Cultura e Linguagem
Márcia Merlo
Origens da Linguagem.
Para pensar uma relação entre cultura e linguagem.
Cultura, Corpo, Linguagem e Moda.
“Tenho uma doença: eu vejo linguagem.
Aquilo que eu deveria somente escutar,
por uma estranha pulsão, perversa porquanto o
desejo aí se engana de objeto,
me é revelado como uma visão (...).
A escuta deriva em scopia: da linguagem
sinto-me visionário e voyeur.”
“Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre
tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva,
mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no
tecido, a idéia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um
entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido - nessa textura – o sujeito desfazse, como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas
da sua teia.”
Roland Barthes.
“Logo, enquanto animal o homem possui linguagem”.
(Herder. Ensaio sobre a origem da linguagem)
http://bacaninha.cidadeinternet.com.br/
home/mensagens/fotos/2003/12/
corpos_pintados/img1.jpg. Acesso: 15/
07/2005 as 15h50.
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
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Voltando no tempo e remontando o conceito de cultura, aqui inserindo a
linguagem e fazendo algumas conexões com corpo, linguagem, moda e
contemporaneidade...
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a forma de conceber a produção do
conhecimento a partir das transformações que ocorriam em todas as esferas da
sociedade trouxe, também, vários questionamentos para dentro dos estudos da
linguagem. Um dos pontos mais questionados, por filósofos e outros estudiosos
da sociedade e do homem em geral, foi sobre o lugar da linguagem no
desenvolvimento do pensamento humano, ou melhor, do homem em si.
Linguagem, enquanto um campo de análise com claras funções que revelam
sua relação com a representação, as operações lógicas, o erro, a opinião, a
percepção, a paixão, a vida afetiva e emocional, ou seja, o lugar da linguagem vai
assumindo um lugar mais amplo e às palavras é conferido não somente a tarefa
e o poder de representar o pensamento, mas a condição: do conhecer, do pensar,
da experiência, da criatividade, do homem. Assim não há homem sem linguagem,
pois os limites da linguagem são os limites do humano. A partir do século XVIII,
não dá mais para pensar o homem sem pensar a linguagem, nisto que se torna
um eixo antropológico. Talvez, seria o mesmo que dizer que, a partir de tais
reflexões linguagem não é só razão.
O filósofo Ernst Cassirer chega a afirmar que “A linguagem e o mito são
parentes próximos”, principalmente se retomarmos os primórdios da cultura
humana, na tentativa de compreendermos a cooperação entre eles na formação
de um pensamento e na necessidade de comunicar experiências, sentidos,
convívios... É o mesmo que dizer, segundo ele, que sempre que encontramos o
homem “vemo-lo na possessão da faculdade da fala e sob influência da função
de fazer mitos.” (Cassirer, 2001, p. 181). Isso porque a linguagem é metafórica,
incapaz de descrever as coisas diretamente, recorre a modos indiretos, mas à
fala humana foi associada desde o princípio a função, de certo modo bastante
mágica, de significar as coisas, o mundo, em relação com o humano, como se a
palavra tivesse uma vida própria.
PATAGONIA
Fotografias inéditas dos corpos pintados do Selknam,
registradas em 1923 durante uma cerimônia de iniciação nas
planícies nevadas da Terra do Fogo. http://
www.corpospintados.com.br/Exposicao/index.html. Acesso:
15/07/05 as 16h08.
2
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
Mas, aqui, o que nos interessa são todas as formas de linguagem e, ao que
tudo indica, desenhar, pintar, modificar o corpo são práticas tão antigas quanto o
homem, pois construídas por eles. As formas de criar/recriar significados e
comunicá-los, não só por meio de palavras, vem remontando a própria história
da humanidade e traduzindo sua diversidade. Antes das roupas, as pinturas ou
qualquer modificação corporal contavam (e ainda contam) a história das culturas
humanas escritas, por vezes, no próprio corpo, denotando a relação entre o
indivíduo e o grupo ao qual pertence ou deseja pertencer. Segundo Cristina
Frange, “um ‘corpo cru’, sem qualquer tipo de alteração, modificação, é um corpo
biologicamente natural – a primeira maneira de ser e estar no mundo. São as
inscrições das culturas que o fazem humano. O homem vê o seu corpo não
apenas como um organismo vivo, mas também como um design.” 1(p. 16)
Isso porque o corpo porta em si a marca da vida social. O corpo sofre
modelações. Rodrigues diz que “essas marcas fazem referência direta a relações
sociais. Em cada sociedade poder-se-ia levantar o inventário dessas impressõesmensagens e descobrir-lhes o código: bom caminho para se demonstrar, na
superfície dos corpos, as profundezas da vida social.”2
E ainda diz que as culturas
determinam os usos e costumes que
adotamos em relação ao próprio corpo.
