COMUNICAÇÃO EM ÁUDIO E
VÍDEO - DOCUMENTÁRIO
Prof. Franthiesco Ballerini
www.franthiescoballerini.com
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REFLEXÕES SOBRE O DOCUMENTÁRIO
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Debate entre Eduardo Escorel e João Moreira
Salles
Entre final de junho e início de julho de 2005, um
grupo de documentaristas se encontrou em Paris para
discutir o futuro da profissão. O motivo foi o festival
Melhor do documentário brasileiro, que exibiu 23
filmes, entre os quais Entreatos e Cabra marcado
para morrer.
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Com o patrocínio da prefeitura da capital francesa,
Amir Labaki, José Carlos Avellar, Jom Tob Azulay,
João Moreira Salles, José Padilha, Eduardo Coutinho,
Consuelo Lins e Eduardo Escorel participaram de
uma mesa redonda. O site NoMínimo publicou a
palestra de Escorel e a resposta de Salles, que seguem
abaixo:
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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O diretor de documentários enfrenta, hoje em dia,
alguns dilemas, não importa qual seja o país em
que trabalhe. Mas há no Brasil opções específicas
a fazer que podem chegar a pôr em questão a
própria legitimidade dessa prática profissional.
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Seriam quatro, a meu ver, esses dilemas
fundamentais: o da (1o) obsolescência; o da (2o)
incongruência; o da (3o) indisponibilidade e o da
(4o) sobrevivência. Acredito que seja das escolhas
feitas diante de cada um deles que resulta a
maior ou menor relevância, originalidade,
interesse e razão de ser dos documentários que
vêm sendo produzidos em nosso país.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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Com premonição própria da ficção, o filme "Ladrões de
cinema" (dirigido por Fernando Cony Campos em
1977) já nos alertara, há quase 30 anos, para a
circunstância de que a profissão de cineasta estava se
tornando obsoleta. No filme, moradores de uma favela
do Rio de Janeiro roubam a câmera e o gravador de
uma equipe de norte-americanos que estão filmando o
desfile de uma Escola de Samba. Em vez de vender o
equipamento, resolvem fazer um filme a ser dirigido
pela dupla Luquinha e Fuleiro. Luquinha, de JeanLuc (Godard) e Lucchino (Visconti). Fuleiro, de
(Samuel) Fuller. Tendo aprendido de um personagem
chamado Claude Rouch que é preciso ter negativo na
câmera para poder filmar, os ladrões de cinema
assumem eles mesmos a direção do filme sobre
Tiradentes e demonstram como pode ser dispensável
a presença de um diretor profissional nas filmagens.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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Passadas três décadas desde que "Ladrões de cinema" foi
feito, não é mais necessário roubar equipamento para
reafirmar a desnecessidade do diretor. Comunidades
indígenas no Alto Amazonas têm acesso a cursos de
formação técnica, câmeras e ilhas de edição através do
projeto Video nas aldeias que forma realizadores indígenas,
desde 1977, entre 23 povos em 4 estados da Amazônia
legal. O mesmo ocorre em favelas do Rio de Janeiro, aonde
a entidade Nós do cinema dedica-se à formação de jovens
carentes em diversas especializações do audiovisual e a
Central única das favelas – CUFA formou, em 2004, a
terceira turma de audiovisual. Indígenas e moradores das
comunidades urbanas carentes tomaram em suas mãos a
tarefa de registrar suas próprias imagens, tornando
obsoleta a mediação do cineasta profissional. Esse é o
primeiro dilema que deve induz o realizador de
documentários, no mínimo, a procurar redefinir sua função
e temática preferencial.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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Outra comprovação desse primeiro dilema poderia ser
feita tomando-se como exemplo um evento recente
que chegou a ser comparado à Marcha do Sal,
liderada por Gandhi em 1930, na qual 2 milhões de
indianos desafiaram a taxação imposta pelos ingleses.
Em versão bem mais modesta, 12.200 integrantes do
Movimento dos Sem-Terra (MST) percorreram, no
início de maio deste ano, 205 quilômetros em 16 dias,
chegando a Brasília para protestar contra a política
econômica do governo e apresentar ao presidente da
República a reivindicação de que a reforma agrária
seja efetivada, assentando 400 mil famílias ao longo
do seu mandato. Essa teria sido, segundo a avaliação
da imprensa, a "maior marcha de reivindicação social
da história do País."
