ÁGORA Revista Eletrônica
Ano VIII
nº 15
Dez/2012
ISSN 1809 4589
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DESCARTES E A CIÊNCIA MODERNA: APONTAMENTOS SOBRE LIMITES,
POSSIBILIDADES E PERSPCTIVAS DESSA CIÊNCIA NA ATUALIDADE
Marcelo Jose Hanaeur1
RESUMO
O presente trabalho trata-se de uma reflexão sobre a ciência que formou-se na modernidade.
Busca traçar a participação que teve René Descartes na sua estrutura, bem como procura discutir
alguns dos limites dessa ciência e outras possibilidades ou perspectivas para a ciência na atualidade. A
ciência que desenvolveu-se na modernidade de algum modo recebeu influência do período
renascentista, assim como o pensamento de René Descartes. Por isso abordaremos o renascimento
procurando conhecer sua estrutura de formação, bem como a estrutura da filosofia que aí apresentavase. Havia a necessidade de se estabelecer um método para a ciência moderna logo que ela despontou.
Descartes fala sobre o método e fornece um entre aqueles que vão orientar a ciência moderna. A
ciência moderna possui algumas limitações assim como o pensamento de Descartes. Discutiremos
sobre algumas dessas limitações ao passo que discutiremos outras possibilidades ou perspectivas para
a ciência na atualidade.
Palavras-chaves: Renascimento, Método, René Descartes, Ciência Moderna, Limites e
Possibilidades
INTRODUÇÃO
O presente trabalho monográfico procura fazer uma reflexão acerca da ciência que formouse na modernidade. B em como procura expressar qual foi a participação que teve René Descartes na
estrutura dessa ciência. Ao passo que discute também sobre alguns limites nas perspectivas dessa
mesma ciência e outras possibilidades, ou novas perspectivas da ciência na atualidade.
No ambiente acadêmico muito se fala sobre a ciência que se formou na Idade Moderna. Bem
como sobre a participação que Descartes teve na estrutura da mesma. Contudo, as discussões daí
resultantes muitas vezes não conseguem dar cabo, ou melhor dizendo, não conseguem responder de
maneira satisfatória os vários questionamentos que a esse respeito são levantados. Esse trabalho,
então, reveste-se de importância considerável na medida em que busca promover uma reflexão mais
detida sobre essas coisas. Claro, sem a intenção ambiciosa de responder a todas essas questões, mas
apenas refletir sobre algumas delas.
1 Graduado
em Filosofia pela URI Campus de Frederico Westphalen-RS.
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É sabido que a ciência que se formou na Idade Moderna foi de fundamental relevância para
o desenvolvimento do conhecimento humano. Ela permitiu ao homem alcançar lugares onde ainda não
havia pensado ir. Bem como alavancou o desenvolvimento tecnológico. Que lhe viabilizou uma vida
mais fácil.
Contudo, não foi apenas isso que a ciência moderna desenvolveu. Ela também promoveu
com seus saberes inúmeras outras coisas: grandes catástrofes ecológicas, a fragmentação do
conhecimento, a divisão do trabalho, guerras.
Buscaremos neste trabalho não tanto apresentar as qualidades positivas e negativas da
ciência moderna. Mas sim, mais especificamente, a sua formação e a participação de René Descartes
na sua estrutura. Bem como algumas limitações dessa ciência.
Para tanto, abordaremos o período do renascimento que marca o início da Idade Moderna. A
seu respeito procuraremos traçar algumas considerações no que é pertinente a como aconteceu sua
estruturação. Bem como sobre a composição da filosofia naquela época.
Depois disso, passaremos a falar sobre a necessidade que havia de se estabelecer um
método para fundamentar uma ciência na época moderna. E a participação de Descartes na formação
da ciência moderna.
E por último procuraremos refletir sobre alguns dos limites da ciência moderna e as novas
possibilidades que emergem para pensar diferente a ciência na atualidade.
1 ALGUNS ASPECTO RELEVANTES DO CONTEXTO HISTÓRICO DA MODERNIDADE QUE
ANTECEDEM A CIÊNCIA MODERNA
O mundo (entendido aqui também como espaço, universo...), ou ainda a idéia que dele se
produziu ao longo do desenrolar dos sinuosos caminhos da história humana, recebeu significações
variadas. Na história da filosofia, em especial, foi tema de grande relevância. Desde as primeiras
tentativas gregas de compreensão e explicação da realidade, fundamentadas pelos filósofos da physis2
(natureza), mas não limitando-se a elas, o mundo ocupou uma posição de centralidade na vida do
2
Possui também uma significação mais ampla. A qual diz respeito à realid ade, mas não aquela pronta e acabada, e sim
aquela que se encontra em movimento e transformação, a que nasce e se desenvolve. Tendo em vista essa perspectiva,
pode-se dizer que significa orig em, gênese, manifestação. Os primeiros filósofos se preocuparam e buscaram descobrir a
origem, a estruturação e a ordenação da realidade das coisas e, se existe um prin cípio único (arkhé) que rege e ordena
todas as coisas do mundo. (ZILLES, 2006, p. 49)
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homem e, por vezes, norteou os rumos do seu pensar, influenciou o seu agir e orientou seu modo de
ser.
As diferentes concepções ou cosmovisões que se desenvolveram no decorrer dessa mesma
história a partir de questões como: o que é ou como é esse mundo no qual vivemos? De onde viemos?
Quem somos nós? Assim, contribuíram também decisivamente, com boa parcela, para moldar
sistematicamente a filosofia e as ciências ocidentais, das quais nos ocupamos hoje. E, é importante
recordar também que, em cada um dos períodos nos quais cada uma dessas concepções ou
cosmovisões foi suscitada houve a determinação de uma imagem do homem. A qual de algum modo
prescreveu a conduta do mesmo.
Tendo presente essa breve e panorâmica contextualização histórica, que objetiva expressar
apenas algumas particularidades integrantes da formação da filosofia e das ciências ocidentais, a qual
não se estende para além das próprias potencialidades que possui a capacidade de suscitar, que
simboliza apenas um medíocre lampejo de síntese frente ao amedrontador e complexo universo que
compõe a história humana. Mas que é de grande relevância para este trabalho. É pertinente e vem
contribuir de modo qualitativo neste momento, para evitar possíveis inconvenientes de ordem
conceitual, bem como para ampliar nossos horizontes teóricos relacionados ao significado do termo
anteriormente utilizado (cosmovisão), o qual nos servirá como um dos instrumentos para melhor
desenvolver o presente trabalho, apresentar o conceito de cosmovisão desenvolvido por Crema (1989,
p.17) . Do qual nós partilhamos. Em suas palavras:
Cosmovisão, alé m de significar uma visão ou concepção de mundo expressa também uma
atitude frente ao mesmo. Portanto, não é uma mera abstração, já que a imagem que o
homem forma do mundo possui um fator de orie ntação e uma qualid ade modeladora e
transformadora da própria conduta humana. Implícito em toda a cosmovisão há um caminho
de ação e realização. Fala ndo sobre este tema, o médico psicoterapeuta suíço Carl Gusta v
Jung (1875-1960) afirmava que “o conceito que formamos a respeito do mundo é uma
imagem daquilo que chamamos mundo. E é por esta imagem que orie ntamos a adaptação
de nós mesmos à realid ade” .
Expresso esse conceito de cosmovisão e, tendo em vista o objetivo ao qual nos propomos
para este trabalho: Refletir acerca da ciência que formou-se na modernidade, a participação cartesiana
na estrutura dessa ciência e alguns limites nas perspectivas dessa mesma ciência, a fim de discutir
sobre outras possibilidades, ou perspectivas da ciência na atualidade. Faz-se necessário, para que
possamos concretizar esse objetivo, a realização de algumas ponderações a respeito do contexto
histórico que precedeu o pensamento de René Descartes e que contribuiu para o despertar dessa
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ciência. Isso nos leva a abordagem de um período da história conhecido como Renascimento. O qual
marca o início da idade moderna.
1.1 Renascimento
O período da história ocidental que se segue ao final da I dade Média e que antecede “a
revolução científica, isto é, (...) aquele poderoso movimento de idéias, que a partir da publicação do De
revolutionibus, de Copérnico (1543), alcançou suas características fundamentais no século XVII com a
obra de Galileu, encontrou os seus filósofos em Bacon e Descartes e depois iria ter a sua expressão
clássica na imagem newtoniana do universo concebido como um relógio” (REALE; ANTISERI, 2004,
p.7), é conhecido e convencionalmente admitido em história como Renascimento 3. O mesmo pode ser
concebido e compreendido, considerando-se uma das múltiplas faces que o estruturam, como um
amplo movimento espiritual, sociocultural, artístico e político. Ou mesmo ainda, como um movimento
caracterizado por buscar regenerar e reformar a imagem espiritual do homem, tomando como
referência a história literária da antiguidade clássica grega e romana. É claro, com objetivo de construir
uma realidade nova, diferente da já vivida na Grécia clássica e na Roma Antiga. Bem como na Idade
Média. É a tentativa de retomar o autêntico que havia nas civilizações grega e romana e partindo dele
construir uma realidade que correspondesse aos novos anseios que, na E uropa desse momento,
despertavam.
Segundo o Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano apud Zilles (2006, p.124), o
Renascimento apresenta as seguintes características:
1) O humanismo, isto é, o reconhecimento do valor do homem e a crença de que a
humanid ade se realizou em sua forma mais perfeita na antig uid ade clássica;
2) A renovação religio sa efetivada através da tentativa de lig ar-se novamente a uma
revela ção originária, na qual se teria m inspirado os próprio s filósofos clá ssicos, como é o
caso do pla tonismo, ou através da tenta tiva de reatar o contato com as fontes origin árias do
cristianismo, passando por cima da tradição medieval, como é o caso da Reforma;
3) A renovação das concepções políticas efetivada com o reconhecimento da orig em
humana ou natural das socie dades e dos esta dos (Maquia vel) ou com a tentativa de voltar
às formas históricas origin árias (pré-naturalismo);
4) O naturalismo, isto é, o renovado in teresse pela pesquisa direta da natureza, que se
manifesta quer no aristote lismo ou nas orentações mágicas, quer na metafísica da natureza
(p.819).
3 Vai
desde fins do século XIV até o fim do século XVI.
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Diante disso, podemos salientar ainda que o Renascimento também foi um período
surpreendente na história humana, se o observarmos tendo em vista o prisma suscitado pela
conceituação anteriormente apresentada de cosmovisão. Justamente porque nele houve a formação e
operação de uma cosmovisão diferente das que, em períodos históricos precedentes, vigoraram. O
mundo e o homem no renascimento são abordados de uma maneira peculiar e única. Como podemos
perceber pelo que o próprio Leonardo da Vince 4 apud Abrão e Coscodai (2002, p.130), um dos grandes
e mais célebres nomes artísticos da renascença, um dia disse: “O homem é o modelo do mundo”.
(Com essa citação queremos expressar a ênfase especial, a importância particular que ao homem foi
conferida em termos socioculturais, artísticos e, em menor parcela científicos, a partir desse período.)
Podemos dizer que a partir do Renascimento as imagens, do mundo e do homem, começam,
paulatinamente, a receber alterações ou modificações significativas em sua constituição. E, com isso (a
qual de longe é a principal causa), a cosmovisão medieval, aristotélico-tomista, até então admitida e
viv ida, começa a ser questionada. Acabando por, progressivamente, tornar-se mais um produto
humano obsoleto.
Antes, porém, de refletirmos um pouco acerca do porque da imagem molde suscitada por
Leonardo, a qual de certa forma expressa resumidamente algumas peculiaridades do ideário viv ido e
almejado no renascimento, os quais são pertinentes para essa reflexão, é imprescindível que
entendamos, ao menos sinteticamente (se é que isso é possível), alguns aspectos peculiares da
composição desse momento da história. O qual permitiu pela sua expressão pensar abertamente aquilo
que gerava inconveniente. Para tal empreitada, imaginemos o seguinte contexto.