Diz: “Há povos que dormem mais e
povos que dormem pouco, povos que
dormem preponderadamente de dia e
povos que dormem de noite. Da
mesma forma, variam as posições
consideradas
adequadas
para
descansar. No Brasil mesmo, enquanto
em algumas regiões o descansar é
sentar-se em cadeiras, em outras é
agachar-se sobre as pontas dos pés,
erguendo os calcanhares e, em outras,
permanecer em pé sobre uma só
perna, encostando a sola de um pé no
lado do joelho da perna de apoio. E
todas essas posturas devem ser
aprendidas, da mesma forma que nós,
ocidentais, aprendemos a não cair da
cama.”3
Tais práticas, aplicadas sobre o
corpo, são o que Marcel Mauss 4
chamou “técnicas do corpo”. Isso é o
mesmo que dizer que o social se faz
presente nas mais variadas ações
humanas e que “em cada caso, para
cada cultura, essas práticas, na
aparência insignificantes, traduzem
mensagens,
normalmente
inconscientes – sobre o que é certo e
o que é errado, o que e próprio dos
homens e o que é “coisa de bichos”,
o que é igual ao “nós” e o que dele
difere, o que é respeitosos e o que é
profanação, o que é nobre e o que é
indigno – e cujos efeitos conotativos
vão muito além do que se poderia
esperar do seu fraco poder denotativo.
Todavia, não é apenas involuntária e conotativamente que o corpo cumpre
sua função significacional: o repertório de gestos, cujos conteúdos são
manifestadamente denotativos, jamais teria fim em um inquérito etnográfico
geral.”5
1
FRANGE, Cristina Mattos Pereira, Escrever na carne: as modificações corporais como
forma de inclusão social e comunicação. Mestrado em Comunicação e Semiótica, PUCSP,
2004, p. 16.
2
RODRIGUES, José Carlos (1975), O tabu do corpo. 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Achiamé, p. 63.
3
Ibidem, p. 96.
4
MAUSS, M. (2003).Sociologia e Antropologia,São Paulo: Cosac & Naify.
5
RODRIGUES, José C. op. Cit, p. 97.
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
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Culturas tradicionais
Imagens de pintura e adorno corporal de
diversas culturas da África, Ásia, América e
Oceania. http://www.corpospintados.com.br/
Exposicao/index.html. Acesso: 15/07/05 as
16h08.
Mulheres Padaung, em Burma,
Tailândia, também conhecida
como mulheres-girafa.
Site: www.tourorissa.com e
home.earthlink.net. Pesquisada:
28/03/2005 as 15:42.
É claro que cada cultura tem seu próprio estilo para expressar e que indivíduos,
dentro de uma sociedade, seguem e legitimam os estilos, assim como outros
podem negá-los e ainda assim estará entrando em um outro universo de
significações, pois, de qualquer modo, no comportamento corporal há sempre
muita expressão.
E voltando à questão da língua, nessa gramática toda, a princípio o que se
coloca é que a teoria do conhecimento ensinou-nos que devemos traçar uma
linha clara de demarcação entre os problemas genéticos e os sistemáticos.
Mas, o que vai se percebendo, ao longo de séculos e no percurso de muitas
teorias, na tentativa de chegar as melhores soluções para a questão da origem
da linguagem ou da verdadeira teoria da linguagem, é que nem a biologia e nem
a história deram conta isoladamente de explicar as mudanças - fonéticas,
analógicas e semânticas, próprias da linguagem. Tentar encontrar um tronco
comum e o porquê da derivação das línguas ou de outras formas de linguagens
da terra por meio de uma teoria geral da evolução não seria possível, ao menos
do ponto de vista da filosofia e da antropologia dos séculos XIX e XX.