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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À parte o possível exagero da comparação com a marcha
indiana, não resta dúvida de que o evento brasileiro
poderia ser tema de vários documentários. Sabemos que
gravações foram feitas por jornalistas turcos para a CNN
da Turquia e por equipes da Suécia, Coréia e Itália.
Registros jornalísticos também foram exibidos nos telejornais das emissoras de televisão brasileiras e é provável
que integrantes do próprio MST tenham feito algum gênero
de gravação. E os documentaristas brasileiros? Terão
acompanhado a marcha? Até onde soubemos, um registro
foi feito pelo fotógrafo Alberto Bellezia Neto. Ainda assim,
considerando a significação atribuída ao evento, diria que a
presença desse câmera solitário não chega a alterar a
impressão de que os realizadores de documentários
estiveram ausentes, pecando por omissão diante de eventos
significativos da nossa história contemporânea e
ratificando, dessa maneira, sua irrelevância.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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O segundo dilema, da incongruência, pode ser exemplificado
pela situação vivida por uma dupla de documentaristas
(Ricardo Stein e eu mesmo) quando gravavam, em fevereiro
deste ano, a reunião de 300 pequenos agricultores na fábrica
de farinha de Inhapi, cidade com 20.000 habitantes da região
semi-árida do estado de Alagoas. Um dos principais objetivos
do encontro era a renegociação das dívidas com o Banco do
Nordeste, de maneira que os agricultores pudessem tomar
novos empréstimos que garantissem o plantio da próxima
safra. A maior dívida entre os participantes da reunião
chegava a 15 mil reais, resultante de um empréstimo inicial de
7 mil reais somados aos juros acumulados. A equipe de
gravação, por sua vez, estava gastando quantia equivalente a
essa, mais do que a maioria das dívidas individuais que
estavam sendo negociadas, apenas para se deslocar do Rio de
Janeiro até Alagoas, cobrir custos de hospedagem e
alimentação, e pagar a locação de equipamento e aquisição de
fitas. Esse é o antigo dilema da incongruência, que pode ser
dilacerante em um país, como o Brasil, de extrema
desigualdade social, onde pessoas que participam de um
documentário muitas vezes dependem apenas para sobreviver
de uma parcela infinitesimal do custo da gravação.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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O terceiro dilema se evidencia quando lembramos do
documentário chinês "A oeste dos trilhos", realizado por Wang
Bing em 2003, a respeito do qual Dominique Paini falou na
"disponibilidade absoluta para o tempo e o espaço" como sendo
um aspecto essencial dessa saga de 9 horas, gravada ao longo
de três anos. Uma das maiores virtudes do documentário de
Wang Bing seria, segundo Dominique Paini, o fato do "sentido
advir pelo ato de filmar, no momento mesmo da gravação,
deixando se apresentar diante da câmera a paisagem e os
personagens". Em um modelo de produção como o que vigora
no Brasil, regido por normas burocráticas e dependente de
favores fiscais do Estado, parece duvidoso que projetos
semelhantes possam ser realizados, no que diz respeito à
duração da gravação, do documentário editado em si, e à
disponibilidade do realizador para "o tempo e o espaço". O
terceiro dilema, nomeado aqui como o da indisponiblidade,
resulta, portanto, do fato dos projetos serem condicionados
pela obrigatoriedade de atender regulamentos e exigências
legais em sua formulação e pelo limite estrito de tempo que se
pode dedicar a eles em sua realização.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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A potencialização do que levou o cineasta polonês Krzysztof
Kieslowski a abandonar o cinema documentário constitui o
quarto dilema. Kieslowski percebeu, durante a realização
de "Estação", em 1981, que a vida da pessoa filmada pode
ser afetada pela própria filmagem. Para ele, "todo
realizador de filmes não-ficcionais acaba percebendo um dia
os limites que não podem ser ultrapassados – aqueles além
dos quais arriscamos causar dano a quem filmamos",
conforme declarou à revista "Positif". No Brasil, não se
trata apenas de afetar quem é filmado. Abordar certos
temas e fazer gravações em certos lugares pode resultar em
ameaça à própria vida de quem realiza e de quem participa
da filmagem. Pelo menos um documentário teria deixado de
ser exibido para não pôr em risco a vida das pessoas
envolvidas na sua realização ("Falcão – Meninos do tráfico",
realizado em 2003 por MV Bill e produzido pela Central
única das favelas – CUFA). Ainda assim, os 16 jovens
ouvidos no mesmo documentário teriam sido assassinados
nos dois anos seguintes às gravações. O dilema da
sobrevivência surge quando o medo prevalece nas relações
entre moradores de comunidades, policiais e cineastas.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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Há três anos, João Moreira Salles, já se perguntava onde
estavam as imagens da tragédia do Grande Rio em que as
estatísticas mais recentes indicam a ocorrência de 97
assassinatos por mês em um total de 1.167 casos em 2004.
