DA BEIRA DO RIO PARA A BEIRA DA ESTRADA:
MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA ORGANIZAÇÃO SOCIOESPACIAL DO
CAMPESINATO NA AMAZÔNIA ORIENTAL
Rafael Benevides de Sousa
Universidade Federal Fluminense - UFF
Jacob Binsztok
Universidade Federal Fluminense - UFF
Resumo
O trabalho tem como objetivo investigar a transição do sistema fluvial para o rodoviário, e suas
implicações ao campesinato na Amazônica Oriental. No texto busca-se compreender o
campesinato nesta parte da Amazônia, apresentando um histórico da passagem do sistema riovárzea-floresta para o estrada-terra-firme-subsolo. Por último, elaboramos algumas
considerações sobre o campesinato contemporâneo no interior da fronteira amazônica.
Palavras-chave: Amazônia. Campesinato. Rio-estrada.
Introdução
O espaço amazônico tem atravessado desde o século XVII por diversos ciclos
econômicos que tem culminado em rearranjos socioespaciais distintos. Desde a chegada
dos portugueses, passando pelas medidas politicas do Marquês de Pombal, o período
áureo da borracha até as transformações decorrentes a partir da década de 1950, a
Amazônia se tornou uma lugar de características diversas, não apenas biológicas, mas,
sobretudo humana e de interesses políticos, sociais e econômicos.
Nas últimas décadas a Amazônia tem sido alvo de investidas do capital cada vez mais
forte, seja a partir das construções de estradas, seja na edificação de hidrelétricas, seja
em qualquer outro projeto de ordem politico e econômico. Isto tem gerado
consequências negativas a toda diversidade biológica, cultural e social da região, que é
traduzida no embate entre um modo de vida tradicional e outro proporcionado pelo
capitalismo cada vez mais selvagem.
Neste sentido, o objetivo desse ensaio é tecer uma breve discussão acerca da transição
do sistema fluvial para o sistema terrestre, e as transformações socioespaciais do
campesinato no cenário da Amazônia Oriental. Entende-se que é quando ocorre essa
passagem do rio para a estrada que a pressão sobre a floresta se intensifica, constituindo
os latifúndios, e gerando uma classe camponesa empobrecida, envolvida nas diferentes
formas de permanência e luta pela posse da terra.
Para esta compreensão buscou-se referencias que possibilite maior entendimento sobre
este processo na Amazônia e sobre as interfaces do campesinato contemporâneo. Entre
os trabalhos consultados estão Velho (1979), Martins (1980), Oliveira (1991), Hébette
(2004), Gonçalves (2008) entre outros.
No trabalho procura-se primeiramente fazer um entendimento sobre o campesinato;
posteriormente tece-se uma discussão acerca da passagem do sistema rio-várzea-floresta
para o sistema estrada-terra firme-subsolo, e de como o campesinato amazônico
acompanha este movimento; por ultimo pretende-se apresentar algumas sinuosidades da
economia camponesa na sociedade capitalista contemporânea.
A dinâmica da produção do espaço e o campesinato amazônico
Pensar o campesinato na Amazônia e, por conseguinte a agricultura camponesa exige
um olhar atento às transformações territoriais ocorridas nesta região e a forma como
estas impactaram a organização social, o modo de vida e a identidade das populações
(indígenas, caboclas, campesinas) ali existentes. Está realidade conflituosa tem exposto
este campesinato a situações ora de desterritorialização ora de reterritorialização,
compreendidos como processos que se complementam e atuam diretamente na
recriação, na diversidade camponesa, e na emergência de multiterritórios.
Em meio a esta dinâmica territorial ocorrida na Amazônia, Hébette (2004) destaca à
metamorfose do camponês1 face aos fenômenos sóciodemográficos ocorridos na região,
ao mesmo tempo em que salienta que paralelamente a expansão do capitalismo,
vislumbra-se a construção da territorialização camponesa, seja em áreas de fronteira
agrícola ou em áreas do extrativismo tradicional.
Moreira e Hébette (2009, p. 188) em estudo realizado com o campesinato do Baixo
Amazonas e do Baixo Xingu paraense, afiançam que existem nestas regiões “vários
campesinatos históricos distribuídos em espaços e tempos diferenciados, como se
constituíssem uma amostra representativa da diversidade campesina amazônica”.
