INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ANDRÉ FRANCO MONTORO INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO © desta edição: 2000 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. Diretor Responsável: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800-11-2433 Rua Tabatinguera, 140, Térreo, Loja 1 • Caixa Postal 678 Tel. (011) 3115-2433 • Fax (011) 31063772 CEP 01020-901 - São Paulo, SP, Brasil Aos meus alunos com a esperança de que, bem conhecendo o Direito, melhor possam servir à Justiça. "Teu dever é lutar pelo direito, mas no dia em que encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça" (Dos mandamentos do advogado redigidos por EDUARDO COUTURE) "O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Todos os direitos da humanidade foram conseguidos na luta. O direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos, mas da nação inteira" (A luta pelo direito, IHERING) Ao concluir o presente volume, escrito simultaneamente ao exercício do magistério e ao desempenho do mandato parlamentar, pareceu-me de justiça dedicá-lo: a meus pais, de quem recebi a lição simples do amor ao trabalho; à minha mulher, que me ajudou e estimulou a seguir essa lição; a meus filhos e netos, a quem espero deixar a mesma mensagem. Brasília, julho de 1971. "O moderno é ler Platão." Umberto Eco "Enquanto na Europa Moderna os filósofos idealistas constroem cada um seu sistema pessoal, a filosofia de Aristóteles, descrição e visão do real, tornou-se um bem comum da humanidade. Os juristas não têm o direito de ignorar essa filosofia." Michel Villey "Para certo público universitário S. Tomás seria um símbolo do `obscurantismo medieval', ultrapassado pela ciência moderna. É suficiente lê-lo para mudar de opinião." Michel Villey "Recriminaram-me, com razão, a ignorância das idéias de S. Tomás. Quantos erros teriam sido evitados se houvéssemos conservado com fidelidade as suas doutrinas! Quanto a mim, creio que se as houvesse conhecido antes, não teria escrito o meu livro. As idéias fundamentais que desejava publicar já se acham expressas, com clareza perfeita e notável profundidade, por esse pensador vigoroso." lhering "A análise do sentimento de justiça foi feita por S. Tomás em termos que nunca foram ultrapassados." L. Duguit SUMÁRIO Prefácio à 25.' edição 1 Prefácio à 23.' edição: "Nova Visão do Desenvolvimento" 3 Prefácio à 21.' edição: "Novos Direitos da Pessoa Humana" 7 1. Direito ao ambiente sadio (9); 2. Direito ao trabalho (12); 3. Direitos do Consumidor (13); 4. Direito de participação (15); 5. Direito ao desenvolvimento (19) Prefácios anteriores 21 Plano de trabalho 25 1PRIMEIRA PARTE - O DIREITO COMO CIÊNCIA 29 (Epistemologia Jurídica) O CONCEITO DE DIREITO 21. Origens do vocábulo (29); 2. Pluralidade de significações do direito - Cinco realidades fundamentais (33); 3. Direito-conceito análogo (42); 4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do direito (44); 5. Outras formulações (53); 6. Bibliografia (59). O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 1. O direito como ciência (61); 2. Classificação das ciências de Augusto Cocote e de Dilthey (62); 3. A ordem universal (65); 4. A classificação de Aristóteles e suas modificações (70); 5. Outras formulações (77); 6. Bibliografia (81). 3 - O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 83 1. A teoria no direito (83); 2. A técnica no direito (89); 3. A ética e o direito - O direito como ciência normativa ética (94); 4. Outras formulações (98); 5. Bibliografia (103). 61 4 - VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 105 51. As diversas ciências jurídicas (105); 2. A divisão do direito em público 121 e privado (110); 3. Outras formulações (113); 4. Bibliografia (117). SEGUNDA PARTE - O DIREITO COMO JUSTO (Axiologia Jurídica) O CONCEITO DE JUSTIÇA 1. O Direito como exigência da justiça (/21); 2. Acepção subjetiva e objetiva da justiça (125); 3. Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça (128); 4. Características essenciais da justiça (130); 5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social (138); 6. Virtudes anexas à justiça (140); 7. Outras formulações (142); 8. Bibliografia (147). XII INTRODUÇÃO À CIÊNCIA ~O DIREITO 6A JUSTIÇA COMUTATIVA 149 71. Conceito de justiça comutativa (149); 2 A "alteridade" na justiça 173 comutativa (151); 3. O "devido" na justi~a comutativa (152); 4. A "igualdade" na justiça comutativa (159); 5. Aplicações da justiça comutativa (160); 6. Outras formulações (154); 7. Bibliografia (171). A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 81. O conceito de justiça distributiva (173); Z A "alteridade" na justiça distributiva (176); 3. O "devido" na justiça distributiva (182); 4. A "igualdade" na justiça distributiva (189); 5. Aplicações da justiça distributiva (192); 6. Outras formulações (2'5); 7. Bibliografia (210). A JUSTIÇA SOCIAL 212 9_ 1. Conceito de justiça social (212); 2. A "alteridade" na justiça social (215); 3. O "devido" na justiça social (217); 9. A "igualdade" na justiça social (225); 5. Aplicações da justiça social (227); 6. Outras formulações (231); 7. Bibliografia (240). SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 242 1. Concepção positivista e concepção ética do direito (243); 2. O positivismo filosófico (244); 3. O positivismo t;ientífico no direito (247); 4. O positivismo jurídico (252); 5. Doutrina clássica do direito natural (257); 6. Doutrina racionalista ou do direito NaturalI abstrato (272); 7. Doutrina dos valores ou da cultura (275); 8. Conclusões (279); 9. Outras formulações (282); 10. Bibliografia (289). 10 TERCEIRA PARTE - O DIREITO CbMO NORMA 293 (Teoria da norma jurígica) - CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 11 1. Etimologia e diversidade de significação do vocábulo "lei" (293); 321 2. A lei universal ou cósmica (296); 3. A lei humana, ética ou moral (300); 4. A lei jurídica (305); 5. Outras formulações (314); 6. Bibliografia (320). - ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais. Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica (321); 2. Importância e conceito de lei: elemento formal, material e inttrumental (327); 3. As diversas espécies de lei (333);.4. Os costumes jurídicos: denominações, conceito, importância, espécies (347); 5. A jurisbrudência. Seu conceito e importância como fonte do direito (352); 6. A doutrina como fonte do direito. Conceito e importância (356); 7. O problema das fontes não estatais (358); 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores jurídicos (361); 9. Outras formulações (365); 1O. Bibliografia (367). 12 - INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS 1. Interpretação e hermenêutica: conceito (369); Espécies de interpretação: quanto à origem, ao método e aos efeitos (372); 3. Sistemas ou escolas de interpretação: sistemas tradicionais oti legalistas e sistemas SUMÁRIO XIII l03 modernos (375); 4. Novas correntes (379); 5. A integração jurídica e o problema das lacunas da lei (380); 6. Outras formulações (382); 7. Bibliografia (386). - APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS NO ESPAÇO E NO TEMPO 388 114 1. Limites ao campo de aplicação das normas jurídicas (388); 2. Vigência 403 das leis no tempo (389); 3. Vigência da lei no espaço (396); 4. Outras formulações (398); 5. Bibliografia (402). - DIVISÃO DO DIREITO EM PÚBLICO E PRIVADO 1. Histórico e critérios da givisão do direito em público e privado (403); 2. Ramos do direito público: direito constitucional, administrativo, fiscal, judiciário, penal, internacional público (406); 3. Ramos do direito privado: direito civil, direito comercial, direito do consumidor, direito do trabalho e direito internacional privado (420); 4. Outras formulações (429); 5. Bibliografia (433). QUARTA PARTE - O DIREITO COMO FACULDADE (Teoriy dos Direitos subjetivos) 15 - CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO : 1. Noções preliminares: denominações e problemas (437); 2. Teorias negadoras do direito subjetivo: teoria objetiva ou realista de Duguit e teoria formalista de Kelseq (438): 3. Teorias sobre a natureza do direito 1. Análise do direito subjetivo em seus elementos (454); 2. O sujeito do direito. Sujeito ativo e sujeito passivo. O problema dos direitos sem sujeito. O dever jurídico. A prestação (455); 3. Objeto do direito: objeto imediato; prestação; objeto mediato; coisas, pessoas ou ações (460); 4. A relação jurídica. Seu elemento gerador: o fato jurídico (fatos naturais, atos jurídicos e atos ilícitos) (465); 5. A proteção jurídica: a sanção, a coação e a coerção. Espécies de sanção. A ação jurídica e o direito de ação (467); 6. Outras forr>hulações (472); 7. Bibliografia (475). 17- CLASSIFICAÇÃO DOSA DIREITOS SUBJETIVOS 477 1. Critérios de classificaçN0 (477); 2. Classificação fundada no sujeito passivo: direitos relativos ee absolutos (478); 3. Classificação fundada no sujeito ativo: direitos próprios aos indivíduos, próprios às instituições e comuns a indivíduos e instituições (479); 4. Classificação fundada no objeto do direito: direitos da personalidade, direitos reais, direitos obrigacionais (480); 5. Clzassificação fundada na finalidade do direito: direito-interesse e direito-ft nção (484); 6. Outras formulações (485); 7. Bibliografia (488). 437 subjetivo: doutrinas da vontade (Windscheid), do interesse (Ihenng) e mistas (Jellinek, Salleiles Michoud) (443); 4. Conclusões. Tríplice aspecto do direito subjetivo: direito-interesse, direito-poder e direito relação (447); 5. Outras formulações (449); 6. Bibliografia (452). 16 - ELEMENTOS DO DIREITO SUBJETIVO 454 369 XII 67- INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO A JUSTIÇA COMUTATIVA 149 1. Conceito de justiça comutativa (149); 2. A "alteridade" na justiça comutativa (151); 3. O "devido" na justiça comutativa (152); 4. A "igualdade" na justiça comutativa (159); 5. Aplicações da justiça comutativa (160); 6. Outras formulações (164); 7. Bibliografia (171). A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 81. O conceito de justiça distributiva (173); 2. A "alteridade" na justiça distributiva (176); 3. O "devido" na justiça distributiva (182); 4. A "igualdade" na justiça distributiva (189); 5. Aplicações da justiça distributiva (192); 6. Outras formulações (205); 7. Bibliografia (210). A JUSTIÇA SOCIAL 9_ 1. Conceito de justiça social (212); 2. A "alteridade" na justiça social (215); 3. O "devido" na justiça social (217); 4. A "igualdade" na justiça social (225); 5. Aplicações da justiça social (227); 6. Outras formulações (231); 7. Bibliografia (240). SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 1. Concepção positivista e concepção ética do direito (243); 2. O positivismo filosófico (244); 3. O positivismo científico no direito (247); 173 212 242 4. O positivismo jurídico (252); 5. Doutrina clássica do direito natural (257); 6. Doutrina racionalista ou do direito natural abstrato (272); 7. Doutrina dos valores ou da cultura (275); 8. Conclusões (279); 9. Outras formulações (282); 10. Bibliografia (289). TERCEIRA PARTE - O DIREITO COMO NORMA (Teoria da norma jurídica) 10 - CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 293 11 1. Etimologia e diversidade de significação do vocábulo "lei" (293); 2. A lei universal ou cósmica (296); 3. A lei humana, ética ou moral (300); 4. A lei jurídica (305); 5. Outras formulações (314); 6. Bibliografia (320). - ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais. Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica (321); 2. Importância e conceito de lei: elemento formal, material e instrumental (327); 3. As diversas espécies de lei (333);.4. Os costumes jurídicos: denominações, conceito, importância, espécies (347); 5. A jurisprudência. Seu conceito e importância como fonte do direito (352); 6. A doutrina como fonte do direito. Conceito e importância (356); 7. O problema das fontes não 321 estatais (358); 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores jurídicos (361); 9. Outras formulações (365); 10. Bibliografia (367). modernos (375); 4. Novas correntes (379); 5. A integração jurídica e o problema das lacunas da lei (380); 6. Outras formulações (382); 7. Bibliografia (386). 13 - APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS NO ESPAÇO E NO TEMPO 388 ........................................... 1. Limites ao campo de aplicação das normas jurídicas (388); 2. Vigência das leis no tempo (389); 3. Vigência da lei no espaço (396); 4. Outras formulações (398); 5. Bibliografia (402). 14 - DIVISÃO DO DIREITO EM PÚBLICO E PRIVADO 403 1. Histórico e critérios da divisão do direito em público e privado (403); 2. Ramos do direito público: direito constitucional, administrativo, fiscal, judiciário, penal, internacional público (406); 3. Ramos do direito privado: direito civil, direito comercial, direito do consumidor, direito do trabalho e direito internacional privado (420); 4. Outras formulações (429); 5. Bibliografia (433). QUARTA PARTE - O DIREITO COMO FACULDADE (Teoria dos Direitos Subjetivos) 15 CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO 437 1. Noções preliminares: denominações e problemas (437); 2. Teorias negadoras do direito subjetivo: teoria objetiva ou realista de Duguit e teoria formalista de Kelsen (438); 3. Teorias sobre a natureza do direito subjetivo: doutrinas da vontade (Windscheid), do interesse (Ihering) e mistas (Jellinek, Salleiles, Michoud) (443); 4. Conclusões. Tríplice aspecto do direito subjetivo: direitointeresse, direito-poder e direitorelação (447); 5. Outras formulações (449); 6. Bibliografia (452). 16 - ELEMENTOS DO DIREITO SUBJETIVO 454 1. Análise do direito subjetivo em seus elementos (454); 2. O sujeito do direito. Sujeito ativo e sujeito passivo. O problema dos direitos sem sujeito. O dever jurídico. A prestação (455); 3. Objeto do direito: objeto imediato; prestação; objeto mediato; coisas, pessoas ou ações (460); 4. A relação jurídica. Seu elemento gerador: o fato jurídico (fatos naturais, atos jurídicos e atos ilícitos) (465); 5. A proteção jurídica: a sanção, a coação e a coerção. Espécies de sanção. A ação jurídica e o direito de ação (467); 6. Outras formulações (472); 7. Bibliografia (475). 17- CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS SUBJETIVOS 1. Critérios de classificação (477); 2. Classificação fundada no sujeito passivo: direitos relativos e absolutos (478); 3. Classificação fundada no sujeito ativo: direitos próprios aos indivíduos, próprios às instituições e comuns a indivíduos e instituições (479); 4. Classificação fundada no objeto do direito: direitos da personalidade, direitos reais, direitos obrigacionais (480); 5. Classificação fundada na finalidade do direito: direito-interesse e direito-função (484); 6. Outras formulações (485); 7. Bibliografia (488). SUMÁRIO XIII 12 - INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS ........................... 1. Interpretação e hermenêutica: conceito (369); 2. Espécies de interpretação: quanto à origem, ao método e aos efeitos (372); 3. Sistemas ou escolas de interpretação: sistemas tradicionais ou legalistas e sistemas 369 477 XIV INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 18 - A PESSOA FÍSICA 490 1. Conceito de pessoa física. Denominações. Conceito filosófico, psicológico e jurídico de pessoa (490); 2. A capacidade da pessoa física (491); 3. Começo e fim da personalidade (494); 4. Outras formulações (497); 5. Bibliografia (498). 19 - A PESSOA JURÍDICA 1. Conceito de pessoa jurídica. Denominações. Teoria sobre a natureza da pessoa jurídica (500); 2. Classificação das pessoas jurídicas (502); 3. Capacidade da pessoa jurídica (504); 4. Começo e fim da pessoa jurídica (505); 5. Outras formulações (506); 6. Bibliografia (509). QUINTA PARTE - O DIREITO COMO FATO SOCIAL (Sociologia do Direito) 20 - CONCEITO DE SOCIOLOGIA DO DIREITO 1. Precursores, fundadores e cultores da sociologia jurídica (513); 2. Distinção entre filosofia do direito, ciência do direito e sociologia do direito (518); 3. Os grandes problemas da sociologia jurídica (520); 4. Outras formulações (523); 5. Bibliografia (525). 21 - MICROSSOCIOLOGIA JURÍDICA 1. Conceito de microssociologia. Espécies jurídicas fundamentais: relações jurídicas e sedimentos jurídicos (527); 2. As relações jurídicas fundamentais: direito social e direito interindividual (530); 3. Os sedimentos jurídicos de profundidade. Direito organizado e direito espontâneo (535); 4. Outras formulações (540); 5. Bibliografia (542). 22 - SOCIOLOGIA JURÍDICA DIFERENCIAL OU TIPOLÓGICA.. 1. Objeto da sociologia jurídica diferencial ou tipológica (544); 2. Ordenamentos jurídicos dos grupos particulares. Direito estatal e direito social. Direito social comum, do trabalho, do esporte, da igreja, internacional. Conclusões (545); 3. Sistemas jurídicos das sociedades globais, Tipologia de Max Weber e Gurvitch. Sistemas contemporâneos. O sistema jurídico brasileiro (558); 4. Outras formulações (576); 5. Bibliografia (579). 23 - SOCIOLOGIA GENÉTICA DO DIREITO 580 1. Os temas da Sociologia Genética do Direito (580); 2. Influência da sociedade sobre o direito (581); 3. Influência do direito sobre a sociedade (592); 4. Outras formulações (596); 5. Bibliografia (600). PREFÁCIO À 25.a EDIÇÃO Em suas sucessivas edições, a presente Introdução à Ciência do Direito tem recebido diferentes prefácios. Eles vêm sendo mantidos por uma preocupação pedagógica: mostrar o direito vivo. Por isso, são indicados pontos atuais na evolução histórica do direito, como os novos direitos do meio ambiente, do consumidor, do desenvolvimento, da participação da sociedade civil. A esses direitos que vêm sendo consagrados é oportuno acrescentar um novo tipo de direito que se desenvolve paralelamente ao atual processo de integração de países em grandes comunidades regionais. Trata-se do "direito comunitário", elaborado, notadamente, no processo da União Européia e na formação do Mercosul. Esse direito comunitário, distinto do direito nacional e do direito internacional clássico, é uma nova realidade jurídica que vem se formando com normas próprias - leis ou normas comunitárias - e até tribunais específicos, com competência jurisdicional, como o Tribunal de Luxemburgo na Comunidade Européia. Essa referência aos novos direitos mostra, em oposição às concepções estáticas e ultraconservadoras, o sentido dinâmico e transformador do direito. São Paulo, junho de 1998 ANDRÉ FRANCO MONTORO PREFÁCIO À 23.- EDIÇÃO NOVA VISÃO DO DESENVOLVIMENTO "Mais grave do que o sofrimento dos famintos é a inconsciência dos fartos." Depois de sucessivas assembléias mundiais dedicadas ao "desenvolvimento econômico", a ONU, por iniciativa do Ex-Presidente do Chile, Patricio Aylwin, tomou a decisão histórica de convocar uma reunião de Chefes de Estado e de Governo de todos os países do mundo para debater os problemas do atual modelo de desenvolvimento e abrir caminhos para um novo "desenvolvimento social". A Conferência - Cúpula Mundial pelo Desenvolvimento Social, Copenhague, 6 a 12.03.1995 - teve o sentido de grave advertência sobre os rumos do desenvolvimento econômico mundial. Mostrou a face injusta e insustentável do atual progresso e indicou novos caminhos para um desenvolvimento mais humano, que não pode se limitar aos aspectos econômicos e financeiros. A reunião de Copenhague abriu, em escala mundial, uma nova visão do desenvolvimento. Três questões fundamentais integraram a ordem do dia da Conferência: 1. a luta contra a pobreza; 2. o apoio à integração social dos grupos marginalizados; 3. a criação de empregos e oportunidades de trabalho. O quadro da pobreza A mundialização da economia e o progresso das tecnologias aumentam a cada dia a interdependência entre as nações. Caminhamos para um mundo só. Chegou-se a admitir que essa mundialização beneficiaria a todos. Mas a presente realidade mundial oferece contrastes gritantes. Ao lado das conquistas e avanços do desenvolvimento econômico, cresce e se agrava continuamente um quadro de miséria, desemprego, marginalização e desigualdades inadmissíveis. 4 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Os dados são estarrecedores. Enquanto avança o progresso econômico e a riqueza das nações: - mais de 1 bilhão de pessoas, isto é, uma quinta parte da população mundial, passa fome e vive em condições de extrema pobreza; - 30% de toda população em idade economicamente ativa está desempregada; - em países altamente industrializados, e não apenas nos demais, o desemprego e a exclusão social tornaram-se endêmicos. "Tanto nos Estados Unidos como na Comunidade Européia cerca de 15% da população vive abaixo do limiar da pobreza", diz textualmente o Documento de Antecedentes da Reunião de Copenhague. Pobres, desempregados, sem-teto, trabalhadores migrantes, meninos de rua, periferias das grandes cidades, minorias marginalizadas, constituem em todo o mundo grupos carentes, vítimas de discriminações de toda ordem. Em lugar da igualdade desejada existe o progressivo agravamento das desigualdades. "Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres", enfatizou o Secretário-Geral das Nações Unidas, Sr. . A persistência e o contínuo agravamento dessa realidade mostram que não se trata de uma situação conjuntural, mas de um quadro de pobreza estrutural grave e ameaçadora. É urgente modificar esse quadro. Como disse o Presidente da França, Mitterrand, "não podemos deixar que o mundo se transforme num mercado global, sem outra lei que a do mais forte. Precisamos repensar esse mundo e introduzir o social entre os pontos maiores de nossas preocupações". Integração dos marginalizados Para enfrentar a situação de pobreza e dos grupos marginalizados, não bastam os tradicionais programas de socorro e assistência. Impõese o esforço pela adoção de uma nova política de integração social. • preciso incluir os excluídos. • desenvolvimento social, centrado na dignidade das pessoas humanas e no reconhecimento da cidadania, exige não apenas medidas emergenciais de alívio à pobreza, mas políticas que elevem os marginalizados à condição não de objeto, mas de agentes do seu próprio desenvolvimento. Essa integração dos excluídos e sua participação nos programas de desenvolvimento só são possíveis em nível local. Documentos preparatórios da Conferência indicaram a necessidade de "acolher PREFÁCIO À 233 a EDIÇAO 5 formas descentralizadas de gestão da coisa pública" e de "políticas sociais descentralizadas", longe das custosas centralizações burocráticas • mais perto das populações locais. Os debates mostraram a importância e o sucesso de programas descentralizados e iniciativas locais, ao lado do fracasso de grandes programas centralizados, de custos elevados, geradores de corrupção • ineficiência. Exemplos dessa ineficiência encontram-se em todas as partes do mundo. O Relatório Nacional Brasileiro, com base nos cálculos do Banco Mundial, reconheceu que "somente 10% dos recursos empregados em programas sociais atingem seu público-alvo", isto é, 90% dos recursos disponíveis são absorvidos pela burocracia e por medidas • contratos de seriedade discutível. Até mesmo na Dinamarca, uma gigantesca rede de assistência pública criou uma camada de parasitas sociais, para quem mais vale a pena viver do segurodesemprego concedido pelo Estado do que trabalhar. Cálculos do próprio Governo indicam que existem cerca de 200 mil assistidos no país. Criação de empregos O grande caminho para a integração dos marginalizados é a criação de novos empregos. A maior parte da população em estado de pobreza não possui emprego. Como escreveu Ignácio Sachs, o progresso dos dois primeiros objetivos da Conferência - combate à miséria e integração social dependerá em grande parte dos resultados alcançados na criação de empregos, pois "a integração produtiva é a única forma de atacar as raízes da exclusão social". E, em linguagem mais simples, o Presidente do Chile, Eduardo Frei, e o PrimeiroMinistro Felipe Gonzalez, da Espanha, disseram com palavras semelhantes: "O melhor caminho para sair da pobreza é o trabalho". Os Estados, os organismos internacionais e a sociedade civil dispõem de meios e possibilidades de executar uma ampla política de emprego, através de investimentos em infra-estrutura e projetos geradores de emprego, ação descentralizada e participativa, incentivo as economias locais. Lugar destacado nesses programas deve ocupar o apoio às pequenas empresas e cooperativas, que são os principais geradores de trabalho e renda. No Brasil existem hoje cadastradas mais de 4 milhões de pequenas empresas. E as não cadastradas são em número bem maior, gerando oportunidades de trabalho para milhões de brasileiros. Existem hoje, em todo o mundo, milhares de experiências, exemplos e possibilidades de multiplicação de pequenos empreen- 8 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 9 Ao lado dos técnicos da administração, da economia, da informática e das demais especializações, os homens do direito têm a missão específica de atuar no sentido de que o desenvolvimento da vida social se processe em termos de justiça, isto é, que se assegure a cada homem e a todos os homens o respeito que lhes é devido, a partir de sua dignidade fundamental de pessoa. A justiça é o valor que deve iluminar todo o campo do direito. Não se trata de contrapor a realidade a um modelo idealista e absoluto que "fica longe numa caverna platônica". É na planície em que vivemos, no processo histórico-social da luta entre liberdade e opressão, minorias dominadoras e maiorias sacrificadas, manifestações de violência ou movimentos de solidariedade, que se há de exercer, com espírito crítico e independente, a tarefa de construção dos homens do direito. Nessa luta pela vigência concreta e viva da justiça é que se realiza a razão de ser do direito. Não podemos limitar o estudo do direito ao conhecimento pretensamente "neutro", "puro" e "objetivo" da norma estabelecida, para sua "cega" aplicação. A realidade social e a justiça, como valor fundamental, estão presentes em todos os momentos da vida do direito: na elaboração de normas, na sua interpretação e aplicação, nas sentenças, pareceres, petições e recursos. Aceitar as normas jurídicas estabelecidas como inexorável imposição dos detentores do poder e negar ao jurista outra tarefa que não seja a de executor mecânico das mesmas significa desnaturar o direito e, mais do que isso, traí-lo. É certo que forças poderosas atuam continuamente, com habilidade e competência, no sentido de impor à sociedade normas que atendem a seus interesses e objetivos, muitas vezes contrários ao bem comum. É certo também que vivemos em uma sociedade marcada pela injustiça. Mas essa situação, em lugar de diminuir, só pode aumentar a importância e a responsabilidade dos cultores do direito. Ela nos obriga a rejeitar, com maior veemência, o papel que se pretende impor ao jurista: o de instrumento insensível destinado à defesa de um sistema de interesses estabelecidos. A certas concepções formalistas e normativistas, é preciso opor uma visão humanista e humanizadora do direito. Formalismo jurídico ou humanisno jurídico? A resposta que decorre da própria natureza do direito e está contida em um dos mandamentos do advogado, redigidos por Eduardo Couture, é clara e imperativa: "Teu dever é lutar pelo direito, mas, no dia em que encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça!" Como adverte Stammler: "Todo direito deve ser uma tentativa de um direito justo". A fonte das fontes do direito é a pessoa humana. NOVOS DIREITOS De uma forma geral, todo sistema jurídico moderno reconhece a pessoa humana como valor supremo do direito. Os Códigos e as Constituições definem, com a possível precisão e crescente abrangência, os direitos básicos da pessoa humana. E essa uma tendência universal. Após longa tradição de solenes documentos nacionais e internacionais, a partir da Magna Carta (1.215), passando pelo Bill of Rights inglês de 1699, a Declaração da Independência dos Estados Unidos (04.07.1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 26.08.1789), vigora hoje, com a aprovação da Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10.12.1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, "como ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as Nações". A Declaração Universal proclama, em seu primeiro "considerando', que o "reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos gerais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade da justiça e da paz do mundo". Todos reconhecem que não existe um número fechado desses direitos. A dinâmica da vida econômica e social e as transformações que se operam especialmente no campo de novas tecnologias fazem surgir novas realidades e situações que repercutem sobre as pessoas e sua relações. Essas situações geram novos problemas e a necessidade da formulação de novos direitos. Entre os novos direitos da pessoa humana que passam a ser reconhecidos pelos sistemas jurídicos contemporâneos, podem ser destacados: I. direito ao ambiente sadio; 2. direito ao trabalho; 3. direitos do consumidor; 4. direito de participação; 5. direito ao desenvolvimento. 1. DIREITO AO AMBIENTE SADIO A questão ecológica é um dos temas mais importantes de nosso século. O desenvolvimento científico e tecnológico deu aos homens enorme poder de destruição, que atinge a qualidade de vida de milhões de pessoas. Como defesa da sociedade, diante dos males e ameaças provocados pelas diversas modalidades de poluição do ar, das águas, do solo, da flora e da fauna, estão sendo elaboradas novas normas em quase todos os campos do direito. Em seu conjunto, essas normas de direito constitucional, administrativo, penal, internacional, civil, 10 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO processual e outros constituem o que se poderia chamar o moderno direito ecológico. Entre essas normas, ocupam lugar destacado aquelas que definem o direito das pessoas a um ambiente sadio. A nova Constituição do Brasil afirma expressamente esse direito nos termos seguintes: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" (art. 225). Outras Constituições recentes, como as da Espanha e Portugal, contêm disposição semelhante.' Para a garantia desse direito, diversas normas estão sendo incorporadas à legislação, como a definição do "crime ecológico", imputável aos responsáveis pela poluição, ou a exigência do estudo do "impacto ambiental" provocado por qualquer projeto de obra pública ou privada capaz de alterar o meio ambiente. Muitas legislações dispõem amplamente sobre o dever do Estado no sentido de proteger Constituição da Espanha, de 1978: "Art. 45. 1. Todos têm direito a desfrutar de um meio ambiente adequado ao desenvolvimento da pessoa, assim como o dever de o conservar. Os Poderes Públicos velarão pela utilização racional de todos os recursos naturais, com o fim de preservar e melhorar a qualidade de vida e defender e restaurar e meio ambiente, apoiando-se na indispensável solidariedade coletiva. Contra os que violarem o disposto no número anterior nos termos que a lei fixar serão estabelecidas sanções penais ou, se for caso, sanções administrativas, bem como a obrigação de reparar o dano causado". Constituição de Portugal de 1982: "Art. 66 (Ambiente e qualidade de vida). Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. Incumbe ao Estado por meio de organismos próprios e por apelo e apoio a iniciativas populações: a) prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão; b) ordenar o espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas; c) criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico; d) promover o aproveitamento nacional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica. E conferido a todos o direito de promover, nos termos da lei, a prevenção ou a cessação dos fatores de degradação do ambiente, bem como, em caso de lesão direta, o direito à correspondente indenização. O Estado deve promover a melhoria progressiva e acelerada da qualidade de vida de todos os portugueses". Por sua originalidade, é interessante reproduzir o texto adotado pela Constituição das Filipinas de 1986. Art. II, Seção 16: "O Estado protegerá e promoverá o direito do povo a uma ecologia equilibrada e saudável de acordo com o ritmo e a harmonia da natureza". PREFÁCIO À 211 a EDIÇÃO 11 o meio ambiente, criam organismos administrativos destinados a essa proteção ou instituem processos de "consulta obrigatória" à população interessada. Dentro dessa linha e para assegurar a efetividade desse direito das pessoas a Conciliação Brasileira impõe ao Poder Público, entre outras, as seguintes obrigações: preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. 4. exigir, na forma de lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; 5. controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; 6. promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; 7. proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em riscos sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (art. 225). E um amplo conjunto de leis, decretos, portarias, resoluções, sentenças judiciais e decisões administrativas dispõem sobre diferentes aspectos da proteção ambiental."' 1. 2. 3. Código de Águas (Dec. 24.643, de 10.07.1934), Convenção para proteção da flora, fauna e belezas naturais dos países da América (Dec. Legislativo 3, de 13.02.1948), Código Nacional de Saúde (Lei 2.312, de 03.09.1954, e Dec. 49.974-A, de 21.01.1961), normas sobre o lançamento de resíduos tóxicos ou oleosos nas águas interiores ou litorâneas (Dec. 50.877, de 29.06.1961, e Lei 5.357, de 17.11.1967), normas determinando a arborização das margens das rodovias do Nordeste e a construção de aterros e barragens para represamento de águas (Dec. 4.466, de 12.11.1964), Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30.11.1964), novo Código Florestal (Lei 4.775, de 15.09.1965), promulgação do tratado de proscrição de experiências com armas nucleares na atmosfera, no espaço cósmico e sob a água (Dec. 58.380 de 26.04.1966), Lei de proteção 12 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 2. DIREITO AO TRABALHO O desemprego e o subemprego de milhões de trabalhadores, em todo o mundo, constituem hoje uma das maiores ameaças ao desenvolvimento das nações e à sua convivência no plano internacional Razões de ordem tecnológica, como a automação e práticas comerciais, financeiras e monetárias, na economia mundial e nacional, vêm contribuindo para o agravamento do problema, considerado um dos mais dramáticos de nossa época. Diante da gravidade da situação, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) decidiu, em 1984, convidar os representantes dos governos, dos trabalhadores e dos empregadores e os demais órgãos ou autoridades responsáveis pelo planejamento para examinar as repercussões das práticas comerciais, financeiras e monetárias internacionais sobre o desemprego e a pobreza. Esse apelo foi reiterado na Conferência da OIT, em 1986. E finalmente, em novembro de 1987, foi realizada em Genebra a reunião extraordinária de alto nível destinada a debater esse problema, com a participação de representantes, no plano mundial, de empregados, de empregadores, governos e entidades internacionais como o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, FAO, UNESCO, Organização Mundial de Saúde e outros. No Documento de Base, preparado pela OIT, são lembradas as disposições da Declaração de Filadelfia, em que se afirma: "Todos os seres humanos, sem distinção de raça, credo ou sexo, têm o direit de promover seu bem-estar material e seu desenvolvimento espiritual em condições de liberdade e dignidade, de segurança econômica e e igualdade de oportunidades". à fauna (Lei 5.197, de 03.01.1967), Lei de proteção e estímulos à pesca (Dec. lei 221, de 28.02.1967), criação do Instituto Brasileiro de Desenvolviment Florestal (Dec.-lei 289, de 28.02.1967), instituição da Política Nacional d Saneamento (Lei 5.318, de 26.09.1967), criação da Secretaria Especial do Mei Ambiente - SEMA (Dec. 73.030, de 30.10.1973), medidas de prevenção controle da poluição industrial (Dec.-lei 1.413, de 14.08.1975 e Dec. 76.389 de 03.10.1975), convenção relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (Dec. Legislativo de aprovação 74, de 30.06.1997), instituição d Sistema de Proteção ao Programa Nuclear Brasileiro SIPRON (Dec.-lei 1.809, de 07.10.1980), política nacional do meio ambiente (Lei 6.938, de 31.08.1981, e Dec. 88.351, de 01.06.1983), normas sobre distribuição e comercialização de produtos agrotóxicos (Lei estadual de São Paulo 4.002, de 05.01.1984), ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente (Lei 7.347, de 24.07.1985), medidas para proteção de florestas existentes nas nascentes dos rios (Lei 7.754, de 14.04.1989), normas sobre criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental e sobre Política Nacional do Meio Ambiente (Dec. 99.274, de 06.06.1990, e Lei 7.804, de 18.07.1989), fixação de padrões de qualidade do ar (Resolução CONAMA 3, de 28.06.1990). PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 13 Estão aí as raízes de um novo direito da pessoa humana que começa a ser definido nas constituições, na legislação, em acordos coletivos e na vida do direito em todo o mundo: o direito ao trabalho. Entre os direitos sociais, consagrados na Declaração Universal de 1948, está afirmado expressamente o direito ao emprego ou ao trabalho nos termos seguintes: "Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de seu emprego, a condições justas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego" (art. 23, n. 1). A Constituição do Brasil, de 1988, afirma esse direito: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" (art. 6.°). E no artigo seguinte determina: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: 1relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa; II segurodesemprego em caso de desemprego involuntário". Na mesma linha, esse direito é assegurado em Constituições recentes. Assim dispõe a Constituição de Portugal: "Art. 51. Incumbe ao Estado através de planos de política econômica e social garantir o direito ao trabalho assegurado: a) a execução de política de pleno emprego, e o direito à assistência material dos que involuntariamente se encontrem em situação de desemprego; b) a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos". Constituição do Uruguai: "Art. 53. O trabalho está sob a proteção especial da lei". Constituição da Venezuela: "Art. 84. A lei adotará medidas tendentes a garantir a estabilidade no trabalho, estabelecerá as prestações que recompensem à antigüidade do trabalhador nos serviços e o protejam quando este cessar". Constituição da Itália: "Art. 4. A República reconhece a todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que o tornam efetivo". 3. DIREITOS DO CONSUMIDOR Os direitos do consumidor começam a ser assegurados no sistema jurídico de todas as nações. O consumo é uma parte essencial do dia-a-dia do ser humano. 0 consumidor é o sujeito em que se encerra todo ciclo econômico. Daí a importância de se dar ao consumidor poderes que o capacitem para exercer com eficiência o papel de fiscal e agente regulador do 14 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO mercado. Essa atribuição é particularmente importante nos regimes democráticos. Poucos atos de governo podem caracterizar melhor a preocupação efetiva pelos direitos da pessoa humana e pela justiça social como a instituição de mecanismos de defesa da população consumidora. Dado o caráter universal da questão, a Organização das Nações Unidas (Resolução ONU 39/248/85) recomenda aos governos "que devem estabelecer e manter uma infra-estrutura adequada que permita formular, aplicar e vigiar o funcionamento das políticas de proteção ao consumidor". E, entre os direitos que recomenda sejam assegurados ao consumidor, inscrevem-se os seguintes: 1. segurança física dos consumidores; 2. a proteção dos interesses econômicos dos consumidores; 3. acesso a informações necessárias aos consumidores para que façam escolhas acertadas; 4. medidas que permitam aos consumidores obter ressarcimento; 5. a distribuição de bens e serviços essenciais para o consumidor; 6. produção satisfatória e padronização de execução; 7. práticas comerciais adequadas e informações precisas quanto às mercadorias; e 8. propostas de cooperação internacional na área de proteção ao consumidor. Como órgão consultivo da ONU, constitui-se a International Organization of Consumers Unions (IOCU), que congrega centenas de entidades de defesa do consumidor de diferentes países. Essa entidade assim definiu os "direitos fundamentais e universais do consumidor": 1. Direito à segurança. Garantia contra produtos ou serviços que possam ser nocivos à vida ou à saúde. 2. Direito à escolha. Opção entre vários produtos e serviços com qualidade satisfatória e preços competitivos. 3. Direito sobre a informação. Conhecimento dos dados indis pensáveis sobre produtos ou serviços para uma decisão consciente. 4. Direito a ser ouvido. Os interesses dos consumidores devem ser levados em conta pelos governos no planejamento e execução das políticas econômicas. 5. Direito à indenização. Reparação financeira por danos causados por produtos ou serviços. PREFÁCIO À 21. a EDIÇÃO 15 Direito à educação para o consumo. Meios para o cidadão exercitar conscientemente sua função no mercado. Direito a um meio ambiente saudável. Defesa do equilíbrio ecológico para melhorar a qualidade de vida agora e preservála para o futuro. A defesa dos direitos do consumidor está expressamente assegurada nas Constituições modernas, como as da Espanha, Portugal e outras. A Constituição do Brasil de 1988 incluiu no Título II, entre os "Direitos e garantias fundamentais", o seguinte preceito: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" (art. 5.°). E, no art. 78 das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou: "O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação, elaborará código de defesa do consumidor. • Código de Defesa do Consumidor foi instituído pela Lei 8.078, de 11.09.1990, que define como consumidor "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". Basicamente, o Código estabelece como direitos do consumidor: 1. a proteção à vida, à saúde, à dignidade e à segurança contra riscos decorrentes de produtos e serviços; 2. informação adequada e clara sobre produtos e serviços; 3. proteção contra publicidade enganosa e abusiva; 4. reparação de danos patrimoniais e morais; 5. acesso à Justiça e garantia da defesa desses direitos. 4. DIREITO DE PARTICIPAÇÃO • despertar da sociedade civil e a participação ativa de todos os seus setores no processo de desenvolvimento da sociedade constitui um dos fenômenos marcantes da história atual. • a substituição dos antigos processos paternalistas e autoritários pela prática de métodos democráticos em que as pessoas passam a atuar, fiscalizar e tomar iniciativas através de comunidades, grupos de múltipla atuação e movimentos sociais. Dentro dessa realidade e com base no texto da Declaração Universal de 1948, podemos fixar as linhas de um novo direito social em formação, representado pelo direito que tem cada homem de participar ativamente no processo de desenvolvimento de sua comunidade. Não se trata apenas de receber os benefícios do progresso, mas de "tomar parte" nas decisões e no esforço para a sua realização. Em lugar de ser tratado como "objeto" das atenções paternalistas dos 6. 7. 16 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO dententores do Poder, o homem passa a ser reconhecido como "sujeito" e "agente" no processo do desenvolvimento. Trata-se de uma exigência decorrente da natureza inteligente e responsável da pessoa humana. Esse ponto foi assim fixado por João XXIII, na famosa Encíclica Mater et Magistra: "Quando as estruturas e o funcionamento de um sistema comprometem a dignidade humana dos que nele trabalham, enfraquecem o sentido de sua responsabilidade ou impedem seu poder de iniciativa, esse sistema é injusto ainda mesmo que a produção atinja altos níveis (desenvolvimento econômico) e seja distribuída conforme as normas da justiça e da eqüidade (desenvolvimento social)". Daí a necessidade de "dar às instituições sociais a forma e a natureza de autênticas comunidades (...), o que só acontecerá se os seus membros forem sempre considerados como pessoas e chamados a participar da vida e das atividades sociais". E, entre outras aplicações, lembra que na vida econômica os empregados "não podem ser tratados como simples executores silenciosos, completamente passivos, sem possibilidade de dar sua opinião e sugestões e de influir nas decisões que dizem respeito a seu trabalho". "Quanto à nação, muito importa que os cidadãos, em todos os setores, se sintam cada vez mais responsáveis pelo bem comum." A substituição do "paternalismo" pela "participação" é um imperativo da moderna política social. Na medida em que se queira respeitar a dignidade da pessoa humana, é preciso assegurar-lhe o direito de participar ativamente na solução dos problemas que lhe dizem respeito. Como primeiras manifestações desse reconhecimento, já econtramos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) a formulação específica de alguns direitos. Assim, o art. 21 afirma: "Todo homem tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. A vontade do povo será a base da autoridade do governo". Na mesma linha, no campo do trabalho, estabelece o art. 23: "Todo homem tem direito de organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses". E o art. 27 dispõe que: "Todo homem tem direito de participar da vida cultural da comunidade". Mas outras modalidades de participação vêm sendo praticadas e reconhecidas, como a dos moradores, dos jovens, dos consumidores, dos defensores do meio ambiente etc. A importância desse comportamento social, humano e democrático de participação dos membros da comunidade foi destacada em documento oficial da ONU: "A necessidade de os membros de um grupo, classe ou organização participarem no planejamento dos seus PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 17 próprios programas é básica em qualquer tipo de projeto e confundese com a própria maneira democrática de viver". Com esse fundamento, as legislações começam a definir e assegurar o novo direito das pessoas à participação ativa no processo de desenvolvimento da respectiva comunidade. O regime representativo tradicional reduz a participação do cidadão à formalidade do voto. Mas as novas condições de vida coletiva exigem novas soluções. Camadas cada vez mais amplas da população tomam consciência do caráter meramente formal e aparente de antigas fórmulas democráticas, em que a participação do povo é mais simbólica do que real. O homem contemporâneo começa a tomar consciência de que não é apenas um "espectador" da história, mas seu "agente". O homem já não se contenta em suportar passivamente os acontecimentos. Já não acredita na fatalidade, mas toma em suas mãos a própria história, procurando fazê-la e dominá-la. É nisso, sobretudo, que a história se tomou consciente. Essa consciência não se limita a algumas elites, mas se amplia progressivamente a todos os setores da vida social. O sentimento de participação é um dos mais poderosos elementos propulsores da atividade humana. É ele que entusiasma e anima a ação dos construtores de uma obra coletiva, seja uma casa, uma represa, uma catedral, um bairro ou uma cidade. Dentro desse quadro, a nova Constituição do Brasil abriu novos caminhos à participação das pessoas ao declarar, em seu art. 1.°, que o poder será exercido pelo povo, "por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição". E estabelece em seu contexto diferentes modalidades de participação dos cidadãos, como a iniciativa de projetos de lei, o referendo, o plebiscito e instituições semelhantes. Consagrou, assim, o princípio de que o regime político brasileiro é não apenas representativo, mas também participativo. Além do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular de projetos de lei (art. 14), a Constituição consagrou outras formas de participação, especialmente relacionadas com os empregados e trabalhadores, que constituem a parcela mais ampla da população. Assim, assegura "plena liberdade de associação para fins lícitos" (art. 5.°, XVII) e, em relação aos sindicatos e associações de trabalhadores, estabelece: "É livre a associação profissional ou sindical. A lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de Sindicato, ressalvado o registro do órgão competente vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical" (art. 8.°, 1 e III). 0 direito de sindicalização foi estendido aos funcionários públicos: "E garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical" (art. 37, VI). 18 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Foi concedida aos sindicatos e aos partidos políticos a prerrogativa de impetrar mandado de segurança "coletivo" (art. 5.°, LXX). A participação através da negociação coletiva é assegurada aos trabalhadores pelo "reconhecimento das convenções e acordos coletivos do trabalho" (art. 7.°, XXVI). A _ Constituição define como direito dos trabalhadores "a participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei" (art. 7.°, XI). Estabeleceu, também, o princípio da participação de trabalhadores • empregadores nos conselhos dos órgãos públicos, nos termos seguintes: "É assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação" (art. 10). Na mesma linha, a Constituição estabeleceu a, figura do representante dos empregados nas empresas, dentro da seguinte norma: "Nas empresas de mais de duzentos empregados é assegurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promoverlhes • entendimento direto com os empregadores" (art. 11). Foi mantida a representação paritária de trabalhadores e empregadores na composição dos órgãos da justiça do trabalho (art. 111, § 1.°, art. 115, parágrafo único, e art. 116, parágrafo único). Em relação às ações governamentais na área da assistência social, a Constituição determina: "A participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis" (art. 204, II). O direito à informação - participação na informação - foi estabelecido na forma seguinte: "Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob a pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado" (art. 5.°, XXXIII). A ação popular foi também assegurada: "Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico • cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência" (art. 5.°, LXXIII). A Constituição abriu, assim, instrumentos institucionais que permitem a participação cada vez mais ampla da população no conhecimento, fiscalização e controle dos negócios públicos. Assegurou, ainda, aos diversos setores da sociedade o direito de atuar na defesa e promoção dos interesses coletivos. PREFÁCIO À 21.a EDIÇÃO 19 5. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO "Desenvolvimento é o novo nome da paz." (Paulo VI, Encíclica Populorum Progressio) Entre os novos direitos que começam a ser reconhecidos universalmente destaca-se o "direito ao desenvolvimento". A Assembléia-Geral das Nações Unidas (ONU), reunida em 04.12.1986, decidiu aprovar a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, que pode ser assim sintetizada: "A Assembléia-Geral das Nações Unidas, Reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa o constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes; Considerando que a eliminação das violações maciças e flagrantes dos direitos humanos dos povos e indivíduos afetados por situações tais como as resultantes do colonialismo, neocolonialismo, apartheid, racismo e discriminação racial, dominação estrangeira, ocupação, agressão e ameaças contra a soberania nacional, • ameaças de guerra contribuiria para o estabelecimento de condições propícias para o desenvolvimento de grande parte da humanidade; Reafirmando que existe uma relação íntima entre desarmamento e desenvolvimento e que o progresso no campo do desarmamento promoveria consideravelmente • progresso no campo de desenvolvimento, e que os recursos liberados pelas medidas de desarmamento deveriam dedicar-se ao desenvolvimento econômico e social e ao bem-estar de todos os povos e, em particular, daqueles dos países em desenvolvimento; Reconhecendo que a pessoa humana é o sujeito central do processo de desenvolvimento e que a política de desenvolvimento deveria fazer do ser humano • principal participante e beneficiário do desenvolvimento; Confirmando que o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável e que a igualdade de oportunidades para o desenvolvimento é uma prerrogativa tanto das nações quanto dos indivíduos que as compõem; Proclama a seguinte Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento: Artigo 1.° 1. O direito ao desenvolvimento é um inalienável direito humano, em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos têm reconhecido seu direito de participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir • dele desfrutar; e no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. 2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos à autodeterminação, que inclui o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais. 20 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Artigo 2.° 1. A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento. 2. Todos os seres humanos têm responsabilidades pelo desenvolvimento, individual e coletivamente. 3. Os Estados têm o direito e o dever de formular políticas nacionais adequadas para o desenvolvimento que visem o constante aprimoramento do bemestar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição eqüitativa dos benefícios resultantes. Seguem-se outras considerações e definições destinadas a precisar e apoiar a realização desse direito. Em janeiro de 1990, como novo passo no processo histórico do reconhecimento e implantação desse direito, a ONU realizou em Genebra uma reunião com a participação de 150 representantes de todo o mundo, denominada `Consultas Mundiais sobre a Realização do Direito ao Desenvolvimento como um Direito Humano'. Os trabalhos da reunião focalizaram três pontos centrais: 1. problemas; 2. critérios; e 3. mecanismos de implementação e cumprimento do direito ao desenvolvimento, como um direito humano. Como se vê, trata-se de um processo em marcha para a afirmação de um novo direito. Para identificar o caráter de luta desse processo é oportuno lembrar que a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento foi aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 1968, pelo voto de 160 países, com a abstenção da Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Israel, Japão e Inglaterra, a ausência da Albânia, S. Domingos e Vanatu, e o único voto contrário dos Estados Unidos. A evolução dos trabalhos da ONU mostra um avanço: nos anos 60 e 70 discutia-se o direito à autodeterminação dos povos, que passaram a se constituir em Estados independentes. Hoje o debate avançou para o problema dos direitos da pessoa e das coletividades humanas no âmbito de estruturas globais de dominação, exploração ou indiferença e se afirma, implícita ou explicitamente, o dever de solidariedade. Como observou o representante do Brasil na reunião de Genebra, Professor Cançado Trindade, Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores: "A consagração do direito ao desenvolvimento como um direito humano introduz um forte componente ético na avaliação e condução das relações internacionais contemporâneas". "Não se pode falar de uma Agenda para a paz, sem se falar de uma Agenda para o desenvolvimento", afirmou, na mesma linha, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Perez de Cuellar. E, assim, através da história, enfrentando injustiças, opressões e violências, o direito vai abrindo caminhos para que o desenvolvimento da sociedade se realize dentro do respeito à igual dignidade de todos os homens. Como lembra Levy-Ullmann, "a idéia de justiça se encontra em todas as leis, mas não se esgota em nenhuma; é ela, entretanto, que dá sentido e significação a todo o direito positivo". São Paulo, março de 1993. PREFÁCIOS ANTERIORES PREFÁCIO À 9.a EDIÇÃO Desde 1972, quando foi publicada a 3.' edição deste livro, várias edições se sucederam rapidamente, sem que tivéssemos a oportunidade de fazer a atualização e as revisões que nos parecem convenientes. A premência de novas tiragens -cinco edições em pouco mais de seis anos - e a intensidade da vida parlamentar não nos permitiram realizar, de uma só vez, a revisão do texto integral, como havíamos planejado. Decidimos, por isso, fazer esse trabalho por partes, a partir de agora. Nesta 9.' edição, começamos por rever o Capítulo I da Primeira Parte e introduzir pequenas alterações ou correções no restante da obra. É nossa intenção proceder da mesma forma nas próximas edições, até que tenhamos a obra inteiramente revista. Ao agradecer a crescente acolhida que professores e alunos têm dispensado a este livro, de clara orientação humanista, é oportuno lembrar o papel histórico que, no processo de desenvolvimento nacional, cabe à luta pelo direito. Talvez em nenhuma época, como hoje, o estudo e a prática do direito tenham se identificado tanto com a própria defesa da civilização e do humano. Em qualquer das modalidades de sua atuação, como juiz, promotor, consultor, advogado, administrador ou legislador, cabe ao jurista trabalhar permanentemente para assegurar a cada homem o respeito que lhe é devido: suum cuique tribuere. E defender, assim, aquela realidade fundamental que é a fonte das fontes do direito: a pessoa humana. Ao lado dos técnicos da administração, da economia ou da cibernética, os homens do direito têm a missão insubstituível de fazer com que o desenvolvimento da sociedade se processe em termos de justiça, isto é, que se assegure a cada homem e a todos os homens o respeito aos direitos que lhe são devidos. Por isso, a Nação entrega às Faculdades de Direito a tarefa humanizadora, essencial ao desenvolvimento, de formar cidadãos que serão, na vida nacional, os lutadores permanentes da justiça e da liberdade. São Paulo, janeiro de 1980 ANDRÉ FRANCO MONTORO A disciplina tradicionalmente denominada Introdução à Ciência do Direito recebe hoje nova designação oficial: Introdução ao Estudo do Direito, por iniciativa do Conselho Federal de Educação, que, em 28.01.1972, aprovou o currículo mínimo para os cursos de Direito. O conteúdo da presente obra corresponde, com exatidão, à nova denominação oficial. Como se verifica pelo Plano de Trabalho (p. 25), este livro não se limita ao estudo de direito como ciência. Seu conteúdo é, na realidade, uma introdução ao estudo do direito em suas diversas perspectivas fundamentais, como ciência, justiça, norma, direito subjetivo e fato social. Além dos naturais acréscimos, atualizações e melhor esclarecimento de alguns textos, sai a presente edição com duas modificações mais importantes: A primeira - decorrente de solicitação generalizada dos alunos - é a tradução dos textos de autores estrangeiros citados no parágrafo dedicado a Outras Formulações, que se encontra no fim de cada capítulo. A segunda - que atende também a sugestões de alunos e professores - consiste na inclusão, no fim de cada volume, de um índice alfabético de assuntos tratados e o outro de autores citados. Com essa providência, temos em vista facilitar o trabalho de pesquisa e consulta dos que se utilizarem desta obra. Agradecemos, mais uma vez, a acolhida que tem recebido o presente trabalho e as sugestões e críticas, que muito têm contribuído para seu aperfeiçoamento. São Paulo, janeiro de 1972 PREFÁCIO À 2." EDIÇÃO Publicado o 1.° volume da presente obra (1968), a edição esgotouse antes de ser feita a publicação do 2.° volume. Essa circunstância permitiu-nos realizar um remanejamento da matéria e acrescentar alguns elementos, que contribuirão para melhor distribuição e aperfeiçoamento do texto. Essas modificações, aconselhadas pela experiência e estimuladas pela contribuição de professores, alunos e críticos especializados, acentuam o caráter experimental e dinâmico que pretendemos dar a esta Introdução à Ciência do Direito. Quais os objetivos de um curso de Introdução ao Direito? Essa pergunta é fundamental, se quisermos examinar criticamente os atuais cursos e introduzir nos mesmo modificações que correspondam às expectativas e necessidades de um estudante que inicia o estudo do Direito. Sem a fixação dos objetivos, é impossível avaliar a eficiência de qualquer curso. No caso do curso de Introdução à Ciência do Direito, pensamos que os principais objetivos podem ser assim indicados: 1. Proporcionar aos alunos uma visão geral do campo do direito, o que se desdobra naturalmente no conhecimento: - da posição do direito no conjunto dos conhecimentos humanos; - dos ramos do direito público e privado; - das disciplinas jurídicas fundamentais. 2. Introduzir os estudantes no conhecimento da terminologia jurídica e das categorias fundamentais do direito, tais como a norma jurídica, suas espécies e interpretação, o direito subjetivo e o dever jurídico, a relação jurídica, o sujeito ativo e passivo e o objeto do direito, a prestação jurídica, a pessoa física e a jurídica, a sanção e a ação judicial, a estrutura e os poderes do Estado etc. 3. Conduzir a uma tomada de consciência sobre a importância e o significado do direito na promoção do desenvolvimento nacional, em termos de justiça, isto é, com o respeito à dignidade pessoal de todos os homens. A esse tríplice objetivo procura atender o presente estudo, como se pode verificar pela distribuição de suas partes e especialmente pela leitura dos n. 1, 2, 63 e 69. 24 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO É oportuna uma palavra sobre os métodos no ensino do Direito. A reforma universitária, que se processa no país, tem uma de suas justificativas na necessidade de ser assegurada ao estudante uma participação ativa no desenvolvimento dos cursos. O aluno não pode continuar a ser simples ouvinte de preleções dos professores. Sua participação deve ser promovida pelo exame e discussão de textos, casos de jurisprudência e questões de interesse real. A divisão da turma em grupos, para a pesquisa e debate de tais problemas, com a apresentação dos resultados perante a classe, tem sido adotada com sucesso e servido de base para exposição posterior e explicações do professor. A realização de trabalho pessoal e escrito pelos alunos sobre temas relativos ao programa é outra forma de participação ativa do estudante. Com o propósito de facilitar essas e outras modalidades de participação e trabalho dos alunos no desenvolvimento do curso, incluímos no fim de cada capítulo um parágrafo dedicado a Outras Formulações, onde são transcritos textos divergentes de diversos autores, casos julgados pelos tribunais ou documentos semelhantes, e outro dedicado à Bibliografia especializada. Como o mesmo objetivo, incluímos, no fim do volume, um índice geral das matérias tratadas e outro índice de autores. Agradecemos, antecipadamente, as sugestões e críticas que possam contribuir para que este livro seja um instrumento cada vez mais útil aos que devem auxiliar as novas gerações na Introdução à Ciência do Direito. São Paulo, fevereiro de 1970 PLANO DE TRABALHO 1. O direito pode ser encarado sob duas perspectivas diferentes: como elemento de conservação das estruturas sociais, ou como instrumento de promoção das transformações da sociedade. Para os que defendem a função conservadora do direito, a concepção mais adequada a essa missão é a identificação do direito com a lei, e, por extensão, ao contrato, como lei entre as partes. Nesse sentido, é significativa a advertência com que famoso professor de Paris iniciativa seu curso: "Não vim ensinar o direito, vim expor o Código Civil". Mas, principalmente nos países em desenvolvimento, o erro dessa posição é patente. Fazer do direito uma força conservadora é perpetuar • subdesenvolvimento e o atraso. Identificar o direito com a lei é errar duplamente, porque significa desconhecer seu verdadeiro fundamento • condená-lo à estagnação. Para fundamentar a missão renovadora e dinâmica do direito é preciso rever certos conceitos de base e afirmar, na sua plenitude, o valor fundamental, que dá ao direito seu sentido e dignidade: a justiça. Não se trata de um conceito novo, mas permanente, que deve ser afirmado, estudado e efetivamente aplicado, se quisermos dar ao direito sua destinação verdadeira, que é a de ordenar a convivência • o desenvolvimento dos povos. Nos textos clássicos de Aristóteles, Ulpiano, Cícero, S. Tomás • outros, encontramos formulada a doutrina básica da justiça, mas adaptada a uma realidade profundamente diferente da atual. Encontram-se aí as sementes para a elaboração ulterior de um pensamento jurídico-filosófico, que precisa ser desenvolvido e aplicado às novas condições da sociedade e ao direito moderno. A esse respeito, dois erros, a nosso ver, precisam ser evitados. Primeiro, a simples repetição daquele pensamento, como se o mundo não houvesse mudado. Segundo, a rejeição pura e simples dessa doutrina, como se a mudança das condições sociais destruísse as exigências fundamentais do respeito à pessoa humana. 26 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 2. Que é direito? Na linguagem comum e na linguagem científica, o vocábulo direito é empregado com significações diferentes. Ele tem sentido nitidamente diverso nas seguintes expressões: 1. o direito brasileiro proíbe o duelo; 2. o Estado tem direito de cobrar impostos; 3. o salário é direito do trabalhador; 4. o direito é um setor da realidade social; 5. o estudo do direito requer métodos próprios. Cada uma dessas frases emprega uma das significações fundamentais do direito. Na primeira, direito significa a lei ou norma jurídica (direito-norma). Na segunda, direito tem o sentido de faculdade ou poder de agir (direito-faculdade ou direito-poder). Na terceira, indica o que é devido por justiça (direito-justo). Na quarta, o direito é considerado como fenômeno social (direito-fato social). Na última, ele é referido como disciplina científica (direito-ciência). São cinco realidades distintas. E, se quisermos saber o que é o direito, precisamos estudar o conteúdo essencial de cada uma dessas significações. Esse é o plano do presente trabalho. Consta ele de cinco partes: 1.8 parte - O direito como ciência (Epistemologia Jurídica); 2.' parte - O direito como justo (Axiologia Jurídica); 3.' parte - O direito como norma (Teoria da norma jurídica); 4.' parte - O direito como faculdade (Teoria dos direitos sub jetivos); 5.' parte - 0 direito como fato social (Sociologia do Direito). Primeira Parte O DIREITO COMO CIÊNCIA (Epistemologia Jurídica) 1 O CONCEITO DE DIREITO SUMÁRIO: 1. Origens do vocábulo: 1.1 Problemas de epistemologia jurídica; 1.2 Definição nominal e real; 1.3 Origem dos vocábulos "direito" e "jurídico" - 2. Pluralidade de significações do direito Cinco realidades fundamentais: 2.1 Direito-norma: 2.1.1 Direito positivo e Direito natural; 2.1.2 Direito estatal e não-estatal; 2.2 Direito-faculdade; 2.3 Direito justo; 2.4 Direito-ciência; 2.5 Direitofato social; 2.6 Outras acepções - 3. Direito-conceito análogo: 3.1 Conclusões; 3.2 Analogia: 3.2.1 Analogia intrínseca 'ou de proporção; 3.2.2 Analogia extrínseca ou de relação; 3.2.3 Analogia metafórica - 4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do direito: 4.1 Analogia de relação: 4.1.1 Analogia entre as significações fundamentais do direito. Primado da Lei ou da Justiça? Formalismo jurídico e humanismo jurídico; 4.1.2 Outra analogia: Direito positivo e Direito natural; 4.2 Analogia intrínseca: Direito estatal e Direito não-estatal - 5. Outras formulações: 5.1 "Conceito de direito", João Mendes; 5.2 "Uma concepção sociológica do direito", LévyBruhl; 5.3 "Justo, conteúdo essencial da norma jurídica", F. Geny; 5.4 "O Direito e o materialismo histórico e dialético", K. Marx; 5.5 "Concepção quântica do direito", Goffredo Telles Júnior - 6. Bibliografia. 1. Origens do vocábulo 1.1 Problemas de epistemologia jurídica Ao estudar o direito como ciência, devemos naturalmente examinar sua definição, assim como o lugar que ele ocupa no conjunto das ciências e a natureza de seu objeto. Tais problemas pertencem ao campo da Epistemologia Jurídica. Epistemologia, do grego epistême (ciência) e logos (estudo), significa etimologicamente "teoria da ciência". Nesse sentido, podemos 30 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO dizer, com Machado Neto, que "tratar da ciência do direito, ainda que para o mister elementar de defini-lo, é fazer Epistemologia".' Há, entretanto, na linguagem filosófica, certa imprecisão e diversidade de conceitos sobre a exata significação do vocábulo. Assim, Lalande define Epistemologia como "o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados de cada ciência" (Vocabulaire technique et critique de la Philosophie, verbete "epistemologie"). E, em nota, esclarece que a palavra inglesa epistemulogy é freqüentemente empregada para designar toda a "teoria do conhecimento" ou "gnosiologia". Da mesma forma, os italianos, em geral, não costumam distinguir epistemologia e teoria do conhecimento. De qualquer forma, os problemas citados: definição de direito, sua posição no quadro das ciências, a natureza de seu objeto constituem inquestionavelmente temas de Epistemologia do Direito. 1.2 Definição nominal e real Conceituar o direito é defini-lo. E há duas espécies de definição: a) nominal, que consiste em dizer o que uma palavra ou nome significa; b) real, que consiste em dizer o que uma coisa ou realidade é. Em obediência à recomendação da lógica, é o que vamos fazer em relação ao direito. Estudaremos, primeiramente, a significação da palavra. Examinaremos, em seguida, a realidade ou realidades que constituem o direito. O estudo das palavras e da linguagem em geral é da maior importância. Quando um vocábulo é empregado durante várias gerações para designar uma realidade, ele se apresenta cheio de conteúdo e significação. O nome é a experiência acumulada e constitui, de certa forma, o limiar da ciência.' 1.3 Origem dos vocábulos "direito" e "jurídico" Que significa a palavra "direito"? Qual a sua origem? Nas línguas modernas encontramos dois Direito conjuntos de termos utilizados para exprimir a idéia de direito. Um primeiro conjunto liga-se ao vocábulo "direito", que encontra similar em todas as línguas neolatinas e, de forma geral, nas línguas ocidentais modernas: Droit (francês); Diritto (italiano); Derecho (espanhol); Recht (alemão); Right (inglês); Dreptu (romeno). ~" A. L. Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo, Saraiva, 1969, p. 7. 2' É hoje geralmente reconhecido que a linguagem é elemento fundamental no estudo de ciências humanas, como o direito e a filosofia. V. "Filosofia da linguagem" e a "Doutrina de linguagem jurídica", no item 4.2.4, Capítulo 9 do presente volume. CONCEITO DE DIREITO 31 Essas palavras têm sua origem num vocábulo do baixo latim: directum ou rectum, que significa "direito" ou "reto". Rectum ou directum é o que é conforme "Directum" a uma régua. Mas, ao lado desse, existe outro conjunto de palavras que, nas línguas modernas, liga-se à noção de direito. Esse conjunto é representado pelos vocábulos: "jurídico", "jurisconsulto", "judicial", "judiciário', "jurisprudência" etc., que encontram, também, similar em quase todas as línguas modernas. Qual a origem desses vocábulos? É visível que a etimologia dessas palavras encontra-se no termo latino jus Guris), que sig"Jus" nifica "direito". Mas, se remontarmos um pouco além e formos investigar a significação originária do vocábulo jus, encontraremos, pelo menos, duas origens diferentes indicadas pelos filósofos. Alguns pretendem que jus se tenha constituído no idioma latino, como derivado de jussum, particípio passado do verbo jubere, que significa mandar, ordenar. "Jussum" E apontam, nesse sentido, certas fórmulas que eram usadas nas Assembléias Curiais em Roma, nas quais os cidadãos, depois de discutirem as leis, decidiam sobre a sua promulgação. A fórmula usada, então, para encerramento da discussão, era a seguinte: jubeate quirites (mandai cidadãos); ou então, adsentite jubere quirites (concordai em mandar, cidadãos). Outros preferem ver no vocábulo jus uma derivação de justum, isto é, aquilo que é justo ou conforme à justiça. "Jus dictum est quia est justum", diz Isidoro de "Justum" Sevilha (Etymol., cap. 3): Como confirmação dessas hipóteses são indicadas vocábulos de uma tradição ainda mais antiga. Assim, ligado à noção de jussum (mandado), indicam alguns autores, como radical remoto de jus, o vocábulo sânscrito yú, que significa vínculo de onde derivam palavras como: jugo, jungido, cônjuge (cumyú, vínculo comum). Os que pretendem ver, no vocábulo jus, uma derivação da idéia de justiça ou de santidade (justum), encontram, por sua vez, como raiz remota, o vocábulo do idioma védico yós, que significa bom, santo, divino, de onde parece terem sido originadas as expressões Zeus (Deus ou o pai dos deuses, no grego) e Jovis (Júpiter, no latim). "Yú" "Yós" 32 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 33 Assim, para citar alguns autores que mais diretamente estudaram • problema, podemos mencionar, entre os defensores da primeira hipótese, Ihering, que afirma: "Jus significa `vínculo', da raiz sânscrita Yú (ligar), de onde derivam: jugo, jungir e outras inúmeras palavras".3 No mesmo sentido é a opinião de Pott, Meringer e outros.' Mas, de outro lado, ilustres autores, como Schrader, Mommsen • Breal,5 adotam a tese de que a palavra jus liga-se ao que é justo, santo, puro. Para Mommsen, jus aproxima-se de jurare. E Breal, no estudo sobre a "Origem das palavras que designam o direito e a lei no latim", afirma que o vocábulo jus encontra-se ligado às palavras jaus ou jous, nos povos da Itália, Pérsia e índia, e exprimiria uma idéia correspondente às noções mais elevadas que possa conceber o espírito do homem. O pensamento ancestralmente contido nessa palavra seria o da vontade ou do poder divino.' Evidentemente, a esta segunda acepção também se ligam famosos textos de Direito Romano, como aquele em que se define o direito como "a arte do bem e do justo", ars boni et aequi (Celso), ou a jurisprudência como "o conhecimento das coisas divinas e humanas • a ciência do justo e do injusto", ` jursprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia" (Ulpiano, Dig., 1, 1). Segundo Lachance, é ainda possível que o vocábulo jus proceda de juvo, juvare, ajudar, proteger. O direito seria, nesse sentido, uma proteção destinada a defender os homens contra qualquer violência.' Para completar a indicação das origens do vocábulo "direito", convém citar, também, a palavra grega correspon"Diké" dente. Trata-se do vocábulo diké (direito), por sua vez ligado à raiz indo-européia dik, que significa indicar. Não há, entretanto, nas línguas modernas palavras vinculadas ao diké grego. Apenas nos trabalhos eruditos esse termo é mencionado. Esse fato confirma um dos aspectos conhecidos da história da cultura. Quase todas as palavras ligadas ao direito são de origem latina, • que revela a influência poderosa do direito romano sobre o direito moderno, ao lado da influência quase nula da cultura grega, nesse particular. Ihering, R. von, Espírito del derecho romano, § 165. Ver F. Senn, De Ia justice et du droit, Sirey, cap. II, p. 25, n. 1. cs~ F. Senn, loc. cit. V. L. Lachance, "Définition nominale du droit", in Le concept de droit en Aristote et S. Thomas, § 2. (6) Michel Breal, "L'origine des mots désignant le droit et Ia loi en latin", i Nouv. Rev. Historique de Droit, 1883, p. 603. " Loc. cit. Em outros setores, como na filosofia, nas artes e nas ciências especulativas, foi profunda a influência da cultura helênica. Mas, no campo do direito, quase nada Grécia encontramos que nos ligue à Grécia. A influência e Roma decisiva nesse campo foi de Roma. O gênio prático dos romanos contrasta com a sabedoria teórica dos gregos. No campo do pensamento puro os gregos foram notáveis. Pode dizer-se que não houve em Roma filósofo que mereça ser posto ao lado de Sócrates, Platão ou Aristóteles. Mas, do ponto de vista prático - e • direito se situa nesse campo -, os romanos foram insuperáveis. E • monumento jurídico que eles deixaram à humanidade, o Direito Romano, comunicou-se até nós e ainda influi poderosamente no direito contemporâneo. 2. Pluralidade de significações do direito - Cinco realidades fundamentais Não podemos nos limitar ao estudo do vocábulo. Devemos passar do plano das palavras para o das realidades. Consideremos as expressões seguintes: 1 - o direito não permite o duelo; 2 - o Estado tem o direito de legislar; 3 - a educação é direito da criança; 4 - cabe ao direito estudar a criminalidade; 5 - o direito constitui um setor da vida social. Se atentarmos para a significação do vocábulo "direito", nessas diversas expressões, verificaremos que, em cada uma, ele significa coisa diferente. Assim, no primeiro caso - ` o direito não permite o duelo" - "direito" significa a norma, Norma a lei, a regra social obrigatória. Na segunda expressão - "o Estado tem o direito de legislar" - "direito" significa a facul- Faculdade dade, o poder, a prerrogativa que o Estado tem de criar leis. Na terceira expressão - "a educação é direito da criança" - "direito" significa o que é devido Justo por justiça. Na quarta expressão - "cabe ao direito estudar a criminalidade" - "direito" significa Ciência ciência, ou, mais exatamente, a ciência do direito. 34 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Na última expressão - "o direito constitui um setor da vida social" - "direito" é considerado como fenômeno da vida coletiva. Ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos etc., também o direito é um fato social. Temos, assim, cinco realidades diferentes a que correspondem as acepções fundamentais do direito. Um estudo mais detido nos revela que, partindo destas, podemos chegar, ainda, a outras significações, de menor importância. Façamos um exame rápido dessas significações. 2.1 Direito-norma Direito, no sentido de lei ou norma, é uma das acepções mais comuns do vocábulo. Muitos autores o denominam "direito objetivo", em oposição ao "direito subjetivo" ou "direito-faculdade", que é sempre uma prerrogativa do sujeito (subjectum). Essa denominação, no entanto, é imprópria, porque outras acepções do direito, como justo ou fato social, são, também, objetivas. Direito objetivo não é apenas a lei. Inúmeras definições correntes referem-se à acepção do direito como lei. Assim, por exemplo, a de Clóvis Beviláqua, que, em sua Teoria Geral do Direito Civil, conceitua o Direito como "uma regra social obrigatória". Ou a de Aubry e Rau: "O Direito é o conjunto de preceitos ou regras, a cuja observância podemos obrigar o homem, por uma coerção exterior ou física".' É esse, também, o 'caso da definição de Ihering, que considera o direito como "um conjunto de normas, coativamente garantidas pelo poder público".9 Mas, direito, na acepção de norma ou lei, indica realidades diferentes, quando se refere: a) ao direito positivo e ao direito natural; b) ao direito estatal e ao direito não-estatal (ou social). 2.1.1 Direito positivo e Direito natural O Direito positivo é constituído pelo conjunto de normas elaboradas por uma sociedade determinada, para reger sua vida interna, com a proteção da força social. Direito natural significa coisa diferente. E constituído pelos princípios que servem de fundamento ao Direito positivo. A palavra "direito" indica realidades diferentes num e noutro caso. Inúmeras interpretações inexatas do Direito natural decorrem, (e' C. Aubry; C. Rau, Cours de Droit Civil français, Paris, 1936, § 1.°. (9) Ihering, Zweck im Recht, 1, § 18. CONCEITO DE DIREITO 35 exatamente, do fato de se atribuir significação unívoca, isto é, uma única significação ao vocábulo "direito" em ambos os casos. É, por exemplo, famoso o ponto de vista -de Oudot,10 jurista francês, para quem o Direito positivo e o Direito natural constituiriam dois Códigos paralelos. Teríamos, ao lado de cada norma do Direito positivo, uma correspondente de Direito natural. Na concepção de Oudot e dos chamados "jusnaturalistas racionalistas", o vocábulo "direito", aplicado ao Direito natural e ao Direito positivo, teria a mesma significação. Seria unívoco. Ora, essa concepção do Direito natural é inaceitável. O Direito natural, na sua formulação clássica, não é um conjunto de normas paralelas e semelhantes às do Direito positivo. Mas é o fundamento do Direito positivo. É constituído por aquelas normas que servem de fundamento a este, tais como: "deve se fazer o bem", "dar a cada um o que lhe é devido", "a vida social deve ser conservada", "os contratos devem ser observados" etc., normas essas que são de outra natureza e de estrutura diferente das do Direito positivo." 2.1.2 Direito estatal e não-estatal Distinção semelhante devemos estabelecer entre o direito estatal e o direito não-estatal, também chamado direito grupal ou direito social, por Gurvitch,12, Lévi-Bruhl,l3 Geny 14 e outros. A palavra "direito" aplica-se geralmente às normas jurídicas elaboradas pelo Estado, para reger a vida social, como por exemplo o Código Civil, a Constituição, o Código Comercial, as demais leis federais, estaduais e municipais, os decretos etc. Mas, ao lado do direito estatal, existem outras normas obrigatórias, elaboradas por diferentes grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses grupos. Estão nesse caso, pelo menos em grande Fato Social "Le droit naturel est Ia collection des règles du just e de l'injuste qu'iI est souhaitable de voir immediatement transformer en lois positives", Oudot, Premiers éssais de philosophie du droit, 1846, § 67. As normas do direito positivo, diz Kelsen, têm a estrutura de uma proposição hipotética condicional: Se o inquilino não pagar o aluguel, ele estará sujeito a uma ação de despejo; se o eleitor não votar, estará sujeito a uma multa. As normas de Direito natural são proposições diferentes: o bem deve ser feito, a pessoa humana deve ser respeitada, a sociedade deve ser conservada. G. Gurvitch, Le temps présent et l'idée du droit social, Paris, J. Vrin, 1932. Ver Capítulo 11, n. 7, da Terceira Parte (p. 358), e, Capítulo 22, n. 2, da Quinta Parte (p. 545). Lévy-Bruhl, "Les sources du droit", in Introduction à l'étude du droit, I, p. 257 e ss. F. Geny, Science et technique en droit privé positif, § 19. parte, o direito universitário, o direito esportivo, o direito religioso (canônico, muçulmano etc.), os usos e costumes internacionais etc. - o mesmo ocorre com as normas trabalhistas derivadas de convenções coletivas, acordos e outras fontes não estatais. Os estatutos, regulamentos e demais normas que regulamentam a vida de uma universidade, quando elaborados por esta, constituem um direito autônomo: o direito universitário. O direito que vigora dentro da comunidade esportiva constitui outro exemplo. A atividade esportiva está, entre nós, como em outros países, regulamentada não pelo Estado, mas pelas próprias organizações do esporte. Estas elaboram normas e até mesmo códigos que regulam, com força obrigatória, a atividade esportiva. Existem, inclusive, tribunais esportivos, incumbidos da aplicação de tais normas. Grande parte do moderno Direito do trabalho, que regula as relações de emprego, foi, principalmente nos países da Europa, elaborada pelas próprias organizações interessadas. Os sindicatos e outras organizações operárias e patronais, através de usos e contratos coletivos, foram estabelecendo normas, que passaram a regular, com força obrigatória, as relações de trabalho em cada categoria profissional. Não foi o Estado que elaborou essas normas. Foram os próprios interessados. No Brasil o processo foi diferente. O estatuto básico dos direitos dos trabalhadores, a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho - foi outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas (Dec.-lei 5.452 de 01.05.1943). Entretanto, ao lado das leis e decretos estatais, grande parte das normas que regem as relações de trabalho decorre de acordos coletivos e entendimentos realizados diretamente pelas organizações representativas de empregados e empregadores. Ocorreu, assim, fenômeno semelhante ao europeu, como demonstra Oliveira Viana, no estudo sobre instituições políticas brasileiras.` Do direito religioso são exemplos o direito canônico, o direito muçulmano, o judeu, o budista, elaborados pelas próprias comunidades e disciplinando, com normas precisas, a atividade espiritual de milhões de criaturas. As regras editadas pelos organismos internacionais, que se multiplicam, e os usos e costumes internacionais, com força obrigatória, foram amplamente estudados por Gurvitch, Geny, Lévy-Bruhl, Le Fur, nas obras citadas, e constituem outras tantas manifestações do direito não-estatal ou social. 051 V. Oliveira Viana, Instituições políticas brasileiras, J. Olímpio, 1949; Maxime Leroy, "Le droit proletarien", introdução a La coutume ouvrière, 2 v., Paris, 1900; Gurvitch, "Droit ouvrier", in ob. cit., cap. 1; S. Panunzio, Le droit sindical et Ia notion d'autorité; Dolléans, Histoire du mouvement ouvrier, Paris, Colin, 1953. Como observa Gurvitch, esse direito social ou não-estatal pode existir dentro do Estado, ao lado do Estado e acima do Estado. Dentro do Estado, como o direito universitário ou o direito operário. Ao lado do Estado, como o direito canônico, que dispõe sobre matéria religiosa, enquanto o Estado regula outras atividades. Acima do Estado, como os usos e costumes internacionais. Teremos oportunidade de voltar ao exame desse problema, que é amplamente estudado pela Sociologia jurídica e pelo Direito moderno.' Mas, por ora, importa esclarecer que o vocábulo direito, aplicado ao direito estatal e ao direito não-estatal, tem significação diversa e não unívoca. E por isso que muitos autores não admitem que se denomine "direito" a esses ordenamentos jurídicos não-estatais. Tais autores defendem a tese do "monismo jurídico". Negam caráter jurídico aos ordenamentos não-estatais. Afirmam, como Kelsen, que só há um ordenamento jurídico: o estatal. Recusam o "pluralismo jurídico". O que revela que não é no mesmo sentido que se emprega a palavra "direito", num e noutro caso. É por só admitirem o sentido estrito de "direito" que muitos autores negam o caráter jurídico dos ordenamentos não-estatais. 2.2 Direito faculdade Passemos à segunda das acepções fundamentais que enumeramos: o direito-faculdade ou direitopoder. O vocábulo direito, com freqüência, é empregado para designar o poder de uma pessoa individual ou coletiva, em relação a determinado objeto. O direito de usar um imóvel, cobrar uma dívida, propor uma ação são exemplos de direito-faculdade ou direito subjetivo. Nesse caso, também, o direito de legislar ou de punir, de que o Estado é titular, o pátrio-poder do chefe de família etc. Cada um desses direitos é uma prerrogativa ou faculdade de agir. Uma facultas agendi, em oposição ao direito-lei, que é uma norma agendi. E nesse sentido que Meyer define o direito como "o poder moral de fazer, exigir ou possuir alguma coisa"." E Ortolan, como "a G. Gurvitch, Sociologia jurídica, Rio, Kosmos, 1964, cap. II; Le temps présent et l'idée de droit social, Paris, J. Vrin, 1932; F. Geny, Science et technique en droit privé positif, § 19; H. Lévy-Bruhl, Introduction à l'étude du droit (em colaboração), Paris, Ed. Rousseau, 1951, v. 1.°, p. 257 e ss.; G. Del Vecchio, "A propos de Ia conception étatique du droit", in Justice, Droit, État, Sirey, 1938, p. 282 e ss.; Maxime Leroy, Le Code civil et le droit nouveau, Paris; G. Morin, La révolte des faits contre le Code, Paris, Sirey; P. Bonnet, Le droit en retard sur les faits (1930), Paris, Droit et jurisprudence; G. Renard, la theorie de l'institution, Paris, Sirey, 1930. M. E. Meyer, Filosofia del derecho, Ed. Labor, 1937. 38 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 39 faculdade de exigir dos outros uma ação ou inação". Kant, por sua vez, refere-se a este sentido ao definir o direito como "a faculdade de exercer aqueles atos, cuja realização universalizada não impeça a coexistência dos homens"." Esse é também o aspecto focalizado por Ihering ao propor a seguinte definição de direito: "é o interesse protegido pela lei".19 A expressão "direito subjetivo" explica-se e se justifica porque o direito nessa acepção é realmente um poder do sujeito. E uma faculdade reconhecida ao sujeito ou titular do direito. Devemos, entretanto, distinguir duas acepções nitidamente diferentes de direito subjetivo: a) o direito-interesse; b) o direito-função. Muitos direitos são concedidos ou reconhecidos no interesse de seu titular como meios de permitirlhe a satisfação de suas necessidades materiais ou espirituais. E o caso do direito à vida, à integridade física ou à liberdade, o direito de usar um imóvel ou reivindicar uma propriedade. A esse tipo de direito subjetivo dá-se a denominação de direito-interesse. Mas, ao lado do direito-interesse, instituído em benefício de seu titular, há outra categoria de direitos subjetivos, instituídos em benefício de outras pessoas. É o direito-função, como o pátriopoder do chefe de família, que é conferido ao pai no interesse do filho. O mesmo ocorre com o direito de julgar ou de legislar, atribuídos ao juiz ou a legislador, em benefício da coletividade. 2.3 Direito justo A palavra "direito", como dissemos, é ainda suscetível de outra significação, claramente distinta das anteriores, que coloca o direito em outra perspectiva e o relaciona com o conceito de justiça. Tratase do direito na acepção de justo. Dentro dessa acepção, devemos distinguir, também, dois sentidos diferentes. a) Umas vezes "direito", na acepção de justo, designa o bem "devido" por injustiça. Por exemplo, quando dizemos que "o salário De acordo com o pensamento de Kant, o direito tem por finalidade garantir a coexistência das liberdades. Seu princípio fundamental pode ser assim formulado; age segundo uma norma que possa ser praticada universalmente. Por exemplo: é possível erigir o furto em regra universal? Não, porque tornarse-ia impraticável a coexistência entre os homens. Como não é possível esta universalização, o furto é contrário ao direito. Inversamente, o respeito à propriedade é uma norma que pode ser universalizada. O direito de exigir a devolução de um objeto emprestado, o direito de exigir o pagamento do salário etc. são normas que podem ser universalizadas e, por isso, jurídicas. Ihering, Espírito do direito romano, § 70. é direito do trabalhador", a palavra "direito" significa "aquilo que é devido por justiça". b) Outras vezes "justo" significa a "conformidade" com a justiça. Por exemplo: quando digo que "não é direito condenar um anormal", quero dizer não é conforme à justiça. São duas acepções diferentes, se bem que ambas relacionadas com o conceito de justiça. A primeira acepção pode ser denominada `justo objetivo", porque direito, nesse caso, é aquele bem que é devido a uma pessoa por uma exigência da justiça. Nesse sentido o respeito à vida é devido a todo homem, o pagamento é devido ao vendedor, a aposentadoria é devida ao empregado, o imposto é devido ao Estado etc. A esse sentido é que se refere a definição de S. Tomás, segundo a qual "direito é o que é devido a outrem, segundo uma igualdade"." É, também, a essa acepção do direito que se refere o famoso conceito de Ulpiano: "Justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito"." Definição que remonta aos mais antigos estudos sobre o direito e a justiça. Em Aristóteles e Platão, por exemplo, encontramos a mesma definição com pequenas variações. A palavra "direito" é aí empregada no sentido de "justo objetivo". E o bem devido a outrem, segundo uma igualdade. E o objeto da justiça. Acepção fundamental, como veremos, que é retomada hoje por ilustres juristas, como Karl Engisch, Michel Villey e outros.22 A ela corresponde, com exatidão, o vocábulo jus. E significa o que é devido por justiça. É esse o significado da palavra "direito" na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A segunda acepção ligada ao conceito de justiça é, como vimos, a conformidade com a justiça. No exemplo visto - "não é direito condenar um anormal" - direito é sinônimo de justo, mas justo aí significa um qualificativo. Indica a conformidade com as exigências da justiça. (20) S. Tomás, De justitia, II, q. 80, c. (Z' "Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi", "Regras de Ulpiano", livro 1, constante do Digesto, livro 1. "De justitia et jure", fr. 10 pr. Esse texto é reproduzido nas Institutas, de Justiniano, livro 1, tit. 1, "De justitia et jure, principium", em termos quase idênticos: "justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuens". É freqüente traduzir perpetua por permanente, contínua, o que não é rigorosamente certo. Como observa F. Senn, "perpétuo" significa ` o que dura tanto tempo quanto a pessoa. Assim, a virtude da justiça no homem deve durar sua vida inteira" (De Ia Justice et du droit, p. 2, n. 2). (22) Ver Karl Engisch. Introdução ao pensamento jurídico, trad. J. B. Machado, Lisboa, Gulbenkian, 1972; Michel Villey, Seize essais de Philosophie du Droit, cap. li. 40 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Encontramos definições de direito que se referem a esta acepção. Entre outras, podemos citar a de Liberatore: "Direito é tudo o que é reto, na ordem dos costumes",23 onde está claramente indicada a conformidade com regra de conduta. 2.4 Direito-ciência Num plano inteiramente diferente dos anteriores, a palavra direito é, com freqüência, empregada para designar a "ciência do direito". Quando falamos em estudar "direito", formar-se em direito, doutor ou bacharel em direito, método ou objeto de direito, é no sentido de "ciência" que empregamos a palavra. Entre as definições de direito que o consideram sob este prisma, podemos citar o clássico conceito de Celso: "Direito é a arte do bom e do justo" ("jus est ars boni et aequi"), ou a definição de Hermann Post: "Direito é a exposição sistematizada de todos os fenômenos da vida jurídica ea determinação de suas causas" .24 2.5 Direito fato social Finalmente, numa perspectiva distinta das anteriores, a palavra direito é empregada principalmente pelos sociólogos, mas também pelos juristas, no sentido de fato social. El hecho del derecho (O fato do direito) é o título de obra coletiva de Cabral Moncada e outros (Ed. Losada, 1956), na qual Olivecrona estuda "o direito como fato". Ao realizar o estudo de qualquer coletividade, a sociologia distingue diversas espécies de fenômenos sociais. Considera os fatos religiosos, econômicos, culturais e, entre eles, o direito. O direito é, então, considerado um setor da vida social, independentemente de sua acepção como norma, faculdade, ciência ou justo. EJ como setor da vida social, deve ser estudado sociologicamente. E dentro dessa perspectiva que se situa a Sociologia do Direito. Sob esse aspecto, Gurvitch define o direito como "uma tentativa para realizar, num dado meio social, a idéia de justiça, através de um sistema de normas imperativo-atributivas" .25 É essa, também, a perspetiva em que se coloca Tobias Barreto, ao definir o direito como "o conjunto das condições existenciais e evolucionais da sociedade, coativamente asseguradas 26 ou em fórmula CONCEITO DE DIREITO 41 mais atual, o conjunto das condições de existência e desenvolvimento da sociedade, coativamente asseguradas". Na mesma linha está situada a obra de Olivecrona Law as fact, 1980. 2.6 Outras acepções As acepções fundamentais que acabamos de examinar são as que mais interessam ao estudo jurídico. Entretanto, podemos acrescentar ainda outras menos importantes, que são de uso corrente. Assim, a palavra direito é usada, muitas vezes, no sentido de tributo ou taxa, por exemplo, quando se fala em "direitos" alfandegários ou aduaneiros. Direito é ainda empregado com o significado de "reto", no sentido geométrico. Por exemplo, um "segmento direito", isto é, geometricamente reto. É, ainda, usado para indicar uma operação certa: "Este cálculo está direito". Isto é, aritmeticamente certo. Pode-se usar a palavra para designar um "homem direito", no sentido de ter uma conduta moralmente correta. Direito pode significar, finalmente, oposto a esquerdo: lado "direito". Evidentemente, essas últimas acepções não apresentam interesse jurídico. São mencionadas apenas como objetivo de fazer, na medida do possível, uma análise exaustiva das significações do direito, que podem ser assim sintetizadas: ACEPÇÕES DIREITO-NORMA DIREITO-FACULDADE DIREITO-JUSTO DIREITO-CIÊNCIA DIREITO FATO-SOCIAL FUNDAMENTAIS DIREITO POSITIVO DIREITO NATURAL DIREITO ESTATAL DIREITO NÃOESTATAL 1 DIREITO-INTERESSE DIREITO-FUNÇÃO DEVIDO POR JUSTIÇA CONFORME A JUSTIÇA (23) Liberatore, Comp. di Filosofia del Diritto, Pádua, Cedam. X20' In C. Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, § 1.°. G. Gurvitch, Sociologia jurídica, Kosmos, 1946, introd., § V. (26) Introdução ao estudo de Direito, cap. V, em Obras completas de Tobias Barreto, Inst. Nac. do Livro, 1966, Estudo de Filosofia, t. 2, p. 143. Tobias Barreto adota, com modificações, a definição de lhering: "O direito é o conjunto de condições de vida da sociedade, coativamente asseguradas pelo poder público'. Tobias Barreto acrescenta às condições de vida as de desenvolvimento (evolucionais) e dispensa a referência ao poder público. Ambos consideram o direito como fenômeno social, criado pela própria sociedade, para assegurar a sua vida e desenvolvimento. 42 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ACEPÇÕES SECUNDÁRIAS DIREITO COMO TRIBUTO (direitos alfandegários) DIREITO COMO RETO (segmento direito) DIREITO COMO CERTO (cálculo direito) DIREITO COMO CORRETO (homem direito) DIREITO COMO OPOSTO A ESQUERDA (lado direito) 3. Direito-conceito análogo 3.1 Conclusões Do exame que acabamos de fazer decorrem algumas conclusões, que devem se explicitadas: a) a palavra "direito" não designa apenas uma, mas várias realidades distintas; b) em conseqüência, não é possível formular uma definição única do direito; devem ser formuladas diferentes definições, correspondentes às diversas realidades; c) o estudo feito demonstra que o vocábulo "direito" não é unívoco, nem equívoco, mas análogo. 3.2 Analogia Como sabemos, a lógica divide os termos em unívocos, equívocos e análogos. Unívoco é o termo que se aplica a uma única realidade. Exemplo: livro, homem, vegetal. Equívoco é o que se aplica a duas ou mais realidades radicalmente diversas. Exemplo: o termo "lente", aplicado ao professor e ao vidro refrativo. Análogo é o termo que se aplica a diversas realidades que apresentam entre si certa semelhança. O termo análogo é, assim, intermediário entre o unívoco e o equívoco. Exemplo: o vocábulo "direito", que designa a lei, a faculdade, a ciência, o justo, o fato social. Os termos análogos, por sua vez, podem ser classificados em três categorias diferentes, correspondentes às diversas espécies de analogia: a) analogia intrínseca ou de proporção própria; b) analogia extrínseca, de relação ou de atribuição; c) analogia metafórica ou de proporção imprópria ou figurada. 3.2.1 Analogia intrínseca ou de proporção Dá-se a analogia intrínseca, ou de proporção, quando o vocábulo é aplicado a diversas realidades, entre as quais existe uma relação de proporcionalidade. Exemplo: o vocábulo "princípio" aplica-se ao princípio (começo) do dia, ao princípio (início) de uma estrada, aos princípios da ciência, aos princípios morais. Estas diversas acepções são diferentes. "Princípio" não significa a mesma coisa nesses diversos casos. Mas existe entre eles uma proporção que se poderia assim enunciar: os princípios da ciência estão para a ciência, assim como o princípio do dia está para o dia, assim como o princípio da estrada está para a estrada, assim como os princípios morais estão para a conduta. Em todas essas acepções, "princípio" significa aquilo de que alguma coisa, de qualquer forma, depende. Há aí uma analogia de proporção, que é intrínseca, porque o termo "princípio" encerra, em si mesmo, essa analogia. Não se pode dizer, por exemplo, que os fundamentos da ciência tenham mais a natureza de "princípio" do que o começo do dia. Todos são "princípios" em sentido próprio. Todos são aquilo de que alguma coisa, de qualquer forma, depende. Esse aditivo "de qualquer forma" indica normalmente a existência de uma analogia intrínseca. 3.2.2 Analogia extrínseca ou de relação Outra vezes, os termos apresentam outra espécie de analogia: é a chamada analogia extrínseca, de relação ou de atribuição. Realiza-se esta analogia quando o termo se aplica, em sentido direto e próprio, a uma realidade. Mas se aplica, também, por extensão, a outra realidade ou realidades, que mantêm com a anterior relações de dependência, geralmente causais. Neste caso, o primeiro objeto, aquele a que o termo se aplica em sentido direto e próprio, é chamado "analogado principal". E o objeto ou objetos a que o termo se aplica por extensão denominamse "analogados secundários" ou derivados. Exemplo típico de analogia de relação ou extrínseca é o que se dá com o vocábulo "sadio". Esse termo se aplica ao "homem sadio", ao "clima sadio", ao "alimento sadio" e à "cor sadia". Se prestarmos atenção ao significado da palavra "sadio", em suas diversas acepções, verificaremos que o vocábulo não tem a mesma significação em todos os casos. Dá-se aí uma analogia extrínseca ou de relação. Qual dentre essas realidades é aquela que, com propriedade, pode ser denominada sadia? Quem é propriamente sadio? O clima? O alimento? O homem? A cor? Na linguagem comum, o homem é que é sadio. O alimento é chamado sadio, porque é uma das causas do homem sadio. O clima está no mesmo caso. A cor é sadia, porque é efeito ou manifestação da saúde. O vocábulo sadio aplica-se, assim, diretamente ao homem e, por extensão, a outras realidades, que mantêm com ele relações de dependência (causa, efeito ou manifestação do homem sadio). Percebe-se claramente que há diferenças entre a estrutura desta analogia e a que mencionamos no caso anterior. CONCEITO DE DIREITO 43 3.2.3 Analogia metafórica Há, ainda, um terceiro caso de analogia: metafórica, imprópria ou figurada. Nesta espécie de analogia o termo tem uma significação direta e própria, mas se aplica também a outras realidades, em sentido figurado, em virtude de uma proporção imprópria que se estabelece com a significação originária. Está no caso o termo "rei", que se aplica diretamente ao monarca na sociedade política, mas se estende também ao leão, "rei" dos animais, ao "rei" do aço ou do café, em acepção evidentemente metafórica ou figurada. Entre essas significações há uma proporção figurada: o monarca está para o Estado, assim como o leão está para os animais, o rei do aço para os produtores de aço etc. Com essas considerações, podemos passar ao exame do tipo ou tipos de analogia existentes entre as diversas significações do direito. Esse exame nos mostrará casos de analogia de relação, analogia de proporção e até mesmo de analogia metafórica (v. nota 65). Do tema ocupou-se largamente G. Renard, na segunda lição de sua Philosophie de l'institution, dedicada ao estudo do "papel da analogia na ciência jurídica". 4. Aplicação dos princípios da analogia às diversas significações do direito 4.1 Analogia de relação Examinaremos dois casos de analogia de relação: 1. a analogia entre as significações fundamentais do vocábulo "direito"; 2. a analogia existente entre as significações do Direito positivo e Direito natural. 4.1.1 Analogia entre as significações fundamentais do direito. Primado da Lei ou da Justiça? Formalismo jurídico e humanismo jurídico Qual a analogia existente entre as acepções fundamentais do direito? Sabemos que essas acepções fundamentais são o direito-norma, o direito-faculdade, o direitojusto, o direito-ciência e o direito-fato social. Há entre essas diferentes significações uma clara analogia de relação, isto é, o vocábulo "direito" aplica-se de forma principal a uma dessas acepções e estende-se às demais, em virtude das relações reais - e não apenas metafóricas que existem entre essas expressões. Mas qual é o sentido principal? Ou, em termos lógicos, qual o primeiro analogado? CONCEITO DE DIREITO 45 Situa-se aí um dos problemas que divide autores e correntes jurídicas. Para grande número de juristas como Planiol, Ripert, Colin, Capitant, De Ruggiero, Kelsen, Clóvis Beviláqua etc. o direito é, em primeiro lugar, um conjunto Primado de normas, leis ou regras jurídicas, "Direito- do direitonorma" seria o analogado principal. É sob esse norma aspecto que o direito é estudado pela maioria dos autores modernos. "A palavra direito designa o conjunto de leis ou regras jurídicas aplicáveis à atividade dos homens", diz Planiol.27 "O direito é a norma das ações humanas na vida social, estabelecida por uma organização soberana e imposta coativamente à observância de todos", escreve De Ruggiero.28 Na mesma lista, Kelsen define o direito como "um sistema de normas que regulam o comportamento humano"29 e acrescenta: "O direito é a norma primária, que estabelece a sanção".30 Outros preferem ver no "direito-faculdade" ou direito subjetivo o significado fundamental. "O direito considerado na vida real (...) nos aparece como um poder do Primado indivíduo", escreve Savigny.31 Como observa do direito Carlos Campos,32 o Código de Napoleão foi subjetivo construído sobre o conceito do direito subjetivo. Os jurisconsultos romanos fizeram uma teoria sólida com ele. Foi retomado pelos grandes juristas dos séculos XVI e XVII. Sob certo aspecto, está no fundamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos e das demais Declarações de Direitos. Constitui a base de todo o direito privado e o ponto de partida das modernas construções do direito público. E esse, também, o ponto de vista em que se colocam, entre outros, Ihering, ao estudar "a luta pelo direito", Jayme de Altavila, ao pesquisar a Origem dos direitos dos povos,33 assim como o de Kant, Hegel e demais autores para quem o direito é fundamentalmente liberdade. Dessa posição aproxima-se também a doutrina egológica do direito, formulada pelo jurista argentino Carlos Cóssio.34 A conclusão 44 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA PO DIREITO (27) 28) (29) (30) (31) (32) (33) Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit Civil, V. 1, p. 1. R. de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, Saraiva, v. 1, § 2.°. Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, trad. de J. B. Machado, Coimbra, Arménio Amado, 1974, p. 21. Idem, General theory of law and State, 1949, p. 61. Savigny, Sistema del Derecho Romano, v. 1, § 4.°, p. 25. Carlos Campos, Sociologia e filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Revista Forense, 1943, p. 59. Jayme de Altavila, Origem dos direitos dos povos, São Paulo, Melhoramentos, 1964. Carlos Cóssio, La teoria egológica del derecho y el concepto jurídico de libertad, Abeledo Perrot, 1964. 46 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 47 básica da teoria egológica é que "o direito é conduta e não norma", escreve um dos autorizados seguidores da doutrina de Cóssio no Brasil, o professor Machado Neto, da Universidade da Bahia." Para a concepção egológica, o direito não é forma, mas "conduta humana em interferência intersubjetiva" (relacionamento entre sujeitos ou "egos", daí a designação da doutrina "egológica"). E entre as modalidades fundamentais desse relacionamento intersubjetivo que caracteriza o direito está a "faculdade" ao lado da "prestação", do "ilícito" e da "sanção" que com ela se relacionam. A moderna sociologia jurídica considera o direito sob outra perspectiva. "O direito é o fenômeno social por Primado excelência", escreveu H. LévyBruhl, "mais do do direito- que a religião, mais do que a língua, mais do que fato a arte, ele revela a natureza íntima do grupo social social".36 Roscoe Pound define o direito como: "O controle exercido pela aplicação da força de que dispõe uma sociedade politicamente organizada".37 É interessante observar que a tendência ao sociologismo jurídico ` predomina hoje de certa forma nos Estados Unidos e na União Soviética. Nos Estados Unidos essa orientação é representada pela escola da jurisprudência sociológica de Benjamin Cardozo, Roscoe Pound, Gray, Llevelyn e outros. Na antiga URSS o sociologismo era de vinculação marxista; o jurista soviético Stuchka define o direito como "um sistema de relações sociais que corresponde aos interesses da classe dominante e está defendido pela força organizada dessa classe" .38 De outra parte, muitos juristas vêem no direito, em primeiro lugar, uma ciência. "A previsão do que os tribunais Primado decidirão é o que eu entendo por direito", escreveu do direito- Holmes.39 Previsão é conhecimento, estudo, ciên-' ciencia cia. Já Ulpiano definira o direito como "a ciência. do justo e do injusto";40 e Celso como a ars boni) et aequi. Na mesma linha situam-se, em geral, os mestres que consideram naturalmente o direito como disciplina a ser estudada e transmitida às novas gerações. Ao lado das diferentes perspectivas que acabam de ser examinadas coloca-se a dos que vêem no direito, fundamentalmente, o justum, isto é, o "justo-objetivo" Primado ou o "devido por justiça". É essa a concepção do direitotradicional que nos vem do Direito Romano e é justo modernamente reafirmada por ilustres juristas, ou devido como Geny, Villey, Engisch e outros. A função do juiz e do jurista, em suas diversas atividades, consiste sempre em descobrir "o direito", isto é, ` o justo" e assegurá-lo. A lei (lex) não se confunde com o direito (jus). A lei (direito-norma) não é propriamente "o direito", mas uma de suas fontes.` O "direito subjetivo" também não é a rigor o direito, mas o poder de exigi-lo ou o seu reconhecimento. Da mesma forma, o direito-fato social e o direito-ciência são claramente acepções derivadas, vinculadas ao justum.42 A norma ou lei é chamada "direito", porque ela estabelece ou deve estabelecer o que é justo. A faculdade é denominada "direito" porque ela é, de certa forma, o poder de exigir o justo ou o seu reconhecimento. Da mesma forma, a Ciência do Direito é assim chamada porque ela é o conjunto de conhecimentos que tem por objeto o justo e suas manifestações. E o direito como fato social é, também, uma acepção derivada. Ele é o setor da realidade social que tende para a realização da justiça .43 Essa interpretação corresponde à natureza fundamental do direito e ao ensinamento de grandes mestres. "Não é da regra que emana o direito, mas do direito (jus) é que se faz a regra", diz o velho brocardo de Justiniano: "Non ut ex regula jus sumatur, sed ex jure, quod Justiniano est, regula fiat". No mesmo sentido é a lição contida na clássica definição de justiça de Ulpiano: "Vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu direito (jus suum Ulpiano cuique)". Qual o sentido da palavra jus nessa (35) A. L. Machado Neto, Teoria da ciência jurídica, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 157. A revalorização do direito subjetivo na doutrina de Cóssio é salientada por Machado Neto, nos seguintes termos: "Outra parte em que a teoria egológica reforma a teoria pura (de Kelsen) é na revalorização do Direito subjetivo, que o conceito de direito como conduta vem acarretar. A liberdade é, nessa perspectiva, um prius de onde se há de partir" (ob. cit., p. 151). H. Lévy-Bruhl, "Aspectes sociologiques du droit", em Petit bibliothèque sociologique internationale, Sirey, 1955. Roscoe Pound, em La sociologie au XX siècle, Paris, PU, 1947, p. 306. In Kelsen, Teoria comunista del derecho y del estado, B. Aires, Emecé, 1957, p. 95. O. W. Holmes, The path of the law, 1920, p. 173. Ulpiano, Digesto, 1, 1. (36) (41) (42) (37) (38) (43) (39) (40) Sobre a lei como fonte de direito, v. adiante Capítulo 11. Nesse sentido, é esclarecedora a citada definição do direito-fato social, proposta por Gurvitch: "Tentativa para realizar, num dado meio social, a idéia de justiça, através de um sistema de normas". Igualmente esclarecedora é a definição do direito-ciência formulada por Ulpiano: "ciência do justo". E interessante observar que, em grego, o justo objetivo, dikaion, e a norma, pomos, são designados por palavras diferentes. Em latim, ambos podem ser designados pelo termo jus, se bem que, em sentido estrito, jus e lex não se confundem. Em inglês, o vocábulo law indica tanto o "direito" como a "lei". 48 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO definição? É precisamente o justo objetivo, isto é, aquilo que é devido a cada um. Modernamente François Geny conclui seu estudo sobre "a ciência e a técnica no direito privado positivo", com o Geny reconhecimento de que "no fundo de todo o conteúdo do direito, encontra-se, como noção fundamental, a de justo", que inclui em si não apenas preceitos de justiça particular, distributiva ou comutativa, mas também as exigências do bem comum e da justiça social, "com a finalidade de assegurar a ordem essencial à manutenção e ao progresso da sociedade humana" .44 E Engisch, depois de observar que o pensamento jurídico moderno se orienta em primeira linha pela lei, afirma que Engisch ao lidar com a lei percebe-se claramente "algo que está por detrás da lei e que nós nos propomos chamar simplesmente DIREITO" .45 Essa é, também, a lição contemporânea de Bobbio, ao lembrar que a "teoria da justiça" concerne ao fundo do direito e a "teoria do direito-norma" concerne à forma do direito.` De Del Vecchio, ao afirmar que a noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico .47 De Catherin,48 G. Burdeau,49 Lachance,50 Olgiati,51 Dabin,52 Villey 53 e inúmeros outros .54 F. Geny, Science et technique en droit privé positif, v. 1, § 16. Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, trad. de J. B. Machado, Lisboa, Gulbenkian, 1964, p. 308. N. Bobbio, "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", in Archives de Philosophie du Droit, Sirey, 1962, v. 7, n. 8. G. Del Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938, Prefácio. Cathrein ensina que o justo ou jus - o devido a alguém segundo certa igualdade ou proporção - é o direito originário (Recht, Naturrecht und positives Recht, ed. Herber. Trad. espanhola Filosofia del Derecho, II parte, § 1.°). G. Burdeau, nos Archives de Philosophie du Droit et Sociologie juridique (1937, n. 3 e 4, p. 58 a 88), depois de numerar como fatores da norma jurídica: a) princípio afirmado pela regra; b) a obrigação que ela impõe; c) o fim que a justifica; conclui: "A norma não vale por si mesma, mas apenas em consideração a um fim situado fora dela" (p. 66). Lachance dedica o 1.° parágrafo de sua "Análise da noção do Direito" à demonstração de que o direito é um "devido": "Le droit est un du" (Le concept de droit selon Aristote et S. Thomas, liv. II, § 1.°). F. Olgiati, La riduzione del concetto filosofico di diritto al concetto di giustizia, Milão, Giuffrè, 1932. J. Dabin, "La justice est Ia matière naturelle du sistème juridique a plusieurs titres" (Téorie générale du droit, Bruxelas, Bruylant, 1944, n. 253, p. 257). Michel Villey, Seize essais de Philosophie du Droit, Paris, Dalloz, 1969. V. Capítulo 5, n. 8. Nesse sentido, o justo objetivo é a acepção fundamental do direito. Entretanto, no direito moderno, essa noção vem sendo muitas vezes esquecida e substituída pela preeminência do direitonorma. Considera-se, de preferência, não o conteúdo ou matéria do direito, mas seu aspecto formal ou obrigatoriedade. Essa orientação deve ser atribuída à influência do positivismo jurídico e a certo fetichismo pela lei e pelo Orientação contrato. Uma das grandes tendências do direito positivista no século XIX foi a de endeusamento da lei e do contrato, como manifestações da vontade individual. Liga-se essa tendência ao voluntarismo ético e jurídico, cujas raízes, no mundo moderno, vamos encontrar principalmente em Grotius,55 Rousseau,56 e Kant.57 Para esses autores, a vontade subjetiva, e não a realidade objetiva, é o princípio fundamental da moral e do direito. Dentro dessa concepção, a lei, como "vontade" geral, é que tem importância básica. Esse primado da lei ou norma tem recuado diante da realidade jurídica e social. Demonstrou-o, entre outros, Gaston Morin, em dois estudos: A lei e o contrato: a decadência de sua soberania e A revolta do direito contra o Código." O direito não tem seu fundamento último na lei ou no contrato. O direito é fundamentalmente o justo. É o que é "devido" a cada um, indivíduo ou sociedade, segundo um princípio fundamental de igualdade, simples, ou proporcional.` A lei é um instrumento para a realização desse direito. Ela deve servir de guia ao jurista e ser interpretada, sempre, em função de seu objetivo essencial, que é o de assegurar a cada um - indivíduo, Estado ou outras instituições - o direito que lhe é devido: "jus suum cuique tribuere". Essa consideração não diminui a importância da lei. Pelo contrário, a valoriza. Nesse sentido é oportuna de Villey, professor da Faculdade de Direito de Paris: "Se sou juiz e procuro a solução justa, sem ser escravo das leis, tenho duas razões para as levar em conta. Em primeiro lugar, porque elas são o resultado, a realização de longos esforços da doutrina Grotius, H., De jure belli ac pacis, Lausane, 1751. Rousseau, J. J., "Du contrat social", "Discours sur 1'origine et les fondements de l'egalité parmi les hommes" in Oeuvres completes. Kant, especialmente Crítica da razão prática e Metafísica dos costumes. Gaston Morin, La loi et le contrat - La decadence de leur souveraineté, Paris, Alcan, 1927, e La revolte du droit contre le Code, Paris, Sirey, 1945. V. "Características e espécies da justiça", adiante, Segunda Parte, Capítulos 5 a 9 (p. 121 a 290). CONCEITO DE DIREITO 49 Formalismo jurídico Justiça: Humanismo Jurídico (44) (45) (46) (47) (48) (49) (50) (52) (55) (56) (53) (54) (57) (58) (59) 50 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 51 para encontrar as regras do justo. Nossas leis resumem o estado atual da ciência do justo. A esse título elas nos servem de guia. E, de outro lado, já que o meu dever é equilibrar e pesar todos os interesses presentes, não posso esquecer que o interesse comum exige determinações fixas, que a lei procura estabelecer". E acrescenta: "A nossa filosofia do direito não ignora as leis, pelo contrário, demonstra e delimita a sua autoridade".60 No mesmo sentido é a observação de Rodriguez Aguilera: "A lei pode ser justa ou injusta. O mesmo ocorre com a sentença, embora seu destino natural seja sempre a justiça. A dependência entretanto não é necessária. De uma lei injusta pode surgir, na sua aplicação, uma sentença justa, ou que se aproxime da justiça, por haver o juiz superado a letra da lei, mediante uma interpretação orientada pela justiça" .61 4.1.2 Outra analogia: Direito positivo e Direito natural, Passemos a outra aplicação dos princípios da analogia. Ela pode ser feita em relação ao Direito positivo e ao Direito natural. A palavra "direito" não tem a mesma significação quando aplicada à lei natural e à lei positiva. Alguns autores empregam em sentido unívoco posição de Oudot e dos jusnaturalistas de orientação racionalista, que conceituam o, Direito natural como um "direito" no mesmo plano de Direito positivo.? Para estes, como vimos, o Direito natural é um código paralelo aos códigos positivos. Ao lado de cada norma de Direito positivo, teríamos uma de Direito natural. Essa concepção, entretanto, é inadmissível. E, pelo menos em parte, é responsável pelo descrédito em que ficou o Direito natural, em certos setores científicos. Se analisarmos o pensamento de muitos autores que negam o Direito natural, veremos que na realidade eles negam essa concepção de um Direito natural paralelo a Direito positivo. Negam que o Direito natural seja "direito", em sentido unívoco, isto é, no mesmo sentido em que se fala do Direito positivo. E têm razão. Na realidade, esse, Direito natural não existe. E pura imaginação. O Direito natural é constituído não por um conjunto de preceitos paralelos ao Direito positivo, mas pelos princípios fundamentais do Direito positivo. 1601 Michel Villey, "Une definition du droit", in Seize essais de Philosophie da Droit, p. 32. (61) C. Rodriguez Aguillera, La Sentencia, Barcelona, Bosch, 1975, p. 94. A palavra "direito", aplicada a um e a outro desses direitos, tem significação análoga. E a analogia que aí se realiza é a de relação. Em sentido direto e imediato, a palavra direito se aplica ao Direito positivo, à lei positiva. Mas se estende também ao Direito positivo. Entre ambos existe uma relação de dependência, uma relação causal: um é fundamento do outro. Os princípios que constituem o Direito natural são, entre outros: bonum faciendum (o bem deve ser feito), neminem laedere (não lesar a outrem), suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), respeitar a personalidade do próximo, as leis da natureza etc. Qualquer norma do Direito positivo, qualquer artigo do Código Civil, Comercial ou Penal funda-se necessariamente nesses princípios. Mas é evidente que as normas do Direito positivo apresentam uma formulação, estrutura e natureza diferentes dos princípios do Direito natural (v. nota 11 do presente capítulo). Poderíamos dizer, com Aristóteles e S. Tomás, que o Direito natural está para o Direito positivo, assim como os princípios da razão estão para a ordem especulativa. Na ordem especulativa as proposições e os raciocínios científicos também se fundam em certos princípios básicos, que são o fundamento de toda a ciência." 4.2 Analogia intrínseca: Direito estatal e Direito não-estatal Passemos ao exame do direito não-estatal. Direito designa, em geral, as normas elaboradas pelo Estado. Mas se aplica, também, aos ordenamentos existentes no seio de outras comunidades: esportivas, religiosas, econômicas, universitárias etc. Aplica-se, assim, o vocábulo "direito" ao ordenamento jurídicoestatal, elaborado pelo Estado, e, ao mesmo tempo, aos ordenamentos jurídicos elaborados pelos grupos sociais. Fala-se em direito esportivo, direito universitário, direito canônico etc. Estamos, novamente, em face de um problema de importância para a ciência jurídica, decorrente de uma compreensão ambígua do significado do vocábulo "direito", aplicado a esses diversos ordenamentos. Grande parte dessas dificuldades tem origem no fato de se considerar, no caso, o termo "direito" unívoco. (62) Sobre os primeiros princípios na ordem especulativa e na ordem prática v. André Franco Montoro, Os princípios fundamentais do método no direito, Martins, 1942, § 16 e ss. "Praecepta legis naturae hoc modo se habent ad rationem practicam sicut principia prima demonstrationum se habent ad rationem speculativam: utraque sunta quaedam principia per se nota" (S. Tomás, 1, 11, q. 94, a. 2). Sobre a doutrina clássica do Direito natural, ver Capítulo 9, n. 5 (p. 257). 