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INSTITUIÇÕES ESCOLARES E PRÁTICAS EDUCATIVAS: MEMÓRIAS DE
IMIGRANTES ITALIANOS (1915-1950)
Jordana Wruck Timm1; Milena Cristina Aragão Ribeiro de Souza2; Lúcio Kreutz3
¹Universidade de Caxias do Sul – UCS, bolsista CAPES; ²Universidade Federal de Sergipe –
UFS, bolsista FAPITEC/SE; ³Universidade de Caxias do Sul – UCS.
¹[email protected]; ²[email protected]; ³[email protected]
Palavras-chave: Instituições/práticas educativas; Imigração italiana; Professores comunitários.
1. Palavras iniciais
O presente texto analisa seis entrevistas realizadas com professores, descendentes de
imigrantes italianos, que praticaram a docência entre o período de 1915 a 1950, nas Antigas
Colônias de Imigração Italiana na região nordeste do Rio Grande do Sul. Essas entrevistas
foram realizadas na década de 1980 por duas professoras, integrantes do projeto “Elementos
Culturais das Antigas Colônias Italianas da região Nordeste do Rio Grande do Sul
(ECIRS/UCS)”, que tem como objetivo investigar a imigração italiana vinda para essa região.
As entrevistas fazem parte do acervo de memória oral desse projeto, e, também, dos
documentos, pois as mesmas já estão transcritas. É importante salientar que além destas,
outras entrevistas compõem o acervo, perfazendo um total de trinta, sendo oito com alunos e
vinte e duas com professores. O recorte realizado para esta pesquisa abrangeu a escolarização
dos imigrantes italianos. Os sujeitos foram escolhidos tendo em vista o que primeiro iniciou a
lecionar em cada um dos municípios contemplados com as entrevistas, sendo eles: Antônio
Prado, Flores da Cunha, São Marcos, Caxias do Sul, Garibaldi e Carlos Barbosa. Objetiva-se,
a partir da análise das entrevistas realizadas com os docentes, refletir sobre o interesse e a
necessidades que os imigrantes italianos e seus descendentes residentes nestas regiões tinham
em relação à escola; como planejaram sua organização no que compete a estrutura,
contratação/escolha dos professores que nela atuariam, bem como investigar as práticas
educativas, incluindo os castigos escolares. Vale salientar que o solo no qual este texto se
apoia sustenta-se a partir dos pressupostos da História Cultural, capaz de nos levar por entre
as tramas das relações e tensões socioculturais; das práticas e representações de sujeitos
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ordinários, interrogando a pluralidade do cotidiano, os modos de pensar, dizer e fazer dos
agentes que compõe a escola.
2. Os sujeitos e o contexto da pesquisa
Como escrito anteriormente, o texto conta com entrevistas realizadas com seis
professores comunitários que lecionaram no período de 1915 a 1950 na região das Antigas
Colônias de Imigração Italiana. Abaixo segue a relação dos professores entrevistados,
identificando o ano em que concederam a entrevista, o ano de nascimento e de início da
carreira docente, bem como a formação que tinham no momento da nomeação, o que motivou
a exercer o magistério e a ser reconhecido em seu exercício, tendo em vista que não
participaram de concurso e, ainda, se receberam qualificação após nomeação e, nos casos
Ângelo Araldi
Indicação
Frequência
dos
treinamentos
pós-nomeação
professor
escolhido
ser
O que motivou
nomeado
tinha quando
Formação que
Entrevista
da
Flores da 1926 1948
Ano
lecionar/ano
a
Começou
Nascimento
de
Ano
que residia
Município em
entrevistado
Nome
do
positivos, a frequência dos treinamentos realizados.
