellations, qui prouvent qu’il y
a quelque chose de naturel dans
l’origine des mots, qui marque un
rapport entre les choses et les sons
et mouvemens des organes de la
voix; et, c’est encore pour cela que
la lettre L, jointe à d’autres noms,
en fait le deminutif chez les Latins,
les demi-Latins et les Allemands
supérieurs” (LEIBNIZ, 1990 [III,
II, §1], p. 220).
188
Voltando ao que dizíamos, nos NE, parte do fundamento da unidade
das línguas que permitiria compreender a unidade perdida das nações, isso é,
sua história, era expressa do seguinte modo:
De sorte qu’il n’y a rien en cela, qui combatte et qui ne favorise
plutôt le sentiment de l’origine commune de toutes les nations, et
d’une langue radicale primitive. Si l’hébraïque ou l’arabesque25 y
approche le plus, elle doit être au moins bien altérée, et il semble que
le teuton a plus gardé du naturel, et (pour parler le langage de Jcaques
Böhm26) de l’adamique: car si nous avions la langue primitive dans
sa pureté, ou asséz conservée pour être reconnaissable, il faudrait
qu’il y parût les raisons des connexions soit physiques27, soitd’une
institution arbitraire, sage et digne du premier auteur”.28
Quer dizer, dentre outras coisas, que a conexão que serve de base
para a ligação entre as nações tem um fundamento que compreende as
línguas em geral e que, até certo ponto, permitiria pensar que mesmo a
diversidade das línguas não foge ao “princípio de razão suficiente”29 e à
“harmonia preestabelecida”, que parecem estar expressos em uma infinidade
de onomatopeias conservadas nas línguas30, evidências históricas daquela
unidade das nações, perdida para a história, e da existência d’une langue
histórica radicale primitive.
Certamente não é daquele a priori perdido, ou da língua superior, ou
da língua radical primitiva e pura que estava falando Benjamin, mas é óbvio
que ele conhecia a problematização que remontamos aqui, e que ela deveria
fazer inclusive o pano de fundo de suas opções conceituais no desenvolvimento
de A tarefa do tradutor. De qualquer modo, e como esperamos ter deixado
transparecer, Leibniz certamente criticaria o fato de Benjamin ter abandonado
tão rapidamente o solo fértil da “história”, o a posteriori, tão rico em “analogias”
entre as línguas, os costumes, os povos, os climas, as localidades, as nações. Na
verdade, ao pensarmos no título do Brevis, isso é, que Leibniz havia escrito um
Breve plano das reflexões sobre as origens dos povos traçadas principalmente a
29. Também na carta a Sparvenfeld de 29 de novembro de 1697 (a tradução dessa carta pode ser
encontrada no site www.leibnizbrasil.pro.br), Leibniz afirmava que “não existe nada sem razão”. Quanto
às onomatopeias, vide nota 41.
30.LEIBNIZ, G. W. “Breve plano das reflexões sobre as origens dos povos traçado principalmente a
partir das indicações [contidas] nas línguas”. Intr. Olga Pombo, trad. e notas de Juliana Cecci Silva e
William de Siqueira Piauí. In: Kairos Revista de Filosofia & Ciência – Universidade de Lisboa, nº 4, 2012,
pp. 119-149. Disponível em: http://kairos.fc.ul.pt/nr%204/Kairos%204.pdf (último acesso: 02 fev. 2013),
pp. 126-127.
25. Quanto à que língua seria a
mais primitiva (aqui, hebraico
ou árabe), na carta ao linguista
sueco Johan Gabriel Sparvenfeld
(ou Sparwenfeldt, 1655-1727)
de 7 de abril de 1699, Leibniz
afirmava: “é divertido ver como
cada um quer tirar tudo de sua
língua ou daquela pela qual
tem afeição, Goropius Becanus
e Rodornus da alemã (sem
distinguir as novas inflexões
daquilo que é da língua antiga).
Rudbeckius do escandinavo,
um certo Ostrocki do húngaro,
este abade francês (que nos
promete as origens das nações)
do baixo bretão ou cambriano,
Praetorius (autor do Orbis
gallicus) do polonês ou esclavão;
Thomassin, depois de muitos
outros, e Bo[r]chart inclusive, do
hebreu ou fenício, Ericus, alemão
estabelecido em Veneza, do
grego. E eu acredito, se um dia os
turcos ou tártaros [se tornassem]
eruditos ao nosso modo, que
eles encontrarão em sua língua e
em seu país palavras ou alusões
das quais eles provarão com o
mesmo direito que o senhor,
[e defenderão, então,] que os
Argonautas, Hércules, Ulisses e
outros heróis foram deles, e que
os deuses saíram de seu país e
de sua nação. Eles encontrarão
muitas passagens dos antigos
favoráveis à sua hipótese”. A
tradução da presente carta se
encontra no prelo; quanto aos
outros nomes mencionados aqui
e à questão de qual seria a língua
mais próxima da primitiva, vide
também notas 32 e 40.
26. Leibniz menciona o filósofo
e místico alemão Jacob Boehme
(1575-1624); cf. também
DERRIDA, 2006 [T.B.], p. 14 e
2006 [G], p. 94.
27.Sua apresentação de razões
físicas e de instituição arbitrária
faz de Leibniz um misto de
Crátilo e Hermógenes, assim
como de nominalismo e
realismo.
28. LEIBNIZ, G. Nouveaux essais
sur l’entendement humain. Paris:
GF-Flamarion, 1990, p. 218-19,
grifo nosso.
189
partir das indicações [contidas] nas línguas31, é fácil supor que seu autor teria
criticado Benjamin por ter abandonado tão rapidamente aquilo que permitiria
reconstituir parte da história perdida, ou seja, a conexão histórica das línguas,
a qual permitiria compreender as origens dos povos; por ter abandonado
tão rapidamente aquilo que parece ser a prova mais definitiva do que há de
comum nas línguas a partir de seus parentescos (apparentés – cognatae), isso
é, uma infinidade de onomatopeias que surgem do que há de mais íntimo
e comum aos homens, seus instintos (instinct naturel – naturalis impetus),
seus sentimentos ou paixões (affectus), aquilo que constituía as razões físicas
(raisons physiques – NE, III, II, §1) daquelas conexões.
Mas certamente a distância entre ambos se dá principalmente porque
o problema de Leibniz não é a tradução de uma obra de arte de uma língua
para outra, mas a tentativa de criar ou encontrar, a partir do parentesco entre
as línguas, uma língua universal fábula antiga e mito ainda mais antigo que,
para Leibniz, tinha pelo menos dois objetivos principais: destruir a torre de
Babel32 e comprovar a antiguidade dos germanos na Europa33. O primeiro
objetivo também havia sido compartilhado por Locke e o segundo tinha a
ver com a defesa da hipótese de que os germanos tinham origem nos povos
celto-citas, sendo uma das ramificações mais antigas da Europa34, o que já
havia esclarecido a genealogia dos membros da Casa de Brunswick a ponto
de elevá-los do ducado de Hanôver ao eleitorado do Sacro Império Romano.
Por isso mesmo, o segundo ponto gerava um amplo debate político, muitas
vezes agressivo, e uma vasta produção nas áreas da história, etimologia e
34. Nos N.E. essa tese também é afirmada do seguinte modo: “Assim, parece que por um instinto
natural (instinct naturel) os antigos germanos, celtas e outros povos com eles aparentados (apparentés)
empregavam a letra R para exprimir um movimento violento em um ruído que corresponde ao que se
produz pronunciando esta letra”. (LEIBNIZ, 1990 [NE, III, II, §1], p. 219); cf. também Brevis designatio,
p. 2 do original. Os §§ 136-143 dos E.T. (a tradução pode ser encontrada no site www.leibnizbrasil.pro.
br) são a própria expressão do que se pretende com a explicitação de tal parentesco; eles apresentam
as evidências históricas, a partir do parentescos entre determinados vocábulos, para a defesa da
hipótese segundo a qual as origens das nações podem ser compreendidas a partir do parentesco entre
as línguas e que os germanos tinham origem nos povos celto-citas, sendo um dos povos mais antigos da
Europa. Trata-se de uma série de considerações a partir do significado de determinadas denominações
(apellationes) e paixões (affectus) associadas a determinadas letras que encontram respaldo em muitas
autoridades (E.T., § 142) em história, filologia e etimologia. A esse respeito, Leibniz trocou uma vasta
correspondência com muitas das “autoridades” que viviam em sua época; Goropius Becanus (15191572) e Adrianus Rodornius Scrieckius (1560-1621) já haviam defendido a hipótese de que os germanos
estavam entre os povos mais antigos da Europa e encontraram a oposição de, dentre muitos outros,
Matthaeus Pretorius (1635-1704), Louis Thomassin de Eynac (1619-1695), Samuel Borchardt (15991677), Paul-Yves Pezron (abade da Charmoye), Ericus Johanis Schroderus (c. 1608-1639), Olaus
Johannis Rudbeck (1630-1702) e Johan Gabriel Sparvenfeld (1655-1727).
31. No início da carta a
Sparvenfeld de 6 de dezembro
de 1695, Leibniz tematizava a
connexion des langues e formulava
uma de suas hipóteses gerais
segundo a qual ela permitiria
compreender a connexion des
nations (a tradução integral desta
carta se encontra no prelo e será
publicada em o mutum - revista de
literatura e pensamento). O Brevis
será a própria expressão dessa
hipótese; nele Leibniz afirmará:
“Visto que as ‘origens dos povos’
[mais] remotos estão para além
da história, as ‘línguas’, em seu
lugar, são os monumentos dos
[povos] antigos” (LEIBNIZ, 1710,
p. 1). A busca de evidências para a
defesa da hipótese segundo a qual
as origens das nações podem ser
compreendidas a partir das línguas
será o motivo de Leibniz pedir a
Sparvenfeld, no final da carta de
29 de janeiro de 1697 (a tradução
dessa carta pode ser encontrada
no site www.leibnizbrasil.pro.
br), que apresentasse um risttreto
sobre o assunto. Além disso, no
final da carta é mencionado um
“além da história” que se associa à
perda da unidade das línguas após
a inundação, o dilúvio. Entendido
como um plano ou projeto, o
Brevis já havia sido anunciado
no §2 do capítulo II do livro III
dos N.E., mas também podemos
considerá-lo associado ao pedido
de elaboração daquele ristretto.