Segundo ele, esses registros visuais "não estão em lugar
nenhum", existindo, nas suas palavras, uma "tradição
brasileira, trágica, de silêncio visual sobre a violência". Mesmo
que não pareça existir, de fato, conforme João observou, "um
corpo de imagens que configure uma tradição", creio que talvez
haja uma certa injustiça nessa conclusão, ao menos no que diz
respeito ao foto-jornalismo brasileiro em que há alguns
registros eloqüentes de vítimas da violência policial. No caso
do cinema documentário, porém, João Moreira Salles parece
ter razão ao afirmar que "o momento do fogo, da violência, não
se fotografa". Quase sempre, o que temos, nas suas palavras,
são apenas réquiens, imagens registradas depois das
atrocidades terem sido cometidas. Fica, dessa maneira,
configurada a dívida dos documentaristas com as vítimas
desse quadro de violência. Dívida cuja origem acredito estar,
em parte ao menos, nos 4 dilemas relacionados acima.
O FUTURO DO DOCUMENTÁRIO
EDUARDO ESCOREL
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Há ainda um quinto dilema, mas que não é exclusivo
do documentarista brasileiro. Foi também Krzysztof
Kieslowski, salvo engano, quem o formulou pela
primeira vez com maior precisão quando declarou à
televisão francesa que "a câmera documentária não
tem o direito de entrar no que mais [me] interessa, a
vida íntima, privada, dos indivíduos. Preferi comprar
glicerina na farmácia e os atores simularem choro do
que filmar pessoais reais chorando, ou fazendo amor,
ou morrendo."
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Esses quatro ou cinco dilemas podem levar à
desistência, opção compreensível e respeitável feita
por Kieslowski. Ou então, constituírem o desafio que
nos motiva a persistir, procurando redefinir, a cada
filme, nossa função e a fronteira entre os gêneros na
tentativa de decifrar esse enigma chamado Brasil.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Com seu rigor habitual, Eduardo Escorel nos
apresentou uma síntese extraordinária dos dilemas
que enfrentamos como documentaristas brasileiros.
Poderíamos chamar essas razões de razões negativas,
no sentido de que nenhuma delas torna nossa vida
mais fácil, e algumas podem até inviabilizar nossa
prática profissional. Embora eu seja essencialmente
um cético, quero partir das razões negativas de
Escorel para, quem sabe, descobrir se delas somos
capazes de extrair algumas razões positivas que
expliquem por que, apesar de todos os problemas,
continuamos a fazer documentário no Brasil. Em
suma, contra a minha própria natureza, pretendo ser
otimista.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Quando, em 2001, falei da nossa propensão a fazer réquiens,
quando disse que tínhamos uma dívida com o tema da
violência, tomei como referência a história das representações
de conflito no Brasil e, a partir dela, inferi o futuro. Olhei para
trás e projetei o que vinha pela frente. Não errei
completamente, mas errei assim mesmo. Não deixou de ser
verdade que, salvo em raríssimos momentos, todos eles pontos
fora da curva, a imprensa brasileira continua a omitir as
imagens da violência cotidiana que vai fazendo seu serviço
implacável nas comunidades pobres das cidades e do campo. É
sempre bom lembrar que, só na cidade do Rio de Janeiro e seu
entorno, morreram mais pessoas assassinadas durante os
quatro anos em que aconteceu o cerco a Sarajevo do que na
própria cidade sitiada. Simplesmente não conhecemos o
registro visual dessas atrocidades. Mas quando fiz aquela
comunicação oral, há apenas quatro anos, o cinema brasileiro
ainda não havia produzido alguns dos filmes mais marcantes
dos últimos tempos. Não conhecíamos "Ônibus 174", "O
prisioneiro da grade de ferro" nem "Cidade de Deus". De certa
forma, parte dessa dívida vem sendo saldada, e bem.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Isso me leva aos dilemas da obsolescência e da
incongruência mencionados por Escorel. Não existe
