EXCELENTÍSSIMA SENHORA
PROCURADORA GERAL DA REPÚBLICA
DOUTORA DEBORAH MACEDO DUPRAT DE BRITTO PEREIRA
Douglas Fischer, Procurador Regional da República, lotado na Procuradoria Regional da
República na 4ª Região, em Porto Alegre, vem respeitosamente apresentar
REPRESENTAÇÃO PARA EVENTUAL AÇÃO
DECLARATÓRIA DE INCONSTITUCIONALIDADE
em face do disposto nos arts. 67, 68 e 69, todos da Lei nº 11.941, de 28.05.2009, pelos
fundamentos que seguem em anexo.
De Porto Alegre para Brasília, em 14 de julho de 2009.
DOUGLAS FISCHER,
Procurador Regional da República
CONSTITUCIONAL. PENAL. PROCESSUAL PENAL. REGRAS
QUE PERMITEM A NÃO INSTAURAÇÃO DE AÇÃO PENAL E A
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NOS DELITOS DE SONEGAÇÃO
FISCAL. ARTIGOS 67, 68 E 69 DA LEI Nº 11.941/2009.
1. Inconstitucionalidade por violação a diversos dispositivos constitucionais, dentre os quais, pelo
menos:
a) artigo 1º e parágrafo único, CF;
b) artigo 3°, incisos I, III e IV, CF;
c) artigo 5°, caput, e inciso LIV, CF:
d) artigo 37, caput, CF;
e) artigo 150, inciso II, CF;
f) artigo 170 e IV, CF.
g) artigo 194 e inciso V, CF;
h) artigo 195 e incisos I e II, CF
2. Representação que se ancora também na demonstração da violação do Princípio da
Proporcionalidade (Princípio do Devido Processo Legal Substancial) sob a perspectiva da
Proibição de Proteção Deficiente. Precedentes do STF.
3. Representação que se ancora, ainda, na demonstração da violação do Princípio da Justiça
(violação da isonomia).
I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DO OBJETO DA PRESENTE REPRESENTAÇÃO
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1. Por intermédio da representação em voga, pretende-se demonstrar que os arts. 67, 68 e 69 da
recentíssima Lei nº 11.941/2009 violam direta e frontalmente o sistema constitucional vigente.
2. Eis a redação das normas referidas:
Art. 67. Na hipótese de parcelamento do crédito tributário antes do oferecimento da denúncia,
essa somente poderá ser aceita na superveniência de inadimplemento da obrigação objeto da
denúncia.
Art. 68. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o
e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no
2.848, de 7 de dezembro de 1940 * Código Penal, limitada a suspensão aos débitos que tiverem
sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos de
que tratam os arts. 1o a 3o desta Lei, observado o disposto no art. 69 desta Lei.
Parágrafo único. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão
punitiva.
Art. 69. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica
relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e
contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de
parcelamento.
Parágrafo único. Na hipótese de pagamento efetuado pela pessoa física prevista no § 15 do art.
1o desta Lei, a extinção da punibilidade ocorrerá com o pagamento integral dos valores
correspondentes à ação penal.
3. A argumentação tecida na presente representação assemelha-se, em muito, àquela objeto do
Recurso Extraordinário nº 462.790-RS (Relator Ministro Ricardo Lewandowski) e que,
ulteriormente, também se fez agregar, em parecer complementar, na ADI nº 3.002-DF (Relator
Ministro Celso de Mello). A norma impugnada naqueles feitos era o art. 9º, §§ 1º e 2º, Lei nº
10.684.
II – DOS FUNDAMENTOS
4. Tem-se que as regras insertas nos arts. 67, 68 e 69 da Lei nº 11.941/2009 afrontam
diretamente, pelo menos, os seguintes dispositivos da Constituição Federal:
a) artigo 1º e parágrafo único:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos [...]
b) artigo 3°, incisos I, III e IV:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
[...]
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.”
c) artigo 5°, caput, e inciso LIV:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
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brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
d) artigo 37, caput:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]”
e) artigo 150, inciso II:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente,
proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
Art. 170, inciso IV:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios:
IV - livre concorrência;
f) artigo 194 e inciso V:
“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social,
com base nos seguintes objetivos:
[...]
V - eqüidade na forma de participação no custeio;
g) artigo 195 e incisos I e II:
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta,
nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes
sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título,
à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição
sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o
art. 201;“
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5. Parte-se do pressuposto de que a elaboração e aplicação do direito necessitam recorrer a
juízos de valor 1. Assim, há que fazer uma leitura constitucional do sistema jurídico, tendo-se esse
como “uma rede axiológica e hierarquizável de princípios fundamentais, de normas estritas (ou
regras) e de valores jurídicos, cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido
lato, dar cumprimento aos objetivos justificantes do Estado Democrático, assim como se
encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição”2.
6. Malgrado não exista disposição expressa no artigo 1º, caput, da Constituição Federal no
sentido de que a República Federativa do Brasil se constitua numa Estado social e democrático
de Direito 3, como bem observado por INGO WOLFGANG SARLET 4 “não restam dúvidas – e
nisto parece existir um amplo consenso na doutrina – de que nem por isso o princípio fundamental
do Estado social deixou de encontrar guarida em nossa Constituição”.
7. A Constituição Federal, ao tratar dos princípios fundamentais, assinala como base para a
República Federativa do Brasil a existência de um Estado Democrático de Direito, tendo como
fundamentos, dentre outros, o da cidadania e da dignidade da pessoa humana, sendo objetivos
fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem assim a
erradicação da pobreza e da marginalização, buscando-se, ainda, a redução das desigualdades
sociais e regionais (art. 3º, I e III). E prossegue, ao tratar dos “direitos sociais”, que se constituem
em direitos de todos, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança e a previdência
social. Com estes princípios temos que harmonizar a previsão da existência de uma “ordem
econômica” (art. 170, CF), que tem por finalidade assegurar a todos existência digna, segundo os
ditames da justiça social, na medida em que se busca, junto com os demais princípios, a redução
das desigualdades regionais e sociais (inciso VII). E ainda precisamos fazer uma concatenação de
todos estes com a previsão de existência de uma “ordem social” (art. 193, CF), que tem como
“objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
8. Assim, traz-se à exame o tema referente ao conteúdo material das regras citadas que não só
permitem a suspensão da pretensão punitiva do estado como também, mais gravemente, a
extinção da punibilidade nos crimes (gravíssimos) de sonegação de tributos pela simples
devolução dos objetos da prátic do crime !
9. No entender do Ministério Público Federal, tais regras se afiguram manifestamente
inconstitucionais por violação – material - dos Princípios da Justiça, da Eqüidade e da
Proporcionalidade sob a perspectiva da Proibição da Proteção Deficiente – consubstanciados nas
regras constitucionais declinadas -, tema inclusive já enfrentado e acolhido – embora em delito
diverso – pelo Supremo Tribunal Federal, mas cuja essência é aplicável in totum no caso vertente.
10. Inúmeros segmentos da doutrina e da jurisprudência têm-se manifestado no sentido de que
normas que permitem a extinção da punibilidade em crimes tributários mediante a devolução dos
valores sonegados teriam finalidade primordialmente arrecadatória5. Aqui nem disso se trata
1
Chaïm Perelman, Ética e Direito, p. 408.
2
Freitas, Juarez.A Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo, Malheiros, 3ª edição, 2002, pág. 272
3
O artigo 1º, caput, se refere apenas aos termos “democrático e Direito”.
4
“A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, 2ª edição, p. 65
5
Tem-se estar caracterizada, aí, verdadeira falácia argumentativa do tipo hyper-integration. TRIBE, Laurence, e
DORF, Michael. On reading the Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1991. Bem assim ainda a
hipótese de falácia denominada ad judicium. Sobre a primeira, bem observa Juarez Freitas que “uma interpretação
sistemática madura afasta, entre outras, as falácias das dis-integration e da hyper-integration, sem sucumbir a
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sequer. Repita-se: basta a “declaração e confissão” do crime para se ver extinta a punibilidade.
11. Tal argumento é-nos – maxima venia - limitado a um espectro apenas parcial e ilustrado de
um sistema que não mais tem apenas essas características 6. Silogismos deste jaez decorrem
especialmente de uma repetição de determinados posicionamentos sem qualquer declinação
axiológica racionalmente fundamentada, vinculada a uma hermenêutica bloqueada para a
compreensão que se tem como mais adequada dos fatos. Não raras vezes tal decorre de
repetições de conclusões equivocadas, consolidando-se as assertivas como se fossem corretas,
malgrado, em verdade, se traduzem como versões menos razoáveis, menos consentâneas com a
realidade social.
12. A conclusão a que se chega é diametralmente oposta: regras dessa natureza NÃO SÃO
APTAS A ESTIMULAR OS CIDADÃOS AO CUMPRIMENTO DAS NORMAS VIGENTES ,
atingindo-se a prevenção geral sob a ótica limitadora.
13. Segundo FERRAJOLI, a sujeição do juiz à lei já não é, como no velho paradigma positivista,
sujeição à letra da lei, qualquer que seja seu significado, mas sim sujeição à lei enquanto válida,
vale dizer, coerente com a Constituição 7.
14. Deflui daí ser imperioso ao juízo que faça uma análise crítica das leis, (re)interpretando-as
sob o filtro dos conteúdos axiológicos da Constituição. Precisamente por intermédio dessa análise
crítico-valorativa é que, de modo eficaz, se estará utilizando de meio adequado para o controle da
legitimidade constitucional – ou não - das regras de grau inferior, como corolário de um sistema
que ancora seus pilares em um Estado Social e Democrático de Direito.
15. Na senda de Gascón Abellán, é importante visualizar “como primera aproximación que um
derecho garantista establece instrumentos para la defensa de los derechos de los individuos
frente a su eventual agresión por parte de otros individuos y (sobre todo) por parte de poder
estatal; lo que tiene lugar mediante el establecimiento de límites y vínculos al poder a fin de
maximinar la realización de esos derechos y de minimizar sus amenazas” 8 (grifos e destaques
nossos).
16. Mas “garantismo penal” não é um marco teórico calcado exclusivamente na premissa
sintetizada acima.