52 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 53 Muitos autores negam o Direito não-estatal, porque este não tem a mesma estrutura, a mesma natureza e a mesma força do Direito estatal., O estatuto de uma universidade, por exemplo, não pode ser chamado "direito", no mesmo sentido em que a Constituição ou o Código Civil sã designados como partes do "direito" nacional. O mesmo se pode dizer d Direito esportivo, do Direito estatuário e do Direito canônico. Na realidade, estamos em presença de mais um caso de analogia O vocábulo "direito" não significa a mesma coisa, nos diverso exemplos mencionados, mas apresenta significação analógica. Qual o tipo de analogia que aí se realiza? A analogia existente no caso é intrínseca ou de proporção. E pod ser enunciada da seguinte forma: o Direito estatal está para o Estado assim como o Direito universitário está para a universidade, assi como o Direito esportivo está para a coletividade esportiva; ou Direito religioso, para a comunidade religiosa. Em todos esses casos, direito significa o ordenamento que reg a vida dessas coletividades. No caso do Direito estatal, esse ordenamento apresenta-se mai técnico, é realizado através de normas formuladas com certa solenidad e garantidas pela força coercitiva do Estado. No caso dos demal ordenamentos, as normas apresentam características diferentes, m constituem, igualmente, regras sociais obrigatórias, com eficácia muit vezes maior que a das normas estatais." Em virtude de sua importância menor para a ciência jurídic dispensamo-nos de examinar outras aplicações de analogia às demai acepções do direito." Ao final desse estudo podemos formular as seguintes conclusõe a) o direito pode ser considerado com Conclusões norma, como faculdade, como justo, como ciênci ou como fato social; b) essas diferentes perspectivas revelam o caráter analógico conceito de direito; V. Gurvitch, "Dans 'L'idée du droit social', nous avons différencié le dr social pur et indépendant, équivalent ou supérireur au droit étatique; le dr social pur, mais soumis à Ia tutelle do droit de 1'Etat et range dans le dr privé; et le droit social annexé par 1'État et élevé au rang de droit publi (in Le temps present et l'idée du droit social, Avant propos, p. 10). Poder-se-ia perguntar se, entre as acepções do direito, existe algum caso de analo metafórica. A resposta é afirmativa. E essa a analogia existente entre "direito", sentido jurídico, e "direito", no sentido geométrico (segmento "direito", ângul "direito"). Pode-se dizer que o direito jurídico está para a ordem social, assim com o direito geométrico está para a ordem geométrica. Ambos significam a conformi dade com uma regra: com a regra ou norma social, no primeiro caso; com a reg ou régua geométrica, no segundo. O mesmo ocorre com a significação aritméti (cálculo "direito"), moral (homem "direito") e acepções semelhantes. c) muitos autores modernos (Planiol, Kelsen) utilizam, de preferência, o vocábulo "direito" para indicar o direito-norma;" d) outros preferem ver no direito, em primeiro lugar, o direitofaculdade (Cóssio), o direitofato social (Lévy-Bruhl) ou o direitociência (Holmes); e) a doutrina clássica e muitos juristas contemporâneos (Villey, Engisch) consideram que o direitojusto (o que é devido a uma pessoa ou instituição) é o significado fundamental do direito; nesse sentido, direito é, fundamentalmente, o "devido por justiça". Essas diferentes posições não são contraditórias. Representam pontos de vista sobre aspectos diferentes de um mesmo objeto. Mas revelam, muitas vezes, a orientação doutrinária ou filosófica de cada autor e de sua época. Hoje, a trágica experiência dos Estados totalitários e dos regimes de força, ao lado de uma reflexão mais atenta sobre o direito vivo - presente nas sentenças, nas decisões administrativas e nos demais atos jurídicos - tem levado grandes setores do atual pensamento jurídico a reconhecer que o sentido fundamental do direito, em qualquer de seus aspectos, consiste sempre em estar a serviço da justiça, isto é, em assegurar a cada um aquilo que lhe é devido, segundo uma relação proporcional, fundada na igual dignidade de todos os homens. Nesse sentido, podemos aplicar a qualquer dos aspectos do direito a observação de Gurvitch:66 as normas jurídicas podem ser mais ou menos perfeitas, mas não serão "direito" se não estiverem orientadas no sentido da realização da justiça. Presente em todos os momentos da existência do direito, a justiça se encontra em todas as leis, mas não se esgota em nenhuma. ó7 5. Outras formulações 5.1 Conceito de direito João Mendes (de Almeida Júnior), Direito judiciário brasileiro, Freitas Bastos, 1940, p. 2 e ss. Nós concebemos o direito como atributo da pessoa, como fenômeno na vida social, como norma de agir ou lei. "Le droit est dans le genre 'rélation'. Cherchons à quelle espéce de rélation il peut appartenir ... Le droit est une rélation d'égalité fondée sur 1'equivalence des quantités... II va de soi que Ia quantité dom il s'agit dans de droit est morales: et le rapport qui lui fait suite est un rapport d'égalité morale" (Lachance, Le concept de droit en Aristote et S. Thomas, liv. II, § III, p. 281 e ss.). "Jus, sive justum, est aliquod opus adequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modum" (S. Tomás, Suma, II, q. 57, a 2). G. Gurvitch, Sociologia jurídica, "Introdução". Del Vecchio, Justice, Droit, Etat, § 14. (63) (64) (65) (66) (67) 54 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Como atributo da pessoa, o direito é a faculdade de agir moralmente inviolável. Neste sentido chama-se Direito subjetivo porque é considerado como "atributo de um sujeito" - que é pessoa. Pessoa é uma substância individual de natureza racional, a quem o direito é atribuído como uma faculdade de agir, cuja atividade pode e deve ser sancionada e garantida pela força do Estado, que é o organismo do corpo social. Como fenômeno, isto é, tal como nos aparece no mundo sensível, o direito é uma relação da vida social. Nesse sentido, chama-se Direito objetivo material porque o direito é objeto da nossa percepção com todas as notas sensíveis, isto é, percebemos o direito como uma relação da vida, em que aparece um sujeito, um termo, uma matéria ou objeto, e um fundamento ou título. Sujeito, por excelência chamado "sujeito ativo", como já vimos, é a pessoa a quem se atribui o direito; Termo, também chamado "sujeito passivo", é a pessoa obrigada; matéria ou Objeto é a coisa sobre que recai o direito; fundamento ou Título é o fato que, considerado na ordem moral, produz, no sujeito, o direito e, no termo, a obrigação. O direito é concebido também sob um terceiro aspecto, isto é, como norma de agir ou lei. Todos os efeitos dos títulos de direito são reconhecidos e definidos pela soberania nacional, por meio da lei. É o chamado Direito objetivo formal, porque, nesse sentido, o direito é objeto da nossa percepção como forma genérica e obrigatória da ordem social. A lei, tornada assim positiva, divide-se em lei civil, lei comercial, lei criminal. As leis, determinando os efeitos dos fatos jurídicos em espécie, têm de ser aplicadas a fatos individuados. Vamos, pois, contemplar o modo e a forma de aplicar a lei aos fenômenos jurídicos da vida, quer nas relações extrajudiciais, estipuladas entre os indivíduos, quer nas relações litigiosas, que os indivíduos sujeitam ao juízo do Poder Judiciário. 5.2 Uma concepção sociológica do direito H. Lévy-Bruhl, "Les sources du droit. Les Méthodes. Les Instruments du travail", in Introduction a 1'étude du droit, em colaboração com outros professores da Faculdade de Direito de Paris, Paris, ed. Rousseau, 1951, 1.° v., p. 253. Minha concepção de direito é decididamente sociológica. O direito não existe a não ser para os homens vivendo em sociedade, e não se pode conceber uma sociedade humana em que não haja ordem jurídica, mesmo em se tratando de um estado rudimentar. Isto se exprime em latim pelo adágio conhecido Ubi societasr ibi jus (Onde há sociedade, há direito). Insistamos um momento sobre esta idéia: É exato dizer que as sociedade&, arcaicas e rudimentares, que conhecemos pela etnografia ou pela tradição, têm, na verdade, instituições jurídicas? Alguns o contestam. Todos sabem que, nes estágio de civilização, as instituições são em grande parte indiferenciadas mergulham numa atmosfera mística. Mas o fato de se apresentarem sob um aspec sobrenatural não retira das regras sociais o seu caráter jurídico, seja qual for importância do processo de secularização de que elas serão objeto. O seu traÇ essencial é a obrigação que a sociedade impõe a seus membros. E é neste element obrigatório que consiste, em última análise, a natureza própria do direito. Tod sociedade, ainda que seja primitiva, comporta pois uma ordem jurídica. Isto é tão verdadeiro que se pode, na minha opinião, inferir da existência de instituições jurídicas a existência de uma sociedade humana. E, invertendo os termos da equação que acabo de citar, afirmar com igual certeza Ubi jus, ibi societas (Onde há direito, há sociedade). As sociedades não são puras construções do espírito. Elas possuem bases naturais solidamente estabelecidas, das quais as mais caraterísticas são as instituições jurídicas. Onde instituições deste gênero existem pode-se tranqüilamente afirmar que há um vínculo entre os homens. E assim que as organizações internacionais, que vemos surgir de todas as partes ao redor de nós e das quais uma das mais significativas foi, depois da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg, que julgou e condenou os principais criminosos de guerra, são igualmente manifestações irrecusáveis da existência de uma sociedade humana, à qual talvez falte apenas tomar consciência de si mesma. É certo que estas primeiras aproximações não nos esclarecem muito sobre a natureza do direito. Limitam-se a nos indicar o quadro em que se desenvolvem instituições jurídicas. Para precisar o que elas são, eu me contentarei com breves indicações. Proponho a seguinte definição: "O Direito é um conjunto de regras obrigatórias, que determinam as relações sociais, tal como a consciência coletiva do grupo as representa a cada momento". Esta definição exigiria longas explicações, porque ela se refere a noções como "consciência de grupo" ou "representações coletivas", que eu considero pessoalmente como definitivamente estabelecidas pela sociologia contemporânea, mas que ainda são discutidas. Peço aos leitores que as aceitem, ao menos como hipóteses de trabalho, que serão confirmadas pela seqüência de minhas considerações. Chamo a atenção para as últimas palavras da definição que propus, em que declaro que o direito é tal como a consciência coletiva do grupo, representa as relações sociais "a cada momento". Essa precisão é da mais alta importância e requer algumas explicações. O meio social não pode ser concebido como fixo e imóvel. Pelo contrário, ele está em transformação perpétua. Submetido a influências de toda espécie, ele é essencialmente mutável. Por definição, um grupo é diferente hoje do que foi ontem e do que será amanhã. Antes de mais nada, seus elementos constituintes - quero dizer os homens e as mulheres que o compõem não serão mais os mesmos: alguns terão desaparecido, outros terão aparecido. Mas, até mesmo supondo que sejam as mesmas pessoas físicas, os seus sentimentos e pensamentos terão sofrido necessariamente algumas mudanças. O direito, que é a expressão destes pensamentos e destes sentimentos, está, portanto, ele também, submetido a uma transformação perpétua. Se nos compenetrarmos desta verdade incontestável, estaremos imediatamente em presença de um dos problemas mais importantes do direito. Este, acabamos de ver, está perpetuamente em mudança. Mas, por outro lado, esta mobilidade é, em larga medida, incompatível com as exigências da vida social. Os homens têm necessidade de saber como se comportar uns em relação aos outros, mas como saberão, se as regras imperativas a que eles devem ser submetidos variam de um momento para o outro? Sem dúvida eles têm a intuição de que essas regras não lhes são estranhas, mas emanam deles próprios - e é essa, aliás, a razão profunda do adágio, segundo o qual "presume-se que ninguém ignora a lei". Mas este sentimento geral e vago não basta para guiar os homens no seu comportamento cotidiano. As regras de direito devem ter um mínimo de precisão e de rigidez indispensável à segurança das relações sociais. Elas o adquirem pelo fato de se expressarem em palavras e, nas sociedades modernas, através de fórmula escrita. Mas daí surge um inevitável conflito entre o caráter estático das normas e o dinamismo da vida. E este conflito dá ao direito, que parece ao profano tão frio e austero, um aspecto dramático e, algumas vezes, até mesmo patético. É CONCEITO DE DIREITO 55 56 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 57 apaixonante acompanhar o esforço dos homens para alcançar a justiça, através de fórmulas que, por definição, não poderão realizar plenamente. Ao mesmo tempo que sociológica, a concepção do direito a que me filio é realista. E essa palavra tem para mim dois sentidos precisos. A atitude realista consiste em considerar as regras jurídicas como fatos, ou mesmo como coisas. Esta atitude se impõe a quem se preocupa em estudar o direito cientificamente, pois a ciência do direito não é uma ciência normativa (expressão que contém em si uma contradição), mas uma ciência das normas, o que é completamente diferente. Ela se impõe também a todo jurista que, elevando-se acima da pura técnica, dirige suas reflexões para o direito. Ela permite eliminar, como destituídas de significação, os falsos problemas como o de procurar o fim do direito. O direito não tem finalidade, como a religião ou a arte. Como elas, e talvez com mais intensidade, ele exprime a vontade e as aspirações eminen temente mutáveis do corpo social. De outra parte este realismo não deve ser confundido com um positivismo estreito. Ele procura, ao contrário, atingir todos os fenômenos jurídicos, mesmo os que não estejam oficialmente catalogados como tal. Ele atribui uma importância apenas relativa aos critérios formais. Por isso eu não hesito em considerar como regras de direito as prescrições obrigatórias observadas de fato e em eliminar as regras que existem apenas no papel, convencido de que apenas um esforço deste gênero permite apreender a realidade jurídica. 5.3 Justo, conteúdo essencial da norma jurídica François Geny, Science et technique en droit pri positif, 1.° v., n.16, p. 49. Na própria noção do conteúdo do direito, encontramos um elemento específico, que é tirado da experiência. Tal elemento decorre da finalidade de toda organização jurídica, que não: é outra senão o justo. As regras do direito visam necessariamente, e, segundo penso, exclusivamente, a realizar a justiça que nós concebemos sob a forma de uma idéi.., a idéia do `justo'. Para especificar o direito segundo seu conteúdo próprio, não podemos n, contentar com a observação de que ele só impõe suas regras aos homens em su. relações recíprocas e não prescreve nada ao homem em relação a si mesmo o em relação à divindade. Não há aí mais do que uma diferença quantitativa e não qualitativa, em relação à moral e à religião. Pois se elas ampliassem a área dos deveres que impõe nem por isso entrariam na esfera do Direito. E, da mesma forma, essa pretendi especificação não separaria o domínio do direito do campo dos costum Ficaremos, também, longe de atingir o fundo das coisas, se aceitarmos a definiç: célebre de Jellinek, de que direito é ` o mínimo ético" (das ethische minimum ainda mesmo que acrescentemos com este jurisconsulto que o direito tende a mantum dado estado social e que ele consiste na realização, pela vontade humana, d. condições de existência da sociedade. No fundo, o direito não encontra seu conteúdo próprio e específico, sen:' no conceito de "justo", noção primária irredutível e indefinível que impli essencialmente não apenas os preceitos elementares de não fazer mal a ningué (neminem laedere) e dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), mas pensamento mais profundo de um equilíbrio a estabelecer entre os interesses e conflito, em vista a assegurar a ordem essencial à conservação e ao progresso sociedade humana. Ora, essa noção se distingue facilmente tanto das noções de "belo" e do "verdadeiro" que correspondem a conceitos totalmente diferentes como, ainda, das noções de "divino" e de "bem", que sugerem as regras da religião ou da moral. Ela é talvez mais dificilmente separável da idéia de "utilidade", que, inspirando completamente as regras dos costumes, parece intervir também na realização da idéia de justiça, ao dirigir a avaliação recíproca dos interesses, que o direito tem por missão conciliar. Para falar claramente, quando consideramos o direito, nós incluímos a "utilidade" na "justiça", no sentido de que ligamos a um ideal superior o princípio de solução dos conflitos de interesse. E parece preferível, se quisermos manter este ideal em sua pura integridade, deixar à idéia de `justo' o privilégio de preencher, com exclusividade, o conteúdo de direito. 5.4 O Direito e o materialismo histórico e dialético Karl Marx, Prefácio à Critica da economia política. O primeiro trabalho que empreendi para resolver as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Minhas pesquisas me conduziram à conclusão de que as relações jurídicas, assim como as formas de Estado, não podem ser compreendidas, nem por elas próprias, nem pela suposta evolução geral do espírito humano, mas que elas têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais da existência, que Hegel, a exemplo dos ingleses • dos franceses do século XVIII, abrange no seu todo sob o nome de "sociedade civil"; mas que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política. O resultado a que cheguei e que, uma vez adquirido, serviu-me de fio condutor nos meus estudos pode brevemente ser formulado assim: Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a certo grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se forma uma superestrutura jurídica e política • à qual correspondem formas de consciência social determinadas. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina • seu ser; mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência. Em determinado estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de Propriedade no interior das quais elas estavam se desenvolvendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações tornamse entraves. Inicia-se, então, uma época de revolução social. A mudança na base econômica subverte, mais ou menos lentamente, toda a enorme superestrutura. Quando se consideram tais transformações, deve-se sempre distinguir entre a transformação material das condições de produção econômica, que se pode constatar fielmente por meio das ciências da natureza, e as formas jurídicas, Políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, as formas ideológicas, através das quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim. 58 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE DIREITO 59 Assim como não se julga t--3m indivíduo pela idéia que ele faz de si mesmo, não se poderá julgar uma época -de mudança profunda pelo conhecimento que ela tenha de si própria; é precisoao contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção... A grande idéia básica é a -de que o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos, em que as coisas em aparência estáveis tanto como os seus reflexos intelectuais em nossa mente, as idéias, passam por urna transformação ininterrupta de vir-a-ser e de superação, em que, finalmente, =a despeito de todos os acasos aparentes e todos os retornos momentâneos para trás, um desenvolvimento progressivo termina acontecendo. Esta grande idéia ffundamental penetrou, notadamente desde Hegel, tão profundamente na consciência comum que ela não encontra sob esta forma geral quase mais nenhuma contradição. Mas reconhecê-la em frases e aplicá-la na realidade, a cada domínio subnYetido a investigação, são coisas diferentes... Não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado diante da filosofia dialética. Ela mostra a caducidade de todas as coisas e em todas as coisas nada mais existe para ela que o processo ininterrupto de vir-a-ser e do transitório, da ascensão sem fim do inferior ao superior, do qual ela própria não é mais do que o reflexo dentro da mente pensante. 5.5 Concepção quântica dc direito Goffredo Telles Júnior, O Direito quântico, Ensaio sobre o fundamento da Ordem Jurídica, Max Limonad, 1971, p. 9-10, 284-286. O advento do ser humano se prende à evolução da matéria cósmica. E seu comportamento é o requinte a qule chegou o movimento que anima, desde sempre, todas as coisas do universo. O Mundo Ético, dentro doo qual o Direito se situa, não é um mundo de natureza especial, mas um estágio da natureza única. Nas propriedades ondulatóri as submersas, das partículas elementares da matéria, encontram-se as raízes do movimento universal, as primeiras manifestações de extraordinárias potências, cuja plena atualização se observa no comportamento dos seres muito evoluídos, dos seres extremamente complexos, entre os quais avulta o ser humano. A revelação científica de como se comportam as partículas no âmago da matéria e as moléculas dentro de célula invalida conceitos clássicos, que pareciam: definitivos, sobre a divisão do universo em Mundo Físico e Mundo Etico. A unidade da Substâncias Universal, que é um princípio filósofico de civilizações antiqüíssimas, hoje se patenteia nos laboratórios da Física Moderna. Este livro é uma singela demonstração de que a ordenação jurídica é a própria ordenação universal: é a ordenaação universal no setor humano; a ordenação da natureza única, no mundo em que é promovida a ordenação cultural. A Teoria Quântica do Direi to, o Quantismo Jurídico, é a tese de que o Direito se insere na harmonia do universo e, ao mesmo tempo, dela emerge, como requintada elaboração do mais evoluído dos seres. (... ) Uma. relação jurídica é sempre uma interação "quântica". Em cada relação jurídica, movimentos comedidos de uns propiciam movimentos comedidos de outros. Esses movimentos são comedidos em razão de dois fatores. Primeiro, porque são, somente, os movimentos autorizados pelas normas jurídicas. São, apenas, os movimentos produzidos por quem tem o Direito Subjetivo de produzi-los. Segundo, porque em cada relação jurídica direitos subjetivos de uns e de outros se confrontam e, depois, se compõem, limitando-se reciprocamente, a fim de que deles resultem movimentos convenientes para uns e outros. As interações, nas relações jurídicas, são "quânticas", porque as ações correlatas, de que elas se constituem, não são quaisquer ações, mas, precisamente, as ações que as normas jurídicas autorizam e "quantificam". O Direito Objetivo é a ordenação de determinadas espécies de interações humanas. É a ordenação que quantifica a liberação das energias humanas, para assegurar o equilíbrio das forças, e para garantir que a cada direito corresponda uma obrigação. É a ordenação que delimita a liberação da energia, nos "campos" dos homens, para que a sociedade seja efetivamente o que ela precisa ser, isto é, um "meio" a serviço dos "fins" humanos. Pelo prisma do Direito, os homens são partículas delimitadas de energia. São objetos quânticos ou quanta. As interações dos homens - dos homens considerados como quanta (quantidades discretas de energia) - são regulamentadas por uma "ordenação quântica". O Direito é a ordenação quântica das sociedades humanas. Mas, em matéria de ordenação, por meio do Direito, tudo é possível. Assim como a proteína reguladora deve ser considerada como um produto especializado em engineering molecular, assim também o Direito deve ser considerado como um produto de uma inteligência especializada em engineering social. Assim como nenhuma imposição química decide da atuação das referidas proteínas, assim também nenhuma imposição absoluta determina o Direito. Assim como essas proteínas se dirigem com autonomia, em conformidade com os interesses fisiológicos da célula, também o Direito, livre de imposições "absolutas", se pode dirigir pelos interesses reais da sociedade, de acordo com os sistemas de referência efetivamente vigorantes. O direito não pode se sujeitar a não ser aos fins que a sociedade almeja. A Ciência do Direito não anunciará jamais que um homem, ou um determinado grupo de homens, poderá desta ou daquela maneira, como a Física não pode, prever o percurso que um eléctron ou um grupo de eléctrons irá fazer. A Ciência do Direito dirá, isto sim, que não sabe como um homem, ou um determinado grupo de homens, irá proceder, mas que esse homem, ou esse grupo de homens, tem mais probabilidade de proceder de maneira X, do que da maneira Y. A maneira X de proceder é a que é mais conforme ao sistema ético de referência, dentro do qual age esse homem ou esse grupo de homens. É a maneira de proceder que o Direito Objetivo deve preconizar. As leis humanas são, portanto, leis de probabilidade, como as demais leis da Sociedade Cósmica. A ordenação jurídica é a própria ordenação universal. É a ordenação universal no setor humano. 6. Bibliografia ALTAVILA, J. Origem dos direitos dos povos. São Paulo : Melhoramentos, 1964. BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. 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A classificação de Aristóteles e suas modificações: 4.1 A ciência teórica: 4.1.1 Ciências físicas ou naturais; 4.1.2 Ciências culturais; 4.1.3 Ciências de tipo matemático; 4.1.4 Ciências de tipo metafísico; 4.2 Ciência prática ou normativa: 4.2.1 As ciências morais, humanas ou ativas; 4.2.2 Ciências artísticas e técnicas; 4.3 Conclusões - 5. Outras formulações: 5.1 "Direito e ordem", E. Bodenheimer; 5.2 "Ciências humanas e ciências naturais", W. Dilthey; 5.3 "Ciências especulativas e operativas", L. Van Acker; 5.4 "Ciência normativa, expressão contraditória", H. LévyBruhl - 6. Bibliografia, 1. O Direito como ciência Como vimos, o vocábulo "direito", em uma de sua acepções fundamentais, designa a "ciência do direito" "ciência jurídica", ou "jurisprudência".' Nesse sentido, Justiniano definiu o direito como "a ciência do justo e do injusto";' Leibniz, como "a ciência das ações enquanto justas ou injustas",' e Hermann Post, como "a exposição sistematizada dos fenômenos da vida jurídica e a determinação de suas causas", (1) O termo `jurisprudência" tem, na linguagem jurídica, duas acepções diferentes. Pode significar: a) "ciência do Direito", como ocorre no texto de Justiniano acima citado; foi o sentido clássico do vocábulo e é, ainda hoje, de uso freqüente nos autores de língua inglesa; b) a decisão constante dos tribunais em determinada matéria; nesse sentido, falamos em "jurisprudência" do Supremo Tribunal, dos Tribunais do Trabalho etc. "Jurisprudentia est justi atque injusti scientia", Institutas, livro 1, tít. 1, § 1.°. "Jurisprudentia est scientia actionum quatenus justae vel injustae dicuntur", Leibniz. Nova methodus discendae docendaeque jurisprudentia, p. 11, § 14. Essa colocação levanta naturalmente um problema fundamental: que espécie de ciência é o direito? Ciência puramente teórica, pois "a moral e o direito não se podem dizer ciências práticas, aplicadas ou normativas Ciência pela simples razão de que não há nem pode haver teórica ciências práticas, aplicadas ou normativas",4 como ou prática diz Pedro Lessa? Ciência prática ou "arte do bom e do justo", "ars boni et aequi",5 conforme a elegante definição de Celso? Ou, ainda, "ciência especulativa (ou teórica), quanto ao modo de saber, e prática, quanto ao fim",6 como afirma João Mendes? E, em outro plano, ciência natural, como proclama Pontes de Miranda' e, em geral, os autores de inspiração Ciência positivista? Ciência estritamente formal, tal como natural, a define a Teoria Pura do Direito, de Kelsen? Ou formal ciência cultural, como vem sendo afirmado pelas ou cultural principais direções s do pensamento jurídico con temporâneo? Essas interrogações nos levam a considerar o problema da classificação das ciências, na formulação de alguns pensadores mais representativos. 2. Classificação das ciências de Augusto Cocote e de Dilthey 2.1 É conhecida a classificação das ciências proposta por Augusto Cocote (1798-1857), na II lição de seu Curso de Filosofia Positiva: Pedro Lessa, Estudos de Philosophia do Direito, Ed. Jornal do Comércio, 1912, p. 75. (5' Digesto, 1, 1, 1, 1, pr. (6) João Mendes de Almeida Júnior, Direito Judiciário Brasileiro, São Paulo, Freitas Bastos, tít. 1, cap. 1. "' "Para ser ciência, o direito tem de ser natural, porque todas o são", Pontes de Miranda, Sistema da ciência positiva do direito, v. 2, p. 28. V. Recaséns Siches, Direcciones contemporâneas del pensamiento jurídico, Barcelona, Labor, 1936; G. Radbruch, Filosofia do Direito, Saraiva, 1940, especialmente o Prefácio de Cabral Moncada; Miguel Reale, Filosofia do direito, Saraiva, 1969; Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do direito, Saraiva, 1969; A. Torré, lntroducción al derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957; G. Dei Vecchio, Filosofia del Diritto, Milão, Giuffrè, 1946; Carlos Cóssio, Panorama de Ia teoría egológica del Derecho, Buenos Aires, 1949. O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 63 3. Física 4. Química 5. Biologia 6. Sociologia O critério dessa classificação é a complexidade crescente e a generalidade decrescente de cada ciência. A matemática é a menos complexa, porque se ocupa apenas com as relações de quantidade. É, ao mesmo tempo, a mais geral, porque pode ser aplicada a todas as espécies de fenômenos. A mecânica universal é mais complexa do que a matemática, porque tem por objeto o estudo do "movimento" e suas relações de "quantidade". É, ao mesmo tempo, menos geral do que a matemática, porque só se ocupa dos fenômenos em que há movimento. Da mesma forma, a física é ainda mais complexa porque seu objeto inclui "fenômeno físicos", como a luz, o som, o calor, além de "movimento" e de "quantidade". Mas é menos geral ou abrangente, porque seu campo de estudo se limita ao mundo dos fenômenos físicos. A química se ocupa de fenômenos que são ainda mais complexos: os fenômenos químicos, que incluem "fenômenos físicos", "movimento" e "quantidades". Mas seu campo é menor. Limita-se ao mundo dos fenômenos químicos. A biologia é ainda mais complexa, porque os fenômenos biológicos incluem aspectos "químicos", "físicos", "mecânicos" e "quantitativos". É, ao mesmo tempo, menos geral, porque se estende apenas aos seres vivos. E, finalmente, a sociologia é a mais complexa das ciências, pois o fato social inclui, de certa forma, fatos biológicos, conseqüentemente, fenômenos químicos, físicos, mecânicos e relações matemáticas. E é, ao mesmo tempo, a menos geral, pois só se aplica à vida social. 2.2 Modernamente generaliza-se o emprego de outra classificação, inspirada na divisão proposta por Ampère (1775-1836) e desenvolvida por Dilthey (1833- Classificação 1911). Distingue Dilthey 9 duas espécies fundamentais de ciências: 1. ciências da natureza ("Naturwissenschaften"); v' W. Dilthey, Introduction à l'étude des sciences humaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1942, livro 1.°. 1. Matemática 2. Astronomia (Mecânica universal) de Dilthey I ItODUÇpO A CIÊNCIA Do DIREITO e denomina 64 culturais" , o espírito ("Ge1stswisse ' nschoute"Ciências ê h2 ciências d «ciências humanas referentemente icas, que consideram das P em: etivo ou psicológ subdivididas do espírito subjetivo, o espírito humano a) ciências no próprio sujeito; culturais frito humano etivo, que consideram ciências o espírito es frito obj e constituem o direito. b) ciências do P culturais sociais, inclusive ológicas têm etos ou Produtos morais, cosm g nos obj ditas: históricas, naturais ou propriamente e natureza, ciências por objeto ° As ciências da físico. têm P o mundo humanas ou culturais, considerado, no por objeto do espírito, do espírito, roduto das ações As ciências ento, da cultura ou e social, P mundo do pensam histórica elo homem de em ou na realidade transformada P um diferença próprio homem natureza corresponde das ciências Cultura é a «explicação ,, no caso humanas. diversidade de A natureza A essa de cada ciência: culturais. " métodos no estudo compreensão " no caso das ciências ondem compreende", diz Dilthey• corresp Dilthey naturais; cultura Seto Comte e de a us se eXAsca' ões de Aug físico-mate classificaç diferentes. lano ções filosóficass as ciências ao pdireção naturalis concep todaa duas reduzindo ti icamente a natural ou físico A de Comte, representa P do tipo e a precisão mático, com ° rigor ta Todas as ciências são nificativo . Naturalismo e devem ser estudadas E sig ao de matemáticos. Classifica dos métodos aç e Culturalismo em sentido estrito, a sociologia, sociologia, e da física, natural, como icá , temática ísico,física biolog além de m ente ciências de ti a°biologia, pQ °,física celeste". Comte inclui som ,física social", ão . stronomia, Ou ele denomina ,eaa lassificaç , direito nessa considerad que ,físico-4 do química ou da ciência ia ou física socipa ciênci Qual o lugar sociolog a qual seriam artes a e5, ente, dentro da eral, ia etc. 6, Evidentem a ciência social g e, ogia a econoin natur P fenômeno a por Comte com° olítica, 110. Ia do direito, a ciência P o direito é considerado da natureza. físco erspeCtiva, demais fenômenos menos dessa p dos feno vinc semelhante natureza e estrutura. filosófica se ou físico, mesma ianda cuja posção r, jurídico e da M diz pontes de naturais,10 ositivista. Jacinto, 1922, ao naturalismo P positiva do Direito, atmosfér Sistema de Ciência onde há espaço .n uand como' 26)• Q direito, oo» pontes de Miranda, o social há o ocupam (P• o `nos 26. "Onde há espaç gasosos que se não ° é 2, p. sólidos, liqurdOS °U certo ritmo, que, corgos cristaliza em p oliedros, ha o ele"' (P• 84). mineral deve ser alvo de vivo natural com direito, O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 65 De outra parte, a classificação de Dilthey representa a direção culturalista, que se recusa a reduzir o Direito, a História, a Pedagogia e as demais ciências humanas ou "ciências da cultura" à categoria de "ciências físicas ou naturais". "O humano - diz Recasens Siches - a cuja área pertencem os fenômenos sociais, constitui um mundo completamente diverso do reino da natureza física e biológica, embora se encontre apoiado e inserido nesta. O humano não pode ser captado pela pura categoria da causalidade física, nem reduzido a mera expressão quantitativa, pois, além dos elementos apreensíveis por tais processos, o fato social tem algo que escapa a estes métodos: possui sentido ou significação"." Dentro dessa perspectiva, o direito se situa evidentemente entre as ciências humanas. Mas há outros aspectos do problema. As ciências físico-matemáticas e as culturais não esgotam o quadro dos conhecimentos humanos. Em sentido amplo, além das ciências do "ser", existem ciências do "dever ser". Ao lado das ciências do simples "conhecer", existem ciências do "agir", ciências do "fazer", ciências "artísticas", ciências "técnicas", ciências "normativas" etc., o que nos leva a uma pesquisa mais ampla sobre os quadros da ciência. Se quisermos, numa perspectiva mais ampla, situar o direito conjunto dos conhecimentos humanos e fixar sua posição dentro realidade universal, devemos recorrer à noção de ordem. A "ordem" é uma das idéias primárias do pensamento e, ao mo tempo, uma das realidades fundamentais da atureza. O problema capital da teoria do conheimento, escreveu Bergson, consiste em saber orno a ciência é possível, isto é, porque há ordem" nas coisas. A existência da ordem poderá r um mistério a esclarecer ou um problema istência da ordem é um fato." no da mes (7) E di di 19 có Noção e realidade fundamental a colocar. Mas a (6) Recaséns Siches, Tratado de sociologia, Globo, 1968, p. 83 e 87. H. Bergson, L'évolution créatrice, Paris, Presses Universitaires de France, 1948, cap. III, p. 232. J. Leclerq, em Les grandes lignes de Ia Philosophie Morale: "O problema da vida é para o homem, em todos os setores, um problema de ordem. A vida física é uma questão de ordem. A vida intelectual o é da mesma forma. A vida moral também. O vício é uma desordem, como a doença e o erro. O homem deve tomar seu lugar na ordem universal e desempenhar o papel que lhe cabe na história do mundo" (4.° parte, cap. 15, p. 437 e ss.). 66 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 67 No mesmo sentido é a observação de Hegel: inicialmente, só existem, na superfície terrestre, minerais, em seguida, vegetais, depois, animais. Não se tem a impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no universo? O Espírito, inicialmente adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo, "alienado" no universo, apresenta-se, cada vez mais manifestamente, como ordem, como liberdade, logo como consciência. Encontramos ordem em todos os movimentos e setores da natureza. Existe ordem no movimento dos astros, no crescimento de um vegetal, na estrutura de um organismo vivo. As reações químicas se operam segundo uma ordem determinada. Existe ordem na vida social, manifestada na divisão do trabalho e na distribuição das funções sociais. "O direito - escreveu Planio113 - tem por objeto a realização da ordem na vida social". As obras de arte, as demonstrações da matemática, os raciocínios da lógica, as conquistas da técnica, as sinfonias musicais são manifestações diferentes dessa ordem. Em suma, a noção de ordem é transcendental, isto é, passa através de todos os setores da realidade. Impressionados por essa ordem universal, os Cosmos gregos chamaram o mundo de "cosmos" (Kósmos), e caos que significa ordem, beleza. E ao "cosmos" opuseram o "caos" (Káos), que significa desor dem, confusão. A ordem pode ser definida como "a unidade na multiplicidade". Supõe sempre dois elementos. Não há ordem sem Unidade na unidade ou sem multiplicidade. Se algumas cores multiplicidade forem atiradas ao acaso sobre uma tela, não haverá ordem, por falta de unidade. Da mesma forma, não se perceberá ordem numa tela de uma só cor, por falta de multiplicidade. Ordem não se confunde com estabilidade. Modernamente, a ciência abandona cada vez mais a noção estática de ordem, para substituí-la por uma visão dinâmica e concreta." 3.2 Fundamento das ciências A noção de ordem é fundamental a todas as ciências. Podemos dizer que o objeto da ciência consiste, precisamenFundamento te, em investigar os diversos aspectos dessa ordem das ciências universal. A astronomia procura fixar a ordem que rege o movimento dos astros. A biologia tem por objeto determinar as leis que regem a ordem existente na estrutura Marcel Planiol, Traité élémentaire de Droit Civil, t. 1, § l.°. V. Vicente Eco, Obra Aberta, Zahar, 1968, p. 56. e na atividade do organismo vivo. A física e a química, em qualquer dos seus capítulos, procuram descobrir e fixar aspectos especiais dessa ordem universal. As leis, que as diversas ciências formulam, nada mais são do que enunciados parciais dessa ordem. Devemos examinar a posição do Direito, dentro da ordem e das leis universal. Mas, para isso, precisamos começar por distinguir as diversas espécies ou tipos de "ordem" que encontramos no universo. Pois, evidentemente, a ordem que rege os movimentos dos astros e a que existe na vida social não são da mesma natureza. 3.3 Espécies de ordem Podemos distinguir duas espécies fundamentais de ordem: a) teórica ou especulativa; b) prática ou normativa. Essa divisão tem por fundamento a atitude da razão humana em face da ordem. A razão muitas vezes se limita a considerar ou contemplar a ordem existente, outras vezes influi na ordem, e, de certa forma, a realiza. Ordem teórica ou especulativa é aquela que a razão apenas considera ou contempla. Por exemplo, a ordem existente no movimento dos astros ou na estrutura de um vegetal. Ordem prática ou normativa é aquela que a razão não apenas considera, mas também realiza. Por exemplo, a ordem existente numa obra de arte, num raciocínio lógico ou na estrutura de um edifício. A etimologia das palavras "teórico" ou "especulativo" e "prático" ou "normativo" confirma e esclarece esses conceitos. A palavra "teórico', como as expressões correlatas, "teoria", "teorema" e outras, provém do verbo grego theorein, que significa "ver". Ciência teórica é a Ordem que se limita a ver a realidade, a contemplar ou teórica considerar a ordem existente. É aquela em que a razão "vê". "Especulativo" vem do vocábulo latino speculum, que significa "espelho". Denominação também adequada, porque, na ordem especulativa, a razão exerce o papel de um espelho: limita-se a reproduzir a realidade, refletindo aquilo que existe. A palavra "prática" provém do vocábulo grego praxis, que significa praxe, costume. Indica Ordem o agir humano. E a ordem é chamada "prática", prática porque depende, de qualquer modo, da atividade do homem. E8 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 69 "Normativo" provém do vocábulo latino norma, que encontra similar perfeito na língua portuguesa. Ordem normativa é a que obedece a normas estabelecidas pela razão humana. É a que é regulada pelo homem. Esses dois grandes setores são suscetíveis, ainda, de subdivisão. A ordem teórica consta de três espécies fundamentais: a) ordem física ou natural; b) ordem matemática; c) ordem metafísica ou ontológica. Ordem física é a que se refere aos seres da natureza, considerados em sua realidade qualitativa e quantitativa. É o caso da ordem existente numa célula viva, na estrutura da matéria ou na anatomia de uma espécie animal. Ordem matemática é a existente no mundo Ordem das quantidades. Por exemplo, 10 vezes 10 igual matemática a 100. Refere-se fundamentalmente ao número e à extensão. Ordem metafísica é a relativa ao ser considerado apenas como ser. Refere-se às noções de causa e efeito, essência Ordem e existência, substância e acidente, e outras, que metaf isica se aplicam ao ser, considerado em si mesmo. É também chamada ordem ontológica (do vocábulo grego ontos, que significa "ser"). A ordem prática, por sua vez, pode ser assim subdividida: a) ordem lógica; b) ordem moral; c) ordem artística. Como vimos, ordem prática é aquela que a razão, de certa forma, realiza. E a razão pode realizar ordem, na própria razão, na vontade, ou nas coisas exteriores. A ordem que a razão realiza no próprio raciocínio chama-se ordem lógica. A ordem que a razão realiza na vontade ou na atividade humana chama-se ordem moral. E a que o homem realiza nas coisas exteriores é ordem artística ou técnica. Consideremos cada uma delas em particular. Podemos raciocinar "ordenada" ou desordenadamente. Se disser mos: todo mineiro é brasileiro; todo paulista é Ordem brasileiro; logo, todo mineiro é paulista, estaremos lógica praticando uma "desordem" lógica. E inversamente, estaremos raciocinando com "ordem", se dissermos: todo mineiro é brasileiro; Fulano é mineiro; logo, Fulano é brasileiro. Assim, ordem lógica é aquela que a razão realiza na própria razão. É a ordem no raciocínio. Como dissemos, ordem moral é a que regula a atividade humana ou a atividade da vontade. E, como a característica essencial da vontade é a liberdade, podemos dizer que esta é a ordem no mundo da liberdade. De acordo com a forma por que o indivíduo agir, ordenada ou desordenadamente, estará ele observando ou não a ordem moral. Quem pratica um furto, uma injustiça, uma desonestidade, está violando a ordem moral. Está abusando da sua liberdade. Quem cumpre seu dever e respeita a personalidade e os direitos dos demais age ordenadamente. Ordem artística é a que o espírito humano realiza nas coisas exteriores. E, por exemplo, a ordem existente numa escultura ou na construção de um edifício. Ordem Ao agir sobre o mundo externo, o homem pode artística ter em vista a beleza: temos então a ordem estética propriamente dita; ou pode ter em vista a utilidade; temos, nesse caso, a ordem técnica. Essas considerações podem ser resumidas no quadro seguinte: No passado, a ordem foi considerada principalmente sob o aspecto teórico, como ordem cósmica, diante da qual o homem assumia atitude meramente passiva. Modernamente, a ordem é considerada sobretudo em seu aspecto prático e dinâmico, como ação transformadora do homem sobre a natureza. A ordem existente no mundo é, cada vez mais a realizada pelo homem nos múltiplos campos da "cultura", que não se limita ao plano estritamente espiritual, moral ou social, mas se estende a todo o universo, incluindo, desde as manifestações sempre mais amplas e aperfeiçoadas do cultivo da terra ou do aproveitamento de suas riquezas, até as conquistas revolucionárias da tecnologia, representadas pela industrialização, a cibernética, os computadores eletrônicos, os satélites artificiais ou as astronaves. Nesse sentido, podemos dizer que, graças ao espírito do homem e sua atividade transformadora, a ordem no universo se amplia e se aperfeiçoa permanentemente. Dentro desse quadro, onde se situa a ordem jurídica? Ordem moral Ordem natural ORDEM Natural í TEÓRICA Matemática Metafísica Lógica PRÁTICA Moral Artística Estética Técnica 70 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Para encaminhar a solução do problema, devemos dar mais um passo a examinar a classificação das ciências, fundada na ordem universal. 4. A classificação de Aristóteles e suas modificações A esses aspectos fundamentais da ordem universal corresponde a famosa classificação das ciências de Aristóteles, que, com as modificações introduzidas pelo pensamento filosófico e científico posterior,15 passamos a apresentar. Essa classificação distingue, inicialmente, duas espécies fundamentais de ciência: a) ciência teórica ou especulativa; b) ciência prática ou normativa. Essa divisão funda-se na finalidade ou função de cada ciência. Ciência teórica é a que tem por finalidade o próprio conhecimento. Ciência prática é a que tem por finalidade a ação. 4.1 A ciência teórica Podemos dizer que a ciência teórica conhece por conhecer. Por isso, as ciências desse tipo são chamadas ciências puras. É o caso da física, da anatomia, da geometria e outras. As ciências teóricas ou especulativas podem ser subdivididas em três espécies fundamentais, essencialmente distintas: a) ciências físicas ou naturais; b) ciências de tipo matemático; c) ciências de tipo metafísico. Essa divisão se fundamenta no grau de abstração de cada uma dessas ciências. Assim, as ciências físicas ou naturais têm um grau de abstração mínimo. Fazem abstração das diferenças individuais e estudam as propriedades comuns a uma espécie de seres de realidade, por exemplo, a célula animal. A abstração maior dá-se nas ciências matemáticas, que fazem abstração das diferenças individuais e das qualidades dos seres para ficar apenas com a quantidade. A abstração é máxima na metafísica ou ontologia, que estuda o ser enquanto ser. 4.1.1 Ciências físicas ou naturais Como sabemos, toda ciência é abstrata, isto é, faz uma certa abstração, sem o que ela não será ciência. Quando a física diz que todo corpo tende para o centro da terra, ela está fazendo uma abstração. Nunca vimos nem podemos ver "o corpo" de que fala a física. Vemos este ou aquele corpo concreto, que é de madeira, de pedra ou de metal, que tem esta ou aquela cor, que possui determinado peso, tamanho e temperatura. Mas "o corpo" (universal), de que fala a física, ao enunciar, por exemplo, a lei da gravidade, não existe concretamente; não existe, como tal, no mundo real. Trata-se de uma abstração; como abstrato é, também, "o hidrogênio", da química, "a célula", de que fala a biologia, "o animal", da zoologia, "o homem", da antropologia, " o índio", da etnologia, ou o "trabalhador urbano" da sociologia. Todas as ciências fazem abstração das diferenças individuais e só consideram as propriedades comuns a todos os seres da mesma espécie. Esse é o primeiro grau de abstração, comum a todas as ciências da natureza. 4.1.2 Ciências culturais Modernamente, com o desenvolvimento dos estudos relativos ao mundo "da cultura", em oposição ao mundo "da natureza",16 devemse distinguir, explicitamente, entre as ciências teóricas naturais, em sentido amplo: a) as ciências naturais, propriamente ditas, que se ocupam do mundo físiconatural; b) as ciências culturais, que estudam a natureza transformada pelo homem. É assim, enriquecida a antiga classificação de Aristóteles, que conceitua genericamente a ciência natural como o estudo de ser móvel." V. Wilhelm Dilthey, Introduction à 1'étude des sciences humaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1942; G. Vico, Scienza nuova, Pádua, Cedam, 1943; M. Reale, Filosofia do Direito, cap. 17. '"' Para apreender com exatidão o conceito de ciência física ou natural, no pensamento de Aristóteles, é necessário remontar à significação do vocábulo grego physis e ao latino natura, que correspondem ao conceito de natureza em seu sentido mais amplo. Ao estudar a obra de Aristóteles, observou Ross: "La Physique" fait 1'objet d'une longue série d'oeuvres d'Aristote: De Meteorologica, De Physica, De Coelo, De generatione et corruptione, De partibus animalium, De anima etc. La Physique est distince d'une étude qui concentre toute son attention sur Ia matière, qui réduit un corps vivant par exemple, ou un composé chimique inanimé, à ses élements, sans tenis compte de Ia structure qui fait du corps vivant ou du composé ce qui'il est. Aristote se prononce en fait en faveur, de Ia teléologie et contre le pur mécanisme, en faveur de l'étude des parties à la Iumière du tout au lieu de traiter le tout simplement comme une somme de parties. La Physique est I'étude non de Ia forme seule ni de Ia matiére seule, mais de Ia matière informée ou de Ia forme dans une matière; W. D. Ross, Aristote, Paris, Payot, 1930, cap. 111. O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇAO DAS CIÊNCIAS 71 Historicamente, a classificação proposta por Aristóteles divide as ciências em teóricas, práticas e produtivas: "Todo conhecimento é prático ou produtivo ou teórico" ("metafísica", 1025b, 25). O objetivo de toda ciência é conhecer, mas os objetivos finais são diferentes. A ciência teórica procura o "conhecimento" por si mesma. As ciências práticas têm por objeto o conhecimento para que esse sirva de guia à "conduta ou ação". E as ciências produtivas procuram o conhecimento para utilizá-lo na "fabricação" de coisas úteis ou belas. W. D. Ross, Aristote, Payot, Paris, 1930, p. 34 e 91. 72 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Em sentido amplo, a natureza inclui o mundo da cultura. Este é, na realidade, a própria natureza transformada e aperfeiçoada pelo espírito humano. 4.1.3 Ciências de tipo matemático As ciências matemáticas se situam num plano de abstração mais elevado. Não apenas separam ou abstraem as diferenças individuais, mas fazem, também, abstração das "qualidades sensíveis", para considerar apenas a "quantidade" do ser. Por exemplo, o número 8 ou fração 5/9 são o resultado de uma abstração, em que foram deixadas de lado diferenças individuais e qualidades sensíveis. São puras relações quantitativas. Abstrações, portanto. Na realidade, não existe 8 simplesmente, e sim 8 homens, 8 máquinas etc. A matemática não considera a matéria ou conteúdo desses elementos. Fica apenas com seu aspecto quantitativo. O mesmo ocorre com outras ciências que, desprezando o conteúdo material dos objetos, limitamse à consideração de seus aspectos formais, como a estrutura lógica, a simples relação com outros objetos etc. São as ciências lógico-matemáticas ou, simplesmente, ciências formais. 4.1.4 Ciências de tipo metafísico A metafísica representa mais um passo nos graus de abstração. O filósofo faz abstração das diferenças individuais, das qualidades sensíveis e dos aspectos formais, para ficar apenas com o "ser". A metafísica é pura e simplesmente a ciência do ser. Por isso é, também, chamada ontologia (ciência do ser). Estuda o ser, enquanto ser, Mas, que pode dizer a ciência a esse respeito? Há muitos problemas ligados ao ser, considerado em si mesmo. E tais problemas são fundamentais. Por exemplo, todas as ciências • todos os raciocínios fundam-se num princípio primeiro, que se enuncia assim: uma coisa não pode ser e não-ser, ao mesmo tempo • sob o mesmo aspecto. É o chamado princípio de identidade ou de não contradição, que é fundamental a todas as ciências e a todos os conhecimentos. Quando uma experiência num laboratório é feita por um físico, quando o matemático demonstra um teorema de geometria, quando o astrônomo faz o estudo dos movimentos dos astros, estão todos admitindo esse princípio. E se esse princípio não for verdadeiro, todos os raciocínios que o homem fizer serão inseguros. Ruirá toda a ciência. Nesse princípio se assentam todos os demais. Ao ser e a qualquer ser podemos aplicar as noções de substância ou acidente, essência e existência, matéria e forma, unidade, verdade, bondade etc. A metafísica realiza, assim, um supremo grau de abstração. Separa todas as "qualidades sensíveis" e "quantidades", para ficar apenas com o "ser". 4.2 Ciência prática ou normativa Ciências práticas são as que conhecem para dirigir a ação. São ciências que têm uma finalidade ulterior, além do conhecimento. É o caso da medicina, da engenharia ou da arquitetura, cujo objetivo é curar, construir ou planejar. É, também, o caso da política, da pedagogia ou da moral, cuja finalidade é orientar a conduta individual ou social do homem. As ciências práticas ou normativas se subdividem em: a) ciências morais, humanas ou ativas; b) ciências artísticas ou factivas. As ciências morais ou ativas têm por finalidade dar normas ao agir. Ciências artísticas ou factivas são as que têm por finalidade dar normas ao fazer. O objeto da moral é o agir. O objeto da arte é o fazer. Podemos dizer que, considerados em sua acepção ampla, a moral é ciência do agir e a arte é a ciência do fazer. Qual a diferença entre o "agir" e o "fazer"? A atividade humana, num sentido amplo, pode ser realizada de duas maneiras: como atividade produtiva ou como atividade moral. 4.2.1 As ciências morais, humanas ou ativas A atividade produtiva ou factiva tem por objeto o que os antigos chamavam o factibile, isto é, uma obra a ser feita ou produzida. Dizemos que o engenheiro "fez" uma ponte, o escultor "fez" uma estátua. A atividade moral ou ética tem por objeto o agibile, isto é, uma ação a ser praticada. De um homem que cumpriu o seu dever dizemos que ele "agiu" bem. • "fazer" é transitivo, exige um objeto exterior. Quem faz, faz alguma coisa. • "agir" pelo contrário, é intransitivo; é imanente (do latim Fnanet, permanece); e indica, fundamentalmente, a atividade interna e pessoal do homem. Assim, podemos dizer que ciências morais são as que dirigem a atividade humana propriamente dita. E ciências artísticas são as que dirigem a produção de coisas exteriores. O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 73 74 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 75 4.2.2 Ciências artísticas e técnicas As ciências artísticas, por sua vez, podem ser divididas em: 1. artes propriamente ditas que visam à produção do "belo", como a música, a escultura, a poesia; 2. técnicas, que têm por objeto a produção do "útil", como a engenharia (arte de construir), a medicina (arte de curar), e as técnicas em geral. Em síntese, temos o seguinte esquema: NATURAL Í NATURAL PROPRIAMENTE DITA CULTURAL LÓGICO-MATEMÁTICA OU FORMAL METAFÍSICA OU ONTOLÓGICA 4.3 Conclusões Essa classificação sugere algumas observações, que passamos a indicar. 4.3.1 Primeiro: a divisão das ciências teóricas em: naturais, culturais, formais e metafísicas (ou ontológicas), Objetos: aproxima-se da moderna classificação dos objetos naturais ou regiões ônticas, proposta por Husserl e aplicada culturais por Cóssio ao campo de direito." Essa classifiideais cação distribui a universalidade dos objetos nas e metafísicos seguintes categorias: objetos naturais, culturais, ideais (ou formais) e metafísicos. 4.3.2 Segunda observação: a classificação de Aristóteles nos permite distinguir diversas acepções do vocábulo "ciência", que é usado, pelo menos, em três de ciência sentidos diferentes, todos contidos na classifica ção. Numa primeira acepção, latíssima, ciência significa o conheci mento certo pelas causas ("scientia est cognitio certa Conhecimento per causas"). Sempre que tivermos um conhecimento pelas causas que chegue às causas dos fenômenos ou às razões qu o demonstram, ele é científico. Carlos Cóssio, La teoria egológica del Derecho y el concepto jurídico d lihertad. Bueno Aires, Losada, 1944, p. 28 e ss. Nesse primeiro sentido, "ciência" se aplica a todos os conhecimentos pelas causas, a todos os conhecimentos "demonstrados" e se opõe a "conhecimento vulgar". É esse o sentido da palavra "ciência", na classificação apresentada. Ele abrange tanto as ciências teóricas como as práticas. Mas a palavra "ciência" é empregada, com freqüência, numa segunda acepção, estrita, refe- Conhecimento rindo-se apenas às ciências teóricas ou puras. Isto teórico é, às ciências naturais (físicas ou culturais), às ciências formais e à metafísica. Nesse sentido, a palavra "ciência" se opõe à "arte" e às ciências práticas em geral, também chamadas "ciências aplicadas". É nesse sentido que se formula a pergunta: tal disciplina é ciência ou arte? É ciência pura ou aplicada? E ciência teórica ou prática? Num terceiro sentido, estritíssimo, a palavra "ciência" estende-se apenas às ciências teóricas de tipo natural e matemático, isto é, às ciências particulares, em Conhecimento oposição à metafísica ou à filosofia, que é ciência físicogeral. matemático E nesse sentido, por exemplo, que se emprega vocábulo "ciência", quando se fala em Faculdade de Filosofia e Ciências. A classificação das ciências de Augusto Cocote, por exemplo, refere-se à ciência nesse terceiro sentido. Inclui apenas as ciências físicas e matemáticas, a saber: matemática; astronomia (física celeste); física (físico-mecânica); química (físico-química); biologia (física biológica); sociologia (física social). Como vemos, quando Augusto Cocote fala de ciência, ele tem presente apenas as ciências especulativas de tipo físico e matemático. 4.3.3 Uma terceira observação deve ser feita. A classificação de Aristóteles refere-se a "tipos" de ciências, a tipos de conhecimento científico e não a uma enumera- Tipos ção de ciências individualmente consideradas. de ciência Assim, ciência física, nessa classificação, não significa uma disciplina particular, como a Física propriamente dita, mas, sim, qualquer ciência de tipo natural. Trata-se de espécie ou categoria de conhecimento científico, e inclui a física (em sentido estrito), a química, a mineralogia, a biologia etc. Como essa classificação refere-se a tipos de ciência e não a ciências individualmente consideradas, podemos incluir na mesma as diversas ciências que estão se constituindo modernamente. Assim, a genética, que é uma ciência relativamente nova, cabe perfeitamente na classificação. É uma ciência natural ou física. Da mesma forma, CIÊNCIA TEÓRICA ou ESPECULATIVA PRÁTICA ou MORAL OU ÉTICA NORMATIVA ARTÍSTICA DCIAMENTE D ITE TA TÉCNICA Três sentidos 76 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 77 a aeronáutica ou a moderníssima astronáutica cabem, também, na classificação, como ciências técnicas. O mesmo se dá com outras disciplinas especializadas. 4.3.4 Uma quarta e última observação a Valores respeito da classificação em causa: a cada um desses tipos ou categorias de ciência corresponde um critério ou valor fundamental. Assim, à técnica, corresponde o valor "utilidade". As artes, propriamente ditas, têm como valor fundamental Verdade o "belo". As ciências morais, o "bem". As ciências especulativas, a "verdade". Em linguagem filosófica, esses valores representam o objeto formal dessas ciências, isto é, são o aspecto pelo qual essas diversas disciplinas consideram a sua matéria. A moral estuda a atividade humana sob o aspecto do bem. A arte se ocupa das coisas exteriores sob o aspecto da beleza. A técnica considera as coisas exteriores, que constituem a sua matéria, sob o aspecto da utilidade. Essa distinção é de grande importância para que se respeitem a formalidade e o critério próprio de cada ciência. O cientista propriamente dito, homem de ciência teórica ou pura, tem ou deve ter como preocupação fundamental a verdade. O artista, a beleza. O técnico, a utilidade. O homem de qualquer ciência moral, o bem. O político, legislador ou administrador, o "bem" comum. Esses critérios ou valores não se opõem. Como mostra a Filosofia, "verdade", "beleza", "bem" são aspectos fundamentais do "ser" e se correspondem. Assim, o belo pode ser definido como o "esplendor da verdade". E o "bem", como a verdade enquanto fim para a ação.'9 Ou, como diz Sorokin, a verdade genuína é sempre boa e bela; a beleza genuína é invariavelmente verdadeira e boa, e o amor genuíno é sempre verdadeiro e belo.` 5. Outras formulações 5.1 Direito e ordem Edgard Bodenheimer, Ciência do direito, Rio, Forense, 1966, p. 185 e ss. Onde quer que tenham criado unidades de organização social, os homens têm procurado evitar o caos, estabelecendo em seu lugar uma forma qualquer de ordem em que se possa viver. Esse anseio por padrões de ordem na coexistência humana não representa um traço arbitrário ou dispensável dos seres humanos. Dele está profundamente impregnada toda a matéria de que se compõe a natureza, e da qual faz parte a própria vida humana. A natureza nos desvenda uniformidades aproximadas, seqüências repetidas, associações de acontecimentos que se reproduzem. Pelo menos naquelas manifestações da natureza externa, que se refletem mais significante e decisivamente na vida humana neste planeta, a ordem parece prevalecer sobre a desordem, a regularidade sobre a irregularidade, a regra sobre a exceção. A terra segue o seu curso em redor do Sol numa órbita fixa, e em condições que permitiram a existência da vida durante milhões de anos. Há uma alternação de estações em que se pode confiar, e que permite aos homens, durante aquelas em que se produzem os alimentos, proverem-se e armazenarem para as outras, em que o solo se mostra estéril. Os elementos do universo físico, como a água, o fogo e as substâncias químicas, têm características mais ou menos invariáveis, que nos permitem confiar nas suas propriedades permanentes e predizer-lhes os efeitos ao utilizá-los para fins humanos. Todo o nosso controle da natureza pressupõe a existência de numerosas leis físicas, precisas, não raro matematicamente calculáveis, em cuja atuação uniforme confiamos, na abertura de túneis, na navegação marítima ou aérea, no controle das inundações e no domínio da energia elétrica para fins industriais e outros. Os processos físicos dos seres vivos são igualmente sujeitos a determinadas leis. Como na natureza, a ordem representa importante papel na vida dos seres humanos. A sociedade em geral, dependendo da coexistência e da cooperação, manifesta forte tendência para a adoção de formas ordeiras de organização. Observou-se, por exemplo, que prisioneiros de guerra estabelecem rapidamente certas normas de conduta para o ordenamento da existência no campo de concentração, às vezes sem qualquer iniciativa da parte dos dirigentes do campo. Náufragos atirados à costa de uma ilha deserta quase imediatamente começarão a adotar um sistema improvisado qualquer de "governo" e "regulamentação". A sociedade em geral, dependendo da coexistência e da cooperação de muitos indivíduos e grupos diversos, tem ainda maior necessidade de organização e de ,,normas". fundamentais Bem Belo útil "Le bien est une propriété transcendantale de 1'être, comme le vrai et le beau. Les propriétés transcendantales correspondent à des vues de l'esprit. Le bien, c'est I'être vu du point de vue de l'action en tant que réalisant une fin, I'être consideré comme s'il avait une fin, un but, comme s'il existait pour réalisez quelque chose, comme s'il tendait vers cette fim raison de son existence. Le vrai, c'est le même être en tant qu'objet de connaissance. D'après Ia définition, traditionelle, Ia vérité est adaequatio rei et intellectus, l'accord de Ia chose, avec l'intelligence; en d'autres termes, le vrai, c'est l'être en tant que connu, c'est-à-dire, en tant qu'il se manifeste à un esprit". "Le beau est encore 1'être; mais en tant que source de jouissance pour I'esprit. Pour I'opposer à I& jouissance sensible, on qualifie cette jouissance d'esthétique. Lã jouissance esthétique résulte de Ia vue de Ia perfection de 1'être et le beau est une propriét~ transcendantale de 1'être au même titre que le vrai et le bein. Le vrai est 1'e en tant que connu, le bien en tant que fin, le beau en tant qu'objet de jouissancf Quod visum placet, dit Saint Thomas, ce qui plait à Ia vue. Tout perfectio tout bien plaêt à celui qui le connaft, done tout vérité. Tout être est bea comme il est vrai, comme il est bon en lui-même. 11 y a une beauté en tout etre, et cette beauté est proportionnée à sã perfection' ; J. Leclerq. Les grandes lignes de Ia philosophie morale, ed. citada, p. 233 e ss. (20) Tendências básicas de nossa época, Zahar, 1966, p. 161. 78 INTRODUÇAO À CIÊNCIA DO DIREITO Há dois tipos de estrutura social que se caracterizam pela ausência de meios institucionais para a criação e manutenção da ordem na vida social. Esses dois tipos são o anarquismo e o despotismo, nas suas formas puras e não diluídas. Embora seja difícil encontrar sociedades que tenham praticado (ao menos por um período de tempo apreciável) uma forma de governo puramente anárquica ou totalmente despótica, o exame dessas formas extremas, ou "marginais", de existência política e social, é útil para uma compreensão da natureza e das funções do direito, como instrumento da ordem social. O anarquismo representa uma condição social em que se confere poder ilimitado a todos os membros da comunidade. Onde reina a anarquia, não existem regras obrigatórias e que se imponham ao reconhecimento de todos e que por todos devam ser obedecidas. Todos têm a liberdade de satisfazer aos próprios impulsos e de fazer o que lhes venha à mente, seja o que for. Nem Estado, nem Governo impõem limites ao exercício arbitrário do poder privado. As opiniões divergem quanto a saber como procederiam realmente os homens se os estados e governos fossem abolidos, e em seu lugar se entronizasse a anarquia, como forma legítima de vida social e política. Homens como Bakunin e Kropotkin, adeptos de um credo de anarquismo coletivista, convenceram-se de que o ser humano é por natureza essencialmente bom, e de que só o Estado e as suas instituições o corrompem. Acreditavam eles que os homens são dotados de um poderoso instinto de solidariedade, e que, após a necessária destruição dos governos organizados, eles seriam capazes de viver unidos em um perfeito sistema de liberdade, paz, harmonia e cooperação. Em lugar do estado coercitivo, haveria uma livre associação de grupos livres; todo mundo poderia integrar-se no grupo de sua preferência e dele retirar-se quando lhe aprouvesse. Leão Tolstoi acreditou também na possibilidade de uma sociedade não coercitiva, cujos componentes se uniriam por laços de amor recíproco. A cooperação e a ajuda mútua, ocupando o lugar da competição desenfreada, passariam a ser as leis supremas de tal sociedade. E, porém, extremamente improvável que a total eliminação do Estado e de outras formas de constrangimento governamental pudesse gerar uma associação harmoniosa e imperturbável entre os homens. Embora admitindo que a maioria das pessoas é por natureza boa e sociável, restará sempre uma minoria avessa à cooperação, contra a qual será preciso usar de coação. Uns poucos elementos desequilibrados ou delinqüentes podem com facilidade perturbar uma comunidade. Estatísticas recentes demonstraram, por outro lado, que uma grande prosperidade econômica como a que objetivam os anarquistas como base de sua sociedade ideal - por si só não soluciona o problema da criminalidade. Independentemente da sua situação econômica, "os homens são fatalmente sujeitos a paixões" e até mesmo um homem normalmente racional pode, dominado por um impulso incontrolável, praticar um ato que a sociedade não tolerará. Por essas razões, uma sociedade completamente livre, não regulamentada, sem sanções comunais, parece impossível. Por nossa infelicidade, a ordem nas coisas humanas não se impõe por si mesma. O extremo oposto do anarquismo na vida social seria um sistema político em que um só homem exercesse um poder tirânico e ilimitado sobre os seus semelhantes. Quando o poder desse homem se exerce de maneira totalmente arbitrária e caprichosa, estamos diante do fenômeno do despotismo na sua forma pura. O verdadeiro déspota dá as suas ordens e estabelece as suas proibições de acordo com a sua vontade livre e irrestrita, ou satisfazendo os seus caprichos ocasionais ou as suas disposições de momento. Um dia, ele condenará alguém à morte por haver furtado um cavalo; no dia seguinte talvez absolva outro ladrão de cavalos por lhe ter este, ao ser submetido a julgamento, contado uma história divertida. 0 cortesão favorito pode ver-se de súbito encarcerado, por ter vencido O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS um paxá numa partida de xadrez, e um escritor influente pode sofrer o castigo imprevisível de ser queimado vivo só por ter escrito algumas linhas que desagradaram ao tirano. Os atos do déspota puro são imprevisíveis porque não obedecem a qualquer padrão racional e não são pautados por normas ou por uma política identificáveis. Situações de poder arbitrário, encontradas em maior ou menor grau em todos os estados totalitários, despertam no povo um sentimento de perigo e insegurança. Mas existe um meio de evitar isso. Esse meio é o direito. 5.2 Ciências humanas e ciências naturais W. Dilthey, Introd. à l'étude des sciences humaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1942, cap. II. O conjunto das ciências que tem por objeto a realidade histórica e social será designado nesta obra pelo nome de ciências humanas, ou ciências noológicas ("Geisteswissenschaft"). O conjunto dos fatos que ocupam nosso espírito e que se incluem no conceito da ciência é, habitualmente, separado em dois grupos, dos quais um é designado pelo nome de "ciências naturais". E muito curioso que não exista, para designar o outro grupo, denominação pacificamente admitida. Adotarei o uso dos pensadores que designam este setor pelo termo "ciências humanas" ou "ciências do espírito" ("Geisteswissenschaft"). De um lado a expressão "ciências humanas", que foi grandemente divulgada pela lógica de Stuart Mill, parece-me que entrou em uso e tem significado geralmente compreendido. Ademais, se eu a comparo com outras denominações que não correspondem exatamente à idéia em questão, parece-me que é a denominação mais aproximada. Evidentemente ela exprime de uma maneira imperfeita o objeto do presente estudo. Com efeito, aqui, eu não separarei os fatos da vida do espírito da entidade psicofísica que é a natureza humana. Uma teoria que deseja descrever e analisar os fatos históricos e sociais não pode fazer abstração do caráter total da natureza humana e se limitar apenas aos fatos do espírito. Mas a denominação que proponho tem o mesmo defeito de todas as que se pretenderam empregar. "Ciências sociais", "sociologia", "ciências morais", `ciências históricas", "ciências culturais", todas essas denominações padecem do mesmo vício: elas são muito estreitas em relação ao objeto que pretendem exprimir. Quanto ao nome que escolho, ele tem pelo menos a vantagem de exprimir fortemente a natureza do grupo central de fatos e de que é preciso partir para ver realmente a unidade destas ciências, para determinar sua extensão, e para traçar, ainda que de forma imperfeita, o limite que as separa das ciências naturais. Os motivos pelos quais adquiriu-se o hábito de separar estas ciências das ciências da natureza e de fazer delas um todo à parte, brotam das profundezas da consciência que o homem tem de si mesmo e do sentimento do caráter total desta consciência. Antes que aflore o desejo de procurar a origem do espiritual, o homem encontra, nesta consciência de si mesmo, o sentimento de que sua vontade e soberana, que ele é responsável por seus atos, que ele pode submeter tudo ao seu pensamento e pode resistir a tudo, desde que se entrincheire na fortaleza de sua pessoa, e que essas faculdades o coloquem à parte do resto da natureza. De fato, ele se descobre no meio desta natureza, para retomar uma expressão de SPinoza, como imperium in imperio. E, como não existe para ele senão o que é um fato em sua consciência, acontece que todos os valores, todas as finalidades 79 80 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO da vida estão fechados neste mundo espiritual, que age dentro dele de modo independente, e que seus atos não têm outro propósito senão o de criar coisas novas na ordem dos fatos do espírito. Assim se esboça uma demarcação entre o reino da natureza e um reino da história, e, no interior deste último reino, no meio de um conjunto construído pela necessidade objetiva que é a natureza, vêse em mais de um ponto, como num relâmpago, luzir a liberdade. Neste reino da história, os atos da vontade - ao contrário das mudanças que se operam na natureza, segundo uma ordem mecânica e que desde o princípio contêm em si todas as conseqüências que se seguirão -, graças a um dispêndio de energia e a sacrifícios, cuja importância permanece sempre presente ao indivíduo como um fato de experiência, acabam por produzir coisas novas e sua ação provoca uma evolução tanto da pessoa como da humanidade. Eles ultrapassam, aos olhos de nossa consciência, a repetição automática dos fatos naturais, repetição esta que alguns entendem como o ideal do progresso histórico, e diante do qual se pasmam, como diante de um ídolo, os adoradores da evolução intelectual. 5.3 Ciências especulativas e operativas L. Van Acker, Introdução à Filosofia e Lógica, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 28 e ss. Toda ciência implica certo processo ou movimento da razão para um fim ou objeto. Este último pode ser tão puramente científico que só se preste à especulação do saber ordenado, por exemplo: a quantidade abstrata. Neste caso temos ciências especulativas ou puramente científicas. Mas há outros objetos que, além de suscetíveis de conhecimento certo pelas causas, são naturalmente ordenados a certa execução ou obra, por exemplo: uma lei, as dimensões de um edifício etc. Neste caso temos ciências operativas ou analogicamente científicas em razão do objeto. No sentido largo, a especulação é sem dúvida operação ou ação, mas, no sentido estrito e etimológico, operação supõe a influência moral ou mecânica no efeito, ao passo que especulação lembra o espelho que reflete fielmente o objeto sem intervir na sua produção ou mudança (speculum aspectus). Por sua vez a operação estrita e a obra correspondente podem ser de ordem moral ou técnica. Donde as ciências ativas e produtivas. A divisão escolástica em ciências especulativas e operativas é, portanto, análoga, isto é, os membros da divisão não têm o mesmo valor nem pertencem ao mesmo gênero. Para os escolásticos como para os positivistas, o conhecimento certo racional é ciência na medida em que é especulativo. Mas como é variável essa medida, igualmente variável há de ser a noção de ciência. Contra os fatos é, portanto, o proceder dos positivistas recusando a existência das ciências práticas e querendo estabelecer homogeneidade ou univocidade exclusiva no conceito e na divisão das ciências. Tanto mais que os mesmos admitem que todas as artes são aplicações das ciências, participando, portanto, do seu caráter científico e merecendo, em parte, o título de ciência. A esse propósito, escreveu Pedro Lessa: "As ciências que Ihering e seus discípulos denominam `especulativas', em oposição ao que chamam `ciências práticas', reproduzem uma errônea classificação, que vem de Aristóteles, quando a verdade é que há somente ciências (todas da mesma natureza) e artes, ou conjuntos de preceitos de utilidade prática baseados nos conhecimentos científicos; as ciências têm por missão o estudo das leis, a que estio subordinadas as várias classes de fenômenos". O PROBLEMA DA CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS 81 5.4 Ciência normativa, expressão contraditória H. Lévy-Bruhl, "Les sources du droit - les méthodes et les instruments de travail", Introduction à l'étude du droit, J. de Ia Morandière e outros, Paris, Rousseau, 1951, v. 1, 3.' parte, p. 256. A atitude realista consiste em considerar as regras jurídicas como fatos, ou, se preferirmos, como coisas. Essa atitude se impõe a quem se preocupa em estudar o direito cientificamente, pois a ciência do direito não é uma ciência normativa (expressão que contém em si uma contradição), mas uma ciência de normas, o que é completamente diferente. É preciso insistir sobre este ponto, que se presta a confusões intermináveis. Para as dissipar, basta precisar a competência de cada ciência. O cientista do direito - aquele que podemos denominar de jurista-cientista - é estranho, por definição, a toda ação prática; o jurista prático, o jurisconsulto, o advogado, o procurador, o notário etc. poderão ser levados a dar conselhos dentro dos quadros do direito existente e, eventualmente, a formular sugestões de lege ferenda. O moralista poderá e deverá apreciar a lei tomando por critério o seu ideal de justiça. Por conseguinte se propusermos uma questão como esta: "Tal lei parece iníqua; podemos deixar de obedecê-la?" O jurista cientista se declará incompetente. Ele observará apenas se ela é ou não aplicada de fato. O jurista prático não poderá aconselhar a sua violação; quando muito fornecer argumentos que permitam contornála, emendála, ou anulá-la. Apenas o moralista, colocando-se sob o ponto de vista da sua consciência, poderá eventualmente aconselhar a desobediência a uma ordem emanada do legislador ou da autoridade legítima. Em certos casos, esta revolta consciente e refletida é fecunda; e a ilegalidade de hoje prefigura o direito do futuro. Outras vezes ela permanece esporádica e não chega a se impor à consciência social do grupo. 6. Bibliografia BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BRETHE DE LA GRESSAY e LABORDE-LACOSTE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Recueil Sirey, 1947. BERGSON, H. L'évolution creatrice. Paris : Presses Universitaires de France, 1948. CAVALCANTI FILHO, Theofilo. O problema da segurança no direito. São Paulo RT, 1964. COMTE. A. Cours de philosophie positive. Larousse, s/d. 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A técnica no direito: 2.1 Existirão no campo do direito elementos de ordem técnica? Será o direito uma técnica?; 2.2 Tecnicismo, utilitarismo, pragmatismo; 2.3 Arte e direito - 3. A ética e o direito - O direito como ciência normativa ética: 3.1 A posição do direito no quadro das ciências; 3.2 O objeto da ciência do direito; 3.3 Ciência da liberdade - 4. Outras formulações: 4.1 "Uma concepção naturalista do direito", Pontes de Miranda; 4.2 "0 caráter puramente formal da norma jurídica", H. Kelsen; 4.3 "O egologismo como concepção cultural do direito", Machado Netto; 4.4 "Normas de técnica legislativa"-Lei Complementar 60, de 10.07.1972-5. Bibliografia. 1. A teoria no direito.J 1.1 Posição do direito no quadro das ciências De forma sintética, podemos formular as seguintes afirmações, que antecipam as conclusões do presente capítulo: a) existe inegavelmente uma TEORIA do direito, constituída por todos os estudos que se limitam ao conhecimento do que "é" a realidade jurídica; nesse sentido, o naturalismo, o formalismo e o culturalismo jurídico representam hoje as grandes direções teóricas da ciência do direito; b) existe, também, uma TÉCNICA do direito, que não se limita ao conhecimento do que é, mas dá normas ao "fazer"; indica como fazer uma petição, uma sentença, um recurso, um contrato, uma lei; c) nesse plano podemos falar, ainda, em uma ARTE ou ESTÉ TICA do direito, na medida em que os aspectos estéticos, como o estilo da lei, a eloqüência judiciária, os símbolos e as vestes talares interferem na vida jurídica; d) mas o direito é, essencialmente, uma ciência NORMATIVA HUMANA, MORAL; sua finalidade específica é ordenar a conduta social dos homens, no sentido da justiça. 84 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 85 1.2 A teoria do direito Existe inegavelmente uma "teoria" do direito. Quaisquer inst$_ tuições jurídicas podem ser estudadas teoricamente. Há uma teoria CL,, Estado, dos contratos, da propriedade, da empresa etc. Há, igualmente a teoria do Direito Civil, do Direito Comercial, uma Teoria Geral cI. Direito etc. São dessa natureza, também, os estudos sobre o homet e seu comportamento no meio social, os estudos do meio físico geográfico, da história, dos costumes, das instituições. Com razão escreveu Brethe de Ia Gressaye: "O jurista deve levam em conta os fatos resultantes das relações sociais, que são a próprria matéria do Direito. Essa realidade é essencialmente concreta e, pvr conseqüência, contingente e variável. Sob esse aspecto os fatos sociaús se aproximam dos fatos físicos. Têm causas e estão sujeitos a te is semelhantes às causas e às leis da ordem física. Esse elemento experimental constitui o objeto de uma ciência positiva, a Sociologia jurídica, que estuda a realidade social do `Direito-.' E a Sociologi a, que Augusto Cocote preferia denominar Física Social é uma ciêne ia teórica, no sentido em que a definimos. De ordem teórica ou especulativa são, também, os estudos sobwe a estrutura social e os diversos institutos que constituem a realida¢le social do "Direito". A teoria do direito, diz Kelsen, quer única e exclusivamerkte conhecer seu objeto. Procura responder à pergunta: que é e como o direito, mas não à questão de como deve ser ou como convém elaborá-lo. É ciência do Direito (em sentido estrito) e não política d Direito.' Mas, enquanto teoria, que espécie de ciência é o direito? Ciênci natural, cultural, formal, metafísica? Sob esse aspecto, podemos distinguir, entre as grandes orienita ções teóricas sobre a natureza do direito: o naturalismo jurídico, formalismo jurídico e o culturalismo jurídico. 1.2.1 O naturalismo jurídico No estudo teórico do direito, as concepções naturalistas reduzem a uma realidade exclusivamente natural ou física. É sig ficativa a expressão de Pontes de Miranda: "O direito não é fenôme peculiar ao homem, nem mesmo ao mundo orgânico. Podemos most lo entre os sólidos inorgânicos, bem como no mundo das figu bidimensionais".' (" Introduction générale à l'étude du droit, n. 70, p. 62. z' Teoria pura do direito, cap. 1. (') Pontes de Miranda. Sistema de ciência positiva do Direito. Rio, Jacinto, v. 2, p. 26. Dentro de sua concepção geral - redução do direito a simples fenômeno natural - as correntes naturalistas apresentam diferentes tendências, que divergem na caracterização da realidade jurídica e social: a) as correntes "fisicistas" reduzem essa realidade a fenômenos propriamente físicos e mecânicos; na mesma linha do pensamento de Pontes de Miranda, podem ser Correntes citados: fisicistas - os ensaios de "Mecânica social", de Haret, Portuondo y Barcelo e outros que pretendem aplicar aos fatos sociais as leis da mecânica racional;4 - os trabalhos de "Energética social", de Ostwald ou de Solvay, que opõem ao mecanismo outra concepção naturalista: a energia, sujeita aos princípios fundamentais da termodinâmica, constitui a verdadeira substância da matéria, da alma e da vida social;' b) as correntes biologistas procuram reduzir a realidade social a elementos de ordem biológica; estão nesse caso: - a teoria organicista, que assimila a sociedade Correntes a um organismo vivo ou hiperorganismo: Lilienfeld, biologistas Schaffle, De Greef, Espinas, René Worms e, de certa forma, Spencer;b - o "darwinismo" social, ligado ao evolucionismo mecanicista de Darwin, que transporta para o plano da sociedade o princípio da luta pela vida (struggle for life); a história é o resultado de luta de raças (Gumplovicz) ou de povos (Oppenheimer);7 - as concepções racistas de Gobineau, Chamberlain, Lapouge e outros;' - a escola antropológica de direito penal: o crime é uma fatalidade biológica e os indivíduos nascem delinqüentes, como nascem idiotas, cegos ou surdos; é o pensamento de Lombroso, que teve continuadores em Ferri, Garofalo;9 Sobre a concepção fisicista, ver Pontes de Miranda, ob. cit.; A. Cuvillier, Manuel de sociologie, Paris, PU, 1967, § 28 e ss.; Gilberto Freyre. Sociologia, José Olímpio. 1945; Machado Netto, Introdução à ciência do Direito, v. 2 ("Sociologia jurídica"), São Paulo, Saraiva, 1963. Bibliografia citada. V., ainda, Recaséns Siches, Tratado de sociologia, Globo, 1968, v. 1, p. 78. Sobre o organicismo, v. Cuvillier, ob. cit., §§ 15 e 31; Recaséns Siches. ob. Obras citadas. Cuvll erl §§ 15 ar32; Recaséns Siches, p. 1, p. 80 e 392; Gilberto Freyre, v. 2, p. 295. Bibliografia citada. V. "Escola Positiva do Direito Penal", no item 3.3 do cap. 9, na segunda parte deste livro, além da bibliografia citada. (4) (5) (6) (7) (e) (9) 8C INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO c) as correntes psicológicas, cuja tendência é explicar a vida social através de fenômenos psicológicos, como: - a teoria da imitação de Gabriel Tarde: as ciências sociais nada devem esperar da biologia; na realidade elas constituem uma "Psicologia intermental" ou uma "interpsicologia"; para Tarde, o fenômeno social fundamental é a imitação, em sentido amplo; e o método social básico é a introspecção; invenção e imitação explicam toda a vida social; - a psicologia social, de MacDougall e a psicologia das multidões, representada por Gustave Le Bon, Wundt, Lazarus, Sighele e outros, que sustentam a existência de leis próprias do psiquismo coletivo; - a extensão da teoria psicanalítica de Freud ao plano social, de que é exemplo seu livro Totem e tabu, que se apresenta como uma interpretação da vida dos povos primitivos pela Psicanálise e das normas sociais por elementos de ordem sexual; - a psicossociologia americana e, especialmente, a "teoria social do espírito", de George Mead, autor de O espírito, eu e a sociedade (Mind, self and society): que define a realidade social como um "conjunto dinâmico de respostas e comportamentos diante de estímulos diferenciados";10 d) as correntes do naturalismo sociológico ou "sociologistas" afirmam: - a especificidade do social: o fato social não se reduz a fatos correntes sociologistas, psicológicos, biológicos, ou químicos; os fatos sociais, diz Durkheim, não são simples produtos de consciências individuais, mas o resultado de uma "consciência coletiva"," distinta das consciências subjetivas, síntese original em relação a estas, tal como a célula viva é uma síntese original em relação aos átomos que a compõem; - tais fatos - os fenômenos sociais -, como os fenômenos biológicos, químicos ou físicos, são simples fenômenos naturais, regidos pelo mesmo princípio determinista, que rege aqueles setores da natureza, e devem ser estudados por uma ciência natural, que A. Cocote denomina "física social" ou "sociologia"; - essa é a única ciência geral da sociedade; o Direito, a Política, a História são ciências sociais especializadas. (10' Sobre as diversas correntes psicológicas, v. obras citadas: Gilberto Freyre, v. 2, p. 331; Cuvillier, §§ 16 a 42; Recaséns Siches, v. 1, p. 363. Jung afirma existir um inconsciente coletivo de cujo conteúdo os seres individuais sofrem influências. O eu e o inconsciente, 6.' ed., Rio, Vozes, p. 3 a 13. Entre as escolas representativas da corrente sociologista, podem ser indicadas: - a Escola Sociológica francesa, inspirada no pensamento de A. Cocote, fundada por E. Durkheim e desenvolvida por Lévy-Bruhl, Georges Davy e outros; - a doutrina sociológico-jurídica de L. Duguit e na Alemanha a sociologia jurídica de Niklas Luhmann; - a corrente da jurisprudência sociológica, de Holmes, Cardozo e Roscoe Pound, nos Estados Unidos; - o sociologismo economicista de inspiração marxista, sustentado na Rússia por Pashukanis, Stuchka e outros. 12 1.2.2 O formalismo jurídico Com o objetivo de fazer uma "Teoria Pura do Direito", Kelsen elimina do campo da ciência jurídica propriamente dita: a) todos os elementos sociológicos ou dados da realidade social, que constituem objeto da "Sociologia do Direito"; b) todas as considerações sobre valores, como a justiça, a segurança, o bem comum, ou outros, cujo estudo cabe à Filosofia do Direito. Feitas essas duas "purificações", resta para a ciência jurídica a consideração do direito como pura norma. O objeto da ciência jurídica é conhecer normas e não prescrevê-las. Ao jurista propriamente dito, ao contrário do sociólogo ou do filósofo do direito, não interessa o conteúdo ou o valor das normas, mas apenas sua vinculação formal ao sistema normativo. Direito é norma. E norma é uma proposição hipotética (condicional), cuja estrutura é a seguinte: "Se A é, deve ser B".13 Em que A é a condição jurídica (por exemplo, um furto) e B a conseqüência jurídica (no caso, a pena de prisão). Ou, de outra forma, dada a não prestação, deve ser a sanção: "Dada a não P, deve ser S". Se o cidadão não votou, deve ser multado; se o inquilino não pagou o aluguel, deve ser despejado; se o contrato não respeitar Sobre as correntes sociológicas, v. E. Durkheim, As regras do método sociológico, São Paulo, Melhoramentos; L. Duguit, Traité de Droit Constitutionne1, Paris, 1921, v. 1, cap. 1.°, § 3.° e ss., além das obras citadas. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, Coimbra, Arménio Amado, 1962, p. 49 e ss. O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 87 Correntes psicológicas 88 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 89 condição essencial, deve ser anulado; dessa categoria são todas as normas de que se ocupa o direito. E, como diz Kelsen, "essa categoria do direito tem caráter puramente formal"." Dessa norma, formalmente considerada, e não de seu conteúdo é que se ocupa a ciência ou a teoria pura do direito. Ao formalismo jurídico correspondem, no plano geral das ciências sociais, as diversas tendências da sociologia formalista, representadas pelas doutrinas de Simmel, Wiese e outros." 1.2.3 O culturalismo jurídico Outra é a perspectiva em que se colocam as concepções culturalistas. Para estas, a ciência do direito deve partir de uma distinção preliminar entre "natureza" e "cultura" e conseqüentemente entre: - "ciências naturais", como a física, a química, a biologia etc., que se ocupam da natureza física ou material e; - ciências culturais ou humanas, como a história, a economia, a sociologia e outras que se ocupam do espírito humano e das transformações que ele introduz na natureza. Essas transformações ou realizações do espírito humano constituem os "objetos culturais". Nestes podem distinguir-se dois elementos: - o suporte ou substrato; - o sentido ou significado. Num utensílio, num gesto, num escrito pouco adianta conhecer ou descrever a realidade física, que é apenas o "suporte" de um "sentido". O importante é "compreender" esse "sentido' ou significação, que está sempre ligado a um valor, porque o homem sempre age em função de valores. Assim, o direito não é uma simples realidade física ou natural (naturalismo), nem um esquema meramente formal (formalismo), mas um objeto cultural, isto é, uma realização do espírito humano, com um suporte (ou substrato) e uma significação. Segundo Carlos Cóssio, esse suporte ou substrato pode ser: - um objeto "físico", como o mármore, o papel, a tela, e teremos então objetos culturais "mundanais" e objetivos;' (141 H. Kelsen, loc. cit. 1151 Sobre G. Simmel, Von Wiese e a Sociologia formal, ver, além das obras citadas, N. Timasheff, Teoria sociológica, Zahar, 1965, p. 137 e ss. e 374 e ss.; T. B. Bottomore, Introd. à sociologia, Zahar, p. 57. "" Aos objetos culturais "objetivos" ou "mundanais" corresponde o "espírito objetivo", de Hegel, e a "vida humana objetivada", de Recaséns Siches. i - ou a própria "conduta humana" subjetiva, pois é inegável que a vida humana "biográfica" - distinta da "biológica" - é também uma realidade ou objeto feito pelo homem: a vida humana não nos é dada feita, nós é que a fazemos no esforço de cada dia; em oposição aos objetos culturais "mundanais", diz Cóssio, a conduta humana é um objeto cultural "egológico" (de "ego") ou subjetivo. Essa distinção nos permite fixar as duas orientações em que se dividem as correntes culturalistas: - a teoria cultural objetiva, de que são representantes, entre outros, Dilthey, Spranger, Schmidt, Ortega y Gasset, Recaséns Siches; - a teoria "egológica" do direito, representada por Carlos Cóssio, Aftalion e outros, para quem o objeto da ciência do direito não é a "norma" objetiva, mas a "conduta em interferência intersubjetiva".'7 2. A técnica no direito 2.1 Existirão no campo do direito elementos de ordem técnica? Será o direito uma técnica? Como vimos, a técnica - "ciência técnica", em sentido amplo - é um dos ramos da ciência prática ou normativa. Seu objeto é o estudo ou o conhecimento das "normas" para "fazer" corretamente alguma coisa. Nesse sentido, a arquitetura, a cirurgia ou a contabilidade, como técnicas, consistem fundamentalmente no conhecimento das "normas" para "fazer" corretamente planejamentos, operações cirúrgicas ou escriturações de contas. Os antigos definiam a técnica como a recta ratio factibilium, em oposição à ciência moral, definida como recta ratio agibilium. A ciência técnica e a ciência moral consistem sempre em saber: "fazer" corretamente, no primeiro caso, saber "agir", no segundo." Nesses termos, existirá uma técnica jurídica? Qual o seu alcance? É inegável a existência de aspectos técnicos no campo do direito: técnica processual, técnica na interpretação das leis, técnica na formulação da sentença etc. Alguns autores, como Garcia Maynez, reduzem o campo da técnica jurídica ao da "aplicação do direito objetivo a casos concretos"." 071 Sobre as correntes culturalistas, ver, além da bibliografia citada, Miguel Reale, Filosofia de Direito, Saraiva, 1987, v. 1; Machado Netto, ob. cit., p. 37 e ss.; Carlos Cóssio, Panorama de la teoria egológica del Derecho, Buenos Aires, 1949. Sobre a distinção entre o "agir" e o "fazer", ver Capítulo 2, item 4.2. Garcia Maynez, Introducción al estudio del derecho, México, Porrúa, 1949, ri. 65 e 161. Direito e técnica 90 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 91 Mas este é apenas um setor da técnica jurídica. Esta abrange, na realidade, múltiplos setores, que, em síntese, podem ser assim indicados: a) há uma técnica de elaboração das normas jurídicas; é a técnica legislativa, que inclui todo o processo de feitura Técnica das leis, desde a apresentação do projeto: sua legislativa redação, discussão, aprovação etc. até sua sanção e publicação;20 b) há uma técnica de interpretação das leis, chama-se hermenêutica jurídica, definida por Carlos Maximiliano, como Técnica de ` o estudo e a sistematização dos processos apliinterpretação cáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito";21 c) há uma técnica de aplicação das normas jurídicas, aos casos concretos; essa aplicação pressupõe a interpretaTécnica ção, mas não se confunde com ela; "aplicar o de aplicação direito" significa enquadrar um caso concreto na do direito regra ou norma jurídica adequada,22 o que pres supõe o conhecimento do sentido e alcance da norma jurídica e, portanto, sua interpretação; a "aplicação" é a operação final, posterior ao exame do "significado" da norma; é nessa acepção que os vocábulos figuram no título da obra clássica de Carlos Maximiliano: Hermenêutica e Aplicação do Direito; é preciso lembrar, ainda, que a aplicação do direito aos casos concretos não é feita apenas pelos juízes, em suas decisões ou sentenças, mas por quaisquer autoridades ou particulares sempre que estejam enquadrando casos concretos nas leis ou outras regras jurídicas vigentes: aplicação de multas, celebração de contratos, registros de documentos etc. d) há uma técnica processual, que consiste no conjunto de meios adequados para conduzir uma ação em juízo: Técnica "processo", define Chiovenda, é o "complexo dos processual atos coordenados ao objetivo da atuação da von tade da lei (com respeito a um bem que se pretende garantido por ela) por parte dos órgãos da jurisdição ordinária";23 entre nós, o Código de Processo Civil fixa rigorosamente as normas disciplinares de todo o processo civil e comercial: desde a petição inicial, as citações, notificações e intimações, a contestação, a reconvenção, os despachos do juiz, as provas, a audiência, a sentença, até os recursos e a execução das sentenças; paralelamente, o Código de Processo Penal estabelece as normas que regem os processos em matéria penal, em todo o território brasileiro, regulando o inquérito policial, a denúncia pelo Ministério Público, as provas, o exame do corpo de delito, as perícias, o interrogatório do culpado, das testemunhas, a prisão em flagrante, a prisão preventiva, o julgamento, a sentença, os recursos, a execução das penas, o livramento condicional, a graça, o indulto, a anistia, a reabilitação; o mesmo ocorre com o processo trabalhista, fiscal, administrativo etc. 2.2 Tecnicismo, utilitarismo, pragmatismo Em todos esses aspectos, a técnica jurídica se caracteriza como um conjunto de normas destinadas à efetiva realização do direito em determinado meio social. Ou, como diz Pontes de Miranda, o "conjunto de meios para procurar e fixar as regras jurídicas (técnica legislativa) ou interpretá-las e aplicá-las (técnica exegético-executória)".24 Ou ainda, no dizer de Kohler, "técnica jurídica é o processo de pesquisa do justo, segundo o direito vigente".25 São tão amplos os aspectos técnicos no campo do direito que alguns autores pretendem reduzir todo o direito a uma técnica. Para esses autores, como diz um de seus representantes, Adolfo Ravá: o direito é • meio para a manutenção da sociedade. É significativo, nesse sentido, • título de seu trabalho: "O direito como norma técnica". Considerar • direito como norma técnica, diz Ravá, embora possa, à primeira vista, parecer um paradoxo, não está muito longe do conceito que dele fazem comumente os juristas e os leigos. As normas jurídicas são consideradas e tratadas pelos legisladores e pelo povo como "meios" para obter determinados "efeitos" e alcançar determinados "fins", isto palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente (23, um interesse humano", Carlos Maximiliano, ob. cit., n. 8, p. 19. Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, Saraiva, 1942, v. 1, p. 71. V. tb. a respeito Arruda Alvim, Manual de Direito Processual Civil, Ed. RT, 1977, v. 1, p. 4 e 5, e Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas (24 de Direito Processual Civil, 5.' ed., Saraiva, v. 1, p. 8 e 9. 25) Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do Direito, 1922, v. 2, p. 238. Apud Pontes de Miranda, loc. cit. Tecnicismo 20) (22) Sobre a técnica legislativa, ver Lei Complementar 60, de 10.07.1972, que "fixa normas técnicas a serem observadas na elaboração de Leis e decretos"; A. Torré, Técnica legislativa, n. 19 a 24, p. 255-256, da Introducción al Derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957; Machado Neto, Compêndio de introdução à ciência do Direito, Saraiva, 1969, p. 185 a 188. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, Freitas Bastos, 1947, n. 1, p. 13: "Interpretar é determinar o sentido, e o alcance das expressões do direito". O problema da interpretação das normas jurídicas é examinado na terceira parte, Capítulo 12, do presente trabalho. "A aplicação do Direito submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras 92 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 93 é, normas de caráter "instrumental", meios adequados para chegar a determinados fins .26 O tecnicismo de Ravá, que ele próprio aproxima do pensamento de Fichte, insere, de modo original, o direito dentro de uma elevada concepção ética.` Outros autores consideram também o direito como simples instrumento para a manutenção da sociedade, mas concebem a moral igualmente como simples meio, dentro de uma concepção utilitária da vida. As doutrinas utilitaristas negam ao direito um fundamento ético ou moral, e reduzem a justiça à utilidade. Suas origens históricas podem ser encontradas na escola hedonista ou cirenaica, de Aristipo, cujas idéias foram desenvolvidas em Atenas, por Epicuro. Nos tempos modernos, o utilitarismo foi retomado, principalmente na filosofia inglesa, por Jeremias Bentham (17481832), J. Stuart Mill (1806-1837) e H. Spencer (1820-1903).28 Na mesma linha, deve ser mencionada a concepção pragmatista e, especialmente, o pragmatismo jurídico. Partindo de uma teoria do conhecimento, a doutrina prag mática pode resumir-se nisto, disse Duguit: "A verdade de uma afirmação se julga pelo valor de suas conseqüências ou resultados". A eficácia é o critério da validade de qualquer conhecimento. O pragmatismo desenvolveu-se principalmente nos Estados Unidos, com Ch. Pierce (1893-1914), William James (1842 1910), John Dewey (1859-1928) e outros, que o aplicaram ao campo da educação, da política, do direito e das demais ciências humanas. Do pragmatismo jurídico - que foi uma das concepções da moda na primeira parte deste século, até as duas guerras mundiais - ocuparam-se, entre outros, Duguit 29 e Quintiliano Saldana.3o De qualquer forma - deixando de lado as concepções que exageram sua importância - é inegável que a técnica ocupa importante setor no campo do direito. É ela o instrumento que o especialista deve utilizar com perfeição para alcançar os resultados que constituem a finalidade, a razão de ser do direito, isto é, a justiça. (26) Adolfo Ravá, Diritto e Stato nella morale idealista. 1 - "Diritto come norma tecnica". II - "Lo Stato come organismo ético", Pádua, Cedam, 1950, p. 31 a 33. 121' O Estado é um organismo ético. O direito é uma norma técnica. V. ob. cit., p. 5 a 9. ¢8' V. "O utilitarismo", em Ciência do Direito, E. Bodenheimer, p. 101 a 107. "Teoria de l'utilitarismo", Del Vecchio, em Filosofia dei Diritto, p. 334 e ss. (29) L. Duguit, El pragmatismo jurídico, Madri, Beltran, 1924, p. 65. 10' Teoria dei derecho eficaz pragmatismo jurídico; Teoria programática dei derecho penal, Madri, 1923, além de um estudo crítico sobre El pragmatismo jurídico de Duguit. 2.3 Arte e direito Cabem aqui algumas considerações sobre o que se poderá chamar a arte ou estética do direito. Em sentido lato, "técnica" e "arte" se identificam. Etimologicamente, o vocábulo "técnica" provém do grego techné, que significa "arte". Nesse sentido a medicina é "arte" de curar e a engenharia "arte" de construir. Entretanto, em sentido estrito, a arte, propriamente dita, ou estética, refere-se à produção do "belo". Distingue-se, por aí, da técnica, cujo objeto é o "útil". Sob esse aspecto, haverá no direito elementos de ordem artística? Existirá uma estética do direito? Observou Radbruch 3i que, como toda manifestação da cultura, o direito carece também de meios materiais de expressão. Exemplos: a linguagem, os trajes, os símbolos, os edifícios. E, como todos os meios de expressão material, também aqueles que o direito utiliza são suscetíveis de uma valoração estética. Mais ainda, como todos os fenômenos que conhecemos, o direito pode ser também matéria de arte e entrar deste modo no domínio da estética. Podemos, assim, falar de uma estética do direito, embora até hoje não se tenham tentado, neste capítulo, mais do que simples aproximações e fragmentos. O estilo do direito, observa o mesmo autor, é uma linguagem fria. Renuncia a toda nota sentimental. E áspera. Dispensa, também, toda indicação de motivos. É sóbria e concisa, renunciando igualmente a toda doutrinação das pessoas a quem se dirige. Assim se explica a pobreza intencional do chamado "estilo lapidar" da lei, que serve para exprimir, com uma clareza inexcedível, a forte consciência que o Estado tem de si mesmo quando ordena. Linguagem que, na sua minuciosa exatidão, pôde servir de modelo estilístico a um escritor como Stendhal, que lia diariamente uma página do Código Civil, Aliás, os Códigos mais importantes de cada país representam, ao mesmo tempo, os grandes monumentos do respectivo idioma. O Brasil não fugiu à regra. A propósito da redação do Código Civil brasileiro, travaram-se, entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro, as discussões mais profundas sobre a língua portuguesa." A oratória forense, os símbolos do direito, a toga do magistrado, a beca do advogado, constituem outros tantos elementos estéticos que encontramos a cada passo na vida do direito. G. Radbruch, Filosofia do direito, § 14. 32j V. "Parecer sobre a redação do Código Civil". Senador Rui Barbosa, 03.04.1902; "Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa, feitas à redação do Projeto do Código Civil", E. Carneiro Ribeiro, 25.09.1902; "Réplica às defesas da redação do projeto da Câmara", Rui Barbosa, 31.12.1902; "Tréplica" ("A redação do Projeto de Código Civil e a Réplica Utilitarismo Pragmatismo 94 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 95 À "Arte del diritto", dedicou Camelutti 33 uma de suas famosas monografias. E outros juristas têm igualmente se ocupado do tema. 3. A ética e o direito - O direito como ciência normativa ética 3.1 A posição do direito no quadro das ciências Vimos que, se considerarmos as ciências em sua acepção mais ampla, podemos classificálas em três modalidades fundamentais: a) algumas se limitam a conhecer "o que é"; são as ciências teóricas ou especulativas; b) outras procuram orientar a conduta dos homens, indicandolhes "como agir"; são as ciências éticas ou morais; c) outras, finalmente, orientam a atividade produtiva ou as realizações externas do homem, indicando-lhe "como fazer"; são as ciências técnicas ou artísticas. Qual a posição do direito, dentro desse quadro? É este um dos problemas centrais da epistemologia jurídica. E sobre ele dividem-se autores e correntes. Como vimos, alguns tendem a reduzir o direito a uma "teoria" pura. Outros, a uma simples "técnica". Outros, ainda, a mero capítulo da "moral". Na realidade os aspectos teóricos, técnicos e éticos do direito não se excluem, mas se completam. O direito pode ser considerado sob a tríplice perspectiva de teoria, técnica e ética. A divergência entre as escolas situa-se principalmente na preeminência atribuída a esses diferentes aspectos. Resumindo nosso pensamento sobre o assunto, diremos que é inegável a existência de uma "tecnica" e uma "técnica" e uma "estética" no direito. E cada uma tem sua função, como mostramos nos parágrafos anteriores. Mas o direito é, essencialmente, uma ciência "ética", moral ou humana. Ou, de forma mais precisa, uma ciência normativa ética. A finalidade do direito não é o simples conhecimento "teórico" da realidade jurídica, embora esse conhecimento seja importante. Não do Dr. Rui Barbosa"), E. Carneiro Ribeiro. Pormenores da histórica polêmica poderão ser encontrados no Código Civil Comentado, de Clóvis Beviláqua, v. 1, n. 39 e ss., e nas seguintes publicações da Casa de Rui Barbosa: Rui e a Réplica, Américo de Moura, 1949; Rui e o Código Civil, San Tiago Dantas, 1949; Repertório da Réplica, M. S. Mendes de Morais. "' F. Carnelutti, Arte del diritto, Pádua, Cedam, 1949. é também a formulação de quaisquer regras "técnicas", eficazes e úteis, apesar da grande importância da técnica jurídica. A finalidade do direito é dirigir a conduta humana na vida social. É ordenar a convivência de pessoas humanas. É dar normas ao "agir", para que cada pessoa tenha o que lhe é devido. É, em suma, dirigir a liberdade, no sentido da justiça. Insere-se, portanto, na categoria das ciências normativas do agir, também denominadas ciências éticas ou morais, em sentido amplo. Para evitar confusões, é preciso lembrar que o vocábulo "moral" pode ser empregado em duas acepções diferentes. Uma, estrita e hoje mais corrente, que identifica moral com a disciplina dos atos humanos, fundada na consciência. E outra, mais ampla, abrangendo todas as ciências normativas do agir humano; pedagogia, política, direito moral em sentido estrito etc. Muitos preferem reservar a palavra "ética" para essa acepção ampla. Teríamos, assim, o esquema seguinte: MORAL (sentido estrito) DIREITO POLÍTICA PEDAGOGIA ETC. Nesse sentido, podemos dizer, com Vicente Ráo, que "Moral e Direito têm um fundamento ético comum".34 Ou, com Jellinek, que o direito é o "mínimo ético", isto é, o estritamente necessário para a convivência social. 3.2 O objeto da ciência do direito Essa caracterização do direito como ciência ética não mas essencial, porque decorre de seu próprio objeto. Toda ciência se caracteriza essencialmente por seu objeto. E este se divide em material e formal. Objeto material é o setor da realidade de que se ocupa cada ciência. Objeto formal é o aspecto pelo qual a ciência considera ou estuda esse setor da realidade. O objeto material das ciências éticas é, como vimos, a atividade humana. O objeto formal é o bem. Elas têm por objeto ordenar ou dirigir a atividade humana no sentido de bem, seja o bem pessoal, seja o bem comum. Qual o objeto do direito? (74' Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, v. 1, n. 21, p. 68. Perspectiva teórica ética e técnica do direito ÉTICA (ou MORAL em sentido amplo) Direito ciência normativa ética é acessória, Objeto da ciência - elemento essencial 96 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 97 Atividade humana social (objeto material) Fundamentalmente, o objeto material do direito é o homem vivendo em sociedade. E a atividade social do homem, ou, como diz Cóssio, é a "conduta humana em interferência intersubjetiva".35 O homem vive em sociedade, e esta implica necessariamente relações de família, relações econômicas, políticas, profissionais etc. Essas relações consti tuem a matéria do direito. Não podemos sequer pensar os predicados de "justo" ou "injusto", "direito" ou "crime" senão aplicando-os a uma atividade humana, lembra Del Vecchio.3ó Os puros fenômenos naturais (astronômicos, atmosféricos etc.) recusam tais atributos, são estranhos à perspectiva do direito, que não tem sentido para eles. O direito se refere sempre a ações humanas. Mas o direito se ocupa dessa matéria sob um aspecto especial: o da justiça. Importa fundamentalmente ao direito que, nas relações sociais, uma ordem seja observada: que seja assegurada a cada um aquilo que lhe é devido, isto é, que a justiça seja realizada. Podemos dizer que o objeto formal do direito é a justiça. reúne, assim, as duas características de uma ciência normativa ética: a) tem por objeto material a "atividade humana" (social); b) e por objeto formal o "bem", em um de seus aspectos fundamentais, que é a justiça; a justiça é o "bem em relação a outrem", definiu Platão. Donde se conclui que o direito é fundamentalmente uma ciência normativa ética. Ou, como diz Dei Vecchio, o Direito direito é a coordenação objetiva das ações posclencla síveis entre vários sujeitos, segundo um princípio ética ético que a determina." 3.3 Ciência da liberdade Mas essa conclusão precisa ser bem entendida. Afirmamos que o direito pertence à categoria geral das ciências morais ou humanas. Ciência moral é tomada aqui, como vimos, no sentido lato e se refere a toda ciência que tenha por objeto ordenar a atividade ou o (33) Carlos Cóssio, Panorama de Ia teoria egológica dei Derecho, Buenos Aires, 1949. 36) Dei Vecchio, Filosofia dei diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. 197. (37) Ob. cit., p. 207. A definição do direito de Dei Vecchio é mais extensa: "Possiamo definire el diritto come il coordinamento objetivo delle azione possibili ira piìr soggetti, secondo un principio etico che le determina, escludendone 1'impedimento" (Filosofia dei Diritto, p. 207). comportamento humano. E não o sentido estrito e limitado de moral individual ou pessoal. E, como a característica fundamental da atividade humana é a liberdade, podemos dizer que o direito é ciência da liberdade. Nesse sentido o direito é uma das ciências éticas, ao lado da moral (em sentido estrito) e das demais ciências normativas da conduta. Sob esse aspecto, coloca-se o problema da distinção entre o "direito" e a moral (em sentido estrito). Essa distinção processou-se historicamente, desde as Direito normas indiferenciadas dos povos primitivos até e moral os códigos modernos, através de lento desenvolvimento, que tem sido estudado por etnólogos, filósofos e historiadores do direito.` De uma forma geral, nem mesmo os juristas romanos fizeram, com clareza, essa distinção. A afirmação de Paulo: "Nem tudo que é lícito é honesto" ("non omne quod licet honestum est"), mostra um aspecto prático dessa distinção entre direito (lícito) e moral (honesto), mas não apresenta nenhum critério objetivo para distingui-los. Só em época relativamente recente, no início do séc. XVIII, surge com Cristiano Tomasio uma explicação fundamentada dessa distinção: a moral se refere só ao foro interno (forum internum) e o direito ao foro externo (forum externum), conseqüentemente a moral não é coercível, mas o direito é.39 Esse é, também, de certa forma, o pensamento de Kant e de outros autores. E, apesar das restrições que podem ser feitas a essa concepção, ela contém em germe os elementos fundamentais para a distinção entre o direito e moral, que Del Vecchio sintetizou em fórmula lapidar: o Direito constitui a ética objetiva e a moral, a ética subjetiva .4o Afirmamos que a justiça representa o valor fundamental ou o objeto formal do direito. Como disse Brunschvicg: "Em cada um dos juízos do direito, é a justiça justiça em que está em causa" .41 sua acepção Mas é preciso ter presente que a palavra ampla "justiça" é aí empregada em sua acepção mais Sob aspecto da justiça (objeto formal) O direito (38) (39) (40) 4)) V. "Direito" e "Moral" em Dicionário de Etnologia e Sociologia, Herbert Baldus e Emilio Willems, São Paulo, Ed. Nacional; "Derecho y Moral" (Estudo sistemático da distinção entre direito e moral), in Introducción ai derecho, A. Torré, Buenos Aires, Perrot, 1957, p. 120 a 130; Machado Neto, "Moral e direito", em Introdução à Ciência do Direito, v. 2, p. 201 a 205; "Relazioni ira diritto e morale", G. Dei Vecchio, in Filosofia dei diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. 204 a 215. Cristiano Tomasio, Fundamenta Juris Naturae et Gentium, obra publicada em 1705. Dei Vecchio, Filosofia dei Diritto, p. 205. L. Brunschvicg: "Dans chacun des jugements du droit Ia justice est toute entière en cause". La modalité du jugement. O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 99 ampla. Estende-se não apenas à justiça particular (comutativa e distributiva), mas também à justiça social ou geral, que tem por objeto o bem comum. De modo que as noções de ordem pública, segurança, interesse social e outras semelhantes, contidas na noção de bem comum, estão também contidas no conceito de "justiça". Esse mesmo pensamento é assim exposto por Geny: "No fundo, o Direito não encontra seu conteúdo próprio e específico senão na noção de 'justo', noção primária, irredutível e indefinível, que implica, essencialmente, não apenas os preceitos elementares de não prejudicar a ninguém (neminem laedere) e de dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), mas também o pensamento mais profundo de um equilíbrio a estabelecer entre os interesses em conflito, com a finalidade de assegurar a 'ordem' essencial à manutenção e ao progresso da sociedade humana".42 Nessa perspectiva, a ordem jurídica nada tem de imobilizadora. Pelo contrário, ciência prática, orientada permanentemente no sentido da realização da justiça, o direito só se realiza plenamente na medida em que respeita seu caráter dinâmico, como elemento da ação transformadora do homem na história. O direito não é uma ciência natural, a estudar as manifestações da vida social e humana como se fossem "coisas" ou simples fenômenos físicos. O homem não é um "objeto" passivo, nem mero espectador da realidade. Dentro de certos limites, é ele que imprime ordem no mundo. E o direito é, de certa forma, instrumento dessa ação transformadora do homem. 4. Outras formulações 4.1 Uma concepção naturalista do direito Pontes de Miranda, Systema de Sciencia Positiva do Direito, Rio, Ed. Jacinto, 1922, v. II, p. 83 a 85 e ss. Afirmar que o direito é produto exclusivo do meio humano equivale a pregar filosofia em que o homem ocupa todo o espaço, em vez do simples lugar, realmente importante, que lhe cabe, no meio da série animal. Onde há coexistência, há direito. Quando o mineral se cristaliza em poliedros há certo ritmo que, se não é o "nosso" direito, deve ser algo de vivo e de natural como ele. E a vontade? E a consciência?, perguntar-se-á. Mas nada importa isto; quando o homem constrói casa, também parece que é voluntariamente que o faz e, todavia, no essencial, o que determina é a mesma necessidade que leva o pássaro aos esforços da nidificação. Distinguir do necessário o voluntário e querer traçar raias entre eles é retomar o fio dos problemas metafísicos insolúveis. O que há de menos livre no homem é justamente 42' F. Geny, Sclence et technique en droit privé positif, Paris, Recueil Sirey, 1922, 1, v. 1, n. 16, p. 50. a vontade, forma "imperativa" de circunstâncias inferiores. É a responsabilidade um dos elementos que nos dão a idéia da natureza humana do direito; mas a própria responsabilidade, que passa por fundamento da repressão e da restituição, nada mais é que um dos processos necessários ao desenvolvimento da vida humana, um dos meios psicológicos para corrigir defeitos mais ou menos graves de adaptação à vida em comum, à coexistência. Entre os outros animais, não será ele preciso; mas o homem pensa e é de mister a noção de responsabilidade, único conetivo que as energias vitais dele encontraram para combater os efeitos e as causas dos defeitos da adaptação resultante da convivência de seres pensantes, como o homem. Assim, facilmente se compreenderá a razão da interdição dos loucos e deficientes. A noção de responsabilidade serve de coordenador entre os homens, processo de solução biológica, tão natural como outros que no mundo animal se encontram e até entre homens; e, puro expediente criado pela coexistência de seres pensantes, pela sociedade, deixa de existir onde não há, entre homens, a elaboração de processos atinentes a remover obstáculos à adaptação social: indígenas antropófagos não poderiam nunca comer indivíduos da mesma tribo sem a "motivação jurídica", que é o corolário da responsabilidade. O interdito não tem mais, em condições da função normal, o aparelho para o qual criou a natureza humana a noção de responsabilidade. Esta somente existe porque é preciso disciplinar a atividade psíquica; se não houvesse o aparelho do espírito humano, no que ele tem "acima" dos outros animais, não seriam necessários "outros" processos de adaptação social, senão os vigentes entre os demais seres; não haveria a noção de responsabilidade, nem, pois, interditos (anormais civis), nem irresponsáveis (anormais do direito repressivo). Na ciência, não há, portanto, nenhum lugar para a questão do livre-arbítrio: nem a cor das flores, nem a medida regular dos ângulos do cristal, nem o vôo dos pássaros, nem o instinto de nidificação precisam de explicativa lógica; tampouco a responsabilidade: é determinada a mínima vontade do homem, mas a noção de responsabilidade é necessária à adaptação do homem à vida social e tão imprescindível à vida comum como os órgãos humanos se fizeram necessários às funções que lhes cabem. Se algum dia se deparar com a vida social outro processo mais eficaz, pôr-se-á de lado o antigo e será possível a adaptação do homem à sociedade, à coexistência, sem a noção de responsabilidade: outra ilusão poderá ser o novo processo ou fundar-se em verdade colhida na exata e positiva ciência das organizações humanas. Hoje não há muita diferença entre a faca do homem que sacrifica o boi, o porco ou o carneiro, para viver, e a pena do magistrado que decreta a prisão do criminoso ou a reparação dos danos. Entre os dois há a mesma idade de fim, a adaptação; aquele, a adaptação à vida animal, e esse, à vida social: ali, necessidade biológica, aqui, sociológica. 4.2 O caráter puramente formal da norma jurídica H. Kelsen, Teoria pura do direito, parágrafo 11, O dever-ser como categoria do direito, Ed. Novada, 1941. O sentido da norma jurídica, como o da norma moral, é expresso num dever ser. Por isso ao conceito da "norma" jurídica e ao dever-ser jurídico há de ficar ligado algo do valor absoluto que é próprio da Moral. O que é estabelecido por uma "norma" jurídica ou "devido" por causa do Direito nunca está de todo livre da representação mental de que isso é bom, reto ou justo. 100 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Neste sentido, a definição conceptual do Direito como "norma" ou deverser pela jurisprudência positivista do século XIX, não está isenta de certo elemento ideológico. Liberar a definição do direito desse elemento ideológico é o empenho da teoria pura do Direito, que desliga por completo o conceito de norma jurídica do da norma moral, de que ele proveio; e assegura, assim, a legalidade própria do Direito diante da lei moral. Isso ocorre porque a norma jurídica não é compreendida como um "imperativo", à semelhança da norma moral, tal como o faz, quase sempre, a doutrina tradicional. Mas, como um "juízo hipotético", que expressa a relação específica de uma situação de fato condicionante com uma conseqüência jurídica condicionada (se A, deve ser B, ou se houver tal fato - por exemplo, um crime - deve ser tal conseqüência no exemplo dado, a condenação). A norma jurídica se transforma assim em "proposição" jurídica, que revela a forma fundamental da lei. Assim como as "leis naturais" relacionam uma determinada situação de fato, como causa, com outra, como efeito, a "lei jurídica" relaciona a condição jurídica com a conseqüência jurídica (isto é, com a chamada conseqüência do antijurídico). No primeiro caso, a forma da relação entre os fatos é a causalidade. No outro, é a imputação, que é conhecida pela teoria pura do Direito como a legalidade particular do Direito. Assim como o efeito é atribuído à sua causa, a conseqüência jurídica é atribuída à sua condição jurídica. Entretanto, a conseqüência jurídica não pode ser considerada como causalmente produzida pela respectiva condição. Mas dizemos que a conseqüência jurídica é imputada à condição jurídica. Esse é o sentido das expressões: alguém será castigado "por causa" de um delito, haverá execução contra determinado patrimônio "por causa" de uma dívida não paga etc. A relação da pena ao delito, da execução ao não-pagamento da dívida etc., não tem significado causal, mas, sim, significado normativo (deverser). Portanto, a expressão específica do Direito é o dever-ser com que a teoria pura do Direito apresenta o Direito positivo. Assim como a expressão das leis causais é o será (ou haverá). A lei natural diz: "Se A é, será B" (ou, se houver A, haverá B). A lei jurídica diz: "Se A é, deve ser B", sem dizer com isso qualquer coisa sobre o valor moral ou político dessa conexão. O "devei-ser" limita-se a existir como categoria relativamente apriorística para a apreensão do material jurídico empírico. E, sob esse aspecto, é imprescindível para conceituar e expressar o modo específico com que o Direito positivo relaciona um fator com outros. Pois é notório que essa relação não é a de causa e feito. A pena é aplicada ao delito não como efeito de uma causa. O que o legislador estabelece entre esses fatores é um encadeamento bem diferente da causalidade (da natureza). Completamente diferente, mas tão inviolável como ela. Pois, no "sistema do Direito", isto é, por causa do Direito, a pena segue o delito sempre e sem exceção, se bem que, "no sistema da natureza", a pena pode faltar por qualquer razão. E quando a pena se verifica, isso acontece não precisamente como "efeito" do delito. Se dizemos: quando ocorre o antíjurídico (antecedente) "deve" ocorrer a conseqüência jurídica, esse "dever-ser" significa apenas - como categoria do Direito - que a condição jurídica e a conseqüência jurídica se correspondem na proposição jurídica. Essa categoria do direito tem caráter puramente formal, e, por isso, se distingue principalmente de uma idéia transcendente do Direito. Ela é aplicável, seja qual for o conteúdo que tenham os fatos aí relacionados. A nenhuma realidade social pode negar-se compatibilidade com essa categoria jurídica por causa da natureza de seu conteúdo. Trata-se de categoria gnosiológico-transcendental, no sentido da filosofia kantiana e não metafísico-transcendental. Justamente por isso conserva sua tendência radicalmente antiideológica. E, por isso também, precisamente neste ponto, manifesta-se a mais violenta resistência da parte da doutrina jurídica tradicional, que dificilmente pode suportar que a ordem da antiga República Soviética devesse ser conceituada como ordem jurídica, do mesmo modo que a da Itália fascista ou a da França democrático-capitalista. 4.3 O egologismo como concepção cultural do direito A. L. Machado Netto, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, São Paulo, Ed. Saraiva, 1969, p. 69 e ss. Como um importante marco do grande movimento filosófico jurídico que caracteriza a presente centúria, temos, na Argentina, o esplendoroso florescimento jurisfilosófico que a escola egológica representa. É valendo-se da teoria dos objetos que Cóssio parte para a fundamentação de sua ontologia jurídica, em que nos presenteia com a descoberta do direito como conduta em interferência intersubjetiva. Tal teoria dos objetos reconhece quatro regiões ônticas ou quatro ontologias regionais, a saber: a) os objetos ideais, que se caracterizam por serem irreais, não se darem na experiência e serem neutros de valor, e cujo processo cognoscitivo é a intelecção, que se realiza através do método racional-dedutivo; b) os objetos naturais, reais, que se dão na experiência, são neutros ao valor e cujo processo de conhecimento é a explicação, realizável por meio do método empíritoindutivo; c) os objetos culturais, que são reais, estão na experiência, são positiva ou negativamente valiosos e são conhecidos mediante o processo gnosiológico da compreensão, por meio do método empíritodialético; d) os objetos metafísicos, que têm existência real, não estão na experiência sensível e são valiosos positiva ou negativamente. A cada uma dessas regiões de objetos, por suas especiais características, corresponde um determinado tipo de ciência, salvo a última, região própria da metafísica, que a unânime opinião filosófica apresenta como o terreno extracientífico por excelência. Assim é que aos objetos ideais correspondem as ciências formais como as matemáticas e a lógica; aos objetos naturais, as ciências experimentais ou ciências naturais; e aos objetos da cultura, as chamadas ciências humanas, sociais ou culturais. O direito, estando situado nesta última região, é, pois, um objeto cultural, a ciência do direito sendo, assim, uma ciência da cultura. Mas, nos objetos culturais, Cóssio distingue um suporte fáctico ou substrato e um sentido sustentado por esse suporte, e que é onde reside o caráter valioso ou desvalioso do bem cultural, qualquer que seja ele. Conforme esse suporte seja um objeto físico, corno o mármore numa estátua, ou uma conduta humana, como num ato moral, teremos os objetos culturais divididos em mundanais e egológicos, respectivamente. O direito, por inexistir, no caso, um objeto físico que lhe constitua o suporte, e um objeto egológico, por consistir em conduta, conduta humana em interferência intersubjetiva, que é o que o distingue da moral, segundo a famosa distinção de Dei Vecchio, que Cóssio transporta do plano lógico para o ontológico. O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 101 102 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO O DIREITO NO QUADRO DAS CIÊNCIAS 103 4.4 Normas de técnica legislativa Lei Complementar 60, de 10.07.1972. Fixa normas técnicas a serem observadas na elaboração de Leis e decretos. O Governador do Estado de São Paulo: Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei complementar: Art. 1.° As leis e decretos serão enumerados em séries distintas, sem renovação anual. § 1.° As leis complementares terão numeração própria. § 2.