documentarista brasileiro que não os tenha sentido
nas tripas. Acho, porém, que talvez tenhamos
conseguido driblar esses dilemas – se não
inteiramente, ao menos em parte – com o antídoto da
ambição. Seria justo reconhecer que nosso cinema, ao
contrário de certas cinematografias infinitamente
mais bem estruturadas, é essencialmente um cinema
ambicioso. Falo de ambição no sentido de investigar o
país, de desvendar o que Escorel chama de o nosso
"enigma". E nesse aspecto o documentário brasileiro
tem apresentado bons serviços.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Foi ele, e não a ficção, que chegou antes ao problema da
violência. Foi ele que tratou primeiro das novas manifestações
culturais da periferia, do funk ao hip-hop. Foi ele que, com
Eduardo Coutinho, primeiro propôs um cinema da
normalidade, das coisas não-extraordinárias, um ingrediente
essencial do grande cinema argentino, ainda escasso no nosso
cinema de ficção. E agora, diante dos problemas políticos que
enfrentamos no país, temos neste festival um filme como "A
vocação do poder", de Escorel e José Joffily, que investiga as
boas e as más razões que levam as pessoas a querer ingressar
na vida política. Nada remotamente parecido pode ser
encontrado no cinema de ficção. Nós, documentaristas,
também chegamos antes ao tema da política institucional. É
claro que não pretendo aqui estabelecer um Fla x Flu entre
ficção e não-ficção. Por ser mais ágil e menos custoso, é
natural que o documentário consiga chegar antes aos temas.
Cabe à ficção vir depois e, com a força do sonho, propor esses
temas para um público bem maior. A ficção tem cumprido esse
papel. Nós temos cumprido o nosso.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Tudo isso me leva ao paradoxo da obsolescência.
Se temos cumprido essa função antecipatória, por
que a sensação de que não somos mais centrais?
Porque de fato deixamos de ser. Aliás, nunca
fomos, mas agora, pelas razões aventadas por
Escorel, somos ainda menos. E isso,
curiosamente, poderá ser a nossa eventual
salvação. Escorel fala em obsolescência; eu
prefiro usar o termo deslocamento. O diretor
branco de classe média não é mais o único que
filma. Não temos mais a prerrogativa da
exclusividade. Seria o caso de dizer que as novas
tecnologias representam a nossa Bastilha; e nós,
evidentemente, fazemos parte do Ancien Regime.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Porém, nesse ponto é preciso soar uma nota de
cautela: embora aceitando a premissa, duvido que por
si só o acesso à tecnologia seja capaz de deflagrar mil
primaveras nos meios audiovisuais. Desconfio que,
não obstante as centenas de Bastilhas que venham a
cair, o território da criação será sempre aristocrático.
Na hora agá, o único valor que conta é o privilégio de
nascença a que chamamos de dom ou de talento. Em
outras palavras, a questão não é o índio filmar. A
questão é o índio filmar bem. E talvez ainda mais: é
preciso que o índio queira filmar. Assim como eu não
tenho nenhum desejo de dançar o quarup, e por isso
nunca o dançarei direito, os povos da floresta só
produzirão bons filmes se quiserem e souberem
filmar. Essas duas condições são perfeitamente
realizáveis. Tomara que se realizem.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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E nós então? O que faremos quando índios, sertanejos e favelados
começarem a fazer bons filmes? Arrisco a seguinte resposta: nós nos
libertaremos da tirania do tema único. Durante tempo demais nosso
cinema documental foi um cinema feito por quem tem, filmando quem
tem menos, ou nada tem. É o cinema do drama social brasileiro. O
sentimento pode ser bom; os filmes, nem tanto. Há uma certa
monotonia de ênfase, de indignação. Há muito dedo em riste, muita
pedagogia utilitária, muito sentimento piedoso. A obsolescência nos
permitirá, finalmente, reivindicar nosso direito a um cinema inútil.