1989
Fez ginásio
Mensal
1988
Concluiu o Indicação
Anual ou
manuscrito
semestral
Concluiu o Indicação
Não
manuscrito
ofertado*
Cunha
Catarina Foppa
Emma
Garibaldi 1910 NI
Nilza Antônio
Citton Faccio
Prado
Isolina Rossi
Caxias
1917 1943/
1980
44
1898 1915
1985
Sabia ler*
Indicação
do Sul
Paulina
São
Soldatelli
Marcos
férias
1913 1927
1984
Frequentou
Indicação
seis anos a
Moretto
Vitória Regla
Período de
Período de
férias
escola
Carlos
Barbosa
NI
1925*
198-
Estava
estudando*
Indicação
Estudava
no
turno
da tarde*
Tabela 1 – Dados dos entrevistados. Fonte: ECIRS (dados recolhidos nas entrevistas), tabela
elaborada pelas autoras.
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Alguns detalhes desta tabela merecem ser especificados. Seu Ângelo Araldi fala, na
entrevista, sobre reuniões mensais para preparação e que nessas reuniões tinham que mostrar
o planejamento para poder receber o salário, ele tinha formação em Ginásio e alegava que por
isso, era considerado um “sabe tudo”, pois quem tinha ginásio era muito considerado. Dona
Catarina Foppa disse que fez uma provinha para iniciar a lecionar, onde se cobrava alguns
cálculos e a escrita de um texto.
Donna Emma Nilza Citton Faccio não especifica a partir de quando começou a receber
orientação, apenas deixa transparecer que inicialmente não tinha ninguém para auxiliá-la, que
muitas vezes chegava à sala de aula e não sabia nem o que ensinar para as crianças e que
depois de certo tempo entrou uma orientadora, que além de ensinar/passar os conteúdos a
serem ensinados vinham em determinado período avaliar o que os alunos aprenderam. As
provas vinham prontas da prefeitura. Sobre as razões de ter sido escolhida para ser professora,
ela o atribui a sua origem italiana, o que em sua comunidade era considerado indispensável
para a boa interação com os alunos.
A professora Isolina Rossi alega que foi indicada por competência, ela apenas
menciona que aprendeu a ler e em seguida começou a lecionar, não deixando nítida a
formação que tinha, ela ainda alega que a prefeitura não oferecia qualificação após nomeação,
e que por isso, por conta própria frequentava um “curso” no período de férias. Dona Paulina
Soldatelli Moretto parece ter chegado à seleta em seus estudos, mas quando questionada sobre
sua formação apenas mencionava que frequentou a escola por seis anos, alega ter sido
escolhida por ter competência e diz que no início não tinha qualificação para o magistério,
apenas posteriormente, quando a escola passou para responsabilidade do município que
começaram a oferecer qualificação nas férias. Por fim, dona Vitória Regla começou a lecionar
em 1925, no entanto, “efetivamente”, ou melhor, nos papéis, começou mais tarde por conta da
idade e da formação, ela lecionava pela manhã e estudava de tarde e também diz ter sido
indicada pela sua competência.
Como podemos observar, nenhum dos professores possuía formação específica para
exercer a docência, uma indicação era suficiente, prevalecendo, muitas vezes, a competência
observada em sala de aula, ou a origem, preferencialmente italiana. Na maioria dos casos, os
professores tinham à disposição encontros para qualificação, onde eram passados/ensinados
os conteúdos a serem trabalhados com os alunos.
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Vale salientar que as entrevistas foram todas realizadas na década de 1980, pelas
professoras Corina Michelon Dotti e Liane Beatriz Moretto Ribeiro, e compõe o acervo de
memória oral do projeto ECIRS, bem como o acervo de documentos, já que as entrevistas já
estão transcritas. Nesta coleta de dados mais entrevistas foram realizadas, mas colocamos em
evidencia uma de cada município contemplado pela pesquisa, buscando o professor que
iniciou a lecionar no referido local. Para facilitar a compreensão local, colocamos abaixo um
mapa que identifica a localização da região colonial italiana no Rio Grande do Sul e em
seguida, sinalizado em vermelho, os municípios contemplados neste texto.
Mapa 1 – Primeiras colônias e desmembramentos na Região de Colonização Italiana no Nordeste do
Rio Grande do Sul. Fonte: Ivanira Facalde (cartografia), mapa base IBGE (1997), disponível em
Luchese (2008, p.75).
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3. As instituições escolares
Segundo Bertelli (2008, p.721):
O pessoal reunia-se e jogava “bochas” ou “mora” após a recitação do terço.
