1 Texto Síntese – GT 3 O Rural na História do Brasil: Campesinato, História e resistência. Márcia Maria M. Motta e Paulo Pinheiro Machado1 Coordenadores Introdução O GT 3 do presente Encontro da Rede de Estudos Rurais é uma continuação do mesmo grupo que se reuniu em Belém (2012) e tem como finalidade a discussão da historicidade das lutas no campo e as diversas dimensões que legitimam – no espaço e no tempo – o direito à terra dos pobres do meio rural. O GT objetiva refletir sobre os significados atribuídos aos conceitos de propriedade e posse na interface entre a História, as Ciências Jurídicas e a Economia. Assim, o GT analisará trabalhos focados nos estudos de transmissão de patrimônio, tendo em vista os processos de constituição de fortunas fundiárias, as querelas que envolvem o desenvolvimento de bens patrimoniais e a concentração fundiária e, por outro lado, o empobrecimento e a expropriação e expulsão de lavradores em distintos períodos históricos. Estes estudos comportam importantes diálogos com abordagens sociológicas, pedagógicas e antropológicas. O Campesinato e suas condições histórico-sociais Um número relevante de trabalhos apresentados neste GT estão ligados ao estudo de práticas, atitudes e culturas de populações camponesas tradicionais, como indígenas, quilombolas, caiçaras e caboclos. O campesinato tradicional é, em si, um grupo social de difícil definição, muito mais do que categorias étnicas, a definição destas populações ocorrem por auto identificação e/ou por reconhecimento por parte de órgãos de Estado. Mais precisamente o termo “tradicional”, extremamente impreciso e generalizante, é muito mais uma identificação em contraste com os setores “modernos”, mais fortemente vinculados à economia capitalista. Como é impossível qualquer vínculo 1 Márcia Maria Menendes Motta é professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e Paulo Pinheiro Machado é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. 2 econômico fora da economia capitalista nos dias atuais, a definição ampla da expressão “tradicional” está mais ligada aos grupos sociais que mantém uma agropecuária e um extrativismo de subsistência e de pequena escala na produção de excedentes. São grupos sociais que mantém formas coletivas de produção, antigas práticas de uso comum dos solos, pastagens e florestas. O estudo de Almir Antonio de Souza (“De quem é? As terras da Guerra do Contestado no século XIX. Os Kaingang e Vitorino Condá no Irani”) recupera as iniciativas políticas das chefias indígenas Coroadas na região dos Campos de Palmas e do Irani, durante o século XIX e revela a importância desta ação para as populações remanescentes. A expropriação de comunidades indígenas no baixo rio Madeira, Amazonas, fica clara no estudo apresentado por Ana Flávia Santos (Legislação fundiária como reserva de legalidade: conflitos pela terra no Amazonas, 1917-1931), onde a legislação fundiária estadual atuou muito mais para privilegiar um grupo de pessoas próximas da maquina do estado do que para legitimar situações de posses de indígenas e camponeses ribeirinhos. O estudo de Cristina Dallanora (“Cercamentos às avessas: direito e acesso à terra no Vale do Rio do Peixe durante a Primeira República”), sobre a resistência dos caboclos do vale do Rio do Peixe, em Santa Catarina, mostra como o cercamento de terras, as vezes, é feito para defender os lavradores contra a ação grileira da Companhia Estrada de Ferro e as especulações promovidas por sua empresa subsidiária, é digno de registro a ação de lavradores pobres via poder judiciário no período dos anos 1920 e 1930. Na mesma região, conflitos de terra e diferentes ondas de ocupação e exploração econômica do território são estudadas por Antonio Marcio Haliski em seu texto (“Reflexos de um passado recente: elementos de um rural em transformação no território do Contestado”). Populações tradicionais e suas práticas e concepções de vida também estão presentes no estudo de Ancelmo Schörner (“‘Usus, fructus e abusus’: donos e proprietários no Faxinal Rio Azul dos Soares - Rio Azul/PR”) sobre os faxinelenses do Paraná revela a permanência de práticas de uso comum de pastagens, em cercamentos próprios, que sem mantém em muitas regiões do estado, apesar da força da penetração de critérios de propriedade absoluta sobre as terras compartilhados por nova onda de ocupantes, mais ligados ao agronegócio. A luta pela terra das comunidades negras do sul da Bahia, como demonstra o estudo de Egnaldo da Silva (“Posseiros, comunidades negras rurais e grileiros: conflitos agrários no Baixo Sul da Bahia-1960-1980”), também é uma forma de resistência de comunidades tradicionais, griladas por empresários que 3 se favorecem de suas posições mais privilegiadas frente ao poder público. Mesmo assim, estas comunidades continuam lutando e tendo vitórias parciais no meio judiciário. Num contexto mais atual, as populações tradicionais do sertão nordestino, indígenas e quilombolas, habitantes há séculos do bioma “caatinga”, sofrem crescentes restrições em suas práticas de sobrevivência e manejo de recursos naturais locais, tendo em vista o rigor e a crescente fiscalização no cumprimento da atual legislação ambiental, como fica demonstrado no estudo de Janice Rodrigues Borges (“As Estratégias de Sobrevivência de Agricultores Familiares do Entorno da Estação Ecológica Raso da Catarina (BA) na seca de 2012/2013 – Conflitos entre o acesso e uso dos recursos naturais e a sobrevivência do sertanejo”). As