Inútil não no sentido de se comprazer com a auto-indulgência, mas de
buscar em si mesmo sua razão de ser, não precisando existir senão
para si mesmo. Será bom ver um cinema sem utilidades conviver com
o cinema social, que continuará a existir, mas agora não
exclusivamente. Desconfio que já estejamos vivendo o início desse
processo. Há filmes maravilhosamente inúteis sendo realizados no
Brasil. Penso no "Fim dos sem-fim", um belo e melancólico registro
das profissões que caem em desuso e desaparecem; penso no
"Passaporte húngaro", de Sandra Kogut, nos ensaios visuais de Carlos
Nader, no cinema documental de Minas Gerais, que julgo o mais
interessante do país; e de certa forma penso também em quase todos
os filmes mais recentes de Eduardo Coutinho, todos eles
absolutamente inúteis, e por isso mesmo tão notáveis.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Imagino que o cinema inútil saberá encontrar
formas alternativas de se financiar. Acredito nos
cineastas de domingo, no desejo de filmar por
filmar; acredito que televisões de fora começarão
a admirar as histórias de um país que, para
grande espanto delas, já não será feito apenas de
violência ou de brisa do mar. Imagino que os
conhecedores da tradição documental se
surpreenderão com a originalidade formal de
filmes que vêm sendo produzidos quase
clandestinamente no Brasil. Espero que
produtores brasileiros saibam reconhecer essa
riqueza.
O CINEMA INÚTIL
JOÃO MOREIRA SALLES
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Por último, penso no "Prisioneiro da grade ferro",
cujo grande mérito não é o tema, mas a maneira
como o tema é tratado. Esse é um dos efeitos
colaterais do cinema inútil: quando nos livramos
do dever de consertar o mundo, temos tempo de
refletir sobre as pequenas belezas da nossa
profissão. Em geral isso produz um deslocamento
da atenção, que migra do tema para a maneira de
narrar; o olho que olhava para fora volta-se para
dentro. Para quem conhece a história do
documentário, esses são os momentos espantosos.
É quando a história é reescrita.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Um. Nossas fantasias e nossas necessidades são
roteirizadas. Uma mão invisível alinha os
processos supostos a nos conduzir. As sociedades
deslizam-se vagarosamente da época das
representações – teatro das instituições,
comédias ou tragédias dos poderes, espetáculo
das relações de força – àquela das programações:
da cena ao roteiro. Ao cidadão não é mais
solicitado tanto ser um espectador – engrenagem
da representação e, ao mesmo tempo, ator por
delegação – quanto a permanecer no seu lugar de
consumidor, impotente até mesmo para
compreender o programa do qual ele participa.
Demasiadamente desigual, o jogo não é mais um.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Face a esta crescente roteirização das relações sociais e
intersubjetivas tal como é divulgada (e finalmente garantida) pelo
modelo “realista” da telenovela, o documentário não tem outra escolha
a não ser se realizar sob o risco do real. O imperativo de “como filmar”
– coração do trabalho do cineasta – coloca-se como a mais violenta
necessidade: não mais como fazer o filme, mas como fazer para que
haja filme? A prática do cinema documentário não depende, em
última análise, nem dos circuitos de financiamento, nem das
possibilidades de difusão, mas simplesmente do bem querer – da boa
graça – de quem ou o quê escolhemos para filmar: indivíduos,
instituições, grupos. O desejo está no posto de comando. As condições
da experiência fazem parte da experiência. Abrindo-se àquilo que
ameaça sua própria possibilidade (o real que ameaça a cena), o
cinema documentário resgata, ao mesmo tempo, a possibilidade da
continuidade da representação: é a trilha do documentário que
serpenteia de “Alemanha Ano Zero” (Roberto Rossellini) a “Pela
Continuação do Mundo” (Pierre Perrault), de “Pouco a Pouco” (Jean
Rouch) a “E a Vida Continua” (Abbas Kiarostami). Os filmes
documentários não são somente abertos para o mundo: eles são
atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se apresentam
de uma maneira mais forte que eles mesmos, maneira que os
ultrapassa e, ao mesmo tempo, os funda.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Dois. Hoje em dia os roteiros não se contentam mais em
organizar o cinema de ficção, os filmes de televisão, os jogos
de vídeo, as agências matrimoniais, os simuladores de vôo.