Assim, compreende-se que há na Amazônia um campesinato diversificado, que se
metamorfoseia de acordo com a realidade de cada mesorregião ou microrregião
amazônica.
Dada a essa diversidade, a relação entre o camponês e o mercado se dará também de
forma distinta, de acordo com a especificidade de cada região amazônica. Mediante a
isto, entende-se o camponês não como um ser isolado no mundo, mas como um modo
de vida e uma classe social que se reproduz na contramão ou articulado ao capital.
Uma das facetas do capitalismo no campo é a territorialização do capital que libera o
camponês da sua relação com a terra, tornando-o “livre”, ou seja, uma mercadoria,
2
desagregando seu modo de vida e a sua produção. No entanto, estudos nos apontam que
essa sujeição do camponês diante das corporações capitalistas não se tornou universal,
pois ainda é possível verificarmos comunidades rurais que vivenciam a experiência da
autonomia2 sobre seus territórios.
Para alguns autores a existência do campesinato pode ser explicada com base no
desenvolvimento contraditório capitalista3. Os meandros deste processo contraditório e
suas implicações para a sustentação do campesinato na Amazônia é tarefa que precisa
ser melhor discutida, permitindo-nos mergulhar nas particularidades e diversidades do
campesinato amazônico.
O quadro clássico do capitalismo nos mostra o capital se expandindo à custa
da expropriação e da proletarização dos trabalhadores do campo, uma coisa
produzindo necessariamente a outra. [...]. O capital se expande no campo,
expulsa, mas não proletariza necessariamente o trabalhador. É que uma parte
dos expropriados ocupa novos territórios, reconquista a autonomia do
trabalho, prática uma traição às leis do capital (MARTINS, 1980, p. 17).
Na concepção de Martins (1980), ao mesmo tempo em que o capitalismo entra no
campo expropriando e proletarizando o camponês, também gera novos territórios
camponeses. Assim, mesmo expulsos de sua terra, o homem do campo sai em busca de
terra em outro lugar, onde possa se reproduzir como camponês, agindo contrariamente
as perspectivas do capital.
Para Oliveira (1991) o processo capitalista de produção origina o desenvolvimento
desigual e combinado, que no campo se alterna entre a territorialização do capital
(quando o proprietário da terra e a indústria se tornam os mesmos sujeitos) e a
monopolização do território (quando a agricultura camponesa está subordinada ao
mercado capitalista). Tais processos geram relações sociais que se materializam de
formas antagônicas no campo, formando assim territórios distintos, sendo quase sempre
marcados por conflitos territoriais.
As relações estabelecidas dentro do território camponês têm como eixo central a
família, o trabalho e a terra (MARQUES, 2004). Esses elementos tornam-se a unidade
gerenciadora das relações que compõe a vida camponesa. Assim, os integrantes do
grupo apresentam perspectivas coletivas, buscando viver de forma solidária uns com os
outros, e lutando por projetos comuns a toda comunidade.
Na propriedade camponesa, o camponês se territorializa com base no trabalho familiar e
na forma simples de produção, que é voltada para a sobrevivência do grupo familiar em
detrimento a comercialização e do grande capital. Assim, o camponês ao se
3
territorializar, constrói territórios muito específicos, que se apresenta através dos
elementos materiais e imateriais que constituem a produção e a vida camponesa.
A partir dos acontecimentos dos séculos XX e XXI é que as comunidades
camponesas demonstram uma real habilidade para se ajustar a novas
condições e também uma grande flexibilidade para encontrar novas formas
de se adaptar e ganhar a vida. Em alguns lugares, há comunidades de
camponeses que hoje vivem principalmente do turismo. Há lugares onde as
comunidades camponesas ganham a vida com novos métodos de produção e,
em outros, os camponeses ganham a vida por meio da combinação do
trabalho camponês e do trabalho não-camponês (SHANIN, 2008, p. 24 – 25).
Destaca-se em Shanin (2008) a diversidade do campesinato anunciada no final do
século XX e início do XXI. Com isso, percebe-se que não existe um campesinato
uniforme, estático, mas um campesinato que se diferencia, tal diferença se dá entre
paises, regiões e lugares. Esta diversidade resulta do contexto histórico na qual
formação territorial da unidade camponesa está inserida.