Nas festas servia-se churrasco ao ar livre e vinho, única bebida que usavam.
Se o tempo era bom a alegria era geral e contagiante, pois os homens
jogavam e cantavam as tradicionais canções italianas, as mulheres se
reuniam e falavam durante toda a tarde rodeadas pelas crianças pequenas. A
criançada divertia-se recolhendo os “foguetes” que os fabriqueiros
estouravam em sinal de festa.
E foi nesses encontros domingueiros que os colonos começaram a falar na
“escola”. O líder, Giácomo Sandri, analfabeto, não queria o mesmo para seus
filhos e lançou a idéia de construir, ao lado da Igreja, uma escola (la scôla).
Que maravilha! De madeira, telhado de tabuinhas, lá estava ela.
Iniciamos com uma citação de Bertelli que mostra o interesse dos pais pela escola. Os
imigrantes que aportaram na região das Antigas Colônias de Imigração Italiana sentiam
inicialmente um desejo muito grande pela construção da capela, lugar onde se reuniriam para
praticar a fé e estar assim, também, se aproximando da cultura e dos costumes trazidos da
terra de origem. Seguidamente, a escola também foi alvo de discussões, longe da família e
conhecidos que ficaram na Itália, como se comunicariam com os mesmos, se muitos sequer
sabiam escrever ou ler? E os produtos plantados, colhidos e que seriam colocados à venda,
como vender, se nem sempre sabiam calcular? A escola era vista como um meio das crianças
aprenderem a ler, escrever e calcular. Nesse sentido, motivos semelhantes impulsionaram os
alemães a terem desejo pela escola. Entre outros motivos, Kreutz (2004, p.16) salienta que o
fator religioso também teve função preponderante, pois “a reforma protestante, [...], tornou o
saber ler uma questão básica para uma melhor prática religiosa”. Segundo relatos de dona
Vitória Regla, os pais também achavam importante que a professora ensinasse os filhos a se
comportarem e que ensinasse religião, acreditavam que a escola poderia oferecer uma boa
educação.
Em relação ao espaço físico da escola, a professora Vitória Regla alega que os pais
ajudavam na conservação da mesma, e dona Paulina Soldatelli Moretto diz que ambas as
escolas (ela lecionou em duas) tinham a mesma estrutura, apenas uma era maior e a outra
menor “era uma casa de madeira, de uma só sala, coberta de tabuinhas de madeira, ‘scàndole’,
uma porta só, poucas janelas. A casa não era nem sequer forrada”. Informa que o banheiro era
atrás da escola, em meio às capoeiras, as classes eram de madeira, eram bancos de três a cinco
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lugares, em alguns casos eram cadeiras ou bancos fixados às mesas, em outros eram bancos
compridos com mesas separadas. Ainda, ela relata que sempre tinha um mapa, um crucifixo e
um quadro negro. Detalhe relevante, trazido pela professora Paulina Soldatelli Moretto, é que
dentro da sala de aula meninos e meninas sentavam separados,
meninos todos de um lado, meninas todas de outro, como na igreja naquele
tempo, os homens de um lado e as mulheres do outro. Só eles vinham fazer
uma leitura. Era a leitura daqueles do 2º livro. Todos os que tinham o 2º livro
vinham na frente para fazer a leitura, perto da professora, porque a
professora estava sempre em cima de um estrado, com uma mesinha. Então
vinham ali e começavam a leitura. Eles se colocavam, meninos e meninas,
podiam estar juntos. Liam um trechinho cada um. Um começava a leitura, lia
8, 10 linhas e quando a professora dizia ‘o seguinte’. Daí continuava o
seguinte, outro. Aí podiam estar juntos.
E, sobre o material escolar, Vitória Regla afirma que cada um tinha o seu, mas que “as
crianças se emprestavam o material quando um ficava sem o livro, sem o caderno se precisava
se trocar eles se ajudavam. Até o lápis, eles cortavam o lápis pela metade para o amiguinho,
que não tinha”, o que demostra o “espírito” de coletividade, coleguismo, companheirismo,
muito observado nas escolas comunitárias.