A ambição deles ultrapassa o domínio das produções do
imaginário para colocar em sua responsabilidade as linhas
de ordem que enquadram aquilo que se deve precisamente
nomear “nossas” realidades: da bolsa de valores às
pesquisas, passando pela publicidade, meteorologia e
comércio. Os “previsionistas” não são utopistas e o poder
dos programadores não é virtual. Assim, mil modelos
regulam os dispositivos sociais e econômicos que nos
mantêm em sua dependência. Mas todos procedem de um
motivo único: o homem, ser da linguagem que a linguagem
ultrapassa, manifesta que está, não faz muito tempo, em
condições de assegurar a maestria sobre o mundo,
traduzindo-o numa “língua”, aquela do roteiro, que será,
ela, inteiramente governável (como podem ser a línguas da
cibernética, da informática, da genética, da estatística....).
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Por isso é que os roteiros, que se instalam em todo
lugar para agir (e pensar) em nosso lugar, se querem
totalizantes, para não dizer totalitários. Programas
que não se ocupam daquilo que está no real e lhes
escapa, que se imaginam sem restos, sem
exterioridade, sem tudo que seria fora do cálculo
(como se fala de extra-campo ou extra-cena). A versão
do mundo que eles nos propõem é acabada, descrição
fechada. Ora, é uma sorte (para nós) que o mundo
tomado na tela dos cálculos esperneia, permanece
impalpável, além do perfeito e do imperfeito. Se
precisasse de um exemplo cruel, este seria aquele da
guerra moderna, cada vez mais programática
(propagandista) e programada (idealizada), porém, da
mesma maneira, trincada pela distância que não se
deixa encurtar entre as telas dos computadores e a
lama dos caminhos.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Longe de “toda-ficção de tudo”, o cinema documentário tem,
portanto, a chance de se ocupar das fissuras do real,
daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo,
o excluído, a parte maldita. Pensemos, por exemplo, “nessas
pessoas dos barracos” filmadas por Robert Bozzi, mas
também em “Júlia”, filmada por Dominique Gros ou nas
crianças de “Grandes como o Mundo”, de Denis Gheerbrant
– mas poderiam ser ainda os heróis de “Moi, un Noir”, Jean
Rouch, ou mesmo aquele herói de “Nanook”, Robert
Flaherty. Estes personagens são precisamente aqueles que
produzem buracos ou borrões nos programas (programas
sociais, escolares, médicos ou mesmo coloniais), que
escapam da norma majoritária, assim como da contra
norma minoritária cada vez melhor roteirizada pelos
poderes: contudo, eles vivem, não lhes faltando nem
sofrimento nem alegria, presenciando angústias, dúvidas
ou felicidades que não são, ou são pouco, aquelas dos
modelos englobantes.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Eu creio que a renovação contemporânea do
documentário na França e na Europa tem a ver com
esta necessidade (entre outras) sentida por todos nós:
que as representações que nós fabricamos do mundo
deixaram de dá-lo por acabado ou definitivamente
domado e disciplinado por nós. À sua maneira
modesta, o cinema documentário, ao ceder espaço ao
real, que o provoca e o habita, só pode se construir em
fricção com o mundo, isto é, ele precisa reconhecer o
inevitável dos constrangimentos e das ordens, levar
em consideração (ainda que para os combater) os
poderes e as mentiras, aceitar, enfim, ser parte
interessada nas regras do jogo social. Servidão,
privilégios. Um cinema engajado, diria eu, engajado
no mundo.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Três. Sobre a questão “o que é o documentário”? não há outra
resposta senão a questão posta por André Bazin: “o que é o cinema?”
O cinema não é o jornalismo, se bem que este como aquele pertençam
à ordem das narrativas. Somente nossa cegueira e nossa surdez,
provocadas e/ou escolhidas, podem explicar que nós tomemos as
informações agenciadas por um jornal ou por um programa (televisual
ou não) como a afirmação transparente do que aconteceu. Uma
testemunha, uma palavra, um documento e a própria narrativa
podem remeter aos fatos, a eles fazer referências e estabelecer
relações, contudo, separam-se deles por meio de uma elaboração que,
ainda que lhes seja relativa, processa-os nas formas que não são mais
as deles. Nada do mundo nos é acessível sem que os relatos nos
transmitam uma versão local, datada, histórica, ideológica. A crítica
maior que nós devemos dirigir à mídia, agentes da informação, se
refere à crença na chamada “objetividade” por meio da qual ela
mascara frequentemente o caráter eminentemente precário,
fragmentário e, por fim, subjetivo, do que é tão somente o seu
trabalho. Subjetivo é o cinema e, com ele, o documentário. Não é
necessário recordar essa verdade – contudo, geralmente perdida de
vista – que o cinema nasceu documentário e dele conquistou seus
primeiros poderes (Lumière).