Havia algo no ar. Um desejo, talvez. Ou uma necessidade. Um movimento sutil na direção
da mudança. Uma vontade cole tiva de experimenta r, descobrir, transformar. Corria o século
XIV, e na Europa [...] começou a tomar forma aquilo que mais tarde o mundo conheceria
como Renascimento.
Ávidas, as pessoas revisita vam os valores da Antiguid ade clá sica. Vasculhavam velhos
textos e redescobria m o ideal artístico do universo greco -romano. Mas não se tratava duma
simples volta ao passado remoto. Acreditando-se herdeiras dessas antigas tradições, essas
pessoas começaram a produzir um mundo diferente. Beneficiadas pelo desenvolvimento
sem precedentes da ciência e da técnica, lançavam-se aos mares, aventuravam-se para
além das terras conhecidas e chegavam ao novo mundo – que passaria a inte grar, na
qualidade de colô nia , o sistema econômico e político da Europa. (ABRÃO; COSC ODAI,
2002, p.127).
4
Nasceu em (1452-1519) Vince, perto de Florença, na Itália. Artista (com maior destaque para a pin tura) e sábio de grande
renome, Leonardo é autor de “ inúmeras telas que ain da hoje são marcos na pintu ra e constituem os mais célebres
arquétipos do ocidente: Adoração dos magos, A virgem dos rochedos, A última ceia [...], A virgem, Menino Jesus e Sant’
Ana, Mona Lisa.” (CHASSOT, 2004, p.134).
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Ainda nessa mesma perspectiva, de compreender alguns aspectos peculiares
da
composição do contexto do Renascimento, é pertinente apresentar a observação sobre esse período
da história, mais especificamente sobre as viagens de Cristóvão Colombo à América, realizada por
Robert B. Downs (1969, p.13). A mesma é expressa através da seguinte afirmação: “Um espírito de
avent ura pairava no ar e estava montado o cenário para uma incomparável época de descoberta e
exploração”.
É importante lembrar e considerar também que, a curiosidade pelo novo, ao menos nos
círculos ditos intelectuais, representa uma das características de maior significação do renascimento.
Contudo, tendo em vista o que até o presente momento já foi dito a respeito desse período
da história da modernidade, surgem determinadas perguntas que nos intrigam e por isso nos estimulam
à compreensão mais detida do mesmo. Tais como: o que possivelmente causou o Renascimento? O u
melhor, quais causas possivelmente levaram ao surgimento do Renascimento?
Assim sendo, no intuito de tentar dar uma resposta a qual contemple ao menos parte dessas
questões que inevitavelmente emergem. O que de modo algum é uma tarefa das mais simples de ser
realizada, considerando as dimensões gigantesca que compreendem tal contexto histórico. Pensamos
que o que diz o professor Antônio José Borges Hermida (1963, p. 29) sobre elas pode nos ajudar.
Costuma-se citar como causa do Renascimento a imprensa que concorreu, com a
divulg ação do papel, para baratear o livro, antes tão caro, porque era feito pelo s copista s
(manuscritos), em papiro ou pergaminho.
Outra causa importa nte foi a proteção que aos artistas dispensavam os mecenas, nome que
lembra o romano Mecenas, da época de Augusto, que protegia os escrito res daquele
tempo; os principais foram Lourenço o Magnífico, de Florença, e o papa Leão X que
mandava repicar os sin os de Roma sempre que encontrava alg uma obra de arte. Também
foi causa do Renascimento o êxodo para a Itália dos sábio s bizantinos, quando os turcos se
apoderaram de Constantinopla.
Como podemos perceber, a partir do que o professor Antônio em poucas palavras expressa,
existem várias causas que são apontadas como fundadoras do Renascimento. Cada uma delas, a seu
modo, teve importância ímpar na constituição desse período. Sendo assim, não há como optarmos
apenas por uma delas e partindo daí fundamentarmos a formação do Renascimento. Pois bem, então
tentaremos abordar esse contexto do de um modo diferente.
A Itália, como convencionalmente é admitido em história, foi o berço do Renascimento. Não
podemos negar este fato. Ou mesmo ignorá-lo. Realmente ela foi o berço esplendoroso do
Renascimento. Contudo, podemos dizer que a mesma só o foi porque reuniu as melhores condições
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(geográficas inclusive)5 para que o mesmo pudesse nascer, florescer. E depois iniciar seu processo de
expansão para toda a europa.
Entretanto, se pensarmos por outro prisma, o Renascimento poderia ter surgido primeiro em
outro lugar que não fosse a Itália? Talvez.
Vamos procurar compreender, antes de qualquer outra coisa, algumas peculiaridades do
contexto italiano daquele momento (séc. XV), as quais contribuíram também de maneira efetiva
(mesmo não sendo as únicas) para o despertar do mesmo.
Nesse sentido é importante ter presente que:
A Itália, que pela sua posição geográfica controlava o comércio no Mediterrâneo, era a mais
rica das regiõ es. Ali nasceram o sistema de letras de câmbio e de seguros, os bancos e
outros mecanismo que tornaram mais ágil a atividade mercantil. Foi também nessa
península que as comunas desenvolveram-se em cidades-Estado, o que impediu por
séculos, ao contrário do que aconteceu em outros países, a unificação nacional ita liana. [...].
As cidades italia nas, assim, reuniram as melhores condições para a emergência do
Renascimento . Sua riqueza permitia a contratação de sábios, filó sofos, cie ntistas e artistas.
Além disso a proximidade com Constantinopla fez com que a Itália se tornasse o refúgio
natural dos emigrados que fugia m da invasão turca. E com ele s chegou à península a rica
tradição Intelectual e cultural do Império Romano do Orie nte, do qual faziam parte diversos
textos gregos desconhecidos do Ocidente. (ABRÃO; C OSCOD AI, 2002, p. 129- 130).
A Itália, portanto, não podia não ser o local da Europa mais propício para a emergência do
Renascimento. Dito isso, pensemos agora o Renascimento considerando-o a partir de uma abordagem
mais geral, mais ampla. A qual nem por isso é menos complexa ou dinâmica.
A Europa durante o século XV (no qual houve a substituição de um sistema de governo por
outro: o feudalismo é substituído pelo absolutismo) e XVI estava passando por um processo
extremamente conturbado de transição 6. Muitos dos conceitos, valores, crenças e ideais socioculturais
e religiosos começavam a se esfacelar. E algumas das instituições soberanas mais esplendorosas de
então, a cada momento, perdiam credibilidade perante a sociedade da época e não tardavam em
adentrar nos domínios da decadência.
A Igreja Católica na qual vigoravam ainda, mesmo que claudicantes devido as críticas
ferrenhas realizadas por pensadores da época (especialmente Erasmo de Roterdam, e, em parte
Maquiavel), os preceitos da filosofia da escolástica a qual valia-se da transcendência para explicar a
natureza das coisas, é um dos exemplos mais destacados dessa realidade mutante. As forças de
5
A Itália controlava o comércio no mediterrâneo e era a mais rica das regiõ es de então. E tudo isso graças a posição
geográfica favorável que ocupava.
6 Essa transição ou mutação que era de ordem econômica, política e sociocultural, podemos dizer, que acontecia de
maneira vagarosa, lenta e não de forma repentin a.
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orientação e manipulação social e cultural dessa instituição, diferentemente do período medieval,
apresentavam agora sinais cada vez mais aparentes de debilidade, mesmo que ainda participasse
ativamente de modo direto e decisório na estruturação dos caminhos da sociedade. Podemos dizer
assim, tendo em vista essa perspectiva, juntamente com Á ttico Chassot (2004, p. 127) que: “Os direitos
das nações e dos cidadãos passaram a se sobrepor à tradição universal da autoridade eclesiástica”.
As ciências, por conseguinte, também não poderiam estar alheias ou imunes a esse
contexto. Bem pelo contrário, elas sofriam muitas críticas, como as que eram dirigidas a igreja católica,
senão mais intensas. Segundo Robert B. Downs (1969, p. 12) “Nos círculos educados, as ciências
naturais eram altamente ignoradas ou desprezadas. [...] Entre 1500 e 1690, poetas e pintores
sobrepujaram, de longe, os grandes nomes da ciência”.
É digno de nota lembrar também que a ciência neste momento estava permeada por
superstições, pela magia, pela alquimia, pela astrologia e pela tradição hermética. Não havia ainda um
parâmetro ou um método claro e bem definido sobre o qual os cientistas de então pudessem se apoiar
para desenvolver suas ciências. A razão aqui é importante, mas ainda não é característica essencial e
absoluta para determinação da verdade das coisas, do mundo. Apesar de haver uma emergente
ênfase na busca de uma cada vez maior, mais ampla e consistente autonomia racional do homem.
Paralelamente a isso, podemos dizer que, havia um sentimento de maior expressão que se
apresentava, às vezes de modo mais intenso às vezes de modo mais tênue, mas constante e, o qual
era vivido pela grande maioria das pessoas da sociedade renascentista, mesmo diante do crescente
desejo de explorar e descobrir inspirado pelas viagens de Colombo à América. Esse sentimento era o
de insegurança. Insegurança por se estar em face de um universo de possibilidades que emergiam,
paulatinamente (mas de maneira incessante), com as novas invenções que se desenvolviam, mais
amplamente, no terreno das artes, da arquitetura, da engenharia, da navegação, da medicina e da
astronomia. Até mesmo os livres pensadores mais ousados (os quais detinham com maior ênfase suas
atenções na elaboração dessas inovações inventivas) estavam preocupados e angustiados com o
futuro desconhecido que essas novas possibilidades viabilizavam.
Porém, esse sentimento de insegurança, o qual era vivido pela sociedade de então, não
inibia, de modo algum, a vontade, o desejo que havia no ar de criar. Podemos dizer que, a criatividade
juntamente com a curiosidade, são características das mais marcantes do Renascimento. E que uma
das conseqüências dessas características foi a construção de ambiente favorável para a emergência
de um “espírito de livre exame” (HERMIDA, 1963, p. 32). Isto é, de uma maior liberdade para o pensar.
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Diante disso, entendendo-nos também como participantes (por força e influência da situação
é claro) desse contexto, o qual de certa forma desperta a nossa liberdade de exame, vamos nos
conceder, assim, a liberdade para redimensionarmos um pouco o enfoque das nossas observações.
Passemos, por conseguinte a dirigir nossas atenções à filosofia no Renascimento. A qual promove uma
resignificação de alguns
conceitos filosóficos antigos e, concomitantemente, desenvolve outros
particularmente novos que influenciam a sociedade, a cultura e a ciência desse período.
1.2 Alguns acenos sobre a estrutura da filosofia no Renascimento
A filosofia na renascença apresenta-se de maneira muito interelacionada no que diz respeito
a elaboração de seus conceitos. Por conta disso, ao deixarmos de lado alguns de seus personagens
proeminentes em termos de construção de pensamento, bem como de influência sociocultural e, em
contrapartida, optarmos por apresentar apenas determinado grupo de pensadores, corremos o risco de
não captá – la ou compreendê-la em sua integridade e assim deturpá-la. Contudo, se optarmos por
expressar a todos e por refletir acerca dos pensamentos elaborados por cada um fugiremos de nosso
objetivo proposto. Pois a realidade da renascença é muito complexa e inspira muitos cuidados.