4. As práticas educativas
As práticas educativas também foram destaque na fala dos entrevistados. Eles
mencionam os conteúdos trabalhados em sala de aula, o que era desejo dos pais que se
ensinasse na escola, além disso, os castigos e premiações, o ensino de práticas de higiene,
bem como, o catecismo e outras práticas religiosas contemplaram as práticas educativas
destes professores comunitários e serão tratados na sequência (em subitens).
Duas professoras falam da alfabetização de seus alunos, dona Isolina Rossi afirma que
alfabetizava crianças em 15 dias, e dona Emma Nilza Citton Faccio disse:
Prá alfabetizar elas, as primeiras letrinhas. Primeiro era a, e, i, o u, depois
daquilo, o resto continuar. Ma, me, mi, mo, um e completava as palavras,
uma vez era muito difícil pra eles pegarem. Levavam tempo, ia até a metade
do ano pra eles começarem a ler. Num ano tinha crianças que aprendiam a
ler com a maior facilidade. Outros eram mais de cabeça dura. Depois quando
estavam no 2º aí iam embora.
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A forma que a professora Isolina alfabetizava não diferia da professora Emma,
ensinava primeiro as letras, depois sílabas, mas atribui a rapidez em alfabetizar ao ensinar a
pronuncia das letras, sílabas. Sobre a forma que ensinavam outros conteúdos a professora
Vitória Regla disse ter se baseado muito em um livro, a partir dele ela transmitia os conteúdos
às crianças, mas valorizava muito a utilidade dos conteúdos para as crianças, indo além do
que o livro ou mesmo o programa colocado pela prefeitura sugeria quando achava necessário.
Os jogos não eram usados em sala, dona Emma Nilza Citton Faccio disse não ter
ensinado jogos/com jogos, “só o ensino, os pais eram rigorosos, eles iam na aula, eles
queriam que aprendesse ler, escrever e as contas e acabou. Eles não queriam brincadeiras na
sala de aula”, nesse sentido, a professora Paulina Soldatelli Moretto disse que as vezes
brincava com as crianças na hora do recreio, mas os pais não gostavam, consideravam perda
de tempo. Sem a opção de trabalhar e ensinar com jogos em sala de aula, os exercícios mais
aplicados pelos professores entrevistados era o ditado, frases para completar, leitura,
cópia/reprodução para aprenderem a escrever, caligrafia, contas, problemas, enfim, dos seis
professores, cujas entrevistas aqui foram analisadas, apenas o relato da professora Isolina
Rossi traz atividades diferentes:
Ensinava ler e escrever. Tinha a caixa da correspondência. Então nos
sábados todos tinham que por uma carta lá. Um escrever para outro, entre
eles. Até eu queria fazer uma aritmética e de noite, formava cinco problemas
em cada noite. Eu mesmo que organizava os problemas. Vender batatas,
tantos quilos, tantos sacos, dividir em quilos, quanto sai cada quilo, para
coisas práticas da vida. [...]. Uma noite, eu e meu marido, fomos de visita
numa família, estavam sentados os filhos fazendo os problemas e os pais
juntos. Todos os dias eu levava prá casa este programa de trabalho, seus
deveres. Então tudo com lápis, tinta, os pais fazendo a conta, porque eu
dizia: olha, aquele problema vai dar mais de 40, menos de 30, mais de 50.
Então todos lutavam. Todos trabalhavam nas casas.