32. LEIBNIZ, G. Nouveaux essais
sur l’entendement humain. Paris:
GF-Flamarion, 1990, p. 267.
33. LEIBNIZ, G. Essais de
théodicée: sur la bonté de Dieu
la liberté de l’homme et l’origine
du mal. Paris: GF-Flamarion,
1969, p. 193.
190
filologia. De qualquer modo, todo o trabalho que Leibniz teve para manter
tais teses também era suficiente para mostrar que não se tratava mais da época
do Crátilo de Platão (c. 423-347 a.C.) ou do De interpretatione de Aristóteles
(384-322 a.C.) e que a discussão sobre a relação da linguagem com os estados
e as afecções ou paixões da alma35 e se as línguas eram naturais (opinião do
personagem Crátilo) ou ex instituto (opinião do personagem Hermógenes e
de Aristóteles) tinha de passar não só por investigações sobre o entendimento
humano, mas também pelas novas descobertas da etimologia e filologia, isso
é, da história das línguas, o que fazia soarem meio ridículas as observações tão
rápidas, e sem qualquer menção a esta imensa produção, feitas pelo filósofo
inglês John Locke, principalmente nos capítulos I, II e III do livro III de seu
Um ensaio sobre o entendimento humano.
35. ARISTÓTELES, 2010 [De
interpretatione, 16 a 5], p. 81.
Como muito bem perceberam,
dentre outros, Heidegger no início
de O caminho para a linguagem e
Derrida no início de Gramatologia,
era preciso reproblematizar os
fundamentos de tal afirmação,
isso é, intensificar a crise da velha
noção de sentido. Vide nota 19.
As águas da teoria tradicional da tradução ou sobre a metafísica das línguas de
saída
Voltemos ao ponto em que havíamos parado. A fim de fazer
compreender as dessemelhanças de seu objetivo e ponto de partida com
relação aos perigos da empreitada leibniziana, mesmo que muitas das
observações feitas por Leibniz tivessem contribuído para a valorização da
“história”, advertia Benjamin: “nossa reflexão parece ir desaguar de novo
na teoria tradicional da tradução”36. É preciso ter cuidado, pois, quanto à
verdadeira distância que separa ambos os alemães; se, por um lado, Leibniz
não estava explicitamente preocupado com o problema da tradução, por
outro, o todo de suas investigações parece estar intimamente ligado às bases
da teoria tradicional ou costumeira da tradução (in die herkömmliche Theorie
der Übersetzung); ou seja, mesmo com aquele a priori perdido37, referente a
l’ordre naturel des idées, a empreitada leibniziana no sentido do a posteriori,
referente a l’histoire de nos découvertes, era suficiente para fornecer os
principais fundamentos teóricos do que se costumava entender por traduzir.
E, também por isso mesmo, advertia mais uma vez Benjamin:
36. BENJAMIN, Walter. A tarefa
do tradutor (quatro traduções para
o português). Org. Lúcia Castello
Branco. Belo Horizonte:
UFMG, 2008, p. 86.
37. Vale lembrar que Leibniz
defendia uma teoria do
conhecimento, associada às línguas
artificiais ou à Characteristica
universalis, que praticamente fazia
voltar aquele fundamento. No
espírito do que temos dito até aqui,
um resumo do projeto leibniziano
de uma língua ou característica
universal pode ser encontrado em
DERRIDA, 2006 [G], pp. 93-101,
projeto amplamente considerado
no livro Leibniz e o problema de
uma língua universal de Olga
Pombo.
191
Se aquilo que tem de afirmar-se na tradução é o parentesco entre
as línguas (die Verwandtschaft der Sprachen), como poderia ela
fazê-lo a não ser através da transmissão, o mais exato possível, da
forma e do sentido da obra. É certo que aquela teoria não saberia
como dizer em que consiste esta exatidão, não estaria, pois, em
condições de dar conta do que é essencial numa tradução.38
Ora, nesse sentido, podemos dizer que a empreitada de um Leibniz,
sua busca pela origem das línguas e parentesco entre elas, apresentada nos
três primeiros capítulos do livro III (Des mots) dos Nouveaux essais, parece
justamente oferecer as águas que faziam o fundamento de tal advertência e
– se incluímos o que está afirmado no Brevis, algumas das cartas ao linguista
sueco Sparvenfeld e os §§ 136-143 dos Essais de Theodicée, ao encontrar o que
há de comum nos homens e daí nas línguas, o parentesco entre as palavras e
as paixões de origem – encontrava ou explicitava o que supostamente há de
essencial nas línguas em geral e que permitiria, pois, aquela tradução tranquila
e sempre possível entre elas. Será que podemos concluir que seria a isso que
Benjamin chamaria de os fundamentos da teoria tradicional da tradução?
Como confirmação de nossa opinião, podemos lembrar, dentre outras, a fala de
Haroldo de Campos, para quem o “modo de reprodução (Darstellungmodus)”
benjaminiano característico da tradução é independente de “todo parentesco
etimológico ou histórico”39 40; bem como a de Derrida (1930-2004), para
quem um “dos temas essenciais do texto [A tarefa do tradutor] é o parentesco
das línguas em um sentido que não é mais tributário da linguística histórica
do século XIX”41. De fato, a época de Leibniz ofereceu muitos pais para a
linguística histórica do século XIX. Eis a total pertinência de uma reavaliação
daquela empreitada, de investigarmos quais são seus limites e até que ponto
ela oferecia os fundamentos daquela visão de tradução, ou se também estava
baseada neles.
38. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG, 2008, p. 86,
grifo nosso.
39. CAMPOS, Haroldo.
“Transluciferação Mefistofáustica”.
In: Deus e o Diabo no Fausto de
Goethe. São Paulo: Perspectiva,
1981, p. 179.
40. Os textos de Leibniz que temos
mencionado, especialmente o
Brevis, permitiriam compreender
as ideias mais básicas daquele jogo
etimológico que Johann Wolfgang
von Goethe (1749-1832) lembrava
a partir da obra de Karl Philipp
Moritz (1756-1793); cf. CAMPOS,
1981, p. 184.
41. DERRIDA, Jacques. Torres de
Babel. Trad. Junia Barreto. Belo
Horizonte: UFMG, 2006, p. 28.
Em termos mais gerais e mais fundamentais, se pensamos no que
Benjamin afirma na p. 86 da A.U., talvez tenhamos de ir ao limite de afirmar
que Leibniz sempre esteve comprometido, inclusive, com uma “teoria do
conhecimento” que demonstrava, ou pensava demonstrar, a possibilidade da
imitação muito semelhante àquela transferência primeira e óbvia afirmada por
John Locke, e a busca pelo alfabeto dos pensamentos humanos por parte do
192
filósofo das mônadas42 – associada ao fato de que a linguagem também serve
para raciocinar (N.E., III, II, §2) – seria a explicitação disso, mesmo apesar
daquela tímida, e muitas vezes falsamente afirmada, impossibilidade do a
priori43. Em uma palavra, para Leibniz o conhecimento era objetivo, no sentido
que podemos alcançar ao menos parte das cópias do real (mas agora a priori e
que se manifesta no a posteriori, possível-real no efetivo-existente – N.E., IV,
IV), especialmente quando se trata de línguas artificiais ou da Characteristica
universalis, e é esse, sem dúvida, um dos principais problemas enfrentados
nos N.E. a partir do capítulo III do Des mots e de grande parte do livro IV,
o De la connaissance, sendo esse o último lance leibniziano contra a tabula
rasa de Locke. Tais problemas também devem, a partir desse capítulo III, ser
interpretados sob a luz das línguas artificiais ou ex instituto, até a da lógica
42. Não é sem mais, portanto, que
Heidegger, ao lembrar o fato de
que Humboldt era um leibniziano
defensor da noção de essência da
linguagem como energeia, lembre
a Monadologia e não o Brevis
designatio; é nela que podemos
encontrar uma reafirmação da
metafísica do sentido a partir da
total espontaneidade da mônada,
cf. HEIDEGGER, 2003, p. 195-9.
