JOÃO CALVINO
AS INSTITUTAS
Edição especial para estudo e pesquisa
Volume 4
Institution de la Religion Chrestienne – As Institutas ou Instituição da Religião Cristã
Da edição original francesa de 1541 – Conforme publicação feita pela Société les Belles Letres,
Paris, 1936, com a colaboração da Société du Musée historique de la Réformation.
1ª edição em português 2002 – 3.000 exemplares
TRADUÇÃO e LEITURA DE PROVAS
Odayr Olivetti
REVISÃO e NOTAS DE ESTUDO E PESQUISA
Hermisten Maia Pereira da Costa
NOTAS TEOLÓGICAS e FILOSÓFICAS
As notas teológicas e filosóficas do presente volume,
assinaladas com a seqüência de letras (a, b, c...),
foram preparadas por M. Max Dominicé.
FORMATAÇÃO
Rissato
CAPA
Publicação autorizada pelo Conselho Editorial:
Cláudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, Aproniano Wilson de Macedo, Fernando
Hamilton Costa, Mauro Meister, Ricardo Agreste e Sebastião Bueno Olinto
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas
Editor: Cláudio A. Batista Marra
AS INSTITUTAS
CAPÍTULO XII
SOBRE A CEIA DO SENHORa
1. Propósito da instituição da Ceia
[1536] O outro sacramento instituído pelo Senhor e por Ele dado à igreja cristã é
o pão santificado pelo corpo do Senhor Jesus Cristo e o vinho santificado pelo
Seu sangue, como os antigos costumavam falar. E nós lhe chamamos Ceia do
Senhor, ou Eucaristia, porque por ele somos alimentados e fortalecidos espiritualmente pela benignidade do Senhor, e, de nossa parte, Lhe rendemos graças por
Sua bênção.
a. Em vista da importância dos debates sobre este assunto desde as origens da Reforma, uma introdução mais
extensa é necessária aqui.
Lutero, em 1519, publicou um discurso (traduzido para o latim em 1524) sobre o santíssimo sacramento
do corpo de Cristo: o sacramento não é mais a missa, a doutrina da transubstanciação; é a comunhão das almas
com Jesus Cristo em Seus sofrimentos e em Sua glória, um dom de Deus que reclama essencialmente a fé por
parte do comungante (idéia central que encontramos no presente capítulo). Em 1521, o papa promulgou a bula
De cæna Domini, e Lutero escreveu Sobre o Abuso da Missa; em 1529, ele tratou da Santa Ceia em seus dois
catecismos. Em 1530, a Confissão de Augsburgo dizia sobre a Ceia: “O corpo e o sangue do Cristo estão
verdadeiramente presentes nela e são realmente ministrados sob as espécies do pão e do vinho”.
O pensamento dos teólogos franceses se expressa diferentemente. Assim, Farel, em 1525, em sua
Declaração Sumária, capítulo XIX, Sobre a Missa, dizia: “Claro está que ela foi introduzida em lugar da
santa mesa do Senhor... A santa mesa deve ser entendida no sentido de que somos um e que, portanto, não se
deve impedir uns aos outros... Eles tomam e comem de um mesmo pão e bebem de um mesmo cálice,
esperando a triunfal e maravilhosa vinda de Jesus Cristo tal como Ele subiu ao céu”.
Em 1529, a Suma Cristã, de Fr. Lambert d’Avignon, dedicando o capítulo XLVIII à Mesa do Senhor,
dizia: “Na santa mesa do Senhor celebram-se a memória e as ações de graças por Sua preciosa morte e por
todas as bênçãos que por ela recebemos. E também a renovação do necessário testamento da graça divina e
da remissão dos nossos pecados, testamento confirmado por Sua morte.
“E cremos que nessa santa mesa recebemos Seu verdadeiro corpo e Seu verdadeiro sangue, se bem
que não entendemos a Sua presença supersticiosamente e que não queremos ir mais longe na discussão
disso, crendo simplesmente na veracidade da Sua digna Palavra.
4
As Institutas – Edição Especial
“Confessamos também que esta celebração seja, do sacrifício salvífico oferecido uma vez na cruz por
nós, o santo e digno memorial ordenado por nosso Salvador.
“Todavia, de maneira nenhuma nos dispomos a confessar que nesta bendita Ceia haja um novo sacrifício, porque isso não está de acordo com a Escritura Sagrada.
“E visto que o Senhor ordenou que os crentes comunguem desta mesa sob o pão e o vinho, queremos
obedecer a essa ordenança, reconhecendo que é necessário fazê-lo.
“E não queremos conservar no armário este sacramento, nem levá-lo pelas ruas, pois vemos que o
Senhor não mandou fazer isso.
“Além do que acima foi dito, quando recebemos este santo sacramento, com esta participação
testificamos que estamos em harmonia com os outros fiéis membros de Jesus Cristo, participando de um
espírito e por ele vivendo num corpo místico. E que aquele que nessa fé o recebe e o faz dignamente tem a
sua salvação; do contrário, recebe juízo e condenação, como se vê em 1 Coríntios 10 e 11, Mateus 26,
Marcos 14 e Lucas 22.”
O reformador Zwínglio apresentava a Santa Ceia como um simples repasto comemorativo. O colóquio129 de Marburgo, em 1529, foi da maior importância sobre essa questão; Lutero, Melanchton, Bucer e
Zwínglio participaram dele. Um dos artigos finalmente redigidos dizia: “Se bem que não chegamos a um
acordo sobre a questão se o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue do Cristo estão corporalmente presentes
no pão e no vinho, devemos, contudo, pôr em prática uns para com os outros o amor cristão, quanto permita
a consciência de cada um” (outubro de 1529).
Calvino, quando ainda estudava em Bourges, ficou sabendo do referido colóquio pelo Pr. Wolmar,130
que acabava de chegar; o eco das discussões lá travadas o inquietou. Foi depois dessa data que ele começou
a escrever sobre temas teológicos (Contra as calúnias de Westfália, em seus Opúsculos, 1566, p. 1503).
Antoine Marcourt, em sua Declaração131 da Missa e em seu Livro dos Mercadores (1534) dedica
muitas páginas a críticas à missa. Atualmente se diz que ele foi o autor dos letreiros afixados em Paris, até na
porta da câmara do rei, em outubro de 1534. Seguiram-se a eles muitos suplícios que confirmaram em
Calvino seu desejo de compor as Institutas e, mais tarde, de dedicá-las ao rei Francisco I.
Em dezembro de 1534, Farel publicou uma nova edição da Sumária e Breve Declaração, cujo capítulo XIX foi dedicado à missa (é mais criticada a cerimônia externa do que exposto o sentido dogmático do
sacramento nela presente).
Para justificar as novas formas do culto público instituídas em Estrasburgo, Bucer tinha publicado em
1524 Grund und Ursach aus götlicher Schrifft der neüwerungen an dem Nachtmal,132 etc. Calvino não
tinha podido ler essa obra por não saber alemão, mas Wolmar o tinha informado sobre aqueles fatos. Em
1525, traduzindo a Postille133 de Lutero, Bucer tinha exposto sua própria conceituação da Santa Ceia. A
missa foi abolida em Estrasburgo em 20 de fevereiro de 1529. Em 1530, em Augsburgo, Bucer redigiu a
confissão de fé que viria a chamar-se Tetrapolitana: “Cristo verdadeiramente dá seu verdadeiro corpo e
sangue a comer e a beber para nutrição da alma”, concepção adotada por Calvino, (contra o simbolismo
zwingliano e a consubstanciação luterana).
Conforme as prescrições publicadas em Estrasburgo em 1534, após o primeiro sínodo, de junho de
1533, a Santa Ceia deveria ser celebrada ao menos uma vez por mês em cada igreja, com um rodízio para
assegurar a celebração todo domingo ao menos numa igreja.
Em Estrasburgo Calvino teve conhecimento, pelo próprio Bucer, das idéias desenvolvidas por ele em
sua Exposição do Evangelho Segundo Mateus, publicado em alemão em 1536, em francês em 1540. Após
a discussão dos novos “erros”, ele diz (p. 570): “Sendo o pão somente sinal sacramental pelo qual o Senhor
comunica o dom invisível, é recebido pela fé”. Retocando o que dissera em 1536, em 1540 Bucer se expressa nestes termos: “O pão e o vinho são os santos sinais. O corpo e o sangue do Senhor, com a nova aliança,
são as substâncias134 do sacramento e os verdadeiros dons”. Na mesma ocasião, após as conversas de ambos,
Calvino deu ao capítulo Sobre a Ceia a forma que tem no presente volume.
129
Conferência, convenção. NT
O professor Melchior Wolmar († 1561) era um luterano declarado. Ele, que foi também professor de Théodore
de Beza (1519-1605) foi de fundamental importância no ensino de grego a Calvino. Mais tarde, Calvino lhe
dedicaria o seu comentário de Segundo Coríntios (01/08/1546), onde diz que Wolmar, era “o mais distinguido dos mestres [de grego]”. (J. Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, Dedicatória, p. 8). NE
131
Deve-se entender “declaração” aí mais no sentido de desmascaramento. NT
132
“Base e razões bíblicas dos novos conceitos aplicados à Ceia.” NT
133
“Réplicas”. NT
134
Sua subsistência real, seu fundamento vital. NT
130
5
A promessab que aí nos é feita mostra claramente com que fim foi instituído e a que visa, o que se pode expor nestes termos: O sacramento da Ceia nos
assegura e confirma que o corpo do Senhor Jesus Cristo foi entregue uma vez
por nós de tal maneira que agora é nosso, e o será perpetuamente;e, igualmente,
que o Seu sangue foi derramado uma vez por nós de tal maneira que será nosso
para sempre.
2. Necessidade de contestar os que negam que o
sacramento é exercício da fé
É por isso que novamente se refuta até à persuasão o erro daquelesc que se atrevem a negar que os sacramentos são uma forma de exercício da fé, dados para
mantê-la, elevá-la, fortalecê-la e aumentá-la. Porquanto estas são as palavras do
Senhor a esse respeito: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue”;1 quer
dizer, é um sinal e um testemunho de uma promessa. E onde há promessa, ali a fé
tem sobre o que se apoiar e com que se consolar e se fortalecer.a2
Ele escreveu em 1535 ao rei que tinha empreendido a produção de uma defesa dos evangélicos acusados de blasfêmias, particularmente blasfêmias contra a missa; ele expôs nas Institutas de 1536, e depois na
Instrução de 1537, a doutrina reformada da Santa Ceia. Completou-a nas Institutas de 1539.
Esse capítulo corresponde à última parte do capítulo IV das Institutas de 1536 e ao artigo Sobre a Ceia
do Senhor, da Instrução de 1537.
Em 1536, pouco depois da publicação das Institutas, Calvino compôs na Itália um tratado que apareceu em 1537 e que foi reimpresso em seus Opúsculos: “Como se deve evitar as superstições papais e delas
fugir; e sobre a pura observância cristã”. Ele reafirma sua posição contra a missa com uma página mais
veemente que as das Institutas.
No dia 5 de outubro de 1536, Calvino participou do “debate geral” organizado em Lausanne pelas
autoridades de Berna; num longo discurso no qual cita fartamente as Escrituras Sagradas e os pais da igreja,
ele define a Santa Ceia como “uma comunicação espiritual pela qual, com poder e eficácia, somos feitos
participantes de tudo o que pela graça podemos receber do Seu corpo e do Seu sangue... tudo espiritualmente, quer dizer, pelo vínculo do Seu Espírito” (Opera, [Obras] IX, 877-886).
Em 1540, em Estrasburgo, talvez mesmo desde 1537, em Genebra (conforme o testemunho de Beza,
Op. Calv., XXI, 62), Calvino compôs diretamente em francês um Pequeno tratado sobre a Santa Ceia do
Senhor Jesus Cristo, no qual são demonstrados a sua verdadeira instituição, o seu proveito e a sua utilidade. Demonstra-se igualmente a razão pela qual muitos modernos parecem ter escrito diferentemente. Esse
opúsculo foi impresso em Genebra em 1541, no mesmo ano em que foi publicada a nossa Institution francesa. (Uma nova edição apareceu em Paris, nas edições Je Sers, em 1935).
b. Esse parágrafo é, quase textualmente, o primeiro do capítulo Sobre a Ceia, na Instrução de 1537.
c. Os anabatistas.
a. quo se conseoletur, quo se confirmet...
1
Lc 22.20; 1Co 11.25.
2
Estudando o Salmo 42, quando o salmista em meio às aflições, demonstra a sua fé no livramento de Deus,
Calvino comenta que esta certeza não é “uma expectativa imaginária produzida por uma mente fantasiosa;
mas, confiando nas promessas de Deus, ele não só se anima a nutrir sólida esperança, mas também se
assegura de que receberia infalível livramento. Não podemos ser competentes testemunhas da graça de Deus
perante nossos irmãos quando, antes de tudo, não testificamos dela a nossos próprios corações.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 42.5), p. 264]. NE
6
As Institutas – Edição Especial
3. Frutos da Ceia
Nossa alma pode auferir deste sacramento frutos de grande dulçor e consolação,
porque nos apercebemos de que Jesus Cristo está de tal modo incorporado em
nós, e nós nele,b que tudo o que é dele podemos dizer que é nosso, e tudo o que é
nosso, podemos declarar que é dele.3 Por isso ousamos afirmar com segurança
que a vida eterna é nossa e que o reino dos céus não nos pode ser retiradoc, nos
mesmos termos em que o próprio Senhor Jesus Cristo não pode ser privado dele.
Por outro lado, podemos asseverar que não podemos ser condenados por nossos
pecados, não mais que Cristo, porque não são mais nossos, mas dele. Não que
seja possível atribuir-lhe alguma culpa, mas sim que Ele se constituiu devedor
em nosso lugar, e é bom pagador. Esta é a permuta que, em Sua bondade infinita,
Ele quis fazer conosco: Recebeu nossa pobreza, e nos transferiu Suas riquezas;
levou sobre Si a nossa fraqueza, e nos fortaleceu com o Seu poder; assumiu a
nossa mortalidade, e fez nossa a Sua imortalidade; desceu à terra, e abriu o caminho para o céu; fez-se Filho do homem, e nos fez filhos de Deus.d
Essas coisas nos são prometidas tão completamente por Deus neste sacramento que devemos estar certos e seguros de que nele são demonstradas tão verdadeiramente que é como se Jesus Cristo mesmo estivesse ali presente pessoalmente, visivelmente, e que o víssemos com os nossos próprios olhos, e tão
palpavelmente que é como se O tocássemos com as nossas próprias mãos a. Porque esta Sua palavra não pode falhar nem mentir: “Tomai, comei; isto é o meu
corpo... Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança,
derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”.4 Ordenando que o
tomemos, Ele quer dizer que é nosso. Ordenando que o comamos e o bebamos,
demonstra que Ele é feito uma substância5 conosco. Quando Ele diz, “Isto é o
meu corpo oferecido por vós; este é o meu sangue derramado por vós”, declara e
ensina que são mais nossos que dele, porque Ele os assumiu e os deixou, não para
Se favorecer, mas por amor de nós e para nosso proveito.
3
“Grande fruto, porém, de confiança e satisfação podem deste sacramento coligir as almas pias, porque têm
nele o testemunho de havermo-nos unido com Cristo em um só corpo, de tal sorte que tudo quanto é dEle
nosso seja lícito chamar.” (J. Calvino, As Institutas, IV.17.2). “Por meio da fé, Cristo nos é comunicado,
através de quem chegamos a Deus, e através de quem usufruímos os benefícios da adoção.” [João Calvino,
Efésios, (Ef 1.8), p. 30]. “Aos olhos de Deus só somos verdadeiramente gerados quando somos enxertados
em Cristo, fora de quem nada é encontrado senão morte.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co
4.15), p. 143]. NE
4
Mt 26.26-28; Mc 14.22-24; Lc 22.19,20; 1Co 11.23-25.
5
Termo empregado por Calvino várias vezes neste capítulo. Não, porém, no sentido filosófico ou teológico,
mas como sinônimo de presença vivificante. NT.
b. sic Christum nobis, sic nos illi vicissim insertos.
c. excidere.
d. Filius hominis nobiscum factus, nos secum Dei filios fecerit.
a. Instrução de 1537: “Cristo, com todas as suas riquezas, nos é apresentado nela não menos como se se
pusesse na presença dos nossos olhos e fosse tocado por nossas mãos”.
7
4. Expressões decisivas, quanto ao proveito
que temos da Ceia
Devemos observar diligentemente que a força e excelência principal e quase única do sacramento está nestas palavras: “Oferecido por vós, derramado por vós”.
Porque, de outro modo, pouco nos serviria que o corpo e o sangue de Jesus Cristo
nos fossem distribuídos agora, se outrora não tivessem sido entregues para nossa
redenção e salvação. Assim, eles são representados para nós sob o pão e o vinho
para nos mostrar e ensinar que eles não somente são nossos, mas também que são
vida e alimento. Isso corresponde ao que acima dissemos,b que pelas coisas corporais a nós propostas nos sacramentos devemos ser conduzidos, em certa proporção e semelhança, às realidades espirituais. Porque quando vemos o pão que
nos é apresentado como sinal do sacramento do corpo de Jesus Cristo, devemos
imediatamente tomar essa figura ou semelhançac no sentido de que, assim como
o pão nutre, sustenta e mantém a vida do nosso corpo, assim também o corpo de
Jesus Cristo é o alimento, a nutrição e a preservaçãod da nossa vida espiritual. E
quando vemos o vinho que nos é oferecido como sinal do sangue de Jesus Cristo,
somos levados a pensara no efeito e no proveitoso benefício do vinho para o
corpo humano, fazendo-nos apreciar o que o sangue de Jesus Cristo efetua em
nós e o proveito que nos dá espiritualmente. Ele nos fortalece, nos consola, nos
dá refrigério e nos alegra. Porque, se avaliarmos bem a bênção que é para nós o
fato de que o corpo sacratíssimo de Jesus foi entregue e Seu sangue foi derramado por nós, veremos claramente que é muito próprio o que se atribui ao pão e ao
vinho, nos termos desta analogia e símile.6
5. Finalidade principal da Ceia do Senhor
Portanto, a finalidade principal do sacramento não é simplesmente apresentarb o
corpo de Jesus Cristo, mas, sim, simbolizar, significar e confirmar a promessa na
qual Jesus Cristo nos diz que Sua carne é “verdadeira comida” e Seu sangue é
“verdadeira bebida”, pelos quais somos sustentados para a vida eterna. E Ele nos
certifica que Ele é o pão da vida e garante que “quem comer este pão viverá
eternamente”.7 Para realizar esse feito, isto é, para simbolizar e selar a promessa
6
Calvino faz uma analogia entre o alimento físico e o espiritual, mostrando que aquele que é fundamental para
a manutenção de nosso corpo, Deus, como Pai providente, nos tem dado como “testemunho de Sua bondade
paternal”; “Porém – continua –, assim como é espiritual a vida em que nos há regenerado, é preciso que
também o seja o alimento que deve nutrir-nos e confirmar-nos nela.” NE
[J. Calvino, Breve Tratado Sobre La Santa Cena: In: Tratados Breves, p. 8]. Cf. As Institutas, IV.17.1,3.
7
Jo 6. 55,58.
b. Capítulo X.
c. 1541, por engano, coloca aqui um ponto; a Instrução de 1537 diz: “Deve-se logo em seguida conceber esta
comparação, como o pão nutre, sustenta e mantém”, etc.
d. 1537: proteção.
a. 1537: considerar que tais frutos, etc.
b. exhibere.
8
As Institutas – Edição Especial
acima referida, o sacramento nos envia à cruz de Jesus Cristo, onde essa promessa foi concretizada plenamente e cumprida inteiramente. Porque o fato de Jesus
Cristo ser chamado pão da vida não é em função do sacramento (como muitos o
têm interpretado erroneamente), mas sim porque como tal Ele nos foi dado pelo
Pai. Isso foi demonstrado: Quando, tendo Ele sido feito participante da nossa
mortalidade humana, fez-nos participantes da Sua imortalidade divina; quando,
oferecendo-se em sacrifício, levou sobre Si a maldição que pesava sobre nós,
para nos encher de Sua bênção; quando em Sua morte Ele devorou e tragou a
morte; quando em Sua ressurreição Ele ressuscitou em glória e incorrupção a
nossa carne corruptível, da qual se havia revestido.
6. Pelo Evangelho e pela Ceia recebemos Cristo,
o pão da vida
[1539] O que acima foi declarado recebe clara comprovação das seguintes palavras ditas por Ele e que lemos no Evangelho Segundo João: “O pão que eu darei
pela vida do mundo é a minha carne”.8 Não há dúvida nenhuma de que com essas
palavras Ele demonstrou que o Seu corpo seria pãoa para a vida espiritual da
nossa alma, razão pela qual Ele o haveria de expor à morte, para a nossa salvação.
Porque Ele fez dele pão, uma vez, quando o entregou para ser crucificado para a
redenção do mundo. E o faz diariamente, quando pela Palavra do Seu Evangelho
Ele o oferece, a fim de que dele participemos, considerando que Ele foi crucificado em nosso favor.
[1536] Portanto, não é o sacramento que faz de Jesus Cristo o pão da vida,
pelo qual vivemos e somos constantemente refeitos; mas ele nos dá um certo
gosto e sabor desse pão. Em suma, temos nele a promessa e a garantia de que tudo
o que Jesus Cristo fez e sofreu, Ele fez e sofreu para a nossa vivificação. E que
essa vivificação é eterna, pela qual sempre e para sempre somos alimentados,
sustentados substancialmente e mantidos com vida. Porque, se Jesus Cristo não
tivesse sido o pão da vida, não tivesse nascido e morrido por nós, e não tivesse
ressuscitado por nós, também agora Ele não o seria, e o fruto e eficácia do Seu
nascimento, da Sua morte e da Sua ressurreição não seria eterno e imortal.
7. O estudo e o conhecimento da eficácia do sacramento
teriam evitado muitos erros
Se essa virtude e poder do sacramento fosse bem estudado e considerado, como
devia, teríamos nele grande satisfação, e não teriam sido suscitadas as horríveis
contendasb que têm atormentado a igreja, tanto no passadoc como também ainda
8
Jo 6.51
a. pro pane.
b. dissensiones.
c. O primeiro cânone do Concílio de Latrão (1215) foi concebido assim: “Corpus et sanguis in sacramento altaris, sub
especibus panis et vini veraciter continentur, transubstantiatis pane in corpus et vino in sanguinem potestate divina”.
9
agora, como se vê em nosso tratado,d quando homens curiosos querem definir
como o corpo de Jesus Cristo está presente no pão.a Como se valesse a pena
debater isso com tão grande contenda de palavras e de espírito! Certamente é
assim que a questão é considerada comumente. Mas os que o fazem não se apercebem de que primeiro é necessário procurar saber que o corpo de Jesus Cristo
foi feito nosso, uma vez que foi entregue em nosso favor; e que Seu sangue foi
feito nosso, uma vez que foi derramado em nosso favor. Porque, saber e reconhecer que o Seu corpo e o Seu sangue foram feitos nossos dessa maneira é possuir
plenamente Jesus Cristo crucificado e participar de todas as Suas riquezas. Agora, deixar de lado estas coisas, ou negligenciá-las, menosprezá-las, e pouco menos que deixá-las soterradas, sendo elas como são de grande peso e levando a
graves conseqüências – em face disso, esta, sim, é a única questão espinhosab que
se deve debater: como o corpo é devorado e tragado por nós.c
Todavia, a fim de que numa tão grande diversidade de opiniões a única e
segura verdade de Deus permaneça conosco, pensemos primeiramente que é de
uma realidade espiritual que trata o sacramento, pelo qual o Senhor não pretende
saciar nosso ventre, mas sim nossa alma. E nele buscamos Jesus Cristo, não para o
nosso corpo, nem também para que seja captado e compreendido pelos nossos
sentidos corporais, mas de tal maneira que a alma sinta que verdadeiramente Ele
lhe é oferecido e doado. Em suma, sintamo-nos satisfeitos em tê-lo espiritualmente.
Assim O teremos para vida, o que é receber todo o fruto que se pode receber do
sacramento. Qualquer pessoa que pensar nisto e considerá-lo bem em sua mente
entenderá facilmente que o corpo de Jesus Cristo nos é oferecido no sacramento.
[1539] Mas, para que nos desprendamos de todos os escrúpulos, com os quais
as mentes simples facilmente se vêem envolvidas e confusas em tanta diversidade
de opiniões, vamos explicar primeiro em que sentido o pão é chamado corpo de
Cristo, e o vinho, Seu sangue. Depois daremos informações sobre que comunhão
do Seu corpo e do Seu sangue o Senhor dá, na Ceiaa, àqueles que nele crêem.
8. O descomunal erro chamado transubstanciação
Antes de tudo mais, temos que rejeitar a opinião que resultou dos sonhos dos
sofistas no tocante à transubstanciação (assim chamada por eles)b como uma
d. Ver a introdução deste capítulo, nota a, primeira página destas notas.
a. Os católicos [romanos] e Lutero. 1536 acrescentou aqui: “Alii, quo se argutos probarent, addiderunt ad
scripturæ simplicitatem, adesse realiter ac substantialiter; alii ultra etiam progressi sunt; iisdem esse
dimensionibus, quibus in cruce pendebat; alii prodigiosam transubstantiationem excogitarunt; alii panem
ipsum esse corpus (Cf. Lutero, De captivitate babylonica (1520); concio de sacramento135 (1524), etc.); alii
sub pane esse (Erasmo); alii signum tantum et figuram corporis proponi (Zwínglio)”. Em 1539 Calvino
suprimiu essas linhas polêmicas.
135
Lutero, Sobre o Cativeiro Babilônico [dos papas] (1520); discurso Sobre o Sacramento. NT
b. spinosa.
c. a nobis voretur.
a. communionem nobis Christus exhibeat.
b. Acréscimo feito em 1541.
10
As Institutas – Edição Especial
coisa prodigiosa.c Qualquer pessoa que tiver alguma reverência pelas palavras de
Cristo, se fixar a atenção no que é dito, que o pão que é dado na mão é o corpo que
foi entregue por nós, a fantasiad daqueles tais longe está da propriedade das citadas palavras, porque eles as explicam dizendo que houve transubstanciação, acrescentando que não significa que houve conversão de uma substância em outra,
mas que o corpo toma o lugar do pão, o qual eles imaginam que se desvanece.
Certamente o Senhor testifica que é o Seu corpo que Ele parte e dá na mão
dos Seus apóstolos. Quem não entende que com isso Ele dá uma explicação do
pão? Por isso eles não podem alegar que, pelo respeito que têm pelas palavras de
Jesus Cristo, são constrangidos a explicar o termo fazendo uso de uma glosa
estranha e contrária à letra,e ao ponto de lhe fazer violência. Porque jamais se
ouviu em nenhuma língua do mundo que este verbo, chamado substancial ou
essencial, qual seja, o verbo ser, tenha sido tomado nesse sentido.
Além desse, há muitos outros argumentos, fáceis de refutar. Porque o conceito que estamos combatendo elimina o mistério que visa representar o Senhor
em Sua Ceia. Pois, que é a Ceia, senão um atestado visível e manifesto da promessa que consta no capítulo seis de João? Ali Jesus Cristo declara que Ele é o
pão da vida que desceu do céu. Logo, é necessário que o pão visível seja um sinal
ou símbolo no qual nos seja retratado o pão espiritual, se é que não queremos
destruir totalmente o fruto do sacramento e a consolação que, para suprir a nossa
fraqueza, o Senhor nos dá nessa passagem. Porque, como a purificação interior
da alma é certificada mais fortemente no coração dos crentes quando é assinalada
no Batismo pelo lavamento exterior da água, assim o pão não é de pequena importância na Ceia, visando atestar o alimento espiritual que temos na carne de
Cristo. E, de fato, com que propósito o apóstolo Paulo9 inferiu que somos um
mesmo pão e um mesmo corpo, porque participamos de um mesmo pão, se ele
tivesse tido ali apenas uma falsa visãob do pão, sendo eliminada a realidade natural? Deixo de citar muitas passagens que há na Escritura, nas quais o pão e o
vinho são apresentados como sinais do corpo e do sangue, e, não obstante, é
mantido o nome deles.
9. Astúcia viperina na defesa da transubstanciação
Fazem uso de uma cavilação frívola quando dizem que a vara de Moisés é chamada pelo nome de vara10 depois de convertida em serpente. Porque ainda que eu
finjac e diga que havia bom motivo para que fosse chamada assim, pois logo ia
9
1Co 11a
a. 1539 tinha, por erro: 10. 1541 corrigiu: 11.
10
Êx 7.12 e contexto.
c. portentosa.
d. istorum commentum.
e. violenter contortam.
b. spectrum.
c. taceam.
11
voltar ao seu natural,d há porém um motivo mais perceptível. É que o texto diz
que as varas dos magos foram devoradas pelas de Moisés. Para falar com propriedade era necessário empregar um mesmo nome nos dois casos.e Agora, chamar
de serpentes as varas dos magos seria faltar com a verdade proféticaf, porque
daria a impressão de que elas se haviam transformado verdadeiramente em serpentes, quando não passavam de ilusões.g11
[1541] Portanto, foi necessário dizer que a vara de Moisés devorou todas as
outrasa. Há semelhança nisso com as locuções que se seguem: “O pão que partimos... Todas as vezes que comerdes... E perseveravam... na comunhão, no partir do
pão”.12 Além disso, a antigüidade, que eles costumam contrapor à Palavra de Deus
evidente, não os ajuda em nada a provar esse artigob. Porque essa doutrina falsa foi
inventada há pouco tempo; ao menos antigamente era desconhecida, no tempoc em
que a doutrina do Evangelho ainda tinha alguma pureza. O certo é que não há um só
dos antigos pais que não confesse explicitamente que os sinais da Ceia são verdadeiro pão e verdadeiro vinho, embora às vezes lhes acrescentem diversos epítetos
ou qualificativos com o objetivo de honrar a excelênciad do mistério.
10. O cego literalismo cega os transubstancialistas
para argumentos de peso
A opinião daqueles que teimam em ater-se às palavras [ipsis litteris], até à última
sílaba, sem se disporem a admitir nenhuma figura,e não tem possibilidade de
comprovação. Qualquer absurdo que citemos das suas afirmações, eles não ligam. E querem dar por resolvida a sua afirmação de que o pão é verdadeiramente
o corpo, contentando-se com este único argumento: que Cristo mostrou o pão
quando disse: “Isto é o meu corpo”. Ora, por mais que declarem que o respeito
que eles têm pelas palavras de Cristo os impede de aceitar toda e qualquer
interpretaçãof de uma sentença tão clara, isso não serve de pretextog para rejeitarem todos os argumentos contrários que lhes são apresentados. Se bem que eu
não acho que seja necessário ter grande quantidade de argumentos para combatê11
Ilusões, produto do ilusionismo dos magos (mágicos). NT.
1Co 10.16; 11.26; At 2.42. Nesta última citação o texto francês diz: “Eles comunicavam no partir do pão”.
Note-se de passo que “comunicar” é mais expressivo que “comungar”. NT.
d. pristinam formam.
e. Em lugar dessa frase, 1539 diz: potius quam colubro.
f. dicere noluit propheta.
g. 1539: ne videretur veram indicare conversionem, cum præstigiatores illi nihil aliud quam tenebras spectantium
oculis, falsis artibus, offudissent.
a. Frase acrescentada em 1541.
b. confirmando isto dogmate.
c. melioribus illis seculis.
d. 1539 diz: convertendam, erro, por: commendandam.
e. tropum.
f. figurate intelligere.
g. prætextus.
12
12
As Institutas – Edição Especial
los, visto que eles não saberiam abrir a boca sem manifestar o absurdo existente
em sua doutrina.h
O que eles dizem, que o corpo está de tal modo mesclado com o pão que
ambos se tornam substancialmente uma só coisa, não somente causa repulsa ao
juízo comum dos homens em geral, mas também é contrário à fé. Não é lícito,
porém, dizem eles, glosar ou explicar dúbia e temerariamente as coisas que estão
claramente expressas na Escritura. Quem é que nega isso? Mas, depois que tivermos dado a explicação fiela mais adiante, ver-se-á claramente que o argumento
que eles têm sempre na boca é impertinente e inoportuno, sendo impropriamente
aplicado à presente matéria.
Portanto, não é de mau alvitre que alguns, vendo a afinidade e proximidade
das realidades representadas com os seus símbolos,b tenham concluído que o
nome da realidade propriamente dita é aqui atribuído aos seus sinais. É verdade
que é uma locução imprópria, mas não deixa de ser uma boa analogia.c Certo é
que o sinal, quanto à essência, difere da realidade figurada, visto que esta é espiritual e celeste, e aquela é corporal e visível. Entretanto, uma vez que o sinal não
simboliza apenas como uma imagem vãd a realidade que ele representa, mas a
manifestae verdadeiramente, por que negar-lhe a denominação? Porque, se os
símbolos humanos, que são mais figuras de coisas ausentes do que sinais e marcas das presentes, e com mais freqüência nos enganam com aquilo que indicam –
se, apesar disso, eles tomam o nome destas, com maior razão os símbolos e sinais
que Deus instituiu podem tomar emprestado o título das realidades que eles representam, cuja significação eles contêm seguramente e sem falsidade, e cuja
verdade eles têm sempre junto a si.
11. Aplicação ao crente
Portanto, toda vez que você encontrar essas maneiras de falar, que o pão é o
corpo, que o partir do pão é a comunicação ou a comunhão do corpo, e outras
semelhantes, lembre-se de que é necessário reconhecer que o nome da realidade
superior e mais excelente é transferida para a realidade inferior, conforme o uso
comum da Escritura.
Deixo de lado as alegorias e as parábolas, para que ninguém diga que estou
saindo fora dos limites, buscando evasivas, sendo que esta figura é principalmente utilizada no que diz respeito aos sacramentos. Porque, do contrário, não se
poderia aceitar o fato de que a Circuncisão é chamada aliança; o Cordeiro, passagem; os sacrifícios mosaicos, purificações dos pecados; e de que a pedra da qual
h. dogmatis.
a. germanus sensus.
b. symbolis.
c. figurat id quidem et xataxrhsiw= j; sed non sine aptissima analogia.
d. nuda et inanis tessera.
e. exhibet.
13
jorrou água no deserto é chamada Cristo – a não ser que entendamos essa forma
de falar como um tipo de transferência. Tal é a semelhança e proximidade existente entre o sinal e a realidade significada que a dedução ou passagem de um ao
outro deles é fácil. E, como os sacramentos têm ambos grande semelhança, principalmente a eles convém esta transferência do nome. Claro está, pois, que, assim
como o apóstolo ensina que a pedra que para os israelitas foi uma fonte espiritual
da qual beberam é Cristo,13 no sentido de que é um símbolo sob o qual a bebida
espiritual foi recebida (não visível aos olhos, mas real), assim também o pão é
hoje chamado corpo de Cristo, no sentido de que é um símbolo sob o qual o
Senhor nos oferece a verdadeira manducação14 do Seu corpo.
12. Logomaquia! A cegueira literalista quanto à presença
de Cristo na Ceia produz briga de palavras
[1536] Se algum indivíduo amolante e importunoa se agarrar obstinadamente às
palavras da expressão, “Isto é o meu corpo”, fechando os olhos para todas as
outras razões, temos até nessa palavra de Cristo matéria para vencer tal obstinação. Porque o Senhor não diz noutro sentido que o pão é Seu corpo como quando
declara que o vinho é Seu sangue. Ora, onde Mateus e Marcos narram que o
Senhor descreveu o cálice como o Seu sangue, o sangue da nova aliançab, Paulo
e Lucas dizem que ele é a nova aliança em Seu sanguea.15 Já eu, por outro lado,
sustento que é a aliança no corpo e no sangue. Quem quiser insistir em seu ponto
obstinadamente, grite quanto quiser que o pão é corpo e o vinho é sangue! Eu
sustentarei, ao contrário, que se trata da aliança no corpo e no sangue.
[1539] E então? Que dirá ele? Pretenderá ser mais correto ou fiel expositor
que Paulo ou Lucas, que entendem pelo sangue que a nova aliança é confirmada
no sangue?
Pois bem, agora é necessário esclarecer em que consiste essa aliança no
corpo e no sangue de Jesus Cristo. Porque, quando negamos que o pão, que se
come na Ceia, é o corpo de Cristo, não o fazemos no sentido de diminuir em nada
a comunicação do corpo nela oferecida aos crentes. Unicamente queremos ensinar que é preciso distinguir a realidade representada do seu sinal, o que sabemos
muito bem que é da maior conseqüênciab, nada desejável, e para nosso grande
prejuízo. Porque há tão grande inclinação no coração dos homens para cair na
superstição que, num instante, abandonando a verdade, eles se distraem totalmente com o sinal, a não ser que sejam repelidos alto e bom som. Pelo que se vê
13
1Co 10.4
Ato de comer. Francês: manducation. NT.
15
Mt 26.28; Mc 14.24; Lc 22.20; 1Co 11.25. NT
a. si quis morosulus.
b. vocare poculum suum sanguinem novi testamenti.
a. Instrução de 1537: “O Senhor nos propicia a verdadeira comunicação do Seu corpo”.
b. plurimi referre.
14
14
As Institutas – Edição Especial
quanto cuidado devemos ter com dois erros. Um é que, extraindo coisas demais
dos sinais, separemo-los dos mistérios aos quais de alguma forma estão unidos, e,
em conseqüência, se rebaixa a sua eficácia. O outro é que, engrandecendo-os
exageradamente, obscureçamos o seu poder interior.16
13. Entenda-se bem o sentido da relação entre os sinais
e a presença de Cristo na Ceia
Não há ninguém, a não ser alguém que viva totalmente sem religião, que não
confesse que Cristo é o pão da vida, com o qual os crentes são alimentados para
salvação eterna. Mas uma coisa não está resolvida entre todos: Como se deve
participar. Há quem defina com uma palavra que comer a carne de Cristo e beber
Seu sangue não é outra coisa senão crer nele. Mas me parece que Cristo mesmo
quis expressar algo mais altoa nessa notável pregação,17 na qual nos recomenda a
manducação do Seu corpo. É que somos vivificados pela verdadeira participação
que Ele nos dá em Si, o que nos é dado a entender pelas palavras beber e comer,
para que ninguém pensasse que o que Ele disse consiste tão-somente em simples
conhecimento. Assim como alimentar-se do pão, não apenas olhar para ele, dá
nutrição ao corpo, assim também é necessário que a alma seja feita verdadeiramente participante de Cristo, para ter sustento para a vida eterna. Entretanto,
confessamos que essa manducação se faz unicamente pela fé, não se podendo
imaginar nenhumb outro meio.
Mas a nossa divergência com os que fazem a exposição que eu impugno é
que comer é crer, e nada mais; eu digo que crendo comemos a carne de Cristo, e
que esta manducação é fruto da fé. Ou, se se quer maior clareza, para os que
crêem a manducação é a própria fé; digo melhor, ela provém da fé. A diferença
nas palavras é pequena, mas a verdade é grande. Pois, embora o apóstolo ensine
que Jesus Cristo habita em nosso coração pela fé, ninguém vai interpretar que
essa habitação é a própria fé. Todos sabemos que ele quis exprimir e nos comunicar um singular benefício da fé, visto que por ela os crentes recebem a certeza de
que Cristo habita neles.
Dessa maneira, o Senhor, descrevendo-se como o pão da vida, não somente
quis mostrar que a nossa salvação se firma na confiança em Sua morte e ressurreição, mas também que, pela verdadeira comunicação ou comunhão que temos
com Ele, Sua vida se transfere para nós e é feita nossa; do mesmo modo que o
pão, quando comido para alimentar-nos, dá vigor ao corpo.
16
“O poder e o uso dos sacramentos são corretamente subentendidos quando conectamos o sinal com aquilo
que está implícito nele, de tal forma que o sinal não é algo vazio e ineficaz, e quando, querendo enaltecer o
sinal, não despojamos o Espírito Santo do que lhe pertence. (...) Se porventura não fizermos nem quisermos
fazer do santo batismo um ato nulo e vazio, devemos provar sua eficácia através da novidade de vida.”
[J. Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (Tt 3.5), p. 350]. NE
17
Jo 6, versículos 22 em diante. NT
a. expressius ac sublimius.
b. 1541 tem, por erro: nul. 1539: nulla.
15
14. Sobre a relação entre comer o pão e a fé, de advogado
Agostinho vira promotor
Agostinho, que os nossos oponentes trazem como seu advogado, não escreveu
noutro sentido que comemos o corpo de Cristo crendo nele senão para demonstrar que esta manducação vem da fé. Coisa que não nego, mas acrescento que
recebemos Cristo, não como se mostrando de longe, mas se doando e se comunicando a nós.
Também não é satisfatório o que dizem aqueles que, depois de confessarem
que temos alguma comunicação com o corpo de Cristo, quando a querem demonstrar fazem-nos participantes somente do Seu Espírito, deixando para trás
toda a lembrança da carne e do sangue. Como se fossem nulas estas coisas ditas
na Escritura: que a carne de Cristo é comida e Seu sangue é bebida; que “se não
comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes
vida em vós mesmos”;18 e outras sentenças semelhantes.
15. Calvino exprime embevecida exaltação do mistério subjacente à
comunhão na Ceia, antes da apresentação do resumo
do seu ensino respeito
Portanto, sendo notório que a comunicação, que constitui o ponto em questão,
vai além do que eles dizem, tratemos de resolver isso com poucas palavras, até
onde vá o alcance destas. Se é que, todavia, é lícito abranger com palavras um tão
grande mistério, mistério que eu percebo muito bem que não consigo compreender com o meu espírito. Isso confesso de boa vontade, a fim de que ninguém
meça a grandeza do mistério por minhas palavras, as quais são tão fracas que
sucumbem, totalmente vencidas. Mas, por outro lado, admoesto os leitores a que
não se mantenham entre marcos e limites tão estreitos, mas que subama a pontos
mais altos, além daqueles aos quais eu os possa conduzir. Porque eu mesmo,
sempre que trato dessa matéria, depois de esforçar-me para dizer tudo que posso,
vejo quanto me falta para alcançar a excelência. E por maior que seja o entendimento, por mais capacidade que se tenha de pensar e de avaliar, e por melhor que
a língua se exprima, não obstante, tudo isso é sobrepujado e humilhado por tal
grandiosidade. Assim, não me resta outra coisa se não prostrar-me em admiração
ante esse mistério; mistério tal que, para pensar nele adequadamente o entendimento não é suficiente, como também a língua é incapaz de o explicar.19 Todavia,
18
Jo 6.53. NT
“... mistério que, na verdade, não vejo possa eu suficientemente compreender com a mente, e de bom grado
por isso o confesso, para que não lhe meça alguém a sublimidade pela medidazinha de minha pobreza de
expressão. (...) Portanto, nada resta, afinal, senão que prorrompa eu em admiração desse mistério ao qual
nem pode estar em condições de pensá-lo claramente o intelecto, nem de explicá-lo a língua.” (J. Calvino,
As Institutas, IV.17.7). NE
a. 1541 tem, por erro: montrer. 1539: assurgere.
19
16
As Institutas – Edição Especial
vou apresentar um resumo da minha doutrina, a qual não tenho dúvida de que é
verdadeira, e também espero que seja aprovada por todos os corações sinceros e
tementes a Deus.
16. Resumo do ensino de Calvino sobre a comunhão
do corpo e do sangue na Ceia
Em primeiro lugar,a a Escritura nos ensina que Cristo é, desde o princípio, a
Palavra vivificante de Deus, a fonte e origem da vida, de quem todas as coisas
recebem poder para subsistir. Por isso o apóstolo João às vezes Lhe chama “Palavra da vida” e às vezes declara que “a vida sempre esteve nele”,20 querendo dizer
que Ele constantemente derrama Sua energia sobre todas as criaturas para comunicar-lhes vida e vigor. Contudo, ele acrescenta, logo após a primeira passagem
acima citada, que a vida se manifestou quando o Filho, tendo assumido a nossa
carne, deixou-se ver e ser tocado. Porque, apesar de anteriormente haver derramado seus poderes sobre as criaturas, visto que o homem, alienado de Deus pelo
pecado, perdeu o contato e a comunicação da vida e por todos os lados se vê
assediado pela morte, tem ele necessidade de ser novamente recebido à comunhão desta Palavra, para recuperar alguma esperança da imortalidade. Pois, como
haverá algo que esperar, se não entendermos que a Palavra de Deus contém em si
a plenitude da vida e ficarmos distanciados dela, não vendo ao nosso redor nada
mais que a morte? Mas, desde que esta “fonte de vida”21 começou a habitar em
nossa carne, já não se mantém oculta e longe de nós, mas jorra à nossa presença,
e dela podemos alegres desfrutar.
Eis como Jesus Cristo aproximou de nós a bênção da vida, da qual Ele é a
fonte. Além disso, a carne que Ele por nós vestiu e assumiu, tornou-a vivificante,
a fim de que, pela participação dela, sejamos alimentados para a imortalidade.a
Disse Ele: “Eu sou o pão vivo22 que desceu do céu”.23 E logo a seguir: “O pão que
eu darei pela vida do mundo é a minha carne”. Nessas palavras Ele demonstra
que Ele é a vida, no sentido de que Ele é a Palavra de Deus eterna, que desceu do
céu até nós. Mas também que, descendo, Ele derramou Seu poder na carne de que
se revestiu, a fim de que a comunicação chegasse a nós. Seguem-se daí estas
declarações: Que a Sua carne é verdadeira comida e o Seu sangue é verdadeira
20
1Jo 1.1 [NVI]; Jo 1.4 [tradução direta].
Pv 13.14; Ap 21.6
22
No original francês: “pão da vida”. NT
23
Jo 6.51
a. Calvino vai desenvolver uma fórmula de 1536 cuja tradução não se encontra em nenhum texto de 1541:
“Dicimus vere et efficaciter [corpus] exhiberi, non autem naturaliter. Quo scilicet significamus non substantiam
ipsam corporis, seu verum et naturale corpus illic dari, sed omnia quæ in suo corpore nobis beneficia Christus
præstitit”.136
136
“Dizemos que [o corpo] é oferecido verdadeira e eficazmente, não porém naturalmente. É evidente que com
isso não queremos dizer que é dada a substância do corpo propriamente dita, o seu verdadeiro corpo natural,
mas sim todos os benefícios que em Seu corpo Cristo nos fez.” NT
a. Instrução de 1537: “Nos torna seguros da imortalidade da nossa carne”.
21
17
bebida, e que ambos constituem a substância necessária para nutrir os crentes
com a vida eterna. Temos, pois, nessa verdade a singular consolação de encontrar
a vida em nossa própria carne. Porque dessa maneira não somente nós chegamos
a ela, mas ela mesma se adianta e vem apresentar-se a nós. Basta que abramos o
nosso coração para recebê-la, e a obteremos.
Agora, conquanto a carne de Cristo não tenha tanto poder de si mesma que
nos possa vivificar, visto que em sua primeira condição ela foi sujeita à
mortalidadeb e, sendo feitac imortal, recebe força de outrem, todavia, com razão
se declara que ela é vivificante, porque está cheia de perfeição de vida para transferir para nós a comunhão. E nesse sentido se deve entender o que diz o Senhor,
que, assim como “o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter
vida em si mesmo”24. Porque nessa passagem Ele não fala das propriedades que
Ele possui eternamente em Sua divindade, mas das que Lhe foram dadas na carne, na qual se nos manifestou. Pelo que Ele demonstra que de fato a plenitude da
vida habita em Sua humanidade, de tal modo que aquele que participar da Sua
carne e do Seu sangue desfrutará da Sua vida.
Podemos explicar melhor este ponto fazendo uso de um exemplo familiar.
É como a água de um bom reservatório, que fornece água suficiente para beber,
para irrigar e para outros fins, e, contudo, tal abundância não se deve ao reservatório mas à fonte da qual jorra permanentemente a água que o enche e não o deixa
secar-se. Assim também a carne de Cristo é como um reservatório, no sentido de
que ela recebe a vida que jorra da natureza divina de Cristo e no-la transfere.
Quem não vê, então, que a comunhão do corpo e do sangue de Cristo é
necessária a todos os que aspiram à vida celestial? A isso visam todas estas declarações do apóstolo: Que a igreja “é o seu corpo [de Cristo], a [sua] plenitude”;
que Ele é a cabeça,25 “de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo
auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu
próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor”26, coisas que só se
realizam graças à Sua união conosco, como Seu corpo, e pelo Espírito. O apóstolo, mediante grandioso testemunho, esclarece ainda mais em que consiste esta
associação, pela qual somos unidos à Sua carne. Diz ele que “somos membros do
seu corpo”,27 parte dos Seus ossos e da Sua carne.28 E, finalmente, para assinalar
24
Jo 5.26
Quando “cabeça” se refere à chefia, que Cristo exerce sobre todas as coisas, a igreja inclusive, diga-se “o
Cabeça”; quando se refere à união orgânica e vital com a igreja, diga-se “a Cabeça”. Em 1991, durante os
trabalhos de tradução da NVI, propus à Comissão de Tradução que fosse seguido esse critério, o que foi
feito. Um exemplo é Efésios 4.15, que em várias tiragens da primeira edição da ARA vinha “o Cabeça”,
corrigindo-se a partir de 1993. NT
26
Ef 1.22,23 e 4.15,16
27
Ef 5.30
28
A Versão Autorizada inglesa traduz assim o citado versículo 30: “Pois nós somos membros do seu corpo, da
sua carne e dos seus ossos”. NT
b. 1541 tem, por erro: IMortalité. 1539: mortalitati.
c. nunc immortalitate prædita.
25
18
As Institutas – Edição Especial
que essa realidade sobrepuja todas as palavras, logo a seguir ele conclui a exposição deste seu propósito exclamando: “Grande é este mistério”! Seria, pois, extrema loucura não reconhecer nenhuma comunhão na carne e no sangue do Senhor, fato que o apóstolo Paulo declara que é tão grandioso que ele prefere admirar a explicar com palavras.
17. Presença real, sim; corpórea e palpável, não. Nada de imitar
os mestres sobornistas e outros!
Todavia, não devemos imaginar essa realidade nos termos sonhados pelos sofistas,a
como se o corpo de Cristo baixasse à Mesa e ali se expusesse em presença local,29
para ser tocado com as mãos, mastigado com os dentes e engolido pela goela.
Porque, assim como não duvidamos que Ele não é limitado pelas medidas próprias da natureza humana e que o céu, que O recebeu, O retém até quando Ele voltar
para o Juízo, assim também consideramos coisa ilícita fazê-lo baixar para estar
entre as coisas corruptíveis, ou imaginar que Ele está plenamente presenteb [carne e ossos inclusive]. E de fato isso já não é necessário para que tenhamos a
participação, visto que o Senhor Jesus nos estende esta bênção por Seu Espírito,
fazendo-nos um com Ele em corpo, Espírito e alma. Portanto, o laço desta junção
é o Espírito Santo, pelo qual somos rejuntados e unidos; é como um canal ou
conduto pelo qual tudo o que Cristo é e possui desce até nós.30 Ora, se vemos com
os nossos próprios olhos que o Sol, brilhando sobre a Terra, de alguma forma
envia por seus raios a sua substância para gerar, nutrir e produzir os frutos dela,
por que o fulgor e a irradiação do Espírito de Jesus Cristo seriam menos capazes
de nos fazer chegar a comunicação da Sua carne e do Seu sangue? Por isso a
Escritura, falando da participação que temos de Cristo, reduz toda a virtude e
poder dessa participação ao Seu Espírito. E só basta citar uma passagem, que
representa bem todas as demais. Em Romanos, capítulo 8, versículos 10 e 11, o
apóstolo Paulo declara que Cristo habita em nós por Seu Espírito, e de nenhum
outro modo. Todavia, ao dizer isso ele não destrói esta comunhão do Seu corpo e
do Seu sangue, que constitui o ponto em questão agora, mas demonstra que o
Espírito é o único meio pelo qual temos Cristo e O temos habitando em nós. Tal
comunhão do Seu corpo e do Seu sangue testifica o Senhor na Ceia. E deveras O
oferece e dá a todos os que recebem esta refeição espiritual. a Entretanto, tenha-se
em conta que só os que nele crêem é que realmente participam, sendo que por
29
Isto é, ocupando lugar, preenchendo espaço. NT
Crysost. Sermon De spiritu sancto.
a. in scholis crassiores sophistæ (os sorbonistass e outros).
b. Cf. Occam, Centilogium theol., 25, 28: “Corpus Christi potest137 esse ubique, sicut Deus est ubique”, Lutero
falava assim da ubiqüidade do corpo de Cristo. Calvino já em 1536 escrevia: “Hæc est perpetua corporis
veritas, ut loco contineatur, ut suis dimensionibus constet”.
137
Não “postest”, como está no texto original das notas. NT
a. spirituale epulum.
30
19
uma fé verdadeira eles se tornam dignos de ter o gozo de tal bênção. Por essa
razão diz o apóstolo: “O pão que partimos é a comunhão do corpo de Cristo”, e o
cálice que santificamos pelas palavras do Evangelho e pelas orações é “a comunhão do seu sangue”.31
18. Objeção de que se trata de metonímia, e resposta
Não há necessidade de que alguém objete que a declaração apostólica citada é
locução figurada, na qual o nome da coisa representada é atribuído ao símbolo.
Digo isso porque, se alegarem que é coisa notória que a porção do pão não passa
de um sinal exterior da substância espiritual, embora lhes concedamos que expliquem dessa forma as palavras de Paulo, todavia, do fato de que o sinal nos é dado
poderemos inferir que a substância significada também nos é entregue real e
verdadeiramente. Porquanto, quem não quiser chamar Deus de mentiroso não se
atreverá a dizer que Ele nos oferece um sinal vão e vazio da Sua verdade. Assim,
o Senhor nos apresenta a real participação do Seu corpo representada pelo partir
do pão; e não há nenhuma dúvida de que ele no-lo dá ao mesmo tempo. E de fato
os crentes devem ater-se inteiramente a esta norma: Toda vez que vejam os sinais
ordenados por Deus, concebam igualmente como certo e veraz que a realidade
representada ali está junto deles, e tenham disso plena convicção. Porquanto,
com que propósito o Senhor daria na mãoa o sinal ou o símbolo do Seu corpo,
senão para tornar certa e segura a real convicção dessa verdade? Ora, se é certo
que o sinal visível nos é dado para selar em nós a dádiva da realidade invisível,
devemos confiar sem nenhuma dúvida que, tomando o sinal do corpo, recebemos
igualmente o corpo.
Como, porém, muitos são os que, não se restringindo a admitir alguma participação do corpo e do sangue de Jesus Cristo, antes insistem que essa participação consiste na presença local do corpo e do sangue no sentido físico e concreto
e inventam tolos devaneios em defesa dessa idéia, devemos desmascarar esse
erro, sem necessidade de estender-nos muito.
19. Argumentos adicionais sobre a presença do corpo
e do sangue de Cristo na Eucaristia
19.1 – O corpo ressurreto continua sendo corpo real
[1536] Assim como Jesus Cristo se revestiu de nossa verdadeira carne e a assumiu quando nasceu da virgem Maria,32 e assim como Ele sofreu em nossa verdadeira carne, assim também, quando ressuscitou, recebeu e reassumiu a verdadeira carne e, em Sua ascensão, transportou-a para o céu. Porque esta é a nossa
esperança, que ressuscitaremos e iremos para o céu, visto que Jesus Cristo res31
1Co 10.16 [tradução direta].
1Co 15
a. in manum tibi.
32
20
As Institutas – Edição Especial
suscitou e para lá subiu. Pois, veja-se bem, quão insegura e frágil seria esta esperança, se a nossa verdadeira carne não tivesse de fato ressuscitado em Jesus Cristo e não tivesse entrado no reino dos céus! E esta é a perfeita verdade sobre um
corpo: Limita-se a um lugar, ficando dentro de certo espaço; tem determinadas
medidas; e tem forma visível.
Bem sei o que cavilam alguns cabeçudos,b querendo defender obstinadamente o erro no qual uma vez caíram. Dizem eles que a medida do corpo de
Cristo nunca foi outra que não a medida da extensão ampla e total do céu e da
terra. E acrescentam que o fato de que Ele nasceu como bebê, cresceu,a foi pendurado numa cruz, foi encerrado num sepulcro, tudo isso se fez por uma certa
dispensação, para que Ele pudesse nascer, morrer e desincumbir-se de todas as
demais obras humanas. E quanto aos seguintes fatos: que, após a Sua ressurreição, Ele apareceu em Sua costumeira forma corpórea; foi recebido no céu visivelmente; e, finalmente, após a Sua ascensão, foi visto por Estêvão e pelo apóstolo Paulo33 – tudo isso também se fez pela mesma dispensação, a fim de que ficasse claro para todos os homens que Ele foi constituído Rei e como Rei foi estabelecido no céu.
19.2 – Os oponentes trazem Marcion de volta
Que é isso, senão trazer Marcionb de volta do inferno? Quem iria duvidar que o
corpo de Cristo era fantasmagórico, se fosse dessa condição? Eles alegam que
isso foi dito pelo próprio Senhor Jesus Cristo, quando declarou:34 “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do homem, que está no
céu”. Mas, será que eles são tão rudes e tapados de entendimento que não percebem que tais palavras foram ditas para expressar uma comunicação de
propriedades?!c É como o que vemos dito pelo apóstolo Paulo35 – que o Senhor
da glória foi crucificado, não que tenha padecido segundo a Sua divindade, mas
que, sendo humilhado e desprezado, sofreu na cruz, e, não obstante, também é
Deus, o Senhor da glória. De igual modo, o Filho do homem está no céu porque
Ele, sendo o mesmo Cristo que segundo a carne é filho do homem na terra, é
também Deus no céu. Por essa razão, na mesma passagem se afirma que Ele
desceu do céu segundo a Sua divindade, não no sentido de que a divindade deixasse o céu para vir ocultar-se na prisão do corpo, mas no sentido de que, apesar
33
At 7.55,56; 9.3-5; 1Co 15.8
Jo 3.13
35
1Co 2.8
b. cervicosi.
a. creverit.
b. Marcion. Heresiarca do século II, gnóstico.
Provavelmente Calvino conheceu sua doutrina por meio dos cinco livros que contra ele escreveu
Tertuliano. (Uma edição dessas obras tinha sido publicada em Basiléia em 1521.)
c. idiomatum.
34
21
de encher todas as coisas, ela habita na humanidade de Cristo corporalmente, isto
é, natural e verdadeiramente,a36 e de maneira incompreensível.37
Outros fazem uso de uma evasiva um pouco mais sutil e dizem que o corpo
que está presente no sacramento é glorioso e imortal. E, portanto, não é impróprio que esteja em muitos lugares e que esteja contido no sacramento sem ocupar
lugar ou espaço e sem ter nenhuma forma.b
Mas eu lhes pergunto: Que foi que o Senhor deu aos Seus discípulos no dia
anterior ao da Sua paixão e morte? Suas palavras não significam que foi o corpo
mortal que logo depois seria entregue? Mas eles dizem: Antes disso Ele já havia
manifestado a Sua glória aos três discípulos no Monte Tabor.38 É verdade. Contudo, por aquela claridade luminosa Cristo lhes concedeu por breves momentos
que gozassem um pouco da Sua imortalidade. Mas, quando, em Sua última Ceia,
Ele lhes repartiu Seu corpo, bem próxima estava a hora na qual Ele seria ferido de
Deus,39 humilhado, abatido e desfigurado como se fosse um ladrão;c bom seria
que Ele se dispusesse a mostrar a Sua glória! E que enorme janela se abriria aqui
para Marcion, se o corpo de Jesus num lugar fosse visto como mortal e despreza36
Cl 2.9.
No Catecismo de Heidelberg (1563), temos as questões:
35. Que Significa “Foi concebido por obra do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria?”
“Que o eterno Filho de Deus, que é e permanece verdadeiro e eterno Deus, tomou sobre si a nossa
verdadeira humanidade, da carne e do sangue da virgem Maria, pela operação do Espírito santo, de modo
que fosse também a verdadeira semente de Davi, em tudo igual a seus semelhantes, exceto no pecado.”
48. Não ficam assim, as duas naturezas de Cristo separadas uma da outra, se a humanidade não se
encontra onde está a divindade?.
“De modo nenhum; pois, se a divindade é incompreensível e está presente em toda parte. Segue-se
que ela está, na verdade, além dos limites da humanidade que ela assumiu, e, contudo, sempre se encontra
também naquela humanidade, e permanece pessoalmente unida a ela.”
Aqui também, podemos ver a questão do “extra calvinisticum”; expressão criada pelos teólogos
luteranos no século XVII, para se referirem à insistência dos Reformados em afirmar que a Segunda Pessoa
da Trindade não esteve limitada à natureza humana do Cristo encarnado. Sobre este ponto – mesmo sem
desenvolver o assunto –, Calvino havia dito: “.... Se bem que a infinita essência do Verbo se uniu com a
natureza de um homem em uma pessoa única, no entanto, nenhum confinamento imaginamos. Ora, de
modo maravilhoso, do céu desceu o Filho de Deus, assim que, entretanto, não deixasse o céu; de modo
maravilhoso, quis sofrer a gestação no útero da Virgem, andar pela terra e pender na cruz, para que, sempre
enchesse o mundo, assim como de início.” (As Institutas, II.13.4). Os luteranos que divergiam deste pensamento, expresso no Catecismo de Heidelberg, criaram as expressões: “totum intra carnem” e “numquam
extra carnem” (“Totalmente na carne e nunca fora da carne”). Todavia, nem entre os luteranos houve
unidade de pensamento. NE
38
Mt 17.1-8
39
Is 53.4
a. 1539 tem somente: naturaliter, et ineffabili quodam modo.
b. Opinião professada notadamente por Gasp. Schwenckfeld, cujo primeiro escrito sobre a Santa Ceia data de
1525; em luta com Lutero; banido da Silésia em 1528; refugiado em Estrasburgo. Capito o acolheu, mas
Bucer se opôs a ele. Depois do sínodo de 1533, Schwenckfeld deixou Estrasburgo, voltou para lá, e partiu
definitivamente em 1535. A lembrança dele era ainda recente, quando da chegada de Calvino. Em 1534 ele
tinha publicado (mas em alemão) uma nova edição do seu livro sobre o sacramento. Calvino, em 1556, na
Secunda defensio fidei de sacramentis contra Westphalum,138 trata da doutrina de Schwenckfeld chamando-a de “insânia”, e acrescenta: “Sedulo incubuimus ad oppugnandos Suinckfeldii errores”.
138
Segunda Defesa da Fé quanto ao Sacramento, contra [o encontro de] Westfália. NT
c. 1541 tem, por erro: lardre. 1536: leprosus sine decore jaceret.
37
22
As Institutas – Edição Especial
do, e noutro posasse como imortal e glorioso! Mas eu passo por altod esse tremendo absurdo.
Com relação ao corpo glorioso, que só me respondam: Será que todavia é
um corpo? “Sim”, dizem eles; e acrescentam: “mas sem lugar restrito, estando
em muitos lugares, sem forma e sem medida”.e Ora, isso é chamá-lo de espírito,
não por palavra mas por um circunlóquio.f Ou negamos totalmente a ressurreição
da carne, ou confessamos que, quando ela tiver ressuscitado, continuará sendo
carne. E esta difere do espírito nisto: que é limitada pelo espaço; que é visível; e
que se pode tocar.
19.3 – Nosso corpo ressurreto será como o corpo glorioso do Senhor
[1539] Porque, a quem eles irão persuadir, rogo aos leitores que me digam, de
que o nosso corpo haverá de ser infinito, depois de recebido na glória e na imortalidade celestial? Ora, o apóstolo testifica que o nosso corpo será transformado
e será semelhante ao corpo glorioso do Senhor.40 E os tais opositores não atribuem ao corpo glorioso de Cristo qualidades segundo as quais ele está em muitos
lugares e não é limitado por nenhum espaço, visto que não querem atribuir essas
qualidades ao nosso corpo glorioso – o que seria um erro que, penso eu, ninguém
aceitaria. [1536] E de nada lhes serve a objeção que às vezes fazem citando o fato
de que Jesus Cristo entrou onde estavam os Seus discípulos, estando trancadas as
portas.41 A verdade é que Ele o fez milagrosamente, porque não arrombou as
portas, nem esperou que alguém as abrisse, mas, por Seu poder, contra todo e
qualquer obstáculo, Ele se fez presente no recinto. Para completar, tendo entrado,
provou para os Seus discípulos a realidade física do Seu corpo, mostrando que
podia ser visto e tocado. Cortem isso dele, e não será mais corpo.
19.4 – Não negamos o poder de Deus; exaltamos Sua vontade soberana
Aqui, para fazer com que sejamos odiosos, eles nos censuram dizendo que falamos pobremente do poder de Deus, o Todo-poderoso. Mas, ou eles forçam tolamente as coisas, ou mentem por má fé. Porque, neste caso, não é questão do que
Deus pode, mas do que Ele quer. E cremos e declaramos tudo o que Lhe aprouve
fazer. Ora, a Ele aprouve que Jesus Cristo fosse feito semelhante a Seus irmãos
em todas as coisas, menos no pecado. E o nosso corpo, que é? Não é de tal sorte
que tem suas medidas certas, ocupa um lugar e por este é limitado, é palpável e
pode ser visto? “E por que”, replicam eles, “Deus não faria que um mesmo corpo
40
Fp 3.21. “Assim como Ele ressuscitou no mesmo corpo no qual tinha padecido e o qual, todavia, teve depois
outra glória, diferente da de antes, assim também nós ressuscitaremos com o mesmo corpo que agora temos,
e, contudo, seremos diferentes depois da ressurreição”. [João Calvino, As Institutas, (1541), II.4]. NE
41
Jo 20.19,20.
d. conniveo.
e. 1536 e 1539: a;topon, polu,topon, a,schmaa,tiston, a;metron.
f. periphrasi.
23
ocupasse vários lugares diferentes, não fosse limitado por nenhum lugar ou espaço definido, e que fosse sem forma alguma e sem medida alguma?” Ah insensato!
Vê42 o que estás querendo do poder de Deus: que faça com que um corpo seja ao
mesmo tempo corpo e não corpo! Como se pedisses que faça com que a luz seja
ao mesmo tempo luz e trevas. Mas, Deus, em Seu poder, quer que a luz seja luz;
as trevas, trevas; um corpo, corpo. Mas quando pedes que a luz e as trevas não
sejam diferentes, que queres tu, senão perverter a ordem estabelecida pela sabedoria de Deus? É, pois, necessário que o corpo seja corpo e o espírito, espírito,
cada qual segundo a lei e a condição criadas por Deus. E a condição do corpo é
que ele subsiste num determinado lugar, com suas próprias e determinadas medidas, e em sua forma.
19.5 – Sobre a ascensão
Nessa condição Jesus Cristo assumiu corpo, no qual certamente infundiu
incorrupção e glória, sem contudo eliminar a sua natureza e a sua realidade própria de corpo. Porque o testemunho da Escritura é claro e evidente, como quando
declara: “Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o
vistes subir”.43 Pois não é que aqueles oponentes obstinados recuam, mas para
dizer que, embora Ele venha em forma visível, entretanto permanece conosco
invisivelmente. Mas o Senhor testificou que possuía carne e ossos que podiam
ser tocados e vistos. E quanto a mover-se e subir, não é mera figura, mas significa
a realização verdadeira daquilo que as palavras dizem.a
[1539] Mas alguém perguntará se devemos atribuir a Cristo alguma região
do céu. A isso respondo com Agostinho,44 dizendo que essa pergunta é muito
supérflua e reflete pura curiosidade. Se cremos que Ele está no céu, é o bastante.
19.6 – Há distinção entre o corpo e o sangue e a respectiva comunicação
de bênção
Agora, se alguém quiser ligar ao pão e ao vinho o corpo e o sangue do Senhor,
digo que é necessário separar um do outro. Porque, assim como o pão é distribuído separadamente do cálice, assim também é necessário que o corpo, estando
unido ao pão, seja separado do sangue, que estará encerrado no cálice. Como,
pois, eles afirmam que o corpo está no pão e que o sangue está no cálice, e sendo
que o pão e o vinho são separados um do outro, os tais, por mais que queiram
enganar-nos com suas tergiversações, não poderão escapar do fato de que o sangue, na separação determinada pelas palavras do Senhor, é distintob do corpo. O
que eles costumam afirmar, que o sangue está no corpo e que, igualmente, o
42
Para ênfase, mantenho aqui o tratamento da segunda pessoa do singular, como no original francês. NT
At 1.11
44
Lib. De fide et symbolo, cap. VI.
a. sonant.
b. secernendum.
43
24
As Institutas – Edição Especial
corpo está dentro do sangue, é alegação frívola e vã, visto que os sinais que os
encerram foram distinguidos pelo Senhor. De resto, se dirigirmos nossos olhos e
nossa reflexão ao céu e nos deixarmos levar para, no sacramento, buscar Cristo
na glória do Seu reino,45 seremos separadamente refeitos e renovados pela carne,
sob o sinal do pão, e nutridos e fortalecidos por Seu sangue, sob o sinal do vinho,
para termos pleno gozo dele.
[1536] Porque, conquanto Ele tenha levado de nós Sua carne e Seu sangue,
subindo ao céu, todavia Ele está assentado à destra do Pai. Quer dizer que Ele
reina com o poder, a majestade e a glória do Pai.46 Este reino não é limitado por
nenhum espaço ou lugar, e não é determinado por quaisquer medidas; que Jesus
Cristo mostra o Seu poder onde quer que Lhe agrade fazê-lo, no céu e na terra;
que Ele se manifesta presente por Seu poder; e que Ele dá constante assistência
aos Seus, vive neles, sustenta-os, confirma-os, dá-lhes vigor, e não os atende
menos do que se estivesse corporalmente presente. Em sumaa, Ele nos nutre com
Seu próprio corpo, cuja participação Ele propicia aos Seus mediante o poder do
Seu Espírito.
[1536] Essab é a presença requerida pelo sacramento, presença que dizemos que existe e que se manifesta com tão grande poder e eficácia que, não
somente inspira à nossa alma uma indubitável confiança na vida eterna, 47 mas
também nos torna seguros da imortalidade da nossa carne, a qual já vem a ser
vivificada pela carne de Jesus Cristo imortal, e de algum modo compartilha Sua
imortalidade.d Os que vão além disto não fazem outra coisa senão obscurecer a
verdade plena e simples.
[1539] Se alguém ainda estiver descontente, venha considerar um pouco junto comigo o que aqui estamos sustentando a propósito do sacramento, do qual tudo
deve ser reportado à fé.e Ora, com esta participação do corpo, a que aludimos, não
alimentamos a fé menos que aqueles que pensam em tirar Jesus Cristo do céu.
45
Cl 3.1-3.
“Por sua ascensão ao céu, Cristo tomou posse do domínio que lhe fora dado pelo Pai, para que ordenasse e
governasse todas as coisas pelo exercício de seu poder.” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos,
1988, (Ef 4.10), p. 118]. “Por sua ascensão ao céu, a glória de sua divindade foi ainda mais ilustrativamente
exibida, e ainda que não mais esteja presente conosco na carne, nossas almas recebem nutrição espiritual de
seu corpo e sangue, e descobrimos, não obstante a distância de lugar, que sua carne é real comida, e seu
sangue, verdadeira bebida.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. II, (Sl
68.18), p. 661-662]. NE
47
Irenæus, lib. IV, c. XXXIVc.
c. Essa citação de 1539 não se encontra em 1536, e não mais se acha na margem de 1541.
a. Essa frase substitui um desenvolvimento de 1536 (secundum hanc rationem etc.), que precede outros parágrafos, os quais, em 1539, são transferidos mais para cima.
b. 1536: Ea est etc. 1539: Ea, inquam, est.
d. Essas últimas linhas encontram-se quase textualmente na Instrução de 1537.
e. Uma frase que segue em 1536 o texto acima traduzido (si quis morosulus etc.), acima já se acha traduzida
um pouco diferentemente (p. , n. a).
46
25
19.7 – Aplicação da norma da fé
[1536] Notem também que a norma da fé, pela qual o apóstolo48 manda pautar
toda interpretação da Escritura,f nos beneficia extraordinariamente neste ponto,
sem nenhuma dúvida. Ao contrário, os que contradizem uma verdade tão manifesta, vejam bem a que regra ou prumoa pretendem ater-se. Porquanto “quem não
confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus”.49 E esse tipo de gente,
embora o disfarce, despoja Cristo da realidade da Sua carne.c
19.8 – O correto entendimento deste assunto afasta-nos da adoração carnal
dos elementos
A maneira de entender o assunto por nós proposta também facilmente nos afastará da adoração carnal que alguns, com perversa temeridade, impuseram ao
sacramento.d Fizeram-no por sua própria conta, e dizem: “Se o corpo está ali,
também, por conseguinte, a alma e a divindade ali estão com o corpo; porque não
podem ser separados nem divididos. Portanto, Jesus Cristo deve ser adorado ali”.
Eis aí os belos frutos que o nosso entendimento produz quando tomamos a liberdade de abstrair-nos e desviar-nos da Palavra de Deus, seguindo os sonhos e
devaneios do nosso cérebro! Mas se os forjadores desses argumentos tivessem
humildemente mantido subordinadas à Palavra de Deus todas as reflexões da sua
mente e do seu sentir, certamente teriam dado ouvidos ao que ela diz: “Tomai,
comei, bebei”, e teriam obedecido ao mandamento pelo qual Deus ordena que o
sacramento seja tomado, não adorado. Por isso, aqueles que o tomam sem adorálo, como foi ordenado pelo Senhor, são certificados de que não se desviam do
mandamento de Deus. Tal certeza é a melhor consolação que nos poderia advir ao
empreendermos ou começarmos qualquer coisa. Eles contam com o exemplo dos
apóstolos, sobre os quais não lemos que tenham adorado genuflexos o sacramento; o que lemos é que tomaram e comeram estando assentados.e Eles contam
também com o uso e costume da igreja apostólica, a cujo respeito a narrativa do
evangelista Lucas informa que a participação dela na comunhão não era em adoração, mas no partir do pão.50 Eles contam igualmente com a doutrina apostólica
com a qual o apóstolo Paulo instruiu a igreja dos coríntios, após haver declarado
que tinha recebido do Senhor o que lhes ensinou.51
48
Rm 12.3.
1Jo 4.2,3b [tradução direta].
b. 1536: I Joan. 4. 1539: Nenhuma citação. 1541 (por erro): I Jean 3.
f. 1536: scripturæ interpretationem ad fidei analogiam exigere jubet Paulus. 1539: analogiam ad quam omnem
scripturæ interpretationem exigere jubet Paulus.
a. amussim.
c. 1536: Tu, licet dissimules, eum carnis suæ veritate spolias. 1539: Isti, licet dissimulent, eum, etc., spoliant.
d. A bula do papa Urbano IV (1264): Transiturus de hoc, prescreve a adoração da hóstia.
Farel, no capítulo XIX da sua Declaração Sumária, não insiste; e só constata: “O pão é elevado e
adorado como Deus”.
e. discumbentes.
49
26
As Institutas – Edição Especial
19.9 – Adoração fundada em conjeturas, não na Palavra de Deus
Mas os que adoram o sacramento fundam-se sobre suas próprias conjeturas e
sabe-se lá quais argumentos inventados por eles mesmos, e não podem citar a seu
favor nem uma só sílaba da Palavra de Deus. Porque, quem que tenha mente
sóbria e sadia irá persuadir-se do que eles querem nos impingir com as palavras
corpo e sangue, a saber, que o corpo de Cristo é Cristo? Por certo lhes parece que
o que apregoam são deduções dos seus silogismos, que julgam válidos. Mas, se
suceder que a consciência deles for agitada por forte tentação ou prova, num
instante os seus silogismos os deixarão espantados, perdidos e confusos, ao se
verem destituídos da Palavra de Deus, firme e segura, unicamente pela qual a
nossa alma subsiste quando chamada a prestar contas à razão, e sem a qual a todo
momento a alma tropeça e cai arruinada. Isso tudo sucederá com esses mestres,
quando virem que a doutrina e os exemplos dos apóstolos os contradizem, e quando
se derem conta de que são eles próprios os autores das suas fantasias.a Junto com
esses ataques movidos contra eles, sobrevirão muitos outros aguilhões e remorsos de consciência.
E então? Será coisa sem nenhuma conseqüência adorar a Deus dessa forma,
sendo que não é ordenada por Deus? Havemos de apressar-nos a fazer algo a
favor do que não pode citar nenhuma palavra, quando se trata do serviço e da
glória que se deve prestar a Deus? Ademais, note-se que a Escritura nos explica
diligentemente a ascensão de Jesus Cristo, pela qual Ele retirou da nossa vista a
presença do Seu corpo, para nos vetar todo pensamento carnal sobre Ele. 52 Notese mais que toda vez que a Escritura faz menção de Jesus Cristo, ela nos admoesta a que elevemos o nosso espírito e O busquemos no céu, onde Ele está assentado à destra do Pai.53 Por tudo isso devemos adorá-lo espiritualmente na glória dos
céus, em vez de inventar essa perigosa forma de adoração que nos enche de idéias
torpes e carnais a respeito de Deus e de Jesus Cristo. Por essa razão, os que
inventaram a adoração do sacramento imaginaram isso fora e acima da Escritura,
na qual não se pode mostrar nem uma só palavra a seu favor, a qual, caso existisse, não haveria como esquecer, se isso fosse agradável a Deus.
Portanto, eles menosprezaram a Palavra de Deus, que tanto proíbe acrescentar algo à Sua Escritura como eliminar alguma coisa dela;54 e, fabricando um
deus a seu bel-prazer e segundo a sua vontade, abandonaram o Deus vivo, porque
adoram os dons, e não ao Doador. Nisso erraram duplamente, pois arrebataram
50
At 2.42
1Co 11.23
52
“Ao termos em mente a ascensão, não devemos confinar nossa visão ao corpo de Cristo, mas nossa atenção
é direcionada para o resultado e fruto dela, ao sujeitar ele céu e terra ao seu governo.” [João Calvino, O
Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. II, (Sl 68.18), p. 660-661]. NE
53
Cl 3.1-4.
54
Dt 12.32.
a. solos sibi autores.
51
27
de Deus a honra para transferi-la à criatura. E Deus foi desonrado também no
sentido de que corromperam e profanaram o Seu dom com o seu benefício quando do Seu santo sacramento fizeram um ídolo execrável. Nós, ao contrário, para
não cairmos na mesma cova, fixamosa inteiramente o ouvido, os olhos, o coração,
o pensamento e a língua na sacratíssima doutrina de Deus, porque ela é a escola
do Espírito Santo, ótimo Mestre. A tal ponto se tem proveito em Sua escola que
não há necessidade de acrescentar nada que venha de outros, e se deve ignorar
tudo o que não é ensinado nela.55
19.10 – Em memória da morte do Senhor, até que Ele venha
Até aqui vimos como o sacramento que estamos analisando serve à nossa fé perante Deus. Ora, visto que o Senhor no sacramento nos traz à memória grande
amplitude da Sua bondade, como acima declaramos, e nos exorta a reconhecê-la,
igualmente nos admoesta a que não sejamos ingratos a tão ampla e franca benignidade, mas sim que a engrandeçamos com louvores que Lhe sejam aceitáveis e a
rememoremos e a celebremos com ação de graças.a Por isso, quando o Senhor
comunicou aos Seus apóstolos a instituição deste sacramento, ordenou-lhes que
fosse celebrado em Sua memória. Isso o apóstolo interpreta em termos de “anunciar a morte do Senhor”.56 Noutras palavras, é confessarmos todos juntos e a uma
só voz que toda a nossa confiança para a vida e a salvação está na morte do
Senhor, a fim de que, com a nossa confissão, O glorifiquemos, e, com o nosso
exemplo, exortemos os demais a Lhe darem a mesma glória. Aqui vemos mais
uma vez qual é o objetivo do sacramento, qual seja, celebrá-lo em memória da
morte de Jesus Cristo. Porque, o fato de que nos é ordenado que anunciemos a
morte do Senhor até que Ele venha para juízo não é outra coisa senão que decla55
“A função peculiar do Espírito Santo consiste em gravar a Lei de Deus em nossos corações.” [João Calvino,
O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.8), p. 228.] É o Espírito Quem nos ensina através das Escrituras
[J. Calvino, As Institutas, I.9.3]; esta é “a escola do Espírito Santo” [J. Calvino, As Institutas, III.21.3], que
é a “escola de Cristo” [João Calvino, Efésios, (Ef 4.17), p. 133], “escola do Senhor” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 55; (1Co 3.3), p. 100]; e, o Espírito é o “Mestre” [João Calvino,
Exposição de Romanos, (Rm 1.16), p. 58]; “o melhor mestre” [João Calvino, As Institutas, IV.17.36.]; é o
“Mestre interior” [João Calvino, As Institutas, III.1.4; III.2.34; IV.14.9]. “O Espírito de Deus, de quem
emana o ensino do evangelho, é o único genuíno intérprete para no-lo tornar acessível.” [João Calvino,
Exposição de 1 Coríntios, (1Co 2.14), p. 93]. “.... é Ele que nos ilumina com a Sua luz para nos fazer
entender as grandezas da bondade de Deus, que em Jesus Cristo possuímos. Tão importante é o Seu ministério que com justiça podemos dizer que Ele é a chave com a qual são abertos para nós os tesouros do reino
celestial, e que a Sua iluminação são os olhos do nosso entendimento, que nos habilitam a contemplar os
mencionados tesouros. Por essa causa Ele é agora chamado Penhor e Selo, visto que sela em nosso coração
a certeza das promessas. Como também agora Ele é chamado mestre da verdade, autor da luz, fonte de
sabedoria, conhecimento e discernimento”. [João Calvino, As Institutas, (1541), II.4] Portanto, “Se porventura
desejamos lograr algum progresso na escola do Senhor, devemos antes renunciar nosso próprio entendimento e nossa própria vontade.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.3), p. 100]. NE
56
1Co 11.26. Tradução direta.
a. figamus.
a. Cf. Instrução de 1537: Não sejamos ingratos a uma tão manifesta benignidade, mas, antes, exaltemo-la com
louvores próprios e com ações de graças.
28
As Institutas – Edição Especial
remos, mediante confissão feita por nossos lábios, o que a nossa fé reconhece no
sacramento: que a morte de Jesus Cristo é a nossa vida. Temos aí o segundo uso
deste sacramento no que se refere à confissão exterior.
19.11 – A Ceia nos exorta ao amor, à paz e à união
Em terceiro lugar, é da vontade do Senhor que o sacramento da Ceia nos sirva de
exortação em tal medida que supere tudo mais no sentido de incitar-nos e inflamar-nos com maior veemência ao amor, à paz e à união.b Porque por ele o Senhor
nos comunica o Seu corpo, e, assim, Ele se faz inteiramente um conosco, e nos
faz um com Ele. Pois bem, visto como só se trata de um corpo e não mais, do qual
Ele a todos nos faz participantes, deve suceder necessariamente que, por essa
participação sejamos feitos, todos nós juntos, um só corpo, sendo que essa unidade nos é representada pelo pão que nos é oferecido como sacramento. Pois, assim
como o pão é feito de muitos grãos de trigoa e estes são de tal maneira misturados
e fundidos que não se pode distinguir grão de grãob nem separar uns dos outros,
de igual modo devemos também estar juntos e unidos de bom grado e de tal
maneira que não haja entre nós nenhuma disputac e nenhuma divisão. Essa verdade prefiro explicar com estas palavras do apóstolo Paulo: “O cálice da bênção
que abençoamos é a comunhão do sangue de Cristo. E o pão que partimos é a
comunhão do corpo de Cristo”.57 Somos, então, um mesmo corpo, todos nós que
participamos de um mesmo pão.
19.12 – Haverá proveito real da Ceia, se houver união e comunhão com Cristo,
de coração e na prática
Teremos muito bom proveito deste sacramento, se o seguinte conhecimento for
gravado e impresso em nosso coração: que nenhum dos nossos irmãos pode ser
difamado, escarnecido ou ofendido de algum modo, para que não ocorra que,
com o nosso irmão, firamos, difamemos, tratemos com escárnio, menosprezemos
ou ofendamos Jesus Cristo; que não podemos ter discórdia nem separação entre
nossos irmãos sem discordar e ser separados de Jesus Cristo; que não podemos
amar Jesus Cristo se não amamos os nossos irmãos; que a mesma solicitude e o
mesmo desvelo que temos no trato do nosso corpo tenhamos com os nossos irmãos, que são membros do nosso corpo; que, assim como nenhuma parte do
nosso corpo pode sofrer alguma dor sem que essa dor seja sentida em todas as
outras partes, assim também não devemos permitir que o nosso irmão seja afligi-
57
1Co 10.16. Tradução direta.
b. Já no início do capítulo XIX da sua Declaração Sumária, Farel escrevia: “A santa mesa visa levar-nos a
entender que somos um”; a Instrução de 1537 diz: “Que nos enlacemos mutuamente por uma unidade tal
que seja como a que faz que os membros do corpo, ligados entre si, formem um todo estreitamente unido”.
a. b. Essa imagem encontra-se na Didaquê dos doze apóstolos, IX, 4.
c. dissidii.
29
do por algum mal de que não participemos igualmente pela compaixão58. Não é,
pois, sem razão que muitas vezes Agostinho chamou este sacramento de laço de
amor.59 Porquanto, que aguilhão poderia ser mais áspero e mais provocante para
nos incitar a termos mútuo amor entre nós do que o fato de que Jesus Cristo, dandose a nós, não somente nos convida a praticá-lo e nos mostra por Seu exemplo que
nos demos e nos sujeitemosa uns aos outros, mas também que, uma vez que Ele se
fez comum a todos, também faz que realmente sejamos todos um nele?b
Mas, assim como vemos que este sacro pão da Ceia do Senhor é uma vianda
espiritual suave e saborosa para aqueles aos quais ele dá reconhecerem que Jesus
Cristo é sua vida e para os quais ele é uma exortação ao amor mútuo entre os
irmãos, assim também, por outro lado, é veneno mortal para aqueles dos quais na
participação do sacramento não é demonstrada fé e os quais não são incitados ao
louvor e ao amor.
[1539] Porque, como acontece com uma vianda física ou material quando
esta encontra o estômago ocupado por humores ou líquidos nocivos, que ela se
corrompe e faz mais mal que bem, da mesma forma esta vianda espiritual, se
acaso cair numa alma poluída pela malícia e pela maldade, irá precipitar-se a
maior ruína. Não por defeito do alimento espiritual, mas porque não há pureza
naqueles que estão maculados pela infidelidade, não sendo santificadosc pela
bênção de Deus.
[1536] Assim é porque, como diz o apóstolo Paulo, “aquele que comer o
pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do
Senhor... pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para
si”.60 Observe-se que nessa passagem não discernir o corpo e o sangue do Senhor
e tomá-losa indignamente é a mesma coisa. Pois esse tipo de gente, na qual não há
nenhuma centelha de fé, gente vazia de qualquer sentimento de amor, e que se
intrometeb grosseiramente61 para participar da Ceia do Senhor, não discernec o
corpo do Senhor. Porquanto, uma vez que tais pessoas não crêem que o corpo é
sua vida, desonram-no, e, quanto lhes é possível, despojam-no totalmente da sua
dignidade. Assim, tomando-o nessas condições, o profanam e o maculam. E, vis58
Ter compaixão, etimologicamente, “sofrer com”, “sentir com”. Refere-se à empatia que deve ser real entre os
irmãos em Cristo. NT
59
In Joh. Tractat. 26, 13 (Migne 35, 1615), etc.
60
1Co 11.27,29
61
Literalmente: “como porcos”. NT
a. devoreamus ac tradamus.
b. Instrução de 1537: “Nenhum aguilhão poderia ser mais áspero nem mais ferino para nos comover e para incitar
entre nós o amor mútuo, do que quando Cristo, dando-se a nós, não nos convida só por Seu exemplo a que nos
demos e nos sujeitemos uns aos outros, mas muito mais pelo fato de que, assim como Ele se fez comum a nós
[um só conosco], assim também nos faz todos um nele” (texto mais próximo do latim de 1536).
c. 1539: sanctificatum. 1541 tem, por erro, sanctifiez.
a. accipere.
b. proripiunt.
c. discernit. 1541 tem, por erro: discernans.
30
As Institutas – Edição Especial
to que discordam dos seus irmãos e a eles não se unemd, atrevem-se a misturar o
sagrado símbolo e sinal do corpo de Jesus Cristo com as suas divergências e
discórdias, e pouco lhes importa que o corpo de Jesus Cristo seja dividido e
despedaçado membro a membro. Portanto, não é sem razão que eles são réus do
corpo e do sangue do Senhor, que com horrível impiedade eles corrompem de
maneira tão vil. Assim, por essa manducação indigna, eles recebem a merecida
condenação. Porque, visto que eles não têm fé eme Jesus Cristo, todavia, pelo
recebimento da Ceia declaramf que não têm salvação em nenhum outro senão em
Jesus Cristo, e que renunciam a toda e qualquer confiança que não seja nele. Com
isso eles se acusam a si mesmos, dão testemunho contra si mesmos e assinam a
sua própria sentença de condenação. Acrescente-se a tudo isso o fato de que,
estando por ódio ou malevolência separados e distanciados dos seus irmãos, quer
dizer, dos membros de Jesus Cristo, contudo testificam que a única salvação está
em ter comunicação ou comunhão com Jesus Cristo e estar unido a Ele.62
Note-se de passo que a passagem em apreço muitas vezes é inutilmente
citada como contrária, alegando-se que ela prova a presença local ou física do
corpo no sacramento. Reconheço e declaro que nela o apóstolo Paulo fala do
corpo real e verdadeiro de Jesus Cristo; mas bem se pode ver em que sentido o
diz. Daí, não há necessidade de distrair-nos respondendo a essa objeção.
Pela razão dita acima, o apóstolo Paulo ordena que o homem se examine a
si mesmo antes de comer do pão e beber do cálice. Porque, como eu o interpreto,
ele quer que cada um pense em si e consigo mesmo para verificar: se, com confiança de coração ele aceita Jesus Cristo como o seu Salvador e a viva voz declara
que O reconhece como tal; se, a exemplo de Jesus Cristo, está pronto a dar-se a
seus irmãos e a viver em comum com aqueles com os quais ele vê que Jesus tem
comunhão; se, assim como reconhece Jesus Cristo, tem igualmente todos os seus
irmãos como membros do Seu corpo; e se deseja e está disposto a consolá-los,
cuidar deles e ajudá-los como seus próprios membros.
Não significa que pretendemos que estes deveres de fé e amor podem ser
perfeitos em nós no tempo presente; significa, porém, que devemos esforçar-nos,
e demonstrar empenhadamente nosso desejo e nossos votos, no sentido de que a
62
“Portanto ‘comer indignamente’ é desonrar o uso puro e legítimo pelo nosso próprio abuso. Esta é a razão por
que há vários graus de indignidade, por assim dizer; e alguns pecam muito mais gravemente, enquanto que
outros o fazem só levemente. Nenhum fornicador, perjuro, ébrio ou impostor, sem indício de penitência,
pode forçar o caminho. Visto que indiferença deste nível produz a caracterização de um cruel insulto a
Cristo, não há dúvida de que alguém que recebe a Ceia assim, recebe sua própria destruição. Outros se
chegam, e não se acham sob o domínio de algum erro óbvio e perceptível, no entanto não estão preparados
em seu coração como o deveriam. Visto que esta displicência ou indiferença é sinal de irreverência, também
merece a punição de Deus. Por isso, visto que há vários graus de ‘comer indignamente’, o Senhor inflige
punições mais leves em alguns, e mais severas em outros.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co
11.27), p. 361]. NE
d. alienati ac dissidentes.
e. repositam.
f. profitentur.
31
nossa fé incipiente seja cada vez mais aumentada e fortalecida cada dia, e de que
o nosso débil amor e a nosso fraco sentimento de caridade ganhem força e vigor.
19.13 – Não há por que atormentar os crentes sobre a questão da participação
digna ou indigna
Alguns, querendo preparar os homens para a digna participação do sacramento,
têm afligido e atormentado cruelmente as pobres consciências, sem todavia lhes
ensinarem nada do que é necessário ensinar. Dizem eles que para comer dignamente a Ceia é preciso estar em estado de graça. E interpretam que estar em
estado de graça é estar purificado de todo pecado.
Por esse ensino, todos os homens que estiveram e estão na terra seriam
excluídos do uso deste sacramento. Porque, se é questão de considerarmos a nossa dignidade em nós, significa que esta é feita por nós! Isso só nos pode causar
ruína e confusão. Ainda que nos empenhemos com todas as nossas forças, nada
conseguiremos, senão que acabaremos sendo mais indignos ainda, isso quando a
duras penas lograrmos encontrar alguma dignidade em nós.
Para tentar curar esse mal, inventaram um meio de adquirir dignidade. É o
seguinte: Havendo nós examinado devidamente a nossa consciência, expurgamos a nossa indignidade pela contrição, pela confissão e pela satisfação.a63 Dissemos acima,b no lugar mais apropriado para tratamento deste assunto, de que maneira se dá esse expurgo ou purificação. No que se refere ao presente propósito,
digo que esses remédios e consolos são por demais pobres e frívolos para as
consciências perturbadas, abatidas, aflitas e aterradas pelo horror do seu pecado.
Porque, se o Senhor, para Sua defesa, não admite à participação da Sua Ceia ninguémc
que não seja justo e inocente, é necessária não pequena segurança para tornar alguém certo de que possui a justiça que ouviu dizer que Deus exige. E como se
poderá confirmar a segurança de que aqueles que se julgam em dia com Deus
fizeram o que está em seu poder fazer? E ainda quando isso fosse possível, quando
será que alguém se atreverá a garantir que fez tudo o que pôde? Dessa maneira,
sendo que não nos é oferecida nenhuma segurança certa e clara da nossa dignidade,
continuará para sempre fechada e trancada a porta de entrada para o recebimento
do sacramento por aquela proibição horrível que importa em que comem e bebem
juízo para si aqueles que comem e bebem indignamente do sacramento.64
a. Em sua Declaração Sumária reeditada em 1534, Farel também fala em confissão, contrição (cap. XXIX) e
satisfação (XXXI).
b. Cap. V (t. II, p. 171 da presente edição.139 1536 tinha, porém: posthac.
139
Na presente tradução brasileira, Vol. II, Capítulo V, logo na primeira página. NT
c. neminem.
63
Ação pela qual se repara uma ofensa ou um pecado. “Satisfação sacramental”, preces ou práticas impostas
pelo confessor ao penitente. NT
64
“Chegamos, porém, à seguinte pergunta: Quando Paulo nos intima a um auto-exame, qual seria a natureza
disto? A conclusão dos papistas é que isto consiste em confissão auricular. Ordenam a todos os que estão
para receber a Ceia a examinarem suas vidas cuidadosa e minuciosamente, a fim de que aliviem-se de todos
os seus pecados aos ouvidos de um sacerdote. Eis o seu método de preparação! Mas, quanto a mim, defendo
32
As Institutas – Edição Especial
19.14 – Demonstração dessa doutrina infeliz e indicação do seu autor
Agora fica fácil julgard que doutrina é essa, e qual é o seu autor – essa doutrina
que despoja os pobres pecadores de toda a consolação deste sacramento, no qual
nos são oferecidos todos os dulçores do Evangelho. Certamente o Diabo, para ser
o mais breve possível, não conhece melhor meio de pôr a perder os homens do
que enganá-los e bestificá-losa dessa forma, para que não sintam o gosto e o sabor
do alimento com o qual o bondoso Pai celestial os quer saciar. Portanto, para não
tropeçarmos nessa confusão e não cairmos nesse abismo, saibamos que estas
santas viandas são remédio para as nossas moléstias, consolo e fortaleza para os
pecadores e digna esmola para os pobres; e que de nada serviriam para os sãos,b
para os justos e para os ricos, se é que se pode encontrar alguns destes. Porque,
visto que nelas Jesus Cristo nos é dado como alimento, entendemos muito bem
que sem Ele desfaleceremos e seremos reduzidos a nada.
Ademais, uma vez que Ele nos é dado para termos vida, entendemos muito
bem que sem Ele estamos mortos em nós mesmos – totalmente sem vida. Porque
nisto consiste a única dignidade, verdadeiramente excelente, que podemos apresentar a Deus – que Lhe ofereçamos a nossa vileza e indignidade, a fim de que,
por Sua misericórdia, Ele nos torne dignos de Si; que estejamos confusos e desconcertados em nós e conosco, a fim de encontrarmos consolo nele; que nos
humilhemos, a fim de que nele sejamos exaltados; que nos acusemos a nós mesmos, a fim de que nele sejamos justificados; que estejamos e nos reconheçamos
mortos, a fim de que nele sejamos vivificados. Além disso, é necessário que desejemos e busquemos a unidade que em Sua Ceia o Senhor nos recomenda. E como
Ele faz com que todos nós sejamos um nele, que aspiremos a que haja em todos
nós um mesmo querer, um mesmo coração e um mesmo linguajar.
a tese de que o santo exame de que Paulo está falando está muito longe de ser tortura. Tais pessoas acreditam
que ficam limpas depois de torturar suas consciências por algumas poucas horas e então permitem que o
sacerdote entre em seus recessos secretos e descubra suas infâmias. O que Paulo requer aqui é outro gênero
de exame, aquele exame que corresponde ao uso apropriado da Santa Ceia.
“Eu tenho um método de preparação mais eficaz ou mais fácil a apresentar-lhe, a saber: se o leitor
deseja extrair os benefícios próprios deste dom de Cristo, então cultive em seu coração fé e arrependimento.
Daí, para que o leito se apresente bem preparado, o exame precisa estar baseado nestes dois elementos. No
arrependimento incluo o amor, pois é indubitável que a pessoa que aprendeu a negar-se a fim de dovotar-se
a Cristo e ao seu serviço, também se entregará de corpo e alma à promoção da unidade que Cristo nos
recomendou. Aliás, o que se exige não é fé perfeita ou arrependimento perfeito. Isto é enfatizado por causa
de algumas pessoas, pois ao insistirem demais por uma perfeição que não pode ser encontrada em parte
alguma, outra coisa não fazem senão pôr barreira entre cada homem e cada mulher e a Ceia para sempre.
Mas se o leitor é sério em sua intenção em aspirar a justiça de Deus, e se, humilhando-se ante a consciência
de sua própria miséria, você recorre à graça de Cristo, e descansa nela, esteja certo de que é um convidado
digno de aproximar-se desta Mesa. Ao afirmar que você é digno, estou dizendo que o Senhor não o deixa
fora, ainda que em outros aspectos você não esteja como deveria. Porque a fé, ainda que imperfeita, transforma o indigno em digno.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 11.28), p. 363-364]. NE
d. 1536: iudicare. 1539 (por erro): indicare.
a. 1536 tem somente: infatuando.
b. 1536, 1539 e 1560: sanis. 1541 tem, por erro: Sainctz.
33
Se tivéssemos pensado e considerado essas coisas, jamais seríamos perturbados por estas cogitações: Como pode ser que, estando nós desprovidos e desnudos de todo bem, estando maculados e contaminados por manchas e pecados,
estando semimortos, podemos alimentar-nos dignamente do corpo do Senhor?
Muito melhor será pensar que vimos pobres a um bondoso doador de esmolas;
doentes, ao médico; pecadores, ao Salvador, e que a dignidade exigida por Deus
consiste primária e principalmente na fé, a qual atribui tudo a Deus e em Deus
tudo coloca, e nada em nós. Em segundo lugar, no amor, que é suficiente apresentar mesmo imperfeito a Deus, para que Ele o aumente e o melhore, visto que não
podemos oferecê-lo perfeito.a
Alguns outros,b concordando conosco em que a dignidade consiste na fé e
no amor, todavia erram muito quanto à medida dessa dignidade, e requerem uma
perfeição de fé à qual ninguém pode se ajustar inteiramente, e um amor igual ao
que o Senhor Jesus Cristo tem por nós. Mas, justamente com isso eles, não menos
que os acima citados, impedem todos os homens de participarem desta santa
Ceia. Porque, se a opinião deles tivesse lugar, ninguém participaria da Ceia senão
indignamente, pois que absolutamente todos seriam tidosc como culpados e como
réus convictos da sua imperfeição. E por certo é uma grande ignorância, para não
dizer asnice, exigir essa perfeição para participação no sacramento – pois a perfeição do homem tornaria o sacramento vão e supérfluo. Porque ele não foi instituído
para os perfeitos, mas para os insegurosd e fracos, a fim de despertar, estimular,
incitar e exercitar para melhor as suas deficiências, tanto na fé como no amor.
