PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Juvenal Batella de Oliveira ESTE LADO PARA DENTRO — FICÇÃO, CONFISSÃO E DISFARCE EM JOÃO UBALDO RIBEIRO TESE DE DOUTORADO DEPARTAMENTO DE LETRAS Programa de Pós-graduação em Estudos da Literatura Rio de Janeiro Março de 2006 Juvenal Batella de Oliveira ESTE LADO PARA DENTRO — FICÇÃO, CONFISSÃO E DISFARCE PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA EM JOÃO UBALDO RIBEIRO Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Karl Erik Schollhammer Vol. I Rio de Janeiro Março de 2006 Juvenal Batella de Oliveira Este lado para dentro — ficção, confissão e disfarce em João Ubaldo Ribeiro Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUCRio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA _________________________________________ Prof. Karl Erik Schollhammer Orientador Departamento de Letras - PUC-Rio __________________________________________ Profa. Marília Rothier Cardoso Departamento de Letras - PUC-Rio __________________________________________ Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz Departamento de Letras - PUC-Rio __________________________________________ Profa. Zilá Bernd Instituto de Letras - UFRGS __________________________________________ Profa. Eneida Maria de Souza Faculdade de Letras – UFMG __________________________________________ Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio Rio de Janeiro, 17 de março de 2006 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Juvenal Batella de Oliveira Graduou-se em 17 de março de 2006 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Ficha Catalográfica Oliveira, Juvenal Batella de Este lado para dentro : ficção, confissão e disfarce em João Ubaldo Ribeiro / Juvenal Batella de Oliveira ; orientador: Karl Erik Schollhammer. – Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Letras, 2006. v. ; 30 cm Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras. Inclui referências bibliográficas. 1. Letras – Teses. 2. João Ubaldo Ribeiro. 3. Narratologia. 4. Discurso indireto livre. 5. Focalização interna. 6. Biografia. 7. Mercado editorial. I. Schollhammer, Karl Erik. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título. CDD: 800 _______________ RESUMO Juvenal Batella de Oliveira; Este lado para dentro — ficção, confissão e disfarce em João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2006. 533 p. Tese de Doutorado. Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. O primeiro objetivo desta tese é a descrição, a análise e a interpretação dos procedimentos narrativos utilizados por João Ubaldo Ribeiro em seus nove PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA romances até agora publicados. Isto significa identificar, na sua maneira de contar as histórias, uma específica relação que o narrador estabelece com os seus personagens, ao levar às últimas conseqüências a prática do discurso indireto livre. A representação ficcional desse narrador — aqui nominado o narrador sem cabeça — é um personagem-chave do escritor: a almazinha cuja história é relatada logo às primeiras páginas do romance Viva o povo brasileiro, de 1984. Comportam-se ambos, um de cada lado, como seres errantes, figuras sem feitio e em constante processo de incorporação de linguagens alheias. O segundo objetivo é demonstrar que esse mesmo narrador, tão íntimo de seus personagens, se revela no entanto ainda mais apegado ao próprio escritor, com ele partilhando crenças, idéias e experiências. Para tanto, com base numa pesquisa de imprensa que remonta ao início da carreira de João Ubaldo Ribeiro como escritor e avança até o ano de 2005, a tese articula o seu universo ficcional à sua biografia ainda não escrita — o que contribui para uma compreensão mais ampla da sua obra. PALAVRAS-CHAVE: João Ubaldo Ribeiro; narratologia; discurso indireto livre; focalização interna; biografia; mercado editorial. _______________ ABSTRACT Juvenal Batella de Oliveira; This side in — fiction, confession and disguise in João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2006. 533 p. Doctor’s Degree. Literature Department of the Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRio. The first purpose of the thesis is the description, the analysis and the interpretation of the narrative procedures used by the Brazilian writer João Ubaldo Ribeiro throughout his nine novels published up to now. That means to identify, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA in his way of telling stories, a specific relation established by the narrator with his characters, stretching to the limit the usage of the so-called free indirect discourse (the FID). This narrator’s fictional representation — herein called the headless narrator — may be found in a Ribeiro’s key character: the little soul whose lifestory is told right on the first pages of the novel Viva o povo brasileiro (An invincible memory), published in 1984. They both behave – the little soul and the narrator, side by side, in and out the story – as errant beings, shapeless figures in an on-going process of incorporating someone else’s speaches. The second purpose is to demonstrate that this same narrator, though very close to his characters, appears, nevertheless, even more attached to the writer himself, sharing with him believes, ideas and experiences. In order to demonstrate such relation between the author and the narrator, the thesis links the fictional universe of the novels and the author’s nonwritten biography. Such relation is established on the basis of a printing-press research that covers the period beginning in the 1960’s until the 2005’s, thus allowing a more comprehensive understanding of the author’s work. KEY-WORDS: João Ubaldo Ribeiro; narratology; free indirect discourse (FID); internal focalization; biography; publishing market. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Para Berenice, esta primeira vez. Para Teresa, como se fosse sempre a primeira vez. _________________________ AGRADECIMENTOS Agradeço à Valéria dos Santos, da editora Nova Fronteira, ao Carlos Carvalho, da Objetiva, e à Cecília Andrade, diretora literária da editora portuguesa Dom Quixote, que ouviram os meus pedidos e atenderam a todos eles, deixandome feliz imediatamente. À Otília Peixoto, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Portugal, pelos gestos rápidos e pela seriedade, e tudo isso sempre a sorrir, fazendo com que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA me sentisse em casa com os seus sorrisos. Ao José Carlos de Vasconcelos, diretor do JL, pelo à-vontade em que me deixou e pelas boas conversas que travamos acerca de seu “grande amigo Ubaldo”. Aos bravos defensores da Biblioteca Juracy Magalhães Jr.: Isa Maria Silva Cardoso, Robertina Maria dos Santos, Moisés Alcântara Araújo, Bartolomeu Oliveira Barros e à sua incansável diretora, Dalva Tavares Lima, pela simpatia, pelo apoio, pela confiança. Sem eles, não teria conseguido ter acesso ao material de imprensa tão bem guardado e tão valoroso — biscoito fino para qualquer pesquisador que tenha boa estrela. Ao António Maria de Carvalho da Costa Pereira, à Eva Gaspar, ao Fernando Bastos, ao Fernando Viana, ao Filipe Manuel Nogueira Ferreira, à Isabel Lopes da Silva, ao Joaquim Trigo de Negreiros, ao Jorge Manoel Teixeira, ao José Carlos de Vasconcelos (mais uma vez), ao Manoel de Castro Vilas Boas, à Maria do Carmo Guerreiro, à Maria Gomes de Oliveira Xavier, à Maria Rita Brito Monteiro, ao Mário Negreiros e à Sandra Campos por terem respondido, com um sorriso e uma seriedade, a todas as minhas perguntas. Ao professor Carlos Reis, pela imediata atenção que me concedeu e pelo sincero interesse com que ouviu todas as minhas idéias. À professora Maria Lúcia Lepecki, pelo acolhimento que me deu em Portugal, pela co-orientação carinhosa, pelos cafés, pelas dicas lisboetas mais preciosas. À professora Zilá Bernd agradeço pela confiança que depositou em mim desde o início do caminho. Ao bravo, incansável e inadmoestável orientador, Karl Erik Schollhammer, conhecido como aquele que tem a última palavra, a mais sábia entre todas. Agradeço ainda ao escritor João Ubaldo Ribeiro, aqui também chamado “objeto de estudo”, que paciente, resignada e generosamente se submeteu aos meus questionários e aos meus pedidos, posando mais ou menos imóvel enquanto eu, lápis à mão, esboçava o seu retrato de letras. A ele também cumprimento por PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ter escrito tanto e por continuar a escrever tanto. À Berenice, pela maneira com que me ouve, com que me fala e com que me percebe, dos pequenos aos grandes temas. Ao Joaquim e à Fernanda, que fazem do meu quotidiano uma eterna celebração, e isso a tal ponto que me sinto, a cada almoço, a cada jantar, a cada encontro, afagado e compreendido. Ao meu pai, Juvenal, e à minha mãe, Telma, pela força e pelo carinho que me dão, e parece que adivinham os momentos em que preciso dessa força e desse carinho. À pequena Alice, que me ensina muitas coisas, entre elas a possibilidade, e a necessidade, de um olhar novo sobre (quase) tudo. À Teresa, o amor da minha vida, por renovar, a cada dia, a proposta para um desafio: o mais importante do mundo... Ao meu interlocutor, esteja onde estiver. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Errar é humano, sussurram as almas, também elas errantes. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA “... tenho lido na folha que V.a S.a dirige umas correspondências subscritas por um sr. João Ubaldo Ribeiro e, ao que parece, enviadas da República dos Brasis. O dito senhor intitula-se romancista, e, por coincidência de nome ou apropriação soez, insinua ser o mesmo João Ubaldo que deu a lume o Sargento Getúlio, Vila Real, Livro de histórias e outras obras que todos nós admiramos. ¶ Terrível abuso!!! (...) Desprezível e clamoroso travesti literário (...)!!!! Pois não teve ao menos V.a S.a o cuidado de verificar a identidade do dito antes de lhe dar publicação, como se do escritor se tratasse? (...) ¶ Eu bem sei que andou por cá um brasileiro guedelhudo e de camisa de seda a apresentar-se como romancista João Ubaldo Ribeiro e que, por isso, foi recebido com a alegria e a admiração que esse autêntico escritor justifica. O dr. José Carlos de Vasconcelos propôs-lhe contratos (...), o dr. Mário Soares recebeu-o em provençal, José Nuno Martins pagou-lhe umas prédicas sambistas à boca do microfone, a menina da livraria abandonou o lar e as encomendas. Mas V.a S.a foi mais longe: publicou-o. ¶ Verdade que eu, pobre de mim, também acedi sentar-me uma vez à mesa com ele, mas ao terceiro bagaço percebi o embuste: o sujeito tinha sotaque galileu e caía em contradições sucessivas sobre a paisagem da Baía [sic] e dos territórios do verdadeiro João Ubaldo (...). (...) ¶ Termino, sr. director, informando que, deslocando-me este mês ao Brasil, não desperdiçarei a oportunidade de procurar o ultrajado romancista, da minha predilecção, que de há muito desejo conhecer pessoalmente. (...) ¶ Quanto ao Outro, deixo-o para sempre nos mundos subterrâneos onde escrevinha impunemente as cartas subversivas que V.a S.a publica. A bem da moral” José Cardoso Pires, “Cartas de José Cardoso Pires ao autor de ‘Cartas ao Zé’”, O Se7e, Portugal, texto sem data. “... Então um senhor que se assina com o nome José Cardoso Pires, que, como se sabe, é um dos meus pseudônimos literários portugueses (os outros, já que chegou a hora das grandes revelações, eu digo logo: são Lobo Antunes, José Manuel Mendes, Augusto Abelaira (...) e Fernão Mendes Pinto, além de muitos que contratos e maquinações ainda vigentes me impedem de apontar). Quem escreveu os livros dele fui eu. Coisas da nossa organização, que não posso sair por aí contando. Esse senhor (...) de facto apresenta-se como José Cardoso Pires. (...) Complementarmente, o referido senhor tem gosto apurado pelo trajar (...), além de possuir, é claro, uma excelente cara de escritor — atributo que, como sabemos o Namora e eu (...), é indispensável para a obtenção da estima crítica e do respeito da colectividade (...). Muito bem (...): ele não pode ser o José Cardoso Pires porque não sabe nem ler nem escrever. (quem redigiu a carta por ele foi o Fernando Assis Pacheco [...]). (...) O verdadeiro nome dele é Tomé Carrascal e, antes de ser recrutado pela Organização, era pescador na Caparica (...). Esse homem, por artes da organização, foi guindado aos píncaros de literatura de expressão portuguesa. Quando eu escrevi O Delfim, nem imaginava que tudo fosse dar tão (...) certo. Pois muito bem, pois esse homem recebe as homenagens, a reverência, as honrarias e, principalmente, os prêmios. É bem verdade que, quando lhe entreguei os originais de Balada, lhe assegurei que o que ganhasse seria dele. (...) Não me arrependo, ele que fique com os rios de dinheiro que embolsa todos os dias, mas (...) bem podia ter-me mandado umas chamuças, um tintozinho, um da Serra cremoso, uns mimos assim simples. Era o mínimo que se poderia esperar. Mas não. O que recebo é um golpe traiçoeiro e solerte. Como não sou o João Ubaldo? Claro que sou o João Ubaldo. Isto quando não estou disfarçado de José Carlos de Vasconcelos (...). E quanto ao Tomé, diga-lhe que, se não parar com as gracinhas, transfiro o próximo livro dele para a Augustina Bessa-Luís. Não sou homem de brincadeiras. Revoltadamente seu” João Ubaldo Ribeiro, “Cartas ao Zé — Esclarecendo equívocos”, O Se7e, Portugal, 5 out. 1983. ___________________ SUMÁRIO Pág. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 1. INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS. “Bom dia, vamos conversar?” “Conto-lhe uma história.” A necessidade de uma tese para o andamento do mundo? Um escritor tem uma obra, e o que é uma obra? A marca, o padrão, a obsessão. O centro nervoso de João Ubaldo Ribeiro. A progressiva e nítida abertura. O caminho de aprendizados de uma almazinha. Narrador: ser constituinte e fundante do universo romanesco. O perfil do narrador sem cabeça. Do nada de um “poleiro d’almas” aos universos de cada personagem: o narrador incorpora. As ligeiras biografias de um pequeno eu. “Um (suposto) vínculo de excelência entre autor e obra.” O espírito totalizante e o espírito randômico. A biografia de uma vida intelectual pública. O biografema ubáldico. As “pontes metafóricas entre o fato e a ficção”. O puzzle Ubaldo caminha em direção ao narrador sem cabeça. Se o homem está para a vida, assim como o autor está para obra, o escritor está para ambas. Começa a conversa: mais café. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 16 1.1. 1.2. 1.3. 1.4. 1.5. 1.6. 1.7. 1.8. 2. IDÉIAS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ UM BOM PUNHADO DE PALAVRAS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A IDÉIA DO FACHO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A MEMÓRIA INDIVIDUAL _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O NARRADOR SEM CABEÇA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O PEQUENO EU _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ “GUARDAR TUDO, JOGAR NADA FORA”: O MAL DE ARQUIVO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A LITERATURA, BARTHES E O VATAPÁ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO — A CABEÇA DO NARRADOR SEM MUNDO. O primeiro que é o segundo. Ubaldo e a “galinha de um ovo só”. O início da consagração. Getúlio e a imprensa norte-americana. O biografismo explicativo. Coutinho põe Ubaldo na teia: entre escritores, estilos e temas de nossa história literária. Antônio Conselheiro, Corisco e Getúlio: os machos desta terra. O Grande Sertão e as veredas de Getúlio: a obstinada primeira pessoa. Aracaju, 1950: o menino João com nove anos. Sob a “sombra” de Graciliano, sob a “sombra” de Rosa. O “não” às influências. O “não” às pesquisas: “... escrevi daquele jeito porque só acertava a escrever daquele jeito”. Getúlio: a gota serena. Antígona vem de longe. Getúlio: onde ficam o narrador, o personagem e a fronteira entre ambos? Meursault fala pouco. Atrás de Getúlio, a ideologia e o silêncio do mundo. Autobiografia ou auto-retrato? Faço, logo existo. Morrer frouxo ou morrer macho? Eis a questão: levar ou ou não levar? Getúlio pensa, Getúlio fala. Itaparica: 1941. A clássica vida entre livros. O pai, Homero, os sermões de António Vieira e o que a erudição do narrador de Ubaldo deve à sua formação. As lembranças de 17 18 22 29 30 34 37 41 infância do “sargento que não morria”. O “verdadeiro” Getúlio pintava as unhas. E lá no fundo: o menino Ubaldo. O pai de Ubaldo, o chefe de Getúlio? A literatura e o poder nas grandes famílias brasileiras. A visão do(s) menino(s) sobre o “Dragão Manjaléu”. Javier Marías e as três caras do fantasma autobiográfico. Os três sargentos-Sherazade: Getúlio, Tasso e Cavalcanti. De “alguém que poderia ter sido eu” a “alguém que não pode ser outro senão eu”. “Getúlio Ubaldo Ribeiro”. O filme “documentário-literário” de Hermano Penna. Getúlio: “... quando estou pensando, estou falando”. A contra-ordem: “... ele mesmo, o chefe, não prendeu ninguém...”. Câmera subjetiva: o olhar da vítima, a degola do tenente. “Tirando bicho de pé, seu Getúlio?” E começamos, como os norte-americanos, a gostar do sargento. “Eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso.” O teatro aberto, Getúlio em cena: o monólogo. “Eu era ele, agora eu sou eu.” Lima Duarte a Othon Bastos: “... tomara que você fique doente”. Barra dos Coqueiros: o local de morte: “... e eu nunca vou morrer, Amaro!”. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 46 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 2.1. 2.2. 2.3. 2.4. 3. SARGENTO GETÚLIO E CIA. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ DA INESCAPÁVEL CABEÇA DE GETÚLIO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ “SARGENTO GETÚLIO SOU EU”, DIZ UBALDO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ DO LIVRO AO FILME — E A VOLTA E MEIA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL — A CABEÇA DO NARRADOR CONTRA O MUNDO. A juventude radical. O contexto de Setembro não tem sentido. O paralelismo entre Setembro... e Diário...: os 21 e os 60 anos, o ano de 1964. Tristão, Orlando e o padre: a falta de sentido. O início da carreira: João Ubaldino Ribeiro ou João Paulo Oliveira? A amizade com Glauber Rocha. Os fantasmas e o espelho. “Está pronto para publicar.” O “sim” às influências: Joyce e outros escritores modernos. “Acho ruim, mas não é tão ruim, não.” A autobiografia ou o umbigo de Ubaldo: “... os jovens intelectuais baianos à porta da livraria Civilização Brasileira”. O comportamento agressivo e original do narrador. A ilha, a ilha, a ilha. O romance enclausurado. O elogio e a crítica de Jorge Amado. Tanto niilismo, tanta amargura e tanto pessimismo “atrás do riso alegre de Ubaldo Ribeiro...”. “Esta é a Semana da Pátria, e eu não estou me sentindo nada bem...” Orlando e os seus pequenos fatos importantíssimos. O feitio camaleônico do narrador. Os erros de Diário do farol: a atuação do escritor não-profissional. Os “Ubaldos”: repórter, redator, copidesque, chefe de reportagem, colunista, editorialista, editor-chefe. A imagem de “povo”. A política em Setembro... e no Diário.... A des-pompa pela via do humor e pela do rancor. “Tudo já foi escrito”, dizem Ubaldo e o seu padre. O quão pouco moderno é Setembro não tem sentido? A frágil extradiegese do narrador, cuja alma trafega entre os vivos. Tristão: a focalização interna levada às últimas conseqüências. A multivocalidade desde o início. Joyce e Ubaldo: “... era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu” e “... tun-tun (...) iam ao fundo do quintal para olhar as coisas um do outro”. Sherazade e os modos de narrar. O narrador transformante e transformado. O Ubaldo de Reunião: “... salutar insatisfação formalística...”. A consciência de Orlando caminha para a dissolução e se espatifa. O “bovarismo” ubáldico. Orlando e o padre: a liberdade de não querer nada; a prisão no presente e no discurso; “O outro? Não conheço...”; e a verdade, por favor. “Eu estou aqui e agora dizendo isto.” “Escrever não tem sentido”, diz aquele que escreve: o “paradoxo do fênix”. O pai, o filho e a santa biblioteca... de Setembro..., do Diário... e dA casa dos 48 60 77 95 Budas... Montaigne e os seiscentos volumes. O pai de Orlando e do padre e as “cartas do pai”, nO sorriso do lagarto. “Não aceito o magistério da Igreja”, dizem Ubaldo e CLB. “O bigode”, de João Ubaldo Ribeiro. “Não vou dizer que psicografei... mas vivi o personagem...” O homem perigoso. A ditadora do mundo. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 115 3.1. 3.2. 3.3. 3.4. 3.5. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 4. 125 141 161 172 178 O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA CABEÇA DO NARRADOR. A literariedade da literatura, — O MUNDO DA a artisticidade da literatura. As tarefas de um chefe: exercer o comando, dar proteção, ministrar ensinamentos e distribuir boas palavras. Um chefe natural e incapaz de o ser. A história de Argemiro: a história do transcurso de uma incumbência. O discurso clássico de poder e a mediação cultural. A eloqüência do narrador e os silêncios de Argemiro. A frase de Silviano Santiago. Geertz e o carisma. Vila Real e a necessidade de um líder. O carismático e o centro das coisas. O centro das coisas é a guerra. O espatifamento da transcendência. O pé no topo da pedra e a grande questão. A sociedade da ausência: “O Filho de Lourival”. A Inglaterra, a terra de Java e o Marrocos. O poder como “coisa em si”. A coisa possuída e o condão de possuir. O baraka. Faltam palavras onde falta tudo. A cabeça de Argemiro e a figura do narrador. O “espúrio legítimo”, ou o que deleita, comove e ensina. A literatura anfíbia. O que há de errado com as palavras de Argemiro? Maria da Fé, o espelho distante de Ernesta. As névoas e os caroços. A prática política e a prática da vida. O narrador: o duplo de Argemiro. A cabeça de Argemiro como a fala do narrador; a fala do narrador como uma conversa íntima. A querela por e com as palavras. O narrador ensaísta. Vila Real: o único livro de versos. Há aqui pelos menos três boas batalhas. A subjetividade coletiva. Argemiro, o herói épico. As “extremidades da diegética”. A maturidade do escritor. A “questão” da identidade brasileira. A busca pelo verbo brasileiro. Os “happy few”. “Vila Real é meu romance órfão.” É hermético? A materialidade áspera da palavra. Os sertões e a sua “deficiência estrutural”. Argemiro Meia-Lua e o Urutu-Branco. A responsabilidade do artista e o bisturi literário. A bola preta e a obstinação de Vila Real. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 196 4.1. 4.2. 4.3. 4.4. 4.5. 4.6. 4.7. 5. A REDAÇÃO DO NARRADOR DA REDAÇÃO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A TERCEIRA PESSOA: O TERCEIRO EXCLUÍDO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ É SETEMBRO NO DIÁRIO DE ÁGUA SANTA... EM SERGIPE E NA BAHIA _ _ _ _ _ _ _ _ A ESCRITA DA ESCRITA DA ESCRITA... _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ EM NOME DO PAI, DO PAI E DO PAI _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O REI ESTÁ SEMPRE NU _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ VILA REAL, MARROCOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O “ESPÚRIO LEGÍTIMO” _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O NARRADOR-ENSAÍSTA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A EPOPÉIA SERTANEJA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O NARRADOR-BRASILEIRO: A BOA E VELHA “QUESTÃO” DA IDENTIDADE _ _ _ _ _ UBALDO, ARGEMIRO E O NARRADOR _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO — O MUNDO DO NARRADOR SEM CABEÇA. A cara do narrador sem cabeça. O narrador-cavalo do personagem. O títuloverruga: origens e razões. O trabalho crítico como leitura da própria vida. O narrador de Viva o povo... e dO feitiço da ilha do Pavão: técnicas e técnicos. Pequenas focalizações internas: a dança dos pontos de vista. Os “bem falantes” 200 206 210 215 222 232 243 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA donos do poder versus as encarnações da pobre almazinha, e o narrador no meio. O exercício da personalidade textual. A presença vocal nos oprimidos. O direto e o indireto bastante livres. O canibalismo em três tempos, 1922, 1984 e hoje: uma dívida de Ubaldo ou uma gozação? O des-aprofundamento. A boca do índio, a cabeça do branco. Antropofagia e canibalismo: o filé à Oswaldo Aranha. Bakhtin fala, Dadinha morre. O narrador sai à francesa e olha à volta. Novamente o escritor. Hibridismos ubáldicos. Amleto, o pragmático, fala mas não diz. Caio Prado cai no erro. Philip Roth e Ubaldo reinventam o passado. Amleto apanha e Virgílio socorre. O RG de Ubaldo. Ubaldo da Fé: “Sou mulher e sou bandida”. As teses sociais ou o romancistaideólogo. As noventa cabeças: o saber popular do narrador. O leitor conhece Leléu? Arte: metáfora do conhecimento. “A literatura...”, diz Antonio Candido. O tatu, o baiacu e a epistemologia. Saber ou não saber, eis o problema narratológico. O agá minúsculo pouco falado. Ubaldo “psicografa”. Os dois Leléus. As gracinhas de um romance (anti-)histórico. O discurso heróico e o outro, o das bicheiras e do medo. Um cego conta Viva o povo....: Ensaio sobre a vidência... A “meta-história”. O Arraial de Santo Inácio: meio de caminho entre ficção e história. O flanco LaCapra. A ilha do Pavão e o lugar “fora” do Brasil. A condição mítica da ilha: a toca do tempo e o desfile dos possíveis futuros. A Guerra do Paraguai e a Guerra de Tróia: a “Ilíada Negra” e a opção pelo épico. Os deuses e os “orixás façanhudos e faiscantes”: Zeus, ajuntador de nuvens, e Oxalá, pai dos homens, Aquiles, de pés rápidos, e Ogum, cujo nome é a própria guerra. O tema, os pontos dramáticos e a forma. Homero e Ubaldo: a transformação da releitura e o sangue derramado. _ _ _ _ _ 251 5.1. 5.2. 5.3. 5.4. 5.5. 5.6. 5.7. 5.8. 5.9. 6. PEQUENAS INCORPORAÇÕES: O NARRADOR A CAVALO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ANTROPOFAGIA(S) DE ONTEM E HOJE: O “CABOCO” COME _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ JOÃO UBALDO FAZ CEM ANOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A LÍNGUA-MULETA DO MULATO AMLETO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ JOÃO UBALDO, A CAVALO, É MARIA DA FÉ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O NARRADOR DE NOVENTA CABEÇAS: LITERATURA E CONHECIMENTO _ _ _ _ _ _ A “ONISCIÊNCIA RELATIVA” _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ AS HISTÓRIAS DE UM ROMANCE HISTÓRICO QUE SE QUER ESTÓRIA _ _ _ _ _ _ _ _ “CANTA, Ó, MUSA!”: UMA DESCRIÇÃO INTERPRETATIVA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ — A CABEÇA DO NARRADOR NO MUNDO. Uma biografia de ponta-cabeça. O escritor entre a crítica e o público. O início da carreira: melhores momentos? Romance: gênero capenga? A narrativa brasileira contemporânea: painel histórico ou miniatura fragmentada? O (falso) debate best seller versus obra de arte. Um livro bem sucedido é um best seller? Um best seller é um livro ruim? A frustração das expectativas críticas. Romancista tradicional, intérprete de seu povo e do seu tempo? O sorriso do lagarto: o fim do regionalismo ubáldico. Jorge Amado: a opressiva “persona” literária? O “problema da linguagem” e a “questão do discurso”. O escritor-escrivão: o que vive da pena. A justa matéria dos romances, a justa matéria da vida. O leitor médio e o conteúdo das histórias. Está precisando de dinheiro? Escreva um livro. O escritor-escrivão: retrato falado. O barroquismo, o perfeccionismo, o eruditismo, o biologismo, o alcoolismo, o romantismo, o nervosismo e o profissionalismo da escrita. Os budas lusitanos e os hipermercados censores. A carta de um leitor português. As resenhas dos jornais portugueses. O que dizem os comerciantes lusos: “... livros, bolachas e chocolates...”, o que diz o editor UBALDO AMADO 259 274 286 300 313 321 334 348 378 da Dom Quixote: “... censura!”, o que diz o autor? João Ubaldo “Rodrigues” e Portugal. Como se faz um best seller? Por acaso? Os fatores em jogo no motor do DCL — discurso crítico literário. Escritor best seller ou escritor profissional? Top de venda ou best seller? A crítica e o livro: o que fazer então com tudo o que não é o livro, embora seja? Benedita: a miséria e a grandeza de mais um livro de Ubaldo, ou nada mais que o primeiro e-book? Uma “nova e mais que merecida chance”: o papel. O leitor é o único juiz, diz Ubaldo. As literaturas: oral, erudita e massiva, e o literário a circular... Ubaldo Amado: a discussão apenas começa._ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 396 6.1. 6.2. 6.3. 6.4. 6.5. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 7. O LUGAR DO ESCRITOR NO MUNDO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ A FORTUNA CRÍTICA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O TRABALHO DO ESCRITOR-ESCRIVÃO (PARTE I) _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O TRABALHO DO ESCRITOR-ESCRIVÃO (PARTE II: RETRATO FALADO) _ _ _ _ _ _ _ O CASO DA CASA DITOSA: MISÉRIA E GRANDEZA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 397 404 418 428 437 CONCLUSÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS. A minha (nossa tese). Escreve-se a conclusão ao início e a introdução ao final. Errar de maneira certa. O autobiografismo fantasmagórico restou superestimado? E o autor, numa tarde do século XVIII, subiu no telhado... E novamente os perigosos e alagadiços terrenos biográficos. O que é a obra senão aquilo que é feito por um autor? O “escritor”: aquele que escreve e aquele que reflete sobre a escrita. O funcionamento do “nome do autor”. Ser ou não ser um “escritor-escrivão”? “Eu faria tudo diferente”, disse ele. O percurso temático no lugar do percurso biográfico. O mosaico ubáldico se esfarela, “porque o passado...”, disse ele, e calou-se. Prousting: a tese autofágica. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 468 7.1. 7.2. 7.3. 7.4. A “MORTE DO AUTOR”; O LUGAR DO ESCRITOR _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ O SCRIPTOR MODERNO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ “É PRECISO REDIVIDIR TODA A TESE”, DISSE ELE _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ EXIT: LET’S PROUST... _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 469 475 480 486 8. BIBLIOGRAFIA DE JOÃO UBALDO RIBEIRO E BIBLIOGRAFIA GERAL (ilustradas com notas de rodapé) 8.1. DE JOÃO UBALDO RIBEIRO 8.1.1. ROMANCES _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.1.2. OUTROS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.1.3. VERSÕES PARA O INGLÊS (DO PRÓPRIO AUTOR) _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.1.4. LIVROS TRADUZIDOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.1.5. ADAPTAÇÕES, ROTEIROS EM CINEMA TELEVISÃO E TEATRO _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.2. GERAL 8.2.1. BIBLIOGRAFIA CITADA SOBRE JOÃO UBALDO RIBEIRO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.2.2. BIBLIOGRAFIA CITADA DE IMPRENSA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.2.3. ESTUDOS CITADOS SOBRE O NARRADOR _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.2.4. DEMAIS LIVROS E TEXTOS CITADOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.2.5. FONTES ELETRÔNICAS CITADAS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 8.2.6. OUTROS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 9. APÊNDICE: QUESTIONÁRIO “PROUST” COM JOÃO UBALDO RIBEIRO _ _ _ _ _ _ _ _ 487 487 489 490 494 495 496 515 516 520 522 523 1 _____________________________________ INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS Iniciado o caminho, consumada está a viagem. (em Lukács) — Bom dia. Esta sala está ocupada? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Bom dia. Sim, está ocupada. Por mim. — Posso dividi-la com você? — Claro. Fique à vontade. — Obrigado. Não vou perturbá-lo. — Imagine... Estou apenas pensando... Pensando sobre a minha tese... — E você consegue pensar assim, sozinho? — Na verdade, não muito... — Gostaria de pensar acompanhado? — Pensar a dois? Conversando? — Sim, conversando, divergindo, concordando. Fale-me sobre ela. — Ela, quem? — A tese... Qual a idéia? — Ah, são muitas. Mas você tem tempo? Como devo chamá-lo? — O que tenho é tempo, e nada mais tenho além de tempo. E não me chame de nada; serei apenas “o interlocutor”. — Conto-lhe então uma história — e comecei assim esta minha conversa com o meu “interlocutor”, os dois no centro da grande sala de uma biblioteca que queríamos infinita. — Ouça. — E eu lhe disse: — No dia 10 de junho de 1822, uma almazinha ainda assustada se despega do corpo de um alferes de nome José Francisco Brandão Galvão. O jovem, atingido pelas balas de algumas embarcações portuguesas, cai morto no cais da Ponta das Baleias, na Baía de 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 17 Todos os Santos, com um olho furado e o crânio em pedaços. Parece que, afora os elementos naturais, gaivotas, mares e nuvens, não houve testemunhas para as palavras de amor à pátria proferidas pelo jovem José pouco antes do passamento. Ninguém ouviu coisa alguma, mas isso não quer dizer muito, pois que todos bem puderam avaliar o peso das tais palavras para o engrandecimento do espírito humano e para o fortalecimento da liberdade em sua dura batalha contra a tirania. José Francisco, alferes menos por nomeação de patente e mais por assim o chamarem, tornou-se, de uma noite para um dia, herói, e seu discurso às gaivotas, peça caudalosamente homenageada, repetida e parodiada em versos e quadrinhas. — Você fala muito bem... — disse ele. — Obrigado, mas isso, além de ser praticamente uma paráfrase, já está quase que grudado à minha cabeça... No segundo seguinte à morte daquele corpo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que habitou por não mais que dezoito anos, a almazinha do alferes, boiando no ar, começou então a subir, mas não muito depressa nem muito alto; o suficiente para que pudesse assistir ao que se passou: um enterro simples para o alferes José Francisco Brandão Galvão e, em seguida, aos poucos, a construção, linha a linha, dia a dia, de uma grande fama de herói, exemplo de valentia e eloqüência. A almazinha passou a assistir de longe às homenagens que lhe faziam, ou que faziam ao alferes, aos discursos emocionados em que lhe louvavam a coragem, a sua coragem e a do alferes, e às declamações fervorosas de versos inspirados justamente em seu famoso e nunca realmente ouvido discurso às gaivotas, aos mares e às nuvens. A almazinha assistia a tudo isso emocionada, admirada e orgulhosa de si própria, ou, por outra, do alferes cujo corpo por dezoito anos habitou, habitando também as suas idéias. 1.1. IDÉIAS — E quais são as suas idéias? As suas... — interrompeu-me o interlocutor. — São muitas. As que deram origem a esta tese que ainda não existe partiram de um mistério. O que normalmente se faz em seguida é transformar esse mistério num problema, o que significa, de certo modo, expressá-lo. Uma vez expresso, torna-se mais problemático que misterioso. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 18 — O que você quer dizer com isso? Que, se não houvesse um mistério, ou um problema, não haveria a necessidade de uma tese? — Sim. Não se escreve uma tese se tudo corre às muitas maravilhas. Se tudo vai bem, qual a razão de uma tese? Uma tese só existe porque algo não vai bem, porque algo restou mal explicado, porque algo poderia estar mais bem encaixado num algo maior, a que se poderia dar o nome de sistema, dentro do qual a tese cumpriria a função, grosso modo, de uma errata. — Não creio... — disse ele com delicadeza. E propôs-me iniciarmos uma rodada de café. — Não, não. Acho que você está tenso com essa história de ter de fazer uma tese e não está raciocinando direito — ele falou, já sem nenhuma delicadeza. Eu comecei a gostar daquilo. Gostaria que ele me dissesse agora que eu estava delirando. — Você está, desculpe a franqueza, delirando. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Deixe-me continuar. A tese, contudo, não seria uma errata como outra qualquer, mas uma errata desconhecedora de seu pleno poder reparador; uma errata problemática, conflituosa, incerta acerca de si mesma, consciente do problema que tem nas mãos e, no entanto, incapaz de assegurar o sucesso final, às páginas finais da conclusão; uma errata em crise, uma errata errante. — Desculpa lá, mas você está dando um sentido quase messiânico à sua tese, ou a qualquer tese. Espera-se de você que escreva uma tese. Crie, portanto, um mistério ou um problema, dê lá o nome que você quiser dar aos seus estímulos... — disse ele, animando-se para a discussão e fazendo exatamente o que eu gostaria que ele fizesse: colocar-me contra a parede. — Crie, como se diz hoje, uma questão. Você vai escrever uma tese? Então invente um problema e discuta esse problema. A sua tese, ao final, não vai reparar nada, não vai consertar nada, não vai resolver nada. Como se sente agora? — Mais leve... — Então continue — e ele, fazendo um sinal com a mão e se sentando, pediu-me palavras, muitas palavras. 1.2. UM BOM PUNHADO DE PALAVRAS — Vamos esquentar — comecei. — Pergunto-lhe: o que liga um autor à sua obra, além da assinatura? — Ele em silêncio, e eu continuei: — Há autores 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 19 que produzem com regularidade e ao longo de muitos anos; autores que, ao cabo de algum tempo, podem considerar-se responsáveis por uma “obra”. — “Um escritor”, disse Jorge Amado a João Ubaldo Ribeiro, “tem de ter uma ‘obra’, e não um ou dois livros”1 — citou o meu interlocutor, estendendo-me uma xícara de café novinho em folha, e eu quase pulei da cadeira. — Obrigado. Curioso você falar em João Ubaldo Ribeiro... — interrompio, e peguei a xícara. — Tudo isso tem a ver com João Ubaldo... Eu ainda não lhe disse, mas minha tese é sobre João Ubaldo, a sua obra romanesca, e aquela história da almazinha é a paráfrase do início do romance Viva o povo brasileiro.2 — Coincidências... — disse ele, sem dar muita importância à coisa. — Obra e autor — e eu continuei, tentando me reconcentrar —, no entanto, mudam muito, transformando-se a tal ponto que não podemos falar em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA obra como uma pilha de escritos que se vão somando uns aos outros, em crescimento vertical sobre a mesa e os anos. Uma obra é tudo menos um ponto pacífico. O que dá, então, unidade a uma obra? O que pode haver de uniforme numa obra composta de vários livros escritos ao longo de muitas décadas? — Não sei... — e ele coçou a cabeça. — A manutenção de um estilo inconfundível? A perseverança nas mesmas preocupações, para não dizer nas mesmas obsessões?... — Sim, características que podem, com isso que você disse, ser reconhecidas à meia-luz, através da leitura de qualquer parágrafo pescado em qualquer página. E fica a pergunta — continuei, porque eu ainda não estava satisfeito —: num autor de regular e duradoura produção, se não há um estilo formal ou temático muito explícito, característico, inconfundível e revelador a 1 Cremilda MEDINA, “No caminho das almas do recôncavo baiano”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984. E decidi que as referências de imprensa serão apresentadas aqui apenas com as informações essenciais (autor, título, veículo e data). Para mais detalhes, consultar bibliografia final, item 8.2.2.: “Bibliografia citada de imprensa”, p. 496 a 515. E não ficarão sujeitas, ainda, por serem muitas e de difícil memorização, à referência do tipo op. cit. 2 — Sobre esse início, aliás, disse João Ubaldo Ribeiro numa entrevista — e abro com a mão uma nota de rodapé imaginária —: “Ao mesmo tempo que eu uso uma linguagem satírica, eu conto aquilo com compaixão, com uma certa empatia, não só pela maneira de narrar, como pela própria bobagem em si, porque a toda hora eu estou dizendo que o alferes não falou às gaivotas coisa nenhuma. Ele não disse nada, mas isso virou uma lenda” (José Reinaldo CARVALHO, “João Ubaldo indaga sobre a alma humana”, A Classe Operária, 12 a 25 jan. 1989). 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 20 permear seus romances, há então o quê, a atravessá-los e agrupá-los? O quê, à exceção da autoria reconhecida, permanece relativamente imutável? — A noção de autoria já é, por si, uma graúda questão... — disse ele. — O que dizer então da noção de obra? O que pode justificar e dar coerência ao termo “obra”? Um problema. — E no caso de seu autor, o Ubaldo? — João Ubaldo Ribeiro escreveu nove romances ao longo de 34 anos, de Setembro não tem sentido, o primeiro, de 1968, a Diário do farol, por enquanto seu último livro, publicado em 2002.3 Agora pegue-se um trecho aberto ao léu de Sargento Getúlio e compare-se a outro tirado de qualquer página de Viva o povo brasileiro. Interrompa-se a leitura dO sorriso do lagarto num ponto e confronte-se o que se leu com algum trecho de Vila Real e em seguida com os caudalosos e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA condimentados trechos dA casa dos Budas ditosos. Coloquem-se agora, lado a lado, os romances Diário do farol e o burlesco O feitiço da ilha do Pavão. Confronte-se tudo isso com Miséria e grandeza do amor de Benedita. O que há de permanente nesse grupo de narrativas? Existe uma marca, um padrão, uma obsessão ou um estilo “João Ubaldo Ribeiro”? Perguntou-lhe o jornalista Bernardo Carvalho, da Folha de S. Paulo: “Que relação você vê entre esse livro e 3 — O livro Vencecavalo e o outro povo, por não se tratar de um romance, fica infelizmente excluído desse grupo — esclareci, abrindo um parêntese. — Vencecavalo... é um livro de contos, e cada conto recebe o nome de um personagem, todos eles filhos (!!) do... sargento Getúlio: Vencecavalo Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra, Sangrador Santos Bezerra e Abusado Santos Bezerra. “Eu me diverti muito fazendo o Vencecavalo...; morria de dar risada”, disse João Ubaldo. “Não sei bem o que eu queria fazer, queria gozar todo o mundo, inclusive eu mesmo, mas principalmente o governo e a burrice” (“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985). O tipo de humor fantástico e debochado que encharca as páginas de Vencecavalo... é semelhante ao romance O púcaro búlgaro, escrito em 1964, do escritor mineiro Campos de Carvalho (1916-1998), sobre o qual eu fiz uma dissertação de mestrado que depois publiquei — eu disse, e peguei das estantes a dissertação e o livro. — Ambos caracterizam-se por um ataque frontal à seriedade e à solenidade que normalmente se espera das esferas literárias intelectualizadas. É de se notar, também, que O púcaro búlgaro pode ser lido como uma resposta de Campos de Carvalho, uma resposta enviesada, à expectativa que se criou sobre o seu trabalho, principalmente depois de seus dois livros anteriores: Vaca de nariz sutil e A chuva imóvel, romances densos, melancólicos, típicos representantes de uma linhagem existencialista; romances, à sua maneira, sérios. Vencecavalo... também pode ser uma resposta de João Ubaldo à solenidade que se estabeleceu ao seu redor após o sucesso, restrito, frise-se, à crítica e aos meios literários..., de Sargento Getúlio — e peguei outra matéria de jornal. — “Com Sargento Getúlio, (...) deu-se um fenômeno estranho, que fez com que o autor sentisse até repulsa pelo livro; estabeleceu-se (...) um endeusamento snob nos meios literários. Então, decidiu escrever O filho do Sargento Getúlio (...). Mas o editor mudou outra vez o título — saiu Vencecavalo e o outro povo” (Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984). 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 21 os precedentes?”, referindo-se ao então recém lançado O feitiço da ilha do Pavão. E disse-lhe João Ubaldo Ribeiro: “A única vinculação que eu realmente faço é o fato de eu ter escrito todos eles”.4 — Não seria absurdo se respondêssemos simplesmente, e assim facilitássemos a guerra — disse ele —, que a marca, o padrão, a obsessão ou o estilo constitui justamente a ausência de um padrão, uma obsessão ou um estilo identificável e recorrente? Ou, por outra, seguindo-se a opinião do próprio escritor, que a marca comum a todos os livros nada mais é que a marca da autoria? — Não, não seria absurdo. Seria uma boa saída, e uma hábil resposta, mas não a melhor... — provoquei-o. — Dispor-se a escrever uma tese acerca do grupo de romances de um autor significa antes de tudo partir do pressuposto de que acerca desse conjunto seja possível afirmar um padrão, uma identidade, um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA problema que possa ser relacionado a cada um dos romances em particular e a todos eles em conjunto. — Isso me parece questionável... Mas continue. — O próprio João Ubaldo Ribeiro, numa outra declaração em que se detém um pouco mais sobre o assunto, dá uma pista, admitindo algo mais que o próprio nome como elemento de constância: “Tenho interesses variegados sobre a vida em geral, o que leva muitos a dizer que meus livros são completamente diferentes entre si. Entretanto, (...) as preocupações básicas são as mesmas. Religiosas, humanísticas (...), preocupações com (...) a injustiça, com a discriminação”.5 Sua obra romanesca, de todo modo — continuei —, é tematicamente sortida, o que tem dado ensejo a múltiplas abordagens, com variados resultados. Grande parte dos trabalhos acadêmicos acerca do autor está baseada em recortes, como é o caso de dissertações e teses a explorar um único romance de João Ubaldo Ribeiro, ou, estreitando-se o enfoque, um aspecto específico dentro de um mesmo romance, ou ainda qualquer outra característica de sua produção, incluídos os contos, as crônicas e as histórias para crianças.6 4 “Ubaldo, finalmente, solta novo romance”, 22 nov. 1997. 5 Wilson MARTINS, “Crônica (picaresca) da vida brasileira”, Bravo!, out. 1997. 6 — Como é o caso — e fiz uma lista com o que eu tinha à mão — das dissertações de mestrado de Luiza Nelma FILLUS, Sargento Getúlio, uma análise mítica (Depart. de Letras da Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 1983, sob a orientação de Vicente Ataíde); de Stella Costa de MATTOS, Sargento Getúlio — uma história de aretê (Instituto de Letras e Artes, Pós-graduação (cont.) 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 22 — Você corre o risco de cair num certo reducionismo ao tentar formatar coerentemente uma obra tão variada... — Mas eu preciso partir em busca disso: do fio comum, do problema, do nó, do centro nervoso a enlaçar Setembro não tem sentido, de 1968; Sargento Getúlio, de 1971; Vila Real, de 1979; Viva o povo brasileiro, de 1984; O sorriso do lagarto, de 1989; O feitiço da ilha do Pavão, de 1997; A casa dos Budas ditosos, de 1999; Miséria e grandeza do amor de Benedita, de 2000; e Diário do farol, de 2002. Onde está, na cartografia dos romances de João Ubaldo Ribeiro, e para onde vai esse centro nervoso? Qual a sua natureza, o seu comportamento e a sua tarefa no emaranhado de sua ficção? Não, não me interrompa. Vou fazer agora o rascunho de um mapa e, sobre ele, o facho de uma idéia. Você me animou — e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA bebi o café que ele me estendia. 1.3. A IDÉIA DO FACHO — Acompanhe-me: de Setembro não tem sentido, de 1968, a Diário do farol, publicado 34 anos mais tarde, pode haver um caminho, linear no tempo e de progressiva e nítida abertura; um caminho que parta do personagem ensimesmado e avance em direção a uma nova condição. Esta nova condição — eu disse — em Lingüística e Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, dez. 1985, sob a orientação de Regina Zilberman); de João Luís C. T. CECCANTINI, Vida e paixão de Pandonar, o Cruel, de João Ubaldo Ribeiro: um estudo de produção e recepção (área de concentração: Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras de Assis — UNESP —, Assis, SP, 1993, sob a orientação de Carlos E. Fantinati); de Marília Clara Tavares NOGUEIRA, A função expressiva do coloquialismo na crônicas jornalísticas de João Ubaldo Ribeiro: uma abordagem lingüística pluridimensional (Centro de Educação e Humanidades, Instituto de Letras, Depart. de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, out. 1998, sob a orientação de André Crim Valente); de Magda Medeiros FURTADO, A memória invencível: literatura e história em Viva o povo brasileiro (mestrado em Literatura Brasileira, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992); de João Vianney Cavalcanti NUTO, Grotesco e paródia em Viva o Povo Brasileiro (UNB — Universidade de Brasília); e das teses de Eneida Leal CUNHA, Estampas do imaginário — literatura, cultura, história e identidade (Depart. de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, Rio de Janeiro, abr. 1993, sob a orientação de Affonso Romano de Sant’Anna); de Regina VASCONCELOS, As representações da belgitude e da brasilidade nos imaginários de Pierre Mertens e João Ubaldo Ribeiro (dirigida à área de Língua e Literatura Francesa do Depart. de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, sob a orientação de Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto); e ainda dos seguintes trabalhos publicados: de Tieko Yamaguchi MIYAZAKI, Um tema em três tempos: João Ubaldo Ribeiro, João Guimarães Rosa, José Lins do Rego, São Paulo, Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista — UNESP, 1996; de Osmar (cont.) 