17. Gascón Abellán 9 enceta com precisão: num verdadeiro Estado garantista, o legislador
(dizemos nós, em complemento: não só o legislador, mas todos os poderes do Estado e também
os particulares) não tem um poder de disposição, pois está limitado pelos bens e valores
niilismo de qualquer espécie”. FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 4 ed, rev. e aum. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 64.
6
Diz-nos Righi que a evolução do constitucionalismo contemporâneo põe em evidência o progressivo abandono dos
modelos de constituições individualistas, substituindo-os por modelo chamado de constitucionalismo social, ou seja,
aquele que contém cláusulas econômicas e que consagra não apenas garantias que o Estado deve-se abster de
afetar, senão também direitos sociais, cuja satisfação requer sua atuação, o que põe em evidência a importância dos
valores e interesses sociais que protege o Direito Penal Econômico. Apud SEOANE SPIEGELBERG, José Luis. El
delito de defraudación tributaria. In: Temas de Derecho Penal Tributario. GARCÍA NOVOA, César; LÓPES DÍAS,
Antônio (orgs). Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 80.
7
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias, La ley Del más débil. 4 ed. Madrid: Trotta, 2004,p. 26.
8
GASCÓN ABELLÁN, Marina. La Teoria General del Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar,
Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.21.
9GASCÓN ABELLÁN, Marina. Op. cit., p. 30.
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constitucionais (donde se enquadram, repise-se, não apenas os direitos fundamentais individuais).
18. Como salienta Prieto Sanchís10, Ferrajoli sempre insistiu que o paradigma garantista “es uno
y el mismo que el actual Estado constitucional de derecho”, o en que representa la outra cara del
constitucionalismo, concretamente aquella que se encarga de formular las técnicas de garantías
idoneas para asegurar el máximo grado de efectividad a los derechos [...]” - todos os direitos,
explicitamos ! – “[...] reconocidos constitucionalmente”.
19. Reportando-se a Ferrajoli, anota Miguel Carbonell que, para o mestre italiano, garantia “es
una expresión del léxico jurídico con la que se desgina cualquier técnica normativa de tutela de un
derecho subjetivo” (não destaca que, necessariamente, seja um direito subjetivo individual).
Podem haver “garantías positivas y garantías negativas; las primeras obligarían a abstenciones
por parte del Estado y de los particulares en respeto de algun derecho fundamental, mientras que
las segundas generarían obligaciones de actuar positivamente para cumplir con la expectativa
que derive de algun derecho” 11.
20. Assim, a tese central do garantismo está em que sejam observados rigidamente não só os
direitos fundamentais (individuais e também coletivos), mas inclusive os deveres fundamentais (do
Estado e dos cidadãos), previstos na Constituição.
21. Normas de hierarquia inferior (e até em alterações constitucionais) ou então interpretações judiciais não podem
solapar ou restringir o que já está (e bem) delineado constitucionalmente na seara dos direitos (e deveres)
fundamentais. Embora eles não estejam previstos única e topicamente ali, convém acentuar que o art. 5º da
Constituição está inserto em capítulo que trata “dos direitos e deveres individuais e coletivos”. Assim, como forma de
maximizar os fundamentos garantistas, a função do hermeneuta está em buscar quais os valores e critérios que
possam limitar ou conformar constitucionalmente o Direito Penal e o Direito Processual Penal.
22. Como bem salienta José Luis Martí Mármol, “el paradigma constitucional incluye asimismo,
según Ferrajoli, los siguientes grupos de derechos fundamentales: derechos políticos (o de
autonomia pública), derechos civiles (o de autonomía privada), derechos liberales (o de libertad) y
derechos sociales” 12 13(grifos e destaques nossos).
23. Como se vê da doutrina de Maria Fernanda Palma,
é “a Constituição quem define as
10 PRIETO SANCHÍS, Luis. Constitucionalismo y Garantismo. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo –
Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.41.
11CARBONELL, Miguel. La garantia de los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del
Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de
Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.182.
12 MARTÍ MÁRMOL, José Luis. El fundamentalismo de Luigi Ferrajoli: um análisis crítico de su teoria de los derechos
fundamentales, In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli.
Madrid: Editorial Trota, 2005 p. 384.
13 Casalta Nabais defende que os deveres fundamentais se constituem em categoria jurídica constitucional específica.
Nessa senda, abordando o tema relativo aos custos dos direitos, ensina que uma comunidade organizada na forma
que mais êxito teve até o momento, na forma de estado moderno, está necessariamente ancorada em deveres
fundamentais, que são justamente os custos lato sensu, ou suportes da existência e funcionamento dessa mesma
comunidade. Comunidade cuja organização visa justamente realizar um determinado nível de direitos fundamentais,
sejam os clássicos direitos e liberdades, sejam os mais modernos direitos sociais. NABAIS, José Casalta. Por
uma Liberdade com Responsabilidade - Estudos sobre Direitos e Deveres Fundamentais Editora. Coimbra:
Coimbra Editora, 2007. Nada obstante suas reservas acerca da premissa de que haveria uma necessária
correlação entre direitos e deveres fundamentais, Canotilho reconhece explicitamente que “ao lado de deveres
conexos com direitos fundamentais existem também deveres autónomos (exs: art. 106º, dever de pagar impostos).”
CANOTILHO, José Joaquim Gomes .Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1996, p. 548).
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obrigações essenciais do legislador 14 perante a sociedade. Ora, esta função de protecção activa
da Sociedade configura um Estado não meramente liberal, no sentido clássico, mas promotor de
bens, direitos e valores” 15.
24. Perfecto Andrés Ibáñez é objetivo ao referir a existência atual de um “garantismo dinámico,
que es el que trasciende el marco de o proceso penal y también el de la mera garantía individual
de carácter reactivo para ampliarse al asegurarmiento de otros derechos e de los
correspondientes espacios hábiles para su ejercicio”.
25. Miguel Carbonell chega ser mais incisivo e objetivo ao defender que a teoria garantista de
Luigi Ferrajoli se apresenta como um paradigma inacabado, como uma obra no meio do caminho,
carente de complementação e devida compreensão 16. Aliás, Ferrajoli é expresso no sentido de
que “el paradigma garantista puede expandirse (y en el plano normativo ha ido efectivamente
expandiéndose) en tres direcciones: hacia la tutela de los derechos sociales y no solo de los
derechos de libertad, frente a los poderes privados y no solo a los poderes públicos y en ámbito
internacional y nó solo estatal”17.
26. Assim, se todos os Poderes estão vinculados a esses paradigmas, especialmente é o Poder
Judiciário quem tem o dever de dar garantia também aos cidadãos (sem descurar da necessária
proteção dos interesses sociais e coletivos) diante das eventuais violações que eles virem a
sofrer. Exatamente por isso que Miguel Carbonell refere que “en el modelo del Estado social los
poderes públicos dejan de ser percibidos como enemigos de los derechos fundamentales y
comienzan a tomar, por el contrario, el papel de promotores de esos derechos, sobre todo de los
de caracter social”18.
27. Analisando o tema relacionado aos deveres de proteção e os direitos fundamentais, o
Ministro Gilmar Mendes já reconheceu que “os direitos fundamentais não contêm apenas uma
proibição de intervenção [...], expressando também um postulado de proteção [...]. Haveria, assim,
para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot),
mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base
na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do
dever de proteção: [...] (b) Dever de segurança [...], que impõe ao Estado o dever de proteger o
indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; [...] Discutiu-se
intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros
termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por
reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever proteção corresponde a
uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”19.
14 Insistimos: também todos os demais Poderes e órgãos do Estado.
15 PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina,2006,p.106-7.
16 CARBONELL, Miguel. La garantia de los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del
Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento
jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.171.
17 FERRAJOLI, Luigi. Garantismo – Una Discusión sobre derecho y democracia. Madrid: Editorial Trotta, 2006, p. 113.
18 CARBONELL, Miguel. La garantia de los derechos sociales em la Teoria de Luigi Ferrajoli. In: La Teoria General del
Garantismo: rasgos principales. In: Carbonell, Miguel y Salazar, Pedro, Garantismo – Estúdios sobre el pensamiento
jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Editorial Trota, 2005, p.179.
19 MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Brasília:
Revista Jurídica Virtual, vol. 2, n. 13, junho/1999. Também em Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional,
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28. Nesta mesma linha são as percucientes observações de Bernal Pulido quando destaca que
“la cláusula del Estado social de derecho modifica el contenido que los derechos fundamentales
tenían en el Estado liberal. […] De este modo, junto a la tradicional dimensión de derechos de
defensa, que impone al Estado el deber de no lesionar la esfera de libertad constitucionalmente
protegida, se genera un nuevo tipo de vinculación, la vinculación positiva. En esta segunda
dimensión, los derechos fundamentales imponen al Estado un conjunto de “deberes de
protección” (dizemos nós: de proteção ótima) que encarnan en conjunto el deber de contribuir a
la efectividad de tales derechos y de los valores que representan ” 20. Na sequência de sua
doutrina, destacando que “el efecto disuasorio o preventivo de la pena es una de las estrategias
más efectivas para proteger los derechos fundamentales de ataques provenientes de terceros”,
enfatiza que “[...] La segunda variante del principio de proporcionalidad, que también se aplica
para controlar la constitucionalidad de la legislación penal, pero desde el punto de vista de la
satisfacción e las exigencias impuestas por los derechos de protección, es la prohibición de
protección deficiente. En esta variante, el principio de proporcionalidad supone también interpretar
los derechos fundamentales de protección como principios y aceptar que de ellos se deriva la
pretensión prima facie de que el legislador los garantice en la mayor medida posible, habida
cuenta de las posibilidades jurídicas y fácticas. Esto quiere decir que estos derechos imponen
prima facie al legislador el desarrollo de todas las acciones (no redundantes) que favorezcan la
protección de su objeto normativo, y que no impliquen la vulneración de otros derechos e
principios que juegen en sentido contrario. El carácter prima facie de estos derechos implica que
las intervenciones del legislador de las que sean objeto sólo puedan ser constitucionalmente
admisibles y válidas de manera definitiva se observan las exigencias del principio de
proporcionalidad. La versión del principio de proporcionalidad que se aplica frente a los derechos
de protección se llama prohibición de protección deficiente (el untermassverbot) de la doctrina
alemana. Este principio se aplica para determinar si las omisones legislativas, que no ofrecen un
máximo nivel de aseguramiento de los derechos de protección, constituyen violaciones de estos
derechos. Cuando se interpretan como principios, los derechos de protección implican que el
legislador les otorgue prima facie la máxima protección. Si éste no es el caso, y, por el contrario,
el legislador protege un derecho sólo de manera parcial o elude brindarle toda protección, la falta
de protección óptima deve enjuiciarse entonces desde el punto de vista constitucional mediante la
prohibición de protección deficiente. Esta prohibición se compone de los siguientes subprincipios.