questões climáticas e a precariedade das populações sertanejas frente a escassez de recursos hídricos são objeto de reflexão do estudo de José Ribeiro da Silva e Paulo de Jesus (“Concentração da terra e da água e a preservação do Coronelismo no Nordeste brasileiro”), onde a situação crítica viabiliza a reprodução de antigas estruturas de patronagem e subordinação política, tendo em vista a dependência da população camponesa dos serviços públicos que chegam através da mediação de grupos oligárquicos. Jogos oligárquicos e rivalidades familiares, desde o século XIX até os dias de hoje são objeto de análise do trabalho de Valdênio Meneses (“Uma antiga ‘Questão dos Bodes’: Reconversões sociais e disputas entre as famílias Neves e Fernandes na Associação de Caprinocultores de São Sebastião do Umbuzeiro-PB”). Leandro Benatto e Emílio de Britto Negreiros em estudo de município alvo de políticas estatais de apoio à agroecologia e aos camponeses pobres (“Estrutura agrária: dilemas e estratégias de reprodução social do camponês em Pão de Açúcar-AL”) identificam a reprodução de situações de marginalização social e de pobreza, quando a concentração fundiária e o acesso a água continuam a privilegiar os mesmos setores sociais que se beneficiam há muito tempo destes elementos. A própria identidade territorial do semiárido alagoano é associada à permanência de pobreza e marginalização persistente da população rural pobre, como fica demonstrado no estudo de Mailiz Garibotti Lusa(“O espaço rural no semiárido alagoano: identidade territorial e sociabilidade camponesa”). Nesta mesma região é apresentado o estudo de Cícero Ferreira de Albuquerque e Márcio de Matos Caniello sobre a Guerra dos Cabanos em Alagoas, no início da década de 1830 e sua importância dentro da história do campesinato brasileiro como importante movimento 4 de resistência (“Os pobres e livres, a luta pela terra e a formação do campesinato alagoano”). Os estudos sobre a transmissão e apropriação do patrimônio fundiário estão cada vez mais sendo desenvolvidos em escalas regionais e locais, revelando diferentes e interessantes aspectos dos processos de grilagem e concentração fundiária e, ao mesmo tempo, de resistência e sobrevivência camponesa, mesmo em regiões “típicas” de latifúndios. Eliana Ramos Ferreira estuda um processo interessante de conflito de terras no Pará, em meados do século XIX, onde costumes e legislação balizam as ações dos sujeitos (“Normas jurídicas e conflito agrário no Pará – meados do século XIX”). O estudo de Beatriz Medeiros Melo e Maria Aparecida de Moraes Silva (“Grileiros, colonizadores e sitiantes: as pelejas em torno da legitimidade da posse da terra no extremo noroeste paulista”) sobre a ocupação desta fronteira agropastoril revelam um padrão clássico de expropriação de indígenas e populações nacionais, grilagem e concentração fundiária. Na outra fronteira, mais ao sul, da expansão agropastoril paulista, temos o trabalho de Kauê Barreiros Corrêa Pessoa Guimarães (“De Sertão a Vale: a constituição da ruralidade e desenvolvimento no Vale do Paranapanema/SP”). Por outro lado, Janaína Neves de Macedo (“A legislação referente à regularização da terra em Santa Catarina no início da Primeira República: suas influências e aplicação”) revela importantes aspectos da legislação de terras em Santa Catarina, no início da República, e de como que, apesar de inicialmente privilegiar a proximidade de alguns grandes posseiros com a máquina de estado, esta mesma legislação permitiu a legitimação das posses de pequenos e médios sitiantes na região de Lages, em Santa Catarina. Original entendimento de uma abordagem baseada no conceito de “habitus”, de Bordieu, na ocupação territorial no planalto paraibano, dentro de uma redução da escala de observação permitida pelas novas metodologias biográficas, é estudado por Aldo Manoel Branquinho Nunes (“Micro-História e ‘habitus’: a biografia para o entendimento da ocupação dos ‘sertões da Borborema’”). Dinâmicas sobre a vida contemporânea do campesinato, tendo a sua formação em perspectiva, também são objeto de estudos deste grupo. Uma reflexão sobre as experiências de autogestão e de organização dos trabalhadores do campo é realizada por Lucicléa Teixeira Lins (“Autogestão nos movimentos sociais do campo na segunda metade do Século XX: a luta pela liberdade”). Um estudo da trajetória formativa e de transformação de uma comunidade rural do interior de Santa Catarina levanta uma série 5 de reflexões sobre as condições objetivas da vida rural nos dias de hoje, tendo em vista suas relações com o mundo urbano, é o que apresentam Rodrigo Kummer e Ismael Antônio Vannini (“Vicissitudes de um rural em transformação: análise da comunidade de Cerro Azul, Palma Sola/SC”). Avaliações sobre a literatura de ciências humanas sobre a questão agrária, debatida e estudada por autores clássicos brasileiros estão presentes nas reflexões de Carina Teixeira Machado (“Formação da identidade nacional e da cultura brasileira: uma releitura das heranças do período colonial”) e Leandro de Almeida (“A História Agrária como herança”). Enfim, nosso GT levanta importantes aspectos para a discussão sobre as origens, a resistência e a reprodução do campesinato nas difíceis condições políticas, sociais, ambientais e históricas da sociedade brasileira. Os estudos demonstram uma grande capacidade criativa de luta e resistência, tanto de comunidades tradicionais, como de trabalhadores do meio rural em processo de urbanização.