43. Mesmo que essa parte das investigações de Leibniz esteja diretamente associadas às línguas artificiais,
às não históricas, ela certamente coloca o problema da fácil e tranquila tradução dos textos técnicos,
que, em geral, parte de uma língua grandemente construída artificialmente. Quanto à importância da
separação entre as línguas históricas e artificiais, na p. 2 da versão original do Brevis, Leibniz afirmava:
“Quantas vezes for possível penetrar até a raiz da onomatopeia (τῆς ὀνοματοποίιας), é isso que põe a
descoberto a origem primeira dos vocábulos. No entanto, a maior parte é arrastada pelo tempo; assim,
as antigas e as primitivas (nativae) significações são modificadas ou obscurecidas pelas numerosas
versões. De fato, as línguas nem surgiram ex instituto [nem], por assim dizer, foram estabelecidas por
convenção; mas certo ímpeto natural nascido dos homens, dos sentimentos e paixões que se ajustam
aos sons [as fez surgir]. Eu excluo [dessa caracterização] as línguas artificiais, sobre as quais Wilkins, o
bastante engenhoso bispo de Chester, tinha uma excelente doutrina (que, todavia, como ele mesmo me
disse, somente uma única pessoa – salvo ele próprio e Robert Boyle – tinha aprendido) a qual Golius,
um juiz não sem valor, suspeitava ser a chinesa; [considerando] que possivelmente essa fora ensinada
aos mortais por Deus”. Leibniz faz referência a John Wilkins (1614-1672), teólogo, filósofo e secretário
inglês da Real Society de Londres; foi autor de um manual de criptografia intitulado Mercury, or the
secret and Swift Messenger (1641), no qual ele aperfeiçoava o método de George Dalgarno (1626-1687);
também ficou famoso por propor um sistema para uma língua artificial filosófica de uso universal, o
que é mencionado aqui. Leibniz também se refere a Robert Boyle (1627-1691), célebre físico, químico
e filósofo irlandês que escreveu, dentre outras obras, The Sceptical Chymist (1661); e a Jacob Golius
(1596-1667), matemático e orientalista holandês, professor na Universidade de Leyde que colaborou
na redação do Novus Atlas Sinensis (1655) de Martino Martini (1614-1661), cartógrafo, historiador e
jesuíta italiano que foi missionário na China.
193
ou das matemáticas, por exemplo44. Assim, intelectos e instintos humanos
comuns, pouca contribuição no sentido da ampla diferença das histórias
distintas dos mais variados povos, eis os primeiros fundamentos da tradução
fácil e tranquila da violência colonial, da língua histórica que se pretendia
universal45 46.
44. Se quiséssemos levar a metafísica leibniziana do possível-real no efetivo-existente associada aos
fundamentos de sua noção de Caracteristica universalis, que pode inclusive ser considerada o ponto
de partida das ideias que fizeram o pano de fundo da empreitada fregeana ou russelliana, bastava nos
atermos um pouco à seguinte afirmação feita já no livro IV dos N.E.: “Que um mais um faz dois não
é propriamente uma verdade, mas a definição de dois. Embora haja isto de verdadeiro e de evidente
que é a definição de uma coisa possível. (...) Definições: 1) Dois são um mais um. 2) Três são dois mais
um. 3) Quatro são três mais um. Axioma: Colocando em lugar dos números coisas iguais, a igualdade
permanece. Demonstração: 2 mais 2 são 2 mais 1 mais 1 (em virtude da definição 1)... 2+2. 2 mais
1 mais 1 são 3 mais (em virtude da definição 2)...2+1+1. 3 mais 1 são 4 (em virtude da definição
3)...3+1. Por conseguinte (em virtude do axioma) 2 mais 2 são 4. É o que se cumpria demonstrar”.
(LEIBNIZ, 1984 [cap. VII, § 6-10], pp. 330-4, grifo nosso). De qualquer modo, para esse tipo de
empreitada valeria a crítica daquele que já havia saído em busca dessas Chimären, ou seja, no §94 de
suas Philosophische Untersuchungen, L. Wittgenstein explicitava a base da maioria das metafísicas da
lógica e da matemática ao afirmar: “Die Tendenz, ein reines Mittelwesen anzunehmen zwischen dem
Satzzeichen und den Tatsachen” (WITTGENSTEIN, 1958, p. 44, grifo nosso). Era essa a tendência da
metafísica leibniziana do possível-real e das verdades eternas que seriam o fundamento das verdades
e objetos da lógica e da matemática; mas não é nosso objetivo aqui tratar das linguagens artificiais, as
não históricas ou convencionais.
45. DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad. Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 14-15.
46. Dado que os germanos têm origem nos celtas, era preciso afirmar a precedência destes, e é justamente o
que Leibniz afirma no Brevis, do seguinte modo: “Dividiremos, não incorretamente, as línguas derivadas
de uma [língua] antiga largamente difundida em duas espécies: as japéticas, como assim foi chamada, e
as aramaicas. As japéticas se difundiram pela [região] setentrional, as aramaicas [pela] meridional; de
fato, considero toda nossa Europa [como pertencente à região] setentrional. Daí que se as setentrionais
se referem a Jafé, as meridionais, não sem razão, serão atribuídas aos descendentes de [seus] irmãos
Sem e Cam. Jápeto também [foi considerado] aquele de quem Prometeu (o que fabricou os homens)
[era] filho, além disso, e como já tinha conhecimento Homero, os mitólogos tinham-no colocado para
Cáucaso, a aramaica (ou Arimi) para os sírios”. É, pois, das línguas jaféticas [ad Japhetumreferas] que
derivam a língua dos citas e a dos celtas, consequentemente, delas derivam todas as línguas europeias,
lembrando que os germanos poderiam ser considerados seus “parentes” mais próximos (cf. ET, II, §138).
Cf. DERRIDA, 2006 [T.B.], p. 14. Também é preciso lembrar o seguinte, alguns intérpretes e escritores
cristãos – dentre eles, o contemporâneo de Leibniz, John Milton (1608-1674) em seu O Paraíso Perdido
– identificavam o titã Jápeto (Japetum) da mitologia grega com o mesmo Jafé (Japhetum), com base na
similaridade do nome e na tradição bíblica que considerava todos os povos do mundo como descendentes
dos três filhos de Noé. Na tradição bíblica, os descendentes de Jafé teriam se dispersado nas margens do
Mediterrâneo da Europa e da Ásia Menor, ao norte de toda a Europa e em uma parte considerável da
Ásia; por isso, Jafé é considerado o ancestral dos diferentes ramos da grande família indo-germânica.
Jápeto, na mitologia grega, era um dos titãs filhos de Urano e Gaia; segundo a Teogonia de Hesíodo,
uniu-se a Clímene (em Pausânias, ela se chama Ásia), filha de Oceano, e teve com ela quatro filhos: Atlas
(“suportar”), Prometeu (“pensamento previdente”), Epimeteu (“pensamento tardio”) e Menécio (“poder
condenado”, ligado à raiva e à imprudência).
194
Se voltarmos um pouco e agora pensarmos com Derrida e os
filósofos da diferença, Leibniz não saberia reinventar a narrativa da torre de
Babel sem tentar destruí-la; buscaria seu “sentido original único”, desejaria,
e ele o confessa nos N.E., III, IX, §8, ultrapassar tal evento, ora buscando o
parentesco entre as línguas, ora o alfabeto dos pensamentos humanos, ora as
possibilidades reais no intelecto divino47.
Leibniz gostaria, em certo sentido, de fazer cessar a história, de se
mover no, agora sim, “a-histórico”48, no sem atrito; fazer expiar aquele pecado,
anterior à Babel, que nos fez abandonar a ordem natural das ideias; gostaria
de “negar o processo histórico” no sentido benjaminiano do termo, gostaria
de encontrar aquela ordem natural perdida que era comum a nós e aos anjos,
comum à toutes les intelligences en général, e que fundaria a transferência
absoluta. Já o dissemos: Leibniz buscava encontrar ou inventar também o
alfabeto dos pensamentos humanos! O filósofo das mônadas procurava o
que há de essencial nas mais variadas mudanças e transformações das línguas
em geral, justamente contra a “vida mais própria da língua e das obras”49.
O modo como Leibniz via a linguagem fazia da seguinte conclusão algo
apenas temporário: “Se o tom e a significação dos grandes textos se alteram
totalmente no decorrer dos séculos, também a língua materna do tradutor
muda”50. Era isso que ele gostaria de evitar. Língua materna que muda todo
o tempo? Eis para Leibniz a aporia: tradução versus transmutação e língua
materna versus língua viva. Não há passagem? Tours de Babel eternos, torre
interminável, volteios sem fim. Portanto, duas visões bem diferentes de história
e de tradução (transmutação). Agora, é o “santo crescimento das línguas” “até
o termo messiânico da história”51.
Obviamente que, apesar do solo de nascimento e vida, há mais de
comum entre um Benjamin e um Derrida, que entre aquele e Leibniz. Como
já havia advertido Heidegger (1889-1976), precisávamos renunciar ao que
fundamentava as afirmações de um Humboldt (1767-1835) ou, como advertia
Merleau-Ponty (1908-1961), precisávamos recolocar “a fala” na história.
Assim, o que Benjamin não podia deixar de reafirmar era, então, o processo
de crescimento e devir, a santa renovação interminável das línguas em geral,
e nada melhor que fazê-lo criticando aquela tradição que havia nutrido
seu solo, um solo a-histórico. De qualquer modo, parece só existirem duas
47. Cf. DERRIDA, 2006 [G], p. 93.
Em termos da tradução que André
Chouraqui fez do Gênesis I, 11,
Leibniz não aceitaria que “palavras
uniformes” estivessem se referindo
ao fato de que “a unidade original
feita de diversidades degradouse em uniformidades” e que essa
seria a “causa da decadência e da
queda”; ou seja, o contrário do
que ele e boa parte dos filósofos
pensaram até pelo menos o final
do séc. XIX, total inversão do que
de fato era santo.
48.DERRIDA, Jacques.
Gramatologia. Trad. Miriam
Chnaiderman e Renato Janine
Ribeiro. São Paulo: Perspectiva,
2006, p. 94.
49. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG,
2008, p. 87.
50. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG,
2008, p.87.
51. DERRIDA, Jacques. Torres de
Babel. Trad. Junia Barreto. Belo
Horizonte: UFMG,
2006, p. 68.
195
opções extremas: ou tradução e original que tomam como ponto de partida
o processo histórico inesgotável ou tradução de uma língua morta para outra
língua morta, inclusive com contribuições de um modo equivocado de pensar
a língua de chegada, original morto e tradução morta; eis na segunda parte
da disjunção o sonho confesso da teoria tradicional da tradução, a metafísica
das línguas de saída, que podiam vislumbrar seu principal fundamento na
empreitada de um Leibniz, dentre muitos outros, e pouco importa agora se
convencionalistas, naturalistas ou mistos.