Una abstención legislativa o una norma legal que no proteja un derecho fundamental de manera
óptima vulnera las exigencias de principio de idoneidad cuando no favorece la realización de un
fin legislativo que sea constitucionalmente legitimo. [...] Una abstención legislativa o una norma
legal que no proteja un derecho fundamental de manera óptima, vulnera las exigencias del
principio de necesidad cuando existe outra abstención y outra medida legal alternativa que
favorezca la realización del fin del Congreso por lo menos con la misma intensidad, y a la vez
favorezca más la realización del derecho fundamental de protección. [...] Una abstención
legislativa o una norma legal que no proteja un derecho fundamental de manera óptima, vulnera
las exigencias del principio de proporcionalidad en sentido estricto cuando el grado de
favorecimiento del fin legislativo (la no-intervención de la libertad) es inferior al grado en que no se
realiza el derecho fundamental de protección. Si se adopta la escala triádica expuesta com
ocasión de la interdicción del exceso, se concluirá entonces que, según la prohibición de
protección deficiente, está prohibido que la intensidad en que no se garantiza un derecho de
protección seja intensa y que la magnitud de la no-intervención en la libertad o en otro derecho de
defensa sea leve o media, o que la intensidad de la no-protección sea media y la no-intervención
Núm. 8, 2004, p. 131-142.
20 BERNAL PULIDO, Carlos. El Derecho de los Derechos. Bogotá: Universidad Externado de Colombia. 2005, p.126.
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sea leve.[...]”21.
29. Nas normas questionadas, restam desprotegidos os bens jurídicos fundamentais estampados
na Constituição, bem como não há qualquer (suposto) interesse arrecadatório, gerando, em
verdade, impunidade (culminando em injustiça) 22 23.
30. Faz-se necessária uma eticização também do Direito Penal Fiscal, calcada nas premissas de
que o sistema não visa apenas à arrecadação, mas sobremaneira à realização – na sequência do
processo - da justiça distributiva 24.
31. Consoante doutrina Martin Borowski, as medidas com esses conteúdos são inadequadas,
porque não contribuem em nada para que seja fomentada a realização dos objetivos traçados na
Constituição Federal. Ou, ao menos, não há nenhuma demonstração de que tais regras tenham
como consequências a redução da sonegação fiscal (lato sensu). Streck resume 25 que “não há
qualquer justificativa de cunho empírico que aponte para a desnecessidade da utilização do direito
penal para a proteção dos bens jurídicos que estão abarcados pelo recolhimento de tributos,
mormente quando examinamos o grau de sonegação no Brasil”. Encerra afirmando que “para
abrir mão – mesmo que de forma indireta – da proteção penal do bem jurídico ínsito à idéia de
Estado Social, o legislador deveria demonstrar, antes, que os meios alternativos à sanção, como o
pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, tenha, nos últimos anos – mormente a
partir da Lei n° 9.249/95 – proporcionado resultados que apontem, de forma efetiva, para a
diminuição da sonegação de tributos”.
32. Clèmerson Clève 26, acorrendo também a Vital Moreira e Canotilho, de forma muito pertinente
lembra que “havendo incompatibilidade entre o conteúdo da norma e o da Constituição,
manifestar-se-á a inconstitucionalidade material. Pode ocorrer também inconstitucionalidade
material quando a norma, embora disciplinando matéria deixada pelo Constituinte à liberdade de
conformação do legislador, tenha sido editada ´não para realizar os concretos fins constitucionais,
mas sim para prosseguir outros, diferentes ou mesmo de sinal contrários àqueles´, ou, tendo sido
editada para realizar finalidade apontadas na Constituição, ofende a normativa constitucional por
21 BERNAL PULIDO, Carlos. El Derecho de los Derechos. Bogotá: Universidad Externado de Colombia. 2005, p.139142.
22 Roemer destaca que, quando um indivíduo incorre numa falta e infringe determinado regulamento e não é castigado,
se perde o objetivo social do Estado, e a população recebe um sinal de que é possível “passar por cima da lei”.
ROEMER, Andrés. Economía del Crimen. Ciudad de México: Limusa, 2001, p. 257
23 FISCHER, Douglas. Artigo 34 da Lei n° 9.249/95 – Parcelamento não é causa de extinção da punibilidade, RT n.
809, março/2003, p. 438. FISCHER, Douglas. Delinqüência Econômica e Estado Social e Democrático de Direito.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.
24 “É hoje um dado adquirido a eticização do direito penal fiscal, uma vez que o sistema fiscal não visa apenas
arrecadar receitas, mas também a realização de objectivos de justiça distributiva, tendo em conta as necessidades
de financiamento das atividades sociais do Estado. [...] É através da cobrança de impostos que o Estado realiza em
grande parte os objectivos de justiça social que a sua dimensão democrática lhe impõe”. RODRIGUES, Anabela
Miranda. Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria fiscal. Direito Penal Econômico e
Europeu: Textos Doutrinários. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 481.
25 STRECK, Lênio. Da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot):
de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Porto Alegre. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, n. 2, p. 243/284, 2004.
26 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2 ed. rev. e amp.
São Paulo: RT, 2000, p. 45.
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fazê-lo de modo inapropriado, desnecessário, desproporcional, ou, em síntese, de modo não
razoável”. Diz que, na primeira situação, tem-se a hipótese de desvio ou excesso de Poder
Legislativo. Na segunda, de ofensa ao Princípio da Razoabilidade ou da Proporcionalidade dos
atos do Poder Público, especificamente no caso do Poder Legislativo.
33. Essa assertiva vem ao encontro da afirmação de Daniel Drey, para quem "la ley es como una
telaraña, atrapa a las moscas y a los pequeños insectos, pero deja que los abejorros,
rompiéndola, se abran paso a través de ella". 27
34. No mesmo caminho correm as conclusões de Michel Levi 28, ao reconhecer que “quem rouba
uma libra vai para a prisão e quem rouba dez mil libras devolve o dinheiro, eventualmente
acrescido de uma multa substancial, nas raras ocasiões em que for apanhado, o que leva a
concluir que para as coisas grandes a lei não fornece remédio”29.
35. Realmente, no sistema pátrio, para os delinqüentes comuns, tradicionais, que sofrem as
penas (iluministas) do Código Penal, cujas condutas em tese (e de modo geral) são muito menos
lesivas, se não houver violência ou grave ameaça à pessoa (sob o enfoque tradicional de suas
acepções30), acaso devolvido o bem objeto do crime, no máximo se faz incidir a regra do art. 16 do
Código Penal (redução da pena) 31, jamais se cogitando de eventual exclusão de punibilidade pela
“simples devolução do bem sonegado” a qualquer tempo.
36. A coerência do Direito Penal necessita ser visualizada e compreendida a partir de um quadro
27 LEVI, Michel. Apud SANCHIS MIR, José Ricardo; GENOVÊS, Vicente Garrido. Delincuencia de ´Cuello Blanco´.
Madrid: Instituto de Estudios de Policia, 1987, p. 109-10.
28 Regulating Fraud, Londres: Tavistock, 1987, apud SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O Crime do Colarinho Branco,
Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 210.
29 Em sintonia, a síntese de Reiman: “for the same crime, the system is more likely to investigate and detect, arrest and charge,
convict and sentence, sentence to prison and for a longer time, a lower-class individual than a middle – or upper - class
individual. [...] Between crimes that are characteristically committed by poor people (street crimes) and those characteristically
commited by the well-off (white-collar and corporate crimes), the system treats the former much mor harshly than the latter, even
when the crimes of the well off take more money from the public or cause more death and injury than the crimes of the poor”.
JEFFREY, Reiman. The Rich get Richer and the Poor get Prision. Ideology, class, and criminal justice. 6 ed. Needham Heights
MA: Allyn & Bacon, 2001, p. 145.
30 É prudente a ressalva feita por Bustos Ramírez ao considerar que a grave danosidade ocasionada por boa parte dos
delitos econômicos não pode autorizar conclusão de sobrepô-la a dos crimes contra a integridade das pessoas.
BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Perspectivas Atuais do Direito Penal Econômico, Fascículo de Ciências Penais, Porto
Alegre, a. 4, v. 4, n. 2, p. 5. Embora Lênio Streck indague, com boa dose de pertinência, dependendo do caso
concreto, “se alguém tem dúvidas que o crime de sonegação de impostos causa mais violência (e morte) do que um
crime de lesões corporais ou até mesmo de um crime de roubo”. STRECK, Lênio. As (novas) penas alternativas à
luz da principiologia do Estado Democrático de Direito e do Controle de Constitucionalidade. In: A Sociedade, a
Violência e o Direito Penal. FAYET JUNIOR, Ney; CORRÊA, Simone Prates Miranda (orgs.) Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000, p. 139. No mesmo sentido, Callegari sustenta que “também a delinqüência econômica lesiona a
vida e a integridade física das pessoas”. Esta repercussão, diz ainda, não se dá de “maneira direta como na
comissão da maioria dos delitos tradicionais em que a repercussão aparece, normalmente, em seguida”.
CALLEGARI, André Luís. Importância e Efeito da Delinqüência Econômica. Boletim do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais, São Paulo, ano 8, n. 101, p. 10.
31 No sistema espanhol, reitere-se apenas a título comparativo que a devolução dos tributos sonegados deve ocorrer
de forma voluntária, sendo seu fundamento “análogo al que informa las normas relativas a las instituciones penales
del desistimiento voluntário y el arrependimiento activo, y, por tanto, há de basarse materialmente em los mismos
principios”. MARTÍNEZ-BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa, Parte Especial. 2 ed.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2005, p. 574. Vê-se, portanto, que há - pelo menos - tratamento isonômico em relação
aos demais delitos patrimoniais praticados em detrimento de particulares.