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 23 inclui os relacionamentos desse personagem com os grupos sociais que direta ou indiretamente o envolvem, cada vez maiores e cada vez mais complexos, e com novas experiências e concepções de mundo. — Você vai traçar aqui uma linha de desenvolvimento? — Sim, veja: o romance Setembro não tem sentido concentra-se nas figuras de Tristão e Orlando, ocupados tão só com as particularidades de sua situação insular. É este o primeiro ponto de nosso mapa. O narrador aqui alterna entre a terceira e a primeira pessoa, que constitui o próprio Orlando, fechado em seu quarto e em si mesmo e demonstrando angústia e falta de perspectiva. O facho da narrativa começa lentamente a abrir-se para o mundo no romance seguinte, Sargento Getúlio, de 1971. O narrador apresenta-se em primeira pessoa, o próprio sargento, e por todo o livro o que faz é falar, não apenas de si, mas do que faz na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA vida: ser sargento, ser um empregado de seu chefe e ser portador de uma missão, uma missão socialmente importante: levar um preso tido por comunista de um lugar do mundo para outro. Observamos aqui, neste segundo ponto do nosso mapa, um narrador não apenas preocupado com o lugar que ocupa dentro de si mesmo, mas também com aquilo que ele próprio espera de si em conformidade com a sua situação perante “o chefe”. Trata-se de Getúlio diante de sua missão e Getúlio diante de si mesmo. Não há à sua volta nenhum grupo social a que pertença; há apenas ele, Getúlio, o desgarrado. — O bárbaro, o trágico, o anti-herói... Você acredita que o recurso formal à primeira pessoa narrativa é essencial à manutenção desse clima de fechamento? — Sim, o que faz dele muito mais que um recurso formal... Deixe-me continuar — pedi. — Oito anos mais tarde chega ao público o romance Vila Real, “um conto militar”, segundo a epígrafe do autor. O personagem-protagonista, Argemiro, torna-se ao longo da história um líder natural para o seu povo, um homem pouco preocupado consigo mesmo e dolorosamente comprometido com os valores e os problemas da sua comunidade. Toda a narrativa se mantém encaixada na terceira pessoa, usando e abusando, no entanto, do discurso indireto livre, para dar conta do universo subjetivo de Argemiro, contraposto às agruras objetivas do povo de Argemiro, uma comunidade rural situada na região da MOREIRA, Folhas venenosas do discurso: um diálogo entre Oswald de Andrade e João Ubaldo, Salvador, Bahia, Universidade do Estado da Bahia — UNEB/Quarteto, 2002. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 24 Jurupema, ameaçada de todos os lados por outros povos inimigos e por uma empresa estrangeira de mineração que se diz dona da terra. Não há aqui uma perspectiva nacional; não há perspectiva outra senão a da comunidade. Não se fala de Brasil; fala-se da região da Jurupema e do vale de nome Aratanha. O diâmetro do facho narrativo não ultrapassa as cercanias de vila Real e de seus habitantes. Nosso facho, no entanto, abriu-se um pouco mais. Já se pode ver que a área iluminada pelas considerações do narrador ultrapassa em muito os interesses particulares dos personagens-protagonistas, não mais fechados em seus quartos ou preocupados apenas em cumprir uma ordem e se manter em paz consigo próprios. — Mas Sargento Getúlio é um retrato do sertão de Sergipe e da Bahia e, de certo modo, um retrato da política nordestina pelos idos de 1950, não? — Não é um retrato; é um pano de fundo, e isso não me parece o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA essencial. A narrativa e o leitor estão encarcerados na mente de Getúlio. Você pode dizer, no máximo, que o livro também assunta a política nordestina do modo como a via Getúlio, para quem a política “está mudando, (...) está ficando uma política maricona”.7 Mas não creio que a gente possa falar, aqui, de realismo e nem de uma preocupação primordial de João Ubaldo de compor o retrato de uma época e suas práticas... Com o romance Viva o povo brasileiro, de 1984, João Ubaldo, a começar pelo título, que não fala de um homem, Getúlio, nem de uma vila, a Real, mas sim de um povo, o brasileiro, dá mostras de pretender avançar e ampliar sensivelmente o facho de interesses e o universo temático de seu narrador. O grupo social de que se fala agora é outro, ou são vários: o povo brasileiro como um todo e cada uma das suas partes constituintes: pretos e brancos, e dentro dos brancos os portugueses, holandeses, alemães e ingleses, e dentro dos pretos os de vários tipos e origens, e entre eles todos os pardos, mulatos, cafuzos e mamelucos, e todos os índios e índias, incluídos os cruzamentos mais inventivos... E me lembrei de uma palestra de Ubaldo em que ele dizia: “... o vocabulário popular baiano ainda hoje inclui palavras para designar tipos raciais incomuns em outras terras: cabo-verde, o negro de cabelo liso; sarará, o negro ou mulato de cabelos 7 Sargento Getúlio, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p. 56. A partir de agora — decidi —, as referências aos romances de João Ubaldo Ribeiro permanecerão no corpo do texto e serão compostas apenas do título e do número da página. Para mais detalhes, consultar bibliografia final, item 8.1.: “De João Ubaldo Ribeiro”, item 8.1.1.: “Romances”. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 25 louros; gazo, o negro e mulato de olhos claros e assim por diante”.8 E você veja aqui esse léxico específico acerca de tipos de “negritude” sendo aplicado pelo narrador de Viva o povo..., num momento em que ele está justamente em focalização interna com um escravo negro de nome Budião, que tentava classificar, e assim “conhecer”, um outro negro misterioso, de nome Júlio Dandão. ... Caladão, os olhos pregueados, a boca crispada, os dentes grandes estufados (...), o riso difícil, talvez fosse negro jeje, negro mina dos brabos que não faz fé em pessoa nenhuma (...). Podia ser achanti, quem sabe, podia ser até hauçá papaarroz, negro fon, negro bariba ou somba, dos confins benins do Daomé com o Sudão... (Viva o povo brasileiro, p. 177) — Observe — disse ele — que o pensamento desse Budião está a refletir uma postura de preconceito racial típica dos personagens brancos do romance, que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA inferem uma característica da personalidade do outro através de uma característica física desse outro. A diferença é que o preconceito está aqui sendo exercido por um negro em relação a outro negro... — Sim. E João Ubaldo Ribeiro vai voltar a isso, aos casos clássicos de negros que comercializam negros, no romance O feitiço da Ilha do Pavão...9 Mas eu vou falar disso mais tarde, senão me perco... — O Alberto da Costa e Silva publicou um livro com muitas informações históricas acerca de negros senhores de escravos... Os primeiros senhores de escravos de que se tem notícia... — Sim, o Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na 10 África. Publicou-o em 2003, seis anos depois do romance de João Ubaldo Ribeiro... De todo modo, foi boa a sua observação... — E retomei, positivamente impressionado com o meu interlocutor: — Tudo isso está concentrado e representado pela gente de um mesmo lugar, que é o seu universo por excelência: o Recôncavo Baiano. Os rudimentos de uma idéia de pátria acabam por envolver 8 9 João Ubaldo RIBEIRO, palestra realizada na Alemanha, sem data. — “... uma ilha que inventei no meio da Baía de Todos os Santos, que se existisse talvez ocupasse uma área superior à própria baía. É uma ilha misteriosa, de difícil acesso e sobre a qual ninguém fala (...). Fiz uma espécie de fantasia. Descrevo uma sociedade no Brasil do século XVIII. Um Brasil completamente isolado do resto da colônia, embora partilhe da herança ibérica que todos nós recebemos. É a história de uma ilha que se desenvolve autonomamente. Não sei em que vai dar” (IstoÉ, 19 mar. 1997). 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 26 todos os personagens-protagonistas e relativizar seus projetos particulares em nome de uma causa maior, de âmbito nacional. — Foi a partir de Viva o povo... que se começou a falar, acerca da obra de Ubaldo, da necessidade cultural, espelhada na literatura, de se contornar com mais nitidez o que poderia ser chamado, na falta de expressão melhor — e ele se tomou de um ar grave —, a “questão da identidade nacional”, quatro palavras que, de tanto andarem juntas, já se colaram umas às outras, sem haver quem as descole. — Sim. Ouça essa conversa, onde se observa a tentativa, por parte de João Ubaldo, de desmontar a chamada “questão da identidade nacional”, como você PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA disse, e des-solenizar a sua visão do Brasil. — E li: — O Brasil é um país que vive uma crise crônica de identidade. Escrever livros como Viva o povo brasileiro é uma maneira de exorcizar essa crise? — Você já coloca uma premissa sobre a crise de identidade. Acontece que não acho que o Brasil viva uma crise de identidade permanente. (...) Não escrevi pensando na identidade nacional nem em coisa nenhuma. Eu escrevi, simplesmente. E o que resultou? Uma outra coisa. (...) Não é uma tentativa de entender o Brasil. (...) Eu poderia mentir a você (...) sobre o que resultou a partir do que os outros escreveram e pensaram. Mas é só um romance.11 — Vamos voltar a isso mais tarde, não? — quis saber o meu interlocutor. — Sim. Passo ao romance seguinte: O sorriso do lagarto, de 1989, inaugura um novo feitio no grupo de temas e estilos de João Ubaldo Ribeiro. Mesmo passando-se em Itaparica, o livro não tem como preocupação central contar a história da ilha ou de seu povo, nem explorar as possibilidades da linguagem na descrição do falar local. O tema dO sorriso do lagarto significa uma ampliação considerável do facho temático. O narrador ilumina seus personagens com um assunto de responsabilidade internacional e alça-os à condição não mais de representantes de um povo habitante do Recôncavo Baiano ou do Brasil, mas de representantes de uma idéia de humanidade. Embora a narrativa mantenha muitas das características da prosa de João Ubaldo Ribeiro, a loquacidade, a exuberância vocabular e o estilo, que poderia ser aqui denominado de neobarroco, o foco do livro é antes o seu tema que a sua forma ou sua ambientação, 10 Rio de Janeiro, Nova Fronteira e Editora da UFRJ, 2003. 11 Geneton de MORAES NETO, “A odisséia do lobo da ilha”, Jornal do Brasil, 28 nov. 1987. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 27 razão pela qual a história poderia passar-se, grosso modo, em qualquer lugar de razoável urbanidade. O alvo dO sorriso do lagarto são a ciência, as conseqüência sociais do mau uso da tecnologia e a suposta presença de uma idéia universalista do mal nas condutas humanas. — Já percebi — disse ele —, mas e agora? Você chegou, com O sorriso do lagarto, na amplitude máxima do círculo social, o gênero humano. E agora? — Bom, no romance seguinte, O feitiço da ilha do Pavão, de 1997, esse facho narrativo, que começou com o indivíduo e chegou à humanidade, realiza agora a sua abertura mais radical: através do tempo histórico, para afirmar uma dilatação não apenas do seu ambiente ficcional, mas do raio de ação de uma liberdade humana, agora sem precedentes. O facho dilata-se para dentro do tempo, não como em Viva o povo..., que atravessa três séculos da história brasileira, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA comendo-a pelas bordas e numa aparente, apenas aparente, falta de linearidade, mas como a exploração radical de uma espécie de leque de possibilidades. Para tanto, parte do seguinte ponto, banal e simples: a História está todo o tempo a ser alterada em seu futuro pelos atos cometidos no presente. O feitiço..., no entanto, não pára aí; utiliza-se da metáfora da viagem no tempo para dar conta da idéia de que a História também pode ser alterada retrospectivamente. — Um outro modo de se dizer que o passado pode ser reinventado, sim, a depender do caminho interpretativo que se percorra? — Sim — disse eu. — O facho abre-se então para o passado e o futuro, tal qual um leque de possibilidades se abriria, e manipula, na vida dos personagens e na vida do país, as suas, podemos dizer..., alternativas perdidas.12 12 — E... — disse eu, abrindo uma notinha — a provável razão para chamar-se a ilha “do Pavão” pode dever-se à própria imagem do pavão em efetivo pavoneamento, ou seja, erguido e com a sua cauda cheia de olhos aberta em leque, infindáveis olhos vigilantes diante do leque aberto e prenhe de acontecimentos e possibilidades de história. Remonta ao universo arcaico grego a associação que se faz entre a cauda do Pavão e a idéia da onisciência, e especificamente às peripécias da deusa Hera, a orgulhosa, briguenta e vingativa mulher de Zeus. Diz o mito que Hera, ou Juno, enciumada do licencioso marido, encarcera a bela Io, deixando-a sob a guarda infalível de Argo, o ser dos cem olhos, o que tudo vê. Zeus, no entanto, que não nasceu ontem mas muito antes, encarregou o espertíssimo Hermes da tarefa de libertar Io daquela vigilância aparentemente imbatível. Bateram-se, e morre Argo com uma pedrada. Hera, consternada — continuei, animado —, rende-lhe a homenagem final, retirando-lhe um a um os cem olhos e recolocando-os espalhados ao longo da cauda aberta de um pavão, que se torna a partir daí a ave consagrada a Hera e às suas saudades de Argo. Dizer ilha do Pavão é dizer ilha da ave dos cem olhos, a ave da onisciência e da clarividência, através da qual se vê tudo, até mesmo, e principalmente, o futuro, ou seja, o passado. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 28 — Belo parêntese mitológico esse... E volto a perguntar: e agora? Pelo que você expôs, o facho narrativo de Ubaldo se foi abrindo lentamente, de 1968 a 1997. Inicia-se no quarto fechado de Setembro não tem sentido. Ilumina, em Sargento Getúlio, o personagem-protagonista envolvido numa missão supostamente comunitária. Amplia-se em Vila Real para Argemiro e sua gente, que se torna então objeto de consideração e, de certa forma, a personagemprotagonista de seus próprios dramas. Alarga-se em Viva o povo brasileiro para uma dimensão nacional, rascunhando uma imagem do Brasil e de seu específico percurso de formação identitária. Chega à sua amplitude social máxima nO sorriso do lagarto e seu grande drama: os destinos da grande comunidade humana ameaçados pelo mau uso da ciência. Rompe ficcionalmente convenções de tempo e espaço para discutir história e interpretação, alargando-se de forma radical nO PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA feitiço da ilha do Pavão, e pára. E agora? — insistiu ele. — Onde ficam os romances Miséria e grandeza do amor de Benedita e A casa dos Budas ditosos? — Eles não se encaixam na idéia do facho — respondi, um pouco contrariado, é verdade. — Eles enveredam por um desvio em relação à linearidade observada nesses seis livros. São romances que foram escritos em grande parte devido ao fato de constituírem explícitas encomendas: A casa dos Budas ditosos, da editora Objetiva, para a série “Plenos Pecados”, item “Luxúria”; e Miséria e grandeza do amor de Benedita, da própria Nova Fronteira, em parceria com o site Submarino, envolvidos ambos na criação do primeiro e-book brasileiro. Pretendo tratar disso mais tarde... — Certo — e ele suspirou. — Eu fico bastante aliviado com o fato de você admitir isso, porque a sua idéia do facho é realmente uma leitura muito produtiva tendo em conta os seis livros comentados agora, e muito pouco produtiva diante dos demais romances, que não devem ser encaixados à força num esquema prédeterminado... Você deve desenvolver uma outra reflexão para Miséria e grandeza do amor de Benedita e A casa dos Budas ditosos... Ou não... — Você falou em seis livros... São sete os objetos sob a mira da minha idéia do facho. Você não vai me perguntar onde está, neste traçado, o romance Diário do farol, publicado em 2002? Pois eu lhe digo: no ponto de partida, no quarto fechado, onde se estreita o facho novamente para os limites do indivíduo ensimesmado, não o mesmo de Setembro não tem sentido, Orlando, o que não tem 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 29 controle sobre a própria vida e não se considera fonte fidedigna da narrativa. O personagem-protagonista do Diário... é, dentro do texto, a autoridade máxima, e do seu quarto, talvez o quarto de uma instituição psiquiátrica, ou do alto de seu farol, Lúcifer, se dispõe a forjar a sua biografia, com paciência e detalhes. — Hum... E acrescento isso: a sua idéia do facho é produtiva principalmente quando se quer traçar uma espécie de resumo lógico da obra de Ubaldo, um resumo dotado de direção e sentido..., mas, para se montar uma tese, deve haver mais — e ele sorriu de modo esquisito. — No caso de Diário do farol, para onde se abre desta vez o seu facho? Para dentro da memória individual? 1.4. A MEMÓRIA INDIVIDUAL PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Você começou a nossa conversa contando o último pedaço da curta história de vida do alferes José Francisco Brandão Galvão, relatada logo às primeiras páginas de Viva o povo brasileiro — disse ele. — Onde é que entra isso na história da sua tese? — Eu ia voltar a esse ponto agora... Nós vimos o quanto a almazinha que habitou o corpo do alferes por quase dezoito anos se envolveu com as homenagens póstumas que lhe eram dirigidas em razão de seu heroísmo tardio. Vimos o quanto, orgulhosa do alferes, também acabou por se sentir orgulhosa de si mesma, uma vez que ele não era nada mais que ela mesma, que por sua vez nele encarnou, tendo sido ele pelos, deixe-me ver..., pelos seis mil dias que duraram aqueles quase dezoito anos. A almazinha, como escreve o narrador, freqüentou “os locais onde o alferes recebia homenagens” e vibrou satisfeita “quando pormenores de sua fala às gaivotas eram lembrados ao povo pelos declamadores”. A almazinha admirou-se “mais e mais de si mesma, ouviu tantos relatos de prodígios obrados por homens tais como aquele que fora, que não pensava em mais nada” (Viva o povo..., p. 20). — Você estava citando trechos, não é? Trechos que inauguram e celebram, em Viva o povo brasileiro, a condição ambígua e problemática dessa almazinha, que é ela e é também um outro; uma almazinha que observa de longe o outro que ela um dia foi e sente por esse outro grande orgulho, não deixando ela mesma de orgulhar-se em igual medida de si própria. Isso é bonito. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 30 — Sim. E, como disse o escritor, seu livro... — ... usa como fio narrativo a história de uma almazinha (...). Eu conto como se formam as almazinhas no cosmos (...). ... apareceu por aqui por volta do ano 1400 e começou a encarnar em bichos... até que começou a encarnar em brasileiros, sempre encarnando mal, em preta escrava, índia. Depois, a almazinha (...) Encarnou numa indiazinha com dez anos de idade, que depois mataram, e ela, a almazinha, saiu desabotinada. A almazinha não pode ver um ovo, um útero, porque se estiver por perto ela entra. A história narra a existência de um poleiro das alminhas, (...) onde elas ficam morrendo (risos) de frio e de medo. Ela fica ali também, com medo de encarnar, mas tem que encarnar porque só consegue aprender alguma coisa encarnando. Um dia ela passa por aqui, (...) e encarna na barriga de uma tupinambá, que fica grávida de um preto. E aí saiu (risos) o Caboclo Capiroba, que danou a comer holandês.13 — E essa almazinha, então, é José Francisco Brandão Galvão — continuei —; é a índia fêmea de sua provável estréia como alma encarnante, à época da PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA “chegada dos primeiros brancos”, estuprada “e morta por oito deles antes dos doze anos” (Viva o povo..., p. 19); é também o segundo índio em que veio a encarnar, e o terceiro e quarto e mais tantos de uma longa série de nativas encarnações; e não é nenhum desses personagens, sendo essa almazinha apenas ela mesma, igual apenas a si mesma, de algum modo única e sozinha. — E o que mais? E para nós o que é essa almazinha? — provocou-me. — Essa almazinha é também uma parte da resposta à pergunta que lhe fiz no início de nossa conversa. Ser uma parte da resposta significa ser essa almazinha encarnante uma representação ficcional, portanto interna à obra, de uma outra coisa, esta, sim, constituinte e fundante do universo romanesco. — A única coisa que eu imagino possa ser constituinte e fundante do universo romanesco, para citar tão pomposas palavras, é o narrador — disse ele. 1.5. O NARRADOR SEM CABEÇA — O professor Carlos Reis, da Universidade de Coimbra, em seu conhecido estudo acerca do estatuto e das perspectivas do narrador na obra de Eça de Queirós, diz, vou citar, que “a problemática inerente às condições de existência 13 “João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio e que era uma obrigação publicar os meus livros’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 31 e de execução da narrativa literária pode perfeitamente ser estudada num conjunto de obras que (...) oferecem seguras garantias de riqueza e variedade de questões, desprovidas, por agora, de respostas convincentes”.14 — É o que eu lhe disse: nas obras de Ubaldo que oferecem seguras garantias de riqueza e variedade de questões, para esta sua idéia do facho — cortou ele —, não estão Miséria e grandeza... nem A casa dos Budas ditosos. — A idéia do facho é uma maneira de organizar o percurso da amplitude temática de João Ubaldo Ribeiro, de achar uma tendência, um resumo lógico, como você definiu minha digressão, e esta tendência eu já achei, mesmo se considerarmos esses dois desvios. Trata-se de uma maneira de olhar a obra; tratase de um mapa, e não do centro de minha tese. — O centro de sua tese é o narrador — e ele me ofereceu mais café. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Sim. Carlos Reis debruçou-se sobre o narrador de Eça de Queirós. Nós o faremos com o narrador de João Ubaldo Ribeiro. Será o narrador — disse eu —, esse narrador intrometido e profundamente moderno, que podemos chamar o narrador sem cabeça, o fio comum, o problema, o nó, o centro nervoso que enlaça os nove livros indicados, de Setembro não tem sentido a Diário do farol, e lhes dá um eixo. Pode ser ele, e não a constância de um autor e a autoridade de sua assinatura, que dá sentido e coerência à idéia de obra, reunindo em si um conjunto de estratégias de narrar comuns a todos os livros. A mesma posição de proeminência ocupam os andamentos do narrador na obra de Eça de Queirós, a tal ponto, cito, que “a evolução que assinala a sua criação literária não se concretiza sem que se verifiquem, ao nível da técnica narrativa, importantes reflexos”,15 escreve Carlos Reis. — Em Ubaldo, então, por mais dessemelhantes que possam ser seus romances, por mais distintas que possam parecer suas nove vozes narrativas, atuando em primeira ou terceira pessoa, incluídas todas as possíveis variantes para o ponto de vista e através de sucessivos discursos em indireto livre, o seu narrador é um só, na medida em que é um só o seu conjunto de estratégias narrativas? — Sim, muito bem dito. Vou tentar me lembrar do modo como você formulou essa pergunta. Vou, aliás, anotar... O texto ficou bom, e pretendo usá-lo 14 “Introdução” (p. 11-14), in Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós, Coimbra, Almedina, 1975, p. 13-14. 15 Id., p. 14. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 32 na tese. Posso? Obrigado. Deixe-me falar então desse centro nervoso que é o narrador. Perguntei bem lá atrás onde está, na cartografia dos seus romances, e para onde vai esse centro nervoso. O livro Viva o povo brasileiro, por se apresentar como aquele em que nasce esse personagem-chave que é a almazinha, será o romance a iluminar e contaminar, com esse original recurso, as análises dos demais, anteriores e posteriores a 1984. O que vale dizer: a almazinha pode ser uma representação ficcional desse narrador sem cabeça, que está presente nos modos de narrar dos outros romances, sejam eles estruturados em primeira ou terceira pessoa. A atravessar todos, a idéia de um narrador sem cabeça. — Você também perguntou qual a natureza desse narrador... — A mesma natureza da almazinha — e fiz um gesto com a mão —: errática e ambígua quanto à sua identidade. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E o seu comportamento? — perguntou o meu obstinado interlocutor. — O comportamento de um narrador diante de dois problemas: deve agir como um narrador, já que tem uma história para contar, e ao mesmo tempo não consegue mover-se e falar senão como se move e fala aquele personagem cuja cabeça está “vestindo”, ou “portando”, no momento da narração. Este é o seu primeiro problema. O segundo é de igual gravidade: ele não conhece toda a história que deveria contar; conhece-a por uns momentos, e depois a esquece. Conhece-a integralmente apenas quando não está com a cabeça de nenhum personagem. Quando “incorpora” o personagem, para usarmos o vocabulário do espiritismo, que aqui até funciona bem..., esquece-a. — E qual a sua tarefa no emaranhado de sua ficção? — Isto parece uma sabatina... — São perguntas que você mesmo me fez... — defendeu-se. — Sua tarefa é aprender. Do mesmo modo como “a alma não aprende nada enquanto alma, necessita da encarnação para aprender” (Viva o povo..., p. 16), o narrador sem cabeça não aprende nada enquanto instância onisciente: saber toda a história é saber tudo sobre nada; é não se envolver com nenhum universo, é não se comprometer sequer com uma única história de vida, é manter-se acima e além. O ponto cego da onisciência narrativa pode ser representado ficcionalmente pelo “Poleiro das Almas”: “lugar” de onde tudo se vê, mas onde não se aprende nada, sítio de acumulação de nadas, “... nada por todos os lados, uma infinitude de 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 33 nada inimaginável em toda a sua inextensão. Nada e mais nada e mais nada e mais nada ali se vai aglomerando” (p. 18). E o narrador, quando abandona o poleiro, esse ponto cego da onisciência, e “incorpora” um personagem, “... porque é insuportável não poder aprender absolutamente nada” (p. 16), intromete-se; quando se intromete, conta uma história que é também a sua história naquele instante narrativo, ou instante de vida, como foi da almazinha, durante os dezoito anos de sua encarnação, a vida do alferes José Francisco. Nosso narrador sem cabeça constitui, ao mesmo tempo, o nosso nó e aquilo que nos escapa. — Agora relacione a sua idéia do facho, aquele mapa traçado, com a história das sucessivas “incorporações” desse narrador sem cabeça. — E, depois de uma pequena pausa: — E tome mais café... — Esta nossa conversa está sendo muito produtiva para mim. Obrigado. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Então ouça — e eu espremi a testa —: assim como a alma, que precisa encarnar para aprender, o trabalho do narrador vai desenrolar-se ao longo de um determinado percurso: o percurso dos romances, de Setembro não tem sentido a Diário do farol, que constituem as extremidades de um caminho de experiências. A gradual abertura em direção a universos mais amplos e complexos há de obrigar o narrador a intrometer-se em mais vidas e em problemas cada vez menos particulares, comprometendo-se, assim, cada vez mais, com um projeto. Debaixo do facho, que é sempre outro e maior, já não são um ou dois, mas uma pequena comunidade de personagens, novas “cabeças” para o narrador, novos problemas, todos misturados em linguagem. Diz Carlos Reis que “em qualquer narrativa, sempre o narrador manifestará, esporádica ou continuamente, voluntária ou involuntariamente, os sinais de sua presença como sujeito enunciador na instância produtiva do discurso”.16 Pois bem: identificar, entender e encontrar um rumo para esse narrador é o nosso objetivo. — E o seu risco... — Eu não acabei: eu disse há pouco que o Carlos Reis se debruçou sobre o narrador de Eça de Queirós e que o mesmo farei eu com o narrador de João Ubaldo Ribeiro... Isto não é assim tão esquemático. Minha análise acerca do narrador em João Ubaldo poderá incluir mais um elemento, impensável na análise 16 “Subjetividade e narração” (p. 24-36), id., p. 25. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 34 que o professor Carlos Reis empreendeu sobre o Eça. Refiro-me ao próprio escritor João Ubaldo Ribeiro, que será muitas vezes colocado diante e também ao lado de seu narrador, numa espécie de nova biografia... — Hum... — e ele fez uma careta. — ... uma biografia pouco ortodoxa. Por quê? Porque não se pretenderá linear, nem integral, nem factual, nem mesmo uma biografia pessoal... — Será então o quê? Sobrou algo? — Sim. Tentarei uma biografia de idéias, uma biografia conectada aos labirintos da ficção. — Hum... — disse ele de novo, com um ar preocupado. — Precisamos conversar mais... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 1.6. O PEQUENO EU — Não, não, deixe-me seguir. Li recentemente dois textos importantes — insisti, observando-o a preparar mais café —: um da professora Marília Rothier Cardoso, chamado “Retorno à biografia”,17 e a ligeira biografia de João Ubaldo Ribeiro,18 escrita por Wilson Coutinho para a série “Perfis do Rio”, da Editora Relume-Dumará19, da qual me interessam dois aspectos, e nada mais. — O que é exatamente uma “ligeira biografia”? — perguntou, com um ar de mofa. — A biografia em questão é dita ligeira dado o próprio perfil da série: um relato pouco fiel às características geralmente encontradas numa biografia; um relato organizado de modo não diacrônico e pouco comprometido com a intenção de se alcançar qualquer totalidade acerca da figura de seus biografados. A escrita corre informal e sortida na seleção de seus capítulos-tema. A peculiaridade da série “Perfis do Rio”, no entanto, independentemente da ligeireza de seu 17 P. 112-140, in Heidrun Krieger OLINTO & Karl Erik SCHOLLHAMER (orgs.), Literatura e Mídia, Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio, São Paulo, Loyola, 2002. 18 — Utilizarei, de forma complementar, uma entrevista do escritor para os Cadernos de Literatura Brasileira, intitulada “Leblon, 4 de fevereiro de 1999: Entrevista” (p. 27-49), in VÁRIOS o AUTORES, João Ubaldo Ribeiro, Cadernos de Literatura Brasileira, n 7, Instituto Moreira Salles, mar. 1999. 19 João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, Rioarte, 1998. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 35 biografismo, consiste antes de tudo da descrição de variados aspectos da vida e da obra de alguma personalidade que tenha com a cidade do Rio de Janeiro um relacionamento íntimo. A série tem como objetos de estudo e curiosidade justamente eles: os importantes porque famosos, os famosos porque importantes, ilustres moradores da cidade. — Essa ligeirice não me parece confiável... Você mencionou também um texto da professora Marília Rothier Cardoso... Fale-me dele. — Esse texto, “Retorno à biografia” — falei —, dá conta do percurso da biografia como “a configuração narrativa do sujeito individual moderno”,20 aquele que tem algo a dizer à sua comunidade. Quem se dispõe a contar uma vida, ou que a contem outros, é porque tem uma vida a ser contada, ou seja, uma obra, ou, melhor ainda, uma vida de obras. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Um momento... Contar uma vida, ou que a contem outros... Você está falando aqui de duas coisas: biografar e autobiografar-se... Quando estiver a escrever a tese, não deixe de fazer uma distinção... — ponderou o meu interlocutor, ainda rabugento. — A banca... — Calma... A distinção entre biografia e autobiografia, neste nosso caso, não ganha a relevância que ganharia em outras situações orientadas para outros estudos. Estou por dentro. Jürgen Schlaeger, em seu texto “Biography: Cult as Culture”, apresenta o que nos parece a distinção primordial entre ambas: Biography and autobiography share a number of fundamental conditions and strategies but they also differ in some very interesting aspects. Both are about individuals, both assert the priority of individualism. But whereas autobiography is about the self, biography is about the other.21 — E interessa a você, aqui, o que as assemelha, não é? Ambas alimentamse da mesma vontade, a vontade de que uma vida seja contada... — Sim. Contá-la ou permitir que a contem são atitudes cujo fundo é o mesmo: a consideração do sujeito como um valor por si — eu disse. 20 21 Op. cit., p. 113. — E traduzo: “Biografia e autobiografia compartilham algumas condições e estratégias fundamentais, mas ambas diferem em alguns interessantes aspectos. Ambas são sobre indivíduos, ambas assentam sua prioridade no individualismo. No entanto, enquanto a autobiografia se interessa pelo mesmo, a biografia interessa-se pelo outro” (p. 57-71, in The Art of Literary Biography, edited by John Batchelor, Oxford, Clarendon Press, 1995, p. 59). 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 36 — Conheço um texto que trata disso: de Luiz Costa Lima, “Júbilos e misérias do pequeno eu”.22 — Sim, também conheço. E volto: o trabalho da biografia apresenta-se então, diz Marília Rothier Cardoso, como a ratificação de “um (suposto) vínculo de excelência entre autor e obra”.23 O relato de uma vida entendido assim como o de uma vida edificante teria então uma nobre função pedagógica, uma função que o romance, “divulgado, em grande escala, para entretenimento do público de massa, mas inútil como conselho prático ou elo comunitário”,24 não toma para si. O fortalecimento desse “(suposto) vínculo de excelência entre autor e obra” corresponde ao resultado mais visível do trabalho empreendido pela narrativa biográfica ou autobiográfica junto à comunidade. Ela é, nesse sentido, legitimadora, observa Marília Rothier, em referência a Jean-François Lyotard.25 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Eu lhe falei do texto do Costa Lima. Pois há nele uma boa frase: “A autobiografia de um homem cujo ofício é pensar deve ser a história de seu pensamento”, escreve R. G. Collingwood,26 e esta frase exibe, sob outra forma — disse ele —, o mesmo vínculo de excelência, dessa vez não suposto, mas tomado como ponto de partida, certo e pacífico. Use-a como epígrafe. Eu deixo... — e riu pela primeira vez depois de muito tempo. — Sim, mas há, no entanto, um revés — disse eu, pensando se ele não iria me oferecer mais café —: essa força legitimadora da biografia moderna, quando levada ao paroxismo, aciona um mecanismo de descrédito que encontra campo fértil em condições, digamos, para simplificar, pós-modernas. Sua missão transforma-se em sua fraqueza. No momento em que a biografia elege como razão de ser a sua dupla função: legitimar a obra do biografado e fortalecer o vínculo autoral, ela perde sua força justamente nestas duas frentes que abre, “seja, em perspectiva crítica, para atribuir valor estético à obra do biografado, seja, em 22 P. 243-309, in Sociedade e discurso ficcional, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986. 23 “Retorno à biografia”, op. cit., p. 113. 24 Id., p. 112-113. 25 26 O pós-moderno, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1986, citado por Marília Rothier CARDOSO, “Retorno à biografia”, op. cit., p. 113. Citado por Luiz COSTA LIMA, “Júbilos e misérias do pequeno eu”, op. cit., p. 243. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 37 perspectiva teórica, para atestar a plenitude e confiabilidade do vínculo autoral”.27 Ela perde força e é absorvida pela variedade que caracteriza a indústria cultural. — E então acontecem lançamentos editoriais como esse: da série “Perfis do Rio”... — e ele não conseguiu conter uma sonora gargalhada. — Não é este o caso — e fiquei sério. — Uma biografia que não questione as razões para estar aquele ser ali sendo biografado surge como uma biografia meramente legitimante, a correspondência de uma expectativa, uma biografia, no sentido alienante da palavra, massificada. Não é este o caso da série “Perfis do Rio”. “Na condição ‘pós-moderna’ de descrédito das grandes narrativas”, escreve Marília Rothier Cardoso, “a biografia perde seu lugar no plano da alta cultura, para galgar o posto de best seller no circuito mercadológico”.28 De nada nos adiantará, no entanto — e olhei para ele —, apontar com o dedo um trabalho PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA biográfico e dizer: aqui está um exemplo de típica banalização dos “processos de ascensão e queda de artistas e personalidades”.29 — E por que não? — Porque a inconsistência da distinção entre alta-cultura-intelectualizadae-acadêmica e cultura-de-massa-alienada exige que, no mínimo, não sejamos apressados. 1.7. “GUARDAR TUDO, JOGAR NADA FORA”: O MAL DE ARQUIVO — Para o seu estudo de narratologia você tem aqui, sobre a mesa, farto material — recomeçou o meu interlocutor. — Livros teóricos e os romances... E quanto às suas incursões biográficas? Não me diga que você vai basear-se exclusivamente na série “Perfis do Rio”? Isso me parece insuficiente... A banca... — Você só fala da banca... A série “Perfis do Rio” é um ponto de partida, meu caro. Faço-lhe uma pergunta: que tipo de relação você crê que deve manter o pesquisador contemporâneo com os arquivos de escritores que porventura esteja estudando? Que relação é essa? 27 Marília Rothier CARDOSO, “Retorno à biografia”, op. cit., p. 113, referindo-se a Jean-François LYOTARD, O pós-moderno, op. cit. 28 Id., p. 113. 29 Id., ibid. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 38 — Uma relação que seja, no mínimo, obsedante... E que pretenda nada menos que o abarcamento de um mundo, o mundo do artista a ser estudado... — e ele abriu os braços. — Não; uma relação antes de tudo permeada pelo espírito randômico. — Isto são modernidades... — O espírito randômico ou aleatório convive com naturalidade com o imprevisto e o faltoso, características muito mais encontráveis em arquivos pessoais do que as que lhe são opostas: a ordem, o padrão, a completude. Mesmo os mais organizados escritores, aqueles genuinamente “guardadores de coisas”, sabiam, ou deveriam ter sabido, que não se pode guardar tudo, que sequer “tudo” existe, e que a relação que mantemos com o passado somente acontece se mediatizada pelo presente. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Você conhece o valoroso conselho de Drummond a Pedro Nava: “Guardar tudo, jogar nada fora”? — perguntou, animado, o meu interlocutor.30 — Conheço, e era exatamente isso que eu dizer agora... Mas sabemos que o tudo que se guarda não é a mesma coisa que o passado que se quer guardar, porque o passado não se guarda, mas apenas uma imagem dele na superfície fugidia do presente. Não se pode falar de passado, mas apenas do passado presentificado. — E continuei: — O chamado “mal de arquivo”, uma expressão de Jacques Derrida, constitui, grosso modo, a angústia de não se poder ter tudo ali à mão, de não se poder simplesmente recuperar o passado, ou seja, integralizar o passado no presente. “Ser possuído do ‘mal de arquivo’”, escreve Eneida Maria de Souza, “é ter a paixão e a nostalgia da origem”.31 Esse mal de arquivo, embora se esteja dele bastante ciente, acaba por acometer, sim, a qualquer pesquisador diante de uma caixa abarrotada de correspondência, tendo na mão apenas um bloco, um lápis e, disponíveis, quinze minutos. O que são quinze minutos diante de trinta anos de constância epistolar? O pesquisador poderia ter à sua disposição os mesmos trinta anos para a sua pesquisa. O fantasma a ser despertado é o mesmo. 30 — Isto foi citado — disse ele — por Marília Rothier CARDOSO, “Reciclando o lixo literário: os arquivos de escritores” (p. 68-75), in VÁRIOS AUTORES, Palavra nº 7, Revista do Depart. de Letras, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2001, p. 70. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 39 — Qual a sua experiência? — Você me pergunta se o “mal de arquivo” já me acometeu? — e ri. — Acomete o tempo todo. E respondo agora à sua outra pergunta: não vou me basear exclusivamente na série “Perfis do Rio” para empreender um passeio biográfico em torno de João Ubaldo. O meu grande arsenal biográfico são os romances de João Ubaldo... E também uma boa parte do material de imprensa que recolhi quando viajei à ilha de Itaparica e entrei na Biblioteca Juracy Magalhães Jr., onde o escritor manteve um escritório por alguns anos e onde, se não me engano, terminou Viva o povo brasileiro e também a versão para o inglês de Viva o povo... e ainda o romance O sorriso do lagarto. A Biblioteca guardou tudo em grande caixas. Isto sem falar no que consegui encontrar quando estive em Portugal, a pesquisar a recepção do romance A casa dos Budas ditosos. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E o que é que fizeste tu lá, ó, pá? — Fiz uma pesquisa de imprensa na Biblioteca Nacional de Lisboa e nos arquivos específicos de jornais portugueses e ainda uma entrevista de oito perguntas a quinze pessoas acerca da suposta, ou não, censura ao referido romance dos Budas ditosos. Acabei encontrando ainda algum material mais antigo sobre o período em que João Ubaldo morou em Portugal, na década de oitenta, quando esteve com Glauber Rocha, já às vésperas da morte; período em que o escritor ficou a estudar e a escrever para jornais portugueses. — Pois... — fez ele. — E, na Bahia, você “habitou” as grandes caixas da Biblioteca Juracy Magalhães Jr. por quanto tempo? — Muito tempo, e por todo o tempo fui acometido do “mal de arquivo”... Fui a vítima quase fatal do “mal de arquivo”. — Descreva-a, a essa vítima — e ele começou a se divertir com a minha explanação. — Um biógrafo que se dispõe a registrar tudo, que acredita no próprio registro como um ato de captação integral de uma essência: a essência do biografado, seus piores momentos, seus melhores momentos, seus modos à mesa, seus ditos espirituosos e amargos e, principalmente, suas conversas mais íntimas e 31 “Males do arquivo” (p. 81-88), in Reinaldo MARQUES & Gilda Neves BITTENCOURT (orgs.), Limiares críticos — Ensaios de literatura comparada, Belo Horizonte, Instituto de Letras UFRGS, Autêntica, 1998, p. 81. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 40 impublicáveis; um biógrafo que tem por alvo justamente a “abrangência que hoje os leitores ávidos por biografias tomam por suposta”.32 — Mas você não pretende, para a sua tese, fazer o papel desse biógrafo... Ou, antes, você será, antes de tudo, o biógrafo do seu narrador sem cabeça, e não do homem João Ubaldo Ribeiro. Ou, no máximo, o biógrafo da vida intelectual pública do escritor João Ubaldo? O que você encontrou nas grande caixas? — Reportagens, entrevistas, resenhas críticas, algumas bastante antigas... — Ou seja, material de caráter mais que público... Isso me alivia... — disse ele. — Não gosto de biografias e muito menos de autobiografias... — Há, como exemplo para o seu desgosto, um caso típico: a famosa Life of Johnson, de James Boswell, considerado um marco do início da moderna biografia. Seu objetivo, segundo alguns, plenamente alcançado, foi capturar a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA essência e toda a exuberância de uma pessoa, Johnson, que, nas mãos de Boswell, acabou por tornar-se um personagem muito mais interessante do que de fato ele era, sabendo-se, é claro, que a expressão “do que de fato ele era” não passa de uma abstração, uma abstração só não experimentada por aqueles que de fato conheceram Johnson, e mesmo assim... Tudo o mais que nos é legado surge como construção. “Tudo o que se relaciona com esse grande homem é digno de observação”, diz Boswell.33 Esse foi o seu ponto de partida: registrar tudo. Seu comportamento obsedante em relação a Johnson deixou-lhe uma reputação não propriamente das mais desejáveis. — Conte, conte — e ele pareceu por demais curioso para alguém que não gosta dos mexericos biográficos. — Você está por demais curioso para alguém que não gosta dos mexericos biográficos... — e ofereci-lhe eu um café. — Conta-nos Borges numa deliciosa aula ministrada no dia 7 de novembro de 196634 que Boswell era tido como ridículo e pouco inteligente, e que essa impressão era facilmente depreendida das páginas de sua Life of Johnson. Deve-se notar, no entanto, que a narração da quase 32 John MULLAN, “A biografia moderna foi inventada em 1791”, The Guardian, 14 jan. 2001, publicada por O Estado de S. Paulo, em: <http://www.estado.com.br/editorias/ 2001/01/14/cad428.html>, acesso em 16 fev. 2004. 33 Id. 34 “Boswell — A arte da biografia”, Folha de S. Paulo, 24 dez. 2000 (série Borges Professor), em: <http://www.uol.com.br/fsp/mais/fs2412200004.htm>, acesso em 6 out. 2005. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 41 maioria dos fatos em que Boswell surge como insensato, inconsistente, vaidoso e pouco inteligente se deve ao próprio Boswell, como bem observa o professor Borges. Estamos amarrados ao seu ponto de vista, do mesmo modo como estamos amarrados ao ponto de vista de Dom Casmurro. Pode-se sair de tudo e de tudo libertar-se, menos do ponto de vista quando é a partir do ponto de vista que vemos e lemos. Vamos ver isso a fundo no caso de Sargento Getúlio... — Imagino que Boswell seja não apenas o biógrafo de Johnson mas também o autobiógrafo de uma parte de sua própria vida ao lado de Johnson, no papel de biógrafo de Johnson... — observou ele. — É verdade. E Borges conta-nos que Bernard Shaw tem outra visão do relacionamento Boswell-Johnson. Segundo Shaw, Boswell não teria feito o papel do insensato idiota justamente para que toda a grandeza de Johnson se visse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA realçada por contraste. Não. Para Shaw, a escrita da biografia acabou por criar, através das mãos de Boswell, um personagem chamado Johnson. Borges descreve Johnson da seguinte forma: “Johnson era, além disso, uma pessoa extremamente desastrada: vestia-se de qualquer maneira, seus modos eram intoleráveis, comia com glutonaria. Quando comia, as veias de sua testa inchavam, emitia todo tipo de grunhido, não respondia às perguntas que lhe faziam”,35 entre outras descrições minuciosas. Como Borges sabe disso? — Mexericos criados por Boswell... 1.8. A LITERATURA, BARTHES E O VATAPÁ — Imagino que a biografia de João Ubaldo Ribeiro para a série “Perfis do Rio” não padeça do “mal de arquivo” — disse o meu interlocutor —, embora deva padecer de outros males... — Melhor faríamos se disséssemos o biografema de João Ubaldo Ribeiro, para referirmos o conceito de Roland Barthes, utilizado por ele para envolver sob um único nome “certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam”. Sua referência à fotografia, que “tem com a História a mesma relação 35 Id. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 42 que o biografema com a biografia”,36 ajuda-nos a captar o que poderia ser a essência estilhaçada de um sujeito que não se totaliza. “... não se acredita mais”, escreve Eneida Maria de Souza, “no estereótipo da totalidade e nem no relato de vida como registro de fidelidade e auto-controle”.37 — Aonde é que você pretende chegar? Ou, por outra, o que há nessa biografia de Ubaldo por Wilson Coutinho que o instiga tanto? — Digo-lhe — e lhe disse. — Coutinho parte de um personagem já criado, um personagem chamado João Ubaldo Ribeiro, e o esfarela em múltiplos registros: como um cidadão do Leblon, como um “filho” de Itaparica, como exímio cozinheiro, como um homem de esquerda e como “irmão” de Glauber Rocha, compadre de Jorge Amado, amigo de Tarso de Castro e Geraldinho Carneiro, entre outros tantos nomes do cenário cultural brasileiro, esfarelando PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA igualmente a base sobre a qual assenta a sua biografia: a biografia do escritor? A biografia do cidadão itaparicano-leblonense? A biografia contendo a análise crítica de alguns de seus livros? — A biografia de um menino que cresceu entre os livros e pressionado pela imagem autoritária do pai?... — arriscou ele. — Sim. Coutinho, por outro lado, acaba por ratificar todas as idéias fixas acerca do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, fortalecendo as características já amplamente desenvolvidas pelo próprio escritor na criação do personagem de si mesmo. Ao mesmo tempo em que ratifica, Coutinho registra as críticas do próprio João Ubaldo Ribeiro à estereotipagem a que a imprensa o foi submetendo: o baiano preguiçoso, o ilhéu excêntrico. — E continuei: — Ao mesmo tempo em que registra que o escritor baiano não se encaixa no padrão da baianice, Coutinho reafirma a existência do padrão e chega a expor as suas características. De todo modo, ele tenta encaixar o escritor nalgum outro padrão, mesmo que o do baiano atípico, quase um sergipano. Ouça: 36 Roland BARTHES, “Informar” (p. 49-51), in A câmara clara — Notas sobre a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 51. 37 “Notas sobre a crítica biográfica” (p. 43-51), in Maria Antonieta PEREIRA & Eliana Lourenço de L. REIS (orgs.), Literatura e Estudos Culturais, Belo Horizonte, Faculdade de Letras de UFMG, 2000, p. 45. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 43 (i) ... João Ubaldo Ribeiro costuma se achar um baiano um pouco atípico, marcado por um não-sei-quê de Sergipe (...). Diante do que se chama de baiano tradicional com o seu jeitão, a malemolência, uma certa moleza, o romancista parece até um estóico. Diz que não entende de macumba e outras disciplinas afins da religião afro-brasileira, o que é raro para o cultivo da baianice, esse estado de ser, quase impenetrável, para quem não é de lá. “João Ubaldo não suporta que façam folclore dele”, afirma o seu editor, Sebastião Lacerda.38 (ii) — Eu fui para lá com um mês de idade, fui batizado lá, criado como sergipano e até hoje nunca consegui virar baiano totalmente.39 Fiquei meio esquizofrênico, meio baiano, meio sergipano.40 — Eneida Maria de Souza diz que a crítica biográfica engloba a complexa relação entre obra e autor, possibilitando, vou ler, “a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção”.41 Wilson Coutinho movimenta-se nos dois PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA planos, colocando entre aspas as demarcações reservadas à alta literatura e à cultura de massa, optando pela tentativa de construção de uma biografia alternativa que lide com “o processo de formação identitária no contexto da multiplicidade de padrões culturais”, como escreveu Marília Rothier Cardoso.42 — Dê-me um exemplo dessa falta de fronteiras entre alta literatura e cultura de massas... — pediu ele, quase cético. — Um exemplo eloqüente da mútua contaminação entre as esferas está na epígrafe escolhida por Coutinho para abrir o capítulo de nome “Cântico ao Arroz38 Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros” (p. 33-40), in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, op. cit., p. 33, enfatizei com itálicos. 39 — A própria idéia de um “baiano total” não faz muito sentido para ele — disse eu, disposto a abrir uma nota. E li o trecho de uma declaração: — “... nós somos um povo meio esquisito. (...) ... todos somos culturalmente mestiços. (...) Isso significa que os pretos da Bahia, violentados como escravos, durante trezentos anos mantiveram a sua identidade cultural, preservaram a sua língua e domaram o colonizador, obrigaram à sua crença, instilaram nele parte de sua própria humanidade, e hoje o colonizador não se livra mais dessas coisas. (...) Os pretos baianos tiveram de certa forma que esquecer isso de ser preto humilhado, escondido da polícia até para cultuar seus orixás, seus santos, sua religião. E até hoje os baianos não se decidiram, vivem nessa (...) ... mais que hesitação: esquizofrenia. É o que sobretudo confere à Bahia a sua especificidade. A Bahia não é um estado simples. (...) ... não se pode esquecer que Canudos aconteceu na Bahia. Eu acho que a Bahia é o coração esquizofrênico do Nordeste brasileiro. Está no meio do caminho: para baixo, já começa a ser Sul...” (Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso, lágrimas e fantasia”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983). 