° O decreto não articulado, cujo cumprimento lhe exaura a finalidade específica, não será numerado, identificando-se pela data. Art. 2.° Nenhuma lei ou decreto conterá matéria estranha ao seu objeto, ou que não lhe seja conexa. Art. 3.° A alteração de lei ou decreto, por substituição ou supressão do artigo, ou acréscimo de dispositivo novo, obedecerá às seguintes normas: 1 - será mantida a numeração dos artigos da lei ou do decreto alterado; II - ao artigo novo atribuir-se-á o mesmo número do que o anteceder, seguido de letras maiúsculas em ordem alfabética. Parágrafo único. Quando a modificação atingir a maioria dos artigos, ou quando tenha havido sucessivas alterações no texto, a lei ou o decreto serão refundidos por inteiro. Art. 4.° A elaboração das leis e decretos atenderá aos seguintes princípios: I - os textos serão precedidos de ementa enunciativa do seu objeto e divididos em artigos; II - a numeração dos artigos será ordinal até o nono e, a seguir, cardinal; III - os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos, em incisos (algarismos romanos) ou em parágrafos e incisos; os parágrafos em itens (algarismos arábicos); e os incisos e itens em alíneas (letras minúsculas); IV - os parágrafos serão representados pelo sinal §, salvo o parágrafo único, que será grafado por extenso; V - o agrupamento de artigos constituirá a Seção, que poderá desdobrarse em Subseções; o de seções, o Capítulo; o de capítulo, o Título; o de títulos, o Livro; e o de livros, a Parte, que poderá desdobrar-se em Geral e Especial ou consistir simplesmente em Parte seguida de numeração ordinal, grafada por extenso; VI - os grupos a que se refere o inciso anterior poderão compreender os subgrupos Disposições Preliminares e Disposições Gerais; VII - as disposições que, pelo seu sentido, não couberem em qualquer dos grupos, serão incluídas em Disposições Finais; e as que não tiverem caráter permanente constituirão as Disposições Transitórias, com numeração própria. VIII - no mesmo artigo que fixar a data da vigência da lei ou decreto, ser4 declarada, quando possível especificamente, a legislação anterior revogada. Art. 5.° A partir da vigência desta lei complementar será iniciada nova numeração das leis e decretos. Art. 6.° Esta lei complementar entrará em vigor na data de sua publicação, revogado o Dec.-lei Complementar 1, de 11.08.1969. Palácio dos Bandeirantes, 10 de julho de 1972 - LAUDO NATEL. 5. Bibliografia AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil. 5. ed. Saraiva, 1977. v. 1. ARRUDA ALVIM. Manual de direito processual civil. RT, 1977. v. 1. BALDUS, Herbert e WILLEMS, Emílio. Dicionário de etnologia e sociologia. São Paulo : Nacional, s/d. BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE-LACOSTE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Recueil Sirey, 1947. CARNELUTTI, F. Arte del diritto. Pádua : Cedam, 1949. -. Teoria geral do direito. São Paulo : Saraiva, 1942. -. Metodologia del diritto. Pádua : Cedam, 1939. CATHERIN. 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As diversas ciências jurídicas: 1.1 Visão conjunta da ordem jurídica: 1.1.1 Epistemologia jurídica; 1.1.2 Axiologia jurídica; 1.1.3 Dogmática jurídica; 1.1.4 Teoria dos direitos subjetivos; 1.1.5 Sociologia jurídica; 1.2 O conteúdo do curso de introdução à ciência do direito - 2. A divisão do direito em público e privado: 2.1 Visão geral do campo do direito: 2.2 Quadro geral; 2.3 Novos ramos - 3. Outras formulações: 3.1 "Direito público e direito privado", R. de Ruggiero: 3.2 "A tendência moderna de publicização do direito", Vicente Ráo; 3.3 "A divisão do direito em público e privado: uma intromissão da política no direito", H. Kelsen; 3.4 "As disciplinas jurídicas", A. Torré - 4. Bibliografia. 1. As diversas ciências jurídicas 1.1 Visão conjunta da ordem jurídica Situado o direito no conjunto dos conhecimentos humanos, devemos, em seguida, procurar ter uma visão conjunta da ordem jurídica. Para isso, podemos percorrer dois caminhos: a) examinar o quadro atual das diversas ciências jurídicas, especialmente: - a Epistemologia Jurídica - a Axiologia Jurídica - a Dogmática Jurídica - a Sociologia Jurídica - outras ciências jurídicas b) focalizar a tradicional divisão do direito em público e privado e sua ramificação atual que, com ligeiras diferenças entre os juristas, apresenta o seguinte quadro: - Direito Público: interno - Direito Constitucional Direito Administrativo Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Freitas Bastos, 106 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 107 Direito Direito Direito Direito externo - Direito - Direito Privado: comum - Direito Civil especial- Direito Comercial Direito do Trabalho Direito Internacional Privado Com o objetivo de apresentar uma primeira visão conjunta do direito, procuraremos dar algumas indicações sumárias sobre essas duas perspectivas: as diversas disciplinas jurídicas e a divisão do direito em público e privado. Tomando a expressão "ciência do direito" em sua acepção mais ampla - incluindo os aspectos teóricos e práticos, Quadro filosóficos, sociológicos e técnicos podemos das ciências indicar o seguinte quadro das principais disciplina jurídicas jurídicas: a) a epistemologia jurídica, que é a teoria do conhecimento científico do direito; b) a axiologia jurídica ou teoria dos valores jurídicos e especialmente da justiça; c) a dogmática jurídica ou teoria do direito como norma; que inclui a técnica jurídica; d) a teoria dos direitos subjetivos ou teoria do direito como poder, que alguns autores incluem na dogmática jurídica; e) a sociologia jurídica, que é o estudo do direito como fenômeno social. 1.1.1 Epistemologia jurídica Epistomologia - do grego episteme (ciência) e logo (estudo) - é a teoria da ciência. Cabelhe estudar as características próprias do objeto e do método de cada ciência, investigando suas relações e os princípios comuns ou diferenciais. Esse o sentido estrito. Muitos autores, entretanto, dão ao termo "epistemologia" o sentido amplo de teoria do conhecimento em geral e não apenas o de teoria da ciência. Identificam assim epistemologia e gnosiologia (do grego gnósis, conhecimento). O vocábulo inglês epistemology, observa Lalande,' é "0 Lalande, Vocabulaire technique et critique de Ia Philosophie, verbete "Êpistémologie". com freqüência empregado (contrariamente à sua etimologia) para designar o que chamamos "teoria do conhecimento" ou gnosiologia.2 Epistemologia jurídica, conseqüentemente, será, em sentido estrito, a teoria da ciência do direito. Isto é, o estudo das características relativas ao objeto e aos métodos das diversas ciências jurídicas - a dogmática jurídica, a sociologia do Direito, a técnica jurídica etc. -, sua posição no quadro das ciências e suas relações com as ciências afins. E, em sentido amplo, epistemologia do Direito é a teoria do conhecimento jurídico em todas as suas modalidades: os "conceitos" jurídicos, as "proposições" ou juízos do direito, o "raciocínio" jurídico, a "ciência" ou ciências do direito etc. Neste último sentido o vocábulo é empregado no "Ensaio de Epistemologia Jurídica", um dos capítulos da obra de Geny, Science et technique en droit privé positif, em que o consagrado jurista afirma: "Trata-se de uma espécie de teoria do conhecimento, aplicada às coisas do direito, ou, se a expressão não parecer muito ambiciosa, de uma espécie de epistemologia jurídica estudada não apenas para orientar o pensamento do jurista, mas também para inspirar sua ação".3 1.1.2 Axiologia jurídica Como sabemos, a axiologia - do grego, axiós, apreciação, estimativa - é a parte da filosofia que se ocupa do problema dos valores, tais como o bem, o belo, o verdadeiro etc. Em síntese: é a teoria dos valores. Axiologia jurídica é, naturalmente, o estudo dos valores jurídicos, na base dos quais está a justiça. Recebe, por isso, também as denominações de Teoria dos valores jurídicos, Teoria do direito justo, Estimativa jurídica, Teoria da justiça e outras. Del Vecchio prefere denominá-la Deontologia jurídica - etimologicamente: ciência do que deve ser (do grego, deontós, que significa "dever"), porque lhe compete investigar o que "deve" ou "deveria" ser o direito, diante do que "é" na realidade. O espírito humano nunca permanece passivo diante do direito, da lei, da decisão judicial ou administrativa; nunca aceita calmamente o fato consumado, como se ele fosse um limite insuperável. Todo homem sente em si a faculdade de julgar e avaliar o direito existente: há em cada um de nós o sentimento da justiça. "Epistemologia" recebe, ainda, uma terceira significação empregada por alguns autores, que a identificam com a "filosofia da ciência", isto é, o estudo crítico de todos os pressupostos ou postulados de cada ciência. V. Lalande, loc. cit. François Geny, ob. cit., parte 1, cap. 4.°. Judiciário Penal Financeiro Tributário Internacional Público i 108 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 109 Daí a possibilidade de uma investigação totalmente distinta da que é feita pelas ciências jurídicas, em sentido estrito.' 1.1.3 Dogmática jurídica A dogmática jurídica é o estudo do sistema de normas jurídicas vigentes em determinada época e local. Seu objetivo é conhecer as normas, interpretá-las, integrá-las no sistema, aplicá-las aos casos concretos. É chamada "dogmática" porque a situação do jurista - seja ele advogado, juiz, escrivão, promotor - perante a norma jurídica é semelhante à do fiel diante dos dogmas. Deve aceitar a norma vigente como ponto de partida inatacável. Muitos preferem denominá-la Teoria do Direito Positivo ou Ciência do Direito em sentido estrito ou, ainda, Jurisprudência, Jurisprudência dogmática, Jurisprudência técnica etc.5 Com o reconhecido espírito prático dos americanos, o juiz Holmes (1841-1936) definiu-a como "o prognóstico do que os tribunais farão no caso concreto". 1.1.4 Teoria dos direitos subjetivos Do campo da dogmática jurídica pode ser destacada a "Teoria dos direitos subjetivos", que muitos autores, como Brethe De La Gressaye e Laborde-Lacoste, estudam sob a designação de "Teoria do direito como poder", em oposição ao "Direito como regra". A regra do direito constitui apenas um primeiro aspecto da realidade jurídica. Toda "regra" se traduz, na prática, pelo "poder" reconhecido a uma pessoa (privada ou pública) para agir em determinado sentido nas relações sociais. Este segundo aspecto é, na realidade, conseqüência do primeiro. Trata-se, entretanto, de colocá-lo em plena luz, a fim de conhecer os meios que o direito oferece às partes, como decorrência da norma.' 1.1.5 Sociologia jurídica A sociologia do Direito é a disciplina que tem por objeto o estudo do fenômeno jurídico, considerado como fato social. É ciência teórica (4) G. Del Vecchio, Lezioni di Filosofia del Diritto, Milão, Giuffrè, 1946, p. a 4. À mal denominada "Ciência positiva do Direito" ou "Ciência do Direito propriamente dita", melhor seria chamar "Ciência do Direito vigente", T. Sternberg, Introducción a Ia ciência del derecho, Labor, 1930, p. 12. Sobre outras denominações, v. A. Torré, ob. cit., p. 49. Brethe De La Gressaye e Laborde-Lacoste, Introduction générale à l'étude du droit, Paris, Sirey, 1947, n. 351, p. 326 e ss. "L'expression de 'pouvoir de droit' nous parait celle qui rend le mieux cet aspect du droit. Cependant, nous conformerons à Ia langue scit;ntifique qui parle de 'droit subjectif', envisageant le droit dans Ia personne de son suje[". ou especulativa, no sentido de que estuda o direito, não como um dever-ser, mas como um "ser" ou fenômeno social, considerando-o em si mesmo, em sua evolução e em suas relações com os demais setores da vida social, tais como a economia, a arte, a técnica, a moral, a religião etc. Apesar de possuir raízes antigas em Aristóteles (385322 a.C.), Hobbes (1588-1679), Espinoza (1632-1677), Montesquieu (1689-1755) e outros, a sociologia jurídica é ciência de constituição recente, ou "ainda em pleno período de formação", como diz Gurvitch,7 que aponta entre seus fundadores europeus: E. Durkheim (1858-1917), L. Duguit (1859-1928), E. Levy (18801943), M. Hauriou (1856-1929), Max Weber (1864-1920), Ehrlich (1862-1922) e os americanos O. W. Holmes (1841-1936), Roscoe Pound e Benjamin Cardozo (1870-1938). 1.2 O conteúdo do curso de introdução à ciência do direito A epistemologia jurídica e a axiologia jurídica pertencem ao campo da filosofia do direito, que, em sua acepção mais ampla, pode ser caracterizada como o estudo Filosofia dos princípios ou pressupostos fundamentais do do direito direito.' A dogmática jurídica - que a rigor inclui a Ciência Teoria dos direitos subjetivos - constitui, como do direito vimos, a ciência do direito, em sentido estrito. A sociologia jurídica - que se vem constituindo modernamente e apresenta importância cada vez maior para o conhecimento objetivo do direito como realidade Sociologia social - possui caráter mais sociológico do que do direito jurídico propriamente dito. Qual desses aspectos interessa a um curso de introdução à ciência do direito? (7) 8) (5) (6) Georges Gurvitch, Sociologia jurídica, Rio, Kosmos, 1946, p. 23. Esses pressupostos ou princípios fundamentais são estudados, principalmente, pelas seguintes partes da Filosofia do direito: a) pela teoria do conhecimento jurídico (Gnosiologia, Epistemologia ou Lógica do Direito), que estuda o conceito de direito e as estruturas lógicas que permitem ao jurista realizar sua tarefa científica: os conceitos jurídicos, as proposições ou juízos jurídicos, o raciocínio jurídico, as ciências jurídicas; b) pela teoria dos valores jurídicos (Axiologia Jurídica), especialmente pela teoria da justiça, cuja investigação, adverte Bobbio ("Nature et fonction de Ia philosophie du droit", em Archives de Philosophie du droit, Sirey, 1962, n. 7, dedicado ao tema: "Qu'est-ce que Ia Philosophie du Droit?"), "tem sido negligenciada pelos atuais filósofos do direito". Entretanto, acrescenta: "é importante lembrar que a `teoria da justiça' é um estudo que concerne ao fundo ou fundamento do direito e a `teoria do conhecimento jurídico' (ou `teoria do direito') é um estudo que concerne à forma, isto é, às diversas estruturas 110 INTRODUÇAO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 113 É inegável que, do ponto de vista prático, o interesse maior se concentra na dogmática jurídica, em seu duplo Introdução aspecto de estudo das normas e dos direitos à ciência subjetivos. do direito Mas não conhecerá o direito, em todas as suas dimensões reais, quem se limitar à consideração desses aspectos. Ao verdadeiro jurista não pode faltar conhecimento da natureza de sua ciência (epistemologia) e dos valores fundamentais (axiologia) que dão sentido e significação à qualquer instituição jurídica. Não lhe poderá faltar, também, o conhecimento da realidade jurídico-social que é a própria vida do direito. Daí o tríplice aspecto: jurídico (estrito senso), filosófico e sociológico, que deve ter o curso de introdução à ciência do direito. Ou esquematicamente: EPISTEMOLOGIA JURÍDICA } FILOSOFIA DO DIREITO AXIOLOGIA JURÍDICA TEORIA DA NORMA JURÍDICA CIÊNCIA DO DIREITO TEORIA DOS DIREITOS SUBJETIVOS SOCIOLOGIA JURÍDICA ou SOCIOLOGIA DO DIREITO 2. A divisão do direito em público e privado 2.1 Visão geral do campo do direito Entre as possibilidades que existem de apresentar globalmente a ordem jurídica, destaca-se a tradicional divisão do direito em púbico e privado. Esta divisão tem acompanhado a formação histórica do direito v e dela nos ocuparemos mais amplamente na terceira parte deste livro. No mo mento, interessa-nos apenas uma visão do campo do direito. Dentre os inúmeros critérios propostos para estabelecer a distinção entre esses dois ramos, está o que se fundamenta no objeto material da destinadas a acolher o fruto dos estudos e trabalhos da outra" (p. 8); c) pela Ontologia jurídica, que estuda o "ser" ou a natureza fundamental do direito, procurando responder à pergunta: que espécie de "ser" é o direito? Já diziam os romanos (Ulpiano, Digesto, 1, 1, 1, 2, e Justiniano, Instituías, 1, 1, 4) que dois são os aspectos do direito: o público e o privado. O direito público versa sobre o modo de ser do Estado romano; o privado, sobre o interesse dos particulares. Com efeito, algumas coisas são úteis publicamente, outras privadamente ("Hujus studii duae sunt posiciones, publicum et privatum. Publicum jus est, quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim"). ciência jurídica. O direito tem por matéria as relações sociais. Seu obJramos é a ordenação da vida social. E esta consta de duas espécies de relaç&dia a) relações em que a própria sociedade, representada pelo Estadod, é parte; b) relações dos participantes entre si. Em síntese, podemos dizer que as relações sociais em que o Estado, como tal,10 é parte, são reguladas pelo Direito público. As relações dos particulares entre si são reguladas pelo Direito privado. O Direito público regula a organização e a atividade do estado considerado: - em si mesmo; - em suas relações com os particulares; - em suas relações com outros Estados. Assim, o Direito Constitucional, ao regular a divisão dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, dispõe sobre a organização do Estado, considerado em si mesmo. O Direito Tributário, ao fixar os tributos, regula relações entre o Estado e os particulares. O Direito Internacional Público regula as relações dos Estados entre si. Por "Estado", tomado aqui em sentido amplo, devemos entender: a) o Poder Público representado, no Brasil, pela União, os estados e os municípios, com todas as suas ramificações: ministérios, secretarias, departamentos etc.; b) as autarquias e outros órgãos, que têm personalidade jurídica distinta da do Estado, mas que a ele se ligam intimamente, por serem por ele criados e exercerem funções públicas; é o caso do Instituto de Arrecadação Previdenciária e Assistência Social (LAPAS), Instituto do Café, Ordem dos Advogados do Brasil, Banco Central etc.; c) as organizações como a ONU, UNESCO, FAO etc., que são órgãos supracionais reconhecidos pelos Estados e que mantêm relações jurídicas com organismos governamentais e nãogovernamentais. O Direito privado regula as relações dos particulares entre si. Por particulares devemos entender no caso: a) os indivíduos, também chamados pessoas físicas ou naturais; b) as instituições ou entidades particulares, como as associações, as fundações, as sociedades civis ou comerciais etc., também chamadas pessoas jurídicas de direito privado; O "poder de império", isto é, o poder de impor sua vontade através de leis, decretos, atos administrativos, decisões judiciais, cobrança de tributos etc. é característica do Estado como poder público. Conforme a lição de Ferrara: "A distinção entre direito público e privado tem seu fundamento na posição diferente dos sujeitos nas relações jurídicas. Há relação de direito público quando o sujeito intervém como portador de prerrogativas supremas, investido de poder de império, enquanto nas relações de direito privado os sujeitos se contrapõem em condições de paridade, em pé de igualdade" (Teoria das pessoas jurídicas, Reus, Madri, 1929, p. 692). V. F. Geny, Science et technique en droit privé positif, 1.' parte, n. 20, p. 64. Direito público e privado (9) 112 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO c) o próprio Estado, em condições especiais, quando participa de uma transação jurídica, não na qualidade de Poder Público, mas na de simples particular, como no caso em que, locatário de um prédio, ele figura na condição de inquilino, sujeito, como os demais, à lei do inquilinato. As relações jurídicas entre essas pessoas ou entidades são regidas pelo Direito privado. 2.2 Quadro geral Essas noções nos permitem apresentar o seguinte quadro geral do direito, incluindo suas divisões e subdivisões mais importantes, que serão examinadas separadamente na terceira parte do presente trabalho: Direito Constitucional Direito Administrativo Direito Financeiro Direito Tributário Direito Judiciário Direito Penal De uma forma geral, que exige explicações posteriores, podemos dizer que o Direito Constitucional fixa as bases do Direito Estado. O Administrativo regula a atividade do público Poder Executivo. O Direito Financeiro e o Tribu tário têm por objeto as finanças públicas e os tributos em geral. O Judiciário disciplina a organização do Poder Judiciário e o processo a ser observado nas ações submetidas à Justiça. O Direito Penal define os crimes e estabelece as penas a serem aplicadas pelo Poder Público. O Direito Internacional Público regula as relações entre os Estados e a atividade dos organismos internacionais. O Direito Civil é considerado Direito privado comum, porque rege as relações entre particulares, considerandoos simplesmente como homens e não como membros de uma profissão ou nacionalidade. Regula os direitos das pessoas, enquanto tais, em suas relações de família e em suas relações patrimoniais. VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 113 Do Direito Civil, como tronco comum, nasceram os ramos especiais do Direito privado. No passado, o Direito Civil compreendia toda a área do Direito privado. Só posteriormente, em virtude do desenvolvimento da atividade comercial, da Revolução Industrial e dos movimentos migratórios e de intercâmbio no plano internacional, é que foram se constituindo, como ramos autônomos, o Direito Comercial, o Direito do Trabalho e o Internacional Privado. O primeiro estabelece normas especiais disciplinando a atividade comercial. O Direito do Trabalho regula as relações de emprego e a proteção à pessoa e aos direitos do trabalhador. Em virtude da forte atuação do Estado nessa proteção, o Direito de Trabalho pode ser também considerado como um ramo do Direito público. O Direito Internacional Privado rege as relações entre particulares no seio da sociedade internacional. 2.3 Novos ramos A divisão que acabamos de apresentar não é rígida nem definitiva. Pelo contrário, diversos ramos novos continuam a se constituir, passando a figurar como direitos autônomos. É o caso do Direito Financeiro e do Direito Tributário, que já se destacaram do Direito Administrativo, ou o do Direito Rural e do Direito Econômico, que estão em processo de formação. Mais recentemente, estão se formando, entre outros, o Direito Ambiental (v. p. 9 a 11) e o Direito do Consumidor (v. p. 13 a 15 e 424). Como veremos na terceira parte da presente obra, essa classificação dos ramos do direito não apresenta caráter rigorosamente lógico, mas sobretudo prático e histórico. Muitos autores a rejeitam, mas essa divisão acompanhou a evolução do direito desde Roma, e, apesar das críticas que tem recebido, não foi, até hoje, substituída com vantagem por qualquer outra. 3• Outras formulações 3.1 Direito público e direito privado R. de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 1934, v. I, parágrafo 8.° A divisão do direito objetivo em público e privado fora já estabelecida pela ciência jurídica romana • e romana é também a mais antiga definição dos dois Sobre o processo histórico pelo qual em Roma o direito público se diferenciou do Privado, cf. o douto trabalho de Bonfante: La progressiva div. dei diritto publ. e pr. in Roma. DIREITO PÚBLICO PRIVADO Direito Internacional Público Comum { Direito Civil Direito Com Direito do Trabalho Direito Internacional Privado Especial ercial Direito privado 114 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 115 ramos: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim" (L. 1, § 2 D. L. L. = § 4 Inst. L. L.), definição que por muito tempo se utilizou e reproduziu, quase sem modificação, no campo do direito moderno. É todavia inadequada para exprimir o conteúdo próprio e verdadeiro dos dois grandes ramos de direito e mais ainda para designar os caracteres diferenciais. É certo que o critério do interesse e da utilidade é um elemento de distinção entre umas e outras normas: há nas de direito público uma preponderância da utilidade pública do Estado e, nas de direito privado, prevalecimento da utilidade dos particulares, mas a distinção não pode fundar-se exclusivamente na utilidade da norma. É preciso ter em atenção os sujeitos a que as normas se referem e o fim que elas têm em vista. Ora, sob este duplo aspecto, é fácil descobrir como algumas normas têm por sujeito o Estado e outras os simples particulares; como umas têm por fim relações políticas, a organização dos poderes do Estado e a explicação da atividade dos seus órgãos para conseguir os fins que esse Estado se propõe, • outras, pelo contrário, as relações jurídicas dos indivíduos, a atividade dos cidadãos como particulares. Nessa diversidade, dada quer pela diferença de sujeitos, quer pela dos fins, reside a razão da distinção de que tratamos: formam o direito público as normas da primeira espécie eo direito privado as da segunda. No entanto, isto não basta para dar o conceito integral dum e doutro ramo • para lhes marcar os confins. Deve, antes de mais, ter-se presente que a norma não adquire caráter de direito público apenas e exclusivamente quando o seu sujeito é o Estado e o seu fim a organização do mesmo. Há ao lado do Estado, e a ele subordinados, outros agregados políticos menores, entre os quais se reparte o poder soberano e aos quais correspondem determinadas circunscrições territoriais: agregados políticos que exercem funções públicas especiais e levam a cabo, no território que lhes está designado, a obra do Estado, que, não podendo sempre atuar diretamente para conseguir os seus fins, lhes confere as funções que mais diretamente se referem aos fins particulares e locais. O Município, a Província e outras circunscrições constituem organizações menores de caráter político. Ora, quando os sujeitos da norma sejam essas entidades, ou o seu fim seja o fim que elas se propõem, o direito continua a ser público. Em segundo lugar e pelo contrário, não basta que o Estado e essas organizações supracitadas apareçam como sujeitos duma relação, para concluir sem mais nada que se trata duma norma pertencente ao direito político. O Estado e com ele os demais organismos menores referidos, se normalmente atuam como poder político e soberano que exerce funções de governação e de império, assumem também - e pela própria necessidade dos fins de caráter público que se propõem - funções que não são de soberania ou de governação. Sobretudo na gestão do seu patrimônio pode o Estado ser titular de direitos a exercitar faculdades ou contrair obrigações que não são diferentes das que se verificam nos particulares ou nalguma daquelas coletividades (pessoas jurídicas) que, propondo-se fins privados, não são nem podiam ser investidas de poderes políticos ou soberanos. Ora, quando o Estado, a Província ou a Comuna agem nessa qualidade, aplicam-se-lhes as mesmas normas que se aplicam às relações entr os particulares, quer dizer: normas de direito privado, que nem por esta aplicaçã se transformam em públicas. Precisando, pois, o conceito mais atrás exposto, pode dizer-se que: a) é direito público - o complexo das normas que regulam a organização • a atividade do Estado e dos outros agregados políticos menores, ou que disciplinam as relações entre os cidadãos e essas organizações políticas; b) é direito privado - o complexo das normas que regulam as relações dos particulares entre si ou as relações entre eles, o Estado e os agregados referidos, desde que estes não figurem nessa relação como exercendo funções de poder político ou soberano. 3.2 A tendência moderna de publicização do direito Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, n. 155 a 157. Invocando este sábio conceito de Montesquieu, consoante o qual não se devem regular segundo os princípios do direito político as coisas que dependem dos princípios do direito civil, Georges Ripert assinala e repele a tendência moderna de se transformar o direito privado em direito público. E lembra que, para designar a nova corrente de idéias, criou-se o neologismo "publicização" do direito, que os políticos substituem por denominação outra, tal a de "socialização do direito", como se o direito somente agora se revelasse uma ciência social. É a seguinte a técnica usada pelos inovadores: "O direito social designa o conjunto de regras que asseguram a igualdade das situações apesar das diferenças de fortunas, regras que socorrem os mais fracos, desarmam os mais poderosos • organizam a vida econômica segundo os princípios da justiça distributiva. Ora, para se alcançar esse resultado, preciso é recorrer-se a uma força superior a todos, ou seja, à força do Estado; e se esta força intervém nas relações privadas, o direito privado não pode deixar de ceder o passo às regras do direito público. A publicização é, pois, o meio de tomar social o direito". Partidários menos ortodoxos desses conceitos chegaram a propor uma terceira designação para as relações civis assim submetidas à intervenção do Estado: tais relações formariam um direito semipúblico. E autores existem, como Donnedieu de Vabres, que nos convidam, sem mais, a apagar toda a distinção entre o direito público e o direito privado, qualificando esta velha e sábia distinção de meramente pedagógica. Muito a propósito Ripert se reporta à observação sensata de Portalis, um dos autores do Código Civil francês: "Em tempo de revolução, se tudo se transforma em direito público, assim sucede pelo desejo exaltado de sacrificar todos os direitos a um fim político e de não admitir consideração outra senão a de um misterioso • variável interesse do Estado (Georges Ripert: Le Déclin du Droit, cap. II). Sobre a intervenção desordenada do Estado nas relações civis já nos manifestamos; aqui volvemos ao assunto, tão-só para acentuar as dificuldades crescentes que se antepõem a qualquer tentativa de distinção perfeita entre esses dois ramos do direito objetivo, o público eo privado. Causas e extensão dessa tendência - Não é só nas leis comuns que a confusão se revela. As próprias Constituições políticas consagram, hoje, normas que, em rigor, só no direito privado poderiam ser incluídas. Apontam-se, geralmente, como causas da redução da esfera do direito Privado: a) o desenvolvimento das formas de proteção dos menos favorecidos, ou dos indivíduos reputados socialmente fracos; j 114 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 115 ramos: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem; sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim" (L. 1, § 2 D. L. L. = § 4 Inst. L. L.), definição que por muito tempo se utilizou e reproduziu, quase sem modificação, no campo do direito moderno. É todavia inadequada para exprimir o conteúdo próprio e verdadeiro dos dois grandes ramos de direito e mais ainda para designar os caracteres diferenciais. É certo que o critério do interesse e da utilidade é um elemento de distinção entre umas e outras normas: há nas de direito público uma preponderância da utilidade pública do Estado e, nas de direito privado, prevalecimento da utilidade dos particulares, mas a distinção não pode fundar-se exclusivamente na utilidade da norma. É preciso ter em atenção os sujeitos a que as normas se referem e o fim que elas têm em vista. Ora, sob este duplo aspecto, é fácil descobrir como algumas normas têm por sujeito o Estado e outras os simples particulares; como umas têm por fim relações políticas, a organização dos poderes do Estado e a explicação da atividade dos seus órgãos para conseguir os fins que esse Estado se propõe, e outras, pelo contrário, as relações jurídicas dos indivíduos, a atividade dos cidadãos como particulares. Nessa diversidade, dada quer pela diferença de sujeitos, quer pela dos fins, reside a razão da distinção de que tratamos: formam o direito público as normas da primeira espécie e o direito privado as da segunda. No entanto, isto não basta para dar o conceito integral dum e doutro ramo e para lhes marcar os confins. Deve, antes de mais, ter-se presente que a norma não adquire caráter de direito público apenas e exclusivamente quando o seu sujeito é o Estado e o seu fim a organização do mesmo. Há ao lado do Estado, e a ele subordinados, outros agregados políticos menores, entre os quais se reparte o poder soberano e aos quais correspondem determinadas circunscrições territoriais: agregados políticos que exercem funções públicas especiais e levam a cabo, no território que lhes está designado, a obra do Estado, que, não podendo sempre atuar diretamente para conseguir os seus fins, lhes confere as funções que mais diretamente se referem aos fins particulares e locais. O Município, a Província e outras circunscrições constituem organizações menores de caráter político. Ora, quando os sujeitos da norma sejam essas entidades, ou o seu fim seja o fim que elas se propõem, o direito continua a ser público. Em segundo lugar e pelo contrário, não basta que o Estado e essas organizações supracitadas apareçam como sujeitos duma relação, para concluir sem mais nada que se trata duma norma pertencente ao direito político. O Estado e com ele os demais organismos menores referidos, se normalmente atuam como poder político e soberano que exerce funções de governação e de império, assumem também - e pela própria necessidade dos fins de caráter público que se propõem - funções que não são de soberania ou de governação. Sobretudo na gestão do seu patrimônio pode o Estado ser titular de direitos a exercitar faculdades ou contrair obrigações que não são diferentes das que se verificam nos particulares ou nalguma daquelas coletividades (pessoas jurídicas) que, propondo-se fins privados, não são nem podiam ser investidas de poderes políticos ou soberanos. Ora, quando o Estado, a Província ou a Comuna agem ness qualidade, aplicam-se-lhes as mesmas normas que se aplicam às relações entr os particulares, quer dizer: normas de direito privado, que nem por esta aplicaçã se transformam em públicas. Precisando, pois, o conceito mais atrás exposto, pode dizer-se que: a) é direito público - o complexo das normas que regulam a organização e a atividade do Estado e dos outros agregados políticos menores, ou que disciplinam as relações entre os cidadãos e essas organizações políticas; b) é direito privado - o complexo das normas que regulam as relações dos particulares entre si ou as relações entre eles, o Estado e os agregados referidos, desde que estes não figurem nessa relação como exercendo funções de poder político ou soberano. 3.2 A tendência moderna de publicização do direito Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952, n. 155 a 157. Invocando este sábio conceito de Montesquieu, consoante o qual não se devem regular segundo os princípios do direito político as coisas que dependem dos princípios do direito civil, Georges Ripert assinala e repele a tendência moderna de se transformar o direito privado em direito público. E lembra que, para designar a nova corrente de idéias, criou-se o neologismo " publicização" do direito, que os políticos substituem por denominação outra, tal a de "socialização do direito", como se o direito somente agora se revelasse uma ciência social. É a seguinte a técnica usada pelos inovadores: "O direito social designa o conjunto de regras que asseguram a igualdade das situações apesar das diferenças de fortunas, regras que socorrem os mais fracos, desarmam os mais poderosos e organizam a vida econômica segundo os princípios da justiça distributiva. Ora, para se alcançar esse resultado, preciso é recorrer-se a uma força superior a todos, ou seja, à força do Estado; e se esta força intervém nas relações privadas, o direito privado não pode deixar de ceder o passo às regras do direito público. A publicização é, pois, o meio de tornar social o direito". Partidários menos ortodoxos desses conceitos chegaram a propor uma terceira designação para as relações civis assim submetidas à intervenção do Estado: tais relações formariam um direito semipúblico. E autores existem, como Donnedieu de Vabres, que nos convidam, sem mais, a apagar toda a distinção entre o direito público e o direito privado, qualificando esta velha e sábia distinção de meramente pedagógica. Muito a propósito Ripert se reporta à observação sensata de Portalis, um dos autores do Código Civil francês: "Em tempo de revolução, se tudo se transforma em direito público, assim sucede pelo desejo exaltado de sacrificar todos os direitos a um fim político e de não admitir consideração outra senão a de um misterioso e variável interesse do Estado (Georges Ripert: Le Déclin du Droit, cap. II). Sobre a intervenção desordenada do Estado nas relações civis já nos manifestamos; aqui volvemos ao assunto, tão-só para acentuar as dificuldades crescentes que se antepõem a qualquer tentativa de distinção perfeita entre esses dois ramos do direito objetivo, o público eo privado. Causas e extensão dessa tendência - Não é só nas leis comuns que a confusão se revela. As próprias Constituições políticas consagram, hoje, normas que, em rigor, só no direito privado poderiam ser incluídas. Apontam-se, geralmente, como causas da redução da esfera do direito Privado: a) o desenvolvimento das formas de proteção dos menos favorecidos, ou dos indivíduos reputados socialmente fracos; 116 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO VISÃO CONJUNTA DA CIÊNCIA DO DIREITO 117 b) a concentração progressiva dos homens e dos capitais, que caracteriza a época contemporânea, criando problemas pessoais e patrimoniais de crescente interesse social; c) a ascendente "padronização dos meios materiais de vida, e, conseqüentemente, da própria vida, a transformar em problema coletivo o que antes constituía problema individual. Contudo, reconhecendo-se, embora, a existência dessas causas e de seus resultantes problemas, não se poderia admitir a existência de uma livre vontade individual, como se pretende, aplicada tão-somente ao setor dos direitos não patrimoniais, pois é exatamente nos direitos pessoais puros e de família que o indivíduo sofre e deve sofrer sensíveis restrições a bem da comunidade. Ensaio de distinção - Reportando-se aos princípios e conceitos acima expostos, distinguimos o direito público do direito privado nos seguintes termos: "Direito Público" é o conjunto de princípios e de normas que disciplinam a organização e a atividade política e jurisdicional do Estado e das entidades políticas ou administrativas por ele criadas, bem como as suas relações, de igual caráter, mantidas com os indivíduos, regulando, ademais, os meios tendentes a assegurar a defesa da ordem jurídica, dentro da comunhão social. "Direito Privado" é o conjunto sistemático de princípios e de normas que disciplinam as relações, desprovidas de natureza política ou jurisdicional, que os indivíduos mantêm entre si, ou com o Estado, ou com as entidades por ele criadas para a realização de seus fins próprios. No conceito de Organização se enquadra o Direito Constitucional; no de atividade, o Direito Internacional (atividade externa) e o Direito Administrativo (atividade interna); no de segurança da ordem jurídica, o Direito Penal e o Direito Judiciário, com seus ramos de Organização Judiciária e Direito Processual. 3.3 A divisão do direito em público e privado: uma intromissão da política no direito H. Kelsen, Teoria geral do Estado, parágrafo VI. A intromissão da política na teoria do Direito acha-se favorecida por uma funestíssima distinção que hoje constitui um dos mais fundamentais princípios da moderna ciência jurídica. Tratase da distinção entre direito público e privado. Embora esta antítese constitua a medula de toda a sistemática teórico-jurídica, é simplesmente impossível determinar, com alguma fixidez, o que se quer dizer efetivamente, quando se distingue entre o direito público e o direito privado. certo que se devem destacar determinados domínios jurídicos, qualificados por seu conteúdo especial, os quais se contrapõem convencionalmente ao direito privado na qualidade de direito público. Assim, no direito público se incluem o direito político, o direito administrativo, o processual, o penal e o canônico (este enquanto se refira predominantemente aos demais); todo o direito restante é direito privado. Mas, se se perguntar qual o fundamento desta divisão, entra-se, em cheio, no caos das opiniões contraditórias. De início, não há segurança no objeto da divisão: a qualidade de público e privado se atribui indistintamente ao direito objetivo, às normas, ao direito subjetivo e às faculdades e deveres que constituem a relação jurídica. Se ao direito objetivo se reduzir o direito subjetivo, uma divisão deste importará, ao mesmo tempo, a divisão daquele. Acrescente-se que à dualidade do objeto da divisão prende-se uma antítese dos critérios segundo os quais a divisão é feita. 3.4 As disciplinas jurídicas A. Torré, Inaoducción al Derecho, Buenos Aires, Ed. Perrot, 1957.. n. 22 e ss. Apesar de não haver uniformidade a respeito, são muitos os autores que consideram como disciplinas jurídicas fundamentais as seguintes: Ciência do Direito, História do Direito, Sociologia do Direito, Filosofia do Direito. A "Ciência do Direito" tem por objeto o estudo, ou melhor, a interpretação e integração e a sistematização de um ordenamento jurídico determinado, para sua justa aplicação. Garcia Maynez, por sua vez, a define amo a ciência que "tem por objeto a exposição ordenada e coerente dos preceitos jurídicos que estejam em vigor em uma época e um lugar determinados, e o estudo dos problemas relativos à sua interpretação e aplicação". Chama-se também: Dogmática Jurídica, Ciência Dogmática, Teoria do Direito Positivo, Sistemática Jurídica, Jurisprudência Técnica, Jurisprudência Dogmática, simplesmente Jurisprudência etc. Conforme o ramo do direito positivo a que se refira, distinguem-se: Ciência do Direito Constitucional, Ciência do Direito Administrativo, Ciência do Direito Penal, Ciência do Direito Processual etc. `- "História do Direito" é o ramo ou especialidade da História Geral que estuda o desenvolvimento do direito, explicando-o em função das respectivas causas, com o alcance individualizador próprio da História. "Sociologia do Direito". E. Garcia Maynez a define como "disciplina que tem por objeto a explicação do fenômeno jurídico, considerado como fato social". De nossa parte, e com o fim de facilitar a compreensão do conceito desta disciplina, daremos uma noção mais analítica, a saber: é o ramo da Sociologia Geral que focaliza o direito como fenômeno social, com o objetivo de explicar seus caracteres e função na sociedade, as relações e influências recíprocas entre esses fenômenos sociais, assim como as transformações do direito, com um alcance "geral". A "Filosofia do Direito" é um ramo da Filosofia Geral, razão pela qual apresenta os mesmos caracteres que esta. Encara, pois, as questões mais profundas e gerais do direito, situando seu estudo em urna sistematização geral dos conhecimentos humanos, o que nos permite compreender não somente o sentido, ou a significação da realidade jurídica em uma concepção total do mundo e da vida, mas também o caráter e a fundamentação das disciplinas que têm por objeto essa realidade. Percebem-se aí, claramente, os dois caracteres básicos do conhecimento filosófico: o de ser "pantônomo", pois abrange direito em sua totalidade, e o de ser "autônomo", pois, apesar de constituir o fundamento das diversas ciências jurídicas, a Filosofia do Direito é, em si mesma, um saber sem pressupostos. Atualmente, a Filosofia do Direito é dividida pela maioria dos autores em três ramos: Ontologia, Lógica e Axiologia Jurídicas. 4. Bibliografia BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE•LACOSTE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Sirey, 1947. CAVALCANTI FILHO, Theophilo. O problema da segurança no direito. São Paulo : RT, 1964. 118 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO DEL VECCHIO, G. Filosofia del diritto. Milão : Giuffrè, 1946. FARIA, Anacleto de Oliveira. Instituições de direito. São Paulo : RT, 1970. GENY, F. Science et technique en droit privé positif. 4. v. Paris : Recueil Sirey, 1922. GURVITCH, G. Sociologia jurídica. Rio de Janeiro : Kosmos, 1946. KELSEN, H. A teoria pura do direito. Coimbra : Arménio Amado, 1962. LIMA, H. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1954. MACHADO NETO, A. L. Compêndio de introdução à ciência do direito. Saraiva, 1969. NÓBREGA, J. Flóscolo. Introdução ao direito. Rio de Janeiro : Konfino, 1969. PASQUIER, C. Introduction à Ia théorie générale et à la philosophie du droit. Paris : Delachaux et Niestlé, 1948. RÁO, Vicente, O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Max Limonad, 1952, n. 155 a 157. RAVÁ, A. Diritto e Stato nella morale idealistica. Pádua : Cedam, 1943. REALE. M. Filosofia do direito. São Paulo : Saraiva, 1968. RUGGIERO, R. Instituições de Direito civil. São Paulo : Saraiva, 1934. TORRÉ, A. Introducción al derecho. Buenos Aires : Perrot, 1957, n. 22 e ss. VAN ACKER, L. Curso de filosofia do direito. 2 v. Ed. Universidade Católica de São Paulo, 1962. Segunda Parte O DIREITO COMO JUSTO (Axiologia Jurídica) 5 O CONCEITO DE JUSTIÇA SUMÁRIO: 1.O Direito como exigência da justiça: 1.1 A teoria da justiça; 1.2 Perspectivas diferentes; 1.3 Devido por justiça; 1.4 Direito e justiça - 2. Acepção subjetiva e objetiva da justiça: 2.1 Justiça, conceito análogo; 2.2 Analogia de relação; 2.3 Histórico do conceito - 3. Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça: 3.1 Sentido latíssimo; 3.2 Sentido lato; 3.3 Sentido estrito - 4. Características essenciais da justiça: 4.1 A alteridade; 4.2 O devido; 4.3 A igualdade: 4.3.1 Em que consiste a igualdade?; 4.3.2 Igualdade simples ou proporcional; 4.3.3 Igualdade fundamental dos homens-5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social - 6. Virtudes anexas à justiça - 7. Outras formulações: 7.1 "Duas definições clássicas de justiça: Ulpiano e Cícero", Félix Senn; 7.2 "Lei positiva e justiça", H. Kelsen; 7.3 "Pensamentos sobre a justiça", B. Pascal; 7.4 "Justiça civil e justiça penal", G. Del Vecchio - 8. Bibliografia. 1. O Direito como exigência da justiça 1.1 A teoria da justiça A teoria da justiça é um dos capítulos fundamentais da ciência jurídica.' (1) Em sentido amplo, a expressão "Ciência do Direito" abrange todas as disciplinas jurídicas, inclusive a Filosofia do Direito. Sobre a importância da "teoria da justiça" é oportuno transcrever a seguinte observação de N. Bobbio: "La philosophie du droit se compose de trois parties: a) théorie du droit (notion du droit ou norme); b) théorie de Ia justice; c) théorie da Ia science juridique. Pendant que l'étude de Ia théorie du droit a fait ces demières années de notables progrés, Ia théorie de Ia justice a été négligée. Et encore, si de ce côté quelque étude valable a été entreprise, c'est uniquement quant à Ia définition de Ia justice (Perelman, puis Kelsen): l'on n'est pas passé de Ia théorie analytique à Ia phénoménologie, c'est-à-dire, à l'exploitation a travers le droit comparé des critères reçus tour a dans les diverses civilisations et époques, pour déterminer le juste et 1'injuste. Le critére directif de cette recherche devrait etre Ia notion de 'justice', comprise comme I'ensemble des valeurs, biens, ou intérêts, pour Ia protection ou le progrés desqueis, les hommes ont créé une technique organisant Ia vie en commun que nous avons accepté de nommer 122 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Se o direito é essencialmente uma ciência "normativa" e a estrutura lógica de toda proposição jurídica é um dever-ser, colocamse naturalmente as perguntas: Qual a direção ou o ideal visado pela "norma"? Qual o valor fundamental que orienta esse dever-ser? Basicamente, a sentença deve ser "justa", a lei deve ser "justa", a obrigação e a indenização devem ser "justas", Valor o salário e o preço devem ser "justos". Com razão fundamental escreveu Del Vecchio: "A noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico".' Além disso, a noção de "princípios gerais do direito" - a que devem, a cada momento, recorrer o juiz e os demais aplicadores da lei 3 - corresponde fundamentalmente aos princípios de "justiça", como procuramos mostrar no Capítulo II da terceira parte do presente trabalho. "Principios generales del derecho, es decir, principios de justicia".° Mas, que é a justiça? Quais as suas características, sua natureza, suas espécies, seu fundamento? E os demais valores jurídicos - a segurança, o interesse social, a ordem, o bem comum - são opostos, redutíveis ou irredutíveis à justiça? E esse um velho tema. Seu estudo recebe Axiologia modernamente os nomes de axiologia jurídica, jurídica teoria dos valores jurídicos, deontologia jurídica, estimativa jurídica etc.5 droit. Il me semble toujours éclairant de considérer que Ia théorie de Ia justice est une étude qui concerne le fond du droit et Ia théorie du droit une étude qui concerne Ia forme: cette dernière, en fait, elabore les diverses structures destinées à accueillir le fruit des études et travaux de l'autre". "Nature et fonction de Ia philosophie du droit", en Archives de Philosophie du Droit, Paris, Sirey, v. 7, 1962. (2' G. Del Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938, § 1, p. 4. (" A Lei de Introdução ao Código Civil, que é, no Brasil, a lei geral de aplicação das normas jurídicas, dispõe, no art. 4.°: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". A lei é sempre uma formulação geral e abstrata; não pode, por isso, prever toda a complexidade dos casos reais. Daí a necessidade contínua de sua interpretação e do recurso aos "princípios gerais do direito", que nos fornecem o sentido fundamental de qualquer norma jurídica. "Comunmente, en ausencia de un precepto expreso o de leyes análogas, Ias legislaciones remitem a los principios generales del derecho - es decir, principios de justicia - como última fuente a Ia que debe recurrir-se para intergrar el ordenamiento jurídico (p. ej. nuestro Cód. Civil, en el ya citado art. 16)." A. Torré, /ntroducción ai Derecho, Buenos Aires, Perrot, 1957, cap. XV, p. 367. (5' "El problema axiológico y los valores jurídicos", A. Torré, em Introducción ai derecho, Perrot, 1957, cap. VIII, p. 220 e ss.; "Deontologia jurídica é a teoria da justiça e dos valores fundamentais do direito", Miguel Reale, Filosofia do Direito, Saraiva, 1969, v. 2, n. 125; "La teoria de Ia justicia como estimativa jurídica", Recaséns Siches, em Estudios de Filosofia dei derecho, cap. XXIV, n. 1. 1.2 Perspectivas diferentes Como vimos na primeira parte deste livro,' o direito pode ser estudado sob perspectivas diversas. Alguns o analisam simplesmente como um sistema de normas positivas que regem a vida de determinada comunidade. É esse o ponto de vista de Kelsen, em sua Teoria pura do direito.' Outros, como Lévy-Bruhl, colocando-se no campo da sociologia, consideram o direito ou as regras jurídicas como fatos sociais ou, até mesmo, como coisas.8 Certos autores preferem estudá-lo sob o prisma dos direitos subjetivos através das Declarações de Direitos e do reconhecimento histórico das prerrogativas da pessoa humana. É o caso, entre outros, do estudo de Jayme de Altavila sobre a Origem dos direitos dos povos.9 E modernamente, A theorie de justice de J. Rawls.10 Pode, ainda, o direito ser considerado não como lei positiva, fato social ou direito subjetivo, mas como ciência. E a perspectiva em que se colocam, em geral, os tratados e as introduções ao estudo do direito, à frente dos quais, por sua importância histórica, é de justiça colocar as Institutas de Justiniano, destinadas a ser "os primeiros elementos de toda a ciência das leis". 1.3 Devido por justiça Há, finalmente, outra modalidade de focalizar o direito, que é a de considerá-lo como exigência da justiça. Esse, como vimos, é o significado fundamental do vocábulo direito. Os latinos o chamavam CONCEITO DE JUSTIÇA 123 (6) (7) (8) (9) 1.° Parte, cap. 1, item 4.1. "The Pure Theory of Law restricts itself to a structural analysis of positive law based on a comparative study of the social orders which actually exist and existed in history under the narre of law" (H. Kelsen, What is justice?, University of California Press, Califórnia, 1957, p. 293). "En même temps que sociologique, Ia conception du droit à laquelle je me rattache est réaliste. Elle consiste à considerer les règles juridiques comme des faits, ou, si l'on préfère, comme des choses. Cette attitude s'impose à celui qui se préoccupe d'étudier le droit scientifiquement. Ce realisme cherche a déceler tous les phénomènes juridiques, même s'ils ne sont pas officielement catalogués comme tels" (Lévy-Bruhl, "Les sources du droit", in Introduction à 1'étude du droit, em colaboração, Paris, Rousseau, 1951, p. 256). "Historiar o que foi a lenta caminhada de milênios, que o homem teve de perfazer na conquista da eqüidade de situações e tratamentos, desde as Leis Mosaicas à Declaração Universal dos Direitos do Homem, eis o conteúdo desta Origem dos direitos dos povos" (Jayme de Altavila, Origem dos direitos dos Povos, São Paulo, Melhoramentos, 1964, Introdução). É essa, também, a perspectiva em que se situa lhering, ao estudar A luta pelo direito. E a de Kant, Hegel e demais autores para quem o direito é fundamentalmente liberdade. Uma teoria de justiça, trad. UnB, Brasília, 1981. 124 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 125 jus e não o confundiam com a lex." Nesse sentido, direito é propriamente aquilo que é "devido" por justiça a uma pessoa ou a uma comunidade: o respeito à vida é direito de todo homem, a educação é direito da criança, o salário é direito do empregado, a habitação é direito da família, o imposto é direito do Estado. A essa acepção corresponde a expressão clássica "dar a cada um o seu direito". 1.4 Direito e justiça Mas até que ponto o direito se identifica com o justo? Poderse-á sustentar que todas as exigências do direito são baseadas na justiça? Alguns autores afirmam que o direito nada tem a ver com a justiça. E simples convenção, como afirmaram Carnéades ou Epicuro, no passado,12e de certa forma reafirmam certas correntes do liberalismo moderno ao admitir que "quem diz contratual diz justo"." Para a generalidade dos seguidores do positivismo jurídico, o direito se reduz a uma imposição da força social, e a justiça é considerada um elemento estranho à sua formação e validade." Para alguns, como Kelsen, os critérios da justiça são simplesmente emocionais e subjetivos e sua determinação deve ser deixada à religião ou à metafísica. 15 Outros autores, como Renard, pretendem que apenas uma parte das instituições jurídicas se fundamente na justiça; outra parte teria seu fundamento na segurança ou na ordem social. 16 De Outra parte, escreveu um dos grandes estudiosos do direito contemporâneo, Gurvitch: "É preciso reconhecer, como fazem R. Os gregos também faziam essa distinção. Ao direito, no sentido de "devido" ou `justo", chamavam dikaion, e à lei, nómos. Carnéades. "Justo é o convencional". V. Félix Senn, De la justice et du droit, Paris, Sirey, 1927, p. 4, nota 1. G. Dei Vecchio, Justice, Droit, État, Sirey, 1938. Fouillée, [,a science sociale contemporaine. V. G. Ripert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, § 15 e ss. V. Capítulo 5, item 4 infra. "There is not, and cannot be, an objective criterion of justice because the statement: something is just or unjust, is a judgment of value refering to an ultimate end, and these value judgments are by their very nature subjective in character, because based on emotional elements of our mind, on our feelings and wishes." "The Pure Theory of Law renounces any justification of positive law by a kind of superlaw, leaving that problematical task to religion or social metaphysics" (H. Kelsen, What is justice?, p. 295 e 302). G. Renard, "Le droit n'est pas seulement facteur de justice, il est facteur de sécurité. La justice n'est que Ia moitié du droit; Ia grosse moitié, si vous vouiez" (La theorie de l'institution, p. 49). pound, B. Cardozo, F. Geny, M. Hauriou, G. Radbruch e outros, que um elemento constitutivo de todo direito é um elemento ideal, a JUSTIÇA". E, ao prefaciar a tradução francesa da obra de Del Vecchio, escreveu Lévy-Ullmann: "Direito e Estado serão criações ininteligíveis, arbitrárias e inoperantes, se não houver um princípio ideal que legitime sua existência, organização e conteúdo. Esse princípio é a justiça. A noção de justo é fundamental ao direito. Daí a necessidade de um exame a que a nossa consciência não pode se subtrair e que constitui a tarefa suprema da filosofia de direito." Para a aceitação ou a recusa dessas opiniões e o encaminhamento dos problemas referidos que são básicos para a vida do direito - é necessário examinar o conceito de justiça. Esse é o objeto do presente capítulo. 2. Acepção subjetiva e objetiva da justiça 2.1 Justiça, conceito análogo Uma característica, ligada a todas as noções fundamentais, dá ao conceito de justiça certa variedade de significações. Como as noções de ser, verdade, instituição ou direito, o conceito de justiça é análogo. Entre as múltiplas significações de justiça, podemos assinalar duas fundamentais: uma subjetiva e outra objetiva. Muitas vezes falamos da justiça como uma qualidade da pessoa, como virtude ou perfeição subjetiva. Fulano é um homem justo. O senso de justiça é fundamental no magistrado. É nesse sentido que nos referimos à "justiça", à prudência, à temperança e à coragem como virtudes humanas. Outras vezes empregamos a palavra justiça para designar objetivamente uma qualidade da ordem social. Nesse sentido, falamos da justiça de uma lei ou instituição. A circunstância de ser o conceito de justiça utilizado por juristas e moralistas explica essa diferença. Ocupando-se da atividade pessoal do homem, o moralista vê na justiça uma qualidade subjetiva do indivíduo, o exercício de sua vontade, uma virtude. O jurista tem outras preocupações; interessa-lhe fundamentalmente a ordem social objetiva. Por isso, ele vê na justiça, em primeiro lugar, uma exigência da vida social. Radbruch chega a afirmar que ao jurista só interessa a justiça, considerada em sentido objetivo.'$ No mesmo sentido escreve Hauriou: "Nous prenons 1'orde social et Ia justice dans leur qualité d'idées "' G. Gurvitch, Sociologia Jurídica, Introd., § II, p. 34. Lévy-Ulimann, Prefácio a Justice, Droit, Etat, de G. Dei Vecchio. V. Capítulo 2, n. 4, p. 130. 1 "' Filosofia do Direito, § 4, n. 22, p. 46. 126 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 127 objetives, comine faits".19 Considerada sob esse aspecto, a justiça é um princípio superior da ordem social.20 Ao estudar a justiça - conceito, modalidades e aplicações -, procuraremos situá-la dentro da realidade jurídica contemporânea. Por extensão a palavra justiça é também empregada para designar o Poder Judiciário e seus órgãos, incumbidos de dar solução justa aos casos que lhe -são submetidos. É esse o sentido do vocábulo quando falamos em recorrer à "Justiça" ou quando nos referimos ao Diário da Justiça, Palácio da Justiça, Tribunal de Justiça etc.21 2.2 Analogia de relação Qual o sentido fundamental? "Justiça" é conceito análogo, por analogia de relação ou atribuição. Em sentido direto e próprio, significa "a virtude" ou a vontade constante de dar a cada um o seu direito. A rigor só podem ser "justas" ou "injustas" as ações humanas. Por extensão é que a justiça se aplica aos princípios da ordem social, porque esta será justa na medida em que assegurar a cada um o seu direito (jus suum cuique). Da mesma forma, em plano evidentemente menos importante, o conceito de justiça se estende: 1. à legislação, porque esta deve assegurar o direito de cada um; 2. aos órgãos ou ao Poder encarregados da aplicação da justiça. Mas o sentido fundamental é o de virtude. E a razão é importante. A justiça, como o direito, não é uma simples técnica da igualdade, da utilidade ou da ordem social .22 Muito mais do que isso, ela é virtude da convivência humana. E significa, fundamental mente, uma atitude subjetiva de respeito à dig nidade de todos os homens. Nas relações com outros homens, podemos ter uma atitude de "dominação", como fazemos com os animais e demais seres inferiores, ou de "respeito", como se impõe entre pessoas humanas. Esta última é a que caracteriza a justiça. Com razão, observa Bodenheimer 23 que o elemento subjetivo nas definições de justiça, "de tão extraordinária importância, nem sempre tem recebido a atenção que merece. Definida como vontade ou disposição do espírito, a justiça exige uma atitude de respeito para com os outros, uma Atitude presteza em dar ou deixar aos outros aquilo que de respeito tenham o direito de receber ou conservar. "Este às outras elemento intersubjetivo na idéia de justiça é de pessoas caráter verdadeiramente universal e válido de humanas modo geral. Falhando ele, a justiça não pode florescer numa sociedade. Para funcionar eficazmente, a justiça requer a libertação dos impulsos exclusivamente egoísticos. O egoísta reivindica direitos sobre os bens do mundo, sem considerar as razoáveis reivindicações dos outros. A justiça se opõe a essa tendência, exigindo que se respeitem os direitos e as pretensões das demais. Sem uma atitude pessoal de "preocupação com os outros", e sem a vontade de ser equânime, os fins da justiça não podem ser normalmente atingidos. E esse um aspecto fundamental do problema. A justiça não é o sentimento que cada um tem de seu próprio bem-estar ou felicidade, como pretendem alguns .24 Mas, pelo contrário, é o reconhecimento de que cada um deve respeitar o bem e a dignidade dos outros. Como disse Dabin, esse reconhecimento implica sem dúvida uma metafísica: a do valor absoluto da pessoa humana." 2.3 Histórico do conceito É importante notar que toda a tradição filosófica, ética e jurídica da humanidade empregou a palavra justiça no sentido subjetivo e pessoal. Podemos fixar alguns pontos dessa tradição muitas vezes milenar. A Bíblia identifica, freqüentemente, justiça e virtude, como no Livro dos Provérbios: "A justiça do simples dirige o seu caminho".26 E, em sentido mais estrito, no Livro da Sabedoria: "A sabedoria ensina a temperança, a prudência, a justiça e a fortaleza".27 Entre os orientais, a palavra justiça é empregada quase sempre no sentido de "sabedoria". Virtude da justiça, sentido fundamental (19) Aux sources du droit, 1. ère partie, § 2, p. 44. (23) Ciência do direito, n. 45, p. 210. (20) "La justice est Ia loi primordiale des rélations de personne a personne" (G. Renard, La théorie de l'institution, Introd. 1, III, p. 25). "Justitia ea ratio est (24) "The longing for justice is men's eternal longing for happiness". H. Kelsen, quae societas hominum inter ipsos et vitae communiter continetur" (Cícero, What is justice?, p. 2. De officis, 1, cap. VII). (25) J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, n. 81, nota 2, p. 320. (21) Aristóteles, na Política, ao referir-se às funções do Estado, enumera a E a lição de Platão: "a justiça é o bem do próximo". "Alienum bonum a Legislação, a Jurisdição (ou "Justiça") e a Administração (ou esfera executiva). Philosopho appelatur, quasi ad alterum utilitatem ordinatum", S. Tomás, De "Justiça indica, no caso, o Poder Judiciário, ou a Justiça. Ainda hoje, falamos justitia, II 11, q. 80. em Tribunal de Justiça, Palácio da Justiça, Oficial de Justiça. (26) "Livro dos Provérbios", XI, 5. (22) V. 1.' parte, Capítulo 3, sobre a natureza científica do Direito. (27) "Livro da Sabedoria", VIII, 7. 128 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 129 Aristóteles e os pensadores representativos da cultura grega consideram a justiça como "hábito" .28 Em Roma, Ulpiano e Justiniano falam da justiça como uma constans et perpetua voluntas. Para Cícero, justitia est habitus animi.29 A tradição patrística e medieval representada, entre outros, por Santo Agostinho,30 Isidoro de Sevilha 31 e S. Tomás,` considera a justiça como uma virtus (virtude, força da vontade). No mesmo sentido, Leibniz, que se ocupou aprofundadamente do tema, define a justiça como um hábito de amizade em relação ao próximo - habitus amandi alioS.33 Entretanto, na moderna linguagem jurídica, como vimos, é usada preferencialmente a acepção objetiva da justiça. Esta diversidade não significa que exista uma oposição entre o sentido subjetivo e objetivo da justiça. Estamos na presença de dois aspectos de uma mesma realidade. Justiça, no sentido subjetivo, é a virtude pela qual damos a cada um o que lhe é devido. No sentido objetivo, justiça aplicase à ordem social que garante a cada um o que lhe é devido. Tratase de um caso de analogia. O que se disser da justiça como virtude aplicar-se-á, também, analogicamente, à ordem social e às demais acepções do vocábulo. Na filosofia estóica predominou, também, esse sentido amplo da justiça. E como o estoicismo exerceu poderosa influência sobre o Direito Romano, nos textos do Digesto vamos encontrar o mesmo conceito: "Direito é a arte do bem e do eqüitativo" (Jus est ars boni et aequi). E entre os precepta juris, de Ulpiano, vem, em primeiro lugar, o "viver honestamente" (honeste vivere).34 Ora, é esse um preceito de moral geral. Justiça se identifica, aí, com a virtude em geral ou o conjunto de todas as virtudes. No mesmo sentido S. João Crisóstomo definiu a justiça como o cumprimento dos mandamentos ou das obrigações em geral." 3.2 Sentido lato Numa acepção menos ampla, "justiça" significa não a virtude em geral, mas apenas o conjunto das virtudes sociais ou virtudes de relação e convivência humana. Virtude Nesse sentido é empregada a palavra justiça social quando a consideramos uma das quatro virtudes cardiais. As demais virtudes: prudência, temperança ou coragem, podem ser exercidas pelo homem isoladamente. Mas a justiça supõe a existência de outras pessoas. Regula as relações de pessoa a pessoa. Justiça, em sentido lato, significa o conjunto das virtudes que regulam as relações entre os homens. Inclui, portanto, além dos deveres de justiça estrita, as virtudes da amizade, da veracidade, do respeito filial etc. 3.3 Sentido estrito Mas, em sentido estrito e próprio, a justiça designa uma virtude com objeto especial. Nesse sentido, "a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é Outrem devido, segundo uma igualdade" (simples ou devido proporcional), conforme a definição lapidar de S. igualdade Tomás." Só é justiça propriamente dita a relação que tem por objeto: - dar a outrem; - o que lhe é devido; - segundo uma igualdade. 3. Sentido latíssimo, lato e estrito da justiça A justiça, em sua acepção subjetiva, apresenta três de extensão diferente: a) sentido latíssimo; b) sentido lato; c) sentido próprio ou estrito. significações 3.1 Sentido latíssimo No primeiro caso, justiça significa a virtude em geral. O conjunto de todas as virtudes. O justo é o virtuoso. Justiça significa nesse caso santidade. E esta a acepção do vocábulo em diversas passagens da Bíblia, em que o justo é equiparado ao santo. É o caso da Virtude em geral expressão citada: "A justiça do simples dirige o seu caminho". (28) Aristóteles, Ética a Nicômaco, v. 1. `34) (29) Cícero, De inventione, 2, 53, 160. 35) (30) S. Agostinho, De civitate Dei, XIX, 21. (71) "Etymologiae", 1. X. (32) S. Tomás, De justitia, li 11, q. 58, a. 3. (36) (33) Leibniz, Juris et aequi elementa, Leipzig, 1893. Ulpiano, Libro primo regularum, D., 1, 1, "De justitia et jure" 10, 1: "Juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere". "Justitia est mandatorum observatio" (In Matheum Homil., XII). S. Tomás: 'Ratio justitiae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei debetur secundum aequalitatem". De justitiae II li, q. 80, c. 130 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO A essas três notas correspondem as características essenciais da justiça, em sentido estrito: - a alteridade ou pluralidade de pessoas (alteritas, de alter); - o devido (debitum); - a igualdade (aequalitas). 4. Características essenciais da justiça 4.1 A alteridade A justiça consiste fundamentalmente na disposição permanente de respeitar a pessoa do próximo. Por isso, a Pluralidade primeira condição para que ela se realize é a de pessoas existência de uma pluralidade de pessoas ou pelo menos uma outra pessoa (alteritas). Em sentido próprio, ninguém pode ser justo ou injusto para consigo mesmo. Essa pluralidade de pessoas é o que distingue a justiça das outras virtudes morais. E a caracteriza como virtude social. As demais podem ser exercidas pelo homem, individualmente. O indivíduo isolado, como Robinson em sua ilha, poderá ser temperante ou intemperante, corajoso ou não, prudente ou imprudente, mas não poderá ser justo ou injusto. Porque falta outro homem, em relação ao qual ele possa cumprir ou faltar com os deveres de justiça. Essa pluralidade deve ser necessariamente de pessoas? Ou pode referir-se, também, a outros seres vivos; os animais, por exemplo? Pode-se falar de uma justiça na vida animal? Spencer, em seu estudo sobre a `justiça",37 dedicou alguns capítulos à consideração "da justiça na vida animal". Aponta aí diversas relações que apresentam certas semelhanças com a justiça e a atividade moral. É inegável que existem semelhanças e aproximações entre a atividade dos homens e a dos animais. Entretanto, se considerarmos a justiça em sentido próprio, e respeitarmos sua natureza, devemos afirmar que é impossível uma justiça na vida animal, porque sua realização supõe conhecimento de princípios e liberdade de decisão. A justiça é uma virtude moral. Ora, na vida animal não encontramos nem o conhecimento intelectual, capaz de atingir os princípios, nem essa liberdade de determinação, que é prerrogativa da vontade humana. Em sentido próprio, não tem sentido falar-se em valores morais em relação aos animais. Os conceitos de bem, justiça e dignidade escapam à vida animal. (37) H. Spencer, A justiça, Lisbòa, Ailland-Alves, caps. 1 e II. CONCEITO DE JUSTIÇA 131 Problema semelhante é o da existência ou não de relações de justiça entre o homem e o animal. As leis de proteção aos animais e certos atos, Justiça ditos de ingratidão ou injustiça em relação a cães, em relação cavalos e outros seres, parecem justificar uma aos animais resposta afirmativa. Mas tal não se dá. Tais ações podem revelar maus sentimentos e, como tal, ser reprimidas no interesse social. Entretanto, como seres de natureza diferente, o homem e o animal não podem estar sujeitos a uma relação de justiça propriamente dita, porque esta supõe uma igualdade fundamental. A noção de justiça é inaplicável às relações entre o homem e seres que não tenham natureza racional. Não se poderá dizer que o homem é injusto por retirar da colmeia o mel elaborado pela abelha, sem dar a esta uma retribuição pelo serviço prestado. Do mesmo modo, ninguém dirá que o homem pratica uma injustiça pelo fato de nada dar à árvore em troca dos frutos que dela recebe. A justiça exige sempre uma pluralidade de "pessoas". E aí reside uma de suas características fundamentais. Renard sintetizou essa idéia numa fórmula feliz, ao definir a justiça como "a lei primordial das relações de pessoa a pessoa".38 Cícero, no De Officis, afirma o mesmo conceito, ao atribuir à justiça a função de dirigir a "sociedade dos homens".39 E Dante, que, além de poeta, foi autor do tratado jurídico De Monarchia, define a justiça como uma relação proporcional de homem a homem: hominis ad hominem proportio.40 A justiça consiste essencialmente no reconhecimento prático que o homem faz da dignidade dos demais homens. O que há de fundamental em toda espécie de justiça, escreveu Del Vecchio, é esse elemento de "intersubjetividade" ou de correspondência nas relações entre pessoas.41 4.2 O devido A obrigatoriedade ou exigibilidade - debitum - é uma segunda nota que integra o conceito de justiça. Vimos que justiça supõe a existência de pelo "Devido" ou menos duas pessoas. Por exemplo, A paga a B exigibilidade determinada quantia. Mas, para que se realize a noção de justiça, outro elemento é necessário: esse c3s> G Renard, Théorie de l'institution, p. 25. (39) Cícero, De Officis, I, VII. 140 Dante, De Monarchia, liv. II, cap. 5, n. 3. (41) Del Vecchio, De Ia justice, § 6. Relação de pessoa a pessoa Justiça na vida animal ato deve ter o 132 caráter de rigorosa obrigatoriedade. Da parte de A deve existir um dever estrito (debitum), e da parte de B o direito de exigir esse ato (exigibilidade). O ato de justiça consiste em dar o que é "devido". "Actus justitiae est reddere debitum", doutrina S. Tomás (1, q. 21, a. 1, ad 3). Mas há certo dever ou debitum em outras virtudes sociais, além da justiça. Há, por exemplo, um dever na virtude da gratidão, da amizade ou da veracidade, e, no entanto, elas não constituem espécies de justiça, em sentido próprio. É que existem, na realidade, dois tipos de débito ou obrigação. Há um dever simplesmente moral, menos rigoroso, que não pode ser imposto por lei ou exigido pelo interessado (debitum morale ou debitum mere morale). E outro, estrito e rigoroso, que pode ser exigido • legalmente imposto (debitum legale). No caso da gratidão, da amizade ou da veracidade existe apenas um debitum morale. Na justiça, o débito é rigoroso, estrito, legal. Pode ser exigido. Assim, o devedor tem o dever estrito ou legal de efetuar • pagamento da dívida e o credor, o direito de exigi-lo. Há no caso rigorosa relação de justiça: um homem dá a outro o que lhe é "devido". No caso da gratidão a situação é diferente. 0 benfeitor não pode exigir o reconhecimento do beneficiário. Há apenas um dever moral • não uma estrita relação de justiça. A violação desse dever constituirá uma ingratidão, mas não uma injustiça propriamente dita. Compreende-se, por aí, a expressão de Lachance: "O devido legal é necessário à existência (ad esse) da vida política, Devido enquanto o devido moral apenas contribui para a moral perfeição dessa vida (ad tnelius esse) .42 • devido Quando o respeito a determinado dever é legal necessário ao bem comum, a lei o toma exigível, isto é, atribui ao credor o poder de exigi-lo. É o que modernamente se denomina "atributividade". Essa distinção entre o debitum meramente moral e o debitum legal ou jurídico corresponde à diferença entre "normas Atributividade de aperfeiçoamento" e "normas de garantia", utilizada, entre outros juristas, por Goffredo Telles Júnior para caracterizar as normas jurídicas: "Em todo grupo social, existem duas espécies de normas: normas de garantia e normas de aperfeiçoamento. As normas de garantia são as que visam a conferir ao grupo social a forma condizente com sua razão de ser. São as qu garantem a ordem necessária à consecução dos objetivos sociais. As normas contidas num Código Civil, as de um estatuto de sociedad (42) Lachance, Le concept du droit selon Aristote et St. Thomas, liv. Il, cap. 1; § 1.°. CONCEITO DE JUSTIÇA 133 anônima, ou as de um contrato antenupcial são exemplos de normas de garantia. As normas de aperfeiçoamento são as que visam a aprimorar a comunhão humana de um grupo social, grupo este já ordenado pelas normas de garantia. São exemplos destas normas: `Amarás teu próximo como um ser igual a ti', `Praticarás a caridade' etc. É claro que a obediência às normas de aperfeiçoamento não é essencial à preservação da sociedade. O grupo social não deixará de existir só pelo fato de não serem tais normas seguidas. Mas o que devemos assinalar, com máximo destaque, é que a violação sistemática das normas de garantia acarretaria a decomposição e o aniquilamento do grupo social. Em conseqüência, pelo simples fato de viverem em sociedade e de desejarem continuar a servir-se dela, os homens em conjunto e tacitamente, conferem às normas de garantia uma qualidade que as outras normas não têm. Que qualidade será esta? Uma vez estabelecido que a norma de garantia precisa ser cumprida, ela adquire, por este fato, a qualidade denominada atributividade. Atributividade é a qualidade, inerente à norma de garantia, de atribuir, a quem seria lesado pela violação dessa norma, a faculdade de exigir do violador, por meio do poder público, o cumprimento dela, ou a reparação do mal sofrido. Logo, a norma de garantia, além de ser imperativa, como todas as normas, é também atributiva. A norma atributiva se chama norma jurídica ou norma de Direito. Define-se a norma jurídica: um imperativo. Por que é imperativa a norma jurídica? Precisamente porque ela é norma. Por que é atributiva? Porque, diferentemente de todas as outras normas, a norma jurídica atribui, a quem seria lesado pela sua violação, a faculdade de fazê-la cumprir pelo violador, ou de exigir deste a reparação do mal por ele causado".43 No mesmo sentido é a lição de Dabin, em sua Philosophie del'ordre juridique positif: o traço característico da justiça e do direito é a exigibilidade. Em lugar de estabelecer o dever e deixar à consciência do devedor o seu cumprimento efetivo, a justiça quer ser respeitada. Ela reclama, exige, opondo-se à violação do direito, perseguindo o devedor faltoso, impondo reparação, não apenas em palavras, mas em atos, pela utilização de todos os meios proporcionados, inclusive a coação material." INTRODUÇÃO À CIÊNCIA po DIREITO (43) (44) Goffredo Telles J., Filosofia do Direito, § 105. J. Dabin, Philosophie de l'ordre juridique positif, n. 94. "Si l'on cherche maintenant Ia raison qui rend compte de l'exigibilité du devoir de justice, on Ia trouvera dans l'objet même de ce devoir: ce quest dú, en l'espèce, c'est une chose qui appartient à autrui, qui lui est propre et 'siéne' (cuique suum). Et c'est parce que Ia chose lui est propre et 'siénne' - à l'un ou à l'autre titre (comme homme, comme membre d'une famille, ou comme citoyen) - que le titulaire du droit peut I'exiger et même, pour l'obtenir user de Ia contraente". V. também, n. 99 e 124. 134 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA^ DO DIREITO 4.3 A igualdade A "pluralidade" de pessoas e 40 "devido" (exigibilidade ou atributividade) são elementos neeessár-ios, mas não suficientes para caracterizar uma relação de justiça Utrfa terceiro elemento é essencial: a "igualdade". A dá aB (alteritgs) c, que lhe é devido (debitum), segundo uma igualdade (aequalitg5) ets a estrutura elementar de um ato de justiça. A igualdade é elemento essencial e básico. "A justiça é uma igualdade e 4 injustiça uma desigualdade", afirElemento mou AristótejeS.4s "A essência da justiça é a essencial igualdade", aCresc,enta S. Tomás.46 E, mestre em tirar das pala\,ras toda a riqueza que elas encerram, mostra que a noção de igualdadfi está contida no próprio nome dessa virtude, pois, das coisas 9Ue estão adequadas ou igualadas, dizemos comumente que estão ` ajustadas".47 Da noção de "igualdade" podt mos fazer derivar as de "pluralidade" e "devido". A de pluralidade, Aorq,,je toda igualdade supõe, pelo menos, dois termos "Aequalitas ad alteram est".48 E, também, a de obrigatoriedade ou "devido": nuga relação de justiça, a prestação é "devida", porque ela representa uma ',,igualdade" ou proporção, e não vice-versa. Como diz Lachance,4i a matéria de justiça não é proporcionada a outrem porque lhe é devida, mas, inversamente, ela lhe devida, porque lhe é igual ou -de Oada proporcionalmente. A igualdade da justiça nas é um dado subjetivo, mas u exigência que pode ser fixada Objetfvamente.5o Aristóteles, Ética a Nicômaco, lis I cap. III. S. Tomás, "Forma generalis justiti;,ae ' t aequalitas", De justitia, II II, q. 61, a. 2, ad 2. Observa Lachance (loa cit.) que, ao tratar da justiça, S. Tomãi, emprega 19 vezes expressões como ,.. Yualdade", "proporção", "adequação . "Dicuntur vulgariter et quae adeq ~uant,1r, justari", S. Tomás, De justitia, II, q. 57, a. 1. Ibidem. Lachance, Le concept du droit se,_lori Aristote et S. Thomas, liv. II, § 3. NO mesmo sentido é a lição de S. T . "Unicuique debetur quod suum est . "Dicitur esse suum ali ujus, uo 1 ad i sum ordinatur". "Suum unicuigoà ersonae (est) quod ei secundam~ d d P proportlonis aequalitatem debetur" (q. 21 p , a. 1.°). A igualdade é o meio termo na N"virtude da justiça, diz S. Tomás, repetindo velho ensinamento. E o meio term%no, ern qualquer virtude é o que se encontnt entre o excesso e a falta. Se apenas a tazao fixa esse justo-meio, levando e conta considerações individuais, teremos um meio termo interior ou subjetivo É o caso das virtudes individuais,', em que o meio termo, entre o excesso a falta, é fixado subjetivamente e ~ oÚe variar de pessoa a pessoa. Se, contrário, o justo-meio se estabeleci P la comparação de uma coisa com o ou pela adequação proporcional ~e pE ide u(na coisa a determinada pessoa, te CONCEITO DE JUSTIÇA 135 4.3.1 Em que consiste a igualdade? Em sua realidade fundamental, a igualdade é uma relação. Mas, que espécie de relação? A filosofia distingue as relações em: causais e não-causais. E, entre estas, coloca as de conformidade ou adequação, que podem se apresentar sob três modalidades: a) a identidade, que é a relação de conformidade quanto à essência; b) a semelhança, que é a relação de conformidade quanto à qualidade; c) a igualdade, que é a relação de conformidade quanto à quantidade. Duas realidades são idênticas quando têm a mesma essência. Semelhantes, quando têm as mesmas qualidades. Iguais, quando têm a mesma quantidade. "Idem est unum in substancia, simile unum in qualitate, aequale, vero unum in quantiate".51 Um homem é "idêntico" apenas a si mesmo. De duas pessoas que têm os mesmos traços dizemos que são "semelhantes". Vinte é "igual" a 10 mais 10. A igualdade é, pois, uma equivalência de quantidades. Na justiça, de forma analógica e adaptada à natureza moral das relações humanas, é essa também a significação da igualdade. Com razão, observou Recaséns Siches,52 na justiça não se trata de estabelecer "identidade", como seria o caso de entregar um objeto e receber o mesmo objeto. Isso não teria sentido. Não se trata, também, de receber um objeto "semelhante" ou parecido. Mas de estabelecer uma equivalência ou "igualdade". No mesmo sentido é a lição de Lachance ao estudar a "igualdade" como característica essencial do direito." Lembrando que a igualdade é a equivalência de quantidades, pergunta o ilustre professor: devemos entender essas expressões em sentido estritamente material? É claro que não. Trata-se então de simples metáfora? Também não. Entre os dois extremos há muitas significações analógicas. S. Tomás, que apreendia o sentido da palavra em toda sua extensão, não recua diante do termo "igualdade". Mas tem o cuidado de acrescentar "algum modo o justo-meio objetivo. Esse é o caso da justiça. Pela compra de um objeto que vale 100, a justiça exige que se pague essa importância, independentemente de considerações subjetivas (S. Tomás, li II, q. 58, a. 10. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, §§ 36 e 37. Faidherbe, La justice distributive, (52 Sa Tomás, Comm. Met. s) L. Recaséns Siches, Estudios de filosofia del derecho, XXIV, 3, p. 388. (53) Lachance, ob. cit., liv. II, § 3, p. 280. (45) (46) (47) (48) (49) (50) r 136 INTRODUÇÃO À CIÉNCIA DO D1TRED de igualdade" (aliquem aequalitatís modum). Am da igeal e~n da massas, há igualdades de outra ordem, como sãoas que natureza das pessoas, como a iguaidade de diireiios. A quanti Jadee de que se trata no direito é moral. P- a relaçãoo correspondente e uma relação de igualdade moral. 4.3.2 Igualdade simples ou piroporcionóal A igualdade da justiça pode Irealizar-se de duas formas d IlUas: a) igualdade simples ou absoluta é a egeivalência entre dois objetos, que se verifica nas relações de troca: o comprados um objeto que vale 1.000 dever efetuar um p~aganento de igi01 valor (1.000 = 1.000); b) igualdade proporcional ou relativa é a que se rédea na distribuição dos benefícios e encargos entre os membros de uma CoItibui comunidade: se A, que contribui com 50, re~cete 5, B, que com 80, receberá 8 (5/50 = 8/80)• Aristóteles chamou à primeira igualdade de `aritmética'' segunda "geométrica"sa Em qualquer caso, a justiça procura realüar uma igualaadP nas relações entre os homens. Ou, corno diz Lachance,55 na justiça de erros nos igualar ao próximo por um ato. Se A recebe de B um objeto ou serviço que vale 100 paga 100, a igualdade inicial foi mantida. A ação foijusta. Se pag~li senos de 100, violará a justiça. Se der mais, praticará uma líber `tde e não, simplesmente, um ato de justiça. De modo semelhante, na distribuição dos lucros de Um" sociedade, se A, que contribuiu com 100, recebeu 10, e B, que ~JDI'ibui com 50, recebeu 5, foi respeitada uma igualdade básica. 4.3.3 Igualdade fundamental dos homens Essas considerações nos levam ao fundamento da justi(a• que é a igualdade essencial de todos os homens. Socais? Por que exige a justiça ess ~ánigá a dédma natureza ee Jigtidade Porque todos os homens PIES instN fundamentais. Nenhum homem pode ser considerado sim coro diz mento e ser usado como tal. A finalidade de justiça, 16 Vermeersch, é assegurar a igualdade pessoal dos homens: `54' Aristóteles, Ética a Nicômano, liv. V, cap. 4. ss Lachance, Le concept du droit, soe. cit. A. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, v. 1, p. 39. CONCEITO DE JUSTIÇA 137 "Fundamental é o princípio de que cada ser humano é pessoa, isto é, uma natureza dotada de inteligência e vontade livre", diz João XXIII, na Encíclica Pacem in Terris. São, por isso, incompatíveis com uma exata concepção da justiça todas as doutrinas que negam a igualdade de natureza e dignidade de todo o gênero humano. O que se deu, de forma geral na Antiguidade, com as concepções de desprezo ao estrangeiro, considerado como ser inferior, eo regime de escravidão, geralmente admitido, e justificado por muitos, com a negação da igualdade de natureza entre o senhor • o escravo. Está nesse caso a famosa teoria de Aristóteles, que considerava o escravo um "instrumento vivo". Doutrina que, apesar das atenuações salientadas por Ross,51 Lachance e outros, afirma claramente a distinção de natureza entre o escravo e o homem livre: "Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros, como o corpo o é em relação à alma, ou o animal em relação ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém...; tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão." É comum, por isso, dizer-se que a verdadeira noção de justiça só penetrou no mundo com o Cristianismo, que proclamou, de maneira • com amplitude e convicção até então desconhecidas, a igualdade fundamental e a universal fraternidade de todos os homens, de qualquer raça e condição. Pela mesma razão, é incompatível com a verdadeira noção de justiça toda doutrina que, negando essa igualdade de natureza, pretenda estabelecer raças de senhores e raças de servos. Violam, ainda, o princípio fundamental da justiça todos aqueles que, na expressão candente da Rerum Novarum, "tratam o trabalhador como escravo, quando é de justiça que se respeite nele a dignidade do homem". "E vergonhoso e desumano", continua o mesmo documento, "usar do homem como de simples instrumento de lucro, e não • considerar senão em proporção ao vigor de seus músculos".59 X51 "On doit remarquer que l'esclavage chez les Grecs était en grande partie exemple des abus qui l'ont déshonore chez les Romains et sauvent aussi dans les temps modernes. L'approbation qu'Aristote donne à l'esclavage présent un certain nombre de caractères qui doivent être signalés: 1) L'enfant d'un esclave par nature, n'est pas necessairement, lui même, esclave par nature. 2) L'esclavage par sinple droit de conquête dans Ia guerre ne doit pas être approuvé. Une pui,sance supérieure ne signifie pas toujours une excellence supeneure. 3) Les intérets du maitre et de l'esclave sont les mêmes. Le maitre ne noit donc pas abuser de son autorité. Il doit être l'ami de son esclave. ss II ne doit pas simplement lui commander, mais raisonner avec lui. 4) Les esclaves doivent poivoir espérer être un jour émancipés". Aristote, W. D. Ross, Paris, Payot, 1930, cap. VIII, p. 334 e 335. Aristóteles, Política Leão XIII, EncíicQ liv. l.° e 2.°, § 13. a Rerum Novarum, 1891. à t 138 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 139 Esse princípio foi proclamado expressamente na Declaração Uni versal dos Direitos do Homem, em 1946, nos Princípio da termos seguintes: "O reconhecimento da dignidaigualdade de inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo". "Todos são iguais perante a lei" é a fórmula comum do princípio de igualdade nas Constituições modernas." Esse respeito à dignidade fundamental da pessoa humana, que constitui a base da justiça, não pode ser considerado apenas abstratamente. É na realidade histórica, concreta e variável, em que as relações sociais se desenvolvem, que a justiça e suas exigências devem ser atendidas. É aí que se situa o trabalho e a luta permanente pela justiça, que dá sentido e grandeza à tarefa dos juízes, promotores, advogados e demais servidores do direito. Como observou Del Vecchio,6' foi por não haver feito essa distinção, entre a pessoa humana em sua essência e em sua existência histórica, que se cometeram os erros característicos da abstração política, ao mesmo tempo que a reação unilateral contra tais erros conduziu outras escolas, como por exemplo o historicismo, a erros contrários, isto é, a desconhecer o critério absoluto da justiça, que decorre da consideração da natureza humana. 5. Espécies de justiça: comutativa, distributiva e social Grande número de opiniões pode ser encontrado a respeito das espécies de justiça. Deixando de lado discussões intermináveis," que, freqüentemente, se fundam em aspectos secundários do problema, podemos dizer que há: a) uma justiça particular, cujo objeto é o bem do particular; b) uma justiça geral, também chamada legal ou social, cujo objeto é o bem comum. Sobre o princípio da igualdade, V. Anacleto de Oliveira Faria, Do princípio da igualdade. Teoria e prática, São Paulo, 1967. J. Maritain, "L'égalité humaine", cap. III de Principes d'une politique humaniste, Nova York, Maison Française, 1944. Yves Simon, "Igualdade democrática", cap. IV de Filosofia do governo democrático, Rio, Agir, 1955. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Celso Antônio Bandeira de Mello, Ed. RT; v. Constituição Federal, art. 5.°. Dei Vecchio, Justice, Droit, État, § 12. V. A. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, §§ 23 a 26. E. Lustosa, Justitia socialis, Rio, 1936. G. Renard, La théorie de 1'institution, p. 27, nota 2. Dei Vecchio, ob. cit., § 6, especialmente, p. 32, nota 3. A justiça particular, por sua vez, pode se realizar de duas formas: a) um particular dá a outro particular o bem que lhe é devido; chama-se, então, justiça comutativa; b) a sociedade dá a cada particular o bem que lhe é devido; chama-se, nesse caso, justiça distributiva. Na justiça geral, social ou legal são as partes da sociedade - isto é, governantes e governados, indivíduos e grupos - que dão à comunidade o bem que lhe é devido. Em esquema: GERAL, SOCIAL ou LEGAL Temos, assim, três espécies fundamentais de justiça: a comutativa, a distributiva e a social, que serão estudadas separadamente nos capítulos seguintes. Essa divisão tem sua origem nos estudos de Aristóteles, foi desenvolvida por longa elaboração histórica e é defendida modernamente por Duguit, Dabin, Lachance e outros. No mesmo sentido, é a classificação proposta por Renard, ao dividir a justiça em: a) "justiça individual", que preside à trocas e demais relações interindividuais e corresponde à justiça comutativa; b) "justiça institucional", que preside à atividade social dos homens em relação às comunidades, como a nação, a família, a universidade etc.; neste caso, se a justiça institucional desce da autoridade aos membros da comunidade, ela constitui a justiça distributiva; se ela sobe destes para a comunidade, temos a justiça geral, legal ou social." Como dissemos, a matéria comporta grandes discussões. Alguns autores sustentam que só a comutativa realiza a noção perfeita de justiça e, por isso, Pontos só ela pode ser chamada justiça propriamente controvertidos dita." G. Renard, La théorie de l'institution, p. 24 e ss. V. adiante Cap. 6, item 1; Faidherbe, La justice distributive, cap. II, p. 22 e ss.: Qualques auteurs récentes (Waffelaert, Pottier, l'école de Malines, Cathrein, à Ia suite de De Lugo), considèrent seule Ia justice commutative comine justice proprement dite. Les autres sont appelées justices para analogie; Ia justice légale et Ia justice distributive ne sont pas ordonnées à un autre parfaitement distinct. Le R. P. Merkelbach, cependant, juge qu'il faut, avec Saint Thomas, recconaitre en ces vertus Ia vraie notion de Ia justice: Ia société est, en effet, une personne morale distincte des personnes privés qui sont ses membres (B. H. Merkelbach, O. P., Summa Theologia e Moralis, II, p. 256). Vermeersch, ob. cit., § 21. JUSTIÇA PARTICULAR COMUTATIVA DISTRIBUTIVA (60) (61) (62) (63) (6a) 140 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Outros pretendem acrescentar às três espécies mencionadas a "justiça vindicativa", que exige a punição dos culpados,ó5 a "justiça familiar ou doméstica", que tem por objeto as relações de famílias" ou, ainda, outras virtudes. Mas, como veremos nos Capítulos 2, 3 e 4, todas são afinal redutíveis à justiça comutativa, distributiva ou social. 6. Virtudes anexas à justiça Gravitando em torno da justiça e participando de algumas de suas características, encontramos o conjunto das chaJustiça por madas virtudes anexas, tais como a gratidão, a aproximação veracidade, a liberdade, o respeito filial, a eqüi dade e outras. As virtudes anexas, que os antigos denominavam "partes potenciais" das diversas virtudes cardeais, assemelham-se a estas, aproximam-se das virtudes principais, mas não se identificam com as mesmas. Encerram apenas, de modo deficiente ou imperfeito, o conceito da virtude principal. No caso da justiça - que consiste essencialmente em dar a "outrem" o que lhe é "devido", segundo uma "igualdade" -, são virtudes anexas todas as que dizem respeito "a outrem", isto é, todas as virtudes sociais, em que não existe um "devido" estrito ou não se realiza verdadeira "igualdade". A primeira condição da justiça, diz Sertillanges,ó7 é dizer respeito a outrem. Toda virtude que estiver nesse caso poderá ser chamada, de certo modo, "justiça". Mas, a rigor, essa denominação não lhe será adequada, se a essa virtude faltar alguma das demais condições, a saber, se ela não puder realizar uma verdadeira "igualdade" ou não se referir a um "devido" rigoroso, legal, exigível, mas apenas a um dever moral. de igualdade a) o respeito filial ou piedade filial (pietas), virtude pela qual o filho dá aos pais a consideração que lhes é devida; a igualdade no caso é impossível porque o filho nunca pode, a rigor, saldar sua dívida e considerar-se quite, pois, entre outras coisas, recebeu dos pais a própria vida; b) o respeito público (observantia), virtude que leva os cidadãos a dar aos homens eminentes, por alguma grande obra ou ação, a consideração que lhes é devida; no caso é também impossível realizar a igualdade exigida pela justiça; c) a virtude da religião (religio), que leva a criatura a dar ao Criador o reconhecimento ou culto que lhe é devido; aí, com maior razão, é impossível a realização de uma verdadeira igualdade. Outro grupo de virtudes anexas à justiça é constituído pelas virtudes ad alterum, em que não há um "devido" rigoroso ou exigibilidade possível: São elas, entre outras: a) a amizade, virtude que consiste em querer o bem do próximo; todos os homens têm direito à amizade de seu semelhante; mas a amizade, por sua própria natureza, não pode ser exigida coativamente; b) a veracidade, que consiste na virtude de dizer a verdade, de expressar o que se pensa; mas, como não se pode entrar no pensamento de outra pessoa, não se pode também exigir a verdade por meio legal, falta-lhe a nota da exigibilidade rigorosa; c) a gratidão, virtude pela qual o indivíduo se mostra agradecido a outrem pelo benefício recebido; como "memória dos serviços de outrem e disposição de retribuí-los", conforme a definição de Cícero, a gratidão também não pode ser legalmente exigível; d) eqüidade (epiekeia), que Aristóteles definiu como "uma adaptação da lei quando ela é deficiente por causa de sua universalidade", 69 implica sempre uma moderação das palavras da lei, em casos particulares, para atender melhor à sua finalidade e ao seu espírito; `68) "Dupliciter aliqua virtus ad alterum a ratione justitiae deficit: uno quidem modo, in quantum deficit a ratione aequalis; alio modo in quantum deficit a ratione debiti". S. Tomás, 11 11, q. 80, a. único. 69 Aristóteles, Ética a Nicômano, liv. V, cap. X. CONCEITO DE JUSTIÇA 141 Daí, dois grupos naturais de virtudes anexas à justiça .68 Em primeiro lugar, as virtudes ad alterum em que não se realiza uma "igualdade" perfeita. Estão nesse caso: Falta Falta de exigibilidade é espontânea, (65) (66) (67) "Muchos autores, siguiendo a Schalzgrueber (Jus ecclesiasticum, § 11) anaden una cuarta especie de justicia, Ia vindicativa, que es Ia virtud que exige Ia pena a los culpables, por amor al recto orden." Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, § 21. Sobre a "justiça" familiar, defendida por Dabin, como ramo autônomo da justiça, v. La philosophie de l'ordre juridique positif, §§ 92 e 107. Vermeersch, ob. cit., § 25. Sertillanges, La philosophie morale de S. Thomas d'Aquin, cap. IX, n. 1, p. 191 e ss. Sobre as virtudes anexas à justiça, ver ainda J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, § 82 e ss., Théorie Générale du droit, 221 e ss. G. Renard, Le droit, 1'ordre et Ia raison, p. 339 a 341. Lachance, "Droits imparfaits", cap. 8 de Le concept de droit. S. Tomás, De partibus potentialibus justitiae vel de virtutibus ei annexis, II II, q. 80 a 121. Cícero, De offcis, De inventione, cap. 52. Aristóteles, Ética a Nicômano, passim. 142 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO por isso mesmo, ela não pode ser exigida e constitui, como diz S. Tomás, uma virtude anexa à justiça legal." 7. Outras formulações 7.1 Duas definições clássicas de justiça: Ulpiano e Cícero Félix Senn, De Ia Justice et du droit, Paris, Sirey, 1927, v. I. "Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi", texto de Ulpiano, no livro I de suas "Regras", incluído, no Digesto, livro 1, título I, De Justitia et Jure, fr. 10, pr. Essa definição da justiça, que nossas compilações jurídicas nos transmitem, não é entretanto a única definição da justiça, que a sabedoria antiga nos deixou. Há uma outra que Cícero indica no "De invencione", e que a Idade Média cristã também reproduz. A justiça não é definida aí como uma vontade, mas como um hábito, uma disposição do espírito que dá a cada um o que lhe é devido, sem contudo prejudicar a utilidade comum. "Justitia est habitus animi, communi utilitate conservata, suum cuique tribuens dignitatem." Estas duas definições são contraditórias, ou antes elas se complementam, fazendo-nos melhor compreender a noção da justiça? São elas obras de Cícero ou do jurisconsulto Ulpiano, ou estes não fazem mais do que as reproduzir, retirando-as de fontes mais antigas? Enfim, se a justiça é ao mesmo tempo habitus animi e "vontade", que atribui a cada um o seu direito, cuique jus suum, qual é, então, esse cada um e qual é este direito que deve ser atribuído a cada um? As respostas a estas diversas questões são dadas, de uma maneira muito precisa, pelas fontes mesmas de onde foram tirados os elementos das definições reproduzidas por Cícero, e, seguindo sem dúvida numerosos outros jurisconsultos, por Ulpiano. Estas fontes, aliás, não são romanas. São de origem grega, ou, talvez, de origem ainda mais antiga. Em todo caso é da escola pitagórica e estóica que Roma recebeu a definição, desde então tradicional, de justiça. 7.2 Lei positiva e justiça Hans Kelsen, What is justice?, Ed. University o California, 1957, p. 293. A teoria pura do Direito restringe-se à análise estrutural da lei positiva, baseada no estudo comparativo das regras sociais que atualmente existem e existiram na história sob o nome de lei. Portanto, o problema da origem da lei - a lei em geral ou uma ordem legal particular -, significando as causas do surgimento da lei com seu específico conteúdo, está fora do alcance desta teoria. X70' De justitia, 11 11, q. 80, a. único, ad 5; II II, q. 120, a. 2. Sobre a eqüidade como virtude anexa à justiça, v. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, § 84 e ss. B. Raffo Magnasco, La justicia, lec. XVI, p. 233 e ss. São problemas de sociologia e de história. E, como tal, requerem métodos totalmente diferentes dos de uma análise estrutural das regras legais existentes. Como a questão da origem da lei, a questão de estabelecer se uma dada regra legal é justa ou injusta não pode ser respondida dentro da estrutura e pelos métodos específicos de uma ciência orientada para a análise estrutural da lei positiva. Isto não significa necessariamente que a questão sobre o que seja justiça não possa ser respondida científica e objetivamente. Mas, mesmo que seja possível decidir-se objetivamente sobre o que é justo e o que é injusto, como é possível determinar o que é um ácido e o que é uma base, justiça e lei devem ser consideradas como dois conceitos diferentes. Se a idéia de justiça possui alguma função, é a de ser um modelo para a leitura da boa lei e um critério para a distinção entre uma lei boa e uma lei má. Existe, entretanto, na ciência jurídica tradicional, uma tendência terminológica em identificar lei com justiça, a usar o termo no sentido de lei justa, e a declarar que uma ordem coercitiva eficaz e, portanto, uma lei positiva válida, ou uma norma qualquer de tal ordem social, não é uma lei "real" ou "verdadeira" se ela não for justa. Este uso do termo "lei" tem o efeito de que qualquer lei positiva deva ser considerada à primeira vista como justa, já que se apresenta como lei e é geralmente chamada "lei". Pode ser duvidoso que ela mereça ser denominada lei, mas ela tem o benefício da dúvida. Aquele que nega a justiça de tal "lei" e afirma que a assim chamada lei não é "lei verdadeira", tem que provar isto; e esta prova é praticamente impossível já que não existe um critério objetivo de justiça. Portanto, a conseqüência real da identificação terminológica entre a "lei" e a `justiça" é uma justificação ilícita de toda lei positiva. Não há e não pode haver um critério objetivo de justiça devido ao seguinte: afirmar que algo é justo ou injusto é um julgamento de valor em referência a um fim último, e estes julgamentos de valor são por natureza de caráter subjetivo, porque baseados em elementos emocionais de nossa mente, em nossos sentimentos e desejos. Eles não podem ser verificados pelos fatos, como podem as afirmações sobre a realidade. Os julgamentos dos valores últimos são sobretudo atos de preferência; eles indicam o que é "melhor" e não o que é "bom"; eles implicam uma escolha entre dois valores conflitantes, como, por exemplo, a escolha entre liberdade e segurança. Se um sistema social que garante a liberdade individual, mas não a segurança econômica, é preferível a um sistema social que garante a segurança econômica, mas não a liberdade individual, depende da decisão sobre qual dos dois valores, liberdade ou segurança, é o maior. É difícil negar que existe uma diferença radical entre a afirmação de que a liberdade é valor maior do que a segurança, ou vice-versa, e a declaração de que a água é mais pesada do que a madeira. Há indivíduos que preferem a liberdade à segurança porque eles sentemse felizes somente se estão livres, e portanto preferem um sistema social e o consideram justo somente se ele garante a liberdade individual. Mas outros preferem a segurança porque sentem-se felizes só quando estão economicamente seguros, e por conseguinte só consideram um sistema justo se ele garante a segurança econômica. Seus julgamentos sobre o valor da liberdade e da segurança, e portanto sua idéia de justiça, estão, em última análise, baseados apenas em seus sentimentos. Nenhuma verificação objetiva dos seus julgamentos de valor é possível. E, como o homem difere muito em seus sentimentos, suas idéias de justiça são muito diferentes. Esta é a razão porque, a despeito das tentativas feitas pelos mais ilustres Prensadores da humanidade para resolver o problema da justiça, não existe nenhum acordo, mas o mais apaixonado debate na resposta à questão sobre o que é justo. Bem diferente é a situação em relação às afirmações sobre a realidade. A declaração de que a água é mais pesada do que a madeira pode ser verificada pela experiência. CONCEITO DE JUSTIÇA 143 144 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE JUSTIÇA 145 As afirmações sobre fatos são baseadas, é verdade, na percepção de nossos sentidos, controlados pela razão, e, portanto, são, de certa forma, também subjetivas. Mas as percepções dos nossos sentidos estão sob o controle da nossa razão em grau muito maior do que os nossos sentimentos, e, como matéria de fato, ninguém duvida de que a água seja mais pesada do que a madeira. Mesmo se aceitamos a filosofia do subjetivismo radical e admitimos que o universo existe apenas na mente do homem, nós precisamos, não obstante, sustentar a diferença que existe entre julgamentos de valor e afirmações sobre a realidade. A diferença pode ser apenas relativa, entre graus de subjetividade ("objetivo" significando, então, o menor grau possível de subjetividade). Mas a diferença relativa já é suficiente para justificar a diferença entre um julgamento sobre o que é justo e uma afirmação sobre o que é a lei, a lei positiva. Lei "positiva" significa que uma lei é criada por atos de seres humanos que têm seu lugar no tempo e no espaço, em contraposição à lei natural, que se considera ter outra origem. Conseqüentemente, a questão sobre o que é a lei positiva, a lei de certo país ou a lei num caso concreto, é a questão de um ato criador da lei, que ocorreu num determinado tempo e espaço. A resposta a esta pergunta não depende dos sentimentos daqueles que respondem; ela pode ser verificada por fatos objetivos, ao passo que a questão sobre se a lei de um certo país ou a decisão de uma determinada corte é "justa" depende da idéia de justiça, admitida pela mente de quem responde, e esta idéia de justiça está baseada na função emocional dessa mente. 7.3 Pensamentos sobre a justiça B. Pascal, Pensées, Paris, Ed. Libr. Hachette, 1946, n. 294 e 298. Três graus de elevação do pólo invertem toda a jurisprudência, um meridiano decide sobre a verdade; em poucos anos, as leis fundamentais se transformam; o direito tem suas épocas, a entrada de Saturno em Leão nos assinala a origem de um tal crime. Bizarra justiça que um riacho delimita! Verdade deste lado dos Pirineus, erro do outro lado. Eles confessam que a justiça não está nos seus costumes, mas reside nas leis naturais, conhecidas em todos os países. Certamente isso seria sustentável se a temeridade do acaso que semeou as leis humanas tivesse deixado ao menos uma que fosse universal; mas a realidade é tão engraçada e o capricho dos homens está tão diversificado que não existe nenhuma. O furto, o incesto, o assassínio de filhos e de pais, tudo teve seu lugar entre, as ações virtuosas. Pode haver alguma coisa mais divertida que um homem ter o direito de me matar porque ele mora do outro lado do rio e seu príncipe brigou com o meu, ainda mesmo que eu não tenha nada com ele? Há sem dúvida leis naturais; mas esta bela razão corrompida a tudo corrompeu: "Nihil amplius nostrum est; quod nostrum dicimus, arts est. Ex senatus consultis et plebiscitis crimina exercentur. Ut olim uittis, sic nunc legibus laboramus". Desta confusão decorre que um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador, outro a comodidade do soberano, outro o costume atual, e é o mais certo: nada, apenas pela razão, é justo por si mesmo; tudo se transforma com o tempo. O costume realiza toda a eqüidade, pela simples razão de que ele é aceito; esse é o fundamento místico de sua autoridade. Quem pretenda reduzi-lo ao seu princípio, o aniquila. Nada é tão falível como estas leis que retificam os erros; quem as obedece porque elas são justas, obedece à justiça que imagina, mas não à essência da lei: todo seu valor está concentrado em si mesma; ela é lei, e nada mais. Quem quiser examinar o motivo o encontrará tão fraco e superficial, que, se ele não estiver acostumado a contemplar os prodígios da imaginação humana, admirará que um século lhe tenha proporcionado tanta pompa e reverência. A arte de subverter os Estados é a de abalar os costumes estabelecidos, pesquisando até sua fonte, para assinalar sua falta de autoridade e de justiça. É preciso, diz-se, voltar às leis fundamentais e primitivas do Estado, que um costume injusto aboliu. É um jogo seguro para tudo perder; nada será justo nessa balança. Justiça, força. É justo que o que é justo seja seguido, é necessário que o que é mais forte seja seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirania. A justiça sem força é contraditada, porque os maus sempre existem; a força sem a justiça é acusada. E preciso, pois, colocar juntas a justiça e a força; e assim fazer com que o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo. A justiça é sujeita a discussão, a força é reconhecida sem discussão. Assim não se pode dar força à justiça, porque a força contradisse a justiça e afirmou que ela era injusta e disse que ela é que era justa. E, assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, acabou fazendo com que o que é forte fosse justo. 7.4 Justiça civil e justiça penal G. Del Vecchio, A Justiça, Saraiva, 1960, p. 94. Houve, em todos os povos e tempos, um sistema regulador, resultante dos elementos psíquicos dos próprios homens conviventes, e que assinala a cada um a esfera própria de atividade, ligando uns aos outros mediante uma série de vínculos bilaterais e recíprocos, de sorte que pretensões e obrigações se correspondem e se convertem. Nem importa que tal sistema não seja sempre enunciado ou formulado por escrito, uma vez que essa formulação, mesmo onde ela se verifique, não pode, por motivos vários, ser totalmente cumprida. O sistema vive como organismo lógico, enquanto é sustido e alimentado pela consciência social preponderante, que de contínuo o elabora e renova. Ele tem uma racionalidade intrínseca própria, que o pensamento reflexo descobre e analisa só num segundo momento, como que percorrendo de novo a própria obra genuína e imediata de criação. Isto mesmo é o que acontece com todos os outros produtos históricos (por exemplo, a linguagem), nos quais o espírito manifesta ativamente suas potências profundas, ainda antes de estas aflorarem e se delinearem na lúcida tela da consciência. Portanto, também o sistema das determinações intersubjetivas do operar é antes costumado ou praticado que raciocinado (para nos servimos da expressão de Vico); o que em nada diminui seu significado ideal, mas é novo documento de sua humana necessidade. Uma vez que o fenômeno da retribuição do mal com o mal, sobretudo na forma típica do talião (retaliatio) ou da vingança regulada e comensurada, é o que mais dá na vista entre os fenômenos da justiça primitiva, asseverou-se que a justiça penal precede historicamente a civil. "Dans les sociétés primitives", escreve por exemplo Durkheim, "le droit est tout entier pénal". Mas, contra esta tese, é fácil observar que a pena, com o delito a que corresponde, supõe um estado precedente de normalidade ou de equilíbrio: por outras palavras, uma exigência e uma obrigação correlativas, determinadas por uma regra, embora tácita, mas que na imensa maioria dos casos é observada e não transgredida. A transgressão, ou seja, a perturbação do equilíbrio, que justamente se visa restabelecer mediante a pena, representa na realidade uma 146 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO exceção, e logicamente um consecutivum. Em suma, a lei penal tem como pressuposto uma série de valores jurídicos já definidos e reconhecidos, relativamente aos quais ela constitui só uma espécie de justiça segunda. Certo é que já com a primeira espécie de determinações jurídicas (ou justiça primeira) é dada virtualmente a possibilidade da transgressão; se assim não fosse, seria insensata a afirmação de qualquer máxima deontológica. Mas aquilo que para estas determinações é mera virtualidade (que pode não verificar-se efetivamente, e as mais das vezes não se verifica) é, ao invés, a necessária base de fato para a justiça penal: a qual parte justamente da hipótese de uma injustiça praticada ou injúria, para referir uma nova série de determinações jurídicas, sujeitas estas, por seu turno, à possibilidade de uma transgressão ou de inadimplemento. O caráter secundário da justiça penal manifesta-se principalmente no fato de ela não intervir em todos os casos de violação dos preceitos jurídicos elementares ou primários; tal violação é condição necessária, mas não suficiente para que se dê lugar àquela justiça. O direito violado admite ainda outras formas de reafirmação e reintegração, ainda mais intimamente conexas com aquela exigência fundamental, que se identifica com a natureza lógica do direito em geral, ou seja, a impedibilidade da ofensa. Desta segue-se imediatamente a obrigação de restituir e de ressarcir, em todos os casos de injustiça praticada e de damnum injuria datum. Mas a restituição e o ressarcimento são por si conceitos meramente civis; como o respeito do limite jurídico originário, nem mudam de natureza, embora sejam postos em ato por meios coercitivos. Em poucas palavras, há uma sanção e uma coação civil as quais (como exigências) são inseparáveis do direito; ao passo que a sanção e a coação penal, que por vezes se acrescentam e sobrepõem àquelas, podem faltar, e de qualquer maneira nunca são possíveis por si sós. A noção elementar da justiça, como equilíbrio e correlação intersubjetiva, que se resolve na exigência recíproca do respeito e na recíproca possibilidade de impedir a ofensa, está pois implícita na fenomenologia jurídica primitiva, e subentendida nas próprias formulações penais, muito embora estas pareçam existir por si, ou extrinsecamente se revelem como um prius. Na realidade, estes diversos graus e momentos da justiça, que a sucessiva elaboração, científica e técnica, discrimina e dispõe arquitetonicamente, mostram-se, a princípio, como que confusos, ou melhor, compreendidos num só núcleo. Assim, por exemplo, o instituto da composição, que tão grande papel desempenhou no direito antigo, encerra em si elementos civis e penais, privados e públicos. Todavia, é claro que isto, longe de infirmar, confirma antes o que já por outra via se demonstrou, a saber, que, qualquer que seja a importância das distinções feitas, ou a fazer, nesta matéria, um só é o germe e o motivo de todas as maneiras de justiça: Leges innumerae, una justitia. Sem dúvida, é longo e laborioso o processo histórico, mediante o qual "desde a infância do mundo" (para nos servirmos das palavras de Vico) as "sementes: eternas do justo se vão desdobrando em máximas demonstradas de justiça"; e quase' não vale a pena advertir que, nas fases primordiais, a justiça não se encontra naquel plenitude e perfeição ideal, que, aliás, para falar verdade, em vão se procurara; também nas fases mais avançadas. Ora, justamente, quanto maior for em nós "consciência histórica", ou, por outra, a noção da complexidade do processo lent pelo qual se vai formando este "mundo civil", tanto maior motivo de admira temos em descobrir desde o exórdio como sendo já dados, ou só virtualmen ou implicitamente, os elementos fundamentais e a trama do mesmo processo. conseguinte, quem parte do preconceito positivista ou empirista de que no espíritda e, portanto, na história, nada é dado a priori, e que conseqüentemente tambó a justiça é apenas um efeito do devir e algo de artificial, deve, perante esse fa maravilhoso e, entanto, inegável, desenganar-se ou contradizer-se: como aconteceu, por exemplo, com Littré, o qual, após ter asseverado que a justiça "loin d'être primordiale, innée, élémentaire, est secondaire, acquise et complexe", acaba por confessar que "un élément irréductible, qui est dans l'esprit de 1'homme, le soumet à l'idée de justice"; elemento este que ele faz consistir na simples intuição (intuition irréductible): "A égale A. A diffère de B". Quanto a nós, queremos dizer a quem reconhece os valores espirituais como superordenados à realidade fenomênica: o elemento primeiro e universal, que se encontra no fundo de toda experiência jurídica, é sem dúvida argumento que nos deve maravilhar, todavia nem mais nem menos do que tantos outros igualmente procedentes da atividade do espírito, e que refletem a natureza do mesmo espírito. Em sentido análogo, para relembramos apenas um exemplo clássico, Sócrates admirava, e ensinava a admirar, o espontâneo desvelar-se das verdades geométricas eternas na mente de jovem escravo inculto; e Kant, à imitação de Rousseau, assinalava o milagre sempre antigo e sempre novo, que é para a nossa consciência o auscultar em si o simples e imperioso ditame da lei moral. Precisamente as verdades mais simples e "comuns" - como já o observava, e, bem, Schopenhauer - são maravilhosas para o filósofo; ao passo que os nãofilósofos só se maravilham perante os fenômenos insólitos. 8. 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Paris, 1 SOLBERG e CROS, Le droit et Ia doctrine de Ia justice. Paris : Alcan, 19 SPENCER, H. A justiça. Lisboa : Lisboa, 1891. SPICQ, C. La justice. Paris, 1947. VERMEERSCH. Cuestiones acerca de Ia justicia. Madri : Saturnino Calleja, TORAL MORENO. Ensayo sobre Ia justicia. México, 1974. 6 A JUSTIÇA COMUTATIVA SUMÁRIO: 1. Conceito de justiça comutativa - 2. A "alteridade" na justiça comutativa - 3. O "devido" na justiça comutativa - 4. A "igualdade" na justiça comutativa: 4.1 Finalidade da justiça; 4.2 Igualdade real - 5. Aplicações da justiça comutativa: 5.1 Campo de aplicação; 5.2 Extensão do campo de aplicação; 5.3 Justiça e contrato - 6. Outras formulações: 6.1 "A igualdade na justiça comutativa", Recaséns Siches; 6.2 "Responsabilidade civil no direito moderno", Washington de Barros Monteiro; 6.3 "Justiça nas relações internacionais", Paulo VI; 6.4 "A justiça na teoria pitagónica", Dei Vecchio; 6.5 "Jurisprudência: caso julgado com base na justiça comutativa", Sebastião Luiz Amorim - 7. Bibliografia. 1. Conceito de justiça comutativa A justiça comutativa tem sido modernamente a mais desconhecida e a mais injuriada das justiças. É comum entre os juristas identificá la com o campo dos contratos, talvez devido à sua denominação. E alguns, como Fouillée, chegam a proclamar que "o que é contratual é justo", recusando a evidência de contratos contrários à eqüidade e ao respeito à dignidade humana. A comutativa seria, assim, a justiça das injustiças, que precisaria ser corrigida pela justiça distributiva e social. Essa perspectiva é radicalmente falsa. A justiça comutativa, como princípio diretor das relações entre particulares, tem amplo campo de aplicação qUe não se restringe ao dos contratos. Não se confunde com a aceitação passiva das convenções, aparentemente livres. E impõe deveres que vão desde o respeito à vida, à personalidade e à dignidade de cada homem, até à exigência de preços eqüitativos no comércio internacional. Daí a importância de sua exata conceituação. "' Fouillée, La science sociale contemporaine; V. G. Ripert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, § 15 e ss. INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO HENRIQUE, P. J. A justiça social, A ordem. 1945. n. 10 e 11. HEIDSIECK, François. La virtu de justice. PUF, 1970. HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. Tradução e prefácio de Cabral d Moncada, Coimbra : Arménio Amado, 1967. IHERING. La lucha por el derecho. Buenos Aires : Araujo, 1939. KELSEN, H. e outros. Le droit naturel. Paris : PUF, 1959. -. What is justice? University of California Press, 1957. LACHANCE, L. 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Paris : Alcan, 193 SPENCER, H. A justiça. Lisboa : Lisboa, 1891. SPICQ, C. La justice. Paris, 1947. VERMEERSCH. Cuestiones acerca de Ia justicia. Madri : Saturnino Calleja, 19 TORAL MORENO. Ensayo sobre Ia justicia. México, 1974. 6 A JUSTIÇA COMUTATIVA SUMÁRIO: 1. Conceito de justiça comutativa - 2. A "alteridade" na justiça comutativa - 3. O "devido" na justiça comutativa - 4. A "igualdade" na justiça comutativa: 4.1 Finalidade da justiça; 4.2 Igualdade real - 5. Aplicações da justiça comutativa: 5.1 Campo de aplicação; 5.2 Extensão do campo de aplicação; 5.3 Justiça e contrato - 6. Outras formulações: 6.1 "A igualdade na justiça comutativa", Recaséns Siches; 6.2 "Responsabilidade civil no direito moderno", Washington de Barros Monteiro; 6.3 "Justiça nas relações internacionais", Paulo VI; 6.4 "A justiça na teoria pitagórica", Del Vecchio; 6.5 "Jurisprudência: caso julgado com base na justiça comutativa", Sebastião Luiz Amorim - 7. Bibliografia. 1. Conceito de justiça comutativa A justiça comutativa tem sido modernamente a mais desconhecida e a mais injuriada das justiças. É comum entre os juristas identificá la com o campo dos contratos, talvez devido à sua denominação. E alguns, como Fouillée, chegam a proclamar que ` o que é contratual é justo",' recusando a evidência de contratos contrários à eqüidade e ao respeito à dignidade humana. A comutativa seria, assim, a justiça das injustiças, que precisaria ser corrigida pela justiça distributiva e social. Essa perspectiva é radicalmente falsa. A justiça comutativa, como princípio diretor das relações entre particulares, tem amplo campo de aplicação que não se restringe ao dos contratos. Não se confunde com a aceitação passiva das convenções, aparentemente livres. E impõe deveres que vão desde o respeito à vida, à personalidade e à dignidade de cada homem, até à exigência de preços eqüitativos no comércio internacional. Daí a importância de sua exata conceituação. Fouillée, La science sociale contemporaine; V. G. Ripert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, § 15 e ss. 150 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA COMUTATIVA 151 Como vimos, a essência da justiça consiste em dar a "outrem" o que lhe é "devido", segundo uma "igualdade". A alteritas, o debitum e a aequalitas são as características essenciais da justiça em geral. Mas essas características se realizam de forma diferente, nas diversas espécies de justiça. Na justiça comutativa, a pluralidade de pessoas (alteritas) se realiza sob a forma de uma relação entre particulares. O debitum se apresenta como um devido, rigoroso e estrito. E a igualdade é simples ou absoluta, também chamada real ou aritmética. Pela reunião dessas três notas, podemos definir a justiça comutativ como a virtude pela qual: - um particular dá a outro particular - aquilo que lhe é rigorosamente devido, - observada uma igualdade simples ou real. Por exemplo: o comprador paga ao vendedor o preço correspondente ao valor da mercadoria; o agressor é obrigado a reparar o dano, na medida do prejuízo que causou à parte contrária. Essa é a estrutura fundamental da justiça comutativa, que é também chamada corretiva ou sinalagmática. Comutativa, do latim commutare, porque versa sobre permutas ou trocas. Corretiva, porque seu objetivo é corrigir ou retificar a igualdade nas relações entre particulares. Sinalagmática, porque bilateral .2 Nas definições e explicações clássicas dessa virtude, podemos encontrar formulações semelhantes. É o caso do comentário de S. Tomás à lição de Aristóteles: " justiça particular está ordenada para as pessoas privadas. E estas pode ser comparadas à comunidade como as partes ao todo. Podem ocorrer no caso, duas espécies de ordem. Uma, de parte à parte, entre um pessoa e outra. Essa ordem é regida pela justiça comutativa... Outr ordem é a do todo para as partes, a que corresponde, na sociedade, a distribuição do que é comum aos particulares. Essa ordem é regia pela justiça distributiva... Na comutativa procura-se adequar `coisa coisa' (rem ad rei), realizando uma igualdade aritmética".3 Q) V. Dabin, J., La philosophie de I'ordre juridique positif, n. 82, Théorie généra du droit, n. 230; Dei Vecchio, Justice, Droit, Etat, § VI, p. 27, nota 3. expressão "justiça directiva" empregada por Gomperz é muito ampla. Aplica se a todas as espécies de justiça. A denominação habitual justiça comutativa é, por sua vez, muito restrita, porque corresponde apenas a uma parte d relações entre particulares. A expressão "justiça punitiva", empregada p Gomperz como sinônima de "justiça correctiva" é inadequada: não se necessariamente de "punir" mas, sim, de "retificar" ou "corrigir". "' S. Tomás, II, II, q. 61, a. 1 e 2. No mesmo sentido é a definição de Cathrein: "A Justiça comutativa inclina a vontade a dar a cada particular o seu direito estrito, observando uma igualdade de coisa a coisa".4 E a de Vermeersch: "A justiça comutativa regula as relações entre pessoas diferentes e versa sobre o que é de cada indivíduo por direito próprio".5 2. A "alteridade" na justiça comutativa A justiça comutativa rege as relações entre particulares. Mas que se deve entender, no caso, por particular? Muitos autores limitam o campo da justiça comutativa às relações interindividuais. É a posição de Bodenheimer,b Lachance 1 e outros. Mas essa limitação é inadmissível. Para alcançar todas as situações jurídicas, abrangidas por essa justiça nas condições reais da sociedade contemporânea, não podemos falar apenas em relações entre "indivíduos". Devemos dizer que são regidas pela justiça comutativa "todas as relações de particular a particular". E por "particular" devem entender-se diversas realidades: as pessoas físicas, as pessoas jurídicas, o Estado como particular e os Estados na comunidade internacional. Em primeiro lugar, naturalmente, os homens considerados isoladamente, isto é, os indivíduos, denominados juridicamente "pessoas físicas" ou "naturais". Sob esse aspecto, pode dizer-se que a comutativa rege relações de indivíduo a indivíduo. Mas por "particular" devem entender-se, também, as instituições privadas: associações, sociedades comerciais ou civis, fundações, e demais entidades incluídas na categoria geral de "pessoas jurídicas" de direito privado. Estas, em suas relações com outras pessoas, são regidas, também, pela justiça comutativa.8 (4) (5) (6) Cathrein, J. Philosophia moralis, n. 141. Vermeersch, A. Cuestiones acerca de Ia justicia, n. 21. Bodenheimer, E., "A justiça comutativa diz respeito ao proceder dos indivíduos uns para com os outros e aos ajustamentos a serem feitos no caso da prática de atos impróprios ou ilegais", n. 6. Lachance, L. Le concept de droit, cap. 12, § 2.