20. Freqüência da ministração da Ceia
O que vimos até aqui sobre este sacramento mostra amplamente que não foi instituído para que fosse ministrado uma vez por ano, e isso na forma de uma prestação de contas ou de satisfação, como atualmente é costume público e notório.
Mas foi instituído para estar em uso freqüente, devendo ser ministrado com muita freqüência a todos os cristãos, para trazer muitas vezes à sua lembrança a
paixão de Jesus Cristo; para que, por essa recordação e rememoração, sua fé seja
mantida e fortalecida e eles sejam incitados e exortados a proclamar louvores ao
Senhor e a magnificar e publicar a Sua bondade; para que, finalmente, se nutra e
se mantenha caridoso amor entre eles; e ainda para que testifiquem sua fé e seu
amor uns aos outros, demonstrando a sua coesão na unidade do corpo de Jesus
Cristo. Porque toda vez que comungamos recebendo o sinal do corpo do Senhor,
obrigamo-nos reciprocamente uns aos outros, como que tendo firmado documento legala, a todos os serviços e ofícios do amor, de modo que nenhum de nós
a. 1536, em lugar dessa última frase, tinha somente: quam præstamus.
b. Os anabatistas.
c. tenerentur.
d. infirmis.
a. velut data et accepta tessera.
34
As Institutas – Edição Especial
magoe em coisa alguma o seu irmão e não omita coisa alguma pela qual possa
ajudá-lo e socorrê-lo quantas vezes a necessidade o requeira. Lucas declara em
Atos que esse era o costume da igreja apostólica, quando registra que os crentes
“perseveravam na doutrina dos apóstolos, na comunicação, quer dizer, nas
esmolas,b no partir do pão e na oração”.65 Assim, é necessário proceder inteiramente de forma que em nenhuma reunião da igreja faltem, nem a Palavra, nem as
esmolas ou a beneficência, nem a participação na Ceia, nem as orações. Os escritos de Paulo nos possibilitam conjeturar que essa ordem foi também estabelecida
na igreja dos coríntios.
21. Uma invenção do Diabo
E não há dúvida nenhuma de que o costume que manda comungar uma vez por
ano é uma invenção do Diabo, seja quem for que tenha sido usado como instrumento para colocá-lo em uso. O que se diz é que Zeferino, bispo de Roma,c foi o
autor dessa ordenança, mas eu não acredito que naquele tempo era como é hoje.
Com referência a ele, é possível que ele não quisesse fazer mal à sua igreja,
considerando como eram os seus tempos. Porque não há dúvida de que a santa
Ceia era oferecida a todos os fiéis sempre que eles se reuniam em sua congregação, e de que boa parte deles comungava. Mas, como, por mais que se quisesse,
jamais acontecia que todos se reunissem para comungar na mesma ocasião, e
como, por outro lado, era necessário que aqueles que viviam misturados com
descrentes e idólatras testemunhassem sua fé mediante algum sinal exterior, por
essa causa o santo homem, por questão de ordem e de boa política, instituiu um
dia em que todos os cristãos de Roma, pela participação da Ceia do Senhor, fizessem confissão de sua fé. De resto, isso não significa que eles deixavam de comungar freqüentemente. Dá base para esta afirmação o fato de que pouco antes
Anacleto, também bispo de Roma,a66 tinha estabelecido que todos os cristãos
comungassem todos os dias. Mas o regulamento formulado e estabelecido por
Zeferino, outrora bom, em sua posteridade foi desviado para o mal, quando foi
introduzida certa lei determinando uma comunhão por ano.b Com isso, quase
todos os comungantes, tendo participado da Ceia uma vez e dando-se por satisfeitos e em paz com Deus, dormem o resto do ano.c
65
At 2.42. Tradução direta.
Apud Grande Enciclopédia Larousse Cultural, ed. de 1998, vol. 18, p. 4421, Anacleto foi bispo de Roma de
76 a 87, e Zeferino, de 199 a 216. NT
b. Explicação acrescentada ao latim.
c. Papa por volta do ano 200; seus atos são criticados por Tertuliano. Cf. Platina, De vita Christi et pontificum
omnium (1479).
a. Por volta do ano 80.
b. Decr. Gratian., III, De consecrat., Dist. II, can. 16: “Saltem in anno ter laïci communicent”; Concílio de
Latrão (1215) IV, can. 21; “suscipiens ad minus in Pascha eucharistiæ sacramentum”.
c. in utramque aurem securi dormiant.
66
35
22. Calvino recomenda a ministração semanal
da Ceia, no mínimo67
Pois bem, é necessário proceder doutra forma. Ao menos uma vez por semana
se deve oferecer à congregação dos cristãos a Ceia do Senhor; e devem ser
proclamadas as promessas que, presentes nela, nos renovam e nos nutrem espiritualmente. Certamente ninguém deve ser constrangido a participar, mas todos
devem ser exortados e, quem se mostrar negligente, deve ser repreendido e
corrigido. Então, que todos, como que famintos espiritualmente, se reúnam para
tão feliz repasto. Portanto, não é sem motivo que desde o começo eu insisto em
dizer que a prática ordenada de uma ministração da Ceia por ano, que nos torna
preguiçosos e nos faz dormir por todo o resto do tempo, foi introduzida pela
astúcia do Diabo.68
67
À frente resume: “Quanto à sacra Ceia, é conveniente que seja administrada com bastante freqüência, ao
menos uma vez por semana” [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.12]. NE
68
Calvino combatendo o costume da Alta Idade Média de se celebrar a Ceia uma vez por ano [Ver: J. Calvino,
As Institutas, IV.17.46. Calvino refere-se à decisão do 4° Concílio de Latrão (1215), Cânon XXI. No Novo
Testamento encontramos testemunho que indica a celebração diária da Ceia em Jerusalém (At 2.42-47) e,
aos domingos em Trôade (At 20.7). Nos séculos seguintes, a Ceia era celebrada dominicalmente em algumas
igrejas; em outras, diariamente e ainda, em outras, em três dias da semana, gerando uma variedade de
formas de celebração e o pior, falta de discernimento (Vd. Agostinho, Letter, 54.2. In: Philip Schaff, ed.
Nicene And Post-Nicene Fathers of the Christian Church, 2ª ed. (First series), Peabody, Massachusetts,
Hendrickson Publishers, 1995, Vol. I, p. 321;(doravante, citado como NPNF1); Idem., On The Gospel of
St. John, Tractate XXVI.2 e 7 In: NPNF1., Vol. 7, p. 168-169; 170; Crisóstomo, Homilies on the Gospel of
Saint Matthew, 50.3. In: NPNF1., Vol. 10, p. 312-313; Idem., Homilies on the Epistles of St. Paul the
Apostle to Timothy, V. In: NPNF1., Vol. 13, p. 423-426). Crisóstomo (347-407), recrimina aqueles que vão
à celebração da Ceia mas não participam, retirando-se então ou alegando indignidade. (Crisóstomo, Homilies
on Ephesians, III. In: NPNF1., Vol. 13, p. 63-64). Calvino discute algumas destas questões. J. Calvino, As
Institutas, IV.17.43ss.). Maiores detalhes podem ser encontrados em Hans Lietzmann, From Constantine
to Julian, (A History of the Early Church, Vol. III), London, Lutterworth Press, 1960 (Reprinted), p. 298ss.
Calvino faz um resumo das deturpações romanas deste sacramento In: Exposição de 1 Coríntios, (1Co
11.30), p. 366], mostra que no início da Igreja não era assim. [J. Calvino, As Institutas, IV.17.44-45].
Portanto, como vimos, sustenta que a Ceia deveria ser celebrada semanalmente [J. Calvino, As Institutas,
IV.17.44,46] e, que todos os membros deveriam participar do pão e do vinho. [J. Calvino, As Institutas,
IV.17.48]. Na realidade, para tristeza de Calvino, a sistematicidade da Ceia por ele proposta jamais foi
praticada em Genebra. Os magistrados compreendiam que a Ceia deveria ser ministrada apenas quatro
vezes por ano. Numa tentativa de negociar com os magistrados de Genebra, Calvino propôs então, que a
Ceia fosse ministrada mensalmente; contudo, nem com isso concordaram. Em Berna a Ceia era ministrada
3 vezes ao ano; Calvino em carta aos Magistrados de Berna (1555), lamenta a prática de Berna e Genebra –
que considera um erro –, dizendo: “Queira Deus, cavalheiros, que tanto vós como nós sejamos capazes de
estabelecer um uso mais freqüente....”. [John Calvin, “To the Seigneurs of Berne,” John Calvin Collection,
[CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 395, p. 163]. No entanto, “Calvino procurou atenuar a
severidade destes decretos fazendo arranjos para que as datas da comunhão variassem em cada igreja da
cidade, provendo assim oportunidade para a comunhão mais freqüente do povo, que podia comungar em
uma igreja vizinha.” [William D. Maxwell, El Culto Cristiano: sua evolución y sus formas, Methopress
Editorial y Grafica, Buenos Aires, 1963, p. 140-141]. No entanto, em Genebra Calvino não teve esta oportunidade, já que os magistrados determinaram que a Ceia fosse celebrada no Natal, na Páscoa, no Pentecostes
e na Festa das Colheitas. [Ver: John Calvin, “To the Seigneurs of Berne,” John Calvin Collection, [CDROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 395, p. 163].
Se por um lado Calvino conviveu com a separação entre a Palavra e a Ceia, não admitia o Sacramento
sem a Palavra já que a “correta ministração do sacramento não subsiste à parte da Palavra. Pois, qualquer
benefício que seja, que da Ceia nos provém, requer a Palavra....”. [J. Calvino, As Institutas, IV.17.39]. NE
36
As Institutas – Edição Especial
Da mesma invençãoa procede outra regra que tira e subtrai a metade da Ceia
da melhor parte do povo de Deus. Refiro-me ao símbolo e sinal de sangue que,
sendo reservado para quantosb fulanos tonsurados, oleosos e fartosc haja, é proibido aos leigos e profanos – pois eles dão esses títulos e nomes à herança de
Deus! O edito e ordenança do Deus eterno é que todos bebam.69 O homem atrevese a cassar e anular essa ordem mediante novidade e lei contrária, ordenando que
não bebam todos.d E os tais legisladores, para não parecer que estavam combatendo contra Deus sem motivo, alegam os inconvenientes que poderiam ocorrer,
se fosse permitido a todos beber do cálice; como se a sabedoria eterna de Deus
não fosse capaz de aperceber-se disso!
Além disso, eles deduzem astutamente que um sinal vale pelos dois. “Porque”, dizem eles, “se isto é o corpo, é Jesus Cristo completo, que já não pode ser
desligado e separado do Seu corpo, sendo que o corpo contém o sangue”.e Vejam
lá que tipo de concórdia tem o nosso sentido com Deus, pois mal começa e logo,
a rédeas soltas, perde as estribeiras e bate as asas.f O Senhor, mostrando o pão,
disse que é o Seu corpo, e, mostrando o cálice, declarou que é o Seu sangue.
Entretanto, a audácia da razão e da sabedoria humanas replica, ao contrário, que
o pão é o sangue e o vinho é o corpo. Como se, sem causa nem propósito, o
Senhor tivesse distinguido por meio de palavras e por meio de sinais o Seu corpo
do Seu sangue; e como se alguma vez se ouvisse dizer que o corpo de Jesus Cristo
ou o Seu sangue devesse chamar-se Deus e homem. Certamente, se Ele quisesse
designar toda a Sua Pessoa, teria dito: “Isto sou eu”, como era Seu costume falar
na Escritura,70 e não: “Isto é o meu corpo, Isto é o meu sangue”. Bem sei que os
ministros de Satanás (acostumados como estão a zombar da Escritura) aqui zombam dela e, com astutas maquinações, afirmam que Jesus Cristo só admitiu os
Seus apóstolos à participação desta Ceia, os quais Ele já tinha consagrado introduzindo-os na ordem dos sacrificadores, que eles chamam de ordem do sacerdócio.
23. Cinco perguntas aos mestres do sacerdócio romano
Mas eu gostaria que eles me respondessem a cinco perguntas, das quais não poderão escapar, se, com as suas mentiras, não forem facilmente persuadidos.
69
Mt 26.27
Mt 14.27; Lc 24.39; Jo 18.6,8
a. ex eadem officina. Cf. Le livre des Marchands (Livro dos Mercadores), de Marcourt (1534).
b. 1536: paucis.
c. 1536: unctis; 1541 tem, por erro, greffez [em vez de gressez].
d. O decreto de Graciano,140 III, De consecrat. (Dist. II, can. 12, Migne 187, 1736) ainda proíbe a separação das
espécies.
140
Graciano (Gratianus) nasceu em Chiusi, na Toscana, no início do século 12. Passou a maior parte da sua
vida num mosteiro, em Bolonha, mas também foi professor universitário. Famoso por ser o criador da
ciência da lei canônica e por seu livro, Concordia discordantium canonum ou Decretum Gratiani. NT
e. Tomás de Aquino (Suma [Somme], III, quest. 80, art. 12) admite a separação das espécies. O Concílio de
Constança a decreta oficialmente.
f. lascivire ferocireque.
70
37
Em primeiro lugar, de que oráculo lhes foi revelada essa solução tão distanciada da Palavra de Deus? A Escritura mencionaa doze que se assentaram com
Jesus Cristo, mas ela não obscurece a dignidade de Jesus Cristo chamando-os de
sacrificadores, nome a respeito do qual falaremos mais adiante, no lugar próprio.b
E, embora tenha ministrado o sacramento a doze, ordenou-lhes que fizessem o
mesmo, isto é, que o distribuíssem entre eles.
Em segundo lugar, por que foi que naquele período melhor, até mil anos
após o tempo dos apóstolos, todos, sem exceção, eram feitos participantes dos
dois elementos deste sacramento? Ignorava a igreja antiga qual grupo Jesus Cristo admitiria à Sua Ceia? Seria uma atitude despudorada recuar aqui ou tergiversar; os livros de história eclesiástica e as obras dos escritores antigosa dão amplos
e francos testemunhos desse fato.71
Em terceiro lugar, por que a respeito do pão Jesus Cristo simplesmente diz
que o comam, mas do cálice, que “todos”, universalmente, dele bebam, ordenando claramente que o fizessem? Como se quisesse prevenir e impedir expressamente essa astúcia diabólica.
Em quarto lugar, se, como esses maus mestres pretendem, o Senhor considerasse dignos da Sua Ceia somente os sacrificadores, quem jamais seria obstinado e audaz ao ponto de chamar para participarem dela os que O Senhor exclui?
Tenha-se em conta, porém, que essa participação é de um dom, sobre o qual se
sabe que ninguém tem autoridade, a não ser com base num mandamento daquele
que, só Ele, o pode dar. E ainda, como podem atrever-se a distribuir hoje em dia
o sinal do corpo de Jesus Cristo ao povo em geral, se para isso não têm nem
mandamento nem o exemplo do Senhor?
Em quinto lugar, mentiria o apóstolo Paulo quando disse aos coríntios que
recebeu do Senhor o que também lhes entregou?72 Porque logo depois ele declara
que o ensinamento que recebeu é que todos, indiferentemente, participassem dos
dois elementos da Ceia. Ora, se o apóstolo Paulo aprendeu do Senhor Jesus Cris71
Agost., livro 6, cap. 24, da Hist. Eccles.b; e no livro 9, c. 30 da História Tripart.c; Crisóst., de seu exílio ao
papa Inoc.d; Agost., da ep. 107e, e na primeira ad Jannuari.f; Jeros., sobre Sofonias; Tertuliano no livro
Sobre a Resist. da Carneg; Cipriano, no quinto sermão sobre os pecadoresh, e no I. Livro das Epístolas, na
2ª. Epístolai, sobre a Ceia do Senhorj; Mc 14; Mt 29.
72
2Co 1.17-22; 1Co 11.23
a. recenset.
b. Mais adiante, capítulo XV.
a. As citações que se seguem ocupam toda a margem da edição original.
b. Hist. eccles., VI, 44.
c. Cassiodoro, 1. IX, 30 (Migne, 69, 1144).
d. Opera omnia (Paris, 1835), III, 618.
e. 217, V, 16 (Migne, 33, 985).
f. Ad inquisitiones, lib. I (Migne, 33, 199).
g. Cap. VIII (Migne, 2, 852).
h. De lapsis, cap. 22 et 25 (Migne, 4, 483).
i. Epist. 63 ad Cæcilium, em Migne, 4, 372).
j. Livro atribuído a Cipriano.
38
As Institutas – Edição Especial
to que todos, sem distinção ou diferença, sejam admitidos, que aqueles que o
proíbem e o recusam a quase todo o povo de Deus considerem bem de quem
aprenderam isso, visto que já não podem alegar que Deus é o autor desse ensino,
em Quem não há sim e não, isto é, Ele não muda nem se contradiz. E ainda mais,
para essas abominações tomam cobertura do nome e dos direitos da igreja, e sob
tal cobertura fazem a proibição que condenamos. Como se os anticristos fossem
a igreja; pois pisoteiam, eliminam e anulam a doutrina e as instituições de Jesus
Cristo. Ou como se a igreja apostólica, na qual se encontra a real e plena flor do
cristianismo, não fosse igreja.
Com essas invenções e outras semelhantes, Satanás tem se esforçado para
espalhar as suas trevas e nelas envolver a sacra Ceia de Jesus Cristo, para corrompêla, depravá-la e obscurecê-la; ou, no mínimo, para que a sua pureza não fosse
mantida e preservada na igreja. Mas o cúmulo da abominação consistiu em criar
um sinal pelo qual esta sagrada Ceia não somente fosse obscurecida e pervertida,
mas totalmente apagada e abolida, se desvanecesse e desaparecesse da memória
dos homens. Foi feito isso quando Satanás cegou quase todo o mundo para o
pestilento erro de crer que a missa é sacrifício e oblação para impetrar a remissão
dos pecados. Bem sei quanto essa praga se arraigou, oculta sob grande aparência
de virtude, acobertando-se sob o nome de Jesus Cristo, ao ponto de muitos pensarem que a palavra missa inclui plenamente a súmula da fé.
Mas, tendo sido provado claramente pela Palavra de Deus que essa missa,
maquiada e enfeitada como se apresenta, causa enorme desonra a Jesus Cristo,
violenta e sepulta a Sua cruz, lança ao esquecimento a Sua morte, priva-nos do
fruto dela proveniente, destrói e dissipa o sacramento, no qual nos é deixada a
lembrança da Sua morte – terá ainda a missa algumas raízes tão profundas, que
este poder extraordinário, qual seja, a Palavra de Deus, não possa cortar, podar e
derrubar? Terá ela ainda alguma cobertura tão bela, sob a qual o mal oculto não
seja revelado por esta luz?
24. Acréscimo a denúncias contra o
pretenso sacrifício da missa
Declaramos, então, o que em primeiro lugar foi levantado e proposto: que na
missa se faz a Jesus Cristo intolerável blasfêmia e desonra. Porque Ele foi constituído e consagrado sumo sacerdote pelo Pai, não por algum tempo, como se lê
dos que foram constituídos no Antigo Testamento, cujo sacerdócio ou sumo sacerdócio não poderia ser perene porque eles próprios eram mortais.73 Pelo que
era necessário que tivessem sucessores, que fossem substituídos quando morriam. Mas Jesus Cristo, que é imortal, não tem necessidade de vigário ou de alguém que O substitua. Portanto, Ele foi designado pelo Pai para ser sacerdote
73
Hb 5, 7, 9 e 10
39
para sempre, mas segundo a ordem de Melquisedeque, para exercer o ofício sacerdotal eternamente, sacerdócio duradouro e perpétuo.74 Este mistério teve seu
tipo ou figura muito tempo antes, em Melquisedeque.75 Este, depois de apresentado uma vez pela Escritura como “sacerdote do Deus Altíssimo”, nunca mais é
mencionado, como se vivesse para todo o sempre. Conforme essa símile, Jesus
Cristo é chamado sacerdote segundo a sua ordem.
Ora, aqueles que oferecem sacrifícios todos os dias precisam de sacerdotes
que por eles façam oblações ou ofertas, e eles são sub-rogantes ou substitutos de
Jesus Cristo, como Seus sucessores e vigários. Por essa sub-rogação não somente
despojam Jesus Cristo de Sua honra e O privam da Sua prerrogativa de sacerdote
eterno, mas também se esforçam para lançá-lo fora da destra de Seu Pai, posição
que só pode ocupar como imortal se igualmente permanecer como sacerdote eterno. E que eles não aleguem que os seus sacrificadores não substituem Jesus Cristo como crucificado, mas que apenas se subordinam ao Seu sacerdócio eterno, o
qual não deixa por isso de subsistir sempre em seu estado. Porque as palavras do
apóstolo os perseguem muito de perto, para que possam escapar. Diz ele que no
passado havia necessidade de muitos sacerdotes porque eles eram impedidos pela
morte de permanecer para sempre. Portanto, Jesus Cristo, que não pode ser impedido pela morte,76 é único, e não precisa de companheiros.77
Quanto à segunda pretensa virtude da missa, foi declarado que ela violenta
e sepulta a cruz e a paixão de Jesus Cristo. Verdadeiramente isso é mais que
certo. Porque, se Jesus Cristo se ofereceu a Si mesmo em sacrifício na cruz a fim
de nos santificar perpetuamente e de adquirir para nós eterna redenção, sem dúvida o efeito e a eficácia desse sacrifício têm duração sem fim. Se não, não o teríamos em maior estima que os bois e novilhos que sob a Lei eram imolados, cujas
oblações ou ofertas se comprovaram ineficazes, fracas e sem nenhum efeito e
poder, razão pela qual eram repetidas muitas vezes.78 Por isso devemos confessar,
ou que no sacrifício de Jesus Cristo feito na cruz faltou o poder de purificação
eterna e de eterna santificação, ou que Jesus Cristo fez um único sacrifício, uma
vez por todas. É o que diz o apóstolo,79 declarando que este grande sacerdote ou
sumo sacerdote, Cristo, pelo sacrifício de Si mesmo se manifestou uma vez na
consumação dos séculos para suprimir, aniquilar e abolir o pecado. E mais: “Com
uma única oferta, aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados”.80
74
Sl 110
Gn 14.18-24
76
Hb 7.23,24
77
“Os antigos sacerdotes eram em maior número em razão de a morte interromper seu sacerdócio. Quanto a
Cristo, não há morte que o impeça de cumprir seu ofício. Por isso, Ele é o único e eterno Sacerdote. Propósito distinto produz resultados distintos.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos,
1997, (Hb 7.23), p. 197]. NE
78
Hb 10.1-12
79
Hb 9.23-26
80
Hb 10.14,18
75
40
As Institutas – Edição Especial
[1539] E acrescenta uma sentença notável, declarando que, uma vez adquirida a
remissão dos nossos pecados, “já não há oferta pelo pecado”.
Também tem esse significado a respeito de Jesus Cristo a Sua última palavra, que Ele pronunciou quando se dispôs a render o espírito. Disse Ele: “Está
consumado”.81 Temos o costume de observar como mandamentos divinos as derradeiras palavras dos moribundos. Jesus Cristo, quando estava para morrer,
testificou que por Seu único sacrifício é aperfeiçoado e se cumpre tudo o que diz
respeito à nossa salvação. E nós lhe acrescentamos todos os dias outros sacrifícios inumeráveis, como se o de Cristo fosse imperfeito! Isso apesar de Jesus Cristo
nos ter recomendado e declarado tão evidentemente a sua perfeição, visto que a
santíssima Palavra de Deus não somente nos assegura, mas também brada e proclama que o Seu sacrifício único é perfeito e que sua virtude e poder é eterno.82
Aqueles que buscam e exigem outros sacrifícios não o acusam de imperfeição e de fraqueza? E a missa, que se subordina a esta condição, que todos os
dias sejam realizados cem mil sacrifícios, a que leva, senão a entender que a
paixão de Jesus Cristo, pela qual Ele se ofereceu em um só sacrifício ao Pai, é
soterrada e suprimida?
25. Quem não é cego vê a ousadia de Satanás
Quanto a isso, qualquer pessoa que não esteja completamente cega vê aí a ousadia de Satanás em sua resistência à verdade de Deus e em seu combate contra ela,
sendo que a verdade de Deus é tão aberta e manifesta! Não me é oculto com
quantas e quais ilusões o pai da mentira tem o costume de acobertar esta sua
astúcia, querendo persuadir-nos de que não se trata de muitos nem diferentes
sacrifícios, mas de um só e o mesmo sacrifício repetido muitas vezes. Mas facilmente fazemos dissipar, sem nenhum esforço, a fumaça das suas trevas. Porque o
apóstolo, em toda a sua discussão do assunto, não pretende afirmar apenas que
não há outros sacrifícios, mas também que é só uma oferta, que esta é feita uma
só vez, e que não deve ser repetida.
[1539] Mas é necessário entender sobre qual fundamento os misseiros fazem os seus sacrifícios. Eles se servem da profecia de Malaquias,83 na qual o
Senhor declara que no mundo todo Lhe seriam oferecidos incenso e ofertas puras; como se fosse novidade ou coisa inusitada nos profetas, quando falam da
vocação dos gentios, representar o serviço espiritual de Deus por meio das cerimônias da Lei, para demonstrarem mais familiarmente aos homens da sua época
como os gentios deveriam ser introduzidos na real participação da aliança de
81
Jo 19.30
“Nossa salvação é o fruto do sacerdócio eterno, se porventura colhermos tal fruto pela fé, como devemos
fazê-lo. Pois onde a morte ou mudança se faz presente, aí buscaremos a salvação sem qualquer resultado.
Por isso, aqueles que aderem ao antigo sacerdócio jamais alcançarão a salvação.” [João Calvino, Exposição
de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 7.25), p. 197]. NE
83
Ml 1.11
82
41
Deus! Como de fato universalmente eles costumavam registrar as coisas que se
cumpririam no Evangelho sob as figuras próprias do seu tempo. Ficará mais fácil
entender isso mediante exemplos, como estes:
Em lugar de dizerem que todos os povos se converterão a Deus, eles dizem
que os povos subirão a Jerusalém. Em lugar de dizerem que os povos do Meiodia84 e do Oriente adorarão a Deus, eles dizem que tais povos oferecerão como
presentes as riquezas do seu país. Para mostrar o grande e vasto conhecimento
que deverá ser dado aos crentes na revelação de Cristo, eles dizem que “vossos
filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão
visões”.85 Como, porém, os exemplos desta maneira de falar são por demais freqüentes, não quero alongar-me citando muitos deles.
Como se prejudicam grosseiramente esses pobres tolos por não reconhecerem outro sacrifício que não o da sua missa! Pois os crentes agora sacrificam verdadeiramente a Deus e Lhe oferecem oblação pura. Disso se falará daqui a pouco.
[1536] Passo agora ao terceiro ofício da missa,a onde se deve mostrar como
ela apaga e elimina da lembrança dos homens a verdadeira e única morte de Jesus
Cristo. Porque, assim como entre os homens a confirmação de um testamento
depende da morte do testador, assim também o Senhor confirmou com Sua morte
o Testamento quando nos fez a dádiva da remissão dos nossos pecados e da justiça eterna. Aqueles que ousam introduzir neste Testamento variações e inovações,
desacreditam Sua morte e a reputam como não tendo nenhum valor. E que outra
coisa é a missa, senão um testamento novo e totalmente diferente? Porque cada
missa não promete nova remissão de pecados e nova aquisição de justiça, ao
ponto de existirem tantos testamentos quantas missas há? Cada vez vem de novo
Jesus Cristo e confirma por uma nova morte esse novo testamento, ou melhor,
mediante infinitas mortes confirma os testamentos, que são infinitosb nas missas.
Portanto, eu não disse a verdade no início, quando afirmei que pelas missas é
apagada e esquecidac a verdadeira e única morte de Jesus Cristo? Além disso, a
missa não leva diretamente a pensar que, se fosse possível, Jesus Cristo é novamente ferido e morto? Pois, como diz o apóstolo, “Onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do testador”.86 A missa se apresenta como um novo
testamento de Jesus Cristo; por conseguinte, exige Sua morte. Ademais, é necessário que o sacrifício que se oferece seja ferido e imolado. Se em cada missa
Jesus Cristo é oferecido em sacrifício, é preciso que a cada momento, em mil
lugares, ele seja cruelmente ferido e morto. Esse argumento não é meu, mas do
apóstolo, que diz: Se Jesus Cristo tivesse necessidade de se oferecer a si mesmo
84
Extremo sul. Ponto cardeal: Sul. NT
Zc 14.17; Sl 68.29; 72.10; Jl 2.28; etc. NT
86
Hb 9.16.
a. partes.
b. innumera.
c. Uma só palavra em 1536: obliterari.
85
42
As Institutas – Edição Especial
muitas vezes,87 “seria necessário que ele tivesse sofrido muitas vezes desde a
fundação do mundo”.88
Devemos tratar agora da quarta obraa realizada pela missa. Esta nos priva
do fruto proveniente da morte de Jesus Cristo, visto que ela faz com que não o
reconheçamos e não o tenhamos em consideração. Porque, quem pensará em ser
redimido pela morte de Cristo, quando vir na missa uma nova redenção? Quem
confiará que os seus pecados foram perdoados, quando vir um novo perdão? E
não escapará do dilema aquele que disser que só obtemos a remissão dos pecados
na missa porque ela já foi adquirida pela morte de Jesus Cristo. Porque outra
coisa não estará alegando senão que somos redimidos por Jesus Cristo com a
condição de que nós mesmos nos redimamos. Porque essa doutrina foi semeada
pelos ministros de Satanás, e hoje em dia eles a defendem aos brados e a ferro e
fogo, afirmando que quando oferecemos Jesus Cristo ao Pai na missa, por obra
dessa oblação adquirimos para nós a remissão dos pecados e somos feitos participantes da paixão de Jesus Cristo. Então? Que resta à paixão de Jesus Cristo senão
somente que ela não passa de um exemplo de redenção pelo qual aprendemos a
ser nós mesmos os nossos redentores?89
Chegamos agora ao último benefícioa da Missa, que é o seguinte: A sacra
Ceia, na qual o Senhor deixou gravada e impressa a memória da sua paixão, pela
missa é extirpada, perdida e abolida. Porque a vera Ceia é um dom de Deus que
deve ser tomado e recebido com ação de graças. E, ao contrário, o que se faz é
que o sacrifício da missa seja um pagamento feito a Deus, que Ele recebe de nós
como uma forma de satisfação da Sua justiça. Pois a mesma diferença que existe
entre tomar e dar existe entre sacramento e sacrifício. E certamente é uma ingratidão tremendamente desafortunada do homem que, onde deveria reconhecer a
87
Hb 9.25,26. NT
“Visto que este único sacrifício que Cristo ofereceu uma vez por todas possui eficácia eterna, bem como é
perpétuo em seus efeitos, não é de estranhar que o sacerdócio eterno de Cristo, que é apoiado por seu poder,
jamais fracasse.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 9.25), p. 245].
“Ele [escritor de Hebreus] demonstra agora quão absurda será nossa atitude se não dermos valor ao único
sacrifício de Cristo, o qual efetua eficientemente expiação. Se isso é assim, ele infere que Cristo deveria
morrer muitas vezes, visto que a morte está sempre relacionada com sacrifício. Ainda bem que essa última
suposição é completamente absurda. Segue-se, pois, que a eficácia desse sacrifício único é eterna e se
estende por todos os séculos.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb
9.26), p. 245]. NE
89
“.... Em cada época, desde o princípio, houve pecados que necessitavam de expiação. Portanto, a menos que
o sacrifício de Cristo fosse eficaz, nenhum dos [antigos] pais haveria obtido a salvação. Visto que se achavam sujeitos à ira divina, qualquer remédio para livrá-los teria resultado em nada, se Cristo, ao sofrer uma
vez por todas, não sofresse o suficiente para reconciliar os homens com a graça de Deus, desde o princípio
do mundo e até ao fim. A não ser que desejemos muitas mortes, contentemo-nos com um só sacrifício. (...)
Não está no poder do homem inventar sacrifícios como lhe apraz. Eis aqui uma verdade expressa pelo
Espírito Santo, a saber: que os pecados não são expiados por um sacrifício, a menos que haja derramamento
de sangue. Por conseguinte, a idéia de que Cristo é sacrificado muitas vezes não passa de uma invenção
diabólica.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 9.26), p. 245-246]. NE
a. munus.
a. coronidem.
88
43
magnanimidade e a generosidade da bondade divina com ação de graças, quer
fazer crer a Deus que Ele lhe fica obrigado.b O sacramento nos promete que pela
morte de Jesus Cristo somos restituídos à vida, não uma vez somente, mas que
somos constante e continuadamente vivificados, porque, quando Ele morreu, foi
cumprido tudo quanto diz respeito à nossa salvação. O sacrifício da missa entoa
outra cançãoc: que é necessário que Jesus Cristo seja sacrificado todos os dias,
para podermos ter algum proveito.
26. A missa rompe a comunhão do povo cristão
A Ceia deve ser apresentada e distribuída à igreja reunida publicamente, para que
sejamos instruídos sobre a comunhão pela qual todos nós estamos juntos e unidos a Jesus Cristo. O sacrifício da missa rompe e destrói essa união comunitária.
Porque, depois que esse erro entrou em cena, deixando-se que os sacerdotes sacrifiquem pelo povo, como se a Ceia fosse reservada para eles, ela não tem sido
mais comunicada à igreja dos crentes, como ordena o mandamento do Senhor. E
foi aberto o caminho para as missas privadas, as quais mais representam alguma
excomunhão do que a comunhão instituída pelo Senhor, porquanto o padre e
sacrificador, querendo devorar seu sacrifício, separa-se de todo o povo crente.a
Para que ninguém se confunda, chamo de missas privadas tanto as missas chamadas solenes por causa dos seus cantos e gritos, como aquelas nas quais o sacerdote só murmura e sussurra.b Porque todas elas igualmente privam a igreja da participação comum da Ceia.
27. Uma pergunta aos doutores de missas
Antes de terminar, interrogo os nossos doutores de missas nestes termos: Visto
que eles sabem que “o obedecer é melhor do que o sacrificar”90 e que Deus exige
obediência à Sua voz, sendo que Ele não ordena que Lhe sejam feitos sacrifícios,
como pensam que esse tipo de sacrifício pode ser agradável a Deus, uma vez que
não há nenhum mandamento que o exija e que eles vêem que não há nenhuma
sílaba da Escritura que o aprove? Ademais, visto que eles sabem que o apóstolo
diz, ”Ninguém, pois, toma esta honra para si mesmo, senão quando chamado por
Deus, como aconteceu com Arão”, e que mesmo Jesus Cristo não entrou nisso
por conta própria, mas obedeceu ao chamamento de Seu Pai91 – então, sendo
assim, ou devem eles mostrar que Deus é o autor e o fundador do seu sacerdócio,
ou confessar que a sua ordem sacerdotal não é de Deus e que, não tendo sido
90
1Sm 15.22
Hb 5.4,5
b. Deum sibi debitorem facit.
c. cantilenam
a. Cf. Farel, Declaração Sumária, cap. XIX: “A missa visa dar a entender a grande diferença entre o sacerdócio
e o povo”.
b. susurris.
91
44
As Institutas – Edição Especial
chamados para esse ofício, eles se introduziramc nele por sua própria temeridade.
Mas eles não conseguiriam mostrar uma vírgula sequer que favoreça o seu sacerdócio. Que será, então, dos sacrifícios, visto que não podem ser oferecidos se não
houver sacerdotes? Que resta dizer, senão que os cegos vêem, os surdos ouvem e
até as crianças entendem a abominação que a missa é? Apresentada em vaso de
ouro (isto é, sob o nome da Palavra de Deus), embriagou, atordoou e estupidificoua
todos os reis e povos da terra, do maior ao menor, de tal maneira que, tornando-se
mais embrutecidosb que os animais, estabeleceram o princípio e o fim da sua
salvação unicamente nessa coisa execrável!
28. Abusos grosseiros relacionados com a
missa e seus oficiantes
Não toco nem com o dedo mínimo os enormes e grosseiros abusos que se poderia
citar, pelos quais a pureza da sua sagrada missa é profanada e corrompida, quais
sejam, as muitas feiras ou quermesses com seus negócios vergonhososc promovidos por eles, e tantos ganhos desonestos e perversos que tais sacrificadores obtêm com as suas missarias. Com quantos saques e pilhagens eles saciam a sua
avareza! Mostro apenas, e com poucas e simples palavras, em que consiste d de
fato a tal santíssima santidade da missa, pela qual por tanto tempo ela tem sido
considerada digna de admiração e de receber tão grande veneração. Seria necessário um livro bem maiore para podermos aclarar e enobrecer tão grandes mistérios, segundo a sua dignidade. Não quero misturar aqui essas práticas torpes e
vis, que estão expostas diante dos olhos de todos. Evito isso a fim de que cada
qual entenda que a missa, tomada em sua mais excelente integridade e avaliada
em suas melhores condições, está, da raiz ao topo, cheia de toda espécie de impiedade, de blasfêmia, de idolatria, de sacrilégio, sem levar em conta as suas seqüelas e conseqüências.a
Agora, para que nenhum briguento ache motivo para continuar lutando contra nós por causa dos nomes sacrifício e sacerdote, resumidamente expedirei o que,
em toda essa discussão, entendo pelas palavras sacrifício e sacerdote ou padre.
29. Que se deve entender pelas palavras sacrifício e sacerdote?
[1539] Não vejo que razão podem ter aqueles que estendem o título de sacrifício a todas as cerimônias e observâncias relacionadas com o serviço de Deus.
c. irruperunt.
a. vertigine percussit.
b. stupidiores.
c. turpes mundinas. Cf. o Livro dos Mercadores, de Marcourt, publicado um ano antes da produção completa
das Institutas.
d. 1536: qualis. 1541, por erro: qu’elle.
e. majoris operis.
a. 1536 tem somente: appendicibus.
45
Pois vemos que, pelo costume perpétuo da Escritura, o nome sacrifício é tomado como equivalente ao que os gregos ora chamam thysia [qusi/a], ora prosphora,
[prosfora/]b significando geralmente tudo o que é oferecido a Deus. Tenha-se em
conta, porém, que não é necessário fazer aqui essa distinção, mas tão-somente a
que se deduz dos sacrifícios da lei mosaica, sob cuja sombra o Senhor quis representar para o Seu povo toda a verdade sobre os sacrifícios espirituais. Pois bem,
embora tenha havido muitas espécies deles, podem ser reduzidos a dois membros. Porque, ou a oferta era feita pelo pecado, a modo de satisfação, sendo a
respectiva culpa expiada diante de Deus; ou se fazia como um sinal do serviço
divino e como um testemunho da honra que se prestava a Deus. O segundo membro abrange três gêneros de sacrifício. Porque, fosse que se pedisse o Seu favor e
graça na forma de súplicas; fosse que se rendesse louvor e graças a Ele por Suas
bênçãos; fosse que se executasse simplesmente para renovar a memória da Sua
aliança, seu objetivo era sempre testificar a reverência que se tem por Seu nome.
Por isso deve-se reportar ao segundo membro o que na Lei se chama holocausto,
libação, oblação ou oferta, primícias e os sacrifícios pacíficos. Por essa causa
também dividiremos os sacrifícios em duas partes: a uma chamaremos gênero
destinado à honra e reverência a Deusa, pelo qual os crentes reconhecem e confessam que nele se origina e dele procede todo bem; e [1536] o outro é o sacrifício propiciatório ou de expiação. Sacrifício de expiação é aquele que se faz para
apaziguar a ira de Deus, satisfazer à Sua justiça e, ao se fazer isso, expurgar os
pecados e lavá-los,b [1539] para que o pecador, tendo sido purificado das manchas do pecado e tendo sido restaurado à pureza da justiça, seja restabelecido á
graça da comunhão com Deus.
Assim eram chamados os sacrifícios que, segundo a Lei, eram oferecidos
para apagar os pecados. Não que eles fossem suficientes para abolir a iniqüidade
ou reconciliar os homens com Deus [1536], mas no sentido de que representavam
o verdadeiro sacrifício que por fim foi plena e perfeitamente realizado por Jesus
Cristo, e por Ele somente, visto que nenhum outro o poderia fazer. E foi realizado
uma só vez, visto que, do simples fato de que foi realizado por Jesus Cristo, sua
virtude e eficácia é eterna. Como Ele mesmo o testemunhou com Suas próprias
palavras quando afirmou que tudo havia sido feito e consumado. Quer dizer que
tudo o que é necessário para nos reconciliar com o Pai e Sua graça, para impetrar
remissão dos pecados, justiça e salvação, tudo isso foi, por Sua oferta única,
rematado, consumado e cumprido. E de tal modo nada faltou que nenhum outro
sacrifício pode ter lugar depois do dele. Portanto, só podemos concluir que éc um
b. Caracteres gregos em 1539.
a. 1539: latreutixo,n e sedasmi,on quoniam veneratione cultuque constat, vel, si mavis, eu.xaristixo.u.
1536 tinha somente eu.xaristixo.u, sive laudis.
b. 1536: abluere, gratiam, salutem impetrare.
1539: et abstergere, quo peccator eorum sordibus repurgatus.
c. 1541 tem, por erro: cest.
46
As Institutas – Edição Especial
opróbrio e uma blasfêmia intolerável contra Jesus Cristo e Seu sacrifício, que Ele
realizou por nós na cruz, repeti-lo com alguma oblação ou oferta, julgando com
isso adquirir remissão de pecados, reconciliação com Deus e justiça.
Todavia, que é que se faz na missa, senão que, pelos méritos de uma nova
oferta, somos feitos participantes da paixão de Jesus Cristo? E, para não dar
cabo da sua insânia, eles consideram que seria pouco se dissessem que o sacrifício realizado por eles pertence igualmente a toda a igreja, em comum, e não
acrescentassem que está em poder deles aplicá-lo particularmente a uns ou a
outros, a seu bel-prazer; ou melhor, a quem quiser comprar a sua mercadoria,
pagando bom preço. Entretanto, não podendo taxar preço tão alto como o de
Judas, ainda assim, para que com alguma marca representassem o exemplo do
seu autor, eles retiveram e guardaram a semelhança das palavras. Judas vendeu
Jesus Cristo por trinta moedas de prata.92 Estes, no que lhes compete, O vendem por trinta denários de cobre.a Mas Judas O vendeu só uma vez. Estes, todas
as vezes que encontram comprador.
Nesse sentido também lhes negamos o nome de sacerdotes, isto é, que por
tal oferta eles possam interceder junto a Deus pelo povo, reconciliar Deus com os
homens e efetuarb expiação e purificação dos pecados. Porque Jesus Cristo é o
único sacerdote e o único sumo sacerdote do Novo Testamento, para o qual foram
transferidos todos os sacerdócios e no qual todos eles estão encerrados e acabados. E se a Escritura não tivesse feito menção do sacerdócio eterno de Jesus
Cristo, uma vez que Deus aboliu os sacerdócios antigos e não instituiu outro
novo, o argumento do apóstolo93 permanece invencível: que ninguém usurpe a
honra de sacerdote, se para isso não foi chamado por Deus. Em que se fiam, pois,
esses sacrílegos que aqui se gabam de serem assassinos de Jesus Cristo, e se
atrevem a chamar-se sacerdotes do Deus vivo?94
[1541] Não tomamosa as palavras sacerdote e sacerdócio no sentido da palavra grega da qual elas derivam,b95 que significa ancião.96 Porque ela pode muito
92
Mt 26.15
Hb 5.4
94
“O que torna válido um ofício é a vocação, de modo que ninguém pode exercê-lo correta ou legitimamente
sem antes ser eleito por Deus (...). Nenhuma forma de governo deve ser estabelecida na Igreja segundo o
juízo humano, senão que os homens devem atender à ordenação divina; e, ainda mais, que devemos seguir
um procedimento de eleição preestabelecido, para que ninguém procure satisfazer seus próprios desejos.
(...) Segundo é a promessa de Deus de governar sua Igreja, assim ele reserva para si o direito exclusivo de
prescrever a ordem e forma de sua administração.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo,
Paracletos, 1997, (Hb 5.4), p. 127-128]. “A Deus pertence com exclusividade o governo de sua Igreja.
Portanto, a vocação não pode ser legítima a menos que proceda dele.” [João Calvino, Gálatas, São Paulo,
Paracletos, 1998, (Gl 1.1), p. 22]. NE
95
1Pe 5.1
96
A palavra francesa prètre, comumente traduzida por “sacerdote” ou “padre”, vem do termo grego
?????????????através do latim: presbíter. É uma corruptela deste. NT
a. numilis æreis.
b. peragant.
a. Esse parágrafo é um acréscimo aos textos de 1536 e de 1539.
b. Isto é, predu,teroj.
93
47
bem designar os verdadeiros ministros eclesiásticos, que se chamariam então
presbíteros, e seu ofício, presbiterato. Mas a tomamos de acordo com seu uso
comum de sacerdote, de modo que designa o sacrificador ordenado por Deus
para realizar o sacrifício a que nos referimos. E o termo sacerdócio é empregado
significando a dignidade, o estado e o ofício de tal sacrificador.
[1536] Sob a outra espécie de sacrifício, chamado sacrifício de ação de
graças ou de louvor,c estão incluídos todos os ofícios do amor, os quais, quando
se realizam para o nosso próximo, de alguma forma se prestam a Deus, o qual é
dessa forma honrado em Seus membros. Também estão incluídas todas as nossas
orações, os nossos louvores e ações de graças, e tudo quanto fazemos para servir
e honrar a Deus.d
30. Um sacrifício melhor e maior
[1539] Tais oblações dependem todas de um maior sacrifício, pelo qual somos
em corpo e alma consagrados e dedicados como templos votados a Deus. Porque
não basta que as nossas ações interiores sejam empregadas ao Seu serviço; mas
[1536] é conveniente e oportuno que, primeiramente nós, em acréscimo a todas
as nossas obras, nos dediquemos pessoalmente a Ele, a fim de que tudo o que há
em nós sirva à Sua glória e exalte a Sua magnificência. Essa formae de sacrifício
não visa apaziguar a ira de Deus e impetrar remissão dos pecados, nem merecer e
adquirir justiça97, mas visa a unicamente engrandecer e glorificar a Deus. Porque
não poderá ser agradável a Deus se não proceder daqueles que já obtiveram a
remissão dos pecados, estão já reconciliados com Ele e, além disso, já foram
justificados. Diga-se mais, que tal sacrifício é tão necessário à igreja que não
pode ser negligenciado.a E, portanto, é perpétuo, durando enquanto durar o povo
de Deus, como também foi escritob pelo profeta.98 E assim devemos tomar o testemunho do profeta: “Desde o nascente do sol até ao poente, é grande entre as
nações o meu nome; e em todo lugar lhe é queimado incenso e trazidas ofertas
puras, porque o meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor dos Exércitos”.
Quão importante é que não o eliminemos! Igualmente o apóstolo Paulo nos ordena que ofereçamos o nosso corpo por “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”
como “culto racional”.99 Note-se que nessa passagem ele falou com muita propriedade quando acrescentou que esse é o serviço racional que prestamos a Deus.
97
Em contextos como este, entenda-se: justificação. NT
Ml 1.11
99
Rm 12.1
c. Em 1536 e em 1539: eu.xaristixo.u.
d. Constatação curiosa: Esse parágrafo de 1541 é traduzido do texto de 1536, do qual difere o de 1539.
e. 1536: ratio. 1539141: species.
141
Não 1536, como consta no original francês. NT
a. ab ea.
b. superius visum est.
98
48
As Institutas – Edição Especial
Porque ele entendeu que se trata de uma forma espiritual de servir e honrarc a
Deus, a qual ele opôs tacitamente aos sacrifícios carnais da lei mosaica.
[1539] Dessa forma, as esmolas e outros atos de beneficência são chamados
sacrifícios dos quais Deus se agrada100. De igual maneira, a generosidade dos
filipenses, pela qual eles supriram a necessidade do apóstolo Paulo, é chamada
“aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus”;101 e todas as obras
praticadas pelos crentes são denominadas sacrifícios espirituais. 102 E que necessidade temos de falar disso demoradamente, sendo que essa forma de falar é tão
freqüente na Escritura? Mesmo assim, o povo continua sob a doutrina pueril da
lei. Entretanto, os profetas declaram suficientemente que os sacrifícios externos
abrangiam a verdade essencial, a qual permanece atualmente na igreja cristã.
[1536] Por essa razão Davi rogou que a sua oração subisse à presença do
Senhor como incenso.103 E Oséias chama às ações de graças “sacrifícios dos nossos lábios”.104 Como também Davi os denomina “sacrifícios de louvores”. 105 Isso
é imitado pelo apóstolo, que exorta os crentes a oferecem a Deus “sacrifício de
louvor”, o que ele interpreta como “o fruto de lábios que confessam o seu nome”.106
E não há como negar que essa espécie de sacrifício está na Ceia do Senhor, na
qual, quando anunciamos e rememoramos a Sua morte e Lhe rendemos graças, o
que fazemos é oferecer-lhe sacrifícios de louvor.107
100
Hb 13.16
Fp 4.18
102
“Embora Deus não possa receber de nós nenhum benefício, no entanto considera nosso ato de invocar seu
Nome como Sacrifício; aliás, como o principal dos sacrifícios, que supre a falta de todos os demais. Além
disso, sejam quais forem os benefícios que façamos pelos homens, Deus os considera como feitos a Ele
próprio, e lhes imprime o título de sacrifício, para que fique evidente que os elementos da lei são agora não
apenas supérfluos, mas até mesmo nocivos, uma vez que nos desviam da genuína forma de sacrificar.
“Em suma, o significado consiste em que, se porventura queremos oferecer sacrifício a Deus, então
devemos invocar seu Nome, fazer conhecida sua munificência através de ações de graça e fazer o bem aos
nossos irmãos. Esses são os verdadeiros sacrifícios com os quais os verdadeiros cristãos devem comprometer-se; e não sobra nem tempo nem lugar para qualquer outro.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São
Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 13.16), p. 394]. “Não é uma honra trivial o fato de Deus considerar o bem que
fazemos aos homens como sacrifício oferecido a Ele próprio, e o fato de valorizar tanto nossas obras, que as
denomina de santas. Portanto, onde nosso amor não se manifesta, não só despojamos as pessoas de seus
direitos, mas também a Deus mesmo, o qual solenemente dedicou a Si o que ordenou fosse feito em favor
dos homens.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 13.16), p. 394]. “‘Repartir com os outros’ tem
uma referência mais ampla do que fazer o bem. Inclui todos os deveres pelos quais os homens se auxiliam
reciprocamente; e é um genuíno distintivo do amor que os que se encontram unidos pelo Espírito de Deus
comunicam entre si.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 13.16), p. 395]. NE
103
Sl 141.2
104
Os 14.2
105
Ou “de ações de graças”: Sl 50.14. Note-se Sl 27. 6. Ver também Am 4.5.NT
106
Hb 13.15.
107
“Como o propósito do apóstolo era ensinar-nos qual é a forma legítima de cultuar a Deus sob o regime do
Novo Testamento, ele nos lembra que não podemos invocar honestamente a Deus e glorificar Seu nome, a
não ser através de Cristo como nosso Mediador. É Ele só quem santifica nossos lábios, que de outra forma
estariam impuros para cantar os louvores de Deus, que abre caminho para nossas orações, que, em suma,
exerce o ofício de Sacerdote, apresentando-se diante de Deus em nosso nome.”[João Calvino, Exposição de
Hebreus, (Hb 13.15), p. 393]. NE
c. Uma só palavra em 1539: colendi.
101
49
31. O sacerdócio real dos cristãos
Em função deste ofício, que consiste em oferecer sacrifício, todos nós, cristãos,
somos chamados sacerdócio real, porque por Jesus Cristo oferecemos sacrifício de louvor a Deus, quer dizer, o fruto de lábios que confessam o Seu nome,
como nos disse o apóstolo.108 Porquanto com os nossos dons e presentes não
poderíamos comparecer à presença de Deus sem um intercessor. E Jesus Cristo
é o Mediador que intercede por nós e pelo qual nos oferecemos ao Pai, com
tudo o que é nosso. Ele é o nosso sumo sacerdote,109 o qual, tendo entrado no
santuário do céu, abre a porta para nós e nos dá acesso. Ele é o nosso altar,
sobre o qual colocamos as nossas ofertas. Em suma, é Ele que faz de nós reis e
sacerdotes para o Pai.110
32. Que diriam os antigos?
[1539] Se alguém quiser discutir, baseado na autoridade dos antigos, alegando
que devemos entender diversamente o sacrifício feito na Ceia e recusando o sentido por nós exposto, darei a isso breve resposta. Se a questão é aprovar a fantasia
forjada pelos papistas, a fantasia do sacrifício da missa, respondo que não se deve
pretender trazer os antigos em apoio disso. Sim, pois, todos eles, a uma só voz,
ensinam claramente que na Ceia só se celebra a memória do sacrifício único feito
por Jesus Cristo. E, de nossa parte, não negamos que a oferta de Jesus Cristo nos
é apresentada de tal modo que quase O podemos contemplar com os nossos olhos
em Sua cruz, como o apóstolo diz quando declara que Jesus Cristo foi crucificado
entre os gálatas quando lhes foi feita a pregação na qual foi declarada a Sua
morte.111 Mas, como vejo que mesmo os antigos se desviaram desta memória
passando a adotar outro modo não requerido pela instituição do Senhor, visto que
para eles a Ceia representava um tal ou qual espetáculo que dramatiza uma imolação repetida, ou ao menos renovada, já nada mais é seguro para os crentes,a
exceto fixar-se na pura e simples ordenança do Senhor.b
E certamente, se considerarmos que a Ceia é do Senhor, não dos homens,
nada poderá demover-nos nem distrair a nossa atenção da Sua vontade – nada,
nenhuma autoridade humana, nenhuma extensão do tempo, seja o que for que
apareça. Por isso o apóstolo, querendo restabelecer a Ceia integral e completamente entre os coríntios,112 onde ela havia sido corrompida por maus costumes e
práticas, e querendo fazer isso pelo melhor e mais curto caminho possível, exor108
Hb 13;15. Ver também 1Pe 2.5
Literalmente: o nosso pontífice. NT
110
Ap 1.6
111
Gl 3.1
112
1Co 11.17-34
a. piis pectoribus.
b. Meia página de 1539 não é traduzida em 1541.
109
50
As Institutas – Edição Especial
ta-os a retornarem a esta instituição única113 e, com isso, mostra que ela deve ser
entendida como norma perpétua.
33. Sumário geral
[1536] Os leitores poderão ver aqui, num breve sumário, tudo o que consideramos que se deve saber sobre os dois sacramentos, cujo uso foi dado à igreja cristã
desde o princípio do Novo Testamento, até à consumação do século. É o seguinte: O Batismo tem por finalidade constituir como que um ingresso na igreja e uma
primeira profissão de fé,114 e a Ceia é como uma alimentação habitual e constante, por meio da qual Jesus Cristo dá sustento espiritual aos que nele crêem.115 Por
isso, assim como “não há senão um Deus, uma fé, um Cristo”,116 e uma igreja,
Seu corpo, assim o Batismo é um só e jamais deve ser repetido, mas a Ceia é
distribuída muitas vezes, a fim de que aqueles que uma vez foram recebidos e
inseridos na igreja entendam que são continuamente alimentados e refeitos ou
renovados por Jesus Cristo.
Acresce que, como além destes dois nenhum outro foi instituído por Deus,
a igreja dos fiéis também não deve receber nenhum outro. Porque o fato de que é
uma coisa que não pertence ao poder e à autoridade dos homens acrescentar ou
instituir novos sacramentos será fácil de entender, se nos lembrarmos do que
acima foi plena e suficientemente explicado, a saber, que os sacramentos foram
instituídos por Deus para que nos ensinem e mostrem alguma promessa e nos
testifiquem Sua boa vontade para conosco.117 E mais, quem vai pensar que foi
conselheiro de Deus, pelo que nos possa prometer algo com a certeza da aprovação da Sua boa vontade, ou que nos possa tornar certos e seguros da disposição
113
Naturalmente entendendo-se como referência ao sacrifício único e que não deve ser repetido. NT
“Este sacramento [Batismo] é o primeiro ingresso que temos para sermos reconhecidos como membros da
igreja, e para termos lugar entre os que compõem o povo de Deus. Isso porque ele é o símbolo e sinal da
nossa regeneração e do nosso nascimento espiritual, que constituem o ato de Deus pelo qual somos feitos
Seus filhos” [João Calvino, As Institutas, (1541), III.11]. “Batismo é o sinal de iniciação pelo qual somos
recebidos à sociedade da Igreja para que, enxertados em Cristo, sejamos contados entre os filhos de Deus.
Com efeito, o batismo foi-nos dado por Deus para este fim, o que ensinei [Institutas, IV.14.1] ser comum a
todos os mistérios, primeiro, para que servisse à nossa fé perante Ele, segundo, para que servisse à confissão
[nossa] perante os homens.” [João Calvino, As Institutas, IV.15.1]. NE
115
“A Ceia, pois, é um memorial providenciado com o fim de assistir-nos em nossas fraquezas; porque, se de
outra forma estivéssemos suficientemente imbuídos da morte de Cristo, este auxílio seria de todo supérfluo.
Isto se aplica a todos os sacramentos, porquanto eles nos ajudam em nossas fraquezas.” [João Calvino,
Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, (1Co 11.24), p. 357]. NE
116
Ef 4.5,6. Tradução direta.
117
“Pelo que, fixo permaneça que não são outras as funções dos sacramentos que da Palavra de Deus, as quais
são oferecer-nos e apresentar-nos Cristo, e nEle os tesouros da graça celeste. Nada, entretanto, conferem ou
aproveitam, a menos que recebidos em fé, não diferentemente do vinho, ou óleo, ou outro líquido, não
importa o quão copiosamente o derrames, efluirá, no entanto, e se perderá, a menos que aberto o bocal do
vaso, mas, o vaso mesmo, regado de todos os lados, permanecerá, não obstante, inane e vazio. (...) Aqui
também é de notar-se que Deus realiza interiormente o que o ministro representa e atesta pela ação externa,
para que não seja atribuído ao homem mortal o que Deus para Si Só reivindica.” [J. Calvino, As Institutas,
IV.14.17]. NE
114
51
divina para conosco, podendo afirmar o que Ele quer dar ou o que Ele quer negar?118 Daí se infere, pois, que ninguém pode ordenar ou instituir nenhum sinal
ou símbolo que testifique alguma vontade e promessa de Deus. É unicamente Ele
que, dando-nos um sinal, pode nos dar testemunho de Si mesmo.
34. Uma palavra mais breve, mais rude e mais clara
Direi algo mais concisamente e, quiçá, mais rudemente (mas também mais claramente): Não há sacramento sem promessa de salvação. Nunca. Todos os homens
juntos não saberiam nem poderiam garantir coisa alguma quanto à nossa salvação. Logo, não podem, eles mesmos, ordenar nem planejar nenhum sacramento.
Por isso a igreja cristã se satisfaz com estes dois. E não somente não admite nem
aprova nem reconhece no presente, mas também não deseja nem espera jamais
um terceiro, até à consumação do século.
Quanto a algumas outras ordenanças feitas aos judeus, conforme a variável
sucessão do tempo, além dos dois que tinham sido ordenados, (como o maná, a
água jorrando da pedra, a serpente levantada e outras semelhantes119), sua finalidade era que, por sua variedade, os filhos de Israel fossem admoestados a que não
se fixassem em tais figuras, as quais eram de pouca duração, e esperassem de
Deus algo melhor, que duraria para sempre, sem mudança e sem fim.
Outro motivo muito diferente temos nós, a quem Jesus Cristo foi revelado e
manifesto – Jesus Cristo, que tem ocultos em Si todos os tesouros da sabedoria e
do conhecimento,120 os quais são distribuídos em tão grande abundância e fartura
que esperar ou exigir algum novo aumento a tais tesouros seria realmente tentar a
Deus e provocar Sua ira contra nós. Só necessitamos ter fome de Jesus Cristo,
contemplá-lo, aprender dele e manter-nos firmes nele e em Seu ensino, até chegar
o grande dia em que o Senhor manifestará plenamente a glória do Seu reino e se
nos dará a ver claramente como Ele é.121 Por esse motivo o tempo em que nos
encontramos é designado e representado nas Escrituras por expressões como “a
última hora”, “o último dia”, “o último tempo”;122 para que ninguém se deixe
iludir por alguma nova doutrina ou nova revelação. Porque, “Havendo Deus,
outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho”, que, só Ele, pode manifestar o Pai.123
Ora, como aos homens é vetado que façam ou ordenem novos sacramentos
na igreja de Deus, assim também é de se desejar que nos próprios sacramentos
instituídos por Deus seja imiscuído o mínimo possível de invenção humana. Porque, assim como a água enfraquece o vinho e o põe a perder, e o fermento azeda
118
Is 40.13; Rm 11.34,35
Êx 16.1-10; 1Co 10.3; Êx 17.1-7; 1Co 10.4 [ver o contexto]; Nm 21.4-9; Jo 3.14,15
120
Cl 2.2,3
121
1Co 15.1,2; 1Jo 3.2; 1Pe 1.3-9.
122
No singular e no plural. E.g.: Jo 6.39; 11.24; 12.48; 1Tm 4.1; 2.Tm 3.1; Hb 1.2; 1Pe 1.5; 1Jo 2.18. NT.
123
Hb 1.1-3; Lc 10.12,20,21-24,41,42.
119
52
As Institutas – Edição Especial
a farinha, assim também a pureza dos mistérios de Deus só pode ser maculada e
deteriorada quando o homem lhe acrescenta alguma coisa dele próprio. E, todavia, vemos quão degenerados de sua pureza original estão os sacramentos como
são utilizados hoje em dia. Eles estão recobertos em demasia de pompas, cerimônias e micagens;a mas, enquanto isso, não se preocupam nem um pouco em mencionar a Palavra de Deus, sem a qual os sacramentos não são sacramentos. 124
E os ritos cerimoniais propriamente ditos, que foram instituídos por Deus,
nem sequer aparecem do meio de tão grande multidão de outras coisas; antes,
como que oprimidos, ficam por baixob delas. Quanto ao Batismo, quão pouco se
vê do que deveria aparecer sem nada mais, isto é, do próprio Batismo! A Ceia,
então, fica totalmente soterrada quando transformada e convertidac em missa!
Apenas uma vez por ano ela é vista um pouco, mas assim mesmo lacerada, recortada, distorcida, rota, dividida e toda deformada.a
Por outro lado, quanto melhor será que toda vez que houver alguém que
deva ser batizado, que seja na presença da congregação de crentes! E toda a
igreja agindo como sua testemunha e orando por ele, para ser recebido por Deus
como oferenda a Ele feita; que seja recitada a confissão de fé, na qual deve ser
instruído aquele que deve ser instruído na fé;b que as promessas próprias do Batismo sejam apresentadas e declaradas; que o Batismo seja ministrado em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo; que, finalmente, seja ele despedido com
orações e ações de graças.c Procedendo-se assim, nada do que é bom e útil será
omitido, e esta cerimônia única, cujo autor é Deus, refulgirá em plena claridade,
sem ser sufocada por nenhum lixo estranho.
35. Pouca água ou muita água, não importa
De resto, não importará nem um pouco se no Batismo se mergulhar totalmente o
batizando na água, ou se simplesmente se derramar água sobre ele. Mas, conforme a diversidade das regiões, isso deve ser deixado à livre decisão das igrejas.
Porque em ambos os casos o sinal está representado. Isso tudo levando-se em
conta que a palavra batizar significa imergir completamente e que é certo que
antigamente se praticava a imersão completa na igreja.125
a. gesticulationum Cf. Farel, Declaração Sumária, XIX: “Deixo todas as macaquices”, etc.
b. oppressæ jacent.
c. Uma só palavra em 1536: versa.
a. 1536 tem somente: concerpta, dimidiata, laceraque forma.
b. instituendus catechumenus (1536); em 1537 foi publicada a Instrução, à qual muitas vezes chamam primeiro catecismo de Calvino.
c. É um primeiro projeto de liturgia do Batismo como provavelmente foi celebrado na “primeira igreja reformada francesa” (Hist. des Eglises réf. [História das Igrejas Reformadas] de Beza, I, 49), fundada por ele em
Estrasburgo, em 1538.
124
A “correta ministração do sacramento não subsiste à parte da Palavra. Pois, qualquer benefício que seja, que
da Ceia nos provém, requer a Palavra....”. [J. Calvino, As Institutas, IV.17.39]. NE
125
Pesquisas posteriores ao tempo de João Calvino mostram que “batizar” nem sempre significa “imergir”
totalmente, e que a prática da imersão completa não era comum nos primeiros tempos da igreja cristã.
53
Quanto à sacra Ceia, é conveniente que seja administrada com bastante
freqüência, ao menos uma vez por semana, e que seja oferecida à igreja desta
maneira:d126 Primeiro, que se comece com orações públicas; depois, que se faça
pregação; depois, estando o pão e o vinho sobre a mesa, o ministro dirá as palavras da instituição da Ceia; depois devem ser pronunciadas as promessas deixadas nela por Deus; também, que sejam deixados fora ou excluídos aqueles que
estejam sob interdição imposta pelo Senhor; depois, deve-se orar no sentido de
que de tal maneira o Senhor nos dispense esta alimentação sagrada que também
Lhe praza ensinar-nos e preparar-nos para que, pela fé e gratidão de coração, a
recebamos bem, e por Sua misericórdia Ele nos faça dignos de tal repasto, pois
nós mesmos não o somos. Neste ponto, que se cantem salmos ou que se leia
alguma passagem da Escritura própriaa para o momento, e os crentes comunguem,
participando das santas viandas – os ministros partindo e distribuindo o pão e oferecendo o cálice. Concluída a Ceia, exortem-se os crentes à fé pura,b à confissão
dessa fé, ao amor e aos costumes dignos de cristãos. Finalmente, sejam apresentadas ações de graças e sejam entoados louvores a Deus. Tendo sido realizadas todas
essas coisas, a igreja e todos os presentes sejam despedidos em paz.127
36. Miudezas de somenos
Quer os crentes peguem o pão com a mão, quer não; quer eles o dividam entre si,
quer cada um coma o que lhe for dado; quer tomem o cálice da mão do ministro,
quer o passem ao próximo seguinte; quer o pão seja feito com fermento, quer
sem; quer o vinha seja tinto, quer branco – é tudo a mesma coisa e pouco importa.
Porque essas coisas são indiferentes, e a igreja deve ser deixada em liberdade
quanto a elas. Embora seja certo que o costume da igreja antiga tenha sido que
todos o pegavam com a mão. E Jesus Cristo disse: “Reparti entre vós”.128
A História mostra claramente que antes do tempo de Alexandre, bispo de
Roma,c usava-se na Ceia pão levedado e do tipo que comumente se come. Esse
Quanto ao sentido de “batizar”, ver Louis Berkhof, Teologia Sistemática, tradução de Odayr Olivetti, editado por Editora Cultura Cristã, pp. 580-584. Observe-se também que na Septuaginta (tradução grega do
Antigo Testamento) várias vezes o verbo bapto não tem o sentido de imergir. Exemplo: em Daniel 4.33, na
expressão “o seu corpo foi molhado do orvalho do céu”, o verbo é bapto (cognato de baptizo), ali empregado
no 2º. aoristo passivo, ebáfe. O Dicionário da Bíblia, de Davis, na antiga edição da Confederação Evangélica do Brasil, trazia impresso um clichê de um quadro do 2º século que mostra João Batista batizando Jesus.
Este está de pé no rio, com água pela cintura, e o oficiante, sobre uma pedra, está despejando água sobre a
cabeça de Jesus. Esse quadro está em Ravenna, Itália. É chocantemente significativo que a Casa Publicadora
Batista, que passou a editar essa obra, retirou das suas publicações o referido quadro. NT
126
Ver supra o parágrafo 22 e as notas correspondentes. NE
127
Do mesmo modo: J. Calvino, As Institutas, IV.17.43. NE
128
Lc 22.17
d. Primeiro projeto de uma liturgia da Santa Ceia.
a. quo decet ordine.
b. sinceram.
c. Diz Eusebio (Hist. Eccles., IV, I, 4) que ele foi bispo de 108 a 118.
54
As Institutas – Edição Especial
Alexandre se deleitava por ter sido o primeiro a usar pão sem levedo. E não vejo
outro motivo para isso, senão este: por um novo espetáculo, atrair o olhar admirado do povo, em vez de edificar o seu coração com a religião verdadeira.
37. Conclusão
Conclamo agora todos quantos se sintam tocados (ainda que de leve) por algum
sentimento de piedade, a que digam se não vêem como coisa evidente quão mais
claramente a glória de Deus reluz no uso que propomos dos sacramentos. E quão
maior dulçor e maior consolo retornam aos crentes, comparando-se com aquelas
tolas comédiasa que só servem para enganar os sentidos do povo e enchê-lo de
maravilhado espanto. Dizem que é manter o povo na religião e no temor de Deus
quando ele, entontecido e atoleimadob pela superstição, é levado para onde o
querem levar esses falsos mestres.
Se alguém quiser defender tais invenções a título de antigüidade, não ignoro quão antigo é o uso da crisma, bem como o uso do sopro no Batismo;c
note-se, porém, que, pouco tempo depois da era apostólica, a Ceia do Senhor
ficou como que enferrujada por causa das invenções humanas. Mas é tal a leviandade e a loucura da autoconfiança e da obstinação dos homens que não se
pode impedir que brinquem com os mistérios de Deus. Quanto a nós, porém,
lembremo-nos de que Deus tem tanta estima pela obediência à Sua Palavra que
é da Sua vontade que por ela sejamos julgados e que por ela julguemos homens
e anjos e todo o mundo.
a. frigidis et histrionicis nugis.
b. stolidus et infatuatus.
c. Chrismatis et exsufflationis. Crisma: óleo misto de bálsamo.
55
CAPÍTULO XIII
SOBRE AS CINCO OUTRAS CERIMÔNIASa FALSAMENTE
CHAMADAS SACRAMENTOS, QUAIS SEJAM:
A CONFIRMAÇÃO, A PENITÊNCIA, A EXTREMA UNÇÃO, AS
ORDENS ECLESIÁSTICAS E O CASAMENTO.
1. Introdução
A discussão que se fez no capítulo anterior sobre os sacramentos pode satisfazer
a todas as pessoas sóbrias e dóceis, não dispostas a ir adiante em sua curiosidade
nem a acatar, sem base na Palavra de Deus, outros sacramentos além dos que
foram instituídos pelo Senhor. Mas, como foi introduzida a opinião favorável a
sete sacramentos, opinião muito comum entre os homensb e tão divulgadac nas
escolas, nos debates, nos púlpitos e nos sermões que lançou antigas e profundas
raízes no coração de todos em geral, e ali continua fixa e arraigada, pareceu-me
proveitoso considerar separadamente e mais de perto as outras cinco cerimônias
que comumente são incluídas entre os sacramentos do Senhor. Pretendo, depois
de pôr a descoberto toda a sua falsidade,d dar a conhecer aos simples o que realmente elas são, e por que, sem nenhuma razão, são recebidas como se fossem
sacramentos. Vejamos:
a. Depois de haver tratado “dos sacramentos” (cap. XVIII), a Declaração Sumária de Farel tratava “da missa”,
depois “da penitência” (XX), e, muito mais adiante, “da confissão” (XXIX), “dos pastores” (XXXIII) e “do
casamento” (XXXVIII). Calvino, em 1536, tinha colocado, logo após o capítulo (IV) “de sacramentis”,um
capítulo (V): “sacramenta non esse quinque reliqua quæ sacramentis hactenus vulgo habita sunt declaratur,
tum qualia sint ostenditur”. Em 1539, o cap. XIII é: “De libertate christiana” (transferido em 1541 ao nº.
XVI); em 1541, Calvino retorna à ordem anterior, mais racional, e traduz, quase sem nenhum acréscimo
nem modificação, o capítulo de 1536 tal como tinha sido reproduzido em 1539. Calvino mostra nesse
capítulo um conhecimento aprofundado dos decretos dos papas, sem dúvida acompanhando a coletânea
metódica do célebre canonista Graciano, monge bolonhês do século XII. O Decretum Gratiani tinha sido
publicado notavelmente em 1532 pela editora de Jean Petit, sita na rua Saint-Jacques.
b. Pedro Lombardo, Sentent., IV, dist. II, cap. I (Migne, 192, 841).
c. pervagata.
d. fuco.
56
As Institutas – Edição Especial
2. Só Deus pode instituir sacramentos
Desde logo devemos reter e manter o que já comprovamos com argumentação
irrefutável: que o poder de instituir sacramentos só pertence ao Deus único. Pois,
graças à promessa firme e segura de Deus, o sacramento deve dar segurança e
consolo à consciência dos crentes, segurança que eles nunca poderiam obter dos
homens.1 O sacramento deve ser para nós um testemunho da boa vontade de Deus
para conosco. Ora, nenhum dos homens nem dos anjos jamais poderia dar tal
testemunho, visto que nenhum deles foi conselheiro2 de Deus. É somente Deus
que de Si mesmo nos dá testemunho por Sua Palavra. O sacramento é um selo
que se imprime no Testamento e na promessa de Deus. Ora, coisas corporais e
elementos deste mundo não poderiam servir-lhes de selo, se para isso não fossem
competentemente assinalados e destinados. Portanto, o homem não pode instituir
sacramento, pois não cabe ao poder humano fazer que tão grandes mistérios de
Deus se ocultem sob coisas tão chãs. É necessária a precedência da Palavra de
Deus para fazer com que o sacramento seja de fato sacramento.
3. Considerações sobre os cinco falsos sacramentos
3.1 – A Confirmaçãoa
A confirmação, como é chamada, é o primeiro sinal que, em sua temeridade, os
homens forjaram por sua conta e alegaram que deve ser considerado como um
sacramento de Deus. Seus inventores lhe atribuem a eficácia de lhe conferir o Espírito Santo para o aumento da graça, da mesma forma que no Batismo faz com a
inocência ou pureza: confirmar e fortalecer para o combate cristão aqueles que no
Batismo foram regenerados para a verdadeira vida.b Pois bem, essa confirmação é
efetuada pela unção e pelo pronunciamento de palavras como estas: “Eu te marco
com o sinal da santa cruz e te confirmo com a unção da salvação em nome do Pai e
do Filho e do Espírito Santo”. Todas essas coisas são bonitas e agradáveis; mas,
onde está a Palavra de Deus prometendo a presença do Espírito Santo aqui? Não
poderiam mostrar nem um só ponto. Donde poderiam eles tornar-nos certos, então,
de que o crisma é um vaso do Espírito Santo? O que vemos do óleo não passa de um
líqüido gorduroso e espesso, e nada mais. “Acrescente-se a Palavra ao elemento”,
diz Agostinho, “e ele se tornará sacramento”.3 Então, que eles mostrem a Palavra
para isso, se não querem que não vejamos no óleo nada mais que óleo.4
1
“Ninguém pode ordenar ou instituir nenhum sinal ou símbolo que testifique alguma vontade e promessa de
Deus. É unicamente Ele que, dando-nos um sinal, pode nos dar testemunho de Si mesmo.” [João Calvino,
As Institutas, (1541), IV.12].
2
Rm 11.34
3
In Joh. Tract., 80, 3 (Migne, 35, 1840).
4
Sem a Palavra “os sacramentos não são sacramentos”. [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.12]. NE
a. Cf. Decreto de Garciano, III, De consecratione, dist. V, cânone 1 a 9 (Migne, 1855-58); P. Lombardo,
Sentent., IV, dist. VII (Migne 192, 855); Tomás de Aquino, Suma, III, quæst. 72, art. 5; Bula do papa
Eugênio IV Exultate Deo, c. 11.
b. Decreto de Graciano, loc. cit., ca. 2.
57
Se eles se confessassema ministros dos sacramentos, sendo isso pertinente e
próprio, não haveria necessidade de combatê-los mais demoradamente. A primeira regra do ministro é não tentar fazer coisa alguma sem estar baseado nalgum
mandamento. Que eles tratem então de mostrar algum mandamento que lhes ordene essa prática, e não prolongarei este debate! Se lhes falta mandamento, não
poderão negar que o que fazem é uma audácia ultrajante. Por igual motivo o
Senhor interrogou os fariseus: “O batismo de João era dos céus ou dos homens?
Então, eles arrazoavam entre si: Se dissermos: do céu, ele dirá: Por que não
acreditastes nele? Mas, se dissermos: dos homens, o povo todo nos apedrejará...”.5 Para não insultarem gravemente João, não se atreveram a declarar que o
Batismo dele era dos homens. Semelhantemente, se a confirmação é dos homens,
fica claro e resolvido que é vão e frívolo. Se querem persuadir-nos de que é do
céu, que provem!
3.1.1 – Pretensa base apostólica
Eles se defendem citando o exemplo dos apóstolos, os quais eles consideram que nada fariam sem real motivo. Isso é certo; e nós não os censuraríamos se
pudessem provar que são imitadores dos apóstolos. Mas, que faziam os apóstolos? Narra-nos Lucas, em Atos, que os apóstolos, estando em Jerusalém e tendo
ouvido que a região de Samaria tinha recebido a Palavra de Deus, enviaram para
lá Pedro e João, e estes oraram pelos samaritanos, para que o Espírito Santo lhes
fosse concedido, “porquanto não havia descido sobre nenhum deles, mas somente haviam sido batizados em o nome do Senhor Jesus”. Diz mais a narrativa que,
depois de orarem, impuseram sobre eles as mãos, e eles receberam o Espírito
Santo.6 Eis o que vejo que os apóstolos fizeram: cumpriram fielmente o seu ofício. O Senhor queria que as graças ou os dons visíveis e admiráveis do Seu Espírito Santo, derramados por Ele sobre o Seu povo, fossem ministrados pelos apóstolos e distribuídos por meio da referida imposição das mãos. Ora, eu não fico
sonhando com nenhum alto mistério quanto a essa cerimônia, mas entendo que o
seu significado é que por ela os apóstolos encomendavam e ofertavama a Deus
todo aquele sobre quem eles punham as suas mãos.
3.1,2 – Uma coisa pede a outra
Se esse ministério, naquela época ordenado aos apóstolos, fosse vigente
hoje na igreja, seria necessário, paralelamente, praticar a imposição das mãos.
Mas, visto que aquela graça não é mais conferida, de que serve a imposição das
mãos? Certamente o Espírito Santo continua dando assistência ao povo de Deus,
sem cuja direção e guia a igreja não poderia subsistir. Porque temos a promessa,
5
Lc 20.4-6
At 8.14-17
a. agnoscerent (1536); 1541 tem, por engano: recongnoissent.
a. velut offerre.
6
58
As Institutas – Edição Especial
a qual jamais nos falhará, pela qual Cristo chama a Si os sedentos: “Se alguém
tem sede, venha a mim e beba... do seu interior fluirão rios de água viva”.7 Mas
esse poder ou virtude maravilhosa e as operações manifestas distribuídas mediante a imposição das mãos, cessaram, e só foram concedidas durante algum tempo. Porque era necessário que a nova pregação do Evangelho e o novo reino de
Cristo fossem exaltados e engrandecidos por milagres jamais vistos nem experimentados. Quando o Senhor os fez cessar, não significa que por isso abandonou
a Sua igreja, mas, com isso deixou claro que a magnificência do Seu reino e a
dignidade da Sua Palavra são manifestas de maneira suficientemente grandiosa.
Então, em que parte os tais acrobatasa seguem os apóstolos?
3.1.3 – Onde os comprobatórios frutos da sua pretensão?
Seria oportuno e bom que, pela imposição das mãos, o poder evidente do
Espírito Santo se mostrasse imediatamente. Eles não conseguem nada disso. Com
que propósito eles alegam, então, a prática da imposição das mãos? Essa prática
reconhecemos que esteve em uso entre os apóstolos, mas com uma finalidade
completamente diferente. Aquela alegação é, pois, frívola, como frívolo seria
dizer que o sopro do Senhor sobre os Seus discípulos é um sacramento, por meio
do qual é dado o Espírito Santo.8 Mas, tendo o Senhor feito isso, não quer dizer
que nós o devamos fazer também. De igual maneira os apóstolos fizeram uso da
imposição das mãos durante o tempo que aprouve ao Senhor derramar, em resposta às suas orações, as graças ou os dons do Espírito Santo. Não para que os
futuros crentes imitassemb o referido sinal, sem nenhum fruto, apresentando apenas um sinal vazio e inútil, como fazem os tais arremedadores.
3.1.4 – Óleo da Salvação?! Com que fundamento?
Além disso, se pudessem mostrar que com a imposição das mãos eles seguem os apóstolos (na qual, porém, eles não apresentam nada que se assemelhe a
estes, senão uma tola e perversa imitaçãoc), onde eles encontram base para dizer
que o óleo que ministram é o óleo da salvação? Quem os ensinou a buscar no óleo
e a ele atribuir poder de consolar e fortalecer espiritualmente? Seria o apóstolo
Paulo, que nos puxa para longe dos elementos deste mundo e que mais que nada
condena quem se fixa nessas observâncias?a9 Muito ao contrário, eu ouso declarar (não por mim mesmo, mas da parte de Deus) que, aqueles que dão ao óleo o
nome de “óleo da salvação”, renunciam à salvação que há em Cristo, rejeitam
7
Jo 7.37,38; Is 55.1
Jo 20.22
9
Gl 4; Cl 2.16-23
a. histriones.
b. mimice effingerent.
c. præposteram xaxochli,an.
a. observatiunculis.
8
59
Cristo, e não têm parte alguma no reino de Deus. Porque o óleo é para o ventre, e
o ventre para o óleo; e o Senhor destruirá ambos. Quer dizer que todos estes
elementos débeis, os quais perecem pelo uso, em nada pertencem ao reino de
Deus, o qual é espiritual e sem fim.
3.1.5 – Insinuação sutil
Alguém poderá interrogar-me: “Então, quê? Você quer reduzir a esse ponto
a água com que somos batizados, e o pão e o vinho sob os quais nos são oferecidos o corpo e o sangue do Senhor na Ceia?” Respondo que nos sacramentos há
duas coisas a considerar: a substância do elemento corporal, que nos é apresentado, e o emblemab que pela Palavra de Deus é nele impresso. E neste está toda a
força do sacramento. Portanto, visto que o pão, o vinho e a água, que representam
os sacramentos à nossa vista, mantêm a sua substância natural, é pertinente o dito
do apóstolo Paulo: “Os alimentos são para o estômago, e o estômago, para os
alimentos; mas Deus destruirá tanto estes como aquele”.10 Porque tais substâncias passam e se desvanecem com tudo o que este mundo apresenta. Mas, uma vez
que essas coisas são santificadas pela Palavra de Deus para servirem de sacramentos, elas não nos deixam restritos à carne, mas nos ensinam espiritualmente.
3.1.6 – Calvino aprofunda a sua crítica
Todavia, examinemos isso melhor para que se veja que monstruosidades o
tal óleo alimenta. Esses besuntadoresa dizem que no Batismo o Espírito Santo é
dado para benefício da inocência, e a confirmação para aumento das graças; que
no Batismo somos regenerados, e que na confirmação somos armados para a
batalha. E dessa maneira eles não se envergonham de afirmar que o Batismo não
é perfeito sem a confirmação! Ó perversidade! Então não é verdade que somos
sepultados com Cristo pelo Batismo, para que possamos estarb em Sua ressurreição? Ora, o apóstolo Paulo interpreta essa participação na morte e na vida de
Jesus Cristo como sendo a mortificação da nossa carne e a vivificação do Seu11
Espírito; que o nosso velho homem foi crucificado a fim de que caminhemos em
novidade de vida. Haverá melhor meio de armar-nos para a nossa luta contra o
Diabo? Veja-se também o que diz Lucas na passagem acima citada,12 que os
samaritanos tinham sido batizados em nome de Jesus e não tinham recebido o
Espírito Santo. Ele não quer dizer que eles não tinham recebido nenhum dom do
Espírito (pois creram de coração em Jesus Cristo e O confessaram a viva voz),
mas ele entende que eles não tinham recebido aquela doaçãoc do Espírito pela
10
1Co 6.13. Ver o contexto.
No original francês, certamente por engano, bon (bom). NT
12
At 8.14-17
b. formam.
a. unctores. Cf. p. 46 e nota C: gressés; e logo adiante, p. 80: enhuy-eurs.
b. participes.
c. acceptionem.
11
60
As Institutas – Edição Especial
qual se recebem poderes manifestos e graças visíveis. Por esse mesmo motivo se
diz que os apóstolos receberam o Espírito no dia de Pentecostes, apesar do fato
de que muito tempo antes lhes tinha sido dito: “Não sois vós os que falais, mas o
Espírito de vosso Pai é quem fala em vós”.13 Vejam vocês aqui, todos vocês que
são de Deus, a maliciosa e pestilenta argúcia de Satanás. O que verdadeiramente
nos é dado no Batismo, ele declara que é dado na confirmação, para astutamente
nos dissuadir do Batismo. Quem duvidará agora que essa doutrina é de Satanás?
Pois ela eliminaa do Batismo as promessas que lhe são próprias e as transfere para
outra coisa.
Observem, torno a dizê-lo, o fundamento sobre o qual se apóia essa notável unção. Diz a Palavra de Deus: “Todos quantos fostes batizados, em Cristo,
de Cristo vos revestistes”14 – de Cristo e todos os Seus dons. A palavra daqueles besuntadores15 é que não recebemos nenhuma promessa no Batismo, com a
qual nos munisse no combate contra o Diabo.c A primeira voz é da verdade; a
segunda é, pois, necessariamente da mentira. Portanto, eu posso definir a confirmação mais verdadeiramente do que eles o fizeram até aqui. A confirmação é
um direto ultraje feito contra o Batismo, obscurecendo e eliminando o seu benefício. Ou, é uma falsa promessa do Diabo para nos afastar da verdade de
Deus. Ou, se se preferir, é um óleo poluído pela mentira do Diabo para enganar
os simples e imprudentes.
Além disso, os tais besuntadoresd acrescentam que todos os crentes precisam receber pela imposição das mãos o Espírito Santo, após o Batismo, para
serem cristãos completos; porquanto, não há nenhum cristão pleno e completo
senão aquele que foi ungido pelo crisma episcopal. É o que eles dizem com suas
próprias palavras.16 Mas eu entendo que tudo quanto pertence ao cristianismo foi
incluído e declarado nas Escrituras; e agora, como vejo, é preciso buscar a verdadeira norma da religião fora delas! Pois a sabedoria de Deus, a verdade celestial
– toda a doutrina de Cristo só principia os cristãos; o óleo os aperfeiçoa!
3.1.7 – Tal doutrina condenaria mártires e apóstolos!
Essa doutrina condena todos os apóstolos e muitos mártires, os quais é certo
que não receberam essa falsa unção.a Porque ainda não existia esse santo crisma
13
Mt 10.20
Gl 3.27
15
No decr. de consecrat., distint. 5, c. Spiritus.b
b. Decreto de Graciano, III, dist. V, cân. 2 (Migne, 187, 1855).
16
No decret. de cons., distinct. 5; e c. Ut jejunie.
e. Decreto de Graciano, I, c., cân. 1. No cânone 6 é citado (como é feito na edição de 1539): Concil. Aurelian.
Ut jejuni.
a. abscissas.
c. 1536: in agonibus instruamur.
d. Palavra acrescentada em 1536.
a. Chrismatos.
14
61
pelo qual se completaria o cristianismo deles,b ou melhor, pelo qual eles seriam
feitos cristãos, porquanto, segundo essa forma de pensar, nem cristãos eles seriam sem ela.17
Mas, ainda que eu me cale, esses praticantes da crisma18 se contestam a si
mesmos amplamente. Por que, que porcentagem da sua gente eles crismam depois do Batismo? Nem a centésima parte! Por que toleram eles então, no meio do
seu rebanho, tantos semicristãos, cuja imperfeição seria tão fácil remediar? Por
que toleram com tanta negligência que os seus súditos omitam o que não é lícito
omitir sem cometer grande crime? Por que não os obrigam a fazer uma coisa tão
necessária e sem a qual (como eles dizem) não se pode obter salvação, a não ser
que ocorra impedimento por morte repentina? Certamente, com essa atitude cômoda pela qual toleram que a desprezem, confessam tacitamente que, afinal, o
valor dessa prática não é tão alto quanto eles fazem parecer.
3.1.8 – A confirmação é mais importante que o Batismo. E veja-se lá por quê!
Finalmente, eles determinam que se deve ter maior reverência por essa unção sagrada que pelo Batismo, porquanto ela só é propiciada pelas mãos dos
grandes prelados, ao passo que o Batismo é vulgarmente distribuído por todos os
sacerdotes.19 Que dizer disso, senão que eles se mostram completamente endoidecidos, mostrando que amam tanto as suas próprias invenções que se atrevem,
com paixão,c a desprezar as santas instituições de Deus? Língua sacrílega, ousas
opor ao sacramento de Cristo a gordura tão-somente infecta pelo odor do teu
hálito e encantadad por algum murmúrio de palavras? Ousas comparar isso com a
água santificada pela Palavra de Deus? Mas isso é pouco para a tua audácia, uma
vez que a preferência é tua.20 Lá estão os decretos da santa sé apostólica!
Mas alguns deles21 quiseram moderar essa fúria, pois, em sua própria opinião há nela demasiada insolência; e dizem que o óleo da confirmação deve ser
tido em maior reverência que o Batismo, não tanto, possivelmente, por conferir
maior poder e utilidade, mas por ser ministrada por pessoas mais dignas, ou por
ser aplicado numa parte mais digna do corpo, a saber, na fronte, onde aumenta
ainda mais o poder comunicado, enquanto que o Batismo tem seu maior valor na
remissão.a Mas, pelo primeiro argumento eles não se revelam donatistas, atribuindo a importância do sacramento à dignidade do ministro? Todavia, concorde17
No mesmo decr., no mesmo lugar, c. de bis vero (cap. 3).
A crisma: o falso sacramento da confirmação. O crisma: óleo perfumado usado na ministração desse sacramento e noutras práticas do Romanismo. NT
19
No mesmo lugar, c. spiri. (cap. 2).
20
Mantida a 2ª. pessoa do singular, como no original, por ênfase. NT
21
Na quarta sentença das Sent., dist. 7, c. 2 (P. Lombard, Migne, 192, 855).
b. christianismi numeros implerent.
c. blandiantur.
d. incantatam.
a. ad remissionem.
18
62
As Institutas – Edição Especial
mos, por hipótese, que a confirmação seja considerada mais digna pela dignidade
da mão episcopal. Mas, se alguém lhes perguntar de onde veio ou por quem foi
concedida tal prerrogativa aos bispos, que argumento apresentarão em resposta,
senão o que for produzido por seus sonhos? Dizem eles que os apóstolos fizeram
uso de tal autoridade, pois somente eles distribuíam o Espírito Santo. Mas, somente os bispos são apóstolos? Ou melhor, são de fato apóstolos?
Concedamos, todavia, mais isso. Que pretendem eles quando usam o mesmo
argumento para defender que somente os bispos devem tocar no sacramento do
sangue na Ceia do Senhor, o qual eles negam aos leigos alegando que o Senhor só
o deu aos apóstolos? Se só o deu aos apóstolos, por que não inferem que também só
deve ser dado aos bispos? Mas, ali eles fazem dos apóstolos simples sacerdotes;
aqui fazem deles bispos. Acrescente-se, finalmente, que Ananias não era apóstolo
e, todavia, foi enviado ao apóstolo Paulo, para fazê-lo recuperar a vista, batizá-lo e
enchê-lo do Espírito Santo.22 Indo além do necessário, acrescentarei mais isto: Se
esse ofício pertence por direito divino aos bispos, por que ousaram dá-lo aos simples sacerdotes, como se lê em qualquer das epístolas de Gregório?23
Quanto ao outro argumento, é frívolo, inepto e tolo. Consiste ele em dizer
que a confirmação é mais digna que o Batismo de Deus, visto que nela se mancha
a fronte com óleo, ao passo que no Batismo se molha a conchab da cabeça – a
parte alta do crânio. Como se o Batismo fosse feito com óleo, e não com água!
Chamo aqui para testemunho todos os que temem a Deus, para que vejam se
esses abusados não se esforçam para macular a pureza dos sacramentos com o
fermento da sua falsa doutrina. Eu já disse noutra parte desta obrac que é necessário grande esforço para poder-se perceber nos sacramentos o que é de Deus, dentre a multidão de invenções humanas. Se alguém ainda não me põe fé, que agora
acredite nos seus chefes. Aí está a água (que é o sinal de Deus)d menosprezada e
contaminada, pois no Batismo eles só engrandecem o óleo. Nós, ao contrário,
dizemos que no Batismo molha-se a fronte com água, a qual avaliamos muito
superior ao seu óleo, que não passa de refugo,24 quer no Batismo quer na confirmação. E se alguém alegar que o óleo custa mais caro, é fácil responder que esse
comércio é embuste, iniqüidade e roubo.
Com o seu terceiro argumento eles manifestam a sua impiedade, ensinando
que a confirmação comunica maior aumento de poder que o Batismo. Ora, os
22
At 9.10-19.
Apud decret., dist. 9, c. pervenit.a [Não décret., como está no original francês. Nas citações de rodapé cita-se
o latim (Decretum Gratiani), nas notas editoriais da edição francesa a citação é em francês (Décret de
Gratien).] NT
a. Decreto de Graciano, I, dist. 95, cânone 1 (Migne, 187, 447).
24
No original francês: esterco. NT
b. cranium.
c. Acima, cap. XI.
d. Acréscimo feito em 1536.
23
63
apóstolos ministraram os dons visíveis do Espírito Santo pela imposição das mãos.
Em que se mostra proveitosaa a gordura desses enganadores? Mas, deixemos para
lá esses tais que só sabem empanar o brilho da verdade e que cobrem uma blasfêmia com muitas outras. O que eles produziram é um nó que não se pode desatar,b
nó que é melhor arrebentar do que tentar desfazer.
3.1.9 – O escape da tradição
Ora, quando eles se vêem desprovidos do recurso da Palavra de Deus e de
toda argumentação racional verificável, fazem o que é seu costume: Afirmam que
essa observância é muito antiga e confirmada pelo consentimento de muitas eras.
Ainda quando fosse verdade, isso não lhes serviria de nada. O sacramento não é
da terra, mas do céu; não dos homens, mas do Deus único. Que provem que Deus
é o autor da sua confirmação, se querem que seja reconhecida como sacramento.
E como podem alegar antigüidade, se os antigos não acrescentavam coisa alguma
aos sacramentos? Se fosse necessário tomar dos homens a base para a segurança
da nossa fé, teríamos uma fortaleza inexpugnável neste fato: Os antigos jamais
reconheceram como sacramentos o que eles hoje chamam falsamente sacramentos. Os antigos falam da imposição das mãos; mas, chamam isso de sacramento?
Agostinho escreve claramente que a imposição de mãos não é outra coisa senão
oração.25 E não venham com suas loucas distinções lançar confusão sobre o dito
de Agostinho dizendo que não se deve entender que ele se refere à imposição das
mãos na confirmação, mas sim para cura ou reconciliação. O livro está à disposição dos homens. Se eu estou torcendo as palavras de Agostinho dizendo o que ele
não escreveu, que me cuspam no rosto!d
3.1.10 – Bem que seria bom manter o conceito dos antigos!
Oxalá mantivéssemos o que, segundo creio, era o modo de pensar dos antigos, antes de aparecer essa ficçãoa abortiva que arremeda os sacramentos! Eles não
tinham nada que se chame confirmação, nome que só mencionar já faz injúria ao
Batismo. O que eles tinham era uma instruçãob cristã pela qual as crianças ou aqueles que já tivessem passado da infância, pudessem explicar a razão da sua fé perante a igreja. Pois seria uma boa maneira de dar instrução ter um formulário26 propri25
Ver Agostinho, 3 li. de la Doctr. Chrestienne e em l’Epi. à Januarius. 4 li. du Bap. des enfansc.
Na obra em latim Calvino fala em catequese, mas nessa edição francesa ele prefere omitir essa palavra e a
palavra catecismo. Na verdade, ao seu chamado catecismo ele deu o nome de Instrução, como já foi registrado anteriormente neste livro. NT
a. fæcundam.
b. gordianus.
c. 1536: lib. 4, de bapt.; 1539: I. 3, de doctr. christ., cap. 9 et ad Ianuar. Lib 4, de bapt. (De baptismo, contra
Donatistas, lib. III, cap. 16. (Migne, 43, 149).
d. non conviciis modo, pro solenni suo more, sed sputis me obruant.
a. larva.
b. catechesis.
26
64
As Institutas – Edição Especial
amente destinado a esse trabalho,c contendo e declarando em termos familiares
todos os pontos da nossa religião nos quais a igreja universal dos crentes deve
concordar sem divergências.27 E que a criança de dez anos, pouco mais pouco
menos, se apresentasse à igreja para professar a sua fé; fosse interrogado sobre
cada ponto e a todos respondesse;d se não soubesse ou não entendesse bem alguma coisa, que a ensinassem de tal maneira que ela pudesse confessar, com a
presença e o testemunho da igreja, a verdadeira, única e pura fé com a qual todo
o povo crente em comum acordo honra a Deus.28
Certamente, se essa disciplina fosse praticada, a preguiça de alguns pais e
mães seria corrigida. Sim, pois, nesse caso, eles não poderiam, sem passar por
grande vergonha, negligenciar a instrução dos seus filhos, coisa com a qual não
se preocupam muito atualmente. Haveria melhor acordo ou harmonia quanto à fé
27
Indicação de NR sem a respectiva nota. NT
Calvino combate a “fé implícita”, denominando-a de “espectro papista” [J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo, Paracletos, 1997, (Rm 10.17), p. 375] e, “fé forjada e implícita inventada pelos papistas.
Pois por fé implícita eles querem dizer algo destituído de toda luz da razão.” [João Calvino, As Pastorais,
(Tt 1.1), p. 299], que “separa a fé da Palavra de Deus”. [J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 10.17),
p. 375]. “Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o que ele significa? Para os papistas, que
se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde
não haja conhecimento.” [João Calvino, Gálatas, (Gl 1.2), p. 25].
Calvino entende a nossa fé deve ser “explícita”. No entanto, ressalta que devido ao fato de que nem
tudo foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cremos
permanecerá nesta vida de forma implícita.
Depois de um extenso comentário, nos diz: “Certamente que não nego (de que ignorância somos
cercados!) que muitas cousas nos sejam agora implícitas, e ainda o hajam de ser, até que, deposta a massa
da carne, nos hajamos achegado mais perto à presença de Deus, cousas essas em que nada pareça mais
conveniente que suspender julgamento, mas firmar o ânimo a manter a unidade com a Igreja. Com este
pretexto, porém, adornar com o nome de fé à ignorância temperada com humildade, é o cúmulo do absurdo.
Ora, a fé jaz no conhecimento de Deus e de Cristo (Jo 17.3), não na reverência à Igreja.” [João Calvino, As
Institutas, III.I.3]. (Ver também III.2.5ss). Em outras passagens, Calvino discorreu sobre a fé; cito aqui
algumas delas: “Fé verdadeira, é aquela que o Espírito de Deus sela em nosso coração.” (J. Calvino, As
Institutas, I.7.5). “A fé não consiste na ignorância, senão no conhecimento; e este conhecimento há de ser
não somente de Deus, senão também de sua divina vontade.” (As Institutas, III.2.2). “É um conhecimento
firme e certo da vontade de Deus concernente a nós, fundamentado sobre a verdade da promessa gratuita
feita em Jesus Cristo, revelada ao nosso entendimento e selada em nosso coração pelo Espírito Santo.” (As
Institutas, III.2.7). “Nossa fé repousa no fundamento de que Deus é verdadeiro. Além do mais, esta verdade
se acha contida em sua promessa, porquanto a voz divina tem de soar primeiro para que possamos crer. Não
é qualquer gênero de voz que é capaz de produzir fé, senão a que repousa sobre uma única promessa. Desta
passagem, pois, podemos deduzir a relação mútua entre a fé dos homens e a promessa de Deus. Se Deus não
prometer, ninguém poderá crer.” [J. Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Edições Paracletos, 1997,
(Hb 10.23), p. 270]. “Fé verdadeira é aquela que ouve a Palavra de Deus e descansa em sua promessa.”
[J. Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.11) p. 318]. “Nossa fé não tem que estar fundamentada no que
nós tenhamos pensado por nós mesmos, senão no que nos foi prometido por Deus.” (Calvino, Sermones
Sobre la Obra Salvadora de Cristo, Jenison, Michigan, TELL, 1988, “Sermon nº 13”, p. 156). NE
c. Esset optima catechisendi ratio si formula in hunc usum conscripta esset, summam continens et familiariter
explicans omnium fere religionis nostræ capitum.