40 “João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino, que só escreve em nordestês”, Diário do Nordeste, 21 jul. 1982. 41 “Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 43. 42 “Retorno à biografia”, op. cit., p. 117. 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 44 de-hauçá”, dedicado à culinária, na página 47. Vemos ali uma epígrafe em total desacordo com o seu conteúdo. — E, diante da cara de bobo de meu interlocutor, perguntei: — Ora, o que se espera de uma epígrafe? — Tudo menos o ordinário, tudo menos o prosaico, tudo, enfim, que justifique a sua condição de figurar como epígrafe. Espera-se também de uma epígrafe uma idéia que seja única, que guarde uma singularidade. Uma epígrafe é uma sistematização, a posteriori, de uma frase que alguém disse uma única vez, e que provavelmente ninguém mais dirá, senão como uma citação. — Muito bem — eu disse, um pouco surpreendido. — E a epígrafe está lá no livro de Coutinho em toda a sua forma típica, alinhada à esquerda, com a marca sagrada da autoria em baixo, em itálico. Vamos a ela. Ouça isso: “Minha mulher diz que a minha comida é mais sergipana. Vatapá eu não gosto de fazer PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA porque dá muito trabalho, só ficar mexendo, aquela merda, aquela aporrinhação toda”.43 E o que vemos? Uma frase prosaica e nada memorável. — E prossegui: — Quando mistura capítulos dedicados a elucubrações futebolísticas a outros abundantemente dedicados à culinária, intercalando-os com capítulos estritamente dedicados à análise crítica das obras, como é o caso da parte reservada a uma leitura filosófica acerca de Sargento Getúlio, Wilson Coutinho não está fazendo nada mais do que optando pelo estabelecimento de uma continuidade entre vida e obra, uma continuidade não ortodoxa, é verdade... Qual o lugar do cidadão João Ubaldo Ribeiro, nascido em 23 de janeiro de 1941, na ilha de Itaparica, filho de Manoel Ribeiro e Maria Felipa Osório Pimentel, na análise crítica de um romance chamado Sargento Getúlio, além daquele natural lugar da autoria? — Creio que não há outro lugar para ele... — Se seguirmos a enumeração de Eneida Maria de Souza das tendências da crítica biográfica atual — continuei, fingindo que não ouvi —, veremos o que Coutinho faz e o que não faz. O que não faz: ele não explicita e nem questiona o processo de construção canônica do escritor João Ubaldo Ribeiro; o que faz: reconstitui seu ambiente literário e sua vida intelectual, mas somente através de fotogramas dispersos do passado, estruturando assim a biografia como biografema e trabalhando com aspectos que, reunidos, aparentemente não formam qualquer 1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS 45 totalidade, mas um mosaico de suplementos; como o puzzle de uma paisagem incompleta, e aqui Eneida cita um belo trecho de Pedro Nava; o puzzle de uma paisagem em que se percebem “buracos nos céus, hiatos nas águas, sombras nos sorrisos, furos nas silhuetas interrompidas e nos peitos que se abrem no vácuo — como vitrais fraturados”.44 — E cada reportagem que você tem, cada entrevista, cada aspecto público da vida intelectual de Ubaldo pode ser considerado um pedaço desse puzzle, a formar, ou melhor, perdão..., a quase formar, a jamais formar de modo integral, o biografema que vai ajudá-lo a compreender melhor o narrador sem cabeça que vive em seus romances?... — disse ele, com certa pompa, é verdade, porém já bem mais simpático à minha idéia. — Sim, sim, acho que sim. Estamos pensando juntos... Ouça: “A figura do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA escritor substituiu a do autor”, escreve Eneida Maria de Souza. O autor só é autor no exato momento em que está sentado escrevendo, ao passo que o escritor está metido numa “região de sombra que se instala nos intervalos e interstícios da vida e da obra”.45 Se o homem está para a vida, assim como o autor está para obra, o escritor está para ambas. Gide comendo delicadamente uma maça e lendo um livro em Paris; João Ubaldo Ribeiro tomando um uísque, ou um guaraná, e falando alto num bar do Leblon ou de Itaparica, sem camisas, de chinelos e bermudas. Coutinho em nenhum momento esconde que seu trabalho tem por objeto um escritor em pleno processo de canonização. Há, no entanto, a vida... — Precisamos conversar mais... — disse ele, e me ofereceu afinal um café. *** 43 “Culinária — Cântico ao arroz-de-hauçá” (p. 47-52), in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, op. cit., p. 47. 44 “Males do arquivo”, op. cit., p. 82, citando Pedro Nava, Baú de ossos, Memórias 1, Rio de Janeiro, José Olympio, 1974, p. 41. 45 “Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 47. 2 ________________________________ A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO — A CABEÇA DO NARRADOR SEM MUNDO A autobiografia de um homem cujo ofício é pensar deve ser a história de seu pensamento. R. G. Collingwood46 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA A verdade fica na infância. João Ubaldo Ribeiro47 — Aqui estão os romances de João Ubaldo Ribeiro — eu disse, olhando para a grande mesa à nossa frente. — O primeiro a ser escrito foi Setembro não tem sentido, mas prefiro começar pelo início, ou seja, pelo segundo — e sorri, diante do olhar confuso de meu interlocutor. — Quero dizer que gostaria de seguir uma trilha diferente: não a trilha literária, mas a biográfica. Sargento Getúlio é um romance que remonta muito mais à sua infância do que Setembro... Eu começo pela infância. E tem mais: Sargento Getúlio constitui o início da consagração de João Ubaldo Ribeiro, o livro que confirmou as promessas que haviam sido feitas quando do lançamento de Setembro... Foi um livro importante, formalmente diverso de tudo o que havia à volta, corajosamente traduzido pelo próprio autor para o inglês48 e bastante festejado nos Estados Unidos.49 Ouça o que escreveu, lá em 1971, Jorge Amado: 46 — Citado pelo meu interlocutor, citando Luiz COSTA LIMA, “Júbilos e misérias do pequeno eu”, op. cit., p. 243, que por sua vez cita R. G. Collingwood, An autobiography, Claredon Press, Oxford, 1982. 47 “Tradição vascaína” (p. 245-250), in Sempre aos domingos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 250. 48 — Você verá — eu disse ao meu interlocutor —, lá na minha Bibliografia de referência, um comentário do próprio Ubaldo acerca da tradução de Sargento Getúlio; uma tradução tão elogiada quanto criticada. Veja isto: “The translation, done by the author, is excellent although at times far too literal. The vitality of the Brazilian idiom is unfortunatly not sufficiently captured in the English version” (Luis LARIOS, “Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, World Literature Today, 1979). E traduzo: “A tradução, feita pelo autor, é excelente, embora (cont.) 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 47 ... esse mesmo João Ubaldo Ribeiro estreou em livro com um romance de geração inquieta, (...) romance revelador de reais qualidades de ficcionista e de um talento pouco comum. Mas — valha-nos Deus! — aquele primeiro livro, comparado a esse Sargento Getúlio, passa a caderno de aprendiz de romancista. Agora temos à nossa frente um romance que exige os grandes adjetivos: um senhor romance. (...) Essa pequena viagem do sargento Getúlio com seu prisioneiro é uma das mais belas e poderosas sagas de nosso romance.50 — Tenho um amigo escritor que diz que o difícil não é escrever o primeiro livro. O primeiro livro é sempre uma festa. O segundo, este sim — disse ele —, é a missão. E para ele o primeiro livro é na verdade o livro de número zero. O segundo é que funciona na verdade como o primeiro. — João Ubaldo Ribeiro também passou por essa angústia do primeiro livro. Para ele, o primeiro grande mérito de Sargento Getúlio foi ter, ao início, a nobre PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA função de motivá-lo a perseverar nesse que seria o seu segundo livro. Ouça — e li. — ... O Sargento... começou porque eu queria saber se era romancista mesmo. Eu tinha ficado muito impressionado quando fui convidado por Nelson de Araújo para publicar em livro um conto que tinha saído num suplemento e ele disse para mim: “Até agora só li isso de você, Ubaldo, mas você não é galinha de um ovo só, é?”. E eu, mais do que depressa: “Não, claro que não. Estou escrevendo umas coisas novas aí”; ele acreditou e me incluiu no livro Panorama do conto baiano [1959]. (...) Quando publiquei Setembro não tem sentido, pensei: “E agora? Será que eu sou romancista de um romance só?”.51 — Mas você sabe dos perigos de querer correlacionar o universo do romance Sargento Getúlio com a infância do escritor João Ubaldo Ribeiro... — às vezes por demais literal. A vitalidade do idioma brasileiro, infelizmente, não é percebida o suficiente na versão em inglês”. 49 — A tiragem inicial, segundo Irineu GARCIA, foi de 70 mil exemplares — eu disse, fazendo um parêntese (“João Ubaldo Ribeiro: aboio alucinante”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 21 jun. a 4 jul. 1983). — Ouça ainda — e permaneci no parêntese — o que escreveu um jornalista americano, comparando-o a Shakespeare...: “Novels that explode beyond natural boundaries are rare, for such an explosion means they transcend the usual bonds of culture, class and attitude, and speak to universal values in the human race. Sergeant Getúlio is such a novel (...). (...) All this is told in only 146 pages, in prose that rivals Shakespeare in power, poetry and emotion” (Otto J. SCOTT, “Rufian speaks his mind”, The San Diego Union Books, California, 19 mar. 1978). E agora traduzo: “Romances que explodem fronteiras naturais são raros, e graças a tais explosões eles transcendem os usuais vínculos entre cultura, classe e atitude e falam para valores universais da espécie humana. Sargento Getúlio é este tipo de romance (…). (…) Tudo isso é contado em apenas 146 páginas, numa prosa que rivaliza com Shakespeare em força, poesia e emoção”. 50 “Romancista maior”, Letras e Artes, Portugal, 11 e 12 dez. 1971. 51 João Ubaldo RIBEIRO, “Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 48 disse ele, retomando o que havia falado antes e, todo franzido, fazendo ares de quem iria começar uma aula. — São os perigos do recurso fácil ao biografismo como válvula de explicação do universo romanesco; são os perigos de se escorregar no reducionismo e no instrumentalismo das análises projetivas acerca de um texto: preocupadas em restabelecer o fio de comunicação entre autor e obra ou meio social e obra. Quando você me disse, no início de nossa conversa, que pretendia realizar uma operação de aproximação entre o universo da ficção propriamente dito e o biográfico, eu não falei nada, ou falei pouco, porque ainda não tínhamos ainda, se é que já temos..., essa, digamos..., intimidade intelectual, mas agora digo, e digo mais — continuou, retirando um livro de nossa infinita biblioteca. — Todorov, em seu texto “Como ler?”, fala dos vários tipos de escrita PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA acerca de textos literários. Uma delas, ouça, é a projeção, que se define por uma... ... concepção do texto literário como transposição feita a partir de uma série original. O autor contribui para uma primeira passagem do original à obra, compete agora ao crítico fazer-nos percorrer o caminho inverso, fechar o anel, voltando à origem. (...) Se se pensa que é a vida do autor, obter-se-á uma projeção biográfica ou psicanalítica (...). Se se postula que a origem é a realidade social contemporânea ao aparecimento do livro, ou dos acontecimentos representados, encontrar-se-á a crítica (a projeção) sociológica.52 — Sim, sim. O recurso ao biografismo, ou a uma análise projetiva, será fácil ou difícil, acertado ou não, perigoso ou não, explicativista ou não, tudo dependendo da natureza biográfica do escritor e do universo do romance em questão. O nosso universo agora é o do personagem sargento Getúlio, e é também o do menino João Ubaldo Ribeiro. Estão os dois em Sergipe. A época? Anos quarenta e início dos anos cinqüenta. Vamos tomar um café? — e me levantei. 2.1. SARGENTO GETÚLIO E CIA. — O trabalho de Wilson Coutinho acerca de João Ubaldo Ribeiro, ponto de partida desta minha reflexão — continuei —, é segmentado por capítulos que abordam temas caros ao biografado, como culinária, futebol e política, e capítulos de assunto mais específico, como as análises de romances e os depoimentos de 52 P. 249-261, in Poética da prosa, Lisboa, Edições 70, 1979, p. 249-250. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 49 amigos. Há também páginas onde são compilados trechos de João Ubaldo cotejados com trechos de outros escritores brasileiros e capítulos retrospectivos, cujo centro é a infância do escritor. Interessam-me aqui apenas os dois últimos aspectos: as páginas reservadas aos trechos compilados, um modo original de se radiografar a obra, e os dois capítulos relacionados à infância do escritor, um modo convencional de se falar da vida: partindo-se do início. A presença dos tais trechos compilados foi a maneira encontrada pelo biógrafo para realizar comparações; comparações através das quais João Ubaldo Ribeiro e sua obra são inseridos num jogo de forças entre escritores, estilos e temas de nossa história literária. — Quais são elas? Isso me interessa mais que as partes biográficas... — Você vai perceber, meu caro interlocutor, que, ao final, estaremos tratando dos mesmos cruzamentos... São seis os momentos comparativos. O primeiro trará uma fala de Antônio Conselheiro, em trecho dOs sertões; um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA diálogo envolvendo o personagem de Corisco num momento do filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na terra do sol; e por fim a fala derradeira do sargento Getúlio. Nos três casos, o que temos são personagens arquetípicos de nossa cultura literária de ambiente sertanejo: a visão literária de Euclides da Cunha de um personagem histórico como Antônio Conselheiro, a de Glauber Rocha de outro anti-herói do sertão e a criação de João Ubaldo de outra trágica figura, Getúlio Santos Bezerra, encaixada a partir dessa escolha numa linhagem de... — De grandes machos de nossa terra... — e ele se animou. — E não ficamos apenas no Nordeste brasileiro, não; vamos ao Oeste americano. Poderia haver aqui, se o livro se propusesse a isso, uma fala de John Wayne e... — Curiosa a sua nota. Vou tratá-la como uma nota: há algumas críticas escritas nos Estados Unidos que observaram tratar-se de um universo comum, presente tanto no Nordeste brasileiro quanto no oeste americano. Vou fazer uma nota de rodapé com alguns trechos acerca disso.53 — E retomei: — Coutinho, ao 53 — Leia estes dois trechos: (i) “Sargeant Getúlio is a Brazilian novel that American readers should have no trouble understanding. True, the locale may at first time seem remote, and the characters exotically named, but as the action unfolds, everything becomes reassuringly familiar. Americans are, after all, raised from childhood on the myths and heroes of the Wild West, and João Ubaldo Ribeiro’s deftly constructed ‘tale of virtue’ reads like a Western — and a brilliant though frightfully gory one at that” (Larry ROHTER, “A tale that reads like a western and entertains like a classic comedy”, The Washington Post, Washington D.C., 9 mar. 1978); e este: (ii) “Americans will recognize the frontier qualities of Getúlio, the tall-tale telling and the macho virtues of rugged individualism and self-sustaining force” (Sam COALE, “Story of a hired Brazilian gunman”, Providence Sunday Journal, San Gabriel, 26 mar. 1978). E traduzo: (cont.) 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 50 encaixar Getúlio, encaixa também João Ubaldo Ribeiro no grupo dos escritores que tematizam a terra hostil e todos os seus filhos, a cisão irreversível entre a cidade e o sertão e as diversas formas em que se apresenta a religiosidade do povo brasileiro frente à adversidade social. A escolha dos trechos também é eloqüente de modo mais específico ainda. Temos três momentos decisivos: os heróis, cada um à sua maneira, acuados diante do poder estabelecido. Conselheiro diante da mudança que experimentará aquela região que escolheu para a sua pequena sociedade, “Então o certão [sic] virará praia e a praia virará certão...”;54 Corisco negando-se a se entregar à autoridade; e Getúlio segundos antes de ser alvejado pelas forças do governo, hostis agora a ele e não mais ao preso que tinha de conduzir quando a sua situação e a situação política eram outras. — Toda a tragicidade de Getúlio reside justamente em sua incapacidade para adaptar-se a uma nova ordem... — arriscou o meu interlocutor. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Exatamente. E você veja que a pequena biografia de João Ubaldo Ribeiro se abre então com uma reflexão literária. É a partir da obra que se começa a falar da vida do escritor baiano. — E as outras cinco comparações? — Revelam-se igualmente significativas como indicadores de uma interpretação de Coutinho quanto ao lugar ocupado pelo escritor em nossa história literária. Ubaldo é colocado em confronto com José de Alencar no quesito referente à idealização do personagem do índio em nossos enredos: o trecho de Alencar produzindo a clássica descrição de Iracema e um trecho do romance O mistério da Ilha do Pavão, em que um dos personagens, o índio Balduíno, não se comporta como índio e nem deseja comportar-se.55 Veja sobre isso o que escreveu o Wilson Martins, citando o discurso de Jorge Amado na ABL — e li. (i) “Sargento Getúlio é um romance brasileiro que os leitores americanos não terão problemas para entender. É verdade que a localidade pode à primeira vista parecer remota e os personagens exoticamente nomeados, contudo, mal a ação se desdobra, tudo se torna tranqüilamente familiar. Os americanos são, afinal, criados desde a infância nos mitos e nos heróis do Oeste selvagem, e a habilmente construída ‘história de aretê’ de João Ubaldo Ribeiro pode ser lida como um faroeste — e brilhante, embora assustadoramente ensanguentado”; e (ii) “Os americanos vão reconhecer as qualidades limítrofes de Getúlio, o narrador intenso e as virtudes do macho, do áspero individualismo e da força independente”. 54 Citados por Wilson COUTINHO, “Estilos”, in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, op. cit., p. 7. 55 Id., p. 23. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 51 ... ambos [João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado] pertencem à mesma família espiritual que tem em José de Alencar o seu grande antepassado. É preciso reler, a esse propósito, as belas páginas em que, tomando posse na Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado identificava em José de Alencar e Machado de Assis as duas matrizes originárias do romance brasileiro (...), tudo isso estabelecendo perspectivas e tradições que seria errôneo ignorar e cujo sentido o acadêmico de 1961 pôs em evidência numa das visões críticas mais argutas jamais propostas sobre a sua própria obra, em primeiro lugar, e, derivadamente, sobre a presença da “matéria brasileira” em nossa ficção. São os dois caminhos de nosso romance, dizia ele, “nascendo um de Alencar, nascendo outro de Machado, indo um na direção do romance popular e social, com uma problemática ligada ao país, aos seus problemas, às causas do povo, marchando o outro para o romance dito psicológico, com uma problemática ligada à vida interior, aos sentimentos e problemas individuais, à angústia e à solidão do homem, sem, no entanto, perder seu caráter brasileiro”.56 — Em outra comparação — retomei —, a fascinação de dois personagens pela Inglaterra é mostrada de duas maneiras bem distintas: a história de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA aprendizados do jovem Irineu, futuro Barão de Mauá, no livro de Jorge Caldeira,57 a beber de fontes inglesas relacionadas à administração dos negócios, e a desgostosa figura de Amleto Ferreira, personagem de Viva o povo brasileiro, a elogiar o espírito, a culinária e a vida dos ingleses. — Onde está a diferença, se os personagens são ambos colonizados? — A diferença é de ordem narratológica, e é o tom do narrador que dá as cartas. A impressão de estar sendo conduzido por uma narrativa acrítica quanto aos efeitos danosos da colonização reside justamente em seu tom clássico, neutro e objetivo; o segundo narrador, feito inteiro em ironias e sarcasmos, incorpora a crítica e a sublevação. Coutinho também ladeia João Ubaldo Ribeiro e José Américo de Almeida.58 Trechos dA bagaceira, de 1928, e dO feitiço da ilha do Pavão, de 1997, tratam do mesmo tema: não apenas da escravidão, mas das relações que mantinham os negros entre si, notadamente os feitores, também eles negros, e “seus” escravos, a praticarem todos o preconceito dentro do próprio preconceito, a escravidão dentro da escravidão, onde se vêem negros açoitando negros e, assim, reproduzindo o esquema da dominação entre pares. 56 “A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 4 mai. 1985, realcei. 57 Mauá — empresário do Império, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, citado por Wilson COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 81. 58 Wilson COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 102-103. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 52 — Este é um dos aspectos abordados no livro Um rio chamado Atlântico, de Alberto da Costa e Silva — disse ele, que já me tinha falado do livro e agora me citava finalmente uns trechos. (i) Para as estruturas de poder africanas, a venda de escravos era essencial à obtenção de armas de fogo, de munição e de uma vasta gama de objetos que davam status e prestígio aos seus possuidores. O sistema de troca de seres humanos (geralmente prisioneiros de guerra e presos comuns ou políticos) por armas de fogo e outros bens consolidara-se ao longo dos séculos (...), e não podia ser facilmente substituído pelo comércio normal. Há quem pense que o interesse de alguns africanos na manutenção do tráfico era ainda maior do que o dos armadores dos barcos negreiros ou o dos senhores de engenhos e de plantações no continente americano.59 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (ii) O sentimento nacionalista expande-se e se adensa na África do século XIX. (...) Afirma-se em novos reinos, que tomaram forma e força sob o estímulo do tráfico de escravos. (...) Como o Daomé, comerciante de escravos desde o início.60 (iii) Mais uma vez, Alencastro lamenta que os portugueses, ao relatar suas vitórias, não destaquem o papel dos aliados africanos. (...) Apesar da queixa, o africano, quer escravo na América, quer homem livre na África, não aparece (...) como o co-construtor, que foi, do mundo Atlântico.61 (iv) O rei Adandozan (1797-1818) também usou a escravatura nas Américas como um meio de banir seus inimigos políticos. Ele vendeu Nã Agontimé, a mãe do futuro rei Guezo (1818-1858), (...). (...) O rei Guezo teria também vendido gente do palácio à Bahia.62 — Mas é a penúltima comparação que me interessa realmente — e peguei mais um café. — Quer? Pois bem, estamos aqui diante da comparação inevitável: Guimarães Rosa e João Ubaldo Ribeiro, em trechos do Grande Sertão: veredas, de 1956, e de Sargento Getúlio, de 1971. “É o escritor brasileiro mais importante, desde que o dr. Guimarães Rosa finou-se”, disse Jorge Amado.63 Grande Sertão... apresenta-se inteiro como uma verdadeira aventura da linguagem. 59 — “Como R. J. Hammond, Portugal and Africa (1815-1910): a study on Uneconomic Imperialism, Stanford: Stanford University Press, 1966, p. 42”, citado por Alberto da COSTA E SILVA, “As relações entre o Brasil e a África Negra, de 1822 à Primeira Guerra Mundial” (p. 11-52), in Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África, op. cit., p. 18 e nota da p. 46. 60 “O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX” (p. 53-74), id., p. 58. 61 “O Brasil e a África, nos séculos do tráfico de escravos” (p. 75-90), id., p. 89. 62 “Um chefe africano em Porto Alegre” (p. 167-176), id., p. 168-169. 63 Renato SÉRGIO, “João Ubaldo Ribeiro”, Ele Ela, texto sem referência. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 53 — Sim, é verdade, e eu li. Para escrevê-lo, Guimarães Rosa refez todo o caminho que se faz quando se decide aprender uma língua: ouviu, tomou notas, observou, pesquisou, rascunhou, errou o tom, voltou a ouvir e anotar, viajou, conheceu os falantes da língua que queria aprender, misturou conhecimentos e tentou mais, até que enfim foi aos poucos “falando” e ao mesmo tempo inventando a sua nova língua. É quando se começa a escrever... — Isso mesmo. E você, que diz que não gosta de biografias, me fez agora uma espécie de resumo de um processo de escrita, que não deixa de ser um resumo biográfico de crítica genética... — e dei um sorrisinho. — No romance Sargento Getúlio, também a linguagem é protagonista, a linguagem é antagonista, a linguagem é coadjuvante. A linguagem utiliza-se da personagem-título para falar de si e para si, para narrar-se a si mesma. Sobre isso, aliás, escreveu a professora Cleonice Mourão: “... toda a ação da personagem é fala. Getúlio é uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA personagem falada, considerando-se, nesse último termo”, diz ela, “não só a qualidade daquele que fala, mas também o passivo do verbo falar”.64 João Ubaldo Ribeiro refere-se a essa linguagem como sendo uma espécie de “sergipês”, uma língua que seguramente envolveu o seu cotidiano dos poucos meses de vida até os onze anos de idade, período em que morou em Aracaju por conta das necessidades profissionais do pai, Manoel Ribeiro, em sua nova “carreira de político, professor, comprador voraz de livros e disciplinador implacável”.65 Os modos de falar de seu sargento Getúlio assemelham-se aos modos da gente humilde de Aracaju pelos idos de 1950, quando João Ubaldo Ribeiro contava então nove anos. Percebe a inexistência de uma pura zona de ficção e de uma pura zona biográfica? — Continue. — Sargento Getúlio, assim como Grande Sertão..., destaca-se também pela potente eloqüência de seu narrador personagem, o próprio Getúlio, que, semelhante a Riobaldo, se movimenta na primeira pessoa e fala sem parar, dirigindo-se do mesmo modo a um interlocutor. Em Grande Sertão..., o interlocutor é suposto e tem lá suas características: é doutor, é senhor, é sabido, é de fora. Getúlio comunica-se com seus acompanhantes: seu ajudante Amaro e o 64 Cleonice MOURÃO, “O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, Suplemento Literário, Belo Horizonte, 16 set. 1978. 65 Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 33. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 54 preso que ambos devem levar de Paulo Afonso, norte da Bahia, a Barra dos Coqueiros, em Sergipe. — E quanto aos trechos escolhidos por Coutinho? Quais são eles? De que modo se relacionam, além da linguagem arrojada de que se valem? — Os trechos são muito longos. Ambos tratam da morte, da angústia de se predestinar uma morte e da diferença entre aqueles que matam com facilidade, Hermógenes e Getúlio, e aqueles que ainda não sabem matar, Riobaldo. Getúlio fala com naturalidade de um tenente que o chamou de corno e cuja cabeça então teve de cortar fora. — Getúlio perde a cabeça, o tenente perde a cabeça... — disse ele, rindo. — Riobaldo teme as mortes que ainda terá pela frente — prossegui, sem rir da fraca piada —, sob o comando de Hermógenes: “Eu tinha de obedecer a ele, fazer o que mandasse. Mandava matar”, diz Riobaldo. “Fiz a minha obrigação, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA não é por ser tenente que me chama de corno, demais era ele ou eu”, diz Getúlio.66 — E continuei: — A comparação da prosa de João Ubaldo Ribeiro em Sargento Getúlio com a de Guimarães Rosa, no entanto, não confere com depoimentos do próprio escritor. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, ele nega a afirmação do jornalista de que Sargento Getúlio representaria uma experiência literária próxima à narrativa de tons regionais. “Noutras palavras”, continua a pergunta, “o sr. redigiu Sargento Getúlio sob a sombra de Graciliano Ramos e, principalmente, Guimarães Rosa?” “Não”, diz ele. E só volta ao assunto um pouco mais à frente, novamente refutando uma suposta aproximação com Rosa no que diz respeito ao uso de neologismos que reforcem o aspecto oralizado da narrativa: “Na verdade, eu invento poucas palavras; eu deturpo muito, isso sim. Existem palavras no livro (...) que eu nem sabia que conhecia — elas emergiram na hora em que eu estava escrevendo o romance. Eu às vezes até me assustava”,67 diz. — ... provavelmente pensando na influência que teve o “sergipês” naqueles primeiros onze anos de sua vida em Aracaju, e que bem mais tarde viria a “emergir”, para usar a palavra que você realçou, e não à toa. — Sim, realcei essa palavra porque com Guimarães Rosa veremos que acontece o oposto. Ele era, como eu ia dizer mais à frente, um anotador 66 Citados por Wilson COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 113-114. 67 “Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36, realcei. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 55 meticuloso. Pode-se dizer que Rosa criou uma nova língua no Grande Sertão..., ao passo que João Ubaldo o que fez foi desestabilizar totalmente a língua que ele conhecia. Quem analisou isso foi o escritor Rodrigo Lacerda — lembrei —, que aponta dois movimentos opostos entre o narrador de Grande Sertão... e o de Getúlio, que assim esquematizo: (i) Natureza: o narrador em Guimarães caminha em direção à natureza, encantando-se pela fauna e pela flora. O convívio com a natureza produz poesia, que se esparrama para o estilo. Getúlio vê a natureza como o sertão horroroso, a miséria. Diz o sargento: “... sertão do brabo: favelas e cansançãos, tudo ardiloso, quipás por baixo, um inferno” (Sargento Getúlio, p. 9). A natureza quer destruí-lo. Quanto ao estilo (ii), observa Lacerda que Grande Sertão..., a partir de um ponto, começa aos poucos a se organizar, como linguagem, na cabeça do leitor; uma linguagem que vai sendo montada lentamente, desfazendo-se a estranheza inicial, que dá lugar, então, a uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA harmonia de sons e significados. Lacerda fala de uma “elegância inesperada”, a produzir “um amálgama genial entre a cultura popular e a erudita”. E citei: Já na composição formal de Sargento Getúlio (...), a impressão final é bem outra. Não se forma essa elegância, essa coerência equilibrada. O discurso (...) é frenético, avança rápido e centrífugo. E, para que esse efeito fosse atingido, João Ubaldo, utilizando-se em alguma dose da “receita” estilística de Guimarães, na verdade extrapolou-a. (...) Ele produz uma cacofonia estilística que está absolutamente ausente de qualquer coisa que Guimarães já escreveu na vida. Há, no romance de João Ubaldo, mil efeitos impensáveis em Grande sertão.68 — De todo modo — continuei —, quando se está a falar de João Ubaldo Ribeiro e sua história de aretê, é sempre a figura de Guimarães Rosa que surge, numa clara tentativa de tentarmos entender o fenômeno Sargento Getúlio através do recurso da influência. E a associação é inevitável. — Nem sempre. Há quem aponte outras influências — disse ele, com alguns recortes americanos na mão. E leu, realçando um trecho. (i) Despite some fantastical writing near the end à la Garcia Marquez, and some logointoxication à la Joyce, Ribeiro stays astringent pretty much 68 Rodrigo LACERDA, “Enfrento. Logo, existo. Uma leitura de Sargento Getúlio” (p. 51-73), in Zilá BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2005, p. 71. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 56 constantly.69 (ii) Indeed Macunaíma, and the pioneering work of other Brazilian modernists, prepared the terrain for the growth of an autonomous Brazilian literature, without which the work of Antônio Torres and João Ubaldo Ribeiro would perhaps not have been possible.70 — Sim, e creio que o assunto das influências desgoste tanto a João Ubaldo justamente por causa desse tipo de ideologia, que você bem identificou no trecho salientado: aquela segundo a qual a influência é tida como condição sine qua non para a produção dos escritores subseqüentes... Se a literatura, como defende João Ubaldo Ribeiro, é, em seus melhores momentos, universalista, na medida em que trata dos mesmos temas, e esses temas são comuns a todos os homens etc. etc., um escritor, de qualquer época, poderia prescindir de seus companheiros de ofício do passado para chegar a resultados estético-filosóficos semelhantes... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Em outras palavras, mesmo se nunca tivesse havido um Grande Sertão: veredas ou um Macunaíma, Sargento Getúlio sairia exatamente do modo como saiu? O mesmo não se pode afirmar com relação a Shakespeare... — disse ele, com um sorriso. — Não fosse Hamlet, e Sargento Getúlio não apresentaria aquele belo trecho, que no filme, aliás, é... — Esta conclusão é inverificável — interrompi-o. — Temos de partir do que está escrito, e o que está escrito nos aponta para as convergências. Como escreveu Eliana Yunes, as narrativas de Getúlio e Riobaldo constituem, ambas, um grande monólogo sem interlocutores.71 Veja aqui: (i) O regionalismo absorveu (...), e à medida que se diluíam os ciclos econômicos, a preocupação para com a linguagem — não a linguagem captada e reproduzida, mas a linguagem que sai de uma oficina semântica. É o caso de João 69 E traduziu livremente e com alguma dificuldade: — “A despeito da escrita um pouco fantástica, à la Garcia Marques, e algum excesso palavroso, à la Joyce, Ribeiro mantém-se contido com razoável constância” (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, The Reviews, 15 nov. 1977). 70 — “De fato, Macunaíma, e também o trabalho pioneiro de outros modernistas brasileiros, preparou o terreno para o crescimento de uma literatura brasileira autônoma, sem a qual as obras de Antônio Torres e João Ubaldo Ribeiro talvez não tivessem sido possíveis” — traduziu ele (Vivian SCHELLING, “Sergeant Getúlio”, TWQ, Londres, jan. 1988, realces do meu interlocutor). 71 “O poder da fala em Sargento Getúlio” (p. 37-45, nov. 1978), in VÁRIOS AUTORES, Linguagens/PUC-RJ, Literatura/Estudos, vol. 1, nº 2, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio, s/d., p. 41. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 57 Guimarães Rosa e de alguns seguidores, entre eles o baiano João Ubaldo Ribeiro, autor do Sargento Getúlio.72 (ii) José Hildebrando Dacanal afirma que Sargento Getúlio apareceu com um lugar já definido dentro da literatura brasileira. “Integra”, diz ele, “sem qualquer dúvida, o ciclo da nova narrativa épica, lado a lado com Grande sertão: veredas, O coronel e o lobisomen, A pedra do reino e, com um pouco menos de vigor, O chapadão do Bugre”.73 — Esse assunto, influências, é mesmo, seguramente, o de que João Ubaldo Ribeiro menos gosta... — repeti, e me lembrei de uma crônica sua em que narra algumas desventuras quotidianas em Lisboa, e justo num dia em que chegam à sua casa Glauber Rocha e depois o escritor Márcio Sousa e uns amigos seus, também escritores. Diz o trecho: “O amigo de Márcio me pergunta o que é que eu acho de Guimarães Rosa, mantenho a calma, milagrosamente”.74 E saí de meus devaneios para voltar à conversa: — Ouça esses trechos que vou ler, o primeiro, de uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA entrevista de 1968, já tendo lançado Setembro não tem sentido, mas ainda antes de começar, ou terminar, Sargento Getúlio. É provavelmente a história de Getúlio que ele menciona como o livro em andamento... O segundo, uma entrevista de 1985, a tratar de um escritor já completamente canonizado e consagrado... (i) Pergunta — Você costuma gozar as entrevistas sérias, em que são feitas perguntas sobre influências literárias, preferências etc. Isso é uma defesa? João Ubaldo Ribeiro — É possível. Comparado com outros escritores, sou um irremediável ignorante em matéria de ficção. É verdade que já li o (...) fundamental.75 Mas não acompanho muito de perto o movimento literário contemporâneo. Por outro lado, acho esses papos intelectuais (...) muito contraídos. João Ubaldo Ribeiro — Tinha um romance quase pronto, chamado Lucas, mas joguei tudo fora, quando descobri que detestava o que havia escrito. Comecei outro, que ainda não acabei, e que está saindo penosamente [Sargento 76 Getúlio?]. Desse estou gostando. 72 Hélio PÓLVORA, “Grande romance: caminhos e veredas”, Jornal do Brasil, 22 out. 1973. 73 “O que há para ler”, Jornal do Brasil, 21 jun. 1975. 74 “Não carregue o autoclisma” (p. 133-138), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 138. 75 — Acerca das prováveis fontes literárias de João Ubaldo presentes no romance A casa dos Budas ditosos — disse eu, em nota —, ver a crítica de Helena Vasconcelos, publicada em Portugal, a identificar, no texto do escritor, a presença de Choderlos de Laclos, Ovídio, Sade e Casanova (Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, p. 455, nota 876). 76 — Esta entrevista é de 1968 — eu disse, também em nota. — Dois anos mais tarde, numa carta a Glauber Rocha, datada de 8 de novembro de 1970, diz ele, referindo-se a Sargento Getúlio: “Fico sentindo falta de que você esteja aqui para ler os originais, porque você sempre me elogia pomposamente, grandiloqüentemente, e ninguém aqui me elogia assim. Não deu um livro grande, deu um livro pequeno, mas muito denso. (...) Jorge Amado pegou o livro e o (cont.) 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 58 Pergunta — Mesmo que você deteste a pergunta: que influência literária julga mais marcante em seu trabalho? João Ubaldo Ribeiro — Juro que não sei. Talvez Joyce e Graciliano Ramos, um par meio estranho, como você há de convir. Talvez Jorge de Lima e João 77 Cabral e Rabelais e Cervantes e Machado de Assis. Sei lá. (...) Bernard Shaw, talvez. Por que perguntar sobre influências?78 (ii) Jornal da Bahia — Certos críticos identificam, no Sargento Getúlio, uma influência de Guimarães Rosa. João Ubaldo Ribeiro — Acho uma besteira, inclusive porque (...) não tinha lido Guimarães Rosa quando escrevi o Sargento... Acho que há uma confusão entre linguagem e estilo, nesse negócio. A linguagem pode ser parecida, porque é do sertão, digamos. O estilo, eu não acho, acho que não tem nada a ver.79 — Outra pergunta dos Cadernos de Literatura Brasileira volta a tentar aproximá-lo de Guimarães Rosa — disse eu —, mas desta vez no que diz respeito aos métodos de trabalho e pesquisa: “O sr. nunca fez anotações dessas linguagens típicas das regiões que aparecem em seus livros?”.80 Sabe-se que João Guimarães PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Rosa era um anotador meticuloso e obstinado, o que nos permitia evidenciar, utilizando as palavras da professora Marília Rothier Cardoso, “a relativa exigüidade da margem de invenção, diante do enorme trabalho de pesquisa, que fundamenta a elaboração dos textos. E esse trabalho”, continua Marília, “realizouse nos espaços conservadores, mas opostos, da parcela erudita da tradição escrita e da sabedoria oral dos sertanejos”.81 João Ubaldo Ribeiro não se deu a esse trabalho enquanto compunha Sargento Getúlio. Ouça essas duas declarações: levou para o Rio, para dar a Ênio [Silveira], mas aí Ênio foi preso. (...) Ênio deu os originais a um cara para ler, e o cara deve ter achado uma bosta, como acharam o outro, que é que se vai fazer...” (carta apresentada por João Carlos Teixeira GOMES, “João Ubaldo e a saga do talento triunfante” (p. 75-103), in Zilá BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 79). 77 — “Nas suas conversas com os amigos”, diz João Carlos Teixeira Gomes, amigo pessoal de João Ubaldo, “ele não parecìa dar valor especial à nossa tradição literária tal como aparece nas histórias da literatura, isto é, não havia entre as suas preocupações a de se apresentar como um continuador de qualquer tendência do nosso romance, mas sim a de exprimir as suas próprias experiências vitais, diante da realidade contemplada em Sergipe e Bahia” (id., p. 81). 78 “João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968. 79 “João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, Salvador, 17 e 18 fev. 1985. — Há ainda uma outra afirmação de Ubaldo acerca de seu Getúlio — continuei —, esta de 2002. Ouça: “... eu escrevi sem pensar em nada e me surpreendi quando a crítica descobriu um estilo parecido com o de Guimarães Rosa nele. Eu não havia lido ainda Rosa e só então me animei a fazê-lo”. E ele reafirma: “Mas não tem nada a ver com o que eu escrevo” (Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002). 80 João Ubaldo Ribeiro, “Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36. 81 “Reciclando o lixo literário...”, op. cit., p. 73. — As palavras de Marília Rothier Cardoso permitem-nos uma observação acerca de Rosa e Ubaldo no que diz respeito à condição de seus (cont.) 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 59 (i) — Eu acho o Sargento... bom. Mas não houve nenhum ambicioso projeto de linguagem. Eu escrevi daquele jeito porque na ocasião só acertava a escrever daquele jeito.82 (ii) — ... o máximo que eu fazia era perguntar para minha mãe. Coisas do tipo: “O que é que a gente comia em Sergipe?”. Vocês sabem, a história se passa em Sergipe, onde eu vivi, e tem a ver com um episódio acontecido com meu pai. Minha mãe às vezes se aborrecia com as perguntas: “Pra que é que você quer saber isso agora, meu Deus?”. Mas são coisas que tomam um tempo imenso do escritor. Como é aquela palavrinha? E alguém pode esclarecer na hora.83 — Guimarães Rosa, a despeito de todas as viagens que fazia pelo sertão, a despeito da variedade aparentemente sem limites de suas fontes de pesquisa, também recorria, e muito, assim como Ubaldo, às fontes domésticas e, em especial, às paternas — começou o meu interlocutor, que parecia entender PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA bastante de Rosa. — As cartas de Florduardo Rosa a seu filho são exemplos de textos espontâneos, íntimos e descompromissados que, no entanto, surgem agora, na releitura desse seu olhar, e também do meu, como uma espécie de “literatura para a literatura”, literários como nunca antes o foram, talvez nem mesmo para o seu próprio filho, que via nelas um bom material, sim, mas apenas como material a ser aproveitado: textos-meio, e não textos-fim. Ouça o trecho de uma carta de agradecimento de Rosa a seu pai Florduardo — disse ele, abrindo um livro retirado de cima de nossa grande mesa —: “Há uma semana, escrevi ao Sr. uma carta, e tive a alegria de receber a sua, acompanhada das ‘notas’, que muito agradeço. Todas são ótimas, principalmente a sobre os ‘ciganos’ e a do ‘entrudo’ em Caeté. Vão ser muito bem aproveitadas!”.84 — De todo modo — disse eu —, não cabe a João Ubaldo Ribeiro estabelecer as conexões de sua literatura com outras. — Cabe a nós, ou melhor, a você... — disse ele, rindo de si mesmo. — Ainda está faltando a última comparação de Coutinho. pais, Florduardo Rosa e Manoel Ribeiro — eu disse. — O primeiro muito mais próximo da sabedoria oral do sertanejo do que da parcela erudita da tradição escrita — esta o natural ambiente de circulação do pai de Ubaldo, o erudito professor dr. Manoel Ribeiro. 82 “João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985. 83 “Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36. 84 João Guimarães ROSA, citado por Vilma Guimarães ROSA, Relembramentos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 174 — referido por Marília Rothier CARDOSO em seu texto “Reciclando o lixo literário...”, op. cit., p. 73, realces do meu interlocutor. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 60 — Da última comparação muito pouco se pode falar. Um trecho de Mário Faustino diz o seguinte: “Juventude — a jusante maré estraga tudo”. O trecho inicial de Sargento Getúlio atesta: “A gota serena é assim, não é fixe”.85 São ambos, antes de tudo, preceitos, afirmações de força, momentos em que o narrador se mostra através de uma convicção qualquer, momentos de estilo. São essas duas frases que podem representar o resultado de uma série de aprendizados, condensados através de uma fórmula de sabedoria: “Juventude — a jusante maré estraga tudo”. E quem haverá de negar? A frase é muito mais poética do que informativa, e representa a vida se indo embora com o refluxo das águas. “A gota serena é assim, não é fixe”. Ninguém há de contestar o próprio Getúlio nessa idéia: uma gota que é diferente das outras gotas normais de chuva. A gota serena permanece gota e pode ser transportada, como gota, de um lugar ao outro. Tratase de uma gota que não se fixa em lugar algum, assim como o próprio Getúlio, ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA errante, sem pouso, perdido no mundo, como a gota serena, que “é assim, não é fixe”. Há aqui uma sabedoria, que é do personagem, do narrador, do escritor e do autor. “... moro no mundo”, diz Getúlio, “Melhor morar andando” (p. 39). 2.2. DA INESCAPÁVEL CABEÇA DE GETÚLIO — Como escreveu um jornalista do Washington Post, “Sargeant Getúlio is told as a monologue, and there is no way to move out of the sargeant’s mind and in to the world through Getúlio’s eyes and understand it as he does: as a parched and cruel place, full of stunted beings”.86 — De todo modo, estudar o comportamento de um narrador, como você diz, sem cabeça; um narrador que tem por estratégia de trabalho incorporar os personagens do momento, adquirindo-lhes os seus modos de pensamento e expressão, traduzidos e percebidos através de suas linguagens... Fazer isso... — e ele fez uma pausa. — Fazer isso com um narrador em primeira pessoa, e do porte de Getúlio Santos Bezerra, parece-me uma tarefa difícil... Getúlio é narrador e 85 Wilson COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 124. 86 — “Sargento Getúlio é narrado como um monólogo, e não há maneira de sair da mente do sargento e entrar no mundo através dos olhos de Getúlio e entendê-lo como ele o entende: como um lugar seco e cruel, de existências mirradas” — traduzi (Larry ROHTER, “A tale that (cont.) 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 61 personagem, mas onde acaba Getúlio e começa o narrador? Onde acaba o narrador e começa Getúlio? Do mesmo modo como um crítico escreveu que “todo o significado do livro está contido em qualquer sentença que se escolha”87 — disse ele, mexendo nos papéis sobre a mesa —, podemos dizer que tanto Getúlio quanto o seu narrador estão encaixados, ambos, em qualquer instante dessa fala ensandecida que constitui todo o livro. Não faça essa cara. Você merece um café... — Obrigado.88 Enquanto tomo esse café situo você em relação a esse livro, que, pelos vistos, você não leu... — Não li o livro mas... — O romance começa com uma esclarecedora epígrafe: “Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros. É uma história de aretê”. Uma história de aretê é uma história em que honra e virtude, juntas, contribuem decisivamente para a consecução de uma tarefa. Segundo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Maria Lúcia Aragão, citada por Zilá Bernd em seu artigo “Um certo Sargento Getúlio”,89 aretê traz a marca do herói, aquele que tem consciência de seu valor e do valor da missão a ser cumprida. O herói carrega às costas a responsabilidade de perpetuar os valores da comunidade que representa e que lhe atribuiu a marca e o papel de herói. “Sua missão maior”, escreve Maria Lúcia, “é lutar pela honra de sua raça e defender com a própria vida os seus princípios éticos.”90 Muito bem. — E prossegui: — Getúlio, “an ignorant, quarrelsome, foul-mouthed frontiersman... a hit man... a torturer... intelligent, amusing, pitiable, and ultimately a true epic hero”,91 citando uma resenha norte-americana sobre o romance, Getúlio não reads like a western and entertains like a classic comedy”, The Washington Post, Washington D.C., 9 mar. 1978). 87 — No original: “All the book’s meaning is contained in any random sentence” (John ATKINSON, “Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, Daily Cougar, 21 abr. 1978). 88 E eu citei em nota e traduzi o que disse uma jornalista do New York Times: “The secret narrator is the Brazilian backlands” / “O narrador secreto é o interior do Brasil” (Barbara Probst SOLOMON, “Dupes of Authority”, The New York Times, Nova Iorque, 9 abr. 1978). 89 P. 13-24, in Zilá BERND & Francis UTÉZA, O caminho do meio — uma leitura da obra de João Ubaldo Ribeiro, Porto Alegre, Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, 2001, p. 13. 90 Maria Lúcia ARAGÃO, “Sargento Getúlio: uma história de Aretê” (p. 104-110), in VÁRIOS AUTORES, Caleidoscópio, São Gonçalo, Fac. Integrada São Gonçalo, nº 8, 1988, p. 104, citado por Zilá BERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 13. 91 — “... um ignorante, brigão, desbocado, habitante da fronteira... um homem de impacto, um torturador, inteligente, divertido, desprezível, e finalmente um verdadeiro herói épico” — traduzi (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, Atlantic Monthly, texto sem data). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 62 apenas cumpre seu papel, como morre por o ter cumprido. E que papel é esse? Sua missão: levar um preso, daqui para lá, de Paulo Afonso, norte da Bahia, a Barra dos Coqueiros, em Sergipe. Emana a ordem de levar o preso de um chefete local, um tal Acrísio Antunes, representação cristalina do coronelismo que tanto marcou e ainda marca a região. Segundo um resumo do próprio autor, o livro conta a... — ... história de um sargento da PM sergipana que, a serviço do chefe político (...), vai (...) buscar um preso, nunca identificado, e que não se sabe também se é um preso comum ou um preso político, para levá-lo para Aracaju e termina levando-o para a ilha Barra dos Coqueiros.92 — Acrísio, aliás... — e fiz um parêntese com a mão —, embora não apresente voz própria em todo o romance, teve sua etimologia rastreada por Zilá Bernd, que assim esclarece: “Acrísio, cujo nome significa, etimologicamente, ‘o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que não sabe julgar ou discernir’”.93 — O nome Acrísio, levando-se em conta este sentido, cairia melhor na pele do próprio Getúlio, perdido em si mesmo, cego para o que sucede à sua volta e para as mudanças do mundo — disse ele. — É verdade. Acompanham Getúlio seu motorista Amaro, amigo de longa data, e o próprio preso, o “cachorro bexiguento”, “cão da pustema apustemado”, “pirobo semvergonho, pirobão sacano xibungo bexiguento chuparino do cão da gota do estupor balaio” (p. 27), assim chamado porque Getúlio não lhe dá nome, o que equivale a dizer que o preso, de fato, não carrega nome algum. O sargento, além dos xingamentos, ainda se refere ao seu “pirobo semvergonho” como o “filho de uma mãe com vinte pais” (p. 68). Viajam os três num carro antigo, baleado, enferrujado e lento. — Getúlio, pelos vistos, já soube do nome do preso... Deixe-me ler aqui um trecho — pediu ele, que folheava o livro ao acaso. — “Ninguém se lembra mais do nome dele, ninguém se lembra mais nem do nome da gente, quer dizer, eu me lembro do meu nome e me lembro do nome de Amaro e se quisesse me lembrava do nome do peste, mas não quero e esqueci” (p. 103). — E o meu interlocutor ainda disse, com satisfação na voz: — Como eu disse, não li o livro 92 “Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro — sucesso de crítica nos Estados Unidos, mas pouco conhecido no Brasil”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978. 93 Zilá BERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 20. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 63 mas vi o filme... Conheço a história. No filme, o velho hudso é um velho dodge. Faz tempo... — E ele olhou para cima. — Mas tenho o filme inteiro na cabeça... — Eu não vi o filme... — confessei. — No meio do caminho, Getúlio recebe uma contra-ordem: reconduzir o preso a Paulo Afonso e abortar a missão. A contra-ordem recebe-a não pessoalmente, de seu chefe Acrísio, origem da ordem inicial, mas de mensageiros que lhe vão surgindo pelo caminho. O sargento, não obstante os recados vindos indiretamente do chefe, recusa-se a incorporar a nova ordem, e desse modo incorporar-se à nova ordem. Ouça — e li —: “... só devo satisfação a uma pessoa, graças a Deus, e dessa pessoa nada ouvi até agora, a não ser o que ficam me dizendo, só que eu não emprenho pelos ouvidos” (p. 93). Dada a sua obstinação, a sua ignorância, a sua fidelidade à palavra viva de Acrísio, Getúlio vai contra a contra-ordem e decide enfrentar as conseqüências. É este o argumento que temos à frente. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Um argumento que remete diretamente ao mito de Antígona... — disse ele, visivelmente satisfeito com a sua associação. — Sim, sim — e sorri de contentamento. — Esta associação já a fez a Zilá Bernd no artigo “Um certo Sargento Getúlio”, que já vimos... Ela justamente propõe uma alternativa às leituras baseadas em dicotomias, leituras que eu pessoalmente acato e de que gosto,94 mas que ela considera desgastadas. Ouça: ... o mito de Antígona está na base das complexas relações de poder que se encenam no âmbito do romance e que a obstinação do sargento em não acatar a ordem do chefe corresponde de algum modo à rebeldia de Antígona e sua obstinada determinação em não acatar as determinações do soberano quando 94 — Zilá aponta o esquema binário das leituras de Malcolm Silvermann e José H. Dacanal — disse eu, em nota. — E diz que a leitura de Silvermann, “embora contribua para a compreensão da obra, limita seu alcance a uma formulação maniqueísta que não deixa de ser redutora”, diz ela (op. cit., p. 14). Mas Silvermann, numa citação pescada pela própria Zilá, diz que “Num plano muito geral, Sargento Getúlio é uma luta entre o velho e o novo, entre permanência e mudança” etc. etc. (citando o capítulo de Silvermann, “As distintas facetas de João Ubaldo Ribeiro” (p. 89-109), in Moderna ficção brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, Brasília, INL, 1981, p. 105). Observe — continuei, em nota — que ele começa a sua observação com a expressão “Num plano muito geral”, que realcei. Acredito que Silvermann estava apenas começando a raciocinar, e deixou bem claro que iria tratar desse plano geral, até porque ele está abordando, nesse capítulo, vários textos de Ubaldo, e não apenas Sargento Getúlio. O próprio João Ubaldo — acrescentei — aborda o binarismo novo/velho ao olhar para o seu Getúlio. E não que a fala de Ubaldo seja mais autorizada por ser a do autor; ela é apenas mais uma voz. Ouça: “Talvez o drama do meu personagem seja uma crise de identidade. Uma violenta crise de identidade. Ele é uma pessoa do passado, obrigado a enfrentar a modernidade, e fica numa situação dilacerante” (“João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”, Diário do Nordeste, 21 jul. 1982). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 64 estas vêm de encontro aos ditames de sua consciência.95 — É difícil resistir a esse binarismo — interrompeu-me. — A oposição entre velha e nova ordens é pulsante e eu diria estrutural no livro. Afirmativas do tipo: “... the story presents the conflit between an older, violent kind of integrity and, to Sargeant Getúlio, and incomprehensible, modern kind of corruption”96 estão por todo o lado, na fortuna crítica nacional e internacional... — disse ele, com um recorte na mão. E, anunciando que o meu café havia acabado, retomou: — E eu volto às minhas perguntas, das quais você parece fugir... Onde acaba Getúlio e começa o narrador? Onde acaba o narrador e começa Getúlio? — Temos, nesse caso — comecei, ainda inseguro —, o que se chama de narrador em primeira pessoa, intradiegético e autodiegético, segundo a terminologia de Gerard Genette, ou seja, o narrador está dentro da diegese, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA intradiegético, conta uma história no foco narrativo da primeira pessoa e é dessa história o protagonista, autodiegético. É também chamado “narrador- protagonista”. É o que Norman Friedman chama de o “eu como protagonista”. Outro teórico, Bertil Romberg, diz que nesse tipo de narrativa o autor desaparece, em proveito do narrador-personagem... E ainda F. K. Stanzel chama este nosso caso de Die Ich Erzählsituation, first-person novel, ou romance de primeira pessoa, onde o narrador é ao mesmo tempo um personagem...97 Continuo? — Não, não... — e ele fez um sinal com a mão. — Mas, como você viu, estabelecer fronteiras entre Getúlio e um narrador, seja ele quem for, é tarefa destinada ao fracasso. Esse narrador é um fantasma... — Ainda não estou convencido... Deixe-me dar um exemplo do que se poderia chamar aqui de uma divisão de tarefas... O momento da minha ênfase é o momento em que Getúlio toma o lugar do narrador, e passamos de uma descrição 95 Zilá BERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 15. 96 — “A história apresenta o conflito entre uma antiga e violenta espécie de integridade” — traduziu ele — “e, para o sargento Getúlio, uma incompreensível e moderna espécie de corrupção” (Francis STUART, Francis Stuart on Recent Fiction, “South of the Border”, texto sem referência, 21 fev. 1980). 97 F. K. STANZEL, Die typichen Erzählsituationen in Roman, dargestellt an Tom Jones, Moby Dick, The Ambassadors, Ulysses, Viena, Estugarda, Beitrage zur Englischen Philologie, nº 63, 1955, p. 10, citado por Françoise ROSSUM-GUYON, “Domínio alemão” (p. 35-42), in Françoise Van ROSSUM-GUYON; Phillipe HAMON & Danièlle SALLENAVE, Categorias da narrativa, Lisboa, Coleção Vega Universidade, s/d., p. 41. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 65 razoavelmente objetiva, para a manifestação de uma impressão, a impressão de tudo aquilo sobre o personagem. Ouça: ... É aquela atalaia de cana que só vendo, tudo tudo envergado pela viração. Isso de cima dum morrinho, porque de baixo, pela estrada (...), parece umas vassouras desinvertidas, umas vassourinhas, e fica aquilo louro, louro. De manhã é o melhor, o mato ainda está quieto, sem as bicharias e as caças rebuliçando. Tenho uma irmã que ficou no barricão, e hoje vive na janela com as outras vitalinas lá em Vila Nova, que gostava de ver cana na floração. Foi ela que me ensinou, porque antes eu não via, passava desprecatado. Assim agora eu gosto e quando é tempo e eu tenho tempo, espio muitíssimo. (p. 21) — Desculpa lá, mas é desde o início que a descrição funciona como a descrição de uma impressão sobre o personagem — disse ele. — É o olho de Getúlio que vê e narra o que vê. Você estabeleceu o limite somente porque há lá um verbo conjugado na primeira pessoa. Não me convenço de que estamos diante PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA de um mesmo enunciado proferido por dois enunciadores. Há apenas um enunciador: Getúlio. Não entre por essa trilha na sua tese, que você se perde... — Hum... — e eu cocei a cabeça. — Talvez não se trate aqui, no caso deste romance, de procurar o narrador, mas percorrer a complexidade do personagem. Porque o narrador, diz Oscar Tacca — e retirei mais um livro de nossa infinita biblioteca —, “... não tem uma personalidade, mas uma missão, talvez nada mais do que uma função: contar. Cumpre-a bem na medida em que não se afasta dela”.98 É Getúlio quem tem muitas personalidades, e seu discurso comporta vários níveis, porque ele não é apenas aquele que fala para o outro, para Amaro, o preso, ou o padre; é também aquele que fala sozinho, aquele que pensa, aquele que rememora e aquele que delira. — E continuei com Tacca: — “Maior esforço exige distinguir — quando coincidem — narrador e personagem. Ambas as figuras se sobrepõem, embora não se confundam”.99 — Confundem-se, sim. Ele é o narrador de si, sim, e não há outro narrador. A principal razão para isso está na força da linguagem do sargento, que está longe de ser neutra. Não há espaço para um outro narrador — disse ele, e mostrou-me o trecho de uma resenha estrangeira, provavelmente norte-americana: 98 “O narrador” (p. 61-103), in As vozes do romance, Portugal, Livraria Almedina, 1983, p. 65. 99 Id., ibid. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 66 ... Because we stay inside his mind throughout the book, we come to understand his character, his tenacity, his morality even, which from the outside would probably appear as stupidity, or brutality, or both. Is is a strange sensation reading this, because Sergeant Getúlio is not a pleasant person, but we need to understand this type. It is always with us.100 — Você disse há pouco que havia apenas um enunciador, Getúlio. Ouça aqui a distinção de Jakobson, retomada por Todorov, tudo isso citado pelo Oscar Tacca, sobre a idéia de que a identidade do narrador está situada não no plano do enunciado, mas no da enunciação. “O enunciado é exclusivamente verbal, enquanto que a enunciação coloca o enunciado numa situação que apresenta elementos não verbais: o emissor (...); o receptor (...); e o contexto em que essa articulação tem lugar”.101 — Tudo muito bonito... Mas você saberia identificar esses elementos não verbais no discurso de Getúlio? — e ele, largando o jornal, ao qual eu talvez não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tenha dado tanta importância, fez uma expressão de desafio. — “Falar de si mesmo significa não mais ser o mesmo si-mesmo”102 — li, rindo da estupefação de meu interlocutor. — E voltei ao sério: — Quando você diz, por exemplo, “Fulano sai”, que é o exemplo do Oscar Tacca, quem diz isso é um, e quem sai é outro. — Isso é óbvio, mas e o outro caso? O caso de “Eu saio”... — Respondo citando: “... o sujeito que diz ‘eu’ é inteiramente distinto do sujeito que sai. Não é só a diferença que vai de dormir a dizer ‘eu durmo’: o importante não é a tomada de consciência do dormir, mas do dizer (ou, mais espetacularmente, do escrever) ‘eu durmo’”.103 — Meu caro... O caso de Sargento Getúlio é especial... Primeiro, porque não se trata de escrever, mas de dizer. Getúlio está falando e no tempo presente. 100 — “E porque permanecemos dentro da sua cabeça por todo o livro, passamos a entender sua personalidade, sua tenacidade, até mesmo sua moralidade” — traduziu ele —, “que, vista de fora, talvez apareça como estupidez, ou brutalidade, ou ambas. É uma estranha sensação ler isto, porque o sargento Getúlio não é uma pessoa agradável, mas nós precisamos entender esse tipo. Ele está sempre conosco” (Rob SWIGART, “A farago of recomended fiction”, texto sem referência). 101 TODOROV, “Poétique”, Qu’est-ce que le structuralisme, Seuil, Paris, 1968, p. 108, citado por Oscar TACCA, “O narrador”, op. cit., p. 66. 102 — Tradução livre de: “Parler de soi-même signifie ne plus être le même soi-même” (TODOROV, “Poétique”, Qu’est-ce que le structuralisme, Seuil, Paris, 1968, p. 121, citado por Oscar TACCA, id., ibid.). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 67 Em segundo lugar — disse ele —, agora que entendi a diferença entre enunciado e enunciação, menciono aqui o enunciado impossível, o eu morri; enunciado que não acontece e, portanto, não dá lugar a uma enunciação, que também não acontece, porque, quando Getúlio morre, ou seja, quando morre o enunciado, morre também a enunciação, ou seja, morre o seu narrador, que forma, com Getúlio, o mesmo corpo. Você se lembra do final? Eu não li o livro mas conhe... — Sim... — respondi.104 — Embora não seja a morte de Getúlio um ponto pacífico... — disse ele, franzindo o beiço —, uma vez que ela não está narrada... Veja o que disse o diretor do filme, o Hermano Penna: “Sempre pensei que eu fosse o único a não saber se o sargento Getúlio morria ou não, mas descobri que o João Ubaldo também não sabe. O livro é traduzido sem ponto final para qualquer língua, exigência do escritor”.105 E outra coisa — e ele pegou o livro do Tacca de minha PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA mão. — Ouça isto: Tacca pergunta: “Quem é o narrador em O estrangeiro?”, e ele responde: “... seria difícil responder Meursault”... Entendo a dúvida de Tacca quanto ao caso do livro de Camus, já que, como ele mesmo, Tacca, diz aqui nesta nota de pé de página, Meursault às vezes dá a impressão de que sabe menos do que o narrador, já que a narrativa sugere haver mais, muito mais, e Meursault, afinal, para piorar ainda mais as coisas, fala tão pouco... Mas, por outro lado, é porque fala tão pouco que também temos a impressão de que o personagem sabe mais do que diz e não quer dizer tudo o que sabe...106 Aplique agora essa pergunta ao caso de Getúlio... É fácil responder que o narrador de Sargento Getúlio não é Getúlio Santos Bezerra? E volto à minha pergunta, da qual você parece que fugiu... Você saberia identificar esses elementos não verbais no discurso de Getúlio? — Os elementos não verbais que nos interessam apontam para o fundo ideológico da fala do sargento. Eliana Yunes escreveu que a linguagem de Getúlio 103 Oscar TACCA, “O narrador”, op. cit., p. 87. 104 E repassei, mentalmente, aquele final sem ponto final: “... sou eu e vou e quem foi ai mi nhalaran jeiramur chaai ei eu vou e cumpro e faço e” (p. 157). 105 Segundo a matéria de Susana SCHILD, “Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983. 106 Oscar TACCA, “O narrador”, op. cit., p. 87, nota 39. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 68 não é por ele controlada e não provém dele, mas de uma ideologia políticomachista107 — eu disse, com a revista Linguagens na mão. — Concordo com essa idéia, sim, mas num âmbito reduzido, porque eu não sei se o fundo ideológico da fala do sargento constitui um elemento não verbal... A linguagem de Getúlio transcende a esfera da ideologia políticomachista. A ideologia político-machista pode ser detectada em cada centímetro daquele chão sergipano, mas ninguém articula a própria fala como Getúlio o faz. Nesse sentido, a sua linguagem é, sim, bastante sua, o que equivale a dizer que personagem e linguagem estão casados.108 — Não concordo com você — disse eu, e convicto. — Você está falando de duas linguagens diferentes: a linguagem de Getúlio como manifestação da sua subjetividade e a linguagem como maneira de expressar uma ideologia... — Sim, vamos lá — e ele retomou a palavra. — A linguagem como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA maneira que temos de vislumbrar uma ideologia subjacente, a ideologia políticomachista, está presente em todo o texto, sim, e claramente. Mas estes sinais aparecem aqui e ali; o que impera é a maneira getúlica de olhar o mundo, ou seja, a sua linguagem como manifestação de sua subjetividade. — Olhe que eu até concordo com você... — eu disse, estranhamente feliz com o que ele disse. — E é aqui que eu ganho a discussão... Eu não, mas a Cleonice Mourão e a Eliana Yunes, que já lhe cito as duas... Tanto a linguagem de Getúlio não é sua e não lhe pertence, nem mesmo como veículo de manifestação de sua subjetividade... Tanto isso realmente procede, que, quando o mundo muda e vem a contra-ordem e Getúlio não entende mais nada de nada, essa linguagem explode e de desconecta do real... Ele a perde. E por quê? Porque a sua subjetividade e a ideologia que perpassa todas aquelas páginas acabam por revelar-se uma coisa só. Logo, a sua linguagem, mesmo como expressão de sua subjetividade, não existe. Ouça. Cleonice Mourão, num artigo de setembro de 107 Eliana YUNES, “O poder da fala em Sargento Getúlio” op. cit., p. 41. 108 E ele citou, abrindo uma nota e em seguida traduzindo, o que escreveu um jornalista no Los Angeles Time: “Some novels enthrall us with their characters, others with the power of their language. Rarely do we find a contemporary piece of fiction that does both” / “Alguns romances atraem-nos com os seus personagens; outros com a força de sua linguagem. Raramente encontramos uma peça de ficção contemporânea que consiga fazer as duas coisas” (Alan CHEUSE, “Repulsion / attraction from Brazil”, Los Angeles Time, texto sem data). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 69 1978,109 distingue duas facetas do monólogo: a primeira como um discurso circular gerado pelo eu e absorvido pelo eu, um discurso em que o conhecimento tem uma direção pré-estabelecida, onde não há dialética e onde não há, mesmo que sob um manto de aparente reflexividade, qualquer produtividade do pensamento, já que se está preso a um único ponto de vista... — E a segunda faceta? — A segunda faceta — continuei — é a do monólogo como expressão de desejos e crenças. Uma faceta está ligada à outra. É a visão única, a circularidade do ponto de vista da primeira faceta que produz o mar de subjetividade do qual o falante não pode escapar, que é a segunda faceta. Getúlio afoga-se na duas facetas e no mesmo mar, justamente nas duas fases do romance. Ouça agora as próprias palavras da professora Cleonice Mourão, e depois ouça o que escreveu Eliana PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Yunes, no mesmo ano, dois meses depois... (i) ... na primeira parte da narrativa, ele [o monólogo] é a expressão direta e espelhada de estímulos exteriores; na segunda parte, é a expressão da crise ou conflito, quando esse espelho se quebra e a personagem não entende mais a linguagem do mundo. Essa linguagem do mundo é aquela que, no romance, se manifesta pelo silêncio. Uma vez que a fala da personagem invade todo o espaço romanesco, só no silêncio, ou na ausência, podemos detectar a fala do mundo. (...) (...) Não escutar esse silêncio (...) é acreditar que a linguagem de Getúlio é natural, ou seja, que ela elabora e organiza o seu mundo e o mundo exterior por um processo consciente (...), por uma representação do mundo a partir de um raciocínio seu, ainda que rudimentar. São os artifícios formais do romance que levam o leitor desavisado a escutar apenas a voz de Getúlio, enquanto, por trás do ruído de explosão dessa linguagem que se quebra, se estraçalha (...), vive e morre, a voz da ideologia repousa tranqüila e inocente.110 (ii) ... no primeiro momento do texto sua fala procura narrar, espelhar o que vê e entende, conforme a ordem do mundo; depois, já incapaz de entender o mundo (...), ele subverte a cadeia lógica através da linguagem como forma de escapar à realidade que o esmaga (...). O confronto entre essas duas faces (a máscara) do monólogo decorre do fato de que a linguagem de Getúlio não é sua — o peso da subjetividade, presente no possível solilóquio inicial, se defronta com a produção do discurso na terra macha e que em verdade só lhe pertence por delegação do chefe (...). (...) O que ressoa no aparente painel de silêncio da narrativa e [n]a voz de Getúlio é simples eco — é a ideologia, incontestável pela ignorância, alheamento e miséria permanentes.111 109 “O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, op. cit. 110 Id. 111 “O poder da fala em Sargento Getúlio” op. cit., p. 41-42. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 70 — É verdade que não vou empreender com esse romance o mesmo estudo que pretendo com Viva o povo brasileiro, que elejo como o centro ativo do comportamento incorporante do narrador, o ápice de sua condição de narrador sem cabeça. — E continuei: — Além do mais, o discurso de Getúlio está a léguas de distância de uma tentativa de contar histórias de vida ou da própria vida, tarefa bem mais ao feitio de um narrador. Se assim fosse, teríamos algo muito mais homogêneo e próximo de uma narrativa de si, uma narrativa autobiográfica e, indo além, uma escrita autobiográfica... — ... o que, em se tratando do personagem Getúlio Santos Bezerra, é um contra-senso... — disse ele. E seguiu: — A sua tentativa, lá atrás, de encontrar a voz do narrador ao lado da voz de Getúlio configura uma tentativa de estabelecer a cisão entre o eu como sujeito do enunciado e o eu como o objeto desse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA enunciado... Mas em Getúlio não há essa cisão... Os eus getúlicos, se me permite... — e ele riu —, estão superpostos e misturados no presente da enunciação... — Cito novamente o Tacca: “A distinção entre narrador e personagem, quando estes coincidem, quando é o personagem quem narra, torna-se mais árdua, por ser mais artificial, mas é proveitoso mantê-la”112 — e fechei o livro. — Dê-me aqui este livro — disse ele. — Tacca diz que a distinção é artificial; vamos atrás dessa idéia — e ele folheou o livro, até que sorriu. — Ouça: ... em razão de uma crescente identificação entre o saber do narrador e o do personagem, desaparece, progressivamente, todo o indício daquele ((...) como “concertador” de histórias) e deste como personagem (no seu sentido dramático, (...), como agonista), para se tornar em pura consciência que flui: é a técnica do monólogo interior.113 — Lembro aqui o que disse a professora Cleonice Mourão acerca da faceta circular do monólogo. — E citei: — “Se o monólogo apresenta perguntas, é só aparentemente que ele questiona o universo, porque as respostas passam pelo crivo da mesma consciência que gerou as perguntas, e o círculo se fecha”.114 E é por isso que se costuma aproximar o discurso de Getúlio de uma tentativa de auto112 “O narrador”, op. cit., p. 80. 113 Id., p. 81. 114 “O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, op. cit. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 71 retrato, muito mais do que de autobiografia — disse eu, com outro artigo na mão, o da professora Fátima Cristina Dias Rocha, em que compara o personagem Paulo Honório, de Graciliano Ramos, empenhado na escrita de sua vida, e o nosso sargento, a debater-se com aquilo que lhe vem à mente a todo instante. — Ouça o que diz ela, pensando nas considerações de Jean Starobinski: “... é porque o eu evocado é diverso do eu atual que este pode afirmar-se em todas as suas prerrogativas, contando não apenas o que lhe aconteceu em outro tempo, mas sobretudo como um outro que ele era tornou-se ele mesmo”.115 É o caso de Paulo Honório, que escreve e, escrevendo, muda... — E não é o caso de Getúlio — completou ele —, para quem são os tempos que mudam; Getúlio permanece ele mesmo sempre, e esse é o centro nervoso de sua condição trágica... — “A política está mudando, (...) está ficando uma política maricona” (p. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 56) — li, citando o sombrio diagnóstico de Getúlio, e completei a idéia, agora com as palavras do padre, indeciso quanto ao próprio posicionamento diante da truculência de Getúlio e da mudança do mundo. ... vosmecês da duas uma: ou dá um fim direto nesse cristão, louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo (...), ou então solta ele, diz o padre, porque não sei mais se é possível levar ele para a capital (...). Inda mais (...) que temos aqui trocidades, dentes arrancados, violências, e os tempos estão mudando e vosmecê cortou a cabeça dum tenente e não sei como é que isso vai ser, inda se fosse um cabo (...), mas como é que se vai cortar a cabeça dum superior mesmo no aceso (...). Que desse umas porradas, ainda vá, ou arrancasse um olho na disputa (...). Agora, a cabeça não; a cabeça se vai lá, se olha o pescoço e se resolve cortar, é uma coisa quase parada (...). (...) — O tenente me chamou de corno, seu padre. Era ele ou eu. — É isso mesmo — diz o padre. — Devia de ter cortado mesmo. E se benzeu e disse que não precisava dizer aquilo. (...) Essa terra, diz ele, depois de muito tempo, já foi uma terra boa, porque havia mais homens e quem era homem não tinha de que temer. Hoje essa terra não vale mais nada, está uma frouxidão e um homem não sabe de quem depende... (p. 82-83) — Escreve ainda a professora Fátima Cristina Dias Rocha, citando o Wander Melo Miranda — retomei, voltando ao auto-retrato —: “‘... o auto-retrato 115 — O texto de Jean STAROBINSKI, presente na bibliografia de Fátima Cristina Dias Rocha, é: “Le style de l’autobiographie”, in VÁRIOS AUTORES, Poétique, Revue de théorie et d’analyse littéraires, Paris, Éditions du Seuil, 1970 (Fátima Cristina Dias ROCHA, “São Bernardo e Sargento Getúlio: vozes e gestos em contraponto” (p. 41-55), in Carlinda Fragale Pate NUÑEZ (org.), Armadilhas ficcionais: modos de desarmar, Rio de Janeiro, 7Letras, 2003, p. 45. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 72 não conta o que fez, mas tenta dizer quem é, embora sua busca não conduza à certeza do eu’”,116 e continua, agora ela mesma: “Constituindo-se segundo um sistema de recorrências, retomadas e superposições de elementos homólogos, a principal aparência do auto-retrato é a da descontinuidade”.117 E... — Mas Getúlio — interrompe-me com alguma brusquidão o meu interlocutor — está todo o tempo a dizer, não o que é ou não é, mas o que fez e o que não fez, o que deve fazer e o que não deve... — Sim, e isso porque o que ele é só se define por aquilo que ele faz. Uma espécie de faço; logo, sou... A demonstração dessa idéia está luminosamente presente na adaptação de João Ubaldo Ribeiro para o dilema hamletiano. A decisão de levar o preso até o seu destino, concluindo assim a missão de que lhe incumbiu o chefe, não foi das mais fáceis. O duelo na fazenda de Nestor, a permanência na igreja e as conversas com o padre afrouxaram a convicção de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Getúlio de que tinha de ir até o fim. Por outro lado, não se suportaria a si mesmo se não desse cabo da missão. — E li: — “... o que é que eu vou ficar pensando depois, se já tenho pouco para pensar e o pouco que eu tenho vai inchando na minha cabeça e vai tomando conta do oco que tem lá dentro?” (p. 101). João Ubaldo Ribeiro substitui o dilema hamletiano por um outro, o dilema, digamos, getuliano, ou getúlico: levar ou não levar, e o ser ou não ser transforma-se no levo ou não levo, ou seja, no faço ou não faço aquilo que o chefe, ele mesmo, pessoalmente, me mandou fazer... Trata-se do mesmo dilema, já que Getúlio, diante do impasse em que se encontra, abandona por um único instante toda a sua arrogância para, pela primeira vez, confessar-se dividido entre viver e não viver, ou seja, ser e não ser. A correlação entre os dois está bastante clara na consciência do sargento: não levar o preso significa ser, e ser significa desistir, fraquejar, “morrer velho e frouxo”; por outro lado, levar o “pirobo semvergonho” significa “morrer (...) macho” (p. 100), ou seja, não ser. Getúlio morre macho — disse eu. — Vamos cotejar os dois solilóquios? O flerte de Getúlio com Hamlet e o de João Ubaldo Ribeiro com Shakespeare... 116 Wander Melo MIRANDA, Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1992, p. 36, citado por Fátima Cristina Dias ROCHA, “São Bernardo e Sargento Getúlio...”, op. cit., p. 51. 117 Id., ibid. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 73 — E também o flerte do diretor Hermano Penna com Shakespeare... — disse ele. — Na cena de abertura há urubus voando por todo lado.118 Isto não está no livro, mas no Macbeth; “... as aves de mau agouro anunciando o que o diretor sintetiza como ‘antologia do inconsciente do homem nordestino’”, escreve Susana Schild.119 Agora, deixe-me fazer uma ponderação, citando aqui o que escreveu um jornalista americano — e o meu interlocutor retirou uma matéria de jornal de nossa grande mesa. — Ouça: A curious flaw in Ribeiro’s Getúlio is his theft of the Hamlet soliloquy, taken bodily but transmuted into Getúlio’s personal idiom. (...) But Getúlio is no Hamlet — there’s the rub. Hamlet is depressive, Getúlio manic; where Hamlet is indecisive, Getúlio is deliberate and impulsive; he ponders neither the justice nor the injustice of his mission.120 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Leiamos, em português, Hamlet e Getúlio — e li, com gravidade. (i) Ser ou não ser — eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino feroz Ou pegar em armas contra o mar de angústias — E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso. E com o sono — dizem — extinguir Dores do coração e as mil mazelas naturais A que a carne é sujeita; eis uma consumação Ardentemente desejável. Morrer — dormir — Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo.121 (ii) ... Levo ou não levo, é isso. Talvez seja melhor sofrer a sorte da gente de qualquer jeito, porque deve estar escrito. Ou é melhor brigar com tudo e acabar com tudo. Morrer é como que dormir e dormindo é quando a gente termina as consumições (...). Só que dormir pode dar sonhos (...). Por isso é que é melhor 118 Segundo a matéria: “Sargento Getúlio: o cenário nordestino de um drama universal”, Luta Democrática, 15 abr. 1983. 119 “Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983. 120 — “Uma curiosa falha no Getúlio de João Ubaldo Ribeiro é o roubo que faz do solilóquio de Hamlet, corporificado e transformado no idioma particular de Getúlio. (...) Mas Getúlio não é Hamlet — aí está o problema. Hamlet é depressivo; Getúlio, maníaco; onde Hamlet é indeciso, Getúlio é deliberado e impulsivo; ele não pondera sobre a justiça ou a injustiça de sua missão” — traduziu ele (Dave WALSTEN, “A memorable month in the hinterland”, Chicago Tribune, 29 jan. 1978). 121 William SHAKESPEARE, Hamlet, trad. Millôr Fernandes, ato III, cena 1, Porto Alegre, L&PM Pocket, 1998, p. 88. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 74 morrer (...), quando a gente solta a alma e tudo finda. Porque a vida é comprida demais e tem desastres. (Sargento..., p. 99)122 — Você citou aqui uma crítica à conveniência de se colocar na boca de Getúlio o dilema hamletiano... Getúlio não é Hamlet, e João Ubaldo Ribeiro não é Shakespeare, mas pegar um cânone como Hamlet e transformá-lo a esse ponto é realizar o movimento de des-solenização que a literatura de João Ubaldo Ribeiro o tempo todo faz, e ele também, e consigo mesmo. Trato disso mais tarde.123 De todo modo, Getúlio não é Hamlet... Sim, você me lembrou agora um artigo daquele escritor, o Rodrigo Lacerda, acerca de Sargento Getúlio — continuei, pegando o livro. — Lacerda diz que ambos se assemelham porque ambos estão perplexos e sabem que o mundo exige deles uma definição. Nesse sentido, as perguntas de Hamlet cabem, sim, na boca de Getúlio, mas... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... suas estratégias para as reconstruções existenciais que devem empreender, suas respostas ao vazio existencial são, no fundo, opostas. Hamlet reconhece que sua concepção de vida e de si mesmo antes dos acontecimentos da peça era por demais ingênua, lidava com valores absolutos (...), e graças a essa autocrítica consegue relativizá-los, optando por reconstruir-se constantemente. (...) E Getúlio, como responde à pergunta “Levo ou não levo”, que equivale ao “Ser ou não ser”, de Hamlet? (...) (...) Tal decisão [de levar o preso afinal] é, em parte, evidentemente, a instauração de sua individualidade, antes sufocada pela ligação umbilical com o chefe. (...) Mas ela é, também, uma reafirmação, uma afirmação do mesmo universo de valores, uma recusa em mudar de acordo com os tempos. (...) (...) Para Hamlet, o mundo está em constante mutação, cabendo a ele adaptarse (...); para o sargento, o mundo está em degradação, da qual ele se recusa a fazer parte. Apenas enfrentando-a ele pode existir.124 — Há uma reafirmação do mesmo universo de valores, mas, depois do dilema getuliano, Getúlio muda, pois ele passa a ser ele, ou seja, não ser um outro 122 — Cito aqui, em nota, o comentário de Manuel ROLLEMBERG, de 1976, para quem João Ubaldo Ribeiro, “como Shakespeare, tem o raro dom de por na boca de seus personagens a fala correta com a dose correta de dramaticidade. No Sargento Getúlio, como no Hamlet, há um solilóquio — intencional — que nada fica a dever aos melhores momentos da literatura mundial. (...) Ambos com o mesmo problema, embora com super-problemas diferentes” (“Hamlet — o tema eterno”, Jornal da Tarde, 31 jan. 1976). 123 — Embora queira citar, de cara — disse eu, em nota —, o que escreveu um jornalista português: “João Ubaldo Ribeiro tem aquele encanto dos talentos que não se levam a sério — um truque. De facto, trabalham, insistem, estudam e suam para dar a sensação de estarem nas tintas. Ele é o gênero do intelectual que se expõe com fingido cinismo, diletante, explanador de assuntos não sérios” (Ferreira FERNANDES, “Ubaldo das bundas ditosas”, Focus, Portugal, 17 jan. 2000). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 75 — eu disse. — Leio agora um trecho da professora Zilá Bernd acerca dessa intertextualidade entre Getúlio e o jovem príncipe da Dinamarca. Ouça: “Trata-se de uma escritura do entre-dois, da hibridação, da renúncia a ter que escolher entre duas filiações, aceitando ambas e propondo uma terceira via, a de uma literatura que faz da impureza e da contaminação a pedra angular de sua arquitetura romanesca”.125 Cito agora uma matéria, também a defender essa espécie de ventriloquismo. Ouça — e li. ... And even when Getúlio echoes Proust or Hamlet (“I take him back or I don’t take him back, that’s the question. Maybe it’s better to suffer one’s luck no matter what it is, for it must have been written so”), the words fit the character. Such allusions reinforce the overtones of tragedy in the novel. They serve too as reminders of Getúlio’s humanity, a humanity that even his most excessive acts of violence never entirely efface.126 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Então concordamos com a definição de Wander Melo Miranda para o auto-retrato, bastando que a gente trabalhe com esta arrumação: Getúlio foi aquilo que fez, é aquilo que faz e será aquilo que fará? — Sim — eu disse —, e tudo isso dentro de um discurso heterogêneo; às vezes um solilóquio em voz alta e dirigido a Amaro ou ao preso, às vezes o mesmo solilóquio, também em voz alta mas dirigido a si mesmo, às vezes um pensamento, às vezes um monólogo já invadido pelo inconsciente, às vezes, e cada vez mais, um delírio... E, já que você falou agora no filme, como se resolve isso na tela? — Bom — disse ele —, o sargento pensa ou fala sem parar, alternando sua fala com o seu pensamento. Imagino que não haja no livro uma distinção clara entre o que o sargento fala e o que pensa. Essa distinção que você fez é arbitrária. Você está tentando colocar uma grade de entendimento em algo que é único e inteiriço, a fala, o texto de Getúlio... E o leitor tem acesso a tudo, porque é tudo um texto. Está lá. Torná-lo silencioso ou ruidoso é, no livro, tarefa exclusiva do leitor. O mesmo não acontece no filme. 124 “Enfrento. Logo, existo...”, op. cit., p. 67-69. 125 “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 22. 126 — “E mesmo quando Getúlio ecoa Proust ou Hamlet (‘Levo ou não levo, é isso. Talvez seja melhor sofrer a sorte da gente de qualquer jeito, porque deve estar escrito’ [Sargento..., p. 99]), as palavras se encaixam no personagem. Tais alusões reforçam a tragédia implícita na novela. Elas servem também para nos lembrarmos da humanidade de Getúlio, uma humanidade que os (cont.) 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 76 — E nem poderia... Mas... — e me ocorreu algo — ... não concordo que no livro caiba exclusivamente ao leitor a tarefa de estabelecer o nível discursivo de Getúlio. O Getúlio que fala é sempre muito macho, muito convicto e muito objetivo. O Getúlio que fala a Amaro já é menos defendido e recorre, muitas vezes, ao amigo e chofer para a tomada de alguma decisão, o Getúlio que pensa já contém boas porções de dúvida e ponderação. E tudo se pode inferir através da qualidade, ou melhor, do tom, da linguagem do sargento... — Vamos ao texto? — pediu ele. — Dou-lhe aqui um exemplo de mudança de registro: fala um Getúlio destemido; pensa um Getúlio surpreso com o próprio destemor. O trecho é longo; lerei algumas partes. Ouça, e veja se esquece essa idéia da fala de Getúlio como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA uma fala só dele, e ainda una e inteiriça... ... — O senhor tem a minha palavra de honra. Pode ficar com a sua palavra [diz Getúlio], eu só tenho o que é meu e é pouco. Faço o seguinte: o seguinte é o seguinte: eu resolvo isso hoje. Vosmecês vão, eu fico e converso com o padre e depois solto o homem. Mas aqui, com vosmecês aqui, não solto, preciso de garantia. (...) Vosmecês me contaram que o chefe não quer mais saber disso, creio, creio. Assim sendo, eu posso soltar o homem, mas com vosmecês aqui não solto, de formas que espero vosmecês ir saindo na mesma paz que entraram e depois (...) eu solto o homem e vou embora. Não sei direito como é que eu falei assim [pensa Getúlio], mas de repente eu estava me sentindo muito bom e o que é mais que pode me acontecer. O que pode me acontecer é eu morrer, daí para baixo não pode mais nada... (p. 98-99) — A adaptação para o filme — disse ele — optou por trabalhar alternadamente os pensamentos e as falas de Getúlio. Muitas vezes o pensamento é um estopim para a fala. Getúlio pensa e, estimulado, expressa em alto e bom som o que pensou. Dê-me um exemplo conveniente do livro — pediu ele. — Veja então este trecho — e li para ele. — “Quando estou pensando, estou falando, quando estou falando, estou pensando”, diz, ou pensa, o nosso herói, à página 26. Em outro momento do livro, Getúlio pensa, ou fala: “Mais de vinte nas costas, veja vosmecê, é como mulher, não se consegue lembrar de todas. A primeira é mais difícil, mas depois a gente aprende a não olhar a cara para não empatar a obra” (p. 14-15). seus mais excessivos atos de violência nunca conseguem apagar inteiramente” — traduzi (Stu COHEN, “A tale of virtue from Brazil”, The Boston Phoenix, Boston, 6 jun. 1978). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 77 — Bem, o filme mostra Getúlio em silêncio e sua voz em off vagando em torno dessa idéia. Em seguida, como se a completar o que estivera pensando, ou como se alguém, acerca desse assunto, lhe fizesse uma pergunta, o sargento fala. Inaugura-se, desse modo, uma distância significativa entre o espectador e os demais personagens, estes últimos sabedores de apenas uma parte da história; a outra parte acessível ou audível apenas por nós. A onisciência, mesmo que uma onisciência relativa — disse ele —, não está, aqui, com o narrador, mas com o espectador e o leitor. — Eu gostaria muito que você me falasse do filme — pedi —, mas antes vamos falar da infância de João Ubaldo Ribeiro, o que não deixa de ser uma maneira de falar do universo do nosso sargento Getúlio, “... livro que é assim uma coisa reconstituída de minha infância”, disse o escritor.127 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 2.3. “SARGENTO GETÚLIO SOU EU”, DIZ UBALDO — E o meio do mundo é Sergipe... — disse ele. — Sim. Lá chegaremos... Há, no livro de Coutinho, dois capítulos responsáveis pela infância de João Ubaldo Ribeiro: “Infância 1: vamos chamar o tempo” e “Infância 2: livros”, dedicados respectivamente ao registro do mundo antes e depois de seu nascimento. Coutinho pega pedaços de História e pedaços da infância do escritor e os relaciona. No momento em que os relaciona, tenta, principalmente no capítulo “Infância 2: livros”, justificar uns pedaços pelos outros, estabelecendo conexões. “Vamos chamar o tempo”, por sua vez, é exatamente isso: um chamamento. Coutinho lança-se numa espécie de ensaio de ambientação, com vistas a dar conta do que teria sido o cenário bucólico da ilha de Itaparica no verão de 1941. Para tanto, descreve crianças brincando na areia, a montante e a jusante das marés, o sol e os turistas. A descrição daquele tempo e daquele lugar dá-se ao luxo de ser detalhista ao ponto de dedicar treze linhas ao assunto óculos escuros: sua origem em 1885, a moda entre as estrelas de Hollywood na década de trinta, sua variante em formato ray-ban e sua imagem de adereço para playboys. Ao mesmo tempo, como contraponto ao detalhismo, a 127 Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 78 descrição daquele verão apresenta-se como hipótese, explicitando assim a idéia de que aquela descrição não poderia ser histórica. — Dê-me exemplos dessa explícita imprecisão na “reconstrução histórica” — pediu ele, fazendo cara de pouco caso. — Coutinho utiliza recursos como “Podiam [os homens] estar vestidos de terno de panamá branco” ou “As mulheres ricas poderiam estar vestidas muito mais descontraídas” ou ainda “Não custa nada colocar no horizonte as velas estufadas de jangadas”128 e outras claras indicações de que se está ali a compor um quadro cujos elementos são escolhidos por proximidade, semelhança e verossimilhança; por plausibilidade, enfim, e não por verificabilidade histórica. Coutinho chega a brincar de cineasta com o leitor, pedindo-lhe que realize, aqui e ali, alguns bons cortes: “Volte ao movimentado Hotel. Feche o plano. Vá até o teto. (...) Desça até um par de sapatos (...). Depois, para umas calças de linho (...). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA As mãos, o jornal”.129 E então, através desse travelling, Coutinho situa no tempo a sua descrição do espaço, mencionando a guerra, a invasão do leste da Europa pela Alemanha nazista, as manobras da Inglaterra, a mobilização americana e tantos outros biografemas da História em plena década de quarenta. — E qual o objetivo desse jogo? — Chamar o tempo, ou, mudando-se o enfoque, fazer com que nós cheguemos até o tempo. Para chegarmos ao tempo, temos de mudar; para mudarmos, rumo ao passado, temos de desfazer o que o futuro terá feito. Se estamos em 1941, temos de olhar para o mundo como se estivéssemos lá. Isto pode ser um jogo bem divertido, e Coutinho realiza apenas algumas das possíveis jogadas. Veja-se esta desmontagem: “... em 1938 (...) já era famoso o ‘traje de balneário’, que uma beldade da época, uma jovem francesa, pretendente à escritora, uma tal Simone de Beauvoir, andara vestindo numa cidadezinha elegante à beiramar”.130 Coutinho menciona o nome de Beauvoir como se aquele nome ainda não significasse o que hoje significa. O problema, e aqui mora a graça do jogo, é que ele só está mencionando o nome de Beauvoir, como se ele nada significasse... 128 “Infância 1: vamos chamar o tempo” (p. 24-28), in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, op. cit., p. 25-26. 129 Id., p. 27. 130 Id., p. 25. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 79 — ... justamente porque ele tudo significa... — Isso. Como escreveu Dominique Maingueneau, “só se escreve a vida dos grandes escritores sabendo-se que são grandes escritores”.131 — E continuei: — Coutinho narra um dia qualquer de 1941, no caso o dia 23 de janeiro, data de nascimento de João Ubaldo Ribeiro. Esse dia, no entanto, é narrado não do modo como sucedeu, mas do modo como poderia ter sucedido. Onde está a historicidade dessa reconstrução? Coutinho chama o tempo, não os fatos. O único fato, sem o qual toda a descrição perderia o sentido, é o fato de que na casa dos Ribeiro nasceu um menino. — E o capítulo referente à infância? Pelo que você disse, há aqui muitas origens para a literatura de Ubaldo... — Sim — e respirei fundo. — O que acontece no capítulo “Infância 2: livros” não é a descrição de uma infância, mas uma descrição construída para ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA uma espécie de justificativa para a sua formação literária. Coutinho realiza um levantamento de algumas das experiências do menino João Ubaldo Ribeiro, crescido até os onze anos em Sergipe, para tentar entender até que ponto tais experiências moldaram o escritor de hoje, pondo em ação uma típica “interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção”, como já escreveu, e novamente citamos, Eneida Maria de Souza.132 A invenção dos aviões a jato, por exemplo, um acontecimento que de certo não foi ignorado pelo pai do escritor, o curioso dr. Manoel Ribeiro, deu-se, segundo o biógrafo, na tenra infância do escritor, e isso quem sabe influiu “no seu modo de ser — e até de escrever”.133 Outro exemplo do capítulo refere-se ao fato de João Ubaldo Ribeiro ter nascido depois de 1941, o “que deve ter imposto à sua personalidade e ao seu dom de escrever um humanismo radical. Além da natural angústia”.134 — Não creio — disse ele — que... 131 Dominique MAINGUENEAU, “Obra, escritor e campo literário — A vida e a obra” (p. 45-62), in O contexto da obra literária — Enunciação, escritor e sociedade, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 52. 132 “Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 43. 133 Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 35. 134 Id., ibid. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 80 — Mas são os livros, no entanto, o centro desse capítulo — interrompi-o. — Representam os livros o fragmento biográfico, o biografema literário escolhido por Coutinho para dar conta de uma identidade. São poucas as entrevistas em que João Ubaldo Ribeiro não menciona o pai e a casa de Sergipe abarrotada de livros. São poucos os textos acerca do escritor que não tentam formar o seu perfil literário através de sua história, ainda menino, com os livros. Ora, se um escritor carrega em si o que se pode chamar um “perfil literário”, é bastante natural que se pense ter sido este perfil literário formado pelos livros que se leram a partir da infância e pela vida afora. — O caso de Ubaldo tornou-se folclórico... — Sim, sim. Sua história com os livros significa muito mais do que um dos elementos formadores de um perfil literário. Vamos detectar referências recorrentes à biblioteca de seu pai em muitos de seus romances. Os livros que leu, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA e que segue relendo, pelo que diz, são peças constituintes de sua identidade literária. “Sei que parece mentira”, diz ele, “e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare”,135 e ele prossegue, citando a sua lista: Erasmo, Tito Lívio, Cervantes, Goethe, Dante, Homero, Montaigne, Herculano, Alencar, Machado de Assis, Dickens, Dostoievski, Suetônio, Santo Inácio de Loyola, Vieira e tantos outros... Depois, diz ele em outra entrevista: “Li Shakespeare com dez anos de idade e não entendi nada; quer dizer, entendi que as coisas terminavam mal...”.136 E agora veja aqui, para não perdermos a relação, a personagem-protagonista dA casa dos Budas ditosos a incorporar o escritor João Ubaldo Ribeiro: “Eu gosto de Shakespeare, leio desde menina, mesmo no tempo em que não compreendia patavina. (...) Ninguém compreende nada, seja da vida, seja de Shakespeare, que morreu mais de dez anos mais moço do que eu, sem saber que era Shakespeare” (A casa dos Budas..., p. 25, realcei). — Todos os escritores citados são canônicos — disse ele —; absolutamente canônicos, incontestavelmente clássicos, irrefutáveis, sagrados... 135 Trecho retirado da crônica “Memória de livros” (p. 137-153), in Um brasileiro em Berlim, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 152, realcei. 136 Lilian FONTES, “Do jeito que o povo gosta”, Rio Artes, 1994, realcei. Esta declaração voltará a ser citada no Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, p. 430. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 81 — ... e necessários, no entender do escritor, a uma boa e sólida formação literária. “... a maioria dos quais faz parte íntima de minha vida”, disse João Ubaldo Ribeiro.137 Vamos, agora — e eu peguei mais café —, para os nossos primeiros passos, pôr os pés na ponte biográfica que quero percorrer e explorar, a ponte entre a infância e Sargento Getúlio. Ouça — e li, traduzindo em nota. (i) Ribeiro uses his childhood experiences and observations to describe the turbulence surrounding the Brazilian government.138 (ii) No plano emocional (...), Getúlio-Ubaldo são mabaças, nasceram juntos, no mesmo parto.139 (iii) João Ubaldo diz que Sargento Getúlio é um somatório de personagens diversas que habitaram o seu mundo infantil, constituindo-se no reprocessamento de todo um universo vivido em Sergipe.140 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Pelo que já percebi, a idéia de que no romance Sargento Getúlio podemos encontrar, infiltrada, a biografia de infância de Ubaldo está mais do que declarada, confessada e admitida pelo próprio autor, e em inúmeras declarações à imprensa... É este o final do seu raciocínio? — perguntou ele, mordaz. — Isto não é uma idéia — reagi —, ou um final de raciocínio... Isto é uma premissa, ou seja, um ponto de partida. O que me instiga é: o que fazer com essa premissa mais do que admitida e como olhar para o romance, sob essa luz? Imagine que João Ubaldo Ribeiro nunca tenha pisado em Sergipe e nunca tenha vivido, como um jovem observador protegido, mas atento, nada do que conta... Sargento Getúlio seria possível? A resenha que Jorge Amado escreveu, em 1971, é taxativa quanto a isso — e li. .... Certamente tal livro só pôde ser escrito e tão bem realizado por ter sido fruto de experiência vivida: menino ainda, o romancista viu-se levado a Sergipe, onde familiares seus ocuparam cargos políticos. Ali, numa intimidade de copa e cozinha, conheceu sargentos e soldados, jagunços, políticos, assassinos e 137 Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 39-40. 