4
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
Tanto é que o estudo de todos esses fenômenos não se apresenta suficiente
para nos fazer entender a função geral da linguagem, é preciso levar em
consideração os dados históricos para a análise de cada forma simbólica. E os
lingüistas do século XIX vão apoiar-se na história e na psicologia para
aprofundarem os estudos da linguagem humana, buscando os princípios gerais
que a fundamentem, mas vão deparar-se com outras e mais abrangentes
questões, a primeira delas é esta descrita por Leonard Bloomfield ao referir-se
aos estudos da época que, de maneira geral, “tratavam apenas das línguas indoeuropéias e, com o menosprezo que tinham pelos problemas descritivos,
recusavam-se a trabalhar com línguas, cuja história fosse desconhecida. Essa
limitação afastou-os do conhecimento de tipos estrangeiros de estrutura
gramatical, que teria aberto os olhos deles para o fato de que até os aspectos
fundamentais da gramática indo-européia... não são de modo algum universais
na fala humana...” (Apud in Cassirer, op. Cit., p. 198)
E ainda diz, em relação aos estudos históricos, que “todo estudo histórico da
linguagem baseia-se na comparação de dois ou mais conjuntos de dados
descritivos. Só pode ser tão precioso e tão completo quanto lhe permitam esses
dados. Para descrever uma língua, não é preciso absolutamente nenhum
conhecimento histórico; na verdade, o observador que permita que tal
conhecimento afete sua descrição está fadado a distorcer seus dados. Nossas
descrições não deverão ter preconceitos, se quisermos que sejam uma base
sólida para o trabalho comparativo.” (Ibidem, pp. 198-9)
O que Leonard Bloomfield expressa nessa crítica, descreve uma série de
interjeições feitas, a partir de então, por lingüistas, antropólogos e outros
estudiosos que passaram a influenciar o pensamento em fins do século XIX e
início do século XX, fruto de pesquisas empíricas e formulação de outras teorias
que levavam em conta o processo contínuo e reiterado da mente humana em
usar sons para expressar pensamentos. Cassirer expressa essa questão da
seguinte forma:
“Esse princípio metodológico havia encontrado a sua primeira expressão,
talvez clássica, na obra de um grande lingüista e grande pensador filosófico.
Wilhelm von Humboldt deu o primeiro passo, no sentido de classificar as línguas
do mundo e reduzi-las a certos tipos fundamentais. Para essa finalidade, não
podia empregar métodos exclusivamente históricos. As línguas que ele estudou
já não foram apenas as do tipo indo-europeu. Seu interesse era verdadeiramente
abrangente e incluía todo o campo dos fenômenos lingüísticos. Ele fez a primeira
descrição analítica das línguas americanas nativas, utilizando a abundância de
material que seu irmão, Alexander von Humboldt, trouxera de suas viagens
exploratórias pelo continente americano.” (Op. Cit., p. 199)
Neste sentido, Franz Boas também revela como uma descrição errônea dos
povos tradicionais cria, além de uma percepção distorcida, um problema
epistemológico. Escreve: “Os Andamaneses são outro povo que deve sua má
reputação aos relatos dos primeiros viajantes. Marco Pólo, que os visitou em
1285 disse: ‘essa gente é como bestas selvagens e eu lhes garanto que todos os
homens da ilha de Angamaaim têm cabeças semelhantes às do cachorro e
dentes e olhos da mesma espécie; de fato seus rostos parecem como os de
bulldogs.”
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
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E continua mostrando outro relato etnocêntrico e evolucionista, comparado a
um outro que busca conhecer mais de perto o povo, mostrando uma outra
realidade e aproximando-se da preocupação da Antropologia Cultural:
“Um escritor árabe do século IX afirma: ‘A cor de sua pele é aterradora; seus
pés são grandes, quase do comprimento de um cúbito e encontram-se
absolutamente sem roupa’. Compara-se isso com a descrição de E. H. Man, a
quem devemos um melhor conhecimento deste povo interessante. Ele disse:
‘tem sido afirmado que o sistema de casamento comunal prevalece entre eles,
e que o casamento não passa da tomada da mulher como escrava, mas, longe
do contrato ser considerado como um arranjo meramente temporário a ser
abandonado, de acordo com o desejo de uma das partes, nenhuma
incompatibilidade de temperamento ou outra causa pode dissolver a união e
enquanto a bigamia, a poligamia, a poliandria e o divórcio são desconhecidos, a
fidelidade conjugal até à morte não é exceção, mas regra... Um dos aspectos
mais marcantes das suas relações sociais é a marcante igualdade que subsiste
entre marido e mulher’. Mesmo que esta descrição possa ser considerada um
tanto fantasiosa mostra, todavia, que estes povos não são “como bestas
selvagens”.6
A análise que Boas faz de tais relatórios, é ainda melhor quando explicita que
“um estudo feito mais de perto mostra que alguns dos povos de pior reputação
não são tão brutos como os relatórios superficiais gostariam de nos fazer crer, e
somos levados a suspeitar que as condições culturais entre todos os povos
primitivos podem ser mais elevadas que comumente se considera.