Alguns meses mais tarde, Calvino realizou esse propósito, compondo a Instruction et confession de
foy dont on use em l’Eglise de Genève (Instrução e Confissão de Fé em Uso na Igreja de Genebra) – 1537.
Cf. Farel, Summaire déclaration (Declaração Sumária), cap. XXXIX, da Instrução das Crianças.
d. 1536 e 1539: rogaretur. A pontuação de 1541 (respondre, s’il) é defeituosa. [Corrigida na edição que temos
em mãos para a presente tradução.]
28
65
entre os cristãos, e não haveria a tão grande ignorância e rudeza que muitos demonstram. Alguns não seriam arrastados tão facilmente por novas doutrinas.e Em
suma, cada um teria orientação sobre a doutrina cristã.
3.2 – A Penitênciaf
[1536] Logo a seguirg eles acrescentam a penitência, da qual falam tão confusa
e desordenadamente que da sua doutrina nada se pode obter que seja firme,
certo e seguro.
[1539] Noutro lugar jáa explicamos extensamente, primeiro, o que a Escritura nos mostra sobre a penitência, ou sobre o arrependimento; depois, o que
esses tais ensinam sobre esse assunto. Agora só precisamos tocar no assunto para
mostrar quão leviana razão, ou melhor, como sem nenhuma razão, eles fizeram
da penitência um sacramento.
3.2.1 – Como se complicam os defensores do falso sacramento da penitência!
[1536] Elesb se atormentam na busca de uma razão. E não é de admirar,
porque o que buscam não existe.c Finalmente, aquilo que podem julgar como
sendo o melhor argumento a seu favor, deixam suspenso, incerto e confuso pela
diversidade de opiniões. Sim, pois,29 ora dizem que a penitência exterior é sacramento. E, sendo assim, que é necessário considerá-lo como sinal da penitência
interior, isto é, da contrição do coração, e, por esse motivo, é a substância do
sacramento; ou então, que ambos são sacramentos; não que sejam dois, mas que
formam um sacramento completo.e E que somente o exterior é sacramento; que o
interior é sacramento e substância daquele; e que a remissão dos pecados é a
substância do sacramento, não sacramento.
A fim de responder a todas essas coisas, os que se lembram da definição de
sacramento acima inseridaf podem reportar a ela tudo o que acima disseram que é
29
Em 4, das Sent., dist. 22, c. 2.d
d. P. Lombardo, XXII, 3 (Migne, 192, 898).
e. novis et peregrinis dogmatibus (anabatistas alemães, etc.).
f. Tractatus de pœnitentia, Decreto de Graciano, II (Migne, 187, 1519). P. Lombardo, Sentenças, liv. IV,
dist. XIV (Migne, 192, 868). Bula do papa Eugênio IV, Exultate Deo, cap. XIII; - Farel, Declaração
Sumária, cap. XX, não fala da penitência senão no sentido da doutrina evangélica. A Instrução de 1537
nada diz a respeito.
A Exomologesis sive modus confitendi, de Erasmo, traduzida por Cl. Chansonnette, recomendava a confissão a Deus como superior à confissão ao sacerdote. O tradutor ofereceu um exemplar desse livro a Marguerite
de France, na Páscoa de 1524.
g. próximo loco.
a. 1536: paucis enarravimus (seguem-se os desenvolvimentos que já se encontram em 1539 e em 1541 no
capítulo V). 1539: prolixe enarravimus.
b. No capítulo V de 1536 o desenvolvimento sobre o falso sacramento da penitência encontra-se no fim das
páginas dedicadas à penitência, antes da extrema-unção.
c. in scirpo quærunt.
e. completum.
f. Cap. X.
66
As Institutas – Edição Especial
sacramento, e verão que não há nas palavras deles nada que seja próprio e válido.g
Porque verão que não existe nenhuma cerimônia externa instituída pelo Senhor
para a confirmação da nossa fé. Se eles replicaremh que a minha definição não é
uma lei à qual todos estão obrigados a obedecer, que escutem o que diz Agostinho, a quem eles fingem prestar uma reverência inviolável.a “Os sacramentos”,
diz ele, “foram instituídos visíveis, para os carnais, a fim de que, pelos degraus
dos sacramentos, eles sejam transferidos das coisas que se vêem com os olhos
para as que se entendem com a mente”.30 Que é que eles vêem ou que podem
mostrar aos outros que tenha alguma coisa que ver com o que eles chamam de
sacramento da penitência? Noutro lugar31 Agostinho diz: “O sacramento é assim
chamado porque nele uma coisa se vê, outra se entende”. O que se vê é uma
figura corporal, física; o que se entende é o fruto espiritual.
3.2.2 – A absolvição dada pelo padre não merece mais que a penitência o
nome de sacramento?
Mas, continuando: Para que eu osd sobrepuje em seu próprio campo de ação,
pergunto: Se existe aí algum sacramento, não seria mais próprio dizer que a absolvição proclamada pelo sacerdote é sacramento, em lugar da penitência, quer
interna quer externa? Porque seria fácil dizer que essa absolvição é uma cerimônia ordenada para confirmar a nossa fé na remissão dos pecados, e que para isso
eles têm a promessa das chaves, como lhe chamam, qual seja: “Tudo o que ligardes
na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido
desligado nos céus”32
Mas alguém poderia objetar dizendo que, para muitos que são absolvidos
pelos sacerdotes, essa absolvição de nada vale. O que significa que, segundo a
doutrina deles, os sacramentos da nova lei devem produzir eficazmente o que
eles representam. A resposta vem lesta e presta,e a saber: Assim como há duas
maneiras de comer a Ceia do Senhor, uma, sacramental, comum aos bons e maus,
e a outra, especialmente própria dos bons, assim também se poderia imaginar que
a absolvição se recebe de duas maneiras. Todavia, até hoje não pude entender
como eles podem pensar que os sacramentos da nova lei operam com tanta eficácia. O que já mostrei que não se harmoniza nem um pouco com a verdade de
Deus, quando tratei desse assunto em seu lugar próprio.a Aqui eu só quis deixar
30
No 3 li., sobre questões do Antigo Testamentob.
In sermone quodam de baptis. infant.c
g. Palavras acrescentadas à tradução do latim.
h. consentur (termo jurídico).
a. quem sacrosanctum se habere fingunt.
b. Quæstiones in Heptateuchum, III.
c. Sermo 272 (Migne, 38, 1247).
d. istas belluas in sua arena.
e. ridiculum.
a. Cap. X.
31
67
claro que esse escrúpulo de nada adianta para não quererem dizer que a absolvição proclamada pelo sacerdote é sacramento. Porque eles responderão pela boca
de Agostinho que a santificação às vezes se dá [sem]b33 sacramento visível, e que
às vezes o sacramento visível está sem a santificação interior. E mais: Que os
sacramentos só fazem aquilo para o que foram designados para representar. E
ainda: Uns se revestem de Cristo até ao recebimento do sacramento, outros, até à
santificação. O primeiro vem indiferentemente aos bons e aos maus; o segundo,
somente aos bons.34
3.2.3 – Argumentos adicionais contra o falso sacramento da penitência,
acrescentado pelo Romanismo
Certamente eles se mostram puerilmente enganados e cegos face à luz do sol
quando, metidos em tal dificuldade e perplexidade, não entendem uma coisa tão
fácil e vulgar. Todavia, para que não se encham de soberba sempre que introduzem
algum sacramento deles, eu nego que se deva considerar sacramento. E o primeiro
motivo da minha negação é que não há nenhuma promessa de Deus em que se
apóie, sendo que a promessa de Deus é o fundamentod único do sacramento.35
[1541]e Porque, como anteriormente já esclarecemos o suficiente este ponto, a promessa das chaves não tem nenhuma relação com a instituição de alguma
absolvição particular, mas se relaciona somente com a pregação do Evangelho.
Quer seja feita a muitos, quer a uma só pessoa, não há diferença. Isto é, por
aquela promessa o Senhor não estabeleceu uma absolvição especial que se aplicasse distintamente a cada pessoa, mas a que se aplica indiferentemente a todos
os pecadores, sem endereço particular.
[1536] Em segundo lugar, visto que toda cerimônia que se possa produzir
aqui é pura invenção dos homens, como também já foi determinado que somente
Deus pode ordenar as cerimônias dos sacramentos, é, pois, mentira e falsidade
32
Mt 18.18. NT
Na página 88 do original francês, e na respectiva relação editorial de notas, ajustei a ordem das indicações
das notas e cortei uma repetida. NT
34
No livro 3, sobre as questões do Antigo Testamento, e no livro que trata do Batismo de crianças.c
35
“O sacramento é um selo que se imprime no Testamento e na promessa de Deus” [João Calvino, As Institutas,
(1541), IV.13]. “Ninguém pode ordenar ou instituir nenhum sinal ou símbolo que testifique alguma vontade
e promessa de Deus. É unicamente Ele que, dando-nos um sinal, pode nos dar testemunho de Si mesmo.”
[João Calvino, As Institutas, (1541), IV.12]. “Não há sacramento sem promessa de salvação. Nunca. Todos
os homens juntos não saberiam nem poderiam garantir coisa alguma quanto à nossa salvação. Logo, não
podem, eles mesmos, ordenar nem planejar nenhum sacramento. Por isso a igreja cristã se satisfaz com estes
dois [Batismo e Santa Ceia]. E não somente não admite nem aprova nem reconhece no presente, mas
também não deseja nem espera jamais um terceiro, até à consumação do século.” [João Calvino, As Institutas,
(1541), IV.12]. “Portanto, os sacramentos são exercícios praticados com a finalidade de nos tornar mais
certos e seguros da Palavra de Deus e de Suas promessas”. [João Calvino, As Institutas, (1541), III.10]. NE
b. 1536 e 1539: sine sacramento. 1541 omite, por enagano, sans (sem), que restabeleceu na edição de 1560.
c. Quæstiones in Heptateuchum, III, quæst. 84 (Migne, 34, 712); De peccatorum meritis et de baptismo
parvulorum, lib. I, cap. 21 (Migne, 44, 125); De baptismo, contra Donatistas, lib. V, 24 (Migne, 43, 193).
d. hypostasis.
e. Parágrafo acrescentado em 1541 nos textos traduzidos.
33
68
As Institutas – Edição Especial
tudo o que eles inventaram e que nos querem fazer acreditar sobre o chamado
sacramento da penitência.
Além disso, eles enfeitaram essa imitaçãoa de sacramento atribuindo-lhe tal
importância que chegam a chamá-lo de segunda prancha de salvamento após o
naufrágio. Porque, dizem eles, se alguém macular pelo pecado a veste de inocência recebida pelo Batismo, pela penitência a pode lavar.36 Mas é o que diz
Jerônimo,b alegam eles! Se for, não o podemos desculpar, mas declaramos que
nisso ele foi plenamente mau.c Como se o Batismo fosse apagadod pelo pecado, e
não que, em vez disso, os pecadores o devam evocar à memória toda vez que
busquem o perdão do pecado, para com essa lembrança consolar-se, fortalecerse, tomar coragem e confirmar a sua confiança em que receberão o perdão do seu
pecado, perdão que lhes foi prometido por ocasião do Batismo. Por isso, falará
com muita propriedade aquele que chamar o Batismo de Sacramento da Penitência ou do Arrependimento, visto que ele foi dado para consolar e fortalecer aqueles que e aplicam ao arrependimento.
[1539] E para que ninguém pense que isso é um sonho da minha cabeça, vêse que essa frase era comum e estabelecida na igreja antiga. Porque no livro
intitulado Sobre a Fé,37 que se atribui a Agostinho, o Batismo é chamado Sacramento da Fé e do Arrependimento. E que não se diga que recorremos a testemunhos incertos, pois não se pode exigir coisa mais clara que a que declara o
evangelista,38 a saber, que João Batista pregou “batismo de arrependimento para
remissão de pecados”.
3.3 – A Extrema-unçãoa
3.3.1 – Em que consiste
O terceiro sacramento falsob é a extrema-unção, a qual é feita por um sacerdote, e isso no fim da vida,c utilizando-se óleo consagrado pelo bispo e pronunciando-se palavras como estas: “Deus, por esta santa unção e por Sua misericórdia,
te perdoa todo o pecado que tens cometido pelo ouvido, pela vista, pelo olfato,
pelo tato e pelo paladar”.
36
No livro 4 das Sent., dist. 14, cap. 1º., e no decret. de Peniten., distin. I, cap. 2.
De Fide ad Petrum, cap. 30.
38
Lc 3.3
a. ementitum.
b. Migne 192, 868.
c. impium.
d. deleatur.
a. O título, em 1536 e em 1539, é: De ultima (ut vocant) unctione. Cf. P. Lombardo, Sentent., IV, dist. xxiii
(Migne, 192, 899); Tomás de Aquino, Somme [Summa], III, suppl. Quæst. 29-33; bula do papa Eugênio IV
Exultate Deo, cap. XIV. – Farel, no capítulo XL da sua Declaração Sumária (Sobre A Preparação para a
Morte) não fala da extrema-unção.
b. fictitium.
c. in extrremis (sic loquuntur).
37
69
E fingem que há dois poderes nesse chamado sacramento: a remissão dos
pecados e o alívio do sofrimento corporal, se for o caso, ou a cura da alma. Pois
bem, dizem eles que os termos da sua instituição encontram-se nestas palavras de
Tiago:39 “Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e estes
façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor. E a oração da
fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, serlhe-ão perdoados”. Ora, essa unção tem a mesma qualidade da imposição das
mãos, como anteriormente demonstramos, isto é: não passa de uma comédia ridículad
com a qual, sem propósito nem utilidade, eles querem imitar os apóstolos.
3.3.2 – Resposta básica, com base na Escritura
Diz o evangelista Marcos que os apóstolos, em sua primeira viagem, conforme o mandamento que tinham recebido do Senhor, ressuscitaram mortos, expulsaram demônios, purificaram leprosos, curaram enfermidades, e acrescenta
que, para a cura das enfermidades, usaram óleo. “Curavam muitos enfermos”, diz
ele, “ungindo-os com óleo”.40 Foi isso que Tiago teve em consideração quando
mandou chamar os presbíteros para ungirem o enfermo. Mas os que considerarem a liberdade com a qual o Senhor e os Seus apóstolos se conduziam quanto a
estas coisas exteriores, julgarão e concluirão facilmente que nessas práticas não
há nenhum alto mistério oculto. Dispondo-se a curar um cego, o Senhor fez lodo
com terra e saliva.41 A uns curou pelo toque, a outros pela palavra. Igualmente, os
apóstolos curaram algumas enfermidades apenas com suas palavras, outros com
o toque, outros com a unção.42
3.3.3 – Objeção levantada: Não se deve interpretar temerariamente
essa prática dos apóstolos
Mas os nossos opositores poderiam dizer que esta unção, praticada pelos
apóstolos, não deve ser interpretada temerariamente, como igualmente as outras
coisas ministradas por eles. Isso eu reconheço, não, porém, que eles fizessem uso
disso como se fosse um instrumento ou meio de saúde, mas somente como um
sinal pelo qual se ensinasse aos simples, em sua rudeza, de onde provinha tal
poder, para que não atribuíssem louvor aos apóstolos. Ora, é comum e habitual
que na Escritura o Espírito Santo e Seus dons sejam simbolizados pelo óleo. De
resto, essa graça ou esse dom de curar doenças não tem mais lugara, como também os demais milagres, os quais o Senhor quis que fossem realizados por um
tempo para tornar a novel pregação do Evangelho eternamente admirável. Ainda
39
Tg 5.14,15
Mc 6.13
41
Jo 9.6,7
42
Passagens relacionadas com os outros exemplos ali citados: Mt 9.29; Lc 18.42; At 3.6; 5.14,15; 19.12. NT
d. histrionica hypocrisis.
a. evanuit.
40
70
As Institutas – Edição Especial
que, por hipótese, concordássemos que a unção é um sacramento de poder, então
administrado pelas mãos dos apóstolos, todavia tal prática não nos pertence atualmente, visto que a ministração de tais poderes não nos foi delegada.
3.3.4 – Por que será que, dentre tantos símbolos e sinais, esses homens fazem
da unção um sacramento?
E, qual maior razão encontram eles para fazer desta unção um sacramento,
e não de todos os outros sinais e símbolos dos quais é feita menção na Escritura?
Por que não designam para isso um tanque de Siloé,a onde em certas ocasiões os
doentes se banhavam? Isso, dizem eles, se faria em vão. Certamente não mais em
vão que a unção. Por que não se deitam sobre os mortos, visto que o apóstolo
Paulo ressuscitou um jovem estendendo-se sobre ele? Por que não fazem um
sacramento de lodo composto de saliva e terra? Todos estes e outros exemplos
foram especiais, dizem eles, mas este, da unção, foi ordenado por Tiago! Ora,
ora! Mas Tiago disse isso no tempo em que a igreja gozava da bênção da qual já
falamos. É verdade que eles querem fazer crer que ainda existe o mesmo poder
em sua unção; mas o que vemos por experiência é o contrário.
3.3.5 – Cuidado com o que atribuímos ao Espírito Santo!
Agora, que ninguém se espante face à obstinação com que eles têm enganado tanto as almas, as quais eles querem ver aparvalhadas e cegas, visto que as têm
despojado da Palavra de Deus, isto é, da sua vida e luz; pois não se envergonham
da sua intenção de abusar dos sentidos do corpo, em seu sentir e em seu viver. Por
isso eles se fazem dignos de que os homens zombem deles quando se gabam de
que têm o dom de cura. O Senhor certamente assiste os Seus em todos os tempos,
e, quando está em Seu propósito, acode às suas enfermidades, não menos do que
o fazia no passado. Mas não demonstrab nessas ações poderes manifestos, nem os
milagres que dispensava pelas mãos dos apóstolos. Portanto, como os apóstolos
não representavam sem motivo pelo óleo a graça a eles delegada, para dar a conhecer que se tratava do poder do Espírito Santo, não deles, assim também, por
outro lado, ofendem gravemente o Espírito Santo aqueles que dizem que o óleo,
com seu mau cheiro e sem nenhuma eficácia,a é Seu poder. Fazer isso é o mesmo
que alguém dissesse que todo óleo é poder do Espírito Santo, visto que Ele é
chamado por esse nome na Escritura; ou que toda pombab é o Espírito Santo,
visto que ele se manifestou sob essa figura.
Mas, que eles observem isso. Quanto a nós, o que no momento nos basta é
que sabemos muito bem que a sua unção não é sacramento, pois não é uma cerimônia instituída por Deus e não há nela nenhuma promessa divina. Porque, quana.
b.
a.
b.
l533 e l539: Silvah; 1541: Silhohas.
exerit.
nullius energiæ.
columbam.
71
do exigimos que as duas coisas estejam presentes no sacramento – que seja uma
cerimônia ordenada por Deus, e que lhe seja acrescentada uma promessa – reivindicamos paralelamente que essa cerimônia seja ordenada para nós e que a
promessa nos diga respeito. Por isso, que ninguém peleje sustentando que a Circuncisão é um sacramento da igreja cristã, alegando que é uma ordenança de
Deus que contém promessa, pois ela não nos foi ordenada e a promessa ligada a
ela não nos foi feita. Que a promessa pretendida por eles em sua unção não nos
diz respeito em nada, já ensinamos claramente acima, bem como o fato de que
isso eles nos dão a conhecer por experiência. Não devem ter nenhuma pretensão
quanto a esta cerimônia senão aqueles que têm a graça de dar cura,c não esses
carrascos, que são mais capazes de ferir e matar do que de curar.
3.3.6 – Quem deveria receber a unção, segundo Tiago? Enfermos ou
quase defuntos?
Pois bem, ainda que eles tivessem conseguido comprovar que o que disse
Tiago sobre a unção aplica-se ao nosso tempo (do que eles estão bem longe),
muito pouco eles têm feito para recomendar a sua unção, com a qual nos têm
lambuzadoa até aqui. Tiago queria que todos os enfermos fossem ungidos. Ora, os
atuais ministradores engorduram não os enfermos, mas os corpos de pessoas semimortas, quando a alma já está prestes a partir, ou como eles mesmos falam, na
hora extrema;b agora, se é que eles têm presentemente um remédio em seu sacramento, para suavizar o rigor da enfermidade, ou então para dar algum consolo à
alma, eles têm sido cruéis demais, porque nunca aplicam esse remédio.
3.3.7 – Quem deveria ministrar a unção, segundo Tiago?
Tiago entendia que o enfermo devia ser ungido pelos presbíteros da igreja.
Os atuais só admitem ao ofício da unção um sacerdote. Porque o que em Tiago se
lê “os presbíteros” eles substituem por “os sacerdotes”, e dizem que o plural é
inserido para maior honestidade,c o que é uma declaração frívola; como se naquele tempo as igrejas tivessem tão grande abundância de sacerdotes que eles podiam levar sua caixa de óleo em grandes procissões!d Quando Tiago manda simplesmente ungir os enfermos, não entendo outra unção que a comum. Não há
menção de outro óleo na citada passagem de Marcos. Já os que são objeto da
nossa crítica não dão valor ao óleo, se não tiver sido consagrado pelo bispo, isto
é, se não tiver recebido o seu malcheiroso hálito ao murmurar ele o seu
encantamento,e com sua repetida saudação, na qual, de joelhos, diz ele três vezes:
c.
a.
b.
c.
d.
e.
curationum gratia. Quer dizer: de conferir benefícios ou bênçãos.
1536: illeverunt. 1539 (por engano): illucerunt.
in extremis.
ad decorem.
in longa pompa.
multo murmure incantatam.
72
As Institutas – Edição Especial
“Eu te saúdo, óleo santo”, e três vezes: “Eu te saúdo, santo crisma”, e três vezes:
“Eu te saúdo, santo bálsamo” – essa é a solenidade deles. f
De onde terão eles derivado tais conjurações? Diz Tiago que quando o
enfermo for ungido com óleo, e que tiverem orado sobre ele, se tiver cometido
pecados, estes lhe serão perdoados. Não quer ele dizer que os pecados são apagados com gordura oleosa, mas que as orações dos crentes, por meio das quais
o irmão que padece terá sido recomendado a Deus, não serão inúteis. Ora, os
pregoeiros da extrema-unção imaginam que, por sua sagrada – melhor dizendo,
abominável – unção, os pecados são perdoados. Eis aí em que dá, quando se
permite que eles violentem dessa maneira, com a sua louca fantasia, o
testemunhoa de Tiago.
3.4 – As Ordens Eclesiásticasb
O chamado sacramento da ordem é classificado em quarto lugar. Mas ele é tão
prolífero que produz de si sete diminutos sacramentos.c É uma coisa ridícula esta,
que, tendo apresentado como existentes sete sacramentos, quando se põem a
enumerá-los, contam treze! E não podem escusar-se dizendo que os sacramentos
das ordens são um só sacramento, uma vez que visam a um só sacerdócio e são
como degraus para chegar a ele. Porque, como se vê claramente que para cada um
deles há cerimônias diversas, além do que eles afirmam que em cada um deles há
diversas graças,43 ninguém duvidará de que, conforme a doutrina deles, deve-se
reconhecer sete sacramentos. E para que discutir sobre isso, como se fosse coisa
duvidosa, quando são eles mesmos que confessam cabalmente que são sete?
Chamam-lhes também sete ordens, ou graus, ou degraus eclesiásticos. São os
seguintes: porteiros,d leitores, exorcistas, acólitos, subdiáconos, diáconos e sacerdotes. São sete, dizem eles, porque a graça do Espírito Santo contém sete formas e
porque de Sua graça devem estar cheios os que são promovidos a estas ordens.
Mas, em sua promoção, a graça do Espírito lhes é muito aumentada e ampliada.
Argumentos contra o falso sacramento das ordens eclesiásticas:
43
No cap. 4 das Sent., dist. 24, c. 9.
f. Acréscimo feito ao texto latino.
a. pro sua libidine.
b. Cf. P. Lombardo, Sentent., dist. XXIV (Migne 192, 900); Tomás de Aquino, Somme [Summa], III, suppl.
quæst. 34; bula do papa Eugênio IV Exultate Deo, cap. 15. Lutero em 1521 tinha escrito De votis, ad
episcopos et diaconos ecclesiæ vuitembergensis.
O título do capítulo das Institutas é, em 1539: De ordine ecclesiastico; em 1536: De ordinibus ecclesiasticis:
novo índício de que a tradução desse capítulo foi feita, ao menos em parte, conforme um exemplar de 1536.
Farel, em sua Declaração Sumária, cap. XXXIII, Sobre os Falsos Pastores, não fala sobre a ordenação.
Calvino, em 1536, pouco depois da publicação das Institutas, escreveu na Itália a Gérard Roussel, então
recentemente nomeado bispo de Oloron, uma carta (publicada em 1537), na qual formula um padrão ideal
para o ministério evangélico (Petit traicté monstrant que c’est que doit faire um homme fidèle cognoissant
la vérité de l’Evangile quand il est entre les papistes, 1543) – Breve tratado que mostra o que deve fazer um
homem fiel, conhecedor do Evangelho, quando se encontra entre os papistas.
c. sacramentula.
d. ostiarii. Também se traduz: portiers (porteiros).
73
3.4.1 – Número forjado com falsa base bíblica
Em primeiro lugar, o número deles foi forjado com base numa falsa glosa e
não menos torcida explicaçãoa da Escritura, porque lhes parece ler em Isaías44
sete virtudes ou poderes do Espírito Santo. Se bem que, na verdade, o profeta não
se refere ali a mais que seis, e que certamente ele não quis enumerarb todas as
graças do Espírito Santo. Porque noutras passagens da Escritura Ele é igualmente
denominado Espírito de vida, de santificação, de adoção de filhos, como na citada passagem de Isaías o “Espírito do Senhor” é chamado “Espírito de sabedoria e
de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor”.
Todavia outros, mais sutis, não ficam só nas sete ordens, mas citam nove,
imitando, como eles dizem, a igreja triunfante. E, ainda mais, há conflito entre
eles mesmos, porque para uns a tonsura clerical é a primeira ordem e o bispado é
a última;45 outros, excluindo a tonsura, adotam o arcebispado como uma das
ordens. Isidoro as classifica diferentemente,46 pois faz distinção entre salmistas e
leitores, ordenando os primeiros para o canto sacro e os segundos para lerem as
Escrituras para instrução do povo, distinção que se observa nos cânones.47 Diante de tanta diversidade, a quem devemos evitar e a quem seguir? Diremos que há
sete ordens? O mestre das sentenças ensina isso, mas os doutores mais iluminados determinam outra coisa. Aqui novamente eles divergem entre si. Além disso,
os cânones sagrados nos mostram outro caminho.48 – Aí está a harmonia existente entre os homens, quando discutem as coisas divinas sem a Palavra de Deus.
3.4.2 – Ridícula explicação sobre sua origem
Acresce que quando falam sobre a origem das suas ordens, até para as crianças eles se tornam ridículos. Os clérigos, dizem eles, têm seu nome escolhido
por sorte.a Quer dizer, ou que são escolhidos por Deus mediante sorteio, ou que
são escolhidos por Deus, ou que têm Deus como sua porção. Mas eles cometem
44
Is 11.2; Ez 1.20; Rm 1.4; 8.15.
Aquela opinião é de Hugo, esta, de Guilherme, bispo de Paris.c
46
Isidoro, no livro 4 et imo [e no fim]. Ele é citado no Decret., disti., 21, c. Cleros. No Decretd, dist. 23,
c. Lector, e c Ostiariuse.
47
Indicada aqui, por engano, a nota f. Ver a primeira parte da nota 44. NT
48
No cap. 4 das Sent.f, dist. 24, c. I; as duas primeiras razões estão no Decret.g, dist; 21, c. Cleros. Esta terceira
razão encontra-se no Decr., c. duo 12. Quæst. Ih. [Observação: No texto francês a nota 43 vem, por engano,
“f”. NT.]
a. scripturæ interpretatione consecratus.
b. concludere.
c. Poderia ser Guilherme (Guillaume) de Champeaux? Mas ele só foi arcediago de Paris.
d. de Graciano, I, dist. XXI, cân. 1.
e. 1541 tem, por engano, Hostiarius; 1536 e 1539: Ostiarius. [Corrigido na edição utilizada para a presente
tradução.]
f. De P. Lombardo.
g. Decreto de Graciano, III, dist. XXI, cân. 1 (Migne, 187, 115), e dist. XXIII, cân. 18 (Migne, 187, 136).
h. Ibid., II, causa XII, quæst. 1, cân. 7 (Migne, 187, 884).
a. (Em grego: klhro .) (klhro/w)
45
74
As Institutas – Edição Especial
um sacrilégio, usurpando de forma especial este nome, que pertence a toda a
igreja. Porque significa herança, e a igreja é a herança de Cristo, a qual Lhe é
dada por Deus. O apóstolo Pedro não chama de herdeiros os queb têm a cabeça
rapada (como falsamente dizem eles com suas mentiras), mas atribui esse título a
todo o povo de Deus.49
Segue-se em seus registrosc que os clérigos têm rapada a parte superior da
cabeça, formando a tonsura, a que chamam coroa, querendo com isso dizer que
eles devem ser reis, cabendo-lhes governar a si mesmo e aos outros, como lhes
disse o apóstolo Pedro (alegam eles): “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio
real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus”.50 Outra vez aqui os
faço culpados de falsidade. Pedro fala a toda a igreja, e eles torcem suas palavras
como se ele se referisse tão-somente a algum padrecod e só dissesse aos clérigos:
“Sede santos”.51 Como se só eles tivessem sido adquiridos pelo sangue de Cristo,
e como se só eles fossem constituídos reino e sacerdócio para Deus, e não todos
os crentes em geral, como testifica a Escritura.e52
Eles ainda acrescentam outras razões para a sua coroa. Ei-las: que o ponto
mais alto da sua cabeça é descoberta para mostrar que o seu pensamento deve, sem
impedimento algum, contemplar face a face a glória de Deus; para mostrar que os
vícios dos olhos ea da mente devem ser eliminados; para significar o abandono e a
renúncia dos bens temporais; e acrescentam que a parte do cabelo que permanece
representa o resto dos bens que eles retêm para o sustento da sua vida.53 Tudo isso
em figura, porque para eles o véu do templo ainda não se rompeu!
Vê-se, pois, que acreditando que cumprem muito bem o seu ofício simplesmente por representarem tais coisas com a sua coroa, na verdade não realizam
coisíssima nenhuma. Até quando vão querer enganar-nos com suas mentiras e ilusões? Os clérigos, por cortarem uma mechab de cabelo, mostram que renunciaram a
todos os bens temporais; que, livres de todo impedimento, contemplam a glória de
Deus; e que mortificaram a concupiscência dos seus olhos e dos seus ouvidos. No
entanto, nenhum outro estadoc entre os homens é mais dominado pela rapacidade,
pela ignorânciad e pela luxúria! Melhor seria que mostrassem a verdadeira santidade, em vez de representá-la figuradamente por sinais falsos e mentiras!
49
1Pe 1.4.
1Pe 2.9; Êx 19.5,6.
51
1 Pe 1.16; Lv 11.45; 19.2; 20.7. NT
52
Ver, por exemplo, Ap 1.6. NT
53
No livro 4 das Sent., 24, e no Decret., c. duo sunt, 12, quæst. I.
b. pauculos.
c. apud eos.
d. 1536 tem somente pauculos.
e. Acréscimo ao texto latino.
a. 1536 e 1539 têm a conjunção, que falta em 1541. [Acrescentada entre colchetes na edição ora em uso.]
b. aliquot.
c. genus.
d. stupidius.
50
75
Finalmente, quando eles dizem54 que a sua coroa tem sua origem e sua razão
de ser nos nazireus,55 o que fazem é declarar que os seus mistérios procedem das
cerimônias judaicas; ou melhor, que não passam de Judaísmo.e E, ao acrescentarem que Priscila, Áqüila e até Paulo, tendo feito um voto, raparam a cabeça para
se purificarem, revelam sua grande ignorância; porque não se diz isso de Priscila
em parte alguma da Escritura, nem de nenhum dos outros citados, e, quanto a
Paulo, fica-se em dúvida se a alusão é a ele ou ao outro, pois a tonsura a que se
refere Lucas tanto pode referir-se a Paulo como a Áqüila.56 E para que não pensem que estamos concedendo que eles de fato seguem o exemplo de Paulo, mesmo as pessoas simples notarão que jamais Paulo rapou a cabeça para santificação,
mas sim para adaptar-se à fraqueza dos seus companheiros.a57 Tais espécies de
votos costumo chamar votos de caridade, não de piedade ou religiosidade, isto é,
não os entendo como religiososb ou como se prestando para algum serviço a Deus,
mas para atender à rudeza dos fracos, como aconteceu com Paulo que, como ele
mesmo diz, agiu “para com os judeus, como judeu”, etc. Assim procedeu ele por
algum tempo para adaptar-se aos judeus. Mas os mestres que aqui criticamos
querem imitar os nazireus sem qualquer fruto. Que fazem eles, senão fabricar um
novo judaísmo?
Com a mesma prontidão foi composta a Epístola Decretal,58 que proíbe aos
clérigos, à semelhança do apóstolo, que deixem crescer o cabelo, e que lhes ordena que o cortem em forma circular, imitando uma esfera;c como se o apóstolo, ao
ensinar o que é honroso para os homens em geral, estivesse muito preocupado
com a tonsura circular dos seus clérigos!59 Observem os leitores estes preliminares e avaliem como serão as demais ordens, tendo elas tal introdução!
3.4.3 – O cúmulo da pretensão: Dizem que Cristo é colega deles!
Mas nisto a sua loucura suplanta tudo mais: Declaram que Cristo é colega deles!d
Primeiro, dizem eles, Cristo exerceu o ofício de porteiro, quando expulsou
do templo os vendedores e compradores, e se revelou porteiro quando disse: “Eu
sou a porta”.60
54
No livro 4 das Sent., dist. 24, c. If.
Nm 6.5. NT
56
At 18.18.
57
1Co 9.19-23.
58
No Decret., c. Prohibe, dist. 25.
59
1Co 11.14
60
Mt 21.12,13; Jo 2.14-16; 10.9
61
Lc 4.16-20
e. judaïsmum.
f. P. Lombardo, IV, dist. XXIV, 2.
a. fratrum.
b. cultum Dei.
c. Decreto de Graciano, I, dist. XXIII, cân. 21.
d. P. Lombardo, Sentent. IV, dist. XXIX, 3.
55
76
As Institutas – Edição Especial
Afirmam que Ele assumiu a posição de leitor quando, na sinagoga, leu Isaías.61
Ele se introduziu na condição de exorcista quando, tocando com Sua saliva
os ouvidos e a língua de um surdo-mudo, o fez ouvir e falar.62
Deu testemunho de que era acólito com Suas palavras: “Quem me segue
não andará em trevas”.63
Exerceu o ofício de subdiácono quando, cingido de uma toalha, lavou os
pés dos Seus apóstolos.64
Representou o estado de diácono distribuindo Seu corpo e Seu sangue aos
apóstolos na Ceia.65
Realizou a função de sacerdote quando se ofereceu na cruz em sacrifício
ao Pai.66
Tais coisas não se pode ouvir sem rir. Eu me espantaria se soubesse que tais
coisas foram escritas sem risadas, se ao menos os que as escreveram eram homens. Mas principalmente a sutileza disso merece ser considerada aqui. Pois o
nome de acólito eles explicam como ceroferário, uma palavra, como penso, mágica, pois certamente se trata de uma palavra não conhecida em língua ou nação
nenhuma. O fato é que acoluthea significa em grego aquele que segue e acompanha – e pela palavra ceroferário eles entendem um porta-círios.67 Bem que eu
gostaria de deixar de refutar essas tolices, que mais merecem ser escarnecidas,
tão inúteis e frívolas são! Todavia, para que não enganem ainda que seja as mulheres simplórias,b é necessário pôr a descoberto um pouco das suas lorotas.
Eles produzem com grande pompa e solenidade os seus leitores, salmistas,
porteiros, acólitos e, para por eles exercer os seus ofícios, empregam e encarregam crianças ou aqueles que eles chamam leigos. Porque, quem é que mais
freqüentemente acende as velas, ou que vertem a água e o vinho, senão algum
menino ou algum pobre homem leigo que com isso tem o seu ganha-pão? E não
são também meninos ou leigos que cantam e que abrem e fecham as portas das
igrejas? Pois, quem é que já viu em seus templos um acólito ou um porteiro fazer
esse tipo de serviço? Antes, aquele que desde a infância realizava o ofício de
acólito, depois de ordenado para essa posição, deixa de fazer o que lhe compete.
A tal ponto ocorre isso que, como se vê, proposital e deliberadamente, eles se
desligam do que é próprio do seu encargo quando recebem o título correspondente.
Aí está por que é necessário que sejam ordenados para os tais sacramentos,
e que recebam o Espírito Santo – a saber, para não fazerem nada! Se alegarem
que tais defeitos são fruto da perversidade do tempo presente, que os leva a ne62
Mc 7.32-35
Jo 8.12
64
Jo 13.1-17
65
Mt 26.26-28
66
Mt 27.45-54
67
Aquele que leva um círio ou uma tocheira nas procissões. Latim: ceroferarius. NT
a. 1536 e 1539: a,xo,louqoj simpliciter significet pedissequum.
b. mulierculis.
63
77
gligenciarem e a menosprezarem o seu dever, necessário será que igualmente
confessem que não há nenhum fruto, nenhuma utilidade atual para a igreja, de
suas ordens sagradas, que eles exaltam de forma tão estupenda. E que reconheçam e confessem que toda a sua igreja está cheia de maldições,a pois ela deixa
que os leigos e os meninos manuseiem as velas ou círios e as galhetas,68 de cujo
toque só é digno quem for consagrado como acólito, e também transfere os cânticosb
para as crianças, os quais só devem ser entoados por lábios consagrados.
E quanto aos exorcistas, com que finalidade os consagram? Bem sei que os
judeus tinham os seus exorcistas,69 mas eu vejo que os que tinham esse título
exerciamc o seu ofício. Jamais, porém, se ouviu falar que estes exorcistas
falsificadosd tenham feito uma amostraa sequer da sua profissão. Eles fingem que
têm poder de impor as mãos aos lunáticos, aos incrédulos e aos endemoninhados,
mas não conseguem persuadir os demônios de que têm tal poder. Entretanto, o
que se vê é que não somente os demônios não sucumbem às suas ordens, mas
também que têm poder sobre os que os querem expulsar. Porque a muito custo se
encontrará um dentre dez destes tais exorcistas que não seja atormentado por
maus espíritos. Portanto, tudo o que eles tagarelam a respeito das suas ordens menores, seja que contem cinco ou seis, é forjado pela falsidade e pela ignorância.
Incluo entre estas ordens o grau de subdiácono, embora tenha sido transferido para a categoria das ordens maiores, depois que produziram esta multidão de
pequenas ordens. É certo e evidente que elas não devem ser consideradas sacramentos, visto que, como eles mesmos confessam, eram desconhecidas da Igreja
Primitiva e foram inventadas muitos anos depois.70 Ora, como os sacramentos
devem conter promessa de Deus, nem os anjos nem os homens os podem instituir, mas unicamente Deus, a quem cabe fazer e conceder promessas, e a mais
ninguém. Ao que parece, como eles têm o testemunho da Palavra de Deus quanto
aos dois outros sacramentos, por isso, por uma singular prerrogativa, dão o título
especial de ordens sagradas a essas ordens menores. Mas é preciso ver quão perversamente eles abusam da Escritura para provar isso.
3.4.4 – As ordens maiores
Comecemos com a ordem do sacerdócio, ou do presbiterato, que em latim
denominam Sacerdotium.b Chamam sacerdotes ou presbíteros aqueles cujo ofí68
Galheta: pequeno vaso utilizado para a água e para o vinho na missa. Curiosa esta sentença de Inglês de
Sousa, apud Aurélio: “...devorando silenciosamente as hóstias da caixinha de lata, regando-as com o vinho
branco das galhetas”. NT
69
At 19.13,14
70
No livro 4 das Sent., 24 dist., cap. 8.
a. anathemate.
b. cantiones.
c. 1536 e 1539: exercebant; 1541 tem, por erro: exerceroient. [Na verdade, na edição ora em uso: exerceoient.]
d. ementitis.
a. specimen unum.
b. P. Lombardo, IV, dist. XXIV, 9.
78
As Institutas – Edição Especial
cio é, segundo eles, oferecer no altar o sacrifício do corpo e do sangue de Cristo,
fazer as orações e abençoar ou benzer os dons de Deus.71 Portanto, quando são
promovidos a esta ordem, recebem o cálice, a patena72 e a hóstia, como sinal de
que estão revestidos de poder para oferecer a Deus os sacrifícios de reconciliação.
E ungem as suas mãos, com isso fazendo-os saber que têm o poder de consagrar.
Para todas essas coisas eles não encontram nenhum apoio na Palavra de
Deus, de tal forma que não poderiam corromper mais impiamente a ordem de
Deus e as Suas instituições.
3.4.5 – Consideremos:
Primeiro, deve ser aceito como certo e concluído o que foi dito no capítulo
anteriora, a saber: que todos os que se dizem sacerdotes com vistas a oferecer
sacrifícios de reconciliação fazem injúria a Cristo. Ele é que foi ordenado e consagrado pelo Pai, com juramento, sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque,
sem fim e sem sucessor. Ele é que ofereceu uma vez [por todas] a hóstia, ou seja,
o sacrifício de purificação e reconciliação eterna e que agora, tendo entrado no
santuário do céu, 73 ora por nós.74 Em Cristo todos nós somos sacerdotes, mas
somente para oferecer louvores e ações de graças; em suma, para nos oferecermos a Deus – o nosso ser e tudo o que é nosso. A Cristo coube a preeminência
especialc de apaziguar a Deus e purificar os pecados75 por meio do Seu sacrifício.76 Que é que resta, senão o fato de que o sacerdócio destes usurpadores é um
condenável sacrilégio? Mas, como eles não têm a mínima vergonha de gabar-se
de que são sucessores dos apóstolos, é necessário considerar como eles se
desincumbem do encargo apostólico. Bem que eles deveriam concordar entre si,
se pretendem que o que dizem mereça crédito. Pois bem, os bispos, os mendicantesd
e os sacerdotes travam conflito mortala no tocante à sucessão apostólica.
71
Is[i]dore alt., que se vê no Decret., c. q. lectis, dist. 25, e no quarto [livro] das Sent., dist. 24, c. 8b.
Patena = pátena: Pequeno prato de ouro ou de metal dourado para a “hóstia grande”; usado no ofertório
realizado durante a missa. Serve também para cobrir o cálice. NT
73
Hb 5.6; 7.3,25; 9.24-28; 10.10-18 ( ver capítulos 4, 5, 7, 9 e 10).
74
“Jesus Cristo é o único sacerdote e o único sumo sacerdote do Novo Testamento, para o qual foram transferidos todos os sacerdócios e no qual todos eles estão encerrados e acabados.” [João Calvino, As Institutas,
(1541), IV.12]. NE
75
1Pe 2.21-25; Ap 1.5,6.
76
“Visto que nos reconciliamos com Deus, em Cristo, através de seu verdadeiro sacrifício, somos, todos nós,
por sua graça, feitos sacerdotes com o fim de podermos consagrar-nos a ele como sacrifício vivo e tributarlhe toda a glória por tudo o que temos e somos. Não resta mais nenhum sacrifício expiatório para se oferecer,
e não se pode fazer tal coisa sem trazer grande desonra para a cruz de Cristo.” [João Calvino, Exposição de
Romanos, São Paulo, Paracletos, 1997, (Rm 12.1), p. 424]. NE
a. Decreto de Graciano, I, dist. XXV, cân. 1 (Migne, 187, 141); P. Lombardo, IV, dist. XXIV, 9.
b. 1536 e 1539: presbyterii sive sacerdotii: his enim duobus nominibus rem unam significant.
Sobre a Santa Ceia, cap. XII.
c. singulari fuit.
d. mendicantes monachi.
a. digladiantur.
72
79
Os bispos pretendem que, como foram escolhidos doze para a singular prerrogativa que caracteriza o grau de apóstolos, no lugar dos quais eles dizem estar,
arrogam-se superioridade em relação aos demais.77 E dizem que os sacerdotes
comuns estão no lugar dos setenta discípulos, posteriormente estabelecidos pelo
Senhor. Mas o seu argumento é muito fraco, não requerendo longa confutação,
porque é destruído pela ação dos seus próprios registros, onde se lê: Antes de
surgir a demoníaca divisão no seio da igreja, e de um dizer, “Eu sou de Cefas”, e
outro, “Eu sou de Apolo”, não havia diferença entre presbítero e bispo.78 O melhor julgamento que se pode fazer deles é que, ao que parece, eles tomaram essa
distinção dos gentios, que têm muitos tipos de sacerdotes, com suas distinções
em hora e em grau.d
Os monges mendicantes querem funcionar como vigários ou substitutos
dos apóstolos por uma só semelhança, a saber, em algo em que na verdade são
muito diferentes. É que eles andam por toda partee e vivem à custa dos outros.
São diferentes porque os apóstolos não iam temerariamente de lugar em lugar
com o objetivo com que vão estes corredores. Os apóstolos, diversamente, iam
para onde eram chamados por Deus, para promover a frutificação do Evangelho.
E não ficavam ociosamente enchendo o ventre com produtos de bens alheios,
mas, segundo a liberdade que lhes era concedida por Deus, faziam uso dos benefícios a eles feitos por aqueles que eles instruíam na Palavra. E não há necessidade de que os monges se defendam com pena alheia, como se lhes faltasse testemunho escrito do que eles são, visto que a dignidade deles é bem retratada nos
escritos do apóstolo Paulo, quando diz: “Estamos informados de que, entre vós,
há pessoas que andam desordenadamente, não trabalhando; antes, se intrometem
na vida alheia”.79 E noutra passagem ele diz: “Entre estes se encontram os que
penetram sorrateiramente nas casas e conseguem cativar mulherinhas
sobrecarregadas de pecados, conduzidas de várias paixões, que aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade”. Pois, uma vez que eles
podem apropriar-se com todo o direito da dignidade ali descrita, que deixem com
outros o ofício de apóstolos, do qual eles estão mais longe que do céu.
77
No Decret., dist. 21, cap. Ib.
É o que diz Jerônimo, comentando a Epíst. a Tito; e é citado no Decret., dist. 93, capítulo Legimusc, e 95,
c. Olim.; no livro 4 das Sent., dist. 24, c. 10; e no Decret., dist. 21, c. cap. I.
79
2Ts 3.11; ver também Theophilactea.
b. Decreto de Graciano, I, dist. XXI, cân. 1; P. Lombardo, Sentent., IV, dist. XXIV, 9.
c. Decreto de Graciano, I, dist. XCIII, cân. 24; dist. XCV, cân. 5 (Migne, 187, 442 e 448).
d. 1536 e1539 enumeram: flamines, curiones, lupercales, salios, pontifices et cæteros. (Lib. 4, sent., dist. 24,
c. 10; in cânon., dist. 21, c. 1 (Decreto de Graciano, I, dist. XXI, cân. 1). Desde 1522, Lutero tinha publicado De votis monasticis e Wider den falsch genannten geislichen Stand des Popstes und der Bischoffe.
e. cursitant.
a. Arcebispo búlgaro, em seu comentário sobre esta epístola (Migne, Pais Gregos, 124, 1354).
78
80
As Institutas – Edição Especial
3.4.6 – Comparação ou contraste entre o ministério dos atuais sacerdotes
romanistas e o dos apóstolos
(1) Quanto à missão:
Deixando então de lado essas coisas, examinemos em geral a ordem do sacerdócio ou presbiterato, verificando em que se coaduna com o estado ou posição dos
apóstolos. Antes de haver sido edificada alguma forma da igreja, o Senhor deu
mandamento a Seus apóstolos no sentido de que pregassem o Evangelho a toda
criatura e batizassem para perdão dos pecados a todos os que cressem.80 E antes
disso lhes havia ordenado que, a Seu exemplo, distribuíssem o santo sacramentob
do Seu corpo e do Seu sangue.81 Em tudo isso não há nenhuma menção de oferta de
sacrifício. Aí está uma ordenança santa, inviolável e perpétua, dada a todos os que
sucedem aos apóstolos; por ela recebem eles o mandamento para que preguem o
Evangelho e administrem os sacramentos. Os que não se dedicam à pregação do
Evangelho e à administração dos sacramentos acobertam-se falsamente sob o título
de apóstolos. Mais uma vez se vê que aqueles que oferecem sacrifícios gabam-se
falsamente de que têm seu ministério em comum com os apóstolos.
(2) Quanto ao governo da igreja:
Há diferença também entre os apóstolos e os que atualmente governam a igreja.
Primeiro, quanto ao nome. Porque, embora, conforme o sentido e a origem
da palavra, aqueles e estes possam ser chamados apóstolos, visto que todos são
em comum enviados por Deus, todavia, o Senhor escolheu os doze especialmente
para propagarem em todo o mundo a nova pregação do Evangelho.82 E quis que
eles fossem particularmente chamados apóstolos, pois era necessário que tivessem correto conhecimento do seu encargo, uma vez que traziam algo novo e
desconhecido. Já os atuais são chamados presbíteros e bispos.
Segundo, eles diferem em seu ofício. É que, conquanto o ofício de ministrar
a Palavra e os sacramentos seja comum a uns e aos ouros, contudo foi mandado
aos doze apóstolos que espalhassem o Evangelho em diversas regiões, sem lhes
estabelecer limites definidos.83 Os atuais têm suas igrejas, para eles designadas.
Neste ponto não negamos, porém, que aquele que foi ordenado para o governo de uma igreja possa ajudar as outras, quando surja algum problema que requeira
a sua presença, ou então, mesmo ausente, que ele possa ser-lhes útil mediante seus
escritos. Mas dizemos simplesmente que a esta políticaa é necessária para a manutenção da paz eclesiástica: que cada um tenha o seu ofício determinado,b para que
80
Mc 16.15,16
Lc 22.19,20
82
Rm 10.13-15; Lc 6.12,13
83
At 1.8
b. sacra symbola.
a. politia.
b. unicuique esse propositum quod agat.
81
81
não haja confusão, não corram para cá e para lá sem vocação ou chamamento
específico, juntando-se todos num lugar e negligenciado a seu bel-prazer as igrejas a eles confiadas. Essa distinção é feita pelo apóstolo Paulo, que escreveu a
Tito nestes termos: “Por esta causa te deixei em Creta, para que pusesses em
ordem as cousas restantes, bem como, em cada cidade, constituísses presbíteros,
conforme te prescrevi”. Também se vê demonstrada por Lucas, em Atos, quando
ele registra a exortação do apóstolo Paulo, que se dirigiu aos presbíteros da igreja
de Éfeso desta forma: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o
Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual
ele comprou com o seu próprio sangue”.84 Neste sentido, nos escritos de Paulo é
feita menção de Arquipo, bispo dos colossenses, e noutra passagem, dos bispos
dos filipenses.85 Quando estas coisas forem bem consideradas, será fácil concluir
em que consiste o ofício de presbítero e que tipo de gente deve ser considerada
pertencente à condição própria dos presbíteros. Ou seja, em que consiste a ordem
do presbiterato.
Seu ofício é anunciar o Evangelho e administrar os sacramentos. Deixo de
falar sobre a santidade que eles devem manter e qual o dever específico de cada
um, visto que não é nossa intenção continuar aqui o estudo no sentido de buscar
e expor todas as graças de um bom pastora, mas apenas tocar de passo a confissão
ou declaração feita pelos que se chamam presbíteros. O bispo, tendo sido chamado para o ministério da Palavra e dos sacramentos, executa fielmente o que lhe é
ordenado por Deus. Chamo indiferentemente aos bispos e presbíteros ministros
da igreja. A ordem é a referida vocação.
Agora será proveitoso mostrar qual é o meio pelo qual se verifica a vocação. Consta de duas coisas: a primeira é por quem os bispos ou presbíteros devem
ser instituídos; a segunda é em que cerimônia eles devem ser ordenados.
No tocante à primeira, por quem os bispos deverão ser instituídos, devemos
considerar o ensino que podemos ter pela instituição dos apóstolos, os quais não
atenderam a nenhum chamamento feito por homens, mas que, revestidos e equipados unicamente pela ordenação de Deus, puseram mãos à obra.
E não se vê mandamento explícito quanto aos apóstolos ordenarem outros,
senão que, na passagem já citada, o apóstolo Paulo declara que deixou Tito em
Creta para constituir bispos nas cidades.86 Noutra passagem ele admoesta Timóteo a não impor precipitadamente as mãos a ninguém.87 E o evangelista Lucas
84
Tt 1.5; At 20.28
Cl 4.17; Fp 1.1
86
Tt 1.5.
87
1 Tm 5.22.
a. Farel, em sua Declaração Sumária, fala no cap. XXXIII Sobre os Falsos Pastores; no cap. XXXIV, Sobre
o Bom Pastor: “Ele oferecerá às ovelhas somente o que é saudável e aprovado pela Escritura Sagrada, não
permitindo que, pela tradição ou por determinação humana, sejam colocadas em nova sujeição as ovelhas
libertadas por nosso Senhor Jesus Cristo”.
85
82
As Institutas – Edição Especial
registra em Atos88 que Paulo e Barnabé constituíram presbíteros em cada uma
das cidades de Listra, Icônio e Antioquia.a Essas passagens são muito citadas
pelos prelados mitrados, como é seu costume notar e anotar tudo o que pareça
88
At 14.23.
a. No comentário da Primeira Epístola de Pedro, dedicado em 1551 ao rei Eduardo VI, Calvino diz (5.1): “Com
a palavra anciãos (presbíteros) ele se refere aos pastores e a todos os que recebam por delegação a incumbência do governo da igreja. Pois bem, são chamados presbíteros ou anciãos em sentido honorário, não que
sejam anciãos na idade”, etc. “5.2: episxopou=ntej. ’Supervisionando-o143 (o rebanho)’. Erasmo verteu:
‘Tendo cuidado dele (curam illius agentes)’” (Opera Calv., LV, 285). Mas, quando se estudar bem a palavra
grega, não tenho nenhuma dúvida de que se verá que o apóstolo Pedro não quis expressar o nome e o ofício
de bispo. De outras passagens da Escritura também se pode deduzir que as duas palavras, bispo e presbítero,
significam uma só coisa... Todavia, algumas vezes a palavra grega também significa em geral ter a superintendência sobre alguma coisa ou atendê-la”.
A palavra “Presbítero” é uma transliteração do grego Presbu/teroj que significa “mais velho” (em
relação ao mais novo), “ancião”, indicando também um ofício eclesiástico. “Bispo” é a tradução da palavra
grega e)pi/skopoj [Que tem o sentido de “superintendente”, “guardião” e “bispo” (* At 20.28; Fp 1.1; 1Tm 3.2;
Tt 1.7; 1Pe 2.25)], passando pelo latim (episcopus) que significa “supervisor”, “guardião”, “superintendente”.
O vocábulo Presbu/teroj, que já era usado desde Píndaro (c. 518- c. 445 a.C.), parece ter passado por
três sentidos: “mais velho” [Platão, Defesa de Sócrates, São Paulo, Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. II),
1972, 31b. p. 22], depois, o de “maior importância” e, finalmente, o “mais honrado”, não havendo nenhuma
associação do “mais velho” como sendo, por exemplo, o “mais fraco”. A idéia presente é de honra e respeito,
daí o conceito de “tomar o primeiro lugar”; e, aquilo que, comparativamente, é mais importante ou “imperativo”. [Vd. Heródoto, História, Rio de Janeiro, Editora Tecnoprint, (s.d.), V.63. p. 444; Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1982, IV.61. p. 208; Platão,
O Banquete, São Paulo, Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. III), 1972, 218d, p. 55].
Partindo daí, concebe-se a idéia de alguém que assume determinadas funções oficiais, como “embaixador”; comandante de um exército, estando, portanto, a idéia embutida de alguém que “sustenta”,
“cuida de” e “preocupa-se com” os que estão sob a sua guarda; ou, ainda que não oficialmente constituído, um “conselheiro”.
O Antigo Testamento emprega a palavra no sentido literal, de “mais velho” (Gn 18.11; 19.4; 43.33; 1
Sm 2.22; Sl 71.18; Is 20.4) e, também referindo-se aos “anciãos do povo” e “anciãos de Israel” – que
algumas vezes representavam concílios locais –, os quais tiveram grande relevância na vida de Israel,
participando inclusive da administração pública (Vd. Ex 3.16; 4.29; 12.21; Dt 16.18; 21.2ss; 22.25; Js
20.4; Rt 4.2; 1 Sm 4.3; 8.4; 30.26; Ed 5.9ss; 6.7; 10.14; Jr 29.1; Ez 7.1; 14.1; 20.1). Notemos também, que
este costume não era exclusivo de Israel; outros povos também tinham seus “anciãos” [Gn 50.7 {ARA:
“principais” (2 vezes) LXX: presbu/teroi}; Nm 22.7].
Posteriormente, no período interbíblico, conforme podemos ver os reflexos ainda no Novo Testamento, o “ancião” era o membro do Sinédrio que, segundo criam, tinha suas origens ligadas aos setenta anciãos
escolhidos por Moisés (Nm 11.16ss).
O “Presbítero”, era certamente o “mais velho” em contraste com o “jovem”. Quanto à idade para ser
considerado presbítero, não sabemos; têm sido sugerido entre 50 e 56 anos; no entanto, a comunidade de
Qumran, exigia a idade mínima de 30 anos para exercer o ofício de Presbítero. No Egito, documentos
antigos indicam a existência de presbítero de 45, 35 e 30 anos.
No Novo Testamento encontramos a associação dos “anciãos” como aqueles que perseguiram a Jesus
e aos apóstolos (Mt 16.21; 27.1; At 6.12) e a chamada “tradição dos anciãos” (Mt 15.2; Mc 7.3,5). Emprega
também o termo – como já era habitual –, referindo-se ao mais velho em relação ao mais moço (Lc 15.25/
1Tm 5.1; 1Pe 5.5); à geração mais velha em contraste com a mais nova (At 2.17) e, também, aos nossos
ancestrais (Hb 11.2).
Entre os judeus, até o ano 70 AD – quando o Templo de Jerusalém foi destruído –, os oficiais da
sinagoga de Jerusalém eram denominados de “Presbíteros”. [Cf. Presbu/teroj: In: William F. Arndt & F.W.
Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Eearly Christian Literature, 2ª
ed. Chicago, University Press, 1979, p. 706b].
A primeira vez que a Palavra ocorre referindo-se à Igreja é em At 11.30, sendo usada desde então em
conexão com os apóstolos (Vd. At 14.23; 15.2,4,22,23; 16.4; 20.17; 21.18). Ela ocorre 66 vezes no NT. NE
143
Tradução direta. NT
83
favorecê-los. Porque daí eles inferem que o poder de ordenar e consagrar sacerdotes, como eles dizem, é dado exclusivamente a eles. E para tornar a sua consagração respeitávelb aos ignorantes, mediante alguma exibição e aparência,c eles a
maquiamd com o seu cerimonial. Mas eles abusam, se pensam que ordenar e
consagrar nada é senão constituir um bispo ou um pastor sobre alguma igreja,
pretendendo com isso que estão seguindo a norma do apóstolo Paulo. E, se não a
seguem, é uma calúnia citar essas passagens segundo a sua fantasia.
E a verdade é que eles procedem de maneira muito diferente da do apóstolo,
porque ordenam para que sejam bispos aqueles quee eles consagram, mas para
serem padres. Fazendo isso, dizem eles, os designamos para o serviço da igreja,
Mas, que é que eles consideram serviço da igreja, senão o ministério da Palavra?
Sei muito bem que de há muito eles cantarolam esta canção – que os seus padrecos
são ministros da igreja. Mas não conseguirão fazer que pessoas dotadas de bom
entendimentoa acreditem nisso. E a própria verdade da Escritura os acusa, pois
ela não reconhece outro ministro de igreja senão o que é mensageiro da Palavra
de Deus, chamado para governar a igreja, e a ele ora chama bispo, ora presbítero,
e às vezes pastor.89
Se respondem contrariamente que os cânones proíbem que se admita alguém
nas ordens que não tenha título,b digo que não desconheço isso, mas eu não aceito
como legítimos os títulos pretendidos por eles. Em sua grande maioria, os seus títulos
não são estes: dignitários, oficiais, prebostes, cônegos,90 beneficiários de prebendas,
capelães, priores e monges? Todos esses são, em parte das igrejas catedrais,c em parte
das igrejas colegiadas,91 em parte dos claustros e em parte das casas arruinadas e
destruídas? Sedes que para mim não passam de cabarés de Satanás, ouso afirmá-lo.
Porque todos estes tipos de gente, a que fim são ordenados, senão para sacarificar e
imolar Jesus Cristo? Numa palavra, nenhum deles é ordenado senão para sacrificar, o
que não significa consagrá-lo a Deus, mas dedica-lo aos demônios.
Ao contrário, a verdadeira e única ordenação consiste em chamar para o
governo da igrejad aquele cuja vida e cuja doutrina foram dignamente aprovadas,
e colocá-lo no referido ofício. Nesse sentido é que devem ser entendidas as citadas passagens do apóstolo Paulo, tendo em vista que elas falam da cerimônia
89
At 20.17,28; 14.23; 1Pe 5.1-3
Ou canônico. Do latim: canonicus. NT
91
Catedrais: sedes de bispado. Igrejas colegiadas: igrejas que não constituem sedes de bispado (não são catedrais), mas que têm direito a um cabido próprio. Cabido: conjunto de cônegos de uma catedral ou de uma
igreja colegiada. NT
b. 1536 acrescenta: ac religiosam.
c. splendida aliqua larva.
d. adumbrarunt.
e. 1541 tem, por erro: qui. [Corrigido na edição ora em uso.]
a. sanus.
b. Decreto do Concílio de Latrão, III (1179), cap. V; cf. Decretais de Gregório IX, lib. III, tit. 5, cap. II, IV.
c. Assim foi na capela da Gésine, onde Calvino foi titular, na catedral de Noyon, quando criança; e nunca foi
ordenado sacerdote.
d. ministério. Calvino, um pouco adiante, vai chamar “ministros” os que governam (regunt) a igreja.
90
84
As Institutas – Edição Especial
mesma, além da vocação. Mas a respeito da cerimônia falaremos mais adiante,
no lugar próprio.
(3) Especificando: quem deve ordenar os ministros?
Tratemos agora do assunto que temos em mãos, a saber, por quem os ministros da igreja devem ser ordenados? Ou seja, por quem eles devem ser constituídos em sua posição? Que dizer, então? Terá o apóstolo Paulo dado a Timóteo e a
Tito os poderes de colação92 que agora são atribuídos aos príncipes mitrados?a
Certamente não faziam nada disso. Mas, como ele deu aos dois a incumbência de
constituir e ordenarb ou organizar as igrejas das províncias nas quais eles tinham
sido deixados, exortou um deles a que não permitissem que as igrejas ficassem
privadas de pastores,c e admoestou o outro a não receber ninguém que não tivesse
boa experiência e que não fosse bem provado.
Acaso Paulo e Barnabé distribuíam os bens das igrejas, como fazem agora
os metropolitanos e os arcebispos?d Absolutamente não. Além disso, não me parece que eles colocavam elementos a seu bel-prazer sobre as igrejas, sem advertilos e sem procurar saber quais as suas intenções; mas penso que, depois de comunicarem o seu propósito às respectivas igrejas e de ouvir a opiniãoe delas, eles
incumbiam aqueles que eles reconheciamf como pessoas de vida mais santa e
doutrina mais pura, dando a estes a preferência sobre os demais.
Na verdade, esse procedimento era necessário, supondo-se que os que estavam revestidos de poder e gozavam preeminência desejavam preservar a integridade das igrejas. Explicando: A igreja que se dispusesse a eleger ministro deveria, antes de proceder à eleição, convidar de uma região próxima um ou dois
bispos, singularmente conhecidos por sua integridade em seu viver e em sua doutrina, para se aconselhar com eles sobre quem seria mais indicado para o cargo.
Quanto a saber o que seria melhor, se o bispo deve ser eleito por toda a assembléia de cristãosg ou pelo parecer de um determinado grupo ou colégioh adrede
92
Isto é, autoridade para fazer nomeação de pessoas para o gozo de benefício eclesiástico. NT
a. infulatis satrapis.
b. componendis.
c. 1536 tinha somente: desertas. Pastores aparece aqui, em 1541, como sinônimo de ministros, e desde 1539,
no parágrafo que se verá logo a seguir, vem intercalado no texto de 1536. Episcopos é traduzido por pastores
eclesiásticos.
d. 1536 tinha somente: ceu metropolitani aliqui.
e. Acréscimo feito em 1541.
f. ex fratribus exploratos.
g. totius ecclesiæ comitiis (nós diríamos: por sufrágio universal).
h. aut paucorum suffragiis (nós diríamos: por sufrágio restrito, ou mesmo: por cooptação). 1536 e 1539144
acrescentaram: an vero magistratus sententia.
É curioso notar que, depois de ver os magistrados de Estrasburgo interferirem nos negócios da igreja,
com os Kirchspielpfleger ou anciãos, Calvino tinha, precisamente em Estrasburgo, suprimido a frase relativa a semelhante intervenção do magistrado, o que se pode ver algumas linhas abaixo. Em 1560, as Institutas
trazem: “ A questão é saber se um ministro deve ser eleito, ou por toda a igreja, ou pelos outros ministros ou
autoridades, ou se deve ser constituído por um só homem”.
144
No texto das notas: 1529. NT
85
encarregado disso, não se pode baixar regra categórica. Mas é preciso que se
tome conselho conforme a oportunidade do momento, os costumes do povo e
outras circunstâncias. Cipriano lutou muito no sentido de que uma eleição não
deveria ser considerada como devidamente feita, a não ser que fosse realizada
pelo voto de todo o povo.93 As narrativas da história mostram que essa prática era
observada naquele tempo em muitas regiões. Entretanto, é muito difícil acontecer que muitas cabeças façam bem feita alguma coisa por comum consentimento.
E o seguinte provérbio quase sempre é verdadeiro: “Em geral, o povo pende para
onde o gosto o impele, irrefletidamente”.a
Parece-me que o mais prático será que os magistrados,b ou o conselho, ou
alguns dos elementos mais antigos sejam encarregados desse mister. Para isso é
preciso, como eu já disse, chamar alguns bispos das vizinhanças,c cuja vida e cuja
doutrina gozem bom testemunho. Mas isso pode ser mais bem providenciado,
conforme a exigência das circunstâncias, pelos príncipes ou outros superioresd
que revelem zelo pela piedade cristã.
[1539] Certamente não haverá nenhum homem de bom senso que negue
que, segundo a ordem da vocação legítima, os bispos devem ser eleitos pelos
homens, visto que há muitos testemunhos da Escritura em prol deste processo de
eleição. E não se contraponha o apóstolo Paulo a isso, negando que ele tenha sido
enviado dos homens nem pelos homens.94 É o que digo porque, quanto ao primeiro ponto (a saber, que não foi enviado “dos homens”), isso ele tem em comum
com todos os bons ministros da Palavra, e declaramos que esse princípio deve ser
observado de maneira geral, visto que ninguém cujo chamado não venha de Deus
pode receber devidamente este ofício. Mas o outro ponto lhe é próprio e peculiar.
Porque, ao se gloriar no fato de que não foi enviado “pelos homens”, ele não
atribui a si mesmo somente o que é próprio de um verdadeiro e legítimo pastor,
mas também apresenta os sinaisa do seu apostolado. Acontece que havia entre os
gálatas alguns que, desejando abaixar a sua autoridade, tratavam-no como um
discípulo vulgar, que não deveria tomar o lugar dos apóstolos principais. Assim,
para manter a salvo a dignidade da sua pregação, que ele via que era visada pelas
artimanhas dos seus opositores, foi-lhe necessário demonstrar que ele não era
inferior aos outros em nenhum aspecto. Por isso afirma que não foi escolhido
pelo juízo dos homens, como habitualmente se faz com os pastores das igrejasb,
mas que foi declaradoc tal pela boca do Senhor e por revelação clara e patente.
93
“Muitas epístolas” (55,8; 59,6; 67,3,4).
Gl 1.1. [Tradução direta.]
a. Em 1536 é citado expressamente um verso de Virgílio (Enéide [Eneida], 2, 39): “Et fere illud verum est:
‘Incertum scindi studia in contraria vulgus’”.145
b. vel magistratum, vel senatum, vel seniores.
c. advocatis semper.
d. 1536 e 1539: aut líberæ civitates (das cidades livres, como Estrasburgo e Genebra).
a. isignia.
b. vulgari episcoporum more.
c. Palavra acrescentada ao texto latino.
145
“E este pensamento é verdadeiro: ‘Na dúvida, o povo se divide em opiniões contrárias’”. NT
94
86
As Institutas – Edição Especial
Contudo, apesar de o apóstolo Paulo haver sido escolhidod pela boca do
Senhor como um privilégio singular, ele igualmente fez uso da disciplina e ordem
da vocação eclesiástica.e Porque o evangelista Lucas declara que, estando os apóstolos jejuando e orando, “disse o Espírito Santo: Separai-me, agora, Barnabé e
Saulo para a obra a que os tenho chamado”.95 Com que propósito fizeram essa
separação e imposição de mãos depois que o Espírito Santo havia testificado a
Sua eleição? Não foi para que fosse observada a disciplina eclesiástica, sendo os
ministros ordenadosf pelos homens? Assim, o Senhor não poderia comprovar esta
ordem mediante exemplo mais notável que este – predizendo que tinha ordenado
o apóstolo Paulo para ser o apóstolo dos gentios, quis todavia que ele fosse
constituídog pela igreja. O que também se pode ver na eleição de Matias,96 porque
o ofício apostólico era tão importante que eles não ousaram seguir seu próprio
critério para ordenara alguém para o seu colégio; por isso apresentaram e puseram a públicob dois nomes, sobre um dos quais cairia a sorte, para que dessa
maneira a eleição pudesse ter evidente testemunho do céu, e, todavia, que não
fosse negligenciada a políticac eclesiástica.
a. Os cânones, mesmo quando bons, são mal utilizados
[1536] Certamente os nossos prelados, exibindo os chifres de sua mitra,d
perverteram totalmente a boa ordeme que deveria imperar, com os seus poderes
de colação, apresentações, representações, patronagens, nomeações e outras formas de dominação tirânica. Mas a maldade dos tempos, dizem eles, exige que se
faça assim, pois o povo pode ser movido pelo favoritismo ou pelo ódio na eleição
dos bispos, pode não ser dirigido pelo reto juízo, e então foi necessário que essa
autoridade fosse transferida para alguns prelados principais. Ainda que concordássemos que essa prática tenha sido introduzida como um remédio para um mal
tão grave, todavia, como se vê que o remédio é mais nocivo que a doença, por que
não estabelecem também uma nova ordem para esse novo mal? Eles respondem
que os cânones proíbem rigorosamente aos bispos que abusem do seu poder em
detrimento da igreja.f (Se bem que, para falar a verdade, os cânones são antes verda95
At 13.2,3
At 1.15-26. [Notar os versículos 23-26.]
d. designavit.
e. disciplina ecclesiasticæ vocationis.
Ainda hoje se traduz o termo disciplina por order (ordem), em inglês; aqui se vê Calvino empregar
discipline e ordre (disciplina e ordem) em sentidos equivalentes ou complementares.
f. designandis.
g. designari.
a. cooptare.
b. in medio.
c. politia.
d. cornuti præsules. A mitra dos bispos é um barrete fendido no alto formando como que dois chifres e um
crescente [ou seja, com a forma de meia lua].
e. ordinationem.
f. Decreto do Concílio de Latrão, III (1179).
96
87
deiras tochas acesas capazes de queimar o mundo inteiro, e não boas normas para
manter a disciplina sob controle. Mas por ora eu deixo de lado este assunto.)
Contudo, que é que eles me citam dos cânones? Pois, da maneira como os
citam cada vez que lhes parece bem, o que fazem não passa de zombaria dirigida
aos seus autores. Nós duvidamos que antigamente o povo cristão não entendesse
corretamente que estava obrigado às leis santíssimas quando via a norma
estabelecida pela Palavra de Deus para a eleição de bispos. Porque um só pronunciamento de Deus deveria, por direito, estar incomparavelmente em maior estima
que cem milhõesa de cânones! Entretanto, afetado por grave moléstia, o povo já
não segue nem a razão nem a lei. Dessa maneira, apesar de existirem hoje boas
leis escritas, elas permanecem ocultas e sepultas nos competentes papéis. Entretanto, o que se recebe e se pratica é o costume de ordenar para pastores das
igrejas barbeiros, cozinheiros, engarrafadores, tropeiros, bastardos e quejandos.
E eu ainda não disse tudo, pois acresce que os bispos ou curasb são pagos por suas
mascaradas e por suas práticas libidinosas; porque, quando são dados a viver
como caçadores e passarinheiros,c a coisa até que vai bem. Não se vê nenhum
propósito de proibir tal abominação por meio dos cânones.
b. O melhor cânon: a Palavra de Deus
Digo de novo que antigamente o povo tinha um excelente cânon, quando a
Palavra de Deus lhe demonstrava que o bispo deve ser “irrepreensível, esposo de
uma só mulher, temperante, sóbrio... apto para ensinar... inimigo de contendas, não
avarento” etc.97 Então, por que a responsabilidade de eleger ministros foi transferida
do povo aos prelados? Eles não têm como responder, mesmo porque no meio do
ruído e das discussões do povo não se ouve a Palavra de Deus. E por que não se veta
hoje a Palavra a essesd bispos? Pois eles não somente fazem violência a todas as
leis, mas também, sem pudor nem vergonha, confundem o céu com a terra com a
sua avareza, a sua ambição e a sua desregrada concupiscência. Pode-se tolerar sequer ouvir contar que os que são chamados pastores das igrejas, que jamais viram
nem uma só ovelha do seu rebanho, entrem pela força e pela violência na posse da
sua igreja como quem invade terras para conquistar nações, que a consigam por
processo judicial, que adquiram tudo dela, sem deixar nada, que a obtenham pela
prestação de serviços vis e que nela entrem crianças como quem se apossa de uma
herança e seu patrimônio? E onde está a coragem audaz do povo, apesar de corrupto e irrefletido, que não põe fim nisso? Os que vêem em que estadoa se encontra a
97
1Tm 3.1-7; Tt 1.5-9
a. infinitæ myriades.
b. Acréscimo feito em 1536 e em 1539.
c. 1536 e 1539: aucupibus, quer dizer: passarinheiros, caçadores de pássaros.
d. 1541 tem, por erro: ses. [Corrigido na edição ora em uso.]
a. facies. Daí a palavra re-forme (sem acento, como a imprimiam os tipógrafos do século XVI).146
146
No texto das notas: “re-former”, entendo que por engano, porque atualmente reformer não tem acento;
réforme sim. NT
88
As Institutas – Edição Especial
igreja hoje e não se entristecem com isso, são cruéis e desumanos.b Os que têm
capacidade de pôr ordem na igreja e não se preocupam com isso, ultrapassam
todas as medidas da desumanidade.
(4) Como deve ser a cerimônia de ordenação?
a. Sopro vazio!
Cuidemos agora do segundo ponto da vocação pastoral, que é: Por meio de
que cerimônia eles devem ser introduzidos em seu ofício? Quando o Senhor enviou os Seus apóstolos para pregarem o Evangelho, soprou sobre eles.98 Com
esse sinalc Ele representou o poder do Espírito Santo, que Ele lhes deu para estar
neles. Estes mestres prudhommescos mantiveram o sopro, e, como se lançassem
de sua boca o Espírito Santo, murmuramd sobre os padrese que ordenam, dizendo:
“Recebei o Espírito Santo”. A tal ponto chegam que não deixam nada que não
imitem perversamente. Não digo que são como os malabaristas e os saltimbancos, f
que fazem com alguma arte os seus gestos e mesuras, mas como macacos que se
agitam e gesticulam imitando tudo sem propósitog e sem discrição. Seguimos o
exemplo do Senhor, dizem eles. Mas o Senhor fez muitas coisas que não quer que
repitamos. Ele disse aos Seus discípulos: “Recebei o Espírito Santo”. Por outro
lado, Ele disse também: “Lázaro! Sai para fora.” Disse ao paralítico: “Levanta-te
e anda”. Por que estes mestres não dizem a mesma coisa a todos os mortos e a
todos os paralíticos? O Senhor mostrou uma obra realizada por Seu poder divino,
quando, ao soprar sobre os Seus apóstolos, encheu-os da graça do Espírito Santo.
Aplicando-se a fazer isso, eles atrevidamente se sobrepõem a Deus e se arriscam
a provoca-lo a pelejar contra eles. Mas eles estão muito longe de produzir qualquer efeito, e, com suas imitações simiescas, o que fazem é zombar de Cristo.
É certo que eles são tão desaforados que ousam dizer que o Espírito Santo é
dado por eles.99 Mas a experiência mostra quanta verdade há nisso, porque por
ela sabemos claramente que todos os que são consagrados padres, de cavalos
tornam-se asnos, e de tolos, loucos. Todavia, não dou combate a isso; só reprovo
esta cerimônia, que não se deve concluir que pode ser tomada de Cristo como um
sinal do milagre operado por Ele. De nada lhes vale a escusa de que são imitadores de Cristo.
98
Jo 20.21-23
No livro 4 das Sent., dist. 24, c. 8a, e no Decret., dist. 21, c. Ib.
b. impii.
c. symbolo.
d. 1536: demurmurant. 1541 tem, por erro: comme ilz, etc... s’ils murmurent. [Corrigido na edição ora
em uso.]
e. sacrificulos.
f. histrionum.
g. lascive.
a. P. Lombardo, IV, XXIV, 1.
b. Decreto de Graciano, I, dist. VVI [sic], cânone 1.
99
89
b. E a unção, de onde lhes vem?
Além disso, de quem eles tomam a unção? Eles respondem que a tomam
dos filhos de Arão, nos quais está a origem da sua ordem! Eles preferem defender-se com exemplos não pertinentes a confessar que o que fazem temerariamente é invenção deles. Por outro lado, eles não consideram que, afirmando que são
os sucessores dos filhos de Arão, fazem injúria ao sacerdócio de Jesus Cristo, o
único que foi representadoc pelos sacerdotes levíticos, cujas ofertas representativas por Ele foram todas cumpridas e concluídas, e com Ele todo o sacerdócio
levítico foi encerrado e cessou, como já dissemos algures;d e a Epístola aos
Hebreus, sem fazer uso de nenhuma glosa, dá testemunho disso.100 Ora, se eles se
deleitam tanto com as cerimônias mosaicas, por que não continuam sacrificando
bois, novilhos e cordeiros? Eles ainda mantêm grande parte do tabernáculo e de
toda a religiãoa judaica, mas isto lhes falta: oferecer em sacrifício bois e novilhos.
Quem é que não vê que esta observância da unção é muito mais perigosa e
muito mais perniciosa que a Circuncisão, principalmente quando vem junto com
uma superstição e opinião farisaica sobre a dignidade da obra? Os judeus punham na Circuncisão a confiança em sua justiça; já estes colocam as graças espirituais na unção. Afirmo isso porque eles dizem que este óleo é sagrado e imprime um caráter que não se pode apagar, que eles chamamb indelével. Como se não
se pudesse tirar o óleo com pó e sal, ou que sua mancha não pudesse ser lavada
esfregando-se bem com sabão! Mas o caráter de que se trata é espiritual. Que
sociedade tem o óleo com a alma? Terão eles esquecido o que eles próprio citaram de Agostinho,101 que, se separarmos a Palavra da água não restarád mais que
água, porque é pela Palavra que ela se torna sacramento? Que Palavra eles mostrarão em sua graxa? Será a ordem dada a Moisés para ungir os filhos de Arão?102
Mas igualmente lhe foi ordenado que fizesse todas as vestes sacerdotais103 e outros paramentose que Arão deveria usar – os trajes diversos com os quais os seus
filhos deveriam engalanar-se.f Foi-lhe ordenado também que matasse um novilho, queimasse a sua gordura,104 imolasse, destrinçasse e queimasse os carneiros,
e que consagrasse as orelhas e as vestes de Arão e de seus filhos com o sangue de
100
Hb l0.2,18
No Decret., I, Quæst. I, c. Detrahec.
102
Êx 30.30
103
Êx 28, 29 e 30
104
No original francês: queimar o sangue. NT
c. adumbratum figuratumque.
d. aliquoties repetitum.
a. cultus.
b. Acréscimo ao latim.
c. In Joh. Tractar. 80, 3 (Migne, 35, 1840), citado no Decreto de Graciano, II, causa I, quæst. I, cân. 54 (Migne,
187, 505).
d. Ler, de preferência: restera (1536: nihil fore nisi aquam).
e. de tunica, de ephod, de galero, de corona sanctitatis.
f. de tunicis, baltheis, mitris.
101
90
As Institutas – Edição Especial
um dos carneiros, e outras inumeráveis cerimônias – e eu fico pasmo de ver que
os meus opositores omitem isso tudo, só retendo a unção. E se gostam tanto de
ser aspergidos, por que preferem o óleo ao sangue? Certamente tramam uma
coisa engenhosa – criar uma religião à parte, composta de cristianismo, judaísmo
e paganismo, como que fazendo uma colcha de retalhos.a105 Portanto, a sua unção
é malcheirosa porque lhe falta sal, isto é, falta-lhe a Palavra de Deus.
c. A imposição das mãos
Resta a imposição das mãosb, que parece ter sido observada pelos apóstolos
sempre que ordenavam alguém para o ministério da igreja. Porque o apóstolo
Paulo chama de imposição das mãos do presbitério a instituição pela qual Timóteo tinha sido constituído bispo.106 Contudo, não ignoro que alguns entendem que
a palavra traduzida por presbitérioc significa assembléia dos anciãos.107 Mas, em
meu juízo, devemos entendê-la simplesmente como significando ministério,d visto que noutro lugar o apóstolo faz menção tão-somente de si próprio, sem mencionar outros, quando diz: “...te admoesto que reavives o dom de Deus que há em ti
pela imposição das minhas mãos”.108
[1536] Pois bem, eu considero que essa maneira de agir procede do costume
dos hebreus. Pela imposição das mãos eles representavam diante de Deus objetos
ou pessoas que eles queriam que fossem santificados e abençoados. Assim Jacó,
desejando abençoar Efraim e Manasses, pôs as mãos sobre eles. Nesse sentido
me parece que os judeus, obedecendo ao que mandava a Lei, punham suas mãos
sobre os sacrifícios.109 E assim os apóstolos pela imposição das mãos queriam
dizer que ofereciam e dedicavam a Deus aquele sobre quem eles punham as
mãos.110 Poderá alguém dizer que com isso eles se mantinham presos às sombras
ou figuras da Lei? É certo que não. Mas, sem qualquere superstição, eles faziam
uso deste símbolo quando julgavam necessário. Porque eles impunham as mãos
105
Literalmente: como costurada com muitas peças. NT
1Tm 4.14.
107
Em nosso contexto: presbíteros regentes. NT
108
2Tm 1.6
109
Gn 48.14; Lv 1.4; 3.2,8,13; 4.4; etc.; Nm 8.10-12; 27.18-23
110
At 6.6. (Ver 6.1-6.)
a. centenculis.
b. Decr. I, dist. XXIII, cânones 7 e 8 (Migned, 187, 133).
c. presbyterium.
d. Em 1536 vem logo a seguir o parágrafo que ocorre mais adiante; e em 1539 esta frase: “Quandoquidem álibi
se, non alios, complures Timotheo manus imposuisse commemorat”, traduzida livremente em 1541.
Mais tarde, em seu Comentário da Epístola a Timóteo (1548, tradução francesa 1550), Calvino continuará dando a mesma explicação: “Os que acham que a palavra grega deve ser entendida no sentido de assembléia dos presbíteros, quer dizer, dos pastores e dos anciãos da igreja, têm boa opinião, ao que me parece;
todavia, quando eu pondero bem tudo, reconheço que não viria mal entendê-la como nome de ofício”, etc. E no
Comentário da Segunda Epístola a Timóteo: “Não se deve duvidar de que Timóteo tinha sido solicitado pelo
voto comum da igreja, e não que tenha sido escolhido só pelo querer do apóstolo Paulo... Ele aqui fala antes de
ordenação, isto é, da cerimônia solene de apresentação do personagem ao ministério”, etc.
e. nulla.
106
91
àqueles em favor dos quais eles pediam a Deus o Espírito Santo, ato que eles
administravam mediante este símbolo, para indicar e dar a conhecer que o dom
não vinha deles, mas do alto.111
Em resumo, por meio deste símbolo ou sinal os apóstolos encomendavam a
Deus aquele a quem eles pediam que a graça do Espírito Santo fosse concedida.
E naquele tempo era da vontade de Deus que essa graça fosse distribuída por
intermédio do ministério deles.112
d. O que caracteriza um sacramento?
Mas, tendo sido assim, segue-se de imediato que isso deve ser considerado
sacramento? Os apóstolos oraram ajoelhados na praia;113 não se pode dobrar os
joelhos sem que haja nisso um sacramento? Consta que os apóstolos voltavam-se
para o Oriente para orar. Então, olhar para o Oriente será sacramento? Paulo
exorta os homens a levantarem mãos santas para Deus; muitas vezes se faz menção de que os santos faziam suas orações com as mãos erguidas.114 Que esse
gesto seja então sacramento para nós! Em suma, que todas as práticas observadas
pelos santos sejam convertidas em sacramentos.115
e. Como deve ser a cerimônia de ordenação atualmente?
Deixando de lado toda discussão, vamos expor brevemente como se deve
usar esta cerimônia no presente. Se não a usarmos com o fim de conferir as graças
do Espírito Santo como faziam os apóstolos, será uma zombaria. E esse encargoa
não nos foi confiado por Deus, e este sinalb não nos foi ordenado. Ora, é isto que
o papa e os seus se empenham em fazer constantemente: Querem fazer crer que
por meio de tais sinais eles conferem as graças do Espírito Santo, como já consideramos mais amplamente quando tratamos da confirmação.c
Mas, se quem é aceito como bispo, sendo colocado no meio da assembléia
dos crentes, recebe instrução sobre o seu ofício, ora-se por ele, as mãos dos anciãosa
111
Comentando 2Tm 1.6, diz: “Não fica muito claro se na ordenação de um homem como ministro houvesse o
costume de todos imporem suas mãos sobre a cabeça do ordenando, ou se apenas um homem impunha suas
mãos. Quanto à cerimônia propriamente dita, os apóstolos tomaram por empréstimo o antigo costume de seu
povo, ou, melhor, retiveram-na, visto que a mesma estava ainda em vigor.” b [João Calvino, As Pastorais,
(1Tm 1.6), p. 202]. NE
112
At 8.14-17; 9.10-12,l7; 10.44-48
113
At 21.5
114
1Tm 2.8; Sl 63.4; 88.9; 141.2; 143.6
115
“Tem sido uma prática comum, em todos os tempos, pessoas erguerem suas mãos em oração. A natureza tem
criado esse gesto, até mesmo nos idólatras pagãos, para mostrar por meio de um sinal visível que suas
mentes eram dirigidas somente para Deus. A maioria, é verdade, se satisfaz com a mera cerimônia, esforçando-se por não serem afetados com suas próprias invenções; mas o próprio ato de erguer as mãos, quando não
há hipocrisia e fraude, é um auxílio para a oração devota e zelosa.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,
Vol. 1, (Sl 28.2), p. 601]. NE
a. ministerium.
b. symbolum.
c. No começo do capítulo.
a. seniorum
92
As Institutas – Edição Especial
ou presbíteros são postas sobre a sua cabeça (não com outro sentido, senão com a
finalidade de que ele entenda que é oferecido e dedicado a Deus para servi-lo
nesse novo estadob, e a igreja é incitada a encomendá-lo a Deus mediante orações
comunitárias – então, nestes termos, a imposição das mãos não será reprovada
por ninguém que tenha bom siso.
3.4.7 – Os diáconos
(1) Origem e função
[1539] Embora o vocábulo diáconoc tenha ampla significação, não obstante
a Escritura denomina particularmente diáconos aqueles que a igreja ordenad para
distribuírem esmolas116 como procuradores e despenseiros ou distribuidores do
bem público ou comunitário em favor dos pobres.117 Sobre a sua origem, a sua
instituição e o sentido do ofício há o registro feito pelo evangelista Lucas em
Atos.118 [1536] Aconteceu que os apóstolos, ouvindo o clamor dos gregos, que
estavam descontentes pelo fato de que as suas viúvas estavam sendo esquecidas
ou desprezadas na distribuição beneficente diária, desculpando-se de que não
tinham condições de desempenhar-se dos dois serviços (isto é, da pregação da
Palavra e do serviço aos pobres), solicitaram à comunidade que elegesse dentre
os crentes sete homens de boa reputação, e eles os encarregariam dessa responsabilidade. Nisto consiste o ofício dos diáconos: Devem demonstrar solicitude pelos pobres e atender às suas necessidades. O nome diácono deriva de um termo
cujo sentido praticamentee equivale ao de ministro.119
b. ministerium.
c. 1539: diaxoni,aj. (diakoni/a) Em Estrasburgo, Calvino, ao fundar em 1538 a primeira igreja francesa,
vendo o que já tinham instituído Bucer e seus colegas, indicou com precisão as suas idéias sobre a organização da igreja, com quatro ministérios (pastores, anciãos, diáconos e doutores ou mestres). Cf. mais adiante,
p. 149, e nota a. [Na primeira página do capítulo XV deste volume IV.]
d. Cf. P. Lombardo, Sentent., IV, dist. XXIV, 8.
e. quasi.
116
O termo “esmola” passou a ter um sentido predominantemente negativo entre nós. Como o contexto acima
indica, a referência é à obra de beneficência, ao atendimento caridoso aos necessitados. A própria etimologia
indica um sentido muito positivo: do grego elehmosunh, misericórdia, piedade, compaixão, pelo latim
eleemosyna, esmola. NT
117
Os diáconos são homens “constituídos pela igreja para distribuir as esmolas e cuidar dos pobres, como
procuradores seus”. [J. Calvino, Institución, IV.3.9] Analisando Atos 6, Calvino diz na primeira edição da
Instituição (1536): “Vede aqui o ministério dos diáconos: cuidar dos pobres e ajudar-lhes. Daqui lhes vem o
nome; e por isso são tidos como ministros.” [João Calvino, Institución de la Religion Cristiana, (1536),
V.5. Ver também, As Institutas, IV.3.9.] NE
118
At 6.1-6
119
O termo “diácono” e suas variantes, provém do grego dia/konoj, diakoni/a e diakone/w, palavras que significam respectivamente, “servo”, “serviço” e “servir”. Essas palavras apresentam três sentidos especiais,
com uma pesada conotação depreciativa: a) Servir à mesa; b) Cuidar da subsistência; c) Servir: No sentido
de “servir ao amo”.
Para os gregos, servir era algo indigno. Os Sofistas chegavam a afirmar que o homem reto só deve servir
aos seus próprios desejos, com coragem e prudência. Platão (427-347 a.C.) e Demóstenes (384-322 a.C.), um
pouco mais moderados, admitiam que o serviço (diakoni/a) só tinha algum valor quando prestado ao Estado.
No Judaísmo, encontramos a compreensão mais profunda a respeito daquele que serve. O pensamento
oriental não considerava indigno o serviço. A grandeza do senhor determinava a grandiosidade do serviço.
Quanto maior o senhor a quem se serve, mais o serviço é valorizado.
93
(2) A cerimônia de ordenação dos diáconos
Lucas subseqüentemente registra a instituição: “Apresentaram-nos perante
os apóstolos”, diz ele, “e estes, orando, lhes impuseram as mãos”. Quisera que a
igreja tivesse hoje tais diáconos, e que eles fossem constituídos com tal cerimônia! A saber, pela imposição das mãos, que já dissemos que nos parece suficiente.
(3) Qualidades requeridas que os romanistas omitem ou deturpam
O apóstolo Paulo também faz referência aos diáconos. Ele exige que eles
sejam “respeitáveis, de uma só palavra, não inclinados a muito vinho, não cobiçosos de sórdida ganância, conservando o mistério da fé com a consciência limpa... experimentados e... irrepreensíveis...”; e mais: “O diácono seja marido de
uma só mulher e governe bem seus filhos e a própria casa”.120 Mas os diáconos
que essa gente forja, com que se parecem? Não falo das pessoas, para que não se
queixem de que lhes faço injustiça por avaliar a doutrina pelo vício dos homens.
Mas eu sustento que os meus opositores agem irracionalmente quando citam em
apoio dos seus diáconos (como eles mesmos os retratam com a sua doutrina) o
testemunho daqueles que foram ordenados pela igreja apostólica. Para eles estas
são ass funções dos diáconos: Assistir aos sacerdotes ou presbíteros e servir em
tudo o que se requer para a ministração dos sacramentos, como no Batismo e no
crisma, verter o vinho no cálice, colocar o pão na pátena; pôr em ordem o altar,
levar a cruz, ler o Evangelho e a epístola ao povo. E há em tudo isso uma só
palavra que seja do verdadeiro ofício diaconal?
(4) A cerimônia de ordenação ditada pelos mestres romanistas
Vejamos agora como eles realizam a ordenação dos diáconos.a Somente o
bispo põe a mão sobre o diácono que está sendo por ele ordenado; coloca a estola
sobre o seu ombro esquerdo, para que entenda que está recebendo o suave jugo
de Deus, para sujeitar ao temor de Deus tudo o que pertence ao lado esquerdo.
Dá-lhe um texto do Evangelho, para que entenda que é pregador. Que é que todas
essas coisas têm que ver com os diáconos? Porque eles agem como alguém que,
pretendendo ordenar apóstolos, os incumbisse de queimar incenso, arrumar as imagens, acender as velas, varrer os templos, matar ratosb e pôr para fora os cães. Quem
agüenta que tais tipos de pessoas sejam chamados apóstolos e sejam comparados
Posteriormente, a idéia de serviço foi perdendo a conotação de entrega de si em favor de outrem,
assumindo a idéia de uma obra meritória perante Deus. Mais tarde, deteriora-se ainda mais, passando a ser
considerado indigno o serviço, especialmente no que se refere ao servir à mesa.
No Novo Testamento, os substantivos “Diaconia” e “Diáconos” e o verbo “Diaconar” (servir) são
traduzidos por serviço, ministério, socorro, assistência, diácono (neste caso, apenas transliterado), etc.
Jesus Cristo deu uma grande lição aos seus ouvintes, ao verbalizar a sua missão: “... O Filho do
homem, que não veio para ser servido (diakone/w), mas para servir (diakone/w)....” (Mt 20.28). NE
120
1Tm 3.8-13
a. Decreto de Graciano I, dist. XXIII, cân. 11.
b. captandis muribus.
94
As Institutas – Edição Especial
com os apóstolos de Cristo? Que doravante tratem de não retratá-los mais como
diáconos, os quais eles ordenam nada mais que para as suas farsas e comédias.a
Também lhes dão o título de levitas, deduzindo sua origem dos filhos de
Levi. Isso eu lhes concederei, se confessarem também que, renunciando a Jesus
Cristo, eles retornam às cerimônias levíticas e às sombras da lei mosaica.
3.4.8 – Conclusão sobre o falsamente chamado sacramento da ordem
Concluímos agora, em geral, que juízo se deve fazer do sacramento da
ordemb. Para não repetirmos detalhadamente o que já expusemos, o seguinte resumo poderá satisfazer os leitores despretensiosos e dóceis, aos quais este livro é
dirigido:c Só existe sacramento onde se vê promessa junto com a cerimônia, ou
melhor, onde a promessa brilha na cerimônia. Aqui não se vê uma só sílaba de
promessa especial. Vão será, pois, buscar cerimônia para confirmar a promessa.
Além disso, não se vê aqui nenhuma cerimônia que tenha sido ordenada por Deus.
Por conseguinte, não há aqui nenhum sacramento.
***
3.5 – O Casamento
d
3.5.1 – Discussão preliminar
(1) Não é sacramento
O último sacramento, na conta deles, é o casamento. Embora todos eles declarem que foi instituído por Deus,121 sabe-se que antes do tempo do papa Gregório122
ninguém teve a idéia de considerá-lo sacramento. E que homem de bom senso teria
121
Gn 2.18-25; Mt 19.3-12
Gregório VII, anteriormente chamado Hildebrando. Exerceu o papado de 1073 a 1085. Instituiu o celibato
clerical obrigatório. A seguinte sentença de Gregório dá indicações sobre os motivos político-econômicoadministrativos do celibato obrigatório do clero: “Non liberari potest ecclesia a servitute laicorum, nisi
liberentur clerici ab uxoribus” (Epist. Lib. iii, p. 7, apud Charles Hodge in Teologia Sistemática, tradução
de Valter Martins, Editora Hagnos, São Paulo, 2001, p. 1300. Minha tradução: “Não se pode libertar a igreja
da servidão dos leigos, se os clérigos não forem libertados das esposas”. NT
a. 1536 tem somente: histriônicos.
b. P. Lombardo, Sentent., IV, dist. XXIV, 10.
c. quales instituendos (cf. Institutio) suscepi.
d. Cf. P. Lombardo, Sentent., IV, dist. XXVI (Migne, 192, 908); Tomás de Aquino, Somme [Summa], III, suppl. 9, 41.
Um dos últimos capítulos da Declaração Sumária de Farel (XXXVIII) é dedicado ao casamento,
“santo e digno estado”.
A mãe de Calvino, Jeanne Lefranc, morreu quando João ainda era pequeno; Gérard Cauvin casou-se
de novo e morreu em 1531. João Calvino permaneceu celibatário até aos 31 anos de idade.
O 41°. sermão sobre a Epístola aos Efésios desenvolve as idéias do pregador sobre “o laço mais sagrado
que Deus colocou entre nós... O Senhor Jesus preside a marido e mulher... a fim de que ambos, de comum
acordo, O sirvam”. Numa carta escrita antes do seu casamento (Opera, Xª, p. 228), Calvino escreveu: “Se eu
tomar mulher, será para que, mais livre de muitas dificuldades frívolas, eu possa me consagrar ao Senhor”.
Calvino casou-se, seguindo o conselho de Bucer, em Estrasburgo, em agosto de 1540, com a viúva de um
anabatista que se havia convertido, Idelette de Bure. Ela viria a falecer em 29 de março de 1549.
Idelette era “proba et honesta, adde etiam formosa”, escreve Farel, que abençoou as núpcias. Portanto,
foi depois da publicação da Institutio de 1539 e na época em que Calvino fazia a tradução francesa.
122
95
pensado nisso? Sem dúvida nenhuma o casamento é uma excelente e santa ordenança de Deus. Também são boas e santas ordenanças de Deus os ofícios de lavrador, pedreiro, sapateiro e barbeiro, que nem por isso são sacramentos. Porque não
se requer somente que o sacramento seja obra de Deus, mas também é necessário
que seja uma cerimônia exterior ordenada por Deus e que confirme uma promessa.
Até as criançasa podem julgar e ver que não existe nada disso no casamento.
(2) Alega-se falsamente a analogia da união de Cristo com a igreja
Mas eles dizem que é um sinal de algo sagrado, quer dizer, da união espiritual
de Cristo com a igreja.123 Se pela palavra sinal eles entendem marca ou emblema
que Deus nos propõe para dar suporte à nossa fé, estão muito longe da meta. Se,
porém, a entendem simplesmente no sentido de símbolo ou de um símile, mostrarei
como o argumento deles é cheio de sutilezas. O apóstolo Paulo diz: “Entre estrela e
estrela há diferenças de esplendor. Pois assim é também a ressurreição dos mortos”.124 Aí está um sacramento! Cristo disse: “O reino dos céus e semelhante a um
grão de mostarda!” Eis aí outro! E mais: “O reino dos céus é semelhante ao fermento”.125 Eis aí um terceiro sacramento! Isaías disse: “Como pastor, apascentará o seu
rebanho”.126 Aí está o quarto sacramento! Noutra passagem ele diz: “O Senhor
sairá como valente”.127 Eis aí o quinto! E até onde iria? Segundo o descriterioso
argumento deles, não haveria nada que não fosse sacramento. Haveria tantos sacramentos quantos símiles e parábolas há na Escritura. Até o roubo seria sacramento,
pois está escrito: “O Dia do Senhor vem como ladrão”.128
Quem poderá agüentar estes sofistas que ficam a tagarelar tão tolamente?