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de valores superiores que sejam expressão de racionalidade e valoração social. Acorrendo a
Schünemann, restará inviável racionalmente justificar ulterior persecução penal da criminalidade
tradicional se são fechados os olhos para as reais necessidades de uma efetiva persecução da
criminalidade econômica 32. Mais enfaticamente, na senda de Bricola 33, não se pode deixar de
considerar a “hipótese de ilegitimidade constitucional da despenalização [...] de um ilícito lesivo de
um valor com relevo constitucional, quando tal despenalização determinasse uma irracional
disparidade de tratamento com respeito a outros factos lesivos de valores constitucionais de igual
significado (ou equivalente e, acrescentamos nós, por maioria de razão se fossem de significado
inferior), configurados, estes, como ilícitos penais”.
37. Além disso, a descriminalização vai de encontro à premissa de que a intervenção penal é
necessária para desencadear ou promover a transformação das representações coletivas no
sentido de atualizar a consciência comunitária da gravidade dos delitos econômicos 34.
38. Como ensina Zagrebelsky, “la ley viene sometida a una relación de adequación, y por tanto
de subordinación, a un estrato más alto de derecho establecido por la Constitución” 35, de modo
que “las Constituciones contemporaneas intentan poner remédio a estos efectos destructivos del
orden jurídico mediante la previsión de un derecho más alto, dotado de fuerza obligatoria incluso
para el legislador. El objetivo es condicionar y, por tanto, contener, orientándolos, los desarrollos
contradictorios de la producción del derecho, generados por la heterogeneidad y ocasionalidad de
las presiones sociales que se ejercen sobre el mismo“36.
39. Assim, frente ao problema proposto, a conclusão que se tem como melhor é no sentido de
que as normas que vedam a intervenção penal e despenalizam as condutas narradas violam os
princípios constitucionais no que pertine à realização dos fundamentos do Estado Social e
Democrático de Direito - em especial o da proporcionalidade sob a ótica da proibição de proteção
deficiente - , pois, como um fator a mais, debilita significativamente a atividade prestacional do
Estado.
40. Além disso, tais delitos, frente a regras desse jaez, geram o que se tem denominado de
“efeito espiral” 37, incentivando a prática delitiva por outros agentes em idêntica situação 38, devido
32 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana.
Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 37.
33 Apud CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 333.
34 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Apud CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva
da Criminalização e da Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 423.
35 ZAGREBELSKY, Gustavo.El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 6 ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 34.
36 ZAGREBELSKY,Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 6 ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 39.
37 Righi conclui que “se conoce como efecto de resaca o espiral al que se produce normalmente em mercados
competitivos, donde la ausencia de eficácia preventiva del Estado genera deslealdad, de modo que el
delincuente presiona sobre los demás para que sigan su ejemplo, y así sucesivamente, llegándose a
consecuencias de ´contagio´ generalizado”. RIGHI, Esteban. Derecho Penal Economico Comparado, Madrid:
Editoriales de Derecho Reunidas, 1991.p. 280. No mesmo sentido, TORON, Alberto Zacharias. Crimes de Colarinho
Branco: Os novos perseguidos ?, Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 28, São Paulo, p. 78.
38 Calham novamente as ponderações de Roemer ao dizer que “en general, es costoso que un delincuente no sea
castigado conforme a la ley, porque dada su impunidad podría reincidir o bien otros individuos tendrán incentivos a
delinquir porque la probabilidad de que sean atrapados se presume pequeña”. ROEMER, Andrés. Economía del
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(também) à concorrência desleal 39 e à certeza da impunidade mediante a exclusão da
punibilidade em decorrência tão-só da devolução do objeto da conduta criminosa.
41. Há se ver que a Constituição da República destaca expressamente também ser necessária a
defesa de uma “ordem econômica” (art. 170, CF/88) com a observância dos princípios da livre
concorrência e da redução das desigualdades regionais e sociais. A propósito, atente-se para as
considerações do Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial
Marcílio Marques Moreira, em artigo intitulado “Existe uma ética de mercado ?”: “O lucro da
empresa não pode, portanto, ser gerado por sonegação ou falcatruas, nem à custa dos
concorrentes. A concorrência desleal, além do dano ao erário público, desfigura o mais eficaz
instrumento de mercado – a competição empresarial” ( Revista do Instituto Brasileiro de Ética
Concorrencial nº 10, ano 5, agosto de 2008).
42. Nessa quadra, Silva Sánchez 40, ao aludir que o Direito Penal, para ser eficaz em sua
pretensão de lograr a eficiência social, deve configurar suas normas partindo do princípio de que
os destinatários das leis vão realizar um cálculo de eficiência. Especificamente, no caso, vendo
não haver qualquer possibilidade de punição, no máximo a devolução do objeto do crime – a
qualquer tempo -, o criminoso (inclusive aquele em potencial) será até estimulado a praticar fatos
similares, porque ausente qualquer circunstância que garanta a prevenção sistêmica.
43. Esses fatos e argumentos dão supedâneo a Aguado Correa, que defende ser “importante no
olvidar que la ineficacia de la pena no se mide en relación con las personas que ya han
delinquido, sino en relación con los que no han delinquido o han dejado de delinquir por existir
una amenaza penal” 41.
44. Tem razão Alvarez-Uría 42 ao afirmar que “el excesivo juridicismo y garantismo [diz-se: um
garantismo distorcido, que não se adecua aos verdadeiros propósitos originais da doctrina de
Ferrajoli] en lo que se refiere a los delitos de cuello blanco, lejos de propiciar un sistema de
defensa de los derechos ciudadanos, como tantas veces se afirma, en realidad, lo que crea es
una doble balanza de la justicia: de un lado la balanza que penaliza sistemáticamente los delitos
de los pobres y de otro la que muestra complaciente y condescendiente con los delitos de los
ricos.” Efetivamente, ainda em suas palavras,
[...] en un país en el que únicamente los pobres van a la cárcel, los ricos pueden o no ser
delincuentes, pero en todo caso gozan de la patente de la impunidad. En un país en el que los
pobres son sospechosos de debilidad mental y los ricos gozan de impunidad se produce
necesariamente un proceso de deslegitimación democrática pues quienes dicen gobernar para
promover la igualdad social se convierten en realidad encubridores o socios de sus mas
Crimen. Ciudad de México: Limusa, 2001, p. 257
39 Exemplificativamente, confira-se os fundamentos de irresignação de réu condenado nos autos da Apelação Criminal
nº 1999.71.12.006712-2/RS (julgada em 26/05/2004, publicada no DJU em 09/06/2004, p. 640), processado por
sonegação fiscal de mais de R$ 6,5 milhões, tendo argüido que praticou o delito em razão da concorrência desleal
do mercado.
40 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Eficiência e Direito Penal. Coleção Estudos de Direito Penal, v. 11. São Paulo: Manole, 2004,
p. 26.
41 AGUADO CORREA, Teresa. El Principio de Proporcionalidad en Derecho Penal. Madrid: Edersa, 1999, p. 153.
42 In SUTHERLAND, Edwin H.El Delito de Cuello Blanco. Madrid: Ediciones de La Piqueta, 1999, p.39.
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declarados enemigos. Hacer coincidir el derecho con la justicia es hoy la única via para evitar que
el incremento de las desigualdades y el autoritarismo amenacen a la sustancia misma de la
sociedad.
Los delitos comunes y los delitos de cuello blanco son objeto de un tratamiento procesal distinto,
y también de un diferente tratamiento policial y penitenciario. Las redes de control social se tejen
en una trama densa para luchar contra los delitos comunes, pero las tramas se agigantan para
dejar impunes los delitos de los delincuentes de cuello blanco. 43
44. Abordando o tema da igualdade no Estado Social, Bonavides destaca que este princípio deve
limitar materialmente a atuação do Estado. Como refere 44, desaparece a figura do legislador
absoluto, "cuja criação normativa, em nome inclusive do princípio da separação dos Poderes, não
se sujeitava a nenhum controle de teor material, valorativo ou substancial. A eficácia dessa
limitação é que faz o Estado Social ser um Estado de Direito, em inteira harmonia com o princípio
da liberdade, o que não ocorre com o Estado social dos ordenamentos totalitários”.
45. Segundo Bandeira de Mello45, “a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou
desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de
indivíduos e de fatos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime
aos que se inserem na categoria dispensada”.
46. Em outras palavras, há violação do cânone constitucional da isonomia na medida em que
normas desse jaez atribuem tratamentos jurídicos diversos em atenção a fator de discrímen
adotado46, que, porém, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes
outorgados, bem como supõem relação de pertinência lógica em abstrato, mas a discriminação
estabelecida conduz a efeitos contrapostos ou dissonantes dos interesses prestigiados
constitucionalmente47.
47. Borowski também é enfático ao destacar que, diante do Princípio da Igualdade, o legislador
está ordenado a outorgar um trato igual quando não existe uma razão suficientemente razoável
para permitir um trato desigual 48.
49. Novamente O Ministro Gilmar Mendes bem resumiu a questão da violação da isonomia49:
43 In SUTHERLAND, Edwin H.El Delito de Cuello Blanco. Madrid: Ediciones de La Piqueta, 1999, p.47.
44 BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 124.
45 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros,
1993, p. 39.
46 Analisando a proporcionalidade no controle da lei em face do Princípio da Igualdade, Suzana Barros defende que se
o legislador elege aleatoriamente qualquer fator de diferenciação, sem pertinência de fundo teleológico, ou se
estabelece, em função da distinção, privilégios e ônus desmedidos, estará impondo uma dissimetria de tratamento
inaceitável, violadora do princípio constitucional da igualdade. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da
proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3 ed. Brasília:
Brasília Jurídica, 2003, p. 193.