Nosso conhecimento de tribos primitivas, pelo mundo afora, justifica a
afirmação de que não há povo que não possua tradições e idéias religiosas
definidas; que não tenha feito invenções, que não viva sob o domínio de leis
costumeiras que regulem as relações entre os membros da tribo. E não há povo
sem língua.
A tarefa da etnologia é o estudo da gama total dos fenômenos da vida social.
Língua, costumes, migrações, características corporais são assuntos de nossos
estudos.”7
Este trecho de Boas explicita a relação entre cultura e língua, esta como um
elemento importante da identidade humana e da compreensão da diversidade
cultural.
6
BOAS, Franz. “Os objetivos da etnologia”. Texto traduzido pela Profa. Dra. Josildeth Consorte
para a disciplina Antropologia Cultural, PUCSP, 1998, s/p.
7
Ibidem.
6
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
“The most widely spoken language in the Sudan is Arabic,
a member of the Semitic branch of the Afro-Asiatic language
family. Cushitic, another major division of the Afro-Asiatic
language, is represented by Bedawiye (with several
dialects), spoken by the largely nomadic Beja. Chadic, a
third division, is represented by its most important single
language, Hausa, a West African tongue used by the Hausa
themselves and employed by many other West Africans in
Sudan as a lingua franca”.
http://images.google.com/imgres?imgurl=http://
www.awr.org/images/12-00-sudanwoman.jpg&imgrefurl=http://www.awr.org/global-glimpsesudan. Acesso: 15/07/05 as 16h35
O filósofo Cassirer também continua mostrando a importância do pensamento
de Humboldt para a época e na construção de um entendimento da Linguagem
para além das descrições de fatos particulares, mas como uma tentativa de
gerar inferências mais amplas, ou seja, colocar a linguagem como mais uma
possibilidade sistemática de compreender as trajetórias humanas no sentido
de expressar os significados dados as coisas, mas ir além disso, também, no
sentido de conceituar o próprio homem em sua relação com as coisas, as
palavras, os outros, assim como pensar a linguagem em si mesma. Diz:
“É impossível obter uma verdadeira compreensão do caráter e da função da
fala humana enquanto virmos nela apenas uma coleção de “palavras”. A
verdadeira diferença entre as línguas não é de sons ou sinais, mas de “perspectivas
de mundo”. Uma língua não é um simples agregado mecânico de termos. (...) A
linguagem dever ser vista como uma energia, e não como um ergon. Não é uma
coisa pronta, mas um processo contínuo; é o esforço reiterado da mente humana
no sentido de usar sons para expressar pensamentos.” (Op. Cit, p. 200)
Para além de uma lingüística descritiva ou histórica, começava-se a apontar
preocupações estruturais, ou seja, para pensar uma história da filosofia da
linguagem há que se apoiar tanto na descritiva quanto na histórica para se
perceber que as mudanças que ocorriam nesta área eram semelhantes as de
outros ramos do conhecimento. Cada época lê o seu próprio tempo e pretende ir
além dele. Ferdinand Saussurre “traçou uma linha nítida entre la langue e la
parole. A língua (la langue) é universal, ao passo que o processo da fala (la
parole), como processo temporal, é individual. Todo indivíduo tem sua própria
maneira de falar. Mas em uma análise científica da linguagem não nos
preocupamos com essas diferenças individuais; estamos estudando um fato social
que segue regras gerais – regras totalmente independentes do indivíduo que
fala. Sem essas regras, a linguagem não poderia cumprir sua tarefa principal;
não poderia ser empregada como meio de comunicação entre todos os membros
da comunidade falante. A lingüística “sincrônica” trata das relações estruturais
constantes; a lingüística “diacrônica” lida com os fenômenos que variam e se
desenvolvem no tempo.” (Op. Cit, p. 202-3)
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
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E não é a toa que o antropólogo Claude Lévi-Strauss se apóia nos trabalhos
de Saussurre como um dos pilares do método estruturalista para pensar as
sociedades e culturas humanas.