Reconheço que toda vez que vemos alguma vinha, é bom trazer à memória o que
diz o Senhor: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. ... Eu sou a
videira, vós os ramos”.129 Quando se nos apresenta um pastor, fazemos bem em
lembrar as palavras de Cristo, quando Ele diz: “Eu sou o bom pastor... As minhas
ovelhas ouvem a minha voz”.130 Mas se alguém quiser transformar essas figuras
e outras semelhantes em sacramentos, será necessário enviá-lo ao médico.a
123
Ef 5.22-33
1Co 15.41,42
125
Mt 13.31,33
126
Is 40.11
127
Is 42.13.
128
1Ts 5.2. [Ver também Mt 24.43 e 2Pe 3.10.]
129
Jo 15.1,5
130
Jo 10.11,27
a. 1536: pueri; 1539: pueri quoque.
a. 1536: ad Anticyram; 1539: in Anticyram. A ilha de Anticyra147 , no Mar Egeu, produzia muito heléboro,
planta que, como se acreditava, curava os loucos.
Encontramos o reflexo desta concepção na obra mais editada de Erasmo de Roterdã (1466-1536),
Elogio da Loucura (1509), na qual ele narra uma história engraçada de um grego que foi curado da loucura
através de heléboro. [Ver: Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura, São Paulo, Abril Cultural, (Col. Os
Pensadores, Vol. X), 1972, p. 67-68]. NE
147
O Grande Atlas Universal Ilustrado, editado por Reader’s Digest, Rio, 1999, registra: Antikyra. NT
124
96
As Institutas – Edição Especial
(3) Busca de apoio em Paulo: confusão ou má fé?
Todavia, eles citam as palavras do apóstolo Paulo nas quais eles dizem que
o nome sacramento é dado ao matrimônio. Ditas palavras são: “Quem ama a
esposa a si mesmo se ama. Porque ninguém jamais odiou a própria carne; antes,
a alimenta e dela cuida, como também Cristo o faz com a igreja; porque somos
membros do seu corpo. Eis por que deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se
unirá à sua mulher, e se tornarão os dois uma só carne. Grande é este mistério,
mas eu me refiro a Cristo e à igreja”.131 Mas, tratar dessa maneira as Escrituras é
confundir o céu com a terra. Paulo, para mostrar o amor singular que os maridos
devem ter por suas respectivas esposas, propõe-lhes Cristo como exemplo. Porque, assim como ele derramou todos os tesouros do Seu terno amor para com a
igreja, à qual Ele se havia unido, assim também é necessário que cada um mantenha igual amor por sua mulher. E logo a seguir diz: Quem ama a esposa a si
mesmo se ama, como Cristo amou a igreja. Pois bem, para esclarecer como Cristo amou a igreja como a Si mesmo, ou melhor, como Ele se fez um com a igreja,
Sua esposa, o apóstolo aplica a Cristo o que Moisés declara que foi dito por
Adão. Porque, quando o Senhor trouxe Eva a Adão, sabendo este que ela havia
sido formada da sua costela, disse: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da
minha carne”.132 E o apóstolo Paulo declara que tudo isso cumpriu-se em Cristo
e em nós, quando nos chama “membros do seu corpo, da sua carne e dos seus
ossos”,133 ou antes, uma só carne com Ele.
Por fim, ele conclui com uma exclamação, dizendo: “Grande é este mistério!” E para que ninguém tirasse mau proveito da ambigüidade, diz expressamente que não se refere à conjunção carnal de homem e mulher, mas sim ao casamento espiritual de Cristo e Sua igreja. E realmente é um grande segredo e um grande
mistério que Lhe tenha sido tirada uma costela para que dela fôssemos formados.
O que eu quero dizer é que, sendo Ele forte, dispôs-se a ser fraco, para com Seu
poder nos fortalecer para que não só vivamos, mas que Ele viva em nós.
(4) Mau emprego do termo sacramento
[1541] Eles se enganaram com a palavra sacramento, que ocorre na versão
corrente ou vulgar.134 [1536] Mas, é justo que toda a igreja sofra as conseqüências
131
Ef 5.25-32
Gn 2.23
133
Ef 5.30, tradução direta. Assim, e.g., a Versão Autorizada (inglesa) e a Versão de Figueiredo. NT
134
Entendo que se refere à Vulgata, do latim vulgatus, “divulgado”, “que serve para o público”. Figueiredo
mantém o termo “sacramento” em Ef 3.3,9; 5.32; 1Tm 3.16. NT
No segundo século da Era Cristã, foi feita uma tradução latina da Bíblia [Versão do Latim Antigo (“Vetus
Latina”, ou “Ítala”)], tomando como Texto base para o Antigo Testamento, a Septuaginta. No final do IV
século, como esta tradução latina já precisava de uma ampla revisão, o papa Damasius I (c. 304-384) papa
desde 366 – incumbiu a Sophronius Eusebius Hieronymus, conhecido como Jerônimo (c. 347-419) –
admirador profundo de Cícero – de fazê-la (383). Jerônimo era um homem de profunda piedade e erudição,
conhecendo bem o latim, o grego e o hebraico. O seu trabalho excedeu as expectativas de Damasius; já que
132
97
do erro deles? O apóstolo Paulo fez uso do termo mistério, que significa “segredo”ª. Essa palavra o tradutor tanto poderia traduzir explicativamente por “segredo” como deixá-la como está, mantendo o termo “mistério” como já é costume
geral entre os latinos;b mas ele preferiu empregar o termo sacramentoc, não lhe
dando, porém, outro sentido senão o que Paulo quis expressar com seu uso do
grego “mistério”. Gritem eles agora contra o conhecimento de línguas,d por cuja
ignorância eles se perdema numa coisa tão fácil e manifesta! Mas, por que fazem
tanta questão de se apegar aqui ao termo sacramento, e, quando lhes dá na telha,
passam de largo sem dar a mínima atenção? Porque o tradutorb empregou o mesmo termo [sacramento] na Primeira Epístola a Timóteo,135 e nesta mesma Epístola aos Efésios muitas vezes,136 sempre com o sentido de mistério.
Ainda que se lhes perdoe esta falta,c deveriam lembrá-la bem, em sua mentira, para não entrarem em contradição. Mas agora, depois de haverem adornado
o matrimônio com o título de sacramento, chamá-lo imundícia, poluição e sujeira
carnal!d Que inconstância e leviandade é essa? Que absurdo – proibir aos sacerdotes o matrimônio! Se negame que lhes proíbem o sacramento, afirmando que
lhes proíbem a volúpia do ato carnal, com isso não escapam.f137 Porque eles ensiele fez mais do que uma simples revisão. Partindo dos originais Hebraicos e Gregos – ainda que dando
atenção à Vetus Latina –, Jerônimo traduziu o Antigo e o Novo Testamento, concluindo a sua obra em 405,
depois de 23 anos de trabalho. No final da Idade Média ou no Concílio de Trento (1546), a tradução de
Jerônimo ficou conhecida como ‘Vulgata’, isto é “a comum”.
No Concílio de Trento (1545-1563), a Vulgata foi elevada à condição de igualdade com os Originais
Hebraicos e Gregos. Na 4ª Sessão de 08/4/1546, no “Decreto Concernente às Escrituras Canônicas”, lemos:
“Se alguém não receber como sagrados e canônicos os livros do Antigo e do Novo Testamento, inteiros e em
todas as suas partes, como se contêm na velha edição Vulgata, e conscientemente os condenar, seja
anátema.” [In: Philip Schaff, The Creeds of Christendom, 6ª ed. (Revised and Enlarged), Grand Rapids.
Michigan, Baker Book House, (1931), Vol. II, p. 82].
No “Decreto Concernente à edição, e o uso, dos Sagrados Livros”, o Concílio:
“... ordena e declara, que a mencionada velha edição Vulgata, que pelo extenso uso de tantos séculos tem
sido aprovada na Igreja, seja usada nas leituras públicas, discussões, sermões e exposições. Ela deve ser
tida como autêntica e ninguém ouse rejeitá-la sob nenhum pretexto que seja.” [In: Philip Schaff, The
Creeds of Christendom, Vol. II, p. 82. Ver: Francis Turretin, Institutes of Elenctic Theology, Phillipsburg,
New Jersey, P & P Publishing, 1992, Vol. I, I.15.1. p. 131]. NE
135
1Tm 3.9.
136
Ef 1.9; 3.3,9; 6.19.
137
No livro quarto das Sent., dist. 27, c. 4; e no Decret., 27g.
a. A Vulgata traduz por sacramentum a palavra musth,rion do apóstolo Paulo (Ef 5.32), que alhures (Ef 1.9
[etc.]) tem o sentido de mistério.
b. 1536 e 1539: Impossuit illis sacramenti nomen.
c. Quam dictionem cum relinquere posset interpres, latinis auribus non infrequentem, vel arcanum vertere,
sacramentum ponere maluit.
d. Na introdução da sua tradução da Bíblia, Robert Olivetan, nesse mesmo ano de 1536, louva a fundação
recente (1530) do Colégio Real, onde eram ensinadas as línguas hebraica, grega e latina.
a. tam fœdissime hallucinati.
b. vulgari interprete.
c. lapsus.
d. 1536 e 1539: a coitus libidine; 1559: a coitus tantum libidine.
e. (ainsi [assim]): non ita elabuntur, 1541 tem, por erro, s’ilz. 1560 restabelece o correto: si (IV, XX, 36).
f. P. Lombardo, IV, dist. XXVI, 6.
g. Decreto de Graciano, II, causa XXVII, quæst. II, cânones 17 e 18.
98
As Institutas – Edição Especial
nam que a conjunção carnal é sacramento e que por esse ato é representada a
união que temos com Cristo em conformidade de natureza, sendo que o homem e
a mulher não se fazem uma só carne senão na conjunção carnal.138
(5) Dois sacramentos num só?
Mas não é que alguns deles encontraram aqui dois sacramentos? – um de
Deus e a alma, no noivo e na noiva; o outro de Cristo e a igreja, no marido e sua
mulher.139 Digam o que disserem, em seu conceito o casamento é sacramento, e
não se pode excluir dele nenhum cristão. A não ser que queiram dizer que os
sacramentos dos cristãos combinam tão mal que não podem subsistir juntos.
(6) Mais um inconveniente dessa doutrina herética
Ainda há outro inconveniente em sua doutrina. Porque eles afirmam que no
sacramento é dada a graça do Espírito Santo, e eles confessam que a conjunção
carnal é sacramento. E, todavia, negam que o Espírito Santo esteja presente nela.140
3.5.2 – Refutação de leis eclesiásticas
(1) Leis de interesse interno da igreja
E para não enganar a igreja com uma coisa só, que multidão de erros, mentiras, ilusões e maldades acrescentaram ao erro que aqui estamos combatendo! A tal
ponto vão que se poderia dizer que, ao fazerem do matrimônio um sacramento,
outra coisa não fizeram senão buscar um esconderijo para todas as abominações.
Porque, uma vez tendo vencido neste ponto, eles reservam para alguns do seu meio
o conhecimento das causas matrimoniais, visto ser coisa sagrada, na qual os juízes
leigos não devem tocar. Ademais, eles estabeleceram leis para confirmar e fortalecer a sua tirania. Mas essas leis são em parte ímpias e vão contra Deus, e em parte
são injustas e vão contra os homens. Vejam-se os seguintes exemplos:
Que os casamentos realizados entre pessoas jovens, que ainda se acham sob
a autoridade dos seus pais, permaneçam firmes e irrevogáveisa, mesmo sem o
consentimento dos seus pais.
Que não é lícito aos primos e primas contrair matrimônio, proibição que se
estende até ao sétimo grau – eles dizem quarto, mas segundo o correto entendi138
Quæst. 2, c. Cum societas. A glosa, c. Lex divina h.
Na supradita passagem do Decret.
140
No livro 4 das Sent., dist. 33, c. 2; e no Decret., 32, c. 2. Quidquid.
h. Decreto de Graciano, causa XXXII, quæst. II, cânones 3 e 4 (Migne, 187, 1397).
a. Decreto de Graciano, II, causa XXVII, q. II, cân. 2 (Migne 187, 1392).
Pedro Lombardo, Sent., IV, dist. XXXVI, 4. Acrescente-se: “Essa validade dos casamentos contratados sem o consentimento dos pais, por reconhecida que fosse pelo direito canônico, chocou alguns espíritos
na época da renascença. Assim Erasmo, em seu diálogo Virgo misogamos diz que foi uma invenção dos
monges, contrária à doutrina evangélica e apostólica. Cf. J. PLATTARD, A invectiva de Gargantua contra
os casamentos contratados “sem o conhecimento e a anuência” dos pais (Revue du XVIe siècle [Revista do
Século XVI], 1927, pp. 381-388).
139
99
mento do direito, é o sétimo; e que os casamentos realizados dentro desses limites sejam anulados e desfeitos.
(2) Leis que invadem o âmbito do Estado
Além disso, eles estabelecem os graus e limites a seu talante, contra as leis
de todas as naçõesb e até contra as determinaçõesc de Moisés.d141 Como nos seguintes casos:
Que não é lícito ao homem que repudiou a sua mulher por adultério casar-se
com outra.e
Que os pais espirituais142 não podem contrair núpcias entre si.a
Que não se celebrem núpcias depois da septuagésima até à oitava da Páscoa,b
e tampouco dentro de três semanas antes do dia em que se celebra o nascimento
de João Batista, [1541] em lugar das quais eles agora tomam a de Pentecostes e as
duas precedentes. [1536] A mesma proibição é válida para o período que se estende desde o Advento até o Dia de Reis.
E uma infinidade de outras leis semelhantes, que seria longo enumerar.
3.5.3 – Exortação final
Em suma, devemos sair desse lamaçal, no qual ficamos presos mais tempo
do que eu gostaria. Contudo, julgo que prestei algum serviço útil ao desmascarar
em parte as tolicesc desses asnos.
141
Lv 18.
Padrinhos e madrinhas. NT
b. jura gentium.
c. politiam.
d. P. Lombardo, Sent., IV, dist. XL. Decreto de Graciano, II, causa XXXV (Migne 187, 1661).
e. P. Lombard, Sent., IV, dist. XXXI, 2, 3.
a. Ibid., XLII. Decreto de Graciano, II, causa XXX, quæst. III.
b. P. Lombardo, Sent., IV, dist. XXXII, 5.
c. leonis pellem.
142
CAPÍTULO XIV
SOBRE A LIBERDADE CRISTÃa
1. Introdução
[1536] Devemos tratar agora da liberdade cristã, assunto do qual não deve esquecer-se quem se proponha a abranger num breve compêndio uma súmula de toda a
doutrina evangélica.b Esse estudo é muito necessário, e, sem o conhecimento
a. O texto de 1536 é reproduzido aqui sem nenhuma modificação e com um só acréscimo (uma citação)
em 1539.
Em 1536, um só capítulo (VI) agrupava estes três assuntos: De libertate christiana, de potestate
ecclesiastica42, et política administratione Em 1539, após a chegada de Calvino a Estrasburgo, onde a
igreja e o estado são organizados de um modo diferente, que ele não tinha visto em nenhum outro lugar, há
três capítulos distintos, XIII, XIV e XV. Os capítulos XIV, XV e XVI parecem, em 1541, traduzidos de uma
edição de 1536, antes que da de 1539.
Já em 1520, Lutero tinha escrito (em latim e em alemão) um pequeno tratado Sobre a Liberdade
Cristã, e enviara um exemplar ao papa Leão X. Dizia notavelmente: “O cristão é um homem livre, senhor de
todas as coisas e não sujeito a ninguém. O cristão é um servo plenamente obediente, e se sujeita a todos”.
[M. Lutero, Da Liberdade Cristã, 3ª ed. São Leopoldo, RS., Sinodal, 1979, p. 9. (Esta obra também foi
publicada In: Marinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo/Porto Alegre, RS., Sinodal/Concórdia,
1989, Vol. 2, p. 437]. Lutero fala primeiro sobre o homem “interior” e depois sobre o “exterior”. Uma
tradução em francês moderno foi publicada em 1879 em Paris pelo pastor F. Kuhn.
Em 1521 Lutero tinha publicado (em Zurique): Ein nützliche fruchtbare Underwysung was da sy der
Glaub und ein war christlich Leben, com o título corrente: Von der Freyheit eines Christenmenschen.43
Em 1539, Calvino dedica um capítulo a cada um dos dois assuntos: a liberdade e, depois, a vida cristã.
b. Já em 1503, Erasmo, em sua obra Enchiridion militis christiani,44 tinha explicado quais são, segundo ele, as
características da vida cristã normal, e Louis de Berquin tinha traduzido essa obra (Enchiridion du Chevalier
chrestien); em 1526, a Sorbonne condenou, entre os livros encontrados na casa de Berquin, a primeira edição
latina da obra Betbüchlein, de Lutero, contendo o Tractatus de libertate christiana, e, a propósito da oração,
nós já assinalamos que Berquin tinha traduzido também o Livro sobre a Oração Perfeita (capítulo IX).
42
Sobre a Liberdade Cristã, o Poder Eclesiástico e a Administração Política. No original das notas falta um “s”
em “ecclesiastica”. NT
43
Sobre a Liberdade do Cristão. NT
44
Manual do Soldado Cristão. NT
102
As Institutas – Edição Especial
dele, dificilmente as consciências ousarão empreender alguma coisa, senão em
dúvida, muitas vezes hesitando e parando; sempre temerosos e vacilantes.
Embora tenhamos vez por outra tenhamos tocado de leve neste tema, todavia o adiamos e reservamos sua discussão completa até o presente espaço. Tivemos este cuidado porque, se for feita alguma menção da liberdade cristã antes da
hora, de imediato uns dão brida solta às suas concupiscências e outros promovem
grandes tumultos, se ao mesmo tempo não se puser ordem para conter os espíritos
levianos, que corrompem as coisas mais excelentes que a eles se apresentem.
Porquanto uns, a título de seguirem esta liberdade, rejeitam toda obediência a
Deus e dão livre curso à sua carne.c Já outros se opõem e não querem ouvir falar
desta liberdade, pois acham que ela só se presta para derrubar toda ordem, toda
modéstia e toda discrição.
Que fazer aqui, em tal aperto?a Não seria melhor deixar de lado a discussão
sobre a liberdade cristã para evitar tais perigos? Mas, como foi dito, sem este
conhecimento, nem Jesus Cristo nem a verdade do Evangelho poderão ser bem
conhecidos. Muito ao contrário, devemos pôr toda a diligência no sentido de que
esta doutrina tão necessária não fique omissa e sepultada e que, ao mesmo tempo,
se ponha freio às objeções absurdas movidas contra ela.
2. Três partes componentes da liberdade cristã
Segundo o meu juízo, a liberdade cristã compõe-se de três partes.
1ª. parte: A primeira é que, em geral, a consciência dos crentes, quando a
questão é buscar a certeza da sua justificação, se exalta e se eleva acima da Lei, e
olvida toda a justiça que é própria da Lei. Porque, como acima foi demonstrado,b
visto que a Lei não nos deixa nenhum justo, ficamos neste impasse: ou só nos
resta perder toda a esperança de sermos justificados, ou é preciso que sejamos
libertados dela. E que fiquemos de tal modo livres dela que não precisemos nem
pensar em nossas obras. Porque, aquele que pensar que deve contribuir um pouco
que seja com suas obras para obter justiça, não conseguirá determinar nem o fim
nem a medida delas, mas se fará devedor de toda a Lei.1 Por isso, quando se trata
da nossa justificação, devemos desfazer-nos de toda e qualquer consideração da
Lei e das nossas obras, para abraçarmos unicamente a misericórdia de Deus, e
devemos afastar de nós mesmos o olhar para fixá-lo somente em Jesus Cristo.
Porque neste ponto não se trata de saber se somos justos, mas, sim, de saber como
é que, sendo injustos e indignos, podemos ser considerados justos. Se a nossa
consciência quer ter alguma certeza disso, não deve dar nenhum lugar à Lei.
1
“Devemos buscar a justiça mediante a fé em Cristo, porque não podemos ser justificados pelas obras.”[João
Calvino, Gálatas, São Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 2.15), p. 68]. NE
c. Todos os anabatistas, os “libertinos espirituais”, etc.
a. angustiis.
b. Capítulo VI.
103
Note-se, porém, que isso não deve levar a inferir que a Lei é supérflua para
os crentes, porquanto ela não deixa de ensiná-los, exortá-los e estimulá-los à
prática do bem, conquanto seja um fato de que no juízo de Deus ela não tem lugar
em nossa consciência. Sendo, pois, que estas duas coisas são bem diferentes,
assim também nos é necessário discerni-las cautelosa e diligentemente.2
Toda a vida dos cristãos deve ser uma constante meditação e exercício ou
prática da piedade, visto que somos chamados para a santificação.3 Nisto consiste
o ofício da Lei: Em advertir os cristãos do seu dever e incitá-los a amar a santidade e a inocência. Mas quando as consciências se inquietam sobre como poderão
tornar Deus propício, sobre o que terão para responder e em que tipo de confiança elas poderão manter-se quando chamadas e denunciadas no tribunal de Deus,
não devem querer prestar contas baseadas na Lei, nem devem preocupar-se em
saberb o que ela exige, mas devem ter consigo unicamente a Jesus Cristo como
sua justiça, seguros de que Ele sobrepuja toda a perfeição da Lei. 4
3. Argumentação baseada em Gálatas
Na discussão deste assunto consiste quase todo o argumento da Epístola aos
Gálatas. Contra os maus expositores que dizem que o apóstolo Paulo só luta pela
liberdade das cerimônias, é fácil argumentar e provar por sua própria maneira de
argumentar,c como quando ele diz: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar”.5 E mais:6 Que mantenhamos a
liberdade para a qual “Cristo nos libertou”, e não nos submetamos “de novo, a
jugo de escravidão”. Diz ele: “Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará”. E ainda: “Testifico a todo homem que se
deixa circuncidar que está obrigado a guardar toda a lei”, e Cristo tornou-se vão
para ele. E completa: “De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos
na lei; da graça decaístes”. Nessas declarações fica bem claro que o apóstolo tem
em mira coisa muito mais alta que a liberdade das cerimônias.
2
“Onde o Espírito reina, a lei não mais exerce qualquer domínio. Ao modelar nossos corações segundo Sua
própria justiça, o Senhor nos liberta da severidade da lei, de modo que não trata conosco segundo o pacto da
lei, nem obriga nossas consciências sob sua condenação. Não obstante, a lei continua a exercer seu ofício de
ensinar e exortar. Mas o Espírito de adoção nos livra da sujeição a ela devida.” [ João Calvino, Gálatas, São
Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 5.23), p. 171-172]. NE
3
Ef 1.4; 1Ts 4.3,7a
4
“Lembremo-nos, porém, que somos libertados do jugo da lei somente quando somos feitos um com Cristo,
como os brotos extraem das raízes sua seiva somente pelo desenvolvimento de uma só natureza.” [João
Calvino, Gálatas, São Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 2.19), p. 75]. NE
5
Gl 3.13
6
Gl 5.1-6
a. Citação acrescentada em 1541.
b. subducendum.
c. locis argumentorum. Os Commentaires sur l’épître aux Galates45 foram dedicados por Calvino ao duque
de Wirtemberg, em 01/02/1548. [Ver a tradução brasileira: João Calvino, Gálatas, São Paulo, Edições
Paracletos, 1998].
45
Comentários sobre a Epístola aos Gálatas. No original das notas falta o “s” final de “Galates”. NT
104
As Institutas – Edição Especial
4. Livres do jugo da Lei, obedecemos livremente a Deus
2ª. parte da liberdade cristã. A outraa parte da liberdade cristã, que depende da
anterior, é a seguinte: Ela faz com que as consciências obedeçam à Lei, não como
que constrangidas ou forçadas pela necessidade da Lei, mas sim que, tendo sido
libertadasb do jugo da Lei, obedeçam livrementec à vontade de Deus. Porque,
visto que permanecem perpetuamente em temor e terror enquanto estão sujeitas à
Lei, nessas condições jamais estarão realmente livresd para obedecer com espontaneidade e com amplitude de coração à vontade de Deus, enquanto não obtiverem a liberdade de que falamos. Servindo-nos de um exemplo, veremos mais
brevemente e com maior clareza a que fim nos propomos chegar.
5. O que nos manda a Lei
O mandamento da Lei é que amemos a Deus com todo o nosso ser: “Amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
entendimento”.7 Para cumprir esse mandamento, primeiro é preciso que a alma
esteja vazia de todo outro pensamento, que o coração esteja purificado de todo
outro desejo, que todas as forças juntas sejam aplicadas a amá-lo.8 Ora, mesmo
os mais adiantados no caminho de Deus estão muito longe dessa meta. Porque,
por mais que amem a Deus com puro afeto e coração sincero, ainda têm grande
parte do seu coração e da sua alma cheios de afetos carnais, que os detêm e os
impedem de buscar a Deus como devem. Eles se esforçam, mas a carne em parte
enfraquece o seu vigore e em parte o aplica a si mesma. Portanto, que farão, uma
vez que vêem que nada eles fazem menos do que cumprir a lei? Eles querem,
aspiram, se esforçam, mas nada disso com a perfeição requerida.a Se fixam sua
atenção na Lei, logo vêem que tudo quanto gostariam de fazer está sob maldição.
E que ninguém se engane, pensando que as suas obras não são totalmente más,
embora imperfeitas, e que, portanto, o que elas têm de bom Deus aceita. Porque,
exigindo amor perfeito, a Lei condena toda e qualquer imperfeição. Portanto,
aquele que tem essa consideração por suas obras, pense bem, e verá que aquilo
que ele julgava bom é transgressão da Lei. Vejam, pois, como todas as nossas obras
estão presas à maldição da Lei, se a tomarmos como padrão para avaliá-las.9
a. altera, quer dizer: a segunda.
b. libera.
c. ultro.
d. compositæ.
e. vires.
a. decet.
7
Mt 22.37.
8
O texto (Mt 22.37) citado pelo Autor diz: “de todo o nosso coração, de toda a nossa alma, de todas as nossas
forças”. Cf. Lc 10.27 e Dt 6.5. NT
9
“A lei mesma mata seus discípulos. (...) É a lei que nos força a morrer para ela; pois, ao ameaçar a nossa
destruição, ela não nos deixa nada, senão desespero, e assim nos impede de confiar nela. (...) Tão logo a lei
começa a viver em nós, ela inflige um golpe fatal pelo qual morremos e ao mesmo tempo ela bafeja vida na
105
6. Obediência de escravos ou de filhos?
Como poderão as pobres almas animar-se a praticar alguma obra da qual só esperam receber maldição? Por outro lado se, estando livres dessa rigorosa injunção
da Lei, ou melhor, livres de todo o rigor desta, eles se vêem chamados por Deus
com ternura paterna, cheios de exultação e sinceridade de coração, elas O seguirão para onde os queira levar.
Em resumo, os que estão presos pelos laços da Lei são semelhantes aos
servos,b a cada um dos quais os senhores dão certa tarefa por dia; eles vão achar
que não fizeram coisa alguma, e não se atreverão a apresentar-se aos seus senhores, se não tiverem feito com perfeição tudo o que lhes foi ordenado. Mas os
filhos, que são tratados de maneira mais liberal e bondosa por seus pais, não
temem apresentar-lhes suas obras mal acabadasc e meio por fazer, e até mesmo
com alguns defeitos, confiantes em que a sua obediência e a sua boa-vontade
serão agradáveis aos pais, embora não tendo realizado bem o que eles queriam.
Sejamos, pois, como os filhos, certos e seguros de que o nosso boníssimo e
longânimo Pai se agradará dos nossos serviços, apesar de imperfeitos e defeituosos. [1539] Isso é confirmado pelo profeta, que diz: “Eu os perdoarei como o pai
perdoa a seus filhos que o servem”.10 Nessa passagem a palavra perdoar é tomada
no sentido de sustentar11 ou amparar bondosamente, visto que também se faz
menção do serviço.
7. Aplicação
[1536] Não é pequena a nossa necessidade de tal segurança, sem a qual em vão
faremos seja o que for. Porque Deus não se considera honrado por nossas obras, a
não ser que verdadeiramente as pratiquemos com o intuito de honrá-lo. E como
poderemos praticá-las em Sua honra, se estivermos mergulhados em temores e dúvidas, se ficarmos sem saber com certeza se Ele vai se sentir ofendido ou honrado?
8. Fundamento neotestamentário
Essa é a causa pela qual o autor da Epístola aos Hebreus reporta à fé todas as boas
obras dos antigos pais e as avalia segundo a fé.12 Sobre a liberdade da qual estamos
falando há uma passagem notável na Epístola aos Romanos,13 na qual o apóstolo
pessoa que já se encontra morta para o pecado. Aqueles que vivem para a lei, portanto, nunca sentiram o
poder da lei nem mesmo provar que ela envolve; pois a lei, quando verdadeiramente entendida, nos faz
morrer para ela. (...) A lei traz em seu próprio âmago a maldição que nos mata.” [João Calvino, Gálatas, São
Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 2.17-19), p. 73-74]. NE
10
Ml 3.17. [Tradução direta.]
11
Sentido do francês supporter na época de Calvino. NT
12
Hb 11. [Notem-se os versículos 2 e 39.]
13
Rm 6.12-14
b. servis. Em geral se trata dos serviçais ou criados, não dos servos do regime feudal.
c. inchoata.
106
As Institutas – Edição Especial
Paulo conclui que o pecado não nos deve dominar porque, diz ele, “não estais
debaixo da lei e sim da graça”.14 Depois de exortar os crentes a que não deixem
que o pecado reine em seu corpo mortal e que não ofereçam os membros do seu
corpo ao pecado como instrumentos de iniqüidade, mas que se consagrem e se
dediquem a Deus, como ressurretos dentre os mortos, e a Ele ofereçam os seus
membros como instrumentos de justiça, sendo que, por outro lado, eles poderiam
objetar que ainda trazem consigo a carne cheia de concupiscência e que o pecado
ainda habita neles, o apóstolo passa a dar-lhes a consolação que se deduz do fato
de que eles foram libertados da Lei, como se ele dissesse: Apesar de os crentes
sentirem que o pecado ainda não foi plenamente extinto neles, e ainda não sentirem neles a justiça em plenitude de vida, todavia não devem deixar-se consternar
nem desanimar como se Deus estivesse irado contra eles por causa dos restos de
pecado neles existentes, pois pela graça eles foram libertados a da Lei para que as
suas obras não sejam mais examinadas segundo a sua regra.
9. Libertinos, cautela!
Com relação aos que inferem que podemos muito bem pecar porque não mais
estamos debaixo da Lei, que tratem de entender que esta liberdade não tem nenhuma ligação com eles, porquanto o fim da liberdade cristã é incentivar-nos e
induzir-nosb à prática do bem.
10. Coisas que podemos praticar ou não
praticar, indiferentemente
3ª. parte: A terceira parte da liberdade cristã nos instrui no sentido de que não
devemos preocupar-nos diante de Deusc com certas coisas externas que em si
mesmas são indiferentesd, e nos ensina que podemos praticá-las ou deixar de
praticá-las indiferentemente. Também temos grande necessidade de conhecer esta
liberdade, pois, se não, a nossa consciência não terá repouso e não terão fim as
nossas superstições. Atualmente é sabido que muitos acham que agimos mal quando defendemos que somos livres para comer carne, que estamos livres da observância de dias, que somos livres para determinar o nosso vestuário, e uma porçãoe
14
“Se não se pode encontrar nenhum mortal que possa cumprir as exigências da Lei, ou todos devem perecer no
juízo de Deus, ou devem buscar refúgio em Sua misericórdia. Entretanto, não negamos que a integridade dos
crentes fiéis (embora imperfeita e com muita coisa que merece censura) é como um degrau para a imortalidade.
Mas, de onde vem isso, senão do fato de que, quando o Senhor acolhe um homem à aliança da Sua graça, Ele
não esmiúça as suas obras avaliando-as segundo os seus méritos, mas as aceita por uma benignidade paternal,
sem que elas sejam dignas de aceitação?” [João Calvino, As Institutas, (1541), II.6]. NE
a. manumissi (termo do direito romano).
b. Uma só palavra latina: animare.
c. religione coram Deo teneamur.
d. ?????????
e. frivolis nugis.
107
de outras coisas semelhantes. Mas nesta questão há coisas mais importantes, que
em geral não são levadas em conta. Porque, uma vez que as consciências estejam
sob essas rédeas e sejam atadas por esses laços,f elas entram num labirinto sem
fim e caem num abismo profundo,g de onde não será fácil sair. Se alguém começar a duvidar se é lícito usar linho nos lençóis, nas camisas, nos lenços, nos guardanapos, não terá certeza se lhe é lícito usar cânhamo, e acabará hesitando até se
pode usar estopa, ou pano de saco. E ficará pensando se não poderia muito bem
comer sem usar guardanapo, se não poderia abster-se de lenços. Se alguém achar
que não lhe é lícito comer carne de primeira, por fim não comerá com paz de
consciência nem mesmo pão preto, nem alimentos comuns, porque passará por
sua cabeça que ele poderia sustentar seu corpo com alimentos inferiores. Se tiver
escrúpulo quanto a beber vinho um tanto fino, dentro em pouco nem a borra ou o
vinho azedoa beberá com a consciência tranqüila. Finalmente, não tomará tranqüilo nem a água mais pura ou mais límpida que as outras. Em suma, irá tão longe
nessa atitude que para ele será um grande pecado pisar num ramo caído no chão.
Porque aqui não se trava um ligeiro conflito de consciência, mas a dúvida é se a
Deus agrade que usemos ou não essas coisas, sendo que a Sua vontade deve
preceder todos os nossos propósitos e todos os nos feitos.
Disso resulta que, inevitavelmente, uns em desespero ficam na maior confusão, e outros, depois de rejeitar e repudiar todo o temor de Deus, lançam-se15
por cima de todos os obstáculos sem sequer enxergar o caminho.b Pois todos
quantos estão envolvidos em tais dúvidas, para onde quer que se voltem sempre
vêem diante de si algum escândalo, algum escrúpulo de consciência.
11. O ensino positivo do apóstolo Paulo
“Eu sei”, diz o apóstolo Paulo, “e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que
nenhuma coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera;
para esse é impura”.16 Com essas palavras ele subordina todas as coisas externas
à nossa liberdade, dando por entendido que a segurança desta liberdade é certa e
firme em nossa consciência perante Deus. Mas se alguma opinião supersticiosa
nos leva a escrúpulos, coisas que por natureza são puras parecem-nos maculadas.
Por essa razão ele acrescenta, pouco adiante: “Bem-aventurado é aquele que não se
condena naquilo que aprova. Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer,
porque o que faz não provém de fé; e tudo o que não provém de fé é pecado”.17
15
Francês arcaico: voissent < voisent < voler – voar, atirar-se. NT
Rm 14.14
17
Rm 14.23. “Condenar tudo quanto não provém de fé significa rejeitar tudo quanto não pode encontrar o
apoio e a aprovação da Palavra de Deus.” (João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo, Parakletos, 2001, (Rm
14.23), p. 494]. NE
f. laqueis conjecerunt.
g. 1536 e 1539: longum et inextricabilem labyrinthum.
a. vappam.
b. viam sibi ruina facere, quam expeditam non habent.
16
108
As Institutas – Edição Especial
Todos aqueles que, presos a essas reservas e restrições, todavia se atrevem
a agir sempre contra a consciência, querendo mostrar-se pertinazes e corajosos,
com isso não se afastam de Deus? Por outro lado, aqueles que têm maior temor a
Deus, sendo levados, ainda que constrangidos, a fazer muitas coisas contra a sua
consciência, caem em terrível pavor e confusão. Ora, todos quantos fazem uso
dessa forma de tais coisas, quer por obstinação contra a sua consciência quer por
temor e confusão, tanto uns como os outros não recebem nenhum dos dons de
Deus com ação de graças, pela qual, e somente pela qual, Seus dons sempre são
santificados para o nosso uso, como testifica o apóstolo Paulo.18 Refiro-me à
ação de graças que procede de um coração que reconhece a bondade e a liberalidade de Deus na distribuição dos Seus dons. Porque são muitos os que entendem
que as coisas que usam são benefícios de Deus e O louvam por Suas obras. Mas,
como não consideram que tais coisas lhes são dadas por Deus, como vão renderlhe graças, reconhecendo-o como o seu benfeitor?
12. Resumo sobre a finalidade da liberdade cristã
Vejamos, em resumo, qual é a finalidade desta liberdade: É que, sem escrúpulo
de consciência nem turbação de espírito, apliquemos os dons de Deus ao uso para
o qual foram destinados por Ele; e que, nesta confiança, a nossa alma goze paz
com Deus e nele descanse, reconhecendo e proclamando19 a Sua generosidade
para conosco.
13. Natureza e benefícios da liberdade cristã
Agora devemos considerar diligentemente que a liberdade cristã, em todas as
suasa partes, é de natureza espiritual, e sua eficácia consiste em pacificar perante
Deus as consciências temerosas porque duvidam do perdão dos seus pecados, ou
porque estão preocupadas quanto à imperfeição das suas obras, maculadas e contaminadas por sua carne, temendo que não sejam agradáveis a Deus, ou ainda
porque não têm certeza sobre o uso de coisas em si indiferentes. Portanto, a liberdade cristã é mal interpretada por aqueles que querem disfarçar a sua cupidez
carnal para fazer uso abusivo dos dons de Deus segundo a sua volúpia, ou que
pensam que não faz mal nenhum usarem ou abusarem delas diante dos homens,
sem nenhuma consideração pela possível fraqueza dos seus irmãos.20
[Tendo considerado a natureza da liberdade cristã, vejamos agora os seus
benefícios:]
18
1Tm 4.4,5
Embora o verbo reconhecer inclua a idéia de confessar e declarar (tanto em português como em francês), por
vezes explicito o duplo sentido porque, em português, geralmente o aspecto de confissão ou declaração não
transparece. NT
20
“A liberdade pertence a todos os cristãos, uma vez que renunciaram a carne.” [João Calvino, Gálatas, São
Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 5.24), p. 172]. NE
a. 1536 e 1539: suis. 1541 tem, por erro, ces.
19
109
13.1 – A liberdade cristã freia e modera as tendências para abuso
Quanto ao primeiro aspecto pecaminoso do uso da liberdade, cometem-se hoje
muitas faltas. Porque são poucos os que hoje não vivem entregues à vaidade
ostensiva e aos prazeres da mesa e da moda, e que não se encantam com edifícios
complexos e suntuosos;b não são poucos os que querem superar os outros em
todas estas coisas, pretendendo chamar a atenção alheia, e que não se sentem
muitíssimo bem com a sua grandeza. E tudo isso se defende e se desculpa sob o
disfarce da liberdade cristã. Dizem eles que estas coisas são indiferentes. Concordo, desde que os homens as usem indiferentemente.c Mas, quando são desejadas com cupidez, quando expostas com ostentação e orgulho, quando feitas
desordena e negligentemente, estes erros e males as maculam.21 As seguintes
palavras do apóstolo Paulo nos ajudam a discernir eficazmente as coisas indiferentes: “Todas as cousas são puras par os puros”, diz ele; “todavia, para os impuros e descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles
estão corrompidas”22 Por que são amaldiçoados os ricos, que já têm sua consolação, que vivem fartos, que agora riem, que dormem em camas de marfim, que
ajuntam propriedade a propriedade, que em seus banquetes se divertem com harpas, liras, tamborins e vinho?23 Certamente, o marfim, o ouro e as riquezas são
boas criaturas de Deus, permitidas, e até destinadas ao uso dos homens; também
em nenhum lugar se proíbe ao homem rir ou fartar-sea ou adquirir novas propriedades ou deleitar-se com instrumentos musicais ou beber vinho. É certo. Mas,
quando alguém goza abundância de bens, se ele se deixar envolver pelas coisas
que lhe causam deleite, embriagar sua alma e seu coração com os prazeres desta
vida e viver buscando outros novos, muito longe estará do uso santo e legítimo
dos dons de Deus.24 Que os homens procurem, então eliminar toda a sua cobiça
b. O texto latino tem somente: luxuriosus splendor.
c. Falta em 1541. 1536: iis.
a. saturari, no sentido de: ter em abundância do que comer (como no fim deste parágrafo), e não de: embriagar-se.
21
“Se Deus tem derramado sobre nós um dom excelente, e se, porém, imaginamos que ele mesmo se deve a
nosso próprio mérito, acabaremos insuflados de orgulho.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São
Paulo, Novo Século, 2000, p. 34). “À luz desse fato aprendemos, também, que os que são responsáveis pelo
presunçoso uso da bondade divina, se aproveitam dela para orgulhar-se da excelência que possuem, como se
a possuíssem por sua própria habilidade, ou como se a possuíssem por seu próprio mérito; enquanto que sua
origem deveria, antes, lembrá-los de que ela tem sido gratuitamente conferida aos que são, ao contrário,
criaturas vis e desprezíveis e totalmente indignas de receber algum bem da parte de Deus. Qualquer qualidade estimável, pois, que porventura virmos em nós mesmos, que ela nos estimule a celebramos a soberana e
imerecida bondade que a Deus aprouve conceder-nos.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo,
Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 8.4), p. 165-166]. NE
22
Tt 1.15
23
Lc 6.24,25; Am 6.1-6; Is 5.8-12
24
“Quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus.” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 182]. “Quando
Deus nos envia riquezas não renuncia a sua titularidade, nem deixa de ter senhorio sobre elas (como o deve
ter) por ser o Criador do mundo. (...) E ainda que os homens possuem cada um sua porção segundo Deus os
há engrandecido mediante os bens deste mundo, não obstante, Ele sempre continuará sendo Senhor e Dono
de tudo”. [Juan Calvino, El Señor dio y El Señor quito: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan,
110
As Institutas – Edição Especial
iníqua, toda a sua ultrajante superfluidade, toda a sua vã pompa e arrogância, e
usem com consciência pura os dons de Deus. Quando eles tiverem mudado o seu
coração tornando-o sóbrio como aqui se requer, estarão aptos a seguir a regra do
bom uso. Se faltar esta temperança, esta moderação, mesmo os prazeres menores,
mais comuns e mais singelos irão além da medida. Pois é bem verdadeiro o ditado que diz: Sob roupa cinza ou grosseirab, às vezes há uma audácia de púrpura; e,
por outro lado: Por vezes, sob seda e veludoc oculta-se um coração humilde. Por
isso cada um, em suas condições de vida, quer pobres quer medíocres quer ricas,
vivam de tal maneira que reconheçam que Deus lhes dá o sustento para viverem,
não para se locupletarem de prazeres.25 Entendam pois que nisto se verifica a lei
da liberdade cristã: se, com o apóstolo Paulo, entenderam que devem contentarse com toda e qualquer situação; se sabem viver em condições humilhantes e em
posições honrosas, na fome e na fartura,a na pobreza e na riqueza.26
T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 2), p. 42]. “Todos quantos têm como seu ambicioso alvo a aquisição de riquezas
se entregam ao cativeiro do diabo” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.8), p. 169]. Comentando o Salmo
30.6 – quando Davi reflete a sua momentânea confiança no sucesso adquirido –, diz: “.... Davi reconhece
que havia sido justa e merecidamente punido por sua estulta e precipitada confiança, ao esquecer-se de sua
mortal e mutável condição de ser humano, e ao pôr demasiadamente seu coração na prosperidade.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 30.6), p. 631]. Em outro lugar, fazendo menção da mesma passagem, escreve: “Davi afirma que a prosperidade havia obnubilado de tal forma seus sentidos, que deixou de
pôr seus olhos na graça de Deus, da qual deveria depender continuamente. Em vez disso, creu que poderia
andar por suas próprias forças e imaginou que não cairia jamais.” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 47]. NE
25
“Os bens terrenos à luz de nossa natural perversidade, tendem a ofuscar nossos olhos e a levar-nos ao
esquecimento de Deus, e portanto devemos ponderar, atentando-nos especialmente para esta doutrina: tudo
quanto possuímos, por mais que pareça digno da maior estima, não devemos permitir que obscureça o
conhecimento do poder e da graça de Deus.” [J. Calvino, O Livro de Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999,
Vol. 2, (Sl 48.3), p. 355-356]. “A glória de Deus deve resplandecer sempre e nitidamente em todos os dons
com os quais porventura Deus se agrade em abençoar-nos e em adornar-nos. De sorte que podemos considerar-nos ricos e felizes nele, e em nenhuma outra fonte.” [J. Calvino, O Livro de Salmos, São Paulo, Paracletos,
1999, Vol. 2, (Sl 48.3), p. 356]. “Às vezes pensamos que podemos alcançar facilmente as riquezas e as
honras com nossos próprios esforços, ou por meio do favor dos demais; porém, tenhamos sempre presente
que estas coisas não são nada em si mesmas, e que não poderemos abrir caminho por nossos próprios meios,
a menos que o Senhor queira nos prosperar.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo
Século, 2000, p. 40-41). “Um verdadeiro cristão não deverá atribuir nenhuma prosperidade à sua própria
diligência, trabalho ou boa sorte, mas antes ter sempre presente que Deus é quem prospera e abençoa.” (João
Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 42). NE
26
Fp 4.11,12. “Quem sofre a pobreza com impaciência, mostra o vício contrário na abundância. Quero dizer
com isso que quem se envergonha de andar pobremente vestido, se vangloriará de ver-se ricamente ataviado; que quem não se contenta com a mesa frugal, se atormentará com o desejo de outra mais rica e abundante.” [J. Calvino, Institución, III.10.5].
“O pobre deveria aprender a ser paciente sob as privações, para não se encontrar atormentado com
uma excessiva paixão pelas riquezas.” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 74].
“Devemos aprender a superar a pobreza quieta e pacientemente, e desfrutar da abundância com moderação” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 73].
“Para assegurarmos que a suficiência [divina] nos satisfaça, aprendamos a controlar nossos desejos de
modo a não querermos mais do que é necessário para a manutenção de nossa vida.” [João Calvino, As
Pastorais, (1Tm 6.8), p. 169].
b. in buro et rudi panno.
c. sub bysso et purpura.
a. saturari.
b. Frase acrescentada em 1541.
111
13.2 – A liberdade cristã pratica-se com amor e com consideração pelos fracos
Também são muitos os que cometem a segunda falta mencionada. Estes, como se
a sua liberdade não estivesse inteiramente a salvo e segura se não tivesse o testemunho dos homens, usam-na de maneira imprudente e sem discrição. Com essa
forma inconsiderada de proceder, muitas vezes servem de pedra de tropeço para
os seus irmãos fracos. Hoje em dia pode-se ver muitos que acham que não estarão
gozando bem a sua liberdade se não fizerem uso dela para comer carne na sextafeira. Não os repreendo por comerem, mas é preciso libertar o nosso espírito da
falsa idéia [1541] de que não temos liberdade se não a exibimos a todo instante.b
[1536] É, pois, nosso dever considerar que com a nossa liberdade não adquirimos coisa alguma diante dos homens, mas sim com relação a Deus, e que
tanto há liberdade na abstinência como no uso.c Se alguém entender que para
Deus tanto faz se ele comer carne ou ovos e se vestir de vermelho ou de preto,
basta. A consciência já está livre, e a ela cabe o fruto desta liberdade. Portanto,
mesmo que se abstenha de comer carne durante toda a sua vida e use suas roupas
sempre de uma só cor, não será por isso menos livre. E é livre nisso porque se
abstém com liberdade de consciência. Mas o tipo de gente que temos mencionado falha perigosamente nestas coisas, porque não leva em conta a fraqueza do seu
irmão. Ora, este deve ser de tal forma ajudado por nós que não façamos levianamente coisa alguma que possa escandalizá-lo.
Contudo, alguém poderá dizer que alguma vez convém mostrar aos outros a
nossa liberdade. Admito. Mas devemos fazer todo o empenho possível para moderar-nos nisso,a de modo que não venhamos a desprezar e negligenciar os fracos, cujo cuidado o Senhor nos recomendou de maneira tão especial.
A tendência é de nos envaidecermos com a abundância e nos deprimir com a carência. Para muitos
de nós, não se ensoberbecer com a riqueza pode ser mais difícil do que não se desesperar com a pobreza.
[Ver: John Calvin, Commentary on the Epistle to the Philippians, Grand Rapids, Michigan, Baker
Book House Company, 1996, (Calvin’s Commentaries, Vol. XXI), (Fp 4.12) p. 124]. “Aquele que é impaciente sob a privação manifestará vício oposto quando estiver no meio do luxo.” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 74].
Calvino insiste no ponto de que aqueles que não aprenderem a viver na pobreza, quando ricos, revelarão a sua arrogância e orgulho. O apóstolo Paulo constitui-se num exemplo de simplicidade em qualquer
situação (Fp 4.12).
Ele também entende que na pobreza é que tendemos a nos tornar mais humildes e fraternos:
“Todas as pessoas desejam possuir o bastante que as poupe de depender do auxílio de seus irmãos.
Mas quando ninguém possui o suficiente para suas necessidades pessoais, então surge um vínculo de
comunhão e solidariedade, pois que cada um se vê forçado a buscar empréstimo dos outros. Admito, pois,
que a comunhão dos santos só é possível quando cada um se vê contente com sua própria medida, e ainda
reparte com seus irmãos as dádivas recebidas, e em contrapartida admite ser também assistido pelas
dádivas alheias.” [João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo, Paracletos, 1997, (Rm 12.6), p.
430]. NE
c. Alusão, quiçá, ao preceito da filosofia antiga: uti, non abuti.46
a. modus summa cautione tenendus.
46
Para usar, não abusar. NT
112
As Institutas – Edição Especial
13.3 – Tipos de escândalos: causados e supostos
Direi algo aqui sobre os escândalos: como reconhecê-los; como evitá-los; quais
devem ser passados por alto. Com isso, cada qual poderá decidir que liberdade
poderá haver entre os homens.
Devemos observar a distinção comum segundo a qual há duas classes de
escândalos: causados e supostos. Dessa distinção há evidente testemunho na Escritura, e ela exprime com muita propriedade o que eu quero dizer. Se alguém,
por leviandade, intemperança ou temeridade indiscreta, em tempo ou lugar inoportuno, faz alguma coisa que escandalize os fracos e simples, poderemos dizer
que ele causou o escândalo, porque foi por sua culpa que tal escândalo ocorreu.
Em geral se pode dizer que é causado escândalo por alguma coisa quando a culpa
é do autor da referida coisa.b Chama-se escândalo suposto àquilo que acontece
quando alguma coisa é praticada sem intemperança e sem indiscrição e, todavia,
pela maldade e malícia alheia, é tomada como ocasião de escândalo. Porque neste caso não foi real e não foi causado, mas os maus sem razão o supõem.
No primeiro gênero de escândalos, somente os fracos tropeçam. No segundo tropeçam aqueles que, com seu deplorável rigorismo, estão sempre caçando o
que morder e censurar. Portanto, ao primeiro tipo chamaremos escândalo dos
fracos; ao segundo, dos fariseus; e vamos abrandar e moderarc o uso da nossa
liberdade de modo que cedamos e atendamos à ignorância dos nossos irmãos
fracos, e não ao rigor farisaico.
(1) Sobre o escândalo dos fracos
Em muitas passagens o apóstolo Paulo mostra amplamente quanto devemos
estar dispostos a ceder e a conceder aos mais fracos. a “Acolhei ao que é débil na
fé”, diz ele. E mais: “Não nos julguemos mais uns aos outros; pelo contrário,
tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão”.27 E muitas outras palavras tendentes ao mesmo fim, as quais é melhor ler nos respectivos
textos bíblicosb do que citar aqui. Resumindo tudo isso, podemos dizer que “nós,
que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a
nós mesmos”, mas que “cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para
edificação”.28 Diz ele ainda: “Vede, porém, que esta vossa liberdade, não venha,
b. Em seu tratado Des Scandales [Sobre os Escândalos] (1550), fala “daqueles que impedem muita gente de
chegar à pura doutrina”
c. Palavra acrescentada.
a. quid infirmitati dandum.
b. ex loco.
27
Rm 14.1,13.
28
Rm 15.1,2. NT
“Comentando Rm 15.2: “Há duas proposições expressas aqui: (1) Não devemos contentar-nos com
nosso próprio juízo, nem aquiescer aos nossos próprios desejos, senão que devemos, em todas as ocasiões,
labutar e esforçar-nos para agradar a nossos irmãos. (2) Quando desejarmos aquiescer às necessidades de
nossos irmãos, então que olhemos para Deus, para que nosso objetivo seja a edificação deles. A maioria dos
113
de algum modo, a ser tropeço para os fracos”29. E também: “Comei de tudo o que
se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência... consciência, digo, não a tua propriamente, mas a do outro”.30 Em resumo: “Não vos
torneis causa de tropeço nem para judeus, nem para gentios, nem tampouco para
a igreja de Deus”.31 E ainda noutra passagem: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede,
antes, servos uns dos outros, pelo amor”.32
Certamente assim é em verdade. A nossa liberdade não nos é dada para ser
usada contra os nossos próximos fracos, aos quais o amor nos sujeita em tudo e
por tudo.33 A nossa liberdade nos é dada a fim de que, tendo paz com Deus em
nossa consciência, vivamos igualmente em paz com os homens.
(2) Sobre o escândalo dos fariseus
No tocante ao escândalo dos fariseus, as palavras do Senhor nos mostram
qual deve ser a nossa atitude, porque Ele nos ordena que não nos preocupemos
nem um pouco com eles e que os deixemos de lado. Porque “são cegos” e “guias
de cegos”.34 Seus discípulos O haviam advertido de que os fariseus estavam escandalizados com a Sua doutrina, e o Senhor lhes respondeu que passassem por
cima daquilo e que não se preocupassem.
(3) Como discernir entre fracos e fariseus?
Todavia, ainda ficará pairando alguma dúvida, se não entendermos bem a
quem devemos considerar fracos e a quem fariseus. Sem claro discernimentoa
disso não vejo como poderemos usar a nossa liberdade em meio aos escândalos,
visto que seu uso seria sempre muito perigoso. Ao que me parece, o apóstolo
Paulo determina claramente como conduzir a nossa liberdade, ou quando a devemos entender como escândalo, como pedra de tropeço. Quando tomou Timóteo
como companheiro, ele o circuncidou, mas não se sujeitou à pressão para que
Tito fosse circuncidado.35 O apóstolo agiu diferentemente nos dois casos, mas
homens nunca fica satisfeita, a não ser que se satisfaçam seus desejos. Mas se quisermos agradar muitos
deles, nossa preocupação não estará concentrada tanto em sua salvação, mas sobretudo em suportar seus
desvarios. Devemos, pois, levar em conta não o que lhes é conveniente, mas o que buscam para sua própria
ruína; nem devemos esforçar-nos por agradar àqueles cujo único prazer é sua própria maldade.” [João Calvino,
Romanos, 2ª ed. (Rm 15.2), p. 496]. NE
29
1Co 8.9
30
O Autor alude com suas palavras ao versículo 29, dizendo: “Ora, falo da vossa consciência, não da do outro”.
NT
31
1Co 10.25,29,32
32
Gl 5.13
33
“O propósito de todos os dons da graça é que sejam assim comunicados aos membros de Cristo. Portanto,
quanto mais fortes somos em Cristo, tanto mais obrigados somos de apoiar os fracos.” [ João Calvino,
Romanos, 2ª ed., Sâo Paulo, Parakletos, 2001, (Rm 15.1), p. 495].
34
Mt 15.14
35
At 16.3; Gl 2
a. discrimine.
114
As Institutas – Edição Especial
não houve nenhuma mudança em sua forma de pensar e em seu querer. Assim foi
porque na circuncisão de Timóteo, como o próprio apóstolo diz, “sendo livre de
todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem
sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem
debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu
mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo,
para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos,
com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por
todos os meios, salvar alguns”.b36 Temos aqui um exemplo de boa administração
da nossa liberdade, a saber, da situação na qual podemos abster-nos indiferentemente obtendo com isso algum fruto.
Por outro lado, o próprio apóstolo nos revela com que finalidade ele se
recusou persistentemente a circuncidar Tito, escrevendo desta maneira: “Contudo, nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se. E isto por causa dos falsos irmãos que se entremeteram com o fim de
espreitar a nossa liberdade que temos em Cristo Jesus e reduzir-nos à escravidão;
aos quais nem ainda por uma hora nos submetemos, para que a verdade do evangelho permanecesse entre vós”.37 Temos aqui, paralelamente, um exemplo que
demonstra que necessitamos manter a nossa liberdade, se esta vem a sofrer abalo
na consciência dos fracos pela imposição de falsos apóstolos.
Em todas as coisas devemos estar a serviço do amor, visando à edificação
do próximo. “Todas as cousas são lícitas”, diz o apóstolo Paulo, “mas nem
todas convêm; todas são lícitas, mas nem todas edificam. Ninguém busque o
seu próprio interesse e sim o de outrem”. Não há nada mais claro nem mais
certo que esta regra: Que usemos a nossa liberdade, se, ao usá-la, estivermos
promovendo a edificação do nosso próximo; e que nos abstenhamos, se o nosso
uso dela não lhe for benéfico. Alguns fingem seguir o sábio exemplo de Paulo
abstendo-se do uso da liberdade, não porém no interesse do amor ao próximo,
mas, querendo sossego e tranqüilidade, gostariam que até a só menção da liberdade fosse sepultada. Mas a verdade é que às vezes o uso da liberdade [não]38 é
menosa lícito e necessário para a edificação dos nossos semelhantes do que
restringi-la para o bem deles.
36
1Co 9.19-22
Gl 2.3-5
38
Ver nota a, logo adiante. NT
b. Lutero comenta esta mesma passagem em seu tratado De la liberté chrétienne [Sobre a Liberdade Cristã].
a. Nós diríamos: pas moins [não menos; como foi feito na tradução em português] (1536: non minus intersit
proximorum).
37
115
13.3 – Devemos subordinar a nossa liberdade tanto ao amor ao próximo
como à fidelidade a Deus e Sua Palavra
Tudo o que ensinei quanto ao dever que temos de evitar escândalosb relaciona-se
com as coisas indiferentes,c isto é, com as coisas que, moralmente, em si mesmas
não são nem boas nem más. Porque as que são necessáriasd não devem ser omitidas por temor de algum escândalo. É verdade que aqui também devemos ter em
vista o amor, mase de tal modo que por amor ao nosso próximo não causemos
ofensa a Deus. Não aprovo o desequilíbrio daqueles que não fazem nada senão
provocando tumultos e que preferem romper com violência em vez descosturar.
Mas também, por outro lado, não aceito o argumento daqueles que, induzindo
outros por seu exemplo a mil e uma blasfêmias, fingem que lhes é necessário
fazer isso para não escandalizar os seus próximos. Como se não estivessem com
isso edificando para o mal a consciência dos seus próximos, principalmente quando
permanecem no mesmo lodaçal, sem esperança de livramentoa.
Se a questão é instruir o próximo pela doutrina ou pelo exemplo, elesb dizem que é necessário alimentá-lo com leite. E com essa desculpa permanecem
em suas opiniões ímpias e nocivas. É certo que o apóstolo Paulo relata que alimentou os coríntios com leite,39 mas, se naquele tempo houvesse a missa, teria
ele sacrificado para lhes oferecer leite? Não, porque o leite não é veneno. Mentem, pois, os tais, fingindo alimentar aqueles que eles matam cruelmente oferecendo-lhes algo doce. E ainda que concedêssemos que tal dissimulação seria boa
por algum tempo, todavia, até quando eles estarão dando a beber o mesmo leite às
sua crianças? Porque, se elas não crescem nunca para suportarem alimento sólido, ainda que leve, certo é que jamais foram alimentados com bom leite.
13.4 – Nas coisas indiferentes os cristãos estão livres da tirania dos homens
Entendido, pois, que a consciência dos crentes, graças ao privilégioc da liberdade
que eles gozam em Jesus Cristo, está livre dos laços e das observâncias obrigatórias das coisas que o Senhor quis que fossem consideradas indiferentes, concluímos que eles estão livres e isentos do poder de todos os homens. Porque não é
próprio, nem que seja obscurecido o louvor que se deve a Cristo por tal bênção,
nem que as consciências percam seu fruto. E não tenhamos como coisa de baixo
valor aquilo que tanto custou para Jesus Cristo, pois Ele a adquiriu não a peso de
39
1Co 3.2.
b. de cavendis offendiculis.
c. res medias et indifferentes.
d. necessarias factu.
e. 1536 e 1539 acrescentam aqui: sed usque ad aras, hoc est, etc.
a. Neste ano (1536), Calvino escreveu sua carta De fugiendis impiorum sacris et puritate christianæ religionis
observanda.
b. 1536 e 1539 têm ironicamente: suaves homines.
c. prærogativa.
116
As Institutas – Edição Especial
ouro ou prata, mas com Seu próprio sangue.40 De tal importância é isto que o
apóstolo Paulo não vacila em afirmar que a morte de Cristo será inútil para nós,
se nos fizermos sujeitos aos homens, porque não é de outra coisa que ele trata
nalguns capítulos da Epístola aos Gálatas, senão do fato de que Cristo nos ficará
encoberto e até mesmo extinto, se a nossa consciência não se mantiver firme na
liberdade que nos pertence. E dessa liberdade certamente a nossa consciência
terá caído, se pode ser atada a leis e constituições segundo o querer dos homens.
Mas, como esta verdade é deveras digna de ser conhecida, por isso mesmo
deve ser exposta mais claramente.41 Porque hoje em dia, assim que se diga uma
palavra sobre a abolição de leis e constituições humanas, promovem-se grandes
tumultos e revoltas, em parte causados por sediciosos, em parte por caluniadores,
como se toda obediência aos homens fosse rejeitada e aniquilada.
13.5 – Distingam-se duas áreas de jurisdição: espiritual e temporal
A fim de evitar esse inconveniente, devemos observar a existência de um duplo
regime entre os homens. Um deles é o regime espiritual, pelo qual a consciência
recebe instrução e ensinamentos sobre as coisas pertencentes a Deus e que se
relacionam com a piedade cristã. O outro é o regime político ou civil, pelo qual o
homem aprende os deveres de humanidade e civilidade que devem prevalecer
entre os homens. Vulgarmente se deu em chamá-los jurisdição espiritual e jurisdição temporal, nomes realmente apropriados, com os quais se quer dizer que a
primeira espécie de regime visa à vida da alma, e o segundo atende à presente
existência, não para orientar sobre alimentação ou vestuário, mas para constituir
certas leis pelas quais os homens possam conviver com honestidade e justiça. O
primeiro tem sua sede na alma, no ser interior; o segundo só formula e ensina
como devem ser os costumes externos.
Que, portanto, os leitores me permitam chamar a um deles reino espiritual, e ao outro, reino civil ou político. Ora, como os temos distinguido, devemos
considerá-los separados, cada um independentemente, sem misturá-los nem confundi-los. Porque no homem há como que dois mundos, que podem ser governados por diferentes reis e por diferentes leis [ou seja: cada um com seu rei e
com suas leis].
40
41
1Pe 1.18,19.
Ver principalmente Gl 5.1,4. NT
117
CAPÍTULO XVa
SOBRE O PODER ECLESIÁSTICOb
1. Combate introdutório contra o clero usurpador
[1536] Assim como tudo o que foi dito anteriormente sobre a liberdade cristã
pertence ao reino espiritual, igualmente nesta discussãoc não combatemos a autoridade das leis civisd, mas sim o poder que usurpam os que querem ser vistos
como pastores da igreja e, ao contrário, são, verdadeiramente, carrascos cruéis.
Porque eles dizem que as leis por eles feitas são espirituais e pertinentes à alma,
e afirmam que são necessárias à vida eterna. Com isso, o reino de Cristo sofre
assalto e é violado, e a liberdade por Ele dada à consciência dos crentes sofre
opressão e é derribada. Por ora eu deixo de falar sobre qual impiedade eles baseiam a observância das suas leis, alegando eles que por esse meio obtemos a remissão dos pecados e a justiça, incluindo nelas a soma total da religião.e
a. O clero regular e secular tinha sido criticado por Erasmo, particularmente desde 1512, na obra O Elogio da
Loucura, por Lutero, em Cativeiro da Babilônia (1520) etc., por Farel, em sua Declaração Sumária (cap.
XXXIII, sobre os falsos pastores; XXXV, sobre o poder dos pastores; XXXVI, sobre a que devem ater-se
os verdadeiros pastores). A Instrução... de Genebra (1537), num dos seus últimos artigos, fala Sobre os
pastores da igreja e sobre o seu poder. Bucer, em sua obra Exposição sobre o Evangelho segundo Mateus
(1536; tradução francesa de 1540, p. 30) fala sobre os ministros da igreja: “Doutores ou mestres, pastores,
governadores ou regentes, diáconos, isto é, despenseiros ou administradores das esmolas ou da beneficência
pública. em, suma, todas as pessoas que se prestam a decentemente regulamentar e exercer governo na
comunidade cristã. Cf. acima, p. 120, e nota c.
O capítulo XV das Institutas de 1541 só substitui por uma expressão popular três palavras gregas do
texto de 1536 e 1539; em 1539 (cap. XIV) somente quatro frases sem importância são acrescentadas ao
texto de 1536 (cap. VI).
b. Calvino explicará algumas páginas adiante a expressão “poder eclesiástico”: “aplicada aos pastores da igreja, qualquer que seja o nome pelo qual são chamados”.
c. sermone.
d. politicum legum aut legislatorum ordinem.
e. religionis et pietatis.
118
As Institutas – Edição Especial
Por ora só debaterei o seguinte ponto: Não se deve impor necessidade ou
obrigatoriedade às consciências nas coisas das quais elas foram liberadas por
Jesus Cristo, recebendo liberdadef sem a qual elas não podem estar em paz com
Deus, como previamente ensinamos.
2. Reconheçamos um só Rei, Cristo, e uma só lei,
a lei da liberdade em Cristo
As consciências cristãs devem reconhecer como Rei um só Cristo, seu Libertador, e que são governadas somente pela lei da liberdade, que é a sagrada Palavra
do Evangelho. Isto se é que desejam manter a graça que uma vez obtiveram em
Jesus Cristo. E que elas não se sujeitem a nenhuma servidão, nem se deixem
capturar por laço algum.
3. Onde o jugo suave e o fardo leve?
Esses legisladoresa fazem parecer que as suas constituições são leis de liberdade,
jugo suave e fardo leve. Mas quem não vê que são puras mentiras? Quanto a eles
próprios, nem sentem o peso das suas leis, visto que, tendo rejeitado totalmente o
temor de Deus, com atrevimento desprezamb igualmente as suas leis e as de Deus.
Mas os que se sentem tocados por algum sentimento de dever quanto à sua salvação, estão muito longe de considerar-se livres, tão presos estão aos seus laços c.
4. Que diferença de Paulo!
Vemos quão diligentemente Paulo1 evitou sobrecarregar as consciências, ao ponto de não ousar prendê-las nem com uma só coisa. E não sem motivo. Certamente
ele sabia que é verdadeira praga mortal impor às consciências a obrigatoriedade
das coisas cuja liberdade lhes foi dada por Deus. Por outro lado, com dificuldade
se poderia contar as numerosas constituições que os que aqui estamos combatendo têm ordenado rigorosamente, sob pena de morte eterna, e às quais eles obrigam os homens como sendo essenciais à salvação. Entre elas há exigências muito
difíceis de cumprir, e, tomadas todas em conjunto, são inexeqüíveis, pelo seu
número excessivamente grande.d Que é que se pode fazer, então, para que não se
sintam premidos de angústia e perplexidade os que se sentem sobrecarregados
com tão duro fardo?
1
1Co 7
f. nisi liberatæ.
a. Solones.136 O segundo dos sete sábios da Grécia talvez tenha sido tomado aí como o legislador típico.
b. secure ac strenue negligunt.
c. laqueis.
d. in turba, tantus est acervus.
136
Sólon. NT
119
Por isso nos cabe concluir brevemente, conforme já ensinamos, que a nossa
consciência não deve ser levada a considerar-se obrigada para com Deus a todas
as constituições feitas com o fim de manter presas as almas crentes perante Deus,
incluindo uma obrigação,a como se ordenassem coisas indispensáveis para a salvação. Ora, são desse jaez todas as constituições hoje chamadas eclesiásticas, as
quais eles dizem que são necessárias para que honremos e sirvamos bem a Deus.
E como são inumeráveis tais constituições, igualmente inumeráveis são os laços
que tendem a manter cativa a nossa alma.
5. Não há então nenhum poder eclesiástico legítimo?
Como, então? Não há nenhum poder eclesiástico? Muitas pessoas simples, que são
as que principalmente desejamos ensinar, espantam-seb com essa nossa objeção.
5.1 – Poder para edificar
Respondemos que na verdade não reconhecemos nenhum poder eclesiástico, a
não se que, como diz o apóstolo Paulo,2 seja dado para edificação, não para destruição. Os que fazem bomc uso desse poder não se consideram nada mais do que
“ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus”.3
5.2 – Definição de poder eclesiástico
Tal poder pode ser bem definido como a administraçãod da Palavra de Deus.e
Porque foi delimitado por Jesus Cristo, quando Ele ordenou a Seus apóstolos que
ensinassem a todas as nações o que Ele lhes havia ordenado”.4 Lei esta que eu
gostaria que os que devem governar a igreja de Deus conhecessem bem, isto é,
que conhecessem bem o que lhes é ordenado. Dessa maneira, a dignidade dos
verdadeiros pastores seria mantida integralmente,f e os que tiranizassem com injustiça o povo de Deus não se gloriariam falsamente do seu poder.
5.3 – Exemplos: profetas, sacerdotes, apóstolos
Porque nesta altura devemos recordar e repetirg o que foi tocado noutro lugarh,
que tudo quanto diz respeito à dignidade ou à autoridade e que é atribuído aos
2
2Co 10 e 13
1Co 4.1
4
Mt 28.20
a. religionem injiciant.
b. cogitatio anxios habet.
c. legitime.
d. ministerium.
e. Instrução de 1537: “Este poder, que na Escritura é atribuído aos pastores, tem todo o seu conteúdo no
ministério da Palavra e a ele se restringe, porque Cristo não deu este poder propriamente aos homens, mas à
Sua Palavra, da qual Ele fez os homens ministros”.
f. præclare: a expressão jurídica francesa é mais expressiva, e, verossimilmente, foi a primeira que se apresentou ao pensamento do escritor.
g. memória repentendum.
h. Acima, capítulos I e VIII.
3
120
As Institutas – Edição Especial
profetas e aos sacerdotes da antiga Lei, como também aos apóstolos e seus sucessores, não é atribuído à pessoa deles, mas ao seu ministério e ao seu ofício,a no
qual foram constituídos, ou, para dizê-lo mais claramente, à Palavra de Deus,
sendo que para administrá-la eles foram chamados. Porque, se os considerarmos
todos por ordem, tanto os profetas e sacerdotes como os apóstolos e discípulos,
veremos que jamais lhes foi dado nenhum poder de comando e de ensino, senão
o poder exercido em nome da Palavra do Senhor e com base nela.
5.4 – O exemplo de Moisés
Foi da vontade de Deus que Moisés,b o primeiro profeta, fosse ouvido.5 Mas que
foi que ele ordenou e anunciou, senão o que recebeu do Senhor? Pois não podia
fazer outra coisa.
5.5 – Poder profético sobre nações e reinos – subordinado ao Senhor
Outras vezes Deus constituiu os Seus profetas sobre os reinos e seus povos, como
por exemplo, Jeremias, a quem disse que o constituiu “para arrancares e derribares, para destruíres e arruinares e também para edificares e para plantares”;6 mas
é acrescentada a causa:d para isso Ele colocou na boca deles a Sua palavra. Pois
nem um só de todos os profetas jamais abriu a boca, a não ser que tivesse recebido antes a palavra de Deus.e E muitas vezes eles repetiam palavras como estas:
“palavra do Senhor”; “sentença do Senhor”; “a boca do Senhor o disse”; “visões
recebidas do Senhor”; “o Senhor dos Exércitos o determinou” ou “o disse”. E
isso com toda razão. Porque Isaías confessou que os seus lábios eram impuros, e
Jeremias disse que não sabia falar, que não passava de uma criança.7 Que é que
poderia sair de suas bocas impuras e infantis, senão coisas tolas ou imundas, se
eles falassem palavras deles mesmos? Mas quando a boca deles começou a ser
órgão ou instrumento do Espírito Santo, tornou-se pura e santa.
5.6 – Bom sumário com uma boa descrição bíblica
Em suma, temos uma bela descrição disto em Ezequiel,8 que nos mostra em que
consistia o ofício dos profetas: “Filho do homem”, diz o Senhor, “eu te dei por
atalaiaa9 sobre a casa de Israel; da minha boca ouvirás a palavra, e os avisarás da
5
Êx 14.15,31c
Jr 1.10
7
Is 6.5; Jr 1.6
8
Ez 3.17
a. Acréscimo feito em 1541.
b. 1536: Mosche (forma hebraica); 1539: Mosen.
c. Citação acrescentada à outra em 1539.
d. simul additur.
e. Domino verba præeunte.
a. speculatorem. Não se deverá ler aqui garde [guarda] em vez de guide [guia], como mais adiante? 137
137
Traduzi por atalaia. NT
6
121
minha parte”. Quando o Senhor lhe ordena que ouça da Sua boca a palavra, não
lhe proíbe inventar o que quer que seja por sua conta? E que significa avisar o
povo da Sua parte, senão que fale de tal maneira que possa ousar gloriar-se de que
a palavra trazida por ele não é dele, mas do Senhor? Não foi a mesma coisa com
Jeremias, com outras palavras? “O profeta que tem sonho conte-o como apenas
sonho; mas aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com
verdade. Que tem a palha com o trigo? diz o Senhor.”10 Semelhantemente, Deus
ordenou que a palavra da Lei fosse solicitada aos sacerdotes; mas Ele acrescentou a razão disso: porque o sacerdote “é mensageiro do Senhor dos Exércitos”.11
Passemos agora aos apóstolos, honrados que são com não poucos títulos, a
saber, que eles são “a luz do mundo, o sal da terra”, que eles devem ser “ouvidos
como Jesus Cristo”, que “o que ligarem ou desligarem na terra, terá sido ligado
ou desligado no céu”.12 Mas eles mesmos se dizem “apóstolos”,b quer dizer, enviados, que não ficam palrando a seu bel-prazer, mas fielmente citam o que é ordenado por Aquele pelo qual eles foram enviados. Cristo lhes disse: “Assim como o
Pai me enviou, eu também vos envio”.13
Pois bem, Ele testifica com vivas palavras que foi enviado pelo Pai, o Deus
vivo. “O meu ensino”, diz Ele, “não é meu, e, sim, daquele que me enviou”.14
Certamente seria fazer um grande ultraje aos apóstolos e aos seus sucessores repudiar essa lei, à qual o próprio Cristo se sujeitou. Se bem que, quanto a Ele, a causa
é muito diferente, porque, sendo Jesus Cristo o Eterno, e sendo o único conselheiro
do Pai, estando sempre no seio do Pai, recebeu o Seu mandamento do Pai de modo
tal que nele estão ocultos todos os tesouros do conhecimento e da sabedoria.15
Dessa fonte extraíram todos os profetas tudo quanto eles ensinaram da doutrina celeste. Dela extraíram todo o conhecimento espirituala que tiveram Adão, Noé,
Abraão, Isaque, Jacó e todos aqueles aos quais aprouve a Deus se manifestar.
5.7 – Jesus Cristo – revelação máxima e final do Pai
Porque, se a palavra de João Batista sempre foi verdadeira, como certamente foi,
“Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem
o revelou”.16 E, considerando as palavras do próprio Cristo, “ninguém conhece o
Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”,17 como os antigos
9
No original francês: guide, guia. Ver nota ª NT
Jr 23.28
11
Dt 17.9-13; Ml 2.7
12
Mt 5.13,14; Lc 10.16; Mt 18.18
13
Jo 20.21
14
Jo 7.16
15
Pv 6.20; Is 9.6; Jo 1.1-3; Cl 2.3.
16
Jo 1.18
17
Mt 11.27
b. Em 1536 e em 1539 se vê aqui a palavra latina, não a palavra grega, que realmente significa enviado(s).
a. celestis doctrinæ. l’
10
122
As Institutas – Edição Especial
pais as entendiam, como pode alguém anunciar os mistérios de Deus, a não ser
que seja ensinado pelo Filho, o único capaz de penetrar os segredos do Pai? Vêse daí que esses santos personagens jamais conheceram a Deus, senão contemplando-o em Seu Filho, como num espelho;b jamais os santos profetas falaram,
senão pelo Espírito do mesmo Filho. Ou, se alguém preferir, pode-se falar assim:
Deus nunca se manifestou aos homens, a não ser por Seu Filho; quer dizer, por
Sua singular Sabedoria, Luz e Verdade. Bem, por mais que Sua Sabedoria tivesse
sido mostrada e revelada antes, de muitas maneiras, todavia nunca tinha ainda
reluzido plenamente. Mas, quando afinal a Sabedoria manifestou-se em carne,
ela nos declarou amplissimamentea tudo o que tem possibilidade de passarb de
Deus para o espírito humano e tudo aquilo em que se deve pensar. Porque certamente o apóstolo não quis dizer algo vulgar quando afirmou: “Havendo Deus,
outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes
últimos dias nos falou pelo Filho”.18 O que ele declarou com essas palavras foi que
daí por diante Deus não falaria mais como antes, por estes ou por aqueles, e que não
juntaria profecias a profecias, nem revelações a revelações, mas que Ele completou
de tal modo toda a perfeição dos Seus ensinamentos em Seu Filho que devemos
reconhecer que este é o derradeiro e eterno testemunho que teremos dele.
5.8 – No período do Novo Testamento, nada de novidade inventada pelos homens!
Por essa razão, todo o período do Novo Testamento, desde quando Jesus apareceu com a pregação do Evangelho até o Dia do Juízo, nos é assinalado (como
acima mencionamos de passo) como “a última hora”, “os últimos tempos” ou
“séculos”, “os últimos dias”,19 a fim de que, plenamente satisfeitos com a perfeição da doutrina de Jesus Cristo, tenhamos o cuidado de não forjar novidades nem
de aceitar algo forjado pelo homem.20 Por isso, não sem motivo, o Pai, enviandonos Seu Filho como um privilégio singular, proclamou-o nosso Mestre e Preceptor, ordenando-nos que a Ele ouçamos, e a homem nenhum. Evidentemente, Ele
nos recomendou Cristo como Mestre e Senhor em poucas palavras, quando disse:
“a ele ouvi”.21 Mas, nessas poucas palavras há mais força e mais importância do
18
Hb 1.1,2
1Jo 2.18; 1Co 10.11c; Hb 1.2
20
“Pois o que é mais destrutivo do que doutrina com um novo gênero de doutrinamento, de modo que não sabem
com certeza onde estão ou para onde vão? Por outro lado, a doutrina fundamental, que não pode ser subvertida,
é aquela que aprendemos de Cristo. Porquanto Cristo é o único fundamento da Igreja. Mas são muitos os que
usam o nome de Cristo como cegos, e reviram de ponta cabeça a verdade universal de Deus.” [J. Calvino,
Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, (1Co 311), p. 110-111]. “Satanás jamais descansa
enquanto não envida esforço para obscurecer, com suas mentiras, a santa doutrina de Cristo, e a vontade de
Deus é que nossa fé seja provada com tais conflitos”. [J. Calvino, Efésios, (Ef 4.14), p. 129]. NE
21
Mt 17.5
b. Comparação empregada por Marguerite d’Angoulême (le Miroir de l’ame pécheresse [O Espelho da Alma
Pecadora], 1531).
a. pleno ore.
b. comprehendi.
19
123
que parece. Porque é como se, tirando-nos da doutrina de todos os homens e declarando-a nula, Ele nos ligasse a Seu Filho e nos mandasse receber e aprender dele
toda a doutrina da salvação, depender exclusivamente dele, e apegar-nosa somente
a Ele – em resumo, o que a palavra comporta: obedecer unicamente a Cristo.
E, para dizer a verdade, que mais poderíamos esperar ou desejar dos homens, depois que a Palavra da Vida, em carne, conviveu familiarmente conosco?
Porventura pode alguém ter a esperança de que a Sabedoria de Deus possa ser
suplantada pelo homem? Antes, o que é necessário é que toda boca humana se
cale depois que falou Aquele em quem, pela vontade do Pai, estão ocultos todos
os tesouros do conhecimento e da sabedoria; e Ele falou em termos próprios da
Sabedoria de Deus (que não tem falha em parte alguma) e do Messias,b de quem
se espera a revelação de todas as coisas. Quer dizer, Ele falou de tal forma que
nada deixou para ser dito pelos que viessem depois dele.22 Digo de novo, pois,
que é necessário que um só Cristo fale, e que todo o mundo se cale; que só
Cristo seja obedecido, e todos os outros sejam abandonados. Porque Ele fala
como quem tem poder.23
Além disso, não se pode dizer nada mais claramente do que o que Ele disse
aos Seus discípulos: “...não sereis chamados mestresc, porque um só é vosso Mestre
[:Cristo].24 E, a fim de incutird esta palavra mais fundo no coração deles, Cristo a
repetiu na mesma passagem. Portanto, o que foi deixado a cargo dos apóstolos, e
atualmente a seus sucessores, é que observem diligentemente a lei ou norma na
qual Cristo restringiu o Seu legado, quando ordenou: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações”, não para ensinar-lhes o que eles inventassem, mas sim
“todas as cousas que vos tenho ordenado”.25 O apóstolo Pedro também não reserva outra coisa, nem para si nem para os outros, tendo sido bem instruído por seu
Mestre sobre qual é o seu ofício.a “Se alguém fala”, diz ele, “fale de acordo com
os oráculos de Deus.”26 Não é isso rejeitar todas as invenções do espírito humano, seja qual for o cérebro do qual provenham? Para que a pura Palavra de Deus
seja ensinada e aprendida na igreja dos fiéis, e para destruir todos os decretos dos
homens, seja qual for a sua posição,b para que só se tenham e mantenham as
ordenanças de Deus.
22
Jo 4.25,26
Mt 17.1,2,18
24
Mt 23.1-12
25
Mt 28.19,20
26
1Pe 4.11
a. hærere.
b. 1536: Meschiah, forma hebraica, mantida em 1539.
c. Rabbi.
d. insideret.
a. quantum sibi liceret.
b. ordinis.
23
124
As Institutas – Edição Especial
5.9 – Poder que se serve de armas espirituais
Aí estão disponíveis as armas espirituais,27 “poderosas em Deus, para destruir
fortalezas;c anulando nós,d28 sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo, e estando prontos para punir toda desobediência, uma vez completa a vossa submissão”.
5.10 – Em que consiste o poder eclesiástico?
Eis aí o poder eclesiástico claramentee exposto, poder outorgado aos pastores da
igreja, qualquer que seja o nome pelo qual são chamados. O que se requer deles é
que, pela Palavra de Deus, pela qual eles são constituídos administradores,f corajosamente ousem enfrentar todas as coisas e constranjam toda glória, altivez e
poder deste mundo a obedecer e a sucumbirg à majestade divina; que pela mesma
Palavra eles tenham o comando [espiritual] sobre todo o mundo,h edifiquem a
casa de Cristo e destruam o reino de Satanás; que apascentem as ovelhas e matem
os lobos;i que conduzam os dóceis mediante ensinamentos e exortações; que se
imponham aos rebeldes e obstinados e os corrijam;29 que liguem e desliguem,
tosquiem e fulminem; mas tudo baseados na Palavra de Deus.30
5.11 – Contraste entre o poder eclesiástico bíblico e o do clero
Ora, se compararmos o poder acima descrito com o daqueles de que se gabam os
tiranos espirituais que se fingem de bispos e curas de almas, nenhuma comparação
ou nenhum contraste será melhor que o que existe entre Cristo31 e Belial.b Vejamos:
27
2Co 10.4-6
Na citação livre feita pelo Autor, ele fala dos pastores como “bons soldados de Deus”. NT
29
“É dever de um bom pastor induzir seu rebanho a seguir seu caminho de maneira pacífica e afável, de modo que
ele permita ser guiado sem o uso da violência. Concordo que às vezes é necessário o uso de severidade, mas ele
[o bom pastor] deve sempre começar pela benignidade, e perseverar nela enquanto seu ouvinte se mostrar
tratável.” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, (2Co 10.2), p. 199]. NE
30
“A primeira regra do ministro é não tentar fazer coisa alguma sem estar baseado nalgum mandamento”. [João
Calvino, As Institutas, (1541), IV.13]. “O pastor necessita de duas vozes: uma para ajuntar as ovelhas, e outra
para espantar os lobos ladrões. A Escritura o mune com os meios de fazer ambas as coisas, e aquele que tem sido
corretamente instruído nela será capaz tanto de governar os que são suscetíveis ao aprendizado quanto a refutar os
inimigos da verdade.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1997, (Tt 1.9), p. 314]. NE
31
2Co 6.15a.
c. munitionum;
d. milites.
e. plane ac perspicue.
f. ministri ac dispensatores.
g. 1539: cedere (1536 tinha, por erro, cœdere).
h. Instrução de 1537: “Que eles ousem corajosamente todas as coisas pela Palavra de Deus, da qual eles são
constituídos despenseiros; que constranjam a todo poder, toda glória e toda altivez do mundo a darem lugar
e a obedecerem à majestade dessa Palavra”, etc.
i. Em Rouen, no portal de S. Maclou, precisamente em 1541, J. Goujon, já pendendo para a Reforma, esculpiu
admiravelmente um redil onde o bom pastor expulsa o ladrão e barra a entrada a um personagem que é... o papa.
a. Esta citação não consta na margem, nem em 1536, nem em 1541. Em seu omentário da epístola diz Calvino:
“O apóstolo toma aqui Belial pelo Diabo”. E acrescenta: “Quanto à etimologia, nem os próprios hebreus
estão de acordo”; (era um nome comum, que significava indignidade, maldade).
b. 1536: Belial; 1539: belial.
28
125
Primeiro: Eles querem que a nossa fé dependac do juízo deles; isto é, que
aceitemos como certo e indubitável o que eles determinarem, de modo que o que
eles aprovarem seja aprovado por nós e por nós reconhecido como certo, e o que
condenarem consideremos condenável e condenado. Daí se tiram estas conclusões: Que a igreja tem autoridade para formular novos artigos de fé; ou seja, que
a autoridade da igreja é igual à da Escritura Sagrada; e que aquele que não aceita
todas as constituiçõesd ou todos os dogmas da igreja, tanto afirmativos como
negativos, como merecedores de fé explícita ou implícita, não é cristão;32 e há
outras coisas semelhantes.
Segundo: A seguir eles pretendem que a nossa consciência se sujeite ao
domínio deles, de tal modo que nos é necessário obedecer a todas as leis ou
normas que eles queiram nos impor.e E então, conforme o seu apetite e o seu
desprezo pela Palavra de Deus, inventam doutrinas e exigem que creiamos nelas,
e estabelecem leis cuja observância declaram obrigatória.33
32
Calvino combate a “fé implícita”, patente na teologia católica, que chama de “espectro papista”, que “separa
a fé da Palavra de Deus”. [J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 10.17), p. 375]. A sua insistência é no
fato de que a nossa fé deve ser “explícita”. No entanto, Calvino ressalta que devido ao fato de que nem tudo
foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cremos permanecerá nesta vida de forma implícita.
Depois de um extenso comentário, nos diz:
“Certamente que não nego (de que ignorância somos cercados!) que muitas cousas nos sejam agora
implícitas, e ainda o hajam de ser, até que, deposta a massa da carne, nos hajamos achegado mais perto à
presença de Deus, cousas essas em que nada pareça mais conveniente que suspender julgamento, mas firmar
o ânimo a manter a unidade com a Igreja. Com este pretexto, porém, adornar com o nome de fé à ignorância
temperada com humildade, é o cúmulo do absurdo. Ora, a fé jaz no conhecimento de Deus e de Cristo (Jo
17.3), não na reverência à Igreja.” (João Calvino, As Institutas, III.I.3. (Vd. também III.2.5ss).
Pelas palavras de Calvino, podemos observar a necessidade latente do ensino e estudo constante da
Palavra de Deus, a fim de que cada homem, sendo como é, responsável diante de Deus, tenha condições de
se posicionar diante de Deus de forma consciente; a fé explícita é patenteada pela Igreja através do ensino da
Palavra. NE
33
“Pois o que é mais destrutivo do que confundir os crentes bem fundamentados na sã doutrina com um novo
gênero de doutrinamento, de modo que não sabem com certeza onde estão ou para onde vão? Por outro lado,
a doutrina fundamental, que não pode ser subvertida, é aquela que aprendemos de Cristo. Porquanto Cristo
é o único fundamento da Igreja. Mas são muitos os que usam o nome de Cristo como cegos, e reviram de
ponta cabeça a verdade universal de Deus.” [J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos,
1996, (1Co 311), p. 110-111]. “O genuíno propósito da doutrina é adequar nossa união a fim de desenvolvermos o varão perfeito, à medida da plena maturidade (EF 4.14). Devemos, naturalmente, revelar indulgência para com aqueles que ainda não experimentaram a Cristo, caso sejam eles incapazes de ingerir
alimento sólido; mas se alguém ainda não cresceu com o passar do tempo, o tal é inescusável se permanecer
perenemente infantil.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 5.12),
p. 141]. “Tudo o que não edifica deve ser rejeitado, ainda que não tenha nenhum outro defeito; e tudo o que
só serve para suscitar controvérsia deve ser duplamente condenado. Tais são todas as questões sutis nas
quais os homens ambiciosos praticam suas habilidades. É mister que lembremos de que todas as doutrinas
devem ser comprovadas mediante esta regra: aquelas que contribuem para a edificação devem ser aprovadas, mas aquelas que ocasionam motivos para controvérsias infrutíferas devem ser rejeitadas como indignas
da Igreja de Deus. Se este houvera sido aplicado há muitos séculos, então, ainda que a religião viesse a se
corromper por muitos erros, ao menos a arte diabólica das controvérsias ferinas, a qual recebeu a aprovação
c. stare aut cadere.
d. dogmata.
e. tulerint.
126
As Institutas – Edição Especial
Quanto ao primeiro ponto, eles se arrogam injustamente essa liberdade de
ensinar novas doutrinasf e de elaborar novos artigos de fé – liberdade que de fato
é restrita aos apóstolos, como anteriormente demonstramos. E se insistem em não
aquiescer a esta verdade, o próprio Paulo declara34 que não deseja dominar os
coríntios, dos quais ele tinha sido constituído apóstolo pelo Senhor. E se fosse
aprovada essa licençag para ensinar, que não se quebrasse esta regra,h que, quando falarem dois ou três profetas, os outros os julguem, e que, se a verdade for
revelada a outro,a que o primeiro se cale.35 Porque, assim fazendo, Paulo não
poupa ninguém cuja autoridade não tenha sido submetida à censura da Palavra de
Deus. Mas, ainda mais claramente, noutro lugar, ele liberta a nossa fé de todas as
tradições e invenções dos homens,36 quando afirma37 que “a fé vem pelo ouvido,
e o ouvido pela palavra de Deus”. Sendo, pois, fato que a fé depende unicamente
da Palavra de Deus, nela põe a sua atenção e nela descansa, que lugar resta à
palavra dos homens?38
Quanto ao poder de constituir leis, visto que esse poder era desconhecido
dos apóstolos e muitas vezes foi proibido pela Palavra de Deus aos ministros da
igreja, fico embasbacado ao ver como os tais que aqui critico se atrevem a arrogar-se esse poder, indo além e acima do exemplo dos apóstolos e contra a claríssima
proibição de Deus. Porque não é nada obscuro o que diz Tiago: “Irmãos, não
faleis mal uns dos outros. Aquele que fala mal do irmão ou julga a seu irmão fala
da teologia escolástica, não haveria prevalecido em grau tão elevado. Pois tal teologia outra coisa não é senão
contendas e vãs especulações sem qualquer conteúdo real de valor. Por mais versado um homem seja nela, mais
miserável o devemos considerar. Estou cônscio dos argumentos plausíveis com que ela é defendida, mas jamais descobrirão que Paulo haja falado em vão ao condenar aqui tudo quanto é da mesma natureza. (...)
Sutilezas desse gênero edificam os homens na soberba e na vaidade, mas não em Deus.” [João Calvino, As
Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 1.4), p. 30]. “Quão arriscado é afastar-se mesmo que seja um fio
de cabelo da doutrina. (...) Em razão da fragilidade da carne, somos excessivamente inclinados a cair, e o
resultado é que Satanás pela instrumentalidade de seus ministros, pronta e facilmente destrói o que os mestres
piedosos constroem com grande e penoso labor.” [J. Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (Tt
1.11), p. 317]. “Ela [a doutrina] só será consistente com a piedade se nos estabelecer no temor e no culto divino,
se edificar nossa fé, se nos exercitar na paciência e na humildade e em todos os deveres do amor.” [João
Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos 1998, (1Tm 6.3), p. 164-165]. “Satanás jamais descansa enquanto não envida esforço para obscurecer, com suas mentiras, a santa doutrina de Cristo, e a vontade de Deus é que
nossa fé seja provada com tais conflitos”. [J. Calvino, Efésios, (Ef 4.14), p. 129]. NE
34
2Co 1.24
35
1Co 14.29,30
36
“Deus nos deu sua Palavra na qual, quando fincamos bem as raízes, permanecemos inamovíveis; os homens,
porém, fazendo uso de suas invenções, nos extraviam em todas as direções.” [João Calvino, Efésios, São
Paulo, Paracletos, 1998, (Ef 4.14), p. 128-129]. NE
37
Rm 10.17, tradução direta.
38
“A fé verdadeira é aquela que ouve a Palavra de Deus e descansa em Sua promessa.” [J. Calvino, Exposição
de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997 (Hb 11.11), p. 318]. “Nossa fé não tem que estar fundamentada no
que nós tenhamos pensado por nós mesmos, senão no que nos foi prometido por Deus.” (J. Calvino, Sermones
Sobre La Obra Salvadora de Cristo, Jenison, Michigan, TELL, 1988, “Sermon nº 13”, p. 156). NE
f. dogmata.
g. libertatem.
h. disciplinam..
a. alteri sedenti.
127
mal da lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não és observador da lei, mas juiz. Um
só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer”.39 Igual declaração
foi feita antes, em Isaías:b “O Senhor é o nosso juiz, o Senhor é o nosso legislador, o Senhor é o nosso Rei; ele nos salvará”.40 Nós ouvimos o pronunciamento
de Tiago: Aquele que tem poder sobre a alma é senhor da vida e da morte, da
salvação e da condenação.
Ora, como é fato que nenhum dos homens pode atribuir a si mesmo tal dignidade, devemos então reconhecer o único Deus como o Rei da nossa alma, sendo
Ele o único que tem poder para salvar e para condenar; ou, como rezam as palavras
de Isaías, é necessário reconhecer a Deus como Rei, Juiz, Legislador e Salvador.
O apóstolo Pedro também,41 advertindo os pastores quanto ao ofício deles,
exorta-os a pastorearem o seu rebanho sem exercer domínio sobre as suas
heranças,a42 expressão com a qual ele se refere à herança de Deus, quer dizer, aos
crentes. Vê-se aí totalmente derribado e desarraigado o poder do qual se gabam
aqueles que querem exaltar-se independentemente da Palavra de Deus. Porque
não foi dada aos apóstolos coisa alguma com base na qual pudessem estabelecer
seu reino e sua própria doutrina, mas o que lhes foi dado foi para exaltar e
magnificar o reino e a doutrina de Deus.43
5.12 – Destaque: Falsa fundamentação da tradição; pretensa base bíblica
para a infalibilidade da igreja e dos seus concílios
Sei bem o que eles respondem para defender-se, que as suas tradições não são
deles mesmos, mas de Deus; pois eles dizem que não ensinam seus sonhos, mas
somente distribuem ao povo cristão o que receberam do Espírito Santo, sendo
que no governo do povo cristão eles foram estabelecidos pela providência de
Deus. E alegam quaisquer motivos para confirmar o que dizem, como estes: que
o Senhor deu grandes títulos à Sua igreja, chamando-lhe santa, sem mancha, sem
ruga e sem defeito;44 e que ela recebeu claras promessas pelas quais Jesus Cristo45
a certificou de que a presença do Seu Espírito não lhe faltaria jamaisb. Por isso,
39
Tg 4.11,12
Is 33.22
41
1Pe 5.1-5
42
No original grego: ?????(????
43
Lembremo-nos de que Deus tem tanta estima pela obediência à Sua Palavra que é da Sua vontade que por ela
sejamos julgados e que por ela julguemos homens e anjos e todo o mundo.” [João Calvino, As Institutas,
(1541), IV.12]. “Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a
liberdade de codificar um sistema de religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de
piedade deve ser tomado da Palavra de Deus.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos,
1999, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53]. NE
44
Ef 5.27
45
Mt 18.20
b. 1536 e 1539 acrescentam: quanquam paulo obscurius.
a. cleros.
b. Estas duas “razões” tinham sido apresentadas em 1536 e em 1539 na ordem inversa.
40
128
As Institutas – Edição Especial
dizem eles, quem duvida da autoridade da igreja faz injúria, não somente a ela
mas também ao Espírito Santo, por cuja direção ela é governada. É por essa razão
que Jesus Cristo quer que seja considerado como gentio ou pagão e publicano
quem não der ouvidos à igrejac. Portanto, segundo a opinião deles, deve-se tomar
como coisa decididad entre todos que, nas coisas necessárias à salvação, a igreja
não pode falhar.
Acresce que tudo o que é dito sobre a igreja [na Bíblia] eles puxam para si,
como se dissesse respeito a eles. Sentem-se forçados a isso porque, se falharem,
a igreja toda irá por terra, visto que ela só se apóia nas costas deles. Por isso vêem
que também precisam assegurar-se da verdadeira validade dos concílios da igreja
como igual à da própria igreja, porque esta é representada por eles. Igualmente é
preciso que não duvidem de que eles são governados diretamente pelo Espírito
Santo, o que garante que eles não podem falhar. Segue-se daí que, semelhantemente,
as suas tradições são, para eles, revelações do Espírito Santo, e inferem que
desprezá-las é desprezar a Deus.
5.13 – Citações bíblicas feitas para pretenso suporte da tradição
E, para dar maior cor ou destaque às suas constituições e credenciá-lasa melhor,
eles querem nos fazer crer que uma grande parte delas descende dos apóstolos,
como, por exemplo, as orações pelos mortos e quase todos os regulamentos que
disciplinam as suas cerimônias. Porque eles têm como coisa líquida e certa que,
após a ascensão de Jesus Cristo, foram reveladas aos apóstolos muitas coisas que
não foram escritas. Baseiam isso nestas palavras do Senhor: “Tenho ainda muito
que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora”.46 E argumentam mais, alegando que há um claro exemplo do modo de agir dos apóstolos em todas as demais coisas, a saber, quando, reunidos, ordenaram, sob a autoridade do concílio,
a todos os gentios que se abstivessem de comer carne de animais oferecidos em
sacrifício aos ídolos, carne de animais sufocados e sangue.47
5.14 – Réplica de Calvino
Mas vou fazer com que todos os que tiverem paciência para considerar esses
argumentos comigo, por ordem, entendam facilmente quão tolos e frívolos eles
são. Certamente eu pediria também aos meus oponentes que procurassem me
seguir aplicando bom discernimento, se eu achasse que haveria algum proveito
em ensiná-los. Mas, visto que toda a intenção deles é manipular a verdade para
servir aos seus interesses por todos os meios a seu alcance, não vou me preocupar
46
Jo 16.12
At 15.20
c. divina voce.
d. constanter convenire.
a. ne quid tentasse videantur sine magnis autoribus. As Constituições Apostólicas, assim chamadas, tratam, no
livro II, das formas ou ordens de culto e, no livro VII, de diversas orações.
47
129
com eles. Só vou fazer esta demonstração aos que têm temor de Deus e zelo pela
verdade,a aos quais me incumbo de ensinar aqui como poderão descartar-se das
manhasb daqueles tais.