47 Confira-se, a propósito, excerto de voto-condutor proferido nos autos da Apelação nº 7000028445, Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, em que o relator refere: “Quando uma norma atende a igualdade ? Celso diz que há
“se o tratamento diverso outorgado a uns for justificável, por existir uma correlação lógica entre o fator de discrímen
(...) e o regramento que se lhe deu”, se inexistir, ao contrário, “a congruência lógica ou se nem ao menos houvesse
um fator de discrímen identificável” há agressão ao princípio. As discriminações – leia-se tratamento diferenciado –
devem ser “lógicas, racionais, visivelmente justificáveis”. Apud STRECK, Lênio. O Princípio da Proporcionalidade e
as possibilidades de filtragem hermenêutico-constitucional: análise de um acórdão garantista. In: Novos Rumos do
Direito Penal Contemporâneo. SCHMIDT, Andrei Zenkner (coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 357.
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“[...] O princípio da isonomia pode ser visto tanto como exigência de tratamento igualitário
(Gleichbehandlungsgebot),
quanto
como
proibição
de
tratamento
discriminatório
(Ungleichbehandlungsverbot). A lesão ao princípio da isonomia oferece problemas sobretudo
quando se tem a chamada "exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade"
(willkürlicher Begünstigungsausschluss).
Tem-se uma "exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade" se a norma
afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos
ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas.
Essa exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita. Ela é concludente se a lei
concede benefícios apenas a determinado grupo ; a exclusão de benefícios é explícita se a lei
geral que outorga determinados benefícios a certo grupo exclui sua aplicação a outros segmentos.
O postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos, duas situações que se
encontram numa relação de comparação. Essa relatividade do postulado da isonomia leva,
segundo Maurer, a uma inconstitucionalidade relativa ("relative Verfassungswidrigkeit") não no
sentido de uma inconstitucionalidade menos grave. É que inconstitucional não se afigura a norma
"A" ou "B", mas a disciplina diferenciada das situações ("die Unterschiedlichkeit der Regelung").
Essa peculiaridade do princípio da isonomia causa embaraços, uma vez que a técnica
convencional de superação da ofensa (cassação; declaração de nulidade) não parece adequada
na hipótese, podendo inclusive suprimir o fundamento em que assenta a pretensão de eventual
lesado. [...]
50. Apenas a título ilustrativo e se utilizando do Direito Comparado, refira-se que, na senda do
entendimento do Tribunal Constitucional Alemão, uma lei de anistia penal viola o Princípio da
Igualdade se a regra especial fixada pelo legislador para alguns tipos penais não for orientada
pelo pensamento de justiça e se não puderem ser encontradas para ela quaisquer argumentos
razoáveis que decorram da natureza da matéria ou que sejam compreensíveis de alguma outra
forma50.
51. Apreciando a temática da igualdade, Cruz Santos 51 enceta que “determinada solução será
materialmente justa se permitir que aquilo que foi considerado igual entre si se torne cada vez
mais próximo do que até aí lhe era desigual e se afigura como desejável num dado momento
histórico”.
52. Em casos de normas como as ora sob análise, exsurge que o distanciamento entre estes
parâmetros, em verdade, tem aumentado, incrementando-se o trato desigual e desproporcional
entre os fatos criminosos em relação às suas consequências e em detrimento das diretrizes
fundamentais estampadas na Carta Constitucional.
48 BOROWSKI, Martin. La Estructura de los derechos fundamentales. Colombia: Universidad Externado de Colombia,
2003, p. 191.
49 MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Brasília:
Revista Jurídica Virtual, vol. 2, n. 13, junho/1999. Também em Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional,
Núm. 8, 2004, p. 131-142.
50 BVerfGE 10, 234 (Platow-Amnestie). SCHWABE, Jürgen. Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal Alemão. MARTINS, Leonardo (org). Traduzido por Beatriz Hennig e outros. Montevidéu:
Adenauer, 2005, p. 323-5.
51 SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O Crime do Colarinho Branco. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 204.
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53. Tais anotações reforçam as conclusões de Sanchis Mir e Garrido Genovés 52 ao
reconhecerem que “mediante este trato diferencial, los delincuentes de cuello blanco no son
considerados delincuentes por el público, ni por ellos mismos ni por los criminólogos 53 [como
regra também nem pelo legislador ordinário, nem pela grande maioria dos aplicadores do Direito]
con lo que aumenta la probabilidad de que estos delitos se repitan y aumenten en el futuro
(Sutherland, 1940)”.
54. Nas palavras Perelman, "que fazer se o próprio Poder Legislativo legisla de modo iníquo ?
Seria razoável continuar, apesar de tudo, a sustentar a doutrina do positivismo jurídico segundo a
qual ´a lei é a lei´, seja qual for seu conteúdo?" 54 55. Em sua linha de raciocínio, a resposta é
negativa. O desarrazoado se constitui em limite para qualquer formalismo em matéria de direito,
devendo-se apelar para princípios mais justos, pois "casos há em que o respeito estrito da letra
redunda não numa solução [apenas] iníqua, mas em conseqüências ridículas". Assim, propugna,
"nas sociedades democráticas contemporâneas, por juízes que compreendem [deveriam
compreender] seu papel, que é o de conciliar o respeito pelo direito com o respeito pela eqüidade
e pela justiça, de eliminar-lhes as conseqüências desarrazoadas, portanto inaceitáveis".
55. Efetivamente, e o STF assim já se pronunciou inúmeras vezes, não é qualquer norma
editada pelo legislador que se afigura legítima e consoante a Constituição, pois, para tanto, deve
haver um liame axiológico de seu conteúdo com os valores sociais e democráticos. Da outorga de
seu mandato, não tem o parlamentar a autorização para, de forma arbitrária e desarrazoada,
legislar contra a própria sociedade.
56. Em harmonia com essas ponderações, complementando-as, Cruz refere 56 que todo o
substrato material da Constituição, com sua pretensão de validez, descansa operativamente [de
52 SANCHIS MIR, José Ricardo; GARRIDO GENOVÉS, Vicente. Delincuencia de ´Cuello Blanco´. Madrid: Instituto de
Estudios de Policia, 1987, p.109.
53 “The businessman [...] thinks of himself as a respectable citizen and, by and large, is so regarded by the general
public. [...] This problem of the conception of one´s self as a criminal is an important problem in criminology. Some
criminologists have insisted that the white collar criminal is not really a criminal since he does not conceive of himself
as a criminal. [...] The public does not think of the businessman as a criminal; that is, the businessman does not fit the
stereotype of criminal. This public conception is sometimes referrer to as status”. SUTHERLAND, Edwin H. White
Collar Crime - The Uncut Version. New York: Vail-Ballou Press, Binghamton, 1983, p. 230-2. “El punto más
significativo de diferencia reside en los conceptos que tienen de sí mismos los delincuentes y en el concepto que
tiene el público sobre ellos. El ladrón profesional se ve a sí mismo como un delincuente y así lo ve el público en
general. Como no desea tener una reputación pública favorable, se enorgullece de su reputación como delincuente.
El hombre de negocios, por el contrario, se ve a sí mismo como un ciudadano respetable y, por general, así lo
considera el público.” SUTHERLAND, Edwin H. El Delito de Cuello Blanco. Madrid: Ediciones de La Piqueta, 1999,
p.265.
54 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 433, 435-6, 457 e 490.
55 Sobre o culto à lei, de forma absolutamente restritivo, remete-se às considerações de Dallari: "No direito brasileiro,
tanto na produção teórica quanto na jurisprudência, verifica-se que foi estabelecido e se tornou predominante,
apesar de brilhantes manifestações em contrário de alguns teóricos e magistrados, o que se poderia denominas
culto à legislção, reduzindo-se o direito à lei escrita e resistindo-se a todas as tentativas de atualização. É uma
atitude de acomodação, conservadora ou mesmo reacionária, motivo de conflitos entre direito inscrito na lei e a
realidade social. De um lado, essa atitude dispensa o esforço de atualização dos conhecimentos teóricos, permitindo
o uso de teorias e autores há longo tempo consagrados, habitualmente muito citados e transcritos para dar a
impressão de que as afirmações e conclusões têm sólido embasamento científico. DALLARI, Dalmo de Abreu. O
Poder dos Juízes. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 98-9.
56 CRUZ, Luís M. La Constitución como orden de valores. Granada: Comares, 2005, p. 35.
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modo derradeiro] na atribuição dos tribunais, significando que a Lei Fundamental entregou a eles
– notadamente a Suprema Corte - a última responsabilidade de cuidar e defender o ordenamento
constitucional de valores.
57. Tecendo importantes considerações acerca do denominado Princípio da Proibição de
Proteção Deficiente, o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário n.
418.376-MS (que se tem como paradigmático para a presente) 57 assentou, de modo peculiar, que
“[...] De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática
indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção
deficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico.
Quanto à proibição de proteção deficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de
garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção
contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de
proteção deficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou
seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o
Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito
fundamental. Nesse sentido, ensina o Professor Lênio Streck:
"Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção
positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente
de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional
o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade
pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o
Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger
determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da
necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como
conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do
legislador."(Streck, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de
excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não
há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Ano XXXII, nº 97,
marco/2005, p.180)
No mesmo sentido, o Professor Ingo Sarlet:
"A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que
abrange, (...), um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra
direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que
reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim
chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da
política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem
explorados."(Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos
fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris, ano XXXII, nº 98,
junho/2005, p. 107.)
E continua o Professor Ingo Sarlet:
57 Tratando de recurso extraordinário interposto por réu condenado pelo delito de estupro com menor absolutamente
incapaz, no qual se pugnava a extinção da punibilidade em razão do casamento do autor com a vítima, o Tribunal,
por maioria, em sua composição plenária, conheceu e negou provimento ao recurso, vencidos os Ministros Marco
Aurélio (relator), Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, que davam provimento ao recurso. Relator para o acórdão o
Ministro Joaquim Barbosa. Decisão proferida em 09/02/2006.