Sendo assim, a abordagem que vamos realizar sobre a filosofia no renascimento objetiva
apenas trazer presente, para fins de reflexão (e por isso serão apresentados apenas alguns
pensadores, que não são tão expressivos assim em comparação com outros desse mesmo período),
alguns elementos que eram vividos naquele momento. Os quais pensamos ser importantes para o
trabalho porque de maneira panorâmica representam aspectos fundamentais do contexto que antecede
aquele período áureo da ciência conhecido como revolução científica. Bem como, porque de algum
modo ajudam a impulsioná-lo. São eles: a atuação das diferentes correntes de pensamento clássica na
elaboração do quadro teórico-argumentativo; a releitura de Platão a partir de perspectivas diferentes;
a relação do conceito de microcosmo com a “ciência” renascentista;
a posição de centralidade
adquirida pelo homem e sua autoridade frente a natureza; a razão como critério para o
desenvolvimento do conhecimento; o ceticismo em relação a aquilo que se conhece.
Antes, porém, de ponderarmos sobre qualquer outra coisa é importante termos presente o
seguinte.
No fim da Idade Média, o homem começou a ocupar-se do mundo sem referência explícita
a Deus. Isso não significa, em si, que nega a realidade de Deus e da fé. Afirma apenas que
Deus e as verdades da fé não são fenômenos verificáveis e mensuráveis pelo s métodos
das ciências. Essas realid ades situam-se numa outra dimensão. (ZILLES, 2006, p.127)
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A filosofia, na renascença, manifestou-se de forma muito diversificada. No âmbito de sua
abrangência foram repensadas, reabilitadas e reinventadas várias correntes ou escolas de pensamento
de origem clássica. As quais, por seu turno e a seu modo, atuaram como escultoras da cultura
idealizada e viv ida nesse período.
Simultânea ou interconectadamente a essa reabilitação, todavia, conviveu uma
particularidade que caracterizou esse período, a qual precisa ser mencionada por ter motivado muitos
dos pensadores desse momento: trata-se da renovação religiosa. Segundo Reale e Antiseri (2004,
p.98) “ Todo o pensamento humanistico-renascentista é perpassado por poderoso frêmito e por grande
anseio de renovação religiosa”. Erasmo de Roterdam e Martinho Lutero são representantes diretos da
explosão da problemática religiosa que se sucede nesse período. Erasmo pondo o humanismo a
serviço da reforma, sem no entanto romper com Igreja Católica. E Lutero, ao contrário, empolgando o
próprio humanismo e quebrando a unidade cristã. (REALE; ANTISERI, 2004, p.98).
Diante disso, contudo retomando a questão da referida reabilitação de algumas das escolas
clássicas, podemos dizer que reavivam-se no renascimento, especialmente, algumas das escolas
helenísticas tradicionais (pagãs 7) de pensamento. As quais participam da estruturação do quadro
teórico-argumentativo deste momento. As escolas de que se fala correspondem ao epicurismo, ao
estoicismo, ao ecletismo e ao ceticismo 8 (o qual pode ser percebido nas reflexões de vários filósofos da
época, inclusive, posteriormente, no pensamento de Descartes, claro que de um modo diferente deste
que aqui é vivido). Estas escolas, se nos cabem juízos, podemos afirmar sem receio, foram, entre
outros fatores socioculturais, responsáveis pela construção do espírito inquieto e inovador do
renascimento.
Se, contudo, partirmos para uma observação mais detida do contexto histórico filosófico
dessa época, poderemos perceber que essas mesmas escolas foram mais discretas, precipuamente no
século XV ( pois o século XVI corresponde ao momento de sua ascendência e firmação), e
influenciaram em grau bem mais tênue a cultura e a sociedade de então se comparadas ao
neoplatonismo e o aristotelismo desse momento. Justamente porque neste século (XV) predominam o
neoplatonismo e, em parte, o aristotelismo. (REALE; ANTISERI, 2004, p.92). Eles são, digamos, as
mais vigorosas fontes de onde emergem as forças culturais motrizes da filosofia da época. Claro que,
ao afirmarmos isso, não queremos de modo algum ignorar, desmerecer ou mesmo menosprezar as
7 São
8O
aquelas escolas que não se enquadram dentro da filo sofia cristã por seus preceitos serem contrários aos da mesma.
maior representante dessa escola no século XVI é Michel de Montaigne.
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outras fontes que no momento também atuavam interelacionadamente de modo relevante. Como é o
caso do misticismo, da cabala, da astrologia e da tradição mágico-hermética 9. Mas apenas assinalar o
seu relevo um pouco mais perceptível dentre as demais.
Segundo Reale e Antseri (2004, p. 57): “A época do humansimo e do renascimento é
marcada por maciça revivência do platonismo, que cria têmpera espiritual inconfundível.” (Descartes,
mesmo não sendo renascentista, é atingido diretamente por alguns dos resultados dessa reviência.
Porém, este ainda não é o momento para tratarmos disto.) É possível ser afirmado, tendo em vista
esse pensamento de Reale e Antiseri, que Platão é um dos principáis pensadores (senão o principal
pensador) ao qual se dedicam as atenções e os estudos mais detidos no renascimento. E é
especialmente à ele que muitos dos estudiosos recorrem para desenvolver e justificar 10 suas posições
diante da realidade da época (século XV).
O inconveniente, contudo, é que havia um problema segundo Abrão e Coscodai (2002,
p.136). O material que se dispunha sobre o pensamento de Platão nesse período ainda era muito
duvidoso. “O que se sabia dele vinha mais dos comentários que se faziam a seu respeito do que das
poucas obras que haviam chegado à Europa.”
Reale e Antiseri (2004, p.57-58), em contrapartida, observam essa mesma situação a partir
de um prisma diferente. O qual parece ser um pouco mais preciso e digno de nota. Ele diz que:
A revivência do pla tonismo, porém , não significa o renascimento de Platão tal como o
encontramos expresso nos diálo gos. É verdade que a Idade Média leu pouquíssimos
diálo gos (Menon, Fédon e Timeu) e que, ao contrário , ao longo do século XV, os diálo gos
foram todos traduzid os para o latim, as versões de Leonardo Bruni alcançaram grande
sucesso e muitos humanistas puseram-se em condições de ler e entender o texto grego
original. Entretanto, o texto platô nico redescoberto contin uou a ser lid o à luz da tradição
platônica posterio r, ou seja, em função dos parâmetros que os neopla tônicos tornaram
canônicos.
Outro ponto que se deve recordar e ser considerado, segundo Reale e Antiseri (2004, p.58),
é que:
[...] com os neoplatô nicos, os próprio s escritos aristotélicos, em certo sentido, foram
assumidos na tradição, comentados em certa ótica e considerados como os “pequenos
9
Diz respeito a tradição Hermética, “ isto é, a tradição que, referindo-se a Hermes Trismegisto (...), tinha como prin cípio s
fundamentais o parale lismo entre o macrocosmos e o microcosmos, a simpatia cósmica e a concepção do universo como
ser vivo.” (REALE; ANTISER I, 2004, p.189).
10
No sentido de manter religiã o e ciê ncia rela cinando-se de maneira não conflitante, mas sim sob a forma de parceria .
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mistérios” , com a função de introduzir aos “ grandes mistérios” , ou seja, como escritos
propedêuticos capazes de preparar a compreensão de Platão.
Destarte, levando em consideração o que já foi expresso sobre esse contexto, podemos
dizer que o neoplanismo (o qual se apresenta neste momento como tentativa de reabilitação do
platonismo presente nos diálogos de Platão) corresponde a filosofia que exerce maior predomínio,
especialmente na estruturação moral, cultural e religiosa, no século XV e, em parte, do século XVI .
Por conseguinte é bom recordarmos, sucintamente, ao menos alguns de seus
representantes. Bem como alguns de seus pensamentos mais expressivos. A começar pelo precursor
da filosofia alemã e, em alguns aspectos (não naqueles de demostração matemática, mas sim
naqueles que dizem respeito a hipótese), antecipador do pensamento de Nicolau Copérnico. O cardeal
e bispo de Brixen Nicolau de CusaI (1401 – 1464). Ao qual, entre outras coisas, “se atibui em geral o
mérito, ou o crime, de ter afirmado a infinitude do universo”. (KOYRÉ, 2010, p.10).
Nicolau de Cusa foi um dos pensadores mais proeminentes do século XV. Em sua teoria do
conhecimento, desenvolveu suas idéias a respeito da inevitabilidade das contradições humanas e
defendeu a necessidade de um diálogo mais amplo. Ele queria aproximar, para fins de melhor
compreensão recíproca, cristãos, judeus e muçulmanos. O que expressa uma preocupação específica,
própria dos renascentistas: a tolerância religiosa.
Por conta disso, segundo Leandro Konder (2001, p.8), “A preocupação central da reflexão de
Nicolau de Cusa é a da combinação da unidade com a diversidade, a interdependência dos opostos, a
coincidentia oppositorum.”
A expressão maior de seu pensamento é representada pela “docta ignorântia”, um tipo de
conhecimento resultante de métodos extraídos de processos matemáticos 11. Para entendermos melhor
essa “docta ignorantia” recorremos à Giovanni Reale (1990, p.63) sobre a qual diz:
Em geral, quando se busca a verdade acerca das várias coisas, põem-se em rela ção e
comparam-se o certo com o incerto, o desconhecido com o conhecido. Portanto, quando se
indaga no âmbito das coisas finitas, o juízo cognoscitivo é fácil ou difícil (quando se trata de
coisas complexas), mas, de qualq uer modo, é possível. Entretanto , as coisa são bem
diferentes quando se in daga do in finito , que, enquanto tal escapa a toda proporção,
restando-nos, portanto, desconhecido. É a essa causa do nosso não saber em rela ção ao
infinito: precisamente o fato de ele não ter “ proporção” alguma em relação às coisas finitas.
A consciência dessa desproporção estretural entre a mente humana (finita ) e o infin ito, ao
qual porém ela te nde e pelo qual anseia, e a busca que se mantém rigorosamente no
âmbito dessa consciência crítica constituem precisamente a douta ignorância .
11
A matemática é a ciê ncia que está em alta nesse momento. Ela é utilizada especialmente para a navegação e cálculos
na área da construção.
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Abrão e Coscodai (2002, p.138), em contrapartida, abordam este mesmo tema de modo
diferente. Elas dizem que o homem precisa reconhecer, antes de mais nada, suas limitações no que diz
respeito a sua capacidade de conhecimento. Em suas palavras.
É preciso que o homem reconheça os limites de sua capacid ade de conhecimento, ou, em
outras pala vras, de sua ig norância. Essa douta ig norância (expressão de Santo Agostin ho
que dá título à princip al obra de Nicola u de Cusa) não é apenas a confissão da impotência
da razão humana. É também uma sabedoria que percebe a sua fraqueza - e que
socraticamente, sabe que nada sabe -, e disso faz uma via de acesso a Deus.
É importante e pertinente também termos presente o conceito de microcosmo que Nicolau
desenvolve e que estende até o homem. O qual o coloca em perfeita sintonia com os humanistas de
sua época, “que fizeram do conceito de microcosmo verdadeira bandeira ideal, a marca espiritual de
toda uma época.” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 68).
De modo resumido este conceito pode ser pensado da seguinte forma. No universo todas as
coisas estão em relação e cada parte resplandece em si a totalidade do universo. Assim, “tudo está em
tudo” 12. O homem, em cada uma de suas partes, resplandece todas as coisas e todas as coisas, do
mesmo modo, resplandecem no homem. Por conseguinte, ele é uma síntese do universo, ou seja, é
também microcosmo. Mas, nos perguntamos, por que é importante para o nosso trabalho termos
presente este conceito?
Em resposta a essa pergunta podemos dizer que é porque este conceito de microcosmo é
muito utilizado na “ciência” renascentista. E como nosso trabalho é voltado à ciência moderna é
importante estar a par dele para entendermos o que ajudou a conduzir ao desenvolvimento da
mesma 13. Ele é utilizado na “ciência” renascentista, especialmente, na busca de semelhanças 14,
12 Máxima
desenvolvida por Anaxágoras.