Por isso mesmo Benjamin tinha de ser preciso: “Quando, na tradução,
se manifesta o parentesco entre as línguas, isso se dá de modo diferente do da
vaga semelhança entre imitação (Nachbildung) e original (Original)52. É, aliás,
óbvio que não tem necessariamente de existir semelhança (Ähnlichtkeit) no
parentesco (Verwandtschaft)”.53
52. Se a pretensão de Benjamin
é elevar a prática tradutória de
um Lutero ou um Hölderlin, é
claro que é preciso discutir em
que termos se dá a imitação do
original, e ela não deve ser pensada
a partir da vaga semelhança
entre a imitação e o original; será
preciso esclarecer qual a relação
entre o original e a obra traduzida,
de que modo eles se relacionam
a ponto de podermos falar em
imitação e transposição poética
(Umdichtung). Como veremos
adiante, esse esclarecimento
será feito a partir da noção de
intencionalidade.
53. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG, 2008, p.87.
54. Cf. DERRIDA, 2006 [T.B.], p. 65.
Novamente “parentesco”? Mas, como advertia o próprio Benjamin,
agora seu significado deveria ser associado ao seu uso mais restrito (engern
Gebrauch), sendo necessário rever sua ligação com o conceito de descendência
ou ascendência, de origem (Abstammungsbegriff)54. Justamente contra o que
fazia a base da seguinte afirmação:
A palavra (vox) Mar ou Mare [foi] conhecidíssima dos antigos
teutões (para os quais Mareschalcus55 é quem está à frente dos
cavalos), atualmente elas subsistem entre os germânicos. Além
disso, a própria palavra Mar, e outras aparentadas (cognata), foi
conhecida dos antiquíssimos tártaros (remotissimis Tartaris). O
mesmo sentido foi conhecido (eodem sensu cognita est) a partir
deles até os chineses (...).56
Ou seja, ainda em termos de sentido, Leibniz buscava o cognatus entre
as palavras utilizadas por várias nações, indo cada vez para o mais antigo, no
sentido do mais próximo da primeira língua, o que é apresentado em muitas
de suas obras; parentescos que poderiam provar, inclusive, o fato de que o
55. Ainda hoje, quando se fala
em “marechal”, entende-se
por este nome a patente mais
alta da hierarquia militar. No
entanto, sua etimologia remonta
a significados que incluem
“cavalo”; exemplos: “artesão
encarregado das ferraduras dos
cavalos”, “oficial encarregado
dos cavalos”, “oficial responsável
pelo comando de um exército
(supõe-se que a cavalo)”, “criado
doméstico que cuida dos cavalos”.
56. LEIBNIZ, G. W. “Breve plano
das reflexões sobre as origens dos
povos traçado principalmente a
partir das indicações [contidas]
nas línguas”. Intr. Olga Pombo,
trad. e notas de Juliana Cecci
Silva e William de Siqueira Piauí.
In: Kairos Revista de Filosofia
& Ciência – Universidade de
Lisboa, nº 4, 2012. Disponível
em: http://kairos.fc.ul.pt/nr%204/
Kairos%204.pdf (último acesso:
02 fev. 2013), p.3.
196
império germânico era o parente mais antigo das nações celto-cíticas e que
certamente corroborariam a hipótese imperialista da tradução fácil e tranquila
entre línguas, ao menos das de um mesmo tronco. Mas, se os aparentados
(cognata) são a prova da conexão entre as línguas e da possibilidade fácil e
tranquila da tradução, os falsos aparentados não seriam a prova contrária?
E a infinidade de dialetos? As diversas intencionalidades de cultura? Eis a
própria fraqueza da hipótese geral. A imitação fundada no parentesco entre
as palavras utilizadas por nações distintas, questão diretamente associada ao
problema também político da ascendência das línguas europeias e dos termos
nelas empregados, bem como à ideia de original ou primitivo, seriam as fontes
daquele modo de pensar a tradução, e o empreendimento de Leibniz tinha,
pois, tudo a ver com aquele. “Mas apenas traços (lineamenta) ou vestígios
(vestigia) são mesmo suficientes para corroborar tal hipótese?”, perguntaria
um Derrida, ao que ele mesmo responderia: “Eis parte importante das
loucuras das línguas!”57.
Mas agora, voltando a Benjamin, é necessário pensar a língua mãe e o
processo histórico de outro modo. E na verdade é isto que muda principalmente:
nossa visão da relação entre os parentescos e a história. A pergunta agora é
a seguinte: “em que plano podemos então encontrar o parentesco entre duas
línguas, para lá do parentesco histórico”58? Vejam que Benjamin parece de
fato estar lendo Leibniz; é como se a superação daquele modo como a história
e a conexão entre as línguas eram pensadas fizesse o tempo todo o pano de
fundo de sua argumentação. É justamente a partir daquele pano de fundo que
Benjamin dá o salto, a saber:
O parentesco supra-histórico entre as línguas reside antes no fato
de, em cada uma delas como um todo, querer-se dizer59 uma e a
mesma coisa, qualquer coisa que, no entanto, não é acessível a
nenhuma delas isoladamente, mas apenas à totalidade das suas
intencionalidades que se complementam umas às outras: à língua
pura.60.
57. Cf. DERRIDA, 1996, p. 1167 e o artigo Kafka et Derrida:
l’origine de la loi de CRÉPON,
Marc (In: o mutum ◊ revista de
literatura e pensamento.Org. Piero
Eyben. Trad. e notas Juliana Cecci
Silva; William de Siqueira Piauí.
Brasília, Escritura: Linguagem e
Pensamento, v. 1, n. 01, fev. 2013,
p.128 a 145. Dossiê: Literatura:
escrever o pensar).. No Brevis
designatio, Leibniz afirmava:
“Assim, a partir da mistura e da
corrupção das outras é que nascem
as novas línguas (...) e as repetidas
corrupções, por fim, confundem
todos os traços da origem das
corrupções. Assim, não me
admiro se o parentesco das nossas
[línguas] com as línguas [daqueles
povos] dos interiores da África e
de todos [aqueles] da América não
possa ser conhecido (Nam novae
facile linguae nascuntur mixtura
& corruptione caeterarum, (...) &
repetitae corruptiones corruptionum
omnia tandem originis lineamenta
confundunt. Itaque non miror sit
interiorum Africae & omnium
Americae linguarum cognatio
cum nostris agnosci potest).”
LEIBNIZ, 1710, pp. 3-4. Duas,
pois, são as principais fontes da
impossibilidade de remontar
à origem da língua primeira,
as inundações (dilúvios) e as
corrupções a que são sujeitas as
línguas na história.
58. BENJAMIN, Walter. A tarefa
do tradutor (quatro traduções
para o português). Org. Lúcia
Castello Branco. Belo Horizonte:
UFMG, 2008, p. 88.
59. BENJAMIN, Walter. A tarefa
do tradutor (quatro traduções para
o português). Org. Lúcia Castello
Branco. Belo Horizonte: UFMG,
2008, p. 88, grifo nosso.
60. Cf. DERRIDA, 2006 [T.B.],
p. 45 e 48.
197
Em termos benjaminianos, as “línguas complementam-se
(ergänzenden) umas às outras em suas intencionalidades (Intentionen)”; é
esse o parentesco (Verwandtschaft) supra-histórico (überhistorische) entre as
línguas que devemos buscar ao traduzir, mas ele se movimenta no infinitesimal
do sentido, da circunferência. É preciso, pois, tomar muito cuidado com o
sentido de “língua pura” em Benjamin (die reine Sprache), pois esse termo tem
de estar associado ao supra-histórico, nunca definitivamente alcançado, mas
que, no que diz respeito às traduções, e não aos originais, deve, no sentido que
é necessário, servir de orientação61. Ou como adverte Benjamin:
A tradução, diferentemente da arte, apesar de não poder aspirar
à durabilidade das suas criações, não renuncia a orientar-se no
sentido de um último, definitivo e decisivo estádio do trabalho
criativo da linguagem [: a língua pura]. Nela [, tradução], o
original sobe até uma atmosfera linguística por assim dizer
mais alta e mais pura (höheren und reineren), na qual, é certo,
não poderá viver eternamente – como nem sequer a alcança em
todos os momentos da obra –, mas para a qual aponta pelo menos,
de forma milagrosamente acutilante, como para essa região
prometida e inalcançada da reconciliação e da plenitude das
línguas. Nunca alcançará de forma total essa região, mas nela está
aquilo que, numa tradução, é mais do que informação.62
Vejam que o sentido aqui foi invertido, o Stadium mudou de
lugar. Deixando de lado a busca da Characteristica universalis, se Leibniz
problematizava a partir da história a busca da langue primitive dans sa pureté
e não a podia encontrar por conta do tempo, dos dilúvios, das corrupções e
“supunha” uma protolíngua63, aqui o final deve ser idealizado de fato: está no
acima (hinauf), daí novamente supra, no suprassensível além da história, pois,
de saída, supomos que ele não pode de fato ser encontrado; apenas aponta para
a região prometida e inalcançada da reconciliação e da plenitude das línguas.
Atualizamos, a cada vez, pois, a reine Sprache ideal na tradução, a partir do
parentesco supra-histórico (überhistorische Verwandtschaft der Sprachen). A
obra (das Original) vive daquela atmosfera dinâmica que inclusive depende
da sobrevida oferecida pela tradução64, mas a tradução vive daquela ideia, das
alturas, e nesse sentido se eleva criativamente (e não pode ser de outro modo,
61. Cf. DERRIDA, 2006 [T.B.], p.
51, 54 e 57.
62. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG, 2008, p. 89.