°. "Peu importe d'ailleurs que les parties au rapport soient des personnes physiques ou des personnes morales. Du point de vue de Ia raison de deste, sinon du point de vue de Ia moralité, Ia justice commutative lie, activement et passivement, les collectivités aussi bien que les individus, sans distinction entre les collectivités privées et les collectivités publiques, sans distinction non plus entre le plan interne et le plan internacional. Ainsi les rapports entre les individus et les collectivités indépendantes, comme deux sociétés privées ou deux États, ressortissent à la justice commutative." J. Dabin, Théorie générale du Droit, n. 229. 152 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA COMUTATIVA 153 E, ainda assim, não se esgota o campo dessa virtude. O próprio Estado, na ordem interna, comparece em muitas relações jurídicas, não em sua qualidade de Poder Público, mas como "particular". É, entre outros, o caso freqüente das locações de prédios pelo governo, em que este figura como simples inquilino ou particular. E a relação e regida pela justiça comutativa. Finalmente, nas relações entre os Estados, dentro da sociedade internacional, estes devem ser considerados "particulares" ou partes da comunidade mundial. E os acordos internacionais ou contratos que se estabelecem, nessas condições, estão também sujeitos aos princípios da justiça comutativa. Aplicação histórica desse princípio foi feita pela encíclica Populorum progressio: "Em condições demasiado diferentes, o consentimento das partes não basta para garantir a justiça do contrato; o que era verdade do justo salário (o documento se refere ao ensinamento de Leão XIII, na Rerum Novarum) também o é dos contratos internacionais: uma economia de intercâmbio já não pode apoiar-se sobre a única lei da livre concorrência... No comércio entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas, as situações são demasiado discordantes e as liberdades reais demasiado desproporcionadas? 3. O "devido" na justiça comutativa Ao estudar o "devido" na justiça comutativa, devemos examinar dois problemas: a) a natureza desse debitum; b) sua extensão, isto é, as espécies de obrigações que ele abrange Sobre a natureza do debitum, afirmamos que se trata de obrigação: estrita e rigorosa. Na justiça distributiva e na social há, também, um "devido", propriamente dito, que pode ser exigido pelo interessado. Mas na comutativa esse "devido" é mais rigoroso, porque se trata de assegurar à pessoa o respeito a um direito que já lhe é "próprio", como su integridade física, sua dignidade, seus bens. A justiça comutativa vers sobre o que é de cada pessoa "por direito próprio", diz Vermeersch. Na distributiva, pelo contrário, deve-se repartir entre particulare aquilo que é "comum". Da mesma forma, na justiça social tratade deveres em relação ao bem "comum". (9) Paulo VI, Encíclica Populorum progressio, n. 59 e 61. (10) Ob. cit., n. 21. E, como diz S. Tomás, dever a alguém um bem "comum", é coisa diferente de lhe dever um bem que lhe é "próprio'." Quando se distribui entre os membros da comunidade um bem comum, cada um recebe, "de certa forma" (aliquo modo), o que é seu. 12 Na comutativa, como vimos, o devido à pessoa não é seu, apenas "de certa forma" mas em sentido direto e próprio. Essa diferença levou alguns autores, como De Lugo, Tanquerey e outros " a afirmar que só é justiça propriamente dita a comutativa. A distributiva e a social seriam equiparáveis às virtudes anexas à justiça. Afirmação inaceitável, porque, tanto na justiça distributiva como na justiça social, existe um "devido" exigível (debitum legale),14 imposto freqüentemente pela própria legislação. Qual a extensão do "devido" na justiça comutativa? Ou, por outras palavras, qual o campo de aplicação dessa virtude? Quais os direitos que constituem seu objeto? Muitos autores pretendem reduzir o campo da justiça comutativa às obrigações contratuais, ou, até mesmo, às simples relações de troca, como a compra-e-venda ou a permuta. Na realidade esse campo é muito mais amplo. O "devido" pela justiça comutativa pode apresentarse sob duas modalidades fundamentais: a) o respeito à personalidade do próximo; b) o cumprimento de obrigações positivas.` O primeiro é, de certa forma, um dever negativo. Consiste em não ofender a pessoa de outrem, não praticar qualquer ato que desrespeite seus direitos. O segundo é um dever positivo. Consiste em ações concretas, como prestar um serviço, pagar uma dívida, entregar um objeto. O respeito à personalidade estende-se: a) à pessoa em si mesma, na sua dignidade Respeito moral ` 6 e na sua integridade física;" a pessoa un ((2) ((3) ((4) u5) "Alio modo debetur alicui id quod est commune et alio modo id quod est proprium." "Justitia distributiva et commutativa non solum distinguntur secundum unum et multa, sed secundum diversam rationem debiti", II, II, q. 61, a. 1, ad. 5. II, II, q. 61, a. 1 ad. 2. V. Faidherbe, La justice distributive, cap. II, p. 23. V. caps. 6, 7 e 8. V. J. Dabin, Théorie générale du Droit, n. 230; S. Tomás, De justitia, II, 11, q. 61 a. 3 e q. 62 a. 1 ad. 2; Aristóteles, Ética a Nicômano, liv. V. Especialmente no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5•°), a Constituição do Brasil de 1988 dispõe sobre essa matéria: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade" (art. 5.°, caput); "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre JUSTIÇA COMUTATIVA 155 b) em sua projeção externa, isto é: no seu trabalho;" nas obras materiais e intelectuais que realizar;19 nos bens que adquirir legitima mente.20 exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias" (VI); "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" (IV); "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem" (V); "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei" (VIII); "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença" (IX); "é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" (XII); "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial" (IX); "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral" (XLIX); "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (X). A Constituição brasileira, nos termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, garante a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, bem como o respeito à integridade física (art. 5.°, caput, e incisos III e XLIX). "E livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" (Constituição Federal, art. 5.°, XIII). A Constituição reconhece e assegura "o valor social do trabalho e da livre iniciativa" como um dos fundamentos da República (art. 1.° e inciso IV). Constituição Federal, art. 5.°: "Aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar" (XXVII). "São assegurados nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas" (XXVIII). "A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País" (XXIX). Constituição Federal, art. 5.°: "É garantido o direito de propriedade" (XXII); "a propriedade atenderá a sua função social" (XXIII); "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição" (XXIV); "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano" (XXV). Constituem, assim, obrigações da justiça comutativa o respeito à vida, à integridade física, à dignidade, ao trabalho, às obras e aos bens de todas as pessoas. Essa obrigação está assim assegurada pela Constituição brasileira: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...".21 Como diz Dabin, esse dever (debitum) tem um caráter absoluto: ele se impõe ao respeito de todos e dá origem a uma obrigação de abstenção, não prejudicar a ninguém (neminem laedere). No caso de violação, a lei estabelece uma obrigação de restituição ou de repa ração.22 Por sua vez, o cumprimento de uma obrigação positiva pode consistir: a) na prestação de um serviço; por exemplo, o empreiteiro é obrigado a fazer a obra contratada; b) na entrega de uma mercadoria; por exem plo, o vendedor é obrigado a entregar o objeto comprado; c) no pagamento de uma importância; por exemplo, o responsável por um atropelamento é obrigado a pagar uma indenização à vítima. Estas obrigações podem ter sua origem: a) em um contrato; chamam-se, então, "obrigações contratuais", que constituem a fonte mais freqüente das obrigações; no Brasil os contratos em geral acham-se regulados fundamentalmente pelos arts. 1.079 a 1.504 do Código Civil,23 os contratos mercantis, pelos arts. 121 a 286 do Código Comercial,24 e o contrato de trabalho, pelos arts. 13 a 510 da Consolidação das Leis do Trabalho;" a° Art. 5.°, caput. (22) J. Dabin, Théorie générale du droit, n. 230. 23) No capítulo dos contratos, o Código Civil, além de dispor sobre os contratos em geral, trata de suas diferentes espécies: troca, doação, locação, empréstimo (comodato e mútuo), depósito, mandato, gestão de negócios, edição, representação dramática e contrato de sociedade. (24) Entre os contratos comerciais regulados pelo Código e pela legislação posterior podem ser mencionados: a compra e venda mercantil, a troca mercantil, as sociedades comerciais, a comissão mercantil, o mandato mercantil, a locação comercial, a letra de câmbio, a nota promissória, o cheque, a duplicata, o mútuo mercantil, a carta de crédito, a ordem de pagamento, o aval, o depósito mercantil, o depósito bancário, o fretamento, o seguro etc. (u) Ao dispor sobre o contrato individual de trabalho, a Consolidação, além de fixar-lhe as normas gerais, estabelece preceitos relativos à carteira profissional, duração do trabalho, férias, higiene e segurança do trabalho, remuneração e Cumprimento de obrigações (20) 156 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA COMUTATIVA 157 b) em uma declaração unilateral da vontade, nos casos em que a obrigação nasce não do acordo entre contratantes, mas da simples declaração de uma única vontade, que, uma vez emitida, tornase exigível; é o caso dos títulos ao portador 26 e da promessa de recompensa,27 regulados pelo Código Civil (arts. 1.505 a 1.517) e pela legislação civil e comercial posterior; c) em um delito ou ato ilícito, são as "obrigações delituais", decorrentes do dever de indenizar o dano; as obrigações por atos ilícitos estão reguladas pelo art. 150 e 1.518 e ss. do Código Civil;2s d) em uma imposição da lei, são "obrigações legais", como o dever de prestação de assistência entre parentes, reguladas pelo art. 396 e ss. do Código Civil;29 e) em uma simples exigência da natureza ou da eqüidade são as "obrigações naturais" ou "simplesmente naturais", nos casos em que não há disposição de lei que os imponha.3o salário mínimo, alteração de condições, suspensão, interrupção e rescisão, avisoprévio, estabilidade, força maior. Dispõe, ainda, sobre as normas especiais aplicáveis ao contrato de trabalho agrícola, bancário, em serviços telefônicos e telegráficos, músicos, operadores cinematográficos, ferroviários, transportes marítimos e fluviais, frigoríficos, estiva, minas, jornalistas, professores, químicos etc. Estabelece, também, disposições especiais de proteção ao trabalho da mulher e do menor. Atualmente o próprio texto constitucional define e assegura expressamente no art. 7.* uma série de direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. (26) Entram na categoria dos títulos ao portador: os títulos da dívida pública, federal, estadual e municipal; as ações ao portador das sociedades anônimas; o cheque '_ ao portador; as obrigações ao portador emitidas pelas companhias ou empresas (debêntures); bilhetes de loteria; de certa forma, as entradas de teatro ou cinema, bem como as passagens de estradas de ferro, bondes e ônibus; os títulos de capitalização; os vales postais ao portador; os cupões para sorteio de mercadorias, distribuídos gratuitamente pelas casas comerciais. (27) "Aquele que, por anúncios públicos, se comprometer a recompensar, ou t gratificar, a quem preencha certa condição, ou desempenhe certo serviço, contrai' obrigação de fazer o prometido" (art. 1.512 do CC). (2S) "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, ' violar direito, ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo , disposto neste Código, arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553" (Código Civil, art. 159). (29) "De acordo com o prescrito neste capítulo podem os parentes exigir uns dos outros os alimentos de que necessitem para subsistir" (Código Civil, art. 396). (30) Sobre as obrigações naturais como obrigações de ordem jurídica, v. Lacerda de Almeida, Obrigações, §§ 2.° e 4.°, M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e prática das obrigações, n. 331 e ss., Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, 4.° v., 1.' parte, p. 236 e ss. E o caso das dívidas prescritas do resíduo da obrigação após o cumprimento da concordata, das dívidas jogo, dos juros não convencionados etc. Tais dívidas são inexigíveis juridi Em todos esses casos, a obrigação tem por objeto uma prestação positiva e tanto o sujeito ativo como o passivo são pessoas determinadas.'1 a) homicídio, ferimento ou outros atos que ofendam a integridade física de qualquer pessoa;32 Principais b) calúnia, difamação ou injúria que atinja violações a pessoa do próximo na sua dignidade;" c) atentados contra a liberdade de trabalho;"' camente. Pagas, porém, pelo devedor, essas obrigações adquirem eficácia jurídica. O pagamento é juridicamente válido e não admite ação de devolução" (arts. 1.477 e 1.263 do Código Civil). "Le suum (debitum) comprend aussi ce qui, sans appartenir à autrui dês l'abord, lui revient ultérieurement par le jeu des commutations (communications et contacts), volontaires ou non volontaires: ainsi Ia chose ou Ia prestation due soit à titre d'échange, soit à titre de réparation du dommage cause, soit à titre de compensation de l'enrichissement sans cause aux dépens d'autrui..., bref les créances (jura in persona) représentant l'équivalent du suum originaire. A Ia différence de celui-ci, les créances n'engendrent de droit qu'a 1'egard d'une personne déterminée, le bénéficiaire ou l'auteur de Ia commutation, tenu de 1'obligation positive de retablir l'égalité rompue (c'est le tribuere cuique). Chose curieuse, Ia justice commutative tire son nom de cette seconde hypothèse, problement parce qu'elle est à base d'action, tandis que Ia première se résout en une abstention" (Dabin, Theor. Gen. Dr., n. 230). O homicídio e os demais crimes, além de violar a justiça comutativa, ofendem também a justiça geral (ou social) pelo grave prejuízo causado ao bem comum. Dão, por isso, origem a uma dupla ação: civil, para a reparação do dano, e penal, destinada à punição do delito. No caso do homicídio, dispõe o art. 121 do Código Penal brasileiro: "Matar alguém: Pena-reclusão de 6 a 20 anos". E o Código Civil: Art. 1.537. A indenização, no caso de homicídio, consiste: I) no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II) na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia. Da mesma forma, sobre o ferimento ou lesão corporal, dispõe o Código Penal: Art. 120. "Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena-detenção, de 3 meses a 1 ano". E o Código Civil: Art. 1.538. "No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente". Código Penal: Art. 138. Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena-detenção de 6 meses a 2 anos, e multa. Art. 139. Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena-detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa. Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou decoro: Penadetenção de 1 a 6 meses ou multa. Código Civil: Art. 1.547. A indenização por injúria ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. Parágrafo único. Se este não puder provar prejuízo material, pagar-lhe-á o ofensor o dobro da multa no grau máximo da pena criminal respectiva. Código Penal: Art. 197. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça: 1) a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias: Pena(32 (33) 158 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO d) violação de direitos autorais e privilégio de invenção;" e) roubo, furto e demais delitos contra o patrimônio;" f) descumprimento de quaisquer obrigações contratuais, delituais, legais ou naturais." Como se vê, o quadro das obrigações abrangidas pela justiça comutativa é bem maior do que o simples setor dos contratos interindividuais de que nos falam alguns autores." detenção, de 1 mês a 1 ano, e multa, além da pena correspondente à violência. Código Civil: Art. 1.550. A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e no de uma soma calculada nos termos do parágrafo único do art. 1.547. c361 Código Penal: Art. 184. Violar direito de autor de obra literária, científica ou artística: Penadetenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa. Art. 187. Violar direito de privilégio de invenção ou descoberta. Pena-detenção, de 6 meses a 1 ano, e multa. Código Civil: Art. 672. O autor, ou proprietário, cuja obra se reproduzir fraudulentamente, poderá, tanto que o saiba, requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos, subsistindo-lhe o direito à indenização de perdas e danos, ainda que nenhum exemplar se encontre. (36) Entre os crimes contra o patrimônio, o Código penal dispõe sobre o furto, nos termos seguintes: Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia imóvel: Pena-reclusão, de 1a4 anos, e multa. Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena-reclusão, de 4 a 10 anos, e multa. Quanto à indenização, dispõe o Código Civil: Art. 1.541. Havendo usurpação ou esbulho do alheio, a indenização consistirá em se restituir a coisa, mais o valor das suas deteriorações, ou, faltando ela, em se embolsar o seu equivalente ao prejudicado. Art. 1.544. Além dos juros ordinários contados proporcionalmente ao valor do dano e desde o tempo do crime, a satisfação compreende os juros compostos. (37) A violação dessas obrigações confere à parte ofendida o direito à reparação mediante ação competente. Ao lado de disposições específicas aplicáveis a certos tipos de obrigação, a legislação brasileira consagra algumas disposições genéricas, que asseguram sempre a exigibilidade do "devido" (debitum legale), nos termos em que o definimos. Podem ser mencionados as seguintes disposições: "A todo o direito corresponde uma ação que o assegura" (Código Civil, art. 75); ` o procedimento ordinário regulará as ações para as quais est código não prescreva rito especial" (Código de Processo Civil, art. 271) principalmente o inciso XXXV do art. 5.° da Constituição Federal: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". (38) "La justice commutative regit les rélations d'ordre contractuel entre les individus"' Rutten, La doctrine sociale, cap. IV, p. 68. No mesmo sentido, Haroldo Valladã refere-se à "justiça no seu estágio primitivo, da simples justiça comutativa, concepção romano-individualista, do darte-ei o que me deres, verdadeiro talião nas relações civis" ("Problemas jurídicos da cooperação internacional", separata da Revista dos Tribunais, fevereiro de 1966, p. 4). Em sentido contrário, Desrosiers, seguindo a tradição de Aristóteles, e seus continuadores, estu separadamente as diversas modalidades de relações, contratuais ou não, sujeit à justiça comutativa, assim como às injustiças especiais, que atentam contra es virtude (Soyons justes, 2.° volume. "La justice commutative"). 4. A "igualdade" na justiça comutativa 4.1 Finalidade da justiça A finalidade da justiça consiste em estabelecer uma igualdade fundamental nas relações entre os homens, e exigir que essa igualdade seja restabelecida, quando Justiça violada. "Justo é o igual e injusto é o desigual",39 e igualdade diz S. Tomás reproduzindo a lição de Aristóteles. Vimos que a igualdade da justiça não é um dado subjetivo, mas pode ser fixada objetivamente.40 Mas essa igualdade apresenta-se sob forma diferente nas diversas espécies de justiça. Na comutativa a igualdade é simples, absoluta ou real. Aristóteles chamou-a igualdade "aritmética", em oposição à igualdade "geométrica" ou proporcional da justiça distributiva .41 Essa igualdade é simples ou absoluta, porque consiste numa relação entre dois termos: 50 = 50. Trata-se de estabelecer uma equivalência entre duas coisas. Se Igualdade uma pessoa compra uma mercadoria que vale simples 1.000, deve pagar 1.000. Se causa a outrem um prejuízo avaliado em 500, deve indenizar o prejudicado com igual quantia. Se aluga uma casa, cuja locação vale 100, deve pagar 100 de aluguel. Na distributiva, pelo contrário, a igualdade é relativa ou proporcional. Consiste numa relação entre 4 termos, porque se leva em conta a situação das pessoas. Numa distribuição de gêneros a flagelados, por exemplo, se uma determinada família, com 2 filhos, recebeu 20, outra, com 4 filhos, receberá 40. Em termos absolutos, recebem quantidades desiguais. Mas proporcionalmente recebem a mesma coisa. 4.2 Igualdade real A igualdade da comutativa é, também, chamada "real", ou rei ad rem, porque se trata de igualar simplesmente uma coisa a outra, sem levar em conta a condição Símbolo das pessoas. Por isso, o símbolo da justiça da balança comutativa é uma balança, com dois pratos, O9' "Justum est aequale et injustum inaequale", Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro V, cap. VII, 1.132, S. Tomás, Comentários à Ética de Aristóteles a Nicômaco, (4 lição VI, n. 950. 1) V. ca w> p. 1, n. 4. "In commutativa justitia attendatur aequale secundum arithmeticam proportionem, manifestat per hoc, quod non consideratur ibi diversa proportio personarum", S. Tomás, Comentários à Ética de Aristóteles a Nicômano, liv. V, lição VI, n. 951. JUSTIÇA COMUTATIVA 159 160 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO pessoas. dos por uma mulher com os olhos vendados, para não ver A missão habitual do juiz é restabelecer essa igualdade, quando perturbada ou violada Cblb ,ae a ee corrigir os ausos e violações, restitui em cada caso, em termos de igualdade, a obrigação das parte 'I'10 etc.42 1do objeto, pagamento da dívida, indenização pelos prejuízos É Isso essa justiça foi também chamada "conetiva". evidente que essa igualdade tem por pressuposto a igualdade fundamental de todos os homens, como vimos no capítulo anterior (Capítulo 1, item 4). De certa forma, no princípio da igualdade: "Todos s' Iguais perante a lei", se define o preceito orientado de toda a dinâmica do direito. 5. Aplicações da justiça comutativa 5.1 CatrtPo de aplicação Fixadi o o conceto de justiça comutativa, podemos enfrentar o Justiça problema de suas aplicações à realidade social comutatjp Qual o campo da justiça comutativa? a e justiça Muitos pretendem reduzi-lo ao setor dos contratos, contratual e chegam a identificar justiça comutativa e justiça contratual. E correta identificarão? problema en o comutativa lve dois easpectos. Quando se diz que a justiça jti e ausça contratual, podemos entender: Rutten) que a justiça comutativa só se refere aos contratos, como suge de ordea~ afirmar que —justiça comutativa é a que rege as relaçõe fi contatal ru entre os indivíduos";43 entre as que a justiça comutativa é estabelecida por contrato ou acord fórmula pessoas; nesse sentido, "quem diz contratual diz justo", Sintéti d F caeouillée.aa A tubas as interpretações são inaceitáveis. "Judex alium, qut est minister legis, hoc attenitit, ut illud injustum quo unus lae loc. ci quod habet quandam inaequalitatem, reducat ad aequalitatem" (S. Tom C. Rutt en doctrin 68: La justice commutative ré e les re sociale, cap. IV, p. 1'indi ns d'ordre contractuel entre les individus. Ainsi que son no gtio Elle que'le mot justice commutative vient du mot latin commutare: échang a Pour objet I transac es droits individuels strictement déterminés par 1 V. nota ons et par les contrats. 1 do presente capítulo. 5.2 Extensão do campo de aplicação No primeiro caso, é preciso lembrar que o campo de aplicação da justiça comutativa estende-se a todas as relações de particular a particular, em que há um "devido" estrito e exigível. Não se limita aos contratos. Estes representam um setor importante da justiça comutativa, mas apenas um setor. Como vimos, no item 3 do presente capítulo, a comutativa impõe, em primeiro lugar, como obrigação de certa forma negativa, o dever de respeitar a pessoa do próximo; e, das obrigações positivas, apenas uma parte tem origem em contratos. São as chamadas "obrigações contratuais", como a de pagar uma dívida ou prestar um serviço convencionado. Mas há, ainda, as "obrigações legais", impostas por preceito de lei; as "naturais", decorrentes de exigência da eqüidade ou da natureza humana; as "delituais", que consistem no dever de indenizar a vítima, e as referentes à "declaração unilateral da vontade", que também não são propriamente contratuais. Aristóteles 45 já distinguia, como campo de aplicação da justiça comutativa, as "comutações" voluntárias (contratuais) e as involuntárias (não contratuais). E com razão, porque, entre os atos sujeitos às prescrições dessa justiça, inclui-se toda a série de relações entre particulares, mencionadas no parágrafo anterior, que vão desde o respeito à vida, à dignidade e à integridade física do próximo até a obrigação de reparar os danos decorrentes de atos ilícitos. 5.3 Justiça e contrato A afirmação de que "quem diz contratual diz justo" é radicalmente inaceitável. A tese de que a justiça seria fixada por convenção ou acordo das partes não é nova. Foi defendida pelos sofistas gregos Trasímaco, Glauco e Adimanto, no diálogo que mantêm com Sócrates na República de Platão .41 E Filo, expondo o pensamento de Carnéades, sustenta a mesma opinião na República de Cícero.47 Com feição nova, é essa também a tese defendida no direito moderno, pelas doutrinas "contratualistas", e da "autonomia da vontade", JUSTIÇA COMUTATIVA 161 Não apenas contratos Princípio da igualdade (42) (43) Contratual e justo (44) (4S) Aristóteles, Ética a Nicômaco, liv. (46) Platão, A República, liv. 1 e 2. Cícero, De Republica, liv. III. V, cap. VII. 162 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA COMUTATIVA 163 que têm sua fonte em Rousseau 48 e Kant.49 Esse pensamento inspiro • individualismo e o liberalismo jurídico do século passado e mantémse, ainda, como uma das tendências do direito atual: o homem; essencialmente livre, depende apenas de si mesmo; não pode, por iss ser sujeito a outras leis, senão àquelas em que ele consentiu, seja lei particular, que decorre do acordo de vontade entre indivíduos • contrato -, seja a lei do Estado, decorrente do "contrato social". P isso, os contratos livremente consentidos não podem ser injustos. Com diz Ripert, "o liberalismo afirmou o princípio da livre conclusão do contratos. O direito clássico tem o contrato por justo, porque consentido"." Tudo o que dissemos sobre a natureza da justiça é a refutaç categórica dessa doutrina. As exigências de justiça são objetiv fundam-se na igualdade fundamental dos homens e impõem dever que não dependem de convenções ou contratos. Acima da vontade das partes, há uma equivalência real, que dev ser respeitada. Na compra e venda, por exemplo, o "preço justo" nse confunde com o "preço convencionado", que, muitas vezes, pod decorrer do maior poder, habilidade ou força de uma das partes. A história de direito moderno é ilustrativa no tocante ao reco nhecimento dessa doutrina." CompraNo campo da compra-e-venda de alimentos evenda bens de consumo e mercadorias em geral, o princípios do liberalismo e da autonomia vontade possibilitaram a constituição de trustes, cartéis, monopóli • oligopólios, que passaram a impor preços de seu interesse, contrário à justiça e ao interesse público. O que determinou o aparecimen de leis "antitruste" e outras formas de regulamentação na defesa preços mais justos. Rousseau, especialmente, Contract social e Discours sur l'inegalité. Kant, Crítica da razão prática, Metafísica dos costumes. G. Rippert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, n. 15, p. 47-49. Sob a exaltação dos contratos e sua soberania, Haroldo Valladão relata o episó que assistiu na Corte Internacional de Justiça, em Haia, onde um dos grand advogados europeus, representando interesses de poderoso grupo de companhi petrolíferas, alegava, contra a impugnação de injustiça e exploração, o carát "sagrado" do contrato, celebrado 40 anos antes com o sheik de um desprepara Estado asiático. V. Gaston Morin, La revolte du droit contre le Code, La loi et le contr La décadence de leur souveraineté; R. Savatier, Les métamorphoses économiq et sociales du Droit Civil d'aujourd'hui; Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 1952; Anacleto de Oliveira Faria, A alterações do contrato de locação de imóveis no direito brasileiro e Atualid do Direito Civil. No campo das relações de trabalho, ocorreu fenômeno semelhante. o regime de liberdade contratual gerou, a partir do século passado, uma situação de salários insu- Contrato ficientes e condições de trabalho não compatíveis de trabalho com a dignidade humana, impostas a milhões de empregados, em todo o mundo. Em nome da justiça, multiplicaram-se protestos e reações. Reconhecendo que nem tudo o que é contratual é justo, as legislações de todos os Estados modernos passaram a impor, nos contratos de trabalho, o respeito a uma série de exigências mínimas compatíveis com a dignidade do homem que trabalha. E, no campo das relações internacionais, estamos assistindo, na segunda metade do século XX, a afirmação solene, pela Conferência Mundial de Comércio e De- Relações senvolvimento, realizada pela ONU, em Genebra, internacionais em 1964, de que a "regra da livre troca já não pode, por si mesma, reger as relações de comércio entre os povos, porque os preços `livremente' estabelecidos no mercado podem levar a conseqüências iníquas, quando as condições de poder e desenvolvimento são demasiado diferentes de país a país". É o reconhecimento, formulado, aliás explicitamente, na Encíclica Populorum progressio, de que "o consentimento das partes não basta para garantir a justiça do contrato".52 Podemos concluir com Ripert, afirmando que "somente a velha idéia da justiça comutativa permite condenar o contrato por motivo de desigualdade das prestações recíprocas".53 Paulo VI, Encíclica Populorum progressio, Roma, Poliglota Vaticana, 1967, n. 59. Acrescenta o documento: "As nações muito industrializadas exportam sobretudo produtos fabricados, enquanto as economias pouco desenvolvidas vendem apenas produções agrícolas e matérias-primas. Aqueles, graças ao progresso técnico, aumentam rapidamente de valor e encontram um mercado satisfatório. Pelo contrário, os produtos primários provenientes dos países subdesenvolvidos sofrem grandes e repentinas variações de preço, muito aquém da subida progressiva dos outros. Daqui surgem grandes dificuldades para as nações pouco industrializadas, quando contam com as exportações para equilibrar a sua economia e realizar o seu plano de desenvolvimento. Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tornam-se cada vez mais ricos. Quer dizer que a regra da livre troca já não pode, por si mesma, reger as relações internacionais. As suas vantagens são evidentes quando os países se encontram mais ou menos nas mesmas condições de poder econômico: constitui estímulo ao progresso e recompensa do esforço. Por isso os países industrialmente desenvolvidos vêem nela uma lei de justiça. Já o mesmo não acontece quando as condições são demasiado diferentes de país para país: os preços `livremente' estabelecidos no mercado podem levar a conseqüências iníquas". G. Ripert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, § 15. (48) (49) (50) (52) (53) 164 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA COMUTATIVA 165 6. Outras formulações 6.1 A igualdade na justiça comutativa Recaséns Siches, Estudios de Filosofia del Derecho, p. 390. Para explicar a igualdade que impõe a justiça entre prestação e contraprestação em um pacto liberal, não bastam os critérios combinados de utilidade e trabalho; pois existem relações nas quais se precisa atender a outros pontos de vista; por exemplo, o contrato de trabalho, em que entram em questão outras estimativas fundadas em valores de vitalidade e em valores éticos. Suponhamos dois tipos de trabalho manual simples, mas um deles, inócuo para a saúde, e outro insalubre: a este segundo dever-se-á pagar mais, é de justiça que seja mais remunerado que o primeiro. Nesses casos, a medida para estabelecer a igualdade que a justiça impõe entre prestação e contraprestação não deve ser a magnitude quantitativa de trabalho (prescindimos, neste exemplo, da categoria de serviço, por nos referirmos a trabalhos manuais semelhantes). Além disso, aqui se impõem outros pontos de vista: o valor da vitalidade humana, e o valor ético da pessoa que é sujeito desta vitalidade orgânica. Mesmo assim poder-se-ia dizer algo análogo, de todas as considerações que suscita o problema do justo salário (atendendo a personalidade moral do trabalhador, suas necessidades materiais e espirituais, seus deveres familiares etc.); e, em suma, com respeito a quantas questões hajam sido consideradas no Direito do Trabalho. Assim, pois, nos termos cuja justa equivalência se procura, se inserem complicados processos de estimativas, fundadas em valores diferentes e de ordem desigual. A igualdade que a justiça impõe consistiria em que, calculadas em sua devida combinação, as diversas valorações que com caráter atual se colocam em um dos termos da relação, representem em conjunto uma magnitude de estimativa, semelhante ao que existe no outro termo. Vê-se, pois, como o mais importante não está no princípio da igualdade - ou melhor, da equivalência -, mas em estabelecer os pontos de vista que devem ser levados em conta para se determinar a proporcionalidade entre os termos de uma relação jurídica. Portanto, a teoria formal da justiça se limitou a abrir-nos as portas de outro tema muito mais profundo, muito mais radical: o tema da estimativa jurídica. Para saber o que em Direito deve ser tido por equivalente, precisamos de critérios de valoração: porém não pura e simplesmente de valoração geral, mas sim da valoração relevante para o campo jurídico. A teoria da justiça, repensada com rigor, lançounos a outro plano, mais radical de problemas: conduziu-nos ao centro mesmo da teoria dos valores. Claro é que a justiça será também um valor, uma essência objetiva vizinha ao reino dos valores. Mas sua natureza parece consistir em um critério formal, que nos impõe que ao dar e receber, nas relações sociais, sejamos fiéis à hierarquia que objetivamente existe entre determinados valores entre aqueles que são relevantes para a estimativa jurídica -, que nos impõe ordenar a convivência humana de tal sorte que, entro o modo de relacionar os atos de uns aos atos de outros, sejam guardadas as relações de categoria e proporção que existam entre os valores que interessa ao Direito. Em suma: a justiça existe que a realização dos valores sociais que caem dentro do âmbito do jurídico guarde a proporção harmônica que requeC a estrutura hierárquica dos valores. Ou, dito de outra forma, uma relação jurídica supõe uma situação participante de uma multidão de sentidos ou conexõe estimativas que têm relação com o Direito. Nos elementos de uma vinculação social se encarnam (positiva ou negativamente) vários valores: a justiça exige que o direito regule essa situação de tal maneira que entre as concretizações de valores encarnadas em cada sujeito se realize a proporcionalidade que existe objetivamente entre esses valores. 6.2 Responsabilidade civil no direito moderno (Uma aplicação da justiça comutativa) Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, 5.° v., p. 411 e ss. Eis aí um dos mais relevantes capítulos de toda a ciência jurídica. No dizer de Josserand, seu estudo tende a ocupar o centro do direito civil. Trata-se, aliás, de questão das mais antigas. Desde tempos remotos, encontram-se traços reveladores de sua prolongada e laboriosa construção jurídica. Primitivamente, numa fase mais rudimentar da cultura humana, a reparação do dano resumia-se na retribuição do mal pelo mal, de que era típico exemplo a pena de Talião, olho por olho, dente por dente; quem com ferro fere, com ferro será ferido. Foi a Lei Aqutlia que introduziu os primeiros alicerces da reparação civil, em bases mais lógicas e racionais. Com ela, a vindita, impregnada do sentimento de represália, cedeu o passo à pena pecuniária, cujo pagamento constitui, de fato, reparação do dano causado e cuja idéia é precursora da moderna indenização por perdas e danos. Teoria da responsabilidade subjetiva: a teoria clássica e tradicional da culpa, também chamada teoria da responsabilidade subjetiva, pressupõe sempre a existência de culpa (lato sensu), abrangendo o dolo (pleno conhecimento do mal e direta intenção de praticá-lo) e a culpa (stricto sensu), violação de um dever que o agente podia conhecer e acatar. Desde que esses atos impliquem vulneração ao direito alheio, ou acarretem prejuízo a outrem, surge a obrigação de indenizar e pela qual civilmente responde o culpado. Por outro lado, culpa contratual é a violação de determinado dever, inerente a um contrato. Eo caso do mandatário, que deixa de aplicar sua diligência habitual na execução do mandato (Código Civil, art. 1.300); é o caso ainda do depositário que não tem na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma ter com o que lhe pertence (art. 1.266). Se de sua omissão surgem danos, ter-se-á em vista a culpa contratual. Culpa extracontratual ou aquiliana é a resultante da violação de dever fundado num princípio geral de direito, como o de respeito à pessoa e bens alheios. Assim, se por excesso de velocidade, ou por embriaguez, o agente provoca uma atropelamento com o seu automóvel, verificar-se-á a culpa na sobredita modalidade. Na responsabilidade aquiliana, é verdade trivial, a mais ligeira culpa produz obrigação de indenizar (in lege Aquilia et levíssima culpa venit). Todavia, a distinção entre culpa contratual e extracontratual é mais aparente do que real; substancialmente, o fenômeno é o mesmo, as diferenças existentes são mais de ordem secundária. Culpa in eligendo é a oriunda de má escolha do representante, ou do preposto. Caracterizase, exemplificativamente, o fato de admitir ou de manter 166 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA COMUTATIVA 167 o preponente a seu serviço empregado não legalmente habilitado, ou sem as aptidões requeridas. Culpa in vigilando é a que promana da ausência de fiscalização por parte do patrão, quer relativamente aos seus empregados, quer no tocante à própria coisa. E o caso da empresa de transportes coletivos que tolera a saída de veículos desprovidos de freios, dando causa a acidentes; é o caso ainda do hoteleiro que não vigia as dependências do hotel, permitindo o acesso de ladrões que espoliam os hóspedes. A teoria subjetiva tem sido vivamente impugnada. As principais objeções que contra ela se levantam são as seguintes: em primeiro lugar, o conceito de culpa é por demais impreciso, sua noção é fugidia. Em segundo lugar, apresentam. se na vida moderna numerosos casos de responsabilidade sem culpa, como acontece, em nosso direito positivo, quanto à lei de acidentes do trabalho. Em terceiro lugar, finalmente, porque ela traduz o acolhimento do individualismo jurídico, fonte de tantos males, pelo egoísmo que encerra, pela desmesurada exaltação do indivíduo, Teoria da responsabilidade objetiva: por isso mesmo, numerosos e notáveis juristas têm procurado substituí-la por outra construção jurídica, a teoria da responsabilidade objetiva, que se apresenta sob duas faces no direito moderno: a teoria do risco e a teoria do dano objetivo. A primeira obteve entre nós vitória parcial, em matéria de infortunística. operário, vítima de acidente do trabalho, tem sempre direito a indenização, haj ou não culpa do patrão, ou do próprio acidentado. O empregador está assim adstri a ressarcir, independentemente da idéia de culpa. Segundo a teoria do dano objetivo, desde que exista um dano, deve ressarcido, independentemente da idéia de culpa. A tendência atual do direito observa Ripert, manifesta-se no sentido de substituir a idéia da responsabili subjetiva pela responsabilidade objetiva. O agente deve ser responsabilizado não só pelo dano causado por culpa sua co também por aquele que seja decorrência de seu simples fato: uma vez que, no exerc de sua atividade, ele acarrete prejuízo a outrem, fica obrigado a indenizá-lo. Nosso Código Civil manteve-se fiel à teoria subjetiva. Em princípio, p que haja responsabilidade, é preciso que haja culpa. Preceitua o art. 159: "Aque que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar dire ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano". Em face, pois, da nossa lei civil, a reparação do dano tem como pressupus a prática de um ato ilícito. Todo ato ilícito gera para o seu autor a obrig de ressarcir o prejuízo causado. É de preceito que ninguém deve causar lesão ordem. A menor falta, a mínima desatenção, desde que danosa, obriga o age a indenizar os prejuízos conseqüentes ao seu ato. Embora alei civil haja adotado a doutrina clássica da culpa, conhece o di positivo pátrio alguns casos de responsabilidade objetiva. Os mais interessantes são os seguintes: a) os previstos no Código do arts. 83, parágrafo único, 86, 97 e 100, letra b; b) o do hoteleiro, pelo furto valores praticado por empregados contra hóspedes; c) o do banco, que paga ch falsificado; d) outros mais enunciados no correr destas considerações, especial os relativos aos acidentes no trabalho. Passemos agora ao estudo das regras para liquidação das obriga resultantes de atos ilícitos, tomando por critério a extensão do dano causador A primeira observação que se pode tecer a respeito do sistema abraçado Código é a de que procedeu casuisticamente, destacando os diversos tipos de d e tarifando a extensão da responsabilidade de seu autor. Imbuído dessa idéia, cut o legislador, sucessivamente, da indenização devida em caso de homicídio, les corporais, usurpação ou esbulho, injúria, calúnia, violência sexual, ofensa à liberdade pessoal e outros delitos. Censurada tem sido a lei civil por esse casuísmo. Entendem muitos que preferível era a norma vigorante no direito anterior, compreensiva e enérgica, estabelecendo que, em qualquer caso, a satisfação do dano seria a mais completa possível, para tal fim avaliado em todas as suas partes e conseqüências. Em caso de dúvida, decidir-se-ia em favor do ofendido. 6.3 Justiça nas relações internacionais Paulo VI, Encíclica Populorum progressio, n. 56 e 61. Ainda que fossem consideráveis, seriam ilusórios os esforços feitos para ajudar, no plano financeiro e técnico, os países em via de desenvolvimento, se os resultados fossem parcialmente anulados pelo jogo das relações comerciais entre países ricos e países pobres. A confiança destes últimos ficaria abalada se tivessem a impressão de que uma das mãos lhe tira o que a outra lhes dá. As nações muito industrializadas exportam sobretudo produtos fabricados, enquanto as economias pouco desenvolvidas vendem apenas produções agrícolas e matérias-primas. Aqueles, graças ao progresso técnico, aumentam rapidamente de valor e encontram um mercado satisfatório. Pelo contrário, os produtos primários provenientes dos países subsdesenvolvidos sofrem grandes e repentinas variações de preço, muito aquém da subida progressiva dos outros. Daí surgem grandes dificuldades para as nações pouco industrializadas, quando contam com as exportações para equilibrar a sua economia e realizar o seu plano de desenvolvimento. Os povos pobres ficam sempre pobres e os ricos tomam-se cada vez mais ricos. Quer dizer que a regra da livre troca já não pode, por si mesma, reger as relações internacionais. As suas vantagens são evidentes quando os países se encontram mais ou menos nas mesmas condições de poder econômico: constitui estímulo ao progresso e recompensa do esforço. Por isso os países industrialmente desenvolvidos vêem nela uma lei de justiça. Já o mesmo não acontece quando as condições são demasiado diferentes de país para país: os preços "livremente" estabelecidos no mercado podem levar a conseqüências iníquas. Devemos reconhecer que está em causa o princípio fundamental do liberalismo, como regra de transações comerciais. Continua a valer o ensinamento de Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum: em condições demasiado diferentes, a regra do livre consentimento das partes não basta Para garantir a justiça do contrato, e permanece subordinada às exigências do direito natural. O que era verdade do justo salário individual, também o é dos contratos internacionais: uma economia de intercâmbio já não pode apoiar-se sobre a lei única da livre concorrência, que freqüentes vezes leva à ditadura econômica. A liberdade das transações só é eqüitativa quando sujeita às exigências da justiça social.' Foi o que já compreenderam os próprios países desenvolvidos, que se esforçam por estabelecer no interior da sua economia, por meios apropriados, um e A fixação de preços justos no comércio internacional é exigência da justiça comutativa, enquanto se trata de que uma "parte dê à outra" o que lhe é "devido", segundo uma gualdadé'. Mas é, também, exigência do bem comum e, portanto, da justiça social, enquanto se trata de que todos os "países-membros" devem dar à "comunidade internacional" sua cooperação para o "bem comum" mundial. É este o aspecto que o documento quer acentuar. As exigências da justiça comutativa, na medida em que interessam ao bem comum, e sob esse aspecto, são também exigência da justiça social. V. n. 3 do presente capítulo. r> JUSTIÇA COMUTATIVA 169 equilíbrio que a concorrência, entregue a si mesma, tende a comprometer. Assim, muitas vezes sustentam a sua agricultura à custa de sacrifícios impostos aos setores econômicos mais favorecidos. E também, para manterem as relações comerciais que se estabelecem entre país e país, particularmente em regime de mercado comum, adotam políticas financeiras, fiscais e sociais, que se esforçam por restituir a indústrias concorrentes, desigualdades prósperas e possibilidades semelhantes. Mas não se pode usar nisto dois pesos e duas medidas. O que vale para a economia nacional, o que se admite entre países desenvolvidos, vale também para as relações comerciais entre países ricos e países pobres. Sem o abolir, é preciso ao contrário manter o mercado de concorrência dentro dos limites que o tomam justo e moral e, portanto, humano. No comércio entre economias desenvolvidas e subdesenvolvidas, as situações são demasiado discordantes e as liberdades reais demasiado desproporcionadas. A justiça social exige do comércio internacional, para ser humano e moral, que restabeleça, entre as duas partes, pelo menos certa igualdade de possibilidades. E um objetivo a atingir a longo prazo. Mas, para o alcançar, é preciso, desde já, criar uma igualdade real nas discussões e negociações. Também neste campo se sente a utilidade de convenções internacionais num âmbito suficientemente vasto: estabeleceriam normas gerais, capazes de regular certos preços, garantir certas produções e sustentar certas indústrias nascentes. Quem duvida de que tal esforço comum, no sentido de maior justiça nas relações comerciais entre os povos, traria aos países em via de desenvolvimento um auxílio positivo? 6.4 A justiça na teoria pitagórica Dei Vecchio, A justiça, Saraiva, 1960, p. 40. Que a justiça seja de natureza essencialmente social, e se manifeste propriamente só onde se encontram as ações e exigências de mais de um sujeito, com a função específica de marcar entre elas um limite e uma proporção harmônica, é idéia que de quando em quando relampeja, ou aparece pelo menos como implícita, já nas mais antigas literaturas. Significativo é, por exemplo, o fato de Homero, quando apresenta os Ciclopes como seres solitários, vivendo autocraticamente no âmbito fechado de suas famílias, ou até mesmo apenas em companhia de seu rebanho, advertir que eles não têm assembléias deliberativas, nem preceitos de uma autoridade superior. Com estas palavras pretende certamente o poeta significar, como característica do estado insocial, a falta de institutos jurídicos em geral (quer legislativos, quer judiciários), tais como existem, ao invés, entre os homens, justamente por estes viverem unidos em consórcio social. Sem nos demorarmos em recolher alusões incidentais ou indiretas, convém fixar a atenção na doutrina daquela escola que, embora rega de origem, já antigamente foi pelos mesmos gregos denominada itálica. glória suprema d Filosofia itálica ou pitagórica o haver formulado, primeiro que qualquer outra, u conceito da justiça, conceito que, apesar de não exprimir a verdade integral, põe todavia em relevo um aspecto fundamental e específico da mesma justiça. Para esta escola, a justiça é, acima de tudo, igualdade, ou correspondência entre termos contrapostos; e propriamente pode assimilar-se ao número quadrado, isto é, ao igual multiplicado pelo igual, porque ela devolve o mesmo pelo mesmo. Coerentement com este conceito, mas com determinação ainda mais precisa, a mesma escol declara que a justiça consiste essencialmente na reciprocidade. Esta doutrina foi o ponto de partida de Aristóteles, e é justamente às referências que ele lhe faz, que dela temos conhecimento. Antes de mais nada, é para lastimar a carência de fontes diretas de informação. Decerto Aristóteles baseou sua teoria sobre a pitagórica, não o fez porém com aquele espírito congenial, manifestado, por exemplo, por Platão relativamente a Sócrates. Suas referências à teoria pitagórica são quase exclusivamente para criticá-la; e há fortes razões para duvidar de que, através da crítica, a teoria seja exposta em sua verdadeira luz. Em substância, Aristóteles interpreta a reciprocidade no sentido de reciprocidade material, e observa que semelhante conceito não pode valer como princípio da justiça distributiva, nem como da igualadora ou conetiva. Mesmo a respeito desta espécie de justiça, que se refere às trocas e penas, oportunamente observa Aristóteles que não se trata de estabelecer mera igualdade material, mas antes uma correspondência de valores. Assim, seria contrária ao justo uma permuta de coisas iguais em quantidade ou número, mas desiguais em valor, como, por exemplo, um par de sapatos e uma casa. Nem seria conforme à justiça estabelecer a mesma pena para delitos materialmente iguais, mas executados com intenções ou em condições diversas. A evidência de semelhante argumentação por si só dá origem à dúvida se a tese, tão facilmente refutada, é realmente a que foi proposta pelos Pitagóricos. Além disso, não faltam motivos para converter a dúvida em certeza de que o pensamento daqueles filósofos foi algo diferente, podemos acrescentar mais vasto, a um tempo, e mais profundo. Em primeiro lugar, afigura-se-nos pouco menos que absurda a hipótese de uma permuta de coisas idênticas (que não tivesse qualquer função econômica); e se a permuta se efetua, como deve efetuar, entre coisas diversas, é igualmente absurdo supor que tal aconteça, por assim dizer, às cegas, sem tomar em conta a diversidade real. A referência a certa medida, como critério de apreço ou de avaliação, é pois o pressuposto implícito de toda permuta; e quando os antigos filósofos itálicos falaram de reciprocidade, tiveram sem dúvida, em mente, referir-se a semelhante critério, empregando justamente o vocábulo no sentido posteriormente melhor elucidado por Aristóteles. Nem esta interpretação é infirmada por aquela parte da teoria pitagórica, atinente à justiça penal, e que parece ter como base a idéia do talião, dado que esta idéia genérica, comum a todas as primitivas legislações, tem, como veremos (§ IX), profundo significado, e preconiza a concepção de equiparações também imateriais; contudo, quanto à sua determinação na teoria pitagórica, a carência de documentos autênticos impossibilita a tentativa de qualquer reconstrução verdadeira. Mais inverossímil parece ainda que os Pitagóricos ou Itálicos ignorassem, como parece insinuar Aristóteles, o critério da justiça distributiva e da justiça corretiva ou compensativa (compreendendo também a judiciária), se pensarmos - no que se refere à primeira - que precisamente a Pitágoras se deve a primeira instituição de um consórcio social baseado no rigoroso critério do mérito próprio de cada um; e que o pitagórico Hipódamo de Mileto - segundo atestação do mesmo Aristóteles - foi o primeiro que, sem ser homem de Estado, traçou o plano de uma república ideal, na qual se cuidava principalmente da melhor distribuição dos bens e das honras entre os cidadãos. Hipódamo queria, por exemplo, que por lei fossem asseguradas distinções honoríficas a quem quer que tivesse realizado algo de útil ao Estado; e que o mesmo Estado provesse, a custa dos dinheiros públicos, à educação dos filhos dos soldados mortos em guerra. Idéia esta não ainda reduzida a ato naquele tempo (séc. V a.C.), mas não muito tempo depois traduzida em lei, como informa Aristóteles, em Atenas e noutros Estados. Encontramo-nos ainda bem longe do conceito da reciprocidade mecânica ou material. Pretendia, além disso, o mesmo Hipódamo que as sentenças 170 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA COMUTATIVA 171 judiciais não fossem proferidas por simples votação, mas que os juízes pudessem expor, de modo integral e com exatidão, seu próprio parecer, sem terem de forçar a própria consciência a aceitar ou a rejeitar uma tese determinada. Seria provavelmente excessivo interpretar isto com pródromo da moderna tendência do "direito livre"; todavia, deve-se reconhecer, naquela tese, ao menos um esforço para se aproximar cada vez mais do direito à vida, corrigindo o que de mecânico o direito traz consigo no ato de sua aplicação. A polêmica, travada por Aristóteles contra Hipódamo neste particular, e na qual propugna que o juiz, ao contrário do árbitro, deve resolver as questões só nos termos que lhe são propostos, sem a possibilidade de iniciativa pessoal ou de solução intermédia, não é decerto muito convincente, nem faltam críticos autorizados que não hesitaram em defini-la como sendo um equívoco. Como quer que seja, está fora de dúvida que Hipódamo representa, em confronto com Aristóteles, a concepção menos rigidamente esquemática da justiça judiciária; como também no concernente aos problemas da justiça distributiva verificamos que Hipódamo se inspira em critérios da maior largueza de vistas. Sendo verdade, como parece não haver dúvida, que Hipódamo pertenceu à escola pitagórica, afigura-se manifestamente infundada a objeção feita por Aristóteles a essa escola, de não ter sabido tirar do seu conceito de equiparação ou de "reciprocidade" um critério apropriado para as duas espécies de justiça. Não se pode asseverar que com isto fique resolvido o problema (que, ao invés, se deve reputar insolúvel, por causa da insuficiência de documentação): qual foi e que grau de desenvolvimento alcançou o desenvolvimento da doutrina da justiça na mente dos Pitagóricos e, em confronto com esta contribuição, o que é que efetivamente houve de original na exposição do mesmo assunto por Aristóteles. Como quer que seja, não se pode negar haver sido muito grande a importância desta exposição, já que logrou fixar com precisão, anteriormente não alcançada, alguns conceitos fundamentais, que ulteriormente passaram a ser como que definitivos na matéria. 6.5 Jurisprudência: caso julgado com base na justiça comutativa Sentença de 1.* Instância proferida pelo Juiz Sebastião Luiz Amorim, in Julgados de 1.° Grau, 3.° v., Ed. AASP/SP, 1980, p. 65-66 Vistos etc. Catharina Perruchi Maia, qualificada nos autos, requer a liberaç da importância de Cr$ 160.000,00 (cento e sessenta mil cruzeiros), com o fr de saldar compromissos referentes às despesas de cirurgia e tratamento médi além de empréstimos que foi obrigada a contrair durante a tramitação do process Junta, nos autos, declaração de seu filho e único herdeiro, José Ricardo Mal o qual informa que está de acordo com o pedido pelas razões expostas. O Curador de Resíduos, invocando a lei, entende que não há possibilidade de atendido o pedido. A requerente voltou a insistir no requerido, juntando doe mentos. E o relatório. Decido. Não obstante a existência do dispositivo legal, entendo que o pedido ser deferido. Na jurisdição voluntária, o presente Código de Processo Civil autoriza Magistrado a afastar-se da "legalidade estrita", podendo adotar, em cada caso, solução que reputar mais conveniente e oportuna (art. 1.109). A finalidade, para a qual foi requerido o levantamento da importância, é das mais justas, uma vez que se trata da saúde da requerente e ainda mais considerando-se que se trata de restaurarlhe a visão, que é um dos maiores bens que o homem possui. Além disso, a importância requerida, considerando-se o total depositado, é bem razoável e dentro de um critério bastante aceitável. Não seria lógico e nem crível que o instituidor do benefício, quando gravou o bem com as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, tivesse pensado em situações, como a de D. Catharina no presente. Ao Juiz compete moderar os rigores da lei. Entendo que a intransigência no caso dos autos é inconveniente e desnecessária e não se constitui em espelho da vontade do instituidor. Isto posto e tendo em vista o mais que dos autos consta, hei por bem liberar a importância de Cr$ 160.000,00 (cento e sessenta mil cruzeiros), que serão entregues à suplicante após se comprovarem os gastos efetuados, através de documentos considerados hábeis por este Juízo. Em síntese: do espólio (conjunto dos bens da herança) são entregues à herdeira 160 mil cruzeiros, correspondentes às despesas efetuadas e que lhe são devidos, conforme decisão do Juiz. 7. Bibliografia ARISTÓTELES. Ética a Nicômano, especialmente livro V, e Política. ASCOLI, Max. La giustizia. Pádua : Cedam, 1930. BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BRETHE DE LA GRESSAYE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Sirey, 1947. CATHREIN, V. Filosofia del derecho. Madri : Reus, 1940. -. Philosophia moralis. Friburgo : Herder, 1905. CÍCERO. De Republica. DABIN, J. Théorie générale du droit. Bruxelas : Bruylant, 1944. -. La philosophie de l'ordre juridique positif. Paris : Sirey, 1929. 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VERMEERSCH, A. La justitia comutativa, ns. 21 e ss. de Cuestiones acerca de Ia Justicia. Madri : S. Calleja, 1900. 2 v. 7 A JUSTIÇA DISTRIBUTIVA SUMÁRIO: 1. O conceito de justiça distributiva: 1.1 Campo de ação e importância; 1.2 Em que consiste, essencialmente, a distributiva?; 1.3 Violação da justiça distributiva - 2. A "alteridade" na justiça distributiva: 2.1 A que relações se aplica a justiça distributiva?; 2.2 Sociedade e seus membros: concepções individualistas, coletivistas e intermediárias; 2.3 Espécies de sociedade; 2.4 Quem são os particulares? - 3. O "devido" na justiça distributiva: 3.1 Participação nos benefícios sociais; 3.2 Qual a natureza desse débito?; 3.3 Exigência da justiça distributiva; 3.4 Benefícios e encargos - 4. A "igualdade" na justiça distributiva: 4.1 Proporcionalidade; 4.2 Critérios da proporcionalidade - 5. Aplicações da justiça distributiva: 5.1 Estado; 5.2 Comunidade familiar; 5.3 Empresa moderna; 5.4 Comunidade internacional - 6. Outras formulações: 6.1 "A justiça distributiva no pensamento de Aristóteles", G. Del Vecchio; 6.2 "Jurisprudência: caso julgado com base na justiça distributiva" - 7. Bibliografia. 1 O conceito de justiça distributiva 1.1 Campo de ação e importância "Justiça distributiva: esse nome, freqüentemente citado, tem significação imprecisa e vaga no espírito de muitos. Entretanto, essa justiça é de importância excepcional, numa época em que se precisa a doutrina e se estende o campo da ação social". Com essas palavras, Faidherbe abre seu aprofundado estudo sobre La justice distributive.' Como virtude que regula as relações entre a comunidade e seus membros, cabe à justiça distributiva regular a aplicação dos recursos da coletividade às diversas regiões ou setores da vida social, disciplinar a fixação dos impostos e sua progressividade, o voto plural nas sociedades anônimas, a participação dos empregados nos lucros, na gestão ou na propriedade da empresa, a aplicação do salário-família etc. A. J. Faidherbe, La justice distrbutive, Introdução, p. 1. 174 Os princípios da justiça distributiva inspiram planos de reforma agrária, urbana, tributária, educacional. É na justiça distributiva que vão buscar seu princípio orientador importantes ramos do direito, como o administrativo, o fiscal, o do trabalho e da previdência social, e capítulos inteiros do direito civil e comercial. E, no plano das relações internacionais, Delos, entre outros, afirma que o moderno direito internacional "repousa essencialmente sobre duas formas de justiça: a justiça social internacional e a justiça distributiva internacional".2 1.2 Em que consiste, essencialmente, a distributiva? Como as demais espécies de justiça, em dar a "outrem" o que lhe é "devido" segundo uma "igualdade". Mas essas notas apresentam-se, no caso, com características próprias. Assim: a) a pluralidade de pessoas ou "alteridade" apresenta-se como relação entre a comunidade e seus membros, o todo e a parte; b) o "devido" consiste em assegurar aos membros da coletividade uma eqüitativa "participação no bem comum"; c) e a "igualdade", a ser estabelecida ou respeitada, é proporcional ou relativa, e não absoluta ou simples, como nas relações de justiça comutativa. Com esses elementos podemos formular a seguinte definição: justiça distributiva é a virtude pela qual - a comunidade dá a cada um de seus membros - uma participação no bem comum, - observada uma igualdade proporcional ou relativa. Esses elementos estão presentes em definições propostas por autores clássicos e modernos. Assim, João de São Tomás ensina: "A justiça distributiva é uma espécie da justiça estrita e particular, que impõe, a quem reparte Os bens comuns, a obrigação de fazê-lo proporcionalmente à dignidade e aos méritos de cada um".3 No mesmo sentido, é a definição moderna de Delos: "A justiça distributiva assegura ao particular uma parte do bem comum, distribuído proporcionalmente a seu valor como membro do corpo social e à posição que ele ocupa na sociedade.' (2) J. T. Delos, La société internationale et les príncipes du Droit Public. Se escrevesse na segunda metade do século XX, Delos certamente acrescentari, a justiça comutativa internacional (v. Capítulo 2, item 5). (3r João de S. Tomás, Curs. Theol. III, q. 21, disp. 6, art. 3, p. 538. (4) Ob. cit., p. 165. JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 175 Os critérios para a determinação dessa igualdade proporcional estão relacionados com a diversidade de regimes sociais e políticos e variam, como veremos no item 4, de acordo com a natureza do bem distribuído. No moderno Estado democrático, diz Pio XII,S a igualdade não significa "nivelamento mecânico nem uniformidade monocromática", mas respeito à dignidade pessoal de todos os homens. 1.3 Violação da justiça distributiva Ao contrário da justiça comutativa, que se realiza através de operações particulares, a justiça distributiva se efetua através de um estado de participação eqüitativa de setores da comunidade nos benefícios e encargos sociais. Nesse sentido, examinamos em estudo anterior' as principais violações da justiça distributiva na vida social contemporânea: a) o desnível entre nações industrializadas e nações subdesenvolvidas, dentro da comunidade mundial. b) o desnível entre regiões de um mesmo país, de que é exemplo, no Brasil, a desigualdade de condições entre o Norte, o Nordeste e o Centro-Sul; c) o desnível entre os setores econômicos: primário (agricultura e mineração), secundário (indústria) e terciário (serviços: comércio, bancos, profissões liberais, ensino, serviço público). d) o desnível entre classes sociais. "São muitos os homens que sofrem e aumenta a distância que separa o progresso de uns da estagnação e, até mesmo, do retrocesso de outros".' Esse quadro revela o caráter dinâmico, a gravidade e a importância das exigências da justiça distributiva no mundo contemporâneo. E põe em evidência um dos aspectos do grande imperativo do "desenvolvimento com justiça", proclamado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.' INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO (s, (6( (7( (8( "Uma verdadeira democracia", Mensagem de Natal de Pio XII (1944). Franco Montoro, Ideologias em luta, Rio, Comp. Brasileira de Artes Gráficas, 1966, cap. III. "O desafio do subdesenvolvimento", p. 27 e ss. Paulo VI, Encíclica Populorum progressio, n. 29. A Mater et Magistra, de João XXIII, é ainda mais candente: "Contemplamos o espetáculo lamentável de imensas multidões de trabalhadores, que, em muitas nações e até em continentes inteiros, recebem um salário tão insuficiente que os submetem, a eles e a suas famílias, a condições de vida desumanas. De outro lado, o luxo e as despesas suntuárias de um grupo de privilegiados constitui contraste e ofensa à miséria extrema da maioria". V• "Les échanges internacionaux au service de l'homme" ("Conferente de 1' ONU sur le Commerce et le developpement", Genève, 1944), n. especial de Developpement e civilisations, Paris, n. 19, septembre, 1964, ed. Economie et Humanismo. 176 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 2. A "alteridade" na justiça distributiva 2.1 A que relações se aplica a justiça distributiva? A justiça supõe necessariamente uma pluralidade de pessoas que se relacionem. Na distributiva essas pessoas são o "todo" e a "parte", a "comunidade" e os e particulares "particulares". A "sociedade" deve dar a cada um de seus "membros" aquilo que lhe é devido. A sociedade como termo a quo ou devedora (sujeito passivo) e os particulares como termo ad quem ou credores (sujeito ativo). Cabem, aqui, naturalmente, três problemas: a) A sociedade e seus membros são realidades distintas? Haverá verdadeira pluralidade de pessoas na justiça distributiva? b) Quais as sociedades a que se aplica essa justiça? c) Que se deve entender por "particulares"? Essas questões têm recebido solução diferente da parte dos tratadistas e merecem ser examinadas separadamente. 2.2 Sociedade e seus membros: concepções individualistas, coletivistas e intermediárias Vejamos, em primeiro lugar, o problema da distinção entre a sociedade e seus membros. Alguns autores, com Tanquerey,9 De Lugo 10 e outros sustentam que na justiça distributiva e na social - que regulam relações entre a sociedade e seus membros - não há dois termos distintos, porque o todo e a parte, a comunidade e seus membros, não são realidades independentes. "A justiça que regula as relações entre a sociedade e seus membros concerne a termos que não são nem realmente distintos, nem independentes", diz Tanquerey." Conseqüentemente, não há, no caso, pluralidade de pessoas. E, não existindo a característica da "alteridade", essas virtudes não constituem espécies de justiça, propriamente dita, mas, apenas, virtudes anexas à justiça. (9) Tanquerey, De virtude justitiae, p. 6. (10) De Lugo, De justitia et jure, n. 1. Tanquerey, loc. cit. No mesmo sentido, V. Cathrein: "Nella giustizia distributiva, Ia società dá ai singoli come membri del tutto, quanto loro spetta dei beni e degli oneri pubblici; per conseguenza non si riferisce ad altri in senso perfeito, poiché il membro è contenuto nel tutto" (Filosofia morale, liv. IV, cap. II, art. ll, § 2, p. 390). JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 177 O ponto central consiste, como se vê, em haver ou não distinção real entre a sociedade e seus membros, o que nos leva naturalmente ao problema da natureza da Natureza sociedade e às diversas concepções sobre o as- da sociedade sunto. 12 Essencialmente, as múltiplas doutrinas sobre a natureza da sociedade podem reduzir-se às três orientações básicas: a) concepções individualistas; b) concepções coletivistas; c) concepções intermediárias. As concepções individualistas, de que é exemplo a teoria da ficção de Savigny,13 partem da afirmação de que só o homem é uma pessoa real. As sociedades são consideradas pessoas por uma ficção do direito. O legislador supõe, em vista do interesse geral, que elas sejam pessoas reais e as trata como tal. Mas, narealidade, existem apenas indivíduos e relações interindividuais. Só o indivíduo é real. A sociedade é ficção. As concepções coletivistas afirmam a existência real da sociedade, com unidade substancial própria. E o caso da teoria organicistica de Gierke,14 Durkheim 15 e outros. Para estes, o que existe realmente é o coletivo, é a sociedade como um organismo. Ela é não apenas comparável a um organismo, mas é, essencialmente, um verdadeiro organismo vivo, com sua anatomia e fisiologia; órgãos e funções próprias. Para os partidários dessa teoria o indivíduo isolado é que é uma ficção. Durkheim chegou a afirmar que o homem só é homem porque vive em sociedade." As concepções intermediárias, entre as quais se destaca, no direito moderno, a teoria da instituição, procuram sustentar, por caminhos diversos, a realidade objetiva do indivíduo e da sociedade. São representantes da doutrina da instituição M. Hauriou, V. L. Michoud, La théorie de la personnalité morale, Paris, Libr. Gen. Droit et Jurisprudence, 1932; F. Ferrara, Teoria de las personas jurídicas, Madri, Reus, 1929; Renê Clemens, Personalité morale et personalité juridique, Sirey, 1935; Lamartine Corrêa de Oliveira, Conceito da pessoa jurídica, Curitiba, Universidade do Paraná, 1962; J. Dabin, Le droit subjectif, Dalloz, 1952; Lacerda de Almeida, Das pessoas jurídicas, Rio, Ed. Rev. dos Tribunais, 1905; Vareilles Somières, Les personnes morales, Paris, Lib. Gen. Droit et Jurisprudence, 1919. Savigny, Traité de droit romain, t. II, p. 223. O. Gierke, Natural law and the theory of society, Cambridge. University Press, 1950. E. Durkheim, Les règles de Ia méthode sociologique. "L'homme... n'est un homme que parce qu'il vit en société". "A quoi se réduirait ('homme, si l'on en retirait tout ce qu'il tient de Ia société: Sociedade Teoria da ficção Teoria organicista Teoria da instituição G. Renard e J. T. Delos, R. Clemens, Brethe de Lá Gressaye, na França; Ennecerus, Behrende e outros na Alemanha; Santi-Romano, na Itália; José Tavares e Pires Cardoso, em Portugal. De acordo com essa doutrina, é preciso distinguir no tocante às sociedades duas situações diferentes: o simples contrato-de-sociedade e a sociedade-instituição. É certo que há sociedades que são apenas um contrato ou um conjunto de contratos entre dois ou mais indivíContrato duos. Por exemplo, dois mecânicos decidem reade sociedade lizar uma obra ou serviço em comum. Temos, no caso, um simples contrato-de-sociedade, regido, como as demais relações interindividuais, pela justiça comutativa. Não há matéria para a justiça distributiva ou social, porque não existe outra realidade senão os indivíduos. Em relação a esse caso, é válida a opinião de Tanquerey e demais autores citados. Mas, à medida que essa situação se desenvolve e perdura, transformando-se numa empresa, ela passa a constituir uma sociedade-instituição, ou simplesmente uma instituição. Instituição, define Hauriou, "é uma idéia de obra ou empreendimento que se realiza e dura juridicamente num meio social"." "Instituição é o bem comum organizado", afirma Renard.18 Nessas definições estão contidas as notas fundamentais que caracterizam uma instituição: Características a) idéia-finalidade ou fim objetivo; é sempre da instituição a idéia de um bem comum a realizar, e não se confunde com as intenções ou motivos subjetivos de seus membros; b) organização própria, com órgãos, funções e hierarquia, que também se impõe, objetivamente, a seus membros; c) duração ou continuidade no tempo: os indivíduos passam, a instituição permanece; é outra nota objetiva; como diz Hauriou, as situações inicialmente contratuais, à medida que duram, tendem transformar-se em situações institucionais.'9 Ao lado da pessoa humana, como realidade fundamental, a teoria da instituição afirma, como se vê, a existência real da sociedade, com características próprias, que a distinguem dos indivíduos que a cons JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 179 situem. Sustenta, portanto, a distinção real entre a sociedade e os particulares, como sujeitos independentes, ao contrário das doutrinas individualistas, que negam a existência real da sociedade como tal, e das coletivistas, que negam a realidade do indivíduo isolado. Podemos, também, abordar o problema da natureza da sociedade, com base no conceito filosófico de "unidade". Sociedade Do ponto de vista do direito, o homem e a sociedade apresentam-se como "unidades" na vida jurídica, isto é, são capazes de ser titulares de direitos e obrigações. De que espécie de "unidade" se trata? A filosofia distingue entre: - unidade real; que pode ser substancial, exemplo: a unidade de uma árvore; ou acidental: a unidade de uma fila; - e unidade lógica, que é apenas mental, só existe na razão; exemplo: a idéia de "homem", "pássaro", "árvore". Aplicando essa distinção ao problema da natureza da sociedade, podemos dizer que: a) para a teoria da ficção, a sociedade é uma unidade apenas lógica ou de razão, não existe como tal, no mundo real; b) para a doutrina organicista, a sociedade é uma unidade real substancial, e os indivíduos são apenas partes ou fragmentos dessa unidade; c) para a doutrina da instituição, o homem é dotado de unidade substancial, e a sociedade, de unidade acidental; ambos unidades reais e realmente distintos. Em conclusão, dentro das concepções individualistas e coletivistas, coerentemente, não existe distinção entre sociedade e indivíduos, como sujeitos reais. As relações entre a comunidade e seus membros serão meras relações interindividuais (concepção individualista); ou relações internas entre membros do organismo social (concepção coletivista). Em ambos os casos, não haverá verdadeira pluralidade de pessoas nas relações entre a sociedade e os particulares. Em sentido contrário, é a solução do problema, dentro da concepção institucional e de outras correntes que encaram com objetividade e sem distorções a realidade social: os indivíduos e a comunidade têm existência real, embora de natureza diversa. E, nas relações entre ambos, há, portanto, uma verdadeira pluralidade de sujeitos. Essa é a realidade simples da vida social: a sociedade é uma pessoa moral ou jurídica e constitui uma unidade ou sujeito capaz de direitos e obrigações, da mesma forma que qualquer ser humano. De 178 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO como unidade Sociedade instituição il tomberait au rang de l'animal", E. Durkheim, Education et sociologie, Paris, Alcan, 1922, p. 55. M. Hauriou, La théorie de l'institution et de Ia fondation, p. 21: "L'institutiotl est une idée d'oeuvre ou d'entreprise qui se realise et dure juridiquement d un milieu social". G. Renard, La philosophie de l'institution, lição II, p. 67. M. Hauriou, loc. cit. Realidades: indivíduo e sociedade outra parte, como realidade fundamental, cada um de seus membros é uma pessoa física, também capaz de direitos e obrigações. Sociedade e indivíduo, pessoas distintas e inconfundíveis. É claro que a situação não é a mesma da justiça comutativa, em que os termos da relação de alteridade são, em regra, pessoas dotadas de unidade real substancial. Com a justiça comutativa, como diz Dabin,20 passamos para o plano societário, mas aí também ocorre verdadeira alteridade, cujos termos são a "sociedade" e os "particulares". 2.3 Espécies de sociedade Devemos examinar o segundo problema: A que espécie de "sociedade" se aplica a justiça distributiva. Quais sociedades Apenas à sociedade civil ou política, afir mam Vermeersch,21 Cathrein 22 e outros. Além dos Estados, diz Vermeersch,23 a justiça distributiva só se aplica aos municípios e às províncias, porque só eles, dentre as demais sociedades, são verdadeiras comunidades; pela extensão de seu fim e por sua organização se assemelham ao Estado, de que são partes. As demais coletividades, que não têm outro vínculo senão o acordo de pessoas com finalidade de lucro, recreação ou objetivo semelhante, limitam-se a estabelecer um fundo comum, exercer alguma profissão etc. E, nestas, todos os direitos dos sócios são regulados pela justiça comutativa. Nas sociedades comerciais, civis, associações etc. existem apenas relações entre indivíduos ou sócios, que na realidade realizam um simples contato, regido pela justiça comutativa. Em sentido contrário, escreve Faidherbe: "O sujeito da justiça distributiva é a pessoa a quem incumbe a distribuição dos bens comuns; é aquele que administra esses bens. Em primeiro lugar, é a autoridade pública, mas pode, também, ser uma pessoa privada, chefe de um grupo social, por exemplo, o pai de família, o administrador de uma sociedade comercial ou industrial". E conclui: " justiça distributiva pode e deve ser praticada em toda a comunidade, seja um grupo natural, seja uma sociedade formada pela vontade dos con JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 181 tratantes".24 No mesmo sentido é o pronunciamento de Dabin.25 É este o pensamento que melhor se ajusta à realidade. O ponto de vista de Vermeersch e Cathrein é inspirado na concepção individualista, segundo a qual as sociedades em geral se explicariam como simples relações contratuais. Entretanto, como vimos, ao examinar a teoria da instituição, não é exato que todas as sociedades sejam apenas feixes de contratos, ou de relações interindividuais. Não apenas o Estado, mas outras sociedades, são verdadeiras instituições, isto é, têm uma finalidade objetiva, organização própria, e duração que não está subordinada à existência dos instituidores. Uma família, uma universidade, uma empresa, não são apenas contratos. A justiça distributiva aplica-se, portanto, não apenas ao Estado, mas a todas as sociedades que apresentam as características de uma verdadeira instituição. 2.4 Quem são os particulares? Devemos, finalmente, responder à pergunta: quem são os "particulares" a que se refere a justiça distributiva? Os indivíduos? Todos os indivíduos? Apenas os "cidadãos", como sugerem algumas definições? De início é preciso dizer que por particular entende-se, no caso, "o membro de uma comunidade". E nessa qualidade que ele participa do bem comum. Com razão observou Dabin 26 que a posição do membro em relação à sociedade não é igual a de um indivíduo independente diante de outro. Seu direito é, por definição, o de um "membro" ou de uma "parte" em relação ao "todo" e, em conseqüência, seu direito a justiça distributiva fica subordinado ao bem do corpo social no seu conjunto. E assim que, se o interesse do corpo social o exigir, os lucros de uma sociedade ou parte deles poderão ser excluídos da distribuição e destinado à reserva, ou a outros objetivos sociais. Da mesma forma, na fixação dos impostos, poderá haver isenções ou abrandamentos, justificados pelo interesse social. (24) J. Faidherbe, La justice distributive, cap. 1, p. 17. (25) J. Dabin: "Bien que Ia notion de justice distributive puisse s'insérer dans le cadre de n'importe quelle société, privée ou publique, interne ou internationale (a conditions qu'elle forme corps), on Ia prend d'ordinaire dans le cadre de la société politique interne, l'État, oìt elle fait pendant à Ia justice légale", Théorie générale du droit, n. 232, p. 239. (26) Ob. cit., n. 234. 180 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Todas as sociedades (20) (21) (22) (23) J. Dabin, Théorie générale du droit, n. 232. "A justiça distributiva só se refere às obrigações da sociedade civil para com os cidadãos", Vermeersch, Cuestiones acerca de la justicia, n. 65. Da mes forma, em relação à justiça social: "Não admitimos justiça legal, senão sociedade perfeita, isto é, no Estado. Só este tem um poder legislativo verdadeira jurisdição", ibidem, n. 53V. Cathrein: "La giustizia distributiva se referisce direttamente ai bene publ (Filosofia lnorale, liv. IV, cap. 11, art. 11, § 2, p. 390). Vermeersch, ob. cit., n. 75. 182 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 183 Nessas condições, enquanto membros de uma sociedade, poderão ser considerados "particulares": a) em primeiro lugar, os indivíduos, juridicamente denominados pessoas físicas ou naturais; aliás, a pessoa humana Indivíduos é sempre o sujeito fundamental nas relações de justiça; b) as instituições particulares ou grupos sociais organizados, que, como a família, a empresa, a escola, a categoria profissional ou econômica, as associações etc., apresentam-se, via de regra, no campo do direito, como pessoas jurídicas particulares ou de direito privado; c) a própria comunidade política, isto é, o Estado, em sua acepção ampla, sempre que estiver na situação de membro de uma comunidade maior. É o caso dos municípios ou dos Estadosmembros, que, por justiça distributiva, têm direito de participar eqüitativamente do bem comum nacional. E do Estado nacional, que tem direito semelhante dentro da comunidade mundial. 3. O "devido" na justiça distributiva 3.1 Participação nos benefícios sociais Por exigência da justiça distributiva, a comunidade deve assegurar, a todos os seus membros, uma eqüitativa "participação no bem comum". Preferimos essa fórmula, a fim de caracterizar o "devido" o debitum da distributiva como um estado de "participação no benefícios sociais e não como um conjunto de operações ou ato!' isolados". Com razão escreveu Delos: "A justiça distributiva, salvo caso" excepcionais, não consiste em partilhar, ainda que proporcionalmente, uma realidade homogênea e quantificada, como uma soma de dinheiro uma terra, atos ou serviços, constituindo uma massa. Seu objeto é dar a cada um sua parte do bem comum. E assegurar a todos Os membros da comunidade o conjunto de "condições sociais" que lhes' permitam ter uma vida plenamente humana. E, pode-se dizer, assegurar a cada um seu lote de segurança e ordem, um estatuto jurídico e social, condições econômicas, intelectuais e morais favoráveis ao seu desenvolvimento. Essas "condições sociais", esse estatuto geral, são devidas a cada um por justiça, mas são coisa inteiramente diferente de uma "quantidade" a partilhar.` No mesmo sentido é a advertência de Faidherbe,28 ao observar que as análises da igualdade de proporção poderiam nos conduzir ao erro de pensar que a matéria da distribuição é constituída por bens facilmente divisíveis, quando, freqüentemente, o bem comum a distribuir consiste em condições favoráveis de que todos possam usufruir eqüitativamente. Parece-nos, por isso, mais adequado falar em "participação no bem comum". A propósito dessa participação, que constitui o "devido" na justiça distributiva, devemos examinar dois problemas: a) sua natureza; b) sua extensão. 3.2 Qual a natureza desse débito? Para alguns autores, o "devido" pela justiça distributiva é um dever apenas moral ou de conveniência (debitum morale) e não um dever legal, estrito e rigoroso (debitum legale), cuja característica, como vimos, é sua exigibilidade. Esse é, entre outros, o pensamento de Billuart:29 "Os bens devidos aos particulares, por justiça distributiva, não lhes são devidos de forma absoluta, como no caso de uma propriedade pessoal, mas de maneira relativa, em virtude de serem membros da comunidade; por isso, eles não têm, em relação a esses bens, nem direito real (jus in re), nem direito pessoal (jus ad rem) que lhes permita reclamá-los". E acrescenta: "O direito, objeto da justiça distributiva, não é um direito estrito, como na comutativa, mas apenas um direito moral, semelhante ao que é objeto da justiça legal, ou das virtudes anexas à justiça, cuja violação não dá origem à obrigação de restituir". Para esses autores,30 só é justiça propriamente dita a comutativa. J. T. Delos, La justice, notas e comentários à tradução do tratado De justitia de S. Tomás, nota 37, p. 209. Faidherbe, La justice distributiva, cap. V, p. 108. Billuart, Comentários à questão 61, art. 1.°, da Suma Teológica. Billuart, Tanquerey e os moralistas modernos citados por Faidherbe (ob. cit., cap. III). Em sentido contrário, Delos: "La justice distributive et Ia justice légale sont de véritables justices, en ce qui concerne tant le droit que la diversité das sujeis: le 'domaine proprement juridique enveloppe les trois sortes de justice' (loc. cit.). Faidherbe aponta, inclusive, razões que indicam sua superioridade em relação à justiça comutativa" (cap. V, p. 95 e ss.). Instituições particulares Estado como membro (27) (28) 29) (30) 184 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Na distributiva (e na social) existiria apenas um dever moral, como o da gratidão, amizade, liberalidade e demais virtudes anexas à justiça. Esse ponto de vista é inaceitável. E certo que nos dois casos há um débito diferente: na comutativa o bem é devido a uma pessoa, porque lhe é "próprio"; na distributiva, o bem é devido, porque é "comum". E, como diz S. Tomás, é diferente dever a alguém o que é "comum" e o que lhe é "próprio"." Mas, em ambos os casos, há um devido rigoroso legal e exigível. O fundamento e a natureza desse dever, em relação à justiça distributiva, foram estudados por Faidherbe, com brilhante argumentação e análise exaustiva de textos. Suas conclusões podem ser assim sintetizadas: a) O fundamento do "devido" na justiça distributiva não é a equivalência entre uma coisa recebida e outra dada, como na comutativa, mas a natureza mesma do bem comum. A obrigação que se impõe à autoridade que distribui nasce de uma exigência da própria natureza do bem comum ex ipsa exigentia boni communis. A esse fundamento denomina "lei do bem comum distribuído". b) Quanto à natureza desse dever na distributiva, trata-se de um "devido" legal e estrito (debitum legale), exigível, portanto." Realmente, é da própria essência do bem comum que dele participem os membros da comunidade, pois trata-se de um bem "comum" e não "próprio". E esse é o dever fundamental da autoridade: distribuí-lo com justiça. Dever rigoroso, que confere aos particulares o direito de recorrer contra os excessos ou abusos que lhes prejudiquem. diquem. Esse direito é reconhecido no direito moderno, através d instrumentos processuais como o habeas corpus, Exigível o mandado de segurança, o recurso contra inconstitucionalidade das leis, os excessos n taxação dos impostos etc. (v. nota 36 e ss.). Como explicar a opinião daqueles que negam seja esse um deve rigoroso da autoridade? Com razão, pergunta Faidherbe - ao estra nhar que Billuart, de formação tomista, se tenha afastado do pensamento de S. Tomás nesse ponto - por que essa minimização da justiça distributiva? Por que esse medo de atribuir à comunidade (ou à autoridade) uma obrigação rigorosa em relação a seus membros e, a estes, um direito estrito de exigir uma distribuição eqüitativa? Por que negar aos particulares o direito a uma ação contra a comunidade no caso de distribuição injusta? E sugere, como resposta, uma hipótese maldosa: Billuart viveu sob o reinado de Luís XIV, no tempo do absolutismo. Os súditos deviam curvar a cabeça, sem discutir. Quem ousaria pretender que o rei tivesse obrigações de estrita justiça para com seus súditos? Quem reivindicaria para eles o direito a uma ação contra o rei, chefe do Estado, no caso de distribuição injusta? E, para acentuar o contraste, transcreve algumas linhas significativas de Domenico de Soto, conselheiro de Carlos V, que escreveu, em pleno século XVI, as seguintes palavras: "Quando os príncipes ou os administradores dos bens comuns têm esses bens sob seu poder, é difícil fazer com que eles decidam distribuí-los, se deles podem servir-se. Infelizmente, uma longa experiência nos ensina que esse é o hábito dos príncipes e dos governantes".33 3.3 Exigências da justiça distributiva Qual a extensão do "devido" por justiça distributiva? De forma geral, podemos dizer que a matéria da justiça distributiva é constituída pelas diversas espécies de distribuições que a sociedade deve realizar entre seus membros. A questão pode ser considerada sob vários aspectos. O item 5 do presente capítulo é dedicado ao exame das aplicações da justiça distributiva às diversas comunidades ou grupos sociais: Estado, sociedade internacional, família, empresa etc. No mesmo sentido, J. Ryan, em seu trabalho sobre "justiça distributiva", estuda a repartição da renda nacional entre as classes que participam de sua produção, a saber: proprietários de terras, capitalistas, empresários e trabalhadores.` Sob outro aspecto Dabin, ao examinar os deveres da sociedade em relação a seus membros, faz uma enumeração básica das aplicações da justiça distributiva.35 Com algumas adaptações, o quadro dessas aplicações é o seguinte: (") Faidherbe, La justice distributive, cap. III, p. 60, e nota 1. 3' J. Ryan, Distributive justice, trad. argentina, Justitia distributiva, Poblet, 1950. V. outras formulações no item 6 do presente capítulo. 15' J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, n. 87, p. 336 e ss. Extensão do devido "Alio modo debetur alicui id quoi est commune, alio modo id quod proprium". Por isso: "Justitia distributiva et commutativa non solum distinguun secundum unum et multa, sede secundum diversam rationem debiti" (II, 1 q. 61, a. 1, ad 5). La justice distributive, cap. III, p. 55. Faidherbe acrescenta que o direi conferido pela justiça distributiva ao particular "não é um direito real" (j in re), como na comutativa, mas um direito pessoal (jus ad rem), que assegura uma ação pessoal. Isso é verdade apenas em parte. Ao devido comutativa nem sempre corresponde um direito real (jus in re). Assim, respeito à dignidade de cada homem ou a obrigação de reparar o dano, q são devidos pela comutativa, conferem, no primeiro caso, um direito personalidade e no segundo um direito pessoal ou de crédito (jus ad rem (32) 1 a) há um primeiro dever negativo e, de certa forma, preliminar, que consiste em respeitar os direitos fundamentais de seus membros: direito à vida, à honra, à liberdade, à propriedade, à nacionalidade, à cidadania, à intimidade, à igualdade,36 seria absurdo que a sociedade, formada para a defesa e desenvolvimento das pessoas, começasse por despojá-las de seus direitos elementares; b) cabe à sociedade, em seguida, o dever de garantir a seus membros o respeito a esses direitos diante de possíveis violências e atentados de outras pessoas; o que se realiza através daquele "quinhão" de segurança e ordem assegurada a todos pela sociedade;37 c) deve, ainda, a sociedade a seus membros a repartição eqüitativa dos benefícios de ordem material e moral, compreendidos no conceito de bem comum; dessa distribuição ninguém pode ser excluído; d) deve a autoridade social realizar essa distribuição segundo um critério de igualdade proporcional: assim, uma proteção especial deve ser dispensada aos mais fracos ou desprotegidos (daí, medidas em defesa dos empregados,38 da mulher," do menor,40 dos incapazes 41 "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade..." (art. 5.°, caput, da Constituição; v. também art. l.°). A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País o direito de exigir da autoridade, mediante ações especiais, o cumprimento desse dever. Assim dispõe o art. 5.°, em vários incisos: "São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra a legalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa dt direitos e esclarecimentos de situações de interesse pessoal" (inciso XXXIV); "Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalida ou abuso de poder" (LXVIII); "Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeat data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autorida pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Podei Público" (LXIX); "Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta do, norma regulamentadora tome inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e cidadania" (LXXI); "Conceder-se-á habeas data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registro ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigilos judicial ou administrativo" (LXXII). A Constituição, no art. 7.°, com seus trinta e quatro incisos, assegura vário direitos aos trabalhadores, tais como salário mínimo, salário-família, horári de trabalho, previdência social, higiene e segurança do trabalho etc. É assegurada a "licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salári com a duração de cento e vinte dias" (art. 7.°, XVIII, da Constituição E assegurado também plano de previdência social, com proteção à matem JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 187 etc.); as funções públicas devem ser conferidas aos mais capazes (daí, a exigência de concursos).42 Em suma, cada um é chamado a participar dessa repartição de acordo com regras gerais válidas para todos,43 mas fundadas em qualidades pessoais correspondentes ao elemento do bem comum a ser distribuído; e) finalmente, a distribuição não pode se limitar aos atuais membros da comunidade, mas deve considerar as próximas gerações, daí a necessidade de planos para o futuro e da distribuição eqüitativa dos benefícios e encargos entre os membros atuais e as gerações futuras. Estão nesse caso, entre outras, as medidas exigidas pela política de defesa do meio ambiente.44 3.4 Benefícios e encargos Aspecto diferente do problema é o que se refere aos benefícios ou encargos repartidos pela justiça distributiva. Cabe a essa justiça regular apenas a distribuição dos benefícios sociais ou também a dos ônus e encargos? dade e especialmente à gestante (art. 201, III) e aposentadoria aos trinta anos de trabalho (art. 202, II). ao) É proibido o "trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos, e qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz" (art. 7.°, XXXIII). 41 Código Civil, art. 5.°: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: 1) os menores de 16 anos; II) os loucos de todo o gênero; III) os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade; IV) os ausentes declarados tais por ato do juiz". Art. 6.°. "São incapazes relativamente a certos atos (art. 147, 1), ou à maneira de os exercer: 1) os maiores de 16 anos se menores de 21 anos (arts. 154 e 156); II) os pródigos; III) os silvícolas". (42) "A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração" (art. 37, II, da CF). cai) «Todos são iguais perante a lei..." (art. 5.° da CF). (44) "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado... impondose aos Poderes Públicos e à coletividade o dever de defendê-lo e preserválo para as presentes e futuras gerações" (art. 225 da Constituição). "Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República..., dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: ... II plano Plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública e emissões de curso forçado; ... IV - planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento" (art. 48 da CF). A Constituição determina também que os orçamentos sejam "compatibilizados com o plano plurianual", tendo entre suas funções "a de reduzir desigualdades inter-regionais, segundo critério populacional" (§ 7.° do art. 165) e, ainda, que "nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro" possa "ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade" (§ 1.° do art. 167). 186 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO (36) (37) (3R) (39) 188 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Alguns tratadistas, como Van Gestel,45 consideram mais conforme à natureza dessa virtude a doutrina que limita o campo da justiça distributiva à eqüitativa repartição dos bens sociais. Sua razão, em síntese, é a seguinte: como justiça particular, a distributiva tem por objeto o bem dos particulares, e no conceito de bem não se podem incluir os ônus e encargos .46 Conseqüentemente, cabe à justiça distributiva reger apenas a repartição dos benefícios. A generalidade dos autores, entretanto, tem opinião diversa. Atribuem à justiça distributiva a repartição dos bens e dos encargos sociais. E esse, entre outros, o pensamento de Vermeersch, que o fundamenta respondendo à objeção citada. A justiça distributiva tem por objeto, diretamente, a repartição dos bens sociais. E, só indiretamente, a dos encargos. Ela distribui os encargos, enquanto essa repartição é, de certa forma, um bem para os membros da comunidade. Os encargos podem representar um bem para o particular, duplamente. Primeiro, porque, beneficiando a sociedade, de que ele é parte, também o beneficia indiretamente. Segundo, porque é um bem para o indivíduo que os encargos sejam distribuídos "proporcionalmente" a suas possibilidades. Exemplos dessa repartição dos encargos podem ser indicados na fixação dos impostos, na prestação do serviço militar,47 no chamado munus público (serviço de jurado,48 prestação de assistência judiciária pelo advogado),49 no dever de socorro e assistência,50 no paga Van Gestel, De justitia et lege civili, p. 14 a 16. S. Tomás, "Est quaedam distributio laboriosorum" (II, II, p. 61, a. 3); Faidherbe, "La distributive distribuera, en vertu de cette proportion, les charges comme les avantages. Les partes comme les gains dans une société seront communs a tous les associés et partagés selon 1'égalité de proportion au prorata de I'apport de chacun. De même, un héritier supportera les charges de Ia sucession, deites, etc., proportionnellement à Ia pari qu'il reçoit ou devrait recevoir" (La justice distributive, cap. IV, p. 69); Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, n. 58, p. 91; Dabin inclui entre os atos de justiça distributiva "la répartition des contributions de toute nature indispensables à Ia vie sociale, car le corps ne vit que de l'apport de ses membres". E, adiante, "... solution identique quant aux charges" (Théorie générale du droit, n. 233, p. 239 a 240); Recaséns Siches, Estudios de Filosofia del Derecho, cap. XXIV, n. 3, p. 393 e ss.; Brethe De La Gressaye, Introduction à I'étude du droit, n. 63, p. 52 e ss. "O serviço militar é obrigatório nos termos da lei" (art. 143 da Constituição). "O serviço do júri será obrigatório. O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 21 anos, isentos os maiores de 60" (Código de Processo Penal, art. 434). Cumpre ao advogado:...; b) prestar desinteressadamente serviços profissionais aos miseráveis que o solicitarem..." (Código de Ética Profissional, Seção I, n. III, b). Código Penal: Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível, fazê-lo JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 189 mento das dívidas e encargos da herança em proporção à parte de cada herdeiro,51 na participação dos sócios nas perdas e dívidas sociais proporcionalmente à sua entrada para a sociedade 52 etc. Outros casos são, ainda, indicados por Faidherbe,53 Brethe de La Gressaye,54 Vermeersch.55 4. A "igualdade" na justiça distributiva 4.1 Proporcionalidade Como todas as espécies de justiça, a distributiva visa, também, a realizar fundamentalmente uma igualdade. Vimos que essa igualdade é, no caso, proporcional ou relativa . 16 A justiça distributiva regula as relações entre a sociedade e seus membros, exigindo a repartição proporcional dos bens sociais. sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou ferida ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção de 1 a 6 meses, ou multa de trezentos a dois mil cruzeiros. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. Código Civil: Art. 1.796. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que, na herança, lhes coube. Código Civil: Art. 1.381. Se o contrato não declarar a parte de cada sócio nos lucros e perdas, entender-se-á proporcionada, quanto aos sócios de capital, à soma com que entraram. Art. 1.396 - Se o cabedal social não cobrir as dívidas da sociedade, por elas responderão os associados, na proporção em que houverem de participar nas perdas sociais. " Le droit civil français présente un exemple remarquable de cette participation proportionelle aux charges, Ia distribution par contribution: 'C'est Ia répartition des biens ou des derniers arrêtés d'un débiteur entre des créanciers suivant 1'ordre des privilèges et au marc le franc de leurs créances à l'égard de ceux qui n'ont entre eux aucune cause de préférence sur Ia somme à partager lorsqu'elle est inférieure aux dettes. Le nom de contribution vient de ce que chacun de ces demiers contribue à Ia parte commune au prorata de sa créance'. II en est de même dans les sociétés anonymes: 'Le droit essentiel de tout associé... c'est le droit de participer, dans une certaine mesure, aux bénéfices et à Ia gestion de l'affaire sociale. Ce partage des benéfices et ce partage d'autorité ayant pour contrepartie le partagem des risques, c'est à proprement parler I'un des caractères spécifiques du contrat de société- (Faidherbe, La justice distributive, cap. IV, p. 69 a 70). "C'est encore Ia justice distributive qui inspire le droit pénal, Ia gravité de Ia peine étant proportionnée à Ia gravité du trouble social, ainsi qu'àla responsabilité personnelle du délinquant" (Brethe De La Gressaye, LabordeLacoste, Introduction à 1'étude du droit, n. 63, p. 53). Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, n. 60 e ss. V. cap. 1, n. 4. (45) (46) (52) (47) (48) (53) (49) (54) (50) (55) (56) 190 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 191 Não se trata de dar a todos, de modo uniforme, as mesmas coisas ou quantidades iguais, mas de respeitar uma igualdade proporcional. À justiça distributiva aplica-se a lição de Rui Barbosa: "Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real"." 4.2 Critérios da proporcionalidade Mas qual o critério para se estabelecer essa proporção? S. Tomás, reproduzindo o ensinamento de Aristóteles, diz que a igualdade da justiça distributiva consiste em atribuir bens diferentes a pessoas diversas proporcionalmente à sua "dignidade".58 E por dignidade entende qualquer condição ou qualidade da pessoa que a torna apta para receber um bem. Assim, a ciência é condição adequada para alguém ser promovido ao magistério; a qualidade da prudência, para exercer um cargo de administração. Os tratadistas clássicos tratam do problema. Mas é evidente que a diversidade das condições históricas determina a variação de critérios para a fixação dessas qualidades. Daí o caráter inatual e até mesmo pitoresco de muitas de suas aplicações.59 Por isso, deixando de lado aspectos do problema ligados às; sociedades antigas, é preciso examinar os critérios da justiça distributiva aplicáveis à sociedade moderna. Quais são esses critérios? Muitos autores, repetindo a lição dos clássicos, estabelecem como regra universal que s devem distribuir os bens sociais segundo a "dig< nidade" de cada um. E, parecem admitir, como diz Vermeersch,ó0 que deve dar-se às classes superiores maior participação do que às inferiores. A famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada em 1789 pela Assembléia Nacional da França, afirma o princípio da "capacidade", nos termos seguintes: "Todos os cidadãos são igual mente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos segundo sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes • de seus talentos" (art. VI). Toniolo propõe como regra que os encargos sejam distribuídos em proporção à "capacidade" Capacidade e • os bens em proporção à "necessidade", de cada um: quem mais pode mais deve, quem menos pode mais recebe.` Destrée e Vandervelde 62 sustentam a regra de que os bens sociais devem ser repartidos conforme o "trabalho" de cada um, até que, com o progresso dos costumes Trabalho • da cultura, se possa aplicar outra regra mais perfeita: cada um contribuirá, então, conforme suas possibilidades e receberá conforme suas necessidades. No mesmo sentido é a distinção de Lenin, na linha do pensamento de Engels e Marx: no socialismo se realiza distribuição dos bens segundo a quantidade e a qualidade do trabalho prestado, de acordo com o princípio: a cada um segundo seu rendimento; no comunismo, depois que as forças da produtividade tenham alcançado maior grau e o trabalho tenha passado a ser a primeira necessidade vital, se realizará a distribuição de bens de acordo com o princípio: a cada um segundo suas necessidades.ó3 Vermeersch propõe, como princípio fundamental, duas regras: uma primária, que são as exigências do "bem comum", e outra secundária, que é a "igualdade" Bem comum entre os membros da sociedade: o direito que os e igualdade particulares têm sobre o bem comum deve ser medido, em primeiro lugar, pelo que reclama o bem comum, e, em segundo lugar, pela norma da igualdade." Outros critérios gerais poderiam ser indicados. Mas a realidade mostra que, dada a diversidade de situações a que se aplica a justiça distributiva, não existe um critério único, válido para todos os casos. Será razoável, por exemplo, adotar-se a mesma regra para a distri buição das verbas, dos impostos e dos cargos públicos em um Estado? (61) ,Chi p(,ú puõ piìt deve, chi meno può piú riceve", G. Toniolo, "Il concetto cristiano di democrazia", n. 2, in Saggi politici, Roma, Cinque Lune, 1957. 6n Destrée e Vandervelde, Le socialisme, p. 282. 63> G. A. Wetter e W. Leonard, La ideologia soviética, Barcelona, Herder, 1964, cap. V, n. 1, p. 573. R°' Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, n. 60, p. 94. Capacidade necessidade Dignidade (57) (58) Rui Barbosa, Oração aos moços. "Consistit aequalitas distributive justitiae in hoc quod diversis personis dive tribuuntur, secundum proportionem ad dignitates personarum", S. Tomás, II, q. 57, a. 1, c. "In Justitia distributiva non accipitur medium secundU aequalitatem rei ad rem, sed secundum proportionem rerum ad personas. ideo decit Philosophus quod tale medium est secundum `geometric proportionalitem in qua attenditur aequale non secundum quantitatum, secundum proportionem"'. II, 11, q. 61, a. 2, c. E o caso de certas discussões sobre a venda de cargos e funções públic ou as formalidades para a concessão de títulos nobiliárquicos ou ecle ásticos. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia n. 59, p. 93. (59) O mesmo critério, para a atribuição das responsabilidades e dos lucros em uma empresa? E, ainda, o mesmo para a repartição dos alimentos ou roupas ou ensino, no seio de uma família? Como Dabin,ó5 podemos concluir: o princípio determinador da proporção é múltiplo e, além disso, dependente da Critério diversidade de regimes sociais e políticos." Nos múltiplo Estados modernos é preciso contar entre os cri térios da justiça distributiva, além do "mérito" e dos "serviços prestados", a "fraqueza" não apenas física (menores, inválidos, loucos), mas também "econômica".67 Quanto à justiça nos encargos, também regida pela regra da proporcionalidade, o princípio determinador é o das "possibilidades contributivas" de cada um. A igualdade exigida pela justiça distributiva é sempre proporcional. Mas, como veremos amplamente no item seguinte, o critério que serve de base a essa proporção varia com a diversidade de situações e, especialmente, conforme a natureza do bem distribuído, nas diversas espécies de comunidades. 5. Aplicações da justiça distributiva Com base nas considerações feitas nos parágrafos precedentes, podemos formular as seguintes conclusões: a) a distributiva é uma espécie de justiça propriamente dita, que exige dê a sociedade aos particulares uma participação no bem comum, observada uma igualdade proporcional; b) a justiça distributiva se aplica a todas as comunidades que apresentam as características de uma instituição; c) ela impõe às autoridades um dever rigoroso (debitum legale) de dar a todos os membros da comunidade uma participação eqüitativa no bem comum e, conseqüentemente, confere a estes o direito de exigiÇÇ essa participação; JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 193 d) a igualdade na justiça distributiva consiste numa proporção que tem por base a condição das pessoas, a natureza do bem distribuído e a espécie de comunidade a que ela se aplica. Examinemos, agora, sucintamente, algumas aplicações da justiça distributiva ao Estado, à família, à empresa e à comunidade internacional. Verificaremos, dentro de uma perspectiva mais ampla, a diversidade dos critérios que servem de base ao estabelecimento da igualdade proporcional na justiça distributiva. 5.1 Estado O Estado é, naturalmente, o campo mais importante das apli cações da distributiva. Alguns autores - sem Estado razão, como vimos - chegam mesmo a sustentar que ela só se aplica à comunidade política. A justiça distributiva é a virtude da autoridade. Ela está presente nas principais funções do Estado: na função jurídica, social, administrativa e fiscal. Na função jurídica, voltada para a garantia dos direitos de cada um, através da legislação, da judicatura ou do poder de polícia, é a justiça distributiva o grande princípio orientador. Trata-se de assegurar, a todos os membros da comunidade, aquele "lote de segurança" a que se refere Delos. O critério, no caso, é o da "igualdade" fundamental - todos são iguais perante a lei -, com uma proteção especial aos mais fracos." No exercício da função social, o Estado, da mesma forma, tem sua ação regulada pelos princípios da justiça distributiva. Escolas, hospitais, estradas, usinas não podem ser feitos arbitrariamente, mas devem obedecer a critérios eqüitativos, fundados no grau de "necessidade" e de "interesse público".69 Do mesmo modo, as subvenções a entidades de interesse social e os prêmios de estímulos às artes, às ciências ou ao esporte devem respeitar um critério de adequação proporcional à "necessidade" e (68) V. item 4 do presente capítulo e nota 67 supra. V. especialmente a observação de Rui Barbosa, no item 4.1. 169) Com esse objetivo as Constituições começam a exigir do Poder Executivo a elaboração precisa de planos e programas objetivos, que, devidamente justificados por seu interesse público, são aprovados pelo Poder Legislativo. Nesse sentido a Constituição Brasileira dispõe sobre os orçamentos: "O plano plurianual", "as diretrizes orçamentárias" e "os orçamentos anuais" nos arts. 165 a 169. 192 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO (65) (66) J. Dabin, Théorie générale du droit, n. 234, p. 241. A observação já é de S. Tomás: "Principalitas in aristocratica communi atteditur secundum virtutem, in oligarchica secundum divitias, in democratt secundum libertatem, et in aliis aliter" (II, II, q. 61, a. 2). É esse um dos fundamentos da legislação especial e da justiça do trabalh "O Estado deve respeitar e assegurar os direitos de todos. Mas na proteç dos direitos, deve se preocupar de uma maneira especial dos fracos e d indigentes. A classe rica defende-se com suas riquezas e tem men necessidade da tutela da Estado. A classe pobre, pelo contrário, sem riquez para defender-se das injustiças, conta principalmente com a proteção Estado. E, como os trabalhadores pertencem em geral à classe pobre, o Esta deve dar a eles um proteção especial" (Leão XIII, Encíclica Rer Novarum, 1891). (67) 194 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 195 "utilidade" da instituição subvencionada, no primeiro caso; e às "qualidades" do artista, do pesquisador ou do atleta, no segundo .70 No campo da administração, o recrutamento de funcionários, por exemplo, só pode ser feito com base na "capacidade" dos candidatos e, por isso, o critério dos concursos, como meio idôneo de avaliação dessa competência, é, como vimos,71 exigido por lei e até por disposição constitucional. A violação desse preceito de justiça distributiva confere aos particulares interessados o direito de recurso, na esfera administrativa e judicial. Finalmente, a fixação dos impostos e sua igualdade proporcional tem seu fundamento principal na "capacidade contributiva" ou "riqueza" do contribuinte. A Constituição brasileira, no § 1.° do art. 145, dispõe expressamente: "Sempre que possível os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à Administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte". 5.2 Comunidade familiar Sobre a aplicação da justiça distributiva à comunidade familiar, devem ser considerados dois pontos: a) os direitos assegurados à família, dentro da comunidade política; b) as exigências da justiça distributiva dentro da comunidade familiar." A respeito do primeiro ponto podem ser mencionados diversos documentos internacionais com a Declaração dos Direitos da Família, 13 a Declaração Universal dos Direitos do Homem,74 o Código Social de Malines. É deste último documento a seguinte síntese de direitos: "A família tem direito, no seio da sociedade civil, à justiça distributiva. Os impostos, os encargos, as tarifas, as subvenções, auxílios e pensões devem ser estabelecidos não em função do indivíduo isolado, mas em função da família".75 Entre os direitos da família assegurados pela legislação brasileira, podem ser mencionados: a) os constantes dos preceitos constitucionais: "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" (art. 226). "O casamento é civil e gratuita a celebração" (art. 226, § 1.°). "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (art. 227). "A educação, direito de todos, é dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 205); b) as disposições do Código Civil, relativas ao Direito de Família (arts. 180 a 484) e à Sucessão (arts. 1.572 a 1.805), que disciplinam o casamento, as relações de parentesco, a tutela e curatela, a sucessão; c) o salário-família, pago ao trabalhador proporcionalmente ao número de filhos menores, com o objetivo de "assegurar à família uma participação mais eqüitativa na redistribuição da renda na cional";" '7" Feita em Lille, em 05.12.1920. `74) Art. 16: "Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de Art. nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado" (Origem dos direitos dos povos, p. 223). 75' "Código Social de Malines", da União Internacional de Estudos Sociais, n. 30. (76' Franco Montoro, "Salário-família", Promoção humana do trabalhador, Rio, Agir, p. 23. V. art. 7.', Xii, da Constituição e Lei 4.266, de 03.10.1963. Deveres do Estado para com a família "0 Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e ace às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difu das manifestações culturais" (art. 215 da CF). "É dever do Estado fomen práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um..." 217 da CF). "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científiC a pesquisa e a capacitação tecnológicas" (art. 218 da CF). V. item 3.3 do presente capítulo. Sobre justiça distributiva à família, v. Dabin, La philosophie de Vord juridique positif n. 90 a 93, e 107; G. Renard, Théorie de l'institution, 124, 244 e 475; Faidherbe, La justicia distributiva, cap. li, p. 25 e ss.; P Beltrão, Família e política social; Ruy Sodré, Amparo à família pela legíslaF social; Francisco de Paula Ferreira, O fortalecimento da instituição familiar Rio, Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, 1966; Moacyr Cardoso Oliveira, A legislação social na América Latina, especialmente em se aspectos familiais; Estanislau Fischlowitz, Proteção social à família, Rio, Fun Getúlio Vargas, 1963. (71) (72) 196 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 197 d) as deduções discais para efeito de pagamento de imposto de renda, proporcionalmente aos encargos de família;" e) as medidas destinadas a promover a execução de planos de urbanismo e habitação para assegurar à família seu direito à casa;78 f) leis e medidas administrativas orientadas no sentido de facilitar a educação e o ensino em todos os níveis;79 g) medidas de legislação social e previdenciária, como o descanso remunerado da gestante antes e depois do parto, sem prejuízo do emprego e do salário (art. 7.°, XVIII, da Constituição), bem como dos, dias concedidos ao pai para acompanhar o nascimento do filho - a chamada licençapaternidade (art. 7.°, XIX, da Constituição); a pensão em caso de morte, que tem, em regra, a família como beneficiária; - e os demais benefícios concedidos em vida ao empregado visam à manutenção dos meios de subsistência pessoal e familiar; h) finalmente, as disposições do Código Penal, que definem os crimes contra a família (arts. 235 a 249) e estabelecem as penas para essas transgressões. Passemos ao segundo ponto: deveres da família para com seu membros . A existência de relações de justiça distributiva dentro da família é contestada por alguns autores." Além das razões indicadas no item 2 do presente capítulo, alegase que a justiça requer dualidade de pessoas que] sejam distintas física e moralmente, o que n ocorreria na família, em que o filho é algo do pai (filius est aliquid patris). E o que é do filho é do pai." Essa doutrina é de difícil aceitação na época atual, em que os, vínculos da família não apresentam a mesma intensidade do passado. De qualquer forma, como observa Faidherbe, o que se considera na,,: justiça distributiva é a relação da "comunidade" com seus membro, a do "pai" e a figura que interessa não é propriamente, mas a chefe de família, que representa a comunidade. No direito moderno é incontestável a existência de relações de justiça distributiva no seio da família. Entre outras, duas aplicações importantes podem ser apontadas: 1. A obrigação de fornecer as utilidades essenciais, como alimentação, roupa, medicamento etc., com critério proporcional à "necessidade" de cada um. "Podem os parentes exigir uns dos outros os alimentos de que necessitam para subsistir" (art. 396 do Código Civil). Esse, aliás, é o exemplo citado por João de S. Tomás, para explicar a igualdade proporcional da justiça distributiva: "O pai de família, que distribui roupa a seus filhos, não dá o mesmo a todos, mas roupa pequena aos menores e maior aos maiores, a cada um conforme o seu tamanho" .S2 Trata-se de um dever estrito (debitum legale) e, portanto, exigível: as legislações contemporâneas asseguram aos interessados o direito à ação de alimentos." 2. A herança da distribuição dos bens patrimoniais após a morte dos parentes é outro exemplo. Com maior ou menor extensão, e preceitos variáveis, as legislações estabelecem que a herança se reparte proporcionalmente entre os herdeiros, com base no "grau de parentesco". Aos interessados se assegura o direito à ação em juízo. E também, proporcionalmente a seu quinhão, cada herdeiro contribui para as despesas da sucessão." 5.3 Empresa moderna Haverá relações de justiça distributiva no campo da empresa? Muitos negam a possibilidade de aplicação da justiça distributiva à empresa econômica. Dentro de uma perspectiva individualista, con (82j João de S. Tomás, Curs. Theolog., III, q. 21, disp. 6, art. 4. O direito brasileiro assegura ao filho igualdade na distribuição dos bens dos pais, estabelecendo que estes não poderão vender àqueles seus bens, sem expressa autorização dos demais filhos (art. 1.132 do Código Civil). A troca de valores desiguais entre pais e filhos sem consentimento expresso dos demais também é proibida, conforme o art. 1.164, II, do Código Civil. "Deixar, sem justa causa, de prover à subsistência do cônjuge, ou de filho menor de dezoito anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou valetudinário, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento da pensão alimentícia judicialmente fixada deixar sem justa causa de so ,,,correr descendente ou ascendente, gravemente enfermo: Pena - detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa, de mil a dez mil cruzeiros (art. 224 do Código Penal). V. também Lei de Alimentos, n. 5.478, de 27.07.1968 e art. 5.°, LXVII, da Constituição Federal, que determina prisão civil ao devedor de alimentos que não os paga. V. art. 1.572 e ss. do Código Civil. "Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitese, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários" (art. 1.572); "O herdeiro pode requerer a partilha, embora lhe seja defeso pelo testador" (art 1772); "A herança respondel d díid .. peo pagamentoasvas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que, na herança, lhes coube" (art. 1.796). Deveres da família para com seus membros (83) (77) (78) VV regulamento do Imposto de Renda, Dec. 85.450, de 04.12.1980. A 21 - da Constituição e Lei 4.380, de 21.08.1964, que dispõe so 1 L.11 , , a política nacional de habitação. Art. 70 e ss. do Código Civil, que dispõe sobre o bem de família. Constituição Federal, art. 212, § 5.°. É também o caso da lei que inste o chamado "salárioeducação". É esse o pensamento comum dos autores antigos, reproduzido por gr número de tratadistas modernos. V. Faidherbe, La justicia distributiva, II, p. 25 e ss.; Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, n. 39. "Quod est filii, est patris, ideo non est proprie justitia patris ad filium',, Tomás, II, II, q. 57, a. 4, ad 1. (79) (80) (84) 198 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 199 sideram a empresa como um conjunto de relações simplesmente contratuais. E, como todas as relações entre particulares, regidas pela justiça comutativa." E certo que a empresa ou empreitada, tal como a definia o direito antigo, era um simples contrato interindividual e, como tal, regulado pelos princípios da justiça comutativa. Mas a empresa econômica moderna é outra coisa. Com razão, escreveu Renard: "A empresa não é um simples feixe de contratos, governados pela justiça comutativa - do ut des -, mas uma instituição regida também pela justiça distributiva e social - "suam cuique tribuere dignitatem".86 Essa é, também, a observação de Ripert, depois de lembrar o caráter comunitário da instituição, acentuado por François Perroux: "No agrupamento de forças realizado pela empresa, o fim visado assume capital importância. O fim é o bem comum dos homens que cooperam na empresa. Não é mais somente a remuneração do capital pelos lucros realizados, é também a vida assegurada aos homens que trabalham na empresa e à família desses homens. Capital e trabalho devem encontrar na empresa satisfação, mas de natureza diferente, e, se a empresa não puder atender a essa exigência, não é digna de "O direito clássico não conhece senão dois meios de coordenar forças: a sociedade ou a locação. Se os contratantes convencionam agir em conjunto, no pé de igualdade, trazendo quotas, que aliás podem ser de natureza diferente, há sociedade. Se um dos contratantes procura o capital ou trabalho de outrem mediante preço convencionado, há locação de bens ou de serviços, ou algum outro contrato gerador de obrigação. Se se aumenta o número de interessados, haverá justaposição de grande número de contratos individuais e eis tudo. Foi sobre essas regras civis que se criou a empresa capitalista". G. Ripert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, n. 125, p. 288. G. Renard, La théorie de , lic. 8.°, p. 464. No mesmo sentido, escreve Delos: "Lorsque 1'entreprise économique cesse d'être 1'exploitation d'un patrimoine familial pour devenir une institution sui generis indépendante - telle Ia grande entreprise moderne - il semble que cette fois ses divers membres y énètrent en hommes, sujets de droits, assujettis également à Ia loi du travail et de Ia subsistance. Dês lors, leurs relations seront régies par la justice; et cette égalité n'empêche pas plus de distinguer et de hiérarchiSet les droits selon les fonctions, que l'égalité des citoyens ne met obstacle à l'établissement de Ia hiérarchie sociale et, à Ia différenciation du droit selou les fonctions" (La justice, p. 192). Esse é também o pensamento de Luiz José de Mesquita, "Direito disciplinar do trabalho". Uma interpretação institucionalistu do Direito do Trabalho, Saraiva, 1950, A instituição empresa-econômica e a participação da força trabalho em seu direito constitucional, 1948; RobeIW Barreto Prado, Tratado de Direito de Trabalho, v. 2, Ed. R. dos Tribunais, 1967; L. Lebret, Paul Viau e outros, Propriedade e socialização, Porto' Figueirinha, 1964. viver. Não o é igualmente, se não apresenta vantagens para a sociedade dos homens".87 Diante desse quadro, há dois tipos de aplicações da justiça distributiva à empresa moderna: 1. deveres da sociedade política para com a empresa; 2. deveres da empresa para com seus membros. No conjunto dos deveres do Estado em relação à empresa, situam se, entre outros, os seguintes direitos assegurados pela legislação brasileira: a) os direitos e garantias constitucionais; Deveres entre eles, a atual Constituição estabelece: "A do Estado para com ordem econômica, fundada na valorização do as empresas trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna..." (art. 170, caput). "É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei" (parágrafo único do art. 170). "Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei" (art. 173, caput). "A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias" (§ 1.° do art. 173). "As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado" (§ 2.° do art. 173). "A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" (§ 4.