Primeiramente devo adverti-los de que não se impressionem facilmente com
a menção do nome da igreja, falsamente assumido,c do qual sem cessar se gabam
esses tiranos que são verdadeiras pragas mortaisd da igreja. Porque eles não alegam outra coisa, senão o que noutros tempos pretendiam os judeus, quando os
profetas de Deus os acusavam de cegueira, impiedade e idolatria. É que, como
aqueles judeus se acobertavam sob o nome do templo, das cerimônias, e do sacerdócio (coisas que lhes pareciam caracterizar bem a igrejae), igualmente aqui nos
fazem oposição atribuindo à igreja sabe-se lá quais máscaras exteriores,f48 sem as
quais a igreja pode subsistir muito bem. Por isso os refutamos simplesmente com
o argumento com o qual Jeremias combateu aquela vã confiança dos judeus, a
saber, que eles não se gloriassem em palavras mentirosas, dizendo: “Templo do
Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor é este”!49
Porque o Senhor não reconhece coisa alguma em lugar algum, exceto onde
a Sua Palavra é ouvida, reverenciada e praticada. Esta sim é uma marca,g50 com a
qual o Senhor assinaloua os Seus, quando disse: “Todo aquele que é da verdade
ouve a minha voz”.51 E também quando disse: “Eu sou o bom pastor; conheço as
minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim. ... As minhas ovelhas ouvem a minha
voz; eu as conheço, e elas me seguem”.52 Pois bem, um pouco antes Ele havia dito
que as ovelhas seguem o seu pastor “porque lhe reconhecem a voz; mas de modo
nenhum seguirão o estranho; antes, fugirão dele, porque não conhecem a voz dos
estranhos”. Por que havemos nós, então, de errar, seguindo os nossos caprichos,
e não discernimos a igreja, sendo que Jesus Cristo a assinalou com um sinalb tão
48
No original francês: “marcas”. Entendo que há um equívoco na nota f, que atribui erro à edição francesa de
1541 e sugere para tradução do latim larva a palavra larve (“larva”). Ora, a palavra latina larva deu larva em
francês e em português, mas seu sentido no latim é, entre outros, fantasma, máscara (de teatro). Mesmo o
francês moderno preserva o sentido de “fantasma” para o termo larve. Confirma isso a nota d da p. 163,
onde se registram as palavras latinas larvis et fucis (de larva e fucus, esta palavra significando, entre outras
coisas, pintura e disfarce). NT
49
Jr 7.4
50
Latim: nota. NT
51
Jo 18.37
52
Jo 10.14,27
a. boni viri et veri studiosi.
b. captionibus.
c. ementito ecclesiæ prætextu.
d. sontici et capitales hostes.
e. metiebantur.
f. larva: 1541 tem, por erro: marques (cf. abaixo, p. 163, nota d), e pouco mais adiante, p. 186, linha 28). [Ver
nota 40, do presente tradutor.]
g. nota.
a. signavit.
b. symbolo.
certo e claro? Este sinal não falhará, mas mostrará com toda a segurança a igreja,
onde quer que Ele esteja. Ao contrário, onde Ele não estiver, não haverá nada que
possa dar um verdadeiro sinal indicativoc da igreja. É pois de toda conveniência
distinguir Jerusalém da Babilônia, a igreja de Cristo da companhia de Satanás,
atentando para as diferenças que o próprio Senhor distinguiu.53 “Quem é de Deus
ouve as palavras de Deus”, disse Ele; “por isso, não me dais ouvidos, porque não
sois de Deus.”54
5.15 – Resumo e teste quanto à réplica supra
Em suma, visto que a igreja é o reino de Cristo, e que Cristo não reina senão por
Sua Palavra, ainda vamos continuar duvidando de que são mentirosas as palavras
daqueles que imaginam o reino de Cristo sem o Seu cetro, quer dizer, sem a Sua
santa Palavra?
Ora, se, rejeitando toda fantasia e falsidade,d consideramos o que é nosso
dever considerar, a saber, que a igreja necessita de Jesus Cristo para nos dirigir e
nos conformar às Suas normas, ficará evidente para nós que não é igreja aquela
que, ultrapassando os limites da Palavra de Deus, diverte-sea em fazer novas leis
e inventar novos modos de servir a Deus.55 Porque esta Lei que uma vez foi outorgada à igreja não é para a eternidade. “Tudo o que eu te ordeno observarás; nada
lhe acrescentarás, nem diminuirás”. E de novo: “Nada acrescentes às suas palavras,” [do Senhor] “para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso”.56 Uma
vez que não se pode negar que essas coisas são ditas à igreja, os que revelam a
ousadia da igreja de fazer acréscimos seus à Palavra de Deus, apesar dessas proibições, não a acusam de rebeliãob contra Deus?
53
Para Calvino A verdadeira pregação da Palavra de Deus e a correta administração dos Sacramentos.
[J. Calvino, As Institutas, (Dedicatória: Carta ao Rei Francisco, X), Livro IV. Capítulo 1, Seções 9-12;
Livro IV, Capítulo 2, Seção 1]. Na Resposta ao Cardeal Sadoleto (01/09/1539), Calvino declara que a igreja
é: “...A assembléia de todos os santos, a qual espalhada por todo o mundo, está dispersa em todo tempo,
unida sem dúvida por uma só doutrina de Cristo, e que por um só Espírito guarda e observa a união da fé,
junto com a concórdia e caridade fraterna”. (Juan Calvino, Respuesta al Cardeal Sadoleto, p. 30-31). Ele
diz que os membros da Igreja são reconhecidos “por sua confissão de fé, pelo exemplo de vida e pela
participação nos sacramentos”, sendo estes sinais indicativos de que tais pessoas “reconhecem ao mesmo
Deus e ao mesmo Cristo que nós” (As Institutas, IV.1.8). A santidade e firmeza da Igreja segundo Calvino,
repousam principalmente em “três coisas”, a saber: “doutrina, disciplina e sacramentos vindo em quarto
lugar as cerimônias para exercitar o povo no dever da piedade.” (Juan Calvino, Respuesta al Cardeal Sadoleto,
p. 32). De modo mais informal, diz: “Onde se professava o Cristianismo, se adorava um único Deus, se
praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério, ali permaneciam as marcas da Igreja.”
[João Calvino, Gálatas, (Gl 1.2), p. 25]. NE
54
Jo 8.47
55
Falando sobre as invenções dos padres igreja católica, Calvino diz: “Certamente tramam uma coisa engenhosa – criar uma religião à parte, composta de cristianismo, judaísmo e paganismo, como que fazendo uma
colcha de retalhos” [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.13]. NE
56
Dt 12.32; Pv 30.6
c. significationem.
d. larvis ac fucis. [Ver nota 40, do presente tradutor.]
a. lascivit ac luxuriat.
b. ansam fuisse.
Mas nós não damos ouvidos às suas mentiras, com as quais eles fazem grande ofensa à verdadeira igreja. O fato é que sabemos que o nome da igreja é falsamente pretendido por eles, quando o que se quer com o nome dela é acobertar a
estulta temeridade dos homens que rompem os limites da Palavra de Deus para
dar lugar às suas invenções. Ora, não são nem difíceis nem ambíguas as palavras
com as quais se proíbe à igreja universal que acrescente ou diminua algo da Palavra de Deus.c
5.16 – Forte argumentação bíblica em prol da exclusividade da Escritura
Sagrada como divinamente credenciada
[1539] Eles dirão que isso foi dito sobre a Lei depois que vieram as profecias. O
que reconheço, contanto que eles entendam que as profecias visam antes cumprir a
Lei que aumentá-la ou diminuí-la. Pois bem, se o Senhor não tolera que se acrescente coisa alguma ao ministério de Moisés nem que se diminua nada dele, embora
o seu ministério ainda fosse marcado por muita obscuridade, enquanto não foi dada
doutrina mais clara pelos profetas, servos de Deus, e finalmente por Seu Filho
amado, por que não havemos de considerar que é proibido de maneira ainda mais
rigorosa acrescentar algo à Lei, aos Profetas, aos Salmos e ao Evangelho?
[1536] Certamente o Senhor não mudou o Seu querer, e Ele há muito tempo
declarou que não há como ofendê-lo mais gravemente do que quando os homens
querem servi-lo por meio das suas próprias invenções. Disso temos numerosos
testemunhos dos profetas, os quais devemos ter permanentemente diante dos nossos
olhos. Em Jeremias:57 “Nada falei a vossos pais, no dia em que os tirei da terra do
Egito, nem lhes ordenei cousa alguma acerca de holocaustosa ou sacrifícios. Mas
isto lhes ordenei, dizendo: Daí ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e
vós sereis o meu povo; andai em todo o caminho que eu vos ordeno, para que
vos vá bem”. E mais: “Conjurando-os,b conjurei a vossos pais: escutai a minha
palavra”.58 Registram-se muitos exemplos semelhantes, mas principalmente o
seguinte é notável, o qual foi escrito por Samuel:c “Tem, porventura, o Senhor
tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que
a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a
obstinação é como idolatria...”.59
c. 1536 acrescentava: cum de Domini cultu et religione agitur.
a. holocausto. [Francês: hosties.]
b. contestando.
c. Indicação acrescentada em 1541.
57
Jr 7.22,23
58
Jr 11.7. [Tradução direta e literal.]
59
1Sm 15.22,23
A Palavra de Deus será sempre o elemento aferidor de toda a nossa alegada liberdade: “O Senhor
nos permite liberdade em relação aos ritos externos, para não concluirmos que o seu culto se acha limitado por essas coisas. Ao mesmo tempo, entretanto, Ele não nos concedeu liberdade ilimitada e descontrola-
132
As Institutas – Edição Especial
da, mas construiu, por assim dizer, cerca em torno dela; ou, de algum modo, restringiu a liberdade que nos
deu, de tal maneira, que somente à luz de sua Palavra é que podemos orientar nossas mentes sobre o que
é correto.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.40), p. 444]. Comentando o texto de João
4.24, nos admoesta para a distinção entre o Deus que é “Espírito” e nós que somos “carne”, mostrando
que não podemos simplesmente querer agradar a Deus com aquilo que nos agrada, visto que “as coisas
que agradam a maioria são objetos da Sua repugnância e aversão”; portanto, devemos ser modestos em
nossos juízos e atos, considerando “com suspeita tudo o que nos está satisfazendo de acordo com a carne.
Além disso, como nós não podemos ascender à altura de Deus, devemos lembrar que nós deveríamos
buscar na palavra dele a regra pela qual somos governados.” [John Calvin, Calvin’s Commentaries, Vol.
XVII, (Jo 4.24), p. 164]. “Devemos ter sempre em mente que, tudo quanto não agrada a Deus, que vise a
seu próprio bem, e somente até onde ele leva a algum outro fim, se porventura é posto no lugar de seu culto
e serviço verdadeiros, é por ele rejeitado e desvanece.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl
40.6), p. 226-227]. Na Dedicatória do seu comentário das Epístolas Pastorais, escreve (1556) ao Príncipe
Eduardo, Duque de Somerset: “Não há outro caminho pelo qual podeis estabelecer o reino da Inglaterra,
da forma a mais sólida possível, senão banindo os ídolos e assentando ali o genuíno culto que Deus
prescreveu para que lho tributemos.” [João Calvino, As Pastorais, Dedicatória, p. 14]. Em outro lugar:
“Deus ordenou como deve ser devidamente adorado, e pelo modo como se deve preservar a liberdade
espiritual que se refere a Deus. Tem-se tornado costume chamar de tradições humanas a todas as disposições relativas ao culto a Deus criadas pelos homens, à parte da Sua Palavra.” [João Calvino, As Institutas,
IV.10.1]. “As tradições humanas, diz ele [Paulo], ocultam o engano sob a aparência de sabedoria. De
onde procede essa aparência enganosa? Do fato de terem sido inventadas por homens. O espírito humano
reconhece nelas o que é propriamente seu e, uma vez reconhecido, abraça-o com mais prazer do que a
qualquer outra coisa verdadeiramente excelente, mas não tão de acordo com a sua vaidade.” [João Calvino,
As Institutas, IV.10.11]. Acontece que o homem costuma ter um alto conceito de si mesmo, achando que o
que lhe agrada ser agradável a Deus, afinal, especula, somos tão inteligentes, criativos e bem intencionados, que o Senhor, certamente gostará do que Lhe oferecemos… Calvino insiste no seu ponto: “Não estou
inadvertido de quão difícil é persuadir o mundo de que Deus rejeita e até mesmo abomina tudo que,
relativamente a Seu culto, é inventado pela razão humana. O erro desse item deve-se a várias razões: ‘todo
mundo tem-se em alta conta’, diz o antigo provérbio. Por essa causa é que o fruto da nossa própria mente
nos delicia, e, além disso, como admite Paulo, esse pretenso culto tem aparência de sabedoria. Portanto,
como tem ele em grande parte um esplendor exterior agradável à vista, é mais aprazível à nossa natureza
carnal do que somente aquele que Deus requer e aprova, mas que é menos ostentoso. (...) Embora demande-se dos verdadeiros adoradores a entrega do coração e da mente, os homens estão sempre querendo
inventar um modo de servir a Deus com característica totalmente diferentes, sendo o objetivo deles cumprirem em Seu favor alguma observância física, mantendo a mente em si mesmos. Além disso, imaginam
que por terem Lhe forçado essa pompa exterior, ficaram, através desse artifício livres de darem a si mesmos. Essa é a razão pela qual submetem-se a inumeráveis observâncias que os fatigam miseravelmente,
sem medida e sem fim, e por que preferem andar erráticos num labirinto perpétuo, em vez de simplesmente
adorarem a Deus em espírito e verdade.” [John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John
Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 218-219]. “Como poderíamos, sem
que pecássemos, deixar de repreender a zombaria que é adorar a Deus com nada mais que gesticulações
exteriores e fantasias humanas? Sabemos o quanto Ele odeia a hipocrisia, contudo ela imperava no culto
fictício que se praticava em toda parte.” [John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John
Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 250]. “Os homens se dão o direito
de imaginar todos os tipos de culto, e de moldá-los e remodelá-los ao seu bel-prazer. Não é pecado exclusivo de nossa era, pois desde o princípio que o mundo porta-se com licenciosamente assim para com Deus.
Ele mesmo proclama que não há nada que valorize mais do que a obediência (1Sm 15.22). Por essa razão,
a todos os modos de culto inventados contrariamente ao Seu mandamento, Ele não apenas os reputa por
vazios, mas condena claramente. Que necessidade tenho eu de aduzir provas numa questão tão óbvia?
Passagens com esse sentido deveriam ser proverbiais entre os cristãos.” . [John Calvin, “The True Method
of Giving Peace to Christendom and Reforming the Church,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany,
OR: Ages Software, 1998), p. 240]. “Bem sei quão difícil é persuadir o mundo de que Deus desaprova
todos os modos de culto não sancionados expressamente pela Sua Palavra. A persuasão oposta, que se
lhes entranha, por assim dizer, nas suas próprias juntas e medulas, é de que tudo aquilo que fazem – desde
que apresente algum tipo de zelo pela honra de Deus – tem em si mesmo aprovação suficiente. Mas Deus
não apenas considera infrutífero, com também abomina totalmente, tudo o que por nossa própria conta
consideramos ser zelo pelo Seu culto. E se estiver em oposição ao Seu mandamento, o que ganhamos indo
133
5.17 – Quem são os verdadeiros inimigos da igreja?
Daí, visto que não se pode desculpar da acusação de impiedade todas as invenções proibidas sob a autoridade da igreja, fácil é inferir que elas são falsamente
atribuídas à igreja. Por essa causa lutamos ousadamented contra essa tirania das
tradições humanas mantidas em nome da igreja. Porque nós não menosprezamos
a igreja, como os nossos adversários (para nos tornarem odiosos) falsamente nos
criticam. Mas nós lhe atribuímos o louvor da obediência, que é o maior louvor
que ela poderia desejar. Os meus adversários é que, eles próprios, cometem ultraje e injúria contra a igreja, fazendo-a rebelde contra o seu Senhor, visto que, a
julgar pelas próprias palavras deles, ela transgrediu o mandamento de Deus. E
note-se que eu deixo de argumentar sobre o fato de que é de uma grande imprudência e de uma astúcia maligna a sua atitude de continuamente fazer-nos oposição sobre o poder da igreja e, enquanto isso, deixar para trás e disfarçar ou ocultar o mandamento que ela recebeu de Deus e a obediência que ela Lhe deve. Mas,
se nós desejamos consentir com a igreja, como nos cabe, devemos antes observar
e considerar o que nos é mandado por Deus, a nós e igualmente a toda a igreja,
para que de comum acordo Lhe obedeçamos. Porque de modo algum se deve
duvidar de que não estaremos realmente de acordo com a igreja se, em tudo e por
tudo, não nos fizermos obedientes a Deus.
15.18 – E as promessas feitas à igreja?
Mas a igreja, dizem eles,a está guarnecida de múltiplas promessas, como, por
exemplo, de jamais ser abandonada por seu esposo, Cristo, e que seria conduzida
em toda a verdade por Seu Espírito. Consideremos, primeiro, que todas as promessas que eles costumam citar em suas alegações não são dadas menos a cada
crente que a toda a multidão deles. Porque, embora o Senhor tenha falado aos
Seus doze apóstolos quando disse: “Eis que estou convosco todos os dias até à
consumação do século”, e: “...eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador,
a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da verdade, que o mundo
não pode receber, porque não no vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele
habita convosco e estará em vós”,60 todavia Ele não fez essas promessas ao grupo
dos doze, mas a cada um deles e a Seus discípulos, os que já tinha escolhido a e os
contra ele? (1Sm 15.22; Mt 15.9)....”. [John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John
Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 198]. “Havendo notado que a Palavra de Deus é o teste que distingue entre o Seu culto verdadeiro e aquilo que é falso e corrompido, prontamente inferimos que a forma total do culto divino dos dias presentes, de modo geral, nada mais é que pura
corrupção. Pois os homens não atentam ao que Deus ordenou, ou ao que Ele aprova, para poder servi-Lo
de modo apropriado, mas dão a si mesmos o direito de inventar modos de culto, e depois os impõem a Ele
como substituto à obediência.” [John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John Calvin
Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 201]. NE
60
Mt 28.20; Jo 14.16,17
d. libere.
a. Acréscimo feito em 1541.
a. assumpserat.
134
As Institutas – Edição Especial
que haveria de escolher depois, Ora, quando os nossos oponentes interpretam tais
promessas repletas de singular consolação de um modo como se não fossem feitas a nenhum cristão individual, mas sim a toda a igreja em conjunto, que outra
coisa fazem, senão impedir a cada cristão a consolação a ele destinada?
Não nego neste ponto que o Senhor, mais que ninguém abundante em misericórdia e bondade, não obstante derrama a sua prodigalidade mais amplamente
sobre uns que sobre outros, como é necessário que aqueles que são ordenados
mestres ou doutores da igreja tenham dons excelentes e singularmente superiores
aos dos demais. Igualmente não nego que os dons de Deus, diversos como são,
são distribuídos diversamente,61 nem tampouco nego, finalmente, que a comunidade dos crentes,b guarnecida dessa diversidade de graças, é, toda ela junta, mais
rica da sabedoria celeste que cada indivíduo separadamente. Mas eu só quero
contestar o fato de que os meus opositores tomam as palavras do Senhor noutro
sentido, não no sentido em que foram ditas.
5.19 – O Senhor conduz os Seus com o Seu Espírito
Em segundo lugar, declaramos, como verdade que é, que o Senhor assiste perpetuamente os Seus e que os conduz com o Seu Espírito; que o Espírito não é
espírito de erro, de ignorância, de mentiras ou de trevas, mas é o Espírito de
revelação, da verdade, de sabedoria e de luz.62 Dele os discípulos de Cristo podem aprender, sem engano, as coisas que lhes são dadas por Deus, quais sejam:
qual é a esperança da sua vocação, quais são as riquezas da glória da herança de
Deus, e quão excelente é a grandeza do Seu poder sobre todos os crentes. 63
5.20 – Múltipla diversidade de dons e ministérios
Acresce que o Senhor constituiu em Sua igreja uma tal diversidade de graças que
há nela sempre qualidades particularmente excelentes em Seus dons para a sua
edificação. Porque Ele lhe deu apóstolos, profetas, mestres ou doutores e pastores, os quais, todos eles, em diferentes ofícios,a mas com a mesma coragem, fossem empregados para a edificação da igreja, até que todos estejamos ligados na
unidade da fé, como também do conhecimento do Filho de Deus, com perfeição
e na medida completa do seu cumprimento em Cristo.64
61
1Co 12.
“.... é Ele que nos ilumina com a Sua luz para nos fazer entender as grandezas da bondade de Deus, que em
Jesus Cristo possuímos. Tão importante é o Seu ministério que com justiça podemos dizer que Ele é a chave
com a qual são abertos para nós os tesouros do reino celestial, e que a Sua iluminação são os olhos do nosso
entendimento, que nos habilitam a contemplar os mencionados tesouros. Por essa causa Ele é agora chamado Penhor e Selo, visto que sela em nosso coração a certeza das promessas. Como também agora Ele é
chamado mestre da verdade, autor da luz, fonte de sabedoria, conhecimento e discernimento” [João Calvino,
As Institutas, (1541), II.4]. NE
63
1Co 2; Ef 1.7-14.
64
Ef 4.11-13.
b. piorum societas.
a. ministeriis.
62
135
6. As limitações do poder na terra requerem humildade
Mas, como acontece que os crentes experimentam apenas um leve sabor e recebem apenas algo incipiente do Espírito Santo nesta carne (mesmo aqueles que,
acima dos demais, transbordam das riquezas das graças de Deus), não nos resta
recurso melhor do que, reconhecendo a sua fraqueza, contenham-se e mantenham unicamente os termos da Palavra de Deus com diligente cuidado, para não
suceder que, procedendo de outra forma, seguindo os seus sentidos, se desviem
logo da reta vereda.
E, para dizer a verdade, não se deve duvidar de que, se eles se afastarem o
mínimo que seja desta Palavra, cometerão erros em muitas coisas. Isto é, com
isso mostrarão que ainda estão vazios do Espírito Santo, sendo que unicamente
por Seu ensino se pode entender os mistérios de Deus. Porque, no que o apóstolo Paulo disse,65 que “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela,
para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água66 pela
palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga,
nem cousa semelhante, porém santa e sem defeito”, ele mostra mais o que Cristo faz em Seus escolhidos todos os dias, do que aquilo que já está completo ou
perfeito. Porque, se dia a dia Ele os santifica, purifica, pule e limpa de suas
manchas, certamente se vê que eles ainda têm rugas e máculas e que ainda falta
algo à sua santificação.
7. Igreja perfeita? Pura zombaria!
Além disso, considerar a igreja como já santa e imaculada, sendo que os seus membros ainda são impuros e estão imundos, não é uma zombaria? Porquanto é verdade
que Cristo lavou a Sua igreja pelo Batismo com água mediante a Palavra da vida.
Quer dizer, Ele a purificou pela remissão dos pecados, purificação da qual o Batismo é símbolo,a e a purificou para santificá-la. Mas desta santificação tão-somente o
começo aparece aqui; seu fim e sua completude67 se realizarão plenamente quando
Cristo, o Santo dos santos, a encher inteiramenteb com a Sua santidade.68
Por isso a igreja, confiante em tais promessas, tem amplamente com que
sustentar a sua fé. É que ela não tem nenhuma dúvida de que conta sempre com o
Espírito Santo como seu excelente guia a dirigi-la no reto caminho. E sua confiança não será frustrada. Porque o Senhor não engana os Seus nem lhes nutrec vã
65
Ef 5.25-27.
No original francês: “por meio do Batismo com água”. NT
67
Neologismo que comecei a usar há alguns anos. NT
68
“Como na presente vida não atingiremos pleno e completo vigor, é mister que façamos progresso até à
morte.” [João Calvino, Efésios, (Ef 4.15), p. 130]. NE
a. cujus ablutionis symbolum.
b. vere et solide.
c. lactet.
66
136
As Institutas – Edição Especial
esperança.69 Por outro lado, reconhecendo a sua ignorância, a igreja está sempre
bem advertida para ouvir com toda a atenção a doutrina do seu Mestre e Esposo,
como é próprio de uma esposa e alunad modesta.
Por isso ela não se julga sábia em si mesma, e não sonha nem pensa coisa
alguma por si mesma, mas tem no que Jesus Cristoe fala o objeto da sua sabedoria. E assim a igreja, como um corpo, desconfiaf das invenções do seu entendimento. E, apoiando-se na Palavra de Deus, não vacila nem padece nenhuma dúvida, mas, com grande certeza e constância, nela repousa e tem segurança.
8. Não basta arrogar-nos o Espírito; é preciso
fazer o teste do Evangelho.
[1539] E de fato é bom considerar qual será o proveito ou a utilidade que o Senhor quer que se receba do Seu Espírito na igreja. “O Espírito Santo,” diz Ele, “a
quem o Pai enviará em meu nome, ... ele vos guiará a toda a verdade...”. Mas
como será isso? Ele acrescenta no contexto: Ele “vos ensinará todas as coisas e
vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito”.70 Portanto, Ele nos mostra que
não devemos esperar do Seu Espírito nada mais que, iluminando o nosso entendimento, Ele nos habilite a receber a verdade da Sua doutrina. É, pois, notável esta
sentença de Crisóstomo:71 “Muitos se gabam do Espírito, mas os que trazem o
que é deles falam dele com falsa pretensão”. Assim como Cristo testificou que
não falava de Si mesmo, visto que a Sua doutrina foi tomada da Lei e dos Profetas, de igual modo, se em nome do Espírito nos for apresentada alguma coisa que
não faça parte do conteúdo do Evangelho, não lhe demos crédito. Porque, assim
como Cristo é o cumprimento da Lei e dos Profetas, assim também o Espírito é o
cumprimento do Evangelho.
9. A autoridade da igreja é fortemente
credenciada por Cristo
[1536] Não é de admirar que Jesus Cristo nos tenha recomendado tão altamente a
autoridade da Sua igreja que determinou que seja considerado gentio e publicano
aquele que transgrida as suas leis, acrescentando uma singular promessa, pela
qual nos assegura: “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou
69
“Deus não frustra a esperança que ele mesmo produz em nossas mentes através da sua Palavra, e que ele não
costuma ser mais liberal em prometer do que em ser fiel na concretização do que prometeu.” [João Calvino,
O Livro de Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 48.8), p. 361]. Também: “Não devemos conceber que Deus será nosso libertador simplesmente porque nossa própria fantasia o sugere. É preciso crer que
ele fará isso só depois de graciosa e espontaneamente se nos oferecer neste caráter.” [João Calvino, O Livro
de Salmos, Vol. 2, (Sl 48.9), p. 363]. NE
70
Jo 14.26; 16.13
71
Sermo de sancto et adorando spiritu.
d. sobriam discipulam.
e. ille.
f. diffidit. 1541 tem, por erro: s’ediffie [corrigido no texto que temos para a presente tradução brasileira]; 1560:
se défiera.
137
no meio deles”.72 Mas é de admirar, sim, como estes mestres enganososa são tão
desaforados que se atrevem a gloriar-se no citado testemunho de Jesus Cristo.
Porque, que é que eles podem concluir disso, senão que não é lícito menosprezar
o consentimento da igreja, a conformidade a ela, porquanto ela jamais se conforma a qualquer outra coisa senão à verdade de Deus? “Deve-se ouvir a igreja”,
dizem eles. Quem o nega? Pois ela não declara nada, senão a Palavra de Deus. Se
os tais pretendem alguma coisa mais, que entendam que estas palavras de Cristo
não os favorecem em nada. Visto, pois, que a promessa é feita aos que se reúnem
em nome de Cristo e que tal comunidade é chamada igreja, não concordamos que
haja outra igreja, senão a que se reúne em nome de Cristo. Ora, é estar algum
grupo reunido em nome de Cristo quando, desprezando o mandamento de Deus
pelo qual Ele proíbe diminuir ou acrescentar algo à Sua Palavra,73 esses pretensos
mestres fabricam suas doutrinas como bem lhes parece?
10. Infalibilidade da Igreja? Só dentro de uma
seriíssima condição!
O que, finalmente, eles inferem, que a igreja não pode errar nas coisas necessárias à salvação, não contestamos. Mas repudiamos fortemente o sentido que eles
atribuem a essas palavras. Nós consideramos que a igreja pode falhar e falha
quando, usando em tudo a sua própria sabedoria, deixa de ser ensinada pelo Espírito Santo, por meio da Palavra de Deus. Já os nossos adversários, ao contrário,
têm isto em mira: Alegam que, visto que a igreja é governada pelo Espírito de
Deus, ela pode seguir seu rumo sem a Palavra;74 e que, seja o que for que ela faça,
não pode pensar nem dizer senão a verdade.
11. Testemunhos do Antigo Testamento.
Agora, ainda que lhes concedêssemos tudo quanto requerem com relação à igreja, nada conseguiriam em prol das suas tradições.a Porque, quanto a isso, que eles
não pensem que a verdade permanecerá na igreja, se não subsistir entre os seus
pastores; nem tampouco que a própria igreja poderá subsistir, se a verdade não se
mostrarb nos concílios gerais – o que, a bem dizer, sempre foi uma realidade, se
os testemunhos a nós deixados pelos profetas sobre os seus tempos são verdadeiros. Disse Isaías: “Os seus atalaiasc são cegos, nada sabem; todos são cães mu72
Mt 18.15-20
Dt 12.32; Pv 30.6; [Ap 22.18,19]
74
“.... porquanto a Igreja não pode ser governada senão pela Palavra.”. [João Calvino, As Pastorais, São Paulo,
Paracletos, 1998 (Tt 1.9), p. 313]. NE
a. nebulonibus.
a. A Declaração Sumária de Farel, no penúltimo artigo, tratava Das tradições humanas.
b. emineat.
c. speculatores.138
138
No original francês: gardes. NT
73
138
As Institutas – Edição Especial
dos, não podem ladrar; sonhadores preguiçosos, gostam de dormir. Tais cães são
gulosos, nunca se fartam; são pastores que nada compreendem, todos se tornam
para o seu caminho, cada um para a sua ganância, todos sem exceção”. 75 Jeremias
também diz: “Tanto o profeta como o sacerdote usam de falsidade”. E mais: “Disseme o Senhor: Os profetas profetizam mentiras em meu nome, nunca os enviei,
nem lhes dei ordem, nem lhes falei”.76 E para não fazermos uma lista muito longa
de citações pertinentes, leia-se o que está escrito no capítulo 22 do Livro de
Ezequiel: Conspiração dos seus profetas há no meio dela; como um leão que
ruge, que arrebata a presa, assim eles devoram as almas; tesouros e cousas preciosas tomam, multiplicam as suas viúvas no meio dela. Os seus sacerdotes transgridem a minha lei e profanam as minhas cousas santas; entre o santo e o profano,
não fazem diferença, nem discernem o imundo do limpo e dos meus sábados
escondem os olhos; e, assim, sou profanado no meio deles. Os seus príncipes no
meio dela são como lobos que arrebatam a presa para derramarem o sangue, para
destruírem as almas e ganharem lucro desonesto. Os seus profetas lhes encobrem
isto com cal por visões falsas, predizendo mentiras e dizendo: Assim diz o Senhor Deus, sem que o Senhor tenha falado”.77
[1539] Miquéias também, tendo experimentado mais que o suficiente quão
mentirosos eram os seus líderes, não menos inquieto e constrangido apresenta o
Senhor falando aos profetas que seduziam o povo, e declara: “Assim diz o Senhor
acerca dos profetas que fazem errar o meu povo... Portanto, se vos fará noite sem
visão, e tereis treva sem adivinhação; por-se-á o sol sobre os profetas, e sobre eles
se enegrecerá o dia. Os videntes se envergonharão, e os adivinhadoresa se confundirão; sim, todos eles cobrirão o seu bigode, porque não há resposta de Deus”.78
[1536] Igualmente, Sofonias denuncia: “Os seus profetas são levianos, homens pérfidos; os seus sacerdotes profanam o santuário e violam a lei”.79
[1539] Essas coisas, dirá alguém, têm seu lugar entre os judeus, mas não
têm relação nenhuma com o nosso tempo. Prouvera a Deus que isso fosse verdade! Mas Pedro declarou que aconteceria o contrário dessa pretensão. Diz ele:
“Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá
entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras”.80 Vocês notaram que ele nos adverte de que o perigo não viria dos
simples e ignorantes dentre o povo,a mas dos que se orgulham do título de mestres e pastores?
75
Is 56.10,11
Jr 6.13; 14.14
77
Ez 22.25-28
78
Mq 3.5-7
79
Sf 3.4
80
2Pe 2.1
a. divini (devins, adivinhos).
a. a plebeis.
76
139
10. Testemunhos do Novo Testamento
[1536] Além disso, quantas vezes foi predito por Cristo e Seus apóstolos em quão
grande perigo a igreja seria posta por seus pastores?81 E (para que, continuando
neste propósito, não enchamos muito papel), somos advertidos não só por exemplos daquela época, mas também de todos os tempos, que nem sempre a verdade
se nutre no seio dos pastores, e que a salvação da igreja não depende totalmente do
seu bom governo.82 Certamente bom seria que eles fossem bons guardiães da paz e
da salvação da igreja, porque para preservá-las eles foram destinados.83 Mas, uma
coisa é cumprir o que se deve, outra coisa é dever fazer o que não se fazb.
11. A questão não é desprezar os pastores,
mas como reconhecê-los
Todavia, não quero que o que digo seja entendido como se eu pretendesse julgar leviana e banal a autoridade dos pastores, nem que seja temerariamente
desprezada. Só desejo que haja bom critério para discernir os verdadeiros pastores, para que não haja precipitação em receber de imediato como pastores os
que assim são chamados. Porque devemos ter como coisa resolvida que todo o
ofício deles se limita à administração da Palavra de Deus,c toda a sua sabedoria
consiste somente no conhecimento dessa Palavra, e toda a sua eloqüência ou
oratória se restringe à pregação da mesma. Se se afastarem dessa norma, serão
tolos em seus sentidos,a gagos em seu falar, traiçoeiros e infiéis em seu ofício,
sejam eles profetas, ou bispos, ou mestres, ou pessoas estabelecidas em dignidade mais altab. Não falo de um ou dois apenas, mas considero que, se toda a
multidão de pastores, em suas assembléias,c pretender exercer o governo da
81
Mt 24.24; At 20.29,30; 2Ts 2.1-12; 1Tm 4.1-5; 2Tm 3.1-9; 4.3,9-18
“A infidelidade ou negligência de um pastor é fatal à Igreja.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo,
Paracletos, 1998, (1Tm 4.16), p. 126]. NE
83
“Nossa salvação é dom de Deus, visto que ela emana exclusivamente dele e é efetuada unicamente por seu
poder, de modo que Ele é o seu único Autor. Mas esse fato não exclui o ministério humano, tampouco nega
que tal ministério possa ser o meio de salvação, porquanto é desse ministério, segundo Paulo diz em outra
parte, que depende o bem-estar da Igreja [Ef 4.11]. Esse ministério é por natureza inteiramente obra de
Deus, pois é Deus quem modela os homens para que sejam bons pastores e os guia por intermédio de seu
Espírito e abençoa seu trabalho para que o mesmo não venha a ser infrutífero. Se um bom pastor é nesse
sentido a salvação daqueles que o ouvem, que os maus e indiferentes saibam que sua ruína será atribuída aos
que têm responsabilidade sobre eles. Pois assim como a salvação de seu rebanho é a coroa do pastor, assim
também todos os que perecem serão requeridos das mãos dos pastores displicentes.” [João Calvino, As
Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 4.16), p. 126-127]. NE
82
b. aliud præstare quod debeas, aliud debere quod non præstes.
c. Instrução de 1537: “Lembremo-nos de que esse poder tem todo o seu conteúdo no ministério da Palavra e a
este se restringe”, etc.
a. fatuos et hebetes. Instr. de 1537: “Se se desviarem, seguindo os seus sonhos e as invenções da sua mente, não
deverão ser mais aceitos como pastores”, etc.
b. Aqui parece admitir a existência não somente de bispos, mas também de arcebispos.
c. pastorum natio: o clero, por seus representantes nos concílios gerais.
140
As Institutas – Edição Especial
igreja pelos seus sentidos, deixando de lado a Palavra de Deus, toda essa multidão só poderá tornar-se insensata.84
12. Se pastor é razão para abandonar a Palavra?
Mas o que aqui combatemos é que eles não têm outra base para dar rédeas soltas
às suas invenções, distanciando-se da Palavra de Deus, senão em que são pastores. Como se Josué não fosse pastor, ao qual foi dito que não se desviasse, nem
para a direita nem para a esquerda, mas que guardasse todos os preceitos da Lei. 85
Entretanto, eles querem fazer crer que a luz da verdade não lhes pode faltar, que
o Espírito Santo repousa sobre eles, que a igreja tem neles o seu suporte e que
sem esse suporte ela não pode subsistir.d Como se os juízos de Deus não tivessem
mais lugar, não podendo mais fazer que sucedam ou sejam válidas as coisas que
os profetas anunciaram e denunciaram aos seus contemporâneos. Como nestes
exemplos: “...os sacerdotes ficarão pasmados, e os profetas, estupefatos”.86 E
também: “...do sacerdote perecerá a lei, e dos anciãos, o conselho”. 87
Igualmente, como se as denúncias feitas por Cristo e Seus apóstolos 88 fossem falsas, a saber: “...virão muitos em meu nome... e enganarão a muitos”, disse
Jesus, e: “... surgirão falsos cristos e falsos profetas”. E o que o apóstolo Paulo
diz aos bispos de Éfeso: “Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se
levantarão homens falando cousas pervertidas para arrastar os discípulos atrás
deles”. E mais: O apóstolo Pedro escreve: “Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras” etc.
Há muitas outras passagens semelhantes, e estes tolosa não entendem que,
com esse seu argumento contra nós,b entoam a mesma canção que outrora entoa84
Note-se o jogo de palavras, a relação das expressões: “exercer o governo... por seus sentidos... só poderá
tornar-se insensata”, isto é, etimologicamente, “sem sentidos”, sem o senso comum, sem bom senso. NT
“Ora, como é possível que os pastores ensinem a outrem se eles mesmos na forem capazes de aprender? E se um homem tão excelente é admoestado a estudar a fim de progredir diariamente, não seria maior
a nossa necessidade em atender a tal conselho? Ai da indolência dos que não examinam atentamente os
oráculos do Espírito, dia e noite, com o fim de aprender neles como desempenhar seu ofício.” [João Calvino,
As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 4.13), p. 123]. “A Escritura é a fonte de toda a sabedoria,
e os pastores terão de extrair dela tudo o que eles expõem diante do seu rebanho.” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 4.13), p. 123]. “Quanto maior for a dificuldade em ministrar fielmente à Igreja, mais solícito
deve ser o pastor em aplicar todas as suas faculdades nesse ministério; não apenas por um curto tempo, mas
com inexaurível perseverança. Paulo lembra a Timóteo que, nesta obra, não há espaço para indolência ou
frouxidão, pois ela requer a máxima solicitude e assiduidade.” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 4.14)
p. 124]. NE
85
Js 1.7,8
86
Jr 4.9
87
Ez 7.26
88
Mt 24.4,24; At 20.29,30; 2Pe 2.1
d. 1536 e 1539 acrescentavam: et secum emori.
a. stolidissimi homines.
b. Frase acrescentada em 1541.
141
vam aqueles que batalhavam contra a Palavra de Deus, fiando-se estes na mesma
autoconfiança de que aqueles se orgulhavam. Porque as palavras daqueles eram:
“Vinde, e forjemos projetos contra Jeremias; porquanto não há de faltar a lei ao
sacerdote, nem o conselho ao sábio, nem a palavra ao profeta”.89
13. Ignaras pretensões quanto aos concílios de bispos
Por isso, o que eles alegam, em suas pretensões quanto aos concílios de bispos,c
não lhes dará proveito algum. E não conseguirão fazer-nos crer no que pretendem, isto é, que eles são governados pelo Espírito Santo, enquanto não provarem
que se reúnem em nome de Cristo. Porque tanto podem conspirar contra Cristo os
maus bispos, como os bons podem estar de acordo em Seu nome.
Confirmam o que dizemos muitos decretos procedentes de tais concílios,
cuja impiedade eu poderia facilmente demonstrar mediante argumentos evidentes. Faria isso se eu não cuidasse de ser breve, como é necessário que o seja neste
tratado.d Todavia, se quisermos por meio de alguns casos ter idéia do que são os
outros, o apóstolo afirma que proibir o casamento e comer certos alimentos é
hipocrisia e mentira diabólica.90
E não adianta os meus adversários, como desculpa, referirem essa sentença
de Paulo aos heregese maniqueus e Taciano,f91 visto que eles reprovaram totalmente o casamento e o uso da carne como alimento, ao passo que os tais que aqui
combato não proíbem o casamento, senão para certas pessoas, nem a carne, senão
para certos dias. Porque eles não podem negar que os seus decretos proíbem o
casamento e a carne como alimento, coisas que Deus criou para serem usadas
com ação de graças. Ora, visto que essas ordenançasa de Satanás foram introduzidas
e promovidas pelosb concílios, que cada um julgue por si mesmo que é que se
89
Jr 18.18.
1Tm 4.1-3 [Note-se a expressão “ensino de demônios”, que Calvino salienta em seu subseqüente comentário. NT.]
91
Maniqueus, de Mani, natural da Mesopotâmia. Por volta de 238 ele fundiu o dualismo oriental (do zoroastrismo)
com o cristianismo, que ele considerava contaminado demais por elementos judaicos. “O maniqueísmo é o
gnosticismo com os elementos cristãos reduzidos ao mínimo e os elementos do dualismo oriental elevados
ao máximo” (Newmann). A terminologia do maniqueísmo é cristã, mas o sentido dos termos é predominantemente próprio do dualismo oriental. Taciano (ou Tatiano) era um culto retórico, hábil na argumentação.
Por volta de 155 converteu-se ao cristianismo, por meio de Justino Mártir. Uns dez anos mais tarde escreveu
uma da mais importantes apologias do cristianismo. Pouco depois, deixou-se perverter pelo gnosticismo
sírio e logo escreveu Diatessarom. Nessa obra ele funde os quatro evangelhos num só e elimina as genealogias
e todas as passagens que falam da descendência judaica de Jesus. Foi influenciado por Márcion. Praticante
de um ascetismo exagerado, condenou o casamento e o uso de alimentos de origem animal. Na Ceia, usava
água em vez de vinho. NT
c. millies concilia. Em 1524 haviam sido publicados em Paris, in-folio, os Decreta et concilia generalia.
d. Em latim: neste opúsculo.139
e. Palavra acrescentada em 1541. Mani e Taciano (Tatiano) viveram muito tempo depois do apóstolo Paulo.
f. Taciano, apologista de tendências gnósticas e ascéticas.
a. oracula.
b. ministério.
139
A nota d vem ilegível no texto que tenho em mãos. NT
90
142
As Institutas – Edição Especial
pode esperar em todas as outras coisas daqueles que uma vez começaram a agir
como instrumentos de Satanás!
14. Concílios contra concílios!
Além disso, haverá necessidade de relatar as contradiçõesc dos concílios entre si,
e demonstrar que o que um faz o outro desfaz? Essa divergência, dizem eles,
decorre do fato de se fazerem leis diferentes conforme os diferentes tempos. Mas
a verdade é que mesmod nas doutrinas há grandes conflitos e contradições entre
os concílios. Como, por exemplo, entre o de Constantinopla, reunido sob a autoridade do imperador Leão,92 e o de Nicéia,e quef se reuniu por ordem da imperatriz Irene, sua mãe, a despeito dele, ou seja, à revelia dele. O primeiro destes
concluiu que se deve derribar e destruir as imagens; o segundo ordenou que elas
fossem restabelecidas. Em resumo, jamais houve bom acordo entre a igreja chamada oriental e a ocidental. Que os meus adversários vejam agora e se gabem,
como é seu costume, de que o Espírito Santo está ligado e atado aos seus concílios!
15. Há algo recomendável nos concílios?
Não obstante, não tenciono aqui condenar todos os concílios, nem rejeitar todas
as sentenças e doutrinas emitidas por eles. Sim, pois eu mesmo percebi nalguns
deles, principalmente nos antigos, um verdadeiro afeto pela piedade e uma grande luz de doutrina, de prudência e de espírito. E não duvido que noutras épocas
também tenham existido bons bispos. Mas aconteceu com estes concílios recentes o que os senadores romanos se queixavam quanto à maneira desordenada pela
qual se conduzia o seu senado,g a saber: a contagem e avaliação das opiniões ou
votos era feita sem se levar em consideração os argumentos, visando-se concluir
ou decidir conforme a pluralidade. O resultado era que muitas vezes a grande
maioria derrotava a melhor solução.a
16. Se o ambiente do melhor concílio foi tão ruim,
que esperar dos demais?
Mesmo quanto aos concílios antigos, que são os mais puros, há alguma coisa
que é preciso censurar, porque os bispos daqueles tempos, embora sábios e
92
Leão III, o Isauro. Imperador bizantino (717-741). Os editos contra as imagens foram emitidos entre os anos
726 a 730. Isso provocou a Querela das Imagens, motivo básico da ruptura com a Igreja Romana. NT.
c. concilia cum conciliis pugnantia.
d. imo.
e. Nicée (francês).140
f. 1536 e 1539: quod. 1541 tem, por erro: qui. [Corrigido no texto que tenho em mãos. NT]
g. senatusconsultis.
a. meliorem partem a majore vinci. Ditado citado muitas vezes com esta forma arcaica: “la greigneur part
surmonte la meilleure”.
140
Francês atual: Nicée; francês arcaico: Nyce – assim no texto francês de Calvino. Em latim: Nicæa ou Nicea. NT
143
prudentes, tinham limitações, como estas: restringindo-se às matériasb para as
quais se reuniam, não davam muita atenção a outras coisas; ou, ocupados com
atividades muito importantes,c não levavam em consideração as menos importantes; ou podiam ter suas falhas por ignorância; ou ainda, às vezes se deixavam arrastard por suas paixões.
Pode parecer que este último motivo é duro demais. Todavia, temos um notável exemplo disso no primeiro concílio de Nicéia, cuja dignidade supera a de todos
os demais.e Porque os bispos, que se haviam reunido ali para defender o principal
artigo da nossa fé, apesar de verem em sua presença Ário, disposto a lutar por sua
posição, e apesar de saberem que para derrotá-lo era necessário que estivessem
bem unidos em consenso,f não obstante, dando até a impressão de que tinham vindo
com o propósito deliberado de agradá-lo e não se preocupando com o perigo que a
igreja corria, puseram-se a morder, acusar e ofender uns aos outros e a apresentar
libelos infamatórios entre si, expondo a juízo público a vida deles. Em suma, deixaram de lado Ário para se desfazerem ou se destruírem uns aos outros.g E todos eles
se mantiveram numa intemperança tão obstinada que suas contendas não teriam
fim, se o imperador Constantino, declarando que não queria mais ser o juizh, não
reprimisse as discussões deles.i — Quanto mais provável é que os outros concílios,
realizados posteriormente, tenham cometido não pequenas faltas!
Quem poderá julgar-me imprudente ao censurar tais erros, visto que os nossos adversários mesmos confessam que os gentios podem errar em coisas não
necessárias à salvação? Mas eu não faço isso sem propósito, porque, embora eles
se vejam constrangidos a confessar aquilo, todavia, uma vez que pretendem que
a determinação dos concílios em todas as coisas e sem exceção seja recebida
como revelação do Espírito Santo, em sua pretensão eles vão além do que comporta a sua confissão. Procedendo dessa forma, qual é a intenção deles, senão a
de nos fazer acreditar que os concílios não podem errar de modo algum? Ou, se
eles erram, a intenção desses tais não é proibira que vejamos a verdade e que
concordemos com o seu erro? Porque, sejam quais forem os títulos – de concílios,
de pastores, de bispos e da igreja (títulos que podem muito bem ser arrogados ou
pretendidos sem mérito nem direito), não nos devem impedir que, tendo nós recebido as necessárias advertências, examinemos o espírito de todos os homens usando
como padrão ou parâmetro a Palavra de Deus, para vermos se eles são de Deus.
b. præsentibus negotiis districti.
c. gravioribus et magis seriis.
d. præcipites ferebantur.
e. 1536 e 1539 têm na margem: “Vide Euseb., in Histor. eccles.”: esta opinião é de Cassiodoro, e consta na
Historia tripartita, livro II.
f. summum momentum esset in eorum concordia, qui ad oppugnandum Arrii [sic] errorem parati venerant.
g. stylum qui in Arrium stringendus erat, in se ipsos dirigere.
h. inquisitionem in eorum vitam, rem esse supra suam cognitionem professus.
i. talem intemperiem laude magis quam objurgatione castigavit.
a. nefas.
144
As Institutas – Edição Especial
17. Sobre a pretensa origem apostólica das tradições
No tocante ao que eles dizem sobre a origem das suas tradições, que elas descendem dos apóstolos, é pura falsidade, visto que toda a doutrina apostólica tem como
objetivo que as consciências não sejam sobrecarregadas com novas tradições e que
a religião cristã não seja contaminada por nossas invenções. E, se devemos acreditar nas histórias antigas,c o que elas atribuem aos apóstolos não só lhes era desconhecido como também nunca ouviram falar a respeito. E eles não têm por que
palrar sustentando que muitas constituições ou normas dos apóstolos foram recebidas pelo uso,d as quais nunca tinham sido escritas, a saber, aquelas coisas que eles
não eram capazes de entender antes da morte de Jesus Cristo, e as quais lhes foram
ensinadas depois da Sua ascensão, mediante revelação do Espírito Santo.93
Que falta de pudor é essa?e Reconheço que os discípulos ainda eram
ignorantesa quando o Senhor lhes disse isso. Mas, continuavam ignorantes quando puseram por escrito a sua doutrina, ao ponto de ser necessário que as falhas ou
lacunas dos seus escritos fossem supridasb oralmente? Mas se eles fizeram constar por escrito as suas doutrinas, depois de já terem sido conduzidos pelo Espírito
de Deus em toda a verdade,94 que é que os impediria de abranger por escrito o
conhecimento total e perfeito da doutrina evangélica para no-la deixar como que
assinada e selada?d
Além disso, eles se tornam ridículos quando, querendo declarar quais são
os grandes mistérios que por tão longo tempo foram desconhecidos dos apóstolos, propõem, em parte, cerimônias tomadas e mescladas das que muito tempo
antes eram comuns entre os judeus e os gentios, e em parte as momices e e as tolas
cerimônias que sabem de cor os padres asininos que não sabemg nem andar nem
falar, e que até os tolosh e as crianças arremedam com tanta propriedade que se
diria que têm toda a ciência em sua cabeça.i
93
Jo 16.12-15
Jo 1. [Ver também Jo 16.13; 20.22; 1Jo 1.1-5.]
95
At 15.29
b. 1536 e 1539141 acrescentavam: quibus hactenus oppressa est ecclesia.
c. 1536 e 1539 acrescentavam: monumentisque.
d. 1536 e 1539 acrescentavam: et moribus.
e. 1536: O impudentiam! 1539: Nam quæ istæc impudentia?
a. indociles.
b. supplere.
c. 1536 e 1539 ac rescentavam: ignorantiæ vitio.
d. 1536 e 1539 tinham somente: consignatam.
e. gesticulationes et aniles cæremoniolas. 1541 tem, por erro: songeries [corrigido no texto que tenho em mãos,
NT]; 1543 e 1549 têm: inanes em lugar de aniles; 1553 e 1560: singeries.
f. insulsi sacrificuli.
g. nare.
h. moriones.
i. ut videri possit nullos esse magis idoneos talium sacrorum antistites.
141
No original das notas: 1539, certamente por equívoco. NT
94
145
18. Citação indevida dos apóstolos
O exemplo dos apóstolos, que eles citam para dar autoridade à sua tirania, em
nada melhora o objetivo deles.
Os apóstolos, dizem eles, e os anciãesj da Igreja Primitiva deram uma ordem que ultrapassa o mandamento de Cristo,95 pois por ela proibiram aos gentios
que comessem coisas sacrificadas a ídolosk, carne de animais sufocados e sangue. Se eles fizeram isso, e o fizeram retamente, por que os seus sucessores não
podem imitá-los sempre que for necessário?
Eu gostaria que eles os imitassem tanto nisso como noutras coisas, pois
nego que no citado exemplo os apóstolos tenham feito algo novo, como éa fácil
provar. Porque naquela mesma passagemb o apóstolo Pedro afirma que é tentar
a Deus impor qualquer carga aos discípulos,96 e estaria renegando a sua própria
afirmação, se deixasse que alguma carga lhes fosse imposta. Ora, seria certamente uma carga, se os apóstolos determinassem por sua autoridade que se
proibisse aos gentios que comessem dos sacrifícios a ídolos,c carne de animal
sufocado e sangue.
Contudo, sempre fica um certo escrúpulo: é que a aparência é de que houve proibição. Mas a solução é simples, bastando que se preste atenção ao sentido da determinaçãod dos apóstolos. Seu primeiro ponto,e o principal, é que era
necessário deixar os gentios em liberdade, sem causar-lhes desânimof nem
inquietá-losg com a exigência de observância da Lei. Até aqui a nossa posição é
favorecida diretamente. A exceção que vem em seguida, quanto aos sacrifícios,
à carne sufocada e ao sangue, não é nova lei, formulada pelos apóstolos; é o
mandamento eterno de Deus, que ordena que se mantenha a caridade, a lei do
amor. E em nada diminui a liberdade dos gentios, mas somente os adverte da
maneira como devem adaptar-se aos seus irmãos para não escandalizá-los com
o uso da sua liberdade.
Notemos então que este é o segundo ponto, qual seja, que a liberdade dos
gentios não prejudique nem escandalize os seus irmãos. Se alguém continuar a
insistir, dizendoh que os apóstolos ordenaram certas coisas, respondo que eles só
mostraram, conforme a conveniência dos tempos, em que coisas os gentios poderiam escandalizar os seus irmãos, para que evitassem esse mal. Mas eles não
96
At 15.10. NT
j. seniores.
k. idolothytis: é a palavra grega empregada por Lucas.
a. promptum est. 1541 tem, por erro: il n’est.
b. in eo concilio.
c. idolothyta.
d. decreti.
e. primum ordine et momento præcipuum.
f. molestiam.
g. obturbandum.
h. Acréscimo ao latim.
146
As Institutas – Edição Especial
acrescentaram nada de novo à Lei eterna de Deus, a qual proíbe o escândalo. a97 É
como sucede nas regiões onde as igrejas ainda têm lacunas em sua obra de
edificação dos crentes, os bons pastores sugerem aos membros já bem instruídos
que não comam carne na sexta-feira, ou não trabalhemb publicamente em dia de
festa, até que os mais fracos na féc, recebendo doutrina mais certa e segura, se
tornem mais firmes.
Sim, pois, embora estas coisas (fora a superstição) sejam em si indiferentes,
contudo, quando praticadas com escândalo para os irmãos fracos, não estão isentas
de pecado. E hoje é o tempo em que os crentes não conseguiriam fazer estas coisasd
na presença dos seus irmãos fracos sem ferir gravemente a consciência deles.
Quem se atreveria a dizer, sem cometer grande calúnia, que ao procederem
dessa forma esses bons pastorese formulam uma nova lei, visto que seu objetivo é
impedir escândalos, os quais são claramente proibidos por Deus? Pode-se dizer a
mesma coisa dos apóstolos, cuja intenção não foi outra senão manter a Lei de
Deus, que manda evitar escândalos. Como se dissessem: “O mandamento de Deus
é que não escandalizeis vossos irmãos fracos. Não podeis comer nada que venha
das ofertas aos ídolos, nem carne sufocada, nem sangue, sem escandalizá-los. Por
isso vos ordenamos, com base na palavra de Deus, que não comais nada que
cause escândalo”.
Paulo é testemunha de que essa foi a intenção daqueles apóstolos, pois,
mostrando concordar com o que eles ordenaram, escreveu: “No tocante à comida
sacrificada a ídolos, sabemos que o ídolo, de si mesmo, nada é no mundo e que
não há senão um só Deus. ... Entretanto, não há esse conhecimento em todos;
porque alguns, por efeito da familiaridade até agora com o ídolo, ainda comem
dessas coisas como a ele sacrificadas; e a consciência destes, por ser fraca, vem a
contaminar-se.a98 ... Vede porém que esta vossa liberdade não venha, de algum
modo, a ser tropeço para os fracos”.99
Quem considerar bem estas coisas não será facilmente enganado por estes
impostoresb que querem fazer crer que, com a referida determinação, os apóstolos começaram a restringir a liberdade da igreja.
97
No original francês que estamos utilizando (de 1541) ocorre aqui, por erro, a frase: “Ora, hoje é o tempo”,
que aparece adequadamente algumas linhas adiante. Ver nota a. NT
98
No original francês: “a consciência... é violada”. Ver nota a. NT
99
1Co 8.4,7,9. NT
a. Estas palavras [“Ora, hoje é tal tempo...”] foram impressas aqui por engano. Elas são repetidas linhas abaixo,
e não corresponderiam aqui, nem, ao texto, nem ao sentido. Este erro, repetido em 1545, não aparece na
edição de 1560.[Na minha tradução omiti a referida frase, só a incluindo em seu lugar próprio: “E hoje é o
tempo em que...”. NT].
b. laborent: trabalham.
c. 1536 e 1539 acrescentavam: quibuscum vivunt.
d. spectaculum hoc proponere.
e. Acréscimo ao latim.
a. polluitur.
b. fucus non fiet qualem faciunt qui suæ tyrannidi apostolos prætexunt.
147
Apesar de não termos dito tudo o que aqui se poderia apresentar, e apesar do
fato de que o que dissemos foi tocado de leve em poucas palavras, todavia eu penso
que abati de tal maneira os nossos adversários que ninguém haverá de duvidar mais
de que o poder espiritual, no qual o papa, com todo o seu reino, se gloria, é uma
tirania blasfemac contra a Palavra de Deus, e injusta sobre a Sua igreja.
19. Em que consiste esse famigerado poder espiritual?
Pois bem, sob o designativo de poder espiritual eu incluo a ousadia com que os
tais procuram semear novas doutrinas,d para desviar o pobre povo da pura simplicidade da Palavra de Deus; seu atrevimento em fazer novas leis, com as
quais eles atormentam cruelmente as pobrese consciências; e, em suma, toda a
sua jurisdição eclesiástica, assim chamada por eles, a qual eles exercem por
meio dos seus sufragâneos100, vigários, penitenciáriosf101 e oficiais. Porque, se
aceitarmos que Cristo reine entre nós, na mesma hora essa dominação será
posta abaixo e destroçada.
Não cabe ao nosso presente propósito tratar da outra espécie de domíniog
exercido por eles, que consiste em posses e patrimônios,h visto que tal domínio
não é exercido sobre a consciência das pessoas. Se bem que se pode ver que nesse
ponto também são semelhantes aos que se chamam nada menos que pastores da
igreja, como gostam de ser chamados.a Não mexo aqui nos vícios pessoais dos
homens propriamente ditos, mas na praga comum ao estado geral deles, visto que
não lhes parece que foram adequadamente ordenados se não forem exaltados
quanto às riquezas e ao orgulho. Vejamos:
Primeiro, têm direito os bispos de isentar-se da justiçab e de seduzir e dirigir
os governos das cidades e do país, bem como outros cargos que absolutamente
não lhes competem? Pois o fardo do seu ofício já é tão grande que, se procurassem desincumbir-se dele perseverantemente, a duras penas conseguiriam fazê-lo.
100
Sufragâneo, do baixo latim suffraganeu. Bispo ou bispado dependente de um prelado metropolitano. NT
Penitenciário: cardeal membro da Sacra Penitenciária, ou, Tribunal da Penitenciária Apostólica, organismo
subordinado à Cúria Romana, cuja função é cuidar da remissão de penas que só podem ser dispensadas pela
Santa Sé. Há também a Cúria Diocesana, pertencente aos bispos. O presidente da Penitenciária é chamado
Grande Penitenciário. Santa Sé é a sede da chefia da Igreja Católica Romana, ou seja, do governo pontifício
ou papal. NT
c. impiam. Cf. Sumário de Farel, XIV: “Vendo que frutos produzem essas constituições e costumes que eles
introduziram, conheceremos a árvore”.
d. Calvino devolve aos seus adversários o argumento que eles pretendiam fazer valer contra os evangélicos e ao
qual ele responde na “Carta ao Rei” (ver o volume I).
e. infelices.
f. Duas palavras acrescentadas ao latim. Penitenciário é o padre designado pelo bispo para examinar certos
casos reservados. [Ver nota 85, NT.]
g. dominationis.
h. latifundiis.
a. Cf. Farel, Sumário, cap. XXXIII: Sobre os falsos pastores.
b. judiciorum cognitionibus.
101
148
As Institutas – Edição Especial
Outra coisa: É conveniente e próprio que, com o séquito de servidores, com suas
pomposas vestimentas, mesas e casas, imitem os príncipes? Sua vida não deve
ser um exemplo de sobriedade, temperança, modéstia e humildade? E mais: É
coisa que cabe ao ofício de pastores e bispos tomarem eles posse não somente de
cidades, burgos e castelos, mas também dos grandes condados e ducados, e finalmente estenderem suas garras até aos reinos e impérios? Pois o inviolável mandamento de Deus não os proíbe de toda cupidez e avareza?102
Mas eles são tão desabusados que se atrevem a tergiversar e a gabar-se de
que é muito conveniente que a dignidade da igreja seja sustentada com tais pompas e que, todavia, com isso eles não ficam tão afastados dos seus encargos que
não possam dedicar-se aos mesmos.
20. Respondendo às gananciosas pretensões do clero
Quanto ao primeiro ponto, se é um apoio próprio e conveniente à sua dignidade
que eles sejam elevados a tais alturas e que sejam respeitados e temidos pelos
maiores príncipes do mundo, terão do que se queixar de Jesus Cristo, a quem
dessa maneira eles desonram insolentemente. Porquanto, conforme a opinião deles,
que maior injúria lhes poderia Ele fazer do que dizer: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não
é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será
esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal
como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a
sua vida em resgate por muitos”?103 Com essas palavras o Senhor lançou para
bem longe do ofício delesa toda a altivez e toda a glória deste mundo.
Quanto ao segundo, eu gostaria que eles pudessem demonstrar na prática o
que dizem, em vez de se gabarem sem propósito. Mas, se não pareceu bem aos
apóstolos104 que se dedicassem a distribuir esmolasb deixando de lado a Palavra
de Deus, com isso os nossos adversários bem se poderiam convencer de que um
homem só não pode exercer ao mesmo tempo os ofícios de um bom príncipe e de
um bom bispo. Porque, se aqueles apóstolos, os quais, segundo a excelência das
graças que receberam de Deus, eram muito mais capazes do que ninguém depois
deles de se desincumbir satisfatoriamente de grandes encargos, e, todavia, reconheceram que não poderiam dedicar-se ao mesmo tempo à administraçãoc da
Palavra e à administração do serviço beneficente de distribuição de esmolasd sem
desfalecerem sob o peso do trabalho, como é que estes tais que, comparados com
102
1Tm 3.1-13; Tt 1.5-9
Mt 20.25-28; Mc 10.42-45; Lc 22.25,26
104
At 6.1-4
a. ministerium.
b. ministrare mensis (Vulgata).
c. ministério.
d. mensarum.
103
149
os apóstolos não são nadae, poderiam sobrepujar cem vezes mais o diligente labor
apostólico? Certamente é uma ousadia deveras temerária tentar realizar tal empresa, e, contudo, é o que tem sido feito. Como o realizam, cada qual o vê; e o
certo é que a conseqüência não pode ser outra, senão que tais administradores,
abandonando o seu próprio cargo, realizam o trabalho de outros.f
Os príncipes que se têm desprendido de seus bens para enriquecer os bispos
revelam com isso algum zelo pela piedade; mas, com essa generosidade
desordenada, eles supriram em demasia a renda da igreja e dessa forma corromperam, ou melhor, reduziram a nada a antiga e genuína integridade.a Por outro
lado, os bispos, que têm abusado do favorecimento dos príncipes e têm tirado
proveito disso, com essa atitude mostram claramente que não são bispos.
21. Sumário da resposta às gananciosas pretensões do clero
Finalmente, para concluir em resumo tudo o que se refere a esses dois poderes –
quanto os tais lutam hoje com tanto empenho e com tanto ânimo para mantê-los,
é fácil ver o que eles buscam. Se eles renunciassem ao seu reino espiritual para
cedê-lo a Jesus Cristo, disso não decorreria nenhum perigo, nem para a glória de
Deus, nem para a sã doutrina, nem quanto ao bem da igreja. Semelhantemente, se
eles se demitissem do seu braço secular, o proveito público da igreja em nada
seria diminuído. Mas como lhes parece que nada poderá andar bem, se eles não
exercerem o domínio (como diz o profeta105) com rigorb e com vigor, eles se
exaltam e se deixam ofuscar por um insaciável e cobiçoso desejo de dominar.
Mas basta dizer isso, de passo, sobre o patrimônio da igreja. Volto-me agora
para o reino espiritual, assunto do qual nos cabe mais propriamente tratar. Na
defesa deste, quando eles se vêem destituídos de todo auxílio da razão, recorrem
a este último e miserável refúgio: alegam que, ainda que eles sejam ignorantes de
entendimentoc e perversos de coração,d todavia permanece a Palavra de Deus, a
qual ordena que obedeçamos aos nossos superiores, e que ainda que eles imponham leis rigorosas e iníquas, todavia o Senhor ordena que façamos tudo o que
dizem os escribas e fariseus, mesmo quando nos prendam a fardos insuportáveis,
os quais eles mesmos não tocam nem com o dedo.106
Que dizer? Ora, se devêssemos aceitar a doutrina indiferentemente de todos
os pastores, que necessidade haveria de que tantas vezes e com tanto zelo fôssemos advertidos pela Palavra de Deus de que não déssemos ouvidos à doutrina dos
105
Ez 34.1-10
Mt 23.1-4
e. homunciones.
f. in aliena castra commigrarent.
a. disciplinam.
b. austeritate.
c. mente et consilio.
d. animo et voluntate.
106
150
As Institutas – Edição Especial
falsos profetas e dos falsos pastores? “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Não
deis ouvidos às palavras dos profetas que entre vós profetizam e vos enchem de
vãs esperanças; falam as visões do seu coração, não o que vem da boca do Senhor”.107 E também: “Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam
disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores”.108 Certamente
não terá sido sem propósito que o apóstolo João nos admoesta a provar “os espíritos se procedem de Deus”.109 Dessa prova não devem ficar isentas as mentiras
do Diabo, pois até os anjos do paraíso a ela estão sujeitos.110 Além disso, esta
palavra do Senhor, “...se um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco”,111
não nos demonstra suficientemente que é bom verificar bem a que pastores ouvimos, e que não é bom apressar-nos a ouvir a todos? Por isso eles não poderão
assustar-nos com os seus títulos de autoridade pelos quais nos querem atrair para
a sua cegueira, pois, ao contrário, vemos o cuidado que tem o Senhor Jesus Cristo
de nos infundir temor para não nos deixarmos levar facilmente pelo erro de alguma outra pessoa, ainda que esta se oculte sob a máscara de um grande nome. 112
Porque, se a palavra do Senhor é verdadeira, todos os “guias cegos”, ainda que
sejam denominados bispos, prelados ou pontífices, não poderão fazer outra coisa
senão lançar à mesma desgraça todos os que os seguirem. a113
22. Uma palavra sobre as leis impostas pelo clero
Resta outro ponto, referente às leis às quais eles dizem que é necessário obedecer b,
mesmo que por vezes injustas e iníquas, pois aí a questão não é consentir em seus
erros, mas unicamente se refere a que, como somos seus subordinados, temos que
obedecer às rigorosas ordens dos nossos superiores, as quais não nos é lícito rejeitar. Mas o Senhor, pela verdade da Sua palavra, nos protege muito bem dessa
cavilação,a dessa maquinação astuta, e nos livra da escravidão, a fim de nos manter
107
Jr 23.16
Mt 7.15
109
1Jo 4.1
110
Gl 1.8
111
Mt 15.14
112
“Quão arriscado é afastar-se mesmo que seja um fio de cabelo da doutrina. (...) Em razão da fragilidade da
carne, somos excessivamente inclinados a cair, e o resultado é que Satanás pela instrumentalidade de seus
ministros, pronta e facilmente destrói o que os mestres piedosos constroem com grande e penoso labor.”
[J. Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (Tt 1.11), p. 317]. NE
113
“Pois o que é mais destrutivo do que confundir os crentes bem fundamentados na sã doutrina com um novo
gênero de doutrinamento, de modo que não sabem com certeza onde estão ou para onde vão? Por outro lado,
a doutrina fundamental, que não pode ser subvertida, é aquela que aprendemos de Cristo. Porquanto Cristo
é o único fundamento da Igreja. Mas são muitos os que usam o nome de Cristo como cegos, e reviram de
ponta cabeça a verdade universal de Deus.” [J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos,
1996, (1Co 311), p. 110-111]. NE
114
Punições assustadoras e prodigiosas. NVI: “...deixarei atônito esse povo...”. NT
a. consortes.
b. 1536 e 1539 acrescentavam: nulla exceptione.
a. Três palavras acrescentadas em 1541.
108
151
em liberdade – liberdade que Ele adquiriu com o Seu sacro sangueb. Porque não é
verdade o que eles maldosamente querem fazer crer – que aí a questão é apenas de
suportar qualquer forte opressão. Sua finalidade é privar a nossa consciência da sua
liberdade, isto é, privá-la do fruto que a nossa consciência recebeu por meio do
sangue de Cristo, e atormentá-la servil e miseravelmente.c Apesar disso, vamos
deixar de lado este ponto, considerando-o de pouca importância.
23. A usurpação que fazem do reino de Deus é intolerável!
Mas, será que consideramos de pequena conseqüência ou pouco importante eles
raptarem de Deus o Seu reino, o que, acima de todas as coisas, Ele quer que seja
preservado? Ora, Seu reino Lhe é arrebatado toda vez que pretendem servi-lod
mediante leis de invenção humana, porquanto Ele quer ser o único Legislador da
honra e do serviçoe ou da adoração que Lhe devem ser prestados. E para que
ninguém pense que este ponto é pouco importante, ouça quanto valor o Senhor
lhe atribui: “Visto que este povo se aproxima de mim”, disse Ele, “e com a sua
boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu
temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente
aprendeu, continuarei a fazer obra maravilhosa no meio deste povo; sim, obra
maravilhosa e um portento;114 de maneira que a sabedoria dos seus sábios perecerá, e a prudência dos seus prudentes se esconderá”.115 Noutra passagem: “Em vão
me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens”.116
Muitos acham estranho o Senhor ameaçar tão asperamente a realização de
uma obra maravilhosa ou assustadora sobre o povo pelo qual é adorado por
meio de mandamentos e doutrinas de homens, como também estranham por
que Ele declara que tal adoração é vã.a Mas, se considerassem que se deve
depender tão-somente da boca de Deus, em matéria de religião, quer dizer, em
matéria de sabedoria celestial, igualmente veriam que o motivo não é fraco,
porque para o Senhor os cultos mal orientados, realizados segundo o apetite
dos homens, são uma verdadeira abominação para Ele.117 Porque, embora os
que O adoram dessa forma mostrem uma certa espécie de humildade ao se
115
Is 9.13,14. [Quanto à frase final, no original francês consta: “será aniquilada”. Na versão francesa de
Louis Segond: “desaparecerá”. NVI: “se desvanecerá”. NT]
116
Mt 15.9
117
“Visto que uma mente crente em Deus jamais encontrará seguro repouso em algo que não seja a Palavra de
Deus, todas as formas de culto engendradas pelo homem, bem como toda as obras que se originam na mente
humana, desaparecem aqui. Condenar tudo quanto não provém de fé significa rejeitar tudo quanto não pode
encontrar o apoio e a aprovação da Palavra de Deus.” (João Calvino, Romanos, 2ª ed. (Rm 14.23), p. 494]. NE
b. Instrução de 1537: “Formuladas com o nome de leis espirituais para prender as consciências, elas não
destroem somente a liberdade, que Cristo adquiriu para nós”, etc.
c. Acréscimo feito em 1541.
d. colitur.
e. 1536 e 1539 têm somente: cultus.
a. frustra coli.
152
As Institutas – Edição Especial
sujeitarem às leis ou normas dos homens para Lhe prestarem honra,b não obstante
não são humildes diante de Deus, porque eles próprios impõem as leis ou normas que observam. Essa é a razão pela qual o apóstolo Paulo nos exorta com
tanto empenho a que nos acautelemos para não sermos enganados pelas tradições dos homens.118 Note-se que para isso ele emprega uma palavra gregac muito própria, que significa serviço religiosod voluntário, isto é, inventado pelo
que os homens querem, sem recorrerem à Palavra de Deus.
24. O culto que Deus requer
Certamente, o que se requer é que tanto a sabedoria geral, de todos os homens,
como a nossa, sejam tidas por nós como estultas,e para que de fato reconheçamos
que somente o Deus único é sábio. Do Seu caminho estão bem longe aqueles que
pensam que podem agradar-lhe com observâncias formuladas ao bel-prazer dos
homens.119 É o que tem sido feito há muito tempo,f a se perder na memória, e
ainda hoje se faz em todos os lugaresg onde a criatura é posta em maior autoridade que o Criador. Em tais lugares a religião dominante (se é que aquilo merece o
nome de religião) está misturada com mais superstições e mais tolices do que
nunca se viu na idolatria pagã. Pois, que é que a razão humana poderia produzir,
senão coisas carnais e tolas, as quais realmente revelam de que autor a vêm?120
****
b. in Dei cultum.
c. ?(???(??????????
d. cultum.
e. É melhor ler: folie, segundo os textos de 1 Coríntios 1.20 e 3.19.
f. 1536: aliquot antea sæculis; 1539: aliquot ante sæculis.
g. in iis locis.
a. autores. 1541 tem, por erro: acteur. [Já corrigido no texto utilizado para a presente tradução. No original das
notas consta 1451, por engano. NT]
118
Cl 2.8
119
“Pelo que, nada de surpreendente, se o Espírito Santo repudie como degenerescências a todos os cultos
inventados pelo arbítrio dos homens, pois que em se tratando dos mistérios celestes, a opinião humanamente
concebida, ainda que nem sempre engendre farto amontoado de erros, é, não obstante, a mãe do erro.”
(J. Calvino, As Institutas, I.5.13). NE
120
“Tal é a característica do mundo, sempre imaginando que Deus pode ser cultuado de uma forma carnal,
como se Ele mesmo fosse carnal.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 4.3)
p. 110]. “... Se Deus só é corretamente adorado à medida que regulamos nossas ações pelo prisma de seus
mandamentos, então de nada nos valerão todas as demais formas de culto que porventura engendrarmos,
as quais ele com toda razão abomina, visto que põe a obediência acima de qualquer sacrifício. O ser
humano deleita-se com suas próprias invenções e (como diz o apóstolo alhures) com suas vãs exibições de
sabedoria; mas aprendemos o que o Juiz celestial declara em oposição a tudo isso, quando nos fala por
boca do apóstolo. Ao denominar o culto que Deus ordena de racional, ele repudia tudo quanto contrarie as
normas de sua Palavra, como sendo mero esforço insensato, insípido e inconseqüente.” [J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 12.1), p. 424-425]. “São falsas e espúrias todas as formas de culto que os
homens permitem a si mesmos inventar movidos por sua ingenuidade, mas que são contrárias ao mandamento de Deus. Quando Deus estabelece que tudo deve ser feito em consonância com sua norma, não nos
é permitido fazer qualquer coisa diferente: Olha que faças tudo segundo o modelo; e: Vê que não faças nada
além do modelo [Ex 25.40]. E assim, ao enfatizar a norma que estabelecer, Deus nos proíbe afastar-nos
dela, mesmo que seja um mínimo. Por essa razão, todas as formas de culto produzidas pelos homens caem
por terra, bem como aquelas coisas a que chamam sacramentos, e contudo não têm sua origem em Deus.”
153
25. Tradições e práticas que invalidam a Palavra de Deus
Além disso, há coisa ainda pior. É que, desde que a religião comece a constituirse dessas vãs tradições, incontinenti se seguirá a essa perversidade outra execrável
maldição – pela qual os fariseus foram censurados por Cristo, quando Ele lhes
disse: “...invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição”.121 Não
combaterei com minhas palavras os nossos legisladores atuais; eu lhes darei a
vitória se puderem escusar-se dizendo que essa acusação de Cristo não se dirige a
eles. Mas, como se escusarão? Pois para eles é pecado cem vezes mais horrível
não se confessarem uma vez por ano ao ouvido122 de um padre, do que levar uma
vida má durante o ano inteiro; é pecado cem vezes mais grave tocar com a ponta
da língua um pedaço de carne na sexta-feira,b do que enlamear diariamente todos
os membros do seu corpo por sua vida licenciosa; cem vezes mais grave ter posto
a mão num trabalho honesto num dia santo,c do que empregar todo o seu corpo na
prática de más ações a semana toda; cem vezes mais grave um sacerdote unir-se
a uma mulher por casamento legítimo, do que conspurcar-se com incontáveis
não podem agradar a Deus.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 8.5), p. 208]. Do mesmo modo,
comentando Dt 4.1: “Só honram legitimamente a Lei os que não aceitam nada que se oponha ao seu
sentido natural. É uma passagem notável, condenando abertamente tudo aquilo que a ingenuidade humana possa inventar para o culto a Deus”. [John Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses,
Vol. II/1, (Dt 4.1), p. 345]. “.... Suponha-se que, deixando de lado todas as máscaras e disfarces, atentássemos verdadeiramente para aquilo que deveria ser a nossa primeira preocupação e que é de grande
importância para nós, isso é, o tipo de igreja que Cristo queria para que pudéssemos nos moldar e ajustar
ao padrão dela. Veríamos, então, facilmente que não é igreja a que, ultrapassando os limites da Palavra
de Deus, formula, a seu irresponsável capricho novas leis [Dt 12.32; Pv 30.6].” (João Calvino, As Institutas,
IV.10.17). “.... se pretendemos ter a Sua aprovação à nossa adoração, esse estatuto, que Ele em todo
lugar reitera com o maior rigor, tem que ser cuidadosamente obedecido. Há uma dupla razão pela qual
o Senhor, ao condenar e proibir todo culto fictício, exige que obedeçamos apenas à Sua voz. A primeira
tende grandemente a estabelecer a Sua autoridade de modo que não sigamos nosso próprio arbítrio, mas
dependamos inteiramente da Sua soberania; e, em segundo lugar, a nossa insensatez é tanta que, ao
sermos deixados livres, tudo de que somos capazes de fazer é desviarmo-nos. E uma vez que tenhamos
nos apartado da reta vereda, não terá fim a nossa peregrinação, até que estejamos soterrados sob uma
multidão de superstições. Portanto – para fazer valer o Seu direito de domínio absoluto – é merecidamente que o Senhor impõe com rigor aquilo que Ele quer que façamos e rejeita, de pronto, todos os
meios humanos em desacordo com Seu mandamento. É também com justiça que define expressamente
quais sejam os nossos limites, para que não nos seja permitido – ao inventarmos perversos modos de
culto – provocar a Sua ira contra nós.” [John Calvin, “The Necessity of Reforming the Church,” John
Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 197-198]. “.... consideramos a
Deus como o único governante das nossas almas; (...) consideramos a Sua lei como a única regra e diretório
para as nossas consciências, não O servindo segundo as tolas invenções de homens.” [John Calvin, “To
the Proctetor Somerset,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), Letters,
229, p. 202]. NE
121
Mt 15.6.
122
Confissão auricular – que se faz em segredo, ao ouvido do confessor. NT
b. Arnaud de Brouosse, isto é, Arnaldo de Brescia,142 pregava da mesma maneira contra a imposição de abstinência demasiado rigorosa, em Saint-Merry, desde 1523.
c. Calvino exigia então uma rigorosa cessação de todas as ocupações no domingo.
142
Arnaldo de Brescia (1100-1155), natural de Brescia, Itália, foi um dos mais importantes adversários
do poder temporal do papado. Foi enforcado, seu corpo foi queimado, e suas cinzas foram lançadas
no Rio Tibre. NT
154
As Institutas – Edição Especial
adultérios; cem vezes mais grave não cumprir completamente um voto de peregrinação, do que faltar com a palavra em todas as suas promessas; cem vezes mais
grave não gastar o seu dinheiro nas desordenadas pompas das suas igrejas, do que
deixar no abandono um pobre que se acha em extrema necessidade; cem vezes
mais grave passar em frente de um ídolo sem tirar o gorro,d do que desprezar todos
os homens do mundo; cem vezes mais grave deixar de ficar longas horas espirrando
palavras sem sentido, do que jamais ter feito uma oração sincera!123
Se isso não é “invalidar a palavra de Deus por causa das suas tradições”,124
que mais o será? Por exemplo, como quando friamente, e como que paraa desencargo de consciência, recomendandob a observância dos mandamentos de Deus,
eles exigem inteira obediência aos seus próprios, e o fazem com tão grande zelo,
como se toda a força da piedade cristã consistisse nisso; também quando, punindo a transgressão da Lei de Deus com leves multas ou suaves penas, já para
castigar a transgressão de um dos seus decretos eles não punem com menos que
prisão, fogoc ou gládio; e ainda quando instruem aqueles que eles mantêm cativos
salto
na ignorância de tal maneira que mostram que preferem ver toda a Lei de Deus
quando...
posta por terra a que isso aconteça com um só ponto dos mandamentos da igreja
(até) a mor(como eles lhes chamam).
te...
pág. 190 do
original
francês.
123
“Não devemos orar a Deus seguindo um formalismo sem vida, mas com ardentes desejos espirituais.” [João
Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 5.7), p. 134].
124
Mt 15.6. [Ver também Mt 7.15-27. NT]
Paulo fala positivamente das “tradições” [para/dosij](2Ts 2.15). A tradição oral consistia basicamente no que Jesus Cristo, os apóstolos e outros servos de Deus ensinavam através de seus sermões, orientações
e comportamento.(1Co 11.2, 23-25; Gl 1.14; 2Ts 2.15; 3.6/Rm 6.17; 16.17; 1Co 15.1-11; Fp 4.9; 1Ts 2.9, 13;
4.11,12). Nestes textos, evidenciam-se que a “tradição” recebida e ensinada amparava-se numa certeza
quanto à sua origem divina. Portanto, as “tradições” mencionadas por Paulo distinguem-se daquelas inventadas e transmitidas pelos homens, as quais são recriminadas por Cristo, visto que estes ensinamentos anulavam a Palavra de Deus (Cf. Mt 15.2,3,6; Mc 7.3,5,8,9,13). A para/dosij é rejeitada todas as vezes que entra
em choque com a Palavra de Deus (Entre tantos outros, vejam-se:. H.M.F. Büchsel, Para/dosij: In: Gerhard
Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Michigan, Eerdmans, 1983
(Reprinted), Vol. II, p. 172-173 e W. Popkes, Para/dosij: In: Horst Balz & Gerhard Schneider, eds. Exegetical
Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan, Eerdmans, 1978-1980, Vol. III, p. 21). Portanto, “A
questão não é se temos tradições, mas se as nossas tradições estão em conflito com o único padrão absoluto
nessas questões: as Escrituras Sagradas” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton,
org. Religião de Poder, São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1998, p. 234). Ridderbos salienta que o conceito
de tradição no Novo Testamento, não está associado ao pensamento grego antes, é orientado pela concepção
judaica, pela qual “o que confere autoridade à tradição não é o peso dos antepassados ou da escola senão
primordialmente o caráter do material dessa tradição....”. [Herman N. Ridderbos, Historia de la Salvación
y Santa Escritura, Buenos Aires, Editorial Escaton, (1973), p. 39]. NE
d. Muitos “evangélicos” foram condenados em Paris por esse fato.
a. 1536 e 1539: defunctorie, 1541 tem, por erro: comment [no texto que tenho em mãos: comme]; 1560:
comme. Creio que a expressão francesa, “comme par acquit”, traduz bem o termo latino, pois significa,
como traduzi no texto, “como que para desencargo de consciência”. Defunctorie significa perfuntoriamente,
negligent emente.
b. 1536 e 1539: commendantes. 1541 tem, por erro: recommandent; 1560: recommandant.[Já corrigido no
texto ora em uso.]
c. incêndio (a fogueira na qual os autores, os leitores e os livros proibidos eram queimados).
d. non ita asperi et inexorabiles.
155
Considere-se, desde logo, que é andar longe da reta vereda tratar dessa forma as coisas secundárias, as quais, quando submetidas ao juízo de Deus, são
indiferentese ou livres, e desprezar e condenar isto e rejeitar aquilo. Ora, como se
não houvesse nisso um grande mal, esses elementos frívolos deste mundo (como
o apóstolo Paulo125 os consideraf), para os nossos adversários têm mais valor do
que as ordenanças celestiais de Deus. Aquele que é absolvido por praticar adultério é condenado pela comida que comeu; uma esposa legítima é proibida àquele
cuja prostituição é permitida. Aí está o fruto dessa obediência, repleta de prevaricação e que tanto se afasta de Deus quanto se inclina para os homens.
Então, indagam eles, por que foi que Jesus Cristo disse que os Seus discípulos carregassem os fardos impostos pelos escribas e fariseus?126 Mas eu lhes faço
outra pergunta: Por que foi que Ele, noutra passagem, recomendou que os Seus
discípulos se acautelassem do fermento dos fariseus,127 querendo com isso dizer
(como o interpreta o evangelista Mateus) que se acautelassem de tudo quanto
eles tinham misturadob com a doutrina deles a pura Palavra de Deus? Que queremos mais, quando Ele nos manda fugirc e acautelar-nos de toda a doutrina deles?
Fica, pois, claramente manifesto que na outra passagem o Senhor não quis que à
consciência dos Seus fossem impostas as tradições características dos fariseus. E
as próprias palavras do texto em nada levam a entender o que esses tais pretendem (se não as empregarmos distorcidamented). O que o Senhor quis dizer com
tais palavras outra coisa não é senão o seguinte: Preparando-se para falar publicamente contra a vida ímpia dos fariseus, Ele ensinou antes os Seus ouvintes que,
embora não vissem nos costumes dos fariseus nada que fosse digno de ser imitado, todavia não deveriam desprezar o que eles ensinassem pela Palavra, quando
se assentavam na cadeira de Moisése, isto é, quando explicavam a Lei.
26. Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
Nada de desordem na igreja!
Mas, visto que não poucos indivíduos simples,f quando ouvem falar que a consciência dos crentes não deve estar presa às tradições humanas e que é inútil querer
servir a Deus por meio delas, acham que isso se aplica igualmente às normas
125
Gl 4. [Notar os versículos 3 e 8-11.]
Mt 23.1-3
127
Mt 16.6,11,12a
e. liberas.
f. Galatis scribens.
a. 1539 tinha, por erro: cap. 21 (1536: 16).
b. 1536 e 1539: admiscerent. 1541 tem por erro: mestoient. (Já corrigido.]
c. fugere. Calvino dizia então fouir por fuir, como Rabelais. Cf. Pantagruel, edição de Plattard, p. 114, linha 5.
d. si non contorqueantur.
e. 1536 e1539: Moseh.
f. Igualmente como aquí, a Instrução de 1537 faz seguir-se o artigo sobre os pastores de um artigo sobre as
tradições humanas.
126
156
As Institutas – Edição Especial
estabelecidas para manter a ordem na igreja, é necessário pôr freio ao seu erro.
Por certo é fácil cometer engano nesse assunto, porquanto não se vê prima facie,
ou seja, à primeira vista, a diferença existente entre as duas espécies. Mas nós
vamos desvendar isso com tanta clareza que doravante ninguém mais será enganado pela semelhança.
Façamos primeiro esta consideração: Se vemos que é necessário que em
todos os agrupamentosa de homens haja um governo regular para manter a paz e
a concórdia entre eles, se em todas as coisas é preciso que haja alguma ordem
para manutenção da honestidade pública, e mesmo certo espírito humanitário
entre os homens, é evidente que estas coisas devem ser observadas principalmente nas igrejas.128 Estas são mantidas primordialmente pela boa ordem, e pela discórdia caem em destruidora indisciplina.b Por isso, se queremos ver a igreja bem
preservada, é preciso que nos empenhemos diligentemente para que tudo “seja
feito com decência e ordem”; é o que ordena o apóstolo Paulo.129
Ora, visto que ocorrem tão grandes contradições de espírito e de juízoc,
nenhum governo poderá subsistir, a não ser que se firme em leis bem definidas; e
nenhuma ordemd poderá manter-se bem, se não houver uma boa forma de governo. Ao invés de sermos contra as leis que visam a esta finalidade, até afirmamos
que sem elas as igrejas logo sofreriam indisciplina e seriam deformadas. Porque
de outro nodo não se poderia fazer o que Paulo determina – que tudo seja feito
“com decência e ordem”, se a ordem e as boas maneirase não forem conservadas
por meio de uma forma bem definida de governo.130
128
“A Igreja é a mãe comum de todos os piedosos, a qual suporta, nutre e governa, no Senhor, tanto a reis como
a seus súditos; e tal coisa é feita através do ministério. Os que negligenciam ou fazem pouco desta ordem
pretendem ser mais sábios do que Cristo. Ai de sua soberba!” [J. Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos,
1998, (Ef 4.12), p. 125]. NE
129
1Co 14.40
130
Mais à frente, Calvino partindo do princípio que as formas de governo (secular e eclesiástico) estão sujeitas
à falhas diz: “É verdade que o rei, ou qualquer indivíduo que exerça o poder monárquico, facilmente baixa
á condição de tirano. Mas é igualmente fácil, quando elementos de alta posição exercem o governo, eles
conspirarem para impor uma dominação iníqua. E ainda é muito mais fácil o surgimento de sedições quando
é o povo que exerce a autoridade”, conclui, mostrando que Deus Se digna em manifestar a Sua providência
através da variedade de governos, aos quais devemos nos submeter: “se deixarmos de fixar o nosso olhar só
numa cidade e observarmos o mundo inteiro ou alguns países, por certo veremos que não é sem a ação da
providência de Deus que diversas regiões sejam governadas por formas diversas de governo. Porque, assim
como não se podem manter os elementos senão com uma proporção e uma temperatura desiguais, assim
também não se pode manter os governos senão por meio de uma certa desigualdade. Contudo, não há
necessidade de demonstrar todos os aspectos disto para aqueles para os quais a vontade de Deus é argumento suficiente. Porque, se é da vontade de Deus constituir reis sobre os reinos, e outras formas de autoridade
sobre povos não sujeitos à monarquia, a nós compete sujeitar-nos e obedecer às autoridades que nos dominarem onde vivermos.” [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.16]. NE
a. societate.
b. bene constituta rerum omnium compositione optime sustinentur.
c. Cum in hominum moribus tanta insit diversitas, tanta in animis varietas, tanta in judiciis ingeniisque pugna.
d. ritus.
e. decorum.
157
27. Porém, a forma de governo não salva ninguém
Todavia, devemos tomar todo o cuidado para que tais observâncias não sejam
consideradas necessárias à salvação, subjugando assim as consciênciasg; nem
tampouco que elas se constituem em honra e cultoh a Deus, como se nelas estivesse localizada a verdadeira piedade. Esta só distingue uma diferença entre as malditas constituições humanas (as quais dissemos que obscurecem a verdadeira religião e destroem as consciênciasi), e as santas ordenanças da igreja (as quais
visam a um destes objetivos: ou conservar a decência ou as boas maneirasa na
companhia dos crentes, ou manter a paz e a concórdia entre elesb). Ora, desde o
momento em que se vê que foi estabelecida uma lei para servir de norma para a
decência, é eliminada a superstição, na qual tropeçam aqueles que regulamentam
o culto a Deus baseados em invenções humanas.
Além disso, uma vez que se entenda que a lei de ordem visa ao uso comum
dos homens, é posta abaixo a falsa opinião de sua obrigação e necessidade
inapelável, opinião que perturbac as consciências quando se considera que as
tradições são essenciais à salvação. Mas, para se ter o conhecimento que vimos
de mencionar, vê-se que o que se requer nada mais é que fomentar entre nós o
amor fraterno, servindo uns aos outros.
28. Exemplos que ilustram e comprovam o ensino
Do primeiro caso temos exemplos no apóstolo Paulo, quando ele proíbe que as
mulheres ensinem publicamente e que se mostrem em público com a cabeça
descoberta.131 E os temos entre nós, diariamente, como o hábito de orar publicamente de joelhos e com a cabeça descoberta; o de não enterrar os mortos
senão depois de os amortalharem; e o de tratar os sacramentos do Senhor
irreverente e indecorosamente.
E então? Haverá tão grande mistério no penteado de uma mulher que seja
um crime tão grande sair ela à rua com a cabeça descoberta? Será que o silêncio
lhe é exigido de tal maneira que ela não pode falar sem cometer grave ofensa? E
a religião exigirá de tal modo que as orações sejam feitas de joelhos e que o
cadáver seja envolvido em mortalha que não se pode deixar de fazer isso sem
cometer crime? É certo que não. Porque, se a necessidade do seu próximo é tão
urgente que a mulher não se pode dar ao luxo de cobrir-se com o véu, ela não peca
131
1Co 11.2-16; 14.34,35; 1Tm 2.8-15
f. 1536 e 1539 acrescentavam: additis observationibus, ceu vinculis quibusdam.
g. religione obstringant.
h. 1536 e 1539 têm somente: cultus.
i. subverti.
a. decorum.
b. ut ipsam hominum communitatem, velut quædam humanitatis vincula, retineant.
c. ingentem terrorem injiciebat.
158
As Institutas – Edição Especial
em nada se, com a cabeça descoberta, for acudi-lo e ajudá-lo. E alguma vez vai
chegar a hora em que seria melhor que ela falasse do que se calasse a. Também
não há nenhum impedimento para que um enfermo deixe de ajoelhar-se para orar
adequadamente. Finalmente, se não houver nenhum pano para envolver um morto, melhor será enterrá-lo nu do que deixá-lo insepulto.b
Não obstante, para nos conduzirmos bem nestas coisas,c devemos seguir o
costume e as leis do país em que vivemos e uma determinada regra de modéstia
que nos indique o que convém seguir e o que convém evitar. Nestas coisas, se
alguém errar por esquecimento ou por inadvertência, não estará cometendo pecado; se for por desprezo, que a sua obstinação seja desprezada. Se alguém contestar e pretender ser mais sábio do que deve, que considere se pode estar com a
razão diante de Deus. Quanto a nós, contentemo-nos com a palavra do apóstolo
Paulo: “...se alguém quer ser contencioso, saiba que não temos tal costume, nem
as igrejas de Deus”.132
Os exemplos da segunda espécie são: as horas estabelecidas para as orações
públicas, as prédicas e os batismos,d os locais também a isso destinados, o cântico
de salmos e hinose, os dias marcados para a ministração da Ceia do Senhor,f a
maneirag de praticar a excomunhão, e outras coisas semelhantes. Pouco importa
quais são os dias e as horas, qual é o tipo de construção do edifício, e que salmos
se cantam num dia ou noutro. Todavia, convém que sejam determinados os dias e
as horas, e que o local tenha capacidade para acolher a todos, se houver a intenção de manter a paz e a concórdia. Porquanto, que tremenda complicação a confusão destas coisas produzirá, se se deixar que cada qual mude a seu bel-prazer as
coisas pertencentes à ordem pública! Pois é certo que jamais aconteceu nem acontecerá que a todos agrade a mesma decisão, se as coisas forem deixadas indefinidasa
para que cada um decida como quiser.
29. Compreender a origem de um erro
não justifica permanecer nele
É necessário, então, que, com diligente empenho, haja cuidado para que não ocorra
nenhum erro que obscureça ou macule a pura integridade dessa praxe. Isso se
132
1Co 11.16
a. 1536 e 1539 acrescentavam: alibi.
b. expectare dum inhumatus putrescat.
c. Frase acrescentada em 1541.
d. 1536 e 1539 acrescentavam: in ipsis concionibus quies ac silentium.
e. 1536 e 1539 têm somente: hymnorum. Em 1539, Calvino publicou em Estrasburgo “Aulcuns psaumes”,
alguns salmos (sem outros cantos senão os extraídos da Escritura Sagrada).
f. Por exemplo, só nas grandes festas, ou todos os meses, ou todos os domingos, como era desejo de Calvino
(ver acima, cap. V).
g. discipline. Farel tinha publicado em 1533 a Manière et fasson (Modo e Forma), que é a mais antiga liturgia
reformada.
a. 1536 e 1539 acrescentavam: velut in médio positæ.
159
poderá fazer se todas as cerimônias das quais se fizer uso contiverem alguma
utilidade manifesta; se se receber bem pouco;b e, principalmente, se o pastor,
vigilante, procurar fechar com boa doutrina o caminho para todas as opiniões
falsas. Pois bem, este conhecimento fará com que cada um de nós tenha toda a
liberdade em todas estas coisas. E, contudo, fará com que cada um imponha voluntariamente alguma obrigação à sua própria liberdade,c caso a decência ou as
boas maneirasd de que falamos, ou o amor, o exijam. Além disso, será motivo
para que pratiquemos as referidas coisas sem nenhuma superstição e sem constranger com exagerado rigor os outros a praticá-las; para que consideremos a
adoração que prestamos a Deus como muito mais valiosa que a multidão de cerimônias; para que uma igreja não despreze a outra pela diferença da formae exterior das referidas práticas;133 e, finalmente, tal conhecimento será motivo para
que, não estabelecendo uma lei perpétua, destinemos à edificação da igreja toda
a finalidade e a utilização das cerimônias, dispostos a consentir, não somente que
haja mudança nalguma cerimônia, mas também que todas as que vínhamos usando sejam vetadas e abolidasf.
Sim, porque, a época atual nos propicia marcante experiência no sentido de
que, conforme a oportunidade da ocasião, será muito bom pôr abaixog algumas
observâncias que em si não são nem indecorosas nem más. Porquanto no passado
houve tanta cegueira e ignorância que as igrejas ficaram agarradas às cerimônias
com uma idéia tão corrompida e com um zelo tão obstinado que a duras penas se
poderão purificar das horríveis superstições nas quais se envolveram, e não o
serão sem que grande parte das cerimônias seja eliminada, cerimônias que outrora possivelmente não tenham sido instituídas sem motivo e as quais em si não são
censuráveis. Entretanto, se alguém insistir em que sejam preservadas, sua teimosia será nociva e má. Porque, se se trata de considerá-las pelo que elas são em si
mesmas, não há nelas mal nenhum. Mas se forem consideradas em termos das
circunstâncias que as cercam, logo se verá que se enraizou no coração dos homens um tal erro causado pelo mau uso das cerimônias que não será fácil corrigir.
133
“Deus não requer meras cerimônias daqueles que o servem, mas que se satisfaz unicamente com a sinceridade do coração, com a fé e santidade da vida. E Deus não tem prazer algum meramente no santuário visível,
no altar, na queima de incenso, na morte de animais, na iluminação, nos aparelhos caros e nas abluções
externas. À luz disto ele conclui que precisava ser guiado por outro princípio, e observar outra regra no culto
divino, além de uma mera atenção a essas coisas, para que pudesse dedicar-se totalmente a Deus.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.6), p. 225]. Ver também: John Calvin, “The True Method of
Giving Peace to Christendom and Reforming the Church,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany,
OR: Ages Software, 1998), p. 240. NE
b. parcíssima.
c. ut sua cuique nostrum in his rebus omnibus libertas constet.
d. to. pre,pon
e. disciplinæ.
f. 1536 e 1539 têm somente: inverti.
g. abrogari.
160
As Institutas – Edição Especial
Só eliminando os objetosa que sempre se prestam a dar continuidade a tudo o que
diz respeito a errar.134
30. O exemplo da destruição da serpente de bronze
Por essa causa Ezequias foi louvado,135 pelo testemunho do Espírito Santo, por
haver destruído a serpente de bronze que tinha sido erguida por Moisésb por ordem de Deus. Por quê? Porque, em vez de ser preservada para lembrança c da
manifestação da graça de Deus, o que não seria mau, passou a servir à idolatria do
povo. Como o bom rei não viu outro meio de corrigir a ímpia prática do seu povo,
no mau uso que estava fazendo da referida serpente, não foi menor o motivo que
ele teve para destruí-la que o que tivera Moisés para levantá-la. Porque, para
curar os juízos perversos dos homens, é necessário tratá-los como se tratam os
estômagos fracos, privando-os de alimentos de difícil digestão, os quais são bons
para os estômagos sadios e fortes.
134
“Os homens se dispõem naturalmente a exibição exterior da religião, e, medindo Deus segundo a própria
medida deles, imaginam que alguma atenção para as cerimônias constitui a suma de seu dever.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.1-2), p. 398]. NE
135
2Rs 18.3,4
a. subductis e conspectu spectaculis.
b. Mose.
c. mnhmo,sunon.
161
CAPÍTULO XVI
SOBRE O GOVERNO CIVILa
1. Transição do governo eclesiástico para o
governo civil. Distinção.