A formação do campesinato na Amazônia está atrelada a dois sistemas de ocupação
implantados na região em momentos diferentes, constituindo uma diferenciação
camponesa na região, construída historicamente por atores sociais distintos (indígenas,
nordestinos, sulistas, caboclos, ribeirinhos, entre outros).
A produção do espaço amazônico dar-se no século XVII, com formação da tríade:
drogas do sertão – aldeamento – fortificações. Este tripé baseado numa ideologia
geopolítica, religiosa e econômica, propiciou o surgimento de vilas e cidades às
margens dos rios da região, formando os primeiros núcleos rurais e urbanos
(TAVARES, 2011).
Esta estrutura socioespacial sofre algumas alterações a partir do século XVIII, quando a
Coroa portuguesa estabelece algumas medidas, afim de legitimar seu domínio na região.
A partir de 1750, no entanto, no governo do primeiro-ministro Marques de
Pombal, tem inicio uma nova fase na adequação da Amazônia ao domínio
colonial português. Dessa vez o caráter mercantil se torna mais evidente com
a criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (GONÇALVES,
2008, p.82).
No governo pombalino foram implementados vários projetos na Amazônia. A partir da
leitura de Gonçalves (2008), inferimos que foi introduzido na Amazônia no século
XVIII, um modelo de desenvolvimento que modificaria a sociedade até então
estabelecida na região. Entre as medidas postas em práticas está, a concessão de cartas
de datas de sesmarias, introdução de mão-de-obra escrava, estímulo a produção
agrícola, entre outras medidas. Vislumbra-se a partir de então na região, o começo de
uma produção agrícola, estabelecendo o processo de ocupação do espaço amazônico.
4
Para Gonçalves (2008, p. 82), “ao longo das várzeas emerge um sistema, que combina o
extrativismo da floresta, a pesca e a agricultura, articulado, por meio dos regatões, com
as vilas e cidades”. Desse modo, a Amazônia seguiu esta tendência, com um sistema
agroflorestal, que fomentou o comércio nesse período, tendo início a partir das margens
dos rios, que deram origem aos primeiros núcleos de ocupação.
É em meio a esta dinâmica que se formará o campesinato amazônico, que se
estabelecem primeiramente as margens de rios e pequenos riachos d’água, constituindo
os primeiros núcleos rurais.
Esses indivíduos tenderam a penetrar para o interior buscando terra livre
longe dos rios principais onde se concentrava a maior parte das atividades
tradicionais. Isso constituiu um fato novo e muito importante na ocupação da
Amazônia, que imperceptivelmente enunciava uma nova era.
O seu padrão de ocupação consistia em indivíduos ou pequenos grupos de
homens penetrarem na floresta, buscando um local favorável para se
estabelecerem. Após uma busca que podia levar bastante tempo e exigir
muito esforço, em geral escolhiam um lugar próximo a um riacho (igarapé)
ou lagoa. Seria em geral num terreno que contivesse barro, considerado bom
para a produção agrícola e para a criação de porcos, além de ser bom material
de construção (VELHO, 1979, p. 201).
Partindo desta perspectiva, ratifica-se que a formação espacial do território camponês na
Amazônia esteve primeiramente conectada aos rios, principalmente ao longo do Rio
Amazonas e nas proximidades da cidade de Belém. Nesse momento nasceram varias
comunidades rurais e freguesias, que estimularam uma produção agrícola, que por meio
do sistema de roças, produziam arroz, feijão, milho, farinha de mandioca e o cultivo de
frutas como banana.
Podemos inferir em Castro (2006) que o foi através do processo de ocupação das terras
às margens dos rios, que se originou uma agricultura camponesa na Amazônia, em uma
produção diversificada, que se caracterizava tanto para a sustentação familiar, como
para o mercado de Belém, de onde era comercializado para o exterior.
Velho (1979) ao estudar o campesinato na fronteira amazônica, nos chama atenção para
duas denominações significativas: centro e beira.
O centro era onde estavam localizados os campos camponeses. Era também
definido no contexto de uma oposição à beira dos rios. A beira era
compreendida como sendo o lugar onde se situavam os povoados maiores e
mais antigos, o que se poderia referir como civilização. Em contraste, o
centro ligava-se à ideia de centro da mata, mais próximo e em contato com a
natureza incontrolada (VELHO, 1979, p. 203).