° do art. 173); b) os direitos e prerrogativas estabelecidos pelo Direito comercial: estatuto do comerciante e das sociedades comerciais, sociedades anônimas, em comandita, de capital e indústria, em nome coletivo etc., registros públicos, contratos comerciais, títulos de crédito em geral, letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, conhecimentos, propriedade industrial, fundo de comércio, falência, concordata; c) as medidas legais e administrativas de proteção alfandegária ou tributária em favor da indústria nacional; d) as medidas fiscais relativas a tributação que se subordinam aos princípios da proporcionalidade e justiça;" (88) G• Ri er asa, P t, ob. cit., n. 126, p. 291. V. nota 77 supra. (85) 200 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 201 e) no plano da legislação social ou do trabalho: o direito de estabelecer o regulamento da empresa, o direito de organização e representação da categoria econômica (sindicatos, federações e confederações), com prerrogativas de impor contribuições e atuar como órgão consultivo e técnico de colaboração com o Poder Público (art. 511 e ss. da Consolidação das Leis do Trabalho); f) as medidas de proteção representadas pelas disposições do Código Penal que definem os crimes contra a propriedade industrial (violação de privilégio de invenção e de marca), concorrência desleal, violação de segredo de fábrica ou negócio (art. 184 e ss. do Código Penal). Em relação aos seus membros, tem a empresa obrigações de justiça distributiva, que decorrem, como Deveres comunitário que da empresa vimos, do caráter institucional e a mesma vem assumindo nas transformações do para com direito moderno. seus membros Entre essas obrigações, que vêm recebendo;, a garantia da legislação nos Estados modernosi_ podem ser mencionadas: a) o direito dos empregados a uma remuneração que lhes permita,, viver dignamente com sua família; inclui-se, aí, além do salário mínimo, a exigência do "salário-família", cujo pagamento a legislação brasileira atribui à empresa, mediante o sistema de compensações;" b) estabilidade no emprego, assim definida pela Constituição brasileira: "Relação de emprego protegida contra despedida arbitrária. ou sem justa causa como pagamento de indenização compensatória e o recebimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço paga ao trabalhador despedido"." c) a participação do empregado na vida da empresa, através da tríplice modalidade de participação na gestão, nos lucros ou na propriedade;` sobre o assunto a Constituição assegura a "participação som:. nos lucros ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão de empresa conforme definido em lei (inciso XI do art. 7.°); entre essas modalidades a legislação vem assegurando as seguintes; d) comissões de empresa, integradas por representantes dos empregados ou destes e do empregador, para participar em aspectos diversos da administração; conselhos desse tipo foram instituídos por lei na Alemanha, Itália, França, Inglaterra, Holanda; no mundo socialista pode ser citada a experiência da "autogestão" na Iugoslávia; no Brasil, algumas empresas têm instituído espontaneamente tais Conselhos; o Dec. 7.036/44 tornou obrigatória a criação de uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) em todas as empresas de mais de 100 empregados e a Constituição atual estabeleceu a eleição obrigatória de um representante dos empregados junto à direção das empresas de mais de 200 empregados;" e) modalidades de participação nos lucros, que constitui no Brasil preceito constitucional, dependente de regulamentação e norma adotada, espontaneamente ou em virtude de acordo, em algumas empresas; f) participação na propriedade, através de ações de trabalho, distribuição de ações ou outras modalidades, com o objetivo de tornar os empregados co-proprietários da empresa e associados solidários no processo de produção. 5.4 Comunidade internacional Na comunidade Internacional, enfim, podem ser indicadas importantes exigências da justiça distributiva. A primeira delas é, certamente, a que diz respeito à própria existência de uma comunidade internacional, capaz de assegurar a todos os Estados uma participação efetiva no bem comum em escala mundial. A História, como observa Le Fur, nos mostra o direito transpondo sucessivamente o círculo estreito da "família", da gens, da "cidade antiga'", das grandes "senhorias feudais", para se impor a círculos cada vez mais vastos, até chegar ao "Estado". Resta uma última etapa a vencer, para que ele se imponha ao próprio "Estado". Assistimos atualmente, e é o que faz a grandeza de nossa época, à passagem assegurar aos empregados sua participação na vida da empresa, seja ela privada ou pública, e tender a fazer da empresa uma verdadeira comunidade", diz a Encíclica Mater et Magistra de João XXIII, 1961. Nas empresas de mais de duzentos empregados, é assegurada a eleição de °m Cepresentante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores" (art. 11 da Constituição). (89) (90) (91) Lei 4.266, de 03.10.1963. V. salário família, A. Franco Montoro, Rio, Agi+ 1962. Art. 7.°, 1 e II, da Constituição Federal. Essa prerrogativa está na linha das transformações que se vêem operando fl0 direito da empresa em todo o mundo e foi solenemente afirmada, pela primeirã vez, por Pio XI, nos termos seguintes: "É mais adequado às condições presentes; da vida social temperar, na medida do possível, o contrato de trabalho c elementos tirados do contrato de sociedade. Isso já se começa a fazer, modalidades diversas, com vantagens para empregados e empregadores. Pa* essa forma, os empregados são chamados a participar na propriedade, N gestão ou nos lucros da empresa" (Encíclica Quadragesimo Anno, 1931). L em importantes documentos do pensamento social cristão, o princípio te^ sido reafirmado. "Como decorrência de sua dignidade pessoal, deve1È,' 202 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO do estado pré-jurídico da comunidade internacional inorganizado ao de uma "sociedade internacional" organizada." Cada vez mais a humanidade toma consciência do fato histórico e cultural da existência de um verdadeiro "bem comum mundial" que interessa solidariamente a todos os povos e de cujo reconhecimento efetivo depende o desenvolvimento e a paz. Nesse sentido, através de lutas, avanços e recuos, caminha a humanidade. Basta lembrar alguns fatos da história recente. Em nome de um pretenso direito de conquista das grandes potências, o século XIX assistiu à corrida colonialista representada pela ocupação da Argélia, pela França (1830), do Egito, pela Inglaterra (1882), de vastas regiões da África do Norte, Ocidental, Oriental e Meridional, pela Alemanha, Itália, França, Bélgica, Holanda, Inglaterra, ao lado das antigas África Portuguesa e Espanhola. Em conseqüência escreveu Charles Lange: "De 1880 a 1885 faz-se a partilha da África entre as grandes potências européias. E, em 1885, faz-se a partilha da Ásia entre a Rússia, o Império Britânico e a França" .94 Não faltaram pseudojuristas a procurar razões para justificar o procedimento na linha dos ensinamentos de Maquiavel,95 invocando o direito das armas ou pretensos "tratados de cessão" realizados com chefes de algumas tribos africanas. Mas não faltou, também, a condenação corajosa e a resistência inspiradas nos princípios de justiça e respeito à dignidade humana, conforme as lições de Vitória, ao oporse a pretensões semelhantes dos colonizadores do Novo Mundo em relação aos indígenas das Américas.9ó JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 203 E o século XX assistiu - como um dos fenômenos internacionais da maior significação nos últimos tempos - a desagregação dos grandes impérios coloniais da Inglaterra, França, Holanda etc., eo reconhecimento da independência dos novos Estados africanos e asiáticos. A ONU, constituída inicialmente com apenas 51 Estados, dos quais 22 da América, 19 da Europa, 7 da Asia e apenas 3 da África, teve, há pouco, 122 Estados-membros, assim distribuídos: 1. EUROPA: Albânia, Áustria, Bélgica, Bielorrússia, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Iugoslávia, Luxemburgo, Malta, Noruega, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido, Romênia, Suécia, TchecoEslováquia, Turquia, União Soviética. 2. ÁFRICA: África do Sul, Alto Volta, Arábia Saudita, Argélia, Botsuana, Burundi, Camerum, Centro-Africana, Congo Brazzaville, Costa do Marfim, Daomei, Democrática do Congo, Etiópia, Gabão, Gâmbia, Gana, Lesoto, Libéria, Líbia, Madagascar, Malavi, Mali, Marrocos, Mauritânia, Niger, Nigéria, Quênia, R. A. U., Ruanda, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Tanzânia, Tchad, Togo, Tunísia, Uganda, Zâmbia. 3. ÁSIA: Burma, Cambodja, Ceilão, China, Chipre, Filipinas, Iêmen, lêmen do Sul, índia, Indonésia, Irã, Iraque, Israel, Japão, Jordânia, Kuweit, Laos, Líbano, Malásia, Maldivas, Mongólia, Nepal, Paquistão, Cingapura, Síria, Tailândia, Ucrânia. 4. AMÉRICA: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominicana, El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Trinidad Tobago, Uruguai, Venezuela. 5. OCEANIA: Austrália, Nova Zelândia. É incontestável que a humanidade caminha em direção ao reconhecimento de uma comunidade mundial. Mas a efetiva subordinação das relações internacionais às exigências da justiça distributiva ainda não foi alcançada. Quais são essas exigências? De forma semelhante ao próprio Estado, a organização mundial tem, em relação a seus membros, uma dupla função jurídica e social. sm el assentimiento dei pueblo. Y probado así que en tales eleciones y aceptaciones no concurrirían los requisitos necesarios para que tales elección y transmisión fuesen legítimas y válidas, semejante título considerado en si m(smo no es idóneo ni bastante para ocupar aquellos provincial" (Ap. El Padre Vitoria y el Der. Int. de Salinas Baldivieso, p. 84). (93) (94) Le Fur, Précis de Droit International Public, Paris, 1931, Dalloz, p. 550. ° V. Haroldo Valladão, Democratização e socialização do Direito Internacional, Rio, José Olímpio, 1961. "As conquistas são justas e legítimas ou injustas e ilegítimas. Denomino justas' e legítimas não apenas as que se fazem por tratados e convenções (que o uso' denomina mais aquisições que conquistas), mas, ainda, aquelas que se fundam no direito das armas (que são as que se chamam propriamente conquistas)" V. Maquiavel (1469-1527), Discursos sobre Tito Lívio. Sobre a absoluta invalidada jurídica desses pactos de protetorado e outros "cessão" entre as Potências e os chefes de nações ou tribos africanas, Haroldo'± Valladão lembra a argumentação, irrespondível, já apresentada por Vitória`: "Semejante título no es idôneo. Ante todo, y en primer lugar, tendría que:::. probarse que no existieron miedo y ignorancia, defectos que vician todas las decisiones. Por lo contrario, uno y otro existirían grandemente en el caso de tales aceptaciones. Aquellos bárbaros no sabrían lo que hacían ni en realidad entenderían lo que quieren los espanoles. Y estos se hallaban armados y fuertes ante turbas inermes y pusilanimes. Ellos tenían, por otra parte, como antes se ha dicho, verdaderos Senores y Príncipes, y su pueblo no podría sin causa razonable elegir nuevo dueno, porque esto sería en dano dei antíguo, dei mistno modo y por Ia inisma razón que éste no podría consagrar nuevo Príncipe (96) 204 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 205 A função jurídica consiste fundamentalmente na garantia dos direitos das diversas nações e, portanto, na defesa da paz internacional. A função social, na promoção de medidas que assegurem um mínimo de bem-estar a todos os povos da terra, tarefa de que a ONU se desincumbe diretamente ou através de instituições especializadas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a FAO (para a alimentação e a agricultura), a UNESCO (para a educação, a ciência e a cultura), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre outras. No tocante à função jurídica, qual o critério exigido pela justiça?', Evidentemente, o da igualdade fundamental dos Estados, declarado, aliás, solenemente na Carta das Nações Unidas: "A Organização é fundada sobre o princípio da igualdade soberana de todos os seus membros". Esse princípio, entretanto, é desrespeitado na própria estrutura da ONU com o direito de veto assegurado às grandes potências, até mesmo em causa própria, e nas hipóteses mais graves, como as de ameaça contra a paz e os atos de agressão. Assim, como diz Hildebrando Accioly, "se um dos grandes Estados-membros é o próprio violador das obrigações contidas na Carta das Nações Unidas, ele poderá impedir, com o seu veto, que o Conselho de Segurança, ou seja, a Organização, possa legalmente adotar a seu respeito qualquer medida coercitiva; isto é, uma grande potência agressora pode, com o seu veto, paralisar a ação das Nações Unidas. O que importa em dizer que a Organização só poderá dirigir conflitos sérios entre pequenas nações, e isto mesmo se por trás de uma destas não se colocar uma grande potência que queira usar do direito de veto. Muito relativa é, pois, a proteção oferecida pela Organização das Nações Unidas aos pequenos Estados, ou à própria causa da paz. Aliás, quem mais ameaça esta são as grandes potências, que dispõem de recursos para isto, e não as pequenas".97 Relativamente à função social, especialmente no tocante prestação de benefícios pelos organismos internacionais de assistência, educação, saúde etc., o critério exigido pela justiça é o de unhi distribuição proporcional, fundada especialmente no grau de necessidade dos diferentes Estados ou regiões. Apesar das dificuldades e das deficiências normais de uma obth desse vulto, é preciso reconhecer que, de uma forma geral, ess critérios vêm sendo respeitados. Como diz Haroldo Valladão, evol do do "individualismo" para o "solidarismo", a humanidade caminha firmemente para o reconhecimento dos direitos no plano mundial e a organização efetiva da comunidade internacional. Nesse sentido são as lições de François Perroux 98 e de Gunnar Myrdal 99 apontando a "mundialização" da economia moderna como solução indispensável para suas crises, as de Lebret 10° e de Toynbee 101 indicando a solidariedade internacional como caminho necessário da sobrevivência e da paz, na mesma linha da manifestação dos grandes estadistas e das lideranças autênticas de todos os países. 6. Outras formulações 6.1 A justiça distributiva no pensamento de Aristóteles G. Dei Vecchio, A justiça, Saraiva, 1960, p. 48. Aristóteles (como se vê pela discussão mencionada no capítulo anterior) distingue a justiça particular em mais de uma espécie. A primeira espécie é a justiça distributiva que se aplica na repartição das honras e dos bens, e tem em mira que cada um dos consorciados receba, dessas honras e bens, uma porção adequada a seu mérito. Por conseguinte, explica Aristóteles, não sendo as pessoas iguais, tampouco terão coisas iguais. Com isto, é claro, não faz mais do que reafirmar o princípio da igualdade: princípio que seria precisamente violado, nesta sua função específica, se méritos desiguais recebessem igual tratamento. A justiça distributiva consiste pois numa relação proporcional, que Aristóteles, não sem artifício, define como sendo uma proporção geométrica. A segunda espécie de justiça é a igualadora, corretiva ou sinalagmática, isto é, reguladora das relações recíprocas. Também aqui se aplica o princípio da igualdade, mas em forma diversa da que vimos atrás, pois se trata apenas de medir impessoalmente o dano e o ganho, ou seja, as coisas e as ações em seu valor objetivo, considerando-se como iguais os termos pessoais. Segundo Aristóteles, tal medida teria seu tipo peculiar na proporção aritmética. Esta espécie de justiça tende a fazer com que cada uma das duas partes, que se encontram em relação, venha a encontrar-se relativamente à outra em condição de paridade: de sorte que nenhuma tenha dado nem recebido mais nem menos. Daí a definição de tal forma de justiça como ponto intermédio ou meio entre o dano e o ganho. Contudo, estes termos devem ser entendidos em sentido lato, aplicando-se não só às relações voluntárias ou contratuais, como também às relações que Aristóteles denomina involuntárias, e que provêm de delito; pois (9B) François Perroux, L'économie du XX.`—' siècle, Paris, Presses Universitaires de France, 1964; "Un problème urgent et précis surgit du rapprochement d'une mot qui designe le procédé, par excellence, de l'economie du XIX.` siècle; le marche, et d'une épithète qui évoque des changements décisifs qui aPPartiennent au XX." siècle; mondial" (cap. VII, p. 277). ~~ Gunnar Myrdal, Perpectivas de uma economia internacional, Rio, 1967. J. Lebret, Suicide ou survie de l'occidente?, Paris, Économie et Humanisme, 0 1958; Manifesto por uma civilização solidária. Arnold Toynbee, A Study of Story. 1971 Hildebrando Accioly, A paz mundial e a Organização das Nações U São Paulo, 1946, p. 11. 206 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 207 que nelas se exige uma certa igualdade, ou seja, uma exata correspondência entre o delito e a pena. A justiça compensativa ou corretiva (que pode igualmente apelidar-se retificadora, igualadora ou eqüitativa) é válida para toda espécie de permutas ou de interferências, tanto de natureza civil como penal. Neste ponto, sempre segundo Aristóteles (cujo pensamento parece não haver sido sempre bem compreendido neste particular), há lugar para ulterior subdistinção. A justiça compensativa pode ser encarada sob dois aspectos: ou enquanto determina a formação das relações de permuta segundo certa medida, e apresenta-se então como justiça comutativa; ou enquanto tende a fazer prevalecer tal medida no caso de controvérsias, mediante a intervenção do juiz, e apresentase então como justiça judiciária. Em matéria de delitos, a justiça compensativa exerce-se, por necessidade, imediatamente na forma judicial, porque nesta se visa justamente reparar, contra a vontade de uma das partes, um dano injustamente ocorrido; ao invés, em matéria de permutas ou de contratos, ela dá norma, antes de mais nada, aos mesmos contraentes, e pode também deixar de ser necessária a obra retificadora do juiz. Tudo bem ponderado, não faltam motivos de crítica nesta doutrina. Pode notar-se, por exemplo, que Aristóteles considera a justiça penal mais sob um aspecto privado que público, como se sua missão se limitasse a restabelecer o equilíbrio perturbado entre o ofensor e o ofendido, descurando a outra e mais essencial relação, pela qual o delinqüente ofende não tanto um particular, quanto a ordem jurídica em geral; todavia é a esta que deve, em primeiro lugar, responder, e por ela ao Estado, que a personifica. A diferença entre o ressarcimento do dano e a pena é aqui como que anulada ou eliminada; isso explica o motivo por que Aristóteles adscreveu a justiça penal, juntamente com a que regula as relações privadas, à justiça igualadora ou sinalagmática, mais do que à distributiva. Tal anomalia foi notada, em certo modo, por Pufendorf, e, em seguida, de modo especial, com bastante maior clareza, por Vico. Outro defeito, acaso mais profundo, da teoria aristotélica consiste em que, segundo ela, a justiça compensativa ou reguladora das relações contratuais teriN base objetiva na igualdade dos valores; ao passo que o elemento essencial nos, contratos é antes o subjetivo, constituído pelo consenso mútuo, do qual depende, em princípio, a determinação dos valores. Reconhecer a validade dos contrato& significa atribuir aos sujeitos contraentes a igual dignidade de pessoa, conceito, este que, até certo ponto, se pode considerar compreendido ou subentendido teoria aristotélica, mas que não encontra nela nenhuma afirmação explícita. Pode ainda observar-se que as várias espécies de justiça, formuladas Aristóteles, não são, ou ao menos não parecem ser, deduzidas rigorosamente um só princípio, segundo uma necessidade lógica própria; mas são descri sucessivamente, sem que delas se demonstre a íntima conexão e a referência uma unidade substancial. Só por este processo defeituoso se logra explicar curioso fato, que ainda hoje é objeto de discussão entre os intérpretes, a saber se Aristóteles teve em mente fazer uma bipartição, e não antes uma tripartiçã ou quadripartição da justiça. A tentativa de Grócio e de Vico, para explicar diferença entre a justiça "eqüitativa" ou compensativa (sinalagmática) e justiç "reparadora" ou distributiva, pelo fato de a primeira ter lugar nas relações en iguais, e a segunda nas relações entre desiguais (isto é, entre superior e inferior pode acaso ser encarada como explicação de um pensamento implícito e Aristóteles; e, em todo caso, representa um progresso, ao menos sob o aspes metodológico, na medida em que procura aclarar o que no pensamento aristotélic e na tradição nele fundamentada, existia ainda de obscuro. Mas a distinção abstra entre sociedade de iguais e sociedade de desiguais exige um complemento; para este dirigiu Vico a atenção, ao declarar que as relações de coordenação e de subordinação, com expressões de uma só exigência lógica, na realidade se pressupõem reciprocamente. "Et justitia rectrix in aequatrice, in rectrice inest aequatnx. Ubi rectrix justitia regnat, ibi aequalitas inter rectos celebratur; et ubi exuitur aequalitas, rectrix tandem extinguitur." Também a relação de desigualdade ou de subordinação subsiste efetivamente, pelo fato de se apoiar num reconhecimento recíproco do superior e do inferior. Falhando esse reconhecimento, caducaria a autoridade do superior. Por conseguinte, o que há de essencial em toda espécie de justiça é o elemento de intersubjetividade, ou de correspondência nas relações entre vários indivíduos, que, em derradeira análise, se encontra onde, de início, parece ser negado. O mérito mais relevante da teoria aristotélica, quaisquer que sejam as imperfeições particulares que nela se notem, consiste em haver salientado propriamente este elemento (sem dúvida já entrevisto pelos pitagóricos, mas, ao que parece, não ainda declarado expressamente por eles, nem desdobrado em desenvolvimentos sistemáticos). Aristóteles, seguindo os vestígios dos pitagóricos, logrou oficializar o significado básico e específico da justiça: o que aparece manifesto, principalmente naqueles passos, onde lhes atribui o caráter da alteridade, caráter que posteriormente foi reafirmado por todos quantos meditaram profundamente sobre a matéria, desde S. Tomás e Dante até Rosmini e Petrone. E se o mesmo Aristóteles não levou mais por diante a análise neste sentido, deixando às idades subseqüentes a tarefa de completar a determinação dos caracteres distintivos da juridicidade, isso depende, ao menos em parte, do fato de em sua mente estar ainda vivo o outro conceito, mais lato, da justiça como sinônimo da virtude em geral. A esta confluência e alternância dos dois conceitos, um mais compreensivo e genérico, que podemos denominar platônico, e o outro mais preciso e específico, que podemos chamar pitagórico, se devem atribuir as incertezas, que por vezes se notam na obra de Aristóteles e de seus sequazes e discípulos: como, por exemplo, naquele passo dos Magna Moralia, onde até parece ser renegado o caráter da alteridade. Todavia não se extraviaram os frutos da pesquisa aristotélica; antes, foram transmitidos através dos séculos e considerados, como dissemos, como que definitivos, com acordo quase unânime de juristas e filósofos. Assinaladamente o conceito da justiça distributiva, que, como espécie mais elevada da justiça, compendia em certo modo todos os caracteres desta, permaneceu imutado na fórmula da igualdade proporcional segundo o mérito; firmando-se justamente neste sentido a máxima de a cada um se dever atribuir aquilo que lhe compete, e arvorando-se esta máxima em fundamento da jurisprudência. Quase não vale a pena recordar aqui a famosa definição de Ulpiano: " Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi". eQuem pensar no desenvolvimento orgânico que este conceito teve no sistema da jurisprudência romana, bem como na riqueza e originalidade das aplicações feitas pelos juristas romanos a todas as espécies de atividades e relações humanas, pode ser levado a considerar este conceito como produto peculiar e característico do gênio romano. Com efeito, entre os romanos, muito mais que entre os gregos ou qualquer outro povo, se distinguiram e delinearam em forma autônoma, no transcurso de vasta e complexa experiência histórica, os elementos constitutivos da Juridicidade (ratio juris). Não resta dúvida de que a concepção romana do uum, ou melhor, do jus suum, como soa o texto há pouco citado, é mais rigorosa precisa do que a grega, segundo a qual o próprio de cada um não é tanto o que alguém pode exigir quanto o que lhe convém, em razão de certa proporção 208 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 209 ou medida, independentemente de sua vontade. Pelo contrário, na mente romana é sempre claro o intuito da bilaterialidade essencial da relação jurídica; donde o atribuir alguma coisa juridicamente a alguém equivale a reconhecer nesse alguém uma pretensão capaz de se fazer valer para com outrem, e nos outros uma obrigação correspondente. Os juristas romanos deram provas de possuir esse intuito da razão social do justo, sobretudo na concreta resolução dos casos práticos • na construção positiva dos institutos, subentendendo freqüentemente, ou enunciando só de modo imperfeito, os princípios teóricos gerais que, de fato, inspiravam a obra deles. Contudo tais princípios foram, em substância, os mesmos, anteriormente discutidos e formulados pelos gregos, e nada merece mais atenção do que esta convergência, historicamente verificada, entre a especulação grega e a experiêncig romana, em matéria de direito. Os romanos aceitaram a mesma noção fundamental de justiça que lhes fora oferecida pelas escolas filosóficas gregas: aceitaram e, ao mesmo tempo, valorizaram-na, mercê da maior determinação resultante de suas elaborações técnicas dos institutos particulares, ou seja, da visão analítica da rabo juris. Deste modo, as duas tradições, grega e romana, se fundiram numa só, que dominou e continua dominando incontrastavelmente o pensamento jurídico de todo • mundo civil. 6.2 Jurisprudência: caso julgado com base na justiça distributiva Acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais sobre a igualdade proporcional na partilha de bens em inventário.' Imóvel avaliado há sete anos e o preço depositado sem juros e correção monetária; desfigurado o seu valor real, de vez que o processo inflacionário minou • valor da moeda, motivo pelo qual houve deterioração no valor do dinheiro com a conseqüente valorização do imóvel. Para que boa a partilha, é preciso tentar a maior igualdade possível: significa dar materialmente a cada um a real parte do imóvel, e de móvel, consideran4q • seu valor, natureza e qualidade, como quer o art. 1.775 do CC. Anulação da partilha para observância das regras legais de igualdade de` quinhões. Apelação Cível 8.234, Formiga. Apelantes: José Pereira Costa Filho e ou~' Apelada: Margarida do Nascimento Costa. Rel.: Juiz Mendes dos Reis, j. em 11.12.1977, TAMG. ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cívol 8.234, da comarca de Formiga, sendo apelantes José Pereira Costa Filho, Joéu Benute de Oliveira e José Amaro da Silva e apelada Margarida do Nascimento Costa: Acordam, em Turma, a Segunda Câmara Civil do Tribunal de Alçada AiF: Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls. e fls. e se~~ divergência na votação, dar provimento, pelos fundamentos constantes das inc l notas taquigráficas, devidamente autenticadas, que ficam fazendo parte finte dessa decisão. Custas na forma da lei. Belo Horizonte, 11 de fevereiro de 191° O Sr. Juiz Mendes dos Reis: "A questão versa sobre desigualdade partilha. O inventário foi requerido em 01.02.1968 e somente agora 1w, ultimado, constando dos bens do espólio um imóvel, móveis e dinheiro descontado. Insurgem-se os apelantes contra a partilha que, no entender dos mesmos, foi desigual e injusta, porque o imóvel foi avaliado em 15.07.1968 e o dinheiro foi depositado em 15.07.1975, sem juros e correção monetária. Neste interregno de tempo, o valor do imóvel foi tri ou quadruplicado, como é fato público e notório em toda a parte e, conseqüentemente, na comarca de Formiga. Além disso, o pedido de partilha de fls. 78-79 foi deferido sem audiência dos interessados que, posteriormente, discordaram na mesma à fl. 84. Não foi obedecido o art. 1.022 do Código de Processo Civil. Quanto às alegações de ser a inventariante meeira ou não, foge à sua discussão, porque é princípio de que a palavra da inventariante merece fé até prova em contrário e esta prova não foi feita, com indiscutível clareza, nos autos. Pelos princípios legais do art. 1.775 do Código Civil `no partilhar os bens, observar-se-á quanto ao seu valor, natureza e qualidade a maior igualdade possível'. É angustioso o problema da igualdade da partilha no campo doutrinário. Mas, no caso de um espólio diminuto, com um só imóvel, móveis e dinheiro, não há possibilidade de uma partilha com igualdade absoluta, com comodidade dos herdeiros e prevenção de litígios futuros. A velha jurisprudência do egrégio Tribunal de Justiça do Estado firmou que: `É nula a partilha de bens que se deterioram depois da avaliação, devendo os mesmos, em tal hipótese, sofrer nova avaliação pela qual haja igualdade na partilha' (in Forum, v. 6, p. 61, apud Prática Civil, de Oliveira Filho, p. 370, v. 15). Houve deterioração no valor do dinheiro, com a conseqüente valorização do imóvel. Como foi feita a partilha, evidente que não foi respeitada a comodidade e, conseqüentemente, deve o juiz mandar que se proceda a outra partilha, em que sejam observadas aquelas condições. Na partilha é preciso observar-se a maior igualdade que consiste em dar, a cada um, parte do imóvel e no imóvel, no bom e no mau, no certo e no duvidoso. Somente o fato de a viúva residir no imóvel não lhe dá o direito de pleitear a sua totalidade, com evidente prejuízo dos demais. Deve a partilha ser feita com a absoluta igualdade material, principalmente no caso em tela, em que não se evitaria a prevenção de litígios futuros, pois estes já estão evidentes. Na igualdade material poderão os herdeiros fazer a venda judicial, extinguir a comunhão por via de ação própria para se decidir sobre o destino da coisa indivisível. Os herdeiros apelantes não concordam que a casa e terreno fossem atribuídos somente à viúva, por motivos ponderáveis, pois que, ao passo que o imóvel aumentou inflacionariamente o seu valor, o dinheiro depreciou-se com a inflação desenfreada que, de 1968 para cá, vem minando o valor da moeda. Atendendo ainda aos ponderáveis fundamentos do parecer da douta Procuradoria, dou provimento ao recurso, para, cassando a decisão proferida com a homologação da partilha, torná-la nula, determinando que o Doutor Juiz determine que outra Partilha seja feita, observado o que dispõem as leis vigentes". O Sr. Juiz Xavier Lopes: "De acordo". O Sr. Juiz Gouthier de Vilhena: "Dou provimento à apelação, apenas para que se faça outra partilha, pois reconheço que a mulher casada, seja qual for o de bens do casamento, tem direito à metade do adquirido na constância do casamento, se resultante do esforço comum, como aqui o foi (Súmula 377; C. dos Santos, 5.' volume/55, Rev. For. 128/430, 118/424, 98/67). O marido era lavrador, donde se infere que somente seu trabalho seria insuficiente para adquiri-la. Esse reconhecimento pode se dar nos próprios autos 1') In Jurisprudência Brasileira, p. 145 a 146. 210 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA 211 do inventário do cônjuge pré-morto, por não envolver questão de alta indagação (cit. Rev. For. 98/67; art. 984 do CPC). A atualização do valor imobiliário se me afigura necessária para evitar a desigualdade dos valores dos quinhões, com a sua valorização e, em contrapartida, a deterioração da moeda". 7. Bibliografia ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, especialmente livro V, e Política. ASCOLI, Max. La giustizia. Pádua : Cedam, 1930. BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BRETHE DE LA GRESSAYE. lntroduction à 1'étude du droit. Sirey, 1947. CATHREIN, V. Filosofa dei derecho. Madri : Reus, 1940. -. Philosophia moralis. Friburgo : Herder, 1905. CÍCERO. De Republica. DABIN, i. Théorie générale du droit. Bruxelas : Bruylant, 1944. -. La philosophie de l'ordre juridique positif. Paris : Sirey, 1929. 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Conceito de justiça social Justiça social é o nome novo de uma virtude antiga - justiça geral ou legal - que Aristóteles estudou detidamente e exaltou nos seguintes termos: "Nem a estrela da manhã, nem a estrela vespertina são tão belas quanto a justiça geral".' Velho, de mais de 20 séculos, esse conceito é, entretanto, de vigorosa atualidade, Podemos dizer, quando se aproxima o ano 2000, que praticar essa justiça é despertar em nós o sentido social, que um século de individualismo quase destruiu. É considerar-se servidor do bem comum. E a intensidade com que o homem moderno volta-se para essa justiça, muitas vezes esquecida ou diminuída no passado, pode ser ligada à tendência para o social ou o coletivo de que fala Teillard de Chardin.2 O tema, contudo, está longe de ser pacífico. Muitos negam que a justiça social seja verdadeira justiça.' Outros recusam sua identificação com a tradicional justiça geral ou legal.' Outros, finalmente, não admitem Pontos a existência de deveres para com a sociedade ou controvertidos o bem comum, certos de que uma harmonia social se estabelecerá espontaneamente se cada um agir de acordo com seu próprio interesse-5 Comecemos por fixar os elementos que a caracterizam. Como as demais espécies de justiça, a social é, também, virtude que consiste em dar a "outrem" o que lhe é "devido", segundo uma "igualdade". Mas essas notas se apresentam com características próprias em cada espécie de justiça. Na social, a "alteridade" ou pluralidade de pessoas tem como sujeitos, de um lado, os particulares ou membros da sociedade (como devedores), e, de outro, a sociedade (como credora). O "devido" é a realização do bem comum, ou, mais precisamente, a contribuição de cada um para sua realização. E a "igualdade" que a orienta é de natureza proporcional ou relativa. Com esses elementos, podemos conceituar a justiça social como a virtude pela qual: - os membros da sociedade dão a esta - sua contribuição para o bem comum, - observada uma igualdade proporcional. A obrigação de assegurar condições de higiene e segurança no ambiente de trabalho, o pagamento de impostos, a subscrição compulsória de títulos da dívida pública e outras medidas exigidas pelo bem comum constituem imposições da justiça social. Desse conceito aproximam-se definições clássicas e modernas como as de Marrés:b "virtude pela qual damos à sociedade o que lhe é devido para promover o bem comum dos cidadãos"; Cathrein:' "virtude é o que inclina o homem a dar à comunidade aquilo que lhe e devido'; Desrosiers:8 "virtude que nos leva a promover o bem comum V• nota 64 ao cap. 1. (5) V "0 problema das dominações", V• item 3 do presente capítulo. e) Marrés, De justi tia n 2 (7),.. V. a) Cathrein, Philosophia moralis, n. 141. J B. Desrosiers, Soyons justes, 1.° v., 11 parte, cap. 1, p. 129. em seguida. (1) Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro V, cap. 1. (2) Teillard de Chardin, 0 fenômeno humano, IV parte. 214 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 215 da sociedade de que fazemos parte"; Vermeersch:9 "virtude que impe como devidos ao bem comum, os atos de outras virtudes exigidos d4 cidadãos, por alguma lei positiva ou por sua conexão necessária o bem comum". A denominação dessa virtude é um primeiro problema. Muitos autores sustentam que a justiça socigj não se confunde com a antiga justiça geral ou legal, mas tem objeto distinto. Entre nós, Eduardo" Lustosa estudou o assunto em trabalho intitulado "Justitia socialis - problemas terminológicos ao redor de um conceito", para concluir, depois de examinar as opiniões de Prum Schilling, Messner, Brucouleri, Pesch, Schuster e Tonneau, que' justiça social não é unívoca e independente, mas invade o campo ta duas espécies de justiça: a geral e a particular, sem ser absorvi* totalmente por elas; é um sincretismo de virtudes, mais do que una irtude em estado puro.` E Pesch afirma, expressamente, que a juste social é uma quarta justiça. Essa posição é inaceitável. Como veremos, pelo seu estudo, a justiça social abrange, realmente, atos das demais virtudes, mas te* objeto próprio e inconfundível, exatamente como ocorre com a justiça que os antigos denominavam geral ou legal. O objeto desta, diz S Tomás, comentando Aristóteles, consiste em "ordenar os atos de todas as virtudes para o bem comum"." Com a generalidade dos autores modernos: Dabin, Renard, Raffo Magnasco, Brethe de Ia Gressaye, Gilet e outros, Mesma podemos afirmar que as expressões justiça "w virtude cial", "legal" ou "geral" são denominações dife rentes de uma mesma virtude. Ou, como diz P. J. Henrique, em aprofundado estudo sobre "A justiça social": -'tO conceito de justiça social é de fato o mesmíssimo conceito que Tomás e Aristóteles indicavam com o termo justiça geral ou jus legal". ` Z wt A. Vermeersch, Cuestiones acerca de Ia justicia, 1.° v., n. 44. °0' E. Lustosa, Justitia socialis. Problemas terminológicos ao redor de um con p. 15. 111 S. Tomás, "Justitia generalis dicitur 'justitia legalis' quia per eam horno concordat legi ordinanti 'actus omnium vitutum' in bonum commune", 11 q. 58, a. 5. 11' P. J. Henrique, "A justiça social", em A ordem, Revista de Cultura, Rio, 10 e 11, 1945, p. 312 a 365; B. Raffo Magnasco, "Lo exato es haver da' Ilamada justicia social no otra cosa que un nombre diverso de Ia justicia le La justicia, lección II, p. 45; G. Renard, "La justice qu'on nomme indifére générale ou sociale", La théorie de 1'institution, p. 27. Essas denominações representam apenas aspectos diferentes da mesma virtude. A expressão ` justiça geral" liga-se a duas características dessa justiça. Primeiro, ela tem por objeto o bem "geral" ou comum (e não um bem "particular", como a comutativa e a distributiva). Segundo, sua matéria é constituída por atos de "todas" as virtudes." A denominação "justiça legal" é, também, facilmente explicável, pois é finalidade da "lei" fixar as exigências do bem comum. E esse é o objeto desta justiça. Mas o nome "justiça social", que tem prevalecido entre os autores atuais, indica melhor o sentido antiindividualista e renovador dessa virtude no mundo moderno. Com razão, observou P. J. Henrique: "Em certas épocas tranqüilas e ordeiras é normal que se acentue o aspecto da observância da `lei', mas, em tempos de crise e transformações profundas, o natural é que se fale, de preferência, nas exigências do bem comum e da justiça `social"'. Nesse sentido, conclui: "a substituição do nome 'justiça legal' por `justiça social' é convenientíssima. O nome da justiça legal servia, sim, mas em nossos tempos serve melhor o de justiça social; este exprime para nós que vivemos em tempos de `questões sociais', muito melhor a verdadeira natureza dessa virtude" .14 2. A "alteridade" na justiça social Na justiça social, a pluralidade de pessoas se realiza através de uma relação em que o "particular" é a pessoa obrigada e a "sociedade", a pessoa moral ou entidade beneficiária. Cada particular dá à sociedade sua cooperação para o bem comum. Como se trata de uma relação entre os membros e a sociedade, a "parte" e o "todo", cabem aqui as mesmas dificuldades levantadas relativamente à justiça distributiva, a saber: a) distinção entre a sociedade e os particulares; b) "sociedades" a que se aplica essa justiça; c) conceito de "particular". uat u, V. definição supra de Vermeersch e item 4 do presente capítulo. P• J. Henrique, artigo citado, 1 parte, p. 322. Problema das denominações Justiça geral Justiça legal Justiça social INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 217 Alguns autores, sustentando não haver distinção real entre sociedade e os membros que a constituem, Sociedade mam que não existe efetiva pluralidade de pess e seus membros na justiça social. E, conseqüentemente, que não é verdadeira justiça, mas uma das cham virtudes anexas ou acessórias à justiça. Esse é o ponto de vista Tanquerey, De Lugo e outros, que foi examinado e discutido capítulo II, item 2, do presente estudo, ao qual nos reportamos. Como vimos, essa posição é inadmissível: funda-se em co ções da sociedade, que não correspondem à sua natureza real. E modernamente afirmam-se, de forma cada vez mais ampla, obrigações de rigorosa justiça impostas aos membros da sociedade nome do bem comum. Outro problema, colocado também, como vimos, em relação ì justiça distributiva,15 é o relativo às espécies & sociedades a que se aplica a justiça social. Em sentido estrito, esta justiça aplica-se apenas à sociedade civil, em suas diferentes modalidades, que vão desde o município, a província, o estado, as comunidades continentais, até a sociedade internacional. É principalmente sob esse aspecto que a justiça social é examinada pelos tratadistas. _ Mas o conceito pode estender-se a todas as sociedades que apresentam as características de uma instituição, pelas mesmas razões examinadas no capítulo III, item 2. Nesse sentido, Renard estuda a justiça social na família 11 e na empresa econômica. E o mesmo se poderá fazer em relação às comunidades esportivast universitárias, religiosas etc. Dissemos que a justiça social regula as obrigações dos "p culares" em relação à "sociedade". Que se deve entender "particular" nesse conceito? Em primeiro lugar, os homens considerados individualmen como pessoas físicas ou naturais. Além disso, as entidades ou grupos soca intermediários que, como pessoas jurídicas, também partes de uma sociedade maior, e igualmente obrigações para com o bem comum. Sociedade civil Como os integrantes de uma grande orquestra, todos os membros da comunidade indivíduos, grupos, associações, classes, empresas, jigentes e o próprio conjunto - têm tarefas a cumprir e são partes ao espetáculo. É preciso acrescentar que essas tarefas recaem sobre governantes e novemados. Com responsabilidades diferentes, adequadas a suas funções na comunidade, as Governados autoridades e os cidadãos têm obrigações estritas e governantes e exigíveis em relação ao bem comum Os "devedores" ou "obrigados" na justiça social, escreveu Dabin.'s são os indivíduos e os grupos que, em sua qualidade de membros, têm obrigação de dar à sociedade o que lhe é devido. Essa obrigação alcança governantes e governados. A obrigação ou responsabilidade dos governantes tem sido denominada 'arquitetônica" ou de direção e a dos governados "de cooperação ou cumprimento". 3.1 Natureza do "devido" Outras instituições Indivíduos e instituições Quando dizemos que a justiça consiste em dar a outrem o que l é "devido", tomamos este termo em sentido estrito de dever legalmente exigível (ou debitum legale). Existirá, na justiça social, esse "devido" rigoroso exigível pela sociedade? Ou haverá apenas um dever moral (debitum morale), que recomendaria aos cidadãos a prática de alguns atos de interesse social, a título de liberalidade ou assistência? Dentro de uma concepção individualista esse dever rigoroso, legalmente exigível, não existe. Por isso, a justiça social não seria, propriamente, uma espécie de justiça mas uma virtude anexa ou semelhante à justiça. Baseados na convicção otimista da bondade natural do homem, geradora de uma harmonia social espontinca,19 os representantes do liberalismo clássico não aduritem deveres estritos para com a sociedade. 0 melhor meio para que a vida social se desenvolva ordenadamente consiste em cuidar cada um de seu henefício individual. 'Procurando o próprio interesse - diz Adam J' Dabin, Théorie générale du droit, n. 235. Ha`1onias econômicas é o título significativo da obra de F. Bastiat. Sobre a fé liberal na ordem espontânea, v. E. 1, Hiuhes, Aumção e decadência d0 b°r?uesia, Rio, Agir, 1945. Concepção individualista liberal ('S) V. Capítulo 7, p. 173. Renard, La théorie de l'institution, 1.' lição, p. 27, nota 2, e 3.' lição, P. 1 e ss.; J. Dabin, Philosophie de l'ordre juridique positif, n. 90 e ss. e 1 e ss. 07 Ob. cia., 8' lição, p. 461 e ss. 218 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 219 Smith - os homens realizam normalmente o da sociedade melhor do que se o procurassem realizar diretamente. Aliás - conclui com ironia - nunca vi fazerem grande coisa os que pretendem comerciar tendo em vista o bem público."20 Mas uma consideração objetiva dos fatos mostra que os defensores do liberalismo simplificam demais a realidade. Essa harmonia espontânea é uma hipótese que os fatos não confirmam. Na realidade, o que se verifica na luta pelos interesses individuais ou de grupos, se não for exigido o respeito a certos princípios de justiça, é o domínio dos mais fortes e o esmagamento dos mais fracos. As exigências do bem comum não podem ser deixadas ao livro jogo dos interesses, nem à boa vontade dos indivíduos. Devem ser exigidos por lei, e constituir para os cidadãos uma obrigação estrita e exigível (debitum legale). É a lição da Encíclica Populorum progressio: "Uma economia de intercâmbio não pode apoiar-se apenas sobre a lei da livre concorrência, que freqüentes vezes leva à ditadura econômica. A diversidade das transações só é eqüitativa quando sujeita às exigências de justiça social". E acrescenta: "E o que os Estados procuram assegurar ao estabelecer, por meios adequados (medidas financeiras, fiscais, sociais), um equilíbrio que a concorrência, entregue a si mesma, tende a comprometer".21 Essas e outras medidas, ordenadas ao bem comum, constituem objeto da justiça social, e são exigidas dos membros da sociedade, com amplitude cada vez maior, pela legislação dos Estados modernos. Essa extensão crescente de preceitos e exi gências fundados no "bem comum", ou "bem público", como preferem dizer alguns autores,22 constitui uma das tendências mais características do direito atual: a sua publicização 00 socialização. Em nome do interesse público ou do bem comum são impostas a todos os membros da coletividade obrigações que vão desde a subscrição compulsória de títulos do governo pelos particultrr Domínio do mais forte Exigências do bem comum Sentido lato e estrito I E 120) Adam Smith, Wealth of nations, livro IV, cap. 5.°. 121) Paulo VI, Encíclica Populorum progressio, 1967. (22) J. Dabin, "C'est Ia supériorité de 1'expression 'bien public' sur celle de ` commun': non seulement elle spécifie que Ia communauté dont le bieo en question est Ia communauté publique, c'est-à-dire, plénière (par opposi fo à des communautés particulières), mais elle échappe à l'équivoque résul de I'emploi du terme 'communauté', qui peut signifier soit ia coram inorganisée, c'est-à-dire, te public, soit Ia communauté organisée, c'est-à l'État", Théorie générale du droit, n. 135. res 23 até a imposição constitucional feita ao Poder Executivo para administrar dentro de planos e programas plurianuais.24 É evidente, portanto, que estamos diante de deveres, não apenas morais ou de conveniência, mas rigorosamente jurídicos e exigíveis.25 A lei confere normalmente às autoridades o poder de ação para exigir o cumprimento dessas obrigações para com o bem comum. Mas o moderno direito constitucional vem conferindo, também, a qualquer cidadão o direito de promover perante a justiça a invalidação de atos de qualquer autoridade lesivos ao bem público .26 3.2 Conceito e conteúdo do bem comum O bem comum é o fim da sociedade. É, também, a finalidade última de toda lei. E é o objeto da justiça social. Para estudá-lo, podemos considerar dois aspectos do problema: o conteúdo e a estrutura do bem comum. Eles correspondem à dupla pergunta que naturalmente pode ser feita: a) quais os "bens" contidos nesse conceito? b) em que sentido se trata de um bem "comum"? Impõe-se uma distinção preliminar. Para viver e para se desenvolver, os homens precisam de uma série de sociedades: família, escola, grupo profissional, empresa, associações, sociedade civil etc. Em cada uma delas há, de certa forma, um bem comum, que é sempre o bem de uma comunidade de pessoas. Mas, em sentido estrito, esse conceito se restringe ao bem comum da sociedade civil, que, de certa forma, abrange o das demais comunidades. (23) "A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios; (Constituição, art. 148). 124j Constituição, arts. 165 a 169. V. nota 44, no Capítulo 7, item 3.4 retro. 25) "A ordenação ao bem comum, que é objeto da justiça geral, liga-se ao direito estrito da comunidade em relação a seus membros: essa ordenação das partes ao todo é devida à comunidade como um direito do todo de exigibilidade", J. Dabin, Théorie générale du droit, n. 235. 26) "Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência" (Constituição, art. 5.', inciso LXXIII). 220 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 221 É este bem comum da sociedade civil - que vai desde a pequena povoação até a sociedade internacional - que constitui propriamente o objeto da justiça social. Dele é que nos ocuparemos diretamente. Quais os bens incluídos no conceito do bem comum? Riquezas, serviços públicos, finanças, escolas, saúde pública, segurança, poder, cultura? O bem comum de uma sociedade não é a simples soma de vau, tagens e benefícios oferecidos aos cidadãos, Bens que como estradas, escolas, meios de comunicação, integram o hospitais etc. Não se confunde, também, com o bem comum progresso do Estado, suas boas finanças, seu poder militar. Também não é apenas o conjunto de instituições, leis, costumes, tradições históricas e riquezas de cultura. Muito mais do que isso, mais simples, mais concreto, mais humano, o bem comum é o bem de uma comunidade de homens. Ele consiste, fundamentalmente, na vida dignamente humana da população, ou, em outras palavras, na boa qualidade de vida da população. Como diz Maritain, trata-se de assegurar à comunidade uma existência moralmente digna." J. Maritain, La personne et le bien commum, Paris, Desclée, 1947: "Le bien commum enveloppe l'intégration sociologique de tout ce qu'il y a de consciente civique, de virtus politiques et de sens du droit et de Ia Iiberté, et de tout ce qu'il y a d'activité, de prospérité matérielle et de richesses de l'esprit, de sagesse héréditaire inconsciemment mise en ouvre, de rectitude morale, de justice, d'amitié, de bonheur et de vertu, et d'heroisme, dans les vier individuelles des membres de Ia communauté, selon que tout cela est, dans une certaine mesure, communicable, et se reverse dans une certaine mesure sur chacun, et aide ainsi chacun à parfaire sa vie et sa liberté de personne. C'est tout cela qui fait Ia bonne vie humaine de Ia multitude. On voit par là, que le bien commum n'est pas seulement un ensemble d'avantages et d'utilités, mai§' droiture de vie, fin bonne en soi - ce que les anciens appelaient bonum honestwe4 bien honnête; car d'une pari c'est une chose moralement bonne en elle-même que d'assurer l'existence da Ia multitude; et d'autre pari c'est une existence juste et moralement bonne de Ia communauté qui doit être ainsi assurée. C'est pourquol Ia perfidie, le mépris des traités et de Ia foi jurée, l'assassinat politique, Ia guerre injuste peuvent être utiles à un gouvernement, et procurer, ftit-ce un moment, des avantages aux peuples qui y recourent - ces choses-là vont de soi - en tant qu'actes politiques, c'est-à-dire, en tant qu'actes engageant à quelque degré là conduite commune - conduisent à Ia destruction du bien commum de ces peuples" (p. 46 e 47). "Ce bien commum est à Ia fois matériel, intellectuel et moral, mais principalment moral, comme l'homme lui-même; c'est un bien commun de personnes humaines. Ce n'est pas seulement quelque chose d'utile, un ensemble d'avantages et de profits. C'est essentiellement quelque chose de bon en soi, ce que les Anciens applaint bonum honestum. La justice et l'amdié civique en sont le ciment. La mauvaise foi, Ia perfidie, le mensonge+ b cruauté, I'assassinat, et tous les autres moyens de même sorte, qui peuvent l'occasion paraitre utiles au pouvoir de l'équipe qui gouverne ou a là Com S. Tomás, podemos distinguir no conteúdo do bem comum três espécies de bens: - um, principal, que constitui a "essência" do bem comum; - outro, que é como que "instrumento" do bem comum; - e, finalmente, um terceiro, que é "condição" para sua reali zação-28 A essência do bem comum consiste na "vida dignamente humana da população" (bonam vitam multitudinis) ou, em linguagem moderna, na boa qualidade de vida da população. Realiza-se o bem comum numa sociedade quando o povo vive humanamente, isto é, pode desenvolver normalmente suas faculdades naturais e exercer as virtudes humanas, entre as quais se inclui a amizade, a cultura, em seus diferentes aspectos, a vida familiar etc. Numa sociedade de grande conforto material pode haver uma vida desumana. E numa aldeia primitiva, a população pode viver humanamente. Instrumento do bem comum são os "bens materiais", necessários à realização de uma vida humana digna, como alimentos, habitação, vestuário, meios de transporte etc. Certo mínimo de bens materiais é necessário ao exercício das virtudes humanas, diz S. Tomás, numa fórmula que se torna clássica.29 Condição do bem comum é a "paz". É aquele mínimo de unidade, tranqüilidade e segurança, sem o qual é impossível a própria existência da sociedade. Como se vê, a doutrina tomista do bem comum e mais exigente em relação à justiça social do que as doutrinas périté de 1'État, sont en soi - en tant qu'actes politiques, c'est-à-dire, en tant qu'actes engageant à quelque legré Ia conduite commune - dommageables au bien commun et tendent d'euxmêmes à le corrompre" (Principes d'une Politique humanaste, cap. V, p. 189). "' S. Tomás, De regimine principium, livro 1, cap. 15, n. 65: "Ad bonan unius hominis vitam duo requiruntur: unum principale, quod est operatio secundum virtutem (virtus enim est qua bene vivitur); aliud vero secundarium et quasi instrumentale, scilicet corporalium bonorum sufficientia, quorum usus est necesarius ad actum virtutis. Ipsa tamen hominis unitas per naturam causatur, multitudinis autem unitas, quae pax dictur, per regentis industriam est procuranda. Sic igitur ad bonam vitam multitudinis instituendam fria requirnntur". zv "Corporalium honorum sufficientia quorum usus est necessarius ad actum Virtutis", loc. cif. Vida humana digna (27) Mínimo de bens materiais Paz 222 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 223 de inspiração materialista. Porque, conforme o pensamento tomista, uma sociedade só realiza o bem comum quando assegura à sua população não apenas a suficiência de bens materiais, mas também aquele mínimo de liberdade e condições culturais para o exercício de uma vida humana digna. Passemos ao outro aspecto da questão: o problema da "estrutura" do bem comum. Vamos considerá-lo sob o duplo Estrutura do ponto de vista sociológico e filosófico. bem comum Em que sentido se trata de um bem "co.. mum"? Não, evidentemente, no sentido de que tudo deva pertencer confusamente a todos. Mas, sim, que todos os membros da comunidade, sem qualquer exclusão de classe ou setor, participem eqüitativamente desse bem. Pode-se dizer que é da própria natureza do bem comum a sua comunicabilidade ou exigência de redistribui ção.30 "0 bem comum não pode existir sem que exista o bem da população", escreveu Yves Simon.31 Como caracterizar essa comunicabilidade ou participação de todos no bem comum? Utilizando uma distinção de ordem sociológica, formulada por Gurvitch 32 ao descrever as formas de sociabilidade, podemos fixar três espécies de relação social. A primeira é a relação interindividual, que se realiza na compra Esses tipos de relação social podem ser utilizados na caracterização da estrutura do bem comum. Não se realiza, no caso, um simples feixe de relações interindividuais, como pretendem as concepções individualistas, que reduzem o bem comum à soma dos bens individuais. Não se verifica, também, uma relação de subordinação dos indivíduos ao coletivo como a uma realidade de natureza substancial e superior - o Estado, a raça, a classe ou a nacionalidade como querem as concepções coletivistas. A estrutura do bem comum é caracterizada pelas relações de integração, em que as consciências individuais se abrem e se comunicam, constituindo uma nova unidade moral. E o pronome "nós" ou "nosso" indica, com exatidão, a participação de cada pessoa no esforço ou benefício coletivo. 3.2.1 Relações entre o individual e o social Do ponto de vista filosófico, esse caráter, ao mesmo tempo comunitário e personalista, do bem comum tem sido analisado por muitos autores: Dabin,33 Yves Comunitário Simon,34 Lachance,35 Maritain,36 Renard 37 e oue personalista tros. 0 complexo problema das relações entre o individual e o social tem recebido historicamente inúmeras soluções, que se situam entre duas posições limites: o individualismo, que se recusa a ver na sociedade mais do que uma simples ficção 3E e o totalitarismo, que vê no Estado a realidade histórica total e nos indivíduos meros "fantoches abstratos, inventados pelo liberalismo individualista" i9 e venda, na locação de um prédio e nos demais contratos em que os sujeitos permanecem distintos e separados e podem ser indicados pelos nomes "EU" e "W" A segunda é a relação de subordinação dos indivíduos à sociedade, como a um ente coletivo "Ele" distinto e superior, que pode ser indicado pelo pronome "ELE". A terceira espécie é representada pelas relações de integração em que as pessoas participam numa ação em comum e podem ser indicadas pelo pronome "NóS" ("nós" os brasileiros, "nós" os estudantes etc.). "Eu" "Nós" (30) "La communication ou redistribution aux personnes qui constituent Ia société (31) est exigée par l'assence même du bien commun. 11 suppose les personnes et il se reverse sur elles, et en ce sens s'accomplit en elles" (Maritain, La persodn& et le bien commun, cap. IV, p. 45). ">I Yves Simon, Filosofia do governo democrático, Rio, Agir, 1955, cap. L. p. 60. (32) G. Gurvitch, Essais de sociologie, seção 1, cap. 1, p. 27; Sociologia jurídica, J. Dabin, Théorie générale du droit, n. 134 e ss. Yves Simon, Filosofia do governo democrático, cap, I. J Lachance, Le concept de droit, livro 1, parte 1, cap. II. . Man sae, , La Personne et le bien commum, cap. IV; Principes d'unepolitique 07) G• anist cap V ; Les droits de l'homme et Ia loi naturelle, cap. 1. (39) V La tlléorie de l'institution, p. 292 e ss., passim. . , cap. 7, n. (39) B. Mussolini, F p' 176. ce as cismo: doutrina e instituições. "Antiindividualista, a con pção fascista da vida acentua a importância do Estado e só aceita o indivíduo, àenquanto seus interesses coincidem com os do Estado, que se consciência e à vontade universal do homem como uma entidade hi histórica. E se a liberdade deve ser o atributo de homens concretos e não antoches abstratos inventados pelo liberalismo individualista, o Fascismo defende feende a liberdade, e a única liberdade que tem vala, a liberdade do Estado dele indivíduo dentro do Estado. A concepção fascista do Estado é total; fora nenhum valor humano ou espiritual pode existir e muito menos ter (33) (34) (35) (36) Agir, cap. 11, seção 1, p. 23. 224 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 225 Em oposição a esses extremos, uma análise objetiva da reali nos leva a afirmar o caráter, ao mesmo tempo comunitário e pe do bem comum. Dois famosos textos de S. Tomás sintetizam características e acentuam, de um lado, a oposição ao individual' e, de outro, a recusa de toda concepção totalitária de Estado. Em primeiro lugar, trata-se de um bem comunitário. O comum é o bem de uma comunidade real. isto é, de um "todo qual a pessoa é "parte". E a pessoa está para a comunidade a parte para o todo: "Persona comparatur ad communitatem sicut ad totum"4 Mas o homem não é "apenas" uma parcela desse todo. Ele é totalmente subordinado à comunidade, ou, nas palavras de S. To o homem não está ordenado à comunidade política segundo tudo que ele é, e segundo tudo o que lhe diz respeito: "Homo non ordi ad communitatem politicam secundum se totum e secundum o sua". 41 0 homem não está subordinado à sociedade civil, em aquelas coisas que se referem ao caráter absoluto de sua personal àquele "núcleo interior independente" de que fala Berdiaff. Assi concepções científicas, artísticas ou religiosas não podem depen decisões da sociedade civil. Como observa Maritain, a comum nunca terá o direito de fazer com que um matemático consi verdadeiro determinado sistema em lugar de outro e o ensine, julgado mais conforme às leis do grupo social (porque matem "ariana", por exemplo, ou matemática "marxista-leninista"...) 42 mesma forma ultrapassam a competéncia da autoridade pu decisões personalíssimas, como a de constituir família, ou ab determinada religião. Nesse sentido, dispõe a Declaração Universal dos Direitos Homem: "Ninguém será sujeito a interferências na sua vida pra na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a a à sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção dal contra tais interferências ou ataques" (art, 12); "Os homens e mui de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma fa O casamento não será válido senão com o livre e pleno con timenio dos nubentes" (art. 16); "Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião" (art. 18). E a Constituição do Brasil assegura. como já vimos,43 entre outros, Seguintes direitos da pessoa: "E livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" (art. 5.°, IV); "É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias" (art. 5.', VI); "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença" (art. 5.°, IX). 4. A "igualdade" na justiça social Todos os membros da sociedade - indivíduos ou instituições, governantes ou governados têm o dever de cooperar para o bem comum' E essa obrigação é repila por um princípio de igualdade fundamentalmente proporcional. Vimos, nos capítulos precedentes, em que consiste essa igualdade." No tocante à justiça social, a obrigação de concorrer para o bem comum não é absolutamente igual no caso de um simples empregado, de um chefe de empresa, de um legislador ou de um governante. Todos têm o dever de contribuir para o bem comum. Mas esse dever é proporcional à respectiva função e responsabilidade na vida social. Uma primeira distinção, feita tradicionalmente desde Aristóteles, é a de que à autoridade compete, como um arquàeto, planejar as normas ou leis para o bem Arquiteto e comum. E, aos cidadãos, respeitare executar esses executor Planos. A justiça geral, diz S. Tomás, está, Pnfipalmente, na autoridade, como que de forma arquitetônica e, SeCUudariamente, nos cidadãos como agentes de execução 46 São duas formas de praticar a justiça social e cooperar na construção do bem COMUM. Entretanto, o desenvolvimento da democracia no mundo moderno e a crescente participação do povo nas decisões governamentais 1ntas 16 a 20 no Capítulo 6, p. 149. 1 claração Universal dos Direitos do Honem: "Todo homem tem deveres para clin a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua (45) Pasonalidade é possível" (art. 29). uai Ípítulo 5, n. 4.3, p. 134, e Capítulo 7, n. 4, p. 189. t s,c est in principe principaliter, et quasi architectonice; in subditis autem Secundario et quasi ministrative', De jusritia, 11, 11, q. 58, a. 6. Igualdade proporcional qualquer utilidade. Assim compreendido, o Fascismo é totalitário e o E fascista - síntese e unidade em que se incluem todos' os valores - inte desenvolve e potencializa a vida inteira de um povo" (p. l0). 40j S. Tomás, li, li, q. 61, a. l. "" S. Tomás, 1, l1, q. 21, a. 4, ad 3. 1121 J. Marhain, La personne et le bien comam, cap. IV, p. 66. 226 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL. 227 têm ampliado as responsabilidades deste na orientação da vida social. Nos tempos modernos, como observou P. J. Henrique, de certa forma "toda a sociedade é chamada a exercer a justiça geral arquitetônica".47 E, no planejamento da ação do Estado, as nações modernas consagram, com amplitude cada vez maior, a partici, pação dos diversos setores da população na elaboração e na execução dos programas .48 De qualquer maneira, as obrigações de cada um em relação ao bem comum são proporcionais à sua "possibilidade e responsabilidade" e, de outra parte, têm por medida, como diz Waffelaert,49 as "necessidades" que tem a sociedade da contribuição de seus membros. Mas há, também, no campo da justiça social relações regidas pc. igualdades simples ou absoluta. É que essa justiça, como virtude geral, abrange no seu campo de atuação atos de todas as demais virtudes, inclusive da justiça comutativa e distributiva, na medida em que eles são neces sários ao bem comum. Essa "natureza especialíssima" da justiça social foi destacada por Vermeersch ao afirmar em sua definição que "a justiça geral impe como devidos ao bem comum, os atos de outras virtudes (...), por sua conexão necessária com o bem comum".50 Para a realização do bem comum são necessários atos de coragem,temperança, prudência, justiça comutativa e distributiva etc. A justiça social não é o conjunto das virtudes, como pretendem alguns autores levados pela denominação clássica de justiça "geral", mas é sua característica orientar "todas" as virtudes para o bem comum Ela acrescenta uma nova perfeição a atos das demais virtudes, na medida em que os dirige para o bem comum Ao julgar com exatidão, o juiz pratica um ato dq justiça distributiva em relação às partes, e 4 justiça social, em relação à coletividade, pof cooperar, com seu ato, para o bem comum dei sociedade. Ao pagar um salário justo, o empregador exerce um a* de justiça comutativa, em relação ao empregado, e de justiça soci4 Outras formas de igualdade Ordenação ao bem comum (4'1 P. J. Henrique, A justiça social, 1 parte, p. 324. 14%1 V. Democratie, planification, amenagement, Etudes coordonées par P. Vi Paris, Ed. Economie et Humanisme, 1964, "Participação: desenvolvimento democracia", Franco Montoro, Nossa Editora, S. Paulo, 1990. 1441 Waffelaert, Tractatus de justitia, t. 1, n. 4: "O dever da justiça geral ou le refere-se a uma 'igualdade', que se deve medir pela `necessidade' que o Estado da atuação de seus membros". V. item 1 do presente capítulo. em relação à sociedade, porque obedece a uma exigência do bem comum. Um ato de heroísmo em defesa da pátria é, em si, ato de coragem, mas como dedicação ao bem comum, é, também, ato de justiça social. No tocante às transgressões da justiça, a situação é semelhante. 0 homicídio, a calúnia ou o furto, por exemplo, constituem violações da justiça comutativa - um particular tira de outro um bem pessoal ou patrimonial -, mas são, ao mesmo tempo, uma transgressão da justiça social porque são um atentado contra o bem comum, na medida em que a ordem pública é prejudicada. Há, no caso, a violação de um duplo direito, o do particular e o da sociedade. E, conseqüentemente, a possibilidade de uma dupla ação: a ação civil de indenização ou reparação do dano, que pode ser intentada pela vítima ou sua família e a ação penal, movida pelo promotor público em nome da sociedade.51 Nesse sentido, todas as espécies de igualdade, pessoal ou real, absoluta ou relativa, exigidas pelas diversas virtudes, estão presentes, também, no campo da justiça social. Entre elas - além dos casos já referidos - podem ser mencionadas, ainda, a igualdade proporcional, e não simplesmente majoritária, nas eleições 52 e na representação política dos Estados;53 a igualdade na representação dos setores da produção, do trabalho e das profissões nos organismos e conselhos locais, nacionais ou intemacionais;5i a chamada teoria da igualdade de oportunidades em seus múltiplos aspectos etc." 5. Aplicações da justiça social Estudar as aplicações da justiça social significa considerar todas as modalidades de ordenação da atividade social para o bem comum. Essa simples colocação do problema demonstra a extensão ilimitada do campo dessa justiça. 1) V. Capítulo 6, n. 3, especialmente nota 3? "Na constituição das Mesas e de cada Comissão, é assegurada tanto quanto possível a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa" (§ l.° do art. 58 da Constituição). 0 número total de deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da federação tenha menos de oito ou mais de setenta deputados" (§ I " do art. 45 da Constituição). w, V. G. Gurvitch, La declaration des droits sociaux. V. Yves Simon, "A democrático igualdade democrática', cap. IV de Filosofia do governo . INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Em primeiro lugar, ela deve estar presente na elaboração qualquer lei, porque toda norma jurídica tem finalidade a promoção do bem comum. E não apenas o legislador, que institui norma, mas também o administrador, que lhe dá execução, o juiz, q a aplica, o cidadão, que a cumpre, têm, todos, a orientar sua atuaços princípios de justiça social geral ou legal, cujo objeto é o bete comum. 1 Mas a lei é apenas um dos instrumentos - o principal sem dúvidl - para a promoção do bem comum. Ela impõe aos cidadãos a obrigaçã$ de cooperar para o bem comum em matéria de impostos, serviço militar, salário mínimo, higiene e segurança do trabalho, educação saúde pública etc. Ao lado do império da lei, existe o "império espontâneo", representado pelas exigências do bem comum Solidariedade se impõem à consciência de cada homem, inda,; pendentemente de determinação legal. Atualmente o termo empregado por muitos autores para exprid o império espontâneo da justiça geral é "solidariedade".56 De fato, q* significa "ser solidário com outros" senão "sentir-se incumbido dli interesses comuns a si e aos outros?" Usando-se este termo cod referência à vida em comum na sociedade civil, ou então falando talved de "senso da coletividade", teremos uma idéia da natureza da justo geral, na medida em que ela se exerce nesse terreno." Essa distinção está, também, presente na definição de justiça gera formulada por Vermeersch ao declarar que as exigências dessa justo são impostas "por alguma lei positiva", ou "por sua conexão necessária com o bem comum".58 229 No mesmo sentido é a lição de Dabin: "A obediência às leis e às ordens legítimas da autoridade pública não é tudo. Em certo sentido é, até mmesmo secundário, se tivermos em conta que a organização ta é apenas `um meio' a serviço da comunidade, À comunidade dos indivíduos reunidos no Estado, cada membro deve um ajustamento de sua conduta e de seu bem particular ao bem comum" 59 Em todos os planos da vida social essa exigência de solidariedade é cada vez mais reconhecida e proclamada. Umas vezes ela é imposta por lei,`') regulamentos administrativos, convenções coletivas, ou medidas semelhantes. Outras vezes é deixada à iniciativa pessoal ou de instituições, que se cons tituem para a promoção do bem comum em setores Participação determinados: associações de moradores, clubes de da comunidade pais, sociedades de bairro, de município ou de região, grupos de favelados, cooperativas etc. Essas entidades passam, muitas vezes, a ser reconhecidas pelo poder público, apoiadas, chamadas a opinar e, até, cooperar na realização de obras e serviços de interesse social. No moderno direito administrativo ocupa lugar cada vez mais amplo o setor da participação da comunidade no estudo, planejamento e solução dos problemas coletivos. Não apenas as instituições acima indicadas, mas também organizações representativas das categorias profissionais e econômicas, entidades culturais, esportivas social são oficialmente convocadas e chamadas ainte e de caráter destinados a solucionar questões de interesse público." organismos Tem a mesma inspiração a constituição de órgãos representativos da respectiva comunidade no seio das empresas,ó2 das categorias profissionais ou econômicas, no plano nacional,ó3 dos alunos, e das diver_ (59) J Dabin, Théorie génbnle du droit, n. 243. ~' 0 nosso Código Penal em seu art. 135 pune a omissão de assistência e, portanto, da falta de solidariedade, para com o outro membro da coleávidade quando este precise• determinando que a pessoa não pode "deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou inda, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; 6n ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública Em relaçà à os ações do Governo na área social, a Constituiçãarti o deter tna forc paÇaO da populaçào por meio de organizações representativas, na mulaçãn das políticas e no controle das ações em todos os (6z) 2041• V. ~iarcello Caetano, Tendências do níveis" (art. Elson Gottschalk, A direito administrativo. Salvador Participação do empregado na gestão da empresa, (e,) • Progresso, 1951; G. Gurvitch, 1,'idée de droit soc¡a¿. Sto pren°gattvas do,. sindicatos: a) representar, perante as autoridades adlebrara,icas e judiciuias, os interesses gerais da resp' tensa categoria; bl celebrar contratos coletivos de trabalho; órgãos 1ecn~cos e c0 "vos, • ~ d) colaborar com o Estado como Vivos, no estudo e solução dos problemas que se Lei (56) (57) (58) "Considérer I'homme seul et en soi c'est ne voir qu'une partie de Ia , C'a été Ia grande erreur du XVIII,- siècle qui ne voyat que 1'homme abstrais L'homme est un être concret qu'on ne peut détacher par la pensée du milie>s, du groupe auquel il appartient, aujourd'hui, Ia nation. L'objet de Ia norte sociale est donc d'obliger tout individu à agir de telle sorte qu'il respe l'autonomie des autres et Ia sienne propre en tant qu'elles sont des élémo de Ia vie nationale. Comment 1'homme est-il un élément de Ia vie natio et comment doit-il agir pour en assurer le maintien et le développement? Ip appara? te grand fait de Ia solidarité ou interdépendance sociale." L. DiBL1~ Traité de droit constitutionnel, Cap. 1, § 5, p. 22; L. Lebret, Manifesto o, uma civilização solidária; P. Fernando Avila, Solidarismo; C. Bouglé, solidarisme; L. Bourgeois, La solidarité, e Philosophie de ia solidarttét Gide e C. Rist, "Os solidaristas", cap. 111 do livro V da História das do econômicas. P. J. Henrique, Justiça social, 111 parte, p. 344. V. item 1 do presente capítulo. 230 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO sas categorias do pessoal docente nos conselhos escolares etc. Algumas vezes essas instituições têm existência apenas de fato, outras vezes são criadas ou reconhecidas por lei. Ao estudo de grandes setores do direito, ocupados pela ação espontânea do "povo-massa", dedica Oliveira Vianna 64 seu trabalho sobre Instituições políticas brasileiras. As novas ciências sociais, diz o ilustre publicista, dão hoje um grande e fundamental papel, na determinação das normas jurídicas, à atividade elaboradora da própria sociedade, espontaneamente desenvolvida fora e independente da atividade técnica dos corpos legislativos oficiais. O direito que surge desta atividade espontânea da sociedade é o direito-costume, o direito do povo-massa, que as elites, em regra, desconhecem, ou mesmo desdenham conhecer, embora, às vezes, sejam obrigadas a reconhecê. lo e legalizá-lo, a "anexá-lo", como diria Gurvitch (vide nota 32 do presente capítulo). E, assim, é estudado o direito social operário, elaborado pelas próprias comunidades na regulamentação de atividade profissional relativa aos múltiplos setores do trabalho urbano e rural: comércio, indústria, trabalho marítimo, transportes etc. E no plano internacional, as exigências da solidariedade e da justiça social impõem-se cada dia com mais veemência ao reconhecimento do direito moderno. Já Clóvis Beviláqua 65 afirmava, com fundamento do Direito Internacional, "não a so berania, princípio do direito interno, mas a solidariedade, fenômeno social de alta relevância, pelo qual devemos considerar a consciência de que as nações têm interesses comuns. Sua tendência é estenderse a todos os povos da terra, para proteger os fracos e atrasados, e a conferir a plenitude dos direitos aos que se organizarem regularmente. Mais do que se imagina comumente, o sentimento de solidariedade, que é uma das formas em que se concretiza a idéia de justiça, vai dominando nas relações internacionais". A afirmação de um bem comum internacional, em termos concretos, e o reconhecimento efetivo da justiça social internacional, como exigência da solidariedade no plano mundial, constituíram o objetivo da histórica conferência da ONU, sobre o comércio e o desenvolvimento, realizada em Genebra em 1964. No mesmo sentido se orientam importantes documentos internacionais da atualidade, como as relacionam com a respectiva categoria" (art. 513 da Consolidação das Leis do Trabalho). "Constituem associações sindicais de grau superior as federações e confederações organizadas nos termos desta lei" (art. 533). A organização sindical está prevista no art. 8.° da Constituição atual. Oliveira Vianna, Instituições políticas brasileiras, Prefácio, p. 13. i65' Clóvis Beviláqua, Direito Público Internacional, 1, p. 13. JUSTIÇA SOCIAL 231 Encíclicas Pacem in terris (19 "Manifesto por uma civiliza(ã96j) e POpulorum progressio (1967) e o e uma equipe de homens de ciência de todos~Gor Lebret o connente 6.1 A segurança como raZ4p fundamental do direito "nphdl°eCavalcanti i Filho, 0 Problema da seguranA ordem jurídica p. 51 e 52. suas gradações, gira em Positiva, em to certeza. E tanto a ordem tomo de uma das necessidade suas manifestações e em todas as ponto básico o direito estatal a c necesidade de ordem, de segurança e de ao uaeca e segurança têm em última análise como valer de forma inexorável. ya u qual cabe, como atributo essencial, o de se fazer encarna as aspirações mais e SSss enj . fundamental para que assim seja. O Estado Colocase a serviço daqueles valores q e gerais dominantes numa coletividade. aqueles que informam os ordenafire Ue sobrepairam a todos os demais , inclusive nesses valores socialmente supremos°sJurídicos singulares. Assim, é compreensível preservar a coletividade lotai, e se sobreponha aos demais, de modo a poder cujo serviço se coloca. A ordem si mesma, e permitir a consecução dos fins a interesses básicos da pessoa, 1e gerar aquela que haure a sua motivação nos soberano, o seu supremo ávelsgarantidor.Óim no Estado, como detentor do poder de Princípios in estabelecer um ambiente de que devem servir t de estatal é portanto a fixação típica aí se e que a razão fundamental e imas de conduta, capazes de e segurança nas relações mental que Ju irança, imprescindíveis à convivência. Por Não se deduza daí, o que se e."belecemana direito é a exigência de certeza seja indiferente a idéia de Justiça sega lamentável e bode. não se pode prescindir do valor do Neta, tem ela qa 1 sua S que à ordem jurídica Positiva. Mas é fora de alor do Justo Para a exata comua superior justificação, e ser em momentos excepcionais, dúvida óue na formulação daprensão da ordem jurídica não é a preocupa ão de c motivo determinante ¡noras jurídicas, a não legislador a estio ç oncret¡zar os ideais Superiores não é a justiça, presente em esboça las. Sem dúvida, essa deais superiores de justiça que leva o de direito, modalidade ou manifestaPreocupação preocupação, de qualquer modo, se acha em si mesma, mesma, se acha çao da experiência coai¡da uma referência ao nvalor do pois justo. idéia 6.2 Autoridades e particulares q Seryiço do bem comum João XXVI, Encíclica P acem in terris, n. 53 a 58. 6. Outras formulaçÕes Comunidade internacional Todos os i ndivíd comum Douos e cor,, . nde se segue, antes s intermediários devem contribuir para o bem Pelos dos outros, cem mais, que devem ajusta governantes, dentro das normas °s seus, bens e serviços rPróprios interesses cua adecia. Portanto, os govemr da justça e na na direção indicada sua Perfeição formal jurídica, nte derem devida forma e limites de a ele conduzir, 5e o S rdene preceituar disposições que, além da Essa m inteiramente ao bem comum ou possam Públicos, realização do bem comum constitui a total razão de ser dos poderes os quais, conseqüentemente, devem p total razão o de tal modo que, 232 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 233 ao mesmo tempo, respeitem os seus elementos essenciais e adaptem as suas exigências ao que pedem as circunstâncias. Aspectos fundamentais do bem comum Sem dúvida se inscrevem adentro da área do bem comum as características que distinguem os diferentes povos. Não lhe esgotam, todavia, o conteúdo. O bem comum, com efeito, está intimamente ligado à natureza humana; por isso não poderá ser concebido na sua integridade se, além de considerada a sua íntima natureza e realização histórica, não se tiver em conta a pessoa humana. Além disso, todos os membros da comunidade devem participar do bem comum, por razão de sua mesma natureza, embora em grau diverso, segundo as funções que cada cidadão desempenha, os seus méritos e condições. Devem, pois, os poderes públicos promover o bem comum em proveito de todos, sem favoritismo algum por pessoa ou grupo social determinado, como asseverava o Nosso Predecessor, de imortal memória, Leão XIII: De modo nenhum se deve usar para vantagem de um ou de poucos a autoridade civil, constituída para o bem comum de todos. Todavia, motivos de justiça e eqüidade podem exigir alguma vez dos poderes públicos especial solicitude para com os membros mais fracos da comunidade, os quais se encontram em posição de inferioridade para reivindicar os próprios direitos e prover a seus legítimos interesses. Aqui julgamos dever chamar a atenção para o fato de que o bem comum diz respeito ao homem todo, tanto às necessidades do corpo como às do espírito. Procurem, pois, os poderes públicos promovê-los de maneira idônea e equilibrada, que respeite a hierarquia dos valores e proporcione, com os bens materiais, também os que se referem aos valores do espírito. Estes princípios, sintetiza-os, com exatidão, esta passagem da nossa Encíclica Mater et magistra: o bem comum "abarca todo um conjunto de condições sociais que permitem aos cidadãos atingir a sua perfeição com maior plenitude e facilidade". 6.3 A saída coletiva Teillard de Chardin, O fenômeno humano, São Paulo, Herder, 1966, IV parte, cap. 1, p. 267. Humanidade. Tal é a primeira figura sob a qual o homem moderno, no próprio instante em que despertava para a idéia de progresso, teve de procurar conciliar, com as perspectivas da sua morte individual inevitável, as esperanças de Porvir ilimitado de que já não podia prescindir. Humanidade: entidade a princípio vaga, mais experimentada do que raciocinada, em que um obscuro sentido de crescimento permanente se aliava a uma necessidade de fraternidade universal. Humanidade' objeto de uma fé muitas vezes ingênua, mas cuja magia, mais forte do que todas as vicissitudes e todas as críticas, continua a agir com a mesma força de seduçáo tanto sobre a alma das massas atuais como sobre os cérebros da intelligenzia. Quef se partilhe, quer se ridicularize o seu culto, quem poderá, ainda hoje, escapar obsessão, ou mesmo à influência da idéia de Humanidade? Para os olhos dos "profetas" do século XVIII, o mundo não apreseo• tava, na realidade, senão um conjunto de ligações confusas e frouxas. E era necessária a adivinhação de um crente para sentir o pulsar do coração desta espécie de embrião. Ora, após menos de duzentos anos, eis-nos, quase selo darnlos por isso, implicados na realidade, pelo menos material, daquilo por que esperavam nossos pais. À nossa volta, no espaço de algumas gerações, laços econe)ri icos e culturais de toda a espécie se estabeleceram e se vão multiplicando em Progressão geométrica. Agora, além do pão que simbolizava, na sua simplicidade, o alimento de um neolítico, qualquer homem exige, todos os dias, a sua ração de ferro, de cobre e de algodão - a sua ração de descobertas, de cinema e de notícias internacionais. Na realidade, pela própria lógica do nosso esforço para coordenar e organizar as linhas do mundo, o nosso espírito é reconduzido, por eliminação das heresias individualista e racista, às perspectivas que lembram a intuição inicial dos primeiros filantropos. Não se espere nenhum futuro evolutivo para o homem fora da sua associação com todos os outros homens. Os sonhadores de ontem tinham-no já entrevisto. E, em certo sentido, nós vemos o mesmo que eles. Mas o que nós estamos em condições de descobrir melhor do que eles, porque nos achamos "içados sobre os seus ombros", são as raízes cósmicas, o estofo físico particular, e, finalmente, a natureza específica desta Humanidade que eles só podiam pressentir e que nós não podemos deixar de ver, a não ser que fechemos os olhos. (...) Para muitos dos nossos contemporâneos a Humanidade continua a ser ainda uma coisa irreal, quando não é por eles absurdamente materializada. Segundo alguns, ela não seria mais do que uma entidade abstrata, ou então um vocábulo convencional. Para outros, ela toma-se agrupamento, espessamento orgânico, em que o social se transcreve literalmente em termos de fisiologia e de anatomia. Idéia geral, entidade jurídica - ou então animal gigantesco... A mesma impotência, num caso e noutro, por insuficiência ou por excesso, para conceber corretamente os conjuntos. Para sair deste beco, o único meio não será introduzir decididamente nos nossos esquemas intelectuais, para uso do superindividual, mais uma categoria? No fim das contas, por que não? A Geometria não teria progredido se, de início construída sobre as grandezas racionais, não tivesse acabado por aceitar, como tão completos e inteligíveis como um número inteiro, e 71:, ou qualquer outro incomensurável. O Cálculo nunca teria resolvido os problemas postos pela Física moderna se não se tivesse erguido constantemente até à concepção de novas funções. Por idênticas razões, a Biologia não poderá generalizar-se às dimensões da Vida total sem introduzir, na escala das grandezas que tem agora de tratar, certos graus de ser que a experiência vulgar pudera até então ignorar - e precisamente o grau do Coletivo. Sim, doravante, ao lado e além das realidades individuais, as realidades coletivas, irredutíveis ao elemento, e, no entanto, à sua maneira, tão objetivas como ele. (...) Em nenhuma outra era da História, a Humanidade se achou tão bem equipada, nem fez tantos esforços para ordenar as suas multidões. "Movimentos de massas." Não já as hordas a descerem, torrencialmente, das florestas do Norte e das estepes da Ásia. Mas "o Milhão de homens", como tão bem já foi dito, cientificamente reuni1Jos. O Milhão de homens dispostos nas paradas. O Milhão de homens estaiid$rdizados na fábrica. O Milhão de homens motorizados... E tudo isto para desenrtt Ocar apenas, com o Comunismo e x) Nacional-Socialismo, no mais espantoso dos ,iedrrentamentos. O cristal em vez da célula. A termiteira em vez da Fratt,,r 0 idade, Em vez do surto esperado da consciência, a mecanização que emerge inevn elrnente, ao que parece, da totalização... f%npur si muove! Perante tão profunda perversão das regras da Noogénese, eu sustento que ,, nossa reação não deve ser de desespero, mas de um reexame de 234 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 235 nós próprios. Quando uma energia escapa ao seu domínio, o engenheiro, longe de pôr em dúvida a sua potência, não retomará simplesmente os seus cálculos a fim de achar maneira de melhor a orientar? Por mais monstruoso que seja, o totalitarismo moderno não deformará porventura uma coisa magnífica, e não estará bem perto da verdade? Impossível ter dúvidas: a grande máquina humana foi feita para funcionar - e ela tem de funcionar - produzindo uma superabundância de Espírito. Se não funciona, ou, antes, se gera apenas Matéria, é porque então trabalha às avessas... Não será por acaso que, nas nossas teorias e nos nossos atos, descuramos reservar o devido lugar para a Pessoa e para as forças de Personalização? (...) 6.4 Justiça e bem comum E. Bodenheimer, Ciência de direito, Rio, Forense; 1966, p. 234. A relação entre os direitos do indivíduo e o bem público na realização da justiça pode ser expressa na seguinte fórmula: "A Justiça exige que a liberdade, a igualdade e outros direitos essenciais sejam atribuídos e assegurados aos seres humanos com a maior amplitude conciliável com o bem comum". 1 Esta fórmula nos conduz à análise do conceito de bem comum, análise que envolve grandes dificuldades, porque um número muito grande de elementos variáveis deve entrar necessariamente na definição do conceito. Não obstante, uns poucos princípios gerais para a determinação do conteúdo e da amplitude do conceito talvez possam ser expostos. Primeiro que tudo, o bem comum, ou o bem-estar público, não pode, é evidente, ser identificado com a soma total das exigências e dos desejos dos indivíduos, pois sabemos por experiência que certas exigências individuais são desarrazoadas do ponto de vista do bem-estar da sociedade, e que há indivíduos capazes de ações danosas para a coletividade. Em segundo lugar, é igualmente impossível identificar o bem comum com as exigências ou os desejos dos governantes ou dos grupos dominantes. Os representantes do governo podem ter uma idéia falsa do que interessa à comunidade, cometendo erros graves e indiscutíveis na formulação e execução da política administrativa, arrastando o Estado ao desastre e à ruína. A grande maioria dos seres humanos racionais sem dúvida repeliria uma teoria política segundo a qual os desejos, as conveniências ou os atos dos governantes se considerassem a expressão fiel do bem comum, independentemente das duas conseqüências para a sociedade. Nem a aspiraçi[o individual nem a ação governamental podem por si sós constituir a base de uma concepção racional do bem comum. A fim de chegar a uma concepção do bem comum que, presumível d provavelmente, correspondesse aos verdadeiros interesses e aspirações da hurra`' nidade, talvez fosse preciso recorrer à idéia de civilização. Uma determinação, em termos gerais, do conteúdo e da amplitude do bem comum deve partir da certezi de que um indivíduo só pode ter uma existência plena e satisfatória na medidll em que ele contribua para a grande empresa que se disse ser "a construção dai' civilizações". A fundação de imponentes cidades habitáveis, o cultivo do solo etrl ordem a assegurar os meios de sobrevivência, a produção de bens destinados S' aliviar as canseiras ou aumentar as amenidades da vida, a invenção de meios àe transporte e comunicação para promover o tráfego e o intercâmbio entre os horne11,5 e dar-lhes acesso às belezas naturais, a busca de conhecimento e o estímulo das faculdades espirituais, a criação de grandes obras de literatura, artes plásticas e músid' - todos estes esforços têm, através dos séculos, despertado a admiração dos homens e incentivado ao máximo as suas energias. Como sabiamente observou Gustav Radbruch, a história julga sempre os povos e as nações pelas suas contribuições para a cultura e a civilização. Contudo, o nosso conceito de civilização seria por demais acanhado se compreendesse unicamente os elementos materiais, tecnológicos, intelectuais e artísticos da cultura humana. Ele deve incluir também os aspectos éticos da vida social humana, quer se manifestem sob uma forma religiosa, quer sob uma forma secular. Ou, nas palavras do educador Friedrich Wilhelm Foerster: Toda a gigantesca empresa da tecnologia, como todas as até agora inimagináveis conseqüências das descobertas atômicas, requer, para o seu sucesso, muito mais que um simples aparelhamento científico e material; essa empresa faz tão tremendas exigências à cultura social e ética da criatura humana, de quem se espera harmonize as diversas funções da máquina gigantesca, impedindolhe o mau uso, que na realidade toda a tecnologia representa uma causa perdida, se não vier em seu socorro um renascimento moral e espiritual. A tecnologia sem a ética seria como um ser vivo sem alma e sem consciência. Uma civilização material e intelectual adiantada será incapaz de assegurar a "grata existência", se não houver também ensinado os homens a equilibrarem os interesses individuais com autolimitações impostas pelo bem dos outros, a respeitarem a dignidade dos seus semelhantes e a traçarem regras adequadas de coexistência e cooperação nos vários planos da vida, inclusive na comunidade internacional. 6.5 Jurisprudência: caso julgado com base na justiça social Acórdão do Supremo Tribunal Federal sobre locação comercial, com fundamento nas exigências do bem comum, denega retomada do prédio. ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Extraordinário 57.888, da Bahia, sendo recorrente Panificadora Elétrica Primor Ltda. e recorrida Alves, Irmãos & Cia. Ltda., acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, conhecer do recurso e darlhe provimento, ut notas taquigráficas anexas. Brasília, 30 de agosto de 1966. Hahnemann Guimarães, Presidente. Pedro Chaves, Relator. RELATÓRIO - O Sr. Ministro Pedro Chaves: O presente recurso teve seguimento denegado pelo eminente Ministro Adalício Nogueira, então Presidente do Egrégio Tribunal de Justiça da Bahia. O agravo interposto da denegação, sob n. 30.184, foi provido para melhor exame. Fui o relator do agravo e proferi o seguinte voto, que mereceu o honroso sufrágio unânime da antiga 1.' Turma: "Existe neste processo importante a atual questão federal a demandar solução por via do recurso extraordinário de seguimento indeferido. O Egrégio Tribunal de Justiça da Bahia, no jurídico acórdão proferido em grau de embargos, enfrentou e decidiu, em ação renovatória de contrato de locação de imóvel para uso comercial, matéria argüida na contestação, com fundamento no art. 8.°, letra e, do Dec.-lei 24.150, de 20.04.1934, sob alegação da locadora de ir usar o prédio para ampliação de seu Próprio negócio. Essa matéria é objeto e fonte das maiores divergências, doutrinárias eiurisprudenciais. 0 Professor Alfredo Buzaid, notável monografista, assinala no seu 236 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO JUSTIÇA SOCIAL 237 conhecido e divulgado trabalho Da Ação Renovatória que a inexistência de um texto claro, com relação às condições da retomada para uso próprio, justifica a imprecisão da interpretação e a divergência jurisprudencial, assinalando a existência de várias correntes, desde aquela que atribui à espécie uma força jure et de jure excludente de impugnação, até a que exige do proprietário locador a prova da sinceridade e necessidade do propósito de retomar. Ao lado dessas questões, surge ainda outra, com profundas raízes na própria e especial finalidade da lei que é a defesa do fundo de comércio, quando, como na espécie se depara frente a frente, dois fundos de comércio, igualmente dignos de defesa, um do locatário que não tem para onde se abrigar e terá que deixar o `ponto', outro do locador que, embalado por êxito de seu empreendimento, quer se expandir para ampliação de atividades. Nesse particular, o v. acórdão recorrido está em franca divergência com o julgado do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal, invocado pela agravante e que encontra, in RF CXI/1 34, onde se lê: `Entre um fundo de comércio que precisa do prédio para subsistir e um outro que dele precisa para ampliar-se, a preferência deve ser em favor daquele'. Ora, neste caso o v. acórdão recorrido inscreveu em sua emenda o princípio que norteou, nos seguintes termos: Retomada para uso próprio em ação renovatória de locação comercial: sua admissibi lidade para o fim de ampliação de negócio preexistente, desde que as circunstâncias indiquem ser a ampliação de real interesse do locador e estar dentro das suas possibilidades econômicofinanceiras. Essa é uma verdadeira questão de direito, em que as soluções foram divergentes não por influência de provas, mas por força de um critério diferencial teórico. Assim, quer me parecer que a questão deve ser submetida à apreciação deste Tribunal, para melhor exame, justa, jurídica e equânime solução. Para esse fim, dou provimento ao agravo". • o relatório. VOTO - O Sr. Ministro Pedro Alves (Relator): O caso dos autos é de relevo. Não se trata de decidir sobre se houve ou não houve sinceridade da proprietária locadora, ao opor à renovação da locação a exceção de retomada para uso próprio e ampliação de seu negócio. O que se discute é o choque de dois legítimos interesses jurídicos igualmente protegidos - o do locatário em permanecer se utilizando do prédio a ele locado para exploração de sua atividade econômica, o gozo do "ponto comercial" e a defesa de seu fundo; o do locador, no exercício de seu direito de propriedade e de incontestável expansão de seu comércio. Nesse ponto é que se manifestou, a meu ver, inegavelmente o dissídio de jurisprudência, na interpretação da mesma regra jurídica. • v. acórdão proferido na apelação, depois de examinar a questão sob todos os ângulos, encerrou suas doutas considerações, coroando-as com a seguinte observação: "Quando, porém, não bastassem tais argumentos, há de considerar-se que, se apreciada a situação dos litigantes sob seu aspecto humano, não haveria corno se deixar de atender aos interesses da firma locatária, cuja sobrevivência estaria irremediavelmente comprometida pela sentença apelada que, por isso mesmo, merece ser reformada". • v. acórdão recorrido, tomado em embargos, por maioria de votos, ficou, data venia, preso à letra da lei, quando afirmou que a exceção de retomada, prevista no art. 8.°, letra e, do Dec.-lei 24.150, só encontra limites no dispositivo do seu parágrafo único, que veda o uso do prédio retomado ao mesmo ramo de comércio ou indústria do locatário. Data venia, não me conformo com esse ponto de vista. Penso que a boa interpretação está com o acórdão apontado como divergente do Tribunal de Justiça da Guanabara. A exceção de retomada não é um direito absoluto. O próprio direito de propriedade garantido pela Constituição não é absoluto, pois sofre restrições quanto a seu conteúdo e mesmo quanto ao seu exercício. Veja-se a CF, arts. 141, § 16, e 147, que sujeita o uso da propriedade e o condiciona ao bem-estar social, em harmonia com a regra do art. 5.° da Lei de Introdução ao Código Civil, que impõe ao juiz o entendimento das leis com atenção aos fins sociais a que ela se dirige e o atendimento às exigências do bem comum. Foi para atender a todas essas circunstâncias que o Dec.-lei 24.150, intervindo no domínio econômico, cerceou a liberdade de contratar e disciplinou as locações para fins comerciais e industriais. Não podia esse documento legislativo atender a um só tempo as exigências do bem comum, aos fins sociais do comércio e da indústria e contraditoriamente outorgar ao proprietário direito absoluto de retomada. É das razões da firma recorrente a seguinte argumentação: "É preciso não passar despercebido que o v. acórdão recorrido data venia comete tremendo equívoco quando afirma que `a exceção prejudicial contida no item e do art. 8.° do Dec.-lei 24.150, quando oposta pelo locador', `somente encontra na lei a restrição consignada no parágrafo único do artigo precitado'. Esquece que, `pela Lei de Luvas' o fundamento da ação renovatória está precisamente no bem comum. E foi justamente esta procuração pelo bem comum que levou o referido decreto a alterar substancialmente as relações entre proprietário e inquilino, por considerar, como está contido em um dos considerandos do mesmo diploma legal, `não só as legislações mais adiantadas como a própria legislação nacional têm admitido restrições à maneira de usar o direito de propriedade em benefício de interesse ou conveniências gerais'. Este princípio, isto é, o de que • uso da propriedade deve obedecer ao bem comum, foi, pela Carta Magna de 1946, erigido em cânon constitucional, expresso nos termos seguintes: `O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social'. Daí o Poder Público, para assegurar o uso da propriedade com a finalidade de bem-estar social, proteger a empresa comercial, cuja finalidade é produzir bens • serviços para satisfação das necessidades da comunidade: isto porque entendeu que o que esses estabelecimentos fazem do prédio é mais importante do que o direito do proprietário de dele dispor livremente. O interesse público exige que se proceda dessa forma (vide Oswaldo Opitz, Problemas de locação comercial • industrial, p. 60, 83, 230, 231 e 232; e Buzaid, Da ação renovatória, p. XIII, 92, 151 e 152). Orago Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal a esta Alta Corte (vide acórdão citado nos itens 23 e 28 destas razões), visando amparar não só ao locatário em particular, que terá sobrevivência do seu estabelecimento comprometido, mas • comunidade que ele serve, aos empregados que trabalham na empresa, ao consumidor anônimo que recebe, diariamente, as utilidades destinadas ao seu consumo (no caso, o pão), achou, ao contrário do Tribunal da Bahia, que existe, para a retomada, além da restrição do art. 8.°, e, do Dec.-lei 24.150, a própria finalidade da lei, que é a regra constitucional pondo acima da mera comodidade do proprietário, em ampliar uma das suas filiais das muitas existentes na cidade, • bem-estar social". Pelo exposto, conheço do recurso pela letra d e lhe dou provimento, para estabelecer o julgado na apelação. VOTO - O Sr. Ministro Vilas Boas: Data venia, conheço do recurso para lhe negar provimento. VOTO - O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Presidente): Data venla do eminente Ministro Vilas Boas, acompanhado o voto do eminente Minis-tro Pedro Chaves. A disposição do art. 8.°, letra e, do Dec.-lei 24.150, 238 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO de 20.04.1934, há de ser entendida nos termos propostos pelo eminente Ministro Relator. DECISÃO - Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: A Turma conheceu e deu provimento, contra o voto do Ministro Vilas Boas, que negava provimento. Presidência do Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, Relator o Exmo. Sr. Ministro Pedro Chaves. Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Ministros Pedro Chaves, Vilas Boas e Hahnemann Guimarães. Impedidos, os Exmos. Srs. Ministros Aliomar Baleeiro e Adalício Nogueira. 6.6 Jurisprudência - Decisão judicial em defesa do meio ambiente Estação Ecológica da Juréia Juízo de Direito da Primeira Vara do Foro Distrital de Peruíbe - Comarca de Itanhaém. I - O Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou a presente ação civil pública contra Benedito Marcondes Sodré, alegando, em síntese, que foi realizada constatação por técnicos do Instituto Florestal no interior da Estação Ecológica da Juréia-Itatins e verificou-se que o réu vem procedendo à construção de uma casa de alvenaria na Praia do Arpoador, nesta cidade. Sustenta a ilegalidade e o dano causado ao meio ambiente pelo fato de estar toda a área, dentro da qual o réu está construindo a casa, sob dupla proteção, por força da Lei Estadual 5.649, de 28.04.1987, que criou a Estação Ecológica Juréia-Itatins e da Resolução 40, de 06.06.1985, da Secretaria do Estado da Cultura, que considerou a referida estação ecológica pertencente ao perímetro da área da Serra do Mar, tombada pelo patrimônio público. Como o réu não pediu autorização para construir a casa de alvenaria dentro de área de proteção ambiental permanente e por ter agredido o meio ambiente, sem utilização da propriedade dentro dos limites de finalidades da Estação Ecológica Juréia-Itatins, pretende a concessão da medida liminar para que a obra sofra imediata paralisação e, ao final, seja o réu condenado na obrigação de demolir as obras já realizadas e remover o entulho, além de restaurar o local, restituindo a sua forma anterior. A medida liminar foi concedida e o réu citado ofereceu resposta ao pedido, alegando, em síntese, ser enganosa a afirmação do autor, pois a construção do réu já existia antes da data da criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins, conforme constatação feita no local. Sustenta que as criações das estações ecológicas não vedaram a construção de habitações, como de resto não veda a Lei Estadual 5.649. Acrescenta que o ato inicial de tombamento igualmente não proíbe que a construção seja erigida. (...) encerrada a instrução, as partes ofereceram memoriais, cada qual reiterando suas posições processuais, à vista das provas produzidas. É o relatório. Decido. II - A controvérsia formada nos autos está limitada ao fato de se saber até que ponto a construção da casa de alvenaria, não negada pelo réu, em área protegida, por legislação estadual e federal, no que se refere aos ecossistemas ali existentes, foi edificada de modo ilegal, causando danos ao meio ambiente e ao patrimônio estético, histórico e paisagístico. (...) em que pesem as argumentações expendidas e colocadas pelo ilustro e combativo patrono do réu, o pedido é procedente. A área em questão faz parte, por força do Decreto Federal de 23.10.1984, da área de proteção ambiental - APA -, abrangendo as regiões situadas nos municípios de Cananéia, Iguape, Peruíbe, Itariri e Miracatu, no Estado de São Paulo, estando previsto no art. 9.° do referido decreto federal o seguinte: "Art. 9.° Nos terrenos de marinha, e acrescidos, conforme conceituados nos arts. 2.° e 3.° do Dec.lei 9.760, de 05.09.1946, não será permitida a retirada de areia, ou de material rochoso, nem admitidas construções de qualquer natureza, com exceção de embarcadouros". Já a Resolução 40, de 06.06.1985, expedida pelo Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, que procedeu ao tombamento de área da Serra do Mar, com seus parques, reservas e áreas de proteção ambiental, expressamente prevê em seu art. 9.°, item "1", o seguinte: "Art. 9.' (...) 1 - As instalações e propriedades particulares preexistentes na área, consentidas por comodato ou legalizadas de qualquer forma, serão mantidas na íntegra com suas funções originais, desde que não ampliem seus espaços usuais e nem comprometam a cobertura vegetal remanescente. Da leitura e interpretação sistemática das leis estaduais e federal, bem como da resolução de tombamento expedida pelo Secretário Estadual de Cultura, chega-se não a uma petição de princípios como quer dar a entender o réu, mas a um conjunto de normas regulamentadoras e cogentes do princípio constitucional previsto, agora, no art. 225 e seu parágrafo quarto, por força do qual a Serra do Mar foi considerada patrimônio nacional, a partir da vigência da Constituição Federal (05.10.1988). Estas normas regulamentadoras, por si sós, representam a limitação ao direito de propriedade do titular do domínio ou posse de áreas inseridas naquelas consideradas de proteção ambiental. Éo caso do réu que deveria, no caso, usar de sua propriedade, mantendo apenas o barraco já construído, nos termos da norma federal supracitada e resolução estadual igualmente transcrita, sem realizar qualquer outro tipo de construção para qualquer finalidade, uma vez que, é forçoso reconhecer, o terreno de propriedade do réu está situado, pelo menos em parte, em faixa de terreno de marinha, além de inserido em área de proteção ambiental permanente, sem contar que a nova construção sequer observou as posturas municipais. Assim, vedado qualquer tipo de construção - e é isto que se conclui da interpretação sistemática das normas em questão -, verifica-se que, procedendo, o réu, a uma construção de casa de alvenaria, cometeu ato ilegal, pois contrariou as aludidas normas de proteção ambiental (já que existem, são válidas e possuem eficácia) e, muito embora não tenha agredido a cobertura vegetal remanescente, a sua simples existência representa agressão ao patrimônio nacional, à estação ecológica criada e à área de proteção ambiental assim consideradas pelas normas jurídicas, em sentido lato, acima mencionadas. Mesmo assim não se considerando, a construção de alvenaria abre um precedente caracterizador de ameaça ao meio ambiente, pois todos os eventuais proprietários poderiam se sentir prejudicados e cada qual erigir sobre terreno inserido em área de proteção ambiental outras casas de alvenaria, de modo a contrariar todas as finalidades legais, desde a norma constitucional, que garante a defesa e o direito a um meio ambiente sadio, até a resolução estadual, que tombou a Serra do Mar como patrimônio cultural. Nesse sentido, a ameaça de dano potencialmente considerada. Aqui não vale o argumento expendido pelo réu de que outras casas ali preexistiam, uma vez que, mesmo iniciada a construção antes do advento da Lei Estadual 5.649, de 28.04.1987, o réu infringiu decreto federal anterior, no caso de 23.10.1984, cuja cópia se encontra a fl. 284 dos autos (confira-se o art. 9.°, inclusive transcrito anteriormente). Disto tudo se infere que, no trato de proteção ambiental, mais perigoso e a ameaça de dano do que o dano considerado isolado. Vale dizer: a JUSTIÇA SOCIAL 239 240 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO construção de alvenaria, considerada de per si, dano algum chegou a produzir, na visão macroscópica das provas produzidas. Todavia, se se considerar, referida construção, elemento de degradação e agressão à biota, afastando os ecossistemas ali existentes, na visão microscópica dos cientistas ambientalistas, além de elemento de potencial fator de proliferação de outras construções, gerando a ocupação desenfreada e desorganizada do solo, mesmo que urbano como quer o réu, conclui-se que o risco ao meio ambiente aumenta-se em proporção alarmante, a ponto de suscitar nos legisladores a preocupação de proteção preventiva ao meio ambiente, antes que seja tarde. O Ministério Público, na condição de instituição voltada e legitimada a ser o agente preventivo e fiscalizador de eventuais danos ou ameaças potenciais de dano ao meio ambiente, postulou no interesse difuso como a voz de toda a sociedade e, nesse sentido, o pedido desta, enquanto interesse público, deve se prevalecer sobre o interesse do particular, respeitando o seu legítimo e constitucional direito à propriedade, não mais livre, sob a ótica do liberalismo clássico, mas cumpridor de uma função social. No caso, a propriedade do réu, cumprindo o seu interesse social, deve permanecer intocada, sob pena de, no exercício de livre disposição e gozo da propriedade, vir a comprometer toda a fauna e flora da região. III - Diante do exposto, julgo procedente o pedido do autor, para condenar o réu em obrigação de fazer consistente na demolição das obras, remoção do entulho e restauração do local na forma em que se encontrava, permanecendo apenas o antigo barraco de madeira. Torno definitiva a liminar concedida. O prazo para o cumprimento da obrigação será de 60 (sessenta) dias, contados do trânsito em julgado desta decisão, devendo o autor promover a regular execução. P.R.I. Perufbe, 25 de outubro de 1990. ALOÍSIO SÉRGIO REZENDE SILVEIRA - Juiz de Direito. PROMOTORIA: Dr. MÁRCIO FERNANDO ELIAS ROSA Promotor assistente: Dr. RENATO NASCIMENTO FABRINI Promotor de Justiça coordenador: Dr. EDIS MILARÉ 7. Bibliografia ALTAVILA, J. Origem dos direitos dos povos. São Paulo : Melhoramentos, 1964. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco (especialmente livro V) e Política. ASCOLI, Max. La giustizia. Pádua : Cedam, 1930. BODENHEIMER, E. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BRETHE DE LA GRESSAYE. Introduction à l'étude du droit. Paris : Recueil, 1947. CATHREIN, V. Filosofia del derecho. Madri : Reus, 1940. v. 15. -. Philosophia moralis. Friburgo : Herder, 1905. CAVALCANTI FILHO, Theophilo. O problema da segurança no direito: São Paulo : RT, 1964. 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O positivismo jurídico: 4.1 Identificação do "direito" com o "direito positivo"; 4.2 Correntes positivistas: 4.2.1 Teoria geral do direito positivo; 4.2.2 Teoria pura do direito; 4.2.3 Doutrina das decisões judiciárias; 4.2.4 Doutrina da linguagem jurídica; 4.2.5 Doutrina da autonomia da vontade; 4.2.6 Doutrina do positivismo jurídicomoral; 4.3 Apreciação crítica - 5. Doutrina clássica do direito natural: S.1 Formação histórica do direito; 5.2 A filosofia de S. Tomás: 5.2.1 Definição de lei; 5.2.2 Tratado da justiça; 5.3 O pensamento filosófico de Vitória e Suárez; 5.4 O pensamento de Montesquieu; 5.5 O direito natural no pensamento filosófico-jurídico moderno; 5.6 Apreciação crítica: 5.6.1 Crítica ao conteúdo; 5.6.2 0 conteúdo do direito natural; 5.6.3 Sentido histórico concreto; 5.6.4 Valores vivos e presentes - 6. Doutrina racionalista ou do direito natural abstrato: 6.1 Concepção racionalista; 6.2 Apreciação crítica - 7. Doutrina dos valores ou da cultura: 7.1 Direito como cultura; 7.2 Que é cultura?; 7.3 Apreciação crítica - 8. Conclusões: 8.1 Pensamento comum; 8.2 Existência de pseudoproblemas; 8.3 Culturalismo e direito natural; 8.4 Positivismo jurídico e doutrina da justiça; 8.5 Justiça; 8.6 Pessoa humana - 9. Outras formulações: 9.1 "Justiça e direito", E. Bodenheimer; 9.2 "Existencialismo e direito", Helvécio O. Azevedo; 9.3 "Teoria tridimensional do direito", Miguel Reale; 9.4 "A caminho de um novo direito natural", Cabral de Moncada; 9.5 "Importância da filosofia do direito", Benjamin Cardozo - 10. Bibliografia. l. Concepção positivista e concepção ética do direito Estudar a relação entre direito e justiça significa enfrentar um dos principais problemas de filosofia jurídica, que consiste em responsader à pergunta: qual o fundamento do direito?' As respostas formuladas pela múltiplas doutrinas que discutem o problema podem ser agrupadas em duas posições fundamentais: a) concepção naturalista ou positivista do direito; b) a concepção humanista ou ética do direito. As doutrinas positivistas têm por característica comum considerar o direito como um fato semelhante aos fenômenos naturais, que deve ser estudado pelos mesmos processos das ciências físicas e naturais. Nesse sentido elas constituem uma concepção naturalista e não tomam conhecimento de qualquer fundamento do direito em princípios de ordem moral ou valores, como a justiça. As doutrinas vinculadas à concepção ética ou humanista consideram o direito e a atividade humana como realidade de natureza essencialmente distinta da dos fenômenos físicos. E atribuem ao direito um fundamento ético, representado pelos princípios da justiça ou valores semelhantes. As concepções positivistas consideram o direito e sua força obrigatória como um fato. Uma norma é "direito" porque é obrigatória: "jus quia jussum est" jussum est". A concepção ética considera o direito como um meio de realizar a justiça: "jus quia justum est". Evidentemente, essas posições doutrinárias representam antes pontos de referência e aproximação, porque, na realidade, as diversas concepções apresentam-se mescladas com elementos variados e freqüentemente limitam-se a acentuar um aspecto particular do problema, sem negar explicitamente os demais. " "Droit et État apparaftraient comme des créations inintelligibles, arbitraires et d'ailleurs inopérantes, sans un principe idéal qui en légitime l'existence, 1'organisation, le contenu. Ce principe idéal, c'est Ia Justice. La notion du juste, proclame Del Vecchio, est 'Ia pierre angulaire de tout édifice juridique... De là la nécessité d'un examen auquel notre conscience ne peut se soustraire et qui constitue Ia tâche suprême de Ia philosophie du droit"'. H. Lévy-Ullmann, Prefácio à tradução francesa de Justices, Droit, État, Études de philosophie Juridique, de G. Del Vecchio, p. XXIII. "Jus quia "Jus quia justum est" 244 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 245 No estudo da concepção positivista é necessário distinguir: a) o positivismo filosófico; b) o positivismo científico; c) o positivismo jurídico propriamente dito. É o que faremos nos parágrafos seguintes, dedicados ao exame dessas três doutrinas. Como representativas da concepção ética, serão examinadas em seguida: a) a doutrina clássica do direito natural; b) a doutrina racionalista do direito natural abstrato; c) a doutrina da cultura ou dos valores. 2. O positivismo filosófico 2.1 Sistematização de Augusto Cocote As correntes do positivismo jurídico contemporâneo ligam-se, em geral, a uma concepção filosófica, cujas raízes podem ser encontradas no pensamento antigo, mas que foi sistematizado no mundo moderno principalmente por Augusto Comte.2 A esse pensamento ligam-se, entre outros, Littré (1801-1881), Taine (1828-1893), Durkheim (18581917), na França; Stuart Mill (1806-1873), A. Bain (1818-1903), H. Spencer (1820-1903), na Inglaterra; Duhring (1837-1885), Laas (1837-1885), Fechner (18011887), Wundt (18321920), Weber (1864-1920), na Alemanha; Rosmini (1797-1855), Lombroso (1836-1909), Ferri (18561929), Garofalo (1851-1927), na Itália; Teófilo Braga (1843-1924), Teixeira Bastos, Júlio de Matos, em Portugal; Benjamin Constant (1837-1891), Miguel Lemos (1854-1916), Teixeira Mendes (18551927), Pereira Barreto (1840-1928), no Brasil. Para explicar convenientemente a natureza e o caráter próprio da filosofia positiva, diz Cocote, é indispensável considerar a marcha progressiva do espírito humano. j2) Augusto Cocote nasceu em Montpelier em 1798 e morreu em 1857. Estudou na Escola Politécnica de Paris (1814 e 1815). Foi secretário de Saint-Simon (1817 a 1822). Escreveu: Cours de philosophie positive, 6 v. (1830 a 1942), Discours sur 1'esprit positive (1844), Systeme de politique positive (1851-1854)' Catechisme positive (1852). "Estudando, assim, o desenvolvimento total da inteligência humana, em suas diversas esferas de atividade, desde sua primeira e simples manifestação até os nossos Lei dos dias, eu penso ter descoberto uma grande lei três estados fundamental, a que esse desenvolvimento está sujeito por uma necessidade invariável... Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados diferentes: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; o estado científico ou positivo."3 No estado teológico, o espírito humano vê os fenômenos como produtos da ação direta e contínua de agentes sobrenaturais. No estado metafísico, que é uma simples modificação geral do primeiro, os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, capazes de engendrar todos os fenômenos. Finalmente, no estado positivo, "o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia à investigação sobre a origem e o destino do Universo, e ao conhecimento das causas íntimas dos fenômenos, para se ater unicamente pelo uso combinado do raciocínio e da observação, à descoberta de suas leis efetivas, isto é, suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança".' 2.2 Posições fundamentais Dentro de uma grande variedade de doutrina, divergindo, inclu sive, de muitas opiniões de A. Cocote, os positivistas, em geral, estão de acordo com suas posições fundamentais, que podem ser assim sintetizadas. a) renúncia do espírito humano à investigação das causas e princípios fundamentais das coisas; b) limitação da ciência e da filosofia ao estudo do fenômenos sujeitos à observação; c) conseqüentemente, caracterização das leis como simples relações invariáveis de sucessão e de semelhança. 2.3 Apreciação crítica É inegável que o positivismo, com sua preocupação pelo estudo objetivo dos fatos e rigor na observação, representou um movimento (a A. Cocote, Cours de philosophie positive, lição 1. Loc. cit. Posições positivistas 246 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 247 científico da maior importância e significação na história do pensamento humano. É, além disso, plenamente válida sua crítica contra o apriorismo idealista de certas correntes filosóficas. O estudo dos fatos observáveis é fundamental para a ciência. Mas ele é apenas o ponto de partida. Sobre ele deve-se exercer a reflexão do pensamento humano. Nisso consiste a importância e a grandeza da filosofia e da própria ciência. E aí reside a grande falha do positivismo. Ele é a negação radical da cognoscibilidade das coisas em si mesmas: "Só podemos conhecer os fenômenos, que são manifestações das coisas, mas não as coisas em si mesmas ('noumenos'). Todos os nossos conhecimentos são relativos e contingentes".' Por isso, ele é a negação da possibilidade da filosofia e da ciência, pois, sem princípios absolutos, universais e necessários, não há dedução nem indução possíveis e não há conhecimento certo de qualquer espécie. Não podemos diminuir a importância dos fenômenos e de seu estado objetivo no trabalho da ciência. Mas não podemos também produzir a atividade da intel gência humana ao campo das realidades sensoriais e contingentes. E sempre válido o princípio da velha sabedoria aristotélica: "Nada há na inteligência que não tenha vindo dos sentidos'. Mas, de acordo com as mesma filosofia, é preciso acrescentar que a natureza do conhecimento intelectual - abstrato e universal não se confunde com a do conhecimento pelos sentidos,' que é, sempre concreto e individual. E, de certa forma, esse o sentido da observação de Bertrand Russel: "A lógica e a matemática nos forçam a admitir uma espécie de realismo no sentido escolástico; isto é, a admitir que há um mundo dos universais que não se prendem a tal ou tal existência particular. Esses universais devem existir, mas em sentido diferente daquele em que existem os dados particulares".' (s) Tout est relatif, voilà lê seul principe absolu", Sentences de Augusto Coorte, Charles Maurras. (6) D princípio "Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu" é completado ror outro: "Sed alio modo est in sensu, alio autem modo est in intellectu". 'La loi scientifique ne fait jamais qu'exprimer (de façon plus ou moins directe ou plus ou moins détournée) Ia proprieté ou I'exigence d'un certain indivisible ontologique qui par lui-même ne tombe pas sous lês Bens (n'est pas observable) et ret pour les sciences de Ia nature un x (d'ailleurs indisppensable), et qui p'est autre que ce que lês philosophes désignent sous le nom de nature ou essence". J. Maritain, "Philosophie et science expérimentale", cap. II de Les legrés du savoir, Paris : Desclée, 1935; R. Garrigou-Lagrange, Le realismo Ju principe de finalité, Paris : Desclée, 1932. (7) 3ertrand Russell, "L'importance de Ia logistique", in Rev. de Mét. et de Mor., v. XIX; v. J. Maritain, "Philosophie et science expérimentale", cap. 11, Lts Jegrés du savoir, p. 51. Por isso, Meyerson, na sua obra De l'explication dans les sciences, afirma: "A verdadeira ciência não é, de forma alguma e em nenhuma de suas partes, conforme ao esquema positivista".8 3. O positivismo científico no direito 3.1 Aplicação às ciências Os princípios e os métodos da filosofia positiva foram aplicados aos diversos setores da ciência. O próprio Cocote aplicou-os especialmente à sociologia e à política; Stuart Mill, à lógica, à psicologia e à moral; Weber, Fechner e Wundt à sociologia e à ciência em geral, dentro da concepção evolucionista; Lombroso, à antropologia e à ciência do direito; Durkheim, à sociologia e à educação. Dentro desse quadro, interessa-nos a aplicação do positivismo científico às disciplinas sociais, e, particularmente, à ciência do direito. Nesse campo, as diversas correntes positivistas caracterizam-se, em geral, por algumas posições fundamentais: a) reduzem a atividade humana e a atividade social a uma simples realidade física ou natural; b) identificam fundamentalmente as ciências humanas e sociais e, entre elas, a moral e o direito, às ciências físicas e naturais;9 c) consideram a atividade humana sujeita ao mesmo determinismo rígido do mundo físico ou biológico; e negam, conseqüentemente, a existência da liberdade. No campo do direito e das ciências sociais, podem ser indicadas, como representativas desse pensamento, entre outras, a Escola Sociológica Francesa, iniciada por E. Durkheim, e a Escola Positiva Italiana de Direito Penal, de Lombroso e Ferri. Posições fundamentais (8) (9) E. Meyerson, De l'explication dans les sciences, Paris : t. 1, p. 31, em que transcreve a seguinte observação de Cournot: "Quoi qu'on puisse dire dans les écoles scientifiques modernes, oìt l'on craint surtout de paraftre faire de Ia métaphysique, l'atomisme mitigé, aussi bien qu'automisme pur, implique Ia prétention de saisir par quelque bout l'essence des choses et leur nature intime". Nesse sentido é significativa a classificação das ciências adotada por Augusto Cocote: "A filosofia positiva se acha dividida em cinco ciências fundamentais: a astronomia ("física celeste"), a física ("física mecânica"), a química ("físicoquímica"), a fisiologia ou biologia ("física fisiológica"), a sociologia ("física social") (Curso de Filosofia Positiva, 2' lição). A elas acrescenta a "matemática", que, sob o ponto de vista puramente lógico, é rigorosa e necessariamente universal porque "não existe qualquer problema que não seja redutível em última análise a uma questão de números" (3.' lição). 248 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 249 3.2 Escola Sociológica Francesa A Escola Sociológica Francesa é diretamente inspirada pelo positivismo de A. Cocote. São de Durkheim, o fundador da Escola, as seguintes considerações: "Augusto Cocote verificou que todas as ciências repousam sobre o axioma de que os fatos, que elas estudam, estão ligados por relações necessárias, isto é, sujeitas ao princípio determinista, donde ele concluiu que esse princípio, verificado em todos os reinos da natureza, das matemáticas à biologia, devia também ser verdadeiro no campo social... Dada a maneira por que um povo é constituído em determinado momento de sua história e o estado de sua civilização, daí resulta uma organização social caracterizada de tal ou tal modo, da mesma forma que as propriedades de um corpo resultam de sua constituição molecular. Encontramo-nos em face de uma ordem de coisas estável, imutável e uma ciência pura toma-se ao mesmo tempo possível e necessária... Essa ciência, puramente especulativa, é a sociologia"." A essa disciplina dedicou Durkheim seus amplos estudos sobre La division du travail social (1893), Les régles de Ia méthode sociologique (1895), Le suicide (1897), Les formes élémentaires de Ia vie religieuse (1912) e sua contribuição permanente à revista Année Sociologique, de Paris. As idéias da escola podem ser assim resumidas: a) as ciências da sociedade devem limitar-se ao estudo dos fatos sujeitos ao método experimental; b) os fatos sociais são da mesma natureza que os fenômenos físicos e regidos pelo mesmo determinismo; c) conseqüentemente, a ciência social é uma física social, conhecimento especulativo do que é. Não há ciências normativas, porque o espírito humano não pode descobrir verdades fora da observação e da experimentação; valores, como justiça, moral, direito natural etc., estão fora do campo científico. 