E, as disciplinas que, segundo os professores, contemplavam o programa eram
português, ciências, história, geografia, matemática, a professora Vitória Regla ensinava
história do índio, ela contava histórias dos imigrantes italianos também, já que os alunos eram
italianos e/ou descendentes de italianos. A professora Emma Nilza Citton Faccio alegava
ensinar “tudo que era tipo de cantos, de igreja, o Hino Nacional, o Hino da Bandeira”, ao ser
questionada sobre a forma que ensinava matemática, ela explicou, “na matemática, primeiro
era os numerais, depois principal era a tabuada, não sabendo a tabuada não valia nada. Tinha
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que saber a tabuada, [...] depois tinha as continhas. Adição depois subtração, multiplicação e
divisão”. Sobre a forma de correção e avaliação, Faccio explicou:
Todos os dias na aula, conforme cada aluno terminava o trabalho a gente
passava o caderno e corrigia. Também dava bastante tema. Depois corrigia,
quando eles vinham na aula, um ia pro quadro e eu ficava cuidando aluno
por aluno, pra ver se eles acompanhavam no quadro pra corrigir. Era dado
um dia por disciplina. Um dia de cada, porque a turma era grande. Depois lá
no salão lá em São João tinha aquelas classes compridas, eu acho, de 5, 6
metros. Primeiro dava trabalhinhos prá 2ª série; depois prá 3ª série, depois
dava prá 4ª série e depois dava prá 5ª. Eles se ajudavam muito.
Pela capacidade deles no caderno, pela letra deles no caderno, eu sou muito
severa com os cadernos, não quero que escrevam feio, quero bonito. Passava
um por um (...) a criança prá aprender tem que ser assim.
Detalhe relevante e que difere em relação ao que era ensinado, está no relato da
professora Catarina Foppa que ensinava poesias aos alunos entre outras formas de saudação
para quando chegassem visitas na escola, para as apresentações, enfim, dentre as práticas
escolares, ela também ensinava as meninas a bordarem para que pudessem preparar o enxoval
e os meninos desenhavam e com seus desenhos forravam as paredes em casa. Os trabalhos
manuais também foram ensinados pelas professoras Isolina Rossi, Vitória Regla e Emma
Nilza Citton Faccio, destacando o bordado para meninas e os desenhos e tranças para os
meninos.
Os conteúdos ensinados pelos professores vinham, na maioria das vezes, inclusos no
programa que a prefeitura entregava, mas em muitos relatos aparece que os pais tinham
grande influência no que era ensinado aos alunos, como pudemos observar no relato da
professora Vitória Regla os pais queriam a escola “para que os filhos aprendessem a ler, a se
comportar, ensinar tudo. Escrever, fazer as contas, comportamento, a religião, tudo”. Único
relato que contraria esta informação, dentre os seis professores entrevistados, foi o do
professor Ângelo Araldi que afirmou que as famílias em nada influenciavam o planejamento
do professor, que apenas a prefeitura tinha esse acesso, em contrapartida, ele relata sua
relação com os pais de seus alunos,
A missão do professor cinquenta por cento era em sala de aula e cinquenta
por cento nas famílias. [...]. Eu fazia que via a necessidade desse contato do
professor com os pais, que era uma forma de receber apoio deles também,
para cumprir minha missão. É uma forma também que eu achava que o
professor que a função dele não é só dentro das quatro paredes. A família
que precisasse mais do que os alunos.
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4.1 Os castigos
Segundo dona Catarina Foppa, após contratação, tinham reunião uma ou duas vezes
por ano, onde todas as professoras ficavam juntas, o motivo para isso era a prática de castigos
corporais, o que não era desejo da orientadora e da inspetora, mas que ainda ocorria com certa
frequência, portanto nessas reuniões demonstravam para os professores como eles deveriam
ensinar e pediam que tratassem os alunos com palavras (sem castigos físicos). Os demais
professores, cujas entrevistas são examinadas neste texto, não trazem nos relatos a questão da
proibição/solicitação de que não deveria ter castigos, aliás, em muitos relatos aparecem os
castigos praticados em sala de aula. A professora Paulina Soldatelli Moretto disse que quando
aluna na escola em que estudava os alunos não recebiam castigos “tão graves”, que era
“escrever, ou ficar de pé, ou ficar num canto, ou ficar privado do recreio”, mas relata que na
outra escola onde seus irmãos estudaram “ainda tinha aquele tempo da palmatória. Na minha
escola, de vez em quando, tenho uma vaga lembrança, que alguém ficou ajoelhado no chão.