138 — “Ribeiro usa suas experiências e observações de infância para descrever a turbulência à volta do governo brasileiro” (Reginald THOMAS, “Sergeant Getúlio fine”, State News, Michigan State University, 5 abr. 1978). 139 Lena FRIAS, “João Ubaldo Ribeiro — autor de Sargento Getúlio escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978. 140 “Prêmio de Literatura José Lins do Rego”, BNB Notícias, 19 jul. 1982, e também: “Concursos analisaram o reconhecimento individual”, O Povo, 20 jul. 1982. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 82 mandantes. Carregou dentro de si histórias e figuras, (...) a miséria e a solidão, e agora descarregou tudo isso em cima da gente.141 — Ou imagine, por outra — continuei —, que João Ubaldo Ribeiro não goste de falar de sua vida de criança e de adolescente e que nunca tenha se manifestado acerca de sua inspiração para escrever o romance... — Não teríamos as informações acerca das motivações biográficas e olharíamos para o livro de modo diferente... — Um modo muito mais circunscrito, limitado ao texto, tendo por única opção o texto... Uma leitura mais empobrecida... — Não, uma leitura apenas diferente — disse ele. — Quase que totalmente estruturalista à moda antiga... — Talvez a própria forma do texto, um monólogo, tenha relação com essa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA vontade ou necessidade de ser e falar como esse Getúlio. Ele não sabe explicar como começou a escrever o livro. — E li uma declaração: — “Estava em casa e, de estalo, saiu o livro, tudo na primeira pessoa, numa espécie de monólogo”.142 Talvez possamos indagar: o sucesso da criação de um personagem tão complexo e tão contraditório, um personagem que consegue repelir e atrair simpatias com tanta intensidade, não se deve ao fato de que ele existiu concretamente, fora da cabeça de João Ubaldo Ribeiro, antes de se mesclar a outros e se transformar no Getúlio do romance? Ouça esse somatório de afirmações acerca do magnetismo e da complexidade do personagem — e eu peguei algumas matérias de jornal que havia separado e traduzido por minha própria conta e risco. (i) Getúlio is just that, a thug whose struggle against the odds gradually wins over the reader’s sympathy. (...) Getúlio comes out of it with loyalty, dignity and self respect.143 (ii) It is a measure of Ribeiro’s achievement that Getúlio, for all his brutality, wins the reader’s respect and affection.144 141 Jorge Amado, “Romancista maior”, Letras e Artes, Portugal, 11 e 12 dez. 1971. 142 “Sargento Getúlio (...) — sucesso de crítica...”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978. 143 — “Getúlio é isso, um bandido cuja guerra contra a desigualdade vai ganhando gradualmente a simpatia do leitor. (...) Getúlio surge então com lealdade, dignidade e amor-próprio” (Blake MORRISON, “Love among fossils”, The Observer, 16 mar. 1980). 144 — “É a medida da façanha de Ribeiro que Getúlio, com toda a sua brutalidade, ganhe o respeito e a afeição do leitor” (Sidney OFFIT, “Latin Tour de Force”, N.Y. Trib., Nova Iorque, 9 mar. 1978). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 83 (iii) This murdering, betrayed thug on a vicious mission becomes before our eyes a free man whom we must love and honor.145 (iv) It is hard to confess sympathy for Getúlio Santos Bezerra, but the author creates it. And that is what makes this work so disquieting.146 (v) Yet, he has pulled the reader into Getúlio’s psyche so that it seems impossible not to emphathize with him, and not to want him to win free of an impossible situation.147 (vi) It is impossible to like this character, but Ribeiro’s style is so gripping and brutally poetic, you come to admire and respect the tenacity of will transformed through language into a celebration of survival and the self.148 (vii) Sudenly, the gunman becomes a hero. The reader sees in Getúlio a force, a spirit that deserves to endure, needs to survive. (...) João Ribeiro’s ability to shift our allegiances so subtlely is remarkable. His ability to makes us forget, forgive or ignore Getúlio’s savage excesses is nothing short of incredible.149 — E lhe faço a pergunta: quem é Getúlio? Ele é “... a loner, a coarse and PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA violent man whose excesses will offend the sensitivities of most civilized readers. He is an anachronism, a throwback, a living fossil. He is the last of a species, the end of the line for man”150 — li de uma reportagem norte-americana. — Mas não só isso. Se colocarmos, ao lado da visão de Getúlio que se depreende através do romance, outras visões do sargento, visões diversas da visão que ele tinha acerca de si mesmo, obteremos um Getúlio muito mais completo. Ouça isso: 145 — “Este bandido assassino e traído, em sua missão mórbida, torna-se, diante de nossos olhos, um homem livre a quem devemos amar e honrar” (Jose YGLESIAS, “Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, texto sem referência). 146 — “É custoso confessar simpatia por Getúlio Santos Bezerra, mas o autor cria isso. E isso é o que torna este trabalho tão inquietante” (Stu COHEN, “A tale of virtue from Brazil”, The Boston Phoenix, Boston, 6 jun. 1978). 147 — “Contudo, ele inseriu o leitor dentro da psique de Getúlio de tal modo que parece impossível não ter uma empatia com ele e não querer” — e traduzi aproximadamente — “que ele saia ileso de uma situação difícil” (Jeff FRANE, “A portrait of a brutal man”, Seattle Times, 9 abr. 1978). 148 — “É impossível gostar desse personagem, mas o estilo de Ribeiro é tão absorvente e brutalmente poético, que você passa a admirar e respeitar a força de vontade transformada, através da linguagem, na celebração da sobrevivência e do self” (Sam COALE, “Story of a hired Brazilian gunman”, Providence Sunday Journal, San Gabriel, 26 mar. 1978). 149 — “E, de repente, o pistoleiro se transforma no herói. O leitor vê em Getúlio a potência, o espírito que merece resistir e precisa sobreviver. (...) A habilidade de João Ribeiro de deslocar tão sutilmente as nossas regras é notável. Sua habilidade de nos fazer esquecer, perdoar ou ignorar os excessos de selvageria de Getúlio é nada menos que inacreditável” (Paul MERKOSKI, “Beware hired killer: you’re on his side”, Atlantic City Press, Atlantic City, 2 abr. 1978). 150 — “... um solitário, um homem grosseiro e violento cujos excessos ofendem a sensibilidade da maioria dos leitores civilizados. Ele é um anacronismo, um primitivo, um fóssil vivo. Ele é o último da espécie, o fim da linha para o homem” (idem). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 84 (i) — ... o sargento Getúlio que existiu, cujo nome eu tirei não sei por quê para pôr no título, (...) é mais uma figura compósita, (...) minha mãe tinha medo dele, porque Getúlio era um homem de bigodinho assim fininho, de costeletas, pintava as unhas!, quer dizer, pintava com esmalte transparente (...). Naquela época era preciso ser muito macho em Sergipe para fazer isso sem ser chamado de (...) maricona (...), era todo cuidadoso assim, maneiroso...151 (ii) ... um baixinho bigodudo freqüentava a casa da família Ribeiro em Sergipe. “Uma fera de manias delicadas da qual minha mãe tinha medo”.152 — Talvez obtenhamos ao final o mesmo Getúlio, porque essa visão extraliterária só faz corroborar a imagem do personagem e fortalecer toda a circularidade que a gente observa em seu pensamento, que não sai do lugar e está preso dentro de suas próprias premissas... — disse ele, tentando chegar a algum lugar. — Você me deu uma idéia... — e me animei. — Há um ponto no livro que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA me parece constituir o centro nervoso da memória de João Ubaldo Ribeiro. Nesse trecho, podemos — e frisei —, num movimento que é sempre arriscado, mas sempre necessário, detectar o local provável do ponto de vista original de todo esse memorialismo mesclado que é característico do livro... É como se encontrássemos, depois de todas aquelas camadas ficcionais misturadas com recortes biográficos, próximo ao final da história, o menino João Ubaldo Ribeiro, enfim, com menos de dez anos, lá colocado pelo próprio escritor, a observar o universo sergipano de todos aqueles homens bravos... Getúlio, já na ilha Barra dos Coqueiros, acompanhado somente do preso e às vésperas de levar tiros, relembra a sua conversa com o chefe, na casa do chefe, num tempo anterior ao tempo em que se inicia o romance.153 Vou ler a ficção e depois o depoimento do escritor. (i) ... Apois estou lhe dizendo que o homem que o senhor mandou em Paulo Afonso, numa noite aqui nessa sala mesmo, tomando um vermute, aquele homem 151 Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983. 152 Nahima MACIEL, “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997. 153 — E aponto, numa nota, o que escreveu a professora Stella Costa de MATTOS acerca do recorte temporal em Sargento Getúlio, cuja “narrativa começa in media res, segundo a convenção própria da épica clássica. Mais que uma fidelidade ao modelo, o uso do recurso pode dever-se a dois fatores: o desejo de manter na penumbra a ação perpetrada em Paulo Afonso (Bahia) e que dá início à intriga; o desejo de celebrar a terra natal do narrador (Sergipe). Ou a ambos” (“Um espaço mítico” (p. 54-62), in Sargento Getúlio — uma história de aretê, Pós-graduação em Lingüística e Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, dez. 1985, p. 54). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 85 que deixou o quepe pendurado nas costas de uma cadeira e pediu permissão para desabotoar a túnica e o senhor deixou e seu filho ficou olhando as duas cartucheiras e eu pedi um copo dágua e ele chamou a empregada e eu tomei a água e até na hora a barriga me coçou de lado e eu fiquei coçando e escutando, depois que bebi a água. Aquele homem... (Sargento..., p. 152) (ii) — ... e então Getúlio às vezes aparecia lá em casa, (...), minha mãe se benzia, “ai, meu Deus, Getúlio!”, mas eu adorava porque ele, Getúlio, tirava a túnica, a túnica da Polícia Militar de Sergipe tinha não sei quantos mil botões (...), ele pedia licença para tirar, para desabotoar tudo, porque era um calor brutal, e aí, quando ele abria aquele negócio, tinha uma cartucheira atravessada assim, outra cartucheira atravessada assim, tinha punhal, e tinha sovaqueira, que é o nome que se dá àquele coldre debaixo do braço, duas sovaqueiras!, rapaz, era um arsenal do exército de Canudos (...) ... E eu achava aquilo uma maravilha, eu adorava, era um fascínio para mim ver Getúlio...154 — Ubaldo coloca-se então no lugar do filho do chefe de Getúlio — disse ele. — E o pai de Ubaldo no lugar do chefe de Getúlio... São posições que podem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ser sugeridas, não a partir de informações biográficas, imagino, mas a partir da relação que mantêm os personagens e não-personagens com o poder... O que fazia realmente o pai de Ubaldo naquela época? — Cito declaração do próprio escritor: “Meu pai era pêssêdista [sic] (...), era mesmo o líder do PSD na Assembléia Legislativa, chegou a ser presidente, foi secretário de segurança, exerceu, inclusive, como se diz no Nordeste, a ‘governança’ do Estado, algum tempo, provisoriamente”.155 Mas João Ubaldo Ribeiro — frisei —, apesar de deixar clara a relação do romance com a infância em Sergipe, não quis, de modo algum, escrever a história daquele período da vida de seu pai, chefe de polícia à época: “Seu pai, explica, era um intelectual incapaz das atitudes de Getúlio”.156 Esse orgulho pela própria família, ao mesmo tempo poderosa e rodeada de sargentos e ao mesmo tempo um reduto da elite intelectual da época, a gente pode encontrar nA casa dos Budas ditosos, que eu mais uma vez cito por se tratar, claramente, de um romance de idéias onde a própria intelectualidade do escritor é a personagem-protagonista: João Ubaldo Ribeiro, ou melhor, a personagem de nome CLB, refere, nesse romance, os livros existentes 154 Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983. 155 Id. 156 Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 86 “na biblioteca de meu pai e na do de Norminha — mais um ponto para minha família, nossas famílias, aliás” (A casa dos Budas..., p. 40). — Você disse que Ubaldo não quis de modo algum escrever a história daquele período, mas acabou por traçar um eloqüente painel do que era a distribuição do poder, ou melhor, a concentração do poder, naquelas paragens e naqueles tempos... Ubaldo descreveu, de fora, é verdade, através do ponto de vista de um jagunço, os movimentos da classe política da qual o seu pai era um dos representantes... — e ele leu um trecho do Vale quanto pesa, do Silviano Santiago, que se refere a um outro período, mas que pode muito bem ser aplicado PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ao “tempo” da infância de Ubaldo. Nos nossos melhores romancistas do Modernismo, o texto da lembrança alimenta o texto da ficção, a memória afetiva da infância e da adolescência sustenta o fingimento literário, indicando a importância que a narrativa da vida do escritor, de seus familiares e concidadãos, tem no processo de compreensão das transformações sofridas pela classe dominante no Brasil (...). Tal importância advém do fato de que é ele — o escritor, ou o intelectual, no sentido amplo — parte constitutiva desse poder, na medida em que seu ser está enraizado em uma das “grandes famílias” brasileiras.157 — E ele ainda diz, em outra entrevista, dois anos e alguns meses mais tarde: “Sargento Getúlio é um romance engajado — persegui esta espécie de autobiografia fantasmagórica, mas com maior distância”.158 — Em que é que muda a sua visão do personagem Getúlio, e mesmo de todo o livro, depois de ter acesso a esse depoimento de Ubaldo acerca de si mesmo, menino, a admirar, fascinado, as cartucheiras do verdadeiro sargento Getúlio? — perguntou ele. — Consigo perceber uma circularidade maior do que eu percebia antes; maior porque ela engloba mais instâncias: a visão de Getúlio sobre si mesmo, lembremos do que disse a Cleonice Mourão acerca do monólogo, “... um discurso circular gerado pelo eu e absorvido pelo eu (...) e onde não há (...) qualquer produtividade do pensamento, já que se está preso a um único ponto de vista”.159 157 “Vale quanto pesa (a ficção brasileira modernista)” (p. 25-40), in Vale quanto pesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 31. 158 “Entrevista”, La Quinzaine Littéraire, Paris, abr. 1987 (citado por Zilá BERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 21). 159 “O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, op. cit. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 87 Essa visão de Getúlio acerca de si mesmo inclui outras: ele, como um menino, vendo-se a si mesmo, um mocinho que também é bandido, que vai revelar-se a mesma visão que tem o menino filho do chefe Acrísio Antunes, que vai revelar-se como sendo a mesma visão do menino João Ubaldo Ribeiro acerca dos homens que habitavam a casa de seu pai, Manoel Ribeiro, na década de quarenta, em Sergipe. Como Getúlio vê a si mesmo? — perguntei. — Como um menino o veria... Como potência total, ser imortal, Dragão Manjaléu... Diz ele a Luzinete, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA depois da morte de Amaro e já no começo de seu delírio: ... Posso dizer uma coisa que pensei quando eu estava lá no padre, mas escute calada, porque, se der risada, eu lhe dou uma porrada: eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu pai era brabo e meu avô era brabo e no sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu. Eu dou um murro na testa do carneiro que aparecer e o carneiro morre. (...) Eu sou eu. Meu nome é um verso: Getúlio Santos Bezerra, e de vez em quando eu penso que, não tendo ninguém melhor do que eu, tudo que pode me acontecer é melhor do que os outros. (...) Seu nome é um verso, disse Luzinete, e você nunca que vai morrer. (p. 136) — Você tem razão — disse ele, oferecendo-me um café. — Já olho para o sargento Getúlio como se o conhecesse mais... De todo modo, quero abrir aqui um caminho. Você disse há pouco que Ubaldo perseguiu uma espécie de “autobiografia fantasmagórica, mas com maior distância”, palavras dele, realces meus. — E continuou, retirando mais um livro de nossas incomensuráveis estantes: — Lembrei-me deste livro do Javier Marías, Literatura e fantasma, que li há tempos. No capítulo de nome “Autobiografia e ficção” ele aponta três modos de relacionamento para os universos da ficção e do material biográfico verídico. — E você me disse que não gostava deste tema... — Eu tenho o espírito aberto... Ouça. No primeiro modo o autor quer falar de si, de seu mundo e de sua geração e, ao mesmo tempo, por razões estéticas e éticas, não os quer, senão ficcionalizados, talvez porque acredite que, ficcionalizado, esse mundo se tornará mais eloqüente, mais universal — e ele leu. ... o resultado desse tipo de operação dependerá (...) sobretudo do talento literário do escritor em questão; mas (...) dependerá em boa medida de sua capacidade de elaboração desse material “verdadeiro”, (...) da sua capacidade para dissimular, disfarçar (...), ou afastar-se desse material. (...) ... que é 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 88 precisamente a intenção contrária ao que em princípio o tinha motivado, a vontade de dar testemunho.160 — O segundo modo é o do memorialista, e este não nos interessa aqui — disse ele —, e o terceiro modo de se lidar com as porções biográficas em literatura será através da postura do deixar estar... Não, a expressão não é dele; é minha mesmo. O deixar estar... é assim, e agora cito o Javier Marías: ... o autor apresenta a sua obra como obra de ficção, ou pelo menos não indica que não o seja; quer dizer, em nenhum momento se diz ou se previne que se trata de um texto autobiográfico ou baseado em fatos “verídicos” (...). No entanto, a obra em causa tem todo o aspecto de uma confissão e além disso o narrador lembra claramente o autor, sobre o qual costumamos ter alguma informação (...). O resultado deste malabarismo é de uma ambigüidade tão assombrosa que as suspeitas do leitor oscilam continuamente entre dois pólos (...).161 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Imagino que o caráter “fantasmagórico” da autobiografia que Ubaldo diz estar perseguindo com Sargento Getúlio tenha sua razão de ser justamente nessa capacidade de transformar o material verídico, ficcionalizando-o, dissimulando-o e afastando-o da autobiografia “real”, o que aproximaria o livro do primeiro modo. O que acha? — e ele sorriu. — Não apenas acho muito apropriada a sua citação, como digo que o terceiro modo exposto por Marías pode ser aplicado aos romances Setembro não tem sentido, o primeiro, e Diário do farol, por enquanto o último romance de João Ubaldo, e ainda ao romance A casa dos Budas ditosos, que eu estou chamando aqui, como eu já disse, de romance de idéias. Mas disto tratarei mais à frente... Quero agora penetrar na fantasmagoria da ficção e da memória em Sargento Getúlio — e me debrucei sobre as reportagens em cima da mesa. — Estamos vendo, e o escritor deixa isso claro..., que o romance é inspirado em sua infância... “... um retorno (...) ao universo de Sergipe, com sua brutalidade, seu primitivismo, ao qual dei uma dimensão mais ampla — ética e política”,162 diz ele. Mas de que maneira? Quais histórias inspiram quais histórias? João Ubaldo Ribeiro diz que Sargento Getúlio não configura a história de um único caso, mas um conjunto de 160 P. 63-70, in Literatura e fantasma, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1998, p. 67. 161 Id., p. 69-70. 162 “Entrevista”, La Quinzaine Littéraire, Paris, abr. 1987, p. 23 (citado por Zilá BERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 21). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 89 fatos resumidos numa história. “Tudo o que viu, ouviu ou soube procurou sintetizar no livro”,163 diz a matéria.164 E a linguagem? A própria figura do tal sargento Getúlio? O tema? Uma jornalista escreveu que o sargento Getúlio é “uma figura compósita, amálgama de uma porção de sargentos que João Ubaldo conheceu até aos dez anos”.165 E eu cito os três: o sargento Getúlio, o sargento Tasso e o sargento Cavalcante. — Encantado, é um prazer conhecê-los... E qual a função de cada um deles no desenvolvimento do romance? O verdadeiro Getúlio propriamente dito nós já PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA conhecemos... E os outros? — o meu interlocutor estava curioso. — ... Meu pai tinha vários sargentos (...). Esses sargentos na verdade eram uma forma burocratizada de jagunços (...), que eram necessários para a proteção da casa. (...) O sargento Tasso, alagoano como meu pai, era um sargento bem dentro de casa, fiel, que ficava com a submetralhadora no colo (...), era o que podia conviver com a família, com as crianças da família, era o homem de confiança, um sargento enorme, foi o homem que me contou a maior parte dessas histórias aí no Sargento Getúlio, enorme, simpático, uma pessoa boa, rude mas boa, ao mesmo tempo um facínora!166 Eu me lembro das mãos dele, duas mãos como duas tábuas...167 — O sargento Tasso foi a Sherazade de Ubaldo. Quando se esgota o arsenal de suas histórias, o escritor o mata ao final do livro... — Sim, uma boa relação... Mas o que me interessa mesmo é o tema da travessia — disse eu, animado. — A idéia de João Ubaldo Ribeiro de estruturar 163 “Sargento Getúlio (...) — sucesso de crítica...”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978. 164 — E disse João Ubaldo acerca dessas imagens de infância: “Minha infância em Aracaju foi ótima, tenho grandes lembranças. E, como não se pode voltar para casa, hoje não gosto mais de ir a Aracaju, porque nunca volto a Aracaju. Estive lá com Berenice, fui mostrar a ela a infância, não achei mais nada” (“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985). 165 Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984. 166 — “When I interviewed him in Brazil a few years ago”, disse uma jornalista, “Ribeiro explained that the real northeast macho types like Getúlio can be small, frail-looking creatures who suddenly turns into beasts”. E ela descreve João Ubaldo a transformar-se em personagem: “His voice quickly changed to a whine, à la Getúlio: ‘I don’t really kill people. God kills them. I just make the holes’” (Judy STONE, “Multicolored Brazilian History”, Review, 30 abr. 1989). E traduzo: “Quando eu o entrevistei há alguns anos, Ribeiro explicou-me que o típico macho nordestino, como Getúlio, pode ser pequeno, uma criatura de aparência frágil que de repente se torna uma besta fera”; “Sua voz rapidamente mudou para um gemido, a la Getúlio: ‘Eu mesmo não mato as pessoas. Deus as mata. Eu apenas faço os buracos’”. 167 Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 90 todo o livro sobre uma travessia também não é gratuita, mas inspirada numa outra travessia, cujas detalhes entreouviu de uma conversa de seus pais: ... um tal coronel Cavalcante,168 amigo de seu pai, por motivo passional ou político, tinha levado dezessete tiros em Paulo Afonso e continuava vivo. O pai de João Ubaldo, de Aracaju, conseguiu uma ambulância — coisa rara no local — e mandou buscar o amigo ferido, pelas estradas de terra. Isto há quase quarenta anos. Cavalcante chegou vivo, e só veio a morrer mais tarde, “assassinado por outro motivo”.169 — E Getúlio Santos Bezerra realiza também a sua travessia, não numa ambulância e à beira da morte, como Cavalcante, mas num “velho hudso” e caminhando, sem saber e depois já sabendo, para o fim. As dezessete balas do sargento da infância de João Ubaldo Ribeiro transformam-se nas catorze balas que Getúlio diz ter encravadas no corpo e que consigo carrega (p. 85). Figuram ambas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA as travessias como verdadeiros atos de heroísmo e ambas as travessias como resultado de uma ordem dos chefes, chefes diversos e ao mesmo tempo semelhantes, Acrísio Antunes ou Manoel Ribeiro. — E continuei: — Aplicando aqui as idéias de Javier Marías, que você tão bem apresentou, podemos observar com nitidez o funcionamento da dissimulação e do falseamento do material biográfico verídico, ou, nas palavras de João Ubaldo, a “autobiografia fantasmagórica”...170 Javier Marías — e peguei o livro — diz que o escritor confia, para o tratamento desse material de vida, num gênero literário determinado, neste caso o romance, ou a novela, sempre acreditando que é graças ao mecanismo do falseamento aplicado às vantagens do gênero que a sua história ganhará valor, um valor que a história, por si mesma, não teria, caso viesse ao mundo literário tal como veio ao mundo da memória individual...171 168 — Há matérias que falam no “sargento Cavalcanti” — fiz um parêntese. — É o texto do Luciano TRIGO, numa matéria para O Globo, “O sargento jagunço e assassino que iniciou João Ubaldo na literatura”, sem data. 169 Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983. 170 — Uma resenha, aliás, não assinada — eu disse, em nota —, menciona isso, referindo-se a Setembro não tem sentido: a “tentativa de uma catártica autobiografia espiritual” (“Uma Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968). 171 “Autobiografia e ficção”, op. cit., p. 67. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 91 — O seu trabalho, então — disse ele —, é duplo: ele deve lembrar-se de tudo e depois transformar a lembrança quase ao ponto de torná-la uma outra coisa, bastante diversa de sua origem... — Sim, e você me lembrou agora o pedaço de uma matéria sobre ele: João Ubaldo conta que teve dificuldade para sair do primeiro capítulo, reescrito umas dez vezes. Quando pensava desistir, apesar das cobranças do amigo jornalista, um dia bebeu um pouco mais (processo de criação que, diz, não recomenda a ninguém) e “desentalou” o segundo capítulo: — Daí por diante, todas as lembranças da minha infância, quando morava no interior de Sergipe e meu pai era deputado federal pelo PSD, começaram a se processar. A primeira (...) foi uma história que, menino, entreouviu durante conversa dos pais...172 — Trata-se, como vimos, da lembrança do caso do sargento Cavalcante, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA principal — disse eu —, a que deu origem ao tema da travessia... “Edgard, para onde o sargento Getúlio vai agora?”, pergunta o escritor ao amigo jornalista Edgard Catoira, que acompanhava a gestação do novo livro, enquanto abria em casa, à noite, o mapa do Estado de Sergipe, onde foi criado.173 “Quantas vezes eu perguntei a ele o que ia acontecer no livro e ele dizia: ‘Ah! o sargento agora dança...’. Se chamava Edgar, era uma menina ótima. Boneca paulista. Me deu muita sugestão para o livro.”174 — E continuei: — Observe que nós cercamos o romance por alguns lados: conseguimos encontrar um ponto originário de observação, o menino João Ubaldo Ribeiro na sala da casa de seu pai, em Sergipe, na década de quarenta, a assistir ao entra-e-sai de sargentos-jagunços, e, rumando então para o livro, o personagem, coadjuvante, mas essencial, do menino que é filho do chefe Acrísio, alter ego imediato do menino João, a observar, fascinado, a conversa entre Getúlio e o chefe. Com esses dois “jovens” observadores tivemos acesso às histórias principais do romance e aos pedaços biográficos verídicos que deram origem a um bom pedaço do Getúlio ficcional, o Santos Bezerra, cujo nome é um verso... — Bom resumo o seu... Mas o nosso Santos Bezerra não está completo... 172 Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983. 173 Id. 174 Renato PINHEIRO & OUTROS, “O sorriso do lagarto — João Ubaldo: um livro sobre o mal”, Jornal da Pituba, texto sem referência. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 92 — E nem nunca vai estar, mas podemos ainda apontar para mais dois outros pontos de vista sobre Getúlio: um deles, o ponto de vista do narrador, que vai fundir todas as histórias a uma específica linguagem, o “sergipês”, e atribuir isso a uma fala, a fala de um personagem que fala de si num tempo presente, sim, mas, ao mesmo tempo, recuperando um painel de informações, de memórias e de linguagens muito maior do que esse tempo presente do enunciado, um painel que não pertence a ele, pobre Getúlio, mas pertence a uma voz um cadinho anterior. Aí reside o narrador... Não, não faça esta cara... — E, pegando o livro do Tacca, li: — “Há um nítido contraste entre o tempo (brevíssimo) do personagem e o tempo (dilatado) do narrador”.175 — E continuei: — “... o caráter desse desajuste entre personagem e narrador”, diz ele, refere-se, “mais amplamente, a todo um modo de pensar, a uma ideologia, a certas convenções culturais, isto é, a uma cultura fundamentalmente literária”.176 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Não foi Getúlio quem recuperou e revificou aquele monólogo hamletiano. Getúlio teve-o à boca... Ouça o que também escreveu o jornalista e poeta João Carlos Teixeira Gomes, para quem Sargento Getúlio... ... foi construído sobre o suporte de uma poderosa linguagem, recriando, com alta competência literária, todo um universo mítico que marcou, com a sua saga de violência, a infância do autor. (...) O sargento departamentaliza o mundo, incapaz de compreendê-lo na sua abrangência e totalidade (...). (...) Na medida em que Getúlio vai-se exprimindo, é ele mesmo quem está sendo construído no discurso em progressão (...).177 — Você está se referindo então ao escritor João Ubaldo Ribeiro?... — De certo modo, sim — disse eu. — A superposição que você pretendeu, entre Getúlio e o narrador, fundindo-os, tento-a eu, mas entre o narrador e o escritor João Ubaldo Ribeiro, estes últimos muito mais próximos entre si do que os dois primeiros... Como escreveu o Javier Marías, num exercício de autoobservação, dê-me o livro: “O Narrador, que defini antes como alguém que 175 “O narrador”, op. cit., p. 83. 176 Id., p. 84. 177 João Carlos Teixeira GOMES, “Sargento Getúlio”, Jornal da Bahia, 30 nov. 1980, realcei. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 93 ‘poderia ter sido eu’, começava, por assim dizer, a não poder ser outro senão eu”.178 Esta é a minha penúltima ponte. — Este “poderia ter sido eu” significa que o narrador de Marías tinha muita autonomia, ou seja, poderia ser qualquer um, inclusive ele, Javier Marías. Mas esse mesmo narrador começou a compartilhar com ele, Marías, tantos elementos biográficos que se tornou um narrador que não poderia ser ninguém mais, a não ser ele, Javier Marías... O processo é de afunilamento. Ouça — e ele pegou o livro. — “Assim, num dado momento, precisei (sempre pensando mais no ponto de vista do leitor do que do autor) de uma prova convincente, algo que permitisse que o Narrador pudesse ser pelo menos Outro-além-de-eu” [sic].179 E o que faz ele, que não é casado e não tem filhos? — Casa-se e arranja uma ruma de filhos... O caso de João Ubaldo Ribeiro, aqui, é diverso, e por duas razões. A primeira: Marías não está fazendo uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA distinção entre o narrador em primeira pessoa e o personagem que diz “eu” em sua narrativa de si. Não nesse texto, pelos vistos. A segunda, que é decorrente da primeira — disse eu —, é a seguinte: Marías olha para esse narrador, portanto, muito mais como um personagem, na medida em que se baseia, tanto para dele se aproximar quanto para dele se afastar, em aspectos biográficos concretos desse personagem, que é antes personagem que narrador. Eu olho para o narrador em Sargento Getúlio não apenas como alguém que tem uma biografia concreta, porque a biografia concreta está toda com o personagem Getúlio, é a história de Getúlio... Eu olho para o narrador, como uma voz que só é capaz de dizer o que diz porque conviveu com sargentos semelhantes a Getúlio, porque teve contato com histórias tais como a história de Getúlio, porque viveu em Sergipe, porque ouviu e falou o chamado “sergipês” e ao mesmo tempo leu muito, e, asseguro-lhe, não em “sergipês”, mas em inglês e português castiço.180 Ou seja, não há o perigo 178 Javier MARÍAS, “Quem escreve” (p. 84-92), in Literatura e fantasma, op. cit., p. 89. 179 Id., p. 91. 180 — Que João Ubaldo Ribeiro não trata como línguas, ou maneiras de falar, excludentes — disse eu em nota, acrescentando um detalhe a esse aspecto do “sergipês” e também do português castiço e do inglês. — Ouça: “... se eu começasse a falar inglês, o pessoal todo da mesa ia entender, mas, se eu começasse a falar sergipês, o pessoal ia boiar. (...) se essas pessoas tivessem sido levadas aos clássicos da língua (...), se não manipulassem um vocabulário pop, cheio de psicanalês, sociologuês e adjetivos antes dos substantivos, compreenderiam tudo perfeitamente, pois um sergipano ignorante apenas estropia as palavras que pertencem ao nosso patrimônio histórico, que são nossas, que refletem nossa maneira de pensar e ver o mundo e (cont.) 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 94 de o leitor achar que João Ubaldo Ribeiro é o sargento Getúlio no sentido de que está contando a sua vida de sargento no Sergipe... Isso é óbvio. Agora... — e prossegui —, quando se faz a associação entre Getúlio e o escritor, como nesse caso: “Sargento Getúlio, diz João Ubaldo, fala sergipês. Da mesma forma que o romancista, que mantém forte sotaque (...). O personagem, diz ele, traduz a aguda consciência política e o lado fatalista do autor”,181 e num outro, já citado, em que a jornalista diz que eles, Getúlio-Ubaldo, no plano emocional, “são mabaças, nasceram juntos, no mesmo parto”...182 Quando se faz essa associação, pensa-se na força que aqueles onze primeiros anos de vida em Sergipe tiveram sobre o menino João e na força que poderiam ter tido, caso ele permanecesse lá. E chego agora ao último ponto de vista sobre Getúlio, que é o ponto de vista de João PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Ubaldo Ribeiro sobre si mesmo, a minha última ponte. Ouça isso — e li. — Em meados da década de 40, em Sergipe, eu vivia aquela coisa de nordestino e atrasado. A coisa era séria. Eu podia até matar alguém que falasse por brincadeira que eu era corno. (...) Minha família já tinha voltado para a Bahia. Eu tinha uns 12 ou 13 anos quando entrei para um colégio grã-fino. Minha família alimentava ilusões quanto ao meu futuro e me colocou lá para eu receber algum verniz na minha selvageria. Daí, um rapaz, o Sérgio (Cabral), que depois ficou meu amigo, me deu uma palmada. Me passou a mão na bunda. Eu estava acabado. Passei mais de um mês tentando matar aquele cara que tinha me desonrado. (...) Depois aprendi a conciliar o que eu achava certo com o que sentia que era certo. Aprendi a lidar com as contradições.183 — E quanto às contradições — disse eu —, está cá uma delas: esse mesmo menino que precisava de um verniz naquela selvageria de nordestino atrasado que era capaz de matar alguém que o chamasse de corno, esse menino já tinha lido da biblioteca de seu pai, aos doze anos, “com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare”, conforme já vimos.184 que, por isso mesmo, o colonizador transforma em língua estrangeira” (João Ubaldo RIBEIRO, “O analfabetismo erudito”, Enfim, texto sem referência). 181 Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983. 182 Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978. 183 Beatriz CARDOSO, “O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986, realcei. 184 Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 39. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 95 — Parece que estamos a ler um depoimento de alguém que Ubaldo poderia ter sido, um Getúlio Santos Bezerra, por exemplo, mas que acabou não sendo... — disse ele. — Sim. Quando eu afirmo que um dos pontos de vista acerca de Getúlio é justamente o ponto de vista de João Ubaldo Ribeiro sobre si mesmo, estou de certo modo olhando para o escritor como se ele fosse um personagem de si mesmo, sim, mas um personagem que ele acabou não sendo, porque o que ele acabou sendo foi o narrador que com tanta precisão compôs o universo lingüístico, ético e literário que rodeia Getúlio, Dragão Manjaléu, cujo nome é um verso... — Getúlio diz, mais próximo do final do livro: “Agora eu sei quem eu sou” (p. 154), “... agora eu sou eu...” (p. 152), “Eu sou Getúlio Santos Bezerra...” (p. 136). — Agora — interrompi-o — ouça isso: “Para ser bem pernóstico e imitar Flaubert”, disse João Ubaldo Ribeiro, “pode escrever aí: Sargento Getúlio sou eu. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Uma voz do inconsciente miserável”.185 — E repeti: “Sargento Getúlio sou eu”, diz João Ubaldo Ribeiro. E lhe pergunto: “eu” quem? — O narrador — e ele sorriu. — Fale-me do filme... — pedi, mudando levemente de assunto. 2.4. DO LIVRO AO FILME186 — E A VOLTA E MEIA — Bom, o filme, com roteiro de Hermano Penna e Flávio Porto, e diálogos adicionais do próprio Ubaldo, é de 1978.187 185 Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983. 186 — Hermano Penna definiu o seu filme — disse o meu interlocutor —, como “uma epopéia musical” e “a história de uma obsessão” (Antônio GONÇALVES FILHO, “Lima Duarte e a obsessão de um personagem”, Folha de S. Paulo, 22 mai. 1983). 187 — O filme de Hermano Penna — disse ele, acrescentando que eu deveria colocar essas informações numa nota de rodapé —, com o papel título na pele de Lima Duarte, ganhou em 1983 muitos prêmios: no Festival de Gramado, de Melhor Filme, Melhor Ator Principal, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Som. E há um detalhe curioso... — continuou. — Além do Lima Duarte, há no filme, segundo Susana Schild, apenas dois outros atores profissionais: Flávio Porto, como o padre, e Fernando Bezerra, como o preso. “Orlando Vieira, como o motorista que acompanha Getúlio e escolhido melhor coadjuvante, era na época da filmagem funcionário do DNER da cidade”, diz ela (“Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983). — E ele continuou a elencar os festivais: — No Festival de Havana, prêmio Especial do Júri e de Melhor Ator; no Festival de Locarno, prêmio de Melhor Direção; no Festival de Nantes, Sargento Getúlio ganhou os prêmios de Clubes Unesco e da Crítica. Ganhou ainda o prêmio Air France, de Melhor Ator; o Prêmio APCA, de Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Direção; e o Prêmio Gov. do Estado, de Melhor Filme e Melhor Ator. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 96 — A propósito dos diálogos adicionais — interrompi-o —, observe aqui a des-solenização de João Ubaldo Ribeiro mais uma vez em ação. — E li uma matéria: “... eles [Hermano Penna e Flávio Porto] pediram palpites no roteiro: ‘O que eu faço com essa porta, João?’. Eu dizia: ‘Ah, fecha ela, que eu acho que fica bom’. Colaborei, no máximo, com umas quinze linhas, que, na tela, constam como ‘diálogos adicionais por João Ubaldo Ribeiro’”.188 E, segundo o texto, ele ainda imposta a voz...189 — Livro e filme — disse ele —, a despeito de serem intrinsecamente diversos do ponto de vista da linguagem de que se valem para a expressão de seus sentidos, livro e filme caminham, neste feliz caso de adaptação, bastante próximos. Pode-se dizer do filme que é, tal como o livro, bastante literário; literário em seus diálogos, em suas descrições, em sua maneira de estruturar-se dentro do tempo narrativo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — O que é que você quer dizer com isso? — Que a utilização de convenções narrativas e dramáticas não é exclusiva do cinema ou da literatura, e isso quem explica é Ismail Xavier — disse ele, todo professoral e retirando mais um livro de nossas compridas estantes.190 Mesmo se assim não fosse, mesmo que não encontrássemos nesse filme modalidades narrativas semelhantes às do livro, ainda assim perceberíamos a presença, entre livro e filme, de um cabo firme e pulsante a torná-los, ao livro e ao filme, perfeitamente comunicantes.191 Segundo o próprio diretor, Hermano Penna, “... 188 Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983. 189 — Ouça ainda isso — disse ao meu interlocutor, em forma de nota de rodapé. — João Ubaldo numa entrevista: “Lá no filme tem que eu fiz os diálogos adicionais. Nada, só fiz cinco linhas, porque precisaram de uma porra lá e pediram para eu escrever. Eles são loucos” (Renato PINHEIRO & OUTROS, “O sorriso do lagarto — João Ubaldo: um livro sobre o mal”, Jornal da Pituba, texto sem referência). 190 Ismail XAVIER, “A decupagem clássica” (p. 19-30), in O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, 2ª ed. revisada, Rio de Janeiro, Paz e Terra — Cinema, 1984, p. 24. 191 — Interrompo-o para citar, em nota: “No texto de João Ubaldo (...), existe uma certa vontade de ser imagem. Vontade de falar de tudo ao mesmo tempo, de revelar de uma só vez a figura em primeiro plano, a paisagem no fundo e as coisas secundárias que se percebem com o canto dos olhos. Na imagem de Hermano Penna (...), existe uma certa vontade de ser texto” (José Carlos AVELLAR, “Livro depois do filme, filme depois do livro”. Jornal do Brasil, 9 abr. 1983). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 97 nossa preocupação foi a completa fidelidade ao livro.192 Não escondo que o filme é um documentário sobre o livro”, diz ele.193 E amplio este meu comentário... — A fidelidade do diretor e do roteirista, desculpe interrompê-lo mais uma vez, foi, na visão de João Ubaldo Ribeiro, quase acrítica, pelo menos se levarmos em conta o roteiro geográfico percorrido pelos personagens... — disse eu.194 — Ouça agora o escritor a revelar o processo randômico da construção do trajeto... — Eu disse a eles que escrevi o livro jogando feijão no mapa, com a assessoria do Edgar, e eles seguiram o roteiro inteiro. Eu abria um mapão do Sergipe que tinha lá em casa, a geografia humana do estado do Sergipe, e jogava os feijões. Aí caía: Jaboatão. E eu botava na história: Jaboatão...195 — Isto é Ubaldo, mais uma vez, a desmistificar o seu processo de escrita, numa clara alusão à mistificação que ele deve observar nos textos acadêmicos... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — disse ele, e voltou à frase que eu havia interrompido. — E amplio este meu comentário anterior — repetiu — com um comentário de Orlando Fassoni, que, por sua vez, também amplia sobremaneira o alcance do filme, tratando como muito mais que um documentário sobre o livro: ... Getúlio é um dos personagens mais comoventes surgidos no cinema brasileiro desde A hora e vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. (...) Temos com ele, no filme, um painel rigoroso do universo mental do homem nordestino, uma espécie de enciclopédia do pensamento inconsciente do homem dos sertões, de suas contradições existenciais, de sua obstinação e da visão trágica de um ser humano que marcha, inexoravelmente, para a destruição.196 — Parece-me que a preocupação, no romance, de descrever um ambiente, um personagem, uma ação, a preocupação de explicitar uma série causal de 192 — Segundo a crítica e jornalista Susana Schild, essa fidelidade é um dos orgulhos de Hermano Penna — disse ele, indicando que o comentário deveria vir em forma de nota (“Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983). 193 Maribel PORTINARI, “Sargento Getúlio: a epopéia sergipana do capanga e seu prisioneiro estréia hoje no Rio”, O Globo, 30 mai. 1983. 194 — Sim, sim — disse-me o meu interlocutor naquilo que será uma nota —, e o mesmo roteiro percorreu o próprio Hermano Penna, que, “durante um mês”, diz a Susana Schild, “refez o percurso de 200 km, no qual se revela o nordestino desterrado” (“Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983). 195 Renato PINHEIRO & OUTROS, “O sorriso do lagarto — João Ubaldo: um livro sobre o mal”, Jornal da Pituba, texto sem referência. 196 Orlando FASSONI, “Sargento Getúlio”, Embrafilme, Os anos Embrafilme, p. 141-142. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 98 acontecimentos, a preocupação, em suma, de contar uma história, se revela secundária. Você diria o mesmo do filme? — Sob certo sentido, sim; sob outro sentido, não, dadas as características da própria linguagem cinematográfica, que, afinal, produz e manipula imagens. O filme, mesmo assim, manteve-se literário e conseguiu manter a linguagem de Getúlio, e a imagem aqui revela-se bastante apropriada — disse ele —, em primeiríssimo plano, soberana e estruturadora. E, como bem observou Susana Schild, não se pode falar em “adaptação para o cinema, mas em documentação de um livro. E, como no livro, o filme não tem ‘ponto final’”, diz ela.197 — Escolha as melhores seqüências do filme e desenvolva — pedi, interessado em realizar, na tese, essa leitura comparativa. — Por que não fazer o caminho inverso? Por que não partimos do livro e só então nos debruçamos sobre o filme, com o intuito de ver como este funciona PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA em relação ao livro? — Porque já falei muito do livro, porque o livro deu origem ao filme, o livro se revela a base a partir da qual se sustenta o filme, que, por sua vez, constitui um a posteriori em relação ao livro. O filme, sob todos estes aspectos — disse eu —, é uma conseqüência do livro, no sentido de que nele se inspira, aproveitando para si determinados momentos, aspectos e soluções encontradas no livro, e descartando outros tantos. — E eu sorri: — Você disse lá atrás que tem o filme todo na cabeça... — Bom, tenho mesmo... — e ele suspirou. — O filme causou lá o seu reboliço...198 Bom, há então a primeira seqüência, os primeiros dez minutos do filme — começou ele —, que podem ser representados por essa fala de Getúlio: “Quando estou pensando, estou falando, quando estou falando, estou pensando”. Imagino que o filme e o livro comecem praticamente no mesmo ponto, e esta primeira seqüência deve ter lugar, então, no capítulo primeiro. O filme, em 197 198 “Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983. — “A grande surpresa do festival (...) [XI Festival de Cinema de Gramado] foi Sargento Getúlio, de Hermano Penna” — e ele leu. — “Está todo centrado no desempenho de Lima Duarte, que faz o papel principal. No consenso da imprensa que cobre o festival, é o único filme que merece o primeiro prêmio. Os aplausos após a apresentação (...) comprovaram que Sargento Getúlio desponta como o grande favorito, não só como melhor filme, mas para o prêmio de melhor ator, que certamente será arrebatado por Lima Duarte” (Juarez PORTO, “XI Festival de Cinema de Gramado — A Mostra chega ao fim com o público decepcionado”, Jornal do Brasil, 26 mar. 1983). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 99 seguida à música de abertura, abre-se à visão de um carro a viajar à noite, no escuro, e em seguida ao interior do carro, o velho dodge. Sentados no bando de trás, Getúlio e o preso; à frente, Amaro, silencioso, ao volante. Alterna-se esta cena com imagens do espaço do lado de fora, a mostrar aquilo que o farol do carro ilumina: casas pobres, com suas portas e janelas cerradas. Getúlio vai mentalmente enumerando os vilarejos por onde já passaram e ainda vão passar, dando a entender que a viagem será longa e cansativa. Esta seqüência do carro à noite, em movimento — prosseguiu o meu interlocutor —, ainda cumprirá a função de apresentar bem o nosso homem e deixar clara a situação de terror que se abate sobre o preso. O revólver de Getúlio está empunhado, de modo a que já se tenha uma idéia de que tipo de situação se está a viver naquele carro. A luz que se projeta sobre a cena é quase nenhuma, o sertão está que é uma escuridão só, e as poucas zonas de luz incidem de modo aleatório sobre os rostos suados e cansados PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA do sargento e do preso, mantendo-os a ambos, na maior parte do tempo, na treva. — Não se vê o sertão, mas é como se lhe sentíssemos os cheiros... — E citei o Ismail Xavier: — O espaço cinemático compreende dois tipos de espaço, explica Noel Burch, “aquele inscrito no interior do enquadramento e aquele exterior ao enquadramento”.199 — Sim. O que há fora do enquadramento são o sertão e sua negrura básica. E por que fica o sertão tão presente, embora dele não se veja nada? — E ele, tirando-me o livro das mãos, respondeu a si mesmo: — “... o espaço diretamente visado pela câmera poderia fornecer uma definição do espaço não diretamente visado, desde que algum elemento visível estabelecesse alguma relação com aquilo que supostamente estaria além dos limites do quadro”, responde Ismail Xavier.200 O elemento visível a estabelecer uma relação é justamente o breu, o fator a invisibilizar todos os demais elementos. Pode-se ainda observar nessas cenas — continuou ele — o fenômeno conhecido, ainda segundo Ismail Xavier, como câmera subjetiva: “A câmera é dita subjetiva quando ela assume o ponto de vista de uma das personagens, observando os acontecimentos de sua posição e, 199 Práxis do cinema (tradução portuguesa do Práxis du Cinéma, Paris, Gallimard, 1969), citado por Ismail XAVIER, “A janela do cinema e a identificação” (p. 11-18), in O discurso cinematográfico..., op. cit., p. 13. 200 “A janela do cinema e a identificação”, op. cit., p. 13. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 100 digamos, com os seus olhos”.201 Neste caso uma câmera subjetiva de efeito atenuado. Em muitos casos, a operação da câmera subjetiva não é percebida conscientemente pelo espectador, explica Xavier. “É neste momento que o mecanismo de identificação se torna mais eficiente (...). Nosso olhar, em princípio identificado com o da câmera, confunde-se com o da personagem; a partilha do olhar pode saltar para a partilha de um estado psicológico”202 — disse ele, realçando a última frase. — Os primeiros planos do sargento e do preso estão supostamente revelando os olhares de ambos um sobre o outro, e esses olhares se confundem com o nosso. A intensificar esse efeito temos, dadas as péssimas condições da estrada, o sacolejo do carro. A imagem vista está às sacudidelas porque quem a vê também sacoleja, já que a câmera sacoleja e tudo sacoleja, e pela estrada afora sacolejamos todos, porque, como observou José Carlos Avellar, “o cinegrafista vai ali dentro, meio repórter, meio olheiro, meio espião, que vê a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA cena sem ser visto, que se coloca dentro da ação, mas entre parênteses”.203 O efeito é imediato: somos transportados para dentro do velho dodge e passamos a compartilhar o destino daqueles três homens. Getúlio olha para o “pirobo semvergonho” e o xinga, demonstrando assim todo o seu desprezo por suas condições, digamos, sócio-intelectuais. Diz o sargento, no filme, fazendo uma careta de desdém: “Tem ginásio!... Tem ginásio!... Nunca vi ginásio dar caráter a ninguém!”