E prossegue,
A oposição centro-beira sintetiza uma serie de outras oposições através da
qual a fronteira camponesa definia a sua identidade ligada a uma expansão
continental em contaste com uma expansão anterior predominantemente
fluvial. A analogia entre litoral numa escala reduzida como o tradicional
5
dualismo brasileiro entre litoral e sertão e com a oposição turneriana entre
Leste e Oeste é clara, sendo sobretudo em relação a essa ultima, não só em
termos formais, mas na própria concepção do camponês de fronteira de si
mesmo e da sua atividade (VELHO, 1979, p. 204).
Essas definições opostas apresentadas por Velho (1970), faz parte de uma Amazônia
anterior à expansão da fronteira, antes da abertura da Belém-Brasília. Com a construção
das rodovias na região, muitos povoados novos surgiram, dando uma nova interpretação
ao cenário amazônico, visto através de uma nova denominação: beira da estrada.
Ainda neste contexto, Gonçalves (2008) nos chama atenção para dois sistemas de
ocupação distintos na Amazônia, o primeiro denominado de rio-várzea-floresta que
predominou na região até 1960, e o segundo estrada-terra firme-subsolo, que ocorre até
os dias atuais.
Em linhas gerais o sistema rio-várzea-floresta possuía uma dinâmica territorial pautada
na exploração da floresta em pé, tendo o extrativismo da borracha e da castanha como
base econômica e os rios como meio de locomoção. Já o sistema estrada-terra firmesubsolo constitui uma complexa expansão da fronteira para o interior da floresta, na
qual o valor da natureza está na terra (pecuária e agricultura) e no subsolo (minério),
tendo a estrada como um meio de ligação da Amazônia com o restante do país.
Neste sentido, é a partir da década de 1950 que ocorrerá uma maior valorização da
estrada na Amazônia, principalmente após a abertura da Belém-Brasília.
Com a construção da Belém-Brasília, inicia-se uma maior mobilidade
populacional para a Amazônia em busca de terras devolutas, sendo a mesma
responsável pelo surgimento de dezenas de vilas, povoados e cidades, o que
agravou a problemática da luta pela terra (TAVARES, 2011, p. 166).
Neste sentido, a Amazônia Oriental começa a vivenciar uma nova dinâmica
socioespacial. Se “até a década de 1960 foi em torno dos rios que se organizou a vida
das populações amazônicas” (GONÇALVES, 2008, p.79), tendo como base da
economia regional o extrativismo, tendo uma exploração dos recursos da floresta em pé,
após esta década a região entraria em uma nova geopolítica. Isto mudaria a vida do
campesinato tradicional, e o surgimento de um novo campesinato que resultou do
processo migratório, principalmente de famílias nordestinas que se estabeleceram ao
longo das rodovias.
No final dos anos 50, todavia, exatamente no Maranhão ocidental e no sul do
Pará, ocorreu uma mudança importante: a chegada da estrada Belém-Brasília.
Nos anos seguintes outras estradas ligadas à Belém-Brasília foram também
abertas. Tudo isso abriu oportunidades inesperadas para os camponeses
comercializarem a sua produção (VELHO, 1979, p. 197).
6
Com a abertura da rodovia Belém-Brasília, outras estradas também foram construídas
para o acesso a esta rodovia, e assim uma maior mobilidade de pessoas e mercadorias
foi possível na região. Assim, a partir da década de 1960, instala-se no Estado do Pará
um novo meio de deslocamento, tendo a estrada como o eixo de circulação e integração
econômica, político, social e territorial.
A rodovia Belém-Brasília é fruto do projeto de integração da Amazônia no governo do
presidente Juscelino Kubitschek. Após esta estrada muitas outras foram planejadas e
construídas, como a Transamazônica, Cuiabá-Santarém, entre outras.
Em estudos realizados em comunidades rurais no nordeste paraense, Sousa e Macedo
(2011) nos chamam atenção para a transição do rio para a estrada, após a abertura da PA
140.