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"A violação da proibição de insuficiência, portanto, encontra-se habitualmente representada por
uma omissão (ainda que parcial) do poder público, no que diz com o cumprimento de um
imperativo constitucional, no caso, um imperativo de tutela ou dever de proteção, mas não se
esgota nesta dimensão (o que bem demonstra o exemplo da descriminalização de condutas já
tipificadas pela legislação penal e onde não se trata, propriamente, duma omissão no sentido pelo
menos habitual do termo)."(Sarlet, Ingo Wolfgang. Constituição e proporcionalidade: o direito
penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista da Ajuris,
ano XXXII, nº 98, junho/2005, p. 132.) “ (grifos e destaques nossos)
58. Em momento anterior, o Ministro Gilmar Mendes também já se manifestara de forma abstrata
acerca dos direitos fundamentais e dos deveres de proteção 58:
“[...] A concepção que identifica os direitos fundamentais como princípios objetivos legitima a
idéia de que o Estado se obriga não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face
das investidas do Poder Público (direito fundamental enquanto direito de proteção ou de defesa –
Abwehrrecht), mas também a garantir os direitos fundamentais contra agressão propiciada por
terceiros (Schutzpflicht des Staats).
A forma como esse dever será satisfeito constitui tarefa dos órgãos estatais, que dispõem de
ampla liberdade de conformação.
A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido
de que do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de
se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger esses
direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros.
Essa interpretação do Bundesverfassungsgericht empresta, sem dúvida, uma nova dimensão
aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da posição de "adversário" (Gegner)
para uma função de guardião desses direitos (Grundrechtsfreund oder Grundrechtsgarant).
É fácil ver que a idéia de um dever genérico de proteção fundado nos direitos fundamentais
relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que
se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos (Austrahlungswirkung) sobre toda a
ordem jurídica.
Assim, ainda que se não reconheça, em todos os casos, uma pretensão subjetiva contra o
Estado, tem-se, inequivocamente, a identificação de um dever deste de tomar todas as
providências necessárias para a realização ou concretização dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote),
expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma
expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso ( Übermassverbot), mas também
uma proibição de omissão (Untermassverbot).
Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se
estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção:
a) Dever de proibição (Verbotspflicht), consistente no dever de se proibir uma determinada
conduta;
(b) Dever de segurança (Sicherheitspflicht), que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo
contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas;
58 MENDES, Gilmar Ferreira. Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Brasília:
Revista Jurídica Virtual, vol. 2, n. 13, junho/1999. Também em Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional,
Núm. 8, 2004, p. 131-142.
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(c) Dever de evitar riscos (Risikopflicht), que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de evitar
riscos para o cidadão em geral, mediante a adoção de medidas de proteção ou de prevenção,
especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico.
Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou,
em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou
por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever proteção
corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”
(grifos e destaques nossos)
59. Contextualizando ao caso presente, que se amolda integralmente ao precedente da Suprema
Corte retrocitado: é necessário afastar-se a aplicação de regras que provoquem verdadeira
inoperância dos comandos legais criminais existentes e destinados a proteger bens
essenciais/fundamentais e de interesses difusos também fundamentais, ancorados que estão em
ordem superior e materialmente vinculativa, a Constituição Federal 59.
60. Desse modo, ao se reconhecerem como válidas regras despenalizadoras desse jaez
(deixando-se de reduzir a distância entre normatividade e efetividade), se está impedindo uma
melhor eficácia dos direitos fundamentais segundo determinado pela Constituição, conforme
preconiza inclusive Ferrajoli 60.
61. Assim, toda legislação que, criminalizando ou descriminalizando, não tiver fundamento
material na constituição será consequência de puro decisionismo 61.
62. Sob o foco do paradigma que ora se utiliza, é mister reiterar-se que as normas
constitucionais que ancoram o Estado Social e Democrático de Direito estabelecem a
necessidade de se superar a análise do Direito Penal calcado em visão iluminista. Havendo novos
bens jurídicos que necessitam de proteção, notadamente aqueles de matiz supra-individual, não
se pode utilizar os mesmos pressupostos do Direito Penal Clássico para a análise dos crimes que
violem bens supraindividuais. De igual bordo, não se pode pretender excluir do denominado
direito penal nuclear os delitos econômicos (embora quanto a estes seja necessário uma
readaptação paradigmática para seus enfrentamentos). Na verdade, esse núcleo do Direito Penal
deve ser compreendido como composto por bens que mais diretamente contendem com a
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, ou seja, que atinjam a vida, a integridade física e a
liberdade, inclusive quando estão em causa bens supraindividuais, pois “atingem o homem
enquanto ser social, naqueles bens que são também mais essenciais à sua realização (digna) em
comunidade” 62.
63. Estando-se diante de uma Constituição comprometida com valores de cunho transindividual
e com a realização da justiça social, a discussão das funções e limites do Direito Penal, sob as
luzes da ordem constitucional vigente, definitivamente deve passar por uma reavaliação da
59 “La Constitución, en efecto, en cuanto norma fundamentadota de todo el orden jurídico, desarrolla una
transcendencia evidente para el ordenamiento penal, al que, como ya es suficientemente conocido, sirve de
instancia legitimadora, formal e materialmente”. MESTRE DELGADO, Esteban. La Defraudación Tributaria por
Omisión. Madrid: Ministerio de Justicia, Centro de Publicaciones de la Secretaría General Técnica, 1991, p.91-2.
60 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias, La ley Del más débil. 4 ed. Madrid: Trotta, 2004, p. 25.
61 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 114, nota 315
62 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 408.
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concepção de bem jurídico 63.
64. Ferreira da Cunha reconhece que “a nova concepção de Estado e as novas realidades
sociais deverão exercer influência determinante na definição dos bens jurídicos a ser tutelados
pelo Direito Penal. Tal parece-nos reflectir-se, desde logo, na consideração de bens jurídicos de
índole social”.64 Segundo a professora lusitana, na linha do pensamento jurídico-penal hodierno,
em sociedades democráticas, plurais e abertas, que prestam homenagem ao princípio do Estado
de Direito Material, de consagração constitucional, o Direito Penal é visto como o instrumento de
proteção dos bens fundamentais da comunidade.
65. Mir Puig 65 comunga do mesmo entendimento ao concluir que “el Derecho penal de un
Estado social y democrático debe asegurar la protección efetiva de todos los miembros de la
sociedad, por lo que há de tender a la prevención de delitos (Estado Social), entendidos como
aquellos comportamientos que los ciudadanos estimen dañosos para sus bienes jurídicos”.
66. Cotejando todos os fundamentos declinados, há se ter em mente que admitir a suspensão da
pretensão punitiva por mero “parcelamento” e a extinção da punibilidade pela devolução do bem
objeto do crime VIOLA A ESSÊNCIA DO BEM JURÍDICO PROTEGIDO POR ESSAS NORMAS
PENAIS, acarretando-se, assim, a direta violação do Princípio da Proibição de Proteção
Deficiente.
67. Alécio Lovatto destaca que “não é, em si mesmo, o pagamento, a arrecadação, o objeto
primeiro de proteção da Lei nº 8.137/90. O que se protege, antes de tudo, é a ordem tributária. [...]
Mais que a arrecadação, pelo texto legal, protege-se a REGULARIDADE, punindo-se toda a ação
ou omissão que, nos termos da antiga definição legal de sonegação, impedia ou retardava o
conhecimento da autoridade fazendária da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária
principal”66.
68. Essa proteção exsurge explicitamente – além doutras – de modo especial das regras dos
artigos 194 e 195, II, ambos da Constituição Federal, diretamente relacionados com os delitos dos
arts. 168-A e 337-A, ambos do CP, e abarcados pelas normas despenalizantes em voga !
69. Como dizem também Figueiredo Dias e Costa Andrade, o bem jurídico, em delitos deste jaez,
se constitui no “interesse público no recebimento completo e TEMPESTIVO dos singulares
impostos” 67. Que dizer da mera confissão...
70. Igualmente, SILVA SANCHEZ, REPORTANDO-SE À STS DE 19 DE MAIO DE 2005, quando
destaca que o Tribunal Supremo Espanhol reconhece como necessária a repressão de qualquer
conduta que implique uma diminuição da arrecadação ESPERADA pela Fazenda Pública 68.
63 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La Expansion del Derecho Penal. 2.ed. Madrid: Civitas,2001,p. 25-8.
64 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 80.
65 MIR PUIG, Santiago. El Derecho penal en el Estado Social y democrático de derecho. Barcelona: Ariel, 1994, p.37.
66 LOVATTO, Alecio Adão. Crimes Tributários. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 78.
67 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; COSTA ANDRADE, Manuel da. O Crime de fraude fiscal no novo Direito Penal
Tributário Português. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 4, n. 13, jan./mar. 1996, p. 62.
68 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. El nuevo escenario del delito fiscal en España. Barcelona: Atelier, 2005, p. 49.
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71. Se a Constituição é o ponto de partida para (também) a análise (vertical, “de cima para
baixo”69) da criminalidade contra o Estado (aí compreendidos os delitos contra a seguridade
social), é fundamental que este processo hermenêutico não se assente sobre fórmulas rígidas e
pela simples análise pura dos textos das “leis” 70 71. Do texto, mediante processo interpretativo, há
se chegar ao conteúdo da norma72.
72. Portanto, como a Constituição ocupa uma função central no sistema vigente, irradiando
efeitos sobre o ordenamento infraconstitucional, pode-se dizer que seus comandos se traduzem
como ordenadores e dirigentes aos criadores e aos aplicadores das leis.
73. Para Köhler, defensor também de uma concepção substancialista e não formalista, só
encontrariam justificativa no conceito de crime (à luz da Constituição) os fatos atentatórios à
liberdade das pessoas ou que atinjam a existência do Estado e o exercício de suas funções
essenciais73.
74. Significa, ainda, em complemento, que a compreensão e defesa do ordenamento jurídico
penal também reclamam uma interpretação sistemática dos princípios, regras e valores
constitucionais 74 para tentar justificar que, especialmente a partir da Constituição Federal de
1988, há novos paradigmas influentes em matéria penal e processual penal, contexto dentro do
qual merecem ser analisados, concomitantemente à delinquência tradicional, especialmente os
delitos contra a Seguridade Social, mas conforme suas características e diferenças, obedecendose especialmente à proporcionalidade (dignidade penal).
75. Noutras palavras, deve haver uma articulação do Direito Penal com a defesa de bens,
direitos e valores que sejam condições de liberdade com relevo constitucional (visão clássica) com
uma intervenção do Direito Penal para proteger bens que (cor)respondam a uma opção política do
Estado (bens de interesses difusos à luz do Estado Republicano e democrático)75.