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Ele converge para o jornalismo, para o mundo dos acontecimentos,
dos fatos, das relações, elaborando a partir deles ou com eles as
narrativas filmadas; e se separa do jornalismo na medida em que não
dissimula estas narrativas, não as nega, mas, ao contrário, afirma seu
gesto, que é o de rescrever os acontecimentos, as situações, os fatos, as
relações em forma de narrativas, consequentemente, de rescrever o
mundo, mas do ponto de vista de um sujeito, escrita aqui e agora,
narrativa precária e fragmentária, narrativa declarada e que faz
dessa confissão seu próprio princípio. Tais – aleatórios e frágeis – sem
dúvida, foram e ainda são para alguns os roteiros do cinema de ficção
(de Renoir e Rossellini a Kiarostami, passando por Godard); mas cada
vez menos frágeis, se posso dizer, na medida em que o instrumento do
roteiro é retirado do quadro das ficções cinematográficas para servir
às ficções políticas, econômicas, sociais ou militares. A partir daí,
lógico retorno das coisas, um funcionalismo estreito, um programa
rígido rege cada vez mais as ficções industriais (da televisão ao
cinema e das séries dos “Navarro” ao “Titanic”). Triunfo da sociedade
do espetáculo a constatar-se neste duplo movimento de generalização
e de enrijecimento do roteiro. Assim como o mercado, o espetáculo
incita a estandardização.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Quatro. Passando e repassando pelas dobras, sempre mais
lisas no caso da ficção, o cinema perdeu, em parte, seu pé
sobre o mundo. Programático, o cinema não se anuncia
mais como o profeta do desconhecido de um mundo a vir,
mas ele o ajusta sobretudo como uma repetição do
conhecido.
Nada se assemelha ao cinema documentário. Nenhum
roteiro que o sustente. O projeto documentário se forja a
cada passo, se debate frente a mil realidades que, na
verdade, ele não pode nem negligenciar nem dominar.
Nem recalque, nem forclusão: afrontamento. Cinema como
práxis. Longe dos fantasmas do controle ou da onipotência
que marcam cada vez mais os roteiros, ele, o documentário,
não pode avançar sem suas fraquezas, que são também
perseverança, precisão, honestidade. Tanto quanto as
realidades, os homens, que é levado a filmar, não dependem
dele, mesmo se, ao filmá-los, ele os transforme.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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O que se passa com aqueles que filmamos, homens ou
mulheres, que tornam-se, assim, personagens do
filme? Eles nos fazem conhecer e reter, antes de tudo,
que existem fora do nosso projeto de filme. Somente a
partir daquilo que farão conosco desse projeto (e, às
vezes, contra nós) que se tornarão seres do cinema.
Isso demonstra o quão pouco, na entrada do jogo,
estamos em condições de lhes dar ordens (podemos
oferecer, no máximo, indicações), de chacoalhar sua
própria mise-en-scène (ao contrário, trata-se de deixála aparecer em primeiro plano), de interromper ou
alterar o curso de suas ações (a não ser o tempo
suspenso de uma filmagem).
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Estes homens ou estas mulheres que nós filmamos, que nesta
relação aceitaram entrar, nela irão interferir e para ela
transferir, com singularidade, tudo o que carregam consigo de
determinações e de dificuldades, de pesado e de graça, de sua
sombra – que, com eles, não será reduzida –, tudo o que a
experiência de vida neles terá modelado... Ao mesmo tempo,
alguma coisa da complexidade e da opacidade das sociedades e
alguma coisa da exceção irremediável de uma vida. Isto quer
dizer que nós filmamos também algo que não é visível,
filmável, não é feito para o filme, não está ao nosso alcance,
mas que se encontra lá com o resto, dissimulado pela própria
luz ou cegado por ela, ao lado do visível, sob ele, fora do campo,
fora da imagem, mas presente nos corpos e entre eles, nas
palavras e entre elas, em todo o tecido que trama a máquina
cinematográfica. Filmar os homens reais no mundo real
representa estar tomado pela desordem dos modos de vida,
pelo indizível das vicissitudes do mundo, aquilo que do real se
obstina a enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro.