A abertura da rodovia PA-140, na segunda metade do século XX, pôs em
curso mudanças à dinâmica sócio-espacial, tanto do Cravo como de São
Judas, que se evidenciaram mais nitidamente no limiar do século XX. À
medida que o contato com a cidade de Belém se intensificou, verificaram-se
alterações significativas na relação sociedade-natureza, particularmente com
relação ao rio Bujaru (afluente do rio Guamá), que até então era utilizado
como principal meio de transporte de pessoas e de mercadorias. Num
primeiro momento, transfere-se para a estrada apenas o transporte de pessoas
e, em menor proporção, o transporte de mercadorias (farinha de mandioca,
milho, feijão de corda, frutas e outros) que permanece, até fins da década de
1980, alternando-se entre o rio e rodovia. De forma efetiva, a suplantação do
transporte fluvial pelo transporte rodoviário ocorreu apenas em meados da
década de 1990 (SOUSA & MACEDO, 2011, p. 4).
Partindo deste ponto de vista, percebe-se que os núcleos rurais ao longo do tempo foram
perdendo o contato direto com o rio. Contudo, nota-se que apesar de a rodovia PA-140
ter sido construída na década de 1970, apenas na década de 1990 é que os camponeses
se voltam efetivamente para a estrada, ou seja, esta transição rio-estrada aconteceu de
forma gradativa.
No entanto é precisa frisar que grande parte da Amazônia Ocidental ainda experimenta
como meio de circulação os rios, e principalmente na foz do Amazonas, onde se
encontra o arquipélago do Marajó. Outro ponto importante, é que as famílias que
vivenciam a dinâmica dos rios, continuam sobrevivendo do extrativismo e da pesca.
Porém, há uma tendência cada vez maior do capital se adentrar nesses espaços
amazônicos, principalmente na valorização de óleos e essenciais naturais da floresta.
Retornando à Velho (1979), entende-se que quando esse camponês se integra a uma
malha rodoviária, escoando sua produção, ele tende a se desmarginalizar, na medida em
que consegue comercializar a sua produção de forma satisfatória, contudo o camponês
não deixa de estar subordinado ao capital.
7
Apesar de alguns autores afirmarem que os camponeses tendem a desaparecer mediante
ao avanço do modo de produção capitalista, tendo que se refugiar ao trabalho
assalariado para prosseguirem a viver. Para Moura (1988, p. 17-18) “é correto falar em
recriação, redefinição e até diversificação do campesinato do que fazer uma afirmação
finalista”. Seguindo este raciocínio, interpreta-se que houve na Amazônia Oriental uma
metamorfose com o campesinato que tinha uma estética de vida ligada ao rio, e passou a
integrar em seu modo de vida uma especificidade com a estrada, com uma integração
maior ao mercado. Mesmo com toda a restruturação do espaço agrário amazônico a
partir da década de 1950, o campesinato não se desestruturou, mas o contrário, tem-se
organizado
e
enfrentado
as corporações capitalistas (mineradoras, pecuária,
agroindústria-soja, dendê, eucalipto) para conquistar a terra ou para se firmar nela.
Apesar do camponês está subordinado ao capital, isso não significa que a sua
sobrevivência esta dependente exclusivamente do mercado.
A lógica da produção camponesa sendo diferente da produção capitalista, é
possível para o camponês vender o seu produto a preços que para o
capitalista representariam um prejuízo. [...]. A sua necessidade de utilizar
plenamente a força de trabalho familiar permite, através de uma espécie de
‘sobretrabalho’, que venda barato. Por outro lado, ao não se ‘remunerar’ e a
sua família, é também capaz de resistir melhor do que um capitalista a uma
situação onde os preços são baixos ou onde não existem compradores para o
seu produto, recuando para a subsistência (VELHO, 1979, p. 199).
Neste sentido, percebe-se que a economia camponesa consegue ser mais eficaz, na
medida em que não depende exclusivamente do capital, mas sim do próprio núcleo
familiar. O camponês sendo o proprietário de todos os elementos de sua propriedade, o
seu relacionamento com o capital se dará apenas na venda do fruto do seu trabalho,
chegando ao mercado com a mercadoria pronta, sendo que na confecção dessa
mercadoria não houve uma relação de assalariado, como na indústria, mas uma
produção partindo de uma relação do trabalho familiar, na qual quem participa da
confecção produtiva é o pai, a mãe e os filhos.