3.3 Escola Positiva de Direito Penal Dentro dessa mesma perspectiva, na Itália, Lombroso aplicou o método de Cocote à ciência do direito. E, juntamente com Ferri e Garofalo, constituíram a chamada Escola Positiva de Direito Penal. Reduzindo as dimensões da ciência do direito penal ao plano das Émile Durkheim, "Sociologie et science sociale", em De Ia méthode dans le sciences, em colaboração com outros autores, p. 312. ciências físico-naturais, Lombroso desenvolveu suas pesquisas e investigações no campo da antropologia criminal. E criou a figura do "criminoso nato", o crime é uma fatalidade biológica e os indivíduos nascem delinqüentes, como nascem idiotas, cegos ou surdos." Apesar de seus excessos, a criminologia moderna reconhece-lhe • mérito de haver iniciado ` o estudo do crime, do ponto de vista científico-causal", como diz Mezger. É preciso acrescentar que Ferri • principalmente Garofalo corrigiram os desvios mais pronunciados da Escola. Mas, como observa Queiroz Filho, "a opção pelo chamado método positivo já implicava uma redução da ciência do direito penal. E, se nos detivermos no estudo sobre os `equivalentes do crime na vida nos animais e das plantas', que figura no primeiro capítulo - `embriologia do crime' de L'uomo delinquente, veremos a que extremos Lombroso conduziu aquela tendência naturalística que surgia, dominando a cultura do seu tempo. Veremos, ainda, como se deslocava • eixo de gravitação do estudos penais do campo do direito para o das ciências naturais"." 3.4 Apreciação crítica Uma apreciação crítica do positivismo científico não pode deixar de reconhecer os aspectos favoráveis de sua contribuição para o desenvolvimento das ciências. O rigor do método, a preocupação com os dados objetivos da realidade, o combate ao apriorismo das concepções idealistas, constituem elementos altamente positivos, que lhe devem ser creditados. Deploige, em estudo notável sobe Le conflit de Ia morale et de Ia sociologie,13 examinou os diversos aspectos do problema. É preciso, em primeiro lugar, reconhecer, com os positivistas, a existência de grandes variações da conduta humana e dos costumes sociais no espaço e no tempo. Essas variações são desprezadas em geral e até negadas, mesmo, pelas escolas jus-naturalistas. Mas o mesmo não acontece com outras concepções filosófico-sociais como o tomismo. Com razão, escreveu Durkheim: "Não se pode mais sustentar que existe uma só e única moral, válida para todos os "' Cesare Lombroso, L'uomo delinquente, 1897. Z' A. Queiroz Filho, Lições de Direito Penal, Ed. RT, 1966, cap. II, n. 5, P. 62. "' Simon Deploige, Le conflit de Ia morale e de Ia sociologie, Louvain, 1931. Relativismo total 248 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 249 3.2 Escola Sociológica Francesa A Escola Sociológica Francesa é diretamente inspirada pelo positivismo de A. Cocote. São de Durkheim, o fundador da Escola, as seguintes considerações: "Augusto Cocote verificou.que todas as ciências repousam sobre o axioma de que os fatos, que elas estudam, estão ligados por relações necessárias, isto é, sujeitas ao princípio determinista, donde ele concluiu que esse princípio, verificado em todos os reinos da natureza, das matemáticas à biologia, devia também ser verdadeiro no campo social... Dada a maneira por que um povo é constituído em determinado momento de sua história e o estado de sua civilização, daí resulta uma organização social caracterizada de tal ou tal modo, da mesma forma que as propriedades de um corpo resultam de sua constituição molecular. Encontramo-nos em face de uma ordem de coisas estável, imutável e uma ciência pura toma-se ao mesmo tempo possível e necessária... Essa ciência, puramente especulativa, é a sociologia".10 A essa disciplina dedicou Durkheim seus amplos estudos sobre La division du travail social (1893), Les régles de la méthode sociologique (1895), Le suicide (1897), Les formes élémentaires de la vie religieuse (1912) e sua contribuição permanente à revista Année Sociologique, de Paris. As idéias da escola podem ser assim resumidas: a) as ciências da sociedade devem limitar-se ao estudo dos fatos sujeitos ao método experimental; b) os fatos sociais são da mesma natureza que os fenômenos físicos e regidos pelo mesmo determinismo; c) conseqüentemente, a ciência social é uma física social, conhecimento especulativo do que é. Não há ciências normativas, porque o espírito humano não pode descobrir verdades fora da observação e da experimentação; valores, como justiça, moral, direito natural etc., estão fora do campo científico. 3.3 Escola Positiva de Direito Penal Dentro dessa mesma perspectiva, na Itália, Lombroso aplicou O método de Cocote à ciência do direito. E, juntamente com Ferri e Garofalo, constituíram a chamada Escola Positiva de Direito Penal. Reduzindo as dimensões da ciência do direito penal ao plano das p0) Émile Durkheim, "Sociologie et science sociale", em De Ia méthode dons 1 sciences, em colaboração com outros autores, p. 312. ciências físico-naturais, Lombroso desenvolveu suas pesquisas e investigações no campo da antropologia criminal. E criou a figura do "criminoso nato", o crime é uma fatalidade biológica e os indivíduos nascem delinqüentes, como nascem idiotas, cegos ou surdos." Apesar de seus excessos, a criminologia moderna reconhece-lhe • mérito de haver iniciado "o estudo do crime, do ponto de vista científico-causal", como diz Mezger. É preciso acrescentar que Ferri • principalmente Garofalo corrigiram os desvios mais pronunciados da Escola. Mas, como observa Queiroz Filho, "a opção pelo chamado método positivo já implicava uma redução da ciência do direito penal. E, se nos detivermos no estudo sobre os `equivalentes do crime na vida nos animais e das plantas', que figura no primeiro capítulo - `embriologia do crime' de L'uomo delinquente, veremos a que extremos Lombroso conduziu aquela tendência naturalística que surgia, dominando a cultura do seu tempo. Veremos, ainda, como se deslocava • eixo de gravitação do estudos penais do campo do direito para o das ciências naturais".` 3.4 Apreciação crítica Uma apreciação crítica do positivismo científico não pode deixar de reconhecer os aspectos favoráveis de sua contribuição para o desenvolvimento das ciências. O rigor do método, a preocupação com os dados objetivos da realidade, o combate ao apriorismo das concepções idealistas, constituem elementos altamente positivos, que lhe devem ser creditados. Deploige, em estudo notável sobe Le conflit de la morale et de la sociologie,13 examinou os diversos aspectos do problema. É preciso, em primeiro lugar, reconhecer, com os positivistas, a existência de grandes variações da conduta humana e dos costumes sociais no espaço e no tempo. Essas variações são desprezadas em geral e até Relativismo negadas, mesmo, pelas escolas jus-naturalistas. total Mas o mesmo não acontece com outras concepções filosófico-sociais como o tomismo. Com razão, escreveu Durkheim: "Não se pode mais sustentar que existe uma só e única moral, válida para todos os °" Cesare Lombroso, L'uomo delinquente, 1897. uz> A. Queiroz Filho, Lições de Direito Penal, Ed. RT, 1966, cap. II, n. 5, u; p. 62. Simon Deploige, Le conflit de Ia morale e de Ia sociologie, Louvam, 1931. 250 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 251 homens, de todos os tempos e de todos os países. A moral varia • se modifica com as sociedades" .14 É certo que os jus-naturalistas dos séculos XVIII e XIX pretenderam legislar para a humanidade • para os séculos futuros.` Mas S. Tomás, por exemplo, diz coisa diferente: "Certas ações são consideradas justas e honestas por uns, • injustas e desonestas por outros, conforme as diferenças de tempos, de lugares e de pessoas"." Coincidência de pontos de vista? Apenas em parte. Porque, enquanto S. Tomás admite "certo" relativismo na moral e no direito, os positivistas afirmam um relativismo total, e negam a existência de quaisquer princípios universais e permanentes. Com isso tomam sem fundamento a moral • o direito. Por isso, o texto de S. Tomás acrescenta: "Há outros princípios inerentes à natureza humana e essenciais à justiça que são invariáveis" • constituem a base do agir humano, como o respeito à dignidade humana, o princípio da manutenção da vida social e da família, o dever de dar a cada um o que é seu etc. São princípios permanentes, que servem de fundamento às normas de conduta variáveis da moral e do direito". O mesmo deve-se dizer do método experimental. Ele é sem dúvida necessário. Foi desprezado Experimentalismo pelo apriorismo racionalista de algumas correntes, exclusivo mas defendido e utilizado não só pela ciência moderna como por filosofias antigas. S. Tomás, seguindo o ensinamento de Aristóteles, foi intransigente defensor do método de observação: "Quae pertinent ad scientiam moralem maxime cognoscuntur per experientiam".'g Mas o positivismo não se limita a isso. Pretende ater-se unicamente ao terreno da ciência experimental, afastando radicalmente qualquer reflexão de ordem ontológica ou metafísica. E essa posição é inadmissível. Sobre os dados da experiência, cabe à inteligência humana, através de intuições e raciocínios, exercer sua reflexão, e construir a ciência. Ficar preso aos dados da realidade sensível é condenar-se a ver apenas uma parte da realidade. Por isso, a ciência dos costumes em sua perspectiva positivista tem hoje poucos adeptos. E a eles se aplica a observação de Brethe de Lã Gressaye: os positivistas, que não crêem senão na realidade sensível, por estranha contradição, inventaram o mito da consciência coletiva, fazendo assim metafísica, sem o saber.19 É inadmissível, também, a redução da atividade humana e social às dimensões de uma simples realidade física. Na classificação das ciências de Cocote, sintomaticamente, as ciências propriamente huma- radical nas não figuram.20 Esses conhecimentos são atri buídos a duas disciplinas afins: à biologia e à sociologia, como se a realidade humana se limitasse às atividades biológicas e às influências sociais. A persistência dessa orientação científica justificou os brados de protesto e alerta de Alexis Carrel: "O homem, esse desconhecido", Gabriel Marcel, "Os homens contra o homem", Jacques Maritain, "Humanismo integral" e muitos outros. No plano das ciências da conduta, não possível fazer abstração do fator humano e deixar de reconhecer a dignidade especial do homem, capaz, por sua liberdade, racionalidade e poder de iniciativa, de influir na história como agente consciente e não como objeto passivo. Por isso, também, é inadmissível a redução das ciências humanas e sociais a um conhecimento apenas teórico e especulativo. Substituir a moral e o direito pela ciência dos costumes e a sociologia jurídica significa deixar sem resposta a questão fundamental desses ramos do saber. Os conhecimentos teóricos da estatística, da etnologia, da antropologia, da demografia etc. são necessários. Mas a ciência moral é, em si mesma, ciência prática. Seu objeto é ordenar a atividade humana e a convivência social. Naturalismo (14) (1s) Émile Durkheim. "Mon sujes intéréssant 1'homme em général, je tâcherai de prendre un langage qui convienne à toutes les nations, ou plutôt oubliant les temps et les lieux, je me supposerai ayant le genre humain pour auditeur. Oh! homme, de quelque contrée que tu sois, voici ton histoire, telle que j'ai cru Ia tire dans Ia nature, qui ne ment jamais", J. J. Rousseau, Discours sur inégalité, cap. I. .. quaedam, quae a quibusdam reputantur justa et honesta, a quibusdan reputantur injusta et inhonesta secundum differentiam temporum et locurum et personarus. Aliquid enim reputatur vitiosum uno tempore aut in una regione quod in alio tempore aut in alia regione non reputatur vitiosum", S. Tomás, Comentários à Etica de Aristóteles a Nicômaco, livro, I, lição III. "Illa quae pertinent ad ipsam justitiae notionem, nullo modo possunt mutari". Obra citada, livro V, lição 12, "Sunt aliqua operationes naturaliter homini convenientes, quase sunt secundum se rectae, et non solum quasi lege positae", "Summa contra gentiles", III, 129. Ética, livro X, lição 15. Ciência teórica ou prática (19) lntroduction générale a l'étude du droit, n. 23. (20) V. nota 9 supra. 252 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 4. O positivismo jurídico 4.1 Identificação do "direito" com o "direito positivo" • positivismo jurídico, apesar de ligar-se à mesma linha de pensamento, não se confunde com o positivismo filosófico e o positivismo científico. Ele consiste fundamentalmente na identificação do "direito" com o "direito positivo". Direito natural, princípios de justiça e conceitos semelhantes estão fora do campo da ciência do direito. São, no dizer de Kelsen,21 elementos ideológicos ou metajurídicos. Para o positivismo jurídico, diz Waline,22 a ciência do direito é unicamente a ciência do direito positivo. Ou, como diz o jurista húngaro Julius Moór: "O positivismo jurídico é uma idéia segundo a qual o direito é ditado pelo poder dominante na sociedade, em um processo histórico. Segundo essa concepção, só é direito aquilo que o poder dominante determina, e o que ele determina só é direito em virtude dessa circunstância mesma".23 Dentro dessa posição, é preciso distinguir duas correntes: a) o positivismo jurídico metodológico; b) o positivismo jurídico doutrinário. • primeiro é representado por aqueles juristas que, como método de trabalho, restringem seu estudo ao direito positivo, comentando os artigos dos códigos e da legislação, analisando a jurisprudência e limitando-se a tirar das leis e das decisões judiciárias os princípios gerais da legalidade jurídica. Não negam, mas também não levam em conta a justiça, o direito natural ou quaisquer outros princípios de ordem moral. • positivismo jurídico doutrinário, pelo contrário, é constituído pelas correntes que negam tais princípios, por inexistentes ou estranhos ao direito, e propõem-se a explicá-lo por outras razões de ordem científico-positiva. 121 H. Kelsen, A teoria pura do Direito, cap. II. (22) M. Waline, "Defense du positivisme juridique", in Archives de Philosophie du Droit, 1939, p. 88 e ss. (23) Julius Moór, "O problema do direito natural", apud Bodenheimer, Ciência do Direito, n. 24. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 253 4.2 Correntes positivistas Entre as correntes positivistas podem ser mencionadas, por seu caráter representativo: a) a teoria geral do direito positivo, de Bonnard e outros publicistas; b) a teoria pura do direito, de Kelsen, iniciador da chamada Escola de Viena; c) a doutrina das decisões judiciárias no direito (Gray); d) a doutrina da linguagem jurídica de Probert; e) a teoria da autonomia da vontade, inspirada em Rousseau e Kant; f) 4.2.1 Teoria geral do direito positivo A "teoria geral do direito positivo" foi elaborada principalmente por tratadistas do direito público. Consiste numa construção abstrata e especulativa formada pela generalização das normas vigentes na legislação dos diferentes países. Bonnard,24 um de seus principais representantes, afirma que o conhecimento científico do direito é essencialmente um estudo do direito por suas causas lógicas, que são os princípios gerais tirados do direito positivo. As regras do direito positivo são apenas conseqüências lógicas dos princípios gerais. 4.2.2 Teoria pura do direito A teoria pura do direito, diz Kelsen, é, em primeiro lugar, uma "teoria". Seu objeto é responder à pergunta: "que é o direito?" e não "o que deve ser o direito?" Além disso, é uma teoria do "direito positivo", Preocupa-se exclusivamente com a lei e as demais normas positivas. E, finalmente, procura "purificar" a ciência do direito, libertandoa da intromissão de ciências estranhas, como a moral, a sociologia, a psicologia. Define o direito como a "ciência das normas" e por norma entende um juízo hipotético condicional dispondo que o fazer ou não fazer algo será seguido de uma medida coercitiva do Estado: quem se apropriar ilegalmente de bens alheios será punido com prisão ou (24' Bonnard, Précis de droit administratif, Paris : 1943. anglo-americano a teoria do positivismo jurídico-moral, de Ripert. 254 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 255 multa; se o inquilino não pagar o aluguel estará sujeito ao despejo. O direito é um sistema ordenado dessas normas coercitivas. Esse sistema é dotado de uma unidade interna, porque todas as normas podem ser atribuídas a uma fonte única, que é a norma fundamental. O direito positivo, segundo Kelsen, é constituído por um conjunto de camadas jurídicas superpostas, em que cada uma tira seu valor jurídico da camada imediatamente superior. Assim, os "contratos' (normas contratuais) têm sua validade fundada nas "leis" (normas legais). A lei, por sua vez, se fundamenta na "Constituição" política do país (norma constitucional). E esta, numa "norma fundamental", que é a constituição ideal aceita pela opinião pública da nação. Para estabelecer a validade das regras de direito e das instituições jurídicas, Kelsen afasta qualquer preocupação com sua justiça ou valor. Não lhe interessa o conteúdo das normas, mas apenas seu aspecto "formal" de subordinação à regra fundamental. As disposições racistas do regime hitlerista, ou as normas de Calígula mandando render homenagens de senador a seu cavalo Incitatus, poderão ser tão jurídicas e válidas como as disposições do Código Civil ou as modernas declarações constitucionais dos direitos da pessoa. Dentro do caráter eminentemente consuetudinário do direito anglo-americano, desenvolveu-se um positivismo jurídico, fundado nas decisões judiciárias. John Chipman Gray,25 um dos nomes representativos dessa corrente, declara que o verdadeiro criador do direito não é o legislador, mas o juiz. O direito real de um Estado é constituído pelas regras que os tribunais estabelecem ao decidir sobre os direitos e deveres de cada um. O direito emanado do poder legislativo só adquire sentido e realidade depois de interpretado pelos juízes, ao aplicá-lo aos casos concretos. "Os tribunais comunicam vida às palavras inanimadas da lei." As regras assentadas pelos tribunais de um país constituem a fonte última de seu direito. Daí a importância preponderante atribuída à jurisprudência e ao estudo dos precedentes judiciários na revelação do direito. 4.2.4 Doutrina da linguagem jurídica Modernamente, por influência da filosofia da linguagem e do chamado positivismo lógico, surgiu um novo tipo de positivismo re (25) John C. Gray, The nature and sources of the law, Nova York, 1931. presentado pela doutrina da linguagem jurídica, que atribui importância fundamental aos aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos do direito." Talvez, objetivando a possível utilização de computadores na solução dos casos jurídicos, Probert define o direito como "a procura de uma orientação verbal que ajude a selecionar proposições compattvels . Essa orientação liga-se a uma tendência desenvolvida, a partir de Ludwig Wittgenstein, que sustenta que a análise e a crítica da linguagem constituem o objeto essencial da filosofia. Uma linguagem bem feita é o caminho para eliminar pseudoproblemas. 4.2.5 Doutrina da autonomia da vontade Muitos autores incluem, entre as correntes representativas do positivismo jurídico, a doutrina da autonomia da vontade, inspirada nas concepções de Rousseau27 e Kant28 e desenvolvida por Fouillée.29 O homem, essencialmente livre, não pode depender senão de sua vontade. Não há outras leis ou princípios que o obriguem, senão aqueles em que ele livremente consentiu, através de um acordo de vontades (contrato) ou de uma manifestação da vontade geral (lei) decorrente do contrato social. Como expressões da vontade autônoma, a lei e o contrato seriam os dois fundamentos últimos de toda a ordem jurídica. 4.2.6 Doutrina do positivismo jurídico-moral G. Ripert30 e outros juristas procuram dar ao direito uma base positiva, alicerçando-o na moral historicamente aceita pela sociedade. Partindo da distinção entre o fundamento do direito e o seu conteúdo, Ripert atribui ao primeiro caráter puramente positivo: a lei é obrigatória por si mesma, impõe-se a todos por ser uma determinação Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, ed. Univ. S. P., 1968; Walter Probert, "Law and Persuasion: The Language Behaviour of Lawyers", in University of Pennsylvania Law Rev., 1959, n. 108: Glaiville Willians, "Language and the law", in Law Quarterly Rev., n. 16, 1945, n. 62, 1946. E no Brasil Tércio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da norma jurídica, 2.a ed., Rio, Forense, 1986. J. J. Rousseau, Le contract social, "Discours sur origine et les fondements de 1'inégalité parnui les hommes". E. Kant. Crítica da razão prática, Elementos metafísicos da doutrina do direito. Fouilleé, La science sociale contemporaine, 1880. G. Ripert, Droit nauturel et positivisme juridique, 1918; La régle morale dans les obligations civiles, 1936. 4.2.3 Doutrina das decisões judiciárias • (26) (26) 29) (30) 256 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 257 da autoridade. Mas, no tocante ao conteúdo, quando se trata de elaboração do direito pelo legislador, este deve tomar em consideração os valores morais que predominam na sociedade. Nos países da Europa e nos influenciados pela cultura européia e a civilização ocidental, esse ideal moral que deve inspirar a legislação é a moral cristã. Independentemente de seu valor, Ripert considera a moral cristã como um fato, adotando, assim, uma posição positivista. 4.3 Apreciação crítica Uma apreciação crítica do positivismo jurídico deve distinguir, entre suas diversas correntes, duas atitudes diferentes. Uma primeira, representada pelos juristas que se limitam ao estudo do direito positivo, sem discutir o problema do seu fundamento. Outra, constituída pelos que negam ao direito um fundamento moral, representado pelos conceitos de justiça ou direito natural, e pretende encontrar uma base exclusivamente física para a ordem jurídica. A primeira atitude é válida, na medida em que o jurista, como estudioso de uma ciência particular, deixa à filosofia - no caso, à filosofia do direito - a discussão dos fundamentos da ordem jurídica. Mas aqueles que negam ao direito um fundamento ético ou moral, e pretendem reduzir as bases da ordem jurídica a uma dado positivo, como a coerção, a vontade geral, a autoridade social etc., na realidade contradizem sua posição positivista e contrariam a verdadeira natureza do direito. Contradizem sua posição positivista, porque em lugar de permanecer no estudo objetivo dos fenômenos, invadem o campo da filosofia e na realidade fazem metafísica. Nesse sentido, as discussões intermináveis sobre a natureza da consciência coletiva em Durkheim e nos seguidores de sua doutrina constituem amostra ilustrativa. Com razão, observou Brethe de La Gressaye, tais positivistas, que só crêem nas realidades sensíveis, inventaram o mito da consciência coletiva, fazendo metafísica sem o saber. Da mesma forma, na doutrina de Kelsen, todas as normas do sistema jurídico são hierarquicamente subordinadas à norma constitucional, e esta a uma norma hipotética ideal, que se considera extraída da sociedade e expressa pelo poder público. E, assim, esse positivismo acaba por basear todo o direito não em um fato positivo, mas numa norma, hipotética e vaga. Além disso, essas correntes contrariam a verdadeira natureza da ordem jurídica, na medida em que reduzem o direito à força. Realmente, negar à ordem jurídica seu fundamento na justiça e nas exigências da natureza humana significa reduzir o direito a um simples produto da força dominante no meio social, seja ela a vontade de um chefe, a deliberação de um órgão legislativo ou judicante, dotado de poder coercitivo, ou mesmo a opinião da maioria. Preceitos arbitrários e violentos, atentados à dignidade humana como os praticados nos campos de concentração e julgados pelo Tribunal de Nuremberg, seriam juridicamente inatacáveis se o direito se reduzisse a um imperativo da força coercitiva da sociedade. 5. Doutrina clássica do direito natural 5.1 Formação histórica do direito O reconhecimento de que o direito positivo encontra seu fundamento e justificação em certas exigências elementares da natureza humana acompanha a formação histórica do direito. Desde a Antigüidade, esse pensamento, com formulações diferentes, dominou as especulações filosóficas, éticas e jurídicas dos que se ocuparam do tema. Uma das primeiras manifestações dessa doutrina pode ser encon irada no teatro grego, na famosa tragédia de Sófocles: "Antígona". O rei Creon proíbe o sepultamento de Polínice, irmão de Antígona. Mas esta desrespeita a ordem recebida e sepulta o irmão, alegando que, acima da ordem positiva do Rei, devia cumprir certas leis não escritas: "Que não são nem de hoje, nem de ontem; Têm existência eterna (ninguém lhes assinala o nascimento); Nem poderia eu desafiá-las a enfrentar a vingança divina; Por temer a cólera de qualquer homem." Nos diálogos de Platão, está presente a mesma idéia fundamental. Na "República", Sócrates refuta o "direito da força" exposto por Protágoras que, como outros sofistas, pretende identificar a justiça com ` o e Platão interesse do mais forte": E no diálogo com Eutifron opõe-se à afirmação deste de que "a justiça é a vontade caprichosa dos deuses", para sustentar que as "coisas não são justas porque os deuses `querem', mas que os deuses as querem porque são justas". Aristóteles estudou amplamente o tema da justiça, como funda mento do direito. Seu pensamento a respeito está exposto principalmente na "Política" e na "Ética a Nicômaco", cujo libro V é delicado ao tratado da justiça. Grécia: Sófocles Sócrates Aristóteles 258 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 259 Em oposição à teoria de Arquelau, para quem "o direito não existe por natureza, mas só em virtude da lei", Aristóteles afirma: "O bem e o justo, objetos de que trata a ciência política, dão lugar a opiniões de tal forma divergentes e às vezes de tal forma degradadas, que se chegou até a sustentar que o justo e o bem existem apenas em virtude da lei e não têm nenhuma fundamento na natureza"." E, em diversas passagens, distingue o "justo natural", que corresponde às leis da natureza, e o "justo legal" ou positivo, estabelecido por leis emanadas da autoridade pública ou por convenções das partes. No período pós-socrático, a filosofia estóica, fundada por Zeno, de Citium, coloca no centro de seu sistema o Estóicos conceito de "natureza". A lei da natureza é idêntica à lei da razão. Como ser essencialmente racional, o homem deve conduzir sua vida de acordo com as leis da própria natureza, liberto das paixões e emoções, das preocupações com os bens terrenos e o mundo exterior. Essa razão, inspirada na natureza, é a base da lei e da justiça. A escola estóica e sua doutrina do direito natural exerceu profunda influência no direito romano. Em Roma, os mestres da jurisprudência ensinavam que, além do direito próprio de cada Estado, existe um direito Roma decorrente da natureza humana: "O direito civil e o das gentes distinguem-se deste modo: todos os povos que se regem por leis e por costumes usam em parte de um direito exclusivamente seu, e em parte do comum; portanto, o direito, que cada povo constitui para si mesmo, é exclusivo de uma cidade. O direito porém que a razão natural constitui entre todos os homens é observado do mesmo modo por todos os povos e chamase direito das gentes, isto é, direito de que usam todos os povos. Semelhantemente o povo romano usa em parte de um direito exclusivamente seu e em parte do comum a todos os homens".32 Cícero traduz o mesmo pensamento em sua famosa definição descritiva da lei natural, que assim pode ser sintetizada: há uma lei verdadeira, norma racional, conforme à natureza, inscrita em todos os cora ções, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo senado nem pelo povo; e o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza, e receber o maior castigo." A definição de Cícero indica cinco características fundamentais do direito natural: a) na base das leis positivas há uma lei verdadeira de ordem racional ("esta quidem vera lex, recta ratio"); b) essa lei corresponde às exigências da natureza e à dignidade natural do homem ("nature congruens"; "...ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus"); c) não está escrita nos códigos, mas na consciência dos homens ("diffusa in omnes"; "quae vocet ad officium jubendo, vetando fraude deterreat"); d) tem por autor o próprio Deus, criador da natureza ("Deus, Legis hujus inventor, disceptator, lator"; "unus erit communis quasi magister et imperator omnium Deus"); e) é universal no tempo e no espaço ("constans, sempiterna"; "huic legi nec obrogari fas est"; "nec vero aut per senatum, aut per populum solvi hac lege possumus"; "nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac: sed et omnes gentes et omini tempore una lex"). "E Cícero, como Aristóteles, faz do respeito à lei natural o objeto de uma virtude: a justiça. Porque, existindo uma inteligência comum a todos nós, que nos dá a conhecer as coisas, formulando-as em nosso espírito, as ações honrosas nós as atribuímos à virtude, e as desonrosas, ao vício; e só um louco concluiria que esse julgamentos são simples questões de opinião, e não impostas pela natureza".34 Esse é o pensamento comum dos juristas romanos, reafirmado nas freqüentes referências ao direito natural, à natureza das coisas e ao conceito tradicional de justiça, que Ulpiano define como "a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito" .35 Ulpiano Cícero (") Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro, VII, lição 7. (") (32) Justiniano, Institutas, 1. 1, t. 11, § 1.°. (35) Cícero, De Republica, 11, 22. O texto completo é o seguinte: "Est quidern vera lex, recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constante. Sempiterna; quae vocet ad officium jubendo, vetando a fraude deterreat; quae tamen neque probos frustra jubet aut vetat, nec improbos jubendo aut vetando movet. Huic legi nec obrogari fas est, neque derogari ex hac aliquid licet, neque tota abrogari potest; nec vero aut per senatum, aut per populum solvi hac lege possumus; neque est quaerenduz explanator aut interpres Sextus Aelius, nec erit alia lex Romae, alia Athenis; alia nunc, alia posthac: sed et omnes gentes et omni tempore una lex, et sempiterna et immutabilis continebit; unusque erit communis quasi magister et imperator omnium Deus, ille legis hujus inventor disceptator, lator; cui non parebit, ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus, hoc ipso leut maximas poenas, etiam si cetera supplicia, quae putantur, effugerit". Cícero, Le legibus, liv. 1, XVI, 45. Ulpiano: " Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi" (Dig. 1, 1, 10). V. n. 7.1 do Capítulo 5 retro, p. 142. 260 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 1 SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 261 Na época patrística as grandes figuras de Tertuliano,36 S. Ambrósio,37 S. Agostinho," Isidoro de Sevilha,39 inspirados na tradição greco-latina, ensinam que existe uma lei natural, fundada em Deus, autor da natureza, universal e imutável. Sua observância constitui a virtude da Justiça. 5.2 A filosofia de S. Tomás A filosofia do direito na Idade Média tem em S. Tomás de Aquino seu maior representante. Especialmente nos tratados De justitia e De legibus, que constituem partes de sua obra mais importante, que é a Suma Teológica, e nos Comentários à Ética e à Política de Aristóteles, encontra-se a exposição de sua doutrina, que dá continuidade e desenvolvimento ao pensamento aristotélico e serve de inspiração a uma importante corrente da moderna filosofia do direito. E, mesmo fora dos quadros do tomismo, os ensinamentos de S. Tomás, por sua profundidade e equilíbrio, têm recebido entusiásticos elogios de grandes juristas modernos, como Ihering, Duguit, Villey e outros!° Tertuliano (160-240), De testimonio animae, em que afirma que a alma humana é naturalmente cristã, "Apologeticus". Ambrósio (340-397) com S. Agostinho, S. Jerônimo e S. Gregório foi considerado um dos quatro doutores da Igreja. Autor de De officiis, Discursos, e de notável Correspondência. Arcebispo de Milão. Após o massacre de Tessalônica (390) proibiu ao Imperador Teodósio a entrada em Milão, e só lhe permitiu a comunhão após longa expiação. S. Agostinho (354-430). Teólogo, Filósofo, moralista, historiador. Considerado o precursor da filosofia da história. De civitate Dei, Confissões, Cartas. "Só se fosse possível ao homem deixar de ser homem, poderia ele viver sem estar sujeito à lei natural: Sine lege naturali essent si praeter naturam humani generis esse potuissent" (in Psalmas, CXVIII, Sermo 25, 4). É a mesma idéia contida na famosa definição de Cícero. Isidoro de Sevilha (560-636). Autor do Decretum Gratiani, em que diz que a lei da natureza nada mais é do que a lei áurea, contida no direito e no Evangelho, que nos compele a fazer aos outros o que faríamos a nós mesmos, proibindo-nos do contrário; escreveu também o livro das Etimologias, Etymologiarum, em que afirma ser "a liberdade universal de todas as criaturas humanas" um mandamento da justiça natural. (40) Escreveu lhering, em nota ao capítulo 9.° de seu célebre livro Der Zweck im Recht (4.' ed.): "Recriminaram-me, com razão, a ignorância das idéias de S. Tomás... Quantos erros se teriam evitado se se houvessem conservado com fidelidade as suas doutrinas! Quanto a mim creio que se as houvesse conhecido antes não teria escrito o meu livro. As idéias fundamentais que desejava publicar já se acham expressas, com clareza perfeita e notável profundidade, por esse pensador vigoroso". L. Duguit, no § 8 do 1.° volume de seu Traité de Drolt Constitutionnel, escreve: "L'analyse du sentiment de justice a été faite par Saint Thomas d'Aquin dans des termes qui n'ont jamais été dépasés". 5.2.1 Definição de lei No tratado De legibus,41 S. Tomás começa por definir a lei, em geral, pelo exame de suas quatro características essenciais: - ordenação da razão - para o bem comum - promulgada - pela autoridade competente .42 Distingue a seguir três espécies de leis: a) a lei eterna (lex eterna), que é o plano de Deus a respeito da criação e da ordem universal, "é a razão da sabedoria divina como diretora de todos os movimentos e ações no universo";43 b) a lei natural (lex naturalis), que é a participação da criatura racional na lei cósmica,44 é a lei da natureza humana conhecida racionalmente pelo homem, independentemente de qualquer revelação sobrenatural; c) finalmente, a lei positiva (lex positiva ou jus positivum), obra do legislador humano, mas que deve ser conforme à lei natural e, portanto, à lei eterna. A doutrina tomista do direito natural apresenta características que muitos mestres do direito moderno desconhecem. São imutáveis os preceitos da lei natural? S. Tomás distingue: a) A lei natural é absolutamente imutável em seus primeiros princípios:45 O bem deve ser feito e o mal evitado ("bonum faciendum et malum vitandum"), dar a cada um o que é seu ("suum cuique tribuere"), não lesar a outrem ("neminem laedere") etc. Patrística (36) (37) (38) (39) Princípios imutáveis (4)) (42) (43) (44) (45) I, II, questões 90 a 97. ... ex quatuor praedictis potest colligi definitio legis, quae nihil aliud est quam quaedam rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata" (1, II, q. 90, a. 4). "Lex aeterna nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum" (1, II, q. 93, a. 1). "Participatio legis aeternae in rationali creature lex naturalis dictur" (1, II, q. 91, a. 2). "Quantum ad prima principia legis naturae, lex naturae omnino est immutabilis" (1, i1, q. 94, a. 5 c.). "Hoc est primum praeceptum legis, quod bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum. Et super hoc fundatur omnia alia praecepta legis naturae" (1, II, q. 94, a. 2). 262 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 263 Aplicações variáveis b) Mas, quanto aos preceitos secundários, a situação é diferente:as à medida que se distanciam dos primeiros princípios, eles são cada vez mais contingentes e variáveis. Essa variação pode ocorrer em virtude do processo natural à razão de caminhar do imperfeito para o perfeito,47 por uma decadência dos costumes" ou simplesmente pela diversidade e variação das condições do meio social.49 Na base dessa distinção entre os preceitos da lei natural, está o paralelismo que S. Tomás estabelece entre os princípios da ordem prática e os da ordem especulativa ou teórica. Na ordem especulativa, todas as proposições se fundamentam em alguns princípios básicos, axiomáticos, evidentes por si mesmos, como o de identidade, o de não contradição, o da tríplice identidade, e outros.` Sobre a distinção entre os princípios fundamentais e os preceitos secundários de direito natural, v. adiante: "Apreciação crítica", 5.6. "É natural à razão caminhar do imperfeito para o perfeito; os primeiros homens que elaboraram as normas para a vida social, não podendo considerar tudo por si mesmos, instituíram muitos preceitos imperfeitos e falhos, que seus sucessores modificaram, substituindo-os por outros, que, em alguns casos, podem ainda não realizar a utilidade social". "Humanae rationi naturale esse videtur ut gradatim ab imperfecto ad perfectum perveniat. Unde videmus, in scientiis speculativis, quod qui primo philosophati sunt, quaedam, imperfecta tradiderunt, quae post modum per posteriores sunt tradita magis perfectae. Ita etiam et in operabilibus. Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum, non valentes omnia ex se ipsis considerare, instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia, quae posteriores muta-verunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitate". S. Tomás, Summa, 1, II, q. 97, a. 1. Por outro lado, pode a variação das leis explicar-se pela decadência e corrupção dos costumes de um povo. S. Tomás cita, várias vezes, a esse propósito o caso do latrocínio, que era permitido entre os antigos germanos: "... lex naturae; quantum ad prima principia communia, est eadem apud omnes et secundum rectitudinem, et secundum notitian. Sed quantum ad quaedan propria... potest deficere... propter hoc quod aliqui habent depravatam rationem ex passione, seu ex mala consuetudine, seu ex mala habitudine naturae: sicut apud Germanos olim latrocinium non reputabatur iniquum". Finalmente, às diferentes condições do meio social - "secundum differendam temporum et locorum et personarum" - correspondem normas positivas diferentes. "Ex parte hominum, quorum actus lage regulantur, lex recte mutari potest, propter mutationem conditionum hominum quibus secundum diversas eorum conditiones diversa expediunt" (1, II, q. 97, a. 1). A diversidade das leis positivas provém da variedade das coisas humanas: "Principia communia legis naturae non eodem modo applicari possunt omnibus propter multam varietatem rerum humanar n Et exinde provenit diversitas legis positivae apud diversos" (1, Il, q. 95, a. 2). Sobre a diversidade dos princípios na ordem teórica e na ordem prática, V, Os princípios fundamentais do método no direito, André Franco Montoro' Martins, 1942. Do mesmo modo, os preceitos básicos da lei natural estão para a ordem prática como os primeiros princípios axiomáticos estão para a ordem especulativa: ambos são princípios evidentes, impõemse por si mesmos." Pela simples apreensão das noções fundamentais da ordem prática, "bem" e "mal", e pela consideração do "agir" humano, a razão os formula imediatamente: ` o bem deve ser feito", ` o mal evitado", "dar a cada um o que é seu", "respeitar a natureza humana" etc. Sobre esses princípios fundam-se todas as demais normas, como suas aplicações. E essas aplicações variam naturalmente de acordo com as condições sociais, que são variáveis. "A justiça deve ser sempre respeitada, mas a determinação do que é justo em cada cado varia de conformidade com as condições diversas em que os homens se encontram."52 E, assim, ao lado de princípios absolutos e permanentes, que fornecem os critérios fundamentais, temos a extrema variação das soluções reais e concretas. Por isso, afirmou S. Tomás, "o que se refere à ciência moral é conhecido maximamente pela experiência". Mas, opondo-se ao relativismo radical dos nominalistas medievais,53 dá a esse conhecimento experimental, como observa Bodenheimer, uma base científica e rigorosa, representada pelos primeiros princípios da ordem prática. 5.2.2 Tratado da justiça Outro capítulo notável na obra de S. Tomás é o tratado da justiça, cujas posições fundamentais tivemos a oportunidade de estudar nos parágrafos precedentes, e que, assim, se poderiam resumir: a) a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade; b) há uma justiça geral ou social, cujo objeto é o bem comum, e uma justiça particular, que tem por objeto o bem dos particulares; "Praecepta legis naturae hoc modo se habent ad rationem practicam, sicut principia prima demonstrationum se habent ad racionem speculativam: utraque enim sunt quaedam principia per se nota" (1, II, q. 94, a. 2). 1, II, q. 104, a. 3, ad 1. E interessante aproximar desse texto a observação de Duguit: "Le sentiment de justice, comme toutes les choses humaines, a continuellement varié dans son application et ses développements. Mais cepedant réduit à ses éléments essentiels, il a un double objet, continuellement changeant dans ses manifestations, mais dans son fond, toujours identique à lui-même" (Traité de Droit Constitutionnel, § 8). Duns Scot (1270-1308), Guilherme de Occam (1290-1349). Opõe-se, também, ao relativismo de Arquelau e Carnéades, já mencionados. Ordem especulativa e ordem prática (47) (48) (49) (50) (52) (53) 264 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 1""-SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 265 c) esta se subdivide em justiça comutativa, que rege as relações entre particulares, e justiça distributiva, que se refere às obrigações da sociedade para com os particulares; d) o fundamento das obrigações de justiça é a própria natureza humana; e) o direito é o objeto da justiça. 5.3 O pensamento filosófico de Vitória e Suárez Essa tradição greco-romana e cristã é reafirmada por duas figuras fi exponenciais do pensamento filosófico, no século XVI, Francisco de Vitória (1480-1546) e Francisco Suárez (15481617). Contra o voluntarismo subjetivista e relativista de Duns Scot e Occam, esses autores afirmam a existência objetiva de uma lei natural, fundada na razão e não na vontade subjetiva dos indivíduos ou dos soberanos. A promulgação da lei e sua aplicação dependem evidentemente da vontade das autoridades governamentais. Mas "não basta a vontade do príncipe para fazer a lei". É preciso que esta seja "uma vontade justa e reta". Francisco de Vitória (1480-1546), dominicano, professor na Universidade de Salamanca, ao tempo de Carlos V, aplicou os princípios do direito natural à solução dos problemas relativos aos direitos da população indígena na América recém-descoberta. E, por seus estudos no plano das relações entre os povos, é considerado um dos fundadores do moderno direito internacional .54 Francisco Suárez (1548-1617), jesuíta, professor da Universidade de Coimbra, no reino de Felipe II, fez, também, importantes aplicações dos princípios do direito natural aos problemas das relações inter nacionais e da colonização do Novo Mundo. Opondo-se a Jayme I, da Inglaterra, combateu o pretendido direito divino dos reis. É famosa sua definição: "O direito natural é aquela forma de direito que existe dentro do espírito humano, que nos permite distinguir o bem do mal" 55 5.4 O pensamento de Montesquieu Até o século XVII, as doutrinas do direito natural apresentavam uma unidade fundamental, com as características que acabamos de indicar. Essa unidade foi rompida durante os séculos XVII e XVIII, com o aparecimento de outra concepção de um direito natural vinculado a uma concepção abstrata e imaginária da natureza humana. Dessa concepção, representada por Grotius, Puffendorf, Locke, Rousseau, Kant, nos ocuparemos no próximo item. Mas a linha da concepção tradicional do direito natural prosseguiu sustentada por grandes juristas e filósofos do direito. Montesquieu (1689-1755), partindo do conceito de que "leis são relações necessárias que decorrem da natureza das coisas",56 afirmou que a "natureza das coisas" manifesta-se, em parte, nas condições gerais e, em parte, nas tendências e peculiaridades variáveis da natureza humana. Entre as condições gerais menciona o desejo de paz, a satisfação de certas necessidades primárias, como as de comer, vestir, morar, a constituição de família e a sociabilidade. As tendências relativas e contingentes dependem de condições geográficas, especialmente climáticas, de fatores religiosos, culturais e da estrutura política de cada país. "Antes que houvessem leis, existiam relações de justiça possíveis", escreveu Montesquieu. "Dizer que não há nada justo ou injusto, a não ser o que é ordenado ou proibido pelas leis positivas, é o mesmo que afirmar que, antes de traçarmos um círculo, os raios não eram todos iguais." E acrescenta: "Esta lei natural de justiça é a razão humana enquanto governa todos os povos da terra".57 5.5 O direito natural no pensamento filosófico jurídico moderno F. Geny, Le Fur, G. Renard, Yves Simon, Maritain, Vareilles Sommieres, Boistel, Brethe de La Gressaye, Laborde-Lacoste, Valen (55) Sobre Suárez, v. Recaséns Siches, Estudios de Filosofia del Derecho, p. 425 e ss. (56) Montesquieu, L'esprit des lois, liv. 1.°, cap. 1.°. (57) Montesquieu, ob. cit., liv. 1, cap. III. (54) Sobre Vitória, escreveu Haroldo Valladão: "Observe-se, para exemplo de sua alta mentalidade de jurista, o combate de Vitória à argumentação dos conquistadores do Novo Mundo, que invocavam princípios do direito romano sobre a ocupação para justificar sua conduta". "Note-se que se baseava o direito de ocupação em texto das Institutas sobre a posse de animais, bravios, ferae bestiae, reconhecida pela sua captura em qualquer lugar onde ocorresse. Era, evidentemente, absurdo equiparar a ferae bestiae, seres humanos e povos, e alguns grandemente civilizados com as nações indígenas do México e do Peru... Doutra parte bem salientara Vitória que as terras descobertas tinham donos, os príncipes e povos das índias. E concluiu, irretorquivelmente, que tal título não pode fundamentar a posse dos espanhóis, do mesmo modo que não poderia fundamentar a dos `bárbaros' no território espanhol. `se eles nos tivessem descoberto'... Situou-se, assim, Vitória, seguido pelo jurista Suárez (1548-1617) em pólo oposto ao de Maquiavel. Era a alta moral pugnando, heroicamente, com a fria política praticada pelos chefes dos Estados con quistadores" (Democratização e socialização do Direito internacional, Rio, José Olímpio, 1961). 266 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 267 siri, Tourtoulon, Coste-Floret, entre outros, representam a doutrina tradicional do direito natural, no pensamento jurídico-filosófico francês do século XX. Na Bélgica: Jean Dabin, Jacques Leclerq e a Escola de Lovaina. Na Itália: Taparelli, D'Azeglio, Liberatore, Costa-Rosetti, Toniolo, Sturzo, Olgiati, Gonela, Bettiol. Na Alemanha e Suíça: Cathrein, Brunner, Helmut Coing, Vermeersch, entre outros. Na Espanha: Cepeda, Mendizabal e outros. No Brasil: João Mendes Jr., Leonel Franca, L. Van Acker, Alexandre Correia, Vicente Ráo, Cime Lima, Jônatas Serrano, Armando Câmara, Haroldo Valladão, A. Amoroso Lima, A. Alves da Silva, J. P. Galvão de Souza, E. Mata Machado e Celso Lafer. E, em capítulo especial, devem ser mencionados os notáveis documentos sobre os princípios e as aplicações da justiça e do direito natural em relação aos grandes problemas do mundo moderno. A mais importante dessas manifestações é, sem dúvida, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, que afirma: "O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo" (Preâmbulo). Na mesma linha de defesa dos princípios de justiça e de respeito à dignidade da pessoa humana do homem todo e de todos os homens - devem ser lembradas as encíclicas sociais: Rerum novarum, de Leão XIII, Quadragesimo Anno, de Pio XI, Mater et Magistra e Pacem in terris, de João XXIII, Populorum progressio, de Paulo VI, Laborem exercens, Solicitudo rei socialis e Centesimus annus, de João Paulo II. 5.6 Apreciação crítica 5.6.1 Crítica ao conteúdo Ao examinar criticamente a concepção tradicional do direito natural e, especialmente, a doutrina tomista, Miguel Reale afirma: "Os preceitos apontados como cardiais ou `primeiros' apresentam-se vazios de conteúdo, como aquele que manda dar a cada um o que é seu, deixando em aberto a determinação do devido a cada qual como próprio `segundo proporções estabelecidas pela natureza das coisas'. Como observa Fonsecrive, se toda gente convém em dar a cada um o que é seu, a dificuldade começa tão logo se procure saber precisamente o que é devido a cada um. Na realidade, na concepção ora 5.6.2 O conteúdo do direito natural É certo que os princípios do direito natural, sendo "princípios", são necessariamente gerais e têm conteúdo limitado a certos preceitos fundamentais. É, aliás, princípio lógico que a compreensão de um conceito é tanto menor quanto maior for sua extensão. Mas não é exato que eles sejam vazios de conteúdo. E oportuno lembrar a distinção que S. Tomás estabelece entre os primeiros princípios e os preceitos secundários de direito material (v. item 5.2. retro). Dabin, por exemplo, dedicou um longo capítulo de seu notável estudo sobre La philosophie de l'ordre juridique positif ao exame do conteúdo do direito natural.` E aponta, numa exposição que ele considera "três sommaire et, en quelque sorte, schématique", uma série de preceitos que correspondem às exigências essenciais e permanentes da natureza humana. Eis, em síntese, a lição do ilustre jurista: a) o conceito de natureza humana, comum a todos os homens e particular ao homem, não é um conceito vazio; seus traços fundamentais poder ser fixados com segurança. O homem é um ser essencialmente solidário e dependente dos outros homens; é natural ao 5g Miguel Reale, Filosofia do Direito, n. 183, p. 433 e ss. Sy' J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, Seção II, cap. II. examinada, ou se perde de vista a experiência concreta, da qual se pretende inicialmente partir para se atingirem por indução e abstração conceitos e valores universais de juridicidade, ou, então, passam a predominar as determinações ulteriores, pouco significando os limites abstratos admitidos com intransponíveis. Parece-nos, em suma, que o normativismo ético, por sua carência de sentido histórico concreto e por sua distinção abstrata entre o juridicamente lícito e o ilícito, só determinável com referência a uma ordem moral pré-constituída, não logra compreender a realidade jurídica na totalidade autêntica de seus elementos. De certa maneira, o elemento axiológico da norma permanece fora do processo, no qual o fato se ordena normativamente em virtude de valores reais e concretamente vividos".58 A crítica de Miguel Reale incide fundamentalmente sobre três pontos: a) os princípios do direito natural são vazios de conteúdo; b) falta a essa doutrina o sentido histórico concreto; c) de certa maneira, "o elemento axiológico da norma permanece fora do processo" da realidade jurídica. 268 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 269 homem entrar em relação com outros, porque sem a ajuda de seus semelhantes ele seria incapaz de viver e de se desenvolver material • espiritualmente; o meio social é para o homem como a atmosfera que ele respira, ou como a terra é para a planta; b) além dessa solidariedade humana geral, existem solidariedades naturais mais restritas, relativas a sociedades necessárias, como a família e a sociedade política. O homem começa por receber de outros • dom da existência: é o fato social primário, a solidariedade de pais • filhos; e esta geração resulta de outra solidariedade, a de pessoas de sexo diferente, que se unindo criam a vida. Ademais, o homem é um animal inserido numa unidade social superior aos indivíduos e aos grupos privados, sujeito às diretrizes de uma autoridade, encarregada de promover, com o consenso dos membros, a defesa e a prosperidade comuns; c) a essas tendências fundamentais, conhecidas pela observação • pela reflexão mais simples e confirmadas como fato histórico elementar, correspondem preceitos de direito natural interindividual, político e familiar; d) o primeiro preceito de direito natural interindividual: é o de que o homem dotado de natureza específica, diferente da planta e do animal, deve ser tratado como homem, como ser racional com um fim pessoal, e não como uma planta ou um animal; o homem deve respeitar o homem: é o dever de justiça. "O sentimento do justo e do injusto, escreveu Duguit, é um elemento permanente da natureza humana;ó0 o primeiro dever do homem para com o homem, o mais urgente, o mais necessário, é o dever de justiça, fundado na 'alteridade' ou distinção de pessoas substancialmente iguais", o que o obriga a respeitar a pessoa do próximo em sua dignidade moral e integridade física, a reparar os danos que lhe cause injustamente, a respeitar a equivalência das prestações etc.; e) no plano político, há, em primeiro lugar, deveres de direito natural da parte das autoridades públicas: dever preliminar de respeitar os direitos que pertencem aos cidadãos por sua qualidade de homens; direito à vida, à honra, a certos bens e liberdades; dever de atuar para • bem comum e não em benefício individual; dever de encaminhar uma distribuição eqüitativa dos benefícios e encargos sociais; dever de atribuir as funções públicas aos mais capazes etc.; existem, além disso, obrigações dos cidadãos para com a sociedade civil: impostos, serviço militar ou civil e prestações diversas; obediência às leis, às decisões da justiça e às ordens legítimas das autoridades; cooperação para o bem comum etc.; (60) L. Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, § 8. f) no plano familiar, os preceitos do direito natural podem se referir aos pais: obrigação de cuidar, alimentar e educar a prole, usar da autoridade paterna como um serviço em função do aperfeiçoamento pessoal do filho; da parte dos filhos: dever de respeito, obediência • assistência em caso de necessidade; da parte dos cônjuges: fundamentalmente o dever de amizade e cooperação em benefício dos filhos • do casal. 5.6.3 Sentido histórico concreto Não é válida, também, a crítica de que falta à doutrina tradicional do direito natural e, especialmente, ao tomismo o sentido histórico concreto. A afirmação de princípios fundamentais e permanentes não dispensa a consideração histórica da realidade social. Mas, ao contrário, exige essa consideração e lhe dá a base necessária e os critérios fundamentais. Sem a aceitação, explícita ou implícita, do princípio de que se deve dar a cada um o que é seu, e respeitar, assim, a dignidade de cada homem, nenhum passo poderá ser dado na vida concreta do direito. Da mesma forma que no sistema solar, diz Geny, é a partir dessa realidade humana fundamental que se irradiam as leis, os costumes, a jurisprudência e as demais fontes formais do direito .61 Os preceitos citados por Dabin representam apenas os critérios fundamentais e gerais indicados pela natureza humana. Eles devem ser determinados concretamente, em cada sociedade, pela consideração objetiva das condições historicamente contingentes e variáveis. Como diz Leclerq, é preciso distinguir as "regras de direito natural" das "regras conformes ao direito natural".62 As primeiras são exigências da natureza humana "genérica", cujo conteúdo, importância e realidade, como vimos, são incontestáveis. As demais correspondem à natureza particular e concreta de determinado grupo de homens. Ora, não é para a "natureza humana" genérica que o direito deve formular suas regras, mas para homens concretos, vivendo em determinado momento histórico. Essa realidade é profundamente variável: "O direito, até mesmo o natural, não pode ser imutável, porque a natureza humana também não é"; "...natura hominis est mutabilis", diz S. Tomás." Por (6" François Geny, Science et technique en droit privé positif, n. 12, p. 41. sn Jacques Leclerq, Leçons de droit naturel, t. 1, n. 48. 6" S. Tomás, De justitia, II II, q. 57, a. 2. ad 1. 270 INTRODUÇAO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 271 isso, essa matéria deve ser conhecida principalmente pela experiência. 64 E Dabin, um dos grandes mestres do tomismo contemporâneo, acrescenta: é incontestável que o método adequado exige que se tome como ponto de partida, em toda investigação de filosofia jurídica, não o direito em si, em geral, mas o fato histórico, concreto e tangível do direito positivo, tal como ele aparece à observação." Aliás, o próprio Miguel Reale reconhece, em sua Filosofia do Direito, que com essa concepção "abre-se um campo vastíssimo deixado às determinações do Poder, o que dá à concepção tomista do direito uma reconhecida plasticidade".66 5.6.4 Valores vivos e presentes A objeção de que, nessa doutrina, "de certa maneira, o elemento axiológico da norma permanece fora do processo da realidade jurídica", é, também, inaceitável. É claro que o direito de cada época não coincide com a justiça, mas é o esforço para alcançá-la. Os elementos axiológicos, representados pelos valores de "bem comum", "justiça", "dignidade humana", estão presentes em todos os momentos e fases da vida do direito, como critério e guia das decisões. Na elaboração da lei, o "bem comum" é a inspiração e a justificativa necessária de todos os projetos, pareceres e discussões. Constitui, aliás, exigência dos Regimentos das Câmaras e Assembléias Legislativas que os projetos de lei sejam sempre acompanhados de sua "justificação". São, ainda, a "justiça", o "bem comum", "a dignidade da pessoa humana", valores que devem estar sempre presentes no trabalho de interpretação e aplicação de qualquer norma. "Na aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum", determina o art. 5.° do Código Civil. O juiz, em todas as suas decisões, deve orientar-se fundamentalmente pela preocupação de realizar a "justiça" na aplicação da lei. Por isso, ele é chamado de "justiça viva" ("judez est justun animatum"); é a lei de "justiça inanimada". (6a) "Quae pertinent ad scientiam moralem maxime cognoscuntur per experientiam", S. Tomás, Comentários à Ética de Aristóteles, livro, I, lição III, n. 38. (65) J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, n. 2, p. 11. (~) Miguel Reale, Filosofia do Direito, n. 183, p. 433. Ballot-Beaupré, Presidente da Corte de Cassação, em França, após afirmar, em histórico discurso,67 o caráter imperativo do "texto legal claro, preciso e isento de qualquer dúvida", acrescenta: "Mas quando • texto apresenta qualquer ambigüidade ou incerteza - sabemos que essa é a regra -, o poder de interpretação do juiz é amplo. Ele não deve se preocupar, então, em descobrir qual foi, há 100 anos, o pensamento dos autores do Código ao redigir tal artigo. Mas, adiante dos modificações ocorridas, a justiça e a razão exigem que o texto seja adaptado humanamente às exigências da vida moderna". Com razão, escreveu Geny, acima do texto legal, necessário para limitar o arbítrio da apreciação individual, o juiz deve visar a um ideal superior de justiça, condicionada por todos os elementos que informam a vida social".68 Aliás, a doutrina clássica do direito natural, em seu desenvolvimento histórico, revela uma atitude de constante presença na vida social • jurídica de cada época. E é em função dessa experiência que ele se afirma e se desenvolve. Estariam, por acaso, fora da vida real de direito as invocações aos princípios de justiça, dignidade humana, lei natural e outros, feitos por Antígona ao se recusar a cumprir a ordem iníqua do Rei Creon? Por Santo Ambrósio, Arcebispo de Milão, ao proibir ao Imperador Teodósio a entrada na sua Diocese, após o massacre de Tessalônica? Por Vitória, ao opor-se aos conquistadores do Novo Mundo, em sua pretensão de tratar as populações nativas como animais capturados? Por Leão XIII, ao condenar na Encíclica Rerum Novarum, em 1891, a exploração de trabalho humano como simples instrumento de lucro? Por Hauriou, ao condenar a agressão e as violências sofridas pelos aliados na guerra de 1918 e ao proclamar que "é a bandeira do direito natural imortal que defendemos e trabalhamos para que seja respeitada" ou ao acrescentar que "existe um ideal de justiça universal e imutável, graças a ele o direito não se identifica com a força?" Por Pio XI, ao repelir na carta Mit Brenneder Sorge em 1938 as medidas racistas e violentas impostas pelo Nazismo poderoso e triunfante? Por João XXIII e Paulo VI, ao reclamara a urgência de reformas estruturais na sociedade atual, para que a humanidade supere o subdesenvolvimento em termos de justiça? Pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, ao denunciar os atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade na última guerra, e aprovar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde se afirma "que • reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famí V. V. F. Geny, Science et technique en droit privé positif, n. 9, p. 29 e 30. óej Ob. cit., n. 9, p. 30. 272 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 273 lia humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo?"69 6. Doutrina racionalista ou do direito natural abstrato 6.1 Concepção racionalista A partir do século XVII quebra-se a linha do pensamento clássico a respeito do direito natural. Surge uma nova Uma nova concepção que, apesar de manter a denominação concepção de "direito natural", é radicalmente diversa da doutrina clássica. Tem sido denominada doutrina racionalista ou do direito natural abstrato ou ainda escola do direito da natureza (do nome que lhe foi dado na Alemanha: Naturecht). Entre seus representantes incluem-se, além de outros, Grotius (1538-1645), Hobbes (15881679), Spinoza (1632-1677), Puffendorf (1632-1694), Locke (1632-1704), Rousseau (1712-1778), Kant (1724 1804).70 Deixando de lado aspectos particulares, que dão feição própria ao pensamento de cada um desses autores, podemos indicar algumas características comuns, que os separam da concepção tradicional. O ponto de partida é geralmente um conceito do estado de natureza em que o homem teria vivido primitiEstado vamente, formulado, por isso, não pela observação de natureza dos fatos atuais, mas por um esforço de abstração e imaginação. Nesse sentido, são significativas as palavras com que Rousseau abre seu famoso "discours sur 1'origine de 1'inégalité parmi les hommes": "Comecemos por afastar todos os fatos. O que teria podido ser o gênero humano se ele tivesse sido entregue a si mesmo, eis o que eu me proponho a examinar. Como o meu tema interessa ao homem em geral, procurarei usar uma linguagem que convenha a todas as nações, ou melhor, esquecendo os tempos e os lugares, imaginarei ter o gênero humano como auditório. O homem, de qualquer lugar que tu sejas, eis a tua história, tal como eu creio a ler na natureza que não mente jamais ".71 Desse estado de natureza do homem - pré-social, para Rousseau, anti-social, para Hobbes são deduzidos racionalmente os direitos naturais dos indivíduos. "O homem nasceu livre, mas em toda a parte ele está prisioneiro (...). Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem e aos direitos da humanidade." Daí a necessidade de encontrar uma forma de associação em que cada um se unindo a todos não obedeça, entretanto, senão a si mesmo e permaneça tão livre como antes. A esse problema fundamental, o CONTRATO SOCIAL dá solução. As cláusulas desse contrato são rigorosamente determinadas pela natureza do ato.72 Como diz Alexandre Correia ao criticar o pensamento rousseauniano: "Da natureza humana abstrata há de surgir more geométrico, toda a organização social, todos os direitos do homem". 0 Contrato Social é o padrão clássico de uma concepção imaginária da realidade." Os adeptos da nova doutrina não se limitam a procurar no direito natural princípios diretores para a elaboração jurídica. Mas pretendem estabelecer um sistema completo de preceitos, que descem até as menores particularidades. Não fazem, assim, a distinção tradicional entre os primeiros princípios, que constituem o direito natural, em sentido estrito e próprio, e suas aplicações contingentes e variáveis. E atribuem, assim, a todas as normas a mesma validade absoluta e universal. O direito natural, em lugar de ser um corpo restrito de princípios, a serem utilizados como fundamento e critério no trabalho de elaboração jurídica, passa a constituir um Código completo de regras, que servem de modelo ao direito positivo. Cada instituição humana, observa Capitant,74 tem assim seu modelo natural, do qual ela é uma reprodução mais ou menos grosseira. O papel de legislador consiste em apagar, pouco a pouco, as diferenças entre a cópia e o modelo. Dedução dos direitos individuais Princípios diretores e normas particulares (69) Na mesma linha da defesa dos direitos humanos, ver a recente tese do Professor Celso Lafer, A reconstrução dos Direitos Humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo, Ed. Cia. das Letras, 1988. V. Leonardo Van Acker, "Do direito natural objetivo e material, para o direito natural subjetivo e formal", em Curso de Filosofia do Direito, II fascículo, São Paulo, Herder, 1968, J. P. Galvão de Souza, O positivismo jurídico e o direito natural, São Paulo, 1940; J. Dabin, La philosophie de 1'ordre juridique positif, n. 68 e ss.; Brethe De La Gressaye, Laborde-Lacoste, Introd. à i'étude du droit, n. 34. Modelo completo para o direito positivo (70) "" J. J. Rousseau, Discours sur l'inégalité, princípio. 72j J. J. Rousseau, Du contras social, livro I. °" Alexandre Correia, A concepção histórica do direito, São Paulo, Odeon, 1935. O4j R. Capitant, lntroduction à l'étude du droit, n. 7. 274 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO A modificar, emendar, corrigir a cópia como o operário que reproduz no mármore a obra do artista. É esse o sentido da conhecida definição do Oudot: "O direito natural é o conjunto de regras do justo e do injusto que é desejável ver imediatamente transformado em leis positivas". A autoridade pública deve legislar? Pergunta Dabin e responde com ironia: que ela abra o "Código do Direito da Natureza" e aí encontrará o preceito exatamente adequado. Além disso, esse ideal tem um valor universal e é imutável, pois, aos olhos dos inovadores, a natureza humana não muda e a razão, que perscruta a natureza, não pode se enganar." 6.2 Apreciação crítica Quantos juristas vêem, ainda hoje, no direito natural exatamente esse modelo, conforme a pensamento das grandes autoridades da ciência jurídica nos séculos XVII e XVIII! Esse modelo foi, também, o responsável pelo descrédito em que caiu a concepção do direito natural no século XIX, em conseqüência da crítica rigorosa e destruidora, que lhe foi feita pela escola histórica • pelo positivismo moderno. Mas essa crítica tem inteira procedência. Porque a história mostra não um direito igual e imutável em todos os povos, mas instituições • regras jurídicas diferentes, acompanhando as diversidades de condições de tempo e de lugar. Até mesmo quando se trata de regulamentar um mesmo princípio - como garantir aos cidadãos meios de defesa contra o arbítrio da autoridade, ou ao Estado o poder de punir, cobrar impostos ou desapropriar - as normas e processos adotados apresentam variação multiforme. Além disso, essa doutrina é inaceitável do ponto de vista filosófico. Primeiro, porque desconhece o verdadeiro caráter da natureza humana, que é na realidade profundamente variável. Segundo, porque adota métodos aprioristas e dedutivos, no estudo de matéria que só pode ser conhecida por observação e experiência. Como notou Saleilles, uma doutrina "imobilista" ou "fixista" não pode ser social, porque a primeira das leis sociais é a da evolução • do progresso. É evidente, entretanto, que tais críticas não atingem a concepção tradicional do direito natural, cujo caráter objetivo e realista foi examinado no item anterior. X757 J. Dabin, La philos. de l'ordre jurid. posit., n. 68, p. 272. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 275 7. Doutrina dos valores ou da cultura 7.1 Direito como cultura A doutrina da cultura ou dos valores é uma formulação moderna dos problemas da filosofia e das ciências. No plano jurídico sustenta que o direito, como a ciência, a arte e os demais fenômenos sociais, pertence ao reino da cultura, ou seja, ao mundo construído pelo homem, através da história. Se o "conhece a ti mesmo" foi a preocupação central da filosofia de Sócrates; se o conhecimento do mundo físico é a nota dominante da ciência moderna; o propósito básico dos culturalistas poderia ser assim sintetizado: "Homem, conhece a obra de teu espírito". As instituições, os negócios, os objetos de arte, as construções, o cinema, o livro, o rádio, a televisão, a moeda, as máquinas, as leis, os contratos, são obras culturais realizadas pelo espírito humano que constrói, assim, um novo mundo sobre o mundo da natureza. Que espécie de realidade é o direito? Realidade natural e física, como a molécula, o granito, o oxigênio? Realidade psíquica, como os atos da vontade, os sentimentos, os conhecimentos? Realidade ideal, semelhante ao plano da lógica ou da matemática? Não, o direito pertence ao campo da "cultura". Tem, por isso, sentido ou significação. Está orientado para uma finalidade ou valor. Existe em um tempo e em um lugar. Raldbruch,7ó um dos grandes representantes da teoria culturalista do direito, expõe a doutrina na sua Rechtsphilosophie. A filosofia dos valores ou da cultura parte da rigorosa distinção que é preciso fazer entre "realidade" e "valor", entre "ser" e "dever ser". A célula, o oxigênio, os astros, são realidades ou "seres". O bem, o belo, a verdade, a justiça são valores, pertencem à categoria do "dever ser". Esse dualismo inicial se opõe ao monismo dos que negam os problemas de "valor", como tema distinto, e pretendem tratá-los como se tratam os problemas da realidade físico-natural. (76) G. Radbruch, Filosofia do direito. Raldbruch Realidade e valor 276 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Em face da realidade e dos valores, o espírito humano pode assumir as seguintes atitudes: a) atitude não valorativa ou avalorativa: é uma posição cega para os valores, é a atitude própria das ciências da natureza, que se limitam a conhecer e descrever a realidade física; b) atitude valorativa: consiste em apreender a escala dos valores e suas relações; é própria da filosofia dos valores, nos seus três ramos fundamentais: lógica, moral, dos valores estética, que se ocupam respectivamente da ver dade, do bem e do belo; c) atitude de quem relaciona fatos e valores, mas sem valorar os fatos; consiste em dar o sentido da realidade, Ciências sem lhe atribuir um valor; assim diz Raldbruch: culturais a ciência de determinada época não coincide com a verdade, mas é um esforço para alcançá-la; da mesma forma, a arte é um esforço para atingir o belo; a moral é uma tentativa no sentido do bem; esse é o conteúdo do conceito de cultura; a cultura não é um puro valor, mas uma realidade cujo sentido consiste em tender para a realização de determinado valor; essa é a atitude própria das ciências culturais. Raldbruch admite ainda, ao lado da atitude cega para os valores (wertblind), a valorativa (bewertend) e da referida a valores (wertbeziehend), a que supera os valores (wertuberwindend), isto é, a atitude religiosa. O objeto de cada uma dessas atitudes pode ser expresso nas seguintes palavras: - realidade; - valor; - sentido. Aplicando esses princípios ao campo da ciência jurídica, afirmam os culturalistas que o direito pode ser estudado por uma destas duas atitudes: a valorativa ou a cultural. Mas não pela primeira atitude, que é cega para os valores. O direito não pode ser conside rado com abstração do seu fim ou valor, como pretende a concepção positivista. "A atitude que nos permite apreender a verdade natural do direito é a que relaciona as realidades com os valores. O direito é um fato cultural, cujo `sentido' consiste em achar-se sempre a serviço da justiça. Essa é a atitude da Ciência do Direito." SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 277 O direito pode, também, ser considerado com um valor ou dever ser: justiça, bem comum, e ser estudado nessa perspectiva. É a atitude da Filosofia do Direito. Mas não pode ser estudado como ciência física ou natural. "Não pode haver uma justa visão de qualquer obra ou produto humano, abstraindo do fim para que serve e do seu valor. Uma consideração cega aos fins, ou cega aos valores, é, nesse caso, inadmissível e assim também a respeito do direito ou de qualquer fenômeno jurídico." No Brasil, entre os representantes do culturalismo jurídico, está Miguel Reale, professor de Filosofia do Direito, na Universidade de São Paulo. Miguel "O mundo dos valores e da cultura, diz o professor, tem sido a preocupação dos mais diferentes pensadores, desde o início das cogitações filosóficas, embora não empregassem os mesmos termos. Não resta dúvida, porém, que foi a partir da segunda metade do século passado que se adquiriu plena consciência desse mundo, reputando-se-o suscetível de perquirição científica, segundo um sistema de categorias próprias. Devemos, por certo, a Giambattista Vico (1668-1744) a primeira visão autônoma do "mundo histórico", genialmente projetada no livro que recebeu este expressivo título: Princípios de uma nova ciência." 7.2 Que é cultura? "O homem realiza cultura, tanto quando lança uma semente à terra como quando cria por si mesmo uma expressão de beleza. Tudo aquilo que o homem realiza na História, na objetivação de fins especificamente humanos, nós denominamos cultura." A cultura, portanto, poderia ser compreendida da seguinte forma: é o cabedal de bens objetivados pelo espírito humano, na realização de seus fins específicos, ou, com palavras de Simmel: "Provisão de espiritualidade objetivada pela espécie humana no decurso da História" Dois elementos integram qualquer bem cultural: o "suporte", que é a sua matéria, e o "significado", que é sempre a expressão de um valor: verdade, bem, utilidade, beleza, poder etc. Ao contrário das ciências da natureza em que "a explicação pode ser vista como objetiva e neutra, cega para os valores", as ciências culturais "elaboram juízos de valor, após terem tomado contato com a realidade". "" Miguel Reale, Filosofia do Direito, cap. XVII e ss. Ciências naturais Filosofia Reale Aplicação ao direito 278 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 279 • mesmo fato - um morte, por exemplo - pode ser estudado por um biólogo, que explicará cientificamente a causa mortis, e por um jurista, que fará "o fato passar por um prisma estimativo de maneira que ele adquire um significado, uma referibilidade de sentido". Qual o sentido do direito? "O homem não e apenas um realizador de Sentido interesses, de coisas valiosas, ou de `bens', porque do direito é também um ser que sente a indeclinável neces sidade de proteger o que cria, de tutelar as coisas realizadas e de garantir para si mesmo, acima de tudo, a possibilidade de criar livremente coisa novas." • Direito marca e reflete essas tendências ou inclinações fundamentais do espírito, na tutela e na realização de valores. A concepção culturalista do direito é uma concepção humanista. "Partimos da idéia, a nosso ver básica, de que a Valor pessoa humana é o valor fonte de todos os valores." "O bem visto como valor social é o que chamamos propriamente de `justo', e constitui o valor fundante do Direito." 7.3 Apreciação crítica • culturalismo jurídico é uma formulação moderna de problemática fundamental do direito. Sua conceituação do direito como elemento do mundo da cultura e a recusa a reduzi-lo a um simples fenômeno da natureza, como pretendem certas concepções positivas, representa um passo de grande significação na história da ciência jurídica. Tem, igualmente, importante significação histórica a superação do formalismo kantiano, realizada pela filosofia da cultura. Os valores, em que os culturalistas apóiam toda a atividade moral e jurídica, não são puramente formais e destituídos de conteúdo como o imperativo categórico de Kant. Pelo contrário, como diz Max Scheler, os valores têm conteúdo e são captáveis pelo espírito humano. A pessoa tem uma função intermediária entre o mundo dos valores e a realidade. O valor não se impõe necessariamente. É a pessoa que, captando o valor, decide de sua existência escolhendo entre diversos valores. Os valores passam do dever-ser ao ser, mediante a atividade moral da pessoa. Mas, para a generalidade dos culturalistas, essa "pessoa" e esses "valores", que constituem o fundamento da moral e do direito, são destituídos de realidade objetiva, como seres, em virtude da separação radical que fazem entre "valor" e "ser"; o que significa reincidir na tese kantiana da separação intransponível entre o mundo da metafísica e o mundo da moral, entre realidade e valor. E sabido que Kant, na Crítica da razão pura nega a possibilidade de a inteligência atingir a realidade em si mesma, tornando assim impossível a elaboração de uma metafísica. Por outra parte, no plano da razão prática, atribui validade às coisas em si, não como objetos, mas como postulados da atividade moral. Fica, assim, estabelecida uma separação intransponível entre a metafísica - impossível para a inteligência humana - e ordem moral, que a partir da vontade impõe, como condição de toda ética, a liberdade, a pessoa e os demais postulados da razão prática. Esse dualismo irredutível entre a ordem do ser e a do deverser marcou a filosofia moderna pósKantiana e atinge grande parte do pensamento culturalista.78 8. Conclusões 8.1 Pensamento comum Após o exame de extrema diversidade de doutrinas sobre a natureza do direito e seu fundamento, chega-se a uma conclusão que pode parecer surpreendente: no fundo da variedade de formulações • aparentes contrariedades, há um núcleo de pensamento comum, que se torna cada vez mais amplo. As doutrinas e interpretações, em sua maior parte, não se excluem. Antes, de certa forma, se completam. Focalizam aspectos diferentes da realidade jurídica. Correspondem a diversos contextos • condições históricas. E representam contribuições positivas para a compreensão global do direito. Poder-se-ia falar numa espécie de decantação histórica, que, através dos séculos, vai eliminando progressivamente os desacertos e as demasias. 8.2 Existência de pseudoproblemas Um exame objetivo e direto das doutrinas expostas revela as existência de muitos pseudoproblemas, isto é, questões aparentes que na 18) V. Octávio Nicolás Derisi, Los fundamentos metafísicos del orden moral, Ed. Universidad de Buenos Aires, 1941; Jacques Leclerq, Les grandes lignes de Ia Philosophie Morale, Ed. Université de Louvain, 1954; Jacques Leclerq, "La morale dans Ia philosophie des valeurs", in La Philosophie Morale de S. Thomas devant Ia pensée contemporaine, Ed. Université de Louvain, 1955, P. 262 e ss. fonte 280 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 281 realidade despareceram quando se analisa o pensamento do autor dentro dos pressupostos lógicos, históricos e de terminologia em que ele se situa. Daí a importância que certas correntes, como o neopositivismo contemporâneo, e especialmente o positivismo lógico, atribuem ao estudo da linguagem e das formulações científicas. A missão da filosofia consistiria em esclarecer e precisar os enunciados das ciências para depurá-los de equívocos e confusões da linguagem. Nesse sentido é significativa a afirmação de Ludwig Wittgenstein: "O objeto da filosofia é a classificação lógica dos pensamentos". A essa tendência liga-se a importância cada vez maior atribuída à moderna lógica matemática ou simbólica, também denominada logística, orientada no sentido de disciplinar, de forma mais condensada e rigorosa, as operações do pensamento. 8.3 Culturalismo e direito natural Doutrinas apresentadas muitas vezes como opostas, na realidade aproximam-se e se contemplam. É o caso das concepções históricoculturais e da doutrina tradicional do direito natural especialmente na sua formulação tomista - expostas nas páginas precedentes. O historicismo e o relativismo dos culturalistas, que insistem na contínua variação do direito, não se opõem ao pensamento dos mestres do direito natural, que, como S. Tomás, afirmam, igualmente, que o direito e as instituições sociais estão em contínua mudança, pois, na realidade concreta, a própria "natureza do homem é mutável" - "Natura hominis est mutabilis".79 De outra parte, a doutrina tomista dos primeiros princípios, absolutos e evidentes, como base dos preceitos do direito positivo, é reconhecida expressamente pelos representantes do culturalismo jurídico, como Miguel Reale, ao afirmar que a pesquisa filosófica parte sempre "de evidências universalmente válidas"80 ou que "o direito também se funda em princípios, uns de alcance universal, outros que se situam no âmbito de seu campo de pesquisa",81 ou, ainda, ao demonstrar a necessidade de "um critério universal mediante o qual se possa reconhecer, em geral, o justo e o injusto".82 De justitia, II II, 57, a. 2. ad 1. Sobre as "variações das regras de conduta, na unidade do direito natural", v. Dabin, Philosophie de l'ordre juridique positif, n. 269 e ss.; Sertillanges: "Nem de direito, nem de fato, a variedade das regras contraria a hipótese do direito natural", La Philosophie Morale de S. Thomas d'Aquin, n. 270. Contra o imobilismo e o fixismo, ver, ainda S1mOn Deploige, Le conflit de la morale et de la sociologie. Miguel Reale, Filosofia do Direito, n. 3. Ibidem, n. 18-A. Ibidem, n. 8. 8.4 Positivismo jurídico e doutrina da justiça Da mesma forma, o positivismo jurídico, tal como é formulado por muitos de seus representantes mais autorizados, não é incompatível com a doutrina da justiça. As diferenças entre as duas concepções ligam-se principalmente ao fato de focalizar cada uma um campo de estudos diferente. Uma teoria positivista do direito, diz Kelsen,S3 não pretende sustentar que a justiça não exista ou que qualquer ordem jurídica positiva não possa ser julgada justa ou injusta. Mas o positivismo jurídico pretende ocupar-se, apenas, com o sistema de normas do direito positivo; e, permanecendo rigorosamente dentro desse sistema, examinar a hierarquia e a correlação entre as diversas normas que o integram. Mas o próprio Kelsen admite, ao lado da "teoria pura do direito", uma teoria de justiça84 e uma investigação sociológica do direito." 8.5 Justiça Dentro de núcleo comum de princípios, aceitos pelas diversas escolas, situa-se o reconhecimento de que a justiça é o valor fundamental do direito. Valor Podem algumas correntes, como o positivismo fundamental jurídico, considerá-la um elemento exterior ao do direito direito, em sentido estrito. Mas, como vimos no citado depoimento de Kelsen, não se trata de negação da justiça, que aliás foi amplamente estudada por ele, mas de recusa em incluí-la no campo da investigação jurídica, definida em termos estritamente formais. "Une théorie positiviste, et cela veut réaliste, du droit ne prétend pas il faut toujours y insister - qu'il n'y a pas de justice. Elle ne nie pas que l'elaboration d'un ordre juridique positif peut être déterminée et est en fait généralement déterminée par Ia représentation de l'une quelconque dês normes de justice. Em particulier elle ne nie pas que tout ordre juridique positif, c'est-à-dire, lês actes par lesquels ses normes sont crées, peut être évalué selon-l'une de ces nombreuses normes de justice, c'est-à-dire, jugé juste ou injuste." H. Kelsen, Justice et droit naturel, n. 29. V. especialmente, entre as obras de Kelsen: What is justice? e Justice et droit naturel. Kelsen define a sociologia jurídica como "uma ciência que se propõe a examinar as causas e os efeitos dos processos naturais que, recebendo a designação de normas jurídicas, se apresentam como atos jurídicos', The Pure Theory of Law, p. 480. E realizou, entre outras, extensa investigação sociológica sobre o princípio de retribuição, publicada sob o título "Sociedade e natureza". Hans Kelsen, Socidad y naturaleza - Una investigación sociológica. Buenos Aires, De Palma, 1945. (79) (83) (84) (80) (81) (8z) (85) 282 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 283 I É admissível que um jurista, por motivo metodológico, limite seu campo de considerações ao estudo do direito positivo, considerado penas formalmente como um sistema de normas impostas pelo Estado. E essa uma das perspectivas ou dimensões do direito. Mas há outros aspectos do problema que merecem igualmente uma investigação científica. Éo caso do direito como fenômeno social (objeto da sociologia jurídica), como matéria de conhecimento (direitociência), como prerrogativa ou poder (direito subjetivo) e, principalmente, como justo ou o devido a uma pessoa ou instituição (direitojusto). 8.6 Pessoa humana A justiça não é um conceito meramente formal e vazio de con teúdo, como pretendem alguns autores. Pelo conValor trário, em oposição às relações sociais de domifundamental nação e de submissão, ela representa a exigência da justiça concreta de respeito à personalidade de cada homem e de todos os homens. O princípio da justiça, lembra Lévy-Ullmann,S6 não se limita à universalidade de sua forma lógica, mas apresenta um conteúdo que consiste no reconhecimento integral de personalidade de cada um, considerado como ser absoluto e autônomo. A justiça quer cada homem seja reconhecido e tratado por todos os outros como um ser que é senhor de seus próprios atos. As exigências concretas da justiça se alimentam desse princípio; elas voltam continuamente à consciência dos homens; realizam-se por um trabalho permanente; transformam o direito em vigor. Imanente e sempre renovada em nosso espírito, a idéia de justiça se encontra em todas as leis, mas não se esgota em nenhuma. E ela que dá sentido e significação a todo o direito positivo. 9. Outras formulações 9.1 Justiça e direito Edgard Bodenheimer, Ciência do Direito, n. 38, p. 180. Infeliz foi a atitude de extremo ceticismo em face dos valores finais da ordem jurídica, assumida por certos representantes do positivismo e do realismo jurídico, avultando entre eles Hans Kelsen e Alf Ross. Ambos estes juristas encararam o problema da justiça como um pseudoproblema, que é (86) H. Lévy, Ullmann, Prefácio à edição francesa da obra de Dei Vecchio, Justice, Droit, Etat, Paris : Sirey, 1938, p. XXVI. impossível apreender inteligivelmente por qualquer esforço de análise racional. Segundo Ross, exemplo, as palavras "justo" e "injusto" são inteiramente destituídas de sentido para o fim de avaliar-se um norma legal ou uma ordem jurídica. "A justiça não serve de guia para o legislador." Na realidade, o problema da realização da justiça nas relações humanas é o mais desafiador eo mais vital no que tange ao controle do grupo social por meio da lei, e não é de modo algum impermeável ao método da argumentação racional. O emprego desse método não exige unanimidade ou universalidade nas conclusões a que se chegue quanto à justiça de uma medida legal. Exige apenas que o problema seja tratado com imparcialidade e largueza de vistas, e que as questões relevantes sejam apreciadas de todos os ângulos, levando-se em consideração os interesses e as preocupações de todas as pessoas ou grupos atingidos pela regulamentação. Importante roteiro para a avaliação racional da justiça de uma lei ou corpo de leis nos fornece o estado do nosso conhecimento científico relativamente às pressuposições psicológicas, biológicas ou sociais que subsistem numa regulamentação legal. Por exemplo, nenhuma lei pertinente a relações raciais pode ser justa, tendo por base uma teoria racial que as mais avançadas descobertas da ciência biológica tenham demonstrado ser insustentável. A busca da justiça é infindável e repleta de dificuldades. Por outro lado, é facilitada por certos fatores objetivamente verificáveis, tais como a existência de uniformidades culturais de avaliação, que deitam suas raízes principalmente no fato de que a afirmação da vida prepondera fortemente sobre a negação da vida, na história da espécie humana. Não há razão para que o jurista se envergonhe de sondar os fundamentos de uma ordem jurídica justa, ainda que a tarefa exija incursões laterais no campo da antropologia filosófica e de outras ciências não jurídicas. A preocupação com a "boa sociedade" não pode ser posta de lado pela ciência social, e não deve ser relegada por ela aos políticos e legisladores absorvidos pela premência dos problemas práticos do momento. Se a procura da justiça e da razoabilidade do direito for abandonada pelos espíritos mais esclarecidos, sob a alegação de que a justiça é uma noção sem sentido, quimérica, irracional, então existe o risco de a espécie humana retroceder a uma condição de barbárie e ignorância em que o irracional predominará sobre o racional, e em que as negras forças do preconceito talvez ganhem a batalha contra os ideais humanitários e as forças do bem e da benevolência. 9.2 Existencialismo e direito Helvécio O. Azevedo, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, março, 1962. O homem sartriano não possui a natureza especificamente humana ou, como afirma Heidegger, não existe a realidade humana. O professor da Faculdade de Direito de Beirute, Bichara Tabbah, num excelente e recente trabalho, comentava ironicamente que Sartre parece, primeiramente, fundar o seu sistema sobre a negação de Deus e, mais tarde, estabelecido o sistema, protesta, com certo eufemismo, que a existência de Deus pouco importa... O homem sartriano é um solitário. Não possui qualquer elemento de estabilidade exterior ou de transcendência superior. Assim, nada vale a não ser o que faz de si. O homem é a sua autoconstrução, é a sua vida. Mas deve realizar tal obra sozinho, sem qualquer socorro divino ou humano, pois não possui compromissos com nada nem com ninguém. É o que J. P. Sartre entende por liberdade, da qual faz um dos postulados de sua filosofia. 0 homem existe apenas, não possui essência ou natureza. E, por ser assim, não tem nenhuma finalidade o seu existir. O homem deve existir por amor ao existir, eis a síntese do existencialismo sartriano. Aparece, então, outro ponto basilar do pensamento existencial-ateu: o subjetivismo absoluto. O homem encontra-se ferreamente preso dentro de si mesmo, escravo de si próprio, qual uma ilha sem o istmo que a ligue ao continente. Trata-se de uma dedução da supressão da natureza humana: reduziu-se o homem a um mundo fechado, ficando numa angustiante situação de completa impossibilidade de comunicação com o seu semelhante. Por força da ausência de qualquer elemento de permanência exterior, o ser humano é um segregado, um universo diferente, com aspirações e naturezas alheias às de outros homens e, principalmente, com leis próprias e particularíssimas. Trata-se de um individualismo feroz. Cada um por si e ninguém por ninguém, é o brado de alerta da revolução sartriana. Assim, estamos diante de uma concepção filosófica nimiamente anti-social. O homem de Sartre nada deve nem deseja da sociedade. Sua vontade é, apenas, existir - pois tal é a única realidade -, seja de que maneira for. Ora, somos dos que pensam que não é a sociedade nem o Estado que fazem o Direito; o Direito origina-se da natureza humana. Em outras palavras, o Direito tem suas nascentes no Direito Natural, entendendo-se este como "uma ordem ou disposição existente, real, em virtude da própria natureza humana, ordem ou disposição que a razão humana pode descobrir e segundo a qual a vontade humana deve agir para pôr-se em consonância com os fins essenciais e necessários do ser humano". Mister se faz, contudo, atentar para o fato de que, se o direito não é "feito" pela sociedade, é elaborado para a vivência em sociedade. O direito regula as ações do homem enquanto zoon politikon. O jurídico existe para a sociedade, para harmonizar os interesses individuais com os do todo, a fim de que haja, em suma, uma coletividade e uma fraternidade mais perfeitas entre os homens, clima propício ao ente humano para a consecução de seu fim último. O Direito, assim, executa um movimento em sentido contrário ao do existencialismo; aquele é aglutinador, catalizador, centrífugo, fraternal; este é dissociador, subjetivista, centrípeto, antifraternal. Não pode haver traço de união entre espécies tão antípodas. O existencialismo é antijurídico por excelência. 9.3 Teoria tridimensional do direito Miguel Reale, Filosofia do Direito, v. 2.° , p. 491 e ss. A análise da experiência jurídica, à luz de seus elementos axiológicos e teleológicos, demonstranos a impossibilidade de cortes que materialmente se pretendem fazer em uma realidade que integra em si três elementos ontologicamente inseparáveis. O filósofo do Direito, o sociólogo e o jurista não podem deixar de estudar o Direito na totalidade de seus elementos constitutivos, na tridimensionalidade de sua contextura, embora possam e devam ser distintos os respectivos prismas ou modos de pesquisa. Cada grupo de estudiosos cuidará, é claro, mais deste do que daquele outro elemento da experiência jurídica, mas deverá determinar sempre o significado autêntico de seu objeto de indagação em função dos outros dois. Sem essa referência aos demais, um fato da experiência jurídica não poderia ser logicamente concebível, ou como fato jurídico (seria mero fato social indistinto ou indiscriminado), ou como norma jurídica (seria simples norma ética), nem mesmo como valor de interesse para o mundo do Direito. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 285 A concepção tridimensional específica, que assinala um esforço de superamento ou de síntese de explicações unilaterais da vida do Direito, pois seus três elementos, longe de se justaporem, ordenam-se na unidade de um processo visando o filósofo, o sociólogo e o jurista, respectivamente, o valor, o fato e a norma, em razão dos dois outros fatores inerentes à juridicidade. A esta doutrina que reclama a integração das três perspectivas em uma unidade funcional e de processo é que chamamos de concepção tridimensional específica e integrante do Direito, cujos princípios começamos a determinar, em 1939/40, nas páginas de Fundamentos do Direito, notadamente no capítulo final, intitulado "Fato, valor e norma", onde reclamamos a integração desses três elementos em correspondência com os problemas complementares da validade social, da validade ética e da validade técnico-jurídica. A tridimensionalidade não deve esgotar-se na simples justaposição de três elementos ou três ingredientes, porque envolve a conexão entre eles, em um sentido de processo e de integração. Não basta, pois, combinar ou ajustar elementos, como faz Sauer, com recurso às mônadas de valor, importando antes ver em que sentido eles se integram em unidade, e como cada fator é explicado pelos demais e pela totalidade do processo. Poder-se-ia representar aproximadamente a colocação do problema que ora nos preocupa com este quadro: Elementos Nota Concepções constitutivos dominante unilaterais Fato -~ Eficácia Sociologismo Valor Fundamento -> jurídico Tridimensionalidade Norma 1 Eticismo puro genérica Vigência ou abstrato Normativismo lógico Tridimensionalidade específica Na primeira coluna, indicamos os elementos constitutivos da experiência jurídica - fato, valor e norma; na segunda assinalamos a nota dominante, que corresponde aos elementos discriminados com o nome de eficácia, fundamento e vigência, cujos conceitos serão a seguir estudados, elaborando noções já oferecidas nas páginas anteriores. Como existem três elementos, surgiram as tentativas já examinadas de "setorização" do fenômeno, motivo pelo qual na terceira coluna aparecem as diversas "concepções unilaterais", o Sociologismo jurídico, o Eticismo puro ou abstrato, e o Normativismo lógico. Quando se procuram combinar estes três pontos de vista unilaterais e, mais precisamente, os resultados decorrentes de estudos levados a cabo separadamente segundo aqueles pontos de vista, configura-se o que chamamos de tridimensionalidade genérica do Direito. Quando, ao contrário, não se realiza uma simples harmonização de resultados de Ciências distintas, mas se faz um exame prévio da correlação essencial dos elementos primordiais do Direito, mostrando que eles sempre se implicam, em uma conexão necessária, temos o que denominamos doutrina da tridimensionalidade específica, que pode ser ou estática ou dinâmica ou de integração. Neste último caso, a tridimensionalidade específica do Direito resulta de uma apreciação inicial da correlação existente entre fato, valor e norma no interior de um processo de integração, de modo a abranger, em uma unidade viva, os problemas do fundamento, da vigência e da eficácia do Direito. 284 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 9.4 A caminho de um novo direito natural Cabral de Moncada, Estudos filosóficos e históricos, Ed. Universalidade de Coimbra, 1958, v. 1, p. 252 e ss. A propósito do último Congresso de Descartes, escreveu Louis Lavelle: "O regresso à idéia do absoluto parece ter se tomado a suprema característica do pensamento do século XX". Mas como o problema do Direito natural, na sua essência, não é senão uma projeção dessa idéia do absoluto no campo da problemática da vida social, jurídica e política do homem moderno, daí o poder falarse também, como fala Gaston Morin, num verdadeiro "renascimento do Direito natural" como uma das características da nossa época. Analisando a "situação histórica" do nosso tempo, explicável por outras "situações históricas" anteriores, que caracterizo como a de uma angustiosa exasperação, acompanhada de profunda desespiritualização, de um amargo desencantamento do "político", de uma política exclusivamente função do homo economicus, vemos que, justamente em coincidência com esse fato, se nos deparam hoje, em duas correntes do pensamento filosófico, o Existencialismo e a moderna Filosofia dos Valores de base fenomenológica, alguns materiais importantes para uma renovação do problema do Direito natural. Senão renovação como conteúdo de soluções rigorosas, pelo menos como direção da consciência contemporânea no seu novo ethos filosófico. Isto é: através destas duas correntes filosóficas é que a nova "situação histórica" está hoje reagindo e procurando encontrar nova visão para este velho problema. • esses materiais para uma mais correta e humana renovação do problema a que acabo de aludir, que a nova filosofia nos traz, são simples de enunciar. • homem europeu voltou a ter, como no fim do Helenismo e nos primeiros séculos do Cristianismo, pelo menos três convicções fortes e claras: 1. A convicção de que a vida social e política do homem deve voltar a ser construída de dentro dele para fora, e não de fora para dentro, como projeção de uma dimensão mais profunda da vida individual e de um tipo de existir centrado em torno de uma idéia essencialmente religiosa de redenção e salvação. 2. A convicção de que o Estado e o direito não são fins de si mesmos, nem simples instrumento para a realização de fins só econômicos, mas sim altos "que fazeres" de uma vocação humana de Cultura e, portanto, meio ao serviço de outros fins eminentemente espirituais. 3. Enfim, a convicção também de que há valores absolutos, superiores e anteriores ao fluxo das contingências históricas, constituindo um cosmos axiológico, sobreposto aos caprichos da vontade do homem e às fantasias do seu intelecto. E se assim é, julgo poder afirmar também que nós não nos achamos afinal muito longe da orientação e das atitudes, das soluções religiosamente mais radicais, que a este problema deu sempre a Philosophia perennis desde a Antigüidade e a Idade Média. Com efeito, quem duvidará de que são essas três idéias precisamente as idéias centrais de toda a tradição jusnaturalista autêntica, do Direito natural dos estóicos e dos escolásticos, de Agostinho, de Tomás de Aquino e Suárez, que depois as Escolas dos séculos XVII e XVIII desvitalizaram, reduzindo-as a uma puro esquema de racionalismo abstrato? Julgo que tais idéias não são afinal, na consciência filosófica do nosso tempo, representadas por algumas correntes existencialistas e pela Fenomenologia, mais que um renovado eco também de algumas verdades fundamentais do Cristianismo. São talvez, elas próprias, na sua atual expressão SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 287 laica e inconfessional, e até ateísta na obra de um Heidegger e de um Hartmann, um como que Neocristianismo que a si mesmo se ignorasse no pudor da sua própria religiosidade cristã. Eis aí, numa palavra, o sentido dentro do qual de novo se move, numa larga frente, a filosofia do nosso tempo, da nossa "situação histórica", em busca de nova solução para o eterno problema do Direito natural e das relações entre o indivíduo • o Estado. Problema de uma "hermenêutica da existência" humana, a partir das mais profundas vivências da consciência do indivíduo como abrangendo já em si a sociedade. Problema axiológico de valores absolutos, para esta, deslocando-se rapidamente no sentido de uma nova Ontologia e de uma nova Metafísica do social, eis aí o conspecto atual do problema a que, em todos os tempos, se deu o nome de problema do Direito natural, embora hoje nem sempre se lhe dê esse nome por que tradicionalmente sempre foi conhecido. Hoje, na verdade, conhece outros nomes. Há quem lhe chame "existência" e "axiologia de valores absolutos". Mas • nome é indiferente. 9.5 Importância da filosofia do direito Benjamin Cardozo, A evolução do direito, Forense, 1960, p. 162. O que eu desejo mostrar é a importância de uma tal filosofia para os problemas deparados, na prática, pelos jurisconsultos e juízes. Ao ressaltar o valor do seu auxílio, não foi meu intuito, naturalmente, sugerir que, deixada sozinha, ela se bastasse a si mesma. O recurso a uma filosofia do direito para o desenvolvimento de regras e princípios pressupõe conhecimento dos princípios e regras que é nossa tarefa desenvolver. Aqui, como tantas outras vezes, as palavras justas são ditas por Holmes: "Quanto um homem tem conhecimento prático de seu negócio pode, em vez de dedicar todo o seu tempo disponível à leitura de todos os casos julgados, empregar melhor seus momentos de lazer. Estes apenas consignam pequenas transformações no pensamento legal". No direito, assim como em outras ciências, muitas coisas devem ser aprendidas como fatos. Representam • dinheiro que devemos carregar no bolso se tivermos de pagar nosso curso com moeda legal. Até que tenhamos provisão abundante dos mesmos, melhor faremos ficando em casa e deixando de prosseguir na nossa viagem. Compreende-se, assim, • que Holmes chama conhecimento prático do negócio. Devemos falar como de um jurista a outro, ou estaremos falando em palavras cruzadas. Quando se conquistar este terreno comum, não iremos muito longe antes de começar a filosofar. Vamos supor o caso de não haver uma norma obrigatória aplicável. Um dos senhores, ou tantos quantos tenham a felicidade de receber honorários, representa • advogado. Eu sou o juiz que se encontra em dificuldade quanto ao modo de decidir. Vós outros folheastes cuidadosamente os digestos, as enciclopédias, os tratados, as revistas de direito. A decisão que se adapta precisamente à espécie, e que o advogado adora apresentar, como uma nota latente de triunfo, intimidando com o argumento da autoridade o magistrado que se acha em dúvida, essa decisão, esse tesouro enterrado nos livros de direito, recusa-se a aparecer. As vigílias e buscas resultam, na melhor das hipóteses, em umas poucas analogias remotas, que facilmente poderão servir tanto a um lado como ao outro. Que ireis fazer para persuadir o juiz? Que farei eu para decidir? Talvez nenhum de nós esteja plenamente consciente dos elementos implícitos do processo. A maior parte daquilo que vai em nosso espírito é subconsciente ou quase assim. Se ao terminar a tarefa, 286 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO li porém, nós nos perguntarmos o que fizemos, verificaremos, se respondermos com franqueza, que, com o equipamento de que dispúnhamos, estivermos desempenhando o papel de filósofos. Há um ano ou mais o tribunal de que faço parte teve de resolver um caso que ilustra o meu pensamento. Um rapaz estava se banhando num rio e subiu a um trampolim que se projetava de um borda. No momento em que estava na extremidade da tábua, foi lançado à corrente por fios elétricos que lhe caíram em cima e arrastavamno à morte. Na ação que se seguiu para haver perdas e danos, foram invocadas analogias concorrentes pelo advogado da inventariante e pelo advogado da companhia ferroviária, proprietária do terreno. O primeiro encontrou a analogia que lhe convinha na posição de viajante em uma estrada de ferro. O rapaz era um banhista em águas navegáveis; seus direitos não eram diminuídos, uma vez que ele estava com os pés na margem. O segundo encontrou a analogia a seu favor na posição de um infrator em terreno alheio. O trampolim, embora se projetasse acima d'água, era, não obstante, um móvel considerado imóvel por lei (a fixturé) e, nestas condições, fazia parte da terra a que tinha sido anexado. O rapaz era, assim, um infrator em terreno de propriedade privada; o único dever do proprietário para abster-se do ânimo de prejudicar e do dano intencional; se faltavam esses elementos não havia como conceder indenização pela morte do rapaz. Ora, a verdade é que, como simples emprego de dialética, estas analogias levariam o juiz a um impasse. Nenhum processo de pura dedução lógica poderia determinar a escolha entre elas. Nenhuma das analogias era precisamente aplicável ao caso, embora ambas lhe fossem adaptáveis. Surgira uma nova situação, que não poderia ser enquadrada dentro dos moldes existentes sem mutilação. Quando encaramos uma situação desta espécie, a escolha feita por esse juiz ou aquele será em grande parte determinada pela sua concepção do fim do direito, e da função da responsabilidade legal, e esta questão dos fins e funções do direito é uma questão filosófica. No julgamento em que tomei parte, da hipótese acima referida, a maioria do tribunal acreditou que se deveria reconhecer a responsabilidade da companhia. As deduções que poderiam ter sido tiradas de definições pré-estabelecidas eram subordinadas e adaptadas aos princípios fundamentais que determinam, ou deveriam determinar, a responsabilidade pela conduta, num sistema de direito em que a responsabilidade é ajustada aos fins servidos pelo direito. O caso Hynes v. The New York Central Rail Road Co. foi decidido em maio de 1921. A Introdução à Filosofia do Direito do decano Pound ainda não havia sido publicada. Essa obra apareceu em 1922. Nessas conferências, ele apresenta uma teoria da responsabilidade que talvez seja interessante comparar com a teoria da responsabilidade que se refletiu em nossa decisão. "O direito", diz ele, "reconhece as expectativas razoáveis com fundamento na conduta, nas relações e situações". Deixarei a outros dizer se a causa do rapaz lançado do trampolim seria favorecida ou prejudicada pelo apelo a tal teoria. Disto não posso duvidar: existe, nas raízes de qualquer decisão sobre situações novas, em que as analogias são equívocas e os precedentes silenciam, alguma teoria de responsabilidade, alguma filosofia do fim atingível pelo entendimento estrito ou lato do círculo de direitos e remédios legais. Na sua atual posição, o juiz muitas vezes pode improvisar tal teoria, tal filosofia, quando de um momento para outro é obrigado a fazer face às exigências do caso que se encontra diante dele. Freqüentemente hesita, sentindo, de modo vago, que está envolvido em algum problema dessa ordem, mas falta-lhe o elemento universal, que teria apressado sua decisão com a inspiração de um princípio. Se lhe falece filosofia adequada, ele se desvia inteiramente, ou, na melhor das hipóteses, não se eleva acima do empirismo que, ao julgar, só se pronuncia com base nos pormenores. Precisamos aprender SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 289 que todos os métodos devem ser considerados não como ídolos e sim como instrumentos. Precisamos experimentá-los uns por meio dos outros, suprindoos e reforçando-os quando demonstrarem fraqueza, de modo que tudo aquilo que neles haja de forte e de melhor esteja a nosso serviço na hora necessária. Considerando-os assim, muitas vezes verificaremos que eles não são antagônicos, e sim aliados. A verdade, realmente, é que mais de um trabalhador no campo de direito, ao ostentar a bandeira de uma escola, está implicitamente prestando auxílio e ajuda a outra escola, cuja bandeira deveria estar ostentando. A escola histórica do direito é muitas vezes contrastada com a escola sociológica, e há importantes elementos de diferença entre elas; no entanto, muitos daqueles que professam usar o método histórico na decisão de uma causa são, na verdade, menos leais à significação da escola histórica do que aqueles que professam o método sociológico, e consideram mais livremente os padrões predominantes de bemestar e utilidade. Segundo a escola histórica, "não é o legislador que faz a lei; o espírito popular é que a faz. O legislador só tem de reduzir a escrito aquilo que dita o espírito do povo. Para este fim, é necessário que ele esteja adequadamente instruído, mediante estudos sistemáticos, quanto ao verdadeiro sentido do espírito do povo. 10. Bibliografia ASCOLI, Max. La giustizia. Pádua : Cedam, 1930. BOBBIO, N. Quelques arguments contre le droit naturel. Annales de Philosophie politique, v. 2, Le droit naturel. Paris : Presses Universitaires, 1959. BODENHEIMER, E. Ciência do direito. 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Tomás acrescenta: "Há outros princípios inerentes à natureza humana e essenciais à justiça que são invariáveis" • constituem a base do agir humano, como o respeito à dignidade humana, o princípio da manutenção da vida social e da família, o dever de dar a cada um o que é seu etc. São princípios permanentes, que servem de fundamento às normas de conduta variáveis da moral e do direito". O mesmo deve-se dizer do método experimental. Ele é sem dúvida necessário. Foi desprezado Experimentalismo pelo apriorismo racionalista de algumas correntes, mas defendido e utilizado não só pela ciência moderna como por filosofias antigas. S. Tomás, seguindo o ensinamento de Aristóteles, foi intransigente defensor do método de observação: "Quae pertinent ad scientiam moralem maxime cognoscuntur per experientiam".1S Émile Durkheim. "Mon sujei intéréssant em général, je tâcherai de prendre un langage qui convienne à toutes les nations, ou plutôt oubliant les temps et les lieux, je me supposerai ayant le genre humain pour auditeur. Oh! homme, de quelque contrée que tu sois, voici ton histoire, telle que j'ai cru Ia lire dans Ia nature, qui ne ment jamais", J. J. Rousseau, Discours sur inégalité, cap. 1. .. quaedam, quae a quibusdam reputantur justa et honesta, a quibusdan reputantur injusta et inhonesta secundum differentiam temporum et locurum et personarus. Aliquid enim reputatur vitiosum uno tempore aut in una regione quod in alio tempore aut in alia regione non reputatur vitiosum", S. Tomás, Comentários à Etica de Aristóteles a Nicômaco, livro, 1, lição III. "Illa quae pertinent ad ipsam justitiae notionem, nullo modo possunt mutari". Obra citada, livro V, lição 12, "Sunt aliqua operationes naturaliter homini convenientes, quase sunt secundum se rectae, et non solum quasi lege positae", "Summa contra gentiles", 111, 129. (1") Ética, livro X, lição 15. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 251 Mas o positivismo não se limita a isso. Pretende ater-se unicamente ao terreno da ciência experimental, afastando radicalmente qualquer reflexão de ordem ontológica ou metafísica. E essa posição é inadmissível. Sobre os dados da experiência, cabe à inteligência humana, através de intuições e raciocínios, exercer sua reflexão, e construir a ciência. Ficar preso aos dados da realidade sensível é condenar-se a ver apenas uma parte da realidade. Por isso, a ciência dos costumes em sua perspectiva positivista tem hoje poucos adeptos. E a eles se aplica a observação de Brethe de Lã Gressaye: os positivistas, que não crêem senão na realidade sensível, por estranha contradição, inventaram o mito da consciência coletiva, fazendo assim metafísica, sem o saber." É inadmissível, também, a redução da atividade humana e social às dimensões de uma simples realidade física. Na classificação das ciências de Cocote, sintomaticamente, as ciências propriamente huma- radical nas não figuram.20 Esses conhecimentos são atri buídos a duas disciplinas afins: à biologia e à sociologia, como se a realidade humana se limitasse às atividades biológicas e às influências sociais. A persistência dessa orientação científica justificou os brados de protesto e alerta de Alexis Carrel: "O homem, esse desconhecido", Gabriel Marcel, "Os homens contra o homem", Jacques Maritain, "Humanismo integral" e muitos outros. No plano das ciências da conduta, não possível fazer abstração do fator humano e deixar de reconhecer a dignidade especial do homem, capaz, por sua liberdade, racionalidade e poder de iniciativa, de influir na história como agente consciente e não como objeto passivo. Por isso, também, é inadmissível a redução das ciências humanas e sociais a um conhecimento apenas teórico e especulativo. Substituir a moral e o direito pela ciência dos costumes e a sociologia jurídica significa deixar sem resposta a questão fundamental desses ramos do saber. Os conhecimentos teóricos da estatística, da etnologia, da antropologia, da demografia etc. são necessários. Mas a ciência moral é, em si mesma, ciência prática. Seu objeto é ordenar a atividade humana e a convivência social. "" Introduction générale a l'étude du droit, n. 23. 1211, V. nota 9 supra. 250 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Naturalismo exclusivo (14) (15) Ciência teórica ou prática 252 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 4. O positivismo jurídico 4.1 Identificação do "direito" com o "direito positivo" • positivismo jurídico, apesar de ligar-se à mesma linha de pensamento, não se confunde com o positivismo filosófico e o positivismo científico. Ele consiste fundamentalmente na identificação do "direito" com o "direito positivo". Direito natural, princípios de justiça e conceitos semelhantes estão fora do campo da ciência do direito. São, no dizer de Kelsen,21 elementos ideológicos ou metajurídicos. Para o positivismo jurídico, diz Waline,22 a ciência do direito é unicamente a ciência do direito positivo. Ou, como diz o jurista húngaro Julius Moór: "O positivismo jurídico é uma idéia segundo a qual o direito é ditado pelo poder dominante na sociedade, em um processo histórico. Segundo essa concepção, só é direito aquilo que o poder dominante determina, e o que ele determina só é direito em virtude dessa circunstância mesma".23 Dentro dessa posição, é preciso distinguir duas correntes: a) o positivismo jurídico metodológico; b) o positivismo jurídico doutrinário. • primeiro é representado por aqueles juristas que, como método de trabalho, restringem seu estudo ao direito positivo, comentando os artigos dos códigos e da legislação, analisando a jurisprudência e limitando-se a tirar das leis e das decisões judiciárias os princípios gerais da legalidade jurídica. Não negam, mas também não levam em conta a justiça, o direito natural ou quaisquer outros princípios de ordem moral. • positivismo jurídico doutrinário, pelo contrário, é constituído pelas correntes que negam tais princípios, por inexistentes ou estranhos ao direito, e propõem-se a explicá-lo por outras razões de ordem científico-positiva. 21 H. Kelsen, A teoria pura do Direito, cap. 11. (22) M. Waline, "Defense du positivisme juridique", in Archives de Philosophie du Droit, 1939, p. 88 e ss. Julius Moór, "O problema do direito natural", apud Bodenheimer, Ciência do Direito, n. 24. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 253 4.2 Correntes positivistas Entre as correntes positivistas podem ser mencionadas, por seu caráter representativo: a) a teoria geral do direito positivo, de Bonnard e outros publicistas; b) a teoria pura do direito, de Kelsen, iniciador da chamada Escola de Viena; c) a doutrina das decisões judiciárias no direito anglo-americano (Gray); d) a doutrina da linguagem jurídica de Probert; e) a teoria da autonomia da vontade, inspirada em Rousseau e Kant; f) a teoria do positivismo jurídico-moral, de Ripert. 4.2.1 Teoria geral do direito positivo A "teoria geral do direito positivo" foi elaborada principalmente por tratadistas do direito público. Consiste numa construção abstrata e especulativa formada pela generalização das normas vigentes na legislação dos diferentes países. Bonnard,24 um de seus principais representantes, afirma que o conhecimento científico do direito é essencialmente um estudo do direito por suas causas lógicas, que são os princípios gerais tirados do direito positivo. As regras do direito positivo são apenas conseqüências lógicas dos princípios gerais. 4.2.2 Teoria pura do direito A teoria pura do direito, diz Kelsen, é, em primeiro lugar, uma "teoria". Seu objeto é responder à pergunta: "que é o direito?" e não "o que deve ser o direito?" Além disso, é uma teoria do "direito positivo", Preocupa-se exclusivamente com a lei e as demais normas positivas. E, finalmente, procura "purificar" a ciência do direito, libertandoa da intromissão de ciências estranhas, como a moral, a sociologia, a psicologia. Define o direito como a "ciência das normas" e por norma entende um juízo hipotético condicional dispondo que o fazer ou não fazer algo será seguido de uma medida coercitiva do Estado: quem se apropriar ilegalmente de bens alheios será punido com prisão ou (24) Bonnard, Précis de droit administratif, Paris : 1943. 254 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 255 multa; se o inquilino não pagar o aluguel estará sujeito ao despejo. O direito é um sistema ordenado dessas normas coercitivas. Esse sistema é dotado de uma unidade interna, porque todas as normas podem ser atribuídas a uma fonte única, que é a norma fundamental. O direito positivo, segundo Kelsen, é constituído por um conjunto de camadas jurídicas superpostas, em que cada uma tira seu valor jurídico da camada imediatamente superior. Assim, os "contratos' (normas contratuais) têm sua validade fundada nas "leis" (normas legais). A lei, por sua vez, se fundamenta na "Constituição" política do país (norma constitucional). E esta, numa "norma fundamental", que é a constituição ideal aceita pela opinião pública da nação. Para estabelecer a validade das regras de direito e das instituições jurídicas, Kelsen afasta qualquer preocupação com sua justiça ou valor. Não lhe interessa o conteúdo das normas, mas apenas seu aspecto "formal" de subordinação à regra fundamental. As disposições racistas do regime hitlerista, ou as normas de Calígula mandando render homenagens de senador a seu cavalo Incitatus, poderão ser tão jurídicas e válidas como as disposições do Código Civil ou as modernas declarações constitucionais dos direitos da pessoa. 4.2.3 Doutrina das decisões judiciárias Dentro do caráter eminentemente consuetudinário do direito anglo-americano, desenvolveu-se um positivismo jurídico, fundado nas decisões judiciárias. John Chipman Gray,25 um dos nomes representativos dessa corrente, declara que o verdadeiro criador do direito não é o legislador, mas o juiz. O direito real de um Estado é constituído pelas regras que os tribunais estabelecem ao decidir sobre os direitos e deveres de cada um. O direito emanado do poder legislativo só adquire sentido e realidade depois de interpretado pelos juízes, ao aplicá-lo aos casos concretos. "Os tribunais comunicam vida às palavras inanimadas da lei." As regras assentadas pelos tribunais de um país constituem a fonte última de seu direito. Daí a importância preponderante atribuída à jurisprudência e ao estudo dos precedentes judiciários na revelação do direito. 4.2.4 Doutrina da linguagem jurídica Modernamente, por influência da filosofia da linguagem e do chamado positivismo lógico, surgiu um novo tipo de positivismo re ¢3' John C. Gray, The nature and sources of the law, Nova York, 1931. presentado pela doutrina da linguagem jurídica, que atribui importância fundamental aos aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos do direito.26 Talvez, objetivando a possível utilização de computadores na solução dos casos jurídicos, Probert define o direito como "a procura de uma orientação verbal que ajude a selecionar proposições compatíveis". Essa orientação liga-se a uma tendência desenvolvida, a partir de Ludwig Wittgenstein, que sustenta que a análise e a crítica da linguagem constituem o objeto essencial da filosofia. Uma linguagem bem feita é o caminho para eliminar pseudoproblemas. Muitos autores incluem, entre as correntes representativas do positivismo jurídico, a doutrina da autonomia da vontade, inspirada nas concepções de Rousseau27 e Kant28 e desenvolvida por Fouillée.29 0 homem, essencialmente livre, não pode depender senão de sua vontade. Não há outras leis ou princípios que o obriguem, senão aqueles em que ele livremente consentiu, através de um acordo de vontades (contrato) ou de uma manifestação da vontade geral (lei) decorrente do contrato social. Como expressões da vontade autônoma, a lei e o contrato seriam os dois fundamentos últimos de toda a ordem jurídica. 4.2.6 Doutrina do positivismo jurídico-moral G. Ripert30 e outros juristas procuram dar ao direito uma base positiva, alicerçando-o na moral historicamente aceita pela sociedade. Partindo da distinção entre o fundamento do direito e o seu conteúdo, Ripert atribui ao primeiro caráter puramente positivo: a lei é obrigatória por si mesma, impõe-se a todos por ser uma determinação ae Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, ed. Univ. S. P., 1968; Walter Probert, "Law and Persuasion: The Language Behaviour of Lawyers", in University of Pennsylvania Law Rev., 1959, n. 108: Glaiville Willians, "Language and the law", in Law Quarterly Rev., n. 16, 1945, n. 62, 1946. E no Brasil Tércio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da norma jurídica, 2.' ed., Rio, Forense, 1986. Z" J. J. Rousseau, Le contract social, "Discours sur origine et les fondements de I'inégalité parnui les hommes". E. Kant. Crítica da razão prática, Elementos metafísicos da doutrina do direito. ¡29, Fouilleé, La science sociale contemporaine, 1880. c3m G. Ripert, Droit nauturel et positivisme juridique, 1918; La régle morale dans les ohlikations civiles, 1936. 4.2.5 Doutrina da autonomia da vontade 256 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO da autoridade. Mas, no tocante ao conteúdo, quando se trata de elaboração do direito pelo legislador, este deve tomar em consideração os valores morais que predominam na sociedade. Nos países da Europa e nos influenciados pela cultura européia e a civilização ocidental, esse ideal moral que deve inspirar a legislação é a moral cristã. Indepen_ dentemente de seu valor, Ripert considera a moral cristã como um fato, adotando, assim, uma posição positivista. 