Na segunda metade do século XIX, os neogramáticos colocam o estudo da
lingüística na ordem da elaboração de leis gerais, apoiado em métodos
semelhantes aos aplicados às ciências naturais. Só que para ser considerada
como uma ciência exata, a lingüística não poderia contentar-se com vagas regras
empíricas para a descrição de ocorrências históricas particulares, por isso a
preocupação em descobrir leis gerais e para tal intuito buscava-se a
invariabilidade fonética, ou seja, mesmo que haja mudança na forma de falar, o
que importava para um estudo científico dessa natureza era registrar as leis
fonéticas necessárias e que não admitem exceções, por isso o apoio em uma
gramática rígida. Este pensamento positivista imperou durante todo o séc. XIX e
ainda faz jus a alguns pensamentos na atualidade, gerando aquilo que chamamos
de preconceitos lingüísticos.
Mas, se pensarmos na construção dos padrões fonéticos e quanto tempo
se leva para constituir uma língua e o quanto se revela difícil chegar a uma
origem comum e a uma autenticidade, pois seria o mesmo que dizer que a
formação de um grupo lingüístico remonta à origem da cultura humana, assim
como o da sua diversidade, tais pensamentos já se mostrariam inadequados,
principalmente na atualidade, em que culturas e línguas distantes aproximamse, assimilam-se e distanciam-se em um piscar de olhos, em um dedilhar de
um teclado e para trás permanece um universo vasto e inexplorado de
possibilidades.
E o que isto significa? Cultura e linguagem são intrínsecas e estão imbricadas
desde o princípio. A língua funciona como um forte elemento identitário; é por
meio dela que se particularizam experiências, mas também o canal em que se
universalizam condutas, comportamentos e visões de mundo compartilhadas
dentro do grupo. Peter Berger afirma que a linguagem é a instituição fundamental
da sociedade, “além de ser a primeira instituição inserida na biografia do indivíduo.
É uma instituição fundamental, porque qualquer outra instituição, sejam quais
forem suas características e finalidades, funda-se nos padrões de controle
subjacentes da linguagem. Sejam quais forem as outras características do Estado,
da economia e do sistema educacional, os mesmos dependem de um arcabouço
lingüístico de classificações, conceitos e imperativos dirigidos à conduta individual;
em outras palavras, dependem de um universo de significados construídos por
meio da linguagem e que só por meio dela podem permanecer atuantes.” (Berger,
1977, p. 193)
8
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
http://www.socioambiental.org/website/pib/epi/xingu/ativi.shtm. Acesso: 15/07/05 as 16h30.
Aqui aparecem algumas conceituações e entre algumas preocupações uma
que ocupou, de forma significativa, o século XX em relação ao papel da linguagem
no processo de socialização dos indivíduos como membros de comunidades
lingüísticas. Araújo explicita isso, ao dizer que é “na e pela linguagem, sem o seu
caráter instrumental, que o homem ganha a capacidade de expressar a si mesmo,
isto é, a sua identidade como aquilo que lhe é mais próprio. A linguagem, ao
passar da função instrumental designativa das coisas para o âmbito das
capacidades expressivas dos agentes humanos, cria uma série de dificuldades
para captarmos o seu centro de gravidade. É no centro de gravidade da linguagem
que se pode tentar apreender o caráter pleno da produção significativa dos
indivíduos.” (Araújo, 2004, p. 25).
Apoiado nas análises de Charles Taylor, sobre o papel da linguagem na
interação do sujeito em seu meio, Araújo reitera que a linguagem nos leva à
origem dos outros, isto é, de uma comunidade. Mas, se a linguagem pode ser
considerada uma atividade que constitui um modo específico de se estar no
mundo, toda a expressividade humana gira em torno de um núcleo que tem
origem em uma comunidade lingüística. De novo estamos falando da intrínseca
relação entre cultura, linguagem, identidade e diferença. Diz Araújo:
“Para Taylor, é a comunidade lingüística em que se está imerso que possibilita
à expressão elaborada por um sujeito, em sua particularidade, ganhar status de
existência, no sentido de poder se manifestar no espaço público. No entanto,
para uma expressão se tornar compreensível, é preciso que os outros participem
do seu sentido, e para que isso aconteça, os indivíduos têm de reconhecer tal
expressão, a princípio, naquilo que foi expresso por meio de elementos lingüísticos
ou signos comuns a todos. Assim, mesmo expressando algo que venha a
desagradar os outros, o que foi expresso já se encontra vinculado à comunidade
lingüística dos membros de uma determinada sociedade, que podem ajuizar
sobre o que lhes foi apresentado significativamente.” (Ibid., op. Cit., pp. 26-7).
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
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Charles Taylor realizou vários estudos em torno da política do reconhecimento
e multiculturalismo. Estudos acerca dos processos identitários na atualidade
que vem contribuindo para a análise da fragmentação das identidades e a
crise dos sentidos que isto provoca no mundo hoje, entre outros estudos de
grande importância.