Quando o trabalhador vende diretamente a sua força de trabalho, essa
socialização mediada pela troca o atinge diretamente. A mercadoria que ai
nasce é produto do trabalho combinado, social, socializado, de muitos
trabalhadores. Quando, porém, o trabalhador é proprietário dos seus
instrumentos de trabalho, suas ferramentas, sua terra, esse processo atinge o
fruto do seu trabalho, mas não o atinge diretamente. Ele comparece perante a
sociedade, perante o mercado, sozinho, dono das coisas que produziu, quando
muito, junto com sua família, isolado e isoladamente. [...]. O capital é essa
força que procura expropriar o lavrador, ou pelo menos submeter o seu
trabalhado, da terra, para que, ao invés do lavrador trabalhar livremente para
si mesmo, passe a trabalhar para ele, capital, como acontece com os operários
(MARTINS, 1980, p.15).
8
Em Martins (1980), fica claro a diferença entre o trabalho camponês e o trabalho do
proletariado. Na reprodução camponesa, o indivíduo é dono de sua propriedade e de
seus instrumentos, sendo donos de sua força de trabalho, apresentando-se ao mercado
como um trabalhador livre, diferente do assalariado que vendendo sua força de trabalho,
depara-se preso a um sistema opressor.
Para Oliveira (2007) a criação e a recriação do campesinato resultam do próprio
desenvolvimento do capitalista, desta forma,
O estudo da agricultura brasileira deve ser feito levando-se em conta que o
processo de desenvolvimento do modo capitalista de produção no território
brasileiro é contraditório e combinado. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo
em que esse desenvolvimento avança reproduzindo relações especificamente
capitalistas (implantando o trabalho assalariado pela presença no campo do
bóia-fria), ele (o capitalismo) produz também, igual e contraditoriamente,
relações camponesas de produção (pela presença e aumento do trabalho
familiar no campo) ( OLIVEIRA, 2007, p. 73).
Nesta concepção de Oliveira (2007), compreendemos a relação entre o capitalismo e o
campesinato, pois a apesar de os princípios capitalistas sugerirem modificações crucias
na produção camponesa, ele (o capitalismo) não destrói totalmente a produção familiar.
Oliveira (1991) afirma ainda que ao passo que ocorre o avanço da propriedade
capitalista no campo, contraditoriamente, ocorre o avanço a propriedade camponesa.
Neste sentido, a contradição do capital só é possível, em virtude da resistência
camponesa e dos movimentos sociais que cada vez mais vem pressionando o governo
para a liberação de novos assentamentos rurais, e por meio da luta campesina, na qual o
homem consegue adentrar na terra e se reproduzir socialmente.
Ao estudar a organização interna do campesinato, Chayanov (1981) nos aponta, que da
mesma forma que encontramos relações capitalistas no campo, concomitantemente,
encontramos relações não-capitalistas, na qual o campesinato esta inserido. Chayanov
(1981) compreende ainda, que o trabalho na agricultura camponesa se apresenta como
uma forma de manter a sobrevivência da família, sendo através do trabalho na terra que
os camponeses conseguem o próprio sustento, estabelecendo uma relação trabalho consumo.
O produto do trabalho indivisível de uma família, e por conseguinte a
prosperidade da exploração familiar, não aumentam de maneira tão marcante
quanto o rendimento de uma unidade econômica capitalista influenciada
pelos mesmos fatores, porque o camponês trabalhador, ao perceber o
aumento da produtividade do trabalho, inevitavelmente equilibrará os fatores
econômicos internos de sua granja, ou seja, com menor auto-exploração de
sua capacidade de trabalho. Ele satisfaz melhor as necessidades de sua
família, com menor dispêndio de trabalho, e reduz assim a intensidade
técnica do conjunto de sua atividade econômica (CHAYANOV, 1981, p.
141).
9
A organização da propriedade camponesa na concepção de Chayanov (1981), sempre
busca satisfazer a necessidade da família, sendo, portanto uma integração de produção e
consumo, ou seja, há um balanceamento entre o trabalho e o consumo. Assim, o
trabalho da família será medido mediante a necessidade do grupo familiar, o que
Chayanov vai chamar de “economia doméstica”.
Na Amazônia o modo de vida camponês se insere em uma dinâmica produtiva que se
difere dentro da região, não estando ligada apenas a agricultura tradicional, mas também
a pesca artesanal e a varias formas de extrativismo (MOREIRA & HÉBETE, 2009).
Com isso, percebe-se há uma diferenciação dentro do campesinato, que se expressa de
forma diferente em diversos lugares, mas que continua identificado como tal.