63. Foi por isso que o brasileiro
Joaquim Mattoso Câmara Jr., no
seu livro História da linguística
(1979, p. 26), viu no Brevis
designatio de Leibniz a base da
linguística histórico-comparativa.
64. Cf. DERRIDA, 2006 [T.B.],
p. 33, 38, 46 e 47.
198
já que não há totalidade última nas línguas efetivas) a própria tradução (agora
enquanto uma obra) àquelas alturas. Segundo Benjamin, isso foi o que os
românticos bem compreenderam (op. cit., p. 90). Nesse sentido, diferenciado
o fazer poético para o original, o tradutor, apesar de sua obra ter respirado
uma atmosfera imóvel, muitas vezes pode ser considerado mais poeta que o
poeta do original (op. cit., pp. 90-1): a tradução é transposição poética65 66.
65. DERRIDA, Jacques.
Torres de Babel. Trad. Junia
Barreto. Belo Horizonte: UFMG,
2006, p. 47.
66. Cf. também,
CAMPOS, 1981, p. 180.
A tarefa do tradutor e o perigo da metafísica das línguas de chegada
Feitas as distinções entre a sua “teoria” e a teoria tradicional da
tradução, afastados os pontos de partida que deram origem à linguística
histórica do XIX, da empreitada de um Leibniz, dentre outros, Benjamin
enuncia, então, qual é a tarefa do tradutor:
Ela consiste em encontrar na língua em que se está traduzindo
aquela intenção por onde o eco do original pode ser ressuscitado.
Trata-se aqui de uma característica da tradução que a distingue
claramente da obra poética, pois que a intenção desta não visa
a língua por si mesma e na sua totalidade, pretendendo apenas
obter diretamente determinadas relações linguísticas. Porém, ao
contrário do que acontece com a poesia original, a tradução não
se encontra situada no próprio centro da floresta da língua, mas
sim fora desta, e sem entrar nela a tradução invoca-a para aquele
mesmo e único sítio onde o eco, através da própria ressonância da
obra, pode transmitir-se a uma língua estranha.67 68.
Como já havíamos feito notar, o ponto de partida é a intencionalidade
(Intention) e agora sabemos que ela deve estar orientada principalmente para
a língua da tradução, na qual é necessário fazer ouvir o eco do original. De
qualquer modo, o erro do tradutor não podia vir de outra má compreensão:
fixar uma totalidade na língua em que está traduzindo. Parece-nos que, se
Leibniz buscava a origem das línguas, suas conexões e a partir disso a reforma
da língua alemã, era justamente para fixar uma totalidade, nesse sentido diria
67. BENJAMIN, Walter. A tarefa
do tradutor (quatro traduções para
o português). Org. Lúcia Castello
Branco. Belo Horizonte: UFMG,
2008, p. 35.
68. Por conta da ambiguidade
presente nessa parte do texto,
preferimos adotar aqui a tradução
de Fernando Camacho, que se
encontra na mesma obra já várias
vezes citada.
199
também o tradutor que erra: d’en convenir pour détruire cette tour de Babel69.
É justamente porque exigia o contrário disso que Benjamin lembra a fala de
Rudolf Pannwitz (1881-1969), a saber:
O erro fundamental de quem traduz é o de fixar o estado da
língua própria, que é obra do acaso70, em vez de a fazer entrar
em movimento intenso por intervenção da língua estrangeira. Ele
deve, mais ainda se traduzir de uma língua muito distante, recuar
até aos elementos primordiais da própria língua, lá onde palavra,
imagem e sonoridade se confundem. Tem de alargar e aprofundar
a sua língua através da língua estrangeira71. Não se imagina até que
ponto isso é possível, até que limite se pode transformar, como as
línguas se distinguem quase só como os dialetos. Mas é claro que
isto só é assim se encararmos as línguas verdadeiramente a sério,
e não levianamente.72
Isso quer dizer que Leibniz encarava as línguas de modo leviano? Sua
tentativa de colocar os germanos como parentes primeiros dos cito-celtas não
seria a própria expressão disso? E sua língua dos sábios que faria cessar a torre
de Babel das chicanas filosóficas? E a oposição da língua-idioma-universal
contra os dialetos? E sua associação com a alucinação europeia com relação
à língua chinesa?73 Uma língua como a teutônica ou como a chinesa só em
alguma medida o auxiliaria, só por um momento elas significavam expansão
da sua, uma expansão para uma morte logo ali na frente, para a concretização
de uma língua-idioma- universal. Uma expansão que pretendia uma totalidade
imóvel, morta, que superaria a torre de Babel: defesa da fábula construtiva da
língua filosófica do dizer bem, calcular, e, de modo definitivo, alcançar o real,
a natureza própria das coisas. Fazer para si um nome?74 Excessiva confiança
no não concedido! Para o Benjamin de Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem do homem, faltava uma teoria da linguagem adequada.
Ora, mas segundo o Benjamin de A.U., se aquele, o de Leibniz, não
era o modo adequado de pensar o parentesco entre as línguas e o fazer poético
do original, ele podia reaparecer de forma invertida no fazer do tradutor, ou
seja, o fazer tradutório pode pensar estar às voltas com a língua última de
chegada; o tradutor pode justificar o não alargamento da língua em que ele
traduz. Eis explicitada também uma fonte importante do imperialismo e das
metafísicas da linguagem, agora da imposição e da metafísica da língua de
chegada. Certamente, na tentativa de uma justificativa última de suas opções
ou correções, muitas vezes injustificáveis, o tradutor, muitas vezes revisor,
69. LEIBNIZ, G. W. “Breve
plano das reflexões sobre as
origens dos povos traçado
principalmente a partir das
indicações [contidas] nas línguas.
In: Kairos Revista de Filosofia
& Ciência – Universidade de
Lisboa, nº 4, 2012. Disponível
em: http://kairos.fc.ul.pt/nr%204/
Kairos%204.pdf (último acesso:
02 fev. 2013), p. 300.
70. Hipótese que Leibniz havia
corroborado.
71. Não seria esse o lugar para
arriscarmos dizer que um
Guimarães Rosa tinha muitas
vezes exatamente essa intenção
sem, no entanto, estar fazendo
traduções ou inventando
mitologias (sagas, lendas ou
fábulas)? Não ia muito mais no
sentido da multiplicação dos
dialetos, quase individualizados
diríamos, que de alguma
totalidade morta da língua
“portuguesa”?
72. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG,
2008, pp. 96-97.
73. Tudo isso fundado no
“preconceito especulativo” e
na “presunção ideológica”; cf.
DERRIDA, 2006 [G], p. 93.
74. Além da ficção da pirâmide,
enunciada ao final dos Ensaios
de Teodiceia (a partir do § 405);
muitas vezes já temos chamado
atenção ao empréstimo que
Leibniz faz da analogia da torre
criada por Tomás de Aquino para
sair do labirinto do livre e do
necessário; a mesma metafísica
que garante aquele empréstimo
está, portanto, operando aqui. Cf.
PIAUÍ, 2009 [Realidade do ideal
e substancialidade do mundo em
Leibniz (tese de doutoramentoFFLCH-USP)], p. 140.
200
ultrapassa aquele limite da atmosfera imóvel onde ele costuma habitar e faz
soprar um ar frio sobre a língua em que ele opera a tradução, passa a vigiar
e tenta infligir imobilidade à língua de chegada75. Também era esse o motivo
porque Benjamin advertia quanto ao perigo “que os portões de uma língua
assim alargada e dominada se fechem, encerrando o tradutor no silêncio”76.
Dito isso, só resta a Benjamin redefinir a tarefa do tradutor: “A tarefa do
tradutor é a de redimir na língua própria aquela língua pura que se exilou nas
alheias, a de libertar da prisão da obra através da recriação poética. Por ela, o
tradutor quebra as barreiras apodrecidas da sua língua”77. Eis o que, segundo
Benjamin, perceberam muito bem, dentre outros, Lutero (1483-1546) e
Hölderlin (1770-1843). Mas mesmo aqui é preciso compreender o que seria
correr o risco máximo. Se o que Leibniz pretendia com seu alargamento do
alemão podia ser considerado conduzir sua língua a uma totalidade morta,
matar o original a partir da morte da língua original, o que Hölderlin se
arriscava a fazer em suas traduções de Sófocles era perder-se no tão largo
da tradução a ponto de perder-se no sem fundo das profundezas da língua;
arriscava-se fazendo o sentido precipitar-se de abismo em abismo; dito de outro
modo, a partir da língua estrangeira, o grego, de tal maneira Hölderlin fazia o
necessário, isso é, alargava e aprofundava o alemão, a língua de chegada, que
arriscava matar de tanta vida a tradução, ia até ao limite do desejável.
75. O ensino de línguas também
é fonte de variadas formas de
imposição; cf. DERRIDA, 2010
[Força de lei], p. 57.
76. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG, 2008, p.97.
77. BENJAMIN, Walter. A tarefa
do tradutor (quatro traduções para
o português). Org. Lúcia Castello
Branco. Belo Horizonte: UFMG,
2008, p. 95-96.
Conclusão
Isso quer dizer que, se Leibniz procurava uma língua da verdade,
no sentido de língua verdadeira78, uma língua para filosofar adequadamente,
alguma totalidade para bem dizer e fazer o cômputo geral das objeções79, isso
é, algo que fizesse cessar autoritariamente de uma vez por todas as chicanas
filosóficas80, ele poderia tê-la buscado na tradução, pois como dizia Benjamin:
Mas se, de alguma outra forma, existe uma língua da verdade na
qual se conservam, sem tensões e silenciosos, os últimos mistérios
que constituem o objecto de todo o pensamento, então essa língua
da verdade é – a verdadeira língua. E é precisamente essa língua,
78. DERRIDA, Jacques. Torres de
Babel. Trad. Junia Barreto. Belo
Horizonte: UFMG, 2006, p. 64.