Eu não cheguei a ver que alguém botava o milho debaixo dos joelhos”. Ela relata,
Os meus irmãos sim, inclusive um meu irmão, o professor tinha aquelas
orelhas de burro, feitas de papelão e quando uma pessoa fazia uma arte,
botava as orelhas de burro na cabeça e depois deixava-o na porta, para que
todo mundo que passava, via que aquele estava de castigo. Lembro, um
irmão meu, que ficou de castigo, com as orelhas de burro, ficou tão
revoltado, tão revoltado. Quando foi para casa não contou nada em casa, mas
depois nos outros dias, os outros iam na aula e ele gazeava, ficava escondido
no mato. Não queria ir à aula, tinha medo de contar para os pais, mas depois
de uns 10, 12 dias o pai ficou sabendo. Não lembro se os outros irmãos
contaram. Então o pai teve que ir lá providenciar, mas ele nunca mais teve
vontade de ir à aula. Mal e mal falou foi alfabetizado. Quer dizer que aqueles
castigos não ajudavam.
Sobre a palmatória, eles contavam que tinham que abrir a mão e o professor
batia com a régua, ou com a mão em cima dos dedos e ela batia em cima das
juntas, ou ficava ajoelhado em cima dos grãos de milho, ou ficava na porta
com as orelhas de burro. Mas eu não cheguei a ver e nem sofrer esses
castigos.
Já, quando trata do tempo de professora, dona Paulina Soldatelli Moretto relata que
havia muitos alunos rebeldes, que o ambiente era difícil e, por esse motivo, tinha uma varinha
de marmelo. Alega não tê-la usado muito, mas para poder se impor – já que era nova, mas
também enérgica, quando necessário, batia, do contrário usava-a como símbolo de
admoestação. Apenas uma vez que uma mãe reclamou, mas a professora alegando que a
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criança era mimada, respondeu à mãe que se estivesse insatisfeita que não mais mandasse a
filha à escola, mas ela continuou indo e tornaram-se amigas, aliás, dona Paulina disse que o
uso da varinha foi, principalmente, no primeiro ano, no segundo usou pouco e depois ganhou
a disciplina dos seus alunos.
4.2 A higiene
Uma preocupação da maioria dos professores entrevistados era a questão da higiene.
Segundo relatos da professora Vitória Regla ela ensinava noções de higiene, mas disse
entender a situação já que muitos sequer tinham tamanco, por vezes iam descalços em pleno
inverno, impossibilitando chegarem limpos. A professora Catarina Foppa alegava que as
crianças iam mal vestidas e sujas, ela tinha que ensinar a se lavarem, revisava os cabelos por
conta dos piolhos e as unhas, disse que na escola que aprenderam a andar mais limpas, ela
também contava com os alunos para manter a limpeza da escola,
eu dizia pros meus alunos olha, nós temos que manter o colégio sempre
limpo, porque sempre chega uma pessoa, chega de surpresa. Então durante a
semana eu limpo a aula, mas quando é sábado tenho que destacar três alunos.
Os três que querem se oferecer então vocês limpam a escola, varrem, passem
um pano, limpem o pó e tudo direitinho, mas todo mundo queria. É, os guris
chegavam arregaçar as calças, até o joelho, ajoelhavam no chão, um varria,
outro passava o pano, outro ia buscar água, porque a água era um pouquinho
longe, depois de tudo varrido, tiravam o pó todos juntos. Eu não precisava
ficar na aula, eu saia ia pra minha cozinha aprontar o almoço, e eu chegava
quando eles terminaram, e eles diziam professora nós terminamos. Eles
deixavam a escola de uma limpeza que é de admirar.
Essa prática era muito comum naquele tempo e ficou assim muitos anos depois, onde
contavam com os alunos para manterem a organização e limpeza das escolas, interessante é
perceber o gosto com que assumiam a tarefa.
4.3 O catecismo e outras práticas religiosas
Como último subitem, mas não menos importante, podemos considerar o mais
relevante, tendo em vista que a escola surgiu nos encontros domingueiros para prática da fé e
que a religião era disciplina trabalhada por todos os professores em sala de aula, bem como
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muitos assumiram o ensino do catecismo e auxiliavam na organização/ornamentação da igreja
e na preparação de leituras para as missas.