Hébette et al (2004) ressalta que há na Amazônia um campesinato que parte de uma
natureza que consiste muito próximo ao estágio de produção que antecedente ao
capitalismo, na qual as transformações na agricultura camponesa têm se apresentado de
forma muito lenta as mudanças na unidade produtiva. No entanto, é preciso frisar, que o
mesmo camponês de um lugar não é o mesmo em outro, ou seja, não podemos entender
o campesinato amazônico apenas por um entendimento conceitual.
A persistência do campesinato no interior de uma sociedade globalmente
subordinada ao capital e numa área de influencia progressivamente,
penetrante por relações tipicamente capitalistas de produção apóia-se no
intercambio espontâneo entre unidades camponesas e em relações mercantis
com o comércio local (HÉBETTE et.al., 2004, p. 151).
Em estudos sobre a expansão da fronteira na Amazônia, Hébette et. al (2004), nos
esclarece que as relações na unidade camponesa não tem um principio baseado no
capitalismo moderno, mas basicamente através das redes de vizinhança e com o
comércio local, que se estabelece por meio da reciprocidade e sociabilidade na
comunidade rural. No entanto, estas redes estão cada vez mais sendo apropriadas pelo
capitalismo, sendo denominas de Capital social.
Assim, o entendimento dos meandros da agricultura camponesa, constitui-se a partir da
compreensão da vida do camponês, e da complexa relação entre os elementos que
constitui e gerenciam a unidade territorial na qual se insere, seja no rio, seja na estrada.
Com isso, dada à diversidade do campesinato amazônico (MOREIRA & HÉBETE,
2009), as implicações capitalistas na agricultura camponesa (VELHO, 1979;
MARTINS, 1980; OLIVEIRA, 1991), e a construção de uma economia domestica
baseada no equilíbrio trabalho-consumo (CHAYANOV, 1981), podemos afirmar que o
campesinato tem-se recriado dentro da sociedade capitalista contemporânea.
10
Considerações finais
A organização socioespacial da Amazônia oriental no século XXI tem sido estruturada a
partir das estradas. Se no passado os rios tiveram uma grande importância no
deslocamento de mercadorias e de pessoas, hoje nessa parte amazônica a estrada é o
principal meio de condução, principalmente para o restante do Brasil.
Percebeu-se que foi com a abertura da rodovia Belém-Brasília, que se iniciou a
passagem do rio para a estrada, ou seja, é a partir desta rodovia que a Amazônia passa a
enveredar por outro processo logístico. Saindo da beira do rio e indo para a beira da
estrada.
Ao longo do texto viu-se que a transição do rio para a estrada gerou algumas mudanças
na vida camponesa na Amazônia, contudo não alterou por completo, na medida em que
o campesinato continua com o modo de vida próprio, reproduzindo-se socialmente na
contramão do capital.
Notas
1
Neste trabalho entende-se que o camponês é a “personificação da forma de produção simples de
mercadorias, na qual o produtor direto detém a propriedade dos meios de produção – (terra, objeto de
trabalho e outros meios de trabalho) – e trabalha com estes meios de produção. Esta combinação de
elementos faz com que o camponês se apresente no mercado como vendedor dos produtos de seu
trabalho, como produtor direto de mercadorias. Como produtor, venderá seus produtos para adquirir
outros, qualitativamente diferentes, que possam satisfazer suas necessidades de consumo individual ou
produtivo” (SANTOS, 1984, p. 69).
2
O entendimento de autonomia neste trabalho “não significa, de forma alguma, uma espécie de
fechamento do lugar com relação ao restante do mundo. Ao contrario, significa a capacidade de controle e
gestão de determinados processos políticos, econômicos, culturais e ambientais, de maneira que os
sujeitos envolvidos diretamente em cada processo possam definir os planos e projetos em consonância
com atores e processos de outros lugares” (SAQUET & SPOSITO, 2008, p. 28).
3
Ver Martins (1980), Moura (1988), Oliveira (1991, 2004), Marques ( 2004, 2008), Bombardi (2004),
entre outros.
Referências
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Águas e Ilhas. Belém: CEJUP, 2006, p. 137-160.
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HÉBETTE, J. Que Amazônia foi construída nos últimos 25 anos?. In: HÉBETTE, J.
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11
HÉBETTE, J. et al. Cruzando uma zona de fronteira em conflitos: o leste do Médio
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