79. DERRIDA, Jacques.
Gramatologia. Trad. Miriam
Chnaiderman e Renato Janine
Ribeiro. São Paulo: Perspectiva,
2006, p. 97.
80.N.E., III, IX, §8, p. 267.
201
em cujo pressentimento e descrição reside a única perfeição a
que o filósofo pode aspirar, que está oculta, de forma intensiva,
nas traduções. (...) existe um ingenium filosófico cuja marca mais
própria é a nostalgia daquela língua que se enuncia na tradução.81
Não era preciso tentar, e nem mesmo era possível, imitar a língua
teutônica ou o que seria comum a Adão e aos homens em geral, para chegar
a uma totalidade eterna e morta. Sem entrar nos detalhes do que significaria
esse ingenium, e sabemos que essa é uma questão importante, mas da qual
não poderíamos tratar no momento82, eis no que o fazer do tradutor e a busca
do filósofo se confundem: a língua pura, nostalgia dos filósofos, enuncia-se
na tradução que não viverá eternamente. Não é à toa, pois, que queiramos
fazer filosofia fazendo tradução, estaríamos tentando enunciar aquela língua
a partir da qual poderíamos de fato “filosofar”; isso porque a tradução, com
os germens (sementes) da língua pura, situa-se entre a poesia e a doutrina; daí
que a tarefa do tradutor também seja a de “levar à maturidade, na tradução, a
semente (os germens) de uma língua pura”83, o que nos possibilitaria formular
doutrinas.
Mas é preciso que filósofo e tradutor não se deixem cair, ao menos
não inconscientemente, no labirinto das metafísicas da língua de saída e da
língua de chegada. Nem devem ou podem ser eternas as traduções nem as
doutrinas; talvez por isso mesmo um Derrida, o eterno estrangeiro, evitava
conceituar ou construir; não é exatamente o que fazem tradicionalmente
o filósofo e o tradutor? Não devem ser eternas, especialmente quando a
tradução ou doutrina se faz em uma língua que teima em deixar à margem de
sua atmosfera viva os dizeres, dialetos e mesmo línguas de cerca de dois terços
de sua ancestralidade, em uma língua, aqui sim, que insiste no estreitamento,
81. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte:
UFMG, 2008, p. 92.
82. Cf. DERRIDA,
2006 [T.B.], p. 28.
83. BENJAMIN, Walter.
A tarefa do tradutor (quatro
traduções para o português).
Org. Lúcia Castello Branco. Belo
Horizonte: UFMG, 2008, p. 92.
202
uma língua da verdade que se recusa a pensar uma linguagem verdadeira; mas
isso seria outra história, todavia, colocaria o problema dos limites da “nossa”
teoria da tradução, a altura da “nossa” torre. Além disso, as fábulas da língua
primitiva nunca levaram a sério compreender a África ou a América84.
Por fim, se traduzimos algumas poucas páginas de um Leibniz, que
certamente não podem ser consideradas obras de arte, e evidentemente isso
importa pouco para nós, ao menos não foi inconscientemente que, criminosos
que somos, deixamo-nos cair.
84. Cf. nota 30. Talvez tenha a
mesma fonte o “grande interesse”
dos filósofos brasileiros pelas
línguas europeias e nenhum pelas
línguas das nações africanas e
indígenas; e temos de confessar
que, não sem consciência,
esse continuaria sendo nosso
negócio não fosse a contribuição
dos estudos de áreas como a
sociolinguística, por exemplo,
que têm investigado as variedades
linguísticas brasileiras a partir
das várias línguas indígenas, das
várias línguas das nações africanas
que aqui chegaram por conta da
escravidão, bem como daquilo que
poderíamos considerar minorias
linguísticas europeias. De qualquer
modo, é preciso abandonar a
fábula do primeiro contrato, nosso
primeiro império, o primeiro
nivelamento-impedimento que
fez “nossa” Torre de Babel; que
obviamente deve ser bem mais alta
e autoritária que a outra. Será que
toda a filosofia brasileira pode ser
considera de ultramar? Quanto da
significação e da intencionalidade
indígena e africana, quanto de
alargamento nós perdemos ao
nos impedirmos a verdadeira
tradução, ao reafirmar sempre
tal nivelamento, que agora
explicitamos a fonte? Era preciso
mesmo filosofar apenas na língua
idioma universal europeia?
203
ficção
moderna
Virginia Woolf
205
ficção moderna
Virginia Woolf*
Em se fazendo qualquer análise, mesmo que ao largo ou por alto, de
ficção moderna, é difícil que não se tome como pressuposto que a prática
moderna de arte é, de algum modo, um melhoramento do antigo. Com
ferramentas simples e materiais precários, é lícito dizer, Fielding fez bem e
Jane Austen melhor ainda, mas compare com as nossas as oportunidades que
tiveram! Suas obras primas têm, decerto, um inexplicável ar de simplicidade.
E, mesmo assim, a analogia entre literatura e a produção, para escolher uma,
de motores de carro mal se sustém por mais que um relance. É suspeito que
no decorrer dos séculos, apesar de termos aprendido muito de como produzir
máquinas, nada aprendemos de como produzir literatura. Não chegamos a
escrever melhor; tudo que nos pode ser aconselhado é que continuemos em
frente nesta ou naquela direção, mas numa perspectiva tendente ao circular
deve todo o percurso ser visto do topo. Quase vai sem dizer que não fazemos
qualquer asserção de estarmos, mesmo que por pouco, na magnitude desse
cume. No plano, entre a turba, quase cegos com a poeira, olhamos para trás
com inveja daqueles prósperos guerreiros, cujos cumprimentos da batalha
vencida portam ares tão plenos de serenidade que mal podemos nos deter de
comentar que a luta foi não foi tão árdua para eles quanto para nós. Cabe ao
historiador de literatura decidir; cabe a ele dizer se estamos agora no começo
ou no fim ou bem no meio de um excelente período de ficção em prosa, já que,
aqui de baixo, pouco é visível. Sabemos apenas que certas graças e hostilidades
nos inspiram; que certos caminhos parecem levar a terras férteis, outros à
poeira e ao deserto; e disso talvez seja válido tentar algum relato.
*
O ensaio “Ficção moderna” foi escrito no inverno de 1919 e publicado em The Common Reader.
206
Nossa discórdia, portanto, não é com os clássicos, e se falamos em
discordar de Sr. Wells, Sr. Bennett, e Sr. Galsworthy, é em parte pelo mero fato
de que, por existirem na carne, suas obras têm uma viva, pulsante imperfeição
ordinária que nos impele a tomar com elas quaisquer liberdades que quisermos.
Mas é também verdade que, enquanto lhes agradecemos por uma centena de
dádivas, reservamos nossa gratidão incondicional a Sr. Hardy, a Sr. Conrad,
e em muitíssimo menor grau ao Sr. Hudson de The Purple Land, Green
Mansions, e Far Away and Long Ago. Sr. Wells, Sr. Bennett, e Sr. Galsworthy
incitaram tantas esperanças e tão persistentemente as frustraram que nossa
gratidão escancaradamente toma a forma de um agradecimento por terem eles
nos mostrado o que poderiam ter feito, mas não fizeram; o que certamente não
poderíamos fazer, mas em igual medida, talvez, não desejássemos. Nenhuma
frase resumiria por si só todo o encargo ou a exigência que temos de versar
sobre um trabalho tão largo de corpo e incorporando tantas qualidades, tanto
admiráveis quanto o reverso.
Se tentássemos formular nosso entendimento em uma palavra, diríamos
que esses três escritores são materialistas. É por estarem preocupados, não
com o espírito, mas com o corpo que eles nos desapontaram, e nos deixaram
o sentimento de que a ficção inglesa anterior volta as costas para eles, tão
cortês quanto a permitem, e marcha, se antes para o deserto, melhor para sua
a alma. Naturalmente, nenhuma palavra sozinha alcança o centro de três alvos
distintos. Para o caso de Sr. Wells, cai notavelmente fora da mira. E, no entanto,
mesmo assim nos indica ao pensamento a liga irrefutável de seu gênio, o grande
nó de ferrugem que se fundiu com a pureza de sua inspiração. Mas Sr. Bennet
é, talvez, dos três o pior culpado, por ser de longe o melhor feitor. Ele consegue
elaborar um livro tão bem arquitetado e sólido em sua artesania que seria
difícil para o mais exigente dos críticos ver através de que brecha ou rachadura
pode permear a decadência. Não há nem mesmo uma fresta nas dobradiças,
ou uma fenda entre as tábuas. E ainda assim – e se a vida se recusasse a viver lá?
Esse é um risco que o criador de The Old Wives’ Tale, George Cannon, Edwin
Clayhanger, e hordas de outras figuras, pode muito bem afirmar ter superado.
Seus personagens vivem excessivamente, e até de forma inesperada, mas
falta perguntar como eles vivem, e para o quê? Mais e mais eles nos parecem,
abandonando até a bem construída vila em Five Towns, para passar seus
207
tempos numa carruagem fofa e almofadada qualquer, estar apertando botões
e campainhas inumeráveis; e o destino a que tão luxuosamente viajam se torna
mais e mais incontestavelmente uma eternidade de deleite gasto no melhor
hotel possível em Brighton. Dificilmente pode ser dito de Sr. Wells que ele é
um materialista no sentido de que deriva satisfação na solidez de sua trama.