Necessidade do documentário.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Cinco. Desta dificuldade que lhe é imposta de alguma
maneira “de fora”, o cinema documentário tira todas as suas
riquezas. Obrigação de experimentar, de tentar aproximações
ajustadas às armadilhas sempre novas do mundo a filmar.
Obrigação de imaginar, de testar, de verificar os dispositivos
da escritura – inéditos na medida em que eles só podem estar
intimamente ligados a um lugar particular, um traço do
mundo. Além disso, esses dispositivos de escritura, cada vez
contingentes a um estado determinado de lugares, são eles
mesmos submetidos à pressão do real. O movimento do mundo
não se interrompe para permitir ao documentarista polir seu
sistema de escritura. As formas aplicadas são transfiguradas
pela própria forma que elas tentam abarcar. O cinema, na sua
versão documentária, acompanha o real de maneira tal que,
filmado, não é completamente filmável, excesso ou falta,
transbordamento ou limite – vazios ou bordas que de uma só
vez nos são dados a sentir, a experimentar, a pensar. Sentir
isso que, mesmo do mundo, ainda nos ultrapassa. As
narrativas ainda não escritas, as ficções ainda não esgotadas.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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Ao mesmo tempo em que se dá, a matéria do cinema
documentário lhe escapa. É por isso que ele deve inventar
formas que possibilitem tomadas daquilo que ainda não é
cinematograficamente tomado. Obrigação, diríamos:
obrigação de criar. Mesmo se quisesse, a obra documental
seria incapaz de reduzir o mundo a um dispositivo que ela
já possuiria pronto. Melhor: ela não pode se impedir de
desejar, para ir ao fim desta lógica de aprendizagem, ver
seu dispositivo chacoalhado pela irrupção de dados inéditos
– que não seriam aqueles através dos quais o mundo já se
oferece a nós. Eis porque os dispositivos do documentário
são antes de tudo precários, instáveis, frágeis. Eles são
úteis apenas para permitir a exploração do que ainda não é
de todo conhecido. Os roteiros de ficção são frequentemente
(cada vez mais) fóbicos: eles temem aquilo que provoca
fissuras, que os corta, os subverte. Eles afastam o
acidental, o aleatório. Alimentados pelo controle, eles se
curvam sobre si mesmos. Fechados.
SOB O RISCO DO REAL
JEAN-LOUIS COMOLLI
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A falta de maestria do documentário aparece como a condição de
invenção. Dela, irradia a potência real desse mundo. No momento em
que os grandes grupos internacionais se assenhoram de todos os lados
do controle da produção, da distribuição, da difusão audiovisual, em
que triunfam os modelos, os programas, os automatismos, os sistemas
de vigilância e de previsão, em que o marketing, a publicidade, a
propaganda impõem um novo magma – a “informação-culturamercadoria” – me parece digno de nota que o cinema documentário
vai bem e se desenvolve. Veja nessa conjunção um fato político. À
programação e à precaução generalizadas, se opõe o risco inerente ao
empreendimento do documentário. Os atos, os projetos, as obras, as
construções não se deixam reduzir mais ao cálculo de máquinas
humanas que aos desejos dos homens mecanizados. A sociedade do
espetáculo triunfa, mas uma parcela obscura do espetáculo mina o
espetáculo generalizado. Denominemos esta parte aquela que cabe à
arte. Cabe a ela, hoje em dia mais do que nunca, representar a
estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em
resumo, tudo o que a ficção em nossa volta nos esconde
escrupulosamente: que nós somos antes de tudo pela destruição dos
conjuntos fechados, que a cena é aberta, fendida, rompida, e é a esse
preço que ela pode ainda pretender historicamente representar tudo o
que neste mundo não é virtual.
Publicado originalmente no site www.diplomatie.gouv.fr
Traduzido (por Paulo Maia e Ruben Caixeta de Queiroz) e publicado no catálogo do
forumdoc.bh.2001.
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sob o risco do real - franthiesco ballerini