A ciência moderna teve que romper com a visão científica renasentista para se desenvolver. Portanto, o conceito de
microcosmo também teve de ser refutado. Ele (junta mente com toda a “ ciê ncia” do renascimento) ajudou a ciência moderna
a se desenvolver no fazer a mesma pensar algo diferente que correspondesse aos anseios de explicação da realid ade e de
conhecimento das coisas da socie dade da época e, ao mesmo tempo, o ultrapassasse e o tornasse obsoleto e sem
relevância científica. Isto é, destituindo-o de uma posição na qual pudesse propicia r alg uma base para o conhecimento
científico. (ZILLES, 2006, p. 66).
14 A concepção de que o mundo se dá por meio da semelhança entre as coisas na natureza é a base do conhecimento
científico renascentista. Por isso é que havia uma busca constante para desvendar os significados secretos que existem
entre ela s. Estas semelhanças podem ser melh or compreendidas através da noção, tomada ao pensamento helenístico, da
“ simpatia” cósmica e de seu oposto, a “antip atia” . Através de um exemplo prático podemos dizer que, assim como o Sol e a
Luz iluminam o mundo, os dois olhos do rosto recebem a Luz. O sol é também simpático ao coração, pois ambos são
essencia is à vida; aquele se identifica com o ouro pelo brilh o e pela precio sidade. (ABRÃO; C OSCOD AI, 2002, p. 148).
Neste momento, é bom recordarmos também, que começa-se a ser conferid o valo r mais intenso à observação dos
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significados comuns que nas coisas que compõem a natureza se ocultam, para a partir destas
semelhanças desenvolver uma explicação mais verdadeira, mais condizente com a realidade do
mundo. Uma vez que “O que se denomina ciência, no Renascimento, desenvolve-se com base nessa
concepção do universo, de que tudo se assemelha a tudo.” (ABRÃO; COSCODAI, 2002, p. 147). E
que:
[...] o que a “ ciê ncia” renascentista investiga não é a causa que rela ciona as coisas entre si,
mas o significado comum que nelas se oculta. O mundo é essa relação de sig nificados
secretos, uma espécie de texto a ser decifrado – o código são as próprias coisas, tomadas
como signos. (ABRÃO; COSCODAI, p. 148)
Marcílio Ficino (1433- 1499) é outro representante expressivo desse neoplatonismo. Seu
pensamento é uma espécie de neoplatonismo cristianizado. Assim como Nicolau de Cusa, também é
“figura ligada” 15 a Igreja Católica. Por conseguinte, não deve causar espanto a aproximação que faz
entre o platonismo e o cristianismo.
Seu Trabalho girou em torno, especialmente, da tradução e difusão das obras e idéias de
Platão e Plotino. Foi ele quem fundou, em Florença na Itália, a Academia, dedica aos estudos de
Platão. Expôs o seu pensamento em uma grande obra (Theologia platonica de immortalit ate animorum
- 1491), em que procura concordar o platonismo, de que era entusiasta, com o cristianismo, em que
acreditava seriamente.
Entretanto não foi um metafísico, pois suas finalidades eram morais. Sua idéia animadora é a
exaltação do homem como microcosmo. Outra idéia sua inspiradora é o conceito de uma continuidade
do desenvolvimento religioso, que vai desde os antigos sábios e filósofos - Zoroastro, Orfeu, Pitágoras,
Platão - até o cristianismo: expressão do universalismo religioso da Renascença.
João Pico Della Mirandola (1463 – 1494), o qual foi aluno de Marcílio Ficino, também é
outro representante dessa corrente sobre o qual deve-se ao menos fazer uma menção breve. Seu
pensamento foi muito marcado, como o da grande maioria dos pensadores da época, pelo misticismo,
pela doutrina mágico-hermética., bem como pela cabala. Ele busca, entre outras coisas, fazer uma
conciliação entre filosofia e religião. Apoia-se muito para desenvolver essa conciliação no tema:
dignidade humana (o qual enquadra-se naquelas características do renascimento que na seção
fenômenos naturais e às experiência s manip ula das. A observação e a experiência inicia m sua in tegração gradativa no
desenvolvimento do conhecimento científico.
15 Ele era padre. Sua ordenação aconteceu em 1473 quando contava com quarenta anos de id ade.
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anterior foram referidas). Tema ao qual é dedicada atenção especial pela grande maioria dos
pensadores da época.
Sobre esse tema, dignidade humana, e falando a respeito de Marcílio Ficino e Pico della
Mirandola, bem como acerca do que eles disseram sobre o mesmo Abrão e Coscodai (2002, p.139)
escreve:
É a dignid ade humana que se voltam principalmente o platônicos renascentistas reunidos
na Academia – centro de cultura dedicado às discussões e ao estudo da filo sofia em
florença -, como Marcílio Ficino (1433-1499) e Pico delle Mirandola (1463-1494), este último
é autor de uma obra intitula da Discurso sobre a Dignidade do Homem. Para eles, Platão
mostra a capacid ade do ser humano ele var-se ao mundo inteligível e, assim, unir-se a
Deus. Ficino arrisca até mesmo afirmar que o homem é “uma espécie de Deus” , posto no
mundo para possuí-lo , enquanto Mirandola considera que o homem, ao contrário de outras
criaturas, não recebeu do Criador nenhum lugar ou natureza que lhe fossem próprio s e que,
por isso, encontra-se livre para se apoderar do mundo como achar melhor.
Tendo em vista essa perspectiva suscitada por Abrão e Coscodai a respeito do homem
partindo de algumas das idéias desenvolvidas por dois dos produtos diretos do momento histórico do
Renascimento, Marcílio Ficino e Pico della Mirandola, podemos perceber que a forma como o homem é
encarado, especialmente no terreno que corresponde a teoria, ou melhor, ao círculo onde é
desenvolvido o pensamento mais elaborado, vai sendo transformada. Aos poucos ele começa a
assumir uma posição de maior centralidade. Começa a tornar-se o sujeito da história e não mais
apenas mero coadjuvante. Bem como, coloca-se em posição de autoridade frente ao conhecimento da
natureza e seus fenômenos.
Em meio a todo esse contexto neoplatônico, entretanto, é um aristotélico e naturalista quem
proclama a autonomia da razão. Pedro Pomponazzi (1462 – 1525), o mais insigne aristotélico
renascentista, conhecido, sobretudo por sua problemática da alma. “Sua obra que maiores polêmicas
suscitou foi o De imortalitate animae, que debatia problema central no século XVI”. (REALE, p. 88) .
Segundo Abrão e Coscodai (2002, p.140), o mesmo
Declara que o dogma da imortalidade da alma é indemonstrável que os milagres não
passam de fenômenos naturais, que só aos olhos dos ig norantes aparecem como
intervenção direta de Deus.
Mas, cauteloso, ele também admite que a fé contém a verdade, embora distinta da que a
razão descobre. Com essa noção de doppia verità (dupla verdade), Pomponazzi
desembaraça-se da fé para proclamar a autonomia da razão. A filosofia e a ciência - assim estão livres para in vestigar a natureza e sua rela ção com o homem, que é tomado como
fim e m si mesmo.
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Deste modo, a razão doravante passa a ser tomada como um dos critérios indispensáveis,
mesmo não sendo ainda o critério absoluto, para o desenvolvimento do conhecimento e,
conseqüentemente, da ciência. Ao passo que a fé e muitos dos preceitos vividos pela teologia cristã (e
conseqüentemente pela sociedade de então) começam a não mais ser suficientes para tudo explicar.
Ou melhor, para explicar a realidade natural a qual o homem está também inevitavelmente
condicionado.
Aquela imagem molde de Leonardo da Vince, de que o homem é modelo do mundo, que
suscitamos anteriormente pode agora ser retomada. Pois ela aparece como resultado de pensamentos
como esses que apresentamos. Em última instância, ela quer representar a maior valorização que ao
indivíduo é conferida neste momento. Bem como a afirmação concreta das capacidades de
conhecimento que o mesmo possui. Há aqui a idéia de que o homem pode conhecer a coisas por si só.
Há um otimismo nas possibilidades e potencialidades intelectuais humanas.
Entrementes, com os crescentes conflitos que se estabeleciam entre católicos e
protestantes, os quais entre outros fatores, levaram a desmoronação da base teológica do
conhecimento humano racional, a Europa se desestabiliza e com isso faz crescer um grande ceticismo
entre os pensadores de então (fins do séc. XVI e início do séc. XVII ) no que diz respeito as formas
que haviam de conhecimento das coisas, do próprio mundo. E conforme Zilles (2006, p. 128):
Depois de desmoronada a base teológica do conhecimento humano racio nal, o homem
sente-se só no universo. Sente-se sozin ho dia nte da penosa tarefa de forjar uma visão da
realidade, sem outra garantia que sua própria razão. Começa a nascer o homem moderno.
Esse lança-se direto à natureza exterior. Desta forma nascem as ciências naturais ou
também chamadas positivas. Com Galileu, Newto n, Kepler e outros abre-se um novo
horizonte no mundo das ciê ncia s. As novas ciência s se caracte rizam pela expressão
matemática.
Outros filósofos de muita importância compuseram também o quadro teórico reflexivo do
renascimento. E assim como Leonardo da Vince foram pontos culmintes, resultados da época que
representa a etapa final desse período. Como é o Caso de Bernardino Telésio (1509-1588), Giordano
Bruno (1548-1600), Tomás Campanella (1568-1639). Entretanto, e é aqui talvez onde corremos o risco
de nos equivocar, não abordaremos os pensamentos por eles desenvolvidos. Não faremos isto apenas
para não estendermos demasiadamente nossa reflexão por caminhos que podem nos conduzir a fuga
de nossa proposta de trabalho.
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Sendo assim, diante de todas as considerações que apresentamos sobre o renascimento
cabe expressar ainda, em tom de encerramento da abordagem dirigida ao mesmo, um pensamento de
Abrão e COSCODAI (2002, p.128) a seu respeito.
A originalidade do Renascimento está em construir uma nova imagem do mundo a partir da
permanência de elementos do passado. É em nome do humanismo que o homem mesmo,
temeroso, começa a separar-se da grande ordem no universo, para ser o seu espectador
privile gia do. Mais do que isso, ele é o organizador dessa ordem. No plano relig io so, isso se
traduz na Reforma, que não reconhece inte rmediá rios – os padres ou o papa – na
comunicação com Deus. O homem, e só ele , é responsável por seus atos, perante sua
consciência e a divindade.
2 UM MÉTODO PARA FUNDAMENTAR UMA NOVA CIÊNCIA
Desde a Grécia Antiga, a razão pôde prete nder abarcar o mundo porque, de certa forma, o
próprio mundo era concebido como racio nalmente ordenado e unificado. Nos te mpos
modernos, no entanto, essa imagem já não existe. Não há mais pólis, o Império ou uma
Igreja única; a realid ade apresenta-se dispersa, múltipla e relativa. Cabe à razão a tarefa de
reunificar o mundo, reproduzí-lo , representá-lo .
O termo representação in dica exatamente essa operação da razão: reapresentar, tornar de
novo presente . Mas “ tornar de novo presente” a imagem unificada do mundo é também
destruir o que se apresenta como disperso e desconexo. Por isso, a representação nega e
ultrapaça a realid ade visível e sensível, e produz um outro mundo, racionalmente
compreensível porque reordenado pela própria razão.(ABRÃO; COSCODAI, 2002, p.184)
A “ciência”, no renascimento, buscava desvendar o mistério, os significados comuns que se
ocultavam nas coisas pela semelhança (através da noção de simpatia ou antipatia cósmica, bem como
pela consideração do conceito de microcosmo) que havia entre elas. Ela valia-se especialmente da
observação da natureza e seus fenômenos para alcançar este objetivo. O mundo, no renascimento,
além de ser fechado e finito, era uma espécie de texto a ser decifrado sendo as próprias coisas os
signos desse texto a ser decifrado. A terra era o centro do universo. Era imutável e estática (reflexos da
concepção de mundo da filosofia aristotélico-ptolomaica ainda vigentes e especialmente defendidas
pela tradição da escolástica). E o homem era o ser em função do qual estava todo o universo.