[1536] Sendo, pois, que foram constituídos para o homem dois regimes e que já
falamos suficientementeb sobre o primeiro, que reside na alma, ou no homem
interior, e que concerne à vida eterna, aqui se requer que também exponhamos
a. A teoria do governo e do estado já fora resumida por Calvino em seu comentário sobre a clemência (De
Clementia) em 1532 (Op. Calv., V, 96); ele segue Sêneca, Aristóteles e sobretudo Cícero: “Quid enim est
civitas? Nempe concilium cœtusve hominum jure sociatus, inquit Cícero in Somnio Scipionis; quam
definitionem sumpsit ex Aristotele in Politicis. Si igitur non omnis societas est civitas, sed ea tantum quæ
probis moribus et æquis legibus vivat, nimirum qui legibus non obtemperant, cives non sunt, sed ex corpore
legitimæ civitatis abrupti”. J. Clichtove tinha composto um De Regis officio opusculum, quid optimum
quemque regem deceat, Paris, H. Estienne, 1519.
Lutero tinha publicado em 1523 o tratado Von weltlicher Obrigkeit, traduzido em 1525 (De sublimiore
mundi potestæ). Já em 1523 tinha aparecido em francês, em Basiléia, la Summe de l’Escripture..., com une
information comment tous estatz doibvent vivre selon l’Evangile (Suma da Escritura..., com uma informação sobre como todos os estados devem viver conforme o Evangelho).
Farel, na Declaração Sumária, de 1525, discorre bastante longamente Sobre o gládio e o poder da
justiça, e sobre a superioridade corporal. Lê-se ali, particularmente: “Para a punição dos maus, Deus
instituiu o poder do gládio... Todos Lhe devem obedecer e estar sujeitos ao referido poder nas coisas subordinadas ao gládio – o corpo e os bens materiais, quer a justiça proceda bem quer proceda mal, quando, ao lhe
darmos obediência, não estivermos indo contra os mandamentos de Deus”.
Lambert d’Avignon, em sua Suma Cristã, de 1529, trata brevemente de O Estado dos Reis, Príncipes
e Senhores. Veja-se este capítulo XXVIII, in extenso: “Conquanto libertados por Jesus Cristo, devemos
sujeição a todos, segundo Deus, e principalmente aos reis, príncipes e senhores, colocados sobre nossas
cabeças pela providência divina (Sl 65). Sendo o seu estado procedente de Deus, para vingança contra os
maus e para honra e ajuda aos bons, a eles devem ser pagos tributos, pedágio, taxas e outras coisas semelhantes. E devemos obedecer a eles, sejam bons ou maus, se for público e notório que o que ordenam não é
mau (Mt 22; Rm 13 e 1Pe 2).”
162
As Institutas – Edição Especial
claramente o segundo, que visa a unicamente estabelecer uma justiça civil e aperfeiçoar os costumes exteriores.
Primeiro, antes de avançar no assunto, devemos recordar a distinção anteriormente exposta para não suceder o que comumente sucede com muitos, o erro
de confundir inconsideradamente as duas coisas, as quais são totalmente diferentes. Porque eles,c quando ouvem no Evangelho a promessa de uma liberdade que
não reconhece rei nem senhor entre os homens mas se atém unicamente a Cristo,
acham que não gozarão nenhum fruto dessa liberdade enquanto virem algum
poder acima deles. E pensam que nada irá bem, a não ser que todo o mundo se
converta a uma nova forma, na qual não haja nem julgamentos, nem leis, nem
magistrados nem coisa alguma semelhante pela qual considerem que a sua liberdaEis o que dizia em 1530 a Confissão de Augsburgo (citamos a primeira tradução francesa, pouco conhecida (feita por Dalichamps), impressa em Estrasburgo em 1542). Art. XVI: “Sobre matéria civil elas ensinam
que os poderes legítimos são ordenanças de Deus e boas obras, como diz o apóstolo Paulo. Pelo que elas
ensinam que é lícito aos cristãos ter ofício de magistrado, exercer juízos, julgar as coisas pelas leis imperiais e
outras, ordenar as penas pela justiça, fazer contratos, ter propriedade, jurar quando o magistrado o requer, etc.
“Elas condenam os anabatistas, que proíbem aos cristãos os ofícios civis...
“Os cristãos devem, necessariamente, obedecer aos magistrados e às leis, menos quando mandam
pecar”, etc.
Em Lausanne, em outubro de 1536, a tese VIII afixada pelas autoridades berneses trazia: (A Escritura
Sagrada) “reconhece o magistrado civil ordenado por Deus somente como necessário para conservar a paz e
a tranqüilidade da República, ao qual Ele quer e ordena que todos obedeçam, contanto que ele não ordene
nada que seja contra Deus”. Calvino, presente à “discussão”, não pediu a palavra com relação a essa proposta. Em 1539, Calvino escreveria: “A razão porque devemos estar sujeitos aos magistrados é que eles foram
designados pela ordenação divina. Se a vontade de Deus é que o mundo seja governado desta maneira, então
aqueles que desprezam a sua autoridade estão se esforçando por subverter a ordem divina, estão, portanto,
resistindo a Deus mesmo, já que desprezar a providência daquele que é o Autor do governo civil é declarar
guerra contra ele mesmo.”122 E, em 1556: “Devemos não só orar por aqueles que são dignos, mas também
pedir a Deus que converta os maus em bons governantes. Devemos manter sempre este princípio: que os
magistrados são designados por Deus para a proteção da religião, da paz e da decência públicas, precisamente como a terra foi ordenada para produzir o alimento. Por conseguinte, quando oramos pelo pão de cada
dia, pedimos a Deus que faça a terra fértil, ministrando-lhe sua bênção, assim devemos considerar os magistrados como meios ordinários que Deus, em sua providência, ordenou para conceder-nos as demais bênçãos.
A isso deve-se acrescentar que, se somos privados daquelas bênçãos que Paulo atribui como dever dos
magistrados no-las fornecer, a culpa é nossa. É a ira de Deus que faz com que os magistrados nos sejam
inúteis, da mesma forma que faz com que a terra seja estéril. Portanto, devemos orar pela remoção dos
castigos que nos sobrevêm em virtude de nossos pecados pessoais.”123 e: “Os magistrados e todos quantos
desempenham algum ofício na magistratura são aqui lembrados de seu dever. Não basta que restrinjam a
injustiça, dando a cada um o que é devidamente seu, e mantenham a paz, se não são igualmente zelosos em
promover a religião e em regulamentar os costumes pelo uso de uma disciplina construtiva.”124
Em 1537, a Instrução e Confissão de Fé em uso na Igreja de Genebra, fala, no último artigo, Sobre o
Magistrado (4 páginas).
O capítulo XV das Institutas, em 1539, é intitulado: De política administratione (Sobre a Administração Política). Reproduz, com dois breves acréscimos, o texto de 1536.
Em 1540, Melanchthon publicaria seu livro De auctoritate principum (Sobre a Autoridade dos Príncipes).
b. satis jam multa verba.
c. Os anabatistas, entre outros.
121
2Co 7.23
122
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 13.1), p. 450. NE
123
João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 2.2), p. 58.
124
João Calvino, As Pastorais, (1Tm 2.2), p. 58.
163
de está sendo impedida. Mas quem souber discernir entre corpo e alma, entre esta
presente vida transitória e a vida por vir, que é eterna, entenderá igualmente muito
bem que o reino espiritual de Cristo e a ordem civil são coisas muito diferentes.
Visto, pois, que é uma loucura judaica cercar e encerrar o reino de Cristo
sob os elementos deste mundo, e nós, antes, pensamos (como a Escritura nos
ensina amplamente)1 que o fruto que nos cabe receber da graça de Cristo é espiritual, cuidemos zelosamente de manter dentro dos seus limites esta liberdade, a
qual nos é prometida e oferecida em Cristo. Pois, por que é que o próprio apóstolo que nos ordena que não nos submetamos de novo “a jugo de escravidão”,
noutra passagem ensina que os servos não devem preocupar se com o estado no
qual estejam, sendo que a liberdade espiritual pode muito bem subsistir na servidão civil? Nesse sentido também devem ser entendidas outras declarações que
ele faz, quais sejam: que no reino de Deus “não pode haver judeu nem grego; nem
escravo nem liberto; nem homem nem mulher”.2 E igualmente: “não pode haver
grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos”.3 Com essas sentenças Paulo quer dizer que é indiferente a condição a que pertencemos entre os homens, ou qual a nação a cujas leis
devemos obediência, visto que o reino de Cristo não se localiza nestas coisas.
2. A distinção feita não autoriza a negligência
quanto aos deveres civis e cívicos
Todavia, esta distinção não tem como finalidade levar-nos a considerar que as
determinações legaisa relacionadas com práticas manchadas pelo mal não dizem
respeito aos cristãos. É a pura verdade que alguns amantes de utopias hoje em dia
falam dessa maneira, isto é, afirmam que, como fomos mortos por Cristo para os
elementos deste mundo e fomos transferidos para o reino de Deus, para as realidades celestes, devemos considerar como coisa vil e indigna da nossa excelência
ocupar-nos dessas solicitudes imundas e profanas concernentes aos negócios deste
mundo, dos quais os cristãos devem ficar longe e totalmente afastados. “Para que
servem as leis” dizem eles “não havendo litigantes nem julgamentos? E que é que
têm que ver os litigantes com o homem cristão? E mesmo considerando a proibição de matar, com que propósito nós [cristãos] haveríamos de ter leis e julgamentos?” Mas, como pouco acima advertimos que essa espécie de regime é diferente
do reino espiritual e interior de Cristo, também nos é necessário saber, por outro
lado, que de forma alguma o repugna.
1
Gl 5; 2Co 7.21.
Gl 3.28.
3
Cl 3.11.
a. politiæ rationem.
2
164
As Institutas – Edição Especial
3. O cristão vive com os pés no chão,
mas na perspectiva da eternidade
Dizemos o que acima foi dito porque o reino espiritual já na terra nos faz sentir
certo gosto do reino celeste, e nesta vida mortal e transitória certo gosto da bemaventurança imortal e incorruptível.4 Mas o objetivo do reino temporal é fazer
que possamos adaptar-nos à companhia dos homens durante o tempo que nos
cabe viver entre eles; estabelecer os nossos costumes em termos de uma justiça
civil; viver em harmonia uns com os outros; e promover e manter paz e tranqüilidade comum. Reconheço que todas estas coisas seriam supérfluas, se o reino de
Deus, que ora se mantém em nós, anulasse a presente existência. Mas se é da
vontade de Deus que caminhemos na terra enquanto aspiramos à nossa verdadeira pátriaa, e se, ademais, tais acessórios são necessários nessa viagem para lá, os
que querem separá-los do homem vão contra a sua natureza humana.5
Porque, no tocante ao que os tais sonhadores alegam, que deve existir na
igreja uma perfeição tal que seja suficiente para cobrir todas as leis, ou que as
torne dispensáveis, é pura imaginação deles tal perfeição; jamais se poderá encontrar na comunidade dos homens.6 Pois, se a insolência dos maus é tão grande
e a maldade tão rebelde que a duras penas se pode manter a ordem pelo rigor das
leis, que se poderá esperar deles, se descobrirem que gozam de desenfreadaa liberdade para a prática do mal? Pois é preciso um esforço enorme para à força
contê-los e impedi-los de praticar o mal!
4
“Por mais miserável que seja a vida presente, é uma bênção de Deus aos fiéis, visto que ao sustentar-nos e
conservar-nos nela, lhes dá um claro sinal e testemunho de Seu amor, e do amor paternal que lhes tem.”
[João Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 189. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires,
La Aurora, 1962, p. 69]. “Todavia, nossos constantes esforços para diminuir a estima por este mundo presente, não devem nos levar a odiar a vida ou a sermos mal agradecidos para com Deus. Se bem que esta vida
está cheia de incontáveis misérias, não obstante, merece ser contada entre aquelas bênçãos divinas que não
devem ser desprezadas.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 62).
“Porém, à vida presente não se deve odiar, com exceção de tudo o que nela nos sujeita ao pecado, este ódio
não deve aplicar-se à vida mesma.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século,
2000, p. 64). “... Esta vida, por mais que esteja cheia de infinitas misérias, com toda razão se conta entre as
bênçãos de Deus, que não é lícito menosprezar.” (As Institutas, III.9.3). À frente, acrescenta: “E muito
maior é essa razão, se refletirmos que nesta vida nos está Deus de certo modo a preparar para a glória do
Reino Celeste” (As Institutas, III.9.3). NE
5
“Somente os crentes genuínos conhecem a diferença entre este estado transitório e a bem-aventurada eternidade, para a qual foram criados; eles sabem qual deve ser a meta de sua vida. Ninguém, pois, pode regular
sua vida com uma mente equilibrada, senão aquele que, conhecendo o fim dela, isto é, a morte propriamente
dita, é levado a considerar o grande propósito da existência humana neste mundo, para que aspire o prêmio
da vocação celestial.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 90.12),
p. 440]. NE
6
“.... O Senhor trabalha dia após dia para eliminar as rugas e as manchas da igreja. Segue-se que a sua
santidade ainda não é perfeita. Portanto, a igreja é santa no sentido de que diariamente cresce e se fortalece
em santidade, mas ainda não é perfeita; diariamente progride, mas ainda não chegou à meta da santidade”.
[João Calvino, As Institutas, (1541), II.4]. NE
a. patriam.
a. Palavra acrescentada ao latim.
165
4. Alguns benefícios do governo civil
Haverá, porém, logo adiante, um espaço mais oportuno para se falar da utilidade
do governo civil. No presente, queremos tão-somente dar a entender que, querer
rejeitá-lo é uma barbárie desumana, pois que a sua necessidade entre os homens
não é menor que a de pão, água, sol e ar, e a sua dignidade é muito maior ainda.
Porque não se relaciona apenasb com o que os homens comem, bebem e buscam
para o seu sustento (se bem que abrange todas estas coisas, tornando possível aos
homens viverem juntos). Contudo, não se limita a isso, mas também visa a benefícios como os seguintes: impedir que a idolatria, as blasfêmias contra o nome de
Deus e contra a Sua verdade, e outros escândalos relacionados com a religião
sejam publicamente fomentados e semeados entre o povo; velar para que a tranqüilidade pública não seja perturbada; proteger a propriedade de cada um; vigiar
para que os homens façam seus negócios sem fraude nem prejuízo; em suma, que
possa expressar-se uma formac pública da religião entre os cristãos, e que a humanidade subsista entre os seres humanos.7
5. Razão para incluir a religião entre os
deveres do governo civil
Que ninguém estranhe que eu incumba o governo civil de manter em ordem e em
segurança a religião, encargo que aparentemente neguei ao poder dos homens;
porque aqui também digo que para mim é inadmissível que os homens a seu belprazer forjem leis referentes à religião e sobre como se deve honrar a Deus, coibindo aqui não menos do que coibi acima. O que eu aprovo é uma ordem civila
que cuide para que a religião verdadeira, contida na Lei de Deus, não seja publicamente violada nem maculada por uma licençab impune.c Mas, se tratarmos particularmente de cada parte do governo civil, essa classificação ajudará os leitores
a entenderem que juízo se deve ter em geral.
7
“Os magistrados e todos quantos desempenham algum ofício na magistratura são aqui lembrados de seu
dever. Não basta que restrinjam a injustiça, dando a cada um o que é devidamente seu, e mantenham a paz,
se não são igualmente zelosos em promover a religião e em regulamentar os costumes pelo uso de uma
disciplina construtiva.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 2.2), p. 58]. “Os
príncipes e os magistrados devem, pois, recordar de Quem são servidores quando cumprem seu ofício, e não
fazer nada que seja indigno de ministros e lugar-tenente de Deus. A primeira de suas preocupações deve ser
a de conservar, em sua verdadeira pureza, a forma pública da religião, conduzir a vida do povo com boas
leis, e procurar o bem, a tranqüilidade pública e doméstica de seus súditos.” [Juan Calvino, Breve Instruccion
Cristiana, Barcelona, Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 83]. NE
b. 1536 e 1539 acrescentam: quæ illorum omnium commoditas est.
c. facies.
a. política ordinatio.
b. publicis sacrilegiis.
c. Cf. Instrução de 1537: “Quase toda a solicitude [dos magistrados] deve reduzir-se a isto: Que eles mantenham em sua verdadeira pureza a forma pública da religião,” etc. [Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana,
Barcelona, Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 83].
166
As Institutas – Edição Especial
6. Três partes componentes do governo civil
Bem, há três partes. A primeira é o magistrado, que é o guardiãod e o mantenedor
das leis. A segunda é a lei, segundo a qual o magistrado exerce o seu domínio. A
terceira é o povo, que deve ser governado pelas leis e obedecer ao magistrado.
Verifiquemos primeiro a condição do magistrado, isto é, se é uma vocação legítima e aprovada por Deus, qual o seu dever de ofício e qual a abrangência do seu
poder. Vejamos, em segundo lugar, por quais leis deve ser governada uma política ou administração cristã. Finalmente, de que maneira o povo pode ser beneficiado pelas leis, e qual será a obediência que ele deve a seu superior.
6.1 – Honrosa ordenação divina
No tocante à condição ou ao estado dos magistrados, o nosso Senhor não somente testificou que é aceitável perante Ele, mas, o que é mais importante, ornou-o de
títulos honrosos, recomendando-nos singularmente a dignidade que lhe é própria.e
E para demonstrar isto em poucas palavras, todos quantos são constituídos em
posição de preeminência são chamados “deuses”,8 título que não pode ser considerado de somenos. Por ele fica demonstrado que os magistrados têm mandamentof
de Deus, são autorizados por Ele, e em tudo eles representam a Sua pessoa, nunca
porém como Seus vigários ou substitutos.g E isso não é glosa inventada por minha mente, mas é a interpretação dada pelo próprio Cristo. “Se a Escritura”, diz
Ele, “chamou deuses aos quais a palavra de Deus foi dirigida”,9 que outra coisa é
isso, senão que Deus os encarrega e comissiona para que O sirvam no ofício que
devem desempenhar (como disseram Moisés e Josafá aos juízes que estabeleceram sobre as cidades de Judá),10 exercendo a justiça não em nome dos homens,
mas em nome de Deus? 11
A esse mesmo propósito atende o que diz a Sabedoria de Deus pela boca de
Salomão, quando declara que “é por Sua obra que os reis reinam, os conselheiros
8
Êx 7.1; Sl 82.6. [É notável que justamente o Salmo 82.6 é citado por Jesus Cristo num texto em que se deduz
a inspiração divina do salmista e a infalibilidade da Escritura (Jo 10.34,35). NT]
9
Jo 10.35 [tradução direta].
10
Dt 1.9-18; 2Rs 19.4-11.
11
Deus “designou os magistrados para que governem o mundo de forma justa e legítima. Ainda que as autoridades ditatoriais e injustas não devem ser classificados como governos ordeiros, todavia o direito de governar é ordenado por Deus visando o bem-estar da humanidade.” [João Calvino, Exposição de Romanos,
(Rm 13.1), p. 451]. NE
d. præses.
e. O último artigo da Instrução de 1537 começa assim: “O Senhor não somente testificou que o estado dos
magistrados é aprovado por Ele e Lhe é agradável, mas também nos exorta fortemente nesse sentido honrando a dignidade do referido estado com títulos sumamente honrosos”. [Juan Calvino, Breve Instruccion
Cristiana, Barcelona, Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 82]. Seguem-se as mesmas
citações que aqui.
f. mandatum.
g. vices quodam modo agunt.
a. A Instrução de 1537 tem: munifici judices, os magníficos, em lugar de: juges (juízes). Muitas vezes, ao se
mencionarem os magistrados, costuma-se dizer: “os magníficos senhores”, etc.
167
fazem justiça, os príncipes se mantêm em seu domínio e os juízesa da terra julgam
com eqüidade”.12 É como se dissesse que não é pela perversidade dos homens
que os reis e outras autoridades superiores obtêm seu poder sobre a terra, mas que
esse poder lhes vem da providência e da santa ordenação de Deus, a quem agrada
conduzirb dessa forma o governo dos homens.c O que Paulo demonstra claramente quando inclui os que presidemd 13 entre os dons que Deus distribui diversamente aos homens e que devem ser empregados para a edificação da igreja.
[1539] Conquanto na citada passagem o apóstolo fale da assembléia dos
anciãos ou presbíteros que eram ordenados na Igreja Primitiva para presidir ou
administrar a disciplina pública, ofício que na Epístola aos Coríntios ele chama
de governos,e14 todavia, como em nosso conceito o poder civil visa ao mesmo
fim, não há nenhuma dúvida de que ele nos recomenda que lhe atribuamos toda
sorte de preeminência justa.
[1536] E o demonstra com ainda maior clareza quando trata deste assunto
propriamente dito. Porque ele ensina que “não há autoridade que não proceda de
Deus” e que “as autoridades que existem foram por ele instituídas”. E diz mais,
que “a autoridade é ministro de Deus para teu bem” e que “é ministro de Deus,
vingador, para castigar o que pratica o mal”.15
Aqui devemos reportar-nos também aos exemplos dos santos personagens,
dos quais uns foram reis, como Davi, Josias e Ezequias, outros foram governadoresa
e grandes estadistasb a serviço dos reis, como José e Daniel, e outros como líderes
12
Pv 8.15,16 [tradução direta].
Rm 12.8.
14
2Co 12.28.
15
Rm 13.1,4.
b. moderari.
c. 1539 acrescentou aqui: “Quandoquidem illis adest ac etiam præest in ferendis legibus, et judiciorum æquitate
exercenda”. O texto de 1541 segue diretamente o de 1536, sem levar em conta o acréscimo de 1539. Esse é
um dos indícios que fariam crer, por ocasião da reedição, em 1541, de uma tradução publicada desde 1537
(ainda hoje não encontrada).
d. præfecturas. Em seu comentário da Epístola aos Romanos, a propósito do capítulo 12, versículo 8 (“o que
preside, com diligência”), Calvino diz: “Isso pode estender-se amplamente, abrangendo toda espécie de preeminência ou de governo. Porque é requerido não pequeno cuidado daqueles que estão incumbidos de garantir
a segurança de todos, e também não pequena diligência daqueles que têm a responsabilidade de fazer a ronda,
isto é, manter-se vigilantes dia e noite para a preservação das condições gerais”; mas logo a seguir ele declara
que, nessa passagem, Paulo fala dos “anciãos” ou “presbíteros” (“porque naquele tempo não havia magistrados
crentes, ou fiéis”). [João Calvino, Romanos, 2ª ed., São Paulo, Parakletos, 2001, p. 445]
e. xudernh,seij (1541 tem, por erro: xodernh,seij) palavra do grego clássico que, no Novo Testamento, não
se encontra senão nesta passagem (2Co 12.28). [Esta palavra que pode ser traduzida por “administração”,
significa, literalmente habilidade para pilotar um navio ou para liderar a igreja, conservando a ordem].
[kubernh/thj (kybernétes), “piloto”, ocorre somente em At 27.11 e Ap 18.17]. Em seu comentário dessa
epístola Calvino dirá: “Entendo que os anciãos ou presbíteros estavam encarregados da disciplina eclesiástica, pois a Igreja Primitiva tinha como que o seu senado ou o seu consistório [conselho]” [João Calvino,
Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, p. 391]. (mas em 1541 a palavra consistório ainda
não estava em uso corrente).
a. 1536 e 1539: regnis. 1541: royaume.
b. satrapiis somente em 1536 e 1539.
13
168
As Institutas – Edição Especial
e guiasc de um povo livre, como Moisés, Josué e os juízes. Sabemos que a posição deles foi aceita por Deus, pois Ele mesmo o declarou.
Não se deve, pois, ter a menor dúvida de que o poderd civil é uma vocação
não somente santa e legítima diante de Deus, mas também deveras sacrossanta e
honrosa entre todas as demais.16
6.2 – Responsabilidade das autoridades perante Deus, e seus deveres.
Nisso os magistrados, ou os que exercem o poder civil, devem meditar constantemente, o que pode servir de eficaz aguilhão para espicaçá-los para que cumpram
o seu dever, e lhes pode trazer uma consolação maravilhosa,e habilitando-os a
enfrentar com paciência as dificuldades e os desentendimentosf próprios do seu
ofício.g Pois, com quão grande integridade, prudência, clemência,h moderação e
inocência devem eles conduzir-se e controlar-se, quando se vêem ordenadosi ministros da justiça divina? Confiados em quê ousariam eles permitir a entrada de
qualquer iniqüidade junto à sua cátedra, a qual eles sabem que é o trono do Deus
vivo? Com que atrevimento pronunciariam sentença injusta com sua boca, sendo
que eles sabem muito bem que ela foi destinada a ser um instrumento da verdade
de Deus? Com que consciência assinarão eles alguma sentença perversa com sua
mão, sabendo que esta foi ordenadaa para escrever os juízos de Deus? Em suma,
se eles têm presente em sua mente que são vigários de Deus, têm que dedicar-se
com todo empenho e diligente disposição, e aplicar todos os seus esforços para
apresentar aos homens, em tudo o que fizerem , como que uma imagem da providência, da proteção, da bondade, da ternura e da justiça de Deus.17
Além disso, eles devem manter sempre diante dos seus olhos o fato de que
são malditosb todos os que realizam a obra do Senhor deslealmente quando se
16
“A razão por que devemos estar sujeitos aos magistrados é que eles foram designados pela ordenação divina.
Se a vontade de Deus é que o mundo seja governado desta maneira, então aqueles que desprezam a sua
autoridade estão se esforçando por subverter a ordem divina, estão, portanto, resistindo a Deus mesmo, já
que desprezar a providência daquele que é o Autor do governo civil é declarar guerra contra ele mesmo.”
[João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 13.1), p. 450]. NE
17
“Ele (Davi) prescreve uma norma aos reis terrenos, a saber: que, devotando-se ao bem público, seu único
desejo para que sejam preservados é o bem de seu povo. Quão longe a realidade se acha disto, nem é preciso
dizer. Cegados de soberba e presunção, desprezam o resto do mundo, como se sua pompa e dignidade os
elevassem totalmente acima do estado comum do homem. Nem é para se admirar que a humanidade seja tão
insolente e habitualmente pisoteada pelos pés dos reis, já que a maioria rejeita e desdenha carregar a cruz de
Cristo.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 28.9), p. 610]. NE
c. civilibus præfecturis.
d. potestas.
e. singularem.
f. Palavra acrescentada em 1541.
g. 1536 e 1539 acrescentavam: quæ multæ certe et graves sunt:
h. mansuetudinis.
i. constitutos.
a. ordinatra.
b. 1536: maledici omnes, qui opus Dei faciunt in dolo; (mais próximo do texto bíblico).
1539: si maledicuntur omnes, qui opus vindicta Dei exequuntur in dolo.
169
trata de punir o mal,18 por muito mais forte razão são malditos todos aqueles que,
em tão justa vocação, agem com deslealdade. Por isso Moisés e Josafá, querendo
exortar seus juízes a cumprirem seu dever, não puderam encontrar nada melhor
para mover seu coração do que as palavras que acima citamos, quais sejam: “Vede
o que fazeis, porque não julgais da parte do homem e sim da parte do Senhor, e,
no julgardes, ele está convosco. Agora, pois, seja o temor do Senhor convosco;
tomai cuidado e fazei-o, porque não há no Senhor, nosso Deus, injustiça, nem
parcialidade, nem aceita ele suborno”.19 A Escritura diz também que “Deus assiste na congregação divina; no meio dos deuses estabelece o seu julgamento”20 e
que Ele “julga no meio dos deuses”.21 Isso deve tocar o coração das autoridades
superiores, porque tais exortações lhes ensinam que elas são como magistrados
com poder delegadod por Deus, a quem terão que prestar contas do seu encargo.e
E com toda razão devem sentir-se espicaçados por essa advertência, porque, se
cometerem qualquer falta, não só farão injúria aos homens, mas também ao próprio Deus,22 maculando os seus sagrados juízos.
Como no caso anterior, aqui também eles encontram amplíssima consolação ao verificarem que a sua vocação não é algo profano nem alheioa a um servo
de Deus, mas um cargo sacratíssimo, já que, ao exercê-lo, eles fazem as vezes de
Deus e executam o Seu ofíciob.23
6.3 – Sua vocação não é contrária à religião e à piedade cristãs
Ao contrário, os que não se satisfazem com os testemunhos da Escritura e criticam ofensivamente esta santa vocação como se fosse totalmente contrária à religião e à piedade cristãs, que outra coisa fazem senão insultar o próprio Deus,
sobre quem recaem todas as censuras feitas ao seu ministério? Certamente esse
tipo de gente não reprova os seus superiores, rejeitando o seu governo, mas rejeita totalmente a Deus. Porque, se isso é uma verdade, dita pelo Senhor ao povo de
18
Jr 48.10.
Dt 1.16; 2Cr 19.6,7.
20
Sl 82.1.
21
Is 3.14c [tradução direta].
22
No original francês falta a frase “mas também ao próprio Deus”. Na edição de 1560 consta: “mas também a
Deus”. NT
23
“A sua administração não deve ser feita em função de si próprios, mas visando o bem público. Nem têm eles
poderes ilimitados, senão que sua autoridade se restringe ao bem-estar de seus súditos. Em resumo, são
responsáveis diante de Deus e dos homens pelo exercício de sua magistratura. Uma vez que foram escolhidos e delegados por Deus mesmo, é diante deste que são responsáveis.” [João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 13.4), p. 453]. NE
c. 1536: synagoge; 1539: synagoga.
Esta segunda indicação, acrescentada em 1539, refere-se sem dúvida a Isaías 3.13, onde não ocorre
palavra correspondente a deuses.
d. legatos.
e. administratæ provinciæ.
a. alienis.
b. legatione.
19
170
As Institutas – Edição Especial
Israel por ter este rejeitado o domínio de Samuel,24 por que tal pronunciamento
não será válido hoje quanto aos que, usando de liberdade abusiva, falam mal de
todas as autoridades ordenadas por Deus?
Mas eles contestam dizendo que o Senhor proíbe a todos os cristãos que se
envolvam com reinados ou com autoridades superiores quando declara aos Seus
discípulos: “Os reis dos povosc dominam sobre eles, e os que exercem autoridade
são chamados benfeitores. Mas vós não sois assim; pelo contrário, o maior entre
vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o que serve”.25 Que excelentes intérpretes! Havia surgido uma discussão entre os apóstolos sobre qual
deles deveria ser considerado como tendo maior dignidade. O Senhor, para reprimir essa vã ambição, declara que o ministério deles não é semelhante aos dos
reinos deste mundo, nos quais um tem precedência como cabeça ou chefed sobre
todos os demais. Em quê,e rogo aos leitores que me digam, essa comparação
diminui a dignidade dos reis? E ainda mais, que é que ela prova, senão que a
posiçãoa real não é ministério apostólico?
Além disso, embora haja diversas formas e espécies de autoridades
superiores,b elas não diferem neste ponto: devemos recebê-las todas como ministros ordenadosc por Deus. Porque Paulo abrange todas as espécies acima referidas quando declara que “não há autoridade que não proceda de Deus”.26 E aquilo
que é menos agradável aos homens é recomendado singularmented acima de todos os demais, a saber, o senhorio e o domínioe exercidos por um só homem.
Como isso traz consigo uma servidão imposta comumente a todos, menos àquele
único ao agrado do qual todos os demais estão subordinados, jamais agradou aos
espíritos superiores e mais bem dotados.f Mas, por outro lado, a Escritura, visando pôr obstáculo aos maus juízos humanos, afirma expressamente que é pela
ação da providência e da sabedoria divinas que os reis reinam, e em especial
ordena: “Honrai o rei”.27
24
1Sm 8.7.
Lc 22.25,26.
26
Rm 13.1.
27
Pv 8.1,15; 1Pe 2.17.
c. gentium.
d. unus eminet.
e. quid. 1541 tem: Qui est-ce?
a. munus.
b. magistratus.
c. ordinationibus. Ministères (ministérios) parece que seria uma tradução mais literal.
d. exímio testimonio.
e. 1536 e 1539: uma só palavra: potestas.
f. heroïcis et excellentioribus ingeniis minus olim approbari potuit.
g. quibus de constituenda re aliqua publica non licet.
25
171
6.4 – Diversos regimes ou formas de governo
Certamente, para os homens de vida privada, que não têm autoridade nenhuma
para ordenar a coisa públicag, é vã ocupação discutir qual seria a melhor forma de
governo. Além disso, é uma temeridade querer determinar isso de maneira simples,h
visto que o ponto principal desta questão situa-se nas circunstâncias. E ainda
quando se comparassem as diferentes formas de governos umas com as outras,
independentemente das suas circunstâncias, não seria fácil discernir qual seria a
mais útil, tendo em conta que elas são quase iguais quanto ao seu valor.i
[1541] Contam-se três espécie de regime civil: a monarquia, que é o domínio de uma só pessoa, seja seu nome rei ou duque ou outro; a aristocracia, na qual
governam os da classe mais nobre e os que ocupam alta posição; e a democracia,
que é um governo popular, no qual cada indivíduo do povo tem autoridade.
[1536] É verdade que o rei, ou qualquer indivíduo que exerça o poder
monárquico, facilmente baixa á condição de tirano. Mas é igualmente fácil, quando
elementos de alta posição exercem o governo, eles conspirarem para impor uma
dominação iníqua. E ainda é muito mais fácil o surgimento de sedições quando é
o povo que exerce a autoridade.
Ademais, se deixarmos de fixar o nosso olhar só numa cidade e observarmos o mundo inteiroa ou alguns países, por certo veremos que não é sem a ação
da providência de Deus que diversas regiões sejam governadas por formas diversas de governo. Porque, assim como não se pode manter os elementos28 senão
com uma proporção e uma temperatura desiguais, assim também não se podem
manter os governos senão por meio de uma certa desigualdade. Contudo, não há
necessidade de demonstrar todos os aspectos disto para aqueles para os quais a
vontade de Deus é argumento suficiente. Porque, se é da vontade de Deus constituir reis sobre os reinos, e outras formas de autoridade sobre povosb não sujeitos
à monarquia, a nós compete sujeitar-nosc e obedecer às autoridades que nos dominarem onde vivermos.
6.5 – Os que governam devem reger-se pela Palavra de Deus
Agora devemos declarar brevemente qual é e em que consiste o ofício dos que
exercem o governo, conforme o descreve a Palavra de Deusd. Jeremias exorta
assim os reis: “Assim diz o Senhor: Executai o direito e a justiça e livrai o oprimido das mãos do opressor; não oprimais ao estrangeiro, nem ao órfão, nem à viú28
Atmosféricos. NT
h. 1536 e 1539: tum etiam simpliciter id definiri.
i. æquis conditionibus contendunt.
a. universum orbem.
b. civitatibus.
c. morigeros.
d. Instrução de 1537: “Quase toda a sua solicitude deve consistir em que conservem com verdadeira pureza a
forma pública da religião, que instituam a vida do povo mediante leis muito boas, que procurem o bem e a
tranqüilidade dos seus súditos, tanto na vida pública como na particular”. Segue-se a mesma citação.
172
As Institutas – Edição Especial
va; não façais violência, nem derrameis sangue inocente neste lugar”.29 Igualmente Moisés ordena àqueles que ele nomeou para exercerem governo em seu
lugar: “Ouvi a causa entre vossos irmãos e julgai justamente entre o homem e seu
irmão ou o estrangeiro que está com ele. Não sereis parciais no juízo, ouvireis
tanto o pequeno como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo
é de Deus”.30 Deixo-lhes o que noutra parte está escrito, a saber, que os reis não
devem multiplicar seus cavalos nem entregar seu coração à avareza, nem se colocar orgulhosamente acima do seu próximo, mas devem, durante todo o tempo da
sua vida, meditar constantemente na Lei de Deus.31 E mais, que os juízes não se
inclinem a favor de nenhuma das partes nem aceitem nenhum presente32 – e outras passagens semelhantes que ocorrem constantemente na Escritura.
O que aqui me propus esclarecer sobre o ofício dos que governam não é
tanto para instruí-los sobre seus deveres como para mostrar aos outros o que
aqueles são e com que finalidade são ordenados por Deus.
Vemos pois que os que governam são constituídos protetores e mantenedores
da tranqüilidade, da honestidade, da inocência e da modéstia públicas, e devem
ocupar-se em manter o bem-estar geral e a paz comum. Pois bem, como eles não
podem desincumbir-se desses deveres senão defendendo os bons das injúrias dos
maus, e ajudando e socorrendo os oprimidos, por essa causa são revestidos de
poder, para reprimir e punir rigorosamente os malfeitores, por cuja maldade é
perturbada a paz pública.33 Porque, para dizer a verdade, vemos por experiência o
que dizia Sólona 34– que todas as repúblicas subsistem graças a estas duas coisas:
a recompensa dada aos bons e o castigo dado aos maus, sendo que, se forem
eliminadas estas duas coisas, toda a disciplina das sociedades humanas b se dissipa e é reduzida a nada. Porque são muitos os que não se empenham em fazer o
bem, se não vêem que as virtudes não recebem alguma honra como recompensa.
E, por outro lado, não há como refrear a cobiça dos maus, se estes não vêem a
iminente ameaça de vingança e de castigo. Acresce que destas duas partes trata o
profeta quando ordena aos reis e às demais autoridades que executem “o direito e
a justiça”,35 “o juízo e a justiça”, [traduzindo-o diretamente]. Cumprir a justiça é
acolher os inocentes para protegê-los, firmá-los, defendê-los, dar-lhes suporte e
livrá-los. Executar o juízo é resistir ao atrevimento dos maus, reprimir a sua violência e punir os seus delitos.c
29
Jr 22.3.
Dt 1.16,17.
31
Dt 17.16-20
32
Dt 16.19
33
Rm 13.3,4
34
Cícero, Cartas, XV (Carta a Bruto [Brutus]). NT
35
Jr 21.12; 22.3
a. Já mencionado acima.
b. civitatum.
c. delicta. Cf. Instrução de 1537: “É uma justiça que se limita a proteger os inocentes e a mantê-los, conservá-los e
libertá-los; é um julgamento que se limita a resistir à audácia dos maus, reprimir a violência e punir os crimes”.
30
173
6.6 – A pena de morte é legítima, sob a autoridade de Deus
Mas aqui se levanta uma questão da maior relevância e difícil, qual seja: Se não
é proibido a todos os cristãos matar. Porque, se a Lei de Deus o proíbe,36 e se o
profeta, falando da igreja de Deus, predisse que nela não se faria mal nem dano
algum,37 como é que as autoridades governamentais podem derramar sangue humano sem ferir a religião?
Visto porém de outro ângulo, se entendermos que, ao punir, a autoridade
não faz nada de si próprio, mas apenas executa os juízos de Deus, já não nos
afligiremos tanto em nossos escrúpulos. É verdade que a Lei de Deus proíbe
matar. Mas igualmente é certo que, para que os homicidas não fiquem impunes, o
Senhor põe a espada na mão de Seus ministros para que a usem contra eles. Certo
é que não cabe aos crentes fazer mal nem causar dano. Mas também, vingar, pelo
mandado de Deus, as aflições dos bons não é fazer mal nem causar dano.
É, pois, fácil concluir que nesta parte eles estão sujeitos à lei comum pela
qual, embora o Senhor ate as mãos de todos os homens, todavia não ata a Sua
justiça, que Ele exerce pela mão dos magistrados. Assim é que quando um príncipe proíbe os seus súditos de portar arma ou de ferir alguém, isso não impede que
os seus oficiais executem a justiça, sendo que essa é a principal função a eles
delegada. Eu gostaria que tivéssemos sempre diante dos nossos olhos esta consideração: Nada disso se faz pelo abuso ou temeridade dos homens, mas sim pela
autoridade de Deus, que ordena que assim se faça; e que, procedendo-se assim, a
vereda seguida será reta, sem desvio nem para a direita nem para a esquerda.38
[1541] Portanto, levando isso em consideração, nada veremos que mereça a
nossa censura na vindicação pública da justiçaa, [1536] a não ser que queiramos
impedir que a justiça de Deus execute a punição das maldades praticadas. Agora,
se nos é lícito impor lei, por que havemos de caluniar os ministros da lei? “Não é
sem motivo que ela traz a espada”, diz o apóstolo falando sobre a autoridade;
“pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal”.39 Porque
se os príncipes e outras autoridades sabem que não há nada que mais agrade a
Deus do que a obediência a Ele devida,40 se quiserem agradar a Deus com genuína
piedade, justiça e integridade, que se dediquem a corrigir e punir os perversos.
Certamente Moisés foi movido por este sentimento quando, crendo que Deus
lhe ordenava que libertasse o Seu povo, matou o egípcio.41 Igualmente quando
36
Êx 20.13; Dt 5.17
Is 11.9; 65.25.
38
“A razão porque devemos estar sujeitos aos magistrados é que eles foram designados pela ordenação divina.
Se a vontade de Deus é que o mundo seja governado desta maneira, então aqueles que desprezam a sua
autoridade estão se esforçando por subverter a ordem divina, estão, portanto, resistindo a Deus mesmo, já
que desprezar a providência daquele que é o Autor do governo civil é declarar guerra contra ele mesmo.”
[João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 13.1), p. 450]. NE
39
Rm 13.4.
40
At 5. 29.
41
Êx 2.11,12; At 7.24,25
a. nisi forte divinæ justitiæ injectum est frenum.
37
174
As Institutas – Edição Especial
puniu a idolatria com a morte de três mil homens.42 Davi também foi levado por
essa classe de zelo quando, já no fim dos seus dias, ordenou a seu filho Salomão
que matasse Joabe e Simei.43 Como é que o espírito de Moisés, manso e bondoso,44 a tal ponto se inflama de crueldade que, tendo as mãos ensagüentadas pelo
sangue dos seus irmãos, não para de matar enquanto não chega aos três mil mortos? Como é que Davi, homem que manifestou tão grande mansidão em sua vida,
fez entre os seus derradeiros suspiros um testamento tão desumano, ordenando a
seu filho que não deixasse estender-se a velhice de Joabe e de Simei até à sepultura e não permitisse que morressem em paz? Mas certamente tanto um como o
outro, ao executarem a vingança a eles delegada por Deus, com essa crueldadea
(se é que deva ser assim denominada) eles santificaram as suas mãos, as quais
eles teriam tornado imundas, se os perdoassem. “A pratica da impiedade”, diz
Salomão”, “é abominável para os reis, porque com justiça se estabelece o trono”.45 E mais: “Assentando-se o rei no trono do juízo, com os seus olhos dissipa
todo mal”.46 E também: “O rei sábio joeira os perversos e faz passar sobreb eles a
roda”.47 E ainda: “Tira da prata a escória, e sairá vaso para o ourives; tira o perverso da presença do rei, e o seu trono se firmará na justiça”.48 Igualmente: “O
que justifica o perverso e o que condena o justo abomináveis são para o Senhor,
tanto um como o outro”.49 E do mesmo teor: “O rebelde não busca senão o mal;
por isso, mensageiro cruel se enviará contra ele”.50 Finalmente: “O que disser ao
perverso: Tu és justo; pelo povo será maldito e detestado pelas nações”.51 Ora, se
a sua verdadeira justiça consiste em perseguir os malfeitores com a espada desembainhada, quererem abster-se de toda severidade e conservar suas mãos limpas de sangue enquanto as espadas dos maus são desembainhadas para causar
morte e violência, eles se farão culpados de grande injustiça; longe estarão de
merecer louvor como justos e bons.
Todavia, entendo que com isso não se deve misturar uma severidade
demasiadoa áspera e rude, e que a cátedra do juiz não é desde logo um patíbulo
já montado. Porque eu não sou do tipo que favorece nenhuma crueldade
42
Êx 32.27,28
1Rs 2.5,6,8,9
44
Nm 12.3. NT
45
Pv 16.12
46
Pv 20.8
47
Pv 20.26
48
Pv 25.4,5
49
Pv 17.15
50
Pv 17.11
51
Pv 24.24
a. sæviendo.
b. O sentido no hebraico é, antes: “faz passar sobre eles a roda”. 125
a. abscissa.
125
No original francês está: “e os faz girar sobre a roda”. Em nossa tradução transcrevemos o texto seguindo
Almeida, Atualizada (Pv 20.26). NT
43
175
desordenada,b nem que declara que uma sentença, sendo justa e de boa causa,
pode ser promulgada sem clemência,c pois esta deve ter lugar no conselho dos
reisd e é ela que garante a sustentação do trono real.52 Por isso não está mal o
ditado antigo segundo o qual a principal virtude dos príncipes é a clemência.53
Mas é necessário que o magistrado cuide bem para não errar nestas duas coisas, a
saber: que por uma severidade desmedidae cause mais aflição do que cura; ou
que, com sua louca temeridade e supersticiosa pretensão de clemência, não tenha
o necessário rigor, dominado por seu senso de humanidade,f deixando que as
coisas corram livremente, com isso causando grande mal a muitos. Este outro
ditado também não foi enunciado sem motivo: “É ruim viver sob a autoridade de
um príncipe que não permite nada, mas é muito pior viver subordinado a um
príncipe que tudo permite”.54
6.7 – Causas justas dão legitimidade à guerra
Considerando, pois, que às vezes é necessário que os reis e seus povos empreendam a guerra para impor justa vingança, podemos por isso considerar igualmente
legítimas as guerras que visem a este fim. Porque, se lhes é dado poder para manter
a tranqüilidade do seu país e do seu território, para reprimir as sedições dos arruaceiros e dos inimigos da paz, para socorrer as vítimas da violência e para castigar os
malfeitores, não poderão empregar melhor o seu poder do que abatendo os esforços
daqueles que perturbam tanto o sossego particulara de cada pessoa como a tranqüilidade geral, daqueles homens que praticam sediciosamente motins, violências,
opressões e outros malefícios. Se eles devem ser os protetores e defensores das leis,
cabe-lhes destruir todas as ações daqueles cuja injustiça corrompe a disciplina das
leis. E se com justiça punem os salteadores, que causam dano a poucas pessoas,
deverão deixar que uma região inteira seja humilhada e saqueada sem lhes fazer a
devida oposição? Porque pouco importa quem invada sem justa causa terras alheias para pilhagens e assassinatos – pouco importa se o invasor é rei ou plebeu;b
52
Pv 20.28
Sêneca, Sobre a Clemência, I.iii.3. Obra que o autor dedicou a Nero. NT
A primeira obra escrita por Calvino foi publicada com seus próprios recursos: a edição comentada
do livro de Sêneca, De Clementia (4 de abril de 1532). Nesse trabalho – do qual uma cópia foi enviada a
Erasmo –, o então jovem autor (23 anos), já revelava o seu gosto literário, erudição, amplo conhecimento
da literatura grega e romana, uma perspectiva sóbria e um estilo próprio de análise que se tornaria uma
de suas marcas em seus comentários bíblicos. [HMPC]. NE
54
Quando Nerva era o imperador (96-98 d.C.) NT
b. importunæ. Na margem de 1539 lê-se: Tribunal Cassii.
c. Calvino tinha comentado a obra De clementia, de Sêneca.
d. optima regum consiliaria.
e. nimia.
f. in crudelissimam incidat humanitatem.
a. 1536: privatum. 1539: privatim.
b. ínfima de plebe: como os camponeses revoltosos na Alemanha.
53
176
As Institutas – Edição Especial
todos quantos agem dessa forma devem ser considerados bandidos, e devem ser
punidos como bandidos.55
6.8 – Requer-se moderação na aplicação da justiça
Mas, nesta questão, os magistrados e as autoridades governamentais devem ter
todo o cuidado de não se deixarem levar nem um poucoc por seus interesses e
cobiças pessoais. Muito ao contrário, se tiverem que aplicar alguma punição,
devem abster-se da ira, do ódio e da severidade demasiado rigorosa.d E ainda,
como diz Agostinho, “por dever de humanidade, eles devem ter compaixão daquele que por eles é punido pelos males que causou”.56 Se se sentirem movidos a
pegar em armas contra quaisquer inimigos, não devem precipitar-se, e, se a ocasião o exigir, deverão fazer o possível para evitá-lo, a não ser que uma grande
necessidade os obrigue a esse ato extremo. Pois é preciso que façamos tudo muito melhor do que nos é ensinado pelos pagãos, um dos quais disse que “a guerra
não deve ter outra finalidade senão a de buscar a paz”;57 certamente é preciso
tentar todos os meios possíveis, antes de apelar para as armas.a Em suma, em todo
derramamento de sangue as autoridades não devem deixar-se levar por sentimentos particulares, mas devem se deixar conduzir pelo sensob de responsabilidade
pública. De outra maneira, abusarão perversamente do seu poder, sendo que este
não lhes é dado para seu proveito particular, mas sim para servir aos outros.
6.9 – Direitos subsidiários aos das guerras justas
Desse direito de fazer guerras justas segue-se que as guarnições, as alianças e as
munições civis são igualmente lícitas. Chamo guarnições os soldados postados
nas cidades das fronteiras para preservação de todo o país. Chamo alianças as
confederações que unem príncipes vizinhos para se ajudarem mutuamente, caso
haja problemas em seus territórios, e para resistirem em comum aos inimigos
comuns do gênero humano. Chamo munições civis todas as provisõesd ou suprimentos pertinentes aos usos da guerra.
55
“Os magistrados se encontram bem armados com espada para a manutenção da paz. A menos que restrinjam
o atrevimento dos homens perversos, o mundo inteiro se encherá de ladrões e assassinos. Portanto, a forma
correta de conservar a paz consiste em que a cada pessoa seja dado o que é propriamente seu, e que a
violência dos poderosos seja refreada.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm
2.2), p. 57]. NE
56
Agostinho, Cartas, 138,II,15.
57
Cícero, De officiis, I.c
c. vel tantillum
d. implacabili.
a. É o princípio de arbitragem estabelecido para acertar as divergências internacionais.
b. sensu.
c. Nota marginal de 1539, ausente em 1536.
d. Acréscimo feito em 1541.
177
6.10 – O que torna legítimos os tributos ou taxas e os impostos
Parece-me proveitoso acrescentar finalmente este ponto: Os tributos e os impostos que os príncipes recebem são legítimos, desde que sejam empregados principalmente para atender às responsabilidades dos seus respectivos estados e sustentálos. Contudo, é lícito que eles os usem para a digna e generosa manutenção e
dignidadee doméstica ou familiar deles próprios, a qual de certo modo está ligada
à majestadef dos seus cargos ou ofícios. Como vemos que Davi, Ezequias, Josias,
Josafá e os demais santos reis, e igualmente José e Daniel, viveram suntuosamente58 do bem público,a conforme o estado ou posição em que foram colocados, e
não tiveram dor de consciência por causa disso. Além disso, lemos em Ezequiel59
que a posse de grandes propriedades foi designada para os reis. Embora nessa
passagem o Senhor, por meio do profeta, descreva o reino espiritual de Cristo,
não obstante segue o padrão comum de um reino dos homens, justo e legítimo.
Contudo, por outro lado, deve-se fazer lembrar aos príncipes que os seus
domínios não são destinados tanto a servir aos seus interesses privados como ao
bem público, com benefício para todos, como o próprio apóstolo Paulo testifica.60
Portanto, eles devem ser advertidos de que não poderão abusar prodigamente dos
seus direitos sem com isso fazer injúria ao povo, ou melhor, que pensem em que
o que está em jogo é o próprio sangue do povo; e não pouparb o sangue do povo é
uma crudelíssima desumanidade. Acresce que as autoridades devem considerar
que as taxasc cobradas dos plebeus, os impostos e outras espécies de tributos
outra coisa não são senão subsídios da necessidade pública, e que agravar sem
justa causa o povod com tais encargos não passa de tirania e de assalto.
Demonstradas dessa forma, estas coisas não dão azo aos príncipes ou às
autoridades em geral a que façam concessões e gastos desordenados – pois certamente não há por que aumentar as suas cobiças já demasiadamente inflamadas;
mas, como é necessário que eles não façam coisa alguma, exceto o que possam
58
O próprio Calvino, porém, viveu com modéstia e, segundo consta, a simplicidade do seu domicilio causou
espanto ao cardeal Sadoleto, e o papa Pio IV referiu-se a Calvino como um homem poderoso justamente
porque não dava a mínima importância ao dinheiro. Ver a obra de Vicente Themudo Lessa, Calvino –
1509-1564 – Sua Vida e Sua Obra, São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, [s.d.] p. 255. Ver também a
obra de Thea B. Van Halsema, João Calvino Era Assim, São Paulo, Editora Vida Evangélica, 1968,
pp. 130-132 e 155. NT
59
Ez 48.21.
60
Rm 13.4-6. “A sua administração não deve ser feita em função de si próprios, mas visando o bem público.
Nem têm eles poderes ilimitados, senão que sua autoridade se restringe ao bem-estar de seus súditos. Em
resumo, são responsáveis diante de Deus e dos homens pelo exercício de sua magistratura. Uma vez que
foram escolhidos e delegados por Deus mesmo, é diante deste que são responsáveis.” [João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 13.4), p. 453]. NE
e. splendorem.
f. dignitate imperii.
a. ex publico.
b. parcere, parece antes significar aqui: épargner, poupar. 13
c. indictio. Imposto cobrado de indivíduos que não eram nem nobres nem eclesiásticos.
d. miseram plebe.
178
As Institutas – Edição Especial
fazer com a consciência tranqüila diante de Deus, é bom que saibam o que lhes é
lícito.e E as pessoas comuns, de vida privada, não devem considerar supérflua
esta doutrina, porque por este ensino elas aprenderão a não censurar e a condenar
os gastos dos príncipes, ainda que ultrapassem a medida geral e o uso comum f.
7. A lei, e sua utilidade, sua necessidade e sua diversidade
Depois das considerações sobre os magistrados e as autoridades governamentais,
vêm as leis. Estas constituem o próprio centro nevrálgico do Estado, ou, como
lhes chama Cícero, “a alma de todas as repúblicasa”.61 Sem as leis as autoridades
governamentais não poderiam subsistir, como também é verdade que as autoridades governamentais é que as preservam. Por isso, a este respeito não se pode
dizer nada melhor do que chamar à lei “um magistrado mudo” e ao magistrado
“uma lei viva”.62
Agora, quando prometi declarar por quais leis deve se reger uma política
cristã, não significa que eu pretenda entrar em longa discussão sobre quais leis
seriam melhores. Essa discussão seria infinda, e não convém ao nosso presente
propósito. Só assinalarei resumidamente, e como que de passagem, quais são as
leis que uma política cristã pode utilizar santamente diante de Deus, e que podem
conduzir-se com justiça para com os homens. E eu até deixaria de tratar disto, não
fosse o caso de que eu vejo que muitos erram perigosamente nessa questão. Porque alguns negam que uma república ou um estado possa reger-se bem se, abandonando a legislação mosaica, for governado pelas leis comuns de outras nações.b
Quanto a essa opinião, embora a considere perigosa e sediciosa, deixo que outros
lhe façam frente. Para mim basta demonstrar que é totalmente falsa e insensata.
Primeiro devemos observar a distinção comum segundo a qual toda a Lei de
Deus, dada por meio de Moisés, se divide em três partes, quais sejam: moral, cerimonial e judicial. É necessário considerar isoladamente cada uma das partes, para
que possamos entender bem o que nos diz respeito e o que não nos é pertinente.
Mas ninguém deve ficar preso ao escrúpulo decorrente do fato de que os próprios
juízos e cerimônias fazem parte do conteúdo da lei moral. Porque os antigos que
fizeram a distinção acima enunciada, embora não ignorando que os juízos e as
cerimônias pertencem aos costumes ou à moral, contudo, como os juízos e as cerimônias poderiam sofrer alteração e ser abolidos sem corromper nem diminuir os
bons costumes, por isso não deram a essas duas partes o nome de “lei moral”, mas
atribuíram esse nome àquela parte da qual depende a real integridade dos costumes.
61
Cícero, Sobre as Leis, II, 4 ss. NT
Id., ibid. NT
e. quantum liceat.
f. vulgarem civilemque modum.
a. Os tratados de Officiis e de Legibus (Sobre os Ofícios e Sobre as Leis) tinham sido publicados pela primeira
vez em 1471, em Roma.
b. communibus gentium legibus.
62
179
7.1 – Conceituação das três partes: moral, cerimonial e judicial
Começando pela lei moral, vejamos:
A lei moral contém dois artigos, um dos quais nos manda simplesmente
honrar a Deus com pura e singela fé e piedade, e o outro nos ordena que nos
relacionemos com o próximo com verdadeiro amor.63 Por essa causa, a lei moral
de Deus é a verdadeira e perpétua regra de justiça, ordenada a todos os homens,
de todo e qualquer país e de toda e qualquer época em que vivam, se é que pretendem reger a sua vida segundo a vontade de Deus. Porque esta é a vontade eterna
e imutável de Deus: que Ele seja honrado por todos nós, e que todos nós nos
amemos uns aos outros.
A lei cerimonial foi como um aio ou preceptor para os judeus, quer dizer
como uma doutrina própria para crianças, que a Deus aprouve dar àquele povo
como um exercício educativo em sua infância, até que chegasse a plenitude do
tempo, quando Ele haveria de tornar manifestas as coisas que naquele tempo
eram figuradas como sombras.64
A lei judicial, dada a eles como forma de governo, lhes ensinava certas
normas de justiça e de eqüidade, para conviverem em harmonia e sem causarem
prejuízo ou dano uns aos outros.
Bem, assim como o exercício das cerimônias pertencia à doutrina da piedade, que é o primeiro ponto da lei moral, visto que fomentava na igreja judaica a
reverência a Deus, sendo, porém, distinta da verdadeira piedade, assim também,
embora a sua lei judicial não visasse a outra finalidade senão a preservação do
mesmo caridoso amor ordenado na Lei de Deus, todavia tinha sua propriedade
distinta, não incluída sob o mandamento do amor. Então, assim como, tendo sido
ab-rogadas as cerimônias, a verdadeira religião e a piedade permanecem integralmente, assim também as referidas leis judiciais podem ser cassadas e anuladas
sem que por isso seja violado em coisa alguma o dever do amor.
Ora, se isso é verdade, como certamente é, é dada liberdade a todas as nações
para formularem suas leis como lhes pareçam mais úteis e convenientes, desde que,
todavia, se harmonizem com a norma eterna do amor, de tal maneira que, tendo
apenas forma diferente, busquem todas o mesmo objetivo.a Tenha-se isso em conta,
porque não me parece que devamos considerar como leis aquelas que na verdade
são imposições bárbaras e animalescas, como as que recompensavam os ladrões
por certo preço; as que permitiam indiferentemente a companhia de homens e de
63
“A lei consiste de duas tábuas: a primeira das quais ensina sobre o culto divino e os deveres da piedade; e a
segunda, os deveres do amor. Pois é absurdo tomar uma parte como se fosse o todo. (...) Piedade para com
Deus, confesso, é mais preeminente do que o amor devido aos irmãos; e assim a observância da primeira
tábua é mais valiosa à vista de Deus do que a da segunda.” [João Calvino, Gálatas, São Paulo, Paracletos,
1998, (Gl 5.14), p. 163]. NE
64
Gl 3.24; 4.4.
a. rationem.
180
As Institutas – Edição Especial
mulheres; e outras ainda mais vis, ultrajantes e execráveis;b visto que são alheias
não somente a toda justiça, mas também a todo dever de humanidade.c
7.2 – A ordenação da lei e a eqüidade, seu fundamento
O que acabo de dizer se entenderá muito bem se, na consideração de todas as leis
levarmos em conta duas coisas, quais sejam: a ordenação da lei e a eqüidade,
sobre a razão de ser da qual a ordenação se firma.
A eqüidade, sendo como é uma qualidade natural, é sempre a mesma para
todos os povos.d Portanto, todas as leis do mundo, seja qual for o seu teor, devem
convergir para a mesma eqüidade. Quanto às constituições e ordenações ou regulamentos, como estão ligados às circunstâncias e delas dependem em parte, não
há nenhum inconveniente em que sejam diferentes. Mas todos eles devem visar à
equidade como sua meta.
Considere-se então que, como a Lei de Deus que chamamos moral não é
outra coisa senão um testemunho da lei naturala da consciência que o Senhor
imprimiu no coração de todos os homens, não há dúvida de que a eqüidade de que
ora falamos nela está totalmente declarada.b Portanto, cabe dizer que esta eqüidade deve ser a única meta, norma e finalidade de todas as leis.
Acresce que todas a leis que se enquadrem nesta norma, busquem a mesma
meta e se mantenham dentro destes limites, não devem causar-nos desagrado por
diferirem da Lei Mosaica ou umas das outras.
7.3 – Cotejo: a Lei de Deus e outras leis
A Lei de Deus proíbe furtar. Pode-se ver no Livro de Êxodo que foi estabelecida
pena para os ladrões na legislação dos judeus.65 As leis mais antigas das outras
nações puniam os ladrões, fazendo-os devolver em dobro o que tinham roubado.
Outras leis, formuladas posteriormente, fazem distinção entre roubo às claras e
roubo oculto.c Outras leis têm aplicado até a punição de desterro; algumas, até
açoites; outras chegam a aplicar aos ladrões a pena de morte.
A Lei de Deus proíbe o falso testemunho. Os judeus66 puniam o falso testemunho com a mesma pena que seria aplicada a vitima da acusação falsa, se fosse
culpada.d Nalguns outros países a pena aplicada era de humilhação pública; noutros, a falsa testemunha era condenada à forca.
65
Êx 22.1-15. [Notar o versículo primeiro.]
Dt 19.19
b. tum fœdiores, tum absurdiores.
c. 1536 e 1539 acrescentam: et mansuetudine.
d. Na Institutio oratória (Instituição Oratória), (que Calvino cita constantemente em seu comentário da obra
De clementia) Quintiliano distingue (XII, 23) “leges quæ natura sunt omnibus datæ”, e “leges quæ propriæ
sunt populis et gentibus constitutæ”.
a. Sobre o direito natural e o direito positivo, cf. Calvin und das Recht (Calvino e o Direito), de Bohatec, 1934.
b. in ipsa perscripta.
c. non manifestum.
d. 1536 e 1539, têm, em lugar desta perífrase, a expressão própria: Talionis pœna (Pena de Talião).
66
181
A Lei de Deus proíbe o homicídio. Todas as leis do mundo estão em comum
acordo em punir o homicida com a morte, ainda que o gênero de morte varie.
Vemos, porém, que, em toda essa diversidade, as leis visam todas ao mesmo
fim. Porque todas elas são concordes em pronunciar sentença de condenação
contra os crimes que são condenados pela Lei eterna de Deus, tais como os praticados por homicidas, ladrões, adúlteros e falsas testemunhas; só divergem quanto ao modo de aplicar a pena.a A igualdade nisso não é necessária nem conveniente. Há regiões ou países que cairiam na maior desolação, pela ação dos bandidos
e dos assassinos, se não fossem infligidos severíssimos castigos aos homicidas.b
Como também há períodos que exigem que as punições sejam agravadas. Há
nações que precisam ser corrigidas severamente de algum vício ou crime específico porque, sem correção severa, elas se inclinariam mais que outras a praticálo. Quem se sentisse ofendido por essa diversidade, que na verdade é bastante
apropriada para manter a observância da Lei de Deus, não deveria ser considerado mau e invejoso do bem-estar público? É pura frivolidade objetar que se
faz injúria à Lei de Deus quando, abolindo-a, se dá preferência a novas leis.c
Porque as leis que os governos têm em seus respectivos países, não as têm
simplesmente porque as preferem à de Deus, como se as achassem melhores do
que esta, mas porque as acham boas conforme as condições e as circunstâncias
de tempo, lugar e nação.
Além disso, ao se adotarem novas leis, não significa que se anula a Lei de
Deus, visto que esta nunca foi ordenada aos gentios,d pois o Senhor não pretendeu administrá-la por meio de Moisés de molde a ser promulgada a todas as
nações e a ser observada no mundo inteiro. Seu propósito foi que, tendo acolhido
o povo judeu para Sua especial salvaguarda, proteção, direção e governo,e também quis ser o seu Legislador particular. E, como convém a um legislador bom e
sábio, Ele teve singularmente em vista o bom proveito por parte desse povo.
8. O povo, seus direitos e seus deveres
Resta agora examinar o que propusemos para o último lugar, a saber, de que
maneira o povo cristão pode socorrer-se das leis, dos juízos e dos magistrados. E,
por outro lado, que honra as pessoas de vida privada devem prestar aos seus
superiores,a e quanta obediência lhes devem. Vejamos:
a. in pœnæ modo non conveniunt.126
b. Talvez uma alusão à repressão rigorosa dos anabatistas de Munster, exercida pelo landgrave de Hesse,
em junho e julho de 1535 (algumas semanas antes da redação da epístola na qual dedica as Institutas a
Francisco I).
c. Subentendido: leis.
d. Três palavras acrescentadas em 1541.
e. fidem, patrocinium, clientelam.
a. quantum deferendum magistratibus.
126
No original francês das notas consta, por engano, pænæ (paenae). NT
182
As Institutas – Edição Especial
8.1 – Como e com que atitude as pessoas de vida privada podem recorrer à lei?
Muitos acham que a vocação do magistrado é inútil para os cristãos e que não
lhes é lícito recorrerb a ele, visto que lhes é proibido vingar-se, fazer uso de qualquer forma de violência e entrar em demandas. Nada disso, porém, pois o apóstolo Paulo testifica claramente que “a autoridade é ministro de Deus para teu bem”,67
o que nos dá a entender que é da vontade de Deus que, pelo poder e pelo auxílio
da autoridade, sejamos protegidos da maldade e da injustiça dos homens iníquos
e que, sob o amparo dela, tenhamos vida pacífica e tranqüila.68 Pois bem, visto
que ela realmente nos seria dada inutilmente para a nossa proteção, se não fosse
permitido fazer uso de tal benefício, segue-se manifestamente que não cometeremos pecado ao rogar e requererc o serviço e os benefícios da lei.
Mas tenho que lidar com duas classes de pessoas. Porque muitos se inflamam de tanto desejo de meter-se em pleitos que jamais ficam tranqüilos, se não
estiverem em contendas contra outras pessoas. Além disso, sempre começam os
seus pleitos com ódio mortal e com um desejo desordenado de prejudicar os
outros, de vingar-se e de persegui-los com empedernida obstinação, até levar à
ruína os seus adversários. Entretanto, para parecer que tudo o que fazem é correto, defendem a sua perversidade acobertados por seu apelo à justiça. Mas do fato
de que se permite a toda e qualquer pessoa que contenda em juízo com o seu
próximoa para fazê-lo chegar à razão, não se segue que também lhe é lícito odiálo, querer prejudicá-lo e persegui-lo obstinadamente, sem misericórdia.b
Portanto, que as pessoas desse jaez aprendam esta máxima: Os tribunais
são legítimos para os que os usam retamente. Que aprendam também que assim é
o bom e reto uso deles:c Primeiro, se o demandanted foi tratado abusiva e injustamente e foi oprimido, quer no corpo quer em seus bens, vem colocar-se sob a
proteção do magistrado e lhe expõe a sua queixa e a sua petição justa e imparcial.
Que o faça, porém, sem nenhum desejo de vingança nem de causar dano ao próximo, sem ódio, sem amargor e sem se deixar levar pelo ardor da contenda. Ao
contrário, mostrando-se mais disposto a fazer concessão e a sofrer o que lhe sobrevenha, do que a conceber ira e ódio contra o seu adversário.
Segundo, o acusado, se foi citado, comparece no dia marcado e defende a
sua causa com os melhores argumentos e explicações que puder apresentar. Mas
67
Rm 13.4.
Deus “designou os magistrados para que governem o mundo de forma justa e legítima. Ainda que as autoridades ditatoriais e injustas não devem ser classificados como governos ordeiros, todavia o direito de governar é ordenado por Deus visando o bem-estar da humanidade.” [João Calvino, Exposição de Romanos,
(Rm 13.1), p. 451]. NE
b. implorare pie non possint.
c. appellari (termo do direito romano); requérir (utilizado no direito francês).
a. fratrem.
b. Duas palavras acrescentadas em 1541.
c. 1536 e 1539 acrescentam: tum actori, agendi, tum defendendi, reo,
d. Segue-se em 1536 e 1539 a ordem inversa.
68
183
que o faça sem nenhum rancor ou amargor, mas com o simples desejo de conservar o que for justo.
Por outro lado, se os corações estão dominados pela maldade, corrompidos
pela inveja, inflamados pela cólera e acicatados pelo desejo de vingança, ou, se
estiverem tão irritados que a caridade sofra detrimento, todos os procedimentose
realizados pelas causas mais justas do mundo só poderão ser considerados ímpios
e maus.f Porque todos os cristãos devem ter como assunto resolvido que ninguém
pode conduzir nenhum processo, ainda que a sua causa seja justa e boa, se não tiver
para com a parte contrária o mesmo sentimento afetuoso e benévolo que teria se a
demanda entre eles já tivesse sido solucionada pacífica e amistosamente.
Alguém poderia contestar alegando que jamais se viu um julgamento em
que houvesse tal moderação e equilíbrio e que, se alguma vez se visse alguém
agir dessa forma num processo, seria considerado um monstruoso prodígio.a Certamente reconheço que, dada a perversidade dos homens nos dias atuais, não se
encontram bons exemplos de demandantes justos, mas o que acima dissemos não
deixa de ser algo bom e puro, se for considerado em si, independentemente das
manchas acaso causadas por outros fatores. De resto, se somos sabedores de que
a ajuda prestada pelo magistrado é um santo dom de Deus, com maior razão
zelosamente devemos evitar manchá-lo com nossas más ações.
8.2 – Condenar a busca da proteção da lei é rechaçar um dom de Deus
Mas aqueles que simplesmente condenam por completo todas as demandas judiciais devem entender que com isso rejeitam uma santa ordenação de Deus e um
dom que pode ser classificado entre aqueles que são puros para os puros.69 Se não
é que queiram acusar o apóstolo Paulo de haver cometido crime por rebater as
mentiras e calúnias dos seus acusadores, chegando a pôr a descoberto os seus
ardis e a sua maldade; também quando requereu o privilégio de cidadão romano
a que tinha direito; e ainda devemos considerar que, quando foi necessário, ele
apelou da sentença iníqua do presidenteb do tribunal, recorrendo ao tribunal da
capital imperial para ser julgado por César, o imperador.70
E não vai contra isso a proibição feita a todos os cristãos no sentido de que
não se deixem levar por desejos de vingança.71 Tais desejos queremos ver excluí69
Tt 1.15
At 22.1,25-29; 25; 24.10; 25.4-12
71
Dt 32.35; Mt 5.39; Rm 12.19. “Embora Deus declare que executará vingança contra nossos inimigos, não
temos o direito de nutrir sede de vingança quando somos injuriados. (...) Os fiéis não devem ser vistos como
a expressar algum desejo de serem saciados com a visão do derramamento de sangue humano, como se
nutrissem muita avidez pelo mesmo.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002,
Vol. 3, (Sl 79.10), p. 259]. NE
e. actio.
f. 1536 e 1539 têm somente: ímpia.
a. prodigii.
b. ab iníquo præside.
70
184
As Institutas – Edição Especial
dos de todos os pleitos dos crentes. Porque, se se trata de matéria civilc pela qual
se pleiteia, não andará retamente aquele que, em vez de entregar com simplicidade e retidão a sua causa nas mãos do juiz como a um tutor e protetor público, não
pensa em nada menos que tornar mal por mal, o que é um desejo de vingança. Se
se trata de um processo em que a causa é de natureza criminal, não aprovo nenhum acusador senão aquele que compareça perante o juiz sem se deixar levar
por nenhum ardor de vingança e sem deixar-se espicaçar pela ofensa específica
que lhe foi feita, mas tendo só o desejo de impedir a maldade de quem o acusa e
de destruir as suas ações malignas, para que não prejudiquem a ordem pública.a
Se for levantada a objeção de que não somente se proíbe ao cristão desejar
vingança, mas também lhe é ordenado que espere a intervenção do Senhor, que
promete socorrer os aflitos e os oprimidos,72 e, portanto, os que requerem a assistência do magistrado para si e para outros antecipam a vingança de Deus, respondo que não é isso que acontece. Porque devemos considerar que a vingança executada pelo magistrado não é do homem, mas de Deus, vingança imposta por
Deus mediante o ministério dos homens, como diz o apóstolo Paulo: “Não é sem
motivo que ela [a autoridade] traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador,
para castigar o que pratica o mal”.73
8.3 – Não nos opomos aos mandamentos de Deus
Também não somos contrários às palavras de Cristo74 por meio das quais Ele nos
proíbe resistir ao mal e nos manda voltar a face esquerda a quem nos ferir a
direita, e dar também a capab a quem demandar tirar-nos a túnica.c O Senhor diz
isso porque certamente exige que o coração dos Seus servos se desfaça por completo do desejo de vingança, preferindo sofrer injúria em dobro a pensar num
modo de devolvê-la à altura; paciência que também reconhecemos que não devemos eliminar do coração. Porque é geralmente necessário que os cristãos sejam
como um povo nascido e formado para sofrer injúrias e afrontas, e para estar
sujeito à maldade, às trapaças e à zombaria dos maus elementos. E não somente
isso, mas também é preciso que suportem com paciência todos esses males, isto
é, que se rejam de coração por este propósito: Se sofrem uma aflição, preparamse para outra, e não esperam outra coisa em toda a sua vida, senão o sofrimento de
uma cruz perpétua.a Entretanto, os cristãos devem fazer o bem aos que os maltra72
Rm 12.17-21
Rm 13.4
74
Mt 5.39,40
c. 1536: civiliter. 1539 tem, por erro: crudeliter.
a. reipublicæ.
b. pallium.
c. tunicam.127
a. Esta idéia, expressa aqui desde 1536, seria desenvolvida em 1539, no capítulo XVII.
127
No original francês: saye. NT
73
185
tam, orar pelos que os maldizem e esforçar-se para vencer o mal com o bem,75 que
é a única vitória verdadeira.
Quando tiverem os seus desejos subordinados a esta disposição, não mais
exigirão “olho por olho, dente por dente”, como os fariseus ensinavam aos seus
discípulos.76 Mas, como Cristo ensina aos Seus, estes suportarão de tal maneira
os males que lhes causarem, a seus corpos ou a seus bens, que estarão prontos a
perdoá-los na mesma hora.
Por outro lado, essa mansidão de coração e esse domínio próprio não impedirão que, mantendo espírito amistoso para com os seus adversários, busquem a
ajuda do magistrado para a preservação da sua segurança e dos seus bens, ou que,
por amor do bem público, exijam a punição dos perversos quando estes se tornam
verdadeiras pragas e só podem ser corrigidos com a devida punição.b
8.4 – Este ensino não contradiz o do apóstolo Paulo
Finalmente, costuma-se objetar falsamente que todos os que recorrem a pleitos e
demandas são condenados pelo apóstolo Paulo.77 É fácil ver por suas próprias
palavras que havia na igreja de Corinto um veemente e desmedido ardor por
demandas, ao ponto de darem ocasião aos ímpios de denegrir o Evangelho e toda
a religião cristã. É que o apóstolo Paulo repreende primeiramente neles o fato de
que, com a intemperança dominante em suas contendas, difamavam o Evangelho
entre os não crentes. Ademais, ele os repreende também por haver forte desacordo entre eles, irmãos contra irmãos, e por estarem tão longe de suportar injúria
que chegavam ao ponto de cobiçar os bens uns dos outros, agredir-se mutuamente e causar dano uns aos outros.
É, pois, essa furiosa fome de contendas que Paulo combate, e não simplesmente as controvérsias em geral. Mas ele declara que é um grave mal não preferir
sofrer o despojo e perder os bens a lutar pela conservação deles, chegando para
isso a travar contendas.
O certo é que os cristãos sempre devem dispor-se a renunciar a seu direito,
em vez de abrir processo, do qual é difícil sair sem que o coração esteja cheio de
ira e inflamado de ódio contra seu irmão. Mas quando o interessado vir que poderá defender seus bens sem prejudicar nem ferir o amor fraterno, se o fizer não
cometerá falta alguma contra a citada sentença do apóstolo Paulo. Principalmente se for algo de grande importância e sua perda lhe seja muito difícil suportar.
Em suma, como dissemos no início, o amor dará excelente conselho a cada
qual. E é tão necessário que em todos os litigantes haja amor, que todos aqueles
que o violama ou o ferem são ímpios e malditos.
75
Rm 12.14,21
Mt 5.38
77
1Co 6.6.
b. Isto explica a atitude de Calvino contra os hereges: Serveto e outros. 1536 e 1539 precisavam, mais rigorosamente
que 1541: “sontem ac pestilentem hominem ad pœnam postulent, quem emendari, nisi morte, non posse noverint”.
a. Sine qua suscipiuntur et ultra quam progrediuntur.
76
186
As Institutas – Edição Especial
8.5 – Deve-se respeito às autoridades
O primeiro dever dos súditos ou dos cidadãos para com os seus superiores é ter
em alta estima a posição deles, reconhecendo-a como comissionada ou delegada
por Deus. Por essa razão, de vem honrá-los e reverenciá-los como representantes
ou assessores substitutos de Deus.b Há alguns que se mostram muito obedientes
aos seus magistrados e revelam que não gostariam que deixassem de existir tais
ou quais autoridades, dispondo-se a sujeitar-se a elas, pois reconhecem sua utilidade para o bem do povo; todavia, consideram o magistrado nada mais que um
mal necessário, indispensável ao gênero humano. Mas o apóstolo Pedro exige
muito mais de nós, quando manifesta o seu desejo de que honremos o rei; como
também Salomão, quando nos manda temer a Deus e ao rei.78 Porque, pela palavra honrar o apóstolo Pedro abrange a idéia de boa opinião que devemos ter dos
reis e da alta estima e consideração que devemos ter por eles. Salomão, unindo o
rei e Deus, atribui ao rei grande dignidade e reverência.79
O apóstolo Paulo também coloca as autoridades numa alta categoria, quando declara que devemos estar sujeitos a elas “não somente por causa do temor da
punição, mas também por dever de consciência”.80 Com isso ele nos dá a entender que os súditos não devem ser induzidos a manter-se sob a sujeição dos seus
príncipes pelo medo e pavor de serem punidos por eles, como alguém que, sentindo-se mais fraco, cede à força do seu inimigo, vendo já aprestada contra ele a
vingança do mais forte, caso resista. Em vez disso, os súditos devem manter sua
obediência pelo temor de Deus, como estando a serviço do próprio Deus, visto
que o poder dos príncipes lhes vem de Deus.a
8.6 – A obediência devida aos superiores
Do que acima foi dito segue-se outro ponto, qual seja: Tendo assim em honra e
reverência os superiores, os cidadãos devem estar sujeitos a eles com toda obediência, seja a obediência que devem às ordens deles emanadas, seja no pagamento
de impostos, seja que devam ocupar-se de algum cargo público com vistas à defesa comum, seja ainda para atender a qualquer exigência ou mandado. “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores,” diz o apóstolo Paulo; “porque não
há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por
78
1Pe 2.17; Pv 24.21. [Aqui (1Pe 2.17) Calvino omite a referência de Pedro a temer a Deus. No Comentário de
1 Pedro, in loco, ele a inclui. NT]
79
Como ele escreveu supra: “A Escritura, visando pôr obstáculo aos maus juízos humanos, afirma expressamente que é pela ação da providência e da sabedoria divinas que os reis reinam, e em especial ordena:
“Honrai o rei” (Pv 8.1,15; 1Pe 2.17)” [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.16]. NE
80
Rm 13.5
b. ministros ac legatos. A Instrução de 1537 traz: “O dever mútuo dos súditos é de não somente honrar e
reverenciar seus superiores, mas também de encomendá-los ao Senhor em orações por sua saúde e prosperidade”. [Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Barcelona, Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 83-84].
a. eorum potestas a Deo.
187
ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação
de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação”.81 E a Tito ele
escreve: “Lembra-lhes que se sujeitem aos que governam, às autoridades; sejam
obedientes, estejam prontos para toda boa obra”.82 Igualmente diz o apóstolo Pedro:
“Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor, quer seja ao rei,
como soberano, quer às autoridades, como enviadas por ele, tanto para castigo
dos malfeitores como para louvor dos que praticam o bem”.83
Ademais, para que os súditos dêem testemunho de que obedecem não com
fingimento mas com sinceridade e de boa vontade, o apóstolo Paulo acrescenta que
eles devem pedir em suas orações a Deus a conservação e a prosperidade daqueles
sob cuja autoridade eles vivem. “Antes de tudo, pois”, diz ele, “exorto que se use a
prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os
homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade,
para que vivamos vida tranqüila e mansa, com toda piedade e respeito”.84
E que ninguém se enganea aqui. Porque não se pode resistir aos magistrados
sem resistir a Deus. Embora pareça que se pode enfrentar impunemente um magistrado fraco e incapaz, todavia Deus é forte e poderoso para vingar o desprezo
votado à Sua ordenação.
Além do que já foi dito, sob esta obediência eu incluo a moderação que
todas as pessoas particulares ou privadas devem manter com relação aos negócios e assuntos públicos. Quer dizer, não devem intrometer-se por iniciativa própria, nem querer influir temerariamente no ofício do magistrado, nem tentar coisa alguma em público. Se houver alguma falta ou falha do governo que requeira
correção, não devem por isso promover tumulto,b nem se meter a determinar
como pôr as coisas em ordem, nem pôr mãos à obra – as quais estão atadas no que
se refere a essa questão. O que devem fazer é uma representação à autoridade
superior,c pois somente ela tem as mãos livres para resolver as questões públicas.
Entendo que não devem fazer nada destas coisas, a não ser que sejam requisitados para tal. Neste caso, quando a ordem lhes vem de um superiora, eles ficam
garantidosb ou credenciados pela autoridade pública. Porque, assim como se costuma dizer que os conselheiros de um príncipe são seus olhos e seus ouvidos,85 visto
que lhes cabe estar atentos a tudo por ele, assim também se pode dizer que são suas
mãos aqueles que dele recebem ordem para executar o que for necessário fazer.
81
Rm 13.1,2
Tt 3.1
83
1Pe 2.13,14
84
1Tm 2.1,2
85
Xenofonte, Ciropedia, VIII, 2 e 10. NT.
a. Quer dizer: Que ninguém se engane (fallat).
b. tumultuentur.
c. magistratus.
a. præfecti.
b. præditi.
82
188
As Institutas – Edição Especial
Sendo que até aqui descrevemos o magistrado como este deve ser,
correspondendo verdadeiramente a seu título, a saber, agindo como pai da naçãoc
por ele governada, pastor do povo, guardião da paz, protetor da justiça, defensor
e mantenedord da inocência, quem reprovasse tal governo deveria com razão ser
considerado fora de si.
8.7 – Sobre os magistrados e as autoridades governamentais infiéis
Mas, o que acontece freqüentementee é que, em sua maioria, os príncipes se afastam do reto caminho.f Alguns, não se preocupando nem um pouco com o seu dever,
dormem em seus prazeres e volúpias;g outros, tendo o coração posto na avareza,
põem à venda todas as leis e todos os privilégios, direitos e juízos; outros despojam
o pobre povo comumh para suprir-se de recursos para os seus gastos e esbanjamentos desregrados; outros praticam verdadeiro banditismo, assaltando e pilhando casas, estuprando mulheres solteiras e casadas, e matando inocentes.
Não é fácil persuadir muitos de que devem reconhecer a autoridade de tais
príncipes e que lhes devem obedecer quanto possível. Porque, quando se vêem
rodeados de vícios e crimes tão grandes e tão distantes, não somente do que deve
ser o ofício da autoridade governamental, mas também de todo senso de humanidade, os cidadãos não vêem em seus superiores nenhum vestígio da imagem de
Deus, a qual deve reluzir num magistrado, e não vêem neles nada que lhes lembre
um ministro de Deus, dado para louvor dos bons e castigo dos maus, e, igualmente, não reconhecem neles aquela dignidade e autoridade que a Escritura determina que reconheçamos e respeitemos. E o certo é que este sentimento está arraigado no coração dos homens: Odeiam e abominam os tiranos não menos que amam
e reverenciam os reis justos.
8.8 – Os maus governos são dados como castigo do povo, e devem ser respeitados
Entretanto, se pusermos os nossos olhos na Palavra de Deus, ela nos levará para
mais longe. Porque nos faz obedecer não somente ao governo dos príncipes que
desempenham com retidão o seu ofício e cumprem lealmente o seu dever, mas
também a todos os que ocupam algum lugar de preeminência, ainda que pouco ou
nada façam daquilo que é requerido por sua condição e posição. Porque, ainda
que o Senhor declare que o magistrado ou os homens do governo constituem um
dom da sua liberalidade, concedido para conservação do bem-estar dos homens,
e lhes ordena o que lhes compete fazer, não obstante igualmente declara que, seja
como for comoa governam, o poder que eles têm é de Deus, e de mais ninguém.
c. Pater patriæ
d. vindex.
e. at cum omnium prope sæculorum hoc exemplum sit.
f. Frase acrescentada em 1541.
g. Frase acrescentada em 1541.
h. plebeculam.
a. 1536 e 1539 têm somente: qualescunque sint. 1541 tem, por erro: ne convient; 1562: comment.
189
De tal maneira isso ocorre que aqueles que exercem bem o poder de governar são
verdadeiros espelhos e como que exemplares demonstrativos da Sua generosidade e bondade. Por outro lado, os que se portam injusta e violenta ou abusivamente,
são elevados por Deus a essa posição para por esse meio punir a iniqüidade do
povo.b Mas, tanto os bons governos como os maus têm a dignidade e a majestade
que Ele outorga às autoridades superiores legítimas.c
Não irei adiante enquanto não citar alguns testemunhos da Palavra86 para
comprovar firmemente o que eu disse. Ora, não é preciso grande esforço para
demonstrar que um mau rei é a ira de Deus sobre a terra – o que eu acredito que
é fato aceito e resolvido por todo o mundo, sem haver quem o contradiga. Do rei
que assim procede não diremos mais que o que dizemos de um ladrão, que rouba
os nossos bens; ou de um adúltero, que destrói o casamento; ou de um homicida,
que procura dar cabo da nossa vida – calamidades registradas na Lei entre as
maldições de Deus.87 Mas devemos insistir em provar e demonstrar algo que não
pode penetrar facilmente no espírito do homem. É o seguinte: O homem perverso
e totalmente indigno de honra, se obtiver posição de autoridade superior, nele
residirão, apesar de tudo, a mesma dignidade e o mesmo poder que, por Sua
Palavra, Deus outorgou aos ministros da Sua justiça; e os cidadãos, tendo em
vista a obediência que devem a seus superiores, deverão também prestar-lhe a
mesma reverência que prestariam a um bom rei, caso o tivessem.
8.9 – Os governos estão sob o poder e a providência de Deus
Inicialmente, exorto os leitores a considerarem e observarem diligentemente a
providência de Deus e a operação especial da qual Ele faz uso para distribuir os
reinos e estabelecer os reis como Lhe apraz, verdade freqüentemente mencionada na Escritura. Em Daniel, por exemplo, está escrito: “É ele [Deus] quem muda
o tempo e as estações, remove reis e estabelece reis”.88 E mais: “Que conheçam
os viventes que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens; e o dá a quem
quer e até ao mais humilde dos homens constitui sobre eles”.89 Tais sentenças,
embora figurem com freqüência em toda a Escritura, são peculiarmente repetidas, e não poucas vezes, nesta profecia de Daniel.
Sabe-se muito bem que Nabucodonosor, que tomou Jerusalém, era um grande
ladrão e saqueador. Contudo, o Senhor afirma, por meio do profeta Ezequiel, que
Ele lhe deu a terra do Egito como paga do seu trabalho com o qual O servira
86
Jó 34.30; Is 3.4; 10.5; Os 13.11
Dt 28.15-68
88
Dn 2.21. [Ver também o versículo 37.]
89
Dn 4.17
b. Instrução de 1537: “Assim como um bom príncipe é um testemunho da benignidade divina..., assim também um príncipe ímpio e mau é um açoite de Deus para castigar os pecados do povo”. [Juan Calvino, Breve
Instruccion Cristiana, p. 84].
c. 1541 tem, por erro: aos superiores legítimos. 1536 e 1539: omnes ex æquo sancta illa majestate esse præditos,
qua legitimam potestatem instruxit.
87
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As Institutas – Edição Especial
saqueando aquele país e espalhando o seu povo.90 E a esse rei Daniel disse: “Tu,
ó rei, rei de reis, a quem o Deus do céu conferiu o reino, o poder, a força e a
glória, a cujas mãos foram entregues os filhos dos homens, onde quer que eles
habitem, e os animais do campo e as aves do céu, para que dominasses sobre
todos eles”.91 E pelo mesmo Daniel foi igualmente dito ao rei Belsazar:92 “Ó rei!
Deus, o Altíssimo, deu a Nabucodonosor, teu pai, o reino e grandeza, glória e
majestade. Por causa da grandeza que lhe deu, povos, nações e homens de todas
as línguas tremiam e temiam diante dele”.93 Ao sabermos que tal homem foi constituído rei por Deus, tratemos de recordar também a determinação celeste que nos
manda temer e honrar o rei, e assim não hesitaremos em dar a um tirano, por mau
que seja, a honra da qual o Senhor o terá feito digno.
Quando Samuel revelou ao povo de Israel o que sofreria dos seus reis, disse: “Este será o direito do rei que houver de reinar sobre vós: ele tomará os vossos
filhos e os empregará no serviço dos seus carros e como seus cavaleiros, para que
corram adiante deles; e os porá uns por capitães de mil e capitães de cinqüenta;
outros para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para
fabricarem suas armas de guerra e o aparelhamento de seus carros. Tomará as
vossas filhas para perfumistas,a cozinheiras e padeiras. Tomará o melhor das vossas lavouras, das vossas vinhas, e dos vossos olivais e o dará aos seus servidores.
As vossas sementeiras e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais e
aos seus servidores.b Também tomará os vossos servos, e as vossas servas, e os
vossos melhores jovens, e os vossos jumentos e os empregará no seu trabalho.
Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe sereis por servos”.94 É evidente que os reis
não poderiam fazer isso de maneira justa, porque a esse respeito eram instruídos
pela Lei no sentido de conduzir-se com moderação e sobriedade.95 Mas Samuel
descreve tudo isso como autoridade sobre o povo,a pelo que lhe cabia obedecer e
não lhe era lícito resistir. Como se dissesse: “A cupidez dos reis será imensa,
levando-os a fazer todas essas coisas ultrajantes, mas não cabe a vós reprimi-la; o
vosso dever é ouvir as suas ordens e obedecê-las.”
8.10 –Reforço bíblico à exigência de obediência às autoridades constituídas
– boas ou más
Há em Jeremias, porém, uma passagem mais notável que as demais. 96 É um tanto
longa, mas será bom transcrevê-la aqui, uma vez que ela estabelece definitiva90
Ez 29.19,20
Dn 2.37,38
92
“O pior de todos os blasfemadores de Deus” [João Calvino, O Profeta Daniel: Capítulos 1-6, São Paulo,
Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 2.36-39), p. 148]. NE
93
Dn 5.18,19
94
1Sm 8.11-17
95
Dt 17.16-20
96
Jr 27.5-8,17. [NVI, mais de acordo com o texto utilizado no original francês. NT]
a. pigmentariæ.
b. eunuchis.
a. jus in populum vocabatur.
91
191
mente toda esta questão. “Eu fiz a terra, os seres humanos e os animais que nela
estão”, disse o Senhor, “com o meu grande poder e com meu braço estendido, e
eu a dou a quem eu quiser. Agora, sou eu mesmo que entrego todas essas nações
nas mãos do meu servo Nabucodonosor, rei da Babilônia; sujeitei a ele até mesmo os animais selvagens. Todas as nações estarão sujeitas a ele, a seu filho e a
seu neto; até que chegue a hora em que a terra dele seja subjugada por muitas
nações e por reis poderosos. ... Sujeitem-se ao rei da Babilônia, e vocês viverão”.
Por essas palavras ficamos sabendo com quão grande obediência o Senhor
quis que aquele tirano perverso e cruel fosse honrado; não por outra razão senão
porque ele possuía o referido reino. Essa possessão por si só mostra que ele foi
colocado no trono pela ordenação de Deus e que por essa ordenação ele foi elevado à majestade real que não era lícito violar. Se a sentença acima transcrita estiver bem clara e firme em nosso coração, quer dizer, se ficarmos plenamente convencidos de que pela mesma ordenação de Deus pela qual é estabelecida a autoridade de todos os reis também os reis iníquos vêm a ocupar o poder, jamais virão
ao nosso espírito estas cogitações sediciosas: que o rei deve ser tratado segundo
merece; e que não é razoável que estejamos sujeitos a alguém que de sua parte
não se porta como rei para conosco.97
[1539] Inutilmente se levantará aqui a objeção segundo a qual este mandamento foi dado em particular ao povo de Israel. Basta examinar a razão sobre a
qual ele se baseia: Eu dei o reino a Nabucodonosor, disse o Senhor,98 e, portanto,
“sujeitem-se ao rei da Babilônia, e vocês viverão”.99 Não há nenhuma dúvida de
que se deve submissão a quem quer que venha a ocupar superior posição de
autoridade. Pois bem, quando o Senhor eleva qualquer pessoa à realeza ou ao
governo, com isso declara que a Sua vontade é que tal pessoa reine ou exerça o
governo. Porque é geral o testemunho disso na Escritura. Como se lê no capítulo
28 de Provérbios:100 “Por causa da transgressão da terra, mudam-se freqüentemente
os príncipes”. E no Livro de Jó:101 “[Deus] dissolve a autoridade dos reis, e uma
corda lhes cinge os lombos”. Tendo reconhecido isso, só nos resta servi-los, se
quisermos viver.
[1536] Também nos escritos do profeta Jeremiasa102 há outra determinação
de Deus pela qual Ele ordena a Seu povo que deseje a prosperidade da Babilônia,
97
Nenhum rei “governa senão pela vontade de Deus.” [João Calvino, O Profeta Daniel: Capítulos 1-6, Vol. 1,
(Dn 2.36-39), p. 148]. NE
98
Jr 27.6,17.
99
“.... Nabucodonosor foi levantado de maneira especial para estar bem acima de todos os demais monarcas.”
[João Calvino, O Profeta Daniel: Capítulos 1-6, Vol. 1, (Dn 2.36-39), p. 148]. NE
100
Pv 28.2. No original francês, por engano: Jó NT
101
Jó 12.18. O texto que consta no original francês diz: “Ele destrói a sujeição imposta pelos tiranos, e novamente os exalta em poder”. Ver também: Sl 102.10 e Dn 2.21. NT
102
No original francês: “Há também no mesmo profeta...”. NT
a. Esta expressão não leva em conta o acréscimo do parágrafo precedente, feito em 1541. Em 1536 há: apud
eundem, e o texto de 1541 parece, pois, traduzir conforme consta aqui (quiçá a partir de uma edição francesa
anterior). Em 1539 há: segundo o profeta Jeremias.
192
As Institutas – Edição Especial
na qual estava cativo, e manda: “orai por ela ao Senhor; porque na sua paz vós
tereis paz”.103 Eis aíb como é ordenado aos israelitas que orem pela prosperidade
daqueles pelos quais foram derrotados, embora aqueles os tenham despojado de
todos os seus bens, os tenham posto fora das suas casas, e os tenham desterrado e
lançado a uma escravidão miserável. E não somente a eles foi ordenada tal coisa,
mas também a todos nós é ordenado que oremos por nossos perseguidores. Mas
essa foi a ordem que receberam para que o reino deles florescesse em paz, e para
que, submissos a eles, vivessem em paz.104
Essa é a razão pela qual Davi, já eleitoa como rei pela determinação de
Deus, e tendo sido ungido com o óleo santo, apesar de perseguido impiamente
por Saul, sem que lhe desse motivo, não obstante considerava a cabeça de Saul
como santa e sagrada, porque o Senhor o havia santificado honrando-o com a
majestade real.b “O Senhor me guarde de que eu faça tal cousa ao meu senhor”,
disse ele, “isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor”.105
E mais: “A minha mão te poupou”, disse Davi a Saul; “porque [eu] disse: Não
estenderei a mão contra o meu senhor, pois é o ungidoc de Deus”.106 E ainda:
“Quem haverá que estenda a mão contra o ungido do Senhor e fique inocente?
Acrescentou Davi: Tão certo como vive o Senhor, este o ferirá, ou o seu dia
chegará em que morra, ou em que, descendo à batalha, seja morto. O Senhor me
guarde de que eu estenda a mão contra o seu ungido”.107
8.11 – Sigamos o exemplo de Davi, acima exarado
Enquanto tais ou quais autoridadesd dominam sobre nós, devemos ter para com
elas o mesmo sentimento de reverência que vemos em Davi, sejam elas como
forem. Isso eu repito múltiplas vezes, a fim de que aprendamos a não especulare
no sentido de verificar quais e como são as pessoas a quem devemos obedecer,
103
Jr 29.7.
“A depravação humana não é razão para não se ter em alto apreço as instituições divinas no mundo. Portanto, visto que Deus designou magistrados e príncipes para a preservação do gênero humano, e por mais que
fracassem na execução da designação divina, não devemos, por tal motivo, cessar de ter prazer naquilo que
pertence a Deus e desejar que seja preservado. Eis a razão por que os crentes, em qualquer país em que
vivam, devem não só obedecer às leis e ao comando dos magistrados, mas também, em suas orações, devem
defender seu bem-estar diante de Deus. Disse Jeremias aos israelitas: ‘Orai pela paz de Babilônia, porque,
em sua paz, tereis paz’ [Jr 29.7]. Eis o ensino universal da Escritura: que aspiremos o estado contínuo e
pacífico das autoridades deste mundo, pois elas foram ordenadas por Deus.” [João Calvino, As Pastorais,
São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 2.2), p. 56-57]. NE
105
1Sm 24.6
106
1Sm 24.10
107
1Sm 26.9-11
b. 1536 e 1539: Ecce. 1560: Voilá (omisso em 1541).
a. ordinatus.
b. regni honore.
c. Acréscimo feito em 1541.
d. præfectis.
e. excutere.
104
193
mas que nos contentemos em saber que pela vontade do Senhor elas foram colocadas nessa posição,a à qual Ele conferiu majestade inviolável.
Mas alguém dirá que, reciprocamente, há também um dever dos superiores
para com os súditos. Já declarei isso. Contudo, se alguém quiser inferir disso que
só se deve obediência a um senhor justo, estará pervertendo o argumento. Consideremos: Os maridos e pais estão obrigados a certos deveres para com suas respectivas esposas e para com os seus filhos. Ora, se acontece que eles cumprem
mal os seus deveres, isto é, que os pais tratam rudemente os seus filhos e os
humilham injuriosamente, sendo que lhes é ordenado que não os provoquem à
ira,108 e que os maridos menosprezam e atormentam suas respectivas esposas,
sendo que, pelo mandamento de Deus, eles devem amá-las e protegê-las como
parte mais frágil,109 deveriam, portanto, os filhos deixar de ser obedientes a seus
pais, e as mulheres a seus maridos? Ora, pela Lei de Deus eles e elas terão que
lhes ser sujeitos, ainda que maridos e pais sejam ímpios e maus.
Ao contrário, então,b o fato é que nenhum de nós deve ficar verificando
como o outro cumpre ou não o seu dever, mas cada um de nós deve tão-somente
ter em mente e diante dos olhos o que deve fazer para cumprir o seu próprio
dever. Esta consideração deve ter em vista principalmente aqueles que estão sujeitos a outrem. Por isso, se somos tratados cruelmente por um príncipe desumano; ou explorados e saqueados por um avarento ou esbanjador; ou desprezados e
mal protegidos por um negligente; se até somos afligidos por um sacrílego e
incrédulo porque honramos o nome de Deus – a primeira coisa que temos que
fazer é trazer à memória as ofensas que temos cometido contra Deus, as quais
sem dúvida são corrigidas com tais açoites.110 Em segundo lugar, pensemos que
não está em nossas mãos remediar esse mal, mas que só nos resta implorar o
socorro de Deus, em cujas mãos está o coração dos reis e as mudanças dos reinos.111 Deus é quem se assenta entre os deuses e os julga, e ao simples olhar dele
cairão e serão confundidos todos os que não beijarem o Filho, Cristo, os quais
“decretam leis injustas... escrevem leis de opressão, para negarem justiça aos
pobres, para arrebatarem o direito aos aflitos do meu povo, a fim de despojarem
as viúvas e roubarem os órfãos!”112
8.13 – Deus suscita e arma libertadores
Neste ponto se vê a maravilha da bondade, do poder de Deus e da providência de
Deus, pois há ocasiões em que ele suscita manifestamente alguns dos Seus servos
108
Ef 6.4
Ef 5.25; 1Pe 3.7
110
Dn 9.7,8
111
Pv 21.1
112
Sl 82.1; 2.9,12; Is 10.1,2
a. personam.
b. 1536 e 1539 acrescentam aqui um provérbio latino: ne in manticam a tergo pendentem respectent; hoc est etc.