O ensino religioso ocupava o lugar central em todas as escolas, protestantes
e católicas, até o final do século XVIII. Seu objetivo central era formar bons
cristãos. Uma descrição de 1657 deixa transparecer claramente o motivo
religioso nas preocupações com o mestre-escola. O candidato era escolhido
por um Conselho Paroquial, devendo ser da religião católica e fazer um
iuramentum fidelitatis. Realçava-se, quanto às funções, que cantasse todo
domingo e feriado, em canto coral, a santa missa. Deveria fazer-se
acompanhar de alguns jovens e treiná-los com dedicação. Ainda era
essencial que todo domingo e feriado desse catequese, ensinando aos alunos
os principais artigos de fé católica. (KREUTZ, 2004, p.61)
Utilizamos das palavras de Kreutz que desenvolveu sua pesquisa com o professor
paroquial, típico dos imigrantes alemães, mas que em muitos aspectos assemelha-se ao
professor comunitário dos imigrantes italianos para demonstrar a importância dada ao ensino
religioso nas escolas étnicas. Sobre o ensino do catecismo, um relato interessante e que
demonstra a “necessidade” do mesmo, está no relato da professora Isolina Rossi,
Então tinha quem ensinava catecismo em casa, em italiano. Eu ensinava em
português. Sim, agora tu vê, exigiam tanto. Cada vez que eu vinha à cidade,
porque em Caxias era Campo dos Bugres. Eles não diziam vou prá Caxias,
‘vao al campo’. Eu trazia uma aluna comigo, de solteira, para que se
civilizasse um pouco. Té esses dias o Albino Formolo, ele ensinou, não
aprendia o português ele pegava os alunos em casa, dava comida, janta e
dormia lá e ensinava lá. Uma vez, uma porque não aprendia o catecismo,
amarrei uma corda na mina cintura e nela e vinha atrás, fazendo o serviço e
Pai-Nosso Creio em Deus Pai...
Ou seja, com essa fala pudemos observar a importância dada à religião e ao catecismo,
se tinham dificuldades a própria professora procurava jeitos de fazer com que aprendesse. As
contribuições das professoras para a religião (como as citadas no primeiro parágrafo deste
subtítulo) também puderam ser verificadas nos relatos das professoras Vitória Regla e
Catarina Foppa que além de darem aula, auxiliavam nas orações, no catecismo, na
organização da igreja (preparavam o altar, ajeitavam as flores) e, quando tinha enterro, dona
Catarina Foppa levava seus alunos para rezarem o terço. A professora Paulina Soldatelli
Moretto também traz relatos a esse respeito, ela disse que a escola ficava ao lado da capela,
que quando o padre vinha rezar missa na capela, então ele chegava um pouco na escola para
visitar, dar conselhos, e que ela auxiliava cuidando da igreja, rezando o terço, respondendo a
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missa, ensinando o catecismo, no enterro apenas acompanhava, exceto uma vez que o padre
não pode ir e a dona Paulina o fez, recorda de seu tempo de aluna que aprendiam a História
Sagrada, eram três volumes, lidos por quem estava na seleta.
Sobre conteúdos trabalhados em religião, dona Emma Nilza Citton Faccio disse que
liam a Bíblia, a partir da 4ª série liam a História da Bíblia e faziam um texto a respeito, ela
também atenta para a importância desta disciplina na comunidade e no contexto das
professoras comunitárias, “a religião era primeiro lugar, desde antigamente a religião foi em
primeiro lugar. [...]. Em toda a colônia, deixa de dar religião prá ti ver. Deixa der fazer o sinal
da cruz na sala de aula, prá ti ver. A criança vai prá casa e conta”, ou seja, chegava a ser uma
exigência o ensino da religião.
Em apenas um relato que aparece a comunidade sem praticar a religião, e nesse
aspecto, o professor Ângelo Araldi desenvolveu atividades de muito destaque, pois começou
dando meia hora por dia de religião, os pais lhe chamavam, queriam aprender a rezar como os
filhos estavam aprendendo, alegavam que o seu Ângelo falava de “coisas bonitas”, com isso
ele tinha uma atuação ‘”bem forte” nas famílias também. Para realizar o primeiro catecismo
daquela comunidade ele contou com a ajuda de uma delegada que começou a atuar na região
e que era católica, ela ao descobrir o trabalho do professor Ângelo mandou lhe chamar e
acertaram detalhes para preparação da primeira comunhão, providenciando um padre para
atuar na comunidade, terços para todos e véus para as meninas.