Essa perspectiva de mundo, contudo, começou a ser modificada a partir da revolução
científica que foi operada nos séculos XVI e XVII, a qual possui como elemento denotador a “revolução
astronômica”,
[...]que teve seus representantes mais prestig iosos em Copérnico, Tycho Brahe, Kepler e
Galileu e que conflu iria para a “ física clássica de Newton. Nesse perío do, portanto , muda
a imagem do mundo. Peça por peça trabalhosa, mas progressivamente, caem por terra
os pilares da cosmologia aristotélico-ptolmaica: assim, por exemplo , Copérnico põe o Sol
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no centro do mundo, ao in vés da terra; Tycho Brahe, mesmo sendo anticopernicano,
elimina as esferas materia is que, na velha cosmologia, arastavam os pla neta s com seu
movimento e substitui a idéia de orbe (ou esfera) material pela moderna idéia de órbita;
Kepler apresenta a sistematização matemática do sistema coprnicano e realiza a
revolu cionária passagem de movimento circula r (“ natural” e “perfeito” , na velha
cosmologia ) para o movimento elíptico dos planetas; Galile u mostra a falsidade da
distinção entre física terrestre e física celeste, fazendo ver que a Lua é da mesma
natureza da Terra e, entre outras coisas, cria novos fundamentos com a formulação do
princípio da inércia ; Newton, com sua teoria gravitacional, unificaria a física de Galileu
com a de Kepler; com efeito, do ponto de vista da mecânica de Newton, pode-se dizer
que as teoria s de Galileu e de Keple r constituem boas aproximações a certos resultados
pariculares obtid os por Newto n. (REALE; ANTISER I, 2004, p. 185-186).
Como podemos perceber através desse pensamento de Giovanni Reale, houve uma
mudança na imagem do mundo no decorrer do processo cultural que se denomina revolução científica.
Essa imagem, contudo não é a única que sofreu modificações, apesar de ser ponto de partida para
outras. Uma dessas outras mudanças ocorreu na imagem da ciência. A nova ciência que nasce como
resultado da revolução científica “não é mais a intuição privilegiada do mago ou do astrólogo iluminado,
individualmente, nem o comentário a um filósofo (Aristóteles) que disse “a” verdade e toda a verdade,
isto é, não é mais discurso sobre “o mundo de papel”, mas sim investigação e discurso sobre o mundo
da natureza. ” 16 . (REALE; ANTISERI, 2004, p 186-187). O mundo externo, assim, é o alvo da nova
ciência.
Por conta disso, no século XVI, onde a Europa vive a plena atmosfera de efervescência
intelectual resultante do período renascentista 17, avolumam-se novos conhecimentos sobre a natureza.
Pois as pesquisas são especificamente voltadas à realidade exterior. E é bom considerarmos também
que aqui havia a crença amplamente difundida na área da ciência, a qual de certa forma também
contribuiu (através do fomento à intensificação na realização de experimentos envolvendo a realidade
externa) para este aumento significativo de conhecimentos acerca da natureza, de que verdade seria
16
A ciência começa aqui a ser basicamente experimental e matemátca (quantificável e mensurável). Resultado que é
derivado especia lmente da combinação feita por Galileu Galilei entre experiências centíficas e o uso da linguagem
matemática para formular as leis da natureza que descobre. Este método, no entanto, ainda carecia de argumento s
filosóficos que le gitimassem este pensamento. Estava clara a necessid ade de se estabelecer um novo campo filo sófico, no
qual a ciência moderna poderia enfim ter um caminho certo a seguir. ( SILVA; INFOR SATO, 2000, p. 172).
E é bom recordar também que teoria e a prática, em função da ciência ser experimenta l, começam aqui a andar mais junta s
na construção cie ntífica. Deix ando de lado aquela visão que havia sido construid a na filosofia clá ssica, em relação a prática,
que o trabalh o braçal é baixo, impuro e in dig no de ser realizado pelo homem. Outra consideração que precisa ser feita é a
respeito de como a natureza nesse momento era percebida. “ A natureza é tão só extensão e movimento; é passiva, eterna
e reversível, mecanismo cujos elmentos podem demonstrar e depois rela cionar sob a forma de le is;” (SANTOS, 2009, p.62).
17 Lembremos da contesta ção que houve de alg umas tradições antigas, como a tradição fundamentada pela escolá stica. E
da abertura do universo resulta nte das novas descobertas da astronomia. As quais fizeram com que a realidade fosse
percebid a de maneira dispersa, múltipla e rela tiva em contraposição a realid ade única e ordenada da cosmologia grega.
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alcançada apenas mediante o completo conhecimento da natureza (se percebe isso especialmente no
pensamento de Francis Bacon).
Diante de tal realidade, no entanto, começam a surgir algumas questões que caracterizam a
nova ciência, a ciência moderna. Estas levam o homem, voltado para o estudo da natureza, para uma
interiorização reflexiva. As perguntas de que se fala são as seguintes:
[...] qual é o valo r desses conhecimentos (naturais)? Que critério s garantem sua verdade?
Não mais se podia recorrer a Deus como garantia última. A filosofia e a ciência colocam –
então -, como tema central, a questã o do método. Qual o caminho que nos le va à verdade
de toda e qualquer ciência?. Essa pergunta orie ntará a filo sofia moderna sobretudo a partir
de René Descartes. (ZILLES, 2006, p.128)
O pensamento de René Descartes, assim, é o objeto da nossa próximo seção.
2.1 René Descartes (1596 – 1650) e o discurso do método
[...] não conheço maiores qualid ades do que as que servem à perfeição do espírito. [...] a
razão ou o senso é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero
acreditar que se encontre integralmente em cada um. (DESCARTES, 1979, p. 21)
Ao final do século XVI e início do século XVII a Europa está passando por pronfundas
transformações. É o final do Renascimento, um período em que se faz uma crítica mais amadurecida
ao pensamento da escolática, que se valia da transcendência na busca de explicações. Bem como é
um momento em que se vive mais intensamente, especialmente nos ambientes mais intelectuais e
cultos da época, as dúvidas com relação a possibilidade de se estabelecer critérios, fundamentos que
servissem para as ciências alcançarem a verdade de uma maneira segura, certa.
O tempo de Descartes é marcado pela chegada na Europa do naturalismo de Aristóteles;
pela matemática árbe que possibilitou sobretudo através da álgebra um desenvolvimento também
muito forte da geometria; pelo mercantilismo com suas novas exigêcias, com a entrada em cena de
pessoas empreendedoras, mercadores, navegadores, grandes comerciantes que vai provocar o
desenvolvimento das cidades, dos portos; pelos avanços da tecnologia que aumentam o poder do
homem de agir sobre a natureza.
É nesse contexto que se insere o pensamento de René Descartes sobre o qual iremos tratar.
De acordo com Urbano Zilles (2006, p.129) :
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Descartes fora educado na filo sofia escolástica de seu tempo. Essa já se encontrava em
decadência, em crise. (Ele) Inaugurou nova época na filo sofia, vin do a ser o pai da filo sofia
moderna. Na orig em do seu pensamento está a questão do método.
Descartes dedicou-se ao estudo da física, da matemática e da medicina e da filosofia .
Sentiu-se atraído pelo s métodos exatos e seguros dessas ciências, sobretudo da
matemática. Quis encontrar um método ig ualmente seguro para a filosofia (e para as
ciências), pois estava convencid o de que a verdade existe e pode ser atingida pelo homem.
Mas é preciso descobrir como. Percebeu que, se a filosofia quiser ser científica, ou seja,
universal, necessária e imutável, deverá procurar uma nova base mais sólida, a exemplo da
lógica das conclusões matemáticas. A base teológica fora abalada definitivamente.
É importante também termos presente para melhor entendermos o pensamento de Descartes
que o mesmo
[...] estava profundamente preocupado com a confu são em que se encontrava o
pensamento científico de sua época. Ele compreendia que não era suficie nte pesquisar e
resolver enig mas científicos, era preciso legitimar a própria ciência. O pensamento científico
estava muito disperso e era confundido com outros conhecimentos, como o pensamento
escolástico, caracterizado por discussões sem fim; co m os dogmas que se confundiam com
as verdades científicas e mesmo com o pensamento relig ioso. ( SILVA; INFORSATO, 2000,
p. 173).
Tendo em vista essas informações a respeito do nosso filósofo francês René Descartes e
antes, porém, de iniciarmos uma abordagem mais especificamente detida ao pensamento desenvolvido
por ele, cabe-nos trazer presente neste momento uma consideração a respeito da essência do mesmo
realizada por Áttico Chassot (1994, p. 105).
A essência do pensamento cartesiano não consiste na solução dos problemas que
preocupavam os cientistas de então, mas na elaboração de um sistema completo, com o
qual prete ndia substitur a escolástica, banindo todas as qualid ades e formas substâ nciais
em favor de um mecanismo universal que explicasse os fenômenos deste mundo visível
com a ajuda de apenas três conceitos: extensão, figura e movimento.
Expressas algumas considerações a respeito do contexto sociohistórico em que vivia
Descartes, bem como algumas das preocupações que o acometiam, partamos assim para a
abordagem de seu pensamento 18. A qual não será muito extensa, nem se deterá em muitos detalhes.
Sendo o Discurso do Método (além de alguns comentaristas) a obra base para realizá-la.
As grandes perguntas que Descartes se faz são as seguintes: Onde está a verdade? ou
Existe um conhecimento verdadeiro? No intuito de responder a estas perguntas ele coloca tudo em
dúvida. Seu ponto de partida é a dúvida. Esta dúvida, no entanto, não é como a dos céticos que
18
O pensamento de Desacarte s se desenvolve com a finalid ade de chegar à verdade cie ntífica. Ele planeja construir uma
ciência universal, natural completa e exata, fundamentada no rig or da razão.
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duvidam apenas por duvidar, mas sim é metódica e universal. Ela servirá para a limpeza prévia que ele
quer fazer na sua mente para poder começar a pensar de uma maneira nova, sem preconceitos.
Primeiramente, em seu Discurso do Método 19, faz um exame crítico das opiniões
tradicionais, as quais herdara da Antiguidade Clássica e da Idade Média, bem como de todo o
conhecimento que daí possa derivar. Faz também um diagnóstico das circunstâncias de dúvida e de
confusão em meio a qual se encontrava. Assim, escreve:
Fui nutrid o nas letras20 desde a infância , e por me haver persuadido de que, por meio dela s,
se podia adquirir um conhecimento cla ro e seguro de tudo o que é útil à vid a, sentia
extraordin ário desejo de aprendê-la s. Mas, logo que terminei todo esse curso de estudos,
ao cabo do qual se costuma ser recebido na cla sse dos doutos, mudei inteiramente de
opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver
obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a
minha ignorância ! (DESCARTES, 1979, 22-23).