109
194
As Institutas – Edição Especial
e os arma, sob Suas ordens,a para, por meio deles, punir aqueles que exercem
domínio injusto e para livrar da calamidade o povo perversamente oprimido. Por
vezes Ele converte e canaliza para essa obra líderes que pensavam e maquinavam
coisa diferente.
Exemplos do primeiro método são os atos pelos quais Deus libertou, por
meio de Moisés, o povo de Israel da tirania do Egito; por meio de Otniel o tirou
da sujeição a Cusã-Risataim, rei da Síria; e por meio de outros, tanto reis como
juízes, libertou Seu povo de diversas opressões e escravidões. b113
Quanto ao segundo método, Ele fez uso dos assírios para reprimir a insolência dos egípcios; dos egípcios para reprimir o orgulho de Tiro; dos assírios
para abater a altivez dos egípcios; dos caldeus para calar a insolência dos assírios;
dos medos e dos persas para acabar com a presunçãoc da Babilônia; e fez uso
tanto dos assírios como dos babilônios para castigar a ingratidão dos reis de
Judá e de Israel.d
Tanto os do primeiro caso como os do segundo, todos foram ministros de
Deus e executores da Sua justiça; contudo, há grande diferença entre uns e outrosa.
Porque os primeiros, visto que eram chamados por Deus, mediante legítima vocação, para empreender aqueles feitos, ao se rebelarem contra os reis não violavam a majestade real dada a eles por Deus, mas corrigiam um poder inferior por
um maior, da mesma forma como é lícito a um rei castigar seus assessores e seus
oficiais.b Os segundos, embora, guiados pela mão de Deus para onde Lhe aprazia,
realizassem a obra de Deus sem o saber, em seu coração não alimentavam outra
idéia, senão a de fazer o mal. Ora, apesar de os referidos atos, [1541] com relação
aos que os praticavam, serem muito diferentes, porque uns os praticavam seguros
de que faziam o bem, e os outros por zelo ou interesse mui diverso, como dissemos,c
[1536] todavia o Senhor, tanto por meio de uns como de outros executou igualmente a obra que intentava realizar, quebrando os cetros dos maus reis e destruindo as dominações ultrajantes e abusivas.114
113
Êx 3.8; Jz 3.7-11 e os capítulos subseqüentes
“Os ladrões e os homicidas, e os demais malfeitores, são instrumentos da divina providência, dos quais o
próprio Senhor Se utiliza para executar os juízos que em Si determinou.” (João Calvino, As Institutas,
I.17.5). Comentando a investida de Satanás contra Jó, arremata: “Concluímos que desta provação de que
Satanás e os perversos salteadores foram os ministros, Deus foi o autor.” (João Calvino, As Institutas,
I.18.1). NE
a. mandato suo instruit.
b. 1536 e 1539 têm somente: servitiis
c. 1536: ferociam. 1539: confidentiam.
d. 1539 acrescentou a 1536: et erga tot sua beneficia impiam contumaciam. Parece, ainda aqui, que a tradução
de 1541 foi feita mais do texto de 1536 que do de 1539.
a. Esta frase substitui as seguintes palavras latinas: quanquam non eadem omnia ratione.
b. 1536 e 1539 têm somente: satrapas.
c. Três frases acrescentadas em 1541.
114
195
8.14 – Advertências aos que governam e aos governados
Eia! Que os príncipes considerem bem estas coisas, e tremam de terror!d E
quanto a nós, cuidemos de não desprezar ou insultar a autoridade dos superiorese,
autoridade que devemos considerar cheia de majestade, visto que é confirmada
por tantas declarações de Deus, mesmo quando ocupada por pessoas completamente indignas e que, no que depende delas, a mancham e a corrompem com
sua maldade. Porque, embora o corretivo do governo abusivo seja vingança de
Deus, não obstante não se segue que esta nos seja permitida e que seja entregue
em nossas mãos, sendo que a nós não é dada outra ordem senão a de obedecer e
sofrer pacientemente.
Falo sempre das pessoas particulares ou que só cuidam de interesses privados. Porque, se agora houvesse magistrados ou autoridades constituídas particularmente para defesa do povo, visando refreara a excessiva cobiça e licença dos
reis, como antigamente os lacedemônios tinham aqueles que eles chamavamb
éforos, e os romanos os seus defensores populares;c como igualmente os atenienses
tinham os seus demarcas,d115 como também é possível que haja atualmente em
cada reino os três estados, quando se reúnem em suas assembléiase. Aos que são
constituídos nas respectivas instâncias ou estados,f de maneira nenhuma me oponho a que resistam à intemperança ou à crueldade dos reis, conforme o dever que
lhes cabe. E declaro que, se eles disfarçarem ou se omitirem, vendo que os reis
oprimem desordenadamente o pobre povo, eu considerariag tal omissão um verdadeiro perjúrio, pelo qual estariam traindo maldosamente a liberdade do povo,
da qual eles deveriam saber que pela vontade de Deus foram ordenados tutores.116
8.15 – Exceção à regra de obediência às autoridades superiores
Mas sempre é necessário que haja uma exceção à norma de obediência que ensinamos, ou melhor, que haja uma regrah que se deve cumprir antes e acima de tudo
115
Demarca, do grego [dh/marxoj] “demarchos”, literalmente o que comanda o povo. Chefe eleito de um demo
(divisão administrativa das antigas cidades gregas, principalmente Atenas). NT
116
Resultante deste ensino, surgiu mais tarde a doutrina reformada sobre o direito de resistência aos tiranos, e,
por sua vez, indiretamente, a idéia de monarquia constitucional. NT
d. audiant et terreantur!
e. magistratuum.
a. moderandum.
b. Quatro palavras acrescentadas em 1541. 1536 e 1539 têm: regibus oppositi erant ephori.128
c. aut Romanis consulibur tribuni plebis.
d. aut Atheniensium senatui, demarchi.
e. (os Estados Gerais), cum primarios conventus peragunt.
f. frase acrescentada em 1541.
g. non carere affirmam perfídia.
h. Palavra acrescentada em 1541. Cf. Instrução de 1537. “Na obediência aos superiores, sempre se deve
excetuar uma coisa: que ela não nos retire da obediência Àquele a cujos editos convém que os mandamentos
de todos os reis cedam,” etc... Melhor é esta sentença: “Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”.
128
O original francês nesta nota contém, entendo que por engano: ...acrescentadas em 1541, 1536 e 1539 tem:
regibus etc.
196
As Institutas – Edição Especial
mais. É que tal obediência não nos afaste da obediência Àquele sob cuja autoridade é lógico que todos os desejos dos reis se contenham, e que todas as suas
determinações cedam à ordenação divina, e que toda altivez se humilhe e se abaixe sob a Sua majestade. E, para dizer a verdade, que perversidade seria, para
contentar os homens, incorrer na indignação daquele por amor de quem obedecemos aos homens!
O Senhor é, pois, o Rei dos reis, e, no momento em que Ele abrei a Sua
santíssima boca, deve ser ouvido acima de todos, por todos, e antes de todos.117
Depois dele devemos sujeitar-nos aos homens que tenham preeminência sobre
nós; não de outra maneira, porém, senão em Deus e com Deus. Se eles ordenarem
alguma coisa que vá contra Ele, não lhe devemos dar a mínima atençãoa. E nisso
não fazem nenhuma injúria à dignidade do superior, quando este se submete ao
poder e à direção de Deus, sendo que Ele é o único poder verdadeiro, comparado
com os demais.118
8.16 – “Sê fiel até à morte...”
Sei muito bem o risco que corre quem seguir a constância fiel que solicito aqui,
porque em geral os reis não conseguem tolerar que os humilhem;b sua indignação, como diz Salomão, é mensageira de morte.119 Mas como foi proclamado o
seguinte edito pelo arauto dos céus, o apóstolo Pedro, que “antes, importa obedecer a Deus do que aos homens”,120 contamos com esta consolação: Considerar
que verdadeiramente prestamos a Deus a obediência que Ele requer quando preferimos sofrer tudo quanto nos sobrevenha a desviar-nos da Sua santa Palavra. E
mais, para que não nos falte coragem, o apóstolo Paulo nos espicaça com outro
aguilhão,121 dizendo que fomos comprados por Cristo por um preço tão alto que
Lhe custou o sacrifício redentor, para que não nos façamos escravos da concupiscência dos homens, e, muito menos, da sua impiedade.
117
“O Senhor espera que seus servos sejam solícitos e prazerosos em obedecê-lo, em demonstrar alegria, agindo sem qualquer hesitação. Resumindo, Paulo quer dizer que a única maneira para se fazer justiça à sua
vocação seria desempenhando sua função com um coração voluntário e de forma solícita.” [J. Calvino,
Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Edições Paracletos, 1996, (1Co 9.17), p. 278]. NE
118
“Sem dúvida há de fazer-se sempre uma exceção, quando se fala da obediência devida às autoridades, a
saber: que esta obediência não deve afastar-nos da obediência a Aquele cujos mandamentos devem anteporse aos de todos os reis. O Senhor é o Rei dos reis e todos devem obedecer a Ele somente, porque Ele falou por
sua santa boca, e a Ele se deve ouvir antes de mais ninguém. NE
“Em fim, tão somente em Deus estamos submetidos aos homens que têm sido postos sobre nós. E se
nos ordenam algo contra o Senhor, não devemos dar nenhuma atenção, senão colocar em prática esta
máxima da Escritura: ‘Temos de obedecer antes a Deus que aos homens’. (At 4.19)”. [Juan Calvino, Breve
Instruccion Cristiana, Barcelona, Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 84]. NE
119
Pv 16.14
120
At 5.29
i. aperuit. 1541 tem, por erro: œvre [ouvre].
a. nullo sit nec loco nec numero.
b. contemni.
197
CAPÍTULO XVIIa
SOBRE A VIDA CRISTÃ
1. Introdução
[1539] Dispondo-me a descrever em que consiste a vida do cristão, sei que entro
num assunto amplo e muito diversificado, que poderia encher um grande volume,
se eu quisesse abranger tudo quanto contém. Sabemos muito bem como são prolixas as exortações dos doutores antigosb quando tratam de alguma virtude específica. Não é que simplesmente os que exageram no falar tenham culpa disso,
porque sobre qualquer virtude que se queira apreciar e recomendar é tal a abundância de material disponível que parecerá ao mestre que não discutiu bem o
assunto se não consumiu nisso muitas palavras. Bem, não é minha intenção esa. Este capítulo foi acrescentado em 1539 e a tradução não sofreu nenhuma modificação até à edição definitiva
(1560), inclusive, na qual forma quatro capítulos do livro III (VI-IX). O capítulo XXI, o último da segunda
edição francesa (1545), foi publicado em separata por iniciativa de Crespin, pela casa Badius, de Genebra
(Excelente Tratado sobre a Vida Cristã; exemplar existente na Biblioteca do Protestantismo, Paris), e reeditada
em 1551 (exemplar existente no Museu Britânico). Forçado a sair de Genebra, Calvino chegou a Estrasburgo
no início de setembro de 1538; ali ele produziu os comentários das epístolas aos Romanos e aos Coríntios.
Encontraremos numerosas alusões a esses textos, e anotaremos as expressões que explicam as circunstâncias da vida do autor, que aprendeu a “levar a sua cruz”.
Farel, na Epístola acrescentada em 1538 à sua Declaração Sumária, chama Calvino “meu bom
amigo, participante da cruz de Jesus,... não entrando senão pela porta da mui santa vocação”. De 1535 a
1539 Calvino passou por muitas provações; conheceu a pobreza: em maio de 1539 foi-lhe concedida uma
modesta remuneração. Dia 25 de junho de 1539, numa carta destinada aos genebrinos, ele fala da vida
cristã: “Quum pro se singulis ratio reddenda sit vitæ suæ”. Este capítulo XVII provavelmente foi escrito
na primavera, após o retorno do autor a Estrasburgo, voltando da viagem que fizera acompanhando Bucer
a Frankfurt, e anteriormente havia confiado à imprensa de Rihel os 16 capítulos precedentes, já publicados em 1536.
b. veterum
198
As Institutas – Edição Especial
tender-me sobre a doutrinac da vida cristã de que pretendo tratar apresentando
detalhadamente cada virtude e fazendo de cada uma delas longas exortações. Isso
pode ser encontrado em livros de outros autores, principalmente nas homilias ou
sermões popularesd dos doutores antigos. Quanto a mim, considero suficiente
mostrar certa ordem pela qual o cristão possa ser conduzido e dirigido à verdadeira meta que consiste em ordenar adequadamente a sua vida.
2. Método e limites
[1541] Eu me contentarei, pois, em apresentar uma breve regra geral que lhe
sirva de parâmetro para orientar todas as suase ações. [1539] Talvez tenhamos
ocasião de, noutra oportunidade, fazer deduções e aplicações como as que encontramos nos sermões dos doutores antigos. O trabalho que temos em mãos exige
que exponhamos uma doutrina simples e clara dentro do menor espaço possível.
3. Comparação da filosofia com a Bíblia
Assim como os filósofos tratam de algumas finalidades da honestidade e da retidão
das quais deduzem os deveres particulares e todas as ações próprias de cada virtude,a
assim também a Escritura tem sua maneira de agir neste assunto, maneira aliás
muito melhor e mais certa que a dos filósofos. A única diferença é que eles, em sua
ambição, exibiram a perspicuidadeb ou clareza mais notável que puderam, para que
se vissem a ordem e a disposição empregadas por eles e assim mostrassem a sua
perspicácia. Ao contrário, o Espírito Santo ensina sem exibida ostentação, e nem
sempre nem estritamente observa alguma ordem e algum método. Todavia, quando
ocasionalmente os emprega, significa que não os devemos desprezar.1
4. Divisão bíblica do assunto
Pois bem, a ordemc da Escritura da qual falamos consiste de duas partes. Uma visa
imprimir em nosso coração o amor pela justiça, para o qual por natureza não temos
nenhuma inclinação. A outra visa dar-nos uma regra definida para que, seguindo-a,
não fiquemos vagando sem rumo certo e não edifiquemos mal a nossa vidad.
1
“Os filósofos são ambiciosos e, por conseguinte, objetivam uma extraordinária clareza e uma hábil
engenhosidade; porém a Escritura tem uma formosa precisão e uma certeza que excede a todos os filósofos.
“Os filósofos com freqüência demonstram presunção, porém o Espírito tem um método diferente
(direto e sincero), o qual não deve ser negligenciado.” [John Calvin, Golden Booklet of the True Christian
Life, 6ª ed. Grand Rapids, Michigan, Baker Book House, 1977, p. 12-13]. NE
c. institutionem.
d. Acréscimo feito em 1541.
e. 1541 tem por engano: ces; 1545 e 1550: ses.
a. totum virtutum chorum
b. 1545 e 1550: apparence.
c. institutio.
d. in justitiæ studio.
199
5. Quanto à primeira parte, a Escritura tem muitas razões excelentes para inclinar o nosso coração ao amor pela retidão. Temos feito menção de algumas dessas
razões em diversos lugares da nossa obra, e tocaremos nalgumas outras aqui.
5.1 – O padrão divino: santidade
Que fundamento seria melhor para começarmos do que admoestar-nos no sentido
de que devemos ser santificados porque o nosso Deus é santo?2 Fortalecemos o
argumento com a lembrança de que, havendo por assim dizer vivido espalhados
como ovelhas desgarradas e dispersas pelo labirinto deste mundo, Ele nos recolheu para juntar-nos a Si. Ao sabermos que Deus promove esta Sua união conosco,
devemos lembrar que o laço desta união é a santidade.3 Não que pelo mérito da
nossa santidade passemos a gozar da companhiaa ou da comunhão com o nosso
Deus, visto que primeiro é preciso que nos acheguemos a Ele para que Ele derrame a Sua santidade sobre nós, mas sim que, como não há nenhuma associação da
Sua glória com a iniqüidade e com a impureza, temos que assemelhar-nos a Ele,
porque Lhe pertencemos.
Por isso a Escritura nos ensina que esta é a finalidade da nossa vocação,
finalidade à qual devemos estar sempre atentos, se queremos responder positivamente ao nosso Deus. Por que, de que valerá livrar-nos da impureza e da corrupção
em que estávamos imersos, se o tempo todo ficamos querendo revolver-nosb de
novo nessa lama? Além disso, a Escritura nos admoesta no sentido de que, se
desejamos estar na companhia do povo de Deus, temos que habitar em Jerusalém, Sua santa cidade. Cidade que, como Ele consagrou e dedicou à Sua honra,
também não é lícito que seja contaminada e corrompida por habitantes impuros e
profanos. Daí decorrem sentenças como esta: “Quem, Senhor, habitará no teu
tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte? O que vive com integridade,
e pratica a justiça, e, de coração, fala a verdade”.4
2
Lv 19.1,2; 1Pe 1.16
“Somente aqueles que têm acesso a Deus, e que vivem uma vida santa, é que são seus genuínos servos.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 15.1), p. 289]. NE
4
Sl 15.1,2; 24.3; Is 35.8 etc.; Rm 61-3, 13, 17-23c
a. communionem.
b. volutari.
c. Calvino acabava de comentar a Epístola aos Romanos. Ele dedicou seus comentários ao seu amigo de Basiléia,
Simon Grynaeus (1493-1540), a quem chama de “homem dotado de excelentes virtudes”171, no dia 18 de
outubro de 1539 (dois meses depois que o capítulo XVII das Institutas saiu do prelo). A propósito do capítulo
primeiro, versículo 13, lê-se: “Muitas vezes o Senhor põe abaixo as deliberações dos Seus santos, ...para que
eles fiquem na inteira dependência da Sua providência”. Em outroa lugares: “A providência divina, confesso,
se manifesta principalmente por causa dos fiéis, posto que só eles têm olhos para enxergá-la.”172 “Aquele que
confia na providência divina deve fugir para Deus com orações e forte clamor.”173 “Quem quer que recuse
admitir que o mundo está sujeito à providência de Deus, ou não crê que sua mão se estende das alturas para
governá-lo, tudo faz para pôr fim à existência de Deus.”174 “.... A Igreja será sempre libertada das calamidades
que lhe sobrevêm, porque Deus, que é poderoso para salvá-la, jamais suprime dela sua graça e sua bênção.”175
172
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.2), p. 161.
173
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 31.17), p. 27.
174
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl. 10.4), p. 211.
175
João Calvino, O Livro dos Salmos, (Sl 3.8), Vol. 1, p. 88.
3
200
As Institutas – Edição Especial
5.2 – Cristo, nosso Redentor e nosso Modelo
Acresce que, para nos despertar mais vivamente, a Escritura nos demonstra que,
assim como Deus em Cristo nos reconciliou Consigo, assim também Ele O constituiu em exemplo e padrão ao qual devemos amoldar-nos. Que aqueles que consideram que somente os filósofos trataram devidamente da doutrina moral me
mostrem em seus livros um métodoa que seja tão bom como o que eu acabo de
citar. Quando eles querem exortar-nos quanto podem à virtude, outra coisa não
nos passam senão que vivamos como convém à natureza. Já a Escritura nos leva
a uma fonte melhorb de exortação, quando não somente nos ordena que reportemos toda a nossa vida a Deus, seu autor, mas, depois de nos ter advertido de que
nos degeneramos em relação à verdadeira origem da nossa criação, acrescenta
que Cristo, reconciliando-nos com Deus, Seu Pai, nos é dado como um exemplo
de inocênciac e cuja imagem deve ser representada em nosso viver.5 Que se poderia dizer com maior veemência e com maior eficácia? Que outra coisa mais se
poderia desejar? Porque, se Deus nos adota como Seus filhos, com a condição de
que a imagem de Cristo se veja em nossa vida,6 se abandonarmos a justiça e a
santidade, não somente estaremos abandonando o nosso Criador com a mais negligente deslealdade, mas também estaremos renunciando a Ele como Salvador.7
5
“Tudo quanto os filósofos têm inquirido sobre o summum bonum revela estupidez e tem sido infrutífero, visto
que se limitam ao homem em seu ser intrínseco, quando é necessário que busquemos felicidade fora de nós
mesmos. O supremo bem humano, portanto, se acha simplesmente na união com Deus. Nós o alcançamos
quando levamos em conta a conformidade com sua semelhança.” [João Calvino, Exposição de Hebreus,
São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 4.10), p. 105]. NE
6
O “bem” dos filhos de Deus é tornar-se cada vez mais identificado com o seu Senhor (Rm 8.29-30). Neste
propósito, até mesmo as aflições “cooperam para o bem”: “Os sofrimentos desta vida longe estão de obstruir
nossa salvação; antes, ao contrário, são seus assistentes. (...) Embora os eleitos e os réprobos se vejam
expostos, sem distinção, aos mesmos males, todavia existe uma enorme diferença entre eles, pois Deus
instrui os crentes pela instrumentalidade das aflições e consolida sua salvação. (...) As aflições, portanto, não
devem ser um motivo para nos sentirmos entristecidos, amargurados ou sobrecarregados, a menos que também reprovemos a eleição do Senhor, pela qual fomos predestinados para a vida, e vivamos relutantes em
levar em nosso ser a imagem do Filho de Deus, por meio da qual somos preparados para a glória celestial”.
[J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo, Paracletos, 1997, (Rm 8.28,29), p. 293,295]. NE
7
Através da regeneração, Deus “cria de novo Sua imagem em seus eleitos”. [João Calvino, O Livro dos
Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 100.1-3), p. 549]. Definindo arrependimento, escreve: “O
arrependimento é uma regeneração espiritual cujo objetivo é que a imagem de Deus, obscurecida e quase
apagada em nós pela transgressão de Adão, seja restaurada. (...) Assim, pois, mediante essa regeneração,
somos restabelecidos na justiça de Deus, da qual tínhamos sido despojados por Adão. Pois a Deus agrada
restabelecer integralmente todos os que Ele adota na herança da vida eterna.” [João Calvino, As Institutas,
(1541), II.5]. “Adão foi inicialmente criado à imagem de Deus, para que pudesse refletir, como por um
espelho, a justiça divina. Mas aquela imagem, havendo sido apagada pelo pecado, tem que ser agora restaurada em Cristo. A regeneração dos santos, na verdade, outra coisa não é, à luz de 2 Coríntios 3.18, senão a
reforma da imagem de Deus neles. Mas a graça de Deus, na segunda criação, é muito mais rica e poderosa do
que na primeira. Todavia, a Escritura apenas leva em conta que nossa mais elevada perfeição consiste em
nossa conformidade e semelhança com Deus. Adão perdeu a imagem que originalmente recebera; portanto,
é necessário dizer que ela nos será restaurada por meio de Cristo. Por isso o apóstolo ensina que o propósito
na regeneração é guiar-nos de volta do erro àquele fim para o qual fomos criados.” [João Calvino, Efésios,
São Paulo, Paracletos, 1998, (Ef 4.24), p. 142]. NE
a. œconomiam.
b. a vero fonte.
c. Palavra acrescentada em 1541.
201
Por conseguinte, a Escritura toma tempo e espaço para nos exortar quanto a
todos os benefícios que nos vêm de Deus e a todas as partes da nossa salvação,8
como quando diz: Visto que Deus nos é dado como Pai, mereceremos ser repreendidos por nossa grande ingratidão, se não nos comportarmose como Seus filhos. Visto que Cristo nos purificou e nos lavou com o Seu sangue, e nos comunicou esta purificação pelo Batismo, é misterf que não nos maculemos com nova
impureza. Visto que Ele nos uniu a Si e nos enxertou em Seu corpo, devemos
zelosamente cuidar que não nos contaminemos de modo algum, já que somos
Seus membros.9 Visto que Ele, que é a nossa Cabeça, subiu ao céu, é de toda
conveniência que nos desfaçamos de todo apego às coisas terrenas, para aspirarmos de todo o nosso coração à vida celestial. Visto que o Espírito Santo nos
consagrou para sermos templos ou santuários de Deus, é necessário que façamos
tudo o que pudermos para que a glória de Deus seja exaltada em nós, e, por outro
lado, para que não nos deixemos manchar por nenhuma forma de contaminação do
pecado. Visto que a nossa alma e o nosso corpo foram destinados à imortalidade do
reino de Deus e à incorruptível coroa da Sua glória, é necessário que nos esforcemos para conservar alma e corpo puros e imaculados, até o dia do Senhor.10
Aí estão fundamentos verdadeiramente bonsa e próprios para que sobre eles
edifiquemos a nossa vida. Não se vai encontrar nada parecido em todos os filósofos, porque eles nunca vão além dos limites da dignidade meramente natural do
homem, quando procuram mostrar qual é o seu dever.b11
8
Ml 1.6; Ef 5.1; 1Jo 3.1; Hb 10.10; 1Co 5.11,13; 1Pe 1.15-19. Jo 15.3; Cl 3.1,2; 1Co 3.16; 2Co 6.16; 1Ts
5.23d.
9
“Assim como a alma energiza o corpo, também Cristo comunica vida a seus membros. Eis uma notável
afirmação, ou seja, que os crentes vivem fora de si mesmos, isto é, em Cristo.” [João Calvino, Gálatas, São
Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 2.19), p. 75]. “O genuíno descanso dos fiéis, o qual dura por toda a eternidade,
é segundo o descanso de Deus. Como a mais sublime bem-aventurança humana é estar o homem unido com
Deus, assim deve ser também o seu propóstio último, ao qual todos os seus planos e ações devem ser
dirigidos.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 4.3), p. 103]. NE
10
“O Evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-se somente por meio da razão
e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda a alma, e penetra no
mais íntimo recesso do coração. (...) Os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o Evangelho em seus
lábios porém não em seus corações.” [John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, 6ª ed.
Grand Rapids, Michigan, Baker Book House, 1977, p. 17]. NE
11
“Esta é a principal diferença entre o evangelho e a filosofia. Ainda que os filósofos abordem temas esplendidamente de cunho moral, com inusitada habilidade, no entanto todo o ornamento que sobressai de seus
preceitos nada é senão uma bela superestrutura sem um sólido fundamento; porque, ao omitir princípios,
eles não fazem outra coisa senão propor uma doutrina mutilada, como um corpo sem cabeça. Este é exatamente o mesmo método de doutrinamento entre os católicos romanos. Embora falem incidentalmente da fé
em Cristo e da graça do Espírito Santo, é plenamente evidente que se avizinham mais dos filósofos pagãos
do que de Cristo e seus discípulos.” [João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo, Paracletos, 1997,
(Rm 12.1), p. 420-421]. NE
d. Estas citações de 1539 faltam na edição de 1541.
e. exhibeamus.
f. non decere.
a. auspicatissima.
b. in commendatione virtutis.
202
As Institutas – Edição Especial
5.3 – Mensagem aos cristãos nominais
Nesta altura devo dirigir a palavra àqueles que, não tendo nada de Cristo exceto o
título,c entretanto querem ser reconhecidosd como cristãos. Que atrevimento deles, quererem gloriar-se em Seu sacrossanto nome! Pois só têm relação de amizadee
com Cristo aqueles que O conhecem verdadeiramente mediante a Palavra do
Evangelho. Pois bem, o apóstolo Paulo nega que alguém possa receber o correto
conhecimento de Cristo,12 a não ser aquele que aprendeu a despojar-se “do velho
homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano”, sendo então
revestido do novo homem.13
Vê-se, pois, que é baseados em ensinamentos falsos que esses tais dizem
que conhecem a Cristo. E com isso Lhe fazem grande injúria, por mais belas que
sejam as suas palavras. Porque o Evangelho não é uma doutrina de língua, mas de
vida. E, diferentemente das outras disciplinas, não se apreende só pela mente e
pela memória, mas deve envolver e dominar a alma e ter como sede e receptáculo
as profundezas do coração.14 De outra forma, o Evangelho não será recebido
adequadamente como deve ser. Portanto, ou que tais cristãos nominais deixem de
se gabar do que não são, com o que afrontam vergonhosamente a Deus, ou que
tratem de mostrar que são de fato discípulos de Cristo.a15
Demos o primeiro lugar à doutrina em matéria de religião, uma vez que
constitui o princípio da nossa salvação. Mas, para que nos seja útil e frutífera,
também é necessário que ela nos penetre o íntimo do coração e demonstre o seu
poder em nossa vida, e que até mesmo nos transforme fazendo-nos conformes à
sua própria natureza.b Se os filósofos com razão ficam indignados contra aqueles
que, declarando-se amantes da arte, a que eles chamam mestra da vida, contudo
a convertem numa loquacidade sofística,16 muito maior razão temos nós para
detestar os palradores que se contentam em ter o Evangelho na boca,c desprezan12
“.... deve observar-se que somos convidados ao conhecimento de Deus, não àquele que, contente com vã
especulação, simplesmente voluteia no cérebro, mas àquele que, se é de nós retamente percebido e finca pé
no coração, haverá de ser sólido e frutuoso.” [João Calvino, As Institutas, I.5.9]. NE
13
Ef 4.20-24
14
“Felizes, porém, são aqueles que abraçaram o evangelho e firmemente permanecem nele! Porque ele – o
evangelho –, fora de qualquer dúvida, é a verdade e a vida.” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos,
1998, (Ef 1.13), p. 35-36]. NE
15
“Ponderem, por uns instantes, aqueles a quem isto se afigura áspero, quão tolerável lhes seja a impertinência,
quando, porque lhes excede a compreensão, rejeitam matéria atestada de claros testemunhos da Escritura e
inquinam de vício o serem a público trazidas cousas que, a não ser que houvesse reconhecido serem proveitosas de conhecer-se, Deus jamais haveria ordenado fossem ensinadas através de Seus Profetas e Apóstolos.
Ora, nosso saber não deve ser outra cousa senão abraçar com branda docilidade e, certamente, sem restrição,
tudo quanto foi ensinado nas Sagradas Escrituras.” [João Calvino, As Institutas, I.18.4]. NE
16
Sêneca, Epístola XLVIII; Epístola CVIII, 23. NT
c. ac symbolum, acrescenta 1539 (o batismo ?).
d. nominari.
e. commercii.
a. 1539 acrescenta: non indignos magistro.
b. ut sit nobis non infructuosa.
c. in summis labris.
203
do-o totalmente em sua maneira de viver! Pois a eficácia do Evangelho deveria
penetrar as profundezas do coração e arraigar-se na alma, cem mil vezes mais que
todas as exortações filosóficas, que, em comparação, não têm grande vigor!17
5.4 – Reconhecendo limitações, o cristão deve aspirar à perfeição requerida
por Deus
Não exijo que a vida do cristão seja um Evangelho puro e perfeito,d embora o
devamos desejar e esforçar-nos por esse ideal. Não exijo, pois, uma perfeição
cristã de tal maneira estrita e rigorosae que me leve a não reconhecer como cristãof
a quem não a tenha alcançado. Porque, se fosse assim, todos os homens do mundo seriam excluídos da igreja, visto que não se encontra nem um só que não
esteja bem longe dela, por mais que tenha progredido. E a maioria ainda não
avançou nada ou quase nada. Todavia, nem por isso os devemos rejeitar. Que
fazer então?
Certamente devemos ter diante dos nossos olhos como nossa meta a perfeição
que Deus ordena,a para a qual todas as nossas ações devem ser canalizadas e à qual
devemos visar.18 Repito: temos que nos esforçar para chegar à meta. Sim, pois não
é lícito que compartilhemos com Deus apenas aceitando uma parte do que nos é
ordenado em Sua Palavra e deixando o restante a cargo da nossa fantasia. Porque
Deus sempre nos recomenda, em primeiro lugar, integridade.19 Com essa palavra
Ele se refere a uma pura singeleza e sinceridade de alma, destituída e limpa de toda
fantasia ou ficção e contrária à dobrez de coração.20 Como, porém, enquanto estamos
nesta prisão terrena, nenhum de nós tem a presteza necessária, e, na verdade, a
maior parte de nós é tão fraca e débil que vacila e coxeia pouco podendo avançar,
prossigamos avante, cada um segundo a sua pequena capacidade,b e não deixemos
de seguir o caminho no qual começamos. Ninguém caminhará tão pobremente que
não avance ao menos um pouco por dia, ganhando terreno.
Portanto, não cessemos de buscar a meta proposta, aproveitando constantemente os benefícios da vereda do Senhor. E não nos desanimemos, ainda que o
nosso proveito seja diminuto. Mesmo que o nosso progresso não corresponda ao
17
“o Evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-se somente por meio da razão
e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda a alma, e penetra no
mais íntimo recesso do coração.” [John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, p. 17]. NE
18
“A vontade de Deus é a regra pela qual devemos regulamentar todos os nossos deveres.” [João Calvino, As
Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 2.3), p. 59]. NE
19
Gn 17.1
20
“Embora o mundo inteiro se ponha contra o povo de Deus, ele não carece, enquanto nutrir o senso de sua
integridade, ter receio de desafiar os reis e seus conselheiros, bem como o promíscuo populacho da sociedade.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Edições Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 58.1), p. 517]. NE
d. absolutum.
e. Duas palavras latinas somente: ita severe.
f. evangelicam, traduzida literalmente, em 1545 e 1550, évangélique.
a. Frase acrescentada em 1541.
b. pro facultatulæ modo.
204
As Institutas – Edição Especial
que imaginávamos, o esforço não foi totalmente perdido quando se vê que o dia
de hoje superac o de ontem. Somente fixemos os nossos olhos na meta com pura
e sincera simplicidade, e façamos todos os esforços possíveis para alcançá-la,
sem acariciar o nosso ego com vã adulação nem desculpar os nossos erros morais. Esforcemo-nos sem cessar, empenhados em que cada dia sejamos melhores
do que somos, até alcançarmos a bondade suprema, que devemos buscar durante
toda a nossa vida. Perfeição que obteremos quando, despojados da fraqueza da
nossa carne, seremos feitos plenamente partícipes dela, isto é, quando Deus nos
acolher para vivermos para sempre em Sua companhia.a21
6. Segunda parte
[1541] Passemos agora à segunda parte.
6.1 – Máxima dupla do cristão: não somos nossos; somos do Senhor
Embora a Lei de Deus tenha, como tem, um excelente método e um arranjo bem
ordenado com vistas à edificação da nossa vida, não obstante pareceu bem ao
nosso bondoso Mestre celestial formar os Seus por meio de uma doutrina mais
sublime que a que nos é comunicada em Sua Lei.
Então, o princípio dessa forma de instrução consiste em determinar que é
dever dos crentes oferecerem seu corpo “por sacrifício vivo, santo e agradável a
Deus”, que constitui o culto legítimo que Lhe devemos prestar.22 Desse princípio
decorre a exortação a que eles não se acomodem à imagem deste século, mas que
sejam transformados pela renovação da sua mente, para buscar e experimentar a
vontade de Deus. Temos aí já um importante motivo para dizer que somos pessoas consagradas e dedicadas a Deus para que não pensemos, nem meditemos, nem
façamos coisa alguma que não seja para a Sua glória. Porque não é lícito aplicar
algo sagrado a uso profano. Ora, se nós não nos pertencemos, mas somos do
Senhor, vê-se claramente o que devemos evitar para não errarmos, e para onde
devemos canalizar todas as ações que praticarmos em nosso viver.
Nãoa somos de nós mesmos; portanto, não permitamos que a nossa razão e
a nossa vontade exerçam domínio sobre nossos propósitos e sobre nossas ações. 23
Não somos de nós mesmos; portanto, não tenhamos como nosso objetivo buscar
o que só traz proveito à carne. Não somos de nós mesmos; esqueçamo-nos, pois,
de nós mesmos, quanto possível, e de tudo o que nos cerca.
21
“Como na presente vida não atingiremos pleno e completo vigor, é mister que façamos progresso até à
morte.” [João Calvino, Efésios, (Ef 4.15), p. 130]. NE
22
Rm 12.1
23
“Se porventura desejamos lograr algum progresso na escola do Senhor, devemos antes renunciar nosso
próprio entendimento e nossa própria vontade.” [J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos,
1996, (1Co 3.3), p. 100]. NE
c. vincit.
a. in plenum consortium
a. Temos aqui um daqueles períodos harmoniosos, com antíteses bem equilibradas, que fazem de Calvino –
como disse A. Lefranc – “o mestre da eloqüência francesa moderna”.
205
E agora: Nós somos do Senhor; vivamos e morramos por Ele e para Ele.
Somos do Senhor; que a Sua vontade e a Sua sabedoria presidam a todas as nossas
ações. Somos do Senhor; relacionemos todos os aspectos da nossa vida com Ele
como o nosso fim único. Ah, quão proveitoso será para o homem que, reconhecendo que não é dono de si, negue à sua razão o senhorio e o governob de si mesmo e o
confie a Deus!24 Porque, assim como a pior praga, capaz de levar os homens à
perdição e à ruína, é se comprazerem a si mesmos, assim também o único e singular
porto de salvação não está em o homem julgar-se sábio, como tampouco em querer
nada de sua vontade própria, mas em seguir unicamente ao Senhor.25
6.2 – Passos da vida cristã e do serviço a Deus
1º. Com espírito de renúncia, concentrar-nos no serviço a Deus
O primeiro passo é, pois, que nos afastemos de nós mesmos a fim de aplicarmos todas as forças da nossa mente ao serviçoc de Deus. Chamo serviço não
somente o que consiste na obediência à Palavra de Deus, mas também aquele
pelo qual o entendimento do homem, despojado dos seus próprios sentimentos,
converte-se inteiramente e se sujeita ao Espírito de Deus. Essa transformação,
que o apóstolo Paulo chama renovação da mente,26 tem sido ignorada por todos
os filósofos, apesar de constituir o primeiro ponto de acesso à vida. Eles ensinam
que somente a razão deve reger e dirigir o homem, e pensam que só a ela devemos
ouvir e seguir; com isso, atribuem unicamente à razão o governo da vida. Por outro
lado, a filosofia cristãd pretende que a razão ceda e se afaste, para dar lugar ao
Espírito Santo, e que por Ele seja subjugada e conduzida, de modo que já não seja
o homem que viva, mas que, tendo sofridoa com Cristo, nele Cristo viva e reine.27
b. dominium regimenque.
c. obsequium.
d. Já vimos Calvino empregar essa expressão, cara a Erasmo.
a. ferat.
24
“Não há nada mais absurdo do que simular, propositadamente, uma grosseira ignorância da providência de
Deus, uma vez que não podemos compreendê-la perfeitamente, a não ser discerni-la só em parte.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.5), p. 223]. “.... a maior miséria que um homem pode ter é
ignorar a providência de Deus; e, por outro lado, que é uma singular bem-aventurança conhecê-la” [João
Calvino, As Institutas, (1541), III.8]. “As coisas neste mundo não são governadas de uma maneira uniforme. (...) Deus reserva uma grande parte dos juízos que se propõe executar para o dia final, para que nós
estejamos sempre em suspenso, esperando a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.” [Juan Calvino, El Uso
Adecuado de la Afliccion: In Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan, T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p.
226]. NE
25
Rm 14.7,8. NT
26
Rm 12.2. Ver também Ef 4.22-24. NT
27
Gl 2.19,20. NT
“No tocante ao reino de Deus e a tudo quanto se acha relacionado à vida espiritual, a luz da razão
humana difere pouquíssimo das trevas; pois, antes de ser-lhe mostrado o caminho, ela é extinta; e sua
perspicácia não é mais digna que a cegueira, pois quando vai em busca do resultado, ele não existe. Pois os
princípios verdadeiros são como as centelhas; essas, porém, são apagadas pela depravação da natureza antes
que sejam postas em seu verdadeiro uso.” [João Calvino, Efésios, (Ef 4.17), p. 134-135]. “Os filósofos
pagãos põem a razão como o único guia da vida, da sabedoria e da conduta, porém a filosofia cristã nos
206
As Institutas – Edição Especial
2º. Buscar não o que nos agrada, mas o que agrada e glorifica a Deus.
Disso decorre a segunda parte de que falamos, que não busquemos as
coisas que nos agradam, mas sim as que agradam a Deusb e que se prestam para
exaltar a Sua glória.
Temos aqui também uma grande virtude, no sentido de que, praticamente
nos esquecendo de nós mesmos, ou ao menos procurando não nos preocupar com
nós mesmos, apliquemos e dediquemos com fidelidade nossos diligentes esforços para seguir a Deus e obedecer aos Seus mandamentos. Porque, quando a
Escritura nos proíbe preocupar-nos particularmente com nós mesmos, não somente elimina do nosso coração a avareza, a ambição de poder e de receber grandes honras e alianças impróprias, mas também quer extirpar de nós toda ambição
e apetite de glória humana, e outros males ocultos. É, pois, necessário que o
cristão se disponha de tal maneira a que todo o seu pensamento se dirija às boas
relaçõesc que deve manter com Deus a vida toda. Seja esta a sua preocupação:
Consciente de que terá que prestar contas de todas as suas obras a Deus, dirigirá
a Ele todas as suas intenções e nele as manterá fixas.
Uma razão disso é que todo aquele que tem Deus em sua mente em todas
as obras que pratica, facilmente evita que o seu espírito se deixe levar por pensamentos e projetos vãos. Refiro-me à abnegaçãod ou à renúncia de nós mesmos que Cristo com tanto empenho e zelo exige 28 de todos os Seus discípulos,
como sua primeira aprendizagem. Então, uma vez ocupado nesse exercício o
coração do homem, logo são exterminados dele o orgulho, a arrogância e a
ostentação, como também a avareza, a intemperança, a superfluidade e a busca
de prazeres, juntamente com todos os demais vícios e males gerados pelo amor
a nós mesmos.
requer que rendamos nossa razão ao Espírito Santo, o que significa que já não vivemos para nós mesmos,
mas que Cristo vive e reina em nosso ser. (Rm 4.23; Gl 2.20).” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,
São Paulo, Novo Século, 2000, p. 30).
“A transformação de nossas vidas por meio do Espírito Santo é o que Paulo chama de nonovação da
mente. Este é o verdadeiro princípio da vida que os filósofos deste mundo desconhecem.
“O Evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-se somente por meio
da razão e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda a alma, e
penetra no mais íntimo recesso do coração. (...) Os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o Evangelho
em seus lábios porém não em seus corações” [John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, 6ª
ed. Grand Rapids, Michigan, Baker Book House, 1977, p. 17]. NE
28
Mt 16.24. “A negação de nós mesmos, que tem sido diligentemente ordenada por Cristo aos seus apóstolos
desde o princípio, terminará dominando os desejos de nossos corações.
“Esta negação de nós mesmos não deixará lugar para o orgulho, a arrogância, a vanglória, a avareza,
a licenciosidade, o amor à luxúria, ao luxo, ou qualquer outra coisa nascida do amor ao ‘Eu’.”. [João Calvino,
A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 31]. NE
b. ex Domini voluntate.
c. negocium (sic).176 1541 tem, por engano: à faire.
d. abnegatio. Bem mais tarde Calvino trocará “abnegação” por “renúncia”. Na moral calvinista, o princípio da
vida cristã é uma renúncia virtual; deve tornar-se, quando Deus o ordena, uma renúncia fatual.177
176
No dicionário latino e noutras fontes de meu uso não consta negocium, mas negotium. NT
177
No original francês: actuel. Sentido comum: atual. Sentido filosófico: fatual (em ato). NT
207
Por outro lado, onde não reina este espírito de abnegação, ou o homem se
extravasa em todo tipo de vilania sem o menor pudor, ou, caso haja alguma aparência de virtude, esta é corrompida por uma pecaminosa cobiça de glória. Pois
que me mostrem um homem que exerce benignidade gratuitamente, se não renunciou a si mesmo, segundo o mandamento do Senhor. Porque aqueles que não
se deixam levar por essa cobiça, no mínimo seguem a virtude com vistas a receberem louvor. Mesmo os filósofos que têm lutado para mostrar que se deve buscara a virtude por amor da virtude, de tal maneira se têm inflado de orgulho que se
vê que não desejam a virtude por outro motivo senão o de terem com isso motivo
para orgulhar-se.29
Pois bem, nem os ambiciosos que buscam glória mundana, nem os que se
enchem de presunção interior, agradam a Deus, tanto assim que Ele declara contra os primeiros que já receberam sua recompensa neste mundo, e contra os últimos, que estão mais longe do reino de Deus que os publicanos e os devassos.
Contudo, ainda não demonstramos com suficiente clareza quantas coisas impedem o homem queb não se negou a si mesmo de se dedicar à real prática do bem.
Os antigos já diziam com razão que há um mundo de vícios ocultos na alma do
homem. E não encontraremos remédio para isso, a não ser que, renunciando ou
negando a nós mesmos e deixando de buscar o quec nos agrada, impulsionemos e
dediquemos o nosso entendimento a buscar as coisas que Deus exige de nós, e a
buscá-las unicamente porque Lhe são agradáveis.d30
3°. passo: Abnegação com vistas aos homens e mormente a Deus
Devemos notar que a abnegaçãoe ou renúncia de nós mesmos em parte visa
ao bem dos homens e em parte, na verdade principalmente, visa à nossa relação
com Deus. Ora, quando a Escritura nos ordena que nos portemosf de tal maneira
para com os homens que os prefiramos em honra a nós próprios e que nos empenhemos com toda a lealdade a promover o seu progresso, ela nos dá mandamentos que o nosso coração não será capaz de cumprir, se primeiro não for esvaziado
dos seus sentimentos naturais.31 Porque somos todos tão cegos e tão dominados
29
“Os filósofos pagãos não condenam toda ambição por glória. Entre os cristãos, porém, quem quer que seja
ávido por glória é com justa razão acusado de ser possuidor de fútil e louca ambição, porquanto se divorcia
da genuína glória. Para nós só a glória de Deus é legítima. Fora de Deus só há mera vaidade.” [João Calvino,
Gálatas, São Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 5.26), p. 173]. NE
30
“A glória de Deus deve resplandecer sempre e nitidamente em todos os dons com os quais porventura Deus
se agrade em abençoar-nos e em adornar-nos. De sorte que podemos considerar-nos ricos e felizes nele, e em
nenhuma outra fonte.” [J. Calvino, O Livro dos Salmos, (Sl 48.3), p. 356]. NE
31
Rm 12.10; Fp 2.3-8. NT
a. expetendam. 1545 traduzirá: désirer (desejar).
b. 1541 tem, por engano: ilz. [Já corrigido no texto em uso para a presente tradução: q’il.]
c. 1541 tem, por engano: qu’il. [Já corrigido: qui.]
d. Aqui, em 1560 é acrescentado um parágrafo (III, VII, 4).
e. abnegatio. 1560: renúncia.
f. gerere.
208
As Institutas – Edição Especial
pelo amor de nós mesmos que não há ninguém que não julgue ter todos os bons
motivos para elevar-se acima dos demais e para menosprezá-los a fim de exaltarse a si próprio. Se Deus nos concede algum dom digno de apreço, imediatamente,
à sombra disso, o nosso coração se eleva. E não somente nos inflamos, mas quase
nos arrebentamos de orgulho.
Nossos vícios e defeitos, dos quais estamos cheios, tratamos de zelosamente ocultar dos demais, e procuramos fazer com que lhes pareçam pequenos
e leves. Às vezes até os consideramos virtudes. a Quando se trata de graças ou
dons por nós recebidos, tanto os valorizamos que até os fazemos objeto de
extasiada contemplação.32 Mas se tais dons se manifestam noutras pessoas, e
mesmo dons maiores que nos vemos constrangidos a reconhecer, procuramos
obscurecê-los ou então os desprezamos o mais que podemos. b Por outro lado,
quando se manifestam vícios e defeitos nos outros, não nos contentamos em
fazer-lhes severa observação, mas os aumentamos odiosamente. Daí procede
esta arrogante insolência – que cada um de nós, como se estivesse isento 33 da
condição humana comum, ambiciona preeminência, colocando-se acima de todos os demais e a todos, sem exceção, considera inferiores a si. 34 Os pobres
cedem aos ricos; os plebeusc aos nobres; os servos a seus senhores; os indoutos
aos sábios – mas não há ninguém que, no íntimo do seu coração, não alimente a
fantasia de que tem dignidade superior à de todos os demais. Dessa forma, cada
qual em sua categoria se vangloria e mantém um reino em seu coração. Porque,
atribuindo a si mesmos valores a seu bel-prazer, critica o espírito e os costumes
dos demais. E se chegam a travar contenda, o veneno de cada um logo aparece.
Há muitos que mantêm certa aparência de mansidão e de modéstia, enquanto
não são contrariados por coisa alguma. Mas, poucos são os que continuam a
mostrar brandura e modéstia quando provocados e irritados.35 E de fato não se
32
*“Ninguém possui coisa alguma, em seus próprios recursos, que o faça superior; portanto, quem quer que se
ponha num nível mais elevado não passa de imbecil e impertinente. A genuína base da humildade cristã
consiste, de um lado, em não ser presumido, porque sabemos que nada possuímos de bom em nós mesmos;
e, de outro, se Deus implantou algum bem em nós, que o mesmo seja, por esta razão, totalmente debitado à
conta da divina graça.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, (1Co 4.7),
p. 134-135]. NE
33
No original francês: exemple. Deveria ser: exempté. NT
34
“À luz desse fato aprendemos, também, que os que são responsáveis pelo presunçoso uso da bondade divina, se
aproveitam dela para orgulhar-se da excelência que possuem, como se a possuíssem por sua própria habilidade,
ou como se a possuíssem por seu próprio mérito; enquanto que sua origem deveria, antes, lembrá-los de que ela
tem sido gratuitamente conferida aos que são, ao contrário, criaturas vis e desprezíveis e totalmente indignas de
receber algum bem da parte de Deus. Qualquer qualidade estimável, pois, que porventura virmos em nós
mesmos, que ela nos estimule a celebramos a soberana e imerecida bondade que a Deus aprouve concedernos.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 8.4), p. 165-166]. NE
35
“O orgulho ou autoglorificação é a causa e ponto de partida de todas as controvérsias, quando cada um,
reivindicando para si além de sua capacidade, está ávido em ter outros sob seu poder.” [J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, (1Co 4.6), p. 133]. NE
a. osculamur, 1550: louons.
b. nostra malignitate deterimus ac carpimus.
c. plebeii.
209
pode alterar isso, a não ser que a praga mortal do amor próprio e da exaltação
própriaa seja arrancada do fundo do coração, como determina o ensino da Escritura. Se dermos ouvidos à sua doutrina, esta nos fará lembrar que todas as
graças que Deus nos concede não são propriamente nossas, mas são dádivas
gratuitas da Sua imensa generosidade.36
Portanto, quem se orgulha demonstra ingratidão. Por outro lado, constantemente reconhecendo os nossos vícios e defeitos, somos levados a proceder com
humildade.37 Com isso nada nos restará de que nos orgulharmos, mas, antes, haverá forte motivo para que nos rebaixemos e nos humilhemos. Além disso, também nos é ordenado que todos os dons de Deus que vejamos em nossos semelhantes, sejam por nós de tal maneira exaltados e reverenciados que, em função
deles, honremos as pessoas nas quais eles residem. Seria uma grande maldade
querer despojar um homem da honra que Deus lhe deu. Acresce que nos é ordenado que não fiquemos observando e anotando as faltas do próximo, mas sim que
as cubramos; não por adulação, mas para que não insultemos o faltoso, visto que
lhe somos devedores de amor e de honra. Decorre disso que a todos aqueles com
quem nos relacionarmos,b não somente tratemos com modéstia e moderação, mas
também com brandura e companheirismo. Tenha-se por certo que ninguém, jamais chegará por outro caminho à verdadeira mansidão, a não ser dispondo-se de
coração a rebaixar-se a si mesmoa e a exaltar os outros.
4º. A abnegação requer diligente empenho
Quão difícil é cumprir o dever de trabalhar pelo proveito do próximo! Se
não deixarmos de lado a consideração de nós mesmos e não nos despojarmos de
todo afeto ou interesse carnal, não conseguiremos fazer nada nessa esfera. Porque, como havemos de cumprir os deveres que o apóstolo quer que cumpramos
com amor, se não renunciarmos a nós mesmos para dedicar-nos de coração aos
nossos semelhantes? “O amor é paciente”, diz ele, “é benigno; o amor não arde
em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemen36
“O propósito de todos os dons da graça é que sejam assim comunicados aos membros de Cristo. Portanto,
quanto mais fortes somos em Cristo, tanto mais obrigados somos de apoiar os fracos.”[ João Calvino, Romanos, 2ª ed., Sâo Paulo, Parakletos, 2001, (Rm 15.1), p. 495]. “.... sejam quais forem os dons que possuamos, não devemos ensoberbecer-nos por causa deles, visto que eles nos põem sob as mais profundas obrigações para com Deus.” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998, (Ef 4.7), p. 113]. NE
37
Calvino cita Agostinho: “Se me interrogues acerca dos preceitos da religião cristã, primeiro, segundo e
terceiro, aprazer-me-ia responder sempre: a humildade.” (J. Calvino, As Institutas, II.2.11). “Ninguém
possui coisa alguma, em seus próprios recursos, que o faça superior; portanto, quem quer que se ponha num
nível mais elevado não passa de imbecil e impertinente. A genuína base da humildade cristã consiste, de um
lado, em não ser presumido, porque sabemos que nada possuímos de bom em nós mesmos; e, de outro, se
Deus implantou algum bem em nós, que o mesmo seja, por esta razão, totalmente debitado à conta da divina
graça.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, (1Co 4.7), p. 134-135]. NE
a. th=j filonixi,aj xai. filauti,aj.
b. negocium (sic).
a. tui dejectione.
210
As Institutas – Edição Especial
te, não procura os seus interesses”, etc.38 Ainda que ele só nos ordenasse que não
busquemos nosso próprio proveito, ainda teríamos que forçar a nossa natureza,
que de tal modo nos leva a amar a nós mesmos que não permite com facilidade
que deixemos de procurar benefício próprio para atender diligentemente ao nosso próximo. Ou melhor, não nos deixa perder nossos direitos para cedê-los ao
nosso próximo.39
Ora, a Escritura, para nos persuadir a respeito, lembra-nos que tudo o que
recebemos da graça do Senhor nos foi entregue sob esta condição: que o tornemos parte do bem comum da igreja. E, portanto, que o uso legítimo dos bens
recebidos consiste em compartilhá-los fraternal e liberalmente, visando ao bem
do nosso próximo. Para levar a efeito esse compartilhar, não se pode achar melhor regra nem mais certa do que quando se diz: Tudo o que temos de bom nos foi
confiado em depósito por Deus, e, nessas condições, deve ser distribuído para o
bem dos demais.40
Ea a Escritura vai além, comparando as graças e dons que cada um de nós
tem com as qualidades ou funções próprias de cada membro do corpo humano.
Nenhum membro tem sua faculdade independentemente, e não a aplica para seu
benefício particular, mas sim para proveito comum, e não recebe nenhum benefício que não proceda do benefício distribuído e partilhado por todo o corpo.41
Dessa maneira, o crente deve pôr tudo quanto é do seu poder à disposição dos
irmãos, não fazendo uso disso unicamente para si, mas sempre com a nobre e
clara intenção de que propicie o bem comum da igreja.42
38
1Co 13.4-7
“Devemos notar que os resíduos desta doença chamada orgulho persistem mesmo nos santos, de modo que
eles mui amiúde precisam ser reduzidos a extremos, a fim de despir-se de toda a sua autoconfiança e aprender a humildade. As raízes deste mal são tão profundas no coração humano que ainda o mais perfeito dentre
nós jamais se livra inteiramente delas, até que Deus o confronte com a morte. Podemos perceber o quanto a
nossa autoconfiança desagrada a Deus, ao vermos como, a fim de cura-la, temos de ser condenados à morte.” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, (2Co 1.9), p. 23]. NE
40
“As Escrituras exigem de nós e nos advertem a considerarmos que qualquer favor que obtenhamos do
Senhor, o temos recebido com a condição de que o apliquemos em benefício comum da Igreja.
“Temos de compartilhar liberalmente e agradavelmente todos e cada um dos favores do Senhor com
os demais, pois isto é a única coisa que os legitima.
“Todas as bênçãos de que gozamos são depósitos divinos que temos recebido com a condição de
distribuí-los aos demais.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 36).
“Qualquer habilidade que um fiel cristão tenha, deve dedicá-la ao serviço de seus companheiros crentes,
como também submeter, com toda sinceridade, seus próprios interesses ao bem-estar comum da Igreja.”
(João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 36). NE
41
1Co 12.12; Ef 4.15,16. NT
42
“Quando o Senhor nos abençoa, também nos convida a seguirmos seu exemplo e a sermos generosos para
com o nosso próximo. As riquezas do Espírito não são para serem guardadas para nós mesmos, mas sempre
que alguém as recebe deve também passá-las a outrem. Isto deve ter uma aplicação especial aos ministros da
Palavra, mas também tem uma aplicação geral a todos os homens, a cada um em sua própria esfera” [João
Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, (2Co 1.4), p. 17]. NE
a. Esse comentário do capítulo 12 da Primeira Epístola aos Coríntios (versículos 12 a 26) parece um eco das
lições sobre essa epístola ministradas por Calvino por volta do início da década de 1539.
39
211
Portanto, para nos orientarmos na prática do bem e das ações humanitárias,
adotemos esta norma: De tudo o que o Senhor nos deu com o que podemos ajudar
o nosso próximo, somos despenseiros ou mordomos, sendo que teremos que prestar
contas de como nos desincumbimos da nossa responsabilidade. E mais: Não há
outra maneira recomendável de administrar o que recebemos senão a de seguir a
norma do amor.43 Em decorrência disso, não somente juntaremos os esforços
para beneficiar o nosso próximo à solicitude que aplicamos com vistas ao nosso
próprio proveito, mas também sujeitaremos o nosso proveito ao dos demais.
E realmente, para nos mostrar que essa é a maneira de administrar bem e
devidamente o que Ele nos dá,b Deus a recomendou antigamente ao povo de
Israelc, mesmo com referência aos menores benefícios que Ele lhe fazia. Recordemos que Ele ordenou que fossem ofertadas as primícias, ou seja, os primeiros
frutos das colheitas, para que desse modo o povo testificasse que não lhe era
lícito desfrutar nenhuma espécie de bens antes de lhe serem consagrados.44 Ora,
se os dons de Deus nos são finalmente santificados, após os havermos consagrado de nossas mãos, certamente se vê que é um abuso condenável negligenciar a
referida consagração. Por outro lado, seria uma verdadeira loucura tentar enriquecer a Deus dando-lhes as coisas que temos em mãos. Visto, pois, que o bem
que podemos fazer não pode subir a Deus, como diz o profeta,45 devemos praticálo em favor dos Seus servos que vivem neste mundo.
5º. Fazer o bem a todos, quer mereçam quer não
Além do que acima foi dito, para que não nos cansemos de fazer o bem, o
que de outra forma aconteceria em pouco tempo, devemos recordar o que o apóstolo Paulo logo adiante diz: “o amor é paciente... não se exaspera”.46 O Senhor
ordena que façamos o bem a todos, sem exceção, apesar do fato de que em sua
maior parte são indignos, se os julgarmos segundo os seus próprios méritos.47
43
“Onde o amor governa e floresce, edificaremos muitíssimos uns aos outros.” [João Calvino, Efésios, São
Paulo, 1998, Paracletos, 1998, (Ef 4.1-4), p. 109]. NE
44
Êx 22.29,30; 23.19. NT
“Quando Deus nos envia riquezas não renuncia a sua titularidade, nem deixa de ter senhorio sobre
elas (como o deve ter) por ser o Criador do mundo. (...) E ainda que os homens possuem cada um sua porção
segundo Deus os há engrandecido mediante os bens deste mundo, não obstante, Ele sempre continuará
sendo Senhor e Dono de tudo”. [Juan Calvino, El Señor dio y El Señor quito: In: Sermones Sobre Job,
Jenison, Michigan, T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 2), p. 42]. NE
45
Sl 16.2,3
46
1Co 13.4,5
47
“É indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satanás está bem alerta,
seja para arrebatar-nos da Igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva. Esta unidade será um
fato, caso ninguém procure agradar a si próprio mais do que lhe é direito; ao contrário disso, se todos
tivermos um só e o mesmo alvo, a saber: estimularmo-nos uns aos outros ao amor, não permitiremos que a
emulação floresça, exceto no campo das boas obras. Certamente que o menosprezo direcionado a algum
irmão, a rabugice, a inveja, a supervalorização de nós mesmos, bem como outros impulsos nocivos, claramente demonstram, ou que o nosso amor é gélido ou que realmente não existe.” [João Calvino, Exposição
de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 10.25), p. 273]. NE
b. eam legem, rite administrandi.
c. Palavra acrescentada em 1541.
212
As Institutas – Edição Especial
Mas a Escritura não perde tempo e nos admoesta no sentido de que não temos que
observar tais ou quais méritos dos homens, mas, antes, devemos considerar em
todos eles a imagem de Deus, a qual devemos honrar e amar. Singularmente, o
apóstolo nos exorta a que a reconheçamos nos da “família da fé”,48 visto que
neles a imagem de Deus é renovada e restaurada pelo Espírito de Cristo.49
Portanto, seja quem for que se apresente a nós como necessitado do nosso
auxílio, não há o que justifique que nos neguemos a servi-lo. Se dissermos que é
um estranho, o Senhor imprimiu nele uma marca que deveríamos reconhecer
facilmente.50 Se alegarmos que é desprezível e de nenhum valor, o Senhor nos
contestará, relembrando-nos que o honrou criando-o à Sua imagem. Se dissermos
que não há nada que nos ligue a ele, o Senhor nos dirá que se coloca no lugar dele
para que reconheçamos nele os benefícios que Ele nos tem feito. Se dissermos
que ele não é digno de que demos sequer um passo para ajudá-lo, a imagem de
Deus, que devemos contemplar nele, é digna de que por ela nos arrisquemos, com
tudo o que temos. Mesmo que tal homem, além de não merecer nada de nós
também nos fez muitas injúrias ultrajantes, ainda assim isso não é causa suficiente para que deixemos de amá-lo, agradá-lo e servi-lo. Porque, se dissermos que
ele não merece nada disso de nós, Deus nos poderá perguntar que é que merecemos dele. E quando Ele nos ordena que perdoemos aos homens as ofensas que
nos fizeram ou fizerem, é como se o fizéssemos a Ele.51
Não há outro caminho pelo qual possamos chegar a praticar o que não somente é difícil para a natureza humana, mas também lhe é totalmente repulsivo,a
48
Gl 6.10
“Se recordarmos que o homem foi feito à imagem de Deus, devemos considerá-lo como santo e sagrado, de
sorte que não pode ser violado sem violar também, nele, a imagem de Deus” (Juan Calvino, Breve Instruccion
Cristiana, p. 25). “Agora não nascemos tais como Adão fora inicialmente criado, senão que somos a semente adulterada do homem degenerado e pecaminoso.” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998,
(Ef 2.3), p. 56]. “A Escritura nos ajuda com um excelente argumento, ensinando-nos a não pensar no valor
real do homem, mas só em sua criação, feita conforme a imagem de Deus. A ele devemos toda honra e o
amor de nosso ser.”(João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 37). “Não temos de pensar continuamente
nas maldades do homem, mas, antes, darmos conta de que ele é portador da imagem de Deus.” (João
Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 38). “A imagem de Deus deve ser um vínculo de união especialmente sagrado. Por isso, aqui não se faz qualquer distinção entre amigo e inimigo, pois os perversos não podem
anular o direito natural.”[João Calvino, Gálatas, São Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 5.14), p. 164].
50
Is 58.7. NT
51
Mt 6.14,15; 18.35; [Lc 17.3]. “Se com nosso amor cobrimos e fazemos desaparecer as faltas do próximo,
considerando a beleza e a dignidade da imagem de Deus nele, seremos induzidos a amá-lo de coração. (Ver
Hb 12.16; Gl 6.10; Is 58.7; Mt 5.44; Lc 17.3,4).” [ João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 38]. :
“Portanto, quem quer que seja dos homens que agora se te depare que careça de tua ajuda, causa não tens por
que te furtes e assisti-lo. Dize que é ele um estranho: o Senhor, no entanto, imprimiu-lhe um traço que te
deve ser de um membro da família, em razão de que veda desprezada tua própria carne [Is 58.7]; dize que é
ele desprezível e sem valor: o Senhor, no entanto, mostra ser ele um a quem dignou da honra de Sua imagem;
dize que de nenhuns serviços seus estás em dívida para com ele: Deus, no entanto, como que o subestabelece
em Seu lugar, para com quem hajas, destarte, de reconhecer tantos e tão grandes benefícios, com os quais a
Si te há Ele envencilhado; dize que indigno é ele de que por sua causa faças sequer o mínimo esforço, digna,
no entanto, é a imagem de Deus, pela qual se te recomenda ele, a que te ofereças a ti próprio e a tudo que
tens”. [J. Calvino. Institutas III.7.6]. NE
a. prorsus adversum.
49
213
isto é, que amemos os que nos odeiam, que devolvamos o bem pelo mal, que
oremos pelos que falam mal de nós.52 Só chegaremos a esse ponto se nos lembrarmos de que não devemos dar atenção à malícia dos homens, mas sim contemplar
neles a imagem de Deus, a qual, por sua excelência e dignidade, pode mover-nos
a amá-los e pode apagar todos os vícios que poderiam fazer-nos desviar do caminho que nos cabe seguir.53
6º. Só o amor nos habilita a mortificar-nos
Então, essa mortificação só terá lugar em nós quando exercermos vera caridade. O que não consiste em apenas cumprir todos os deveres da caridade, mas
em cumpri-los movidos pelo verdadeiro amor. Pois pode acontecer que alguém
faça ao seu próximo tudo o que deve quando se trata do cumprimento meramente
exterior do dever, e, todavia, estar bem longe de cumprir o seu dever movido pela
razão legítima.a Vê-se muito isso, pois há aqueles que querem parecer muito generosos e, todavia, não dão coisa alguma semb a lançar em rosto, seja pelo semblante altivo, seja por palavra soberba. Atualmente chegamos a esta desgraça, c
que a maioria não dá nenhuma esmola senão acompanhada de algum insulto.
Perversidade intolerável, mesmo entre os pagãos.
Pois bem, o Senhor exige dos cristãos coisa muito diferente do que semblante
alegre e amável, para tornar a sua beneficência simpática graças a um tratamento
humanitário e terno.d Primeiro, devem colocar-se no lugar da pessoa que tem necessidade de ajuda; segundo, que tenham dó da sua sorte como se eles próprios
estivessem passando por essa situação; e, terceiro, que se deixem mover pelo mesmo sentimento de misericórdia ao ajudá-la, como se eles próprios fossem os necessitados socorridos. Quem tiver tal disposição de ânimo na ajuda que prestar a seus
irmãos, não somente não contaminará a sua beneficência com qualquer laivo de
arrogância ou censura, mas também não menosprezará a pessoa beneficiada por
sua indigência, nem quererá subjugá-la, como se ela lhe devesse obrigação.54
52
Mt 5.39-45; [Lc 6.28].
“Não é uma honra trivial o fato de Deus considerar o bem que fazemos aos homens como sacrifício oferecido
a Ele próprio, e o fato de valorizar tanto nossas obras, que as denomina de santas. Portanto, onde nosso amor
não se manifesta, não só despojamos as pessoas de seus direitos, mas também a Deus mesmo, o qual solenemente dedicou a Si o que ordenou fosse feito em favor dos homens.” [João Calvino, Exposição de Hebreus,
(Hb 13.16), p. 394]. NE
54
“Quase ninguém é capaz de dar uma miserável esmola sem uma atitude de arrogância ou desdém. (...) Ao
praticar uma caridade, os cristãos deveriam ter mais do que um rosto sorridente, uma expressão amável, uma
linguagem educada.
“Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que necessita de ajuda, e simpatizaremse com ela como se fossem eles mesmos que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma verdadeira humanidade e misericórdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e rapidez como se fosse para si mesmos.
“A piedade que surge do coração fará com que se desvaneça a arrogância e o orgulho, e nos prevenirá
de termos uma atitude de reprovação ou desdém para com o pobre e o necessitado.” (João Calvino, A
Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 39). NE
a. a vera ratione.
b. 1541, após ne tem se, o que parece um contra-senso. [Corrigido no texto em uso.] 1539: non exprobrent.
c. infelici.
d. 1539: verborum comitate amabilia reddant sua officia. 1545: beneficence. 1550: benefice.
53
214
As Institutas – Edição Especial
A verdade é que não insultamos nenhum dos nossos membros enfermos,
por cujo restabelecimento todo o resto do corpo trabalha, e nem por isso achamos
que ele fica especialmente obrigado aos demais membros pelo empenho destes
em socorrê-lo. Porquanto o que os membros se comunicam uns aos outros não
deve ser considerado como coisa gratuita, mas, antes, como pagamento e cumprimento do que a lei da natureza exige.
Daí decorre também que venceremos outro aspecto, pois não nos consideraremos livres e com as contas pagas por termos feito o nosso dever nisto ou naquilo, como geralmente se pensa. Porque o rico acredita que, depois de ter dado algo
do que possui, pode dar-se por satisfeito, e então negligencia todas as outras
responsabilidades, como se não lhe dissessem respeito. Ao contrário, cada um
deverá considerar que é devedor ao próximo de tudo o que tem e de tudo o que
está em seu poder, e que não deve limitar a sua obrigação de praticar o bem, a não
ser quando já não tenha recursos para isso; estes, até onde podem estender-se,
devem estar subordinados ao que manda a caridade.
6.3 – Abnegação ou renúncia com vistas a Deus
Tratemos agora da outra parte da abnegaçãoa ou renúncia de nós mesmos, agora
com relação a Deus. Já tratamos disso aqui e ali; seria supérfluo repetir tudo o
que já foi dito. Será suficiente mostrar como essa disposição nos leva à paciência
e à mansidão. Consideremos:
1º. A importância e a dificuldade do domínio próprio
Primeiramente, enquanto procuramos meios de viver ou gozar paz e comodidade, a Escritura sempre nos faz voltar a ver a necessidade de entregar a Deus todo
o nosso ser e tudo quanto temos, sujeitando a Ele os nossos afetos e os sentimentos
do nosso coração, para que Ele os domine e os dirija soberanamente. Há em nós
uma intemperança furiosa e uma cupidez desenfreada que nos levam a cobiçar
crédito e honras, a buscar posições de poder, a acumular riquezas e a juntar tudob
quanto nos parece conveniente para uma vida de pompa e de magnificência.55 Por
outro lado, tememos e detestamos pavorosamente a pobreza, a pequenez e a
ignomínia;c por isso fugimos delas o mais que podemos. Por essa causa se vê quanta inquietude de espírito padecem todos aqueles que procuram dirigir a sua vida
conforme o seu próprio conselho, quantos meios tentam e de quantas maneiras se
55
“A ambição é mãe da inveja. E sempre que a inveja estiver no comando, ali também surgirá violência,
confusões, contendas e os demais males que Paulo enumera aqui.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo,
Paracletos, 1998, (1Tm 6.4), p. 166]. “É da inveja que nascem as disputas, as quais, uma vez inflamadas, se
prorrompem em seitas perigosas. Além do mais, a ambição é a mãe de todos estes males.” (João Calvino,
Exposição de 1 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1996, (1Co 3.3), p.100). NE
a. abnegationis. 1560 traduziu aqui: renoncement (renúncia). Cf., acima, p. 250, nota d.
b. omnes ineptias.
c. ignobilitatis, humilitatis.
215
atormentam, para chegar a uma situação para a qual os levam a sua ambição e a sua
avareza a fim de evitarem a pobreza e uma condição inferior.56
2º. A bênção de Deus nos basta
Dado o que acima foi dito, para que os crentes não se deixem prender por
esses laços, terão que seguir este caminho: Primeiro, não devem desejar nem
esperar nem imaginar outro meio de prosperar senão graças à bênção de Deus, e,
por conseguinte, nela devem firmar-se, apoiar-se e descansar. Pode parecer que a
carne é em si suficiente para levar a efeito a sua intenção, quando aspira a honras
e riquezas, confiante em que as pode obter por seu engenho e arte, ou quando ela
faz esforços para isso, ou quando é ajudada pelo favor dos homens. Entretanto, o
certo é que todas essas coisas de nada valem e nenhum proveito nos darão, não
por nosso engenhoa nem por nosso labor, a não ser que o Senhor os torne profícuos. Ao contrário, unicamente Sua bênção achará caminho através de todos os
obstáculos para nos dar bom êxito em todas as coisas.57
Além disso, ainda quando pudéssemos adquirir honras e fortuna sem buscar
para isso a bênção de Deus, pois constantemente vemos os ímpios conseguirem
grandes riquezas e alta posição,b58 todavia, uma vez que nas coisas sobre as quais
pesa a maldição de Deus não se pode experimentar nem uma só gota de felicidade, qualquer coisa que obtivermos nos fará infelizes, a não ser que a bênção de
Deus esteja sobre nós. Ora, seria uma loucura querer algo que nos pode infelicitar.
6.4 – A bênção de Deus é o segredo da moderação e de um viver profícuo
e benéfico
Portanto, se acreditamos que o único meio de prosperar é a bênção de Deus, e que
sem ela nos sobrevirão misérias e calamidades, o que devemos fazer é deixar de
desejar com sofreguidão riquezas e honras e de pôr a nossa confiança em nosso
engenho ou em nossos esforços ou no favor dos homens ou na sorte. E mais,
56
“Certamente, o marfim, o ouro e as riquezas são boas criaturas de Deus, permitidas, e até destinadas ao uso
dos homens; também em nenhum lugar se proíbe ao homem rir ou fartar-se ou adquirir novas propriedades
ou deleitar-se com instrumentos musicais ou beber vinho. É certo. Mas, quando alguém goza abundância de
bens, se ele se deixar envolver pelas coisas que lhe causam deleite, embriagar sua alma e seu coração com os
prazeres desta vida e viver buscando outros novos, muito longe estará do uso santo e legítimo dos dons de
Deus.” [(João Calvino, As Institutas, (1541), IV.14]. NE
57
“Quando o Senhor nos abençoa, também nos convida a seguirmos seu exemplo e a sermos generosos para
com o nosso próximo. As riquezas do Espírito não são para serem guardadas para nós mesmos, mas sempre
que alguém as recebe deve também passá-las a outrem. Isto deve ter uma aplicação especial aos ministros da
Palavra, mas também tem uma aplicação geral a todos os homens, a cada um em sua própria esfera” [João
Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, (2Co 1.4), p. 17]. NE
58
*“Francamente admito que, quanto mais meditamos nos benefícios que Deus tem concedido a outros, mais
profunda se torna a tristeza que experimentamos quando ele não nos alenta em nossas adversidades. A fé,
porém, nos conduz a outra conclusão, a saber, que devemos crer de coração que no devido tempo também
experimentaremos algum lenitivo, visto que Deus continua imutavelmente o mesmo.” [João Calvino, O
Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 44.2), p. 281]. NE
a. ingenio.
b. honoribus.
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As Institutas – Edição Especial
devemos pôr sempre os nossos olhos em Deus para que, sob a Sua direção, sejamos conduzidos à condição na qual Lhe pareça bem colocar-nos.
Disso resultará que não procuraremos conseguir riquezas, nem usurpar honras
a torto e a direitoc, pela violência, por trapaça e por outros meios escusos, mas só
buscaremos obter o que não nos faça culpados diante de Deus. Porque, haverá
quem espere que a bênção de Deus o ajude a cometer fraudes, rapinas e outras
maldades? E, assim como a bênção divina só favorece os que são retos em seus
pensamentos e em suas obras, assim também o homem que a deseja deve manterse longe de toda iniqüidade e de toda máa cogitação.
Acresce que a submissa confiança na bênção de Deus nos servirá de freio
para nos conter, impedindo que nos inflamemos de uma desordenada cobiça por
riquezas e que labutemos ambiciosamente pela nossa exaltação. Pois, que impudente ousadia será pensar que Deus nos ajudará a obter coisas que desejamos
contrariamente à Sua Palavra! Longe de nós pensar que Deus favorece com a
graça da Sua bênção algo que Ele amaldiçoa com a Sua própria boca!
Finalmente, quando as coisas não sucederem conforme o nosso desejo e a
nossa esperança, a presente consideração nos impedirá de deixar-nos arrastar
pela impaciência e de odiar a nossa situação. Porque saberemos que fazê-lo seria
murmurar contra Deus, por cuja vontade são distribuídas as riquezas e a pobreza,
o desprezo e as honras.
Em suma, todo aquele que descansar na bênção de Deus, como acima foi
dito, não desejará obter por meios escusos e maus nenhuma das coisas que em
geral os homens cobiçam desenfreadamente, pois sabe que esses meios não lhe
darão nenhum real proveito. E se lhe advier alguma prosperidade, não a imputará
aos seus esforços diligentes, nem à sua capacidade, nem à sorte, mas reconhecerá
agradecido que lhe vem de Deus.59
Por outro lado, se ele não consegue progredir, e até regride, enquanto outros
conseguem tudo o que querem, não deixará por isso de suportar com mais paciência e equilíbrio a sua pobrezab do que a suportaria um ímpio por não alcançar as
59
“Se desejamos refrear nossas paixões, devemos recordar que todas as coisas nos têm sido dadas com o
propósito de que possamos conhecer e reconhecer o seu autor.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,
p. 72). “Deus não quer que os talentos que Ele mesmo concede a uma pessoa, com o fim de proporcionar
crescimento, sejam perdidos ou sepultados na terra sem qualquer utilidade. Negligenciar um dom, pelo
prisma da indolência e indiferença, é deixar de fazer uso ele; de modo que, pela falta de uso, enferruja-se e
degenera-se. Por conseguinte, cada um de nós deve considerar que habilidade possui, a fim de fazer pleno
uso dela.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 4.14), p. 123]. “O propósito de
todos os dons da graça é que sejam assim comunicados aos membros de Cristo. Portanto, quanto mais fortes
somos em Cristo, tanto mais obrigados somos de apoiar os fracos.” [João Calvino, Romanos, 2ª ed., Sâo
Paulo, Parakletos, 2001, (Rm 15.1), p. 495]. NE
c. per faz et nefas dolis, ac malis artibus.
a. obliqua.
b. Fim de março de 1539 – antes de compor este capítulo, talvez – Calvino escrevia: “Estou em tal situação que não
posso pagar nem um tostão.178 Entretanto, devo viver do que tenho, se não quero ficar nas costas dos meus
irmãos”. Em abril ele escreveu a Farel: “Resolvi não me beneficiar da sua bondade nem da dos outros amigos, a
menos que seja levado a isso por extrema necessidade... Quanto ao futuro, Deus proverá”. (Op. Calv., Xb, 339.)
178
No francês: nem um as. Do latim: as = um asse, um ceitil. NT
217
riquezas medíocres que almeja, que afinal não são tão grandes que valha a pena
desejá-las. Porque o crente fiel desconsidera com maior tranqüilidadea todas as
riquezas e honras do mundo porque tem o consolo de saber que todas as coisas
que decorrem da ordenação e direção de Deus visam à sua salvação.60
6.5 – A abnegação nos habilita à paciência e à moderação em todas
as circunstâncias
É necessário, porém, que os crentes não somente mantenham nessa questão essa
paciência e moderação, mas também que a estendam a todas as situações a que
estamos sujeitos nesta existência. Por isso, ninguém terá devidamente renunciado a si mesmo enquanto não se render de tal modo a Deus que aceite de boa
vontade que a sua vida seja governada por Seu beneplácito. Quem tiver esta disposição de ânimo, aconteça o que acontecer não se considerará infeliz, nem se
queixará de sua situação lançando acusações sobre Deus.
Pois quão necessária é esta maneira de sentir logo se nos tornará manifesto,
se considerarmos quantos são os acidentes a que estamos sujeitos. Há mil tipos
de enfermidades que nos molestam constantemente. Ora a peste nos atormenta,b
ora a guerra,c ora a geada ou o granizo torna improdutivos os campos, e, em
conseqüência, a indigência nos ameaça; ora perdemos a esposa,d filhos e outros
parentes;e às vezes o fogo irrompe em nossa casa. Essas coisas fazem com que os
60
“Quem sofre a pobreza com impaciência, mostra o vício contrário na abundância. Quero dizer com isso que
quem se envergonha de andar pobremente vestido, se vangloriará de ver-se ricamente ataviado; que quem
não se contenta com a mesa frugal, se atormentará com o desejo de outra mais rica e abundante.” [J. Calvino,
Institución, III.10.5]. Calvino entendia que: “Quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus.” [João Calvino,
As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 182]. “O pobre deveria aprender a ser paciente sob as privações, para não se
encontrar atormentado com uma excessiva paixão pelas riquezas.” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 74]. “Devemos aprender a superar a pobreza quieta e pacientemente, e desfrutar da abundância com
moderação”. [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 73].
Ele também entende que na pobreza é que tendemos a nos tornar mais humildes e fraternos: “Todas
as pessoas desejam possuir o bastante que as poupe de depender do auxílio de seus irmãos. Mas quando
ninguém possui o suficiente para suas necessidades pessoais, então surge um vínculo de comunhão e
solidariedade, pois que cada um se vê forçado a buscar empréstimo dos outros. Admito, pois, que a comunhão dos santos só é possível quando cada um se vê contente com sua própria medida, e ainda reparte com
seus irmãos as dádivas recebidas, e em contrapartida admite ser também assistido pelas dádivas alheias.”
[João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 12.6), p. 430]. NE
a. tranquillius.
b. Nesse tempo grassou uma epidemia em Estrasburgo. Calvino casou-se em 1540, e, pouco depois, ambos os
cônjuges ficaram doentes. No verão de 1541, como a “peste” se agravou, Idelette, na ausência do seu marido, foi para a casa do seu irmão. Esses fatos são posteriores à impressão deste capítulo, mas provações
semelhantes já tinham atingido Calvino e seus colegas.
c. Francisco I e Carlos V estiveram em guerra de 1535 a 1538. Solimão179 invadiu a Hungria em 1537; suas
frotas ameaçavam as costas do Mediterrâneo.
d. Capito havia perdido sua mulher em 1531; Bucer perderá a sua em 1541. Ele teve 13 filhos, dos quais
somente um, deficiente mental, sobreviveu.
e. Robert Olivetan, primo de Calvino, morreu no inverno de 1538-39. Calvino tinha perdido seu pai em 1531.
179
Solimão I, em turco, Suleyman I Kanuni (1494-1566). Chamado “O Magnífico” pelos ocidentais, e “O
Legislador” por seus compatriotas. Sultão otomano de 1520 a 1566. NT
218
As Institutas – Edição Especial
homens maldigam sua vida, detestem o dia em que nasceram, repudiem o céu e a
luz, falem mal de Deus,f e, como estão sempre prontos a blasfemar, acusem-no de
injustiça e crueldade.
Ao contrário, o homem crente e fiel é levado a contemplar, mesmo nessas
coisas, a clemência de Deus e Sua bondade paternal. E assim, ainda que se sinta
consternado pela morte de todos os que lhe são chegados e veja sua casa deserta,
não deixará de bendizer a Deus. Antes se dedicará a meditar: Visto que a graça de
Deus habita em sua casa, não a deixará triste e vazia; ainda que as suas vinhas e
suas lavouras sejam destruídas pela geada, pela saraiva ou por qualquer outro
tipo de tempestade, prevendo-se por isso o perigo de fome, ainda assim ele não
perderá o ânimo e não ficará descontentea com Deus. Em vez disso, persistirá em
sua firme confiança, dizendo em seu coração: Apesar disso tudo, estamos sob a
proteção de Deus, somos “ovelhas de sua mão” e “rebanho do seu pastoreio”. 61
f. obloquuntur Deo.
a. Deo invidiam faciet.
61
Calvino refletindo sobre fragilidade humana relaciona os perigos próprios da vida:
“Incontáveis são os males que cercam a vida humana, males que outras tantas mortes ameaçam. Para que
não saiamos fora de nós mesmos: como seja o corpo receptáculo de mil enfermidades e dentro de si, na
verdade, contenha inclusas e fomente as causas das doenças, o homem não pode a si próprio mover sem que
leve consigo muitas formas de sua própria destruição e, de certo modo, a vida arraste entrelaçada com a morte.
“Que outra cousa, pois hajas de dizer, quando nem se esfria, nem sua, sem perigo? Agora, para onde
quer que te voltes, as cousas todas que a teu derredor estão não somente não se mostram dignas de confiança, mas até se afiguram abertamente ameaçadoras e parecem intentar morte pronta. Embarca em um navio:
um passo distas da morte. Monta um cavalo: no tropeçar de uma pata a tua vida periclita. Anda pelas ruas de
uma cidade: quantas são as telhas nos telhados, a tantos perigos estás exposto. Se um instrumento cortante
está em tua mão ou de um amigo, manifesto é o detrimento. A quantos animais ferozes vês, armados estãote à destruição. Ou que te procures encerrar em bem cercado jardim, onde nada senão amenidade se mostre,
aí não raro se esconderá uma serpente. Tua casa, a incêndio constantemente sujeita, ameaça-te pobreza
durante o dia, durante a noite até mesmo sufocação. A tua terra de plantio, como esteja exposta ao granizo,
à geada, à seca e a outros flagelos, esterilidade te anuncia e, dela a resultar, a fome. Deixo de referir envenenamentos, emboscadas, assaltos, a violência manifesta, dos quais parte nos assedia em casa, parte nos acompanha ao largo.
“Em meio a estas dificuldades, não se deve o homem, porventura, sentir assaz miserável, como quem
na vida apenas semivivo, sustenha debilmente o sôfrego e lânguido alento, não menos que se tivesse uma
espada perpetuamente a impender-lhe sobre o pescoço?”. [João Calvino, As Institutas, I.17.10].
Em outro lugar:
“Se considerarmos a enorme quantidade de acidentes aos quais estamos sujeitos, veremos o quão
necessários é exercitarmos nossa mente desta maneira.
“Enfermidades de todos os tipos tocam nossos débeis corpos, uma atrás da outra: ou a pestilência nos
enclausura, ou os desastres da guerra nos atormentam.
“Em outra ocasião, as geadas e os granizos destroem nossas colheitas, e ainda somos ameaçados pela
escassez e a pobreza.
“Em vista destes acontecimentos, as pessoas maldizem suas vidas, e até o dia em que nasceram;
culpam o sol e às estrelas, e ainda censuram e blasfemam a Deus, como se Ele fora cruel e injusto.” (João
Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 43).
“Não há parte de nossa vida que não se apresse velozmente para a morte”. [João Calvino, O Livro dos
Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl. 102.25), p. 585] “E o que mais somos nós senão um
espelho da morte?” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 102.26), p. 586].
No entanto, Calvino não termina o seu argumento numa descrição “existencialista” da vida, mas,
na certeza própria de um coração dominado pela Palavra de Deus. Assim, ele conclui falando da “incalculável felicidade da mente piedosa.”[João Calvino, As Institutas, I.17.10]. “Quando, porém, essa luz da
Divina Providência uma vez dealbou ao homem piedoso, já não só está aliviado e libertado da extrema
219
Por mais grave que seja a improdutividade da terra, Ele sempre nos dará o sustento. Mesmo que o crente padeça enfermidade, não se deixará abater pela dor nem
se deixará arrastar pela impaciência e queixar-se de Deus. Ao contrário, considerando a justiça e a bondade do Pai celestial nos castigos que nos ministra, o
crente fiel se deixará dominar62 pela paciênciab.63
Em resumo, sabedor de que tudo provém da mão do Senhor, o que quer
que lhe advenha o crente fiel receberá com coração sereno e não ingrato ou
ressentido, não se dispondo a resistir à ordenação daquele a Quem uma vez se
entregou confiante.c Com maior razão, longe esteja do crente a estulta consolação dos pagãos qual seja: para suportar com paciência as adversidades, atribuílas à sorte. Os filósofos argumentam nesse sentido,d afirmando que seria loucura rebelar-se contra a sorte [ou a deusa Fortuna] a qual é impulsiva e cega,e e
lança ao acaso os seus dardos contra bons e maus, indiscriminadamente.64 Ao
contrário, um ditame da verdadeira piedade cristã é que somente a mão de Deus
conduz e governa a boa ou má sorte,65 lembrando que a Sua mão não age de
maneira impetuosa e inconsiderada, mas dispensa o bem e o mal segundo uma
justiça sabiamente ordenada.66
ansiedade e do temor de que era antes oprimido, mas ainda de toda preocupação. Pois assim como, com
razão, se arrepia de pavor da Sorte, também assim ousa entregar-se a Deus com plena segurança.” [João
Calvino, As Institutas, I.17.11].
Calvino admite que para qualquer lado que olharmos encontraremos sempre desespero, até que tornemos para Deus, em Quem encontramos estabilidade no meio de um mundo que se corrompe. [João Calvino,
O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl. 102.26), p. 586]. NE
62
No original francês: “se duira”; deve ser: “se réduira”. NT
63
“Visto que a providência divina no mundo não é agora evidente, é mister que exerçamos paciência e subamos
acima das sugestões do senso carnal a antecipar o resultado favorável.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,
Vol. 2, (Sl 49.1), p. 371]. “Quando, pois, a fraude, a astúcia, a traição, a crueldade, a violência e a extorsão
reinam no mundo; em suma, quando todas as coisas são arremessadas em total desordem e escuridão, pela
injustiça e perversidade, que a fé sirva como uma lâmpada a capacitar-nos para visualizarmos o trono celestial
de Deus, e que essa visão nos seja suficiente para fazer-nos esperar pacientemente pela restauração das
coisas a um melhor estado.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 11.4), p. 240]. “Se desejamos
ser discípulos de Cristo, devemos reverenciar a Deus de tal maneira que possamos triunfar sobre todas as
inclinações contrárias e submeter-nos com alegria a Seu plano.
“Desta forma, permanecer constantes em nossa paciência, por maior que seja a agonia mental ou qualquer
outra classe de aflição que tenhamos.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século,
2000, p. 56). NE
64
Sêneca, Diálogos, I, 5; Epístola LXXVI, 23; CVII, 7 ss. NT
65
“Notamos que a maioria atribui à fortuna o que deveria ser atribuído à providência de Deus.” [João Calvino,
O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 46.8), p. 336]. NE
66
“Notamos que a maioria atribui à fortuna o que deveria ser atribuído à providência de Deus.” [João Calvino,
O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 46.8), p. 336]. NE
b. tolerantiam.
c. in cujus potestate se suaque omnia semel permisit.
d. Frase acrescentada em 1541.
e. a;sxopoj.
220
As Institutas – Edição Especial
6.6 – Levar pacientemente cada dia a sua cruz é um dos componentes da
abnegação do cristão
A dedicação do cristãoa deve subir a um ponto ainda mais alto, para o qual Cristo
chama todos os que Lhe pertencem.67 Chama-os para que cada qual leve a sua
cruzb. Porque todos quantos o Senhor adotou e recebeu na comunidade dos Seus
67
Mt 16.24
a. Aqui começa em 1560 o capítulo VIII: “Sobre sofrer pacientemente a cruz, que é uma parte da renúncia a nós
mesmos”. Em 1519 Lutero tinha publicado Tessaradecas consolatoria pro laborantibus et oneratis, logo
traduzido para o francês (S. Dubois, 1528): Consolação cristã contra as aflições deste mundo e contra os
escrúpulos de consciência.
Farel, em 1534, escreveu a um amigo de Calvino, Etienne de la Forge: “Seja qual for a cruz que houver,
Deus não abandonará a Sua obra” (Herminjard, Corresp. des Reformateurs [Correspondência dos
Reformadores], III, 166). O principal mérito que Calvino encontra no Livro de Salmos é que “ele nos ensina
a levar a cruz, que é uma verdadeira prova da nossa obediência, devendo ser entendido porém que, renunciando aos nossos próprios afetos, sujeitamo-nos inteiramente a Deus e deixamos que Ele governe a nossa
vida e dela disponha de tal maneira que as misérias mais duras e mais amargas à nossa natureza se nos
tornem doces e suaves, uma vez que dele procedem” (Commentaires sur les psaumes, prefácio) [Comentário de Salmos, Prefácio). [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 1, p. 36]. No
ano seguinte, Etienne de la Forge sofreu o martírio por sua fé.
b. A divisa de Rihel, que imprimiu as Institutas de 1539 era formada por estas palavras do profeta Habacuque
(1,2): “Quo usque tandem?” [Até quando?] Calvino escreveu estas linhas alguns meses depois de ter sido
expulso de Genebra, em 1538. Quando, alguns meses mais tarde, os genebrinos vão querê-lo de volta, em
março de 1540, ele escreverá a Farel: “Melhor será sofrer cem outras mortes que esta cruz!” Depois ele
acabou cedendo às instâncias deles.
Em 22 de outubro de 1540 – entre outras cartas enviadas –, o Conselho dos Duzentos resolve convidar
Calvino a voltar à Genebra. Calvino hesita. Em 1º de maio de 1541, o Conselho Geral, por considerar
Calvino e Farel “pessoas de bem e de Deus”, revoga o edito de banimento de 1538. Farel, que convencera
Calvino em 1536 a permanecer em Genebra, agora, a pedido do Conselho daquela cidade – visto que Calvino
não atendera ao seu convite –, persuade Calvino a retornar à Genebra em 1541. Em agosto de 1541, Calvino
já se decidira; mesmo desejando permanecer em Estrasburgo, voltaria à Genebra: “Mas quando eu me
lembro que não pertenço a mim próprio, eu ofereço meu coração, apresentado como um sacrifício ao Senhor.”180 Na manhã de terça-feira de 13/9/1541 os magistrados de Genebra, precedidos por um arauto, foram
receber Calvino, percorrendo o mesmo caminho que ele e Farel fizeram três anos antes, passando pela porta
Cornavin em direção Versoix. Neste mesmo dia, Calvino entra em Genebra; no dia 16, escreve a Farel
dando-lhe notícia da sua entrevista com os Magistrados e dos passos para a elaboração da forma para
disciplina eclesiástica.181 A partir de então, Calvino dá prosseguimento à implantação de uma intensa reforma naquela cidade. Mais tarde (1557), ele contaria que regressou à Genebra com lágrimas, tristeza, ansiedade e abatimento, contrariando a sua “aspiração e inclinação”; contudo, ele tinha dentro de si um sentimento
maior do que simplesmente fazer o que desejava; confessa: “o bem-estar desta Igreja, é verdade, era algo tão
íntimo de meu coração, que por sua causa não hesitaria a oferecer minha própria vida; minha timidez, não
obstante, sugeriu-me muitas razões para escusar-me uma vez mais de, voluntariamente, tomar sobre meus
ombros um fardo tão pesado. Entretanto, finalmente uma solene e conscienciosa consideração para com
meu dever prevaleceu e me fez consentir em voltar ao rebanho do qual fora separado.”182 Mas, como ele
mesmo diria, comentando o Salmo 13, “é pela fé que tomamos posse de Sua providência invisível.” 183
Comentando o Salmo 18, diz: “Não há nada mais miserável do que uma pessoa, em adversidade, que entra
em desespero por agir segundo o mero impulso de sua própria mente e não em obediência à vocação divina.”184 A sua tarefa não foi fácil nem tranqüila: No comentário de Tito (1549) – dedicado aos seus amigos
180
John Calvin, “Letter to Farel,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998),
nº 73. NE
181
John Calvin, “Letter to Farel,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998),
nº 76, p. 276-277. NE
182
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 42. NE
183
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 13.1), p. 262. NE
184
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 354. NE
221
filhos devem dispor-se e preparar-se para uma vida dura, laboriosa e repleta de
labutas e de infindáveis espécies de males. É da vontade do Pai celestial exercitar
assim os Seus servos, a fim de prová-los. Começou a agir dessa forma com Cristo, Seu Filho, e depois com todos os demais. Porque, apesar de ser Ele Seu Filho
amado, em quem sempre se agradou,68 vemos que não foi tratado com brandura
concessões indulgentesc neste mundo. A tal ponto que se pode dizer que Ele não
somente padeceu constante aflição, mas também que toda a sua vida foi uma
espécie de cruz perpétua.69 Como, então, vamos querer isentar-nos da condição à
qual se sujeitou Cristo, nossa Cabeça? Ainda mais quando nos lembramos de que
se sujeitou a isso por nossa causa, para dar-nos exemplo de paciência! Por isso o
apóstolo anuncia que Deus predestinou todos os Seus filhos para esta finalidade:
que se façam semelhantes a Jesus Cristo.70
Desse fato nos advém uma singular consolação. É que, sofrendo todas as
misérias em geral descritas como coisas adversas e más, co-participemos da Cruz
de Cristo para que, assim como Ele passou por um abismo repleto de todos os
males para entrar na glória celestial, assim também nós cheguemos lá através de
muitas tribulações.71 Noutra passagem o apóstolo Paulo nos ensina que quando
experimentamos certa participação nas aflições de Cristo, ao mesmo tempo nos é
dado captar o poder da Sua ressurreição.72 E que quando participamos da Sua
morte, preparamo-nos dessa maneira para chegar à Sua eternidade gloriosa.73 Quão
grande é a eficácia desta realidade, para suavizar todo o amargor que poderia
haver na cruza – ter a convicção de que, quanto mais formos afligidos e quanto
mais misérias sofrermos, mais certos e seguros estaremos de que estamos unidos
Farel e Viret –, escreveu, como que descrevendo a sua própria vivência em Genebra: “A edificação de uma
igreja não é uma tarefa tão fácil que se torne possível fazer com que tudo seja imediata e perfeitamente
completado.”185 “Hoje sabemos pela própria experiência que o que se requer não é o labor de um ou dois
anos para levantar as igrejas caídas a uma condição mais ou menos funcional. Aqueles que têm alcançado
diligente progresso por muitos anos devem ainda preocupar-se em corrigir muitas coisas.”186 Calvino permaneceria em Genebra até o fim de sua vida (17/5/1564). De fato este fora o desejo dos 25 conselheiros que,
quando o convidaram a voltar, registraram: “Resolve-se conservar Calvino aqui para sempre.” NE
185
João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.5), p. 306. NE
186
João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.5), p. 306. NE
68
Mt 3.17; 17.5
69
“Com toda verdade se pode dizer que não somente passou toda sua vida em perpétua cruz e aflição, senão
que toda ela não foi senão uma espécie de cruz contínua.” [J. Calvino, Institución, III.8.1]. “Toda a sua
vida foi uma cruz perpétua”. [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p.
45]. NE
70
Rm 8.29
71
At 14.22. NT
72
“Paulo mostra quão estúpido é desprezar em Cristo a humilhação da cruz, visto que esta se acha associada à
incomparável glória de sua ressurreição.” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos,
1995, (2Co 13.4), p. 262]. NE
73
Fp 3.10,11
74
“... todos os seus sofrimentos tinham a ver com nossa salvação” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São
Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 5.9), p. 137]. NE
c. indulgenter.
a. acerbitatem crucis.
222
As Institutas – Edição Especial
a Cristo! Pois quando temos real comunhão com Ele, as nossas adversidadesb não
somente se tornam bênçãos, mas também nos ajudam grandemente a progredir
em nossa salvação!
6.7 – A cruz assinala marcantemente a presença da soberana graça de Deus
em nossa vida
Lembremo-nos de que o Senhor Jesus não tinha necessidade nenhumac de levar a cruz
e de sofrer tribulações, exceto para atestar e comprovar sua obediência a Deus, Seu
Pai.74 Mas por muitas razões nos é necessário sofrer perpétua aflição nesta vida.
Primeiro, como somos por demais inclinados por natureza a nos exaltard e a
atribuir tudo a nós mesmos, se a nossa fraqueza não for demonstrada de maneira
patente, depressa avaliaremos exageradamente o nosso poder e virtude e não duvidaremos de que vamos permanecer invencíveis frente a todas as dificuldades
que se nos anteponham. Daí sucede que nos elevamos firmados numa vã e estulta
confiança na carne, o que a seguir nos incita a orgulhar-nos contra Deus, como se
a nossa capacidade fosse suficiente para nós, sem a Sua graça.75
Não há melhor meio pelo qual Ele põe abaixo a nossa arrogância do que
mostrar-nos experimentalmente como somos fracos e frágeis. Por isso Ele nos
aflige, quer nos ocasionando afrontas vergonhosas, quer pela pobreza, ou doença, ou perda de parentes, quer por outras calamidades, de tal modo que logo
sucumbimos, visto que não temos forças para resistir. Então, humilhados e agora
humildes, aprendemos a implorar Seu poder, a única força que nos habilita a
subsistir e a manter-nos firmes sob o peso desses tão pesados fardos.76
Até os mais santos, embora reconheçam que a sua firmeza se funda na graça
do Senhor e não em seu próprio poder, ainda assim tenderiam a confiar demais
em sua força e em sua constância, se o Senhor não os conduzisse a um conhecimento mais correto sobre si mesmos, provando-os pela cruz. E, no caso de se
jactarem, concebendo a seu próprio respeito uma opinião de firmeza e perseverança quando tudo lhes vai bem, depois de passarem por alguma tribulação reconhecem que aquilo não passava de hipocrisia.77
Temos aí, pois, a maneira pela qual os santos são advertidos de sua fraqueza
por tais provações, para que aprendam a humilhar-se e a despojar-se de toda
b. passiones.
c. nihil necesse habuit.
d. Três palavras acrescentadas em 1541.