5. Palavras finais
Como resultado, foi observado que os imigrantes italianos que aportaram nas regiões
investigadas - muitas vezes analfabetos - desejavam que seus filhos fossem educados
formalmente, contudo, na falta de investimento do governo, por conta própria começaram a
ministrar os estudos e planejar a construção de escolas, com o apoio da comunidade.
Observou-se, também, que para ser docente bastava ter pouca instrução, não necessitando,
portanto, ter formação específica. Sobre as práticas educativas, notou-se que a comunidade
influenciava na escolha do conteúdo a ser ensinado/aprendido na escola (ler, escrever e
calcular). Como práticas de castigos escolares, aquelas que incidiam sobre o corpo eram as
mais utilizadas e, como a figura do professor era respeitada, este tinha permissão das famílias
para utilizar os castigos que acreditasse serem mais adequados para a educação da criança
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(vale salientar que o castigo era visto como uma forma de ganhar o respeito e a disciplina dos
alunos), culminando numa relação de cumplicidade entre pais e professores.
6. Referências
ARALDI, Ângelo. Entrevistas sobre a escolarização de imigrantes italianos – RS (região
Nordeste do estado). Flores da Cunha, ECIRS/UCS, 1989. Entrevista concedida a Liane
Beatriz Moretto Ribeiro. [entrevista transcrita].
BERTELLI, Arilde Cecília Chemello. Escolas de São Marcos 1900-2005: um século de
cultura. Suliane Letra e Vida: Porto Alegre, 2008.
FACCIO, Emma Nilza Citton. Entrevistas sobre a escolarização de imigrantes italianos –
RS (região Nordeste do estado). Antônio Prado, ECIRS/UCS, 1980. Entrevista concedida a
Corina Michelon Dotti. [entrevista transcrita].
FOPPA, Catarina. Entrevistas sobre a escolarização de imigrantes italianos – RS (região
Nordeste do estado). Garibaldi, ECIRS/UCS, 1988. Entrevista concedida a Liane Beatriz
Moretto Ribeiro. [entrevista transcrita].
KREUTZ, Lúcio. O professor paroquial: magistério e imigração alemã. Pelotas: Seiva,
2004.
LUCHESE, Terciane Ângela. Singularidades na História da educação Brasileira: As escolas
comunitárias étnicas entre imigrantes italianos no Rio rande do Sul (final do século XIX e
início do século XX). Cuadernos Interculturales. Viña del Mar/Chile: Universidad de
Valparaíso, año/v.6, n.011, p.72-89, segundo semestre 2008. Disponível em:
http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/html/552/55261104/55261104_5.html. Acesso em: 25 jul.
2012.
MORETTO, Paulina Soldatelli. Entrevistas sobre a escolarização de imigrantes italianos
– RS (região Nordeste do estado). São Marcos, ECIRS/UCS, 1984. Entrevista concedida a
Liane Beatriz Moretto Ribeiro. [entrevista transcrita].
REGLA, Vitória. Entrevistas sobre a escolarização de imigrantes italianos – RS (região
Nordeste do estado). Carlos Barbosa, ECIRS/UCS, [198-]. Entrevista concedida a Liane
Beatriz Moretto Ribeiro. [entrevista transcrita].
ROSSI, Isolina. Entrevistas sobre a escolarização de imigrantes italianos – RS (região
Nordeste do estado). Caxias do Sul, ECIRS/UCS, 1985. Entrevista concedida a Liane Beatriz
Moretto Ribeiro. [entrevista transcrita].
1
Mestranda em Educação (UCS), bolsista CAPES.
Doutoranda em Educação (UFS), bolsista FAPITEC/SE.
3
Doutor em Educação (PUCSP). Professor titular, orientador do trabalho (UCS).
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INSTITUICOES ESCOLARES E PRATICAS EDUCATIVAS