76. Uma interpretação jurídica que se tem por mais adequada
76
, mais razoável, necessita ser
69 Como diz Maria Fernanda Palma, “a Constituição pode conformar o Direito Penal porque funciona como uma
espécie de norma fundamental autorizadora do Direito ordinário, assumindo um papel hierarquicamente superior”.
PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina, 2006, p. 16.
70 Na senda de Alexy, a aplicação do direito "é algo mais que mera subsunção de um fato a uma regra". ALEXY,
Robert. Derecho y razón práctica. 2 reimpresión. Colonia del Carmen: Biblioteca de Ética, Filosofia del derecho y
política, 2002, p. 33.
71 STRECK, Lênio. Verdade e Consenso – Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2006, p. 179 (nota de rodapé n. 10.
72 GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 26, 78
e 176.
73 KÖHLER, Michael. Strafrecht, Allgemeiner Teil, 1997, apud PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional
Penal.Coimbra:Almedina,2006,p. 48, nota n. 37.
74 Palma adverte, com razão em nosso sentir, que a “superação da antinomia entre jusnaturalismo e juspositivismo [...]
permite encontrar uma Constituição de valores que se impõe à Constituição positiva, mas que é relativamente
aberta e apta à configuração desses valores através de fins concretos e determinados no processo político.”PALMA,
Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal.Coimbra:Almedina,2006,p. 41.
75 PALMA, Maria Fernanda.Direito Constitucional Penal.Coimbra: Almedina, 2006, p. 116.
76 "A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma [..] A interpretação
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contemporânea, motivo pelo qual compreende-se que não basta sejam lançados os olhos ao que
assentou o legislador infraconstitucional, apegando-se inclusive à sua literalidade. É fundamental
saber, no momento de sua aplicação, o que a realidade dos fatos revela e reclama, mormente
diante dos valores axiológicos vigentes insertos na Constituição.
77. Além disso, o intérprete (especialmente o vinculado ao Tribunal Constitucional) não pode se
desvincular dos anseios sociais diante das ações legiferantes. Quer-se dizer: não pode ficar
isolado da realidade em que desenvolve seu mister - pois está ancorado na faticidade e na
historicidade - , mas considerar todos os fatos mediante uma racional e justificada filtragem, que
também faz parte do processo hermenêutico.
78. Como defende Hesse, "quanto mais conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à
natureza singular do presente [incorporando o estado espiritual de seu tempo, tarefa da qual é
incumbido o seu intérprete], tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força
normativa"77, faz-se essencial compreender e sedimentar que sua verdadeira força dependerá de
uma adequada interpretação de seu conteúdo material78.
79. Segundo ainda preconiza Hesse 79, se uma Constituição quiser preservar sua força normativa
em sistema caracterizado por constantes mudanças político-sociais, não pode ter assento em uma
estrutura apenas unilateral, devendo incorporar, mediante ponderação muito meticulosa, parte de
uma estrutura contrária.
80. De seu entendimento aflora que direitos fundamentais não podem existir sem correlatos
deveres. Vez por todas, então, compreende-se ser necessária uma superação (mas não
afastamento) da concepção tradicional (liberal) de que existem (unilateralmente) apenas direitos
individuais. Pelo prisma de uma sociedade plural e do Direito Constitucional vigente, a idéia
decorrente do Princípio da Justiça também está vinculada diretamente à imposição de deveres 80 e
na proteção dos direitos coletivos e sociais.
81. Os deveres fundamentais são, portanto, posições que se traduzem como quotas-partes
constitucionalmente (por isso, deveres materialmente fundamentais) exigidas de cada um e,
conseqüentemente, do conjunto dos cidadãos para o bem comum 81.
82. Adolfo Bidart é preciso quando define que “la mera formulación de los derechos humanos
con el alcance indicado revela la necesidad de su complementación con los deberes humanos,
que tienen igual significación y trascendencia que aquellos con los que mutuamente se deslindan
y garantizan en su ejercicio o realización. Los derechos humanos en cada hombre requieren, para
adequada é aquela que consegue concretizar de forma excelente o sentido da proposição normativa dentro das
condições reais dominantes numa determinada situação. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto
Alegre: SAFE, 1991, p. 22-3.
77 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1991, p. 20.
78 STRECK, Lênio. Verdade e Consenso – Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2006, p. 209.
79 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1991, p. 21.
80 ZAGREBELSKY, Gustavo.El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 6 ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 86.
81 NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 73. Também PÉREZ
LUÑO, Antonio Enrique. Dimensiones de la igualdad. Madrid: Dykinson, 2005, p. 110.
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su efectiva existencia, igual fundamento o base, de deberes de igual jerarquía e significación”82.
83. Sistemicamente falando, a todos os direitos se apresentam correlatos deveres
constitucionais, de modo que não se imagina o desenvolvimento de um pensamento jurídico que
não leve também em consideração essa dupla face interligada e conexa de preceitos.
84. Esse paradigma conceitual é relevante de modo mais intenso diante dos delitos que atinjam
os interesses da coletividade (nos quais se enquadram diretamente os delitos abarcados pelas
normas impugnadas), pois há uma violação dos deveres do cidadão não em relação a um
específico ou especificados concidadãos, mas em face de toda a coletividade.
85. Ao abordar os problemas decorrentes das relações entre a Constituição e a lei em sua
"Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador", Canotilho reconhece 83 que o núcleo
essencial do debate que propõe está no "que deve (e pode) uma constituição ordenar aos órgãos
legiferantes e o que deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular,
adequada e oportuna, as imposições constitucionais." Em suas palavras, "a idéia de ´vinculação
constitucional´ é, nos seus contornos gerais, extremamente simples e, segundo se crê,
indiscutível: no Estado de Direito Democrático-Constitucional todos [todos !] os poderes e funções
do Estado estão juridicamente vinculados às normas hierarquicamente superiores da constituição"
84
.
86. Em suma, os princípios fornecem diretivas materiais de interpretação das normas
constitucionais, gerando, assim, uma vinculação ao legislador, de “modo a poder dizer-se ser a
liberdade de conformação legislativa positiva e negativa vinculada pelos princípios jurídicos” 85.
87. Especificamente no problema atinente aos desvios (lato sensu) do Poder Legislativo,
Canotilho destaca que, diante de situações de manifesto arbítrio, irracionalidade e discriminação
injustificada, é corrente a admissibilidade do controle de constitucionalidade arrimada
(comumente) em violação do Princípio da Proibição do Arbítrio, do Princípio da Proibição do
Excesso [também do Princípio da Proibição de Proteção Deficiente] e do Princípio da Igualdade86.
82 BIDART, Adolfo Gelsi. De Derechos, deberes y garantías del hombre común. Monteviodeo-Buenos Aires: Julio Cesar
Faira Editor, 2006, p. 24-5.
83 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2 ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 2001, p. 11.
84 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2 ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 2001, p. 248. García de Enterría expõe seu pensamento na mesma linha, ao sustentar que "la vinculación
normativa de la Constitución afecta a todos los ciudadanos y a todos los poderes públicos, sin excepción, y no sólo
al Poder legislativo como mandatos o instrucciones que a éste sólo cumpliese desarrollar – tesis tradicional del
carácgter ´programático´de la Constitución -; y entre los poderes públicos, a todos los Jueces y Tribunales – y no
sólo al Tribunal Constitucional". GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo. La Constitución como Norma y El Tribunal
Constitucional. 3 ed. Madrid: Civitas, 2001, p.63-4. Diz também, noutro estudo, que “la interpretación de una norma
conforme a la Constitución es, pues, acomodar su contenido a los principios y preceptos de la Constitución”.
GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo. La Constitución Española de 1978 como Pacto Social y como Norma Jurídica.
Revista de Direito do Estado, ano 1, nº 1, jan./mar/2006, p. 21.
85 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5 ed., rev. e aum. Coimbra: Almedina, 1992, p. 178. No
mesmo sentido, BOROWSKI, Martin. La Estructura de los derechos fundamentales. Colombia: Universidad
Externado de Colombia, 2003, p. 61.
86 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2 ed. Coimbra: Coimbra
Editora, 2001, p. 261.
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88. Enquanto a Proibição de Excesso (übermaβverbot) depende da aferição de estar sendo
restringido excessivamente um direito fundamental, a Proibição de Proteção Deficiente
(untermaβverbot) – acolhida pelo STF especialmente no voto do Ministro Gilmar Mendes no
julgamento paradigmático do RE nº 418.376-MS - está em se apurar quando direitos fundamentais
– em face de condutas (notadamente criminais) que os atinjam – não estão sendo suficientemente
protegidos, ou ainda quando se está afastando indevidamente o cumprimento dos deveres
fundamentais.
89. Sob as óticas penal e processual penal, significa que, diante de uma Constituição que
preveja, explícita ou implicitamente 87, a necessidade de proteção de determinados bens jurídicos,
incumbe o dever de se utilizar da pena enquanto outros meios não se mostrarem suficientes e
adequados para tal desiderato 88.
90. Verifica-se, portanto, que ao tempo em que as Constituições hodiernas continuam (de modo
acertado) estabelecendo cláusulas para a proteção das garantias individuais, há também novos
preceitos e princípios que têm implicado o alargamento da atuação do Direito Penal (a “expansão
do Direito Penal”, nas palavras de Silva Sànchez, somente não pode ocorrer quando houver uma
expansão “irrazoável”), de molde a ampliar a área dos bens jurídicos que reclamam proteção
nessa seara.
91. Os preceitos atinentes à Constituição Dirigente, que repercutem na dignidade penal de
determinados bens jurídicos, estipulam os limites para a criminalização ou descriminalização de
determinadas condutas.
92. Essa parametrização e análise conteudística extraídas dos valores dedutíveis da
Constituição estão ligadas diretamente ao Princípio da Proporcionalidade 89 (e, portanto, ao devido
processo legal substancial, como reiteradamente decidido pelo Egrégio Supremo Tribunal
Federal), sendo que a filtragem valorativa desses limites deve ser feita tanto pelo legislador como
pelo intérprete da norma.