4.3 Apreciação crítica Uma apreciação crítica do positivismo jurídico deve distinguir, entre suas diversas correntes, duas atitudes diferentes. Uma primeira, representada pelos juristas que se limitam ao estudo do direito positivo, sem discutir o problema do seu fundamento. Outra, constituída pelos que negam ao direito um fundamento moral, representado pelos conceitos de justiça ou direito natural, e pretende encontrar uma base exclusivamente física para a ordem jurídica. A primeira atitude é válida, na medida em que o jurista, como estudioso de uma ciência particular, deixa à filosofia - no caso, à filosofia do direito - a discussão dos fundamentos da ordem jurídica. Mas aqueles que negam ao direito um fundamento ético ou moral, e pretendem reduzir as bases da ordem jurídica a uma dado positivo, como a coerção, a vontade geral, a autoridade social etc., na realidade contradizem sua posição positivista e contrariam a verdadeira natureza do direito. Contradizem sua posição positivista, porque em lugar de permanecer no estudo objetivo dos fenômenos, invadem o campo da filosofia e na realidade fazem metafísica. Nesse sentido, as discussões intermináveis sobre a natureza da consciência coletiva em Durkheim e nos seguidores de sua doutrina constituem amostra ilustrativa. Com razão, observou Brethe de La Gressaye, tais positivistas, que só crêem nas realidades sensíveis, inventaram o mito da consciência coletiva, fazendo metafísica sem o saber. Da mesma forma, na doutrina de Kelsen, todas as normas do sistema jurídico são hierarquicamente subordinadas à norma constitucional, e esta a uma norma hipotética ideal, que se considera extraída da sociedade e expressa pelo poder público. E, assim, esse positivismo acaba por basear todo o direito não em um fato positivo, mas numa norma, hipotética e vaga. Além disso, essas correntes contrariam a verdadeira natureza da ordem jurídica, na medida em que reduzem o direito à força. Realmente, negar à ordem jurídica seu fundamento na justiça e nas exigências da natureza humana significa reduzir o direito a um simples produto da força dominante no meio social, seja ela a vontade de um chefe, a deliberação de um órgão legislativo ou judicante, dotado de poder coercitivo, ou mesmo a opinião da maioria. Preceitos arbitrários e violentos, atentados à dignidade humana como os praticados nos campos de concentração e julgados pelo Tribunal de Nuremberg, seriam juridicamente inatacáveis se o direito se reduzisse a um imperativo da força coercitiva da sociedade. S. Doutrina clássica do direito natural 5.1 Formação histórica do direito O reconhecimento de que o direito positivo encontra seu fundamento e justificação em certas exigências elementares da natureza humana acompanha a formação histórica do direito. Desde a Antigüidade, esse pensamento, com formulações diferentes, dominou as especulações filosóficas, éticas e jurídicas dos que se ocuparam do tema. Uma das primeiras manifestações dessa doutrina pode ser encon trada no teatro grego, na famosa tragédia de Sófocles: "Antígona". O rei Creon proíbe o sepultamento de Polínice, irmão de Antígona. Mas esta desrespeita a ordem recebida e sepulta o irmão, alegando que, acima da ordem positiva do Rei, devia cumprir certas leis não escritas: Nos diálogos de Platão, está presente a mesma idéia fundamental. Na "República", Sócrates refuta o "direito da força" exposto por Protágoras que, como outros sofistas, pretende identificar a justiça com ` o interesse do mais forte": E no diálogo com Eutifron opõe-se à afirmação deste de que "a justiça é a vontade caprichosa dos deuses", para sustentar que as "coisas não são justas Porque os deuses `querem', mas que os deuses as querem porque são justas". Aristóteles estudou amplamente o tema da justiça, como funda mento do direito. Seu pensamento a respeito está exposto principalmente na "Política" e na "Ética a Nicômaco", cujo libro V é delicado ao tratado da justiça. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 257 Grécia: Sófocles "Que não são nem de hoje, nem de ontem; Têm existência eterna (ninguém lhes assinala o nascimento); Nem poderia eu desafiá-las a enfrentar a vingança divina; Por temer a cólera de qualquer homem." Sócrates e Platão Aristóteles 258 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 259 Em oposição à teoria de Arquelau, para quem "o direito não existe por natureza, mas só em virtude da lei", Aristóteles afirma: "O bem e o justo, objetos de que trata a ciência política, dão lugar a opiniões de tal forma divergentes e às vezes de tal forma degradadas, que se chegou até a sustentar que o justo e o bem existem apenas em virtude da lei e não têm nenhuma fundamento na natureza"." E, em diversas passagens, distingue o "justo natural", que corresponde às leis da natureza, e o "justo legal" ou positivo, estabelecido por leis emanadas da autoridade pública ou por convenções das partes. No período pós-socrático, a filosofia estóica, fundada por Zeno, de Citium, coloca no centro de seu sistema o Estóicos conceito de "natureza". A lei da natureza é idêntica à lei da razão. Como ser essencialmente racional, o homem deve conduzir sua vida de acordo com as leis da própria natureza, liberto das paixões e emoções, das preocupações com os bens terrenos e o mundo exterior. Essa razão, inspirada na natureza, é a base da lei e da justiça. A escola estóica e sua doutrina do direito natural exerceu profunda influência no direito romano. Em Roma, os mestres da jurisprudência ensinavam que, além do direito próprio de cada Estado, existe um direito Roma decorrente da natureza humana: "O direito civil e o das gentes distinguem-se deste modo: todos os povos que se regem por leis e por costumes usam em parte de um direito exclusivamente seu, e em parte do comum; portanto, o direito, que cada povo constitui para si mesmo, é exclusivo de uma cidade. O direito porém que a razão natural constitui entre todos os homens é observado do mesmo modo por todos os povos e chamase direito das gentes, isto é, direito de que usam todos os povos. Semelhantemente o povo romano usa em parte de um direito exclusivamente seu e em parte do comum a todos os homens"." Cícero traduz o mesmo pensamento em sua famosa definição descritiva da lei natural, que assim pode ser Cícero sintetizada: há uma lei verdadeira, norma racional, conforme à natureza, inscrita em todos os corações, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo senado nem pelo povo; e o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza, e receber o maior castigo." Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro, VII, lição 7. 32' Justiniano, /nstitutas, 1. 1, 1. 11, § l.°. "" Cícero, De Republica, II, 22. O texto completo é o seguinte: "Est quidem vera lex, recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constante, A definição de Cícero indica cinco características fundamentais do direito natural: a) na base das leis positivas há uma lei verdadeira de ordem racional ("esta quidem vera lex, recta ratio"); b) essa lei corresponde às exigências da natureza e à dignidade natural do homem ("nature congruens"; "...ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus"); c) não está escrita nos códigos, mas na consciência dos homens ("diffusa in omnes"; "quae vocet ad officium jubendo, vetando fraude deterreat"); d) tem por autor o próprio Deus, criador da natureza ("Deus, Legis hujus inventor, disceptator, lator"; "unus erit communis quasi magister et imperator omnium Deus"); e) é universal no tempo e no espaço ("constans, sempiterna"; "huic legi nec obrogari fas est"; "nec vero aut per senatum, aut per populum solvi hac lege possumus"; "nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac: sed et omnes gentes et omini tempore una lex"). "E Cícero, como Aristóteles, faz do respeito à lei natural o objeto de uma virtude: a justiça. Porque, existindo uma inteligência comum a todos nós, que nos dá a conhecer as coisas, formulando-as em nosso espírito, as ações honrosas nós as atribuímos à virtude, e as desonrosas, ao vício; e só um louco concluiria que esse julgamentos são simples questões de opinião, e não impostas pela natureza"." Esse é o pensamento comum dos juristas romanos, reafirmado nas freqüentes referências ao direito natural, à natureza das coisas e ao conceito tradicional de justiça, que Ulpiano define como "a vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito"." Ulpiano (34) (35) sempiterna; quae vocet ad officium jubendo, vetando a fraude deterreat; quae tamen neque probos frustra jubet aut vetat, nec improbos jubendo aut vetando movet. Huic legi nec obrogari fas est, neque derogari ex hac aliquid licet, peque toca abrogari potest; nec vero aut per senatum, aut per populum solvi hac lege possumus; neque est quaerenduz explanator aut interpres Sextus Aelius, nec erit alia lex Romae, alia Athenis; alia nunc, alia posthac: sed et omnes gentes et omni tempore una lex, et sempiterna et immutabilis continebit; unusque erit communis quasi magister et imperator omnium Deus, ille legis hujus inventor disceptator, lator; cui non parebit, ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus, hoc ipso leut maximas poenas, etiam si cetera supplicia, quae putantur, effugerit". Cícero, Le legibus, liv. I, XVI, 45. Ulpiano: "Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi" (1)ig. 1, l, 10). V. n. 7.1 do Capítulo 5 retro, p. 142. 260 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 261 Na época patrística as grandes figuras de Tertuliano,3ó S. Am_ brósio,37 S. Agostinho,38 Isidoro de Sevilha,39 inspirados na tradição greco-latina, ensinam que existe uma lei natural, fundada em Deus, autor da natureza, universal e imutável. Sua observância constitui a virtude da Justiça. 5.2 A filosofia de S. Tomás A filosofia do direito na Idade Média tem em S. Tomás de Aquino seu maior representante. Especialmente nos tratados De justitia e De legibus, que constituem partes de sua obra mais importante, que é a Suma Teológica, e nos Comentários à Ética e à Política de Aristóteles, encontra-se a exposição de sua doutrina, que dá continuidade e desenvolvimento ao pensamento aristotélico e serve de inspiração a uma importante corrente da moderna filosofia do direito. E, mesmo fora dos quadros do tomismo, os ensinamentos de S. Tomás, por sua profundidade e equilíbrio, têm recebido entusiásticos elogios de grandes juristas modernos, como Ihering, Duguit, Villey e outros!° 0'' Tertuliano (160-240), De testimonio animae, em que afirma que a alma humana é naturalmente cristã, "Apologeticus". Ambrósio (340-397) com S. Agostinho, S. Jerônimo e S. Gregório foi considerado um dos quatro doutores da Igreja. Autor de De officiis, Discursos e de notável Correspondência. Arcebispo de Milão. Após o massacre de Tessalônica (390) proibiu ao Imperador Teodósio a entrada em Milão, e só lhe permitiu a comunhão após longa expiação. S. Agostinho (354-430). Teólogo, Filósofo, moralista, historiador. Considerado o precursor da filosofia da história. De civitate Dei, Confissões, Cartas. "Só se fosse possível ao homem deixar de ser homem, poderia ele viver sem estar sujeito à lei natural: Sine lege naturali essent si praeter naturam humani generis esse potuissent" (in Psalmas, CXVIII, Sermo 25, 4). É a mesma idéia contida na famosa definição de Cícero. Isidoro de Sevilha (560-636). Autor do Decretum Gratiani, em que diz que a lei da natureza nada mais é do que a lei áurea, contida no direito e no Evangelho, que nos compele a fazer aos outros o que faríamos a nós mesmos proibindo-nos do contrário; escreveu também o livro das Etimologias, Etymologiarum, em que afirma ser "a liberdade universal de todas as criaturas humanas" um mandamento da justiça natural. (401 Escreveu lhering, em nota ao capítulo 9.° de seu célebre livro Der Zweck irn Recht (4.* ed.): "Recriminaram-me, com razão, a ignorância das idéias de S. Tomás... Quantos erros se teriam evitado se se houvessem conservado com fidelidade as suas doutrinas! Quanto a mim creio que se as houvesse conhecido antes não teria escrito o meu livro. As idéias fundamentais que desejava publicar já se acham expressas, com clareza perfeita e notável profundidade, por esse pensador vigoroso". L. Duguit, no § 8 do 1.° volume de seu Traité de DrOtt Constitutionnel, escreve: "L'analyse du sentiment de justice a été faite par Smnt Thomas d'Aquin dans des termes qui n'ont jamais été dépasés". 5.2.1 Definição de lei No tratado De legibus,41 S. Tomás começa por definir a lei, em geral, pelo exame de suas quatro características essenciais: - ordenação da razão - para o bem comum - promulgada - pela autoridade competente .4z Distingue a seguir três espécies de leis: a) a lei eterna (lex eterna), que é o plano de Deus a respeito da criação e da ordem universal, "é a razão da sabedoria divina como diretora de todos os movimentos e ações no universo";43 b) a lei natural (lex naturalis), que é a participação da criatura racional na lei cósmica,44 é a lei da natureza humana conhecida racionalmente pelo homem, independentemente de qualquer revelação sobrenatural; c) finalmente, a lei positiva (lex positiva ou jus positivum), obra do legislador humano, mas que deve ser conforme à lei natural e, portanto, à lei eterna. A doutrina tomista do direito natural apresenta características que muitos mestres do direito moderno desconhecem. São imutáveis os preceitos da lei natural? S. Tomás distingue: a) A lei natural é absolutamente imutável em seus primeiros princípios:45 O bem deve ser feito e o mal evitado ("bonum faciendum et malum vitandum"), dar a cada um o que é seu ("suum cuique tribuere"), não lesar a outrem ("neminem laedere") etc. 14)' 1, II, questões 90 a 97. 42' "... ex quatuor praedictis potest colligi definitio legis, quae nihil aliud est quam quaedam rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata" (1, II, q. 90, a. 4). (43' "Lex aeterna nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum" (I, II, q. 93, a. 1). (44) "Participatio legis aeternae in rationali creature lex naturalis dictur" (1, II, q (43) 91, a. 2). "Quantum ad prima principia legis naturae, lex naturae omnino est immutabilis" (1, II, q. 94, a. 5 c.). "Hoc est primum praeceptum legis, quod bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum. Et super hoc fundatur omnia alia praecepta legis naturae" (1, II, q. 94, a. 2). Patrística (37) (38) (39) Princípios imutáveis i 262 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 263 b) Mas, quanto aos preceitos secundários, a situação é diferente:4ó à medida que se distanciam dos primeiros prin_ Aplicações cípios, eles são cada vez mais contingentes e variáveis. Essa variação pode ocorrer em virtude do processo natural à razão de caminhar do imperfeito para o perfeito,47 por uma decadência dos costumes48 ou simplesmente pela diversidade e variação das condições do meio social 49 Na base dessa distinção entre os preceitos da lei natural, está o paralelismo que S. Tomás estabelece entre os princípios da ordem prática e os da ordem especulativa ou teórica. Na ordem especulativa, todas as proposições Ordem se fundamentam em alguns princípios básicos, especulativa axiomáticos, evidentes por si mesmos, como o de e ordem prática identidade, o de não contradição, o da tríplice identidade, e outros.` Sobre a distinção entre os princípios fundamentais e os preceitos secundários de direito natural, v. adiante: "Apreciação crítica", 5.6. "É natural à razão caminhar do imperfeito para o perfeito; os primeiros homens que elaboraram as normas para a vida social, não podendo considerar tudo por si mesmos, instituíram muitos preceitos imperfeitos e falhos, que seus sucessores modificaram, substituindo-os por outros, que, em alguns casos, podem ainda não realizar a utilidade social". "Humanae rationi naturale esse videtur ut gradatim ab imperfecto ad perfectum perveniat. Unde videmus, in scientiis speculativis, quod qui primo philosophati sunt, quaedam, imperfecta tradiderunt, quae post modum per posteriores sunt tradita magis perfectae. Ira etiam et in operabilibus. Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum, non valentes omnia ex se ipsis considerare, instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia, quae posteriores muta-verunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitate". S. Tomás, Summa, 1, II, q. 97, a. 1. Por outro lado, pode a variação das leis explicar-se pela decadência e corrupção dos costumes de um povo. S. Tomás cita, várias vezes, a esse propósito o caso do latrocínio, que era permitido entre os antigos germanos: "... lex naturae; quantum ad prima principia communia, est eadem apud omnes et secundum rectitudinem, et secundum notitian. Sed quantum ad quaedan propria... potest deficere... propter hoc quod aliqui habent depravatam rationem ex passione, seu ex mala consuetudine, seu ex mala habitudine naturae: sicut apud Germanos olim latrocinium non reputabatur iniquum". Finalmente, às diferentes condições do meio social - "secundum differentiam temporum et locorum et personarum" - correspondem normas positivas diferentes. "Ex parte hominum, quorum actus lage regulantur, lex recte mutari potest, propter mutationem conditionum hominum quibus secundum diversas eorum condiciones diversa expediunt" (I, li, q. 97, a. 1). A diversidade das leis positivas provém da variedade das coisas humanas: "Principia communia legis naturae non eodem modo applicari possunt omnibus propter multam varietatem rerum humana. Et exinde provenit diversitas legis positivae apud diversos" (I, II, q. 95, a. 2). Sobre a diversidade dos princípios na ordem teórica e na ordem prática, v Os princípios fundamentais do método no direito, André Franco Montomr Martins. 1942. Do mesmo modo, os preceitos básicos da lei natural estão para a ordem prática como os primeiros princípios axiomáticos estão para a ordem especulativa: ambos são princípios evidentes, impõemse por si mesmos." Pela simples apreensão das noções fundamentais da ordem prática, "bem" e "mal", e pela consideração do "agir" humano, a razão os formula imediatamente: ` o bem deve ser feito", ` o mal evitado", "dar a cada um o que é seu", "respeitar a natureza humana" etc. Sobre esses princípios fundam-se todas as demais normas, como suas aplicações. E essas aplicações variam naturalmente de acordo com as condições sociais, que são variáveis. "A justiça deve ser sempre respeitada, mas a determinação do que é justo em cada cado varia de conformidade com as condições diversas em que os homens se encontram."52 E, assim, ao lado de princípios absolutos e permanentes, que fornecem os critérios fundamentais, temos a extrema variação das soluções reais e concretas. Por isso, afirmou S. Tomás, "o que se refere à ciência moral é conhecido maximamente pela experiência". Mas, opondo-se ao relativismo radical dos nominalistas medievais,53 dá a esse conhecimento experimental, como observa Bodenheimer, uma base científica e rigorosa, representada pelos primeiros princípios da ordem prática. 5.2.2 Tratado da justiça Outro capítulo notável na obra de S. Tomás é o tratado da justiça, cujas posições fundamentais tivemos a oportunidade de estudar nos parágrafos precedentes, e que, assim, se poderiam resumir: a) a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade; b) há uma justiça geral ou social, cujo objeto é o bem comum, e uma justiça particular, que tem por objeto o bem dos particulares; "Praecepta legis naturae hoc modo se habent ad rationem practicam, sicut Principia prima demonstrationum se habent ad racionem speculativam: utraque enim sunt quaedam principia per se nota" (1, II, q. 94, a. 2). 1, 11, q. 104, a. 3, ad 1. E interessante aproximar desse texto a observação de Duguit: "Le sentiment de justice, comme toutes les choses humaines, a continuellement varié dans son application et ses développements. Mais cepedant réduit à ses éléments essentiels, il a un double objet, continuellement changeant dans ses manifestations, mais dans son fond, toujours identique à lui-même" (Traité de Droit Constitutionnel, § 8). Duns Scot (1270-1308), Guilherme de Occam (1290-1349). Opõe-se, também, ao relativismo de Arquelau e Carnéades, já mencionados. variáveis (46) (47) (49) (50) (5n (52) (53) 264 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 265 c) esta se subdivide em justiça comutativa, que rege as relações entre particulares, e justiça distributiva, que se refere às obrigações da sociedade para com os particulares; d) o fundamento das obrigações de justiça é a própria natureza humana; e) o direito é o objeto da justiça. 5.3 O pensamento filosófico de Vitória e Suárez Essa tradição greco-romana e cristã é reafirmada por duas figuras exponenciais do pensamento filosófico, no século XVI, Francisco de Vitória (1480-1546) e Francisco Suárez (15481617). Contra o voluntarismo subjetivista e relativista de Duns Scot e Occam, esses autores afirmam a existência objetiva de uma lei natural, fundada na razão e não na vontade subjetiva dos indivíduos ou dos soberanos. A promulgação da lei e sua aplicação dependem evidentemente da vontade das autoridades governamentais. Mas "não basta a vontade do príncipe para fazer a lei". É preciso que esta seja "uma vontade justa e reta". Francisco de Vitória (1480-1546), dominicano, professor na Universidade de Salamanca, ao tempo de Carlos V, aplicou os princípios do direito natural à solução dos problemas relativos aos direitos da população indígena na América recém-descoberta. E, por seus estudos no plano das relações entre os povos, é considerado um dos fundadores do moderno direito internacional .54 Francisco Suárez (1548-1617), jesuíta, professor da Universidade de Coimbra, no reino de Felipe II, fez, também, importantes aplicações dos princípios do direito natural aos problemas das relações inter nacionais e da colonização do Novo Mundo. Opondo-se a Jayme I, da Inglaterra, combateu o pretendido direito divino dos reis. É famosa sua definição: "O direito natural é aquela forma de direito que existe dentro do espírito humano, que nos permite distinguir o bem do mal» 55 5.4 O pensamento de Montesquieu Até o século XVII, as doutrinas do direito natural apresentavam uma unidade fundamental, com as características que acabamos de indicar. Essa unidade foi rompida durante os séculos XVII e XVIII, com o aparecimento de outra concepção de um direito natural vinculado a uma concepção abstrata e imaginária da natureza humana. Dessa concepção, representada por Grotius, Puffendorf, Locke, Rousseau, Kant, nos ocuparemos no próximo item. Mas a linha da concepção tradicional do direito natural prosseguiu sustentada por grandes juristas e filósofos do direito. Montesquieu (1689-1755), partindo do conceito de que "leis são relações necessárias que decorrem da natureza das coisas",56 afirmou que a "natureza das coisas" manifesta-se, em parte, nas condições gerais e, em parte, nas tendências e peculiaridades variáveis da natureza humana. Entre as condições gerais menciona o desejo de paz, a satisfação de certas necessidades primárias, como as de comer, vestir, morar, a constituição de família e a sociabilidade. As tendências relativas e contingentes dependem de condições geográficas, especialmente climáticas, de fatores religiosos, culturais e da estrutura política de cada país. "Antes que houvessem leis, existiam relações de justiça possíveis", escreveu Montesquieu. "Dizer que não há nada justo ou injusto, a não ser o que é ordenado ou proibido pelas leis positivas, é o mesmo que afirmar que, antes de traçarmos um círculo, os raios não eram todos iguais." E acrescenta: "Esta lei natural de justiça é a razão humana enquanto governa todos os povos da terra" .57 5.5 O direito natural no pensamento filosófico jurídico moderno F. Geny, Le Fur, G. Renard, Yves Simon, Maritain, Vareilles Sommieres, Boistel, Brethe de La Gressaye, Laborde-Lacoste, Valen (55) Sobre Suárez, v. Recaséns Siches, Estudios de Filosofia del Derecho, p. 425 e ss. (ss) Montesquieu, L'esprit des lois, liv. 1.°, cap. l.°. (57' Montesquieu, ob. cit., liv. 1, cap. III. (54) Sobre Vitória, escreveu Haroldo Valladão: "Observe-se, para exemplo de sua alta mentalidade de jurista, o combate de Vitória à argumentação dos conquistadores do Novo Mundo, que invocavam princípios do direito romano sobre a ocupação para justificar sua conduta". "Note-se que se baseava o direito de ocupação em texto das Institutas sobre a posse de animais, bravios, ferae bestiae, reconhecida pela sua captura em qualquer lugar onde ocorresse. Era, evidentemente, absurdo equiparar a ferae bestiae, seres humanos e povos, e alguns grandemente civilizados com as nações indígenas do México e do Peru... Doutra parte bem salientara Vitória que as terras descobertas tinham donos, os príncipes e povos das índias. E concluiu, irretorq ui vel mente, que tal título não pode fundamentar a posse dos espanhóis, do mesmo modo que não poderia fundamentar a dos `bárbaros' no território espanhol. `se eles nos tivessem descoberto'... Situou-se, assim, Vitória, seguido pelo jurista Suáre2 (1548-1617) em pólo oposto ao de Maquiavel. Era a alta moral pugnando, heroicamente, com a fria política praticada pelos chefes dos Estados conquistadores" (Democratização e socialização do Direito internacional, Rio, José Olímpio, 1961). 266 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 267 siri, Tourtoulon, Coste-Floret, entre outros, representam a doutrina tradicional do direito natural, no pensamento jurídico-filosófico francês do século XX. Na Bélgica: Jean Dabin, Jacques Leclerq e a Escola de Lovaina, Na Itália: Taparelli, D'Azeglio, Liberatore, Costa-Rosetti, Toniolo, Sturzo, Olgiati, Gonela, Bettiol. Na Alemanha e Suíça: Cathrein. Brunner, Helmut Coing, Vermeersch, entre outros. Na Espanha: Cepeda, Mendizabal e outros. No Brasil: João Mendes Jr., Leonel Franca, L. Van Acker, Alexandre Correia, Vicente Ráo, Cirne Lima, Jônatas Serrano, Armando Câmara, Haroldo Valladão, A. Amoroso Lima, A. Alves da Silva, J. P. Galvão de Souza, E. Mata Machado e Celso Lafer. E, em capítulo especial, devem ser mencionados os notáveis documentos sobre os princípios e as aplicações da justiça e do direito natural em relação aos grandes problemas do mundo moderno. A mais importante dessas manifestações é, sem dúvida, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, que afirma: "O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo" (Preâmbulo). Na mesma linha de defesa dos princípios de justiça e de respeito à dignidade da pessoa humana do homem todo e de todos os homens - devem ser lembradas as encíclicas sociais: Rerum novarum, de Leão XIII, Quadragesimo Anno, de Pio XI, Mater et Magistra e Pacem in terris, de João XXIII, Populorum progressio, de Paulo VI, Laborem exercens, Solicitudo rei socialis e Centesimus annus, de João Paulo II. 5.6 Apreciação crítica 5.6.1 Crítica ao conteúdo Ao examinar criticamente a concepção tradicional do direito natural e, especialmente, a doutrina tomista, Miguel Reale afirma: "Os preceitos apontados como cardiais ou `primeiros' apresentam-se vazios de conteúdo, como aquele que manda dar a cada um o que é Seu, deixando em aberto a determinação do devido a cada qual como próprio `segundo proporções estabelecidas pela natureza das Coisas Como observa Fonsecrive, se toda gente convém em dar a cada um o que é seu, a dificuldade começa tão logo se procure saber precisamente o que é devido a cada um. Na realidade, na concepção 00 examinada, ou se perde de vista a experiência concreta, da qual se pretende inicialmente partir para se atingirem por indução e abstração conceitos e valores universais de juridicidade, ou, então, passam a predominar as determinações ulteriores, pouco significando os limites abstratos admitidos com intransponíveis. Parece-nos, em suma, que o normativismo ético, por sua carência de sentido histórico concreto e por sua distinção abstrata entre o juridicamente lícito e o ilícito, só determinável com referência a uma ordem moral pré-constituída, não logra compreender a realidade jurídica na totalidade autêntica de seus elementos. De certa maneira, o elemento axiológico da norma permanece fora do processo, no qual o fato se ordena normativamente em virtude de valores reais e concretamente vividos"." A crítica de Miguel Reale incide fundamentalmente sobre três pontos: a) os princípios do direito natural são vazios de conteúdo; b) falta a essa doutrina o sentido histórico concreto; c) de certa maneira, ` o elemento axiológico da norma permanece fora do processo" da realidade jurídica. 5.6.2 O conteúdo do direito natural É certo que os princípios do direito natural, sendo "princípios", são necessariamente gerais e têm conteúdo limitado a certos preceitos fundamentais. É, aliás, princípio lógico que a compreensão de um conceito é tanto menor quanto maior for sua extensão. Mas não é exato que eles sejam vazios de conteúdo. E oportuno lembrar a distinção que S. Tomás estabelece entre os primeiros princípios e os preceitos secundários de direito material (v. item 5.2. retro). Dabin, por exemplo, dedicou um longo capítulo de seu notável estudo sobre La philosophie de 1'ordre juridique positif ao exame do conteúdo do direito natural.` E aponta, numa exposição que ele considera "três sommaire et, en quelque sorte, schématique", uma série de preceitos que correspondem às exigências essenciais e permanentes da natureza humana. Eis, em síntese, a lição do ilustre jurista: a) o conceito de natureza humana, comum a todos os homens e particular ao homem, não é um conceito vazio; seus traços fundamentais poder ser fixados com segurança. O homem é um ser essencialmente solidário e dependente dos outros homens; é natural ao (59~ Miguel Reale, Filosofia do Direito, n. 183, p. 433 e ss. J. Dabin, La philosophie de 1'ordre juridique positif, Seção II, cap. II. 268 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 269 homem entrar em relação com outros, porque sem a ajuda de seus semelhantes ele seria incapaz de viver e de se desenvolver material e espiritualmente; o meio social é para o homem como a atmosfera que ele respira, ou como a terra é para a planta; b) além dessa solidariedade humana geral, existem solidariedades naturais mais restritas, relativas a sociedades necessárias, como a família e a sociedade política. O homem começa por receber de outros • dom da existência: é o fato social primário, a solidariedade de pais • filhos; e esta geração resulta de outra solidariedade, a de pessoas de sexo diferente, que se unindo criam a vida. Ademais, o homem é um animal inserido numa unidade social superior aos indivíduos e aos grupos privados, sujeito às diretrizes de uma autoridade, encarregada de promover, com o consenso dos membros, a defesa e a prosperidade comuns; c) a essas tendências fundamentais, conhecidas pela observação • pela reflexão mais simples e confirmadas como fato histórico elementar, correspondem preceitos de direito natural interindividual, político e familiar; d) o primeiro preceito de direito natural interindividual: é o de que o homem dotado de natureza específica, diferente da planta e do animal, deve ser tratado como homem, como ser racional com um fim pessoal, e não como uma planta ou um animal; o homem deve respeitar o homem: é o dever de justiça. "O sentimento do justo e do injusto, escreveu Duguit, é um elemento permanente da natureza humana;ó0 o primeiro dever do homem para com o homem, o mais urgente, o mais necessário, é o dever de justiça, fundado na 'alteridade' ou distinção de pessoas substancialmente iguais", o que o obriga a respeitar a pessoa do próximo em sua dignidade moral e integridade física, a reparar os danos que lhe cause injustamente, a respeitar a equivalência das prestações etc.; e) no plano político, há, em primeiro lugar, deveres de direito natural da parte das autoridades públicas: dever preliminar de respeitar os direitos que pertencem aos cidadãos por sua qualidade de homens; direito à vida, à honra, a certos bens e liberdades; dever de atuar para • bem comum e não em benefício individual; dever de encaminhar uma distribuição eqüitativa dos benefícios e encargos sociais; dever de atribuir as funções públicas aos mais capazes etc.; existem, além disso, obrigações dos cidadãos para com a sociedade civil: impostos, serviço militar ou civil e prestações diversas; obediência às leis, às decisões da justiça e às ordens legítimas das autoridades; cooperação para o bem comum etc.; '0"' L. Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, § 8. o no plano familiar, os preceitos do direito natural podem se referir aos pais: obrigação de cuidar, alimentar e educar a prole, usar da autoridade paterna como um serviço em função do aperfeiçoamento pessoal do filho; da parte dos filhos: dever de respeito, obediência • assistência em caso de necessidade; da parte dos cônjuges: fundamentalmente o dever de amizade e cooperação em benefício dos filhos • do casal. 5.6.3 Sentido histórico concreto Não é válida, também, a crítica de que falta à doutrina tradicional do direito natural e, especialmente, ao tomismo o sentido histórico concreto. A afirmação de princípios fundamentais e permanentes não dispensa a consideração histórica da realidade social. Mas, ao contrário, exige essa consideração e lhe dá a base necessária e os critérios fundamentais. Sem a aceitação, explícita ou implícita, do princípio de que se deve dar a cada um o que é seu, e respeitar, assim, a dignidade de cada homem, nenhum passo poderá ser dado na vida concreta do direito. Da mesma forma que no sistema solar, diz Geny, é a partir dessa realidade humana fundamental que se irradiam as leis, os costumes, a jurisprudência e as demais fontes formais do direito.` Os preceitos citados por Dabin representam apenas os critérios fundamentais e gerais indicados pela natureza humana. Eles devem ser determinados concretamente, em cada sociedade, pela consideração objetiva das condições historicamente contingentes e variáveis. Como diz Leclerq, é preciso distinguir as "regras de direito natural" das "regras conformes ao direito natural"." As primeiras são exigências da natureza humana "genérica", cujo conteúdo, importância e realidade, como vimos, são incontestáveis. As demais correspondem à natureza particular e concreta de determinado grupo de homens. Ora, não é para a "natureza humana" genérica que o direito deve formular suas regras, mas para homens concretos, vivendo em determinado momento histórico. Essa realidade é profundamente variável: "O direito, até mesmo o natural, não pode ser imutável, porque a natureza humana também não é"; "...natura hominis est mutabilis", diz S. Tomás.' Por 6" François Geny, Science et technique en droit privé positif, n. 12, p. 41. 62) Jacques Leclerq, Leçons de droit naturel, t. 1, n. 48. 6" S. Tomás, De justitia, II II, q. 57, a. 2. ad 1. 270 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO • SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 271 isso, essa matéria deve ser conhecida principalmente pela expe riência.64 E Dabin, um dos grandes mestres do tomismo contemporâneo, acrescenta: é incontestável que o método adequado exige que se tome como ponto de partida, em toda investigação de filosofia jurídica, não o direito em si, em geral, mas o fato histórico, concreto e tangível do direito positivo, tal como ele aparece à observação .6s Aliás, o próprio Miguel Reale reconhece, em sua Filosofia do Direito, que com essa concepção "abre-se um campo vastíssimo deixado às determinações do Poder, o que dá à concepção tomista do direito uma reconhecida plasticidade" 11 5.6.4 Valores vivos e presentes A objeção de que, nessa doutrina, "de certa maneira, o elemento axiológico da norma permanece fora do processo da realidade jurídica", é, também, inaceitável. É claro que o direito de cada época não coincide com a justiça, mas é o esforço para alcançá-la. Os elementos axiológicos, representados pelos valores de "bem comum", "justiça", "dignidade humana", estão presentes em todos os momentos e fases da vida do direito, como critério e guia das decisões. Na elaboração da lei, o "bem comum" é a inspiração e a justificativa necessária de todos os projetos, pareceres e discussões. Constitui, aliás, exigência dos Regimentos das Câmaras e Assembléias Legislativas que os projetos de lei sejam sempre acompanhados de sua "justificação". São, ainda, a "justiça", o "bem comum", "a dignidade da pessoa humana", valores que devem estar sempre presentes no trabalho de interpretação e aplicação de qualquer norma. "Na aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum", determina o art. 5.° do Código Civil. O juiz, em todas as suas decisões, deve orientar-se fundamentalmente pela preocupação de realizar a "justiça" na aplicação da lei. Por isso, ele é chamado de "justiça viva" ("judez est justun animatum"); é a lei de "justiça inanimada". (60) "Quae pertinent ad scientiam moraletn maxime cognoscuntur per experientiam", S. Tomás, Comentários à Ética de Aristóteles, livro, I, lição III, n. 38. (63) J. Dabin, La philosophie de l'ordre juridique positif, n. 2, p. 11. (66) Miguel Reale, Filosofia do Direito, n. 183, p. 433. Ballot-Beaupré, Presidente da Corte de Cassação, em França, após afirmar, em histórico discurso,67 o caráter imperativo do "texto legal claro, preciso e isento de qualquer dúvida", acrescenta: "Mas quando • texto apresenta qualquer ambigüidade ou incerteza - sabemos que essa é a regra -, o poder de interpretação do juiz é amplo. Ele não deve se preocupar, então, em descobrir qual foi, há 100 anos, o pensamento dos autores do Código ao redigir tal artigo. Mas, adiante dos modificações ocorridas, a justiça e a razão exigem que o texto seja adaptado humanamente às exigências da vida moderna". Com razão, escreveu Geny, acima do texto legal, necessário para limitar o arbítrio da apreciação individual, o juiz deve visar a um ideal superior de justiça, condicionada por todos os elementos que informam a vida social".68 Aliás, a doutrina clássica do direito natural, em seu desenvolvimento histórico, revela uma atitude de constante presença na vida social • jurídica de cada época. E é em função dessa experiência que ele se afirma e se desenvolve. Estariam, por acaso, fora da vida real de direito as invocações aos princípios de justiça, dignidade humana, lei natural e outros, feitos por Antígona ao se recusar a cumprir a ordem iníqua do Rei Creon? Por Santo Ambrósio, Arcebispo de Milão, ao proibir ao Imperador Teodósio a entrada na sua Diocese, após o massacre de Tessalônica? Por Vitória, ao opor-se aos conquistadores do Novo Mundo, em sua pretensão de tratar as populações nativas como animais capturados? Por Leão XIII, ao condenar na Encíclica Rerum Novarum, em 1891, a exploração de trabalho humano como simples instrumento de lucro? Por Hauriou, ao condenar a agressão e as violências sofridas pelos aliados na guerra de 1918 e ao proclamar que "é a bandeira do direito natural imortal que defendemos e trabalhamos para que seja respeitada" ou ao acrescentar que "existe um ideal de justiça universal e imutável, graças a ele o direito não se identifica com a força?" Por Pio XI, ao repelir na carta Mit Brenneder Sorge em 1938 as medidas racistas e violentas impostas pelo Nazismo poderoso e triunfante? Por João XXIII e Paulo VI, ao reclamara a urgência de reformas estruturais na sociedade atual, para que a humanidade supere o subdesenvolvimento em termos de justiça? Pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, ao denunciar os atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade na última guerra, e aprovar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, onde se afirma "que • reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da famí 167 V. F. Geny, Science et technique en droit privé positif, n. 9, p. 29 e 30. (68) Ob. cit., n. 9, p. 30. 272 INTRODUÇÃO A CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 273 lia humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundoT'69 6. Doutrina racionalista ou do direito natural abstrato 6.1 Concepção racionalista A partir do século XVII quebra-se a linha do pensamento clássico a respeito do direito natural. Surge uma nova Uma nova concepção que, apesar de manter a denominação concepção de "direito natural", é radicalmente diversa da doutrina clássica. Tem sido denominada doutrina racionalista ou do direito natural abstrato ou ainda escola do direito da natureza (do nome que lhe foi dado na Alemanha: Naturecht). Entre seus representantes incluem-se, além de outros, Grotius (1538-1645), Hobbes (15881679), Spinoza (1632-1677), Puffendorf (1632-1694), Locke (1632-1704), Rousseau (1712-1778), Kant (1724 1804).7Ó Deixando de lado aspectos particulares, que dão feição própria ao pensamento de cada um desses autores, podemos indicar algumas características comuns, que os separam da concepção tradicional. O ponto de partida é geralmente um conceito do estado de natureza em que o homem teria vivido primitivamente, formulado, por isso, não pela observação dos fatos atuais, mas por um esforço de abstração e imaginação. Nesse sentido, são significativas as palavras com que Rousseau abre seu famoso "discours sur 1'origine de 1'inégalité parmi les hommes": "Comecemos por afastar todos os fatos. O que teria podido ser o gênero humano se ele tivesse sido entregue a si mesmo, eis o que eu me proponho a examinar. Como o meu tema interessa ao homem em geral, procurarei usar uma linguagem que convenha a todas as nações, ou melhor, esquecendo os tempos e os lugares, imaginarei ter o gênero humano como auditório. Ó homem, de qualquer lugar (69) Na mesma linha da defesa dos direitos humanos, ver a recente tese do Professor Celso Lafer, A reconstrução dos Direitos Humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, São Paulo, Ed. Cia. das Letras, 1988. (10) V. Leonardo Van Acker, "Do direito natural objetivo e material, para o direito natural subjetivo e formal", em Curso de Filosofia do Direito, II fascículo, São Paulo, Herder, 1968, J. P. Galvão de Souza, O positivismo jurídico e o direito natural, São Paulo, 1940; J. Dabin, La philosophie de 1'ordre juridique positif, n. 68 e ss.; Brethe De La Gressaye, Laborde-Lacoste, Introd. à l'étude du droit, n. 34. que tu sejas, eis a tua história, tal como eu creio a ler na natureza que não mente jamais"." Desse estado de natureza do homem - pré-social, para Rousseau, anti-social, para Hobbes são deduzidos racionalmente os direitos naturais dos indivíduos. "O homem nasceu livre, mas em toda a parte ele está prisioneiro (...). Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem e aos direitos da humanidade." Daí a necessidade de encontrar uma forma de associação em que cada um se unindo a todos não obedeça, entretanto, senão a si mesmo e permaneça tão livre como antes. A esse problema fundamental, o CONTRATO SOCIAL dá solução. As cláusulas desse contrato são rigorosamente determinadas pela natureza do ato.` Como diz Alexandre Correia ao criticar o pensamento rousseauniano: "Da natureza humana abstrata há de surgir more geométrico, toda a organização social, todos os direitos do homem". O Contrato Social é o padrão clássico de uma concepção imaginária da realidade.` Os adeptos da nova doutrina não se limitam a procurar no direito natural princípios diretores para a elaboração jurídica. Mas pretendem estabelecer um sistema completo de preceitos, que descem até as menores particularidades. Não fazem, assim, a distinção tradicional entre os primeiros princípios, que constituem o direito natural, em sentido estrito e próprio, e suas aplicações contingentes e variáveis. E atribuem, assim, a todas as normas a mesma validade absoluta e universal. O direito natural, em lugar de ser um corpo restrito de princípios, a serem utilizados como fundamento e critério no trabalho de elaboração jurídica, passa a constituir Modelo um Código completo de regras, que servem de completo para modelo ao direito positivo. o direito Cada instituição humana, observa Capitant,74 positivo tem assim seu modelo natural, do qual ela é uma reprodução mais ou menos grosseira. O papel de legislador consiste em apagar, pouco a pouco, as diferenças entre a cópia e o modelo. O!j J. J. Rousseau, Discours sur l'inégalité, princípio. (72' J. J. Rousseau, Du contrat social, livro I. ("' Alexandre Correia, A concepção histórica do direito, São Paulo, Odeon, 1935. O4) R. Capitant, Introduction à l'étude du droit, n. 7. e Dedução dos direitos individuais Estado de natureza Princípios diretores e normas particulares 274 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO A modificar, emendar, corrigir a cópia como o operário que reproduz no mármore a obra do artista. É esse o sentido da conhecida definição do Oudot: "O direito natural é o conjunto de regras do justo e do injusto que é desejável ver imediatamente transformado em leis positivas". A autoridade pública deve legislar? Pergunta Dabin e responde com ironia: que ela abra o "Código do Direito da Natureza" e aí encontrará o preceito exatamente adequado. Além disso, esse ideal tem um valor universal e é imutável, pois, aos olhos dos inovadores, a natureza humana não muda e a razão, que perscruta a natureza, não pode se enganar." 6.2 Apreciação crítica Quantos juristas vêem, ainda hoje, no direito natural exatamente esse modelo, conforme a pensamento das grandes autoridades da ciência jurídica nos séculos XVII e XVIII! Esse modelo foi, também, o responsável pelo descrédito em que caiu a concepção do direito natural no século XIX, em conseqüência da crítica rigorosa e destruidora, que lhe foi feita pela escola histórica • pelo positivismo moderno. Mas essa crítica tem inteira procedência. Porque a história mostra não um direito igual e imutável em todos os povos, mas instituições • regras jurídicas diferentes, acompanhando as diversidades de condições de tempo e de lugar. Até mesmo quando se trata de regulamentar um mesmo princípio - como garantir aos cidadãos meios de defesa contra o arbítrio da autoridade, ou ao Estado o poder de punir, cobrar impostos ou desapropriar - as normas e processos adotados apresentam variação multiforme. Além disso, essa doutrina é inaceitável do ponto de vista filosófico. Primeiro, porque desconhece o verdadeiro caráter da natureza humana, que é na realidade profundamente variável. Segundo, porque adota métodos aprioristas e dedutivos, no estudo de matéria que só pode ser conhecida por observação e experiência. Como notou Saleilles, uma doutrina "imobilista" ou "fixista" não pode ser social, porque a primeira das leis sociais é a da evolução • do progresso. É evidente, entretanto, que tais críticas não atingem a concepção tradicional do direito natural, cujo caráter objetivo e realista foi examinado no item anterior. (75) J. Dabin, La philos. de l'ordre jurid. posit., n. 68, p. 272. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 2.75 7. Doutrina dos valores ou da cultura 7.1 Direito como cultura A doutrina da cultura ou dos valores é uma formulação moderna dos problemas da filosofia e das ciências. No plano jurídico sustenta que o direito, como a ciência, a arte e os demais fenômenos sociais, pertence ao reino da cultura, ou seja, ao mundo construído pelo homem, através da história. Se o "conhece a ti mesmo" foi a preocupação central da filosofia de Sócrates; se o conhecimento do mundo físico é a nota dominante da ciência moderna; o propósito básico dos culturalistas poderia ser assim sintetizado: "Homem, conhece a obra de teu espírito". As instituições, os negócios, os objetos de arte, as construções, o cinema, o livro, o rádio, a televisão, a moeda, as máquinas, as leis, os contratos, são obras culturais realizadas pelo espírito humano que constrói, assim, um novo mundo sobre o mundo da natureza. Que espécie de realidade é o direito? Realidade natural e física, como a molécula, o granito, o oxigênio? Realidade psíquica, como os atos da vontade, os sentimentos, os conhecimentos? Realidade ideal, semelhante ao plano da lógica ou da matemática? Não, o direito pertence ao campo da "cultura". Tem, por isso, sentido ou significação. Está orientado para uma finalidade ou valor. Existe em um tempo e em um lugar. Raldbruch,7ó um dos grandes representantes da teoria culturalista do direito, expõe a doutrina na sua Rechtsphilosophie. A filosofia dos valores ou da cultura parte da rigorosa distinção que é preciso fazer entre "realidade" e "valor", entre "ser" e "dever ser". A célula, o oxigênio, os astros, são realidades ou "seres". O bem, o belo, a verdade, a justiça são valores, pertencem à categoria do "dever ser". Esse dualismo inicial se opõe ao monismo dos que negam os problemas de "valor", como tema distinto, e pretendem tratá-los como se tratam os problemas da realidade físico-natural. "6~ G. Radbruch, Filosofia do direito. Raldbruch Realidade e valor 276 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 277 Em face da realidade e dos valores, o espírito humano pode assumir as seguintes atitudes: a) atitude não valorativa ou avalorativa: é Ciências uma posição cega para os valores, é a atitude própria das ciências da natureza, que se limitam a conhecer e descrever a realidade física; b) atitude valorativa: consiste em apreender a escala dos valores e suas relações; é própria da filosofia dos valores, Filosofia nos seus três ramos fundamentais: lógica, moral, estética, que se ocupam respectivamente da verdade, do bem e do belo; quem relaciona fatos e valores, mas sem valorar os fatos; consiste em dar o sentido da realidade, sem lhe atribuir um valor; assim diz Raldbruch: a ciência de determinada época não coincide com a verdade, mas é um esforço para alcançá-la; da mesma forma, a arte é um esforço para atingir o belo; a moral é uma tentativa no sentido do bem; esse é o conteúdo do conceito de cultura; a cultura não é um puro valor, mas uma realidade cujo sentido consiste em tender para a realização de determinado valor; essa é a atitude própria das ciências culturais. Raldbruch admite ainda, ao lado da atitude cega para os valores (wertblind), a valorativa (bewertend) e da referida a valores (wertbeziehend), a que supera os valores (wertuberwindend), isto é, a atitude religiosa. O objeto de cada seguintes palavras: - realidade; - valor; - - sentido. Aplicando esses princípios ao campo da ciência jurídica, afirmam os culturalistas que o direito pode ser estudado por uma destas duas atitudes: a valorativa ou a ao direito cultural. Mas não pela primeira atitude, que é cega para os valores. O direito não pode ser conside do seu fim ou valor, como pretende a concepção O direito pode, também, ser considerado com um valor ou dever ser: justiça, bem comum, e ser estudado nessa perspectiva. É a atitude da Filosofia do Direito. Mas não pode ser estudado como ciência física ou natural. "Não pode haver uma justa visão de qualquer obra ou produto humano, abstraindo do fim para que serve e do seu valor. Uma consideração cega aos fins, ou cega aos valores, é, nesse caso, inadmissível e assim também a respeito do direito ou de qualquer fenômeno jurídico." No Brasil, entre os representantes do culturalismo jurídico, está Miguel Reale, professor de Filosofia do Direito, na Universidade de São Paulo. Miguel "O mundo dos valores e da cultura, diz o Reale professor, tem sido a preocupação dos mais diferentes pensadores, desde o início das cogitações filosóficas, embora não empregassem os mesmos termos. Não resta dúvida, porém, que foi a partir da segunda metade do século passado que se adquiriu plena consciência desse mundo, reputando-se-o suscetível de perquirição científica, segundo um sistema de categorias próprias. Devemos, por certo, a Giambattista Vico (1668-1744) a primeira visão ãutônoma do "mundo histórico", genialmente projetada no livro que recebeu este expressivo título: Princípios de uma nova ciência." 7.2 Que é cultura? "O homem realiza cultura, tanto quando lança uma semente à terra como quando cria por si mesmo uma expressão de beleza. Tudo aquilo que o homem realiza na História, na objetivação de fins especificamente humanos, nós denominamos cultura." A cultura, portanto, poderia ser compreendida da seguinte forma: é o cabedal de bens objetivados pelo espírito humano, na realização de seus fins específicos, ou, com palavras de Simmel: "Provisão de espiritualidade objetivada pela espécie humana no decurso da História". Dois elementos integram qualquer bem cultural: o "suporte", que é a sua matéria, e o "significado", que é sempre a expressão de um valor: verdade, bem, utilidade, beleza, poder etc. Ao contrário das ciências da natureza em que "a explicação pode ser vista como objetiva e neutra, cega para os valores", as ciências culturais "elaboram juízos de valor, após terem tomado contato com a realidade". "') Miguel Reale, Filosofia do Direito, cap. XVII e ss. naturais dos valores atitude de Ciências culturais c) uma dessas atitudes pode ser expresso nas Aplicação rado com abstração positivista. "A atitude que nos permite apreender a verdade natural do direito é a que relaciona as realidades com os valores. O direito é um fato cultural, cujo `sentido' consiste em achar-se sempre a serviço da justiça. Essa é a atitude da Ciência do Direito." 278 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 279 • mesmo fato - um morte, por exemplo - pode ser estudado por um biólogo, que explicará cientificamente a causa mortis, e por um jurista, que fará "o fato passar por um prisma estimativo de maneira que ele adquire um significado, uma referibilidade de sentido". Qual o sentido do direito? "O homem não e apenas um realizador de Sentido interesses, de coisas valiosas, ou de `bens', porque do direito é também um ser que sente a indeclinável neces sidade de proteger o que cria, de tutelar as coisas realizadas e de garantir para si mesmo, acima de tudo, a possibilidade de criar livremente coisa novas." • Direito marca e reflete essas tendências ou inclinações fundamentais do espírito, na tutela e na realização de valores. A concepção culturalista do direito é uma concepção humanista. "Partimos da idéia, a nosso ver básica, de que a Valor pessoa humana é o valor fonte de todos os fonte valores." "O bem visto como valor social é o que chamamos propriamente de `justo', e constitui o valor fundante do Direito." 7.3 Apreciação crítica • culturalismo jurídico é uma formulação moderna de problemática fundamental do direito. Sua conceituação do direito como elemento do mundo da cultura e a recusa a reduzi-lo a um simples fenômeno da natureza, como pretendem certas concepções positivas, representa um passo de grande significação na história da ciência jurídica. Tem, igualmente, importante significação histórica a superação do formalismo kantiano, realizada pela filosofia da cultura. Os valores, em que os culturalistas apóiam toda a atividade moral e jurídica, não são puramente formais e destituídos de conteúdo como o imperativo categórico de Kant. Pelo contrário, como diz Max Scheler, os valores têm conteúdo e são captáveis pelo espírito humano. A pessoa tem uma função intermediária entre o mundo dos valores e a realidade. O valor não se impõe necessariamente. É a pessoa que, captando o valor, decide de sua existência escolhendo entre diversos valores. Os valores passam do dever-ser ao ser, mediante a atividade moral da pessoa. Mas, para a generalidade dos culturalistas, essa "pessoa" e esses "valores", que constituem o fundamento da moral e do direito, são destituídos de realidade objetiva, como seres, em virtude da separação radical que fazem entre "valor" e "ser"; o que significa reincidir na tese kantiana da separação intransponível entre o mundo da metafísica e o mundo da moral, entre realidade e valor. E sabido que Kant, na Crítica da razão pura nega a possibilidade de a inteligência atingir a realidade em si mesma, tornando assim impossível a elaboração de uma metafísica. Por outra parte, no plano da razão prática, atribui validade às coisas em si, não como objetos, mas como postulados da atividade moral. Fica, assim, estabelecida uma separação intransponível entre a metafísica - impossível para a inteligência humana - e ordem moral, que a partir da vontade impõe, como condição de toda- ética, a liberdade, a pessoa e os demais postulados da razão prática. Esse dualismo irredutível entre a ordem do ser e a do deverser marcou a filosofia moderna pósKantiana e atinge grande parte do pensamento culturalista.71 8. Conclusões 8.1 Pensamento comum Após o exame de extrema diversidade de doutrinas sobre a natureza do direito e seu fundamento, chega-se a uma conclusão que pode parecer surpreendente: no fundo da variedade de formulações e aparentes contrariedades, há um núcleo de pensamento comum, que se torna cada vez mais amplo. As doutrinas e interpretações, em sua maior parte, não se excluem. Antes, de certa forma, se completam. Focalizam aspectos diferentes da realidade jurídica. Correspondem a diversos contextos e condições históricas. E representam contribuições positivas para a compreensão global do direito. Poder-se-ia falar numa espécie de decantação histórica, que, através dos séculos, vai eliminando progressivamente os desacertos e as demasias. 8.2 Existência de pseudoproblemas Um exame objetivo e direto das doutrinas expostas revela as existência de muitos pseudoproblemas, isto é, questões aparentes que na V. Octávio Nicolás Derisi, Los fundamentos metafísicos del orden moral, Ed. Universidad de Buenos Aires, 1941; Jacques Leclerq, Les grandes lignes de la Philosophie Morale, Ed. Université de Louvain, 1954; Jacques Leclerq, "La morale dans Ia philosophie des valeurs", in La Philosophie Morale de S. Thomas devant Ia pensée contemporaine, Ed. Université de Louvain, 1955, p. 262 e ss. 80 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO realidade despareceram quando se analisa o pensamento do autor dentro dos pressupostos lógicos, históricos e de terminologia em que ele se situa. Daí a importância que certas correntes, como o neopositivismo contemporâneo, e especialmente o positivismo lógico, atribuem ao estudo da linguagem e das formulações científicas. A missão da filosofia consistiria em esclarecer e precisar os enunciados das ciências para depurá-los de equívocos e confusões da linguagem. Nesse sentido é significativa a afirmação de Ludwig Wittgenstein: "O objeto da filosofia é a classificação lógica dos pensamentos". A essa tendência liga-se a importância cada vez maior atribuída à moderna lógica matemática ou simbólica, também denominada logística, orientada no sentido de disciplinar, de forma mais condensada e rigorosa, as operações do pensamento. 8.3 Culturalismo e direito natural Doutrinas apresentadas muitas vezes como opostas, na realidade aproximam-se e se contemplam. É o caso das concepções históricoculturais e da doutrina tradicional do direito natural especialmente na sua formulação tomista - expostas nas páginas precedentes. O historicismo e o relativismo dos culturalistas, que insistem na contínua variação do direito, não se opõem ao pensamento dos mestres do direito natural, que, como S. Tomás, afirmam, igualmente, que o direito e as instituições sociais estão em contínua mudança, pois, na realidade concreta, a própria "natureza do homem é mutável" - "Natura hominis est mutabilis".79 De outra parte, a doutrina tomista dos primeiros princípios, absolutos e evidentes, como base dos preceitos do direito positivo, é reconhecida expressamente pelos representantes do culturalismo jurídico, como Miguel Reale, ao afirmar que a pesquisa filosófica parte sempre "de evidências universalmente válidas"80 ou que "o direito também se funda em princípios, uns de alcance universal, outros que se situam no âmbito de seu campo de pesquisa",81 ou, ainda, ao demonstrar a necessidade de "um critério universal mediante o qual se possa reconhecer, em geral, o justo e o injusto".82 179' De justitia, II II, 57, a. 2. ad 1. Sobre as "variações das regras de conduta, na unidade do direito natural", v. Dabin, Philosophie de !'ordre juridique positif, n. 269 e ss.; Sertillanges: "Nem de direito, nem de fato, a variedade das regras contraria a hipótese do direito natural", La Philosophie Morale de S. Thomas d'Aquin, n. 270. Contra o imobilismo e o fixismo, ver, ainda Simon Deploige, Le conflit de Ia morale et de Ia sociologie. 80) Miguel Reale, Filosofia do Direito, n. 3. 18)) Ibidem, n. 18-A. ) 2) Ibidem, n. 8. SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 281 8.4 Positivismo jurídico e doutrina da justiça Da mesma forma, o positivismo jurídico, tal como é formulado por muitos de seus representantes mais autorizados, não é incompatível com a doutrina da justiça. As diferenças entre as duas concepções ligam-se principalmente ao fato de focalizar cada uma um campo de estudos diferente. Uma teoria positivista do direito, diz Kelsen,83 não pretende sustentar que a justiça não exista ou que qualquer ordem jurídica positiva não possa ser julgada justa ou injusta. Mas o positivismo jurídico pretende ocupar-se, apenas, com o sistema de normas do direito positivo; e, permanecendo rigorosamente dentro desse sistema, examinar a hierarquia e a correlação entre as diversas normas que o integram. Mas o próprio Kelsen admite, ao lado da "teoria pura do direito", uma teoria de justiçaS4 e uma investigação sociológica do direito." 8.5 Justiça Dentro de núcleo comum de princípios, aceitos pelas diversas escolas, situa-se o reconhecimento de que a justiça é o valor fundamental do direito. Valor Podem algumas correntes, como o positivismo fundamental jurídico, considerá-la um elemento exterior ao do direito direito, em sentido estrito. Mas, como vimos no citado depoimento de Kelsen, não se trata de negação da justiça, que aliás foi amplamente estudada por ele, mas de recusa em incluí-la no campo da investigação jurídica, definida em termos estritamente formais. (83) (84) (85) "Une théorie positiviste, et cela veut réaliste, du droit ne prétend pas il faut toujours y insister - qu'il n'y a pas de justice. Elle ne nie pas que l'elaboration d'un ordre juridique positif peut être déterminée et est en fait généralement déterminée par Ia représentation de l'une quelconque des normes de justice. Em particulier elle ne nie pas que tout ordre juridique positif, c'est-àdire, les actes par lesquels ses normes sont crées, peut être évalué selon-l'une de ces nombreuses normes de justice, c'est-à-dire, jugé juste ou injuste." H. Kelsen, Justice et droit naturel, n. 29. V. especialmente, entre as obras de Kelsen: What is justice? e Justice et droit naturel. Kelsen define a sociologia jurídica como "uma ciência que se propõe a examinar as causas e os efeitos dos processos naturais que, recebendo a designação de normas jurídicas, se apresentam como atos jurídicos', The Pure Theory of Law, p. 480. E realizou, entre outras, extensa investigação sociológica sobre o princípio de retribuição, publicada sob o título "Sociedade e natureza". Hans Kelsen, Socidad y naturaleza - Una investigación sociológica. Buenos Aires, De Palma, 1945. 282 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO É admissível que um jurista, por motivo metodológico, limite seu campo de considerações ao estudo do direito positivo, considerado apenas formalmente como um sistema de normas impostas pelo Estado. E essa uma das perspectivas ou dimensões do direito. Mas há outros aspectos do problema que merecem igualmente uma investigação científica. Éo caso do direito como fenômeno social (objeto da sociologia jurídica), como matéria de conhecimento (direitociência), como prerrogativa ou poder (direito subjetivo) e, principalmente, como justo ou o devido a uma pessoa ou instituição (direitojusto). 8.6 Pessoa humana A justiça não é um conceito meramente formal e vazio de con teúdo, como pretendem alguns autores. Pelo conValor , em oposição às relações sociais de domifundamental nação e de submissão, ela representa a exigência da justiça concreta de respeito à personalidade de cada homem e de todos os homens. O princípio da justiça, lembra Lévy-Ullmann,S6 não se limita à universalidade de sua forma lógica, mas apresenta um conteúdo que consiste no reconhecimento integral de personalidade de cada um, considerado como ser absoluto e autônomo. A justiça quer cada homem seja reconhecido e tratado por todos os outros como um ser que é senhor de seus próprios atos. As exigências concretas da justiça se alimentam desse princípio; elas voltam continuamente à consciência dos homens; realizam-se por um trabalho permanente; transformam o direito em vigor. Imanente e sempre renovada em nosso espírito, a idéia de justiça se encontra em todas as leis, mas não se esgota em nenhuma. E ela que dá sentido e significação a todo o direito positivo. 9. Outras formulações 9.1 Justiça e direito Edgard Bodenheimer, Ciência do Direito, n. 38, p. 180. Infeliz foi a atitude de extremo ceticismo em face dos valores finais da ordem jurídica, assumida por certos representantes do positivismo e do realismo jurídico, avultando entre eles Hans Kelsen e Alf Ross. Ambos estes juristas encararam o problema da justiça como um pseudoproblema, que é (86) H. Lévy, Ullrnann, Prefácio à edição francesa da obra de Del Vecchio, Justice, Droit, Etat, Paris : Sirey, 1938, p. XXVI. impossível apreender inteligivelmente por qualquer esforço de análise racional. Segundo Ross, exemplo, as palavras "justo" e "injusto" são inteiramente destituídas de sentido para o fim de avaliar-se um norma legal ou uma ordem jurídica. "A justiça não serve de guia para o legislador." Na realidade, o problema da realização da justiça nas relações humanas é o mais desafiador eo mais vital no que tange ao controle do grupo social por meio da lei, e não é de modo algum impermeável ao método da argumentação racional. O emprego desse método não exige unanimidade ou universalidade nas conclusões a que se chegue quanto à justiça de uma medida legal. Exige apenas que o problema seja tratado com imparcialidade e largueza de vistas, e que as questões relevantes sejam apreciadas de todos os ângulos, levando-se em consideração os interesses e as preocupações de todas as pessoas ou grupos atingidos pela regulamentação. Importante roteiro para a avaliação racional da justiça de uma lei ou corpo de leis nos fornece o estado do nosso conhecimento científico relativamente às pressuposições psicológicas, biológicas ou sociais que subsistem numa regulamentação legal. Por exemplo, nenhuma lei pertinente a relações raciais pode ser justa, tendo por base uma teoria racial que as mais avançadas descobertas da ciência biológica tenham demonstrado ser insustentável. A busca da justiça é infindável e repleta de dificuldades. Por outro lado, é facilitada por certos fatores objetivamente verificáveis, tais como a existência de uniformidades culturais de avaliação, que deitam suas raízes principalmente no fato de que a afirmação da vida prepondera fortemente sobre a negação da vida, na história da espécie humana. Não há razão para que o jurista se envergonhe de sondar os fundamentos de uma ordem jurídica justa, ainda que a tarefa exija incursões laterais no campo da antropologia filosófica e de outras ciências não jurídicas. A preocupação com a "boa sociedade" não pode ser posta de lado pela ciência social, e não deve ser relegada por ela aos políticos e legisladores absorvidos pela premência dos problemas práticos do momento. Se a procura da justiça e da razoabilidade do direito for abandonada pelos espíritos mais esclarecidos, sob a alegação de que a justiça é uma noção sem sentido, quimérica, irracional, então existe o risco de a espécie humana retroceder a uma condição de barbárie e ignorância em que o irracional predominará sobre o racional, e em que as negras forças do preconceito talvez ganhem a batalha contra os ideais humanitários e as forças do bem e da benevolência. 9.2 Existencialismo e direito Helvécio O. Azevedo, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, março, 1962. O homem sartriano não possui a natureza especificamente humana ou, como afirma Heidegger, não existe a realidade humana. O professor da Faculdade de Direito de Beirute, Bichara Tabbah, num excelente e recente trabalho, comentava ironicamente que Sartre parece, primeiramente, fundar o seu sistema sobre a negação de Deus e, mais tarde, estabelecido o sistema, protesta, com certo eufemismo, que a existência de Deus pouco importa... O homem sartriano é um solitário. Não possui qualquer elemento de estabilidade exterior ou de transcendência superior. Assim, nada vale a não ser o que faz de si. O homem é a sua autoconstrução, é a sua vida. Mas deve realizar tal obra sozinho, sem qualquer socorro divino ou humano, pois não possui compromissos com nada nem com ninguém. É o que J. P. Sartre entende por liberdade, da qual faz um dos postulados de sua filosofia. 0 SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 283 284 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 285 homem existe apenas, não possui essência ou natureza. E, por ser assim, não tem nenhuma finalidade o seu existir. O homem deve existir por amor ao existir, eis a síntese do existencialismo sartriano. Aparece, então, outro ponto basilar do pensamento existencial-ateu: o subjetivismo absoluto. O homem encontra-se ferreamente preso dentro de si mesmo, escravo de si próprio, qual uma ilha sem o istmo que a ligue ao continente. Trata-se de uma dedução da supressão da natureza humana: reduziu-se o homem a um mundo fechado, ficando numa angustiante situação de completa impossibilidade de comunicação com o seu semelhante. Por força da ausência de qualquer elemento de permanência exterior, o ser humano é um segregado, um universo diferente, com aspirações e naturezas alheias às de outros homens e, principalmente, com leis próprias e particularíssimas. Trata-se de um individualismo feroz. Cada um por si e ninguém por ninguém, é o brado de alerta da revolução sartriana. Assim, estamos diante de uma concepção filosófica nimiamente anti-social. O homem de Sartre nada deve nem deseja da sociedade. Sua vontade é, apenas, existir - pois tal é a única realidade -, seja de que maneira for. Ora, somos dos que pensam que não é a sociedade nem o Estado que fazem o Direito; o Direito origina-se da natureza humana. Em outras palavras, o Direito tem suas nascentes no Direito Natural, entendendo-se este como "uma ordem ou disposição existente, real, em virtude da própria natureza humana, ordem ou disposição que a razão humana pode descobrir e segundo a qual a vontade humana deve agir para pôr-se em consonância com os fins essenciais e necessários do ser humano". Mister se faz, contudo, atentar para o fato de que, se o direito não é "feito" pela sociedade, é elaborado para a vivência em sociedade. O direito regula as ações do homem enquanto zoon politikon. O jurídico existe para a sociedade, para harmonizar os interesses individuais com os do todo, a fim de que haja, em suma, uma coletividade e uma fraternidade mais perfeitas entre os homens, clima propício ao ente humano para a consecução de seu fim último. O Direito, assim, executa um movimento em sentido contrário ao do existencialismo; aquele é aglutinador, catalizador, centrífugo, fraternal; este é dissociador, subjetivista, centrípeto, antifratemal. Não pode haver traço de união entre espécies tão antípodas. O existencialismo é antijurídico por excelência. 9.3 Teoria tridimensional do direito Miguel Reale, Filosofia do Direito, v. 2.° , p. 491 e ss. A análise da experiência jurídica, à luz de seus elementos axiológicos e teleológicos, demonstranos a impossibilidade de cortes que materialmente se pretendem fazer em uma realidade que integra em si três elementos ontologicamente inseparáveis. O filósofo do Direito, o sociólogo e o jurista não podem deixar de estudar o Direito na totalidade de seus elementos constitutivos, na tridimensionalidade de sua contextura, embora possam e devam ser distintos os respectivos prismas ou modos de pesquisa. Cada grupo de estudiosos cuidará, é claro, mais deste do que daquele outro elemento da experiência jurídica, mas deverá determinar sempre o significado autêntico de seu objeto de indagação em função dos outros dois. Sem essa referência aos demais, um fato da experiência jurídica não poderia ser logicamente concebível, ou como fato jurídico (seria mero fato social indistinto ou indiscriminado), ou como norma jurídica (seria simples norma ética), nem mesmo como valor de interesse para o mundo do Direito. A concepção tridimensional específica, que assinala um esforço de superamento ou de síntese de explicações unilaterais da vida do Direito, pois seus três elementos, longe de se justaporem, ordenam-se na unidade de um processo visando o filósofo, o sociólogo e o jurista, respectivamente, o valor, o fato e a norma, em razão dos dois outros fatores inerentes à juridicidade. A esta doutrina que reclama a integração das três perspectivas em uma unidade funcional e de processo é que chamamos de concepção tridimensional específica e integrante do Direito, cujos princípios começamos a determinar, em 1939/40, nas páginas de Fundamentos do Direito, notadamente no capítulo final, intitulado "Fato, valor e norma", onde reclamamos a integração desses três elementos em correspondência com os problemas complementares da validade social, da validade ética e da validade técnico-jurídica. A tridimensionalidade não deve esgotar-se na simples justaposição de três elementos ou três ingredientes, porque envolve a conexão entre eles, em um sentido de processo e de integração. Não basta, pois, combinar ou ajustar elementos, como faz Sauer, com recurso às mônadas de valor, importando antes ver em que sentido eles se integram em unidade, e como cada fator é explicado pelos demais e pela totalidade do processo. Poder-se-ia representar aproximadamente a colocação do problema que ora nos preocupa com este quadro: Elementos Nota Concepções constitutivos dominante unilaterais Fato -~ Eficcia , -~ Sociologismo Valor -* Fundamento jurídico Tridimensionalidade Eticismo puro 1 ou abstrato genérica Norma Vigência --- _ Normativismo Tridimensionalidade lógico específica Na primeira coluna, indicamos os elementos constitutivos da experiência jurídica - fato, valor e norma; na segunda assinalamos a nota dominante, que corresponde aos elementos discriminados com o nome de eficácia, fundamento e vigência, cujos conceitos serão a seguir estudados, elaborando noções já oferecidas nas páginas anteriores. Como existem três elementos, surgiram as tentativas já examinadas de "setorização" do fenômeno, motivo pelo qual na terceira coluna aparecem as diversas "concepções unilaterais", o Sociologismo jurídico, o Eticismo puro ou abstrato, e o Normativismo lógico. Quando se procuram combinar estes três pontos de vista unilaterais e, mais precisamente, os resultados decorrentes de estudos levados a cabo separadamente segundo aqueles pontos de vista, configura-se o que chamamos de tridimensionalidade genérica do Direito. Quando, ao contrário, não se realiza uma simples harmonização de resultados de Ciências distintas, mas se faz um exame prévio da correlação essencial dos elementos primordiais do Direito, mostrando que eles sempre se implicam, em uma conexão necessária, temos o que denominamos doutrina da tridimensionalidade específica, que pode ser ou estática ou dinâmica ou de integração. Neste último caso, a tridimensionalidade específica do Direito resulta de uma apreciação inicial da correlação existente entre fato, valor e norma no interior de um processo de integração, de modo a abranger, em uma unidade viva, os problemas do fundamento, da vigência e da eficácia do Direito. e 286 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 287 9.4 A caminho de um novo direito natural Cabral de Moncada, Estudos filosóficos e histórico,, Ed. Universalidade de Coimbra, 1958, v. 1, p 252 e ss. A propósito do último Congresso de Descartes, escreveu Louis Lavelle: "p regresso à idéia do absoluto parece ter se tornado a suprema característica do pensamento do século XX". Mas corno o problema do Direito natural, na sua essência, não é senão uma projeção dessa idéia do absoluto no campo da problemática da vida social, jurídica e política do homem moderno, daí o poder falarse também, como fala Gaston Morin, num verdadeiro "renascimento do Direito natural" como uma das características da nossa época. Analisando a "situação histórica" do nosso tempo, explicável por outras "situações históricas" anteriores, que caracterizo como a de uma angustiosa exasperação, acompanhada de profunda desespiritualização, de um amargo desencantamento do "político", de uma política exclusivamente função do homo economicus, vemos que, justamente em coincidência com esse fato, se nos deparam hoje, em duas correntes do pensamento filosófico, o Existencialismo e a moderna Filosofia dos Valores de base fenomenológica, alguns materiais importantes para uma renovação do problema do Direito natural. Senão renovação como conteúdo de soluções rigorosas, pelo menos como direção da consciência contemporânea no seu novo ethos filosófico. Isto é: através destas duas correntes filosóficas é que a nova "situação histórica" estã hoje reagindo e procurando encontrar nova visão para este velho problema. E esses materiais para uma mais correta e humana renovação do problema a que acabo de aludir, que a nova filosofia nos traz, são simples de enunciar. 0 homem europeu voltou a ter, como no fim do Helenismo e nos primeiros séculos do Cristianismo, pelo menos três convicções fortes e claras: 1. A convicção de que a vida social e política do homem deve voltar a ser construída de dentro dele para fora, e não de fora para dentro, como projeção de uma dimensão mais profunda da vida individual e de um tipo de existir centrado em tomo de uma idéia essencialmente religiosa de redenção e salvação. 2. A convicção de que o Estado e o direito não são fins de si mesmos, nem simples instrumento para a realização de fins só econômicos, mas sim altos "que fazeres" de uma vocação humana de Cultura e, portanto, meio ao serviço de outros fins eminentemente espirituais. 3. Enfim, a convicção também de que há valores absolutos, superiores e anteriores ao fluxo das contingências históricas, constituindo um cosmos axiológico, sobreposto aos caprichos da vontade do homem e às fantasias do seu intelecto. E se assim é, julgo poder afirmar também que nós não nos achamos afinal muito longe da orientação e das atitudes, das soluções religiosamente mais radicais, que a este problema deu sempre a Philosophia perennis desde a Antigüidade e a Idade Média. Com efeito, quem duvidará de que são essas três idéias precisamente as idéias centrais de toda a tradição jusnaturalista autêntica, do Direito natural dos estóicos e dos escolásticos, de Agostinho, de Tomás de Aquino e Suárez, que depois as Escolas dos séculos XVII e XVIII desvitalizaram, reduzindo-as a uma puro esquema de racionalismo abstrato? Julgo que tais idéias não são afinal, na consciência filosófica do nosso tempo, representadas por algumas correntes existencialistas e pela Fenomenologia, mais que um renovado eco também de algumas verdades fundamentais do Cristianismo. São talvez, elas próprias, na sua atual expressão laica e inconfessional, e até ateísta na obra de um Heidegger e de um Hartmann, um como que Neocristianismo que a si mesmo se ignorasse no pudor da sua própria religiosidade cristã. Eis aí, numa palavra, o sentido dentro do qual de novo se move, numa larga frente, a filosofia do nosso tempo, da nossa "situação histórica", em busca de nova solução para o eterno problema do Direito natural e das relações entre o indivíduo • o Estado. Problema de uma "hermenêutica da existência" humana, a partir das mais profundas vivências da consciência do indivíduo como abrangendo já em si a sociedade. Problema axiológico de valores absolutos, para esta, deslocando-se rapidamente no sentido de uma nova Ontologia e de uma nova Metafísica do social, eis aí o conspecto atual do problema a que, em todos os tempos, se deu o nome de problema do Direito natural, embora hoje nem sempre se lhe dê esse nome por que tradicionalmente sempre foi conhecido. Hoje, na verdade, conhece outros nomes. Há quem lhe chame "existência" e "axiologia de valores absolutos". Mas • nome é indiferente. 9.5 Importância da filosofia do direito Benjamin Cardozo, A evolução do direito, Forense, 1960, p. 162. O que eu desejo mostrar é a importância de uma tal filosofia para os problemas deparados, na prática, pelos jurisconsultos e juízes. Ao ressaltar o valor do seu auxilio, não foi meu intuito, naturalmente, sugerir que, deixada sozinha, ela se bastasse a si mesma. O recurso a uma filosofia do direito para o desenvolvimento de regras e princípios pressupõe conhecimento dos princípios e regras que é nossa tarefa desenvolver. Aqui, como tantas outras vezes, as palavras justas são ditas por Holmes: "Quanto um homem tem conhecimento prático de seu negócio pode, em vez de dedicar todo o seu tempo disponível à leitura de todos os casos julgados, empregar melhor seus momentos de lazer. Estes apenas consignam pequenas transformações no pensamento legal". No direito, assim como em outras ciências, muitas coisas devem ser aprendidas como fatos. Representam o dinheiro que devemos carregar no bolso se tivermos de pagar nosso curso com moeda legal. Até que tenhamos provisão abundante dos mesmos, melhor faremos ficando em casa e deixando de prosseguir na nossa viagem. Compreende-se, assim, • que Holmes chama conhecimento prático do negócio. Devemos falar como de um jurista a outro, ou estaremos falando em palavras cruzadas. Quando se conquistar este terreno comum, não iremos muito longe antes de começar a filosofar. Vamos supor o caso de não haver uma norma obrigatória aplicável. Um dos senhores, ou tantos quantos tenham a felicidade de receber honorários, representa • advogado. Eu sou o juiz que se encontra em dificuldade quanto ao modo de decidir. Vós outros folheastes cuidadosamente os digestos, as enciclopédias, os tratados, as revistas de direito. A decisão que se adapta precisamente à espécie, e que o advogado adora apresentar, como uma nota latente de triunfo, intimidando com o argumento da autoridade o magistrado que se acha em dúvida, essa decisão, esse tesouro enterrado nos livros de direito, recusa-se a aparecer. As vigílias e buscas resultam, na melhor das hipóteses, em umas poucas analogias remotas, que facilmente poderão servir tanto a um lado como ao outro. Que ireis fazer para persuadir o juiz? Que farei eu para decidir? Talvez nenhum de nós esteja plenamente consciente dos elementos implícitos do processo. A maior parte daquilo que vai em nosso espírito é subconsciente ou quase assim. Se ao terminar a tarefa, 288 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO SIGNIFICAÇÃO DA JUSTIÇA PARA O DIREITO 289 Porém, nós nos perguntarmos o que fizemos, verificaremos, se respondermos com todos os métodos devem ser considerados não como ídolos e sim como franqueza, que, com o equipamento de que dispúnhamos, estivermos desempenhan- istrumentos. Precisamos experimentá-los uns por meio dos outros, suprindo do o papel de filósofos. e reforçando-os quando demonstrarem fraqueza, de modo que tudo aquilo Há um ano ou mais o tribunal de que faço parte teve de resolver um caso que Lie neles haja de forte e de melhor esteja a nosso serviço na hora necessária. ilustra o meu pensamento. Um rapaz estava se banhando num rio e subiu a um 'onsiderando-os assim, muitas vezes verificaremos que eles não são antagôtrampolim que se projetava de um borda. No momento em que estava na extremidade icos, e sim aliados. da tábua, foi lançado à corrente por fios elétricos que lhe caíram em cima e arrastavamA verdade, realmente, é que mais de um trabalhador no campo de direito, no à morte. Na ação que se seguiu para haver perdas e danos, foram invocadas analo i ostentar a bandeira de uma escola, está implicitamente prestando auxílio e juda a outra escola, cuja bandeira deveria estar ostentando. esco a o direito é muitas vezes contrastada com a escola sociológica, e há importantes lementos de diferença entre elas; no entanto, muitos daqueles que professam sar o método histórico na decisão de uma causa são, na verdade, menos leais significação da escola histórica do que aqueles que professam o método ociológico, e consideram mais livremente os padrões predominantes de bematar e utilidade. Segundo a escola histórica, "não é o legislador que faz a lei; i espírito popular é que a faz. O legislador só tem de reduzir a escrito aquilo lue dita o espírito do povo. Para este fim, é necessário que ele esteja adequadamente instruído, mediante estudos sistemáticos, quanto ao verdadeiro sentido do espírito do povo. concorrentes pelo advogado da inventariante e pelo advogado da companhia ferro ás ária, propnetana do terreno. O primeiro encontrou a analogia que lhe convinha na posição de viajante em uma estrada de ferro. O rapaz era um banhista em águas navegáveis; seus direitos não eram diminuídos, uma vez que ele estava com os pés na margem. O segundo encontrou a analogia a seu favor na posição de um infrator em terreno alheio. O trampolim, embora se projetasse acima d'água, era, não obstante, um móvel considerado imóvel por lei (a fxturé) e, nestas condições, fazia parte da terra a que tinha sido anexado. O rapaz era, assim, um infrator em terreno de propriedade privada; o único dever do proprietário para abster-se do ânimo de prejudicar e do dano intencional; se faltavam esses elementos não havia como conceder indenização pela morte do rapaz. Ora, a verdade é que, como simples emprego de dialética, estas analogias levariam o juiz a um impasse. Nenhum processo de pura dedução lógica poderia determinar a escolha entre elas. Nenhuma das analogias era precisamente aplicável ao caso, embora ambas lhe fossem adaptáveis. Surgira uma nova situação, que não poderia ser enquadrada dentro dos moldes existentes sem mutilação. Quando encaramos uma situação desta espécie, a escolha feita por esse juiz ou aquele será em grande parte determinada pela sua concepção do fim do direito, e da função da responsabilidade legal, e esta questão dos fins e funções do direito é uma questão filosófica. No julgamento em que tomei parte, da hipótese acima referida, a maioria do tribunal acreditou que se deveria reconhecer a responsabilidade da companhia. As deduções que poderiam ter sido tiradas de definições pré-estabelecidas eram subordinadas e adaptadas aos princípios fundamentais que determinam, ou deveriam determinar, a responsabilidade pela conduta, num sistema de direito em que a responsabilidade é ajustada aos fins servidos pelo direito. O caso Hynes v. The New York Central Rail Road Co. foi decidido em maio de 1921. A Introdução à Filosofia do Direito do decano Pound ainda não havia sido publicada. Essa obra apareceu em 1922. Nessas conferências, ele apresenta uma teoria da responsabilidade que talvez seja interessante comparar com a teoria da responsabilidade que se refletiu em nossa decisão. "O direito", diz ele, "reconhece as expectativas razoáveis com fundamento na conduta, nas relações e situações". Deixarei a outros dizer se a causa do rapaz lançado do trampolim seria favorecida ou prejudicada pelo apelo a tal teoria. Disto não posso duvidar: existe, nas raízes de qualquer decisão sobre situações novas, em que as analogias são equívocas e os precedentes silenciam, alguma teoria de responsabilidade, alguma filosofia do fim atingível pelo entendimento estrito ou lato do círculo de direitos e remédios legais. Na sua atual posição, o juiz muitas vezes pode improvisar tal teoria, tal filosofia, quando de um momento para outro é obrigado a fazer face às exigências do caso que se encontra diante dele. Freqüentemente hesita, sentindo, de modo vago, que está envolvido em algum problema dessa ordem, mas falta-lhe o elemento universal, que teria apressado sua decisão com a inspiração de um princípio. Se lhe falece filosofia adequada, ele se desvia inteiramente, ou, na melhor das hipóteses, não se eleva acima do empirismo que, ao julgar, só se pronuncia com base nos pormenores. Precisamos aprender 10. Bibliografia aSCOLI, Max. La giustizia. Pádua : Cedam, 1930. BOBBIO, N. 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A lei universal ou cósmica: 2.1 Lei: sentido latíssimo; 2.2 Leis físicas e leis humanas; 2.3 Pensamento ordenador - 3. A lei humana, ética ou moral: 3.1 Por que uma lei humana? - 4. A lei jurídica: 4.1 Norma jurídica: 4.1.1 Duas características; 4.1.2 Definição de lei jurídica; 4.1.3 A norma jurídica e sua formulação lógica - 5. Outras formulações: 5.1 "A finalidade da lei", Roscoe Pound; 5.2 "Das leis em geral", Montesquieu - 6. Bibliografia. 1. Etimologia e diversidade de significação do vocábulo "lei" 1.1 Três origens Depois de estudar o direito como exigência da justiça, vamos considerá-lo sob outro aspecto fundamental: como "lei" ou norma jurídica, reguladora da conduta social. Uma pergunta surge naturalmente: que é lei? Comecemos pelo exame das origens da palavra. Três etimologias diferentes do vocábulo "lei"' são indicadas pelos autores. Isidoro de Sevilha, no livro "Das Etimologias"2 sustenta que "lei" vem do verbo latino legere, que significa "ler". A lei é norma escrita (jus seriptum), que se "lê", " em oposição às normas costumeiras, que não são escritas (jus noiz seriptum). " Em latim, lex; italiano, legge; francês, loi; espanhol, ley; inglês; law; alemão, gesetz; grego, nómos. ~' Etymologiarum, livro 2, cap. 10. 294 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Para-S. Tnmáz, "lei" vem do verbo ligare, que significa "ligar" "Ligare" "obrigar", "vincular". A lei obriga ou liga a pessoa a uma certa maneira de agir.' Cícero afirma que "lei" vem de eligere, eleger, escolher, porque a lei é a norma escolhida pelo legislador, como o melhor preceito para dirigir a atividade hu mana.4 1.2 Leis normativas e leis descritivas Como se vê, em suas origens, a palavra "lei" está ligada ao conceito de norma do comportamento humano, isto é, à lei ética, moral ou humana e, especialmente, à lei jurídica.' Nesse sentido falamos da Lei das 12 Tábuas, na Áurea, na Lei do Inquilinato ou na Lei de Defesa do Consumidor. Mas há outra acepção do vocábulo. Quanto falamos na lei da gravidade, nas leis da propagação do som, nas leis da química, da biologia, da psicologia, o termo "lei" tem outra significação. Referese a fórmulas gerais, não "imperativas" ou "normativas", mam "descritivas", "constatativas" e "indicativas" de uma certa ordem que se verifica em qualquer setor da natureza. São as leis físicas ou naturais. Geny chamou às primeiras leis normativas ou de fim, e às outras, leis indicativas ou casuais. Leis éticas, humanas ou morais são normas destinadas a regular o agir do homem e a orientá-lo para determinadas finalidades. Ou, como diz Cox, são normas que regulam o uso e o abuso de liberdade.' As leis físicas indicam relações ou movimentos que ocorrem regularmente na realidade física. Vigoram num mundo sem liberdade. Enunciam uma relação de causalidade eficiente: havendo tal causa, seguir-se-á tal efeito. Dicitur lex a ligando, guia obligat ad agendum S. Tomás, De legibus, 1-11, q. 90, a. 1.° C. Cícero. De legibus, liv. 1, cap. II. (s) Sobre a afirmação de que o sentido primitivo da palavra "lei" é o de lei juroca' ver, G. Jellinek, Gesetz und Verodnung, p. 226 a 228; Goffredo Telles Júnior. Filosofia do Direito, n. 62. (6) I. W. Cox, Liberty its and abuse, New York, Ed. Fordham UniversitY ss' 1943. CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 295 Qual a relação existente entre essas duas modalidades de lei? Serão elas espécies de uma categoria mais ampla? "As leis da natureza (em sentido amplo) são ou físicas ou morais, diz Quesnay, em texto famoso. A lei física é o curso de todos os fenômenos físicos da natureza. A lei moral é a regra das ações humanas, que supõem a liberdade. Em conjunto, elas constituem o que se poderia chamar lei da natureza (física ou moral) ou lei universal.' Numa ordem de generalidade decrescente e dentro de nosso plano de trabalho,' temos, assim, três sentidos da palavra lei: a) sentido latíssimo: lei em sentido universal ou lei cósmica, que se aplica a todos os setores da natureza; b) sentido lato: lei humana, ética ou moral, que se aplica ao campo da liberdade; c) sentido estrito: lei jurídica, constituída pelas normas de conduta impostas pela autoridade social. Ao exame de cada uma dessas espécies de lei são dedicados os três próximos capítulos. Antes disso, é oportuno lembrar, ainda, que a lei, em qualquer dos sentidos, pode ser considerada: a) internamente, no próprio ser, como uma propriedade ou característica que lhe é intrínseca; b) externamente, como formulação ou enunciado dessa característica. Quando falamos que o crescimento é a "lei" da vida, que existe uma "lei" da divisão do trabalho, ou "leis" da hereditariedade, estamos empregando o termo no primeiro sentido. Quando nos referimos às leis de Lavoisier, de Kepler, de Newton ou de Péricles, estamos, evidentemente, nos referindo à formulação ou enunciado da lei. Será essa distinção aplicável às leis morais e, especialmente, às leis jurídicas? E, no caso afirmativo, as "formulações" dessas leis, por exemplo, as Constituições, as leis ordinárias, os decretos poderão ser feitos arbitrariamente pela vontade do legislador ou deverão corresponder a exigências e tendências da vida humana e social? (' Le "droit naturel", citado por A. Lalande, Vocabulaire technique de la Philosophie, verbete "Loi". e) A lei universal e as leis humanas se referem ao mundo "real". No plano "ideal" Ou formal, podemos falar em leis matemáticas, lógicas ou outras estritamente formais. "Eligere" (3) (4) 296 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 297 Trataremos dessas questões oportunamente. Mas desde já podemos dizer, com Delos, que "a lei (enunciada externamente) só regula a atividade voluntária do homem, porque ela exprime as exigências da ordem e do ser" (lei interna).' 2. A lei universal ou cósmica 2.1 Lei: sentido latíssimo Em seu sentido mais amplo, o conceito da lei aplica-se,.' como vimos, a todos os setores da natureza. Nessa acepção falamos em lei da gravidade, lei da oferta e da procura, lei dos grandes números, ou, em geral, nas leis da física, da astronomia, da biologia, da sociologia, da história, da economia, da moral ou do direito. A esse conceito latíssimo aplica-se a conhecida definição de Montesquieu: "Leis são relações necessárias que decorrem da natureza das coisas"." Essa definição refere-se as todas as espécies de lei. Podemos dizer que as leis da botânica e da química, as da divisão do trabalho ou da convivência social, inclusive as leis jurídicas, são, como modalidades diversas, "relações necessárias que decorrem da natureza das coisas"." E o objeto de cada ciência consiste em penetrar os segredos da natureza, em' seus diferentes setores, para descobrir e fixar as suas leis. J. Th. Delos, La justice, trad. francesa da Suma Teologica, de S. Tomás, 1^ II, q. 57-62, Paris, Ed. Revue des Jeunes, "Notes et appendices", p. 221 t ss. "Les lois, dans Ia signification Ia plus etendue, sont les rapports necéssaires qui dérivent de Ia nature des choses" (Montesquieu, De l'esprit des lois, liv, l.°, cap. 1.°). "L'homme, consideré tel qu'il se présent à nous, se trouve impliqué en un ensemble de 'rapports nécessaires que dérivent de Ia nature des choses', les uns d'ordre physique, les autres d'ordre psychologique, moral ou proprement social, d'autres encore d'ordre metaphysique ou trancendant, qui, tons, dominent les volontés particulares et s'imposent comme donnés. Ce sont, au sens large du mot, les lois naturelles (physiques, psychologiques, morales, sociales, ou transcendantes à toute expérience), dons 1'homme peut acquérir une connaissance plus on moins complète notamment en vue de s'en garer ou d'en tirer profit, mais qu'il est impuissatit à altérer dans leur essence primordiale et, spécifique, aux quelles il ne saurait davantage résister avec succès, qui, par suit, ne peuvent passer pour les règles de Ia volonté proprement dites" (F. Geny, Science et techinque en droit positif, n. 14). 2.2. Leis físicas e leis humanas Dentre as diversas espécies de leis que regem a atividade dos seres na natureza, é necessário, entretanto, fazer uma distinção fundamental entre: 1. leis que se referem ao mundo físico e material, sujeito a um determinismo rigoroso: são as leis físicas; 2. aquelas que dizem respeito ao campo da atividade humana onde surge uma característica diferente, representada pela consciência e a liberdade: são leis humanas, também chamadas éticas ou morais. Os seres do mundo físico realizam de forma inconsciente e automática as leis de suas naturezas: a pedra cai, a árvore cresce, os astros se movimentam, os rios correm, as estações se sucedem, sem que haja qualquer consciência ou decisão por parte desses seres. No campo da atividade humana12 e das leis éticas, a situação é diferente. Passamos para o plano da consciência e da liberdade. Através de sua inteligência e vontade - naturalmente condicionadas pela situação em que ele se encontra - o homem conhece e executa ou não as leis correspondentes à sua existência, relacionamento e progresso. Nesse sentido é esclarecedora a lição do Goffredo Telles Júnior: "Os movimentos, de que leis são fórmulas, podem ser movimentos livres, como os do comportamento voluntário do homem, e podem ser movimentos não livres, como os do comportamento da matéria inconsciente. Os primeiros são os movimentos do Mundo Ético, e os segundos, os movimentos do Mundo Físico". 13 Em filosofia faz-se distinção entre "atividade humana" e "atividades do homem". "Atos do homem são os comuns ao homem e aos demais seres vivos. Atos humanos são aqueles próprios e exclusivos do homem, decorrentes de sua inteligência e sua vontade. O respirar e o dormir são atos do homem; o estudo, a produção artística, o crime são atos humanos." Cathrein, segundo a tradição tomista, assim se expressa: "Actus morales vocantur etiam actus humani; quia ponuntur modo humano seu hominis proprio, i. e. deliberate et libere. Hinc, actus, qui vocantur hominis, qui non procedunt a voluntate electiva, per se non considerantur in Philosophia morali" (André Franco Montoro, Os Princípios fundamentais do método do direito, SP, 1942, n. 3). Filosofia do direito, n. 59. As correntes materialistas recusam essa distinção. Negam a existência de uma lei especificamente humana, distinta das demais leis da natureza. E reduzem o homem a uma realidade puramente material e física. Mas, como lembra Gabriel Marcel, a concepção materialista é Montesquieu (9) u1) U3) 298 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 299 A esse conceito corresponde a distinção entre leis causais da natureza () e leis normativas ou normas, que Leis causais exprimem deveres (solen), na linguagem dos e leis de autores alemães e invocada por Kelsen, como base finalidade de sua doutrina.` No mesmo sentido, Duguit15 distingue duas espécies de leis: "leis de causa", que resumem os fenômenos da vida em comum, tal como a lei da oferta e da procura em economia política; e "leis de fim", que fazem apelo à colaboração desejada dos cidadãos em nome da solidariedade. Divisão semelhante é feita, como vimos, por Geny entre "leis normativas ou de fim", e "leis indicativas ou causais". Essa distinção entre as diversas modalidades de leis é válida. Mas uma reflexão mais aprofundada do problema nos leva ao encontro de um princípio comum e unificador desses conceitos. Leis físicas e leis morais, leis causais e leis de finalidade, com características próprias, representam manifestações diferentes de uma mesma ordem ou lei cósmica e universal. Todos os elementos que nos cercam: forças cósmicas minerais,t plantas, animais, homens obedecem, em sua es trutura e atividade, a princípios uniformes e, ordenados que revelam a existência de uma ordens na constituição íntima de cada ser e, ao mesmo tempo, uma ordem do universo no seu conjunto. As propriedades do oxigênio, do carbono, das espécies vegetais o*., animais são rigorosamente fixadas pela ciência e se reproduzem eni' todos os seres da mesma espécie. As plantas têm sua constituiçã. ordenada de forma que a vida circule, em todo o seu ser, os tecidos exerçam suas funções e, ordenadamente, folhas, frutos e novas sementes sejam produzidos. Os animais, do mesmo modo, têm uma organização que assegura sua subsistência, desenvolvimento e reprodução. Tudo isso é a expressão de uma ordem fundamental ou de uma lei cósmica, que Claude Bernard denominava "idéia diretriz" e outros autores preferem chamar "fins naturais" ou ordenação cósmica." 2.3 Pensamento ordenador De qualquer forma, essa ordem supõe uma inteligência ordenadora. "Todo o Universo, desde a primeira causa até o último fim, desde o ínfimo até o máximo dos seres, tudo quanto existe ou pode existir, outra coisa não é senão o efeito de um Pensamento."" A esse pensamento ordenador de todos os movimentos do Universo, a filosofia clássica denomina "lei eterna", que é definida por S. Tomás como o pensamento ordenador de todos os movimentos." Diante do mistério do universo e da vida temos duas opções. Admitir o "acaso", que explicaria a origem e o desenvolvimento ordenado do mundo e de todos os seres, ou reconhecemos que há uma causa, uma ordem inteligível no dinamismo do universo e no desenvolvimento de todas as formas de vida. Pode haver um relógio, sem relojoeiro? Uma obra de arte, sem artista? Uma ordem, sem um ordenador? Pode-se chamar a esse pensamento ordenador "Deus", como faz grande parte dos homens, reconhecendo o mistério e a ordem do universo, "O grande Arquiteto", como preferem alguns pensadores positivistas, a "Causa primeira", ou "Primeiro Motor", como diz Aristóteles, "Alfa" e "Ômega", como sugere Teilhard de Chardin. Mas a existência da ordem e de um pensamento ordenador impõe-se à ciência e à filosofia. "O mais estanho é que o universo é inteligível", afirmou Einstein. E nos dias atuais, com base nas mais recentes conclusões da ciência, o tema foi retomado por Teilhard de Chardin, que assim formula sua doutrina: "As conexões espantosas e indefinidas que agrupam os fenômenos e as espécies vivas num conjunto sucessivo e, por assim dizer, organizado, põe-nos diante de um problema científico positivo (tão positivo como o movimento relativo da Terra e do Sol), que pede solução positiva, de ordem científica". "Enquanto no caso de um mundo estático, o Criador (Causa eficiente) permanece estruturalmente separado de sua obra, no caso de um mundo de natureza evolutiva, pelo contrário, Deus só é concebível (estrutural e dinamicamente na medida em que, como numa espécie de causa "formal", coincide sem se confundir) com o Centro de convergência da Cosmogênese. Desde Aristóteles nunca se deixou de construir Os "modelos" de Deus segundo tipo do Primeiro Motor extrínseco, à trad. da Suma de São Tomás, 1, II, q. 90 a 97, Desclée, Paris, Ed. Revue de Jeunes, 1935, p. 311. i1') Goffredo Telles Júnior. Filosofia do Direito, n. 67. 1"' "Lex aeternba nihil aliud est quan ratio divinae sapientiae, secundum est directiva omnium actum et motionum" (S. Tomás, De legibus, 1, 11, q. 93, a. 1). Leis cósmicas ou de ordenação universal (14) .05) (16) incompatível com qualquer regime de liberdade e, por suas conseqüências, conduz à negação do direito. A ordem jurídica passaria a ser uma ordem de força. H. Kelsen, Teoria Geral do Estado. L. Duguit, Traité de Droit Constitutionnel. V. Laversin, La loi, p. 291 e 302• Esse determinismo físico não exclui a parte do relativismo que os cientistas contemporâneos apontam na aplicação das leis da natureza. V. Broutroux, Contingence des lois de Ia nature; M. J. Laversin, La loi, comentários 300 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 301 agindo a retro. Desde a emergência do "sentido evolutivo" da nossa consciência, já não nos é fisicamente possível conceber ou adorar outra coisa que não seja o Deus Primeiro Motor ab ante... Só um Deus funcional e totalmente pode doravante nos satisfa zer." 19 3. A lei humana, ética ou moral 3.1 Por que uma lei humana? Por que destacar, do conjunto das leis da natureza, a lei humana? O movimento dos astros, a estrutura e o crescimento dos animais ou dos vegetais, a marcha dos fenômenos físicos ou das reações químicas, em suma, a atividade e os movimentos dos seres em geral são regulados por leis rigorosas, que são executadas sem qualquer conhecimento ou decisão por parte de tais seres. No homem surge um fenômeno diferente. Aparece o conhecimento dos fins, a reflexão, a liberdade. É de forma consciente e fundamentalmente livre que o homem desenvolve sua atividade. "Somos à força livres", diz Ortega y Gasset. Por isso, as leis que nos dizem respeito leis humanas, éticas ou morais - apresentam características próprias. Dizem o que "deve ser" e não o que é. São imperativas ou normativas e não simplesmente enunciativas. Como definir a lei humana ou ética? A palavra "ética", derivada do grego "ethos", significa costume. Leis éticas são regras que dirigem o comportamento humano. E estabelecem deveres e direitos de ordem moral. São regras éticas: o respeito à dignidade das pessoas, o dever se não mentir, a exigência da solidariedade, a prática da justiça, o respeito às leis da natureza e preceitos semelhantes. À lei humana ou ética aplica-se a famosa definição de Cícero que reproduz a sabedoria clássica e pode ser assim sintetizada: "Há uma lei verdadeira, norma racional, conforme à natureza, inscrita em p9' Teilhard de Chardin, Que faut-il penser du transformisme, p. 215, e Le Dieu de l'évolution, inédito, 1953. "Incapaz de se confundir com o ser participado que sustenta, anima e liga, Deus está no nascimento, no crescimento e no fim de todas as coisas" ("La vie cosmique", in Ecrits du temps de ia guerre, P 37). Ninguém melhor do que Einstein expressou essa necessidade: "O universo, é incompreensível sem Deus". V. Teilhard de Chardin, "O fenômeno humano, trad. José Lui; Archanji, ed. Cultrix, São Paulo, 1955. todos os corações, tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo Senado, nem pelo povo; e o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza e receber o maior castigo".20 A ética nos fornece as regras fundamentais da conduta humana. Delimita o exercício da atividade livre. Fixa "os usos e abusos da liberdade"; na feliz expressão de W. Cox, que deu a seu tratado de Ética o título "Liberty: its use and abuse"." Essa concepção de uma base ética objetiva no comportamento das pessoas e nas múltiplas modalidades da vida social foi esquecida ou contestada por fortes correntes do pensamento moderno. Concepções de inspiração positivista,22 relativista ou cética e políticas voltadas para o homo economicus23 passaram a desconsiderar a importância e a validade das normas de ordem ética no campo da ciência e do comportamento dos homens, da sociedade da economia e do Estado. Neste final de século, entretanto, é quase universal a retomada dos estudos e exigências de ética na vida pública e na vida privada, na administração e nos negócios, nas empresas e na escola, no esporte, na política, na justiça, na comunicação. As obras sobre a ética em seus múltiplos aspectos enchem as estantes da bibliotecas. E a parte da Filosofia mais estudada neste final de século é a Axiologia, a Filosofia dos "Valores", que orientam a conduta das pessoas e da sociedade. Por que a ética voltou a ser um dos temas mais trabalhados do pensamento filosófico contemporâneo?, pergunta José Arthur Gianotti, em estudo oferecido à obra coletiva sobre "Ética", editada pela Secretaria Municipal de Cultura, de São Paulo, e a Companhia das Letras, em 1992.24 A resposta talvez possa ser indicada no célebre título do romance de Balzac Ilusões perdidas. No campo do direito, as teorias positivistas que prevaleceram a partir do final do século XIX sustentavam que só é direito aquilo que o poder ao) 21) (22) Cícero, De Republica, II, 22. Ed. Fordham University Press, N. York, 1943. V. p. 243 e ss. V. p. 587 e ss. "Ética", textos produzidos por Newton Bignotto, Gerd Bomheim Antonio Cândido, Marilena Chauí, Jorge Coli, Jurandir Freire Costa, Catherine DarboPeschanski, José Arthur Gianotti, Maria Rita Kehl, Celso Lafer, Nelson Levy, Nicole Loraux, Scarlett Marton, Adauto Novaes, Alcir Pécora, Nelson Brissac Peixoto, José Américo Motta Pessanha, Paulo Sergio Pinheiro, Renato Janine Ribeiro, Sergio Paulo Rouanet, José Miguel Wisnik. 302 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 303 dominante determina .25 Ética, valores humanos, justiça são considerados elementos estranhos ao direito, extrajur dicos. Pensavam com isso construir uma ciência pura do direito e garantir a segurança das sociedades. A ilusão foi desfeita com a trágica experiência da guerra mundial de 1939 a 1945 e especialmente pela atuação dos regimes totalitários da direita e da esquerda, em que o poder político dominante, principalmente de Hitler e Stálin, determinou normas de extermínio, genocídio e violação de direitos humanos fundamentais. Essa violência provocou a constituição de um Tribunal Internacional, em Nuremberg, para julgar os crimes contra a humanidade, violadores dos fundamentos éticos da vida social. E deu origem ao movimento de lideranças mundiais e à aspiração das populações de todo mundo, que culminou com a Declaração Universal do Direitos da Pessoa Humana, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 1948, que constitui um dos documentos fundamentais da civilização contemporânea. A Declaração Universal denuncia: a desconsideração e o desrespeito dos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que revoltam a consciência da humanidade Afirma que: o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo E proclama o documento universal como: ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações No plano da economia, as grandes ilusões perdidas foram, de um lado, as esperanças nos grandes planos qüinqüenais da economia estatal centralizada e, de outro, a expectativa nas "Harmonias econômicas", anunciadas por Bastiat e outros mestres e seguidores do liberalismo econômico, que, através do livre jogo das forças de mercado - e indiferente a quaisquer compromissos éticos2ó - promete, a médio ou longo prazo, uma sociedade capaz de satisfazer a todos os homens. (25) "E o que ele determina só é direito em virtude dessa circunstância." z6' "Tudo é negociável", dentro da perspectiva da soberania do mercado. O julgamento severo desses dois modelos de desenvolvimento econômico foi feito, em escala universal, pela Cúpula Mundial pelo Desenvolvimento Social, convocada pela ONU, que reuniu em Copenhague, em março de 1995, Chefes de Estado e de Governo e representantes de 185 países e milhares de delegados de organizações não governamentais. O Documento final da Assembléia denuncia a existência de mais de 1 bilhão de criaturas humanas em situação de miséria, abaixo do limiar da pobreza, cujo número cresce cada dia, e o desemprego de 30% da população ativa de todo o mundo." E recomenda como ponto fundamental de uma nova visão do desenvolvimento: "Pôr o ser humano no centro do desenvolvimento e orientar a economia para satisfazer mais eficazmente as necessidades humanas".28 No campo da política, a famosa operação "Mãos limpas", que se celebrizou na Itália e estendeu-se às democracias de quase todas as nações do mundo, teve e tem o mesmo significado de retomada das exigências éticas. Depois da esperança generosa nos benefícios das democracias nos pós-guerra, quase todas as nações tiveram uma experiência de decepção e revolta. As populações foram surpreendidas pela revelação da prática generalizada de fraudes, desvios de verbas públicas, corrupção de administradores e empresários e máfias de toda ordem que transformam a "coisa pública"29 em "coisa nossa". Os escândalos revelados provocaram uma reação generalizada da consciência pública, que passou a exigir ética na política. Essa exigência deu origem em todos os continentes a um amplo movimento de investigações, processos e condenações que atingiram inúmeros responsáveis, inclusive chefes de governo e altas autoridades do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário. Em outra perspectiva, o movimento ecológico, que mobiliza hoje amplos setores da sociedade civil, governos e autoridades internacionais, representa, também, uma retomada das exigências éticas e do respeito devido às leis da natureza no mundo contemporâneo. A Constituição brasileira de 1988, pela primeira vez em nossa história constitucional, dedica um capítulo ao Meio Ambiente." E estabelece normas destinadas a assegurar o respeito às leis da natureza, que constituem o fundamento de um novo direito ambiental brasileiro. O reconhecimento de que existem normas inflexíveis do universo cósmico e a tomada de consciência de que os homens devem respeitá-las é o sentido fundamental do movimento ambientalista (27 V. Prefácio da 24. ed. (edição anterior). (28' Declaração e agenda da Cúpula Universal pelo Desenvolvimento Social, Copenhague, Dinamarca, 12 de março de 1995. (29' República = res publica = coisa pública. "Cosa nostra" é a marca das Máfias de toda espécie. `j0' Art. 225 e ss. contemporâneo. Ele significa a condenação da tese positivista de que a lei escrita é soberana e não encontra outros limites senão a determinação da autoridade. E representa o retomo à antiga lição de Cícero: " Há uma lei verdadeira, conforme a natureza e o homem não a pode violar sem negar a si e à sua natureza e receber o maior castigo"." Nessa altura de nossas reflexões, é oportuno relembrar a observação de Umberto Eco: "O moderno é ler Platão". É voltar ao autores clássicos. Na grande tradição clássica que se desenvolveu principalmente a partir de Sócrates,32 a lei humana ou ética pode ser caracterizada como uma ética cósmica. Isto é, fundada na situação do homem no mundo. Nessa perspectiva, a ética não é apenas um sentimento subjetivo, mas tem seu fundamento numa realidade extramental e objetiva: a lei cósmica universal, a natureza das coisas e, especialmente, a natureza humana. E a perspectiva da consciência comum da humanidade. Essa concepção se opõe às filosóficas éticas subjetivas, que propõem uma ética inteiramente independente e separada do universo e da natureza. Queiramos ou não, nós fazemos parte do mundo e da sociedade. E não somos "coisas", somos "pessoas". De Republica, II, 22. No mesmo sentido, diz Laversin, "a lei natural, de certa forma, está inscrita na inteligência de todos pelo fato de que seus princípios são conhecidos espontaneamente ao contacto com as exigências da vida individual e social (La loi, p. 219). V. J. Maritain, "La philosophie morale", Ed. Gallimard, Paris, 1966, p. 150 e ss. Puisqu'en matière éthique on ne saurait, en dépit de Spinoza, procéder more geometrico, mais doit au contraire s'attacher à l'experience morale des hommes, pour'interpréter ratìonnellement celle-ci, et puisque d'autre pari ce qui nous interesse est l'établissement d'une philosophie morale authentique, il convenait de commencer notre enquête par une analyse historique et critique consacrée aux grandes théories morales. D'autres voies d'aproche sont concevables. 11 est à espérer, par exemple, qu'un jour un philosophe expert en ethnologie s'appliquera à dégager des mythes des primitifs - des conceptions qu'ils se formaient, dans leur régime de pensée magique, de Ia destinée de 1'homme et de sa relation avec l'univers, et enfio, bien entendu, de leurs coutumes sociales et de leurs règles tribales -, les idées mères et lês données premières de l'expérience morale de l'humanité. Pour nous, étant donné notre propos, c'est vers les philosophes euxmêmes et les divers systèmes de philosophie morale qui se sont succédé depuis Socrate que nous devions nous tourner, afio que lês diverses phases de Ia réflexion philosophique sur Ia vie morale des hommes, et les vues contrastantes auxquelles cette réflexion a donné lieu, nous instruisent sur le sujei de nos recherches, nous introuduisent, grâce ao flot de l'historie des idées, en plein milieu des débats, des conflits, des aspects opposés que l'expérience morale de 1'humanité révèle, et nous mettent peU à peu, d'une manière non didactique mais vécue, en présence des notions de base et des problèmes fondamentaux que plus tard - dans notre second volume s'il nous est donné de 1'écrire -, nous aurons à dégager explicitement. CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 305 4. A lei jurídica 4.1 Norma jurídica Dentre as normas que regem o comportamento social dos homens devemos distinguir as leis jurídicas. A expressão "lei jurídica" pode ser empregada em dois sentidos diferentes. Um, restrito, é equivalente à lei escrita; nesse sentido, "lei" (direito escrito) opõe-se ao "costume jurídico" (direito não escrito). Em outra acepção, ampla, o vocábulo "lei" abrange todas as normas jurídicas: lei escrita, costume jurídico, jurisprudência etc. É desta última acepção que nos ocuparemos no presente item. Para caracterizá-la seguiremos, em linhas gerais, o pensamento de François Geny, exposto em seu famoso estudo sobre a ciência e a técnica no direito.33 A norma jurídica é, em primeiro lugar, uma regra de conduta social. Seu objetivo é regular a atividade dos homens em suas relações sociais. Norma Mas como distinguir as normas jurídicas das social demais normas da vida social, e, especialmente, das demais normas éticas? Entre as normas que dirigem o comportamento humano na vida coletiva podemos mencionar: a. as normas morais, em sentido estrito, fundadas na consciência; b. as normas religiosas, fundadas na fé; c. os usos e costumes sociais, como os hábitos de convivência, recreação, esportes, moda etc.; d. as normas jurídicas, que, distinguindo-se das demais, constituem o campo do direito. 4.1.1 Duas características Em que consiste essa distinção? Podemos dizer que duas características fundamentais distinguem as normas jurídicas das demais regras sociais. Em primeiro lugar, elas são protegidas pela eventual aplicação da força coercitiva do poder social. As normas sobre impostos, salário, propriedade, família etc. são obrigatórias não apenas no foro da consciência, mas por uma imposição que pode ir até o emprego da força para sua execução. Não é necessário que haja, em cada momento, uma coerção efetiva. Basta que ela seja potencial. (31) F. Geny, Science et techinque en droit privé positif, n. 13 e ss. 304 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO (32) Com coerção potencial r 1 306 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 307 E possa ser invocada pela parte a quem a lei atribui o direito de exigir o seu cumprimento .34 Essa característica separa visivelmente a norma jurídica das normas morais, cuja obrigatoriedade se fundamenta apenas na consciência pessoal. Separa, também, das normas religiosas, que se baseiam na fé e nos ideais de cada homem. E, também, dos costumes e hábitos sociais, porque estes dependem exclusivamente da opinião pública. Para marcar essa diferença, Petrasizky caracteriza as normas jurídicas como "imperativo-atributivas". Todas as normas de conduta são de certa forma obrigatórias ou imperativas, porque impõem determinado comportamento. Mas a lei jurídica, além de impor a uma parte o cumprimento da obrigação, atribui à outra parte o direito de exigir rigorosamente esse cumprimento. Por isso, além de imperativa ou obrigatória - como as demais normas -, ela é, também, atributiva. Em síntese brilhante, escreveu Vicente Ráo: "Por dois modos principais a coerção se manifesta: por modo potencial, como simples possibilidade de invocação da força ou da aplicação das comunicações, e, ainda, por modo atual, pela intervenção material da força. Pressupondo essas distinções, o seguinte quadro revela os principais modos pelos quais a coerção se manifesta: I - Por modo potencial: como poder de coerção, ou possibilidade de se invocar o uso da força: a) para amparar o direito ameaçado; b) para restaurar • direito violado; c) reparar ou punir as conseqüências da violação. II - Por modo atual: mediante o emprego da força para os mesmos fins acima, inclusive para assegurar o cumprimento das penas ou das reparações em caso de violação consumada. As medidas efetivas de coerção se manifestam também por dois modos de praticar, isto é, por ação indireta e por ação direta. Por ação indireta: pelos seguintes atos, entre outos: a) polícia preventiva de defesa da ordem pública e da segurança individual; b) polícia administrativa (licença, fiscalização etc.); c) medidas judiciais preventivas, desacompanhadas de atos materiais de coerção, como o protesto, a interpelação judicial, a caução, • direito de retenção e outras; d) a cominação das penas civis de nulidade ou a anulação dos atos ou negócios jurídicos, ou de responsabilidade por perdas • danos, conseqüências estas que, consideramos em si, se caracterizam como sanções, mas não excluem, em caso de não serem cumpridas, a intervenção da força coercitiva. Por ação direta: a) sobre as pessoas, como as medidas de segurança, a detenção, a prisão, a apreensão de menores, a incorporação às forças armadas etc.; b) sobre os bens, como a apreensão dos instrumentos do crime, dos objetos roubados ou furtados, o seqüestro, o arresto, o depósito 'i judicial, as desapropriações por necessidade ou utilidade pública, as requisições militares, o cumprimento forçado das obrigações de dar ou restituir, a retomada de bens para restaurar a posse ou a retomada dos bens reivindicados, a penhora e a venda forçada; c) a execução da medidas administrativas, que podem recair sobre pessoas ou coisas" (O direito e a vida dos direitos, n. 124 a 125). A segunda característica se refere não à "forma" de imposição ou obrigatoriedade de norma jurídica, mas ao seu Visando "conteúdo" ou matéria. "Fundamentalmente - diz à justiça Geny -, o direito não encontra seu conteúdo próprio e específico senão na noção de 'justo', noção primária, que implica não apenas os preceitos elementares de não prejudicar a outrem (neminem laedere) e dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), mas também o pensamento mais profundo de um equilíbrio a estabelecer entre os interesses em conflito, com a finalidade de assegurar a manutenção e o progresso da sociedade humana"." Não se afirma que toda norma jurídica realize efetivamente a justiça. Mas, sim, que ela é sempre uma tentativa no sentido de sua realização. É a justiça que dá sentido à norma jurídica. Esta poderá ser mais justa ou menos justa, mas não será uma norma de direito, se não estiver orientada no sentido da realização da justiça. É preciso lembrar que no conceito de justiça estão incluídas, como vimos amplamente na primeira parte deste trabalho, as exigências correspondentes à justiça comutativa, distributiva e social. E estas abrangem não apenas os interesses ou direitos dos particulares, mas também as exigências do bem comum. E certo que alguns autores negam essa exigência de justiça como conteúdo essencial das normas jurídicas. Tal posição, que decorre quase sempre de uma consideração restritiva do conceito de justiça, é inadmissível. Essa exigência fundamental de justiça, como conteúdo da norma jurídica, está ligada à universalidade ou generalidade dos preceitos jurídicos. É característica essencial das normas de direito a sua "universalidade". Elas são sempre normas gerais que se impõem a todos com igualdade." Ora, ao princípio da universalidade corresponde o da igualdade de todos perante a lei." A norma é geral, porque todos são iguais perante a lei. E essa é, como vimos,38 a significação .. (35) (36) (37) r7µ) F. Geny, loc. cit. "Jura non in singulas personas, sed generaliter contituuntur", Ulpiano, 1, 3, 10,8; "Lex est commune praeceptum", Papiniano, 1, 1, D. 1, 3. V. Vicente Ráo, ob. cit. n. 122, Lã Gressaye-Lacoste, Introdution à 1'étude du Droit, La loi est une règle générale, c'est-à-dire, une règle établie non pas en vue d'un cas singulier, mais bien pour tous les cas de même espèce rentrant dans ses prévisions, n. 226. Anacleto de Oliveira Faria, Do princípio da igualdade, São Paulo, 1967. A importância fundamental desse preceito é reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1946), nos termos seguintes: "O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos legais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo". "Todos são iguais perante a lei" é a fórmula comum do princípio da igualdade nas Constituições modernas. V. n. 4.3, p. 134. 308 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO fundamental da justiça: realizar a igualdade nas relações entre os homens. Podemos acrescentar que na noção de "igualdade" estão contidas as de "alteridade" e "devido", que, em conjunto, constituem a própria essência da justiça: dar a "outrem" o que lhe é "devido", segundo uma "igualdade".39 Com razão escreveu Dabin que a justiça é a matéria normal da regra jurídica .4o 4.1.2 Definição de lei jurídica Com esse elementos podemos caracterizar a norma jurídica ou lei jurídica em sentido amplo como: - norma de conduta do homem com seus semelhantes41 (gênero próximo) - garantida pela eventual aplicação formal) - tendo em vista a realização da justiça (elemento material). Esse conceito de lei aplica-se a todas as normas jurídicas. Não apenas à lei escrita (lei em sentido estrito), mas também ao costume jurídico, às decisões normativas da justiça ou da administração e a todos os preceitos que constituem, em cada sociedade, o campo de direito, efetivamente reconhecido. Alguns autores modernos, inspirando-se em Kelsen e, mais remotamente, em Binding, negam à norma jurídica o caráter de regra imperativa de conduta. Eis, em resumo, a exposição de Machado Neto sobre o assunto, feita no cap. II de sua Teoria Geral de Direito:42 "Desde 1872, Binding observava que não se podem entender as normas penais como imperativos, pois não é Binding possível dizer-se que os delinqüentes violam as normas penais. Com efeito, os códigos penais não fazem mais do que descrever uma certa conduta como delituosa e imputar uma sanção a tal conduta. Lá não se encontram os supostos (39) V. n. 3.3, p. 129. (11) J. Dabin, Théorie Générale du Droit, n. 252. (41) As normas jurídicas têm sempre por objetivo relações entre pessoas, consideradas individual ou coletivamente (grupos sociais ou pessoas jurídicas). Até mesmo os "direitos reais" ou "direitos as sobre coisas", como a propriedade, em última análise, se reduzem às relações entre pessoas, porque são oponíveis, contra todos (erga omnes), isto é, impõem a todos o dever de respeitá-los. (421 Machado Neto, Teoria geral do direito, Rio, Ed. Brasileira, 1996, p. 33 e ss. CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 309 imperativos ("não matar"; "não roubar"), para que possam ser desobedecidos. Esses imperativos seriam algo prévio à lei penal. A crítica de Binding se fundamenta apenas em um argumento verbal, como que a supor que as normas deveriam vir obrigatoriamente redigidas de acordo com sua natureza ontológica (no caso imperativos que deveriam assumir a forma gramatical de tais). É somente graças ao grande Hans Kelsen que a atitude antiimperativista no conceituar a natureza da norma toma corpo e alcança os foros de dignidade teorética e não apenas mero jogo verbal, como ocorre em Binding. As normas não são ordens ou imperativos, mas juízos - juízos hipotéticos, dirá Kelsen. A continuidade e o aprofundamento da tese da não-imperatividade é obra do Professor argentino Carlos Cóssio e seus discípulos: "Lã norma no contiene mando ninguno; Ia norma simplemente dice que dado el hecho de Ia libertad civil de una persona, debe ser el hecho de no matar, y que dado el hecho de matar debe ser el hecho de su encarcelación", escreve Cóssio.43 Ao enunciado da prestação ou dever jurídico, Cóssio denominou endonorma (dado fato temporal FT - deve ser a prestação - P). Ao enunciado do ilícito e sua conseqüência jurídica, a sanção, chamou de perinorma: "Dada a não prestação (NP) deve ser a sanção (S)", conclui Machado Neto. Qual a validade e o alcance de tais críticas ao caráter imperativo da norma jurídica? De início deve ser feita uma retificação histó rica. Kelsen não foi o primeiro a descobrir o caráter crítica lógico da norma jurídica como juízo hipotético. Antes dele Korkounov, no século passado, já dizia: "As normas jurídicas são regras condicionais. Constam de dois elementos: a definição das condições de aplicação de regra (hipótese ou suposição) e a exposição da regra propriamente dita (disposição ou ordem). E podem ser expressas na fórmula seguinte: Se... em conseqüência... Exemplo: se alguém comete furto, em conseqüência ele é passível de prisão. Se o defunto deixou filhos, em conseqüência seus bens serão divididos em partes iguais".44 E, provavelmente, antes de Korkounov, outros autores fizeram formulações semelhantes. 