Herder, um filósofo não tão conhecido por nós, realizou um trabalho de muito
valor sobre as origens da linguagem, diz que “o homem está organizado para ser
uma criatura da linguagem”. (Herder, 1987, p.89). Tanto é que os lingüistas do
século XX afirmam que não se conhece nenhuma língua desprovida de elementos
formais ou estruturais, embora a expressão das relações formais entre sujeito e
objeto e entre atributo e predicado, possa variar de língua para língua. Cassirer
diz, apoiado no trabalho da lingüística recente, que as “línguas das nações menos
civilizadas de todas não são de modo algum carentes de forma; ao contrário,
apresentam, na maioria dos casos, uma estrutura complicadíssima.” Apoiandose no lingüista A. Meillet, conhecedor de muitas línguas do mundo, aponta para
as formas da fala humana em geral “são perfeitas, no sentido de que conseguem
expressar os sentimentos e pensamentos humanos de forma clara e apropriada.
As línguas, ditas primitivas, são tão congruentes com as condições da civilização
primitiva e com a tendência geral da mente primitiva quanto as nossas próprias
línguas o são com os fins de nossa cultura requintada e sofisticada.” (op.cit, p.
212)
A questão central é que o lingüista e, também, o antropólogo apreciam essa
variedade, estudam a diversidade e a divergência. Mas, o que se percebe é que
ainda, e incluindo as ciências humanas atuais, busca-se a unidade da linguagem,
o encontro do autêntico e das essências do homem e das coisas e, é claro, que
se buscarmos tal unidade funcional incorreremos no erro, já bastante debatido
em fins do século XIX, durante o século XX e até os dias atuais, das generalizações
que se transformam em juízos de valor e ocultam outras possibilidades de
análises. Em outras palavras, “se fosse tarefa da fala humana copiar ou imitar a
ordem dada ou pronta das coisas, seria difícil mantermos esse distanciamento.
Não poderíamos evitar a conclusão de que, afinal, uma de duas cópias diferentes
deve ser a melhor; que uma deve estar mais próxima e a outra mais afastada, do
original. No entanto, quando atribuímos à fala um valor produtivo e construtivo,
em vez de simplesmente reprodutivo, nosso juízo é bem diferente. Nesse caso,
o que tem a máxima importância não é o “trabalho” da língua, e sim sua “energia”.
Para medir essa energia é preciso estudar o próprio processo lingüístico, em vez
de simplesmente analisar o seu desfecho, seu produto e seus resultados finais.”
(Cassirer, op.cit., 215)
10
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
Sendo assim, podemos pensar na linguagem enquanto um processo em
que além de nomear as coisas, explicita os pensamentos por meio dos sons
articulados em forma de palavras a partir das construções sócio-culturais e
políticas. É possível, então, afirmar que “a linguagem é remodelada a todo instante
pelos diversos modos de ser do homem no mundo. (...)
É essa capacidade de expressão que faz com que o homem possa viver as
suas emoções exprimindo-as, sem a necessidade de descrevê-las em si. A
linguagem permite ao homem criar formas lingüísticas que realizam a justeza do
que ele quer expressar sentimentalmente. Expressando o que sente, o homem
remodela a língua, criando as suas próprias formas, no sentido de se fazer
presente no mundo.” (Araújo, op.cit, pp. 36-7).
Um retrato de expressões humanas, no sentido de se fazer presente no
mundo, remodelando a língua e incorporando os “sotaques” locais, encontro, de
novo, em Rodrigues, a relação do corpo a uma gramática social. Nas palavras
do autor:
“Falamos em “amigo do peito”, em pessoas de “coração mole”, em pessoas
de “fibra”, em “sangue quente”, em “ter garra”, em lutar “com unhas e dentes”, em
pessoas de “pé frio” ou que alguém é “dedo duro”. Ajudar é “dar a mão”, pessoas
bobas são “babacas”, corajosas são “peitudas”. Fugir é “dar no pé”, ser teimoso
é ser “cabeçudo”, invejar é “ter olho grande”. Um bom professor “mastiga a
matéria”, enquanto um mau professor “vomita a matéria”. Ser indiscreto é “bater
com a língua nos dentes”, dormir é “tirar uma pestana”. Tais expressões são
exemplos de um repertório vocabular que dificilmente poderia ser concluído.”8
Rodrigues vai além ao dizer que legitimamos em nosso próprio corpo um
sistema político, já que todas as sociedades se aproveitam dos sentidos para
codificar o mundo, não se pode negar isso. Entretanto, toda sociedade codifica
esses próprios sentidos e essa linguagem legitima-se no corpo. “Recebemos
signos verbais e não-verbais, tácteis, visíveis e audíveis: contatos corporais de
diferentes tipos, posturas, aromas, aparência física, expressões faciais, movimentos
das diferentes partes do corpo, posição das mãos, direção do olhar, tom emocional,
altura da voz, timbre – enfim, um complexo de informações que tendemos a
considerar naturais, mas que estão altamente codificadas e que variam de
sociedade para sociedade: uma linguagem, tão coletiva como qualquer outra.”9
8
9
RODRIGUES, J. C., op. Cit, pp. 97-98.