92. Assim, é na Constituição que o Direito Penal deve encontrar os bens que lhe incumbe
proteger mediante suas respectivas sanções. Noutras palavras, à luz de uma ordem constitucional
com feições democráticas e sociais, exponenciada pelo Princípio da Solidariedade, estando em
voga delitos que atingem frontal e intensamente interesses da coletividade (como no caso em
comento), fundamental é superar-se a análise do Direito Penal sedimentado em visão puramente
iluminista, de cunho meramente individual.
93. Esse novo paradigma decorre do fato de que os direitos fundamentais não podem mais ser
vistos apenas como direitos de defesa frente apenas ao Estado, mas como verdadeiros princípios
objetivos e direitos de defesa em face de ataques a bens jurídicos fundamentais que lhes são
dirigidos por quaisquer pessoas, cabendo ao Estado a função de tornar eficaz a proteção
constitucional90.
94. Nesta senda, a discussão das funções e limites do Direito Penal deve passar por uma
87 PALMA, Maria Fernanda. Direito Constitucional Penal. Coimbra: Almedina, 2006, p.27.
88 DOLCINI, Emílio; MARINUCCI, Giorgio. Constituição e escolha de bens jurídicos. Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, ano 4, fascículo 2, abr.-jun./2004, p. 198.
89 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 175, 182 e 233.
90 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 125.
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reavaliação da concepção de bem jurídico, pois se está diante de uma “Constituição
comprometida com valores de cunho transindividual e com a realização da justiça social”91.
95. Os bens jurídico-penais precisam ser vistos como concretizações dos reais interesses dos
indivíduos, diretos ou indiretos, que, por sua importância fundamental, merecem a máxima
proteção do Direito Penal. Assim, devem-se constituir em referência básica para determinar a
função do Direito Penal em um Estado Social e Democrático de Direito.
96. Portanto, paralelamente à chamada Proibição de Excesso (übermaβverbot), um “garantismo
negativo”, do texto constitucional derivam obrigações tácitas de atuação penal em relação a bens
jurídicos que não possuam nenhum tipo de proteção jurídico-penal ou as possuam de modo
insuficiente, caracterizando-se a situação da Proibição de Proteção Deficiente (untermaβverbot),
ou “garantismo positivo” 92.
97. A partir de exemplo trazido por Bernd Schünemann 93, pode-se reconhecer que também os
delitos a que se referem as normas impugnadas são espécies (lato sensu) de crimes contra o
patrimônio, com elementares muito mais gravosas na medida em que não atingem interesses de
alguns integrantes da sociedade, mas sim violam diretamente o funcionamento institucional do
Estado, que tem a função de garantidor das liberdades fundamentais, bem como de promotor dos
direitos fundamentais prestacionais 94.
98. Como pondera Ferreira da Cunha, em um sistema de Direito Social, compete ao Estado
assegurar, inclusive mediante a tutela penal, o cumprimento das prestações públicas que são
devidas para sua sustentabilidade 95.
99. Pablo Galain adverte que o Direito Penal Econômico (dentro do qual se enquadram os delitos
objeto das normas impugnadas) não tem como principal meta a proteção de bens jurídicos
individuais (ao menos de forma imediata), mas, sim, contrapondo-se aos postulados liberais em
matéria penal, pretende solucionar os aspectos da vida moderna em sociedade.
100. Diz ainda que esses delitos “afectan directamente a un bien jurídico colectivo o
supraindividual, de contenido económico, confiriendo de este modo a la infracción la cualidad de
socio-económica” 96.
101. Corcoy Bidasolo reconhece que, nos delitos contra a Fazenda Pública (lato sensu) – que se
amolda à integra do caso - se está protegendo o dever de solidariedade dos obrigados a contribuir
91 SARLET, Ingo. Constituição e Proporcionalidade. O Direito Penal e os Direitos Fundamentais entre a Proibição de
Excesso e de Insuficiência, Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v.3, n. 12, p. 86-120, 2003. Eisele
igualmente defende que os ordenamentos políticos atuais continuam protegendo o indivíduo (bens jurídicos
tipicamente ilustrados), porém passaram a ser valorados à luz dos interesses sociais. EISELE, Andreas. Crimes
contra a Ordem Tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 14.
92 Nesse sentido, inclusive, há destaque de Ferrajoli em sua obra Garantismo, Madrid: Editorial Trotta, 2006.
93 SCHÜNEMANN, Bernd. O direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos ! – Sobre os limites invioláveis
do direito penal em um Estado de Direito Liberal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 53, 2005,
p. 25.
94 STEPHEN, Holmes; SUNSTEIN, Cass. R. The Cost or rights.
95 CUNHA, Maria Conceição Ferreira da. Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da
Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 144.
96 GALAIN, Pablo. Delitos Económicos. Buenos Aires: Julio César Faria Editor, 2004, p. 101 e 106.
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à sustentação dos gastos públicos, para que se possa garantir a contraprestação a que o Estado
está obrigado, que é um direito todos os integrantes da sociedade 97. Conclusão essa que deflui
diretamente dos dispositivos – não só, evidente – insertos pelo menos nos artigos 194 e 195, II,
ambos da Constituição Federal.
102. No mesmo sentido, concordam Figueiredo Dias e Costa Andrade, ao encetarem que os
cidadãos devem honrar com lealdade e rigor os seus deveres de colaboração para com a
administração fiscal 98.
103. Por fim, para Mestre Delgado, qualquer violação dessas regras, que se encontram
ancoradas especialmente no Princípio da Solidariedade, implica lesão direta a interesses de
máxima relevância constitucional 99.
104. Retomando as premissas de Carlos Bernal Pulido, anteriormente analisadas, pode-se
concluir que há violação do cânone máximo da proporcionalidade sob a perspectiva da Proibição
de Proteção Deficiente (em seus três subprincípios) porque as normas em comento:
a) não protegem de maneira ótima o sistema essencial para a arrecadação tempestiva e
esperada dos recursos e manutenção do Estado frente às suas obrigações de atendimento aos
direitos fundamentais dos cidadãos, notadamente da Previdência Social. Desse modo, fere-se a
idoneidade porque não se favorece a realização de um fim legislativo
legítimo
(constitucionalmente previsto);
b) violam o subprincípio da necessidade, porque, racionalmente, dentro do sistema vigente (tal
como existente no artigo 16 do Código Penal), não se favorece a realização do direito fundamental
de proteção dos bens jurídicos fundamentais que são ínsitos às normas penais incriminadoras nos
tipos ora tratados;
c) violam a proporcionalidade em sentido estrito, pois o grau de favorecimento do fim do
legislador (simplesmente afastar a penalização criminal) é absolutamente inferior e
desproporcional ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção dos bens
jurídicos tratados pelo tipo penal em voga.
105. Portanto, segundo a proibição de proteção deficiente, está proibido que a intensidade em
que não se garanta um direito de proteção seja intensa (o que ocorre, pois o sistema fica
totalmente desprotegido frente ao seu bem jurídico protegido pelas normas penas de que se trata)
e que a magnitude da não-intervenção na liberdade seja leve ou média (é absolutamente leve,
pois afasta qualquer possibilidade de punição por quem já infringiu a norma penal).
106. Pelos fundamentos esgrimidos, os caminhos conduzem para se visualizar que as regras
97 CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Delitos de peligro y protección de bienes jurídico-penales supraindividuales.
Valencia: Tirant Lo Blanch, 1999, p. 238. Braga leciona, com precisão, que “a supressão ou redução de tributo
caracteriza evidente desvio do dinheiro pertencente a toda coletividade, frustrando a satisfação das despesas
decorrentes do pacto político estabelecido. É esta consciência de um dever voltado à reciprocidade social que
permite edificar a noção de cidadania e de estado. A cidadania, enquanto ente individual que aceita os termos de
cooperação social, onde participa, delibera e aceita as benesses e o ônus decorrente da vida em sociedade. O
estado, por sua vez, como expressão da autoridade democrática e corolário das esferas de participação do poder
político.”.
98 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de; COSTA ANDRADE, Manuel da. O Crime de fraude fiscal no novo Direito Penal
Tributário Português. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 4, n. 13, jan./mar. 1996, p. 62. Na mesma senda,
MESTRE DELGADO, Esteban. La Defraudación Tributaria por Omisión. Madrid: Ministerio de Justicia, Centro de
Publicaciones de la Secretaría General Técnica, 1991, p. 33.
99 MESTRE DELGADO, Esteban. La Defraudación Tributaria por Omisión. Madrid: Ministerio de Justicia, Centro de
Publicaciones de la Secretaría General Técnica,1991,p. 96.
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despenalizantes em tela acarretam uma violação (especialmente) dos Princípios
Proporcionalidade sob a face da Proibição de Proteção Deficiente, da Justiça e da Eqüidade 100,
atingindo, de forma frontal, a proteção material garantida pela Constituição Federal.
107. Como adverte Palazzo, incumbe de modo decisivo à Corte Constitucional, em face da
penetração dos valores constitucionais no corpo do sistema penal 101, reconhecer a violação por
estes cânones despenalizantes em face da grundnorm, na medida em que, na linha de magistral
sentença de Clève, é essencial que se produza uma mentalidade constitucional capaz de levar a
termo as exigências da Constituição brasileira de 1988 102.
III – CONCLUSÕES
108. Diante de tais premissas, Senhora Procuradora-Geral, entende-se que seria caso de
urgente proposição eventual de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade em face do disposto
nos arts. 67, 68 e 69 da Lei nº 11.941/2009.
De Porto Alegre para Brasília, em 14 de julho de 2009.
DOUGLAS FISCHER,
Procurador Regional da República
100"Um ato é injusto se não é conforme à regra de justiça, a não ser que se justifique o desvio em relação a essa regra
com considerações de eqüidade. Uma regra é injusta quando é arbitrária [...] Uma distinção é arbitrária quando não
é justificada racionalmente. Os critérios e os valores utilizados no processo de justificação serão irracionais se
manifestarem um posicionamento parcial, se constituírem uma defesa de interesses particulares, inaceitável para o
auditório universal". PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 205.
101PALAZZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: SAFE, 1989, p. 30.
102CLÉVE, Clèmerson Mérlin. O Controle de Constitucionalidade e a Efetividade dos Direitos Fundamentais. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (org). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 393.
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representação para eventual ação declaratória de