Sua mente é demasiado generosa em suas compaixões para que o permita
gastar tempo demais fazendo as coisas substanciais e apresentáveis. Ele é um
materialista por pura bondade de coração, levando sobre os ombros o trabalho
que devia ter sido cumprido por oficiais do governo, e na superfluidade de
suas ideias e fatos, mal tendo tempo para perceber, ou esquecendo-se de achar
relevantes, a crueza e brutalidade de seus seres humanos. No entanto, que pior
crítica pode haver de ambos o seu Céu e terra que a de serem inabitáveis no
aqui e além por seus Pedros e Joanas? Acaso a inferioridade de suas naturezas
não macula quaisquer instituições e ideais que sejam a eles fornecidos pela
generosidade de seu criador? Tampouco acharemos, apesar de profundamente
respeitarmos o íntegro e o humano em Sr. Galsworthy, o que procuramos em
suas páginas.
Se colássemos, portanto, uma etiqueta nesses livros todos, que em uma
palavra seria materialistas, queremos com isso dizer que eles escrevem sobre
coisas desimportantes; que eles consomem por demais técnica e diligência em
fazer o trivial e transitório parecerem o verdadeiro e duradouro.
Temos que admitir que estamos exigindo, e, além disso, que achamos
difícil justificar nosso descontentamento em explicar o que exigimos.
Colocamos nossa questão por vezes diferente em diferentes vezes. Mas ela
persiste em reaparecer enquanto deixamos cair o romance terminado no auge
de um suspiro – vale a pena? Qual é o propósito? Será possível que Sr. Bennet,
devido a um daqueles pequenos desvios que o espírito humano parece fazer
vez em quando, tenha pousado com seu magnífico aparato de capturar a vida
só um tantinho a mais pro lado errado?
A vida escapa; e talvez sem a vida nada mais valha o tempo. É uma
confissão de obscuridade ter de usar tal figura como essa, mas dificilmente
se dá assunção ao assunto em se falando, como tendem a fazer os críticos,
de realidade. Admitindo a obscuridade que aflige toda crítica de romances,
208
arriscaremos a opinião de que para nós, nesse momento, a forma de ficção
mais em voga mais perde que assegura aquilo que buscamos. Quer chamemos
de vida ou espírito, verdade ou o real, esse, o essencial, não mais espera, ou já
superou, e se recusa a ser contido em roupas tão pouco adequadas como as
que lhe damos.
De qualquer forma, seguimos perseverando conscientes, construindo
nossos trinta e dois capítulos depois de um plano que mais e mais deixa de
corresponder à visão em nossas mentes. Tanto do enorme esforço testando
a solidez, a semelhança à vida da estória, não é apenas esforço jogado fora,
mas esforço mal colocado ao ponto de obscurecer e embaçar a luz da nossa
concepção. O escritor parece coagido, não por seu próprio arbítrio, mas por
algum tirano sem escrúpulos e poderoso que o tem como escravo, a prover um
enredo, prover comédia, tragédia, interesse amoroso, e um ar de probabilidade
embalando o todo de tão impecável maneira que, se todas as suas figuras
tomassem vida, elas estariam vestidas até o fim de seus botões com o último
grito da moda. Ao tirano, obedecemos; o romance já está quase pronto. Mas
às vezes, mais e mais frequente ao passar do tempo, suspeitamos uma dúvida
momentânea, um espasmo de revolta, enquanto as páginas completam a si
mesmas no modo de costume. A vida é assim? Devem ser assim os romances?
Olhe de dentro e a vida, ao que parece, está bem longe de ser “assim”.
Examine por um instante a mente comum num dia comum. Uma miríade de
impressões ela recebe – triviais, fantásticas, evanescentes, ou inscritas com a
argúcia do metal.
De todos os lados vêm elas, uma saraivada incessante de inumeráveis
átomos; e enquanto caem, enquanto formam-se como a vida de Segunda ou
Terça, a tonalidade cai diferente do antigo; o instante de importância veio lá,
não aqui; assim, se um escritor fosse homem livre e não escravo, se ele pudesse
escrever o que quisesse, não o que devesse, se ele pudesse balizar seu trabalho
ao seu próprio sentimento e não à convenção, não haveria nem enredo, nem
comédia, nem tragédia, nem interesse amoroso ou catástrofe no estilo aceito,
e talvez nenhum botão costurado como os alfaiates de Bond Street gostariam.
A vida não é uma série de luzes de circo simetricamente arranjadas; a vida
é um halo luminoso, um invólucro opalescente, nos envolvendo desde o
209
começo até o fim da consciência. Acaso não é tarefa do romancista perpassar
esse espírito prismático, desconhecido, inscircunscrito, qual seja a aberração
ou complexidade que se mostre, com menos mistura possível do alheio e do
externo? Não estamos pedindo pela mera coragem e sinceridade; estamos
sugerindo que o mais próprio à ficção é outro que não aquilo que nos faria
acreditar o costume.
É, como seja, em tal modo como este que procuramos definir a
qualidade que distingue o trabalho de vários jovens escritores, entre os quais o
Sr. James Joyce é o mais notável, dos de seus antecessores. Eles tentam chegar
mais perto da vida, e preservar mais exata e sinceramente o que os interessa
e os motiva, mesmo que para assim fazê-lo eles devam descartar a maioria
das convenções que são comumente observadas pelo romancista. Relatemos
os átomos enquanto caem sobre a mente, na ordem em que caem, tracemos
o padrão de suas ocorrências, não importa o quanto desconexo e incoerente
em aparência, que cada vista ou incidente marca à consciência. Deixemos
de pressupor que a vida existe mais plena no que é comumente considerado
grande, do que no comumente considerado pouco. Qualquer um que tenha
lido Um retrato do artista quando jovem ou, o que promete ser um trabalho
bem mais interessante, Ulysses, agora figurado na Little Review, terá arriscado
alguma opinião tal como essa quanto à intenção de Sr. Joyce. De nossa parte,
com tal fragmento diante de nós, é mais arriscado que afirmado; mas qualquer
que seja a intenção do todo, não pode haver dúvida de que é da mais absoluta
sinceridade e que o resultado, difícil ou desagradável que o julguemos, é
inegavelmente importante. Em contraste com aqueles a que chamamos
materialistas, Sr. Joyce é espiritual; ele está preocupado a qualquer custo
em revelar as rutilâncias daquele lume entranhado que lampeja seus sinais
através do cérebro, e para preservá-lo ele desconsidera com coragem extrema
o que quer que pareça a ele acessório, seja a probabilidade, ou coerência, ou
quaisquer outros desses luzeiros que serviram, por gerações, para apoiar a
imaginação do leitor quando chamado a imaginar o que não pode nem ver
ou tocar. O trecho da cena no cemitério, por exemplo, com seu brilhantismo,
sua sordidez, sua incoerência, seus súbitos clarões de significância, de fato
chegam tão perto do rápido da mente que, numa primeira leitura qualquer,
é difícil não aclamá-la uma obra prima. Se quisermos a vida ela mesma, aqui
210
certamente a temos. Realmente, nos vemos balbuciando bastante incoerentes
se tentamos dizer que mais queremos, e por que razão uma obra de tal
originalidade ainda não se compara, por que temos de pegar bons exemplos,
com Youth ou The Mayor of Casterbridge. Não compara por causa da relativa
pobreza da mente do escritor, digamos logo e esteja dito. Mas é possível ir um
pouco além e pensarmos se não podemos remeter a sensação de estarmos
numa sala clara porém estreita, confinados e presos, ao invés de libertos e
com espaço, à alguma limitação imposta pelo método como pela mente.
Será o método que inibe o poder criativo? Será devido ao método o não nos
sentirmos joviais nem magnânimos, mas centrados num si que, apesar de seu
tremor de suscetibilidade, nunca cria ou abarca o que está fora de si e além?
A ênfase sobreposta, por ventura didaticamente, na indecência,
contribui para o efeito de algo angular e isolado? Ou será apenas que em
qualquer esforço de tal originalidade é tão mais fácil, para contemporâneos
principalmente, sentir o que falta do que dizer o que oferece? Em qualquer
caso é um erro estar fora dos “métodos” examinativos. Qualquer método é
o certo, todo método é o certo, que expresse o que queremos expressar, se
somos escritores; isso nos traz mais perto da intenção do romancista se somos
leitores. Este método tem o mérito de nos trazer mais perto do que estávamos
preparados para chamar de vida em si; não mostrou a leitura de Ulysses o
quanto da vida está ignorado ou excluído, e não veio como um choque abrir
Tristram Shandy ou mesmo Pendennis e ser por eles convencido de que não
há apenas outros aspectos da vida, como também outros mais importantes
em jogo?
Como quer que isto seja, o problema diante do romancista do presente,
como supomos que tenha sido no passado, é maquinar meios de ser livre para
estabelecer o que ele queira. Ele tem de ter a coragem de dizer que o essencial
não é mais “aquilo” mas “isso”: e com “isso” apenas deve ele construir o seu
trabalho. Para os modernos, “isso”, o ponto de interesse, muito provavelmente
tem leito nos cantos escuros da psicologia. E portanto sem demora, a
tonalidade cai um pouco diferente; a ênfase é sobre algo antes ignorado; um
diferente contorno de forma se torna, sem demora, necessário, difícil para
nós apreendermos, incompreensível para nossos antecessores. Nenhum além
de um moderno, nenhum, a não ser talvez um russo, teria sentido a validade
211
da situação em que Tchekov fez o conto que ele chama de “Gusev”. Alguns
soldados russos adoecem a bordo de um barco que os levava de volta à Rússia.
É-nos dado apenas pedaços de suas conversas e alguns de seus pensamentos;
então um deles morre e é carregado dali; a conversa continua entre os
outros por um tempo, até que o próprio Gusev morre e, semelhante “a uma
cenoura ou um rabanete”, é jogado barco afora. A ênfase cai sobre lugares
tão inesperados que a princípio parece não haver ênfase alguma; e então,
enquanto os olhos se acostumam com o crepúsculo e discernem as formas
de um quarto, vemos quão completa é a história, quão profunda, e o quanto
em verdadeira obediência à sua visão Tchekov escolheu isso, aquilo, e o outro,
e os colocou juntos para compor algo novo. Mas é impossível dizer “isso é
engraçado”, ou “isto é trágico”, nem estamos certos, já que contos, nos foi dito,
devem ser breves e conclusivos, se este, que é vago e inconclusivo, deve de fato
ser chamado de conto.