Ibidem, p. 99.
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
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Alison Lurie afirma que a maneira de se vestir tem uma linguagem e apóia-se
em outros estudiosos para dizer que hoje “como a semiologia está na moda, os
sociólogos dizem-nos que também a moda é uma linguagem de signos, um
sistema não-verbal de comunicação. O estruturalista francês Roland Barthes
(Sistema de Moda. Companhia Editorial Nacional), por exemplo, em “The Diseases
of Costume”, fala da indumentária teatral como uma espécie de escrita, da qual o
elementos é o signo.”10 E continua, brilhantemente retratando que isso parece
óbvio e “se a maneira de se vestir é um idioma, deve ter um vocabulário e uma
gramática como qualquer outro. Assim como no discurso humano, é claro que
não existe uma única língua das roupas, mas várias: algumas (como holandês e
alemão) estão intimamente relacionadas e outras (como o basco) são quase
exclusivas. Em cada língua das roupas há vários dialetos e sotaques diferentes,
alguns quase ininteligíveis a membros da cultura mais aceita. Além disso, assim
como no discurso falado, cada indivíduo tem seu próprio sotaque de palavras e
emprega variações pessoais de tom e significado.”11.
O vocabulário e a gramática das roupas são extensos e diversos porque
incluem desde peças de roupas, até os mais variados estilos de cabelos, jóias,
maquiagem, acessórios, decorações nos corpos, enfim, atitudes que
complementam os usos dessa cultura material que acompanha o indivíduo em
suas trajetórias no corpo e do corpo.
Marc Augé, ao pensar uma antropologia da atualidade, redimensiona a noção
de pessoa, dizendo que a “pessoa concreta só se realiza na dimensão social,
econômica e política que assinala seus limites. Ela não é toda a cultura mas, é
toda cultura, no sentido complexo e completo do termo”12 e aponta, a meu ver,
uma possibilidade no sentido de mostrar que se a cultura, quando tratada por
hegemônica e homogeneizadora, traz restrições ao indivíduo ao pensar o seu
lugar no todo, também pensar as trajetórias individuais na construção da
contemporaneidade, que se apresenta heterogênea apesar dos processos
produtivos e mercadológicos da super modernidade, é um desafio a todos nós.
Desta forma,
“Cultura é também a resultante de iniciativas singulares que aí encontram ao
mesmo tempo seu campo de expressão, sua linguagem e seu limite. Quem
‘trabalha’ a cultura como esta, trabalha os indivíduos no corpo. No caráter barroco
da pesquisa ocorre algo do barroco da existência e da cultura em ação, cultura no
singular-plural”13
10
LURIE, Alison. A linguagem das roupas. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997, p. 19.
11
Ibidem, pp. 19-20.
12
Ibidem, p. 73.
13
Ibidem, p. 74.
12
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
Gilles Lipovetsky amplia as abordagens em torno da moda e pós-modernidade,
deixando clara a relação passado/presente, indivíduo/atualidade. Diz, em uma
entrevista cedida ao Jornal da USP, que “moda é uma estrutura social centrada
sobre o presente, já que na moda é preciso mudar. O modelo legítimo na moda
é o atual, diferente das ideologias em que o tempo marcado é o futuro, ou da
tradição em que o tempo marcado é o passado. Ao contrário, a moda está centrada
no atual, no presente, por isso muda sempre. O laço entre a moda e
contemporaneidade é quase essência e a novidade da nossa época é que esta
lógica da contemporaneidade e do presente reencontra-se em quase todas as
esferas e, então, a lógica da moda é o que faz recuar cada vez mais a lógica da
tradição, do respeito às formas do passado em proveito da invenção contínua de
novo ambiente, novas formas, novas maneiras de pensar. O que não quer dizer
que a moda destrói a cultura do passado mas,faz o passado perder sua força de
imposição. A moda, essencialmente, é reciclagem das formas antigas e o
contemporâneo é fazer com que tudo o que nos chega do passado reencontre-se
reciclado na perspectiva da lógica da individualidade, da liberdade individual.