75
“A confiança carnal, que nos leva ao envaidecimento, é tão obstinada que a única forma de ser destruída é
por meio de nossa queda em extremo desespero” [ João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo,
Paracletos, 1995, (2Co 1.9), p. 23]. “Mesmo os santos precisam sentir-se ameaçados por um total colapso
das forças humanas, a fim de aprenderem, de suas próprias fraquezas, a depender inteira e unicamente de
Deus.” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 1.8), p. 22]. NE
76
“Sempre que Deus, depois de haver-nos privado das bênçãos que outrora nos conferira, passa a reprovarnos, aprendamos que temos muito maior motivo para lamentar-nos, visto que, através de nossa falha, retrocedemos da luz para as trevas.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Edições Parakletos, 2002,
Vol. 3, (Sl 102.10), p. 571]. NE
77
“....os crentes são açoitados, não para com isso satisfazerem à ira de Deus, nem para pagarem o que é devido
223
perversa confiança na carne e se rendam totalmente à graça de Deus.78 Então,
havendo-se rendido, sentem a presença do poder de Deus, no qual encontram
satisfatório refúgio e fortaleza.a79
6.8 – A cruz produz em nós perseverança e experiência
É o que o apóstolo quer dizer quando declara que “a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência”.80 Como o Senhor prometeu aos que nele
crêem assisti-los nas tribulações, eles experimentam a realidade dessa promessa
quando perseveram com paciência, sustentados por Sua mão, cientes de que não
o poderiam fazer por suas forças. A perseverança81 é, pois, uma prova de que
Deus verdadeiramente presta o socorro que lhes prometeu, sempre que se faz
necessário.82 Com isso é confirmada e fortalecida a sua esperança, considerando
que seria uma grande ingratidão não confiar na veracidade futura de Deus, tendo
já sido comprovada a sua firmeza e imutabilidade.83
ao juízo que Ele lhes impõe, mas a fim de aproveitarem a oportunidade para arrependimento e para retorno
ao bom caminho” [João Calvino, As Institutas, (1541), II.5]. “Ora, não podemos tirar bom proveito da Sua
disciplina, a não ser que, julgando que Ele está indignado com os nossos vícios e maldades, consideremos
o Senhor propício a nós,e que Ele nos trata com afetuoso amor”. [João Calvino, As Institutas, (1541),
II.5].“Ele [Deus] trata com mais severidade os que o servem do que os réprobos.” [João Calvino, O Livro
dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 90.11), p. 438]. NE
78
“É verdade que tanto os bons quantos os maus participam das misérias e dificuldades desta presente vida;
porém, para os ímpios, os sofrimentos são sinais da maldição divina, porquanto são resultado do pecado; sua
única mensagem é a ira de Deus e a nossa comum participação na condenação de Adão, e seu único resultado é o abatimento da alma. Porém, por meio de seus sofrimentos [gerados pelo testemunho de Cristo], os
crentes estão sendo conformados a Cristo, e produzem em seus corpos o morrer de Cristo, para que a vida de
Cristo seja um dia manifestada neles.” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 1.5), p. 18] “Esta é
a vantagem primordial das aflições, ou seja, enquanto nos tornam conscientes de nossa miséria, nos estimulam novamente para suplicarmos o favor divino.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos,
1999, Vol. 1, (Sl 30.8), p. 635]. NE
79
“A verdadeira humildade é o desprezo sincero do nosso próprio coração, um autodesprezo procedente de
uma real percepção da nossa miséria e pobreza, pelo que o nosso coração se abate” [João Calvino, As
Institutas, (1541), II.6]. NE
80
Rm 5.3,4
81
ARA: “perseverança”; texto original francês: “paciência”. Devemos entender perseverança como paciência
dinâmica. NT
82
“Sempre que nossas mentes se agitam e caem em perplexidade, devemos trazer à memória a seguinte verdade: sejam quais forem os perigos e apreensões que porventura nos ameacem, a segurança da Igreja que Deus
estabeleceu, por mais dolorosamente abalada ela seja, por mais poderosamente assaltada, jamais poderá ser
demasiadamente enfraquecida e envolvida em ruína.” [J. Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos,
1999, Vol. 2, (Sl 48.8), p. 362]. NE
83
Calvino observa que “as pessoas erram clamorosamente na interpretação da Escritura, deixando inteiramente
suspensa a aplicação de tudo quanto se diz acerca do poder de Deus e em não descansar certas de que ele
será também seu Pai, uma vez que fazem parte de seu rebanho e são partícipes de sua adoção.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2 (Sl 46.7), p. 336]. Descrevendo a confiança de Davi, a sua fé em meio
a temores, diz: “A verdadeira prova de fé consiste nisto: que quando sentimos as solicitações do medo
natural, podemos resisti-las e impedi-las de alcançarem uma indevida ascendência. Medo e esperança podem parecer sensações opostas e incompatíveis, contudo é provado pela observação que esta nunca domina
completamente, a não ser quando exista aí alguma medida daquele. Num estado de tranqüilidade mental não
há qualquer espaço para o exercício da esperança.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2 (Sl 56.3), p.
495. Do mesmo modo, Ver: O Livro dos Salmos, Vol. 2 (Sl 46.1-2), p. 329]. NE
a. præsidii.
224
As Institutas – Edição Especial
Já vemosa aí, então, quantos benefícios nos provêm da cruz, como numa
corrente ininterrupta. Destruindo a falsa opinião que naturalmente concebemos
sobre a nossa própria virtude e capacidade, e desmascarando a nossa hipocrisia,
que nos seduz e nos engana com suas lisonjas, a cruz elimina a confiança em
nossa carne, confiança assaz perniciosa. Depois, havendo-nos humilhado dessa
forma, ensina-nos a descansar em Deusb que, sendo como é o nosso real
fundamento,c não nos deixa sucumbir nem desanimar. Dessa vitória segue-se a
esperança. Pois visto está que o Senhor, tendo cumprido o prometido, estabelece
como certa e segura a sua veracidade quanto ao futuro.84
Com certeza, ainda que só houvesse essas razões, vê-se quão necessário é
o exercício da cruz. Porquanto não é pequena bênção que o nosso amor a nós
mesmos, amor que nos cega, seja extirpado, para que reconheçamos adequadamente a nossa debilidade; que tenhamos bom discernimento dela para aprendermos a desconfiar de nós mesmos; que, desconfiando de nós mesmos, ponhamos a nossa confiança em Deus; que nos apoiemos em Deus com segura e
firme confiança, de coração, para que, mediante Seu auxílio, perseveremos vitoriosos até o fim; que permaneçamos firmes emd Sua graça, e assim saibamos
e reconheçamos que Ele é verdadeiro e fiel em Suas promessas; e que tenhamos
como certas e manifestas as Suas promessas, para que dessa forma a nossa
esperança seja confirmada e fortalecida.85
6.9 – A cruz prova a nossa paciência e nos ensina a obediência
O Senhor tem ainda outro motivo para afligir os Seus servos, qual seja, provar
sua paciência e ensinar-lhes a obediência. Não que eles possam ter outra obediência além da que lhes é dada; agrada ao Senhor, porém, mostrar e atestar as graças
que dá aos Seus que nele crêem, a fim de que não permaneçam ociosos e fechados em si mesmos. Por isso, quando Ele fala da virtude da perseverança com que
dotou Seus servos, declara que prova a paciência deles. Disso procedem as expressões referentes ao fato de que Ele provou Abraão, e viu sua piedade; visto
84
“Deus não frustra a esperança que ele mesmo produz em nossas mentes através da sua Palavra, e que ele não
costuma ser mais liberal em prometer do que em ser fiel na concretização do que prometeu.” [João Calvino,
O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 48.8), p. 361]. NE
85
“Onde há promessa, ali a fé tem sobre o que se apoiar e com que se consolar e se fortalecer”. [João Calvino,
As Institutas, (1541), IV.12]. “Seja o que for que Deus tenha que fazer, inquestionavelmente o fará, se Ele
o tiver prometido.” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998, (Ef 3.20-21), p. 106].“Não há
nenhuma paz genuína que seja desfrutada neste mundo senão na atitude repousante nas promessas de Deus.
Os que não lançam mão delas podem ser bem sucedidos por algum tempo em abafar ou expulsar os terrores
da consciência, mas sempre deixarão de desfrutar do genuíno conforto íntimo.” [João Calvino, O Livro dos
Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 51.8-9), p. 436]. NE
a. Na edição de 1539, as duas páginas que se seguem têm as palavras DEVS e DOMINVS impressas em
maiúsculas.
b. in Deum unum.
c. quo fit…
d. consistere gratia
225
que não se negou a imolar seu filho para agradar ao Senhor.86 Pela mesma razão o
apóstolo Pedro declara que a nossa fé não é menos provada pela tribulação que o
ouro pelo fogo.8788
Ora, quem negará que é de toda conveniência que um dom tão excelente
como esse, dado pelo Senhor aos Seus servos, seja posto em uso, e assim se torne
notório e manifesto? De outro modo, os homens jamais o apreciariam como convém. Ora, se o Senhor tem justa razão para dar importância às virtudes que colocou em Seus servos, para que as exercitem e não fiquem fechados em si mesmos
tornando-as inúteis, vemos que não é sem motivo que ele envia aflições,89 sem as
quais seria nula sua paciência, ou sua perseverança.90
Digo também que a cruz ensina aos cristãos a obediência 91, pois assim aprendem a viver, não para agradar os desejos do seu coração, mas para agradar a
Deusa. É evidente que se todas as coisas lhes sucedessem como gostariam, nunca
saberiam o que é seguir a Deus. Note-se que Sêneca, filósofo pagão,b disse92 que
antigamente, quando se queria exortar alguém a suportar pacientemente as adversidades, costumava-se citar este provérbio: “É necessário seguir a Deus”. Com
isso os antigos queriam dizer que o homem se submete real e finalmente ao jugo
do Senhor quando se deixa castigar e voluntariamente oferece mãos e costas aos
Seus açoites. Ora, se é razoável que nos façamos obedientes em todas as coisas
ao Pai celestial, não devemos negar-nos a que Ele nos acostume por todos os
meios possíveis a prestar-lhe obediência.93
86
Gn 22.1-12. NT
1Pe 1.7.
88
Satanás jamais descansa enquanto não envida esforço para obscurecer, com suas mentiras, a santa doutrina
de Cristo, e a vontade de Deus é que nossa fé seja provada com tais conflitos”. [J. Calvino, Efésios, São
Paulo, Paracletos, 1998, (Ef 4.14), p. 129]. NE
89
“Tanto ao Diabo, quanto aos ímpios todos, Deus os arma para o embate e toma assento, como se fora um
mestre de liça, para que nos exercite a paciência.” [João Calvino, As Institutas, I.17.8. Vd. também: João
Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2 Co 12.7), p. 246]. NE
90
“Quando, pois, a fraude, a astúcia, a traição, a crueldade, a violência e a extorsão reinam no mundo; em
suma, quando todas as coisas são arremessadas em total desordem e escuridão, pela injustiça e perversidade,
que a fé sirva como uma lâmpada a capacitar-nos para visualizarmos o trono celestial de Deus, e que essa
visão nos seja suficiente para fazer-nos esperar pacientemente pela restauração das coisas a um melhor
estado.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 11.4), p. 240].“Portanto, seja de que ponto nossa aflições venham, aprendamos a volver instantaneamente nossos pensamentos
para Deus e reconhecê-lo como Juiz que nos intima, como culpados, a comparecer diante de seu tribunal, já
que, de nossa própria iniciativa, não antecipamos seu juízo.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,Vol. 1, (Sl
6.1), p. 124]. NE
91
Não “paciência”, como diz o texto em francês de que disponho. NT
92
De Vita beata, 15, 5c. [Epístola XVI, 5; ver também: Platão, Sobre as Leis, IV, 716 B.NT]. “O que deve
pensar todo homem é estar entre aqueles que seguem na trilha do deus.” [Platão, As Leis, São Paulo, EDIPRO.,
1999, IV.716b. p. 189]. NE
93
“Os homens são incapazes de sentir seus pecados a menos que sejam levados pela força a conhecer-se por si
mesmos. Por isso, vendo que a prosperidade nos embriaga de tal maneira, e que quando estamos em paz
a. Dei arbitrium
b. Explicação acrescentada em 1541.
c. Esta citação marginal de 1539, ausente em 1541, reaparece em 1545.
87
226
As Institutas – Edição Especial
6.10 – A cruz freia a intemperança da nossa carne
Todavia, não enxergaríamos a grande necessidade de prestar-lhe esta obediência,
se não considerássemos quão grande é a intemperança da nossa carne, predisposta a arrojar de nós o jugo do Senhor, tão logo se vê tratada com brandura. Acontece com ela o que se dá com cavalos fogosos que, depois de serem deixados por
algum tempo ociosos e descansados no estábulo, tornam-se indomáveis e desconhecem o seu dono, a quem antes se sujeitavam.a Em resumo, o que o Senhor
lamentava haver acontecido com o povo de Israel94 vê-se costumeiramente em
todos os homens – que, engordando muito pelo trato generoso, voltam-se contra
aquele que os tratou.
Certo é que convinha que a generosidade de Deus nos levasse a considerar
e amar a Sua bondade. Mas, visto que a nossa ingratidãob95 é tão grande que, ao
cada um se adula em seus pecados; temos que sofrer pacientemente as aflições de Deus. Porque a aflição é
a autêntica mestra que leva os homens ao arrependimento para que se condenem eles mesmos diante de
Deus e, sendo condenados, aprendam a odiar aqueles pecados nos quais anteriormente se banhavam.” [Juan
Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan, T.E.L.L., 1988,
(Sermon nº 19), p. 226]. NE
94
Dt 32.15
95
“Pois jamais somos devidamente sensibilizados do quanto somos devedores a Cristo nem avaliamos suficientemente sua munificência para conosco, até que a extrema infelicidade de nosso estado seja por ele posta
diante de nossos olhos.” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998, p. 16]. “Os ímpios e hipócritas
correm para Deus quando se vêem submersos em suas dificuldades; mas assim que se vêem livres delas,
olvidando seu libertador, se regozijam com frenética hilaridade.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol.
1, (Sl 28.7), p. 608]. “Davi havia empregado a mão e o labor humanos, a vitória, porém, ele a atribuía
exclusivamente a Deus. Já que ele sabia que todo auxílio que obtivera por parte dos homens procedia de
Deus, e que seu próspero sucesso provinha igualmente do favor gratuito de Deus, ele percebia Sua mão
nesses meios, tão palpavelmente como se a houvera estendida do céu. E com certeza é extremamente deprimente que os meios humanos, que não passam de instrumentos do poder de Deus, obscureçam a glória
divina; embora não haja pecado mais comum.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Paracletos,
1999, Vol. 1, (Sl 28.8), p. 608]. “Onde está nossa gratidão a Deus pelo vestir, se admirarmos a nós mesmos
e depreciamos os outros, por possuirmos roupas mais suntuosas que eles?” (João Calvino, A Verdadeira
Vida Cristã, p. 72). “À luz desse fato aprendemos, também, que os que são responsáveis pelo presunçoso
uso da bondade divina, se aproveitam dela para orgulhar-se da excelência que possuem, como se a possuíssem por sua própria habilidade, ou como se a possuíssem por seu próprio mérito; enquanto que sua origem
deveria, antes, lembrá-los de que ela tem sido gratuitamente conferida aos que são, ao contrário, criaturas
vis e desprezíveis e totalmente indignas de receber algum bem da parte de Deus. Qualquer qualidade estimável, pois, que porventura virmos em nós mesmos, que ela nos estimule a celebramos a soberana e imerecida
bondade que a Deus aprouve conceder-nos.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,Vol. 1, (Sl 8.4), p. 165166]. “.... Nosso próprio mau humor e impaciência ante a aflição transforma um minuto em um século;
enquanto que, em contrapartida, nosso desconhecimento e ingratidão nos levam a imaginar que o favor
divino, por mais que Ele o exerça para conosco, não passa de um momento. É nossa própria perversidade,
pois, que na realidade nos impede de perceber que a ira divina é de mui curta duração, enquanto que seu
favor para conosco prossegue durante todo o curso de nossa vida.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,
Vol. 1, (Sl 30.5), p. 629]. “Seja qual for a maneira em que Deus se agrada em socorrer-nos, ele não exige
nada mais de nós senão que sejamos agradecidos pelo socorro e o guardemos na memória.” [João Calvino,
O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.3), p. 216]. NE
a. Estas imagens tomadas da equitação, que já vimos mais acima, são particularmente freqüentes neste capítulo, escrito depois das excursões de Calvino, de Paris a Genebra, de Genebra a Estrasburgo, etc.
b. malignitas.
227
sermos beneficiados pela indulgênciac de Deus, somos mais corrompidos do que
estimulados à prática do bem, é mais que necessário que Ele nos freie com rédeas
firmes e sempre nos mantenha sob algum tipo de disciplina, para que não deixemos extravasar a nossa petulância. Por essa causa, para que não fiquemos orgulhosos por uma grande abundância de bens, para que as honras não nos tornem
arrogantes, e para que os ornamentos do corpo e da alma não gerem em nós
alguma forma de atrevimento insolente, o Senhor intervém e impõe ordem, refreando e dominando, com o remédio da cruz, a loucurad da nossa carne.96 E isso
ocorre de diversas maneiras, conforme Deus considere benéfico e salutar em cada
caso. Porque nem todos estamos tão enfermos como outros, nem padecemos o
mesmo tipo de enfermidade. Portanto, não é necessário aplicar o mesmo tipo de
cura a todos. Esse é o motivo pelo qual Deus faz uso de diferentes tipos de cruz,
a uns e a outros. Todavia, como Ele quer prover à saúde de todos, aplica remédios
mais suaves a uns, e mais ásperosa e rigorosos a outros, sem abrir nenhuma
exceçãob, visto que sabe que todos estão enfermos.
6.11 – A cruz previne com vistas ao futuro e corrige o passado
Além do que foi dito, é necessário que o nosso bondoso Pai não somente trate
preventivamente da nossa fraqueza, com vistas ao futuro, mas também que corrija as nossas faltas passadas, a fim de nos manter na obediência a Ele. Por isso,
assim que nos sobrevenha alguma aflição, devemos recordar a nossa vida passada. Procedendo dessa forma, certamente veremosc que cometemos alguma falta
merecedora do castigo recebido, se bem que não devemos considerar o reconhecimento do nosso pecado como o fator principal de estímulo à paciência e à perseverança. Pois a Escritura põe em nossas mãos uma consideração muito melhor,
dizendo que dessa maneirad “somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos
condenados com o mundo”.97
96
Interessante o que a respeito disso declara o filósofo italiano Cesare Beccaria (1738-1794) na página 93 da
sua importante obra intitulada Dos Delitos e das Penas (EDIPRO – Edições Profissionais Ltda., São Paulo
e Bauru, 1ª. reimpressão, 1994). Diz ele: “...as ofensas são quase sempre seguidas de ofensas novas. A tirania
e o ódio são sentimentos duráveis, que se sustentam e tomam novas forças à medida que se exercem; ao
passo que, em nossos corações corruptos, o amor e os sentimentos ternos se enfraquecem e se extinguem na
ociosidade”. NT
“Nossa prosperidade é semelhante à embriaguez que adormece as almas” [Juan Calvino, El Uso
Adecuado de la Afliccion: In Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan, T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19),
p. 227]. NE
97
1Co 11.32
c. perpetua indulgentia. Em 1545 e 1550 é traduzido: par sa douceur et son traitement amiable. [Por seu dulçor
e por seu tratamento amigo.]
d. ferociam.
a. asperioribus remediis purget cœlestis medicus.
b. immunem ac intactum.
c. Pronúncia própria da Picardia da palavra trouverons. [No texto: trouverrons.]
d. Quer dizer: ainsi. [Assim.]
228
As Institutas – Edição Especial
6.12 – A cruz é testemunho do imutável amor de Deus
Devemos então reconhecer a clemência e a benignidade do nosso Pai, mesmo
em meioe ao maior amargor que pese sobre nós em nossas tribulações, visto que
mesmo nessas circunstâncias Ele não deixa de levar avante a nossa salvação.
Porquanto Ele nos aflige, não para nos perder ou destruir-nos, mas para nos
livrar da condenação deste mundo.98 Este pensamento nos leva ao que a Escritura nos ensina noutra passagem, dizendo: “Filho meu, não rejeites a disciplina
do Senhor, nem te enfades da sua repreensão. Porque o Senhor repreende a
quem [ele] ama, assim como o pai, ao filho a quem quer bem”.99 Quando ficamos sabendo que os castigos de Deus são açoites paternais, não é nosso dever
tornar-nos filhos dóceis, em vez de, resistindo, imitar aqueles para os quais já
não há esperança, endurecidos que estão por suas más obras? Estaríamos perdidos, se o Senhor não nos puxasse para Si por meio dos Seus corretivos quando
caímos. E, como diz o apóstolo, somos “bastardos e não filhos”, se estamos
sem a Sua disciplina.100 Portanto, estaremos sendo muito perversos se não nos
dispusermos a suportar o Senhor, quando a verdade é que Ele com Sua disciplina manifesta a Sua bondade e o cuidado que tem por nossa salvação. 101
A Escritura assinala esta diferença entre os incrédulos e os crentes fiéis:
aqueles, semelhantes aos antigos escravos,a tendo natureza perversa,b só pioram e
se endurecem quando recebem açoites; estes, como filhos bem nascidos, c aproveitam bem os açoites, arrependendo-se e corrigindo-se. Saibamos escolher agora entre quais deles queremos estar.102 Mas, visto que já tratei deste argumento
noutra parte, basta tocar nele resumidamente aqui.
e. Pronúncia picarda de: milieu [meilleu]. Se há passagens nas quais a tradução medíocre pode ser atribuída a
um secretário de Calvino,este texto e o penúltimo foram devidamente ditados pelo próprio autor.
a. mancipia.
b. inveteratæ recoctæque.
c. filii ingenuitate præditi. Estes termos do direito romano designam os homens livres e são traduzidos por um
equivalente francês.
98
“... sejam quais forem nossas aflições, é a mão de Deus que nos alenta, e que os ímpios não passam de
azorragues que Ele emprega com esse propósito; e mais ainda, que tal consideração é muitíssimo oportuna
para guiar-nos ao exercício da piedade.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 17.13), p. 343].
“Deus faz uso dos homens perversos e perniciosos como azorragues para castigar-nos e fazer-nos diligentemente ponderar sobre a causa, ou seja: que nada sofremos que não seja o que merecemos, a fim de que essa
reflexão nos conduza ao arrependimento” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 3), p. 81]. NE
99
Pv 3.11,12
100
Hb 12.8
101
“Os eleitos, tanto quanto os réprobos, estão sujeitos aos castigos temporários que pertencem somente à
carne. A diferença entre os dois casos está unicamente no resultado; pois Deus converte aquilo que em si
mesmo é um emblema de sua ira em meios de salvação de seus próprios filhos.”[João Calvino, O Livro dos
Salmos, Vol. 3, (Sl 79.1), p. 250]. NE
102
“Arrependimento significa que nos retiramos de nós mesmos e nos convertemos a Deus, e, tendo abandonado a nossa primeira forma de pensar e de querer, assumimos uma nova.” [João Calvino, As Institutas,
(1541), II.5]. “O arrependimento é uma verdadeira conversão da nossa vida para servir a Deus e para seguir
o caminho por Ele indicado. Procede de um legítimo temor de Deus, não fingido, e consiste na mortificação
da nossa carne e do nosso velho homem, e na vivificação do Espírito.” [João Calvino, As Institutas, (1541),
229
6.13 – A suprema consolação: sofrer perseguição por causa da justiça
Mas temos a suprema consolação quando sofremos perseguição por causa da
justiça. Porque é quando podemos e devemos lembrar como o Senhor nos honra,
dando-nos as insígnias da Sua milícia.d103
Chamo perseguição por causa da justiça, não somente a que sofremos por
defender o Evangelho, mas também a que padecemos por manter toda e qualquer causa justa. Quer por defender a verdade de Deus contra as mentiras de
Satanás, quer por fazermos frente aos maus em defesa dos inocentes, impedindo que sofram deles nenhuma fraude e nenhuma injúria.104 Sempre nesses casos
Satanás fará que incorramos no ódio e na indignação do mundo, e nessas circunstâncias poremos em perigo a nossa honra, ou os nossos bens ou a nossa
vida.105 Que não nos pareça mal chegarmos a esse ponto em nosso serviço a
Deus, e não nos julguemos infelizes, pois vem dos Seus lábios a declaração de
que somos bem-aventurados.106
É certo que a pobreza, considerada em si mesma, é uma desgraça. Como
também desgraças são o exílio,a o desprezo, a ignomínia, a prisão – e, finalmente,
a morte é uma extrema calamidade. Mas quando Deus tem em vista manifestar o
Seu favor, nenhuma dessas coisas há que Ele não torne em bem e em felicidade.
Saibamos então preferir o testemunho de Cristo a uma falsa opinião proveniente
da nossa carne.
Resultará dessa preferência que, a exemplo dos apóstolos, nos regozijaremos todas as vezes que formos considerados dignos de sofrer afrontas pelo nome
de Cristo.107 Porque, se nós, sendo inocentes e estando com a consciência limpa,
somos despojados dos nossos bens pela maldade dos ímpios, aos olhos dos homens estaremos reduzidos à miséria, mas com relação a Deus as nossas riquezas
II.5]. “Os homens são incapazes de sentir seus pecados a menos que sejam levados pela força a conhecer-se
por si mesmos. Por isso, vendo que a prosperidade nos embriaga de tal maneira, e que quando estamos em
paz cada um se adula em seus pecados; temos que sofrer pacientemente as aflições de Deus. Porque a aflição
é a autêntica mestra que leva os homens ao arrependimento para que se condenem eles mesmos diante de
Deus e, sendo condenados, aprendam a odiar aqueles pecados nos quais anteriormente se banhavam.” [Juan
Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan, T.E.L.L., 1988,
(Sermon nº 19), p. 226]. NE
103
“É mister que reconheçamos o fato de que, se somos cristãos, devemos nos preparar para muitas tribulações
e lutas de diferentes tipos.” [João Calvino,. As Pastorais. São Paulo, Paracletos, 1998, (2Tm 3.12), p. 257258]. NE
104
“Aqueles que desejam evitar perseguições devem renunciar a Cristo.” [João Calvino, As Pastorais. São
Paulo, Paracletos, 1998, (2Tm 3.12), p. 257]. NE
105
“Satanás possui mais de um método de perseguir os servos de Cristo. (...) Satanás, que é o perpétuo inimigo de
Deus, jamais deixará que alguém viva sua vida sem algum distúrbio, e haverá sempre pessoas perversas a
espinhar nossas ilhargas”. [João Calvino,. As Pastorais. São Paulo, Paracletos, 1998, (2Tm 3.12), p. 258]. NE
106
Mt 5.10
107
At 5.41
d. militiæ nota insignit.
a. Em Estrasburgo, Calvino era pobre e exilado.187
187
Teve que fugir da França, sua pátria, em 1534, e posteriormente foi banido de Genebra, tendo seu exílio em
Estrasburgo de 1538 a 1541. Por vezes soube o que é ser pobre. NT
230
As Institutas – Edição Especial
aumentam. Se somos expulsos de nossa casa e banidos da nossa pátria, com maior
cordialidade somos recebidos na família do Senhor. Se nos contrariam e nos
molestam, tanto mais nos firmamos no Senhor, buscando nele refúgio e forças.
Se nos fazem afrontas e nos humilham, mais exaltados somos no Reino de Deus.
Se morremos, abre-se para nós o portal da vida bem-aventurada.
6.14 – Sejamos gratos a Deus pela superior consolação espiritual
Não seria uma vergonha considerarmos menos valiosas as coisas que Deus tanto
estima, comparadas com os prazeres deste mundo, que depressa se desfazem como
fumaça? E como a Escritura nos anima e nos consola em todas as afrontas e
calamidades a que somos submetidos em nossa luta para defender a justiça, seremos muito ingratos, se não as aceitarmos pacientemente e com bom ânimo. Especialmente tendo em vista que, acima de todas as demais, essa espécie de cruz é
própria dos crentes fiéis, visto que por ela Cristo quer ser glorificado neles, como
diz o apóstolo Pedro.108
Considere-se, porém, que Deus não exige de nós uma tão jovial alegriaa que
seja capaz de eliminar em nós todo sentimento de amargura e dor. Nesse caso, a
paciência e a perseverança dos santos não teriam nenhum valor – numa cruz sem
tormentos e sem dores, não sentindo eles nenhuma angústia quando perseguidos
de alguma forma. Assim, se a pobreza não lhes fosse dura e amarga, se na doença
não sentissem nenhum tormento, se não se sentissem feridos pela ignomínia, se a
morte não lhes causasse nenhum horror, que força ou moderação haveria em
desprezar todas essas coisas? Mas, como cada uma delas traz consigo um amargor
com o qual naturalmente faz doer o coração de todos nós, nisso se demonstra a
força do homem crente e fiel, pois, sendo tentado por tais agruras e tendo que
enfrentar lutas tremendas, todavia, resistindo a tudo, sobrepuja e vence tudo isso.b
Dessa maneira se manifesta a sua paciência – se, sendo acicatado por tal sentimento, não obstante se refreia como que pelas rédeas do temor de Deus, para não
suceder que, deixando de lado o recato e a modéstia, cometa excessos.109 E então
se vêem o seu gozo e a sua alegria em que, embora ferido pela tristeza e pela dor,
aquiesce e se tranqüiliza sob a consolação espiritual de Deus.110
108
1Pe 4.11-14. [Ver também 2Ts 1.12. NT]
“Visto que a providência divina no mundo não é agora evidente, é mister que exerçamos paciência e subamos acima das sugestões do senso carnal a antecipar o resultado favorável.” [João Calvino, O Livro dos
Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 49.1), p. 371]. NE
110
“Devemos aprender a superar a pobreza quieta e pacientemente, e desfrutar da abundância com moderação.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 73). “Aquele que é impaciente sob a privação manifestará vício oposto quando estiver no meio do luxo.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo,
Novo Século, 2000, p. 74). NE
a. hilaritas.
b. 1539 tem somente: eluctatur. O florão de J. Girard (por exemplo, impresso nas Insitutas de 1545) é uma
espada em meio a chamas, mantida erguida por duas mãos, com a legenda: “Non veni pacem mittere, sed
gladium” (Mt 10), e: “Veni ignem mittere” (Lc 12). 188
188
“Não vim trazer paz, mas espada” (Mt 10.34); “Eu vim para lançar fogo sobre a terra” (Lc 12.49). NT
109
231
6.15 – O combate cristão: submisso e dinâmico
Este combate, que os crentes travam contra o sentimento natural de dor, sendo
marcado pela paciência e pela moderação, é muito bem descrito por estas palavras do apóstolo Paulo: “Em tudo somos atribulados, porém não angustiados;
perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos”.111
Vemos que levar a cruz pacientemente não é uma atitude estulta nem significa
não sentir dor nenhuma, como os filósofos estóicos tolamente descreviam no passado o homem magnânimo, que, despojando-se da sua humanidade, não ligava
nem para a adversidade nem para a prosperidade, nem se havia tristeza ou alegria,
ou, melhor dizendo, era destituído de sentimento, como uma pedra. E que proveito
tiveram dessa tão elevadaa sabedoria? Na verdade pintaram um simulacro ou uma
falsa representação da paciência, coisa que jamais se viu nem se poderá ver entre os
homens. O que de fato fizeram foi que, pretendendo ter uma paciência tão admirável, eliminaram o uso da verdadeira paciênciab entre os homens.112
Existem hoje em dia cristãos semelhantes àqueles estóicosc que consideram
um mal, não somente gemer e chorar, mas também entristecer-se e preocupar-se
ou mostrar solicitude. Essas opiniões anti-sociaisd em geral procedem de pessoas
ociosas, que, dedicando-see mais a especular que a pôr mãos à obra, só podem
produzir fantasiasf como essa.
6.16 – Ensino e exemplo de Jesus Cristo
De nossa parte, nada temos com essa dura e rigorosa filosofia, condenada pelo
Senhor Jesus não só por palavras mas também por Seu exemplo. Pois Ele mesmo
gemeu e chorou, tanto por seus próprios sofrimentos como pelos de outros, e não
ensinou coisa diferente aos Seus discípulos, como se vê nestas palavras: “Em
verdade, em verdade eu vos digo que chorareis e vos lamentareis, e o mundo se
alegrará”.113 E para que ninguém visse nenhum mal nisso, declarou que são bemaventurados os que choram.114 O que não é de admirar, porque, se devêssemos
condenar toda sorte de lágrimas,115 que juízo faríamos do Senhor Jesus, de cujo
111
2Co 4.8,9
“Indubitavelmente, olhar para Deus é uma propriedade da fé, mesmo nas circunstâncias mais tentadoras, e
pacientemente esperar pelo socorro que lhe fora prometido por Deus.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,
Vol. 1, (Sl 25.5), p. 543]. NE
113
Jo 16.20
114
Mt 5.4
115
“A tristeza que domina a mente facilmente segue sua rota rumo aos olhos, e seguindo essa via concretamente
se revela.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 6.7), p. 132-133] NE
a. sublimi.
b. ejus vim sustulerunt.
c. novi Stoïci.
d. paradoxa.
e. speculando. 1541 tem, por engano: s’exercent. [No texto em uso alterado para s’exerceant.]
f. paradoxa.
112
232
As Institutas – Edição Especial
corpo brotaram gotas de sangue? Se vamos julgar como infidelidade ou falta de
fé toda manifestação de temor, como qualificaremos o tremendo horror116 que se
apoderou dele? Como aprovaremos esta Sua confissão: “A minha alma está profundamente triste até à morte”?117
6.17 – A paciência e a perseverança cristãs coadunam-se com a prazerosa
aceitação da vontade de Deus
Quis dizer essas coisas para impedir que os bons de coração se desesperem, e
para que não renunciem ao exercício da paciência por não poderem se desfazer
do sentimento natural de dor.a Agora, o que acontece com os que consideram a
paciência uma tolice e que confundem o homem forte e corajoso com um tronco
de árvore, é que eles ficam completamente desanimados quando é necessário que
demonstrem paciência. A Escritura, ao contrário, louva a paciente tolerância dos
santos quando, sendo tremendamente afligidos pela dureza dos seus males, não
se deixam abater nem desfalecer; quando são espicaçados por grande amargura e,
contudo, demonstram gozo espiritual; e quando, pressionados por forte angústia,
nem por isso perdem o alento, regozijando-se na consolação de Deus.118 Entretanto, isto lhes causa repulsa: que lhes fuja o afeto natural e que tenham horror de
tudo o que lhe é contrário.
Por outro lado, a piedade cristã os impulsiona a obedecer à vontade de Deus,
mesmo em meio a estas dificuldades. Sobre a repulsa acima referida Jesus Cristo se
expressou quando disse ao apóstolo Pedro: “Em verdade, em verdade te digo que,
quando eras mais moço, tu te cingias a ti mesmo e andavas por onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te cingirá e te levará para onde
não queres” [Jo 21.18]. Não é nem um pouco provável que o apóstolo Pedro, que
haveria de glorificar a Deus com sua morte, tenha sido arrastado a isso à força e
contra o seu querer, pois, se fosse assim, o seu martírio não mereceria muito louvor.
Todavia, ainda que obedecesse ao mandado de Deus com ânimo forte e alegre,
considerando que ainda não se havia despojado da sua humanidade, ficou dividido
por um duplo desejo. Porque, enquanto pensava na morte cruel que deveria sofrer,
enchia-se de horror, e bem que gostaria de escapar. Por outro lado, quando considerava que a essa morte era chamado por ordem de Deus, dispunha-se a apresentar-se
a ela voluntariamente, e até com alegria, pondo sob seus pés todo o temor.
116
No texto francês que tenho em mãos, certamente por equívoco: “honneur”. NT
Lc 22.44; Mt 26.38. NT
118
“Quando Deus esparge alegria em nossos corações, o resultado deve ser que nossos lábios se abram para
entoar seus louvores.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, (Sl 28.7), Vol. 1, p. 608]. “Se a alegria que os
homens experimentam e nutrem é sem Deus, o resultado dessa alegria por fim será destruição, e sua hilaridade
se converterá em ranger de dentes. Cristo, porém, se introduz no monte Sião com seu evangelho a encher o
mundo com genuína alegria e felicidade eterna.” [J. Calvino, O Livro de Salmos, (Sl 48.2), p. 354-355].
“Para fazer os corações dos santos rejubilar-se, o favor divino é o único sobejamente suficiente.” [J. Calvino,
O Livro de Salmos, São Paulo, Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 48.2), p. 355]. NE
a. doloris affectum exuere non possunt.
117
233
Portanto, se queremos ser discípulos de Cristo, devemos empenhar-nos
no sentido de que o nosso coração se encha de tal reverência e obediência a
Deus que nos habilite a dominar e subjugar todos os sentimentos contrários ao
Seu beneplácito.a Decorre disso que, em qualquer tribulação que estejamos,
mesmo na maior aflição de alma que seja possível alguém sofrer, não deixaremos de perseverar em nossa paciência. As adversidades sempre nos causarão
agrura e sofrimento. Por essa causa, quando formos afligidos por enfermidades, gemeremos e choraremos, e desejaremos ser curados; quando formos oprimidos pela indigência, sentiremos alguns aguilhões nascidos da perplexidade e
da preocupação. Semelhantemente, a humilhação, o desprezo e todas as formas
de injúria que nos causem nos farão sentir dor no coração. Quando morrer algum parente ou amigo, não deixaremos de derramar lágrimas por ele, atendendo à lei da natureza. Mas sempre chegaremos a esta conclusão: “Como, porém,
Deus o quis, sigamos a Sua vontade”. E é necessário que esse pensamento intervenha mesmo em meio às punções de dor, às lágrimas e a aos gemidos, para
que o nosso coração seja movido a conduzir-se com alegria sob as coisas que
dessa forma o tenham entristecido.119
6.18 – Diferença entre a paciência cristã e a dos filósofos
Visto que baseamos a principal razão para levar pacientemente a cruz na consideração da vontade de Deus, devemos definir em poucas palavras a diferença existente entre a paciência cristã e a filosófica. Bem poucos filósofos chegaram ao
ponto de entender que os homens são exercitados pela mão de Deus mediante as
aflições, pelo que nos cabe obedecer à Sua vontade. Mas, mesmo aqueles que
chegaram a entender isso, não apresentam outra razão senão esta: É necessário
que assim seja. Ora, que quer isso dizer senão que é necessário ceder a Deus
porque em vão tentaríamos resistir a Ele? Porque, se obedecêssemos a Deus simplesmente porque é necessário, assim que pudéssemos fugir deixaríamos de lhe
prestar obediência.120
Mas a Escritura determina que consideremos outra coisa própria da vontade
de Deus, qual seja, Sua justiça equânime; e segue-se a isso a atenção que Ele
dedica à nossa salvação. Isso explica por que nos são feitas estas exortações cristãs: Quando a pobreza, o exílio, a prisão, os ultrajes, a doença, a perda de entes
119
“A vontade de Deus é a regra pela qual devemos regulamentar todos os nossos deveres.” [João Calvino, As
Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 2.3), p. 59]. “Quanto mais avançado aquele homem que há
aprendido a não pertencer-se a si mesmo, nem a ser governado por sua própria razão, senão que submete a
sua mente a Deus! (...) O serviço do Senhor não só implica uma autêntica obediência, senão também a
vontade de pôr aparte seus desejos pecaminosos e submeter-se completamente à direção do Espírito Santo.”
(John Calvin, Golden Booklet of the True Christian Life, p. 21). NE
120
“Os filósofos pagãos põem a razão como o único guia da vida, da sabedoria e da conduta, porém a filosofia
cristã nos requer que rendamos nossa razão ao Espírito Santo, o que significa que já não vivemos para nós
mesmos, mas que Cristo vive e reina em nosso ser. (Rm 4.23; Gl 2.20.” (João Calvino, A Verdadeira Vida
Cristã, p. 30). NE
a. ordinationi.
234
As Institutas – Edição Especial
queridos ou outras formas de adversidade nos atormentem, consideremos que
nada destas coisas nos acontece senão pela vontade e pela providência de Senhor.121 Além disso, devemos crer que Deus não faz coisa alguma que não seja
pela reta justiça por Ele ordenada.122 Por quê? Ora, os pecados que cometemos
diariamente não merecem castigo muito mais rigoroso e que este seja aplicado
com muito maior severidade do que a que Ele usa ao castigar-nos? Não é bom e
justo que a nossa carne seja dominada e permaneça debaixo de jugo para que não
se extravie e não seja levada à intemperança, segundo os impulsos da natureza
não regrada? A justiça e a verdade de Deus não são dignas de que soframos por
elas? Se a justiça equânime de Deus se manifesta em todas as nossas aflições,
como é óbvio que se manifesta, não podemos murmurar nem rebelar-nosa sem
cometer iniqüidade.123
Portanto, não demos ouvidos a esta fria canção dos filósofos:b Devemos
sujeitar-nos porque é inevitável. Mas atendamos a esta exortação vívida e plenamente eficaz: Devemos obedecer porque não nos é lícito resistir.
Devemos ter paciência, visto que a impaciência é rebelião contumaz contra
a vontadec de Deus.124
Ora, como só gostamos verdadeiramente do que sabemos que é bom e salutar para nós, o Pai de misericórdias125 também por esse meio nos consola, declarando que naquilo em que Ele nos aflige pela cruz, provê e encaminha a nossa
salvação. E então, se as tribulações são salutares para nós, por que não havemos
de recebê-las com coração sereno e grato? Por isso, suportando-as pacientemente, não nos rendemos a elas porque isso é inevitável, mas sim, aquiescemos a elas
de bom grado, seguros de que visam ao nosso bem.
Digo, pois, que estas considerações farão com que, quanto mais o nosso
coração for envolvidod na cruz pelos sofrimentos que por natureza lhe são próprios, tanto mais se dilatará de gozo espiritual. Daí se seguirá a ação de graças e, que
não pode subsistir sem alegria. E assim, se o louvor do Senhor e a ação de graças
só podem provir de um coração alegre e feliz, e nada no mundo lhes pode ser
121
“Quando nossas mentes se dispõem à paciência, não empreendemos nada precipitadamente nem por meios
impróprios, mas passamos a depender inteiramente da providência de Deus.” [João Calvino, O Livro dos
Salmos, São Paulo, Paracletos, 1990, Vol. 1, (Sl 25.4), p. 541]. NE
122
“O Espírito Santo quis dizer-nos que se queremos glorificar a Deus e bendizer adequadamente Seu nome,
devemos estar persuadidos de que Deus não faz nada sem razão. [Juan Calvino, El Señor dio y El Señor
quito: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan, T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 2), p. 45]. NE
123
“Se não houver melhor remédio contra a ira e a impaciência, de bom proveito será meditar na providência de
Deus no sentido de que sempre possamos reduzir o nosso pensamento a este ponto: O Senhor o quis; portanto, recebamo-lo com paciência. Não somente porque ninguém pode resistir a Ele, mas também porque Ele
não quer coisa alguma que não seja justo e benéfico” [João Calvino, As Institutas, (1541), III.8]. NE
124
“A impaciência é uma rebelião contra a justiça de Deus.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 58). NE
125
2Co 1.3. NT
a. obluctari.
b. Acréscimo feito em 1541.
c. 1539 tinha: justitiam, expressão jurídica como: contumacia [em latim].
d. animi contrahuntur.
e. gratiarum.
235
empecilho invencível, vê-se quão necessário é temperar o amargor da cruz com a
alegria espiritual.126
7. As presentes condições levam-nos a meditar na vida futura
Além das ponderações acima registradas, toda e qualquer aflição que nos sobrevenha deve levar-nos a ter em vista este propósito: habituar-nos a desprezar a
vida presente de modo que nos sintamos incentivados a meditar na vida futura.
Porque, visto que o Senhor sabe muito bem como somos propensos a um amor
cego e até brutala por este mundo, Ele faz uso de um recurso muito apropriado
para nos despertar da nossa preguiça espiritual, a fim de que não fiquemos ligados demais a esse estulto amor.127
Certamente não há entre nós quem não queira ser considerado como alguém
que durante toda a sua vida aspira à eternidade celestial e se esforça para lá chegar.
Porque nos causa vergonha em nada sermos superiores aos animais, cuja situação
não seria nem um pouco inferior à nossa, se não tivéssemos esperança da vida após
a morte numa eternidade feliz.128 Entretanto, se examinarmos os propósitos, as deliberações, os empreendimentos e as obras de cada um, não veremos nada mais que
pura terra. Pois bem, essa estupidez procede do fato de que o nosso entendimento
se deixa cegar pelo vão brilho das riquezas, das honras e das posições de poder em
sua aparência exterior, e assim não conseguimos enxergar mais longe. E também o
nosso coração, tomado pela avareza, pela ambição e por outras cobiças perversas,
prende-se de tal modo a este mundo que não consegue elevar os olhos.b Finalmente,
estando toda a nossa alma envolvida pelos prazeres da carne e como que comprometida com eles, busca a sua felicidade na terra.129
126
“A alegria do Espírito é inseparável da fé.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.8-9), p. 436]. NE
“Verdadeiramente sábio é aquele que sabe quão longe se acha do perfeito conhecimento. Mas devemos
progredir em nossa cultura, a fim de não ficarmos sempre no conhecimento rudimentar. (...) É mister que
nos esforcemos para que nosso progresso corresponda ao tempo que nos é concedido. (...) No entanto,
poucos são aqueles que se disciplinam a fazer um balanço do tempo passado, ou que se preocupam com o
tempo por vir. Portanto, somos justamente castigados por nossa negligência, visto que a maioria de nós
dissipa sua vida nos estágios elementares, como crianças” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São
Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 5.12), p. 140].“O objetivo do reino temporal é fazer que possamos adaptar-nos
à companhia dos homens durante o tempo que nos cabe viver entre eles; estabelecer os nossos costumes em
termos de uma justiça civil; viver em harmonia uns com os outros; e promover e manter paz e tranqüilidade
comum. Reconheço que todas estas coisas seriam supérfluas, se o reino de Deus, que ora se mantém em nós,
anulasse a presente existência. Mas se é da vontade de Deus que caminhemos na terra enquanto aspiramos
à nossa verdadeira pátria, e se, ademais, tais acessórios são necessários nessa viagem para lá, os que querem
separá-los do homem vão contra a sua natureza humana”. [João Calvino, As Institutas, (1541), IV.16]. NE
128
Palavras que nos lembram Ec 3.16-22, passagem nem sempre bem entendida. NT
129
“Quando a alma se encontra envolta em desejos carnais, busca sua felicidade nas coisas desta terra” (João
Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 60). “Os desejos que agitam o homem carnal são como ondas
impetuosas que se chocam umas contra as outras, arremessando o homem de um lado para outro, de modo
tal que ele muda e vacila a todo instante. Todos quantos se entregam aos desejos carnais experimentam tal
desassossego, porque não existe estabilidade senão no temor de Deus.” [João Calvino, As Pastorais, São
Paulo, Paracletos, 1998, (Tt 3.3), p. 344]. NE
a. belluinum.
b. carnis illecebris irretita fœlicitatem in terra suam quærit.
127
236
As Institutas – Edição Especial
Então o Senhor, para impedir esse mal, mostra a Seus servos a vaidade da
vida presente, disciplinando-os constantemente por meio de diversos sofrimentos, para que não esperem paz e tranqüilidade nesta existência. Ele permite que
muitas vezes o mundo seja assolado e atormentado por guerras, tumultos,
banditismo e outros males, para que os Seus servos não desejemc com muita
cupidez as riquezas que realmente de nada valem,d130 nem se acomodem passivamente às que já possuem. Ele os reduz à indigência, já pela esterilidade do solo,
já pelo fogo, já por outros meios; ou os mantém em posição mediana ou na mediocridade. Para que não abusem dos prazeres da vida conjugal, ou lhes dá mulheres rudes e ruins de cabeça, que os atormentam;a ou lhes dá filhos maus, que os
humilham; ou os aflige tirando do seu convívio mulher e filhos.b Se em todas
essas coisas Ele os trata com brandura, todavia, para que não se ensoberbeçam
deixando-se levar pela vanglória, ou para que não desenvolvam autoconfiança
desordenada, adverte-os por meio de enfermidades e perigos, e coloca diante dos
seus olhos quão frágeis e efêmeros são os bens sujeitos à mortalidade.
Portanto, teremos grande proveito da disciplina da cruz quando aprendermos
que a presente vida, considerada em si mesma, está repleta de inquietações, problemas e misérias, e que, em nenhum aspecto, é verdadeiramente feliz; que todos os
bens deste mundo são transitórios, incertos, frívolos e envoltos em infindos males.131 Por isso tudo, concluímos que aqui não devemos nem procurar nem esperar
nem lutar por coisa alguma, e que é pela nossa coroa132 que devemos alçar os olhos
ao céu. Porque o certo é que o nosso coração não se sentirá movido a desejar a vida
futura e nela meditar, enquanto não for movido a desprezar a presente vida.133
130
No original francês: caducques, caducas, termo jurídico. NT
“Quando a alma se encontra envolta em desejos carnais, busca sua felicidade nas coisas desta terra” (João
Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 60). NE
132
1Co 9.25
133
“Felizes, porém, são aqueles, que abraçaram o evangelho e firmemente permanecem nele! Porque ele – o
Evangelho, fora de qualquer dúvida, é a verdade e a vida.” (João Calvino, Efésios, São Paulo, 1998, (EF
1.13), p. 35-36). “.... enquanto todos os homens naturalmente desejam e correm após a felicidade, vemos
quão quanta determinação se entregam a seus pecados; sim, todos aqueles que se afastam ao máximo da
justiça, procurando satisfazer suas imundas concupiscências, se julgam felizes em virtude de alcançarem os
desejos de seu coração.”[João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1 (Sl. 1.1), p. 51]. “Os homens, pois, só
serão bem-aventurados depois que forem gratuitamente reconciliados com Deus e reputados por ele como
justos.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 32.1), p. 39].Calvino assim inicia o comentário do
Salmo 32: “Havendo Davi extensa e penosamente experimentado quão miserável é sentir o peso da mão
divina como resultado de pecados, exclama que a mais elevada e melhor parte de uma vida feliz consiste
nisto: Deus perdoa a culpa humana e recebe a pessoa graciosamente em seu favor.” [João Calvino, O Livro
dos Salmos, Vol. 2, (Sl 32), p. 37]. “A felicidade dos homens consiste única e exclusivamente no gracioso
perdão dos pecados, porquanto nada pode ser mais terrível do que ter Deus por nosso inimigo; tampouco
pode Ele ser gracioso para conosco de outra maneira senão perdoando nossas transgressões.”[ João Calvino,
O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 32), p. 37-38]. NE
c. inhient.
d. 1539 acrescenta: et fluxis.
a. 1539 tem somente: uxorum improbitate. Em 1539, Calvino, ainda celibatário, hesitava em se deixar persuadir por Bucer e outros, que o aconselhavam a casar-se.
b. 1539 tem somente: orbitate affligit.
131
237
8. Entre céu e terra não há meio termo
Não há meio termo entre estes dois extremos: ou menosprezamos a terra, ou
ficamos apegados a ela com um amor desordenado. Por isso, se temos algum
interesse pela imortalidade feliz, devemos esforçar-nos diligentemente para que
nos libertemos desses laçosc perniciosos. Ora, visto que a presente vida sempre
nos pressiona através de prazeres para atrair-nos, e há nela forte aparência de
amenidade, graça e dulçor com o que pretende seduzir-nos,d temos grande necessidade de freqüentementea retirar-nos das coisas do mundo para que não sejamos
arrastados e como que enfeitiçadosb por tais afagos e lisonjas. Porque, rogo ao
leitor que me diga, que aconteceria se gozássemos aqui uma felicidade perpétua,
pois, sendo espicaçados constantemente pelas esporas de tantos males, mal podemos dar-nos conta da nossa miséria. Não são somente os doutos que reconhecem
que a vida humana é semelhante à sombra fugidia ou à fumaça que se esvai,134
mas também o sabe o povo comum, para o qual essa verdade já se tornou proverbial. E como se via que o conhecimento disso é de grande utilidade, tem sido
celebrada com muitas e belas sentenças.
Não obstante, não há nada no mundo que negligenciemos mais ou de que
nos lembremos menos. Porque tudo o que aqui empreendemos o fazemos como
se estivéssemos estabelecendo a nossa imortalidade na terra. Se participamos dos
funerais de alguém, ou se passeamos entre os túmulos de um cemitério, tendo
assim uma imagem da morte diante dos nossos olhos, reconheço que nessas circunstâncias filosofamos extraordinariamente sobre a fragilidade desta vida. Se
bem que nem sempre fazemos isso, porque por vezesc ocorre que estas coisas não
nos comovem nem um pouco. Mas, quando isso acontece, o resultado é uma
filosofia transitória e, mal lhe damos as costas, ela se desvanece, e dela não fica
nada em nossa lembrança. E assim, esquecendo-nos, não somente da morte mas
também da nossa própria mortalidade, como se jamais tivéssemos ouvido falar
dessa nossa condição, tornamos a nos firmar numa tola segurança e confiança na
imortalidade terrenal. Entretanto, se alguém nos cita o provérbio antigo que diz que
o homem é um animal de um dia,d nós o aceitamos sem vacilar, e de tal modo que a
idéia de que vamos viver perpetuamente permanece fixa em nosso coração.135
134
Sl 144.4; 102.3
“Somente os crentes genuínos conhecem a diferença entre este estado transitório e a bem-aventurada eternidade, para a qual foram criados; eles sabem qual deve ser a meta de sua vida. Ninguém, pois, pode regular
sua vida com uma mente equilibrada, senão aquele que, conhecendo o fim dela, isto é, a morte propriamente
dita, é levado a considerar o grande propósito da existência humana neste mundo, para que aspire o prêmio
da vocação celestial.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 90.12),
p. 440]. NE
c. compedibus.
d. demulceat.
a. identidem.
b. 1539 tem somente: fascinemur.
c. 1539 um mesmo: plerumque.
d. 1539: animal ephemerum. 1541 tem, por engano: animant [corrigido em nosso texto]. 1550: animau.
135
238
As Institutas – Edição Especial
Quem negará, então, que é muitíssimo necessário, não somente que sejamos admoestados, mas também que sejamos persuadidos por tantas experiênciasa
quantas forem possíveis, de quão infeliz é a presente condição do homem? Pois,
ainda quando estamos convencidos disso, a duras penas deixamos de ter grande
admiração por este mundo, e por pouco não ficamos atônitos ao contemplá-lo,
como se ele contivesse a mais completa felicidade! Ora, se é preciso que o Senhor nos instrua dessa forma, é nosso dever dar ouvidos às Suas exortações pelas
quais Ele nos desperta da nossa negligência a fim de que, desprezando o mundo,
seja a nossa grande aspiração meditar de coração na vida futura.
9. O cristão não odeia a vida presente,
na qual Deus manifesta o Seu amor
Todavia, os crentes devem habituar-se a um desprezo pela vida presente que não
lhe gere ódio a ela, nem ingratidão a Deus. Porque, conquanto esta vida esteja
cheia de misérias sem fim, com razão é contada com as bênçãos de Deus, bênçãos
que não devemos menosprezar. Por isso, se não reconhecemos nela nenhuma
manifestação da graça de Deus, somos culpados de grande ingratidão. Para os
crentes ela deve ser considerada singularmente como um testemunho da bondade
do Senhor, visto que, em todos os seus aspectos, foi destinada a promover a nossa
salvação. Pois o Senhor, antes de nos revelarb plenamente a herança da glória
eterna, quer declarar-se nosso Pai em coisas menos importantes,c isto é, nas bênçãos que de Suas mãos recebemos diariamente. Sendo, então, que esta vida nos
serve para nos apercebermos da bondade de Deus, iremos nós achar que ela não
contém em si nenhum bem?
Portanto, devemos ter tal sentimento e afeto que nos leve a considerar a presente vida como um dom da benignidade divina, dom que não devemos repudiar.
Porque, mesmo que não houvesse testemunhos da Escritura, a própria natureza nos
exorta no sentido de que devemos render graças a Deus – porque nos criou e nos
colocou neste mundo; porque nos sustenta e nos preserva nele; e porque nos suprea
de tudo quanto nos é necessário para a nossa subsistência na terra.136
Acrescente-se esta razão muito mais importante: Considerarmos que Deus
aqui nos prepara para a glória do seu Reino. Porque outrora Ele ordenou que
136
“Deus destinou exclusivamente a seus filhos o mundo inteiro e a tudo o que nele existe; por essa razão são
também chamados os herdeiros do mundo. Pois no princípio Adão foi nomeado senhor de todas as coisas
sob a condição de permanecer em obediência a Deus. E assim sua rebelião contra Deus privou a ele e à sua
posteridade desse direito que lhes fora concedido. Visto, porém, que todas as coisas se acham sujeitas a
Cristo, nossos direitos, através de sua benevolência, nos são plenamente restaurados, mas somente através
da fé.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 4.3), p. 113]. NE
a . experimentis. 1541 tem, por engano: expérience [corrigido]. 1550: expériences.
b. exhibeat.
c. documentis.
a. largitur.
239
aqueles que hão de receber a coroa no céu, lutem primeiro na terra, para que não
tenham a vitória final enquanto não enfrentarem as dificuldades do combate cristão e de terem obtido a vitória.137 Ainda outra razão tem seu peso.b É a seguinte:
Começamos a apreciar aqui o dulçor da Sua benignidade, demonstrada por Suas
bênçãos, e dessa forma somos incitados a esperar e a desejar a revelação plena e
completa. Após havermos fixado esta verdade, qual seja, que a vida terrena é um
dom da clemência divina, pelo qual ficamos obrigados a Deus, a quem devemos
demonstrar a nossa gratidão, chega então o momento de condescendermos em
considerar a infeliz condição desta existência, para que nos desvencilhemosc desta grande cobiça à qual, como já demonstramos, somos naturalmente propensos.
E tudo quanto tirarmos do amor desordenado por esta vida, é necessário transferir ao amor pela vida celestial.
10. Nem se compara a glória futura com a vida na terra!
Reconheço que, conforme o sentir humano, julgaram bem os que consideravam
como o primeiro e supremo bem não nascer, e o segundo, morrer quanto antes.
Porque, como eram pagãos, destituídos da luz de Deus e da religião verdadeira,
que poderiam ver na vida terrena senão miséria e horror?a Igualmente, não é sem
motivo que os citasb choravam o nascimento dos seus filhos e, quando morria
algum dos seus pais, alegravam-se e realizavam festa solene; mas isso não lhes
aproveitava nada. Porque, como lhes faltava a verdadeira doutrina da fé, não
viam como algo que em si não dá felicidade nem é desejável torna-se em segurança e paz para os crentes. Por isso o desespero era a conclusão a que chegavam.
Então, que os servos de Deus, ao considerarem esta vida mortal, vendo que
só tem a oferecer miséria, busquem sempre como sua meta dedicar-sec mais e
com mais disposição a meditar na vida futura e eterna. Quando as compararem,
não somente estarão capacitados a negligenciar a primeira, mas também a desprezála, e a não lhe dedicar nenhuma estima em detrimento da segunda. Porque, se o
céu é a nossa pátria,d138 que outra coisa é a terra, senão exílio e desterro?e Se partir
deste mundo é entrar na verdadeira vida, que outra coisa é a terra senão um sepulcro? E demorar-se nele, que outra coisa é senão soterrar-se na morte? Se a liberdade consiste em ficar livre deste corpo, que outra coisa é o corpo senão uma
137
Ap 2.10
Hb 11.16.
b. 1539 tem somente: deinde altera.
c. extricemur.
a. infrustum ac tetrum
b. 1539 tem somente: illi. Heródoto, antes de qualquer outro, fala dos citas; uma primeira edição das suas obras
tinha sido publicada em Veneza, em 1502.
c. alacriores.
d. cœlum pátria.
e. peregrinamur.
138
240
As Institutas – Edição Especial
prisão? Se fruir a presença de Deus é a felicidade suprema, não é uma tremenda
infelicidade não fruí-la? Ora, é certo que enquanto estivermos neste corpo, estaremos distantesf de Deus.139 Por tudo isso, se compararmos a vida terrena com a
vida celestial, não haverá dúvida de que aquela pode ser desprezada e considerada pouco menos que esterco. Lembremo-nos, porém, de que não devemos odiála, exceto no que ela nos retém em sujeição ao pecado. Se bem que não é próprio
imputar-lhe essa culpa.140
O caso é que, diga-se o que se disser, apesar do cansaço ou fastio que acaso
sintamos deste mundo, vivamos de maneira agradável a Deus e cuidemos para
que o nosso tédioa não nos leve à murmuração e à impaciência.141 Porque é como
se estivéssemos num local de temporada no qual o Senhor nos colocou e onde
devemos permanecer até quando Ele nos chamar de volta. O apóstolo Paulo lamenta o fato de estar preso ao corpo por mais tempo do que ele gostaria, e suspira
de ardente desejo de libertação.142 Todavia, em sua obediência à vontade de Deus,
declara que está pronto a uma coisa e à outra, pois se reconhece devedor a Deus
e se dispõe a glorificar o Seu nome, quer pela vida quer pela morte.143 Ora, cabe
ao Senhor determinar o meio pelo qual deve ser glorificado. Por isso nos convém
viver e morrer para Ele, deixando aos cuidados do Seu beneplácito tanto a nossa
vida como a nossa morte. Todavia, façamo-lo de modo que desejemosb sempre a
nossa morte e nela meditemos constantemente, desprezando esta vida mortal com
vistas à imortalidade futura, e estando dispostos a renunciar à vida presente sempre que isso aprouver ao Senhor, considerando que ela nos mantém sujeitos à
escravidão do pecado.144
139
2Co 5.6. NT
“O Evangelho não mantém o coração dos homens com uma alegria da vida presente, mas o eleva à
esperança da imortalidade; e não os liga aos prazeres terrenos, mas, demonstrando a esperança que lhes está
preparada no céu, transporta-os às alturas.” [João Calvino, As Institutas, (1541), II.7]. NE
140
“Todavia, nossos constantes esforços para diminuir a estima por este mundo presente, não devem nos levar a
odiar a vida ou a sermos mal agradecidos para com Deus. Se bem que esta vida está cheia de incontáveis
misérias, não obstante, merece ser contada entre aquelas bênçãos divinas que não devem ser desprezadas.”
(João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 62). “Porém, à vida presente não se deve odiar, com exceção de
tudo o que nela nos sujeita ao pecado, este ódio não deve aplicar-se à vida mesma.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 64). Calvino comentando a respeito desta vida e da futura, diz: “... Esta vida, por mais que
esteja cheia de infinitas misérias, com toda razão se conta entre as bênçãos de Deus, que não é lícito menosprezar.” (As Institutas, III.9.3). À frente, acrescenta: “E muito maior é essa razão, se refletirmos que nesta vida
nos está Deus de certo modo a preparar para a glória do Reino Celeste.” (As Institutas, III.9.3). NE
141
“O Deus que governa o mundo por sua providência o julgará com justiça. A expectativa disto, devidamente
apreciada, terá um feliz efeito na disposição de nossa mente, acalmando a impaciência e restringindo qualquer disposição ao ressentimento e retaliação em face de nossas injúrias.” [João Calvino, O Livro dos
Salmos, Vol. 2, (Sl 62.12), p. 584]. NE
142
Rm 7.24
143
Fp 1.20-24
144
“Declaramos positivamente que ninguém tem feito nenhum progresso na escola de Cristo, a menos que
espere rejubilante o dia de sua morte e ressurreição final.” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São
Paulo, Novo Século, 2000, p. 66). NE
f. 1539 tem somente: proculcanda.
a. tædium.
b. studio flagremus.
241
11. Desejar e esperar a vida eterna é infinitamente
melhor do que temer a morte
Uma coisa que mais parece um prodígio monstruosoc é o fato de que muitos que
se gabam de serem cristãos, em vez de desejarem a morte, têm horror a ela. Mal
ouvem falar dela, tremem de medo, como se fosse a maior desgraça que lhes
pudesse ocorrer. Não é de se estranhar que o nosso sentir natural se abale e se
espante quando ouvimos que a nossa alma deverá separar-se do corpo. Mas é
intolerável a idéia de que não haja no coração do cristão suficiente luz para habilitálo a sobrepujar e dominar esse temor, como é igualmente certo haver para ele
uma consolação muito maior. Porque, se considerarmos que o tabernáculo deste
corpo, que é inseguro, maculado pelo mal, corruptível, de nulo valor real e sujeito à decomposição, será desfeito e destruído para depois ser restaurado e revestido de uma glória perfeita, segura, incorruptível e celestial, como a fé não nos
constrangerá a apetecer ardentemente o que a natureza repudia e evita com horror? Se considerarmos que a morte nos livra de um miserável exílio para então
vivermos em nosso país, sim, em nossa pátria celestial, não haveremos de conceber desse fato uma singular consolação?145
Mas alguém objetaráa que tudo o que existe deseja permanecer como é.
Reconheço isso. Por isso mesmo eu sustento que devemos aspirar à imortalidade
futura, onde teremos uma condição inabalável, coisa que não se vê em parte alguma na terra. Essa é a razão pela qual os animais inferiores, e mesmo a criação
inanimada, até mesmo as árvores e as pedras, possuindo algo como um senso da
sua vaidade e da sua corruptibilidade, aguardam “em ardente expectativa” o Juízo,
esperando a sua redenção “para a liberdade dos filhos de Deus”.146E muito mais
nós, que primeiro temos algo da luz natural e, além disso, somos iluminados pelo
Espírito de Deus, em nosso caso, não elevaremos os nossos olhos para além e
acima da podridão terrena?
Mas não é minha intenção discutir longamente aqui sobre tão grande perversidade. E, de fato, já no início declarei que não queria tratar aqui de cada
145
“Somente os crentes genuínos conhecem a diferença entre este estado transitório e a bem-aventurada eternidade, para a qual foram criados; eles sabem qual deve ser a meta de sua vida. Ninguém, pois, pode regular
sua vida com uma mente equilibrada, senão aquele que, conhecendo o fim dela, isto é, a morte propriamente
dita, é levado a considerar o grande propósito da existência humana neste mundo, para que aspire o prêmio
da vocação celestial.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 90.12),
p. 440]. NE
146
Rm 8.19-21. “Visto que as criaturas estão sujeitas à corrupção, não por sua inclinação natural, senão pela
determinação divina, tendo a esperança de no futuro apagar todo e qualquer vestígio de corrupção, deduzimos que gemem como uma parturiente até que sejam finalmente libertados. Esta é uma comparação muitíssimo apropriada para informar-nos que o gemer de que o apóstolo fala não é debalde nem sem efeito. Ele
finalmente produzirá frutos de deleite e felicidade.” [João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.22), p.
285-286]. NE
c. portenti.
a. Acréscimo feito em 1541.
242
As Institutas – Edição Especial
matéria na forma de exortação. Aconselho aos de ânimo fraco que leiam o livro
de Cipriano, ao qual ele intitulou Sobre a Mortalidade,a não seja o caso de que
mereçam que os remeta aos filósofos, os quais demonstraram tal desprezo pela
morte que os encheria de vergonha. Contudo, atenhamo-nos a esta máxima: Ninguém progrediu muito na escola de Cristo senão aquele que espera com gozo e
alegria o dia da sua morte e a ressurreição final. Porque o apóstolo descreve os
crentes referindo-se a esse marco e meta, e a Escritura sempre nos faz lembrar
isso, quando nos fala do tema da alegria cristã. “Exultai e erguei a vossa cabeça;
porque a vossa redenção se aproxima”.147 Com que propósito, rogo ao leitor que
me diga, vamos transformar em tristeza e assombro o que para Jesus Cristo é
próprio para nos fazer regozijar? E se há de ser assim, por que nos gloriamos de
ser Seus discípulos? Retornemos, pois, ao bom senso, e, por maior repulse que
isso cause à nossa carne, em sua concupiscência e cegueira estulta, esperemos a
vinda do Senhor como algo verdadeiramente maravilhoso. E não nos limitemos a
desejá-la, mas oxalá passemos a gemer e a suspirar por ela. Porque Ele virá redentoramente e nos introduzirá na herança da Sua glória, depois de nos tirar deste
abismo de males e misérias sem conta.148
12. Assumamos nosso papel de ovelhas
e cordeiros do Cordeiro
É necessário que todos os crentes, enquanto vivem na terra, sejam como ovelhas
destinadas ao matadouro, para se fazerem semelhantes a seu Chefe e Cabeça,
Jesus Cristo.149 Pois seriam desesperadamente infelizes,150 se não dirigissem seu
pensamento para o Alto, para suplantarem tudo o que há no mundo e para que a
sua atenção e o seu interesse transcendam as coisas da presente vida.
Muitíssimo melhor será se os crentes elevarem seus pensamentos para além
das coisas terrenas, mesmo quando virem florescer os ímpios com suas riquezas
e honras, gozando paz e tranqüilidade e vivendo em meio a prazeres e pompas. E
até quando forem tratados pelos ímpios de maneira desumana, sofrerem ultrajes,a
forem oprimidos ou afligidos por toda sorte de afrontas humilhantes, pois, ainda
assim, com os pensamentos postos no Alto, não lhes será difícil consolar-se em
meio a todos esses males. Porque terão sempre diante dos seus olhos o dia final,
147
Tt 1.1-3; 2Tm 4.8; Mt 5.11,12; Lc 21.28
Calvino conclui: “Se o Senhor há de compartir com os Seus escolhidos a Sua glória, o Seu poder e a Sua
justiça, e até mesmo de se comunicar com eles, devemos considerar que sob esta graça estão compreendidos
todos os bens”. [João Calvino, As Institutas, (1541), II.4]. NE
149
Rm 8.36; 1Co 15.3, 30-34; 2Co 4.11.
150
1Co 15.19; Cl 3.1-4. NT
a. Livro escrito por Cipriano durante uma peste, para tranqüilizar os crentes. Esta é a única passagem das suas
obras em que Calvino cita esse tratado, que talvez ele tivesse acabado de ler em Estrasburgo, também em
tempo de epidemia.
a. 1539 acrescenta: ab eorum fastu, si avaritia expilentur.
148
243
dia em que eles sabem que o Senhor vai ajuntar todos os que nele crêem recolhendo-os ao repouso do seu Reino, vai enxugar as lágrimas dos seus olhos, vai
dar-lhes uma coroa de glória e vestes de jubilosa alegria, vai saciá-los com o
dulçor indescritível dos prazeres celestiais e exaltá-los às alturas da Sua glória;
em suma, sabem que Ele os fará participantes da Sua própria felicidade.151 Ao
contrário, lançará à ignomínia extrema os ímpios que são enaltecidos na terra,
mudará seus prazeres em tormentos horríveis, seu riso e alegria em choro e ranger de dentes, seu repouso e tranqüilidade em assombrosa aflição de consciência;
em suma, Ele os lançará no fogo eterno e os colocará em sujeição aos crentes, que
por eles foram maltratados com tanta maldade.152
Certamente nisso está o nosso único consolo. Se nos privarem dele, cairemos no desânimo, ou buscaremos afago e mel em consolações vãs e inúteis, que
serão a nossa ruína. Pois o próprio profeta confessou que vacilou, que os seus pés
quase resvalaram, enquanto prestava atenção na felicidade atual dos ímpios, e
declarou que não pôde resistir a isso enquanto não se pôs a contemplar, em sua
meditação, o santuário de Deus; isto é, enquanto não passou a considerar qual
será o fim dos justos e o dos ímpios.153
Para concluir com poucas palavras, afirmo que a cruz de Cristo triunfa definitivamente no coração dos crentes contra o Diabo,a a carne, o pecado, a morte e
os ímpios quando voltam seu olhar para contemplar o poder da Sua ressurreição.
13. Ensino bíblico sobre o uso dos bens terrenos
Dentro deste mesmo assunto,b a Escritura nos ensinac também que uso devemos
fazer dos bens terrenos. E não devemos negligenciar esta doutrina, visto que se
relaciona com a boa maneira de ordenard a nossa vida. Porque, se temos que
viver, também precisamos utilizar os recursos necessários à vida. Tampouco podemos abster-nos das coisas que mais parecem atender ao bem viver e ao bemestar, que à necessidade. Por isso precisamos estabelecer certa medida que nos
permita usá-las em sã consciência, tanto para satisfazer à nossa necessidade como
para propiciar-nos prazer. Essa medida nos é indicada por Deus, quando Ele nos
ensina que, para os Seus servos, a vida presente é como uma peregrinação rumo
ao Reino celestial. Ora, se só devemos passar pela terra, não há dúvida de que
devemos usar os bens terrenos de tal maneira que nos ajudem a ir avante em
nossa caminhada e não a retardem.
151
Is 25.8; Ap 7.17; 21.4. NT
2Ts 1.6-10. NT
153
Sl 73.2-17
a. Sobre o Diabo, ver no capítulo IV a explicação do primeiro artigo do Credo.
b. rudimentis.
c. instituit.
d. componendæ.
152
244
As Institutas – Edição Especial
Mas, visto que esta matéria pode provocar escrúpulose e corre o perigo de
ser levada de um extremo a outro, é de bom aviso firmar-nos em boa e sã doutrina
que nos garanta uma solução segura. Houve bons e santos personagens que, entretanto, vendo que a intemperança dos homens se extravasa desordenadamente e
sem freiosf quando não se lhe impõe severa restrição, querendo corrigir tão grande mal, proibiram aos homens o uso de bens materiais, a não ser em caso de real
necessidade. Eles fizeram isso por não terem visto outro remédio. Seu conselho
provinha de boa intenção, mas agiram de maneira excessivamente rigorosa. Porque fizeram uma coisa muito perigosa, qual seja: Ataram as consciências muito
mais apertadamentea do que as obriga a Palavra de Deus.
Por outro lado, hoje em dia há muitos que, na busca de qualquer pretexto
para escusar toda a intemperança no uso das coisas externas e para deixar a carne
às soltas, a qual está sempre pronta a se exceder, dão como estabelecido o seguinte artigo, com o qual não posso concordar: Não devemos impor nenhuma restrição à liberdade, e que cada um faça uso dela conforme lhe permita a sua consciência e segundo lhe pareça lícito.
14. Regras ou princípios gerais da Escritura
Reconheço que não se pode nem se deve impor à consciência fórmulas e preceitos nesta questão. Mas, visto que a Escritura nos dá regras gerais sobre o uso
legítimo dos bens temporais, por que não havemos de render-nosb a esse critério?
14.1 – Tenhamos em vista o fim para o qual Deus os criou.
O primeiro ponto que se deve adotar é que o uso dos dons de Deus não é mau se
se limitar ao fim para o qual Deus os criou e os destinou, visto que os criou para
nosso bem, e não para nosso mal. Portanto, ninguém terá diante de si um caminho
mais certo e reto que aquele que considerar diligentemente esse fim.
Ora, se considerarmos o fim para o qual Deus criou os alimentos, veremos
que Ele não só quis prover à nossa necessidade, mas também ao nosso prazer e
recreação. Assim, quanto ao vestuário, além de considerarmos a sua necessidade,
devemos aplicar-lhes o que se vê na relva, nas ervas, nas árvores e nas frutas,
pois, sem contar as suas outras utilidades e os benefícios que delas colhemos,
Deus quis alegrar-nos a visão por sua beleza e propiciar-nos ainda outro deleite
ao aspirarmos seu agradável aroma. Se isso não fosse certo, o profeta não contaria entre as bênçãos de Deus “o vinho, que alegra o coração do homem” e “o
azeite, que lhe dá brilho ao rosto”;154 a Escritura não faria a menção que faz aqui
154
Sl 104.15
e. lubricus.
f. effreni.
a. arctiores laqueos induerunt.
b. 1539: limitandus. 1541 tem, por engano: imité [corrigido no texto que estamos usando].
245
e ali da benignidade de Deus, que faz todos esses benefícios ao homem. E as
próprias qualidades que todas as coisas têm por natureza mostram como devemos
alegrar-nos por elas, com que finalidade e até que ponto. E vamos considerar que
não é lícito sentir prazer em contemplar a beleza dada por Deus às flores? Vamos
pensar que o Deus, que lhes deu tão agradável odor, não quer que o homem se
deleite em aspirar o aroma que elas recendem?a Além disso, que dizer das cores
variegadas – com variantes de matiz e graça? E Deus não revestiu de aspectos
encantadores o ouro, a prata, o marfim e o mármore, para que fossem mais nobres
e mais preciosos que os outros metais e as outras pedras? Finalmente, não nos
deu o Senhor muitíssimas coisas que devemos valorizar e que, entretanto, não
nos são necessárias?155
Deixemos de lado, pois, essa filosofia desumana que, não concedendo ao
homem nenhuma utilização das coisas criadas por Deus, a não ser por sua real
necessidade, não somente nos priva sem razão do fruto lícito da benignidade
divina, mas também, quando aplicada, despoja o homem de todo sentimento e o
torna insensível como uma acha de lenha. Mas, por outro lado, é necessário que
não menos diligentemente repudiemos a concupiscência da nossa carne, que se
extravasará sem medida, se for deixada sem freios. Lembremo-nos de que, como
eu já disse, há alguns que, sob o pretexto de liberdade, concedem à carne tudo
quanto ela deseja.
***
155
“Existe diante de nossos olhos, em toda a ordem da natureza, os mais ricos elementos a manifestarem a
glória de Deus, mas, visto que somos inquestionavelmente mais poderosamente afetados com o que nós
mesmos experimentamos, Davi, neste Salmo, com grande propriedade, expressamente celebra o favor especial que Deus manifesta no interesse da humanidade. Posto que este, de todos os objetos que se acham
expostos à nossa contemplação, é o mais nítido espelho no qual podemos contemplar sua glória.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.1), p. 356]. “Nas coisas que Ele criou, Deus, portanto, mantém
diante de nós nítido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer indivíduo que desfrute
de pelo menos uma minúscula fagulha de bom senso, e atenta para a terra e outras obras divinas, se vê
aturdido por candente admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno conhecimento de Deus,
pela observação de suas obras, certamente que viriam a conhecer a Deus de uma forma sábia, ou daquela
forma de adquirir sabedoria que lhes é natural e apropriada.” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São
Paulo, Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 62]. “O mundo foi originalmente criado para este propósito, que
todas as partes dele se destinem à felicidade do homem como seu grande objeto.” [João Calvino, O Livro
dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.6), p. 172]. “Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara
evidência de sua eterna sabedoria, munificência e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele
invisível, em certa medida se nos faz visível em suas obras. O mundo, portanto, é com razão chamado o
espelho da divindade, não porque haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito conhecimento de Deus, só pela contemplação do mundo, mas porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal
maneira que tira deles qualquer chance de justificarem sua ignorância. (...) O mundo foi fundado com esse
propósito, a saber: para que servisse de palco à glória divina.” [João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb
11.3), p. 300-301]. NE
a. 1550: flairer [cheirar] é o sentido que aqui tem fleurer [recender], como em Rabelais, Gargantua, prólogo
(ed. Plattrard, t. I, p. 5).189
189
Mantenho a tradução que fiz, que inclui os dois sentidos e não faz violência ao original: “...que o homem se
deleite em aspirar o aroma que elas recendem”. NT
246
As Institutas – Edição Especial
14.2 – Primeira regra para refrear a carne: Gratidão a Deus
Das regras que visam refrear a carne, a primeira é a seguinte: Todos os bens que
temos foram criados para que reconheçamos o seu Autor e magnifiquemos a Sua
bondade com ações de graças.156 Ora, onde haverá ação de graças, se por gulaa
você se enche de vinho e comida até ficar tonto e incapaz de servir a Deus e de
cumprir os deveres próprios da sua vocação?b Onde estará o reconhecimento de
Deus, se a carne, incitada por uma grande abundância de vis concupiscências,
contamina com a sua impureza a sua mente e o seu entendimento e o cega e lhe
impede o discernimento entre o bem e o mal? Como agradeceremos a Deus por
nos dar as vestes que usamos, se as revestimos de tal suntuosidade que nos envaidecemos e desprezamos as demais pessoas e se as usamos com arrogância tão
provocante que passam a ser instrumentos de corrupção moral?157 Como, digo e
repito, poderemos ser gratos ao nosso Deus, se fixamos os olhos na contemplação da beleza das nossas roupas? E se pode dizer a mesma coisa quanto às outras
espécies de bens materiais.158
Vê-se, pois, que a consideração supra já é suficiente para restringir a liberdade excessiva e o mau uso dos dons de Deus.159
14.3 – Segunda regra para refrear a carne: Meditar na imortalidade feliz
Mas, o caminho mais certo e mais curto para levar o homem a desprezar a vida
presente é meditar na imortalidade celestial.160 Dessa regra decorrem outras duas.
A primeira é que os que desfrutam deste mundo devem fazê-lo com o mínimo de apego, como se nada desfrutassem dele; os que se casam como se não
156
“Bom ensino nos dá, pois, Davi quando declara que, tendo recebido nova bênção de Deus, foi posto em seus
lábios um novo cântico (Sl 40.1-3). Com isso ele dá a entender que o nosso silêncio não estará isento de
ingratidão, se deixarmos passar sem louvor alguma de Suas graças; visto que todas as vezes que Ele nos faz
algum benefício, dá-nos motivo para bendizê-lo.” [João Calvino, As Institutas, (1541), III.9]. “Quando Ele
graciosamente nos concede todas as coisas, o desígnio para o qual Ele faz isso é este: para que Sua bondade
se faça conhecida e enaltecida.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 79.12), p. 261]. NE
157
“Quando o Senhor nos abençoa, também nos convida a seguirmos seu exemplo e a sermos generosos para
com o nosso próximo. As riquezas do Espírito não são para serem guardadas para nós mesmos, mas sempre
que alguém as recebe deve também passá-las a outrem. Isto deve ter uma aplicação especial aos ministros da
Palavra, mas também tem uma aplicação geral a todos os homens, a cada um em sua própria esfera” [João
Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, (2Co 1.4), p. 17]. NE
158
“Os bens terrenos à luz de nossa natural perversidade, tendem a ofuscar nossos olhos e a levar-nos ao
esquecimento de Deus, e portanto devemos ponderar, atentando-nos especialmente para esta doutrina: tudo
quanto possuímos, por mais que pareça digno da maior estima, não devemos permitir que obscureça o
conhecimento do poder e da graça de Deus.” [J. Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 48.3), p. 355356]. NE
159
Vale aqui a exortação de Paulo: Rm 13.11-14. NT
160
“Os profetas, para demonstrar melhor a bondade de Deus, usaram os benefícios terrenos como figuras, como
imagens representativas, mas, entretanto, quiseram com esses quadros elevar os corações acima da terra e
dos elementos deste mundo e deste século corruptível, e induzi-los a meditar na felicidade da vida espiritual.” [João Calvino, As Institutas, (1541), II.7]. NE
a. Acréscimo feito em 1541.
b. 1539: ad pietatis tuæque vocationis officia.
247
fossem casados; os que compram como se não possuíssem nada, conforme o
preceito do apóstolo Paulo.161
A outra regra subsidiária é: Aprendamos tanto a sobrelevar pacientemente e
com coração sereno a pobreza, como a usar moderadamente a abundância. Aquele que ordena que desfrutemos do mundo como se não desfrutássemos nada dele,
não se limita a coibir a intemperança no beber, no comer, nos prazeres, a ambição
exagerada, o orgulho, o descontentamento importuno, tanto na questão de edifícios como nas vestes e no modo de viver. Ele corrigea igualmente toda preocupação e todo afeto que nos desviem ou nos impeçam de pensar na vida celestial e de
aprimorar a nossa alma com os ornamentos próprios e legítimos.162 Com grande
acerto disse antigamente Catão:b163 Onde há muita vaidade no vestir falta virtude.
Como também diz o antigo ditado que aqueles que se ocupam demasiado com os
adornos do corpo pouco ou nada se preocupam com a alma.164
Portanto, embora quanto à liberdade dos crentes nas coisas externas não
devemos restringi-la mediante certas fórmulas, não obstante sua liberdade está
sujeita a esta lei: Que os crentes se permitam o mínimo que lhes for possível e
que, por outro lado, sejam vigilantes e eliminem tudo o que é supérfluo e todo
aparato dispensável de abundância, distanciando-se o mais possível da
intemperança; e que tomem todo o cuidado para não transformar em obstáculos
as coisas que devem prestar-lhes ajuda.
14.4 – Terceira regra para refrear a carne: Paciência na pobreza; moderação
na riqueza.
A outra regra será que aqueles que se acham na pobreza aprendam a suportar com
paciência a sua escassez, para não se atormentarem com demasiada preocupação.
Os que conseguem observar esse equilíbrio emocional têm tido não pequeno proveito da escola do Senhor. Já aquele que não aproveitou o que dela se pode aprender, dificilmente poderá ter algo que prove que é discípulo de Cristo. Porque,
além do fato de que muitos outros vícios acompanham a cobiça de coisas terrenas,
quase sempre sucede que aquele que não suporta com paciência a pobreza mostra
161
1Co 7.29-31
“Faz parte de seu [de Davi] propósito também exortar os fiéis a uma consideração da providência de Deus,
para que não hesitem em lançar sobre ela toda a sua preocupação.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol.
2, (Sl 40.5), p. 222]. NE
163
Dionísio Catão (s/ data). Considerado autor da obra Dionisyii Catonis Disticha de Moribus ad Filium
(Dísticos Morais para os Filhos), livro de injunções e preceitos morais muito popular na Idade Média. NT
164
“O desejo de Paulo é que o modo de vestir delas fosse regulamentado pela modéstia e moderação, pois o
luxo e a extravagância vêm do desejo de se exibir, atitude essa que só pode originar-se da vaidade ou da
devassidão.” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo, Paracletos, 1998, (1Tm 2.9), p. 72]. NE
a. 1541 tem, por engano: corriger (sem equivalente latino).190
b. a Catone.
190
Estranho esta nota porque na edição francesa de 1560 ocorre o mesmo termo na mesma forma: “corrige”. NT.
162
248
As Institutas – Edição Especial
o vício contrário quando se vê nac abundância.165 Explico isso dizendo que aquele
que se envergonha de usar roupa rústica ou modesta, usará com vanglória vestes finas; quem não se contenta com uma alimentação frugal, atormenta-se com
o desejo de melhor comida e não conseguirá conter-se quando tiver mesa mais
farta e rica; quem não souber viver em condição humilde ou sem cargos públicos, não conseguirá evitar o orgulho e a arrogância, se passar a uma situação
socialmente honrosa.
Por isso tudo, todos quantos desejam servir a Deus com sinceridade aprendam do exemplo do apóstolo, que sabia viver contente na abundância e na escassez;166 saibam, pois, conduzir-se moderadamente na abundância e ter positiva
paciência na pobreza.167
14.5 – Outra regra: Reconhecer que somos mordomos ou administradores
dos bens de Deus, e agir como tais
A Escritura tem ainda outra regra, a terceira regra ou princípio geral,168 pela
qual devemos moderar o uso dos bens terrenos, regra da qual tratamos resumidamente quando falamos sobre os preceitos do amor cristão. Porque a presente
regra nos mostra que todas as coisas nos foram dadas de tal maneira pela benignidade de Deus, e destinadas ao nosso uso e proveito, que elas nos foram deixadas como em custódia, em depósito, e chegará o dia em que deveremos prestar
contas delas. Por isso devemos administrá-las tendo sempre em mente esta sentença: Teremos que prestar contas de tudo o que o Senhor nos tem confiado.
Também devemos pensar em quem nos vai chamar a contas: Deus, que tanto
nos exorta à abstinência, à sobriedade, à temperança a e à modéstia, como igualmente tem condenado à execração toda sorte de intemperança, b orgulho, ostentação e vaidade; por quem nenhuma administração será aprovada senão a que é
regida pelo amor; e quem com Sua própria boca jác condenou todas as formas
165
“Para assegurarmos que a suficiência [divina] nos satisfaça, aprendamos a controlar nossos desejos de modo a
não querermos mais do que é necessário para a manutenção de nossa vida.” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm
6.8), p. 169]. A tendência é de nos envaidecermos com a abundância e nos deprimir com a carência. Para muitos
de nós, não se ensoberbecer com a riqueza pode ser mais difícil do que não se desesperar com a pobreza.[Vd. John
Calvin, Commentary on the Epistle to the Philippians, Grand Rapids, Michigan, Baker Book House Company,
1996, (Calvin’s Commentaries, Vol. XXI), (Fp 4.12) p. 124]. “Aquele que é impaciente sob a privação manifestará vício oposto quando estiver no meio do luxo.” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 74]. NE
166
Fp 4.11,12
167
“Quem sofre a pobreza com impaciência, mostra o vício contrário na abundância. Quero dizer com isso que
quem se envergonha de andar pobremente vestido, se vangloriará de ver-se ricamente ataviado; que quem
não se contenta com a mesa frugal, se atormentará com o desejo de outra mais rica e abundante.” [J. Calvino,
Institución, III.10.5]. “Quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo
para elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus.” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm
6.17), p. 182]. “O pobre deveria aprender a ser paciente sob as privações, para não se encontrar atormentado
com uma excessiva paixão pelas riquezas.” [João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 74]. NE
168
Ver item 14, acima. NT
c. in abundantia. 1541 tem, por engano: à abondance. [Corrigido no texto em uso: en abondance.]
a. frugalitatem.
b. luxum.
c. jam condemnavit. 1541 tem, por engano: eage a. [Corrigido: a já.]
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de prazeres que levam o coração do homem a afastar-se da castidade e da pureza, ou que embotam o seu entendimento.169
169
Tudo que temos constitui-se em um depósito do que um dia teremos de dar conta. “Temos, pois, de administrálas como se de contínuo, ressoasse em nossos ouvidos aquela sentença. ‘Dá conta de tua mordomia’ (Lc.
16.2).” [J. Calvino, Institución, III.10.5]. Deus concede-nos bens para que o gerenciemos; Ele continua
sendo o Senhor de tudo: “Quando Deus nos envia riquezas não renuncia a sua titularidade, nem deixa de ter
senhorio sobre elas (como o deve ter) por ser o Criador do mundo. (...) E ainda que os homens possuem cada
um sua porção segundo Deus os há engrandecido mediante os bens deste mundo, não obstante, Ele sempre
continuará sendo Senhor e Dono de tudo”. [Juan Calvino, El Señor dio y El Señor quito: In: Sermones
Sobre Job, Jenison, Michigan, T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 2), p. 42]. Para Calvino a riqueza residia em não
desejar mais do que se tem e a pobreza, o oposto: “Confesso, deveras, que não sou pobre; pois não desejo
mais além daquilo que possuo.” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 46). “Nossa cobiça é um
abismo insaciável, a menos que seja ela restringida; e a melhor forma de mantê-la sob controle é não desejarmos nada além do necessário imposto pela presente vida; pois a razão pela qual não aceitamos esse limite
está no fato de nossa ansiedade abarcar mil e uma existências, as quais debalde sonhamos só para nós.”
[João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.7), p. 168]. Por sua vez, também entendia que a prosperidade poderia
ser uma armadilha para a nossa vida espiritual: “Nossa prosperidade é semelhante à embriaguez que adormece as almas.” [Juan Calvino, El Uso Adecuado de la Afliccion: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan,
T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 19), p. 227. Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 30.6),
p. 631; As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 181]. “Aqueles que se aferram à aquisição de dinheiro e que usam a
piedade para granjearem lucros, tornam-se culpados de sacrilégio.” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.6),
p. 168]. “Todos quantos têm como seu ambicioso alvo a aquisição de riquezas se entregam ao cativeiro do
diabo” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.8), p. 169]. Daí que, para o nosso bem, o Senhor nos ensina
através de várias lições a vaidade dessa existência. [Vd. João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 60].
Os servos de Deus não podem ser reconhecidos simplesmente pela sua riqueza. Esclarecendo uma interpretação errada de Ec 9.1, afirma: “Se alguém quiser julgar pelas coisas presentes quem Deus ama e quem Deus
odeia, trabalhará em vão, visto que a prosperidade e a adversidade são comuns ao justo e ao ímpio, ao que
serve a Deus e ao que Lhe é indiferente. De onde se infere que nem sempre Deus declara amor aos que Ele
faz prosperar temporalmente, como tampouco declara ódio aos que Ele aflige.” [João Calvino, As Institutas,
(1541), II.4]. Comentando o Salmo 62.10, diz: “Pôr o coração nas riquezas significa mais que simplesmente cobiçar a posse delas. Implica ser arrebatado por elas a nutrir uma falsa confiança. (...) É invariavelmente observado que a prosperidade e a abundância engendram um espírito altivo, levando prontamente os
homens a nutrirem presunção em seu procedimento diante de Deus, e a se precipitarem em lançar injúria
contra seus semelhantes. Mas, na verdade o pior efeito a ser temido de um espírito cego e desgovernado
desse gênero é que, na intoxicação da grandeza externa, somos levados a ignorar quão frágeis somos, e quão
soberba e insolentemente nos exaltamos contra Deus.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl
62.10), p. 580]. Em outro lugar: “Quanto mais liberalmente Deus trate alguém, mais prudentemente deve ele
vigiar para não ser preso em tais malhas.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 30.6), p. 633].
“Quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade estamos transferindo para elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a Deus.” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.17), p. 182]. A nossa
riqueza está em Deus, Aquele que soberanamente nos abençoa: “.... a glória de Deus deve resplandecer
sempre e nitidamente em todos os dons com os quais porventura Deus se agrade em abençoar-nos e em
adornar-nos. De sorte que podemos considerar-nos ricos e felizes nele, e em nenhuma outra fonte.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 48.3), p. 356]. Portanto, “.... é uma tentação muito grave, ou seja,
avaliar alguém o amor e o favor divinos segundo a medida da prosperidade terrena que ele alcança.” [João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346]. Quanto ao dinheiro, como tudo que temos
provém de Deus, “o dinheiro em minha mão é tido como meu credor, sendo eu, como de fato sou, seu
devedor.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 56.12), p. 504]. Somos sempre e integralmente
dependentes de Deus: “Um verdadeiro cristão não deverá atribuir nenhuma prosperidade à sua própria
diligência, trabalho ou boa sorte, mas antes ter sempre presente que Deus é quem prospera e abençoa.” [João
Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 42].
Jesus Cristo é quem nos pedirá conta. O mesmo Jesus, que em sua vida terrena viveu de forma sóbria
e modesta, combatendo todo excesso, soberba, ostentação e vaidade. “Portanto, ao fazer o bem a nossos
irmãos e mostrar-nos humanitários, tenhamos em mente esta regra: que de tudo quanto o Senhor nos tem
dado, com o que podemos ajudar a nossos irmãos, somos despenseiros; que estamos obrigados a dar conta
250
As Institutas – Edição Especial
14.6 – A nossa vocação deve ser levada em conta em tudo quanto planejamos
e fazemos
É também nosso dever observar diligentemente que Deus ordena que cada um de
nós leve em conta a sua vocação em todas as ações da sua existência. Pois Ele
sabe muito bem quanto o homem se inflama de inquietação e com que facilidade
passa de um lado a outro; como também sabe com quanta ambição e cobiça ele é
solicitado a abarcar muitas coisas ao mesmo tempo. Por isso, para que não compliquemos tudo por nossa temeridade e loucura, Ele ordenou a cada um o que
fazer,a estabelecendo distinções entre posições ou estados e diversas maneiras de
viver. E, para que ninguém ultrapasse levianamente os seus limites, deu a tais
maneiras de viver o nome de vocações. Portanto, cada qual deve considerar o seu
estado ou posiçãob como um posto estabelecido por Deus e no qual Ele o colocou
para que não fique girando e circulando inconsideradamente para cá e para lá a
vida toda.c
Pois bem, essa distinção é tão necessária que segundo ela todas as nossas
obras são avaliadas por Deus, e muitas vezes de um modo contrário ao critério de
julgamento filosófico ou da razão humana. Tanto as pessoas comuns como os
filósofos consideram como o ato mais nobre e mais excelente que se poderia
realizar é libertar o seu país da tirania. Por outro lado, o homem de vida privada
de como o temos realizado; que não há outra maneira de despensar devidamente o que Deus pôs em nossas
mãos, que ater-se à regra da caridade. Daí resultará que não somente juntaremos ao cuidado de nossa própria
utilidade a diligência em fazer bem ao nosso próximo, senão que incluso, subordinaremos nosso proveito aos
demais.” [J. Calvino, Institución, III.7.5]. No entanto, esta ajuda não poderá ser com arrogância; antes deve ser
praticada com amor, prontidão, humildade, cortesia e simpatia. Ele constata com tristeza:
“Quase ninguém é capaz de dar uma miserável esmola sem uma atitude de arrogância ou desdém. (...)
Ao praticar uma caridade, os cristãos deveriam ter mais do que um rosto sorridente, uma expressão amável,
uma linguagem educada.
“Em primeiro lugar, deveriam se colocar no lugar daquela pessoa que necessita de ajuda, e simpatizarem-se com ela como se fossem eles mesmos que estivessem sofrendo. Seu dever é mostrar uma
verdadeira humanidade e misericórdia, oferecendo sua ajuda com espontaneidade e rapidez como se
fosse para si mesmos.
“A piedade que surge do coração fará com que se desvaneça a arrogância e o orgulho, e nos prevenirá
de termos uma atitude de reprovação ou desdém para com o pobre e o necessitado.” [João Calvino, A
Verdadeira Vida Cristã, p. 39].
As pessoas devem ser avaliadas não pelo seu dinheiro, mas por sua piedade. Os piedosos aprendem a
reverenciar e a imitar os genuínos servos de Deus:
“Aprendamos, pois, a não avaliar uma pessoa pelo prisma de seu estado ou seu dinheiro, nem pelo
prisma de suas honras transitórias, mas avaliá-la pelo prisma de sua piedade ou de seu temor a Deus. E
certamente que ninguém jamais aplicará verdadeiramente seu intelecto ao estudo da piedade que, ao
mesmo tempo, também não reverencie os servos de Deus; da mesma forma, por outro lado, o amor que
nutrimos por eles nos incita a imitá-los em sua santidade de vida.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,
Vol. 1, (Sl 15.4), p. 294].
Aos pastores e aos crentes em geral, Calvino apresenta uma recomendação: “Os ministros devem
viver contentes com uma mesa frugal, e devem evitar o perigo do regalo e do fausto. Portanto, até onde suas
necessidades o requeiram, que os crentes considerem toda a sua propriedade como à disposição dos piedosos e santos mestres.” [João Calvino, Gálatas, São Paulo, Paracletos, 1998, (Gl 6.6), p. 181]. NE
a. sua cuique officia.
b. vivendi genus.
c. toto vitæ cursu circumagantur.
251
ou particular que se lance contra um tirano é abertamente condenado pela voz de
Deus. Contudo, não pretendo me demorar aqui relatando todos os exemplos que
se poderia citar a respeito.
É suficiente que saibamos que a vocação de Deus é como que um princípio
e fundamento baseados no qual podemos e devemos governar bem todas as coisas, e que aquele que não atentar para ela jamais encontrará o caminho reto e
certo para desincumbir-se devidamente do seu dever. Poderá por vezes fazer algo
cuja aparência exterior inspire louvor, mas não será aceito pelo trono de Deus,
seja qual for o valor que os homens lhe atribuam.
Além de tudo mais, se não tivermos a nossa vocação como uma regra permanente, não poderá haver clara consonância e correspondênciaa entre as diversas partes da nossa vida. Assim, será muito bem ordenada e dirigida a vida de
quem a conduzir tendo em vista esse propósito. Desse modo de entender e de agir
nos resultará esta singular consolação: Não há obra, por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante de Deus e que não Lhe seja preciosa, contanto
que a realizemos no serviço e cumprimento da nossa vocação.170
FIM
170
“Se seguirmos fielmente nosso chamamento divino, receberemos o consolo de saber que não há trabalho
insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante antes os olhos de Deus.”
[João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 77]. NE
a. 1539 tem somente: Deinde in ipsis vitæ partibus nulla erit symmetria.
Onde entra essa nota?
171
Antigo professor de Grego em Heidelberg (1524-1529) e, posteriormente, de Grego (1529) e Teologia (1536)
em Basiléia.
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