Depois de feita essa primeira constatação, ele revisa o conteúdo dos conhecimentos aos
quais até então teve acesso. Fala sobre a eloquência e a poesia; sobre a matemática 21; a Teologia; a
Filosofia e as demais ciências. E de diversas maneiras procura expressar a insuficiência destes
conhecimentos. Ou melhor, a falta de segurança e clareza que há neles e que deles derivam. Só há
falsidades neles. Para na seqüência concluir dizendo:
Eis por que, tão logo a id ade me permtiu sair da sujeição de meus precepto res, deix ei
inteiramente o estu do das le tras. E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência, além
daquela que se poderia achar em mim próprio , ou então no grande livro do mundo,
empreguei minha mocidade em viajar, em ver cortes e exércitos, em frequenta r gente de
diversos humores e condições, em recolher diversas experência s, em provar-me amim
mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e, por toda a parte, em fazer tal
reflexão sobre as coisas que se me apresenta vam, que que eu pudesse tirar delas algum
proveito. (DESCARTES, 1979, p. 33).
Como podemos ver, Descartes
até aqui basicamente faz considerações acerca dos
conhecimentos das várias ciências a que teve acesso pela tradição. Bem como das grandes dúvidas e
inseguranças que delas emergiam. Demonstrando também com isso a sua completa incerteza nas
ciências, a qual é resultante do momento histórico no qual vive. O ponto chave deste primeiro
19
O nome completo da obra é Discurso do Método para bem condizir aprópria razão e procurar a verdade nas ciência s.
Este livre é composto por seis parte s.
20 No exemplar ao qual tive acesso há uma nota explicando quais são essas letras de que Descarte s fala . São ela s: a
Gramática, a Poesia,a Retórica e a História.
21 Sobre ela diz “ [...] espantava-me de que, sendo seus fundamento s tão firmes e sólidos, não se tivesse edificado sobre
elas nada de mais elevado.” (Descarte s, 1979, p. 32)
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momento, contudo, está na posição em que Descartes coloca-se, de não acreditar em nada daquilo
que lhe foi transmitido pelos costumes e começar estudar a si mesmo. Que é o mesmo que dizer não a
ciência que se tinha na época, a qual se funda nas experiência do mundo (estuda o mundo) e na
observação dos costumes.
É certo que, enquanto me limitava a considerar os costumes dos outros homens, pouco
encontrava que me satisfizesse, pois advertia nele s quase ta nta diversidade como a que
notara ante rio rmente entre as opin iões dos filó sofos. De modo que o maior proveito que daí
tirei foi que, vendo uma porção de coisas que, embora extravagantes e rid ícula s, não deix am
de ser comumente acolhid as e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não crer
demasiado firmemente em nada do que me fora in culcado só pelo exemplo e pelo costume; e
assim, pouco a pouco, livrei-me de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natu ral e nos
tornar menos capazes de ouvir a razão. Mas, depois, que empreguei alguns anos em estudar
assim no grande livro do mundo e em procurar adquirir alg uma experiê ncia , tomei um dia a
resolu ção de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na
escolha dos caminhos que devia seguir. O que me deu muito mais resultado, parece-me, do
que se jamais tivesse me afastado de mau país e de meus livros. (DESARTES, 1979, p. 33)
Num segundo momento Descartes entrega-se a solidão e a busca da verdade. Reconhece que
os fundamentos da filosofia (e da ciência) tradicional estavam abalados até os alicerces. E que por
conta disto, seria necessário construir fundamentos novos. Para isso precisaria proceder com toda
prudência e segurança “como um homem que caminha só e nas trevas, resolvi ir tão lentamente, e usar
de tanta circunspecção em todas as coisas, que, mesmo se avança-se muito pouco, evitaria pelo
menos não cair.” Descartes, 1979, p. 36).
Mas antes de rejeitar tudo, ou melhor todas as opiniões que chegaram a sua confiança até o
momento,
ele precisaria elaborar um “método verdadeiro” que o conduzisse “para chegar ao
conhecimento de todas as coisas de que meu (seu) espírito fosse capaz.”(DESCARTES, 1979, p. 36 37). Passa assim a elaborar este método. Estabelece quatro princípios (que são as regras do seu
método), “que compreendendo as vantagens desses três ( no caso a Lógica 22, Análise dos geômetras
e Álgebra), fosse isento dos seus defeitos” (DESCARTES, 1979, p. 37), que o conduzirão para uma
verdade na qual não há dúvida. O seja, para uma verdade que é indubitável. Eis em suas palavras
estes princípios.
O primeiro era o de jamais acolh er alg uma coisa como verdadeira que não conhecesse
evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precip itação e a prevenção, e
22
Sobre a lógica, por exemplo, ele diz “ os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para
explicar para outrem as coisas que já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio , para falar, sem julgamento , daquela s que
se ignora, do que para aprendê-las.” (Descarte s, 1979, 37).
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de nada inclu ir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu
espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.
O segundo, o de dividir cada uma das dificuld ades que eu examinasse em tantas parcela s
quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelo s objeto s mais
simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o
conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se
precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tã o gerais, que
eu tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1979, p.37-38).
O método proposto por Descartes é chamado de método analítico.
O primeiro princípio ou regra do método corresponde a evidência 23. “[...] trata-se de princípio
normativo fundamental, exatamente porque tudo deve convergir para a clareza e distinção, nas quais,
precisamente, se forma a evidência. Falar de idéias claras e distintas e falar de idéias evidentes é a
mesa coisa. (REALE; ANTISERI, 2005, p.359). Em outra palavras, aquilo que se apresenta à minha
razão como sendo claro e distinto é evidente.
O segundo princípio ou regra do método corresponde a análise. A análise é o que permite
que se chegue na evidência. De que forma? Desarticulando o complexo no simples até o ponto em que
o intelecto consiga dissipar o que há de ambigüidades. É de etapa por etapa, parte por parte que se
alcançam as conquistas. Nossa mente trabalha deste modo. “Esse é o caminho que permite escapar às
generalizações presunçosas.” (REALE; ANTISERI, 2005, p.360). (As quais levam ao erro) De uma
forma mais objetiva podemos dizer que esta regra da análise consiste em dividir ao máximo o objeto
estudado, em suas unidades mais simples, para poder melhor conhecê-lo.
O terceiro princípio ou regra do método corresponde a síntese. Depois de decompostos os
elementos complexos em elementos mais simples e fáceis de serem entendidos é preciso recompô-los
novamente. A síntese é o que desenvolve essa recomposição dos elementos. Partindo de elementos
que sejam absolutos, ou não dependentes de outros e direcionada para elementos relativos ou
dependentes, possibilita-se lugar assim a encadeamento que ilumina o conjunto.
Trata-se de recompor a ordem ou cria r uma cadeia de raciocínios que se desenvolvam do
simples ao composto, o que não pode deix ar de ter correspondência na realidade. Quando
essa ordem não existe, é preciso supô-la como a hipóte se mais conveniente para inte rpretar
23
A evidência é alcançada pelo ato da intuição. Descarte s apud Reale e Antiseri (2005, p. 360) descreve assim a intuição.
“ Não se trata do testemunho Flutuante dos sentidos ou do juízo fa laz da imagin ação inabilmente combinadora, mas de
conceito da mente pura e atenta, tão fácil e distinto que não permanece nenhuma dúvida em torno do que pensamos. Ou
seja, o que é a mesma coisa, conceito indubitável da mente pura e ate nta, que nasce unicamente da luz da razão e é mais
certo do que a própria dedução.” Evidência também pode ser definida como aquilo que não precisa ser explicado nem
demonstrado pela plena própria clareza in tele ctual que possui.
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e expressar a realidade efetiva. Se a evid ência é necessária para ter a in tuição, o processo
ao complexo é necessário para o ato dedutivo.
Mas qual é a importância da síntese? “ Pode parecer que, nesse duplo trabalho, não emerja
nada de verdadeiramente novo, já que, no fim, encontramos o mesmo objeto do qual
partimos. Na realidade, porém, não se trata mais do mesmo objeto: trata-se do composto
reconstruído, isto é, permeado pela luminosid ade transparente do pensamento. Uma coisa
é fato bruto , outra é saber como ele é feito, pois entre os dois existe a mediação do
conhecimento. (REALE; ANTISER I, 2005, p. 361).
O quarto princípio ou regra do método corresponde às enumerações e revisões. Para evitar
toda e qualquer precipitação, que é grande mãe dos erros, é preciso que cada uma das passagens,
ou dos momentos anteriores desenvolvidos sejam verificados. Assim, é preciso fazer enumerações
para verificar se a análise é realmente completa e revisões para verificar se a síntese é realmente
correta. Tudo isso para que se possa manter a ordem do pensamento.
Em um terceiro momento, como Descartes não podia destruir todo o edifício do seu
conhecimento sem antes ter um outro lugar onde pudesse se abrigar, desenvolveu algumas máximas
que compõe sua moral provisória para lhe servirem de abrigo.
A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, rete ndo constante mente a
relig ião em que Deus me deu agraça de ser in struído desde a in fância , e governar-me, em
tudo o mais, segundo as opin iões mais moderadas e as mais distantes do excesso, que
fossem comumente acolh id as em prática pelo s mais sensatos daqueles com os quais teria de
viver. [...] Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resolu to possível em
minhas ações, e em não seguir menos constante mente do que se fossem muito seguras as
opiniões mais duvidosas, sempre que eu tivesse decidido a tanto. [...]Minha terceira máxima
era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à fortuna, e de antes modificar os
meus desejos do que a ordem do mundo; e, em geral de acostumar-me a crer que nada há
que esteja inteiramente e nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois
de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que
deix armos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. (DESCARTES,
1979, 41-43)
Depois de expressas as máximas, Descartes coloca elas a parte junto com as verdades da
fé, que para ele são as primeiras de sua crença, e então entende-se preparado para rejeitar todas as
suas opiniões restantes. (DESC ARTES, 1979, 43). Descartes passa assim a exercitar o seu método na
busca da verdade o aplicando ao saber tradicional.
Num quarto momento, entendendo não bastar apenas pesquisar a verdade, entende como
necessário rejeitar como falso tudo o que pudesse ser vítima da menor dúvida 24. Essa é a chamada
dúvida hiperbólica.
24 Está, portanto, sujeito
à dúvida não só aquilo de que eu duvido de fato mas também aquilo que poderia duvidar de direito .
Esta nota explicativa foi retirada do livro Discurso do método. (DESCARTES , 1979, p. 46).
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Descarte, assim, chega a conclusão de que é possível duvidar de todos os conhecimentos
humanos. Radicalizando a dúvida no intuito de alcançar uma verdade que fosse indubitável, ele rejeita
como falsos os sentidos, visto que esses podem nos enganar, rejeita como falsas também todas as
razões que até então tomara como demonstrações e rejeita como falsas também todas as coisa que
até aquele momento chegaram ao seu espírito. Mas se eu posso duvidar de tudo, por exemplo, que
não tenho um corpo, que a terra não existe, o que é que existe então de verdadeiro? Descartes
expressa-se da seguinte forma ao tratar tal questão.
Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso,
cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta
verdade: eu penso, logo existo, era tã o firme e tão certa que todas as mais extravagante s
suposições dos céticos não seriam capazes de abala r, julg uei que podia aceitá-la, sem
escrúpulo, como primeiro princípio da filosofia que procurava. (DESCARTES, 1979, p.46)
Depois de apresentada esta verdade (eu penso, logo existo), que para ele é muito “clara e
distinta” 25, possuidora de plena evidência. Percebe e compreende que mesmo que não existisse, o
mundo ou seu corpo, ele não deixaria por isso de existir, porque ele era “uma substância cuja essência
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer
coisa material.” (DESCARTES, 1979, p.47).
Mas Descartes não parou por aí. Ele queria encontrar outros conhecimentos que estivessem
de acordo com o mesmo critério de clareza e distinção e que fossem plenamente evidentes (e por isso
intuitivos) como o é a verdade “‘eu penso, eu exito”. Chega então a uma segunda verdade: a extensão
dos corpos. De todos os conhecimentos que ele possui sobre os corpos ele pode duvidar de tudo, da
cor, da forma, da textura, enfim... mas o que resta de tudo isso, o que é evidente? A extensão. Os
corpos são extensos. A partir dessas duas verdades, “‘eu penso, eu exito” e extensão dos corpos26, ele
vai construir a solidez do conhecimento. Vai reconstruir a metafìsca e lançar as bases da ciência
moderna.