LIPOVETSKY, GILLES
LIPOVETSKY, GILLES, Entrevista cedida a Tarcisio D’Almeida, especial
para o Jornal da USP. Site:www.usp.br/jorusp/arquivo/1998/jusp424/
manchet/rep_res/rep_int/cultura2.html. Acesso em 15/7/2005.
Passado distante ou passado próximo, há alguns séculos, décadas, anos
ou segundos atrás; algo definido como passado, ou tudo aquilo que não é atual
e que, rapidamente, é posto como antigo ou arcaico pela modernidade/pósmodernidade. Passado reciclado ou revisitado, mas desejado e procurado.
Memórias, histórias esquecidas, silenciadas, não-ditas ou ditas, lembradas,
registradas, marcadas, escritas, inclusive, na carne.
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
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Elaine Davidson. 1.903 piercings no corpo.
Site: guiness book of records/body art – acessado em 03/04/
2005 as 14:57
Além de tatuagens, há piercings no
septo nasal, pescoço e orelhas, um
botoque no lábio inferior. Os botoques
são provenientes de rituais de
passagem, encontradas entre vários
povos – amerindios, africanos e
asiáticos. Os botoques são, geralmente,
feitos com sementes, madeira, varetas,
marfim o metal. Imagem extraída de
“Tribes”, acesso pelo site google em 28/
04/2005 às 17:50 h.
Neste sentido, também podemos pensar, com o apoio de Cristina Frange,
sobre o porque da atualidade de práticas antigas e culturais serem apropriadas
e usadas no corpo (por meio das modificações corporais ou a chamada body
art) hoje como um revival na contemporaneidade? Que linguagem é esta e como
apresenta-se em relação à moda? A autora comenta:
“Durante muito tempo, o processo civilizatório criou amarras para os corpos
(e ainda cria), amarras que ajudaram a sedá-lo e fizeram com que o homem
esquecesse de seus sentidos. A civilização criou as roupas e seus códigos. A
moda, ao mesmo tempo que esconde os corpos, os revela; ao mesmo tempo
que os disciplina, os indisciplina; ao mesmo tempo que exalta o futuro e os
avanços tecnológicos, afirma e enfatiza a presença do arcaico.
14
Cultura e Linguagem / Anhembi Morumbi
Não é à toa que a palavra ´moda´ surge, no ocidente, como uma forma de
disciplinamento do corpo, proposto pelo sistema de roupas. A partir desse
momento, as inscrições no corpo pele-carne transformam-se em indisciplina,
atestando uma forte presença do arcaico e, conseqüentemente, dos vínculos
primordiais do corpo, deixando que suas intensidades se presentifiquem na
carne, remagicizando-o a partir de seu novo status.
“As atividades originais da espécie humana são todas entremeadas com o
exercício lúdico. E, nesse jogo da aparência como uma raiz da cultura, as imagens
jogam com os corpos o tempo todo. Uma modificação corporal é um elemento
do jogo, senão o próprio jogo, pela presença da imagem. Ou seja, ela é da
esfera da fantasia, da imaginação. O corpo recebe as modificações corporais e
altera-se, modificando também suas formas de comunicação. Elas são escritas
na carne e enfatizam a dimensão muda do olhar.”14
Desta forma, a roupa como segunda pele ou a tatuagem, a pintura corporal,
além de outras modificações no corpo, denotam e conotam a relação entre o
indivíduo e o grupo ao qual pertence ou deseja pertencer e a expressam, seja
da maneira que for.
Em suma, o que fica por hora, são mais questões para refletirmos o lugar
da cultura no mundo hoje, um mundo governado por imagens, pela Moda,
pelos objetos mundializados, pelo desejo de ser um sujeito antenado nesse
mundão afora. Mundo ou mundos? Para o estilista da grife Rosa Chá, Amir
Slama, que tem criações em pontos de venda nos Estados Unidos, Inglaterra e
Japão, considera importante que a moda tenha uma linguagem particular e ao
mesmo tempo global e aposta no futuro de produtos com bom design e
qualidade.15
14
FRANGE, op. cit p.129.
www.mre.gov.br/edbrasil/itamaraty/web/part/artecult/moda/apresent/
por Eveline de Abreu. Acesso: 15/07/2005 as 12:07.
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