1431 C. Cóssio, La Valoración Jurídica y Ia Ciencia del Derecho, Buenos Aires, Ed. Arayú, 1954, p. 61. 441 Les normes juridiques ne sont pas seulement des ordres; ce sont en même temps des ordres conditionels. Aussi l'explication d'une norme juridique dépend elle de la présence de certains faits. 11 n'existe pas de normes juridiques absolues. Même da força social (elemento seu Negação da imperatividade da norma jurídica Apreciação Retificação histórica 310 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 311 4.1.3 A norma jurídica e sua formulação lógica Há na pretensa negação do caráter imperativo da norma jurídica uma confusão entre a "norma jurídica em si" e "sua formulação lógica". Do ponto de vista lógico, a norma jurídica tem a estrutura de um juízo ou proposição e pode ser enunciada sob a fórmula de uma proposição hipotética condicional, como fazem Korkounov e Kelsen, ou sob a forma de uma proposição disjuntiva, como prefere Cóssio. Mas a "formulação mental ou lógica" da norma não se confunde com a própria norma, que tem "existência real e objetiva". A norma é uma coisa; sua formulação é outra. Aliás, o próprio Kelsen reconhece, na 2.a edição de sua Teoria Pura do Direito,45 as imprecisões de sua posição anterior e estabelece a distinção entre "a norma jurídica, como um função da autoridade criadora do Direito, e a proposição jurídica, como uma função da ciência jurídica, descritiva do Direito".46 As normas jurídicas são "mandamentos e, como tais, comandos, imperativos ( ... permissões e atribuições de poder ou competência".` )~ Ia norme absolue au point de vue moral, comme la déense d'attenter à Ia vie humaine, n'est pas absolue comme norme juridique. Le plus grand nombre des intérêts de l'homme doit, il est vrai, céder à l'intérêt de Ia conservation de Ia vie, mais non pas tous les intérêts. Dans les cas de légitime défense, de guerre, de l'application des lois pénales, Ia mort est admise par le droit. Les normes juridiques sont donc des règles conditionnelles. Aussi tout norme juridique consiste-telle naturellement dans Ia définition des conditions d'aplication de Ia règle et dans l'exposition de Ia règle elle-même. Le premier de ces deux éléments s'appelle hypothèse y ou supposition et le second disposition ou ordre. Cette norme juridique peut être exprimée de Ia façon suivante: Si... alors... Exemple: Si le défunt a plusieurs ftls, alors les biens seront divisés en parts égales. Si quelqu'un commet un vol, alors il est passible de l'emprisonnement. Toutefois, chaque article d'une loi ne contient pas necessairement ces deux éléments. La norme en effet peut être exposée dans plusieurs articles: alors l'un de ces articles contiendra l'hyphothèse et l'autre Ia disposition. II arrive aussi que Ia norme ne contient pas Ia mention expresse de sa condi tionnalité. Au lieu de: Si... alors... on peut employer d'autres formules: Celui que fait ceci ou cela... est passible de... ou bien! Les biens qui... reviennent à... etc... Mais toutes ces formules se ramênent eu dernier lieu à la formule: Si... allors... C'est lã une des formules fondamentales à laquelle toutes les autres peuvent être ramenées. N. M. Korkounov, Cours de Théorie Générale de Droit, trad. da 5.' edição russa publicada em 1898, por M. J. Tchernoff, Paris :Ed. Grand Brière, 1903, § 24, p. 192 a 193). H. Kelsen, Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado, Coimbra, Ed. Arménio Amado, 1974, nota da p. 124. Idem a mesma página. Idem, ibidem, p. 111. As "proposições jurídicas" são os enunciados com os quais a Ciência do Direito descreve esses comandos. "As proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, sob certas condições ou pressupostos, devem intervir certas conseqüências."48 Nessa ordem de considerações, podemos dar mais um passo. Além do comando ou da norma, considerada "em si mesma" e de sua "descrição", feita pela Ciência do Direito, é preciso distinguir a "formulação" da norma feita pela autoridade que a ordenou, porque as normas jurídicas são expressas em linguagem, isto é, em palavras, proposições ou sinais equivalentes. Podemos, assim, considerar a norma jurídica sob três aspectos: 1 °) "em si mesma", como fato ou imperativo social, por exemplo, a norma que proíbe o homicídio, vigente no Brasil desde os tempos coloniais; 2.') a "formulação dessa norma, feita pelo legislador ou outra autoridade competente, mediante palavras, proposições ou enunciados, como, por exemplo, a atual redação do art. 121 do Código Penal: `Matar alguém. Pena de reclusão de 6 a 20 anos"'; 3.°) a descrição da norma ou sua formulação, feita pelo estudioso ou por aqueles que lidam com o direito. Em si mesma a norma é sempre uma disposição imperativa, proibitiva ou permissiva. E constitui, como diz Camelutti, um comando jurídico dirigido à conduta dos simples indivíduos, autoridades ou instituições da vida social. A formulação da norma pelo legislador (ou outras autoridades) obedece às exigências da técnica legislativa, que tem objetivos práticos e não científicos. Muitas vezes, a mesma norma, como a relativa ao homicídio, furto, falsificação de moedas etc., recebe formulações diferentes em legislações que se sucedem. As discussões sobre a estrutura e significação da norma jurídica colocam-se no plano da sua "descrição" pelo estudioso ou pela Ciência do Direito. 4.1.3.1 A doutrina de Kelsen Ao se referir às proposições jurídicas, Kelsen diz: "Proposições jurídicas são, por exemplo, as seguintes: se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; se alguém não paga um dívida, deve proceder-se a uma execução forçada de seu patrimônio; se alguém é atacado de doença contagiosa, deve ser internado num estabelecimento adequado. Procurando uma fórmula geral, temos: sob determinados pressupostos fixados pela ordem jurídica, deve efetivar-se um ato de coação, pela mesma ordem jurídica estabelecida. É esta a forma fundamental da proposição jurídica".4v (45) (46) (47) 46) lhidem, p. 111. "'" H. Kelsen, Teoria Pura do Direito, ed. cit., p. 119 a 120). 312 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Estruturalmente, na doutrina de Kelsen, a proposição jurídica liga entre si dois elementos: 1) dados determinados pressupostos; 2) deve efetuar-se um ato de coerção, sempre na forma estabelecida pela ordem jurídica. Se "A" não cumpre a prestação, deve ser-lhe aplicada uma sanção. Ou, simplificadamente: dada a não prestação deve ser a sanção: NP - S.50 No pensamento de Kelsen, a proposição jurídica é um juízo hipotético ou condicional, em que o antecedente ou o pressuposto é o não cumprimento de uma obrigação e o conseqüente é a disposição de que uma sanção deve ser aplicada. Ou, em termos simples: dada a não prestação, deve ser a sanção. Ou, ainda, em símbolos: NP -> S. Assim, no Direito brasileiro: se o eleitor não votou, deve ser-lhe aplicada uma multa. 4.1.3.2 Doutrina de Cóssio - A formulação de Cóssio é mais ampla: em cada norma jurídica completa, além da norma sancionadora (NP - S), existe, pelo menos implicitamente, outra norma que estabelece a prestação (endonorma). Entre ambas se coloca a disjuntiva "ou". Exemplo: se F é eleitor, F deve votar, ou, se F não votar, deve ser multado. Cóssio considera assim a norma jurídica como um juízo disjuntivo.51 A norma jurídica tem a seguinte forma, esquematizada pelo próprio Cóssio: - Dado o fato X, deve ser a prestação (endonorma) ou - Dada a não prestação, deve ser a sanção (perinorma) E, em fórmula de símbolos: F -> P ou NP -> S Será que essas fórmulas descrevem adequadamente a estrutura das normas jurídicas? Parece-nos que não. Elas se limitam a descrever a parte sancionadora ou punitiva da norma jurídica, decorrente do não cumprimento da prestação ou obrigação devida. Mas, se a obrigação ao' Ibidem, p. 121. 131 Carlos Cóssio, La Teoria Egológica del Derecho y el Concepto jurídico de libertad, Buenos Aires, Ed. Abeledo Perrot, 1964. CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 313 for cumprida, não haverá também efeitos jurídicos, assegurados pela norma? Se o devedor paga sua dívida, ele não tem direito ao recibo de quitação? Se uma associação preenche as exigências legais, ela não tem o direito de se inscrever como pessoa jurídica? 4.1.3.3 Doutrina proposta - Por essas razões e para atender aos múltiplos efeitos da norma jurídica, impõe-se uma formulação mais ampla, que, a nosso ver, pode ser resumida nos seguintes pontos: 1. A descrição da norma jurídica completa deve abranger três elementos básicos: a) a endonorma que estabelece a prestação ou obrigação, por exemplo: se F é eleitor, F deve votar; b) uma ou mais perinormas que estabelecem as conseqüências jurídicas negativas do não cumprimento da prestação: se F não votou, F deve ser multado; se F não votou, não poderá retirar seu passaporte; se F não votou, não poderá inscrever-se em concurso público etc.; c) uma ou mais perinormas que estabelecem as conseqüências jurídicas positivas do cumprimento da prestação: se F votou, F deve ter seu título assinado pelo Presidente da Mesa; Se F votou pode tirar seu passaporte, inscrever-se em concurso público etc. 2. Cada endonorma ou perinorma tem a estrutura de uma proposição condicional (se F não votou, F deve ser multado), constituída de duas proposições simples, uma antecedente, simplesmente enunciativa, que descreve a hipótese (descritor), exemplo: F não votou; outra conseqüente normativa que prescreve um dever jurídico (prescritor), exemplo: F deve ser multado. 3. Entre a endonorma e as perinormas há uma relação de conseqüência, expressa numa proposição condicional, mais ampla, em que o antecedente é a endonorma (se F é eleitor, F deve votar) e o conseqüente é constituído pelas diversas perinormas. 4. A proposição constituída pelas perinormas é uma disjuntiva em que uma das alternativas éa proposição relativa ao não cumprimento da prestação e suas conseqüências negativas (se F não votou, F deve ser multado) e outra alternativa ("ou") é a proposição relativa ao cumprimento da prestação e suas conseqüências positivas (se F votou, F não pode ser multado)." 32' Aspectos dessa posição podem ser vislumbrados nas apreciações críticas de Millas (ob. cit.). Soler e Kauffmann (apud Cóssio, Teor. Egol., p. 663 e ss.). L 316 mesmos princípios. Nas mãos dos filósofos, o precedente conceito de lei assume, freqüentemente, outra forma, de modo que, quinto, a lei é encarada como um corpo de investigação e declarações sobre um código moral imutável e eterno. Sexto, existe uma idéia de lei como um corpo de acordos de homens numa sociedade politicamente organizada, no tocante a suas relações mútuas. Esta é uma versão democrática da identificação do Direito com as normas do Direito e, portanto, com as leis e decretos da cidadeEstado que se discute no Minos platônico. Não deixa de ser natural que Demóstenes o sugira a um júri ateniense. Muito provavelmente, em tal teoria, uma idéia filosófica daria apoio à idéia política, e a inerente obrigação moral de um promessa seria invocada para demonstrar por que os homens devem respeitar os acordos ratificados em suas assembléias populares. Sétimo, concebeu-se a lei como um reflexo da razão divina que governa o universo; um reflexo daquela parte que determina o "deve ser" endereçado por aquela razão ao seres humanos como entidades morais, em contraste com o "deve" imperativo que se endereça a todo o resto da criação. Tal era a concepção de S. Tomás de Aquino, que teve enorme circulação até o século XVII e, a partir de então, vem exercendo muita e constante influência. Oitavo, a lei foi concebida como um conjunto de ordenações da autoridade soberana numa sociedade politicamente organizada, estipulando como os homens se devem conduzir nela; tal concepção assenta, em última análise, na espécie de base - seja qual for -, que apóia a autoridade do soberano. Assim pensaram os juristas romanos da República e do período clássico, com respeito ao direito positivo. E como o imperador tinha a soberania do povo romano investida nele, as Institutas de Justiniano podiam deixar lavrado que a vontade do imperador tinha forças de lei. Tal maneira de pensar era natural nos homens de leis que ativamente apoiavam a autoridade real na monarquia centralizada francesa dos séculos XVI e XVII, através deles passando para o Direito Público. Parecia adaptar-se às circunstâncias da supremacia parlamentar em Inglaterra, depois de 1688, e acabou por tornar-se a teoria jurídica ortodoxa inglesa. Também podiase fazer com que servisse a uma teoria política de soberania popular, em que se pensasse no povo como sucessor da soberania do parlamento, caso da Revolução Americana, ou sucessor da soberania do rei, caso da Revolução Francesa. Uma nona idéia de lei considera-a um sistema de preceitos descobertos pela experiência humana, através do qual a vontade humana individual pode realizar a liberdade mais completa possível, apenas condicionada pela liberdade da vontade dos outros. Essa idéia, sustentada sob uma ou outra forma pela escola histórica, dividiu as preferências dos juristas, optando uns por ela e os restantes pela teoria da lei como ordem do soberano, durante quase todo o século passado. Partiu da suposição de que a experiência humana, pela qual foram descobertos os princípios legais, era determinada de um modo inevitável. Não se tratava de um esforço humano consciente. O processo era determinado pelo desdobramento de uma idéia de direito e justiça ou uma idéia de liberdade que a si mesma se realizava mediante a administração humana de justiça; ou, então, pela atuação de leis biológicas ou psicológicas, bem corno de caracteres raciais, cujo resultado necessário foi o sistema de direito do tempo e povo em questão. CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 317 Décimo, os homens pensaram ainda na lei como um sistema de princípios descobertos filosoficamente e desenvolvidos em pormenor por escritura jurídica e decisão judicial, donde resulta ser a vida externa do homem medida pela razão ou, em outra fase, ser a vontade do indivíduo em ação harmonizada com a de seus semelhantes. Essa forma de pensamento apareceu no século XIX, depois da teoria de direito natural, em cujos moldes predominara, por dois séculos, ter sido abandonada, solicitando-se à Filosofia que fornecesse uma crítica para o arranjo e desenvolvimento sistemáticos dos detalhes. Segundo a décima primeira modalidade, a lei foi considerada um corpo ou sistema de normas impostas aos homens em sociedade pela classe dominante do tempo, para aplicação, consciente ou inconsciente, de seu próprio interesse. Essa interpretação econômica da lei assumiu múltiplas formas. Na forma idealista, cogita-se de um inevitável desenvolvimento da idéia econômica. Na forma mecânico-sociológica, prevê-se uma luta de classes ou uma luta pela existência em termos de Economia, e um direito resultante da atuação de forças ou leis envolvidas em tais lutas ou determinando-as. Numa forma analítico-positivista, a lei é concebida como ordem imperativa do soberano, mas sendo esse comando determinado, em seu conteúdo econômico, pela vontade da classe social dominante, a qual, por seu turno, é determinada por seu próprio interesse. Todas essas formas pertencem à transição do período de estabilidade da maturidade da lei para um novo período de crescimento. Quando a idéia de auto-suficiência da lei dá passagem a outras Ciências Sociais, e os homens procuram relacionar a jurisprudência com aquelas, a relação com a Economia chama nossa atenção, imediatamente. Além disso, numa época de copiosa legislação, a norma promulgada é facilmente aceita como o tipo de preceito legal, ao passo que a tentativa de estruturação de um teoria de legislação é considerada como se refletisse a orientação geral do Direito. Finalmente, a décima segunda noção da lei baseia-se nos ditames da ordem econômica e social, relativamente à conduta do homem em sociedade, revelados pela observação e expressos em preceitos elaborados através da experiência humana sobre o que funcionaria e o que não funcionaria na administração de justiça. Esse tipo de teoria pertence também ao final do século XIX, quando os homens começaram a buscar bases físicas ou biológicas, suscetíveis de serem descobertas pela observação, em lugar de bases metafísicas, aduzíveis por reflexão filosófica. Outra forma averigua certos fatos sociais considerados básicos, mediante a observação direta, e desenvolve as implicações lógicas dos mesmos, segundo um critério muito semelhante ao dos juristas metafísicos. Isso resulta ainda da tendência, em anos recentes, para unificar as Ciências Sociais, com a atenção voltada, conseqüentemente, para as teorias sociológicas. A digressão valeu a pena, para se notar que cada uma das precedentes teorias do Direito foi, em primeiro lugar, uma tentativa de explicação racional da lei do tempo e lugar, ou de alguns elementos relevantes nela contidos. Assim, a lei, quando se desenvolveu através da atividade jurídica, obteve uma teoria filosófica do Direito, como declaratório de princípios filosoficamente averiguáveis. Quando e onde o ponto de desenvolvimento se situou na legislação, prevaleceu uma teoria política do Direito baseada na comando do soberano. Quando a lei assimilava os resultados de um período prévio de crescimento, a tendência dominante era para INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO uma teoria histórica do Direito, fundada na experiência, ou para um teoria metafísica do Direito, no sentido de uma idéia de direito ou de liberdade realizada por meio do desenvolvimento social e jurídico. Com efeito, os juristas e filósofos não elaboram essas teorias, como simples questões de lógica, mediante o desenvolvimento inexorável dos fundamentos filosóficos. Tendo algo para explicar ou expor, esforçam-se por compreender e afirmar racionalmente suas concepções de lei e, ao fazê-lo, estabelecem uma teoria do que ela é. A teoria reflete, necessariamente, a instituição que foi ideada para racionalizar, ainda que universalmente estabelecida. É uma tentativa para afirmar a lei ou as instituições legais do tempo e lugar em termos universais. É possível que sua real utilidade esteja no fato de habilitarse a compreender esse corpo de lei ou essa instituição, e aí percebemos o que os homens desse tempo estavam procurando fazer delas ou com elas. Assim, a análise dessas teorias é um dos processos de ser chegar às finalidades por que os homens têm vindo lutando através da ordem legal. 5.2 Das leis em geral Montesquieu, De 1'esprit des lois, cap. 1. Tradução brasileira. Do Espírito das Leis, S. Paulo, Ed. Brasil, 1960. As leis, na sua significação mais extensa, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas; e, neste sentido, todos os seres possuem suas leis: a divindade possui suas leis, o mundo material possui suas leis, as inteligências superiores ao homem possuem suas leis, o homem possui suas leis. Aqueles que disseram que uma fatalidade cega produziu todos os efeitos que nós vemos no mundo, afirmaram um grande absurdo: por que haveria maior absurdo do que uma fatalidade cega, que houvesse produzido seres inteligentes? Existe portanto uma razão primordial: e as leis são as relações que existem entre esta e os diversos seres, e as relações desses diversos seres entre si. Deus relaciona-se com o universo como criador e conservador; as leis segundo as quais ele o criou são aquelas segundo as quais ele o conserva; age segundo essas regras, porque as conhece; e as conhece porque as criou, e porque elas se relacionam com a sua sabedoria e o seu poder. Conforme nos é dado reconhecer, o mundo formado pelo movimento da matéria e privado de inteligência subsiste sempre; e para isso é necessário que os seus movimentos possuam leis invariáveis; e se se pudesse imaginar um outro mundo que não este, ele deveria possuir regras constantes, pois do contrário seria destruído. Assim, a criação, que parece representar um ato arbitrário, supõe regras tão invariáveis quanto a fatalidade dos ateus. Seria absurdo dizer que o criador, sem essas regras, poderia governar o mundo, pois o mundo não subsistiria sem elas. Essas regras representam uma relação constantemente estabelecida. Entre um corpo movido e outro corpo movido, é que, segundo as relações da massa e da velocidade, todos os movimentos são recebidos, aumentados, diminuídos, perdidos: cada diversidade é uniformidade, cada mudança é constância. CONCEITO DE LEI E NORMA JURÍDICA 319 Os seres particulares inteligentes podem possuir leis que eles próprios tenham criado; mas possuem também outras que foram criadas por eles. Antes de existirem seres inteligentes, já havia possibilidade de existirem seres não inteligentes: estes, entretanto, mantinham relações possíveis, e por conseguinte possuíam leis possíveis. Dizer-se que não existe nada justo nem de injusto, que não seja ordenado ou proibido pelas leis positivas, seria o mesmo que afirmar que, antes de que se houvesse traçado o círculo, todos os seus raios não eram iguais. É preciso portanto que reconheçamos a existência de relações de eqüidade, anteriores à lei positiva que as estabelece, por exemplo: supondo-se que houvessem existido sociedades de homens, seria justo que nos conformássemos com as suas leis; e assim, se houvessem existido seres inteligentes, os quais houvessem recebido algum benefício de um outro ser, deveriam a este ser reconhecidos; se um ser inteligente houvesse criado um outro ser, o criado deveria permanecer na dependência em que se havia conservado desde a sua origem; um ser inteligente que houvesse praticado algum mal contra um outro ser inteligente, mereceria receber em troca o mesmo mal, e assim por diante. Não resta dúvida de que o mundo inteligente seja tão bem governado quanto • mundo físico. Isto porque, não obstante ele possuir também leis que pela sua natureza são invariáveis, não as obedece constantemente, tal qual o mundo físico segue as suas. E também porque os seres particulares inteligentes são limitados por sua natureza, e, conseqüentemente, sujeitos ao erro; por um outro lado, é devido também à sua natureza que eles agem guiados pela própria vontade. Não seguem, portanto, as suas leis primitivas; e mesmo aquelas, criadas para o seu próprio uso, eles nem sempre as põem em prática. Não se sabe se os animais são governados pelas leis gerais do movimento, ou obedecem a uma moção particular. Seja como for, eles não mantêm para com • Criador relações mais íntimas do que o resto do mundo material; e o sentimento não lhes serve senão nas relações que mantêm entre si, com os outros seres particulares, ou consigo mesmos. Pelo atrativo do prazer, conservam seu ser particular, e pelo mesmo atrativo conservam a própria espécie. Possuem leis naturais, porque são unidos pelo próprio sentimento: não possuem leis positivas porque não são unidos pelos conhecimentos. Não seguem, portanto, invariavelmente, as suas leis naturais; as plantas, nas quais nós não notamos nem conhecimento e nem sentimento, seguemnas melhor. Os animais não possuem as supremas vantagens que nós possuímos; possuem, entretanto, outras, que não possuímos. Não possuem nossas esperanças, mas também não possuem nossos temores; acham-se sujeitos à morte, tal qual nós, isto porém sem que a conheçam; e alguns, mesmo, em sua maior parte, conservam-se melhor do que nós, e não fazem tão mau uso de suas paixões. O homem, como ser físico, é, assim com os outros corpos, governado por leis invariáveis; como ser inteligente, viola sem cessar as leis que Deus estabeleceu, • modifica aquelas que ele próprio estabeleceu. É preciso que ele se dirija a si próprio; é porém um ser limitado; acha-se sujeito à ignorância e ao erro, assim como todas as inteligências finitas; os fracos conhecimentos que possui, acaba por perdê-los. Como criatura sensível, acha-se sujeito a mil paixões. Um ser 318 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO 320 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO semelhante poderia a todos os instantes esquecer seu criador. Deus chamou-o a si pelas leis da religião; poderia a todo instante exceder-se a si próprio; os filósofos advertiram-no mediante as leis da moral; feito para viver na sociedade de seus semelhantes, ele aí poderia esquecer-se destes; os legisladores fizeramno voltar aos seus deveres, por intermédio das leis políticas e civis. 6. Bibliografia BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro : Francisco Alves. BODENHEIMER, S. Ciência do direito. Rio de Janeiro : Forense, 1966. BRETHE DE LÁ GRESSAYE, J. e LABORDE-LACOSTE. M. Introduction à l'étude du droit. Paris : Sirey, 1947. CAPITANT, Henri. Introduction à l'étude du droit civil. Paris : Pedone. CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito. São Paulo : Saraiva, 1942. CÍCERO. De legibus. CRUET, Jean. A vida do direito e a inutilidade das leis. Salvador : Progresso, 1956. CUNHA GONÇALVES. Tratado de direito civil. v. 1. DABIN, Jean. Théorie générale du droit. Bruxelas : Bruylant, 1944. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo : Atlas, 1988. GARCIA MAYNEZ, Eduardo. Introducción al estudio del derecho. México Porrua, 1949. GARCEZ, Maninho. Da teoria geral do direito. Rio de Janeiro : Jacinto, 1914. GENY, F. Science et technique en droit privé positif. Paris : Sirey. 4 v. KELSEN, H. Teoria pura do direito. Coimbra : Arménio Amado, 1962. LAVERSIN, M. J. La loi. Questões 90 a 97, da 1-11, De legibus, de S. Tomás, tradução e notas. Paris : Revue des Jeunes, 1935. LEGAZ Y LACAMBRA, Luís. Introducción ala ciência del derecho. Barcelona : Bosch, 1943. MACHADO NETO. Teoria geral do direito. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1966. Compêndio de Introdução à ciência do direito. São Paulo : Saraiva, 1969. MONTESQUIEU, De l'esprit des lois. Paris : Garnier, s/d. POUND, Roscoe. Introdução à filosofia do direito. Rio de Janeiro : Zahar, 1965. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Max Limonad, 1952. 2 v. ROUBIER, Paul. Théorie générale du droit, Paris : Sirey, 1946. S. TOMÁS, De legibus. Questões 90 a 97, 1-11, Da suma teologica. TELLES JÚNIOR, Goffredo. Filosofia do direito. São Paulo : Max Limonad. 2 v. TORRÉ, Abelardo. Introducción al derecho. Buenos Aires : Perrot, 1957. 11 ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA SUMÁRIO: 1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais. Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica: 1.1 Vinculação dos problemas; 1.2 Conceito de fonte do direito; 1.3 Perspectiva filosófica - 2. Importância e conceito de lei: elemento formal, material e instrumental: 2.1 Primado da lei; 2.2 Sentidos de lei jurídica: 2.2.1 Elemento material; 2.2.2 Elemento formal; 2.2.3 Elemento instrumental; 2.3 Problemas - 3. As diversas espécies de lei: 3.1 Quanto à hierarquia no ordenamento jurídico; 3.2 Quanto à obrigatoriedade; 3.3 Quanto à sanção; 3.4 Quanto à natureza de suas disposições; 3.5 Quanto à sua aplicação; 3.6 Quanto à sistematização; 3.7 Quanto à esfera do poder público - 4. Os costumes jurídicos: denominações, conceito, importância, espécies: 4.1 Conceito; 4.2 Elementos; 4.3 Aplicações do costume; 4.4 Importância do costume - 5. A jurisprudência. Seu conceito e importância como fonte do direito: 5.1 Conceito; 5.2 A formação da jurisprudência; 5.3 Importância da jurisprudência como fonte do direito - 6. A doutrina como fonte do direito. Conceito e importância - 7. O problema das fontes nãoestatais - 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores jurídicos - 9. Outras formulações: 9.1 "Leis de ordem pública", Carlos Maximiliano; 9.2 "O ponto de vista do juiz", Jean Cruet - 10. Bibliografia. 1. O problema das fontes do direito. Fontes formais e materiais. Perspectiva filosófica, sociológica e jurídica 1.1 Vinculação dos problemas O estudo das espécies de normas jurídicas está estreitamente vinculada ao problema das fontes do direito. De que fontes provém o direito positivo de uma nação? Das leis escritas, promulgadas solenemente pelo Estado? Dos usos e costumes? Das decisões dos tribunais? Da elaboração espontânea das instituições sociais e dos organismos autônomos? Da reflexão dos _juristas? Das exigências da justiça e dos demais princípios fundamentais do direito? Da natureza humana? Dos fatores políticos, his- 322 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 323 tóricos, geográficos, morais, religiosos que acompanham a vida da sociedade? É fácil, observou Del Vecchio, evitar de modo simplista o problema das fontes da ordem jurídica, afirmando, dogmaticamente, que o Estado é a fonte única do Direito. É essa umas das posições do positivismo jurídico, que tende a reduzir o direito a uma série de ordens emanadas do Estado, buscando encontrar as fontes da ordem jurídica unicamente nas normas elaboradas ou aprovadas formalizadamente pelos órgãos do poder público. Na realidade, a questão é bem mais complexa. "O problema das fontes do direito positivo", escreveu Gurvitch,' "constitui o problema crucial de toda reflexão jurídica: é o ponto central da Filosofia do Direito e para ele converge toda a complexidade de seus temas". Reconhecendo a importância e a complexidade do assunto, o "Instituto Internacional de Filosofia do Direito e de Sociologia Jurídica"2 dedicou os trabalhos de seu Primeiro Congresso, em 1934, ao "Problema das fontes do direito positivo". 1.2 Conceito de fonte do direito Que se deve entender por "fontes do direito"? Qual o seu conceito? "Fontes do direito" é uma expressão figurada ou, se quisermos, um caso de analogia metafórica. Em sentido próprio, "fonte" é o ponto em que surge um veio de água. É o lugar em que ele passa do subsolo à superfície, do invisível ao visível. De certa forma, a "fonte" é o próprio curso de água no ponto de transição entre duas situações. É sua primeira aparição na superfície da terra. De forma semelhante, observa o jurista húngaro Barna Horvath, a "fonte do direito" é o próprio direito em sua passagem de um estado de fluidez e invisibilidade subterrânea ao estado de segurança e clareza. ~" G. Gurvitch. "Théorie pluraliste des sources du droit positif", in Annuaire de !'Institui Internacional de Philosophie du Droit et de Socilogie Juridique, 1934, p. 114. Integram o grupo de fundadores, entre outros, Le Fur (Paris), Kelsen, (Viena), Del Vecchio (Roma), Godhart (Oxford), Gurvitch (Lyon), Mircea Djuvara (Bucarest), Alexeiev (Moscou), Posada (Madri), Sinzheimer (Amsterdam), Roscoe Pound (Harvard), Benjamin Cardozo (Washington), Cornil (Bruxelas). Procurar a fonte de uma regra jurídica, diz Du Pasquier, significa investigar o ponto em que ela saiu das profundezas da vida social para aparecer na superfície do direito. Assim, dir-se-á que a obrigação do serviço militar tem sua fonte na Constituição Federal. Os autores costumam distinguir as fontes formais, isto é, os fatos que dão a uma regra o caráter de direito positivo e obrigatório, das fontes materiais, representadas pelos elementos que concorrem para a formação do conteúdo ou matéria da norma jurídica. Como fontes formais do direito, indicam-se tradicionalmente: a) a legislação; b) o costume jurídico; c) a jurisprudência; d) a doutrina. Como fontes materiais podem ser mencionados: a) a realidade social, isto é, o conjunto de fatos sociais que contribuem para a formação do conteúdo do direito; b) os valores que o direito procura realizar, fundamentalmente sintetizados no conceito amplo da justiça. Ao exame de cada uma dessas fontes são dedicados os itens seguintes, em que o problema é focalizado preferencialmente numa perspectiva jurídica e técnica. 1.3 Perspectiva filosófica A questão das fontes do direito pode, entretanto, ser examinada também sob o aspecto filosófico e sociológico, como faz Del Vecchio no estudo apresentado ao citado Congresso Internacional de Direito, reunido em Paris.' Apresentando uma ampla visão do problema, distingue o ilustre professor da Universidade de Roma três sentidos diferentes da expressão "fontes de direito": o filosófico, o sociológico ou histórico e o jurídico propriamente dito. Em sentido filosófico e amplo, o direito tem sua fonte essencial na natureza humana. Deixando Fonte de lado divergências doutrinárias sobre o conceito filosófica ou de natureza humana, existem alguns pontos há- essencial sicos em torno dos quais é possível um enten "' "Le Prohlème des Sources du Droit Positif', Annuaire de l'Institut de Philosophie du Droit et de Socilogie Juridique, Paris : Sirey, 1934, p. 20 a 36. Estado, fonte única? Questão complexa e central 1 Fontes formais e materiais 111 Doutrina de Dei Vecchio 324 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 325 dimento amplo. Em primeiro lugar, o homem é essencialmente um "sujeito", capaz de compreender e de se relacionar com outros "sujeitos" e não apenas com "objetos". É precisamente essa "relação com outrem" que constitui a forma lógica do direito, reconhecida pelos autores antigos e modernos. Além disso, do conceito de natureza decorre uma segunda conseqüência: essa "relação com outrem" se refere a sujeitos a quem se deve reconhecer seu "igual" valor essencial; o que impõe uma exigência fundamental de justiça, aplicável, como critério e medida, a todas as regras jurídicas. "É portanto possível e até mesmo necessário", conclui Del Vecchio,° "deduzir de uma consideração transcendental de nossa natureza as duas noções, conexas mas não idênticas, indicando o que é `jurídico', de um lado, e o que é `justo', de outro. A primeira noção é uma forma lógica, que compreende todas as experiências jurídicas possíveis e constitui o conceito limite. A segunda noção é o valor supremo, indicando a mais elevada verdade ética nas relações entre sujeitos, isto é, o ideal absoluto da Justiça-.' Em sentido menos amplo e histórico, de caráter psicossociológico, o direito tem sua fonte na produtividade jurídica Fonte das consciências individuais e se traduz por uma sociológica série de atos de pensamento e de vontade, que ou histórica se relacionam necessariamente no terreno da experiência e dão lugar, assim, a uma fenomenologia jurídica positiva. O relacionamento e os atritos das sugestões fornecidas pelas diferentes consciências individuais fazem nascer um certo sistema de vida, isto é, um conjunto de regras que são seguidas efetivamente, mesmo que não sejam formuladas expressamente. Pode-se qualificar esse sistema como a expressão da "vontade social preponderante" ou da "razão histórica suficiente". Vontade Toda vida em comum dos seres humanos deve ser social necessariamente dirigida por certas regras, que popreponderante dem não ser formuladas explicitamente, mas sempre existem. Essa regulamentação não é uma realidade Ibidem, idem, p. 23. Apesar do caráter necessariamente contingente e empírico da ordem jurídica positiva de cada nação, esses princípios permanecem sempre como orientação e mira necessárias. E a eles é preciso freqüentemente recorrer para suprir as lacunas de qualquer sistema jurídico positivo. Alguns sistemas, como o brasileiro, impõem expressamente ao aplicador da lei a obrigação de recorrer a esses princípios para resolver casos não previstos no texto legal. —Quando a lei for omissa, ()juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito" (art. 4.° da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro). extrínseca e destacada da vida. É, pelo contrário, a própria forma da vida social, a maneira própria de agir dos seres que têm uma vida em comum. Esse aspecto sociológico das fontes do direito foi focalizado especialmente pela Escola Histórica. É oportuno lembrar o conceito de Savigny: a consciência comum do povo é a fonte substancial do direito.' As regras da vida em comum, correspondentes à vontade social preponderante, podem ser expressas de diversas maneiras: formulação de preceitos por autoridades Fontes ou assembléias do povo, decisões dos magistrados jurídicas etc. São exatamente esses modos de expressar as ou técnicas regras da vida em comum que se denominam tecnicamente "fontes de direito" ou "formas de expressão do direito".' Quais são, nesse sentido estritamente jurídico, as fontes do direito? Ou, na fórmula preferida por Del Vecchio, quais são os modos de se manifestar a vontade social preponderante? Uma primeira fonte é representada pelo "costume", em sentido jurídico, a saber: uma repetição constante de determinados comportamentos na vida de uma comunidade, acompanhada da convicção de sua necessidade, ao ponto de poderem os interessados exigir o respeito a esse comportamento pela força, em caso de transgressão. A essa primeira fonte é preciso acrescentar uma segunda, representada pela resolução das controvérsias e dos conflitos que se produzem na vida social. Trata-se da atividade dos juízes. A regra para a resolução das controvérsias pode ser, muitas vezes, fornecida pelo "costume" preexistente, mas, nesse caso, também a regra sofre um processo de aperfeiçoamento, que a torna mais clara e que a desenvolve, pois o juiz que a aplica deve tomar conhecimento e compreender o seu sentido com um grau de consciência muito mais profundo do que o suficiente para seguir a regra num caso simples Savigny, Sistema de Derecho Romano, vol. I, §, 7.°. V. Alexandre Correia, Escola Histórica do Direito, S. Paulo, 1936. Vicente Ráo, Fontes do direito objetivo, n. 175 e ss de O Direito e a Vida dos Direitos. "As fontes do direito, isto é, aquilo de onde provém o Direito, são o direito natural e o arbítrio humano. As assim chamadas 'fontes formais' não são fontes, mas, como preferimos dizer, por se tratar de solução mais correta, 'formas de expressão do direito"' (Rubens Limongi França, "As formas de expressão do direito", in Manual de Direito Civil, p. 24 e ss). Do mesmo autor: jurisprudência - seu caráter de forma de expressão do Direito", in Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. XXX; Dos princípios Gerais do Direito, p. 14, Ed. Revista dos Tribunais, 1963; "Das Formas de Expressão do Direito", in RT 354/3 a 19. Natureza humana Costume Decisões judiciais (6) (7) 326 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 327 e não contestado. A atividade jurisdicional ou judicante leva, por isso, quase necessariamente à formulação explícita de regras que se encontravam, em estado latente e implícito, na lógica do sistema social em vigor. Graças ao trabalho do juiz, o processo de gestação histórica do direito se acelera; o sistema em vigor firma-se e se aperfeiçoa com novos elementos, até mesmo quando ele ainda não possui regras legais formalizadas. Na realidade, já no curso dessa fase, e, mais ainda, quando a evolução se acentua, opera-se a produção do direito positivo por uma terceira forma: a da "legislação". A diferença essencial entre esta forma e as outras não consiste no fato de serem as regras formuladas em termos gerais, de modo a englobar um número indefinido de casos, porque isso também pode ocorrer com os "costumes", quando reunidos em sistema e documentados por escrito. A verdadeira diferença consiste no fato de que o poder de editar regras imperativas é confiado a órgãos especiais, criados para esse fim, que representam toda a comunidade social, e possuem, por isso, autoridade para estabelecer em seu nome regras obrigatórias para todos. Como expressão de uma vontade jurídica consciente e deliberada, a lei constitui o grau mais elevado e mais perfeito de formação do direito positivo. Significa isso que as demais fontes devam ser eliminadas? O aparecimento e a predominância progressiva da legislação constituem um fato capital. Mas seria contrário ao espírito científico considerar como inexistentes as demais formações jurídicas que se produzem no seio da sociedade e se desenvolvem continuamente ao lado das leis. A legislação nunca conseguirá englobar todos os casos ocorridos na vida social. Poderá apenas - e com a condição de ser sustentada pela vontade social preponderante - estabelecer uma limitação negativa, isto é, que não se poderão retirar, das outras fontes, regras que estejam em contradição com as da própria lei. Mas, dentro desses limites, é não apenas possível, mas também necessário recorrer a fontes subsidiárias, que têm apenas em parte ou indiretamente o caráter positivo. E quando não há nem mesmo esse apoio parcial, é à pura "razão jurídica" que é preciso recorrer. "Porque", conclui Del Vecchio, "as diferentes manifestações do direito ligam-se todas a essa fonte única, essencial e permanente, que é o espírito humano'.' "~ "Espírito humano", "natureza humana", "pessoa humana" são expressões que se correspondem. Se quisermos ir às raízes da personalidade, é preciso chegar ao espírito humano. Essa é a grande lição da natureza. Invertendo a ordem seguida por Del Vecchio e adotando um processo mais empírico, podemos dizer que as "fontes imediatas ou técnicas" - lei, costume Fonte jurídico, jurisprudência e doutrina têm seu técnica fundamento nas "fontes históricas e sociológicas" - vontade social preponderante ou realidade social - e estas, por sua vez, encontram sua base na "fonte essencial" do direito; é a essa "fonte das fontes", que é a natureza humana, que corresponde a exigência fundamental da justiça. Nas sociedades modernas, a lei e indiscutivelmente a mais importante das fontes formais da ordem jurídica. Ela é a forma ordinária e fundamental de expressão do direito. É "essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei", afirma o "Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem". "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", prescreve o art. 5.°, II, da Constituição brasileira. E o art. 4.° da Lei de Introdução ao Código Civil determina que somente "quando a lei for omissa" é que se aplicarão as demais formas de expressão do direito. E a lei que fixa as linhas fundamentais no sistema jurídico e serve de base para a solução da maior parte dos problemas do direito. 2.2 Sentidos de lei jurídica Como definir a lei em sentido jurídico? Devemos distinguir preliminarmente três acepções diferentes do termo "lei" no campo do direito: a) Muitas vezes o vocábulo "lei" é usado, em sentido amplíssimo, como sinônimo de norma jurídica, incluindo quaisquer regras escritas (jus scriptum) ou costumeiras (jus non scriptum); nesse caso, lembra Vicente Ráo, a palavra "lei" tem "o sentido compreensivo de toda norma geral de conduta que define e disciplina as relações de fato incidentes no direito e cuja observância o poder do Estado impõe coercitivamente, como são as normas legislativas, as costumeiras e as demais ditadas por outras fontes do direito, quando Legislação 2. Importância e conceito de lei: elemento instrumental formal, material e 2.1 Primado da lei Sentido amplíssimo 328 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 329 admitidas pelo legislador".9 A essa acepção corresponde a definição de lei jurídica, apresentada no capítulo anterior: norma de conduta do homem no seu relacionamento com seus semelhantes, garantida pela eventual aplicação da força social, tendo em vista a realização da justiça.` b) Outras vezes em sentido menos amplo, a palavra lei ou legislação é empregada para indicar quaisquer Sentido normas jurídicas escritas, sejam as leis propriaamplo mente ditas, oriundas do Poder Legislativo, sejam os decretos, decretos-leis, regulamentos, medidas provisórias ou outras normas baixadas pelo Poder Executivo; a esse conceito corresponde a observação de Geny: "A legislação compreende todos os atos da autoridade cuja missão consiste em editar regras gerais, sob forma de injunções obrigatórias, como são as leis propriamente ditas, os decretos, os regulamentos"." c) Finalmente, em sentido estrito e próprio, "lei" é apenas a norma jurídica aprovada regularmente pelo Poder Sentido Legislativo. Esse é o sentido técnico que distinestrito gue a lei, propriamente dita, dos decretos, regue próprio lamentos, portarias, instruções, medidas provisó rias e outras normas emanadas da Administração Pública. Dentre as diversas acepções do termo "lei", este é o que interessa fundamentalmente ao presente item. Quais as características da lei nesse sentido? Como definir a lei propriamente dita? Com La Gressaye e Lacoste,'Z podemos definir a lei, em sentido estrito e próprio, como: - uma regra de direito geral, abstrata e permanente; - proclamada obrigatória pela vontade da autoridade competente, e - expressa numa fórmula escrita. Três elementos integram esse conceito. Um elemento material, que é o conteúdo da lei: regra de direito geral, abstrata e permanente. Um elemento formal: a vontade do legislador. Um elemento instru mental: a fórmula escrita. (9) O direito e a vida dos direitos, n. 202. (101 Conf. item 4.1.2. retro. ~1) F. Geny, Méthode d'interpretation et sources, n. 54. 111) La Gressaye e Lacoste, Introduction generale a l'étude du Droit, n. 224. No mesmo sentido, é a definição de Bodenheimer: "Por legislação entende-se a deliberada formulação de preceitos de direito por um órgão do governo criado para isso, o qual dá uma expressão articulada aos preceitos, formalizando-os num diploma legal", Ciência do Direito, n. 64. 2.2.1 Elemento material A matéria ou conteúdo da lei é sempre uma regra de direito," norma jurídica "geral" e, por conseqüência, "abstrata" e "permanente". A lei é uma norma "geral" ou comum. "Lex est commune praeceptum", diz Papiniano.14 E uma regra estabelecida não em vista de um caso individual, mas de todos os casos da mesma espécie." Ela pode ser mais ou menos geral - por exemplo, referir-se a todos os homens residentes no país, aos cidadãos, aos funcionários públicos, aos gráficos, aos vereadores, aos governadores, ao Presidente da República -, mas, dentro de seu campo, ela se aplica igualmente a todos os casos ocorrentes. Como vimos anteriormente, essa característica liga-se à finalidade da lei que é o "bem comum",16 ao sentido de justiça que marca toda norma jurídica." Desse caráter de generalidade da lei decorrem duas outras características igualmente importantes: a lei é uma regra "abstrata" e "permanente". A lei disciplina uma situação jurídica "abstrata", isto é, separada das circunstâncias variáveis em que ela se apresenta em cada caso concreto. Ao contrário do juiz, que sempre decide diante de fatos concretos - assassínio de Luther King ou de Trotsky, falência de determinada empresa, despejo da favela X -, o legislador dispõe para situações O conceito de "regra de direito" ou "norma jurídica" foi estudado no item 4 do capítulo anterior. No caso da definição que estamos examinando, ele representa o gênero próximo. Os demais elementos contêm as "diferenças específicas" que caracterizam a lei. Papiniano, 1, 1, D. 1, 3. "Jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur", Ulpiano, 1, 3, 10, 8. "Toda lei tem por finalidade o bem comum. É ela o instrumento normal que deve conduzir a atividade de todos os membros da comunidade para o bem geral. Até mesmo nos casos em que a lei beneficia algum setor particular da sociedade, sua justificação liga-se ao interesse que esse benefício, direta ou indiretamente, proporciona a toda a coletividade. Toda norma que se desviar desse objetivo e atender a interesses particulares, em prejuízo do bem comum, estará contrariando uma das exigências da própria natureza da lei", v. n. 3, do Capítulo 10, p. 300. "A norma é geral porque todos são iguais perante a lei. E essa é, também, como vimos, a significação fundamental da justiça: realizar a igualdade nas relações entre os homens. Podemos acrescentar que na noção de 'igualdade' estão contidas as de 'alteridade' e 'devido', que, em conjunto, constituem a própria essência da justiça: dar a 'outrem' o que lhe é 'devido' segundo uma 'igualdade'. Com razão escreveu Dabin que a justiça é a matéria normal da regra jurídica", v. item 4 do Capítulo 10, p. 305. Norma geral Abstrata (14) us> nn 330 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 331 jurídicas definidas "abstratamente" - homicídio, inquilinato, direito de voto, casamento, concordata. Alguns publicistas, como Laubadère18 preferem a expressão "impessoal" para indicar essa característica. Na realidade a "impessoalidade" é um dos aspectos do caráter "abstrato" da lei. Esta faz abstração de todas as circunstâncias variáveis que acompanham as situações jurídicas concretas e entre essas circunstâncias estão as "pessoas" individualmente abrangidas pela norma. Nesse sentido, a lei é impessoal. A lei é uma norma permanente, isto é, tem continuidade no tempo, e se aplica indefinidamente aos casos ocorrentes, enquanto não for revogada ou não se esgotar o tempo de sua vigência. Essas características referem-se ao conteúdo ou matéria da lei em sentido jurídico. Mas não basta termos um preceito geral, abstrato e permanente para que haja uma lei." É, ainda, necessário que esse preceito seja, declarado obrigatório por decisão do órgão legislativo competente. E esse, na terminologia jurídica usual, o aspecto "formal" ou "orgânico" da lei." 2.2.2 Elemento formal Mas qual é o órgão ou autoridade competente para exercer esse poder? Quem é o legislador? Isso depende do regime político. Nas democracias modernas, a Constituição confere em geral o poder de legislar a uma assembléia eleita pelo povo (Parlamento), com a participação do Chefe do Governo (iniciativa de projetos, sanção e promulgação das leis aprovadas pelo Parlamento, direito de veto etc.). Nos regimes ditatoriais, o poder legislativo é absorvido pelo Chefe do Governo. No Brasil, a Constituição estabelece: "O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal" (art. 44). O art. 48 diz que cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da Repú blica, dispor sobre todas as matérias de competência da União. E a participação do Presidente da República no processo legislativo, relativamente à iniciativa, sanção, veto e delegação de poderes, está fixada nos termos seguintes, na Constituição Federal: a) Quanto à iniciativa: "A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao ProcuradorGeral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição" (art. 61, caput), "são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas; II - disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria; d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; e) criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública; f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva" (art. 61, § 1.°). b) Quanto à sanção: "Compete privativamente ao Presidente da República: sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução" (art. 84, IV). c) Quanto ao direito de veto: "Compete privativamente ao Presidente da República: vetar projeto de lei, total ou parcialmente" (art. 84, V). "Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, veta-loá total ou parcialmente no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto" (art. 66, § l.°). d) Quanto à delegação legislativa: As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. Não serão objeto de delegação os atos definidos no art. 68, §§ 1.° a 3.°, da Constituição. e) Quanto às medidas provisórias: "Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, Permanente Vontade do legislador 118) ((9) (20) Laubadère, Manuel de Droit Administratif. Outras normas jurídicas, como o direito costumeiro, e até mesmo as normas morais, religiosas, costumes sociais etc., podem ser também gerais, abstratas e permanentes. O termo "formal" não tem aqui o sentido filosófico de "causa formal" ou "essencial", mas o de forma externa, aparência, formalidade. Da mesma maneira, o termo: "orgânico", é empregado, no caso, não no sentido corrente de "estruturado" ou "coerente", mas de "derivado do órgão público competente". T estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não I forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes" (art. 62, caput e parágrafo único). 2.2.3 Elemento instrumental Elemento instrumental da lei é sua fórmula escrita. A lei é sempre formulada num texto escrito dividido em artigos Fórmula e, muitas vezes, em capítulos, títulos, seções etc. escrita O que lhe dá maior concisão, clareza e segurança, além de facilitar a referência a seus preceitos. Muitos autores ligam o caráter escrito da "lei" a origem etimológica do vocábulo. O termo "lei" vem do latim légere, que significa "ler", dizem La Gressaye e Lacoste; trata-se de um texto escrito, feito para ser "lido". Por ser escrita, distingue-se a lei (jus scriptum) do "costume jurídico", que é também norma jurídica, mas não escrita (jus non scriptum). 2.3 Problemas A conceituação da lei jurídica, com as características que acabamos de expor, é assunto que comporta grandes discussões. Alguns doutrinadores, exagerando a importância do elemento formal, chegam a considerálo suficiente para caracterizar a lei e desprezam o elemento material ou o conteúdo da norma. Em conseqüência, desde que um preceito seja aprovado, com as formalidades devidas, pelo órgão legislativo competente, ele é lei; até mesmo no caso de disposições particulares ou individuais, como as que estabelecem a denominação de uma rua, a desapropriação de um imóvel, a concessão de um prêmio, esse é o pensamento de Laband e outros." Inversamente, para outros autores, basta a matéria: "norma geral, abstrata e permanente", para caracterizar uma lei. Nesse sentido, os regulamentos e demais "normas gerais" baixadas pelo executivo são considerados verdadeiras leis. "Esses regulamentos (os regulamentos ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 333 autônomos) são verdadeiras leis", escreve Bandeira de Mello, "e como tal devem ser materialmente considerados".22 Na realidade, ambos os elementos material e formal são neces sários para que uma norma seja, em sentido próprio e pleno, uma "lei". Quando lhe faltar um desses elementos, a norma será uma lei imperfeita. Mais correto será denominá-las "leis meramente formais", ou, como preferem alguns: "leis formais" no primeiro caso. E "leis apenas materiais" ou simplesmente "leis materiais" no segundo. Entre as leis formais, podem ser mencionadas: a) as que criam um novo Município, Estado ou Comarca; b) as que declaram a utilidade pública de uma instituição; c) as que desapropriam um imóvel ou autorizam sua venda; d) a chamada lei orçamentária; e) as que concedem pensão ou cidadania a determinada pessoa etc.23 Pelo contrário, podem ser consideradas "leis materiais" os atos do Poder Executivo que contêm normas gerais, abstratas e permanentes, como é o caso comum dos Regulamentos Administrativos, especialmente os Regulamentos Autônomos .24 3. As diversas espécies de lei Toda classificação se fundamenta num critério determinado. E, como esse critério, no caso presente, pode variar ilimitadamente, é praticamente ilimitado o número de classificações possíveis das normas jurídicas. Vamos, por isso, nos limitar ao exame das classificações que possam proporcionar ao cultor do direito instrumentos úteis para seu estudo e atividade. As classificações que examinaremos referem-se diretamente à lei, mas, em geral, podem também ser aplicadas às demais normas do direito. Dentro dessa perspectiva, podemos indicar as seguintes classificações das normas jurídicas: 1. Quanto à sua hierarquia: 1.1 leis constitucionais; 1.2 leis complementares; 332 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO Lei formal e lei material Diversidade de classificações Para esses autores o que prevalece é o aspecto `orgânico' (orgão competente), 22) Princípios Gerais de Direito Administrativo, n. 296. 39. "formal" (a forma e não o fundo ou o conteúdo do preceito) e "subjetivo" Z" V. Coviello, Doctrina General del Derecho Civil, n. 11. (a decisão do "sujeito" ou autoridade individual ou coletiva). 24' V. Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, § 334 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 335 1.3 leis ordinárias e a seu lado, no mesmo plano hierárquico, as leis delegadas, os decretos legislativos, as resoluções e as medidas provisórias; 1.4 os decretos regulamentares; 1.5 outras normas de hierarquia inferior, até as normas individuais, como os contratos ("lei entre as partes"), as sentenças, os testamentos etc. 2. Quanto à obrigatoriedade: 2.1 normas imperativas ou de ordem pública, subdivididas em: 2.1.1 imperativas propriamente ditas; 2.1.2 proibitivas; 2.2 normas dispositivas, subdivididas em: 2.2.1 permissivas; 2.2.2 supletivas. 3. Quanto à sanção: 3.1 leis perfeitas; 3.2 leis mais que perfeitas; 3.3 leis imperfeitas. 4. Quanto à natureza de suas disposições: 4.1 leis substantivas; 4.2 leis adjetivas ou processuais. 3.1 Quanto à hierarquia no ordenamento jurídico Apesar de sua aparente dispersão, as leis e demais normas jurídicas, na realidade, se integram hierarquicamente num sistema de normas que rege "a conduta comunitária". Esse sistema constitui o ordenamento jurídico de cada comunidade." De acordo com sua posição hierárquica no ordenamento jurídico brasileiro atual, as normas podem ser: 1. constitucionais; 2. complementares; 3. ordinárias; 4. regulamentares; 5. decisões normativas; 6. normas individuais ou singulares. No grau mais elevado da hierarquia, dentro do ordenamento jurídico, encontra-se a Constituição, à qual todas as demais normas se devem subordinar. Todas as Normas disposições que integram o texto da Constituição constitucionais passam, automaticamente, a constituir normas constitucionais e a ocupar o primeiro plano na hierarquia jurídica. As demais devem conformar-se a suas disposições. E o princípio da "constitucionalidade", que exige a conformidade de todas as demais normas e atos inferiores: leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, regulamentos, atos administrativos, atos judiciais etc., às disposições da Constituição. A lei complementar é outra modalidade de norma jurídica prevista expressamente no texto constitucional brasileiro, que dispõe sobre a mesma, genericamente, nos Leis arts. 59, II, e 69 e, especificamente, em uma série complementares de casos que menciona de forma taxativa .26 A lei complementar constitui, na hierarquia das normas jurídicas, uma espécie intermediária entre a norma constitucional e a lei ordinária a que se equiparam as normas da mesma hierarquia, isto é, a lei delegada e a medida provisória. É inferior à Constituição; não pode, 25) Merkel e depois dele Kelsen e outros desenvolveram a teoria da estrutura piramidal do ordenamento jurídico. O direito não é um sistema de normas de igual hierarquia, situadas, por assim dizer, umas ao lado das outras. Mas uma ordem graduada ou hierarquizada, em que cada norma fundamenta sua validade em outra superior, até chegar à norma fundamental. Sobre a lei complementar v. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do processo legislativo, S. Paulo, 1968, n. 154 e ss., e Celso Bastos, Comentários à Constituição Brasileira, SP, 1989. 5. Quanto à aplicabilidade: 5.1 normas auto-aplicáveis; 5.2 normas dependentes de complementação. 6. Quanto à sistematização: 6.1 leis esparsas; 6.2 códigos; 6.3 consolidações. 7. Quanto à esfera do Poder Público de que emanam: 7.1 normas federais; 7.2 normas estaduais; 7.3 normas municipais. 336 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 337 por isso, contradizê-la, sob pena de inconstitucionalidade e invalidade. E é superior à lei ordinária, à medida provisória e à lei delegada, que, por sua vez, não podem contrariar a lei complementar, sob pena de invalidade. A lei complementar ocupa posição também intermediária no tocante ao quorum. Para sua aprovação, a Constituição exige "maioria absoluta de votos dos membros das duas Casas do Congresso Nacional" (art. 69). Para as emendas à Constituição, o quorum exigido é de três quintos dos votos dos membros das duas Casas, 'em dois turnos (art. 60, § 2.°). E para as leis ordinárias, em regra, é suficiente a maioria simples de votos dos presentes. A lei complementar não se caracteriza por algum conteúdo especial. Pode versar sobre as mais diversas matérias, como a elaboração do Estatuto da Magistratura (CF, art. 93), o funcionamento da Advocacia-Geral da União (CF, art. 131), entre outros. Como caracterizar, então, uma lei complementar? Parodiando Vedei,27 podemos dizer que a definição das leis complementares é extremamente simples: são leis complementares aquelas a que a Constituição confere essa qualidade. De fato, a Constituição declara expressamente, em cada caso, que uma "lei complementar" disciplinará tal ou tal matéria. Esses casos são taxativos. Não comportam ampliação. Ao fixá-los - observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho28 -, o legislador constituinte teve um rumo preciso: resguardar certas matérias de caráter paraconstitucional, contra mudanças constantes e apressadas, sem lhes imprimir rigidez que impedisse a modificação de seu tratamento, logo que necessário. A lei ordinária é a norma jurídica elaborada pelo Poder Legislativo em sua atividade comum e típica. São leis ordinárias: o Código Civil e os Códigos em geral, a lei eleitoral, a dos partidos políticos, a lei do inquilinato, a de falências, a de sociedades anô nimas, a do salário-família, a de acidentes de trabalho, a de defesa do consumidor etc. Como vimos, a lei, em regra, estabelece normas gerais e abstratas em suas disposições. Mas são freqüentes leis contendo apenas disposições particulares, como a doação de um bem ou a concessão de títulos a determinada pessoa, a denominação de uma rua, a declaração de utilidade pública de uma instituição etc. (27) Ao caracterizar as leis orgânicas perante a Constituição Francesa, escreve Vedel: "A definição de lei orgânica é extremamente simples. São leis orgânicas as leis a que a Constituição confere essa qualidade". aa' Ob. cit., n. 157, p. 211. A posição hierárquica das leis ordinárias no ordenamento jurídico é, de um lado, inferior à das normas constitucionais e complementares, e de outro, superior a dos decretos regulamentares e a dos demais atos normativos inferiores, como as convenções coletivas de trabalho, atos administrativos, contratos etc. Pode-se, por isso, discutir sobre a "constitucionalidade" ou inconstitucionalidade das leis. E sobre a "legalidade" ou ilegalidade dos decretos, convenções coletivas, atos administrativos, contratos etc. As fases principais no processo de elaboração da lei são: a) a iniciativa, que cabe, conforme o caso: - a qualquer membro ou comissão da Câmara ou Senado; - ao Presidente da República; - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e ao Procurador-Geral da República; - aos cidadãos (CF, art. 61); b) a discussão e votação do projeto, que são feitas pelas duas Casas do Congresso e suas respectivas comissões; é essa, sem dúvida, a fase mais importante do processo; c) a apreciação, pelo Executivo, do texto aprovado pelo Congresso para efeito de sanção ou veto; é a sanção que transforma em "lei" o projeto aprovado pelo Legislativo; como diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "por ela fundem-se as duas vontades, a do Congresso e a do Presidente, de cuja conjunção resulta a lei ordinária";29 d) no caso de veto, o projeto voltará ao Congresso e será considerado aprovado, se obtiver o voto dos membros do Senado e da Câmara; no caso contrário, prevalece o veto. Ao lado das leis ordinárias, a Constituição menciona, nos diferentes itens do art. 59: - as leis delegadas; - as medidas provisórias; - os decretos legislativos; - as resoluções. Tais normas têm a mesma hierarquia das leis ordinárias. As leis delegadas constituem figura jurídica recente no direito brasileiro. Nos termos do art. 68 da Constituição, as leis delegadas são elaboradas pelo Presidente da República, por delegação expressa do Congresso Nacional. `29' Ob. cit., n. 128, p. 176. Leis ordinárias Leis delegadas 338 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 339 Os decretos legislativos são normas aprovadas pelo Congresso Decretos sobre matéria de sua exclusiva competência, como legislativos a ratificação de tratados internacionais, o julga mento das contas do Presidente da República etc. Tais atos não são remetidos ao Presidente da República para sanção. As resoluções são decisões do Legislativo - Congresso, Senado ou Câmara - sobre assuntos de seu interesse Resoluções interno como decisão sobre licença ou perda de cargo por deputado ou senador, fixação de sub sídios, mudança temporária da sede do Congresso Nacional etc. A esses, a atual Constituição acrescenta um caso especial: "Terá a forma de resolução do Congresso Nacional" a delegação de competência ao Presidente da República para a elaboração de lei delegada (art. 68, § 2.°). Sobre as medidas provisórias falaremos em seguida ao estudo dos decretos regulamentares. Normas ou Seguindo a lição de Bandeira de Mello,30 decretos podemos dizer que normas regulamentares ou regulamentares regulamentos são regras jurídicas gerais, abstratas e impessoais, estabelecidas pelo Poder Executivo, em desenvolvimento da lei. Daí decorrem duas notas pelas quais o regulamento se distingue da lei. Substancialmente, o regulamento é um desenvolvimento da lei ou uma legislação secundária, como diz Roubier.31 A ela se vincula imediatamente, como no caso dos regulamentos de execução e nos autorizados ou delegados. Ou por uma subordinação mais remota, como no caso dos chamados regulamentos autônomos. Formalmente, lei e regulamento emanam de poderes distintos: a lei do Legislativo, o regulamento do Executivo. Os regulamentos são baixados pelo Poder Executivo através de decretos, chamados regulamentares. Ao lado dos decretos regulamentares ou gerais, existem os decretos especiais, que dispõem sobre casos concretos e individualizados, como o decreto de nomeação de um funcionário ou de transferência de determinada verba. Pelo fato de estabelecerem normas gerais, abstratas e permanentes - embora baixadas pelo Poder Executivo -, os decretos regulamentares são denominados por alguns autores "leis materiais". O0' Bandeira de Mello, Princípios Gerais de Direito Administrativo, p. 303, n. 39. "~ Roubier, Théorie Générale du Droit, Ed. Sirey, 1946, p. 6. Até a promulgação da atual Constituição Federal vigorava como prerrogativa do Poder Executivo o decreto-lei. Tratava-se de uma figura híbrida: o "decreto" é Medidas ato do Poder Executivo; a "lei" é tarefa específica provisórias do Legislativo. O decreto-lei era, assim, uma "lei" editada pelo Poder Executivo. O decreto-lei foi extinto e não figura na Constituição Federal de 1988. Em lugar do decretolei, a Constituição introduziu a medida provisória. A medida provisória é uma norma que poderá ser adotada pelo Presidente da República, em caso de relevância e urgência, com força de lei, tendo vigência por trinta dias. Nesse prazo a medida será examinada pelo Congresso Nacional que aprovará, rejeitará ou criará uma nova lei em sua substituição. Se no prazo de trinta dias a medida não for aprovada, ela perde a eficácia. A medida provisória está prevista no art. 62 da Constituição Federal. Dentro do ordenamento jurídico, a medida provisória tem posição hierárquica no mesmo plano da lei ordinária e da lei delegada. Só pode ser revogada por norma da mesma hierarquia ou de plano superior. As normas que acabamos de examinar não esgotam a série de tipos de regras jurídicas que integram o ordenamento jurídico. As chamadas "decisões normativas", Outras proferidas por autoridades judiciárias ou admi- normas nistrativas, constituem um primeiro exemplo. No plano da Administração Pública, abaixo dos regulamentos, situam-se as portarias, avisos, ordens internas, despachos e outros atos administrativos. No plano das obrigações, as convenções coletivas de trabalho, estipulações, contratos etc. No plano judiciário, os despachos, sentenças etc. No plano institucional, os estatutos, regimentos, normas internas etc. Desenvolve-se, assim, a ordem jurídica, desde a "norma constitucional", no ápice da pirâmide, seguida pelas "leis complementares", "leis ordinárias", "decretos regulamentares" etc., até as normas individualizadas, como as "sentenças" e os "contratos", que representam a aplicação concreta do direito à conduta social dos homens. Os contratos, sentenças e atos semelhantes, não contendo disposições abstratas, gerais e permanentes, não participam da natureza da lei. Mas, por sua força e obrigatoriedade, possuem inegável caráter vinculatório e, nesse sentido, constituem normas ou regras de conduta normativa. Por isso, na linguagem jurídica, consagrou-se a expressão de que o "contrato é lei entre as partes", do Normas individuais 340 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO mesmo modo que a sentença é "a lei viva", "efetivamente aplicada ao caso concreto". 3.2 Quanto à obrigatoriedade Com base na sua força obrigatória, as leis podem ser assim classificadas: 1. Imperativas (jus cogens), subdivididas em: a) imperativas stricto sensu (imperativas positivamente); b) proibitivas (imperativas negativamente). 2. Dispositivas (jus dispositivum), por sua vez, subdivididas em: a) permissivas; b) supletivas. Normas imperativas, também denominadas tradicionalmente coativas, absolutas ou absolutamente cogentes, são Normas as que possuem obrigatoriedade absoluta. Manimperativas dam ou proíbem de modo incondicionado, isto é, não podem deixar de ser aplicadas, nem modifi cadas pela vontade dos que lhe são subordinados. Exemplos: "É obrigatório o regime da separação dos bens no casamento do maior de 60 e da maior de 50 anos" (Código Civil, art. 258, parágrafo único, inc. 1); "Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos" (CF, art. 14, § 2.°). Modernamente, generaliza-se a expressão "norma de ordem pública" para indicar as leis imperativas que, conforme o texto do Digesto, não podem ser modificadas por convenções dos particulares (jus publicum, privatorum pactis mutari non potest, Dig. 1.2., t. 14, fr. 38, De pactis). As "normas de ordem pública" não se confundem com o "direito público", tal como é conceituado atualmente.32 Pois parte do direito privado é constituído de normas de ordem pública, isto é, de normas imperativas que não podem ser modificadas pela vontade das partes. É o caso de quase todas as normas do direito de família e de um número, cada vez maior, de normas relativas ao direito das obrigações, como os contratos de trabalho, locação de imóveis, emprésti X72' Entre as normas que os romanos qualificaram de jus publicum, lembra Vicente Ráo, figuram as normas de direito privado que nós chamamos de "ordem pública". E acrescenta: É absolutamente (imperativo) todo o direito público, e a parte do direito privado considerado como de ordem pública. O direito e a vida dos direitos, nota 141, p. 236. ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 341 mos, seguros, defesa do consumidor etc., em que o Estado, através de normas imperativas, e tendo em vista o interesse público, restringe a liberdade contratual dos interessados. E esse um dos aspectos da conhecida tendência à publicização do direito privado. Após essas considerações, é oportuno observar que a expressão norma "imperativa" pode receber, na linguagem jurídica, três significações diferentes: 1. Em sentido amplíssimo, como vimos," toda norma jurídica é imperativa; as próprias normas permissivas ou supletivas são, de certo modo, obrigatórias ou imperativas: a lei "manda" que certos atos sejam "permitidos" ou que se aplique "supletivamente" determinada disposição. 2. Em sentido menos amplo, norma imperativa é a norma jurídica que manda ou proíbe de modo absoluto e não pode ser alterada pela vontade das partes, isto é, são as normas de ordem pública. 3. Em sentido estrito, a expressão se restringe às normas imperativas "positivas", com exclusão das imperativas negativamente ou proibitivas. Dada a importância das normas de ordem pública no direito moderno, graves erros se cometem na interpretação das leis, em virtude da confusão entre essas diferentes significações. Normas dispositivas, também denominadas indicativas, simples mente dispositivas ou relativamente cogentes, são as que se limitam a permitir determinado ato ou a suprir a manifestação da vontade das partes. Podem ser naturalmente subdivididas em: - permissivas, no primeiro caso, e - supletivas no segundo. Alguns autores negam a possibilidade de existirem normas "permissivas", fundados no argumento de que tudo o que não é "imperativo" ou "proibido" por lei está, naturalmente, na esfera do "permitido" ou do lícito jurídico. Não há necessidade de que uma norma o declare.34 Na realidade, entretanto, existem normas permissivas em todo ordenamento jurídico. Elas se justificam, principalmente, pelo interesse prático de resolver dúvidas ou determinar com maior precisão as condições em que um ato deve ser realizado. No direito brasileiro, são normas permissivas, entre outras, as seguintes: "É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens o que lhes aprouver" (Código Civil, art. 256). "O devedor pode evitar a declaração de falência, requerendo ao juiz lhe seja concedida con "" V. Capítulo 10, n. 4, p. 305. R. de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, São Paulo : Saraiva, 1934, vol. 1, § 7, p. 41 e 42. Normas dispositivas Permissivas 342 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 343 cordata preventiva" (Lei de Falência, art. 156); "O consumidor pode desistir do contrato no prazo de 7 (sete) dias a contar de sua assinatura ou do ato do recebimento do produto ou do serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio" (Código de Defesa do Consumidor, art. 49). Normas supletivas, subsidiárias ou interpretativas são as que suprem a falta de manifestação da vontade das Supletivas partes. São "normas" que só se aplicam quando os interessados -não disciplinarem suas relações. Exemplos: "Não havendo convenção (antenupcial), ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens, entre os cônjuges, o regime de comunhão universal" (Código Civil, art. 258); "Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente" (Código Civil, art. 950); "Não havendo estipulação em contrário, as despesas de instrumento da venda e as que se fazem para receber • transportar a coisa vendida são por conta do comprador" (Código Comercial, art. 196). 3.3 Quanto à sanção De acordo com a espécie de sanção que as acompanha, as normas jurídicas, conforme famosa classificação que nos veio do Direito Romano, podem ser divididas em: 1. perfeitas (leges perfectae); 2. mais que perfeitas (leges plus quam perfectae); 3. menos que perfeitas (minus quam perfectae); 4. imperfeitas (imperfectae). Leges perfectae são aquelas cuja sanção consiste na nulidade automática ou na possibilidade de anulação do ato praticado contra sua disposição. Exemplos: "Nula é a nomeação (testamentária) de tutor pelo pai ou pela mãe que, ao tempo de sua morte, não tenha • pátrio poder" (Código Civil, art. 408); "O marido não pode, sem • consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens, alienar, hipotecar ou gravar de ônus real os bens imóveis" (Código Civil, art. 235, inc. I); "Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente consolidação" (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 9.°); "São nulas de pleno direito, entre outras, as láusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e servi' s que ... permitam ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor" (Código de Defesa do Consumidor, art. 51, X). Leges imperfectae são as que não são dotadas de sanção. Sua violação não acarreta nem a nulidade do ato nem outra penalidade. São leis meramente formais, que Leis têm em vista orientar ou dificultar determinados imperfeitas atos ou estabelecer uma orientação programática. Estão nesse caso, entre outros, os seguintes artigos da Constituição brasileira: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 205). "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: ... participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei" (art. 7.°, XI). "O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais" (art. 215). Leges plus quam perfectae são aquelas cuja violação acarreta nulidade do ato - ou o restabelecimento da situação anterior - e, ainda, a imposição de uma pena ou castigo. Exemplo: "Não podem casar as pessoas casadas" (art. 183, inc. VI, Código Civil). A violação desse preceito acarreta a nulidade do casamento e a punição penal do culpado, na forma dos artigos seguintes: "E nulo e de nenhum efeito o casamento contraído com infração de qualquer dos números 1 a VIII do art. 183" (Código Civil, art. 207; "Contrair alguém, sendo casado, novo casamento: Pena - reclusão de 2 a 6 anos" (Código Penal, art. 235). Leges minus quam perfectae são aquelas cuja violação não acarreta a nulidade ou a anulabilidade do ato, mas ocasiona outras penalidades. Exemplo: a norma do art. 183 do Código Civil: "Não podem casar: (...) XIII - o viúvo ou a viúva que tiver filhos do cônjuge falecido, enquanto não fizer o inven tário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros". A violação dessa norma não tem como sanção a nulidade do casamento, mas outra penalidade: a perda do direito ao usufruto dos bens do filho: "O viúvo ou a viúva, com filhos de cônjuge falecido, que se casar antes de fazer o inventário do casal e der partilha aos herdeiros, perderá Leis mais que perfeitas Leis perfeitas Leis menos que perfeitas 344 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 345 o direito ao usufruto dos bens dos mesmos filhos" (Código Civil, art. 225). 3.4 Quanto à natureza de suas disposições Quanto à natureza de suas disposições, as leis podem ser divididas em substantivas e adjetivas. Essa divisão é atribuída a Jeremias Bentham e, por seu caráter analógico e impreciso, tem sido criticada especialmente pelos processualistas.35 Leis substantivas são as que definem relações jurídicas ou criam direitos. E o caso das disposições do Código Civil, Comercial ou Penal. Leis adjetivas ou processuais - que abrangem o Direito Judiciário - são as que regulam o modo ou o processo para Leis fazer cumprir as leis substantivas. Como diz João Mendes, "leis substantivas são aquelas que podem existir, ou ao menos ser concebidas, sem outras leis que tendam a fazêlas observar; leis adjetivas são aquelas que não podem existir ou ser concebidas, sem outras leis que elas tendem a fazer observar".36 3.5 Quanto à sua aplicação Devemos, ainda, fazer referência a outras classificações de importância menor, mas de inegável interesse prático. Quanto à sua aplicabilidade, as normas jurídicas dividem-se em: 1. normas auto-aplicáveis (auto-executáveis, bastantes em si, selfexecuting, self-acting, selfenforcing); 2. normas dependentes de complementação (dependentes de regulamento, não bastantes em si) etc. As primeiras apresentam todos os requisitos necessários para sua vigência imediata ou no prazo legal. As segundas exigem, para sua vigência, a criação de novas normas complementares ou regulamentares. Essa exigência pode ser expressa ou implícita, quando resulta do sentido da disposição. Em regra, as leis são auto-aplicáveis. Entram em vigor, sem outras formalidades, na data de sua publicação ou dentro de prazos estabelecidos. As leis dependentes de complementação constituem exceção. Por isso a exigência da norma complementar deve ser expressa ou resultar inequivocamente do sentido da disposição. Além disso, se apenas uma parte da lei depende de regulamento ou outra forma de complementação, somente esta parte deixará de ser auto-aplicável. São duas as espécies típicas de normas dependentes de complementação. Primeiro, as "leis ordinárias" que exigem regulamento próprio. Segundo, certos preceitos constitucionais de caráter programático, como: - o que estabelece que é direito dos trabalhadores a "participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei" (art. 7.°, XI); - o que declara que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" (art. 5.°, XXXII). 3.6 Quanto à sistematização Quanto à sua sistematização, as leis podem ser: - esparsas ou extravagantes; - codificadas; - consolidadas. Leis esparsas são as editadas isoladamente. Exemplo: a lei de falência, a do inquilinato, a do salário-família etc. Os antigos as chamavam "leis esparsas extravagantes". As leis codificadas ou Códigos constituem um corpo orgânico de normas sobre determinado campo do direito. É o caso do Código Civil, Comercial, Penal etc. Essa é a tendência dominante no direito moderno, desde o aparecimento do famoso Código de Napoleão, em Normas auto-aplicáveis Leis substantivas Normas dependentes de complementação adjetivas (35) (36) "Bentham, eminentíssimo jurisconsulto inglês, dominado pela mania de atacar a técnica do Direito Romano e de criar uma técnica para o Direito inglês, dividiu as leis em: `substantivas e adjetivas'. Este último nome, diz ele, é o nome que eu daria às leis do processo, a fim de poder determinar, por uma palavra correlativa, as leis principais, das quais há muitas vezes necessidade de distinguir aquelas. As leis do processo não podem existir, nem mesmo ser concebidas sem estas outras leis que elas tendem a fazer observar. Quem entende o sentido destas duas palavras em gramática não pode deixar de entender o sentido que eu quereria dar-lhes em jurisprudência." "À analogia de Bentham tem sido dada uma extensão tão absurda e tão cheia de inconvenientes, que os processualistas em geral a têm julgado pouco acertada." João Mendes Jr., Direito Judiciário Brasileiro, Ed. Freitas Bastos, 1940, p. 22 e ss. Idem, p. 23. Leis Códigos 346 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 347 1804." Note-se que o Código não é um conjunto de leis, mas uma lei única, que dispõe de modo sistemático sobre um ramo ou setor do direito. A Consolidação reúne, de modo sistemático, leis esparsas já existentes e em vigor, sobre determinada matéria. Consolidação Os exemplos mais significativos no direito brasi leiro são a Consolidação das Leis do Trabalho baixada pelo Dec.-lei 5.452, de 1.° de maio de 1943, ainda em vigor, e a famosa Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, antes da promulgação do Código Civil. 3.7 Quanto à esfera do poder público Em virtude da estrutura política e administrativa do Brasil, que atribui competência normativa própria à União, aos Estados e aos Municípios, as leis e as demais normas jurídicas podem ser, paralelamente, de três espécies: 1. normas federais; 2. normas estaduais; 3. normas municipais. Essa classificação das normas jurídicas tem seu fundamento na esfera do poder público que as estatui. A Constituição Federal e suas leis complementares, as leis, códigos, medidas provisórias e decretos federais, editados pela União ou qualquer de seus órgãos, estão no primeiro caso. A Constituição dos Estados e respectivas leis complementares, as leis, códigos e decretos estaduais são da segunda espécie. As leis orgânicas dos municípios, leis municipais, decretos, posturas e demais normas estatuídas pelos órgãos municipais pertencem ao terceiro grupo. A competência normativa de cada uma dessas esferas está fixada pela Constituição Federal nos arts. 22, 23, 24, 25, 29 e 30. 1371 Sobre o famoso debate entre a Escola Histórica (Savigny) e a chamada "Escola Filosófica" (Thibault) a propósito dos inconvenientes e vantagens das codificações, ver Vicente Ráo, ob. cit., n. 208, p. 326. 4. Os costumes jurídicos: denominações, conceito, importância, espécies 4.1 Conceito O costume é a mais antiga das fontes do direito. Nos povos primitivos inexistem normas jurídicas escritas. O comportamento tradicional regula a conduta do Fonte membros da comunidade e constitui a fonte primitiva substancial do direito. Com o decurso do tempo, as leis escritas passam a ter predominância na formulação do direito, mas o costume mantém-se, em todos os povos, e constitui em todos uma das fontes formais do direito. Costume jurídico, direito costumeiro ou direito consuetudinário são suas denominações usuais. Os romanos, além do termo consuetudo (costume), empregavam as expressões mores, para indicar os costumes em geral, e mores maiorum, para designar os costumes dos antepassados. É também chamado "direito não escrito" (jus non scriptum), em oposição à lei, que é sempre direito escrito. Essa denominação, válida para os tempos antigos em que os costumes se transmitiam apenas oralmente de geração em geração, não é hoje inteiramente correta. Pois o costume atualmente é, como freqüência, formulado por escrito em repertórios e consolidações que se fazem para sua fixação e provas." Com maior propriedade, podemos dizer que o direito "consuetudinário" se opõe não ao direito escrito, mas ao direito "legislado". Costume jurídico, direito costumeiro ou direito consuetudinário, define Coviello, é a norma jurídica que resulta de uma prática geral constante e prolongada, observada com a ,convicção de que é juridicamente obrigatória. E a longa, inveterata, diuturna, consuetudo dos romanos, relativa a determinada situação de fato e observada com a convicção de corresponder a, uma necessidade jurídica. 4.2 Elementos Para que um uso qualquer se transforme num costume jurídico são necessárias duas condições, que são os elementos constitutivos do costume: a) ele precisa ser praticado por longo tempo, de forma constante e geral, aplicando-se a todos os casos compreendidos naquela espécie 38) Ver, por exemplo, "Assentamentos de Usos e Costumes da Praça do Estado de São Paulo", feito pela Junta Comercial. 1 Denominações Leis federais Leis estaduais Conceito Leis municipais 1 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO (longa, inveterata, diuturna, consuetudo); é o elemento externo, ou seja, o uso; b) é necessária a convicção de que ele é obrigatório, de que constitui uma regra ou preceito correspondente a uma necessidade jurídica (opinio necessitatis ou opinio juris), é o elemento interno ou psicológico. O costume apresenta-se, pois, como verdadeira norma jurídica, cuja principal característica é ser criada espontaneamente pela consciência comum do povo e não editada pelo poder público. Não se confunde, assim, com outras práticas ou usos coletivos, de natureza religiosa, moral ou social, que são seguidos por simples respeito à tradição ou por outras razões de conveniência, mas sem a convicção de serem juridicamente obrigatórios. A importância do costume é, antes de tudo, de caráter histórico, já que foi ele a fonte originária do direito. Como vimos, nos povos primitivos o direito é apenas costumeiro. A lei escrita representa uma fase posterior, mais evoluída da formação jurídica. Existem, entretanto, ainda hoje, países de direito predominantemente costumeiro, como a Inglaterra, os Estados Unidos e outros, vinculados à tradição britânica do common law. E, até mesmo nos países de direito predominantemente legislado, o costume tem inegável importância jurídica. Sua eficácia varia, entretanto, conforme o ramo do direito que se considere. 4.3 Aplicações do costume É maior no Direito Comercial, em que a própria lei determina a aplicação dos "usos e costumes" comerciais, embora, segundo o art. 2.° do Regulamento 737, só se possa invocar o costume em terceiro lugar, ou seja, depois de se recorrer à lei comercial e à lei civil. Os "usos e costumes" comerciais mais comuns numa determinada praça são periodicamente reunidos em compilações, pelas Juntas Comerciais, e a seguir publicados. Essas compilações e publicações, todavia, não passam de verificação dos costumes já existentes. Não têm caráter impositivo. A publicação tem por finalidade apenas informar e orientar os interessados sobre os costumes vigentes em determinada praça. No Direito Penal moderno o costume não tem acolhida como fonte normativa. Vigora nesse direito o princípio de que não haverá nenhum crime e nenhuma pena, sem lei preexistente (nullum crimen, nulla poena, penal sine lege). Ninguém poderá ser condenado crimi nalmente com fundamento no costume. É esse um preceito fundamental do Direito Penal que exprime uma garantia dos direitos fundamentais do homem: o seu direito à vida, à liberdade, à integridade física. É o que preceitua o art. 1.° do Código Penal: "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal". No Direito Internacional as normas costumeiras têm maior importância, determinada pela inexistência de um Estado mundial, capaz de legislar. O costume, juntamente com os tratados ou convenções internacionais, é fonte formal ou positiva dos direitos e obrigações regulados pelo direito internacional. O costume em Direito Internacional Público, ensina Hildebrando Accioly, é "o conjunto de normas consagradas por longo uso e observadas nas relações internacionais como obrigatórias. Sua obrigatoriedade procede de uma prática geral admitida como lei. Supõe, além disso, uma certa reciprocidade no sentido de que, se um Estado contesta a existência de um costume internacional ou se recusa a aplicá-los, os demais Estados não são obrigados a respeitá-los em suas relações como o primeiro". Igualmente, no Direito Administrativo, o costume, a praxe administrativa, a reiteração dos casos servem geralmente de elemento essencial à construção não só da doutrina, mas também da norma jurídica. Merkel, em sua Teoria geral do direito adminis trativo, ressalta a importância do costume na formação do direito administrativo e seu valor como elemento de investigação das fontes jurídicas administrativas. No Direito Civil é raro encontrar um costume com o caráter de norma jurídica. É ele admitido, excepcionalmente, para suprir lacunas ou deficiências da lei. O art. Direito 4.° da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe civil que: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito". Em numerosos textos o Código Civil indica essa suplementação pelos usos e costumes. É o caso por exemplo do art. 1.210: "Não havendo estipulação em contrário, o tempo da locação de prédio urbano regularse-á pelos usos locais". E o art. 1.218, referindo-se ao contrato de locação de serviço, dispõe: "Não se tendo estipulado, nem chegando a acordo as partes, fixar-se-á por arbitra Direito Norma jurídica Direito internacional Importância Direito administrativo Direito Comercial 350 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 351 mento a retribuição, segundo o costume do lugar, o tempo de serviço • sua qualidade". 4.4 Importância do costume Na avaliação da "importância do costume" encontramos, entre as concepções jurídicas, duas correntes opostas. Duas A primeira, representada por aqueles que, como correntes Savigny e Joseph De Maistre, acentuam a imporextremadas tância do costume e pretendem reduzir todo o direito ao costume jurídico. A segunda, por aqueles que praticamente negam valor ao costume, como o fizeram os enciclopedistas e os voluntaristas. Para esses, a lei é um valor absoluto, onipotente e a única fonte das normas jurídicas. São posições extremadas, que exageram o papel de uma ou outra fonte de direito. Na realidade, cada uma delas tem sua função própria. Com referência à lei, o costume oferece vantagens e desvantagens. A grande vantagem do costume sobre a lei é a sua adaptação à realidade: o costume corresponde sempre a vida Vantagens real, senão ele desaparece. Diz Ihering que o costume faz uma "unidade com a vida social". As leis permanecem rígidas, enquanto a realidade social evolui. Por isso as normas perdem, muitas vezes, sua correspondência com a realidade. Nesse aspecto o costume apresenta grande superioridade sobre a lei, pois ele é dinâmico e mutável. Tem ele, também, seus inconvenientes. E o maior deles é representado por sua incerteza e obscuridade. Desvantagens Enquanto a lei fixa normas em termos definidos, o costume não tem uma formulação escrita, fixa • clara. Presta-se, por isso, a maiores dúvidas e insegurança. Em relação à lei, o costume pode ser das seguintes espécies: a) segundo a lei (secundum legem); b) na falta da lei (praeter legem); c) contra a lei (contra legem). a) O costume é secundum legem quando a lei a ele se reporta expressamente e reconhece sua obrigatoriedade. "Secundum Por exemplo: o art. 1.192, II, do Código Civil legem" dispõe: "O locatário é obrigado: (...) II - a pagar pontualmente o aluguel nos prazos ajustados e, em falta de ajuste, segundo o costume do lugar". Vemos, nesse caso, que • preceito consuetudinário, não contido na lei, é por ela reconhecido e admitido com eficácia obrigatória. Muitos autores incluem, entre os costumes secundum legem, o costume interpretativo, pois, como diz o Código de Direito Canônico, "o costume é o melhor intérprete da lei". b) O costume é praeter legem quando intervém na falta ou na omissão da lei. Tem caráter supletivo. A lei deixa lacunas que são preenchidas pelo costume, apesar de não se referir a ele expressamente. E o que dispõe o art. 4.° da Lei de Introdução ao Código Civil quando preceitua que o juiz decidirá de acordo com a analogia os "costumes" e os princípios gerais do direito, se a lei for omissa. Por exemplo, a lei silencia quanto ao modo pelo qual o arrendatário deve tratar a propriedade arrendada; devemos então socorrer-nos dos costumes locais. c) O costume é contra legem quando contraria o que dispõe a lei. O que pode ocorrer em dois casos: no desuso (desuetudo), quando o costume simplesmente su- "Contra prime a lei, que fica letra morta, ou no costume ab- legem" rogatório (consuetudo ab-rogatoria), que cria uma nova regra. Os costumes secundum legem e o praeter legem pacificamente pela doutrina, a legislação e a jurisprudência. Quanto à aceitação do costume contra legem, abre-se no campo do direito grande controvérsia. As legislações naturalmente negam a possibilidade de um costume contra a lei escrita. É o caso da disposição geral da Lei de Introdução ao Código Civil: "Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue" (art. 2.°).39 Os autores, entretanto, apresentam soluções diferentes, de acordo com sua orientação doutrinária. De um lado, os de tendência racionalista, legicista ou formalista rejeitam, em geral, a validade de costumes contra legem, por incompatíveis com a função legislativa do Estado e com a regra de que as leis só se revogam por outras leis. De outro lado, as escolas de orientação histórica, sociológica e realista40 sustentam que o costume contra legem, isto é, aquele que "Praeter legem" 1 são aceitos Espécies (39) No mesmo sentido, Código Civil argentino: "El uso, Ia costumbre, o pratica no pueden crear derechos, si no quando Ias leyes se refiran a ellos" (Vicente Ráo, p. 293) (art. 17, in fine); "nelle materie regolati dalle leggi e dai regolamenti gli usi hanno efficacia solo in quanto sono da essi richiamati etc." (Código Civil italiano, art. 8.°). Vicente Ráo, O direito costumeiro, p. 291; no mesmo sentido ver Oliveira, Vianna, Instituições de Direito Público. 352 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO contraria eficazmente a lei escrita, representa, como diz Gaston Morin, a "revolta dos fatos contra os Códigos" e constitui o verdadeiro direito positivo da comunidade. Nesse caso, podemos perguntar com Machado Neto:41 Qual o direito positivo de um povo? A lei, que ninguém segue e os próprios tribunais já não aplicam, ou o costume, que é vivido real e diretamente pelos membros da comunidade jurídica? 5. A jurisprudência. Seu conceito e importância como fonte do direito 5.1 Conceito A palavra "jurisprudência" pode ter, na linguagem jurídica, três significações diferentes: a) pode indicar a "Ciência do Direito", em sentido estrito, também denominada "Dogmática Jurídica" ou "Jurisprudência"; b) pode referir-se ao conjunto de sentenças dos Tribunais, em sentido amplo, e abranger tanto a jurisprudência uniforme como a contraditória; c) em sentido estrito, "jurisprudência" é apenas o conjunto de sentenças uniformes; nesse sentido, falamos em "firmar jurisprudência" ou "contrariar a jurisprudência". É nesta última acepção que se coloca o papel da jurisprudência como fonte do direito. Podemos por isso dizer que jurisprudência, como fonte formal do direito positivo, é o conjunto uniforme e constante das decisões judiciais sobre casos semelhantes. Uma decisão isolada não constitui jurisprudência, lembra Carlos Maximiliano; é mister que se repita e sem variações de fundo.` Jurisprudência não se confunde com sentença. Sentença é uma decisão individualizada, aplicável a um caso concreto. Enquanto a jurisprudência, como fonte do direito, constitui uma norma geral, aplicável a todos os casos idênticos. '41 Machado Neto, Curso de Introdução à Ciência do Direito, p. 293. 42' Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, n. 198, p. 226. ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 353 5.2 A formação da jurisprudência Da mesma forma que o costume se forma pela repetição de fatos individuais, a jurisprudência se constitui através de sentenças idênticas. Daí a aproximação que Costume muitos autores fazem entre a jurisprudência e o costume. Alguns chegam mesmo a denominá-la "costume judiciário", em oposição ao "costume popular". O caráter consuetudinário da jurisprudência foi ressaltado por Savigny, no seu Sistema do Direito Romano. Nesse sentido, a jurisprudência é obrigatória na medida em que se reveste das características do costume judiciário. E isso se dá com a aceitação comum, reiterada e pacífica, por parte dos tribunais, dos preceitos consubstanciados em decisões idênticas. Há, todavia, certas características que permitem distinguir, com clareza, o costume da jurisprudência: a) O costume é criação da consciência co- Costume e mum do povo e pode originar-se de qualquer setor jurisprudência da coletividade. A jurisprudência é obra exclusiva de um setor apenas da comunidade: o dos juízes e tribunais. b) O costume nasce naturalmente, como decorrência do exercício de direitos e obrigações. A jurisprudência decorre de decisões sobre casos em conflito. c) O costume é espontâneo; a jurisprudência é reflexiva: provém do trabalho de reflexão dos julgadores, que recorrem a noções técnicas e a métodos peculiares de investigação e raciocínio. A jurisprudência, como a lei, traça uma norma jurídica geral e obrigatória. Mas se distingue da lei por sua maior flexibilidade e maleabilidade. Graças a essa fle- Jurisprudência xibilidade, a jurisprudência desempenha importan- e lei te papel no esclarecimento dos conceitos gerais da norma legislativa e na sua adequação às peculiaridades dos casos concretos. O juiz não é o aplicador mecânico das regras legais, mas um verdadeiro criador de direito vivo. Já os antigos observavam que ` o juiz é justiça viva", em comparação com a lei, que é a "justiça inanimada". 13 43' "Judex est justum animatum", S. Tomás, II II, 58. 1 ad 5, Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro 5.°, Lect. VI. "A regra abstrata e rígida, observou Dei Vecchio, não pode ter uma correspondência imediata com a complexidade das relações humanas, sem que haja um trabalho de adaptação que constitui precisamente a tarefa do juiz. Todo jurista sabe que nada há de mecânico nesta adaptação. Trata-se de uma nova elaboração. Quase uma nova criação da regra a aplicar. E isso permite que se vejam, muitas vezes, no momento da judiciário Jurisprudência e sentença 354 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 355 Em algumas matérias, a jurisprudência antecipa-se ao trabalho legislativo, chegando mesmo a abalar conceitos tradicionais. É que ela, como diz Planiol, não se alimenta de abstrações; forma- se, ao contrário, no meio dos casos concretos e das realidades. Foi o que sucedeu, por exemplo, no tocante à retomada do imóvel pelo compromissário comprador. Essa retomada começou a ser uniformemente admitida por juízes e tribunais e afinal foi consagrada em texto expresso, pela Lei 1.300, de 28.12.1950. Outro exemplo: antes mesmo da promulgação da lei ... que estabeleceu a obrigatoriedade da correção monetária para os débitos judiciais, os Tribunais já determinavam sua aplicação. Na França, lembra Carlos Maximiliano,44 o legislador inspirouse nas inovações introduzidas pela jurisprudência, nos casos seguintes: a) seguro de vida, sobretudo quanto ao abuso de direito dos seguradores; b) obrigações naturais, mormente quanto ao dever do pai de garantir o bem-estar e a independência econômica do filho que se casa; c) enriquecimento sem causa, especialmente ampliando o alcance da ação in rem verso a todas as hipóteses em que um terceiro obtivesse vantagem de sacrifício ou esforço pessoal do autor; d) condições ilícitas, atenuando os efeitos da diferença, fixada por lei, a esse respeito, entre atos a título oneroso e atos a título gratuito, e desenvolvimento a teoria da causa impulsiva e determinante; e) abuso de direito, além dos casos de seguro de vida, admitindo outros, com referência às relações jurídicas entre vizinhos, e entre patrão e empregado, bem como ao uso de chicana forense; f) aplicação do preceito - "a respeito de móveis, a posse tem o valor de título"; a jurisprudência vai reduzindo ao mínimo o valor desta regra, deixa amplo arbítrio ao juiz para decidir se a posse é equívoca e atribui em prol do possuidor presunção simples, isto é, admite qualquer prova em contrário. 5.3 Importância da jurisprudência como fonte do direito A jurisprudência firma-se e se impõe de forma semelhante ao costume: pela sua repetição longa, diuturna, uniforme e constante e pela opinio juris et necessitatis. Embora reconhecida a importância da jurisprudência na formação do direito, divergem os autores e os sistemas jurídicos contemporâneos na apreciação do seu valor. Este é considerável para o direito anglosaxão, que é um direito costumeiro. No sistema latino, de predominância legislativa, seu papel é menos significativo. Entendem alguns que, como fonte eficaz do direito, esse papel é praticamente nulo: "Por mais reiterada que seja, a jurisprudência não constitui norma imperativa como fonte normal do direito positivo", afirma Washington de Barros Monteiro (v. Revista Forense 76/204). Nenhum juiz está obrigado a decidir em determinado caso concreto de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, por mais firmada que seja. E nada impede que o mesmo Tribunal modifique sua jurisprudência, orientando-a em sentido diverso do que vinha sendo seguido até então. No mesmo sentido, Vicente Ráo assim sintetiza a doutrina "geralmente aceita dentro da ordem jurídica contemporânea: a lei surge como fonte direta e imediata do direito, seguindo-selhe, tãosomente, com caráter mediato e direto, o costume. Além dessas, nenhuma outra fonte pode admitir-se, nem mesmo com caráter supletivo. E também se exclui a jurisprudência, isto é, a 'auctoritas rerum similiter judicatarum', porque, por maior que seja a influência dos precedentes judiciais, jamais eles adquirem o valor de uma norma obrigatória e universal, podendo, quando muito, propiciar reformas ou inovações legislativas, como também pode fazer a ciência jurídica" . 41 Em posição oposta coloca-se a chamada "Escola do Direito Justo" de H. Kantorowics,46 que sustenta, em nome da justiça e da elaboração social do direito, a validade da jurisprudência, até mesmo contrária ao texto da lei. Qual a solução objetiva do problema, diante do direito brasileiro atual? Tem nossa justiça alguma competência normativa, no sentido de estabelecer normas gerais e permanentes? É evidente que nossos juízes não têm, como os antigos magistrados romanos, o poder de baixar "Editos" fixando, ao serem empossados, as regras a serem observadas nos assuntos de sua competência.47 Entretanto, os Tribunais têm poderes para editar normas sobre (45) Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, n. 192, p. 303. (46) V. Carlos Maximiliano, ob. cit., n. 76, p. 99. § 7. (47) V. Direito Romano, A. Correia e Sciascia, vol. 1, (44) aplicação, novos aspectos da regra que não haviam sido previstos pelo legislador. Com freqüência, sobre a base da mesma fórmula legal, realizase uma grande evolução de concepções e de instituições jurídicas. Há fórmulas que, embora pareçam permanecer sempre idênticas, na realidade, com o passar o tempo, acabam por adquirir um sentido completamente oposto ao que elas tinham no começo" ("Les problèmes des sources du droit positif, in Annuaire de l'Institut Internacional de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, 1934/1935, Paris : Sirey, p. 30). Ob. cit., n. 16, p. 26 e 27. 1 356 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO determinados assuntos, tais como a elaboração de seus regimentos internos e outras matérias indicadas no art. 96 da Constituição Federal. O que constitui, sem dúvida, uma competência normativa. No tocante à jurisprudência propriamente dita, isto é, aos julgados uniformes dos Tribunais, é incontestável que de fato eles atuam como norma aplicável aos demais casos, enquanto não houver nova lei ou modificação na jurisprudência. O modo de interpretar e aplicar a norma jurídica sempre lhe afeta a extensão e o alcance, reconhece Vicente Ráo, "de tal sorte que, embora subsidiariamente, a jurisprudência não deixa de participar no fenômeno de produção do direito normativo".48 O reconhecimento da validade e importância normativa da jurisprudência pode ser demonstrado pela criação da "Súmula da Jurisprudência Predominante", do Supremo Tribunal Federal, que é publicada oficialmente, como Anexo ao Regimento daquele Tribunal. Nessa "Súmula", que vigora a partir de 1964, o Supremo Tribunal Federal declara predominante e firme a jurisprudência ali resumida. Não se exclui, porém, a possibilidade de alteração do entendimento da maioria e, sempre que o plenário decidir em contrário ao que constar da "Súmula", será cancelado o enunciado correspondente, até que de novo se firme a jurisprudência no mesmo ou em outro sentido. A "Súmula" tem relevantes efeitos processuais no acolhimento de determinados recursos, especificados no Regimento Interno no Supremo Tribunal Federal. Sua finalidade é não só proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho do advogado e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes. É, assim, impossível negar à jurisprudência o valor da verdadeira fonte jurídica. E o Supremo Tribunal Federal o confirma ao admitir que "a invariável seqüência dos julgamentos tornase como que o suplemento da própria legislação" (RT 199/608). Reconhecendo esse papel da jurisprudência e a importância de sua unificação para a ordem jurídica, as legislações estabelecem normas processuais e de organização judiciária destinadas a promover a unificação da jurisprudência. 6. A doutrina como fonte do direito. Conceito e importância Como fontes formais do direito, citam-se comumente: a lei, o costume, a jurisprudência e a doutrina. Nos itens anteriores examinamos as três primeiras. Resta-nos considerar a doutrina. Como conceituá-la? 1111 Oh. cit., n. 195, p. 306. ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 357 Segundo a lição de Garcia Maynez49 podemos dizer que doutrina é o estudo de caráter científico que os juristas realizam a respeito do direito, seja com o propósito puramente especulativo de conhecimento e sistematização, seja com a finalidade prática de interpretar as normas jurídicas para sua exata aplicação. Constituirá a doutrina, realmente, uma fonte formal do direito? Não, responde A. Torré: "É costume enumerar-se a doutrina entre as fontes formais do direito, mas trata-se de um erro, porque a doutrina, rigorosamente falando, é Doutrina uma fonte material e não formal do direito" 50 como fonte Essa questão não pode, entretanto, ser resol- de direito vida em termos absolutos e universais. Houve épocas e sistemas jurídicos em que a doutrina exerceu incontestável função de fonte formal do direito. Em Roma, no período de Adriano, o Imperador deu força obrigatória a opinião de certos jurisconsultos, quando fossem concordantes, isto é, à communis Exemplos opinio doctorum. Nem toda a doutrina possuía históricos força normativa, mas uma parte dela: a opinião de determinados jurisconsultos, quando concordantes, e durante certo tempo. Posteriormente, para resolver os casos de controvérsia entre os autores, foi editada a chamada "Lei de citações" (ano 426, d.C.), que atribuiu obrigatoriedade às opiniões de Papiniano, Gayo, Paulo, Ulpiano e Modestino. Nos casos de divergência, devia seguir-se a opinião da maioria. E, em última hipótese, a de Papiniano. Essa lei foi revogada no século VI pelo Imperador Justiniano. De forma semelhante, algumas legislações medievais e até mesmo modernas admitiram expressamente como fonte subsidiária da lei a obra de alguns autores. Assim dispunham, por exemplo, as Ordenações Afonsinas, em relação às opiniões de Bartolo e Acúrsio. Atualmente, as legislações não contêm disposição semelhante. Mas, de outra parte, a doutrina vem ganhando importância cada vez maior na formação do direito, seja através das construções teóricas e elaborações doutrinárias, que atuam sobre a legislação e a jurisprudência, seja pela investigação e descoberta de novas fontes, como usos sociais obrigatórios e a multiplicidade de ordenamentos jurídicos no dinamismo real das sociedades modernas. É na obra dos juristas que se encontram a origem de inúmeras disposições de lei e a inspi Garcia Maynez, /ntroducción ai estudio dei derecho. México, Ed. Porrua, 1949, p. 86. 10 A. Torré, /ntroducción ai derecho, p. 335. 358 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ração de julgados que inovam e aperfeiçoam o direito, na sua perpétua procura da justiça. E o caso das teorias da imprevisão, do abuso de direito, do direito social e de muitas outras que tiveram papel decisivo nas transformações do direito moderno. Gastão Morin desenvolveu esse tema em estudo apresentado ao Congresso do Instituto Internacional de Filosofia de Direito e de Sociologia Jurídica, dedicado ao "Problema das fontes do direito positivo"." Nesse trabalho, o autor aprofundou aspectos da contribuição da doutrina para a elaboração do direito positivo e a confirmação de seu papel como fonte do direito. 7. O problema das fontes não-estatais Ao lado das normas jurídicas elaboradas pelo Estado, existem outras normas, efetivamente obrigatórias e exigíveis, de origem nãoestatal. São elaboradas pelos diferentes grupos sociais e destinadas a reger a vida interna desses grupos. Na Primeira e na Quinta Parte deste livro examinamos essa matéria, sob aspectos diferentes. Esses ordenamentos jurídicos, elaborados por diferentes grupos sociais e não pelo Estado, constituem também fontes do direito, embora com caráter subsidiário e, em regra, desde que não colidam com a legislação em vigor. Estão nesse caso, entre outros: a) o direito estatutário; b) o direito esportivo; c) o direito social nas relações de trabalho; d) o direito religioso ou eclesiástico; e) o direito costumeiro nas relações internacionais. a) Direito estatutário: É constituído pelos estatutos, regulamentos, instruções e outras normas elaboradas por grupos ou instituições sociais, como direito autônomo, para regular o funcionamento de seus órgãos em sua atividade interna. É o caso do direito interno, das associações, empresas, fundações, universidades etc .52 (sn Gaston Morin, "Le rôle de Ia doctrine dans I'élaboration du droit positif", em Annuaire de l'Institut Internacional de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, Paris, Sirey, 1934, p. 64 e ss. (52) Sobre o direito estatutário, v. Gurvitch, "Théorie pluraliste des sources du droit positif, in Le Problème des Sources da Droit Positif, Paris, Sirey, 1934; V. Ráo, O direito e a vida dos direitos, 1.° volume, n. 213; A. Legal et B. de Ia Gressaye, Le pouvoir disciplinaire dons les institutions privées, Paris, Sirey, 1938; Luiz José de Mesquita, Direito disciplinar do trabalho, Ed. Saraiva, 1950. ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 359 b) Direito esportivo: É o conjunto das normas que regulam a atividade esportiva, elaborados pelas próprias organizações do esporte. Esse direito se diversifica de conformidade com os diversos ramos do esporte: futebol, atletismo, natação, remo etc. Em alguns setores, tal sistema normativo sempre com força abrigatória na respectiva comunidade - consta de costumes ou de preceitos escritos expressa mente aprovados pelas organizações competentes. Com freqüência, tais normas apresentam-se sistematizadas em Códigos e sua vigência garantida pela atuação de Tribunais Esportivos, incumbidos da apli cação de penalidades aos transgressores. Na literatura jurídica existem hoje diversos estudos dedicados ao direito esportivo. E, por iniciativa da Universidade Nacional do México, realizou-se naquele país, em 1968, o "Primeiro Congresso Internacional de Direito do Esporte".53 c) Direito social do trabalho: Também chamado direito operário, é constituído pelo conjunto de normas que regulam as relações entre empregados e empregadores e as condições de trabalho. Esse direito foi, em grande parte, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, elaborado pela próprias organizações representativas dos interessados. As associações ou sindicatos de empregados e empregadores, através de acordos e contratos coletivos, foram estabelecendo normas que passaram a regular, com força obrigatória, a relação de emprego e as condições de trabalho em cada categoria profissional. Foram os próprios interessados, e não os Estados, que elaboraram essas normas. Como observa Gurvitch, o direito do trabalho é caracterizado, antes de tudo, pelo papel crescente do direito extra-estatal, que emana diretamente dos grupos representativos dos interessados e de seus acordos." No Brasil o processo foi diferente. Em sua maior parte o direito do trabalho foi outorgado pelo Poder Público. Mas como demonstra Oliveira Vianna, no estudo sobre "Instituições Políticas Brasileiras", temos também a ocorrência de um direito social operário em muitos setores de nossa realidade social .55 E (53) (54) (55) Primer Congresso Internacional de Derecho del Deporte, México, DF, 1968. V. Gurvitch, Le temps présent et l'idée du droit social, Paris, J. Vrin, 1932, cap. 1.°, p. 13 e ss. "Outro setor costumeiro, cujo descobrimento foi para mim uma verdadeira surpresa, é o do nosso direito social operário. Dei com esta camada, ou esta subestrutura jurídica popular, quando tive que presidir, pela natureza das funções que exercia no Ministério do Trabalho, algumas das inúmeras comissões constituídas para a regulamentação dos horários de trabalho das nossas diversas atividades profissionais: e o que deparamos, os meus companheiros e eu, foi todo um complexo de normas e regras, militante, vivaz, 360 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 361 d) Direito religioso: A Igreja Católica e as demais comunidades, protestantes, israelitas e outras, estão constituídas com regimes jurídicos próprios, que têm por objeto fundamental a matéria espiritual. O sistema de normas que rege a organização e funcionamento dessas comunidades, assim como as relações com os respectivos fiéis, constitui o direito religioso. Este, muitas vezes, com no caso do Direito Canônico, é sistematizado e codificado. Esse direito é elaborado não pelo Estado, mas pelas diferentes comunidades religiosas e constitui mais um caso representativo do direito não-estatal. Como escreveu Lacerda de Almeida, "assim como as associações, por mais variada que seja a sua organização, objeto e fins, estão dentro da esfera do Direito Comum, o que compadece com o regime de todas; assim também a Igreja, apesar de seu caráter soberano, apesar de sua constituição especial, de seus Cânones e Direito Privado, pode com a sua constituição, seu Direito Privado e Cânones estar sujeita ao Direito Comum, sem que o Estado veja nesse Direito particular dela, no Direito Canônico, outra coisa mais que o Direito social da Igreja, sua economia interna, como associação, seu estatuto, o modo de ser da coletividade Igreja. Deste ponto de vista será fácil solver dificuldades que se possam afigurar ao julgador ou intérprete em fase dos dois Direitos"_56 e) Direito costumeiro nas relações internacionais: O direito constituído pelos usos e costumes internacionais, com força obrigatória, bem como as regras editadas pelos organismos internacionais, constituem outras manifestações de direito não-estatal. Essas regras não estatais têm sido amplamente estudadas por juristas e sociólogos como Geny, Gurvitch e outros e interessam de perto à Sociologia Jurídica e ao Direito Moderno. Gurvitch observa que esse direito não-estatal pode existir dentro do Estado, ao lado do Estado e acima do Estado. Dentro do Estado, como o direito estatuário ou o direito operário. Ao lado do Estado, como o direito canônico, que dispõe sobre matéria espiritual, enquanto • Estado regula a atividade temporal. Acima do Estado, como os usos • costumes internacionais. Outros autores, entretanto, não admitem que se denomine "direito" a esses ordenamentos jurídicos não-estatais. Defendendo a tese do "monismo jurídico", negam Monismo e aos ordenamentos não elaborados pelo Estado plurarismo qualquer caráter jurídico. Afirmam que só há um jurídico ordenamento jurídico: o estatal. Recusando o pluralismo jurídico, Kelsen, Laband, Jellinek entre outros, admitem apenas o direito elaborado pelo Estado. Todavia, embora as normas elaboradas ou aprovadas formalizadamente pelos órgãos do Poder Público constituam o grau mais elevado e mais perfeito de formação do direito positivo, seria contrário ao espírito científico considerar corno inexistentes as demais formações jurídicas que surgem no seio da sociedade, têm vigência efetiva e se desenvolvem continuamente ao lado das leis do Estado. Mesmo porque, como observa De] Vecchio, as diferentes manifestações do direito ligam-se todos a essa fonte única, essencial e permanente, que é o espírito humano. 8. As fontes materiais: a realidade social e os valores jurídicos Ao lado das fontes formais, que são os modos de expressão do direito, devemos distinguir as fontes materiais, que geram o conteúdo ou a matéria do direito. Conceito Fontes materiais, diz A. Torré, são os elementos de fonte • fatores que determinam o conteúdo das normas material jurídicas. E Garcia Maynez explica graficamente a relação entre as fontes materiais e as formais, dizendo que estas constituem o canal por onde correm e se manifestam aquelas." Nesse sentido, duas são as fontes principais, que fornecem, ao legislador e ao aplicador da lei, os elementos relativos à matéria ou conteúdo das normas jurídicas. São elas: a) a realidade social ou os dados de fato, que contribuem para a formação do direito (elemento sociológico); b) os valores, que o direito procura realizar, sintetizados no conceito de justiça (elemento axiológico). `I Garcia Maynez, Introducción ai estudio dei derecho, p. 66. (56) estuante de vida e sangue, objetivado em uso, tradições, praxes, costumes e mesmo instituições administrativas oficiosas. Era todo um vasto sistema, que regulava as atividades das obscuras massas do trabalho, a vida produtiva de milhões de brasileiros, mas cuja existência os nossos legisladores não haviam sequer pressuposto. Sistema orgânico de normas fluidas, ainda não cristalizadas ossificadas em códigos; mas, todas provindas da capacidade criadora e da espontaneidade organizadora do nosso próprio povo-massa, na sua mais autêntica expressão", Oliveira Vianna, Instituições políticas brasileiras, Ed. José Olympio, 1949, 1.° vol., Prefácio, p. 15. Lacerda de Almeida, Das pessoas jurídicas, Rio, Ed. Rev. dos Tribunais, 1905, § 14, p. 127. 1 362 INTRODUÇÃO À CIÊNCIA DO DIREITO ESPÉCIES E FONTES DA NORMA JURÍDICA 363 A realidade social é fator básico na elaboração do direito. Ela é representada, em primeiro lugar, pelos problemas econômicos, culturais, políticos, sociais, que o direito deve resolver. E, além disso, pelas condições sociais, de ordem econômica, política, cultural, natural etc. que atuam sobre as soluções adotadas. Entre os chamados "fatores sociais do direito" podemos mencionar: a) O fator econômico: sua influência é poderosa em todo o direito. Algumas correntes, como a do materialismo histórico, entendem mesmo que a organização econômica constitui a "infraestrutura" de toda a sociedade e é capaz de explicar, em última instância, todas as demais manifestações sociais, como o direito, a política, a cultura, a religião, que constituiriam a "superestrutura" da sociedade. Sem discutir, no momento, o caráter absoluto ou não dessa influência, é inegável que o fator econômico atua poderosamente na elaboração e transformações das normas jurídicas. G. Ripert descreve em seu estudo sobre os Aspectos jurídicos do capitalismo moderno58 uma série de modificações no ordenamento jurídico contemporâneo, decorrentes das novas realidades econômicas e, especialmente, da Revolução Industrial, que determinou o aparecimento de novos ramos do direito, como o direito do trabalho, e das sociedades anônimas, da propriedade industrial etc. Como exemplo significativo dessa influência, em relação a um fato isolado, os autores costumam citar o crack da Bolsa de Nova York, em 1929, que provocou o fenômeno conhecido por "Grande Depressão", causando pânico, crises e falências em bancos, comércio, indústrias. Resultado: nova legislação determinando a intervenção do Estado no campo econômico, leis limitando preços, restringindo a liberdade contratual e o exercício do direito de propriedade, num país onde predominavam o liberalismo econômico e a concepção individualista da propriedade. b) O fator religioso: é decisiva sua influência no direito de família e em outros ramos do direito. Houve tempo em que não se distinguiam normas religiosas e normas jurídicas. Em sua História do direito nacional Martins Júnior menciona o direito canônico como um dos três troncos que, ao lado do direito romano e do antigo direito germânico, deram origem ao direito moderno." Ainda hoje essa influência é patente, principalmente na tutela dos direitos da pessoa, nas relações de família e na defesa da moralidade nos costumes sociais. c) O fator moral: está quase sempre ligado ao fator religioso. Difícil seria separar-se a moral dominante no Ocidente da moral cristã. Na sociedade moderna, em que o direito está secularizado, pelo que Ripert denomina de "princípio de laicidade", foi a religião, substituída pela moral, que influi na elaboração, interpretação e aplicação do direito. Aspectos importantes dessa influência foram examinados por Ripert em seu estudo sobre A regra moral nas obrigações civis. d) O fator político: Como negar a influência dos fenômenos políticos do direito? As monarquias e as repúblicas, as ditaduras e as democracias, o absolutismo e o feudalismo são acompanhados de um direito próprio. O liberalismo ditou, em matéria contratual e na de propriedade, os preceitos consagrados no Código de Napoleão. O socialismo soviético modificou todo o direito russo, não só o público, como também o privado. Entre nós, cada modificação política - Revolução de 1930, Golpe de 1937, de 1964, movimento popular por eleições diretas, em 1984 - foi acompanhada de nova Constituição e profundas modificações na legislação comum. e) Os fatores naturais: Muitas vezes uma seca prolongada, a geada, um terremoto ou outros fenômenos naturais provocam legislações destinadas a proteger a produção agrícola ou fixar direitos, dilatando prazos legais e contratuais. Fatores naturais permanentes, como o clima, os meios de navegação, a configuração ou a natureza do território, a raça, a flora, a fauna, constituem elementos importantes na elaboração e aplicação de normas escritas ou do direito costumeiro. Ao lado dos fatores indicados, que representam a "realidade social", fizemos referência aos "valores", isto é, à justiça e aos princípios gerais do direito, como fontes materiais do ordenamento jurídico. O papel da justiça, como fonte material das normas jurídicas, é reconhecido pelo atual direito brasileiro? Não há dúvida de que nossa legislação contém freqüentes referências à justiça, como critério inspirador de nosso direito. A começar pela Constituição, que em diversos pontos refere-se à "dignidade da pessoa humana" (art. 1.°, III); "prevalência dos direitos humanos" (art. 4.°, II); "sociedade livre, justa e solidária" (art. 3.°, 1); `justa indenização" (art. 5.°, XXIV, e art. 184); "igualdade de todos perante a lei" (art. 5.°); "ditames da justiça social" (art. 170) etc. Realidade social (58) Georges Ripert, Aspectos jurídicos do capitalismo moderno, Rio, Ed. Freitas Bastos, 1947. Martins Júnior, História do Direito Nacional: "Quem, do pináculo da civilização hodierna, estende o olhar para o passado procurando ver os grandes marcos da estrada do direito, os monumentos que serviram à edificação do moderna Cidade Jurídica, encontra imediatamente