Mais adiante no seu pensamento, no entanto, ele percebe que não é totalmente perfeito
porque duvida, e, para ele, conhecer é perfeição maior que duvidar. Desta forma resolve procurar saber
25
Segundo Zilles (2006, p. 136) Como critério da verdade, Descartes tomou a “ idéia cla ra e distita” . Isso significa: uma idéia
que esteja clara em minha mente, cujo conteúdo, portanto, me é claro, e que posso distinguir de qualquer outra idéia , é uma
idéia verdadeira. A idéia cla ra é uma percepção presente e aberta. A idéia distin ta é aquela que, sendo clara, de tal modo
está separada e depurada de todas as outras, que não encerra em si absolutamente nada mais do aquilo que é cla ro. A
idéia clara e distinta por excelência será aquela que resiste à toda dúvid a.
26 Para Descartes as id éia de pensamento e extensão são inatas no ser humano. E somente uma força superior pode ter
dotado o dotado dela s.
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de onde aprendera a idéia (aqui o conhecimento ainda é discutido em nível da pura razão natural) de
pensar algo mais perfeito do que ele próprio. Decorre daí que só podia ser de algo, ou alguma natureza
que fosse mais perfeita do que ele. Que não vindo do nada nem tampouco dele, por ser imperfeito,
pôs nele essa idéia. Numa palavra Deus. (DESCARTES, 1979, p.47).
Na seqüência, a existência de Deus (Deus e a alma humana são os fundamentos de sua
metafísica) é provada, e nesta prova à dependência do ser e do mundo em relação a existência de
Deus. Podemos resumir essa prova da seguinte maneira. Deus é perfeito. Eu sou imperfeito. Mas, se
eu, dentro das limitações 27 impostas pela minha imperfeição, sou capaz de pensar Deus, ele não pode
não existir. Porque se ele não existisse seria imperfeito. Deus é também a fonte de todas as coisas do
mundo (o conhecimento começa aqui a ser estendido para as coisas do mundo). Na verdade o mundo
só existe porque ele o construiu. E o “eu pensante” só existe porque Deus, com sua perfeição,
possibilita seu pensar. (DESCARTES, 1979, p.48, 49, 50).
Descarte reconstruiu assim o edifício do conhecimento tomando duas direções. De um lado
reconstrói a teoria do ser baseada na substância espiritual ou divina do homem. E de outro lado cria o
conhecimento do mundo relacionado a extensão, que é o conhecimento material, físico.
Na quinta parte do Discurso do método, Descartes procura mostrar a ordem de algumas
questões de física as quais investigou, bem como faz uma explicação do movimento do coração. Além
de distinguir a alma dos homens da dos animais (os quais na sua opinião não possuem alma, nem
razão, o que os move é a natureza). Ele separa a alma (que é pensamento) do corpo (que é extensão).
A alma (a qual é unicamente de natureza racional) é independente do corpo. O corpo só adquire
sentido na presença da alma .
Na sexta parte, que é a última do discurso, ele ressalta a importância das descobertas que
fez na área da física e das demais ciências experimentais valendo-se do método, as necessidades de
dar-lhe continuidade para que o conhecimento se desenvolva e finaliza o discurso expressando o que
o levou a escrevê-lo.
A participação de Descartes na formação da ciência moderna e em seu paradigma científico
deve-se especialmente ao método analítico desenvolvido por ele, o qual procuramos expressar acima,
e ao raciocínio lógico dedutivo que esquematizou.
Eles possibilitaram a ciência progredir no
conhecimento na natureza e do homem. Bem como provaram “ser muito úteis no desenvolvimento de
teorias científicas e na concretização de complexos projetos tecnológicos.”. (CAPRA, 1982, p. 55).
27 Pense
aqui em tudo o que faz parte do ser humano. A dúvida, por exemplo .
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No entanto, não só no método que René Descartes desenvolveu como em toda a ciência
produzida pela modernidade, e incluindo-se assim também o paradigma científico desenvolvido por
esta ciência há limitações. Discutir sobre alguns dos limites da ciência moderna e sobre outras
possibilidades de se proceder cientificamente, ou mesmo, uma forma diferente de se encarar a ciência
na atualidade constitui, assim, o objetivo de nosso próximo capítulo.
3 DISCUSSÕES ACERCA DA CIÊNCIA MODERNA: LIMITES E POSSIBILIDADES
Segundo Kunh (2000, p. 13) sendo reconhecido e compartilhado por uma comunidade,
paradigmas são as “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. Em
outras palavras, paradigma refere-se a modelo, padrão e exemplos compartilhados, significando um
esquema modelar para a descrição, explicação e compreensão da realidade. É muito mais que uma
teoria, pois implica uma estrutura que gera teorias, produzindo pensamentos e explicações e
representando um sistema de aprender a aprender que
determina todo o processo futuro de
aprendizagem.
As descobertas da matemática, da física e da astronomia, no século XVI, na Europa, assim,
marcaram o início de um novo paradigma, considerado uma ruptura epistemológica que determina
outra forma de ver o mundo. Não mais o contemplando, mas compreendendo e controlando, através do
pretendido desvelamento da realidade. É deste modo que a Modernidade é entendida por Peters
(2000, p. 66).
Uma ruptura com o passado, uma ruptu ra estética, moral, política e epistemológica,
estimula uma autoconsciê ncia do presente e uma orientação e direção ao futuro, que se
baseia nas idéias de mudança, progresso, experimentação, inovação e novidade. De forma
mais importante, a modernid ade implica o mito, que ela constrói sobre si própria , de que ela
é capaz de criar, de alguma forma, a partir da força histórica, de seu movimento e de sua
trajetória, suas próprias orientações normativas.
Esse movimento originário de uma nova concepção de conhecimento válido caracteriza-se
pela valorização do homem, agora sendo o ser que, através da observação e da experiência, determina
os saberes legítimos, certos e errados, verdadeiros e falsos. Há nesse momento também uma luta
protagonizada pelos cientistas/ filósofos modernos contra todo tipo de dogmatismo e autoridade e pela
busca de independência intelectual. Percebemos isso anteriormente na abordagem que fizemos sobre
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o pensamento de Descartes. Essa nova forma de ver o mundo que se apresenta, propiciadas pelas
anteriormente referidas descobertas da revolução científica, segundo Santos (2009, p.62) “conduz a
duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um
lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro.”
No modelo de racionalidade que a ciência desenvolve na modernidade, o qual aos poucos
no decorrer deste texto veremos, ao contrário da ciência aristotélica, se desconfia nas evidências das
experiências imediatas. Justamente porque tais evidências são a base conhecimento vulgar, e por isso
ilusórias. A revolução científica moderna, assim, traz consigo uma nova forma de conhecimento que
não dialoga com outras formas de conhecimentos: o conhecimento científico. Outras formas de
conhecimento são consideradas ilegítimas e classificadas como conhecimento comum ou senso
comum. O espírito científico rompe com as formas não baseadas no rigor formal da nova ciência (que
mais adiante veremos, se fundamenta na matematização, na mensuração, na objetividade,
quantificação). Há um distanciamento e estranheza do discurso científico em relação a outros
discursos.
A natureza é considerada como meramente extensão e movimento. Ela é passiva, eterna e
reversível, mecanismo cujos elementos se podem demonstrar e depois relacionar sob a forma de leis.
Não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus mistérios,
desvendamento este que não é contemplativo, mas antes ativo já que visa conhecer a natureza para a
dominar e controlar. Assim como diz Francis Bacon apud Santos (2009, p. 62) a ciência fará da pessoa
humana “o senhor e o possuidor da natureza”.
Com base nestes pressupostos, o conhecimento avança pela observação descomprometida
e livre, sistemática e tanto quanto possível rigorosa dos fenômenos naturais.
O que se assiste neste contexto, então, são as idéias claras e simples na presidência da
observação e da experimentação (que são os critérios indispensáveis na produção da ciência) no
âmbito científico. E isso devido a crença de que a partir das idéias claras e simples pode-se ascender
para um conhecimento com mais profundidade e rigor da natureza. A matemática assume, assim
posição de centralidade na ciência moderna. Justamente porque essas idéias claras e simples são
idéias matemáticas. Ademais, ela não só fornesse os melhores instrumentos privilegiados de análise,
como também de lógica de investigação e ainda serve de modelo de representação da estrutura da
matéria. (SANTOS, 2009, p. 63).
Dessa posição de centralidade que a matemática assume na ciência moderna derivam duas
conseqüências principais.
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Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das
medições. As qualid ades in trínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em
seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O
que não é quantificável é cie ntificamente irrele vante . Em segundo lu gar, o método científico
assenta-se na redução da complexid ade. O mundo é complicado e a mente humana não
pode compreender completa mente. Conhecer significa divid ir e classificar para depois poder
determinar relações sistemáticas entre o que se separou. Já em Descartes uma das regras
do método consiste precisamente em “divid ir cada uma das dificuld ades... em tantas
parcelas quanto fo r possível e requerido para melhor as resolver” . (Descartes, 1984: 17). A
divisão primordial é que distingue entre “ condições inicia is” e “ le is da natureza” . As
condições in icia is estabele cem as condições rele vantes dos fatos a observar; as leis da
natureza são o reino da simplicidade e da regula rid ade, onde é possível observar e medir
com rigor. Esta distinção entre condições inicia is e leis da natureza nada tem de “natu ral” .
Como bem observa Eugene Wigner, é mesmo completamente arbitrária (Wig ner, 1970: 3).
No entanto, é nela que se assenta toda a ciência moderna. (SANTOS 2009, p.63).
A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos pressupostos que nos referimos
até agora. Esse conhecimento é um conhecimento causal que aspira a formulação de leis, à luz de
regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenômenos. As leis da
ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento
de qual o agente qual o fim das coisas.
Em um conhecimento que se embasa em leis, supõe-se que exista ordem e estabilidade,
bem como repetição futura dos mesmos fatos que se vive no presente. É deste modo que se
desenvolve a mecânica de Newton. Nela há a apresentação de um mundo onde a matéria é uma
máquina cujas as operações podem ser determinadas por leis físicas e matemáticas, bem como
decompostas em seus elementos constituintes de acordo com o racionalismo de Descartes. Esta idéia
de mundo-máquina é de tal modo poderosa que vai transformar-se na grande hipótese universal da
época moderna. Ela vai construir um dos pilares da idéia de progresso que ganha corpo no século
XVIII. Ordem e estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação tecnológica do real.
(SANTOS, 2009, p.64).
No século XVIII a consciência filosófica da ciência moderna que tivera no racionalismo
cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no
positivismo oitocentista. Augusto Comte (1798-1875) é o principal representante deste positivismo. E é
o seu maior postulador do progresso como lei histórica (CREMA, 1989, p.23).
Deste modo nos cabe fazer algumas considerações sobre seu pensamento. A começar por
dizer que ele foi o fundador da sociologia.
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Na sua teoria socio lógica Comte propunha o teorema segundo o qual há uma hie rarquia nas
ciências teóricas, ocupando a socio logiaa o seu ápice, e a “ lei dos três estados” . Tal le i,
princip al fundamento do Positivismo, postula que o conhecimento humano atravessa três
períodos de desenvolvimento : o teológico (a “infância da humanid ade”), o metafísico (de
transição, caracterizado pelo espírito crítico) e o positivo (a maturidade, período cie ntífico,
fixo e definitivo). Claramente condicionada pela física Newtonana, a Sociologia positivista
divide-se em estática, que estu da a ordem, e dinâmica, estudo do contínuo movimento e
das leis de sucessão dos estágios, cujo primordial fato é o progresso. O progresso é o
movimento que a civilização sempre faz numa direção desejável segundo uma ordem que,
como lei causal, impulsio na a sucessão dos aconte cimentos. (CREMA, 1989, p.23).