As mais elementares críticas em ficção moderna Inglesa quase não
podem evitar a menção da influência russa, e se os russos são mencionados,
corre-se o risco de achar que escrever sobre qualquer ficção que não a deles
é gasto de tempo. Se quisermos entendimento do coração e alma onde mais
o encontraríamos em comparável profundidade? Se estamos enjoados do
nosso próprio materialismo, o menos considerável de seus romancistas tem
por direito de nascença uma reverência natural ao espírito humano. “Learn
to make yourself akin to people.... But let this sympathy be not with the mind
— for it is easy with the mind — but with the heart, with love towards them.”/
“Aprenda a ter afinidade com pessoas...Mas deixe essa empatia estar não com
a mente – porque é fácil com a mente – mas com o coração, com amor a eles”.
Em todo grande escritor russo parecemos conseguir discernir as feições de um
santo, se empatia aos sofrimentos de outros, amor a eles e esforço para atingir
algum objetivo digno das mais exigentes demandas do espírito constituem
santidade. É o santo neles que nos confunde com um sentimento da nossa
própria trivialidade irreligiosa e transforma tantos de nossos mais famosos
romances em ouro de tolo e trapaça. As conclusões da mente russa, assim
compreensivas e compassivas, são inevitavelmente, talvez, da mais completa
tristeza. Mais precisamente de fato, podemos falar da inconclusividade da
mente russa. É a sensação de que não há resposta, de que se honestamente
212
examinada, a vida apresenta pergunta após pergunta, que devem ser deixadas a
soar ininterruptas, bem depois do fim da história em desesperada interrogação
que nos permeia com uma profunda, e por fim pode se dizer ressentida,
agonia. Eles estão certos, talvez; indubitavelmente eles veem mais distante
que nós e sem os nossos rudes impedimentos de visão. Mas talvez vejamos
algo que os escape, senão por que esta voz de protesto deveria mesclar-se ao
nosso lamento? A voz de protesto é a voz de uma outra e antiga civilização que
parece ter cultivado em nós o instinto de regozijar e lutar ao invés de sofrer
e entender. A ficção Inglesa desde Sterne a Meredith presta testemunho ao
nosso prazer natural em humor e comédia, na beleza da terra, nas atividades
do intelecto, e no esplendor do corpo. Mas quaisquer entendimentos que
tiremos da comparação entre duas ficções tão imensuravelmente distantes
são supérfluos, salvo talvez quando nos inundarem com a visão dos infinitos
possíveis da arte, e nos relembrarem que não há limite para o horizonte, e que
nada — nenhum método, experimento, mesmo o mais insano — é proibido,
apenas a falsidade e pretensão. “O mais próprio à ficção” não existe; tudo é
próprio à ficção, todo sentimento, todo pensamento; toda qualidade de cérebro
e espírito é chamada à prova; nenhuma percepção está falha. E se pudermos
imaginar a arte da ficção ganhar vida entre nós, ela indubitavelmente rogaria
que a quebrássemos, a atormentássemos, assim como que a honrássemos e
a amássemos, pois assim que é sua jovialidade renovada e assegurada sua
soberania.
(tradução de Lucas Lyra)
213
214
Maria Alice de Vasconcelos
olho por olho
negrume do meio dia
ensimesmado
não detém o tempo
pavimento incrustado de
crânios sisudos
olho por olho
passante pensante e desatento
pisoteia a paisagem
que se renova
verso e reverso
de várias moedas
estampadas no cosmo
215
Jônatas Onofre
Astrolábio
A linha concisa, a seta.
A lâmina das vagas que
rasgam a esfera. Perscrute
e meça.
Sobre o rastro do
oriente. Deriva
o vazio sem lume.
Acenda-lhe um nome.
No calor das anêmonas
sulcando as artérias
do atlântico. Desfralde
da nave, a vela, inflame.
E quando Os signos
despencarem dos
pomares abissais.
Oferte o poema,
lastro de vendavais.
216
Francisco Alves Gomes
Consciência lenta
Lembra das nossas primeiras aventuras?
eu era um boneco de borracha,
e tu o meu óleo
não tínhamos freio
apenas as mãos, um tanto duras
demais para se inventar a palavra brocha,
hoje não recordo de que seiva saí
ou quando eu passei a usar sandálias artesãs
fugi
Pan.
217
João Foti
Sonata barroca
“= Gigantes, escravos
Se os cravos
Jorram luz, se finda-se a dor!..”
(Sousândrade)
— O cravo atesta-me o Ser!
Testa do Sol, dor insinuante!
= Vai-se à passeio:
O espinho;
Longa liberdade de soar...
— Álacre, cada pontiaguda nota
Entrecruza as mãos...
— E o caminho verte e vaza
Transversal melodia: vive!
Ao baixo timbre, espreitam
— Cada pulso soberano...
= Revoantes asas
Imperam
No trecho dos trechos — reflexões?
— Nua menta sonora, águas
& cordas em prelúdio!
= Meu rosto de cítaras;
Nele ‘stagnam sonatas!...
— À cadência, vibram feixes —
= Raios que arpejam
luzes à míngua: eclipses.
— O desfecho: triste!.. triste!..
E quando o sono desatina,
Espasmo & silêncio tinem
(Sobe a fumaça!) — o universo,
De ponta à ponta
Percorrem — negro nada!
— Outro cravo (com lanças
crescentes) meu Ser ponteia!
= Espanta-corvos...
— Tem tímpanos vastos
de filosofia!
218
Maria Fátima
As guelras do mar
Não cantam ao Sol
Áridos fragmentos
Rastros e farpas
Harpa na areia
Pássaros na torre
Rangem na sombra
Sombra na sombra.
Não há calendário
Nem rastro nem sombra
Nem carpas nem farpas
Harpa surda.
219
Fabrício Slavieiro
É de um Par de Venezas o vaivém da Porta Bang-Bang à italiana;
lenhoso abre-fecha de uma Boca horizontalizada que, com a bangue-banguela sua Arcada palhetal, volta-se voraz aos “maus
modos” do engolir — não sem depois mastigá-los qual Naco de
Fumo ensalivado por desdentada Bocarra — e cuspir — não sem
antes ruminá-los qual Masca de Tabaco encatarrado por desdenhosa Bocaça — os Pistoleiros hispano-americanos, e seus
xilóides Bandolins em Dó maior, — Maior, pois d’auto-piedoso
Tom; os Bandoleiros américo-hispânicos, e seus metálicos
Pistões em Sol menor, — Menor, pois já a se por no desértico
Horizonte andaluz.
220
Francis Espíndola
Carta à Distância
A verdade nas coisas escorre sozinha por dedos verdes.
Há uma conchinha que cabe dentro pra esconder da convivência dolorida,
da existência pesada,
e ser-estorvo enquanto cheiro de rua.
A casa é por dentro de meus braços e por fora de olhos familiares ao erro. Não
é de escolha que cuspi pedras, mas de coração desolado que as recolho do chão. De
palavras tortas qual lágrimas secas.
O longe urge, concreto ou de mãos esguias. E o peso da trouxa no ombro vê
no espelho a figura disforme do desrespeito. Descabela-se em certezas
transformadas para reais, vê-se cru em espaço chuvoso. (O peso sempre
soube da matéria que lhe cabe segurar).
A cabeça faz perder o resto do corpo quando descobre que o tempo não dá para o cuidado
consigo, para o erguer-se em pó, no longe... Longe quando há descuido.
Perdão, mas de ser forte pela existência dos olhares que hoje tortos em gelo.
Vou-me embora para poupar o rosto da ruindade (e o amor das gentes dentro dele).
221
Luiz Ariston
A vida é uma mulher negra
Que sorri seus dentes brancos
De leite
Sobre as nossas cabeças
Como espadas cadentes que são
E são papões e são tutus
Monstros dos olhos e orifícios
Com muco nas mucosas
Pelos sombra e vida crua
Nos invadem vem de dentro
Eviscerando eviscerando
Até restar somente a pele
E o cheiro ocre muda em grito
E muda em grito interminável
E muda em choro
E muda em sonho
E muda em nada muda
Para quem corremos
E que nos socorre
Desta nossa vida a mulher negra
A vida é uma mulher negra
Que sorri seus dentes brancos
Em nossos espelhos
Cara a cara
Enquanto nos havemos outros mais
felizes
Em quanto ela sorri
De quem dançamos quem sorrimos
Vai navalha nesta valsa
De olhos cegos sem coleira
Ela sorri ela sorri
A nos deixar felicidades
Nos lugares nas angústias
Da ilusão da verdade da ilusão
Da verdade da ilusão da verdade
Que de tão simples
Tão simplesmente simples
De tão óbvia
E de tão bêbados gozamos
Afogados entre os seios
Desta nossa vida a mulher negra
A vida é uma mulher negra
Que sorri seus dentes brancos
Em nossa cola
Nos nossos cangotes
E já não podemos olhar pra trás
Sem virar sal
E nos viramos e vemos
Na medusa a nós atrelada
A estrela de brilho intenso
Que não fomos
Porque não pudemos ver
Porque não podemos ver
A estrela de brilho intenso
Senão na medusa a nós atrelada
Que insistimos em ver e virar
A virar sal
Sem desejar mais nada
Além de deleitosamente
Dissolver-se entre os dentes brancos
Desta nossa vida a mulher negra
222
223
PAIROS
Gregório soares
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230
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235
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238
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