Partindo dessas premissas básicas, Comte desqualificou e vareu da sua construção teórica
todo resquício, para ele retrógrado, de teologia e metafísica, venerando apena, como verdadeira, a
filosofia aplicada aos fenômenos naturais, sob o império causal de leis imutáveis, considerando “como
absolutamente inacessível e vazia de sentido a investigação das chamadas causas, sejam primeiras,
sejam finais”. (COMT apud CREMA, 1989, p. 24).
Assim, a idéia de progresso, aliada a uma ideologia ou promessas de “bem estar para
todos”, instalou-se definitivamente no espírito científico da época moderna.
E, nos séculos
subsequentes, promoveu uma grande revolução no campo da técnica. (CREMA, 1989, p. 25). Mas,
como afirmam Loro e Barcelos (2003, p.2) “as insuficiências estruturais e limites do paradigma
científico moderno é, em parte, o resultado do grande avanço proporcionado por ele próprio.”
Através de sua objetividade, formalidade, empirismo e tantas outras características
peculiares, a modernidade trouxe a grande promessa de progresso, de futuro e de certezas. Ignorou
assim, a tradição para dedicar-se ao futuro, distanciando-se do passado, com a promessa de um futuro
sempre melhor. Assim, nasceu a idéia de progresso e a obsessão pela novidade, por sua vez, vista
sempre como melhor que o velho, que o antigo.
A ciência moderna ao demarcar espaço como conhecimento institucionalizado, vendeu a
ilusão da infalibilidade e linearidade. Quanto às verdades, bem sabemos que “(...) não existe a tal
verdade verdadeira; ela é sonho, pura ficção” (Costa, 2002, p.15). Sendo ela também suscetível ao
erro.
Através de seu método, (baseado na disjunção, redução e abstração do sujeito e do objeto)
e de seus estatutos racionais (europeu, antropocêntrico, colonialista, etc.), acabou por remeter o
sujeito à filosofia e à moral. Estes princípios de redução é o que Morin (2005) chama de “paradigma da
simplificação”. Constituem em levar o saber complexo a um pensamento simplificador, incapaz de
conceber a conjunção do uno e do múltiplo.
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A ciência não é neutra e nem de uma objetividade absoluta. Vem sempre acompanhada ou
patrocinada por interesses. Todo cientista se insere numa rede de avaliações mútuas, que se estende
além de seu próprio horizonte de competência: “Ele tira partido ativo dos recursos desse ambiente pra
fazer prevalecer suas teses e ele esconde suas estratégias sob
a máscara da objetividade”
(STENGERS, 2002, p.18)..
Surgem, então, problemas de difícil solução, cada vez mais graves quando se reduz a
complexidade da ordem cósmica a um modelo de racionalidade hegemônica, defendida como uma
ciência pura, isolada e neutra. Privilegiam-se as ciências naturais pela sua objetividade, métodos
quantitativos, conhecimento explicativo e monotécnico. Esta organização mutila o conhecimento e
desfigura o real. Trata-se de uma visão unidimensional e abstrata. Fechada sobre si mesma,
monopolizada, julga possuir a verdade e a capacidade de explicar cientificamente a realidade. Segundo
Morin (2008), a ciência é incapaz de pensar a si mesmo de tanto crer que seu conhecimento é o reflexo
do real. Este princípio elimina o observador da observação, não permitindo o sujeito introduzir-se
autocriticamente e reflexivamente no seu conhecimento dos objetos.
A ciência em geral, e a modernidade em particular, via de regra teve uma relação
marcadamente instrumental com a vida. Preocupada e embasada na capacidade de conhecer e
transformar a natureza procurou eliminar a imprecisão, a ambigüidade e a contradição. O que até hoje
foi ignorado e rejeitado vem à tona. A idéia de ordem e estabilidade do mundo demonstra como o
determinismo mecanicista da modernidade separou o que serve daquilo que não serve; o estético, do
útil; a cultura, da natureza; etc.
Há necessidade de reorganizar o que conhecemos por ciência. Ao desencadear uma nova
concepção, uma reflexão epistemológica e diversificada sobre o conhecimento científico, Santos (2009)
cita:
Em vez da eternidade, temos a história; em vez do dete rminismo, a imprevisibilidade; em
vez do mecanicismo, a interpenetração, a esponta neidade e a auto-organização; em vez da
reversib ilid ade, a
irreversibilidade e a evolu ção; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a
criatividade e o acid ente (p.70-71).
A ciência não é capaz de responder a todas as indagações relacionadas aos fenômenos da
natureza, embora se tenha criado este mito. A ciência também trabalha com o erro, com hipóteses.
Não é apenas regularidade, mas também o caos, que foge ao experimento, ao controle, devido à
complexidade. “Se não houvesse homens no mundo, se o mundo fosse constituído apenas de objetos,
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então a linguagem da ciência seria completa. Acontece que os seres humanos amam, riem, têm medo,
esperanças, sentem a beleza, apaixonam-se por ideais”.(ALVES, 1999, p. 144).
O saber rigoroso, a precisão quantitativa, a rejeição, o desencantamento, a falta de prazer e
de emoção da ciência moderna faz com que se perca a riqueza de compreensão.
As dicotomias, os dualismos, as fragmentações e as separações entre os fenômenos são
sexistas, capitalistas, provisórios, às vezes precários e até mesmo contraditórios. Desta maneira, “a
ciência moderna existe num equilíbrio delicado, entre a relativa ignorância do objeto de conhecimento e
a relativa ignorância das condições do conhecimento que pode ser obtido por ele” (SANTOS, 2009, p.
82). As leis possuem um caráter probabilístico e aproximado. Disfarçados sob a égide de sua
linearidade.
Percebemos que o paradigma atual/ dominante encontra-se em crise e está a modificar-se.
Diante de tantas incertezas, o conhecimento científico deve dispor de refletividade. Contestando sua
convicção e sua própria estrutura de pensamento. Esta transição em que a ciência se encontra, aponta
para a emergência de um novo paradigma. É necessário voltar o olhar às coisas simples e às
perguntas simples. No entanto, as respostas não são nada simples de responder, pois “temos a
tendência inconsciente em afastar de nosso espírito o que vai contradizê-lo” (MORIN, 2005, p. 85).
Principalmente quando está em jogo o valor do conhecimento científico, suas contribuições para a
nossa felicidade, de seu sentido para as nossas vidas.
Morin (2005) nos sensibiliza para as enormes carências de nosso pensamento. Ao fazer
referência ao saber, relata que a redução do complexo ao simples leva a um pensamento simplificador,
incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo. A “inteligência cega” destrói os conjuntos e as
totalidades, isolando todos os objetos a sua volta; trata-se de uma maciça e prodigiosa ignorância, uma
visão unidimensional e mutiladora. “Assim, surge o grande paradoxo: sujeito e objeto são
indissociáveis, mas o nosso modo de pensar exclui um pelo outro, deixando-nos livres de escolher,
segundos as circunstâncias do trabalho entre o sujeito metafísico e o objeto positivista” (MORIN, 2005,
p. 50).
O autor trás a unidade por via de uma epistemologia aberta e uma nova ciência, integrando as
realidades banidas pela ciência clássica: a inventividade e a criatividade. “A imaginação, a iluminação,
a criação, sem as quais o progresso das ciências não teria sido possível, só entraram na ciência às
escondidas: não eram logicamente assinaláveis e eram sempre epistemologicamente, condenáveis”
(MORIN, 2005, p. 66).
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Ao trazer à tona a discussão da complexidade do pensamento4, percebemos que a
complexidade não elimina a simplicidade. Trata-se de uma palavra problema e não uma palavra
solução, por apresentar traços inquietantes da confusão, da desordem, da ambigüidade e incerteza. É
um dado da realidade. É o real em processo, em transformação incessante.
Embora o nosso mundo comporte a harmonia, não há uma receita de equilíbrio, pois esta
harmonia está ligada à desarmonia. A ordem e a desordem cooperaram na organização do universo. É
parte constituinte da existência social. A própria contradição não significa necessariamente um erro,
mas o atingir de uma camada profunda da realidade que, justamente por ser profunda, não pode ser
traduzida para a nossa lógica. Nunca escaparemos às incertezas e jamais poderemos ter um saber
total. E se um dia a tiver, “a totalidade é a não verdade” (MORIN, 2005, p. 83).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ciência que se desenvolveu na modernidade buscava certezas, verdades universais, leis
naturais imutáveis que propiciariam, após suas descobertas, compreender o mundo na sua integridade.
Através das experiências controladas e comprovadas pensava-se ser possível alcançar este objetivo.
Tais pressupostos, em última instância, a conduziram, através da mecânica desenvolvida por Newton,
a qual se tornaria o modelo científico dos séculos subseqüentes, a interpretação da matéria do mundo
como uma imensa máquina onde todas as operações podem ser determinadas por leis matemáticas e
físicas; bem como onde há sempre regularidade e a mesma ordem nos fatos, tornando possível a
previsibilidade e a repetição de experiências visando sempre às mesmas conclusões que seriam as
verdades.
A ciência moderna pensando desse modo possibilitou à humanidade um desenvolvimento
tecnológico nunca antes visto. Permitiu com suas técnicas o desenvolvimento de máquinas que
facilitaram, ao menos provisoriamente, a vida do homem. Contudo, esse mesmo desenvolvimento,
analisado pelo prisma social foi quem produziu a divisão do trabalho, grandes catástrofes de ordem
ecológica e, no campo do conhecimento, a fragmentação do saber.
Essa ciência prometeu muitas coisas para o homem: dominação completa da natureza,
liberdade, igualdade, justiça, paz. No entanto, o que assistimos após sua plena aplicação foram as
guerras mais sangrentas e mais atrozes. A humanidade toda a se degladiar.
Felizmente, na atualidade percebemos que o modelo de ciência proposto e aplicado na
modernidade já não dá mais conta de todos os problemas. A ciência que presenciamos está ciente de
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que controlar experiências para alcançar o conhecimento é muito pouco para buscar entender a
realidade. Há muita complexidade na natureza. Muitas relações que não são captadas e conhecidas
por meio de simples experimentos. Tentar formular leis gerais imutáveis para compreender a natureza
nos parece demasiada ingenuidade, tendo em vista o nosso contexto de constante mutação ecológica.
Precisamos, assim, pensar uma ciência que confira maior valor às pessoas; que leve em
consideração que as mesmas possuem sentimentos, emoções e que não são meros joguetes que
podem ser manipulados em vista de objetivos de bem estar econômico para alguns.
No presente momento, sabemos que todos os nossos conhecimentos são provisórios. Não
há verdades certas. O que sabemos é que possuímos muitas incertezas. E é isso o que está
conduzindo a ciência: a incerteza. Enfim, o que nos cabe salientar ainda sobre esse tema? Talvez seja
dizer que não cabe mais procurar a estabilidade e a ordem linear das coisas do mudo para
compreendê-lo.
Mas, nos perguntamos, o inverso disso é o caminho correto? O caos, a
desorganização elementar e estrutural das coisas é o que devemos buscar para tentar entender este
mundo em que vivemos? Talvez seja o caminho, talvez não seja. Não tenho certeza. È mais ou menos
por esse raciocínio que caminha a ciência na atualidade. O que temos em mãos são incertezas,
probabilidades e tendências. Verdades certas, indubitáveis e inquestionáveis são patrimônios de um
passado infeliz de nossa ciência que esperamos não voltem a vigorar.
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