. Quando olha para o preso, Getúlio está quase a olhar para a câmera, com um pequeníssimo desvio.204 — Trata-se de um movimento de inserção gradual do espectador na própria interlocução... Estamos na pele dos dois, alternadamente. — Sim. Em seguida à muita falação, Getúlio e Amaro interrompem a viagem, amarram o preso a um pedaço de pau iluminado pelos faróis do carro, acampam no mato, fazem um fogo e conversam. A segunda seqüência que 201 “A decupagem clássica”, op. cit., p. 26. 202 Id., ibid. 203 “Livro depois do filme, filme depois do livro”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983. 204 — Uma pequena informação — interrompi-o, para abrir uma nota. — O olhar de um ator para outro foi, aos poucos, com o passar do tempo, se deslocando em direção à câmera. Ouça o que escreve Jean-Claude Carrière: “Nos anos 60, o ator olhava para um rosto encostado à câmera. Nos anos 70, ele olhava para a própria borda do aparelho. Hoje em dia, olha para um pedaço de fita presa ao lado da lente” (“Algumas palavras sobre uma linguagem” (p. 13-49), in A linguagem secreta do cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 31). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 101 escolho, deixe-me ver... — e ele fechou os olhos. — Podemos dizer que pode ser representada pela fala de outro personagem, o Elevaldo, que diz: “Acontece que tem de deixar o homem uns tempos na fazenda do Nestor Franco”. — Isto se localiza no capítulo terceiro do livro, um capítulo essencialmente acontecimental — esclareci —, bastante diferente do segundo, mais estático de ações e somente dedicado às reminiscências do sargento, o que equivale a dizer, talvez, algumas boas reminiscências de João Ubaldo Ribeiro. — Bom, essa cena mostra um resto de fogueira no chão e o carro parado no meio de lugar nenhum. O ponto de vista da cena é o do preso, amarrado em frente ao fogo da véspera. Getúlio amanhece seu primeiro dia com o início do que será a reviravolta em sua viagem. É comunicado pelo Elevaldo, surgido do meio do mato, que o trio deve fazer uma parada estratégica na fazenda de Nestor Franco. “Os jornais estão fazendo um barulho danado, vai chegar força federal em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Aracaju”, avisa Elevaldo, limpando suor da nuca com um lenço. E ele arremata: “O Chefe disse na rádio que não prendeu ninguém”. A câmera alterna entre Getúlio e Elevaldo, num plano americano. — E com a resposta de Getúlio podemos perceber toda a ingenuidade de sua alma — arrisquei —, completamente ausente, excluído e ignorante do tipo de poder que o cerca por todos os lados. Imagino que no filme ele também diga: “Ele mesmo não prendeu, quem prendeu foi eu” (p. 46), não é? — Sim, e o preso, diante de tal disparate, de tal falta de noção acerca da geografia do mando e do desmando naquelas paragens, arrebenta numa gargalhada. Através das palavras de Getúlio, “ele mesmo não prendeu”, podemos perceber a importância que terá, em toda essa história, a presença física do chefe, ou melhor, a ausência de sua presença, uma ausência que será determinante para que Getúlio se mantenha convicto da necessidade de terminar sua missão, uma vez que o chefe, ele mesmo, ainda não lhe disse nada, e nem lhe dirá... — E ele continuou: — Encorajado pela ingenuidade de Getúlio, pelo olhar simplista e infantil de seu algoz, o preso... — ... o “fidumaégua, fidumavaca, fidumajega” (p. 27) — citei. — ... abre a boca pela primeira vez, cheio de si e coragem, com uma segurança até então inédita para nós, ainda rememorados de sua expressão de grande medo na seqüência anterior, no carro, à noite, e faz então uma proposta ao sargento: esquecer tudo, cada um indo para um lado, e ficando tudo na “santa 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 102 paz”. Assim que ouve a “gaitada” e, em seguida, a proposta do “pirobo semvergonho”, Getúlio reage com visível irritação à proposta do “fidumaégua”; uma irritação tão grande que chega ao ponto de enumerar os tipos de morte que pretende aplicar ao seu preso... — Isto ocupa toda a página 49... — A câmera desce e mostra o sargento a partir de baixo. Somos nós a olhar para Getúlio, sim — continuou o meu interlocutor —, mas não através dos olhos do preso, porque a câmera não está exatamente sob o seu ponto de vista físico, mas sob o seu ponto de vista psicológico. A câmera posiciona-se um pouco à direita do preso, que permanece amarrado a um pau, indefeso, e filma Getúlio de baixo, tornando-se o sargento grande e ameaçador, com sua expressão de insanidade nos olhos. — O fato de o livro se apresentar como um monólogo de Getúlio e dele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA não conseguirmos escapar por um só instante, somente, talvez, no instante final, em que o sargento cala a boca, mas aí o livro acaba... — E concluí: — Isto nos priva de experimentar esse jogo de pontos de vista que o filme aciona. Se o filme levasse a cabo, de modo radical, a proposta de focalização do livro, jamais veríamos a figura de Getúlio, a não ser no espelho, de vez que nós seríamos Getúlio e enxergaríamos o mundo pelos olhos dele. Uma câmera autodiegética... — Sim, através do filme, somos várias personagens; através do livro, somos apenas um. Veremos o mundo, em outras tomadas, sob a ótica do oprimido, o que podemos chamar o olhar da vítima, instrumentalizado no recurso da câmera subjetiva. Há momentos exemplares — disse ele —: um pouco depois do aparecimento de Elevaldo, com o nosso trio a chegar à fazenda de Nestor. O preso não viaja dentro do carro, mas fora, puxado como se levassem, à traseira, um jegue. Amarrado a uma corda, tenta acompanhar o veículo e segue tropeçando. A câmera refaz o movimento e a trepidação que seriam característicos do andar do preso, como se de fato estivesse a pisar em pedras e a meter o pé em buracos. A câmera não está propriamente no seu ponto de vista, mas o movimento trepidante que a acompanha, sim. Outro momento? A punição aplicada à filha de Nestor, flagrada a esfregar-se ao “fidumaégua”. Grita o pai, entre uma e outra chicotada: “Mulher que viu homem nessas condições é rapariga! Ou vai ser!”. A câmara treme e mostra-nos o pai de frente, a olhar para a menina, quer dizer, para nós, em meio a uma imagem enevoada, tremida e bastante aproximada. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 103 — Sentimos nós a força do manguá... — Ô... Mais um momento? O da quebra dos dentes... — E o meu interlocutor prosseguiu: — Do mesmo modo que a menina, o preso também é castigado. Getúlio aproxima-se, e podemos enxergar “o pirobo semvergonho” sentado no chão, amarrado, através das pernas abertas de Getúlio, na imagem invertida de um “V”. Não estamos dentro dos olhos do preso, mas sim à mesma altura em que ele se encontra, como se estivéssemos nós também sentados no chão, de frente para o prisioneiro, e o sargento surgisse por cima de nossas cabeças, e avançasse. Um pouco antes, estão os homens na varanda, a deliberar que tipo de punitivo seria aplicado. Nesta cena, a câmera adota posicionamento diverso: sobe e mostra os homens por cima, a debater crueldades. Sob este ângulo, tornam-se, aos nossos olhos, pequenos, mesquinhos e ridículos no exercício de seu poder covarde. O momento mais radical, no entanto, configura o da degola do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tenente. Getúlio é chamado de corno e, em meio a um tiroteio, consegue isolar-se num duelo à faca com o oficial. — No livro, não há faca; há uma pedra. — E li: — “... uma pedra como que uma pedra de calçamento e agarro essa pedra e com uma raiva que nem sei (...), olho bem assim para a cara dele e solto a pedra na cara dele com toda a força que eu tenho” (p. 75). — A cena é tensa, ilustrada com uma música rápida e ritmada, enquanto a câmera inicia uma série de movimentos circulares à volta dos duelistas. Getúlio derruba o sargento, espeta-lhe várias vezes o tórax com o facão e o encara, encarando a nós, quase num primeiríssimo plano. Um segundo depois, lança mão do facão e começa a degola. A música, até então intensa, diminui de som e velocidade, até extinguir-se por completo, juntamente com o descolamento da cabeça, numa evidente referência à hipótese, por óbvias razões nunca comprovada, de que num caso de decapitação o sentido do olhar é o último que se vai. A cena torna-se inteiramente silenciosa e o que se vê é a expressão insana de Getúlio, a mirar sua vítima. O infeliz espectador, portanto, na radicalíssima e desconfortável posição do degolado, perde e audição, mas não a visão. Em seguida, Getúlio pega a cabeça pelos cabelos e a atira para o alto. — Corta! — pedi. E disse: — No fundo, no entanto, é Getúlio, e sabemos disso pelo livro, quem sente medo de sua presa, um medo tal que o fez lembrar-se de ninguém menos que o diabo. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 104 — Pois. No filme, esse medo de Getúlio e essa associação do preso com os estranhos e impalpáveis elementos do mundo e do submundo ficam claros quando, já à mesa de Nestor, o nosso sargento diz, referindo-se ao cabra, lá, amarrado: “Isso não é coisa boa. Isso não é peça que preste. Para mim, é bicho, seu Nestor. Para mim, isso daí vira lobisomem”. Passo agora à terceira seqüência que considero relevante — disse ele —, que pode ser representada pela seguinte conversa: “Tirando bicho de pé, seu Getúlio?”, “... não sei mais o que eu podia estar fazendo com uma agulha na mão e o pé para cima”. Nesta seqüência, Getúlio já chegou à fazenda de Nestor, já almoçou e está parado, “Isso aqui me dá uma agonia...”, a pensar sem destino, a pensar em vacas, em bois e em jias, enquanto tenta retirar um bicho de pé do dedão. — Vejo então que o filme torna linear o que no livro está cronologicamente fora da ordem. No livro, o descanso na varanda de Nestor, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tirar o bicho de pé, permite a Getúlio que se sente, pense e empreenda toda a rememoração que formou a seqüência anterior, uma rememoração que começa na página 45, com Elevando chegando e o preso gargalhando e fazendo a proposta ao sargento, e termina na página 49, desse modo: “... e assim foi, até que se chegou na casa e se instalamos e eu estou aqui com essa me olhando e querendo saber se eu estou tirando bicho do pé. Um fastio aqui”. — Sim. No filme, o descanso na varanda cumpre a função de ambientar Getúlio em sua nova parada e expor mais algumas características de sua personalidade e da de Amaro, quais sejam, a indisposição do sargento para ficar parado, sem nada o que fazer, pensando em como desgosta de bois e vacas. — E ele leu: — “... eu não me dou com vaca, é um bicho burro, e anda de cara baixa...”; e, por outro lado, a tranqüilidade de seu compadre, “cortando tiririca, mordendo tiririca, lascando o dedo na tiririca”. A cena na varanda de Nestor parece-me paradigmática do tipo de solução discursiva desenvolvida no filme: pensamento em modo de elaboração, ou seja, voz em off; e pensamento em modo de expressão, ou seja, fala. Quer mais café? — perguntou ele. — Faz tempo que não tomamos café... — E seguiu: — Num determinado momento do não-fazernada-de-Getúlio, ali, ao lado de Amaro, surge por trás a filha de seu anfitrião, Nestor, e lhe pergunta, dengosa: “Tirando bicho de pé, seu Getúlio?”. — No livro, em seguida ao travessão que caracteriza a pergunta da menina — acrescentei —, Getúlio reinicia seu monólogo, dizendo, ou melhor, pensando: 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 105 “Estou tirando bicho do pé, não sei mais o que eu podia estar fazendo com uma agulha na mão e o pé para cima, só se quisesse costurar os pés. Não gosto do jeito dela” (p. 43). O filme então opta por mostrar essa resposta de Getúlio sob a forma de um pensamento, não é? Essa opção configura a essência da potente literariedade observada na adaptação. — Sim — disse ele. — O sargento, com cara de poucos amigos, encara a menina, encarando a nós, e apenas mantém longamente o olhar. Enquanto isso, ouvimos seu pensamento através da voz em off. Para Getúlio, pensar ou falar não constituem atos assim tão diferentes, tanto é assim que ele muitas vezes completa, falando, um pensamento. Quem está fora de sua cabeça, ou seja, todos, menos nós, espectadores e leitores, não entende nada, justamente porque pegou o pensamento no meio do caminho. Um outro exemplo — continuou ele, feliz por estar falando do filme e, especificamente, dos pontos de vista desenvolvidos ao PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA longo do filme —: ainda sentado na varanda de Nestor, ao lado de Amaro, Getúlio pensa, referindo-se ao preso: “Ainda mais o peste na sala fazendo cumprimentos...”. Em seguida diz em alto e bom som, a imitar a voz do “fidumaégua”: “Boas tardes para todos!...”, para em seguida voltar a pensar, lá consigo, ensimesmado: “É uma finura...”. Amaro, que só ouviu o “Boas tardes para todos!...”, não entendeu nada... — Estou impressionado com a sua memória... — eu disse, pensando na minha sorte em ter encontrado, por acaso, um interlocutor tão apropriado... — Esse filme me marcou. — E ele, ansioso para prosseguir, prosseguiu: — O efeito desse tipo de recurso sobre o espectador é imediato: gera intimidade. De certo modo, e guardadas as proporções e os feitios de cada uma das duas linguagens, a mesma intimidade criada pelo monólogo literário, imagino... — Concordo. O efeito da intimidade produz uma conseqüência decisiva para toda a compreensão do livro, ou do que podemos chamar “o complexo Getúlio”. A partir do momento em que começamos a nos sentir íntimos de nosso herói, somos, afinal, capazes de ler e ouvir seu pensamento, já que habitamos o vazio de sua cabeça... A partir desse momento, todo o nosso julgamento moral acerca dos seus atos de violência se torna subitamente dificultado, e a questão do romance deixa de ser simplesmente uma questão dicotômica dividida entre o preso, a vítima; e Getúlio, o carrasco. Getúlio torna-se, então, complexo, e 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 106 começamos a gostar dele, não é?205 As resenhas norte-americanas, de modo geral, focalizaram esses dois aspectos do livro: a dificuldade de se estabelecer um juízo acerca do personagem e a dificuldade de se criar um personagem que seja fiel a um conjunto de valores e não seja, ao mesmo tempo, uma caricatura obsessiva. Encontrei outros exemplos que abordam isso, especialmente o último. Ouça — e li, traduzindo em nota. (i) ... when Getúlio defies the new orders in an attempt to rightously pursue his goal, that he begins to turn from a ghastly, violent figure into a sort of moral hero.206 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (ii) Getúlio is clearly a monster and hero at the same time, and Ribeiro’s large achievment is to keep us wondering how exactly this can be. How ideology can suddenly seem like biology — and Getúlio (and this book) like a strong, strange mutant.207 (iii) ... he makes us bleed for this barbarian, even respect him. (...) “Created” is the key word here. Ribeiro has created not only a remarkable man, but a distinct sensibility in which violence and a sensuous appreciation of the physical world seem effortlessly blended.208 (iv) Vicious though the Sergeant often is, he is not without warmth of feeling. The impressive juxtaposition of monstrous threats and a fever of lyricism, as Getúlio records his responses to the misty mornings by the mountains, lends him the same disturbing ambivalence that we find in Camus’s Meursault.209 205 E me lembrei de uma crítica de jornal: “Ubaldo Ribeiro is remarkably adept at presenting the repellent world of the sergeant in an often poetic fashion: the fantasies and reflections of the sadistic protagonist acquire at times power and originality” (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, Brary Journal, 15 jan. 1978). E traduzo: “Ubaldo Ribeiro é um notável perito em apresentar, de uma forma freqüentemente poética, o mundo repelente do sargento: as fantasias e reflexões do protagonista sádico adquirem por vezes força e originalidade”. 206 — “Quando Getúlio desafia a nova ordem numa tentativa de perseguir com justeza seu objetivo, ele começa então a transformar-se: de uma horrível e violenta figura a uma espécie de herói moral” (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, Chicago, 15 fev. 1978). 207 — “Getúlio é claramente um monstro e um herói ao mesmo tempo, e a grande façanha de Ribeiro é nos manter perguntando como exatamente isso pode se dar. Como a ideologia pode de repente nos dar a impressão de ser como a biologia — e Getúlio (e o seu livro) como um poderoso e estranho mutante” (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, The Reviews, 15 nov. 1977). 208 — “Ele nos faz sangrar pelo seu bárbaro, até mesmo respeitá-lo. (...) ‘Criado’ é a palavra chave aqui. Ribeiro criou não apenas um homem notável, mas uma bem definida sensibilidade na qual violência e uma sensual valorização do mundo físico parecem empenhadamente misturadas” (Peter S. PRESCOTT, “A Good Barbarian”, Newsweek, 30 jan. 1978). 209 — “Se o Sargento é frequentemente maldoso, ele não o é sem o calor de um sentimento. A impressionante justaposição de uma monstruosa ameaça e uma febre de lirismo, como Getúlio a registrar suas respostas às manhãs enevoadas nas montanhas, empresta a ele a mesma ambivalência incômoda que podemos encontrar no Meursault, de Camus” (Adam FEINSTEIN, “No nobody he”, The Times, Londres, 13 jun. 1980. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 107 (v) ... how can we find a personal code that will enable us to live with honor and self-respect? That question has always bedeviled American writers.210 — Bem e mal redistribuem-se — continuei —, tornando-se tanto Getúlio quanto o preso vítimas de suas circunstâncias. A discussão sobre o poder em Sargento Getúlio adquire, então, novos contornos. Getúlio passa a ser não apenas o símbolo de um espírito autoritário presente em alguns momentos de nossa história política: o período do Estado Novo, de 1937 a 1945, e o regime militar pós-1964, como também a representação microscópica de uma violência ainda maior, o que nos permitiria demarcar aqui uma pequena geografia do poder a envolver os personagens: o “poder dos donos da política” e ainda alguns outros poderes espalhados entre todos: o poder de Getúlio sobre Amaro; o poder de Amaro sobre Getúlio; de Getúlio sobre o preso; do preso sobre Getúlio; o poder PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA da terra hostil sobre todos os homens... — E eu pedi: — Dê-me mais seqüências. — “Por que vosmecê não some?” — recitou o meu interlocutor. — “Eu sumir, eu sumir? Como é que posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca”. — Essa impossibilidade de entender o sumiço como um evento que só pode se dar em relação aos outros — interrompi-o —, que não se pode simplesmente sumir, mas somente sumir das vistas de alguém, pode ser aqui eleita como a representação perfeita do absurdo inerente à condição do narrador intradiegético autodiegético. Getúlio olha para si mesmo como se visse a si mesmo de fora, e por isso não consegue conceber que ele próprio desapareça, porque desaparecer vai significar desaparecer ele mesmo das próprias vistas, e isso só pode acontecer com os outros... Ele não pode nunca deixar de ver a si mesmo... — eu disse. — ... e de narrar a si mesmo... — completou. — Outra maneira de dizer que Getúlio está preso à linguagem, ao pé da letra da linguagem... “Por que vosmecê não some?” é, de fato, uma pergunta absurda, se levada à risca... — Isso me lembra o comentário de um jornalista americano — e li. — “A sympathetic, shotgun-toting priest urges Getúlio to abandom his mission and 210 — “... como podemos encontrar um código pessoal que nos permita viver com honra e autorespeito? Essa questão sempre atormentou os escritores americanos” (Scott Sanders, “Three new novels hunt for a code of morals”, texto sem referência, 4 mai. 1978). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 108 disappear. But Getúlio replies with a logic that Gertrude Stein would have envied: ‘How can I disappear if first I am myself and see myself all the time?’”.211 Esta quarta seqüência — retornei, ainda rindo de Getúlio — vem do capítulo quatro, capítulo dedicado à chegada de Getúlio à igreja e à rememoração da batalha à entrada da fazenda de Nestor, ao fim da qual Getúlio degola um tenente. — Sim, e como o filme não se utiliza do recurso do flashback, senão uma única vez, ao contrário do livro, que está todo o tempo a avançar e recuar, não é?, esta quarta seqüência incorpora apenas um aspecto do capítulo quarto, qual seja, o tempo dentro da igreja, o que corresponde a uma boa parte do filme — disse ele. — O campo, protagonizado por seus coronéis, ligados à rede política, e agora a igreja, sob o comando de um padre armado até os dentes, e, como você mostrou com um trecho, um padre ambíguo, a meio caminho entre as leis de Deus, as leis do homem e as leis da selva, representam os dois pólos clássicos do mandonismo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA local. Igreja e Estado, Deus e o Chefe dão-se enfim as mãos. A seqüência que nos interessa aqui é o resultado da tensão havida durante a conversa entre o sargento e o padre. Todas as cenas desta seqüência passam-se durante o dia, num dos aposentos pouco iluminados da igreja, com a presença de Getúlio, do padre e do preso, cuja participação se limita a um olhar de terror dirigido ao sargento e de esperança depositado no padre. — E continuou: — O padre lhe diz que talvez o chefe não possa sustentar a ele, Getúlio, terminando toda a história com o preso solto e ele, o sargento, preso, senão morto. “Ah, isso não!”, protesta Getúlio, “Se Antunes não pode me sustentar, quem é que pode me sustentar?...” O sargento está sentado de costas para uma parede branca e imunda, sem sua farda mas envolto num pequeno cobertor de lã, como uma túnica marrom, o que lhe acaba dando uma aparência um tanto de santo, um tanto de profeta, um tanto de louco. Na parede às suas costas, uma cruz dependurada, o que nos permitiria dizer... — ... que Getúlio toma a sua decisão e dá as costas à cruz, dando então as costas a Deus e a seus ensinamentos, ali mediatizados pela figura do padre... 211 — “Um padre compreensivo, portando uma espingarda (shotgun-toting), impele Getúlio a abandonar sua missão e desaparecer. Mas Getúlio responde com uma lógica que daria inveja a Gertrude Stein: ‘Como é que posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre?’ [Sargento..., p. 84]” (Dave WALSTEN, “A memorable month in the hinterland”, Chicago Tribune, 29 jan. 1978). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 109 — Hum... Sim... A câmera está posicionada à altura dos olhos de Getúlio, em plano médio, um pouco aproximado. Não se vê o padre, situado à direita da tela. Do preso se vê apenas um pedaço de sua silhueta no canto esquerdo do retângulo. Vê-se, no entanto, que ele olha para o sargento, absorto e um pouco hipnotizado com o monólogo que então se inicia, com Getúlio a mirar ora um, ora outro. Toda a razão de ser dessa cena é exibir a fala de nosso protagonista num momento de auto-afirmação. Getúlio levanta-se, e sua sombra cresce, encobrindo a cruz e eliminando-a totalmente da cena. Ele então aponta para o preso e fala, repetindo seu nome completo, Getúlio, com a boca cheia, cheia de si mesmo... — Deixe-me ler. — E li, sentindo-me eu mesmo um pouco Getúlio: — “... eu sou Getúlio Santos Bezerra e igual a mim ainda não nasceu. Eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso (...). Pode vim. Getúlio Santos Bezerra eu me chamo (...). O senhor já ouviu falar de meu nome, Getúlio Santos Bezerra, sou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA eu mesmo”. O livro dedica a esse momento as páginas 84, 85 e 86. — E o filme utiliza alguns trechos, os mais contundentes em sua afirmatividade. Trata-se de uma das mais belas seqüências de todo o trabalho. Mas não a de que mais gosto... Vamos à quinta seqüência, que eu vou chamar assim: “Faço o seguinte, eu levo, sim. Nunca fui homem de falhar no meio, eu levo, sim”. Este constitui provavelmente o momento da mais funda e densa introspecção de nosso sargento, já que se trata de uma deliberação acerca de sua própria vida, como você já disse. — E ele seguiu: — A seqüência inicia no instante em que uma delegação enviada por Acrísio vai à igreja com vistas a convencer o sargento a entregar o “homem” e depois sumir. Getúlio, que já se tinha defrontado com essa “questão” da impossibilidade do auto-sumiço, responde de forma automática e segura. Trata-se agora, para ele, de uma questão resolvida, um ponto pacífico, e Lima Duarte212 interpreta a cena respondendo aos homens com segurança: “Não posso sumir. Quem pode sumir é os outros, como é que eu posso sumir, se eu sou eu?”, e assim fecha definitivamente a questão. Getúlio, em seguida, despacha a pequena delegação e dá início à representação do dilema getuliano. — E o meu interlocutor se levantou: — As cenas desenrolam-se no pátio interno da igreja, durante o dia, sob forte sol, o que dá à imagem um tom 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 110 desbotado. Os jardins do pátio estão abandonados, todas as folhagens estão caídas, todas as plantas estão mortas. Estamos diante de um ambiente decadente e de morte. O fato de haver uma parte descoberta, sob o sol, e outra coberta, sustentada por pilastras, qual fosse uma arena, dá ao cenário um feitio de teatro aberto, como eram representadas as peças shakespeareanas. Getúlio é o único ator em cena. Ele caminha pelo espaço e é acompanhado pela câmera. O sargento anda de um lado para o outro, sugerindo a confusão mental em que está imerso, e chega mesmo a retirar a faca da bainha, antecipando o gesto proibido e sacrílego do autosacrifício, que afinal não acontece. O sargento devolve a faca à bainha, senta-se à mesa do pátio e abaixa a cabeça, os punhos fechados, os braços estendidos sobre o tampo, a decisão enfim tomada... — Leio eu: “Faço o seguinte, eu levo, sim. Nunca fui homem de falhar no meio, eu levo, sim” (p. 100). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E ele se despede do padre: “... pela mesma porta que eu entrei; pela mesma porta, eu saio, e esteja o senhor bem...”, e segue viagem. Getúlio, de certo modo, acaba optando pela morte, morte matada. Assim termina uma importante seqüência do filme — e ele se sentou. — Assim termina o capítulo quinto — e eu aplaudi baixinho. — A última seqüência que eu tenho na cabeça tem esse nome: “... aquele homem que o senhor mandou não é mais aquele. Eu era ele, agora eu sou eu”, que deve ser o capítulo oitavo... — e ele pegou mais café. — Ora, depois que deixa a igreja e segue caminho, Getúlio pousa na casa de sua amante Luzinete e lá enfrenta mais forças do governo, perdendo, na batalha que se segue, a mulher e Amaro, o que lhe faz muito mal, minando-lhe as forças e acabando por intensificar o seu descolamento com o mundo real que o cerca. E o sargento segue viagem, sozinho e a pé, completamente transtornado e com o preso às costas. — O delírio getuliano já tem início. — E fiz uma citação: — “A desintegração com o real se acelera”, escreve Eliana Yunes, “e a perda dos dados 212 — ... cujo verdadeiro nome..., coloque isso numa nota de rodapé — disse-me o meu interlocutor —, ... é: Aricles Venâncio Martins (Antônio GONÇALVES FILHO, “Lima Duarte e a obsessão...”, Folha de S. Paulo, 22 mai. 1983). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 111 instiga sua recuperação pelo imaginário”.213 Durante o caminho ele vê imagens de santos, delira e inventa palavras. — E abri o livro: ... Perde a força os nomes quando eu lhe xingo e por isso vou inventar uma porção de nomes para lhe xingar e de hoje em diante todo mundo vai xingar esses nomes. Crazento da pustema, violado do inferno, disfricumbado firigufico do azeite. E invento mais. (...) Carniculado da isburriguela, retrelequento do estrulambique. Não se ouse de responder, porque lhe tiro sua vida da pior maneira... (p. 138) — A interpretação de Lima Duarte chegou ao coração desta idéia de Getúlio: inventar palavras. Do mesmo modo como o personagem inventa os seus próprios nomes feios, o ator também faz sua parte, inventando ele mesmo seus xingamentos, outros xingamentos, outras palavras... — Bem menos inteligíveis que as presentes no texto? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Creio que sim — disse ele. — Não consigo imaginar aquilo escrito... O caráter literário do filme salta aqui aos olhos: Lima Duarte, nesta específica cena, foi tanto mais literário quanto menos preocupado em ser literal. Bem verdade que o ator já tinha, muito antes de ser cotado para o papel, uma relação visceral com o texto de Ubaldo, sabendo ser somente ele o possível protagonista da história... “O grande ator não só já conhecia o livro como era apaixonado pelo personagem, e mais — sabia falas e falas de cor”, diz Susana Schild.214 “... me preparei a vida inteira para esse papel...”, diz o próprio Lima Duarte,215 e acrescenta: “... a vida inteira me preparou esse papel...”. E diz ainda a matéria: “Para conseguir o papel, impressionado que estava com a figura do sargento, Lima Duarte chegou até a rogar praga. ‘Tomara que você fique doente’, disse a Othon Bastos,216 quando Glauber Rocha anunciou sua intenção de filmar com o ator o livro de João 213 “O poder da fala em Sargento Getúlio” op. cit., p. 40. — Eliana Yunes, nesta frase, faz em nota uma referência a Lacan, Écrits, Paris, Du Seuil, 1966. 214 “Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983. 215 — E, como contraponto, disse Ubaldo nesta entrevista — e o meu interlocutor sacou de outra matéria —: “Não gosto de caracterizar meus personagens através de um ator. Lembro quando o Lima Duarte fez o Sargento Getúlio, que eu brinquei com ele dizendo que ele havia estragado meu personagem porque deu uma identidade ao sargento que eu não havia dado antes. E agora, só consigo ver o sargento com a cara do Lima. Ele é um excelente ator!” (Viviane ROSALEM, “’Escrevo por dinheiro’”, IstoÉ, 22 nov. 1999, acessível em: <http://www.terra. com.br/ istoegente/16/reportagens/ent_ubaldo.htm>, acesso em 18 out. 2005). 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 112 Ubaldo”.217 Quer café? Bom — continuou ele —, Getúlio chega enfim à Barra dos Coqueiros, supostamente a sua parada final, encosta o preso no tronco de um coqueiro e se ajoelha ao lado. Aqui começa a nossa seqüência. A cena é aberta, vêem-se o mar, a terra e o céu, e o tronco do coqueiro bem no centro do retângulo, dividindo-o em duas partes. Estão os dois bastante estropiados, sujos, cansados, famintos e, cada um à sua maneira, perdidos em seus próprios mundos. O figurino do preso é o pior possível. Suas roupas formam tiras, apenas tiras, de pano avermelhado de sangue e empretecido com lama. Em sua boca um calombo cujo inchaço lembra o focinho de um cavalo, na expressão de seu olhar a falta de expressão típica dos moribundos de qualquer tempo. Getúlio, por sua vez, talvez por pressentir-se a si mesmo à beira da morte, está crispado de uma ansiedade que o aproxima da loucura, o que se percebe por sua eloqüência desmedida e por seu olhar obcecado sobre o “pirobo semvergonho”. Seu rosto está coberto de cinzas e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA sobre seus ombros há uma nova túnica, desta vez vermelha. Novamente o figurino lhe dá uns ares extraordinários, de santo, profeta e louco. Quando percebe mais forças do governo vindo em sua direção... — Deixe-me ler — e eu acompanhava tudo pelo livro. — “Aquela força que vem, coisa, aquela força que vem pelo rio atravessando, pode se ver os fuzios apontando para cima e está se vendo que ninguém pensa que vai me pegar fácil, porque senão não vinha tanta gente” (p. 154). — Obrigado. Quando se dá conta de que está encurralado, o sargento, no filme, inicia o sugestivo movimento de atar o preso ao coqueiro e enredá-lo com uma corda. Para tanto, começa a andar em círculos e a falar também em círculos, enquanto vai amarrando o “pirobo semvergonho” e acreditando que desse modo o prende, embora esteja a prender a si mesmo e eternamente àquela Barra dos Coqueiros, seu local de morte. No enquadramento só há o sargento, o preso e o coqueiro. Sobre os três, o sol de Sergipe. O que acontece então é curioso: Getúlio inicia uma conversação, dirigindo-se ao preso como se este fosse o chefe Acrísio, fundindo a figura do chefe na do preso; preso e chefe tornando-se o mesmo; ao 216 — Isto pode ser uma nota — disse ele. — O papel principal, antes, chegou a ser do Armando Bogus. “É ele quem vai conduzir o prisioneiro através do sertão, sem piedade” (Flaminio ARARIPE, “Sargento Getúlio”, Folha de S. Paulo, 9 abr. 1978). 217 Antônio GONÇALVES FILHO, “Lima Duarte e a obsessão...”, Folha de S. Paulo, 22 mai. 1983. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 113 passo que ele se desdobra a si próprio num outro Getúlio, o de antes desdobrado no de agora, transformando-se Getúlio, para si mesmo, num outro. Leia. — Obedeço. “... quem o senhor mandou em Paulo Afonso, que eu me lembro (...), numa noite, aqui nessa sala mesmo (...), tomando um vermute vermelho (...), não foi nem eu. (...) aquele homem que o senhor mandou não é mais aquele. Eu era ele, agora eu sou eu” (p. 151-152). — A cena com o preso amarrado ao coqueiro, diante do qual Getúlio convoca uma espécie de reunião imaginária, chamando a todos para o seu depoimento, o preso lá está, Acrísio lá está, a força do governo vem chegando, e lá estão também os dois Getúlios, o de antes e o de agora... — Esta cena — interrompi-o — celebra o monólogo, justifica todo o monólogo, banha de luz todo o monólogo que vinha sendo desenvolvido no livro e, através do procedimento da voz em off, no filme. Getúlio, o tempo todo a falar PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA consigo, funcionando os demais personagens, no fundo, como pretexto para a sua fala, afinal desdobra o si mesmo num outro, e finalmente o encontra. Deixe-me citar Eliana Yunes: “Zé Antunes, Amaro, seu Nestor, Luzinete e o cabra sem nome, no entanto, estão ‘falando’ através da langue do sistema”.218 Quando encontra esse outro, ele já está aos pedaços. “Agora eu sei quem eu sou” (p. 154), revela Getúlio, quatro páginas antes de morrer. — É este Getúlio aos pedaços que se afasta do coqueiro onde está amarrado o preso — retoma o meu interlocutor —, vai para o centro da tela, ocupando-a quase toda, numa espécie de plano americano aumentado, e, filmado a partir de uma câmera baixa, olha para a frente, para um ponto localizado acima de nossas cabeças e que provavelmente repousa na embarcação que se aproxima, com as forças do governo encarregadas de matá-lo. O sargento inicia então uma fala desarticulada, em que invoca Amaro, xinga os homens, inventa mais palavras, fala de imortalidade: “Eu nunca vou morrer, Amaro!...”. — O livro termina bruscamente, no meio de uma frase: “... eu vou e cumpro e faço e” (p. 157). — No filme, em meio a um dos gritos, a imagem congela-se — disse ele. — Se o filme representasse a morte do sargento, acabaria por trair toda a delicada fidelidade que manteve ao ponto de vista de Getúlio. O sargento, do mesmo modo 218 “O poder da fala em Sargento Getúlio”, op. cit., p. 41. 2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO 114 que não pode sumir, já que “quem some são os outros, a gente nunca”, também não poderia morrer, já que quem morre são os outros, a gente nunca — disse ele. — Sim. A brusca interrupção da fala do sargento, no livro, indica a chegada da morte e, como resultado, a morte da linguagem. Getúlio não poderia, obviamente, narrar a própria morte, por isso o discurso cessa sem aviso prévio. — Do mesmo modo faz o filme — disse ele —, que jamais poderia colocar na tela o corpo morto de Getúlio a cair, baleado, diante de nossos olhos. Aquela imagem final, congelada como ficou, representa Getúlio no seu último segundo de vida. A partir daquele ponto, nada mais se pode afirmar, já que terminam todos os registros. A partir dali, provavelmente, a morte. — Um pouquinho antes disso — completei —, o último desejo do sargento, à página 153: “... quando eu morrer se alembrem de mim assim: morreu o Dragão”. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Por que você não escreve uma tese somente sobre o Sargento Getúlio, livro e filme? — perguntou ele, mas eu fingi que não ouvi. *** 3 __________________________________________ SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL — A CABEÇA DO NARRADOR CONTRA O MUNDO — Pertenci, no Central, a um grupo que só deu gente que ficou famosa: Glauber Rocha, David Salles, Fernando Perez e outros importantes. Entrei para a Escola de Direito e fui um dos poucos desse grupo que concluiu o curso. Pertenci à chamada “Geração Mapa”, porque na época fundamos, no Central, uma revista com esse nome — Mapa. Depois, na Escola de Direito, pertenci à revista do diretório Ângulos — onde publiquei meus primeiros contos e ocupei o cargo de redator-chefe. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA João Ubaldo Ribeiro, em 1968, com 27 anos219 — Eu já pensei em ser faroleiro. Cheguei a pegar os papéis na Marinha e sei que eu passava tranqüilo no concurso, que só exigia segundo grau. Mas eu suspeitei que iam me mandar para o Farol da Barra e desisti. Meu sonho era ser faroleiro do Atol das Rocas ou de Abrolhos. Uma ilha deserta e bem longe, em que eu ficasse sozinho com três cachorrinhas rottweiler, Lalá, Lelé e Lili, e a lancha só aparecesse de quarenta em quarenta dias para levar os suprimentos. João Ubaldo Ribeiro, em 1988, com 47 anos: 14 anos antes de publicar seu romance Diário do farol220 — Por que o subtítulo “A cabeça do narrador contra o mundo” para falar de Setembro não tem sentido e do Diário do farol? — perguntou ele. — Pensei nesse subtítulo partindo dessa idéia: o primeiro romance é um espelho onde o autor procurou representar a si mesmo e a sua juventude — respondo, para começarmos a longa conversa. — E o segundo, também um espelho, embora bem mais distorcido e bem menos autobiográfico, mas, de todo modo um espelho, sim, e onde estão representados o ceticismo e uma boa dose de angústia. Há aqui um paralelismo: o caso de Setembro...: João Ubaldo Ribeiro escreveu o livro aos 21 anos e seus protagonistas são ainda jovens, embora um deles, Orlando, o principal, tenha o espírito de um velho: “Devia preocupar-me 219 “João Ubaldo lança hoje na livraria Civilização Setembro não tem sentido”, Jornal da Bahia, 20 set. 1968. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 116 com coisas sérias. 36 anos. Seria a mesma coisa, se tivesse 60” (Setembro..., p. 54). O caso do Diário do farol se aproxima ao de Setembro..., que foi publicado em 1968, mas se aproxima pela via de seus opostos: Diário... saiu em 2002, João Ubaldo Ribeiro com sessenta anos, o protagonista também em torno dos sessenta anos, dois universos etariamente diferentes, o escritor em momentos também diferentes, a mocidade e o anonimato de Setembro... e, por outro lado, a maturidade e a consagração do Diário..., os personagens Tristão e Orlando de um lado, e, do outro, o padre, também acompanhando a idade do escritor e chegando todos os protagonistas, nos dois livros, ao mesmo diagnóstico: a falta de sentido, a falta de sentido... — e fiz uma pausa dramática. — Setembro não tem sentido chegou a chamar-se A semana da Pátria.221 — Chegaram a referir-se ao livro, eu estou vendo aqui nesta nota de 1968, como Setembro não tem preço...222 — disse ele, fuçando meus papéis e rindo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E a ele como João Ubaldino Ribeiro — completei, mostrando-lhe uma resenha de Assis Brasil, de 1968.223 Situações típicas de um escritor em início de carreira... Embora João Ubaldo Ribeiro goste ainda hoje de fazer o papel do escritor que não é uma unanimidade e cujo nome trocam. Veja esta declaração: “Quando estou me achando muito famoso, logo recebo uma ducha de água fria. Se eu ligo para a casa de alguém e digo que é João Ubaldo Ribeiro, na mesma hora perguntam: é João Paulo Oliveira?”.224 Ou ainda o trecho desta crônica: ... uma sobrinha minha (...) me puxou pela mão e me apresentou como “um grande escritor”. O rapaz que detinha a palavra no momento perguntou o meu nome, eu disse e ele fez “oh”. Perguntei a ele em que trabalhava, e ele me disse que era professor de literatura brasileira. “Oh”, fiz eu. Aí ele ficou um pouco embaraçado porque achou que eu fiquei embaraçado porque ele nunca tinha ouvido falar em mim e então, de vez em quando, interrompia a palestra, sorria para o meu lado e me chamava de “o nosso João Osvaldo Vieira”. Houve até uma vez em que, generosamente, disse que “o nosso João Osvaldo Teixeira sabe isso 220 “João Ubaldo faz hora extra na Ilha”, Tribuna da Bahia, 6 nov. 1988. 221 — Diz João Ubaldo numa publicação portuguesa que tenho aqui, mas cuja referência está ilegível: “Como estávamos em plena ditadura, o meu editor achou que poderia parecer uma provocação. Então, numa roda de pôquer com uns amigos, encontrei o título definitivo” (“João Ubaldo Ribeiro, Setembro não tem sentido”, texto sem referência). 222 JULIETA, “Sociedade”, A Tarde, set. 1968. 223 Assis BRASIL, “A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968. 224 Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros com os de Jorge Amado”, Jornal do Brasil, 6 abr. 2002. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 117 melhor do que eu”. Fiquei grato mas não tive condições de permanecer, inclusive porque papo estava descambando para o processo criativo e não entendo nada de processo criativo...225 — Eu espero sinceramente que você desenvolva na sua tese uma idéia que seja um pouco menos simplista do que essa do espelho, com todo o respeito... — disse o meu interlocutor, cheio de si —, e não se limite a me dizer que Ubaldo era jornalista, Tristão era jornalista e Orlando era jornalista... Um espelho mostra a mesma coisa, só que invertida, e eu imagino que não seja essa a relação que você quer explicitar aqui entre os dois livros e entre Setembro não tem sentido e a juventude do escritor... — Um espelho mostra muitas coisas, meu caro... E, o que me parece mais importante, não mostra outras tantas, e talvez valha mais pelo que não mostra..., como é o caso dos fantasmas, cuja existência se torna evidente justamente quando PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA se torna evidente, no espelho, a sua ausência. Ou, como bem viu Joaquim Trigo de Negreiros, em seu estudo sobre a imagem que fazem os jornalistas de si mesmos: “... a ausência de reflexo no espelho desmascara-os [aos fantasmas], destruindo irremediavelmente o disfarce”.226 Cito somente o exemplo dos fantasmas, que não se vêem ao espelho, para falar dos escritores que estejam envolvidos com uma escrita de si, embora fantasmagórica, e que muitas vezes também não se vêem ao espelho, embora lá estejam... Estou apenas começando a raciocinar. Ouça esses depoimentos do João Ubaldo Ribeiro da década de oitenta sobre o João Ubaldo Ribeiro da década de sessenta. Ajude-me. (i) — Quando terminei (...), entreguei-o altaneiramente a Glauber, sem nem cogitar que ele teria de batalhar a publicação do livro, como de fato batalhou (eu só entendi depois, você veja que cretino eu era), junto com outro amigo meu, (...) Flávio Moreira da Costa.227 (ii) — Eu disse: “Está pronto para publicar”. Como se isso fosse a coisa mais 225 João Ubaldo RIBEIRO, “Mas não no sul” (p. 43-48), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 45-47. 226 — E avanço, porque o estudo é interessante: “A relação dos jornalistas com o espelho explicase da mesma forma, mas com os dados invertidos. O que os jornalistas temem é que alguém note a presença do seu reflexo no espelho, incómoda revelação de uma densidade corpórea, de uma materialidade social incompatível com o mito da exterioridade neutral tantas vezes associado à profissão” (Joaquim Trigo de NEGREIROS, “Introdução” (p. 17-19), in Fantasmas ao espelho — Modos de auto-representação dos jornalistas, Jornalismo, Coimbra, MinervaCoimbra, 2004, p. 18). 227 “João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 118 fácil do mundo.228 (iii) — Nunca me ocorreu que era difícil publicar, eu achava que era uma conseqüência lógica de escrever.229 (iv) — Glauber ainda foi a Bahia levar o primeiro exemplar, ainda sem capa (...). Aí um dia ele entra alegre: “Consegui ô, tá aqui!”. E eu (gargalhando): “Entra aí, vamos tomar alguma coisa”. Até antes de morrer ele me falava disso: “Você é um..., eu me viro para publicar seu livro e quando chego lá, você diz: ‘Tudo bem, entra aí’”.230 (v) — Rogério Duarte fez a capa, Glauber fez prefácio, Roberto Santana fez promoção, Emanuel Araújo fez cartaz (...) e eu, na flauta, achando que era tudo normal.231 — Observe que há aqui um certo descaso do próprio escritor para com toda a engrenagem da publicação. Eu diria mais: João Ubaldo, mesmo na condição de um jovem escritor em começo de carreira, não parecia, ou pelo menos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ele assim não demonstrava, importar-se muito com os ritos da publicação. Um pouco mais tarde, com relação ao romance seguinte, a mesma situação. Ouça. — Quando acabei o Sargento..., também não me preocupei. Primeiro, escrevi uma carta a João Ruy Medeiros, que era o dono da José Álvaro Editora, e ele respondeu que não se interessava. Jorge Amado deu um jeito de Rubem Braga, na então Editora do Autor, ver os originais, ele disse que era bom mas não ia vender nada (...). Eu escrevi uma carta enorme a Ênio Silveira, mandei os originais, acho que foram os que Agnaldo Siri, em célebre viagem, levou para o Rio de Janeiro debaixo do braço, e ele pediu co-edição ao Instituto Nacional do Livro, que negou (Jorge ficou retado quando eles negaram). Mas ele resolveu fazer o livro, assim mesmo.232 — A mesma atitude nada solene com a literatura a gente vai encontrar no personagem Orlando, de Setembro..., e no padre, do Diário... — e peguei o livro. — Ouça: “Nunca escrevi nada além de eventuais cartas, bilhetes ou sermões”, diz o padre em seu texto, “e o que escrevo neste instante não vem da ambição tola de fazer um livro, mas de um impulso vital à minha completa existência” (Diário..., p. 9). Mas guardemos essa idéia, que quero desenvolver mais à frente... — E 228 “João Ubaldo Ribeiro, história e ótica popular”, O Estado de S. Paulo, 12 abr. 1985. 229 “João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985. 230 “João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984. 231 “João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985. 232 Id. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 119 retomei a apresentação de Setembro não tem sentido: — O livro estrutura-se sobre cinco capítulos, os cinco dias de uma semana, do dia 3 ao dia 7, e tem como pano de fundo, segundo o autor, uma festa cívica na Bahia, “um pouco antes de 1964”.233 — E observei: — O centro da ação de ambos os livros se localiza mais ou menos na mesma época, tendo os protagonistas, em torno de 1964, a mesma idade, vinte e poucos anos: a narrativa do Diário do farol é retrospectiva e se refere, nos momentos mais dramáticos da história, à década difícil do militarismo, justamente de 64 a 74, ano esse em que começa o governo Geisel, que, bem ou mal, inicia a abertura... “Não sei se estava querendo, com este novo livro, reviver os tempos da ditadura”, diz o escritor, acerca do Diário do farol.234 Ouça ainda o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que ele diz acerca de Setembro... — ... é um típico primeiro livro aliás, onde você quer mostrar que leu todo o mundo, conhece Joyce, revela as influências, sabe tudo, manipula... E é um livro urbano porque conta a minha experiência em Salvador nessa turma de Glauber, a turma da porta da livraria. A livraria por acaso teve um fogo e não existe mais. Mas nos congregava todo dia, vivíamos lá na porta, era uma espécie de “fórum” dos intelectuais da praça, ali na Rua Chile. Das cinco às sete, sete e meia, você podia passar por lá que nos encontrava: os intelectuais salvando o Brasil, aclarando as trilhas estéticas para a humanidade...235 — Setembro não tem sentido, como disse o próprio escritor, é o palco onde esse jovem literato vai exibir suas prendas literárias. Por todo o livro se vêem, por exemplo, momentos de inspiração surrealista, como é o caso deste rompante de nosso narrador, que, incorporando Tristão, põe para fora alguns de seus pensamentos imediatos e formata a sua narração no tom de um típico exercício de escrita automática. Olhou para os pés espichados na grama e lembrou-se rapidamente de uma porção de coisas — os sapatos custam caro, deitado eternamente em berço esplêndido fulguras, como se escreve anquilostomose, está fazendo frio, como será a cabeça daquele soldado tão escondida pelo capacete, não vou ser nada na vida. (...) Mmglunft! O gato amarelo engolindo uma espinha de peixe concentradamente. (p. 18) 233 Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997. 234 Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros...”, Jornal do Brasil, 6 abr. 2002. 235 Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983, realcei. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 120 — Apesar de considerá-lo um romance juvenil, mesmo assim ele não impediu que fosse republicado?... — perguntou o meu interlocutor, quase mordaz. — Não. A primeira edição de Setembro... saiu pela José Álvaro Editor em 1968; a segunda edição, pela Nova Fronteira, que adquiriu os direitos e fez uma edição em 1987. João Ubaldo Ribeiro diz que acha ruim, sim, mas que não o renega. “Às vezes eu olho assim, acho ruim, mas não é tão ruim não; (...) mas às vezes eu fico um pouco...”236 E diz ainda que Glauber Rocha adorava...237 Disse isso em 1997. Ouça agora o que diz ele em 1968 e em seguida em 1989, numa entrevista com Jaguar e outros jornalistas... — e li. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) — Não acredito que nada do que tenho escrito me satisfaça plenamente, e agora me lembro — com algum horror — de certos contos que andei perpetrando por aí, há alguns anos. Mas acho que Setembro não tem sentido não dá para envergonhar. É um livro escrito com sinceridade e fervor, por um sujeito que se julga com alguma vocação literária. Minha preocupação, atualmente, é com as opiniões dos leitores.238 (ii) André Luiz Oliveira — Já tinha escrito Setembro não tem sentido? Continua achando o livro uma merda? João Ubaldo Ribeiro — Já. Acho uma coisa horrorosa.239 — Glauber, aliás, cujo nome na época já tinha peso na imprensa, foi uma importante referência para o livro — eu disse. — Ouça aqui estas duas notinhas de 1968, a segunda publicada no Jornal do Brasil: (i) ... Prefácio de Glauber Rocha. Livro de estréia no romance, pressagiando autor de muito sucesso.240 (ii) Glauber Rocha assume a responsabilidade pelos méritos de seu conterrâneo João Ubaldo Ribeiro, de quem José Álvaro Editor acaba de lançar o romance Setembro não tem sentido. (...) Ubaldo vive na Bahia e, segundo Glauber, está vinculado filosoficamente ao movimento tropicalista dos seus conterrâneos Gilberto Gil e Caetano Veloso. No seu número de setembro, o Suplemento do Livro publicará um trabalho de Jorge Amado sobre João Ubaldo 236 “João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”, Diário do Nordeste, 21 jul. 1982. 237 Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997. 238 “João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968. 239 JAGUAR, Fernando VITA, Fernando de BARROS, Haroldo CARDOSO, André Luiz OLIVEIRA, “Pasquim vai à Itaparica entrevistar João Ubaldo. Muito riso e pouca literatura”, Pasquim, 23 nov. 1989. 240 José Alípio GOULART, “Setembro não tem sentido”, texto sem referência, 7 set. 1968. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 121 Ribeiro.241 — Você tem muita coisa da época... Você tem aí esta resenha de Jorge Amado? — perguntou ele. — Sim. Fiz uma grande pesquisa de imprensa... — E continuei a apresentação do romance: — O livro não dispõe de um enredo linear e não há propriamente uma intriga a caminhar para o seu desfecho. João Ubaldo Ribeiro, em Setembro não tem sentido, fez desfilarem as suas impressões da juventude que era a dele, da cidade que era a dele e do grupo de pessoas que o rodeava. — Pelo que percebi, esse “típico primeiro livro” parte do próprio umbigo de Ubaldo — disse o meu interlocutor. — O que quero saber é, em palavras mais acadêmicas: o romance atinge, não vou dizer alguma tipo de universalidade, mas, no mínimo, algum imaginário comum? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Respondo-lhe citando Bella Josef: ... Sua técnica é testemunhal: a reflexão sobre a realidade parte de um determinado momento histórico e um contexto especial para a proposta de uma indagação nacional. Não queremos dizer que haja um compromisso formal com os fatos, apenas a necessidade de alinhar dados, elementos que voltarão em obras posteriores.242 — Salvador e aquele tempo configuram o quarto fechado onde se espelham mutuamente o jovem escritor e os seus personagens — continuei. — O romance passa-se inteiro dentro do próprio universo que ele mesmo tematiza e critica. O livro é “uma crônica sobre ‘os chamados jovens intelectuais baianos que tinham o hábito de se reunir na porta da livraria Civilização Brasileira’”,243 disse João Ubaldo Ribeiro em 1978, e quatro anos mais tarde: “Eu já era metido a intelectual nessa época.244 (...) Não é pretensão, mas a minha geração era uma 241 “Um na Bahia”, Jornal do Brasil, set. 1968. 242 “Dialética irônica”, O Globo, 7 jun. 1987. 243 “Sargento Getúlio (...) — sucesso de crítica...”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978. 244 — E abro aqui uma notinha para citar João Ubaldo a digressar sobre si mesmo, usando como pretexto a sua admiração por George Orwell: “Mais tarde, bem mais tarde, estudante de direito e metido a marxista, altamente patrulheiro e, no geral, de insuportável convivência, devo ter dito mais que um par de besteiras sobre esse homem estranho e singular, escritor de rara elegância, que morreu quase na idade que tenho hoje. (...). É que o patrulhismo primário, no caso esquerdóide, recomendava condenar Orwell por suspeitar-se em seus livros ataques solertes ao socialismo. Era só isso, em tempo no qual, aos 20 anos, achávamos que sabíamos (cont.) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 122 gente que talvez não se tenha repetido porque era uma turma realmente da pesada. (...) ... a esquerda agrupava todo mundo, desde os porralouca-comunistaanarquista, até os caras socialistas, os mais liberais”.245 — Você disse que Setembro não tem sentido é o romance que inicia a trajetória de aprendizados daquela almazinha que Ubaldo vai criar em Viva o povo brasileiro, aquela que encarna nos personagens e, à medida que vai encarnando, vai aprendendo mais sobre a vida... Aquela almazinha que poderá ser a representação ficcional para o seu narrador sem cabeça... — disse ele, titubeando. — Um narrador que começa a sua vida literária com todo esse idealismo que Ubaldo está detectando em seus inícios como escritor... — Sim, sim. Ouça, a esse propósito: “Foi um livro juvenil, um típico romance de estréia, em que eu acreditava que minha prosa podia mudar o mundo e queria mostrar todos os meus conhecimentos de literatura brasileira e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA universal”.246 Mas nisso eu entrarei mais tarde, quando falarmos do personagem Orlando. De todo modo, estamos nos aproximando do livro. Creio poder demonstrar as razões pelas quais podemos chamá-lo um romance enclausurado — eu disse a ele. — O narrador, incluídos os personagens que ele primordialmente incorpora, Tristão e Orlando, situa-se numa posição muito próxima àquela ocupada pelo próprio escritor João Ubaldo Ribeiro, então com 21 anos à época da confecção do livro.247 Como bem observou uma jornalista do jornal Diário de Notícias: João Ubaldo Ribeiro era “então um ‘intelectual’ de Salvador que à semelhança dos outros escreveu mais ou menos a sua autobiografia”.248 Como você vê, mais uma vez a idéia da autobiografia, desta vez não tão “fantasmagórica” quanto Sargento Getúlio... Observe que o próprio João Ubaldo tudo — e fomos vendo Stalin, a Hungria, a Tchecoslováquia, o Vietnã e tantas outras coisas assustadoras e confusas, que nos ajudaram a deixar de colocar a realidade em escaninhos préfabricados, a respeitar muito mais fundamente o conhecimento, difuso mas certeiro, que nos vem pela arte” (“Ele chegou mesmo” (p. 169-175), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 173). 245 “João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”, Diário do Nordeste, 21 jul. 1982. 246 Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997. 247 “Sua experiência jornalística fora primeiro desenvolvida no Jornal da Bahia, fundado em 1958, onde chefiou a reportagem e ajudou a renovar, com outros companheiros da ‘Geração Mapa’, o jornalismo baiano” (João Carlos Teixeira GOMES, “João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, op. cit., p. 84). 248 Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 123 se refere ao Getúlio e, por dedução, ao padre-faroleiro como pertencentes, ambos, à esfera de sua própria vida. Escute a pergunta que lhe fazem e ouça a resposta: — Ao contrário dos personagens, digamos, “coletivos” que você explorou nos seus livros anteriores, o personagem principal de Diário do farol é cinicamente individualista. Quais as dificuldades de se compor um personagem nesses termos? — Eu já tinha um solitário na minha biografia que era o sargento Getúlio.249 — Há romances e estudos, meu caro — continuei, ante a expressão de desconfiança de meu interlocutor —, que não podem prescindir dessa relação. Em se tratando de Setembro não tem sentido, seria quase imprudente, além de um grande desperdício, não mencionar a associação que pode haver entre o mundo e a personalidade dos personagens-protagonistas Tristão e Orlando, jornalistas em Salvador, e o mundo do jovem jornalista João Ubaldo Ribeiro pelos idos de 1963, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ano em que pôs o ponto final na história. — O mundo do jovem escritor iniciante de 21 anos em Salvador não nos interessa, pelo menos não a mim..., e é, além do mais, inacessível. E a sua tese não estará orientada para configurar uma biografia. Pelo menos não sob este formato. Ou estará? — insistiu ele, tocando no mesmo ponto, mais uma vez. — Interessa-me a idéia de que esse é o mundo representado em Setembro não tem sentido. Já tivemos essa discussão quando conversamos sobre o caso Getúlio, e você me pareceu menos convicto. Agora parece que retrocedeu..., e justamente nesse caso, em que os aspectos biográficos são muito mais evidentes... Continuo: não apenas o fato de o escritor ter feito de sua mocidade em Salvador os panos de fundo e de frente de seu romance, mas também o modo como o fez nos vai servir de ponto de partida para demonstrar o quanto o livro permanece fechado em si mesmo, refletindo nada mais que a si mesmo, como um espelho diante de outro espelho, se comparado aos romances seguintes, todos eles exibindo mais compreensão e curiosidade, por parte do narrador, dos problemas que o rodeiam: sociais e existenciais. E veja que não incluo aqui nessa abertura o Diário do farol — eu disse —, que vai significar, para mim, o retorno ao mesmo quarto fechado de Setembro não tem sentido. — No caso do Diário do farol, uma ilha... 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 124 — Uma ilha, somente segundo o que nos conta o narrador-personagem... Há um texto da professora Rita Olivieri-Godet justamente sobre a insularidade em Viva o povo brasileiro.250 Acerca disso há ainda a pergunta de um jornalista: — ... a imagem da ilha reaparece (...). É alguma obsessão por Itaparica? — Ilhas comparecem aos meus livros, mas dessa vez é uma ilha misteriosa. Volto sempre para Itaparica, onde ando pelo areal perto da casa da minha mãe e saio para pegar caranguejo. Minha ilha natal aparece em muitas passagens. Mas há ilhas inexistentes, como a do Pavão, do meu romance O feitiço da ilha do Pavão. Se existisse, ficaria no lugar da Baía de Todos os Santos. A do Diário do farol é mais simbólica, há um farol e só percebi que o tema ilha voltou no meio do livro.251 — Estamos, mais uma vez — e retomei —, não propriamente dentro da cabeça do personagem, como aconteceu com Getúlio, mas, no caso do Diário do farol, dentro da escrita do personagem, o que é bastante diferente, embora o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA aprisionamento no ponto de vista narrativo seja o mesmo. Sabemos somente o que nos conta o padre. Ele nos diz que é faroleiro e que está numa ilha, de nome Água Santa, mas nada nos garante que ele não esteja trancafiado numa instituição psiquiátrica... Veja o que disse João Ubaldo Ribeiro, reiteradamente: “Meu personagem é um psicopata”;252 e ainda: “A idéia inicial do Diário (...) era escrever um livro sobre um maluco, um psicopata”.253 Neste sentido é que digo que Diário do farol é um retorno ao mesmo quarto fechado em que se meteu, ou em que o meteram, há 34 anos ou mais, o personagem Orlando, de Setembro... Ouça: “Eu posso, sim, não passar de um maluco mitômano, contando meus delírios (...), num hospício qualquer, que inventei ser um farol” (Diário..., p. 301-302). Vê? — Sim, mas, retornando: você está querendo dizer que os demais romances, com exceção do Diário..., iniciam um movimento de crescente abertura a universos cada vez mais diversificados e estranhos ao do próprio escritor? 249 Felipe ARAÚJO, “O diário da maldade”, Diário do Nordeste, 28 mai. 2002, realcei. 250 “La métaphore de l'île et les enjeux de l'espace dans Viva o povo brasileiro”, in Rita OLIVIERIGODET, João Ubaldo Ribeiro: littérature brésilienne et constructions identitaires, Rennes: PUR (Presses Universitaires de Rennes), Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural, Université d'Etat de Feira de Santana, Bahia, 2005. Saiu uma nota no Jornal do Brasil acerca do lançamento deste livro — disse eu, e passei a referência. — “O Brasil de Ubaldo em francês”, Jornal do Brasil, 4 set. 2005. 251 Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002. 252 Id., ibid. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 125 — Eu não diria “estranhos ao do próprio escritor”... Não diria isso, justamente porque uma de nossas tarefas... minhas tarefas... será justamente observar o funcionamento de uma mútua irrigação entre universos ficcionais e universos biográficos públicos, atenção: públicos. E não me venha mais uma vez falar dos perigos do “recurso fácil ao biografismo como válvula de explicação do universo romanesco”; memorizei suas palavras. Não se trata, absolutamente, de uma facilitação; muito pelo contrário. Mas, como diziam os estruturalistas, e Jack, the ripper, era, a seu modo, um estruturalista: vamos por partes. 3.1. A REDAÇÃO DO NARRADOR DA REDAÇÃO — Setembro não tem sentido é um romance enclausurado — prossegui. — O primeiro contato com o livro produz a sensação inicial de um grande PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA desconcerto, onde muito pouco se diz e muito pouco acontece. São páginas e páginas de diálogos longos e ao final infrutíferos, são detalhes descritivos que parecem não levar a nada, são variados malabarismos narrativos, são ironias e chacotas por todo o texto. Está aqui um trecho que é ilustração e metáfora: “Jeremias subiu a escada penosamente. (...). Desgraçada, a escada era um nunca acabar e não levava a nada, afinal de contas” (p. 25). — Resta concluirmos se esta ênfase minimalista é sintoma de um universo ficcional reduzido ou se é estratégia crítica... — disse ele. — Estou aqui folheando esses seus recortes e encontrei uma crítica anônima que ilustra bem o que você está dizendo. Ouça: ... Se há um defeito grave nesse romance de estréia é sua pretensão freqüente de conferir um significado universal mais profundo a experiências bastante insignificantes, limitadas ao mundo estreito de jovens de classe média de uma província. (...) Quais os motivos para esse defeito? O próprio provincianismo do autor? Sua extrema juventude — pois tinha apenas 21 anos quando o escreveu, como esclarece Glauber Rocha em seu prefácio?254 253 “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002. 254 “Uma Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 126 — Você não terminou de ler a crítica até o fim. Leia até o fim — pedi —, e você vai ver que o defeito é a qualidade, e vice-versa. — E o meu interlocutor prosseguiu, resmungando: ... a esse defeito grave liga-se também a virtude maior do livro: seu mergulho decidido nos recessos obscuros da vida provinciana, sua crítica sensível às doenças que eles alimentam e sua sincera busca de uma solução existencial.255 — Obrigado — e pensei o quanto pode uma citação ser manipulada pelo inimigo. E depois me lembrei da resenha de Jorge Amado sobre Setembro..., escrita em 1968, e da pequena crítica que ele faz, em meio a inúmeros elogios. E pensei ainda se leria ou não esse trecho... — Você conhece a resenha de Jorge Amado sobre o livro? É uma resenha bastante elogiosa, mas há uma pequena crítica que vai ao encontro do que você disse acerca do universo ficcional PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA reduzido. Ouça: “Gosto mais da narrativa densa, econômica e ao mesmo tempo largada em sua linguagem antiacadêmica”, disse Jorge Amado, “do que mesmo da construção novelística, ainda por vezes vacilante”.256 — E voltei à minha linha de exposição: — Um contato mais detido com o livro vai apontar uma razão de ser em todo esse desconcerto; vai levar-nos à sensação, que supomos presente no jovem escritor, de uma descrença, representada pela zombaria, na possibilidade de se discutir qualquer assunto de interesse coletivo que leve a algum lugar que resulte num bem comum. As pessoas próximas ao jovem João Ubaldo Ribeiro tinham do livro essa impressão e estranhavam tanto niilismo em tão pouca idade. “Meu pai leu meu livro”, escreveu ele em 1963, numa carta a Glauber Rocha, muito antes de o livro ser publicado, “e disse que era bom, apesar de ser um livro niilista, amargo etc. etc.”257 — E me levantei para pegar um café. — É a impossibilidade de comunicação o seu argumento, e cada página de Setembro não tem sentido é a demonstração dessa impossibilidade. O narrador do Diário do farol parte do mesmo princípio, e põe isso na própria epígrafe de seu relato: “Não se deve confiar em ninguém”. 255 Id. 256 “Um verdadeiro romancista”, Jornal do Brasil, 21 set. 1968. 257 Ivana BENTES (org.), “Carta de João Ubaldo Ribeiro a Glauber Rocha: Salvador, 11 de novembro de 1963” (p. 227-229), in Glauber Rocha — Cartas ao mundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 228. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 127 — Hum... — fez ele, não muito convicto. — No caso de Setembro..., esse fechamento começaria já pelo título? — Penso que sim, embora o próprio autor, à época, pensasse que não, ou que tanto fazia este quanto qualquer outro título... O título Setembro não tem sentido é, por si, autofágico. — E perguntei: — Se setembro não tem sentido, o que resta, então, para setembro? Por que setembro não tem sentido? — Porque não tem sentido aquilo a que se refere setembro: o feriado da semana da pátria e todos os seus símbolos nacionais... E por que você mencionou Ubaldo? O que diz ele? — Disse isso, e no dia 15 de setembro de 1968...258 Ouça. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — ... Setembro não tem sentido, porque a ação do livro, desenrolada nesse mês, envolve os personagens numa certa perplexidade, numa constante sensação de falta de propósito nas coisas, cujas causas eles não conseguem precisar com clareza. De qualquer forma, o título tem importância secundário, eu creio.259 — Ouça ainda. — E li para ele dois exemplos do texto: — “Sabe que estamos na Semana da Pátria? — perguntou Jeremias despropositadamente”; “— Sabe, estamos na Semana da Pátria — disse novamente, como quem está sofrendo alguma coisa” (p. 26 e 28, realcei). — E prossegui: — A maneira encontrada pelo escritor de montar a sua visão crítica sobre a performance da política brasileira à época segue os caminhos do ceticismo e da desmotivação. Ouça este diálogo entre Aspargo e Tristão: — E a campanha? — Que campanha? — A campanha política. — Ah, sim, colaboro, mas com o dedo no nariz. Isso não adianta nada. Cambada de porcos. (p. 31) 258 259 — Coloco aqui numa nota o que escreveu um jornalista acerca do título de Ubaldo e da importância literária que alcançou o romance naquele ano de 1968. — E li: — “Para o pintor Solon Barreto, o livro veio a contrariar o seu autor: provou que ele próprio foi o sentido deste setembro, ‘porque, a não ser o do último livro de Jorge Amado, nunca vi tanta gente em um lançamento nesta livraria’. (...) Ao lançamento se encontravam as mais destacadas personalidades de nossos letras, do jornalismo, do teatro e das artes plásticas” (“Lançamento do livro de João Ubaldo leva grande público a ‘Civilização’”, Diário de Notícias, 21 set. 1968, realcei). “João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 128 — Quando um dos personagens secundários faz uma tentativa no sentido de politizar o rumo dos diálogos — continuei, engrenado —, Tristão esvazia a seriedade com pitadas de humor, grosseria e alguma vulgaridade. Por exemplo: (i) — Diga-me, Tristão, qual é a posição lá do jornal? — De quatro pés. O que mais? (p. 36) (ii) — Meu bom amigo, por que haveríamos nós de precisar colaborar na campanha? — É o candidato da esquerda, rapaz! — Por mim, podia ser até o candidato da sua mãe. (p. 37) — Vê? — e ofereci café ao meu interlocutor, que permanecia calado. — A desmotivação política infiltra-se nas ruas e no espírito do narrador, para quem os eventos coletivos não passam de uma marcha às cegas, observada por ele a uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA segura distância: ideológica e afetiva. Durante a descrição de um ensaio para um desfile estudantil de Sete de Setembro, levada a cabo sob a perspectiva de Tristão, o narrador não faz mais do que salientar o artificialismo de todo o conjunto. Ouça: “Eram todas meninas muito impessoais, agitando bastões como braços postiços” (p. 32). E a descrição termina no pólo oposto: o narrador abandona a panorâmica da coletividade, cujo artificialismo, automatismo e alienação já haviam sido apontados criticamente, e orienta o olhar, ainda sob a focalização de Tristão, para a solidão de uma menina. — E li: — “Os tambores inexoráveis. No fundo, Tristão podia notar agora, estava uma menina desamparadamente só. Batia os pratos, obstinada” (p. 32). Esta menina a bater os pratos, só e obstinada, resume a visão de Tristão e, por extensão, a do narrador sobre cada personagem de algum modo engajado num “projeto de política”. O povo reunido não passará de um conjunto de indivíduos isolados, batendo obstinados os seus pratos, em nome da pátria. — Por que você fez o sinal de pôr aspas na expressão “projeto de política”? — Porque ela deve ser lida aqui com uma subcategoria degradada de “projeto político”, cujo uso não seria aqui nada apropriado, dado o seu caráter generalíssimo. Tristão e o narrador conhecem de perto a prática política de que são servidores e propagandistas indiretos. Toda manifestação cívica em Setembro não tem sentido será descrita pelo narrador de modo crítico, irônico e até mesmo melancólico. Ouça esse trecho: “Dramática, a parada se aproximou, enquanto aumentava o ruído dos tambores e as cornetas gemiam em uníssono. As meninas 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 129 punham o pé direito para a frente, com força. ¶ — Continuarão marchando pela Eternidade — sentenciou Tristão soturnamente” (p. 33). — Eu li Setembro não tem sentido há muito tempo — disse ele —, e não me lembrava dessa mordacidade no narrador... — Então você não o leu nada bem... — e fui eu o mordaz. — E há também, para amenizar o que eu acabei de dizer, o fato de que não se costuma absorver muito bem um narrador mordaz, cruel e irônico criado a partir da pena de um escritor conhecido por sua simpatia e seu jeito bonacheirão. E João Ubaldo Ribeiro, a julgar pelo que lemos por aqui, sempre foi assim... Ouça o que diz a coluna do jornalista Adgemar Gomes, acerca de Setembro...: “É assim como que um mergulho no caos, vidas angustiadas que se cruzam e conflitam, ódios, desalentos (...). Não desconfiávamos de que atrás do riso alegre de Ubaldo Ribeiro houvesse tanta amargura e fosse tão mordaz”.260 E agora ouça o que diz Orlando, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA num momento de seus solilóquios: “... posso ver, escrito nas primeiras páginas dos jornais (...), que o Exército prepara as comemorações da Semana da Pátria. Algum dia, todas as semanas serão da Pátria” (p. 140). Uma das mais eficazes maneiras de esvaziar de sentido os acontecimentos — continuo, sem me deixar interromper e passando agora a outro ponto — é justamente a subversão daquela hierarquia baseada no senso comum. O personagem Orlando, sozinho em seu quarto e obstinado por sua própria liberdade radical, não faz outra coisa senão treinar este olhar chapado, não graduado, não valorativo sobre as coisas e o seres e os eventos. Tudo merece o seu olhar, ou então nada merece o seu olhar. E Orlando olha para “os pequenos fatos importantíssimos” de sua vista do quarto: uma mosca mexendo a cabeça no parapeito da janela, um homem a gemer de dor de dentes no prédio em frente, um poeta a explicar Castro Alves para o povo à porta de uma venda (p. 93-94). “A realidade”, diz o padre-narrador do Diário do farol, “qualquer que seja ela, da percebida à insuspeitada, da meramente física à social, não se subordina a ordem alguma” (Diário..., p. 18). Os acontecimentos não se abrem para as suas conseqüências; estão fechados em si mesmos e sua importância restringe-se à sua duração... — ... à sua duração e, quando muito, à sua mera enunciação... — disse ele. 260 Diário de Notícias, set. 1969. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 130 — À duração de sua enunciação... Ouça aqui, na fala de Tristão, a coexistência galhofeira das duas tarefas previstas para a noite. Não há hierarquia a graduar as atividades. Ouça: — Escute aqui você, doutor — disse Tristão [ao sujeito que fazia a campanha para o candidato da esquerda] (...). — (...) Aspargo está promovendo hoje um pequeno sarau elegante de confraternização, no qual nós (...) entabularemos conversações sobre os momentosos problemas nacionais, internacionais e por que não dizer municipais, e também encetaremos tentativas no sentido de perverter algumas das melhores jovens de nossa sociedade (...). E (...) a sua presença, nesta época em que o Estado se prepara para o grande pleito cívico, nos é sobremaneira desagradável, visto tentar o nobre doutor tornar-nos mercenários da candidatura de um brasileiro embromador... (Setembro..., p. 37-38, realcei) — O romance, através de momentos na sua aparência bastante gratuitos — continuei —, vai apontando com o dedo o fechamento de que participam todos os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA personagens: um fechamento para as perspectivas, para o passado e para as possibilidades de comunicação. Os diálogos não conseguem avançar e às vezes mal começam e já são tragados pelo vácuo de entendimento entre os interlocutores. O narrador, quando está centrado na perspectiva de Tristão, conduz a narrativa de acordo com os valores e as opiniões do personagem, que faz as suas piadas para si mesmo, e para si mesmo dirige as suas próprias brincadeiras, regozijando-se todo o tempo consigo próprio. — Então, se há um diálogo, este é travado, pode-se dizer, entre o narrador e Tristão. Os demais personagens, aqueles que não participam do seletíssimo grupo dos jornalistas intelectuais, não percebem nada. É esta a maneira de se representarem uma exclusão e um descrédito. — E ele leu, realçando trechos. (i) — Ouviram do Ipiranga as margens plácidas! (...) — cantou Tristão. — Salve, salve, oh salve-salve! Duas mocinhas (...), esperando qualquer coisa da sorveteria, pararam de conversar e olharam para ele. — Boa noite, irmãs — disse ele. — Gerai, gerai. — O quê? — perguntou uma das mocinhas, que tinha o rosto bondosamente estúpido. (...) — Deus meu, são barregãs! — gritou Tristão (...). — São barregãs, heim? Que se pode esperar delas? Adeus, irmãs, não vos excedeis. — O quê? — perguntou a mocinha de rosto abobalhado. (...) Um camarada de blusão vermelho (...) olhou para Tristão interrogativamente. “Mr. Livingstone, I presume?” indagou Tristão, gentil. — Hein? — disse o camarada (...). (Setembro..., p. 19-20) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 131 (ii) — Como é o seu nome? — Hércules Pereira — disse o magro solenemente. — Pai gozador, hein? — perguntou Tristão. — Como? (p. 24) — E ainda... — prosseguiu ele — ... podemos facilmente ler as marcações de diálogo, como o caso da mocinha “que tinha o rosto bondosamente estúpido”, como esclarecimentos do narrador ao próprio Tristão. — Sim, você tem toda a razão. Não há, em nenhum sentido, vestígios do que se convencionou chamar plano pictórico, ou seja, não há ação retrospectiva ou prospectiva e não há grandes quadros narrativos, prevalecendo sobre o texto microplanos dramáticos, permeados quase todo o tempo por diálogos que não conduzem a quase nada de relevante para a história. O romance fecha-se sobre a meia dúzia ou mais de personagens que por alguns poucos ambientes fechados PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA circulam, a falar (mal) dos outros e de si mesmos; personagens que não têm o que fazer e, muitas vezes, não têm o que dizer, embora saibam disso muito bem, fazendo dessa consciência o seu principal instrumento crítico. — Não sabemos se suficientemente crítico... — disse ele, com um sorriso. — Suficientemente crítico, sim, e pese-se a palavra suficientemente. Ouça aqui um trecho desta crítica do Assis Brasil, de 1968, sobre o então recém lançado livro de João Ubaldo Ribeiro: “No romance (...) Setembro não tem sentido, vamos encontrar a mesma despreocupação pelas situações ‘romanescas’ e pelos enredos ‘empolgantes’. Ele situa muito bem, em linguagem plana, a ação cotidiana de alguns jovens, e com ironia joga na cara da sociedade as suas mazelas”.261 — Um anti-romance... — disse ele, e aquilo me interessou. — Guarde essa sua idéia do anti-romance. Você com isso me chamou a atenção para um outro aspecto do livro. Espero que você não tenha dito isso, “anti-romance”, à toa. Bom, continuo aqui o meu raciocínio. Tristão, Orlando, Jeremias, Sebastião, Hércules, Aspargo, o Gordo, Gó, Arquibaldo, Leonardo e outros formam todos um grupo relativamente cúmplice. Entendem-se dentro do possível e fazem questão de não entender mais ninguém. “Não sei porque fiz aquilo”, disse Tristão, depois de extorquir com violência retórica cinqüenta cruzeiros de um menino, alegando tê-lo flagrado tirando meleca do nariz e 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 132 passando nos livros. “— Não sei porque fiz aquilo — disse Tristão. ¶ — Falta absoluta de ter o que fazer — disse Jeremias, agitando a velha nota de cinqüenta cruzeiros no ar” (p. 43-44). — E, pegando fôlego, prossegui: — Toda a primeira parte do segundo capítulo de Setembro..., intitulado “Dia 4”, dedica-se a formar um quadro o mais fiel possível de uma redação de jornal, “onde a única atmosfera sensível é o vapor de chumbo, subindo pela escada da oficina, insidiosamente” (p. 89). O narrador incorpora e põe em prática vários tipos de discurso, dos orais: discussões entre jornalistas e entre jornalistas e visitantes à redação, aos escritos: as várias versões de uma matéria e os discursos políticos a serem publicados. — E faço aqui uma observação baseada numa de suas idéias quanto ao perfil do narrador na obra de Ubaldo — disse ele. — Pode-se apontar aqui o início, a desenvolver-se e sofisticar-se nos demais romances do escritor, de uma das principais características desse narrador sem cabeça: o seu feitio PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA camaleônico, ou seja, a sua capacidade de metamorfosear a linguagem, incorporando a linguagem do outro e assim transformando-se nesse outro. — Sim. Você pegou. E, quando observamos de perto o comportamento verbal tanto de Orlando, em Setembro..., quanto do padre, no Diário..., observamos o quanto se aproximam e o quanto se afastam: ambos narram em primeira pessoa, mas Orlando fala, ou pensa, tal como Getúlio, ao passo que o padre do Diário... escreve. Quando se trata de um personagem a falar ou pensar, a marca da presença desse personagem sobre o discurso acaba sendo bem mais notável, dada a força da oralidade como conquistadora de espaços na narrativa. Quando estamos diante um personagem dedicado à escrita de sua história, estamos diante, antes de tudo, de um narrador, dado ser a escrita muito mais passível de controle do que a fala. Ora, João Ubaldo Ribeiro teve o cuidado, na narrativa de seu Diário do farol, em furar esse quadro e subverter essa hierarquia, fortalecendo assim a nossa idéia, ou melhor, a minha idéia, do narrador sem cabeça, ou seja, a idéia da extrema permeabilidade do narrador diante da contundência de seus personagens. Como escreveu Ubiratan Brasil, a “escrita de Diário do farol exigiu que João Ubaldo Ribeiro modificasse seu estilo peculiar 261 “A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 133 para dar verossimilhança ao relato de um clérigo”.262 Quem escreve? Um escritor profissional? Não — disse eu —, um padre que não escreve mal, é verdade... “Não sei se os leitores vão notar, mas muitos trechos não se parecem com a minha forma de escrever”, diz ele. E continua: — Apesar de não conseguir evitar meu próprio estilo, eu tentei dar um ar amadorístico ao romance para emprestar mais verossimilhança à idéia de que se trata do diário de alguém que não é escritor. Tanto que ele mesmo diz que não é um autor e, aproveitando para esculhambar também os escritores, nem encontra dificuldades para escrever. (...) De qualquer forma, meu estilo é notado, por exemplo, nos períodos longos.263 — ... um padre que não escreve mal, mas que está longe de ser um artífice da palavra... “... de vez em quando deixava certas coisas de forma tal que indicasse esse amadorismo”, revelou Ubaldo.264 E eu estou lendo aqui duas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA matérias que apontam estas “certas coisas” — disse ele, debruçado sobre a mesa. — O que o crítico Daniel Piza escreveu: “O texto é escrito com pulso solto, sofrendo do excesso de vírgulas e até redundâncias”,265 e também este outro: Para passar melhor a idéia de que o livro não é obra de um escritor profissional, João Ubaldo força uma narrativa cheia de deslizes estilísticos. Há repetições de palavras, redundâncias de argumentos e, requinte dos requintes, um uso exagerado de advérbios de modo, que, como se sabe, costumam ser normalmente dispensáveis. Não se imagine, porém, que o ficcionista baiano esteja ausente do romance. No plano do estilo, é possível detectá-lo, por exemplo, em algumas frases mais elaboradas. No âmbito do conteúdo, além de Shakespeare — cujo Hamlet João Ubaldo Ribeiro gosta de declamar para os amigos em seu inglês irrepreensível, a empostação perfeita, os olhos marejados —, Diário do farol remete, claro, a Montaigne (que dizia: “O Bem e o Mal só o são pela idéia que deles temos”), Kierkegaard, Albert Camus.266 — E, se calhar, o personagem ainda comete lá os seus erros... Erros de verdade... — disse ele, sorrindo, com o livro aberto. — E lhe dou aqui três exemplos de deslizes cometidos pelo seu padre, distrações de um faroleiro que só 262 “Ubaldo revela detalhes da crueldade religiosa em Diário do Farol”, O Estado de S. Paulo, 16 mar. 2002. 263 Id. 264 Roberto NICOLATO, “A personificação do mal”, Gazeta do Povo, 8 abr. 2002. 265 “O faroleiro e as trevas”, Bravo!, mai. 2002. 266 Rinaldo GAMA, “O impulso vital”, Carta Capital, 27 mar. 2002. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 134 aparentemente domina a língua, sendo capaz de pequenos deslizes, sutilmente encaixados e escondidos em meio a um texto escorreito, numa manobra que Ubaldo explorou pouco:267 “Não foi uma preocupação permanente”, diz ele aqui nesta entrevista, “mas acidental, que aconteceu aqui e ali durante a feitura do livro...”.268 É a escrita do personagem a se sobrepor à escrita do narrador, um personagem que está escrevendo aquilo que supostamente ouviu do espectro de sua mãe numa noite tempestuosa. Observe que não é a mãe que está a falar diretamente — continuou ele, abrindo o Diário do farol —, mas o padre, seu filho, a registrar para o leitor, anos depois, aquilo que ele supostamente ouviu da mãe. Observe também que no último exemplo o problema é a frase que não se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA completa, e isso graças a um “e”. — E ele leu, realçando com prazer os erros: (i) Agora sei que, se não podes ver meu vulto em meio a esta tarde negra e tempestuosa onde flutua meu espírito sem paz, pelo menos podes entender o que sussurro (...). Meu filho, creia que te acompanho e me lembro com saudades de tua figurinha ao meu colo (...). (Diário..., p. 52) (ii) Ouve tua mãe, ouve somente tua mãe e sê o que deve seres para cumprires o que peço. (Diário..., p. 55) (iii) Pensei em sentar-me, mas não ousei, porque sentar-me diante dele sem autorização partida exclusivamente dele, já que um pedido meu era geralmente qualificado de insolência, e tinha conseqüências imprevisíveis. (Diário..., p. 3637) — E há ainda — retomei a palavra e o momento anterior da conversa, remetendo-me agora a Setembro não tem sentido —, somando-se a isso, o abandono da ortodoxia na marcação dos diálogos e as falas sem emissor e remetente claramente identificados, que misturam todas as vozes e todos os discursos no grande burburinho das redações. O narrador é o porta-voz da torre de Babel. Ouça: ... Ontem foi a terceira vez que você faltou esse mês, disse o Secretário, e Tristão respondeu, como se este mês mal começou? Sei lá, disse o Secretário, 267 — Manobra pouco explorada — interrompi, em nota — mas suficiente para que desse ensejo a uma espécie de crítica que não levou em conta a porção de voluntarismo na imperfeição da narrativa. “Há críticas (...) que o consideram malconstruído, seja pela linguagem ou pelo caráter inverossímil da narrativa. Até que ponto prevalece o tom amadorístico e intencional do romance?” (Roberto NICOLATO, “A personificação do mal”, Gazeta do Povo, 8 abr. 2002). 268 — E ele continua: “Eu nunca gosto de falar muito sobre o meu trabalho porque esta armadilha é muito difícil de evitar. Você começa a explicar coisas que não pensou na hora em que estava fazendo. E aí racionaliza, presta atenção em aspectos de que não dava conta no momento...” (Id.). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 135 mas faltou três vezes de qualquer maneira, não adianta, assim ou assado você faltou três vezes e está acabado. (...) O que é que há, disse Tristão a Castro, que escrevia um comentário econômico. Esta é uma redação porca, imunda, viscosa e pegajosa e babosa e remelosa e sebosa, disse Tristão. Castro piscou os olhos morosamente. Sim, porquíssima, sebosíssima. Você está ficando gordo e careca. É a idade. Não, não, dir-se-ia que é algo mais profundo (...). Talvez, talvez. (...) Descomunais bocejos e o barulho das máquinas. Que porre, escrever e reescrever. (p. 69) — Assim como aconteceu com a referida Torre, onde as pessoas não mais se entendiam, a redação do DS, Diário de Salvador, um equivalente ficcional do Jornal da Bahia e da Tribuna da Bahia, onde João Ubaldo foi de tudo um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA pouco...269 Ou, segundo suas próprias lembranças: ... Fui copidesque, fui chefe de reportagem (nunca mais, Deus me proteja), fui editor de suplemento literário (no tempo em que eles eram gordões), colunista de reclamações, astrólogo de plantão (redigindo os horóscopos quando não havia de onde recortar um velho), colunista de “atividades rotáricas”, articulista, piadista, cronista, editorialista, crítico literário, redator-chefe — e mais coisas ainda, muitas das quais esqueci, pois mesmo a enumeração que fiz me parece hoje louca e fantasiosa, embora seja a pura verdade. Houve tempo em que eu morava no jornal e só aparecia em casa para tomar banho e mudar de roupa.270 — A redação do DS, dizia eu, apresenta-se como um aglomerado de discursos individuais que não encontram ressonância no outro. Ninguém de fora entra no universo do jornal e do jornal ninguém sai. “... para que serve um jornal?”, pergunta Orlando em seus devaneios, e ele mesmo responde: “Todos, sem exceção, responderiam vulgaridades. Banalidades tais como informar ao público, orientar a opinião popular, batalhar pelas boas causas” (p. 59). — O “povo”, para o narrador, é um mistério... — disse ele. — Sim, e o universo dos jovens jornalistas, inspirado no universo do jovem jornalista João Ubaldo Ribeiro e de seus amigos, não se casa com o universo do lado de fora daquela “porca, imunda, viscosa e pegajosa e babosa e 269 Segundo o site da Academia Brasileira de Letras (ABL): <http://www.academia.org.br /cads/34/joao.htm>, acesso em 30 nov. 2004, e da matéria “João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”, Diário do Nordeste, 21 jul. 1982. 270 — Crônica intitulada: “Este, na verdade, não é o título que eu queria dar” (O Globo, 24 fev. 1985, reunida no livro Arte e ciência de roubar galinha, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p. 79-83, p. 81). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 136 remelosa e sebosa” (p. 69) redação. Ouça aqui de que maneira uma “pessoa do povo” é descrita pelo narrador, sob a focalização interna de Tristão: — Como vai, seu Tristão? — disse o homenzinho, que tinha mau hálito e que falava pegando nos botões e no colarinho de quem o estivesse escutando. — Não se lembra de mim, não? — falou novamente, usando um ar deliberadamente humilde, como um instrumento. — Eu vim aqui para ver se o senhor podia colocar uma notinha para mim. (...) Uma dilapidada e flácida estrutura, diante da mesa. Podia fazer-se uma cavalice com ele, sim, mas não adiantaria nada, nada podia afetar o repulsivo ar humilde e infeliz, talvez até ele chegasse mais perto com seu bafo fedorento (...). (...) Uma bajulação servil pelo corpo todo. Que estaria realmente pensando? Não havia jeito de saber. (p. 82, realcei) — Perceba que estou aos poucos colocando você mais familiarizado com uma das minhas propostas nessa tese que vou escrever... — insisti. — Costurar, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA como você sabe, relações biográficas; nesse caso, entre os universos jornalísticos do romance Setembro não tem sentido e os do próprio escritor, e ainda entre os personagens Orlando e o padre, e entre o padre e o próprio personagem João Ubaldo Ribeiro, personagem de si mesmo... E isso tudo a despeito do que você me falou acerca dos perigos... — ... do recurso fácil ao biografismo como válvula de explicação do universo romanesco. — Isso. Quero costurar aqui os universos intradiegético e extradiegético... — Aproxime-os — disse ele. — É o bastante... E já estou começando a mudar minhas idéias... Ou seja, não há um universo, para usar os seus termos, extradiegético e outro intradiegético. — Você está começando a digerir a minha idéia... — Não é isto o principal — disse ele. — O principal é estarmos aqui a conversar e, de um certo modo bastante evidente, estarmos sendo modificados por essa nossa conversa. O nome disso é dialogismo... O Bakhtin escreveu que... — Por favor, deixe-me continuar — interrompi-o com brusquidão. — O outro, inalcançável, inacessível e incompreensível — e retomei o meu exemplo sobre a imagem do “povo” perante os jovens “intelectuais” —, não se resume ao “povo popular” daqui, mas também ao “povo estrangeiro de lá”. João Ubaldo Ribeiro critica não apenas a imagem que as elites intelectuais guardam do “povo brasileiro”, como também a que têm do “povo estrangeiro”, admirado justamente 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 137 por sua suposta civilidade “congênita”. Note-se que a crítica é tanto mais eloqüente quanto menos didaticamente desenvolvida ela se apresenta. Os personagens, e os seus discursos ideologicamente sedimentados, são flagrados, e ridicularizados, em atos de pensamento que falam por si. Deixemo-los, então, falarem por si, e vamos ao seguinte exemplo, em que o narrador “transcreve” o trecho de uma das matérias escritas para a edição do dia seguinte: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... Regressou de viagens de estudos à Europa (...) o Bel. Francisco Belmiro Coutinho, que, em declarações ao DS, afirmou estar plenamente satisfeito com o que viu, acrescentando que, infelizmente, “o Brasil ainda tem muito que progredir”. O Bel. Francisco Coutinho impressionou-se vivamente com sua visita à Inglaterra, onde se demorou por duas semanas, afirmando que, apesar de não compreender bem a língua inglesa, pôde observar a “extraordinária cultura do povo britânico, bem como sua perfeita organização dos serviços públicos, que se deve, indubitavelmente, ao grande senso de responsabilidade, que todos lá trazem inato”. (Setembro..., p. 84-85) — A mesma estratégia discursiva João Ubaldo Ribeiro vai utilizar mais adiante, em Viva o povo brasileiro, e com bastante intensidade, colocando os personagens, e não o narrador, para externar a opinião que têm sobre o povo brasileiro e o povo dos países da Europa. Lembro-me especialmente dos discursos inflamados do Cônego Visitador D. Francisco Manoel de Araújo Marques, acerca do perigo das máquinas a vapor. Ouça. Vale a pena — e peguei o outro romance. ... E em verdade digo-vos, senhor Barão, mesmo nessas civilizações avançadas, onde o espírito do homem não é pervertido por uma natureza luxuriosa e corrutora, onde a mestiçagem não estiola o sangue e o temperamento, onde, enfim, é possível existir o que aqui jamais será, ou seja, uma cultura e vida dignas de homens superiores, mesmo nessas nações essas máquinas não deixam de oferecer perigo. (Viva o povo..., p. 61) — O tratamento “menor” dado aos assuntos relacionados à política nacional ou local — continuei — é apenas um exemplo da direção que tomam, em Setembro não tem sentido, os conteúdos manipulados pelos personagens: partem de uma perspectiva ampla e elevada, e essa perspectiva ampla e elevada revela-se promissora, e então caem. Tristão ou Orlando, ou o próprio narrador, frustram a promessa e fecham o facho que se ia abrindo. No Diário do farol essa desconsideração referente aos assuntos políticos é menos estilizada e mais franca. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 138 Ouça: “A política (...) nunca me atraiu, nem atrai, torna-se abstrata e genérica demais, assim que se afasta de minhas preocupações pessoais” (p. 194). — Os assuntos começam grandes, solenes e filosóficos — disse ele — e terminam prosaicos, fechados e satirizados. Penso no que Joyce fez no Ulisses... — Sim. Veja-se aqui este trecho, em que estão os personagens conversando sobre a miséria nacional e a risível distribuição de renda no país. É este o tema da conversa, embora não seja esta a maneira de tratarem do tema. A maneira é sempre irônica: os personagens conversam sobre os valores protéicos do lixo vasculhado e comido pelos miseráveis... E Tristão inicia então uma reviravolta na conversa, elevando o tom através de uma longa citação em latim, que inclui as célebres primeiras palavras da Criação: “Primodie, fecit lucem. Deus finxit corpus hominis e limo terrae”. E, em seguida, a pergunta que desmonta a infalível e asséptica estrutura, fechando, desmotivando todo o conjunto e fazendoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA o retornar à sua origem chã: “Mas será que fez do lixo?” (Setembro..., p. 17). — Aqui restam, reduzidos a muito pouco, não apenas Deus e a sua Luz, mas também o homem e o seu latim... — disse ele. — Narrador e personagens trabalham juntos no processo quase constante de esvaziamento e ordinarização de termos — continuei. — Pela lógica de funcionamento do romance Setembro não tem sentido, o universo de significados e valores dos personagens está sujeito a constantes perdas de importância. Setembro... realiza a des-pompa através do humor, ao passo que o Diário do farol se utiliza do rancor... Quando o narrador diz que Tristão assoviava com energia o Hino Nacional e em seguida o próprio narrador comenta, num bloco de texto graficamente disposto como sendo voz narrativa, e não marcação de diálogo, que o Hino é “Minha canção preferida. Parece um tango argentino”, não faz outra coisa senão, com ironia, partir de uma singularidade em maiúsculas (o Hino Nacional), para em seguida a equiparar, desqualificando-a, a algo sem nem mesmo um nome: um tango argentino. — Em todo o romance parece ser bastante recorrente a mistura de vozes narrativas no interior de um mesmo bloco de texto... — Em Setembro...? Sim, a fala do narrador e a fala do personagem se misturam porque de fato misturadas estão — e me levantei, atrás de um café. — No Diário... também há a mistura, embora às vezes possamos detectar momentos em que se entrevê uma espécie de opinião que transcende a consciência do 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 139 personagem e mesmo a do narrador. E se destacam então, acima das vozes dramáticas e narrativas, a fala e as opiniões do escritor João Ubaldo Ribeiro. Veja este exemplo: dizem o personagem, o narrador e principalmente João Ubaldo Ribeiro o seguinte, em referência ao comportamento da polícia brasileira: (i) ... O método de investigação do delegado, como até hoje, na maior parte do Brasil, era tomar uma meia garrafa de cachaça e comandar surras e palmatoriadas nos presos, até que eles confessassem” (Diário..., p. 99). (ii) — Eu vivi no interior, onde a polícia agia, como até hoje age, até nos grandes centros, usando como técnica de investigação a porrada e a tortura de prisioneiros. O padre planejou o envenenamento dos irmãos e conseguiu atestados psiquiátricos falsos, tudo isso por falta de uma polícia bem estruturada.271 — E também estas opiniões, sobre o grau mais ou menos reincidente das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA artes. Observe a presença do próprio João Ubaldo dentro das opiniões do padre:272 Se eu fosse escritor profissional [escreve o padre], teria possivelmente cuidado dela com mais eficácia, mas não sou escritor profissional e tenho até uma certa satisfação em deixar isto bem patente, porque mostra que qualquer um pode escrever um livro, contanto que possua a tenacidade necessária. Não há nada especial em ser escritor de ofício; é a mesma coisa que ser carpinteiro, por exemplo — e me dá gosto murchar egos como quem esvazia balões, embora reconheça que os verdadeiros artistas, no fundo de suas almas coquetes, saibam que não passam de embusteiros a copiar disfarçadamente o que já se fez antes deles, pois toda a pintura do mundo já estava feita depois que a primeira tomou forma, o mesmo se passando com todas as outras artes. Se fossem realmente novidades, não encontrariam quem as apreciasse, porque não se apreciam novidades reais, só as que já têm antecedentes, por mais embuçados que estejam. (Diário..., p. 21-22, realcei) — Talvez a literatura de hoje seja mais parodística, talvez ela tenha chegado a um ponto em que só se pode fazer paródia, porque tudo já foi escrito. Mas, por outro lado, tudo já foi escrito mesmo, desde o início da humanidade. O que fazemos é só revestir os grande temas de sempre com roupas novas. A traição, o amor, sobretudo o amor frustrado, as tragédias da vida, o destino humano, tudo isso constitui a matéria-prima última de todos os romances. Não se pode falar em plágio, mas sim de reciclagem.273 271 272 273 “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002. — “João Ubaldo acredita que algumas opiniões expressas pelo personagem podem conter pensamentos autobiográficos”, escreveu um jornalista — ilustrei, em nota. — E o autor responde: “É possível que sim, mas não me recordo agora de um trecho específico do livro que reflita a minha opinião” (Paulo SALES, “Inventário da maldade”, Correio Folha da Bahia, 14 abr. 2002). Há muitos — disse eu, como se respondesse ao escritor. “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002, realcei. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 140 — Como você lembrou lá atrás, está em Setembro não tem sentido o início das atividades do narrador sem cabeça; no Diário do farol a sua permanência. — Há algum momento em que a narrativa se abra para descrições mais panorâmicas — perguntou o meu interlocutor —, como se o narrador de Setembro... decidisse olhar para cima, por sobre os ombros de seus personagens, a tentar vislumbrar o mundo para além daquelas específicas consciências? — Sim. A descrição ganha então um tom mais ortodoxo: trata-se do narrador a tentar dar conta da realidade, como um típico narrador extradiegético a olhar em torno de si e esquecido de si. Mas o momento dura pouco, os personagens falam mais alto e reclamam a presença do narrador, e a narrativa, a cada abertura, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA reinicia o seu enclausuramento, o seu retorno ao quarto fechado. Ouça, vou ler: Através da rua, por cima do telhado grande da igreja, o vento soprava, uma brisa constante e quase clara. O mar, apesar de não haver lua, estava quase inteiramente visível sobre a amurada. Tristão pôs a mão sobre o ombro de Joanita e levou-a para dentro. (...) Jeremias começou a vomitar em grande golfadas. No quarto, assim, assim. (...) enterro a cara no travesseiro e durmo. Só que não respiro. E morro. (Setembro..., p. 28, realcei) — Em outro momento de Setembro..., o narrador também inicia uma descrição “disfarçado”, sob uma capa extradiegética, e logo em seguida a abandona, como se não conseguisse permanecer nessa posição de controle, neutralidade e onisciência. Ouça — e li —: “Passam barcos pelo mar todas as noites e os marinheiros puxam as velas e dão apitos. (...) Mulheres de todas as espécies dormem e outras velam, como os cachorros também e os telegrafistas, por exemplo. Mas porém... mas porém, o que porém?” (p. 22, realcei). A pergunta que ele mesmo se faz deixa nua a evidência de que a sua descrição caminhava para a esterilidade e o automatismo das descrições que não são nada mais que “meramente literárias”. — E ainda acrescento isto — observou ele —: a inclusão de “telegrafistas”, além de despoetizar toda a descrição, até então calcada em lugares-comuns, como prostitutas, viúvas ou simplesmente damas insones a velar a noite ao lado de cães vira-latas etc. etc., sendo a imagem por demais conhecida, ainda explicita um movimento restritivo na enumeração, que passa de termos 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 141 gerais, como “mulheres de todas as espécies” e “cachorros”, cabíveis em várias alternativas de descrição, para a especificidade insólita de “telegrafistas”. — Sim, você observou bem — concordei, um pouco contrariado por não ter sido eu a observar aquilo. — Não se apoquente — adivinhou o meu interlocutor. — Quando estiver escrevendo a sua tese, use a minha observação como se sua fosse. E faço mais: estendo essa permissão a tudo o que eu disser aqui, desde que... — Obrigado. Usarei essa e muitas outras observações suas, e depois escrevo um agradecimento apropriado. — E, um pouco sem graça, recuperei a palavra antes que fosse tarde: — A cada elevação de tom, o narrador, com a sua irreverência diante de qualquer solenidade descritiva, propõe rebaixamentos e fechamentos para níveis mais prosaicos. Num outro trecho, também a narrativa de uma cena exterior, Tristão ganhando as ruas após a noite com Joanita, podemos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA apontar todas as referências negativas encontradas pelo narrador para descrever a caminhada matutina do personagem, que, mal chega à porta, já enxerga a procissão dos transeuntes “subindo penosamente a ladeira, com as costas curvadas” e cheios de calor. Tristão, “com um cigarro na boca para disfarçar o mau hálito”, sentia que as pedras da ladeira “cheiravam mal” e que havia um “monte de lixo em cima e outro monte embaixo. (...) ... sempre há lixo”, pensa ele, que entra num “botequim sujo” e pede uma coalhada, “Coisa porca, coalhada”, e foi então se deu conta de que tinha “que mijar” (Setembro..., p. 29). — Mundo cão... — disse o meu interlocutor. E suspirou. — Não suspire, há mais café. 3.2. A TERCEIRA PESSOA: O TERCEIRO EXCLUÍDO — Já que estamos a falar do narrador, eu gostaria de uma descrição mais 274 técnica para o caso de Setembro não tem sentido — pediu ele, quase rabugento. — Abro mão de mais considerações de cunho narratológico acerca do Diário do farol por razões óbvias: a sua narrativa é bem mais homogênea e estável... 274 — A bibliografia técnica sobre narratologia deve ser vasta — disse ele —, e você deveria discriminá-la ao final do trabalho, sob a rubrica “Estudos citados sobre o narrador”. — Concordei imediatamente. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 142 — Sim, o que nos interessa em Diário do farol é mais o líquido biográfico que escorre pela história... Mas lhe digo também que essa sua pergunta, diante de livros como Setembro..., não faz muito sentido. — Faz todo o sentido — disse ele, meio ofendido. — Quero dizer que não faz sentido tentarmos chegar ao estabelecimento de um status narratológico preciso... — Eu não pedi isso! — e ele se levantou em busca do café. — Eu pedi uma explanação, um passeio pelo assunto. Mostre-me o narrador de Setembro não tem sentido em funcionamento... Você precisa fazer isso na sua tese... — Desculpa lá... Entendi mal. — E comecei a pensar. — Setembro não tem sentido apresenta inumeráveis modos de narrar articulados pelo escritor, o que dificulta qualquer possibilidade de identificação do leitor com a condução da narrativa. São muitos narradores diferentes, e cada um com um estilo... Não há PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA aqui um narrador que produza familiaridade no leitor. Há sempre surpresas. — Essa é uma observação de cunho formal? Quero dizer, Ubaldo, em Setembro..., não reproduz um modo de narrar clássico; antes, pelo contrário, propõe inovações a todo o tempo? Inovações formais... Eu estou perguntando isso porque o livro, ao contrário do que você vem dizendo, não foi considerado, à época, tão moderno assim... — E ele se explicou: — Estou me valendo justamente da sua pesquisa em jornais. Eu estava aqui bisbilhotando e achei outros trechos daquela crítica do Assis Brasil e também daquela da Bella Josef; trechos que você ainda não tinha lido para mim... — e leu, cheio de si. (i) João Ubaldo Ribeiro é um seguro narrador, e a restrição que podemos fazer a este seu Setembro não tem sentido é que “ousou” pouco, ficou numa visão meio simplista não só do romance como da vida. Não queríamos um “grande” romance, mas um romance (e sem dúvida alguma ele poderá nos dar) em que o corte técnico fosse mais transversal e o corte humano mais contundente.275 (ii) A narrativa na primeira pessoa não maneja muitas técnicas experimentais: fragmentação de cenas, tentativa de emprego do monólogo interior. (...) A linguagem é o grande trunfo do romance, nas mãos de um narrador que despontava, assumindo a forma paródica, contra certas frases pré-fabricadas e realizando o pastiche de vários clichês.276 275 Assis BRASIL, “A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968. 276 Bella JOSEF, “Dialética irônica”, O Globo, 7 jun. 1987. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 143 — Sim, e ainda há um comentário do jornalista Adgemar Gomes, de 1969, que diz assim: “Setembro não tem sentido é assim: temática densa, leitura fácil”.277 De todo modo — segui —, a crítica de Assis Brasil refere-se menos à falta de inovações formais do que ao enclausuramento do romance, marcado pela exigüidade do espaço, do tempo narrativo e das perspectivas existenciais dos personagens. E, para que se mantenha uma certa coerência entre o status do narrador e o espírito geral do romance, não há aqui lugar para a abertura oferecida pelo narrador em terceira pessoa de cunho clássico: onisciente, onipresente e onipotente. É por isso que a terceira pessoa narrativa de Setembro... não passa de uma abstração. O narrador não consegue permanecer longe da focalização interna e está todo o tempo a misturar as vozes, adotando para si o eu do personagem, contando a história com as palavras do personagem focalizado e dando a entender que sente o mesmo que o seu personagem. Voltemo-nos para essa pouco convicta PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA terceira pessoa — e pedi mais café. — A terceira pessoa sem cabeça... — Acabei de fazer um fresquinho... — Na primeira parte do capítulo inicial, chamado “Dia 3”, o narrador, operando na terceira pessoa, começa seus trabalhos dando conta de uma conversa entre três personagens. Tudo leva a crer que estamos diante de um narrador onisciente, exterior à história e também à ficção; um típico narrador, utilizando-se a terminologia de Gerard Genette, participante de um nível extradiegético, ou ainda, na divisão proposta por Todorov, um narrador maior, porque sabe mais, que os personagens envolvidos. O seu feitio extradiegético, no entanto, revela-se frágil mal começa a história. As duas primeiras frases, informativas e neutras, sugerem a onisciência e a visão panorâmica dos narradores clássicos, contando o que sabem “por detrás” dos personagens, segundo o termo de Jean Pouillon.278 Leia, por favor. — “Eram duas horas da madrugada e estavam sentados na grama do jardim defronte do Palácio do Governador” (Setembro..., p. 15). 277 Diário de Notícias, set. 1969. 278 — Jean Pouillon trabalha com uma tríade cinematográfica, cujas partes são a sua “visão por detrás”, a caracterizar um narrador onisciente neutro; a sua “visão com”, que implica um narrador onisciente seletivo; e a famosa “visão de fora”, esta chamada de “narrador-câmera”, um narrador oposto ao onisciente, já que sabe menos, muito menos, que o personagem em foco (ver, a esse respeito, os verbetes focalização [p. 165] e perspectiva narrativa [p. 326], do Dicionário de narratologia, de Carlos REIS e Ana Cristina M. LOPES, Coimbra, Almedina, 2002). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 144 — Obrigado. Esta condição não resiste à terceira frase: “... exceto Luiz, que se abaixava e catava malmequeres distraidamente” (p. 15), que retira a solenidade da informação objetiva, tornando prosaico todo o período. — Retirar do período a solenidade não retira do narrador a sua condição de narrador em terceira pessoa... — disse ele, querendo tornar as coisas difíceis. — Não, mas retira a sua neutralidade e o seu distanciamento em relação aos personagens tomados como um grupo... A suposta precisão descritiva do início se desfaz diante do primeiro indício de um discurso valorativo por parte do narrador: “‘Sua Excelência está adormecida’, disse Tristão, com o ridículo nariz empinado para a frente” (p. 15, realcei). — Parece-me que não se trata de uma intrusão do narrador. Trata-se do ponto de vista do próprio Tristão acerca de si mesmo, que, aqui neste trecho já mostra a que vem, com sua irreverência implacável, uma irreverência que não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA poupa nem a si mesmo. Não? — Não. Você disse mal — retruquei. — É uma intrusão do narrador, sim, porque é ele quem está conduzindo a retranca. Você pode dizer, no máximo, que o narrador pegou emprestada do personagem a sua irreverência implacável. Deste ponto em diante, o narrador, enturmando-se com aqueles cujos diálogos reproduz, não apenas passa a fazer parte do grupo, como entra nas brincadeiras propostas por Tristão, Jeremias e Luiz, entrando, também, na ficção e na história de um modo bastante peculiar: fica a rondar os personagens, a sobrevoar-lhes as cabeças, como uma alma, e a querer participar de sua linguagem, incorporando as características de seus personagens, principalmente a tal irreverência, e conduzindo toda a narrativa sob este tom. Ouça: Tristão diz a Luiz em discurso direto que este parece uma “noivinha” com as flores na mão. O narrador pega a palavra no ar e, por algumas páginas, passa a utilizá-la na marcação dos diálogos toda a vez em que tem de se referir a Luiz. Sua insistência em utilizar o termo “noivinha” demonstra a sua insistência em participar daquela intimidade. — Sua condição, então, de narrador presente num nível extradiegético é apenas mantida em termos formais, ou seja, o narrador não tem um nome e não é visto pelos demais personagens, estando, portanto, formalmente... — ... fora da história e fora da ficção... — completei. — Qual a diferença? 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 145 — Explico depois. Mas antes faço uma ressalva: no meu modo de olhar para a narrativa de João Ubaldo Ribeiro, o narrador nunca se encontra “fora” da ficção, sendo ele também um personagem fictício de natureza diferente, sim, mas fictício, podemos dizer que o narrador, não sendo percebido pelos demais personagens, “mora” num nível diegético imediatamente superior à diegese da qual participam os três personagens referidos. O seu tom, no entanto, revela a sua presença participativa, já que toma para si as palavras de seus personagens, reproduzindo também as suas atitudes, como se lá estivesse, a troçar de tudo. O narrador pode não estar narrativamente dentro da história, mas é dentro da história que ele se sente e é assim que se comporta. — Como uma almazinha mesmo..., condenada a permanecer entre os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA vivos... — e ele presenteou a nossa discussão com um trecho de Viva o povo...: ... Em Amoreiras, por exemplo, afirma-se que a conjunção especial dos pontos cardeais, dos equinócios, das linhas magnéticas, dos meridianos mentais, das alfridárias mais potentes, dos pólos esotéricos, das correntes alquímico-filosofais, das atrações da lua e dos astros fixos e errantes e de mais centenas de forças arcanas — tudo isso faz com que, por lá, as almas dos mortos se recusem a sair, continuando a trafegar livremente entre os vivos, interferindo na vida de todo dia e às vezes fazendo um sem-número de exigências. (Viva o povo..., p. 15, realçou) — Sim, você ilustrou muito bem o nosso ponto: o narrador como uma alma que se recusa a migrar para um nível diegético superior e por isso fica condenada a permanecer entre os seus personagens. E agora leio eu este trecho de Setembro...: — Luiz — gritou Tristão — você está parecendo uma noivinha. (...) “Prestaste atenção ao sermão do padre?” Prestei, sim, disse a noivinha, agitando os malmequeres (...). (...) Oh, disse a noivinha, a pobreza não me assusta (...). (...) — Sua tia é dona Tristolda? — perguntou a noivinha, com terno interesse e gentil sorriso. (...) — Mas as damas de caridade estão fazendo uma campanha de âmbito nacional — disse a noivinha, levantando entusiasticamente o buquê. (...) — Que organização! — disse Tristão, dando graciosamente o braço à noivinha. (p. 15-17, realcei) — A brincadeira pára quando Luiz se despega da mão de Tristão, se senta no chão e larga os malmequeres. O narrador, atendendo ao movimento do personagem, também abandona a brincadeira e volta a referir-se a Luiz pelo nome, acompanhando, assim, solidário, o seu estado de espírito: livre de Tristão, 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 146 “sentou-se de novo no banco, como se nada tivesse acontecido, os malmequeres em suas mãos agora já meio murchos” (p. 17). — É o personagem, não o narrador, quem começa e termina a brincadeira da noivinha — disse o meu interlocutor. — Mas o narrador o acompanha, pois ele não consegue manter-se indiferente ao que sugerem os seus personagens, sendo, muito pelo contrário, afetado por eles e por suas linguagens. — Hum... — fez ele, lendo demoradamente as primeiras páginas. — Em muitos trechos, o narrador, mesmo solidariamente participante das brincadeiras de seus três personagens iniciais, vá lá, consegue manter-se à relativa distância de cada um deles, marcando com alguma ortodoxia o diálogo e não explicitando qualquer preferência por esse ou aquele personagem... — Sim, você tem razão, mas esta situação não se sustenta por muito PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tempo. Em outros momentos, como, por exemplo, logo em seguida à dispersão do grupo, ali nos jardins do governador, no início do livro — continuei —, o quadro narrativo transforma-se completamente, ganhando uma outra dinâmica: o narrador decide-se por fim acerca de qual personagem ele vai incorporar. E incorpora. — Tristão. — Sim. É Tristão, como se verá, o personagem a participar predominantemente da afetividade do narrador e, por extensão, do leitor.279 Mas podemos descobrir aqui e ali momentos em que o narrador também alterna, mesmo que por poucos instantes e dentro de uma mesma seqüência dramática, para outros personagens, que ele vai incorporando. Há uma visível preferência pelos pobres e pretos e oprimidos, por aqueles que passam maus bocados... Veremos isso mais adiante, quando nos depararmos com as considerações da professora Eneida Leal Cunha acerca das encarnações da almazinha em Viva o povo brasileiro... Mas isso é mais tarde — avisei. — Você mencionou “em nota” a matéria que aponta a ternura de Tristão... Não é isso. Tristão está todo o tempo, como uma criança, a experimentar a linguagem, com resultados variados, e a idéia de que a sua linguagem é “a linguagem simples de homem do povo” não passa de 279 — Há aqui — interrompeu-me ele, abrindo um parêntese — o trecho de uma matéria que explicita isso: “Tristão tem o seu encanto de pessoa enternecida e simples, sempre solidária. (...) a personagem se desenvolve, em sua linguagem simples de homem do povo” (Fernando Batinga de MENDONÇA (org.), “Personagens humanos”, Jornal da Bahia, 15 jun. 1969). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 147 uma ironia de João Ubaldo Ribeiro, que mostra Tristão operando com idéias clicherizadas acerca do povo: ser preto, ser feio, ter muitos filhos e passar fome. Ouça este trecho em que Tristão inicia uma série interminável de pequenas grosserias e galhofas com uma negra. Faço dois realces, sublinhado e negrito: a exploração, por parte de Tristão, do universo clicherizado do “povo” e a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA marcação do ponto de vista da negra. A pretinha espichava o cabelo com cuidado para trás (...). Cumprimentou Tristão com os olhos bem abertos. Timidamente. — Diga-me — falou Tristão, pondo as mãos sobre a mesa dela, — como vão as crianças? Um riso acanhado, com a mão na boca, ela não podia com ele. Que crianças? — Ora, qualquer criança. (...) — Diga-me — Tristão começou a falar como se não tivesse ao menos aberto a boca antes, — você passa fome? — O senhor quer brincar, não é? — disse a pretinha. Ensaiou um riso curto. Queria brincar não era? Indivíduo cabeludo, narigudo. Maluco. (...) — Diga-me — voltou Tristão, — por que é que você é preta? E feia? (...) Uma hesitação entre os risos e as caras ensaiadas para disfarçar o não saber o que fazer ou dizer. Frases enérgicas talvez. — O senhor quer ter a bondade de me deixar sossegada trabalhando? Eu não tenho tempo para ficar aqui ouvindo besteira. — Eis um belo discurso — disse Tristão. — Diga-me, você acredita na reforma agrária? O desprezo mudo, eis a solução. A pretinha virou o rosto para o outro lado e pôs para fora o lábio inferior. (Setembro..., p. 38-40) — Observe que o narrador, ao mesmo tempo em que percebe Tristão pelos olhos da negra, não deixa de lado a perspectiva do próprio Tristão. Os dois últimos períodos do trecho citado demonstram a convivência das duas focalizações, alternando o narrador de uma para outra, como a tentar dar conta de uma situação, não com a aparente objetividade de um narrador extradiegético clássico, a residir num nível narrativo superior, mas com a objetividade que resulta do embate entre duas subjetividades. Isso é importante. — Sim — disse ele, e pareceu animar-se. — Gostei dessa idéia final. É como se o comportamento do narrador fosse o de uma almazinha planadora que, indecisa quanto a que tipo de mundo pertencer, o mundo da história... — ... diegético, ou aquele outro, o indefinido lugar do agente narrativo... 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 148 — Sim, sim... — disse ele, sem entender muito bem —, e acaba não permanecendo em mundo nenhum, e flutua a meio caminho entre os dois... — O seu alvo, no entanto, mesmo na terceira pessoa, é Tristão. O narrador vai lançar mão, durante quase todo o tempo, do processo da focalização interna, viabilizado graças, principalmente, ao recurso do discurso indireto livre. — Pode-se dizer que, durante todos os trechos do livro em que a narrativa se mantém na terceira pessoa, em contraste com a primeira pessoa narrativa de Orlando, o narrador incorpora Tristão? — disse ele. — Sim. Tristão, entre os demais personagens, é o único que tem o seu narrador portátil, vamos dizer..., próximo a ele, em total intimidade com ele. — E prossegui: — A marcação dos diálogos, através do discurso indireto, acontece durante quase todo o tempo sob a marca de um discurso valorativo, ou seja, os outros personagens sendo observados pela ótica de Tristão, e a ótica de Tristão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA manifesta-se sempre de modo irreverente: “— Saaaaalta uma pizza — disse a voz do bigodinho lá dentro”; ou: “Eu não tenho problemas — disse o doutor (...). Tinha um enorme bigode, pendurado tristemente por cima da boca de lábios grossos” (p. 36, realcei). Vou ler um trecho que mostra Tristão e seus amigos olhando para os classificados do jornal onde trabalham. Logo em seguida à transcrição de um dos anúncios, um novo parágrafo se abre, sem travessão e sob a voz do narrador, inteiramente transformada e opinativa, sendo as opiniões não dele, narrador, mas de Tristão, ou, por outra, sendo as opiniões do narrador as mesmas de Tristão. — Onde acaba o narrador e começa o personagem? — Era esta a minha pergunta seguinte... Ouça. GALÃ DO NORTE — Alô, baby! Moreno simpático, 28 anos, boa situação na vida, idealista e compreensivo (veja foto), deseja corresponder-se (...). A foto. Horrenda, inclinada para o lado e o cabelo todo espichado com brilhantina lustrosa, dois ou três cachos na testa, o sorriso, olhar meloso para o canto, leve zarolhice, ah Galã do Norte, ei-lo. (...) — Fala, Galã do Norte! — gritou Tristão (Setembro..., p. 34). — A focalização interna funciona com mais eficiência, como já se disse, através do discurso indireto livre. Ouça. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 149 Tristão, sentando-se no chão com as mãos nos joelhos, ficou assoviando com energia (...). Assoviava o Hino Nacional. Minha canção preferida. (...) (...) (...) Saiu trocando as pernas de propósito e atravessou a pequena rua, aplicando vigorosamente as solas dos pés no chão. Para sentir, sentir. É uma desnecessidade atravessar uma rua tão feia, pensou. Os pés no chão: eu deveria estar bêbedo agora. (p. 17 e 18, realcei) — O narrador está de tal modo encarnado em Tristão que já não mais consegue manter separadas a voz narrativa em primeira pessoa da sua própria voz em terceira. Perde-se toda a distância, e o narrador, já inteiramente em Tristão, passa a dizer “eu”, como se fosse Tristão. Trata-se de uma focalização interna levada às últimas conseqüências, e as últimas conseqüências significam o deslocamento do narrador: do nível extradiegético do início do trecho para o nível intradiegético em posição heterodiegética, e agora, por fim, desta última para a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA posição autodiegética, estou sendo muito técnico?, quando o narrador, ao referirse ao pênis adormecido de Tristão, chega ao cúmulo da intimidade e da fusão. Tristão pôs a mão sobre o ombro de Joanita e levou-a para dentro. Vamos fazer um amorzinho. (...) No quarto, assim assim. Estava enjoado e o Velho Inocêncio não subia. Desinteresse. A cama muito velha e o travesseiro com cheiro de capim, veja você, enterro a cara no travesseiro e durmo. Só que não respiro. E morro. Que acontece ao Velho Inocêncio, tão desamparado? Tire as mãos de cima dele, prostituta. (...) Estou indiscutivelmente bêbedo. Quem me vê? (...) você já ouviu falar em revolução? Loção de nada, mulher burra, revolução. Inocêncio sobe airoso. Que coisa, enche-se de sangue. Meu corpo funciona. (p. 28) — Outro exemplo da força do narrador, que não consegue mais lançar mão de um vocabulário razoavelmente neutro: somente as palavras de seu personagem vêm à sua boca narrativa. Veja-se a descrição de uma prostituta que se aproxima de Tristão. Observe-se o ponto de vista do narrador: de que outro lugar poderia estar ele falando senão de dentro do corpo do admirado Tristão? — E observei: — Repare que uma das perguntas quem a faz em primeiro lugar, como hipótese, é o narrador, que em seguida motiva o personagem. A pergunta final acerca de calarse e ir para casa pode ser lida como um exercício de monólogo interior, ou diálogo interior entre Tristão e o seu narrador. — Alô — disse Tristão opacamente. — Você é Joanita? 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 150 — Han-han. — O cabelo era enorme, por cima, pelos lados, por trás, o decote baixo mostrando o começo dos peitos e um sinalzinho em cima deles. Tristão pôs o dedo no sinal. Tinha um medo horrível de dizer bobagens, assim como você é uma belezoca, meu bem vamos fazer um amorzinho, ou então como é que você entrou para essa vida. — Como é que você entrou para essa vida? — perguntou Tristão (...) oh por que não podia ficar calado e ir para a casa (...). (p. 22-23, realcei) — Pode-se vez por outra, como a estabelecer um contraste necessário, observar uma relativa autonomia do narrador em relação ao seu personagem: ele está incorporando mas consegue ter dos acontecimentos uma percepção independente: “Hércules ficou comovido. Só então Tristão notou que ele não tinha os dentes da frente” (p. 25, realcei). O termo realçado indica que o narrador já havia percebido o que somente mais tarde Tristão notaria. — E continuei: — Em outra passagem, esta mais complexa, podemos ver que o narrador ainda PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA consegue manter-se relativamente autônomo do personagem que incorpora... — Como a almazinha que, mesmo encarnada no alferes Brandão Galvão, ainda conseguia saber-se de algum modo almazinha, e não somente alferes... — Sim, sim... Você gostou mesmo da almazinha, não? No trecho que vou ler há uma longa passagem em que Tristão e o narrador permanecem juntos em discurso indireto livre, a tentar ambos dar conta do que passa pela cabeça do jovem depois que saiu da boate e, já com o dia amanhecido, ganhou as ruas de Salvador. O narrador vem acompanhando os volteios da cabeça de Tristão, até o momento em que percebe que este se irrita com seus próprios pensamentos: o narrador então se afasta do personagem e faz, de fora, uma referência ao fato. Trata-se de um caso de focalização interna, mas ainda em terceira pessoa, ou seja, o narrador não chegou a adotar a primeira pessoa, não mudando para uma posição autodiegética. Jogou com um gesto curvilíneo sua última nota de quinhentos em cima da cama, abriu a porta de leve e desceu as compridas escadas de degrau em degrau. Pela porta, via tudo iluminado pelo sol e as pessoas subindo penosamente a ladeira (...). Estava quente. Tristão desceu a soleira com um cigarro na boca (...). As pedras lisas da ladeira cheiravam mal. Havia um monte de lixo em cima e outro monte embaixo. Para baixo ou para cima, sempre há lixo. De novo irritado com os próprios pensamentos. Resolveu descer. Ridículo, descer uma ladeira (...). (Setembro..., p. 29, realcei) — Em situações de diálogo entre dois ou mais personagens, o narrador, mesmo que em focalização interna com um personagem escolhido, consegue 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 151 exercitar um olhar para o mundo exterior. São esses os momentos em que descreve o que acontece à volta. A descrição, no entanto, por mais detalhista e concreta que se apresente — continuei —, é levada a cabo sempre a partir do ponto de vista valorativo do personagem focalizado, no caso, Tristão. (i) Pôs o paletó no ombro e continuou a andar pela calçada alta. Padaria Bom Jesus. Sorveteria Estrela. Dois degraus. Casa Beethoven, ora já se viu. Edifício Parnaso. Bonito. Mais dois degraus. (...) Aspargo estava encostado numa das colunas do edifício, aparando as unhas. (...) Aspargo não fazia movimentos inúteis. Às vezes ficava somente vendo as pessoas passarem, mas com toda a utilidade. (Setembro..., p. 30) (ii) Os tambores inexoráveis. No fundo, Tristão podia notar agora, estava uma menina desamparadamente só. Batia os pratos, obstinada. — Treino para o Sete de Setembro — explicou Aspargo (...). (p. 32-33) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (iii) — Continuarão marchando pela Eternidade — sentenciou Tristão soturnamente. (p. 33, todos realces meus) — Toda a parte da narrativa em terceira pessoa de Setembro não tem sentido constitui um palco de performances onde o único atuante é o narrador, sendo os personagens que incorpora meros pretextos para as suas façanhas estilísticas. O romance forma um coro nada coeso de vozes. Se há ali uma permanência, esta é a do narrador a transmutar-se constantemente, mudando a cor de sua fala a cada incorporação realizada ou, quando não chega a tanto, a cada pequeno passeio, a sobrevoar, curioso, a alteridade que o provoca e o estimula a ser, a cada vez, um outro. — Essa característica vai radicalizar-se em Viva o povo brasileiro... — Sim. — E prossegui, não querendo perder o fio: — A primeira parte do segundo capítulo, nomeado “Dia 4”, apresenta o narrador em diversos disfarces textuais. Ele consegue transformar-se, sob a forma de um grande bloco de parágrafo contendo nele toda a alternância dos diálogos, no burburinho do jornal onde trabalham Tristão, Orlando e seus amigos. O narrador, pelo ritmo das frases, pelo formato dos parágrafos e pela pontuação, realiza, como num travelling sobre a redação, uma amostragem do dia-a-dia de um jornal soteropolitano. A multivocalidade narrativa, que vai tornar-se uma marca em João Ubaldo Ribeiro, começa a manifestar-se já em seu primeiro romance. O narrador avança pela intimidade da redação do jornal e faz dali um painel, percorrendo toda a sorte de situações e personagens, das conversas mais íntimas e das histórias mais sórdidas 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 152 às várias versões para uma mesma matéria, simulando o discurso jornalístico e ao mesmo tempo revelando a farsa de sua própria composição; faz ainda, pelo discurso, as vezes do secretário de redação, do chefe da reportagem, do chefe da página de polícia, dos vários jornalistas que ali trabalham e também dos diversos tipos de discurso político ali produzidos, para cada personagem ou para cada tipo de discurso ideológico há um estilo, um vocabulário, um tom. Ouça. (i) O Chefe da Página de Polícia pulou para a frente e disse isso é uma esculhambação, isso vai para a primeira página. Não vai nem nada, disse o Chefe da Reportagem, onde já se viu jornal desancar anunciante. (...) Você quer que eu faça a matéria assim: ontem, um pobre bujão, depois de injustamente provocado por duas perversas meninas, uma de três anos e outra de quatro, foi obrigado a explodir, ficando muito danificado, coitado. (...) Não seja gaiato, disse o Chefe da Reportagem. (Setembro..., p. 73) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (ii) Ontem, por volta das 13 horas (...), um bujão de gás explodiu, devido à negligência da doméstica Maria de Tal. O acidente vitimou, além da doméstica, as duas filhas do casal (...), que foram hospitalizadas, (...) sem gravidade. (p. 74) (iii) O jornal está ruim (...). É preciso fazer uma reestruturação. Sim, doutor, sim, doutor. Assim como está não pode ficar. Pois não, doutor. Osvaldo melhorou? Então é preciso botar pra fora. Bota pra fora! Bota pra fora! (p. 75) — O narrador sem cabeça acompanha as reminiscências de Tristão quando este se põe a pensar na menininha Raquel, “Tun-tun, (...) que ainda falava a língua das crianças novas”, e muda, assim, o tom de sua enunciação, aproximando-o ao máximo da singeleza vocabular própria da infância:280 “... iam ao fundo do quintal para olhar as coisas um do outro. A coisa dela era engraçada, lisa, (...). Ele tinha mais para mostrar, (...) para fora, como um prego” (p. 20-21). — Pode-se observar aqui a demonstração do que disse o próprio Ubaldo ao referir-se à sua intenção de deixar bem claras e evidentes as suas leituras, entre elas a de Joyce — disse o meu interlocutor, num exercício de intertextualização. — Compare-se com o trecho de abertura de Um retrato do artista quando jovem: “Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando 280 — A mesma utilização, pelo narrador, de uma sintaxe infantil nós encontraremos em algumas crônicas de João Ubaldo que tenham como tema a própria infância — disse eu, em nota. — E destaco este trecho: “Em matéria de pecados, aliás em matéria de religião geral, eu sempre achei que a pior coisa é os pecados. Na aula de catecismo, que era depois da missa e antes do futebol, (...) dona Maria José, com aquelas blusas dela de mangas fofolentas (...), dizia que se peca por pensamentos, palavras e obras. Palavras e obras, certo, muito certo, certo. Mas (cont.) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 153 pela estrada e a vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou um garotinho...”. Em ambos os casos temos onomatopéias, repetição de palavras e termos simples e vagos a substituir termos específicos. — Sim. Vou anotar isso — e anotei.281 — “Meu primeiro romance tem umas coisas timidamente joyceanas”, disse João Ubaldo, numa entrevista.282 — A mesma coisa vai ele fazer, não timidamente, mas explicitamente, nO sorriso do lagarto. — E ele brindou-me com mais uma boa intertextualização: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... não vale a pena não estou ficando broxa não e se estou não ligo monstra tiranossaura a Humanidade é muito atrasada é como os bichos igualzinha aos bichos e em muitos sentidos nunca saiu nem vai sair da Idade da Pedra mas não estou broxa estou ideal não sei o que sei é que não estou mal cavalos cavalos também pensando em posar nua como Molly cavalos Mellors cavalos éguas John Thomas eu deitada na grama florida com ele entre minhas mãos e recebendo ele suavemente viver tudo viver tudo idealmente na cabeça de tantos lados querendo porém sempre dizendo Não. (O sorriso do lagarto, p. 59) ... sim quando eu pus uma rosa no meu cabelo como as moças andaluzas usavam ou será que eu vou usar uma vermelha sim e como ele me beijou debaixo do muro mouresco e eu pensei bem tanto faz ele como um outro e então eu lhe pedi com meus olhos que pedisse novamente sim e então ele me pediu se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus meus braços à sua volta sim e o arrastei para baixo sobre mim para que ele pudesse sentir meus seios todos perfume sim e seu coração disparou como louco e sim eu disse sim eu quero Sim.283 — Mas, retornando... — disse eu, exasperado com esse final. — A focalização interna aqui é muito mais que uma questão de perspectiva e ponto de vista narrativo. O narrador transforma-se no personagem que está incorporando, e ambos, encaixados, deslocam-se até o tempo específico da rememoração, no caso, a infância. Nesse momento, um está no outro a tal ponto que não se pode falar aqui de um narrador a falar de um personagem, mas sim de um único corpo narrativo a falar uma mesma língua e a partir de um mesmo universo. — E quanto à onisciência propriamente dita? pensamento é muito descontrolado (...) (“Pensamentos, palavras e obras” (p. 31-37), in Já podeis da pátria filhos, e outras histórias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991, p. 33). 281 São Paulo, Siciliano, 1992, p. 17. 282 “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002. 283 James JOYCE, Ulisses, trad. Bernardina da Silveira Pinheiro, Rio de Janeiro, Objetiva, 2005, p. 815. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 154 — O narrador, em Setembro não tem sentido, não é, em nenhum momento, onisciente. Trata-se de um narrador em terceira pessoa que sabe e vê exatamente o que sabe e vê o personagem que ele está incorporando. Pode-se dizer aqui, seguindo a classificação de Todorov relativa ao grau de ciência do narrador, que estamos diante de um caso em que o narrador é igual ao personagem. Os outros casos são narrador maior que o personagem, onisciência, e narrador menor que o personagem, narrador-câmera. Você queria descrições técnicas, já lhe dei várias... — E continuei: — O narrador, mesmo operando na terceira pessoa, participa tanto da ficção quanto da história. — Qual a diferença? — perguntou o meu interlocutor, querendo me dar trabalho. — Isso me parece importante... Você falou disso lá atrás, de ficção e história, e não explicou. Explique agora. Uma tese que tenha como um de seus aspectos um estudo de narratologia não pode prescindir disso... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Sim, explico tudo. Explicando eu acabo entendendo, e isso é bastante importante. A distinção entre ficção e história... Posso aproveitar a própria terminologia de Gerard Genette, que criou, para a ficção, como eu já disse antes, dois níveis: o nível extradiegético, a comportar um narrador ausente da ficção, o clássico narrador onisciente na terceira pessoa, e o nível intradiegético, a pressupor um narrador presente na ficção. Quanto à história narrada por esse narrador, Genette usa os termos heterodiegético, para um narrador que não participa dessa história, e homodiegético, ou seja, o narrador que é dessa história um personagem. Se ele for o personagem-protagonista, pode-se ainda utilizar um sub-nível dentro do homodiegético: o narrador autodiegético, aquele que conta a sua própria história. Já vimos isso no caso de Sargento Getúlio e agora nesse caso do Diário do farol... — Isso me lembra o caso de Sherazade — disse ele, fazendo uma expressão de quem estava raciocinando. — Sherazade, deixe ver, é uma narradora inserida na ficção dAs mil e uma noites e é portanto um narrador intradiegético. Mas ela, contudo, está ausente das historietas que conta, sendo, assim, um narrador heterodiegético... — Bem notado, mas essa idéia não é sua. Isso quem formalizou foi o Yves Reuter284 — E prossegui: — O narrador de Setembro... participa da ficção na 284 Yves REUTER, “A narração (1): A instância narrativa” (p. 65-85), in Introdução à análise do romance — Leitura e Crítica, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 71, nota 1. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 155 medida em que se encontra no mesmo nível de conhecimento de seus personagens, não conhece a história que o envolve e está bastante vulnerável aos acontecimentos. Trata-se de um ser ficcional que passeia entre os personagens e os fatos que narra. Participar da ficção, no entanto, não o torna o que se chama um narrador-testemunha, um narrador ad hoc. O narrador e a sua narração, aqui, encharcam-se mutuamente: ele transforma a história e é por ela transformado, e é por isso que não se pode dizer, de modo algum, que se trata de um narrador limitado ao plano do enunciado. Ele também participa da história porque sua condição o leva a poder confundir-se com o personagem, embora ele de modo algum seja esse personagem. Nosso narrador vê e sente, sim, mas não pode ser visto nem sentido pelos demais personagens. Quem participa corporalmente da história é o personagem. O narrador é uma entidade parcialmente participante, que entra e sai, não da ficção, da qual é eterno prisioneiro, mas da história que ele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA mesmo narra, entrando e saindo dos personagens que incorpora, sempre invisível. É um fantasma, e como fantasma... — Há aqui um trecho — interrompeu-me ele —, em terceira pessoa, em discurso indireto livre, sem o exercício da onisciência: o narrador na entrada de uma boate, incorporando Tristão e vendo aquilo que seu personagem vê, ou seja, quase nada: “Não se podia ver muito bem dentro da boate, mas estava cheia de gente, sabia-se. Sentiam-se as vozes e os cheiros”. Quem os sentia? Tristão? — Sim, mas também o doador da narrativa. Esta expressão curiosa usa-a o professor Carlos Reis no seu Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós.285 Outro trecho demonstra a não-onisciência do narrador e a evidência da focalização interna: “O rapaz magro estava cochichando qualquer coisa no ouvido de uma das mulheres e ria um riso esquelético (...)” (p. 24). — E quando tudo leva a crer que estamos diante de um exercício de onisciência por parte do narrador? — quis saber ele. — Você pode me dar vários exemplos, e sempre acabaremos prontos a uma segunda leitura, que vai revelar estarmos diante do ponto de vista de algum personagem, no caso, Tristão: “Jeremias subiu a escada penosamente. Estava bêbedo de novo, como estivera na segunda, na terça e na quarta e como estaria todos os dias depois” (p. 25). 285 Op. cit. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 156 — Podemos flagrar um momento em que o narrador decide lançar mão de sua suposta onisciência?, uma onisciência que ele, se quiser, pode praticar, uma vez que tem todas as condições para isso? É um narrador em terceira pessoa que pode entrar e sair de suas focalizações e está formalmente presente num nível extradiegético, não é? Ele exibe então — disse o meu interlocutor — a sua capacidade de prever o andamento de uma ação: “Jeremias botou a caixinha no bolso. Um dia desses morreria, alguém certamente iria dizer. ¶ — Um dia desses você morre — disse Aspargo, tocando na caixinha, através do bolso de Jeremias” (Setembro..., p. 35-36, realçou). — Ele exibe essa onisciência de maneira tão mecânica, tão artificial e tão pouco sutil que por aí podemos entrever a pouca importância que ele atribui à capacidade prospectiva da narrativa onisciente... — e eu sorri, chegando à conclusão de que não valia mais a pena, para esse caso, continuarmos a dissecar PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA as questões estritamente narratológicas. E disse: — Mostro-lhe um outro trecho da crítica de Assis Brasil sobre a ficção moderna que estava então sendo produzida à época e especialmente sobre o romance. Veja que Assis Brasil volta a apontar a despreocupação de João Ubaldo Ribeiro com o que a gente pode chamar de situações romanescas típicas. Leia você mesmo — e dei a ele o jornal. ... No romance, que veio de uma forma linear, com a narrativa obedecendo ao esquema de começo, meio e fim, o escritor também tem procurado subverter seus valores estruturais, mudando o ponto de vista (Henry James), criando o monólogo (James Joyce), narrando na segunda pessoa do plural (Michel Butor), narrando indiferentemente em todas as pessoas gramaticais (Faulkner) e ainda misturando pseudodepoimentos pessoais com ficção (Henry Miller, Norman Mailer), ou adotando um certo automatismo narrativo (Kerouac) e passando para a substituição total do autor onisciente (Faulkner) ou ainda voltando à sua reformulação (Capote, Sallinger). No jovem romance brasileiro, as incursões anti-acadêmicas têm sido raras. Estão todos ainda apegados a um naturalismo descritivo (...). O romance de estréia de João Ubaldo Ribeiro, Setembro não tem sentido, apresentado por Glauber Rocha, pode-se inscrever nessa faixa de pesquisa e de não-compromisso com o acadêmico e a tradição. Ele de fato vem dessa linhagem, Miller, Kerouac, Mautner, impondo a sua própria visão social e estética. Nessa linhagem podemos observar, também, o descomprometimento com o que chamamos de invenção, no plano, podemos dizer, onírico da criação. Estes autores estão todos muito preocupados com uma certa linguagem parajornalística, e os casos narrados são antes descrições de “motivos” e de “temas” que não chegam à formulação definida de “enredo”. Na verdade, este não interessa muito, com suas “facilidades” de engodo, de “prende leitor”.286 286 “A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968, realçou. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 157 — E veja ainda — continuei —, para permanecermos às voltas com a minha pastinha de antiguidades jornalísticas, algumas matérias, duas sem referência de data mas certamente de 1961, que mencionam a especificidade de João Ubaldo Ribeiro em outra experiência literária, anterior a Setembro não tem sentido: a antologia de contos Reunião,287 da qual ele participou com três contos e juntamente com mais três jovens escritores em início de carreira, Sônia Coutinho, David Salles e Noêmio Spinola. Ouça: (i) João Ubaldo Ribeiro apresenta-se, em cada um dos seus três contos, com estilo totalmente diverso dos demais, testemunhando salutar insatisfação formalística.288 (ii) ... no texto do contista João Ubaldo Ribeiro acumula-se a cultura dum intelectual que sabe rir.289 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (iii) “O dia parece que está dando risada” — Esta frase de Josefina (...) qualifica um forte estigma de humor que caracteriza as peças literárias de J.U.R. e nele se encarna como uma das facetas definitivas de sua personalidade para futuros trabalhos. Não se sabe que conto escolher entre “Josefina”, “Decalião” e “Campião” [sic], pois eles estão escritos na mesma atmosfera humorística, com tal identidade estilística que não se vacilaria em dizer que é o escritor de maior homogeneidade temática de Reunião. O burlesco, o fútil, a mofa aparecem na hora justa e no momento exato. (...) Desce ao cotidiano e formula pensamentos na boca de Josefina: “Debaixo de mim estou eu mesma”, (...) ou descreve “as manhãs e as ruas. Um frio pequeno e manso subindo pelos braços (de Josefina) e o solo morno riococheteando pelas pedras irregulares (...)”. Também poder-se-ia afirmar que João Ubaldo Ribeiro é o que se afasta mais ou quase totalmente do regional e se apega muito sutilmente ao modo de escrever do povo de língua inglesa (...).290 — Há ainda outra experiência literária anterior, que é a sua primeira aparição, chamada Panorama do conto baiano, não tão bem recebida pela crítica quanto foi o caso de Reunião... Veja — e dei-lhe a minha pastinha com duas matérias separadas.291 287 Editora “Publicações da Universidade da Bahia”, apresentação de Eduardo Portella, capa de Calasans Neto, 1961. 288 Texto sem nenhuma referência. 289 Luis HENRIQUE, “Reunião hoje”, texto sem referência, 7 mar. 1961. 290 Adelmo OLIVEIRA, “Reunião: nova posição da literatura na Bahia”, texto sem referência. 291 A primeira, sobre o Panorama...: “... depois do amontoado medíocre de escritos editados há pouco sob o título de Panorama do conto baiano. Alguns dos contistas de Reunião estiveram presentes naquele volume e se redimem agora, como oferecimento de novos ângulos das suas (cont.) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 158 — Mas, de modo geral — disse ele, devolvendo-me a resenha de Assis Brasil e pegando as antiguidades jornalísticas para folhear —, podemos resumir assim: Setembro não tem sentido estrutura-se sobre duas formas através das quais o narrador se apresenta. E essas duas formas narrativas... — ... alternam-se, e eu acho, meu caro interlocutor, que essa alternância segue um padrão: a terceira pessoa dá conta dos trechos onde há um grupo maior de personagens. A primeira pessoa concentra-se basicamente na figura de Orlando, que, trancado em seu quarto, enlouquece. Não é à toa essa divisão: a terceira pessoa narrativa, a supor um narrador, pelos menos formalmente, extradiegético, será acionada nos momentos menos introspectivos do romance, momentos caracterizados por alguma ação e muitos diálogos. Embora formalmente extradiegético, o narrador em terceira pessoa permanece quase todo o tempo com a focalização no personagem Tristão, tornando-se, na prática, como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA vimos, não-onisciente e intradiegético. — E a primeira pessoa? — As partes em primeira pessoa, com o narrador se confundindo com o personagem Orlando e assumindo uma voz homodiegética-autodiegética, ou seja, como também já vimos em Getúlio, com o narrador, nesse caso, sendo um personagem participante da diegese e dessa diegese o protagonista... Retomando, as partes em primeira pessoa — continuei — serão introspectivas e gradativamente, no avançar das páginas, marcadas por um fluxo cada vez mais descontrolado da consciência de Orlando, que caminha para a dissolução, se espatifa e se transforma em quem bem quer. Observe que, ao contrário do caso de Getúlio, o personagem aqui não abre mão de fazer desfilarem todos os seus, ou melhor, de João Ubaldo Ribeiro, universos literários... (i) — Eu sou o rapaz que goza da invisibilidade. Como Stephen, o artista, (...). (Setembro..., p. 108) aptidões” (Adalmir da Cunha MIRANDA, “Reunião”, O Estado de S. Paulo, 6 mai. 1961); e a segunda, sobre Reunião: “... a única novidade literária para este árido ano cultural de 61 é apenas Reunião, onde os contistas bossa nova da praça estarão apresentando, em livro, o primeiro conjunto de suas novas experiências literárias. (...) ... todos jovens e todos indispostos com a literatura de ‘começo-meio-fim’. (...) ¶ Diante da crise literária na Bahia (...), é um alívio ver surgir Reunião (...). Revista Crítica, que conhece os originais, pode antecipar que se trata de um livro até mesmo polêmico. Será que períodos sem ‘vírgulas’ ainda chocarão os conservadores?” (“Reunião — Bossa Nova”, Diário de Notícias, 19 e 20 fev. 1961). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 159 (ii) Sou o rei da Ilha de Laput e preocupo-me com detestáveis matemáticas. (iii) Sou Idomeneus e sou rei dos cretenses. Não me serve. Pouco conhecido. Sou Aquileus, então (...). (p. 109) — Os momentos de narração em terceira pessoa e em primeira quase não dialogam, porque também Tristão e Orlando, a representarem, cada um, esses dois modos narrativos, não conseguem tampouco um diálogo produtivo. “Ainda me entrego a certas coisas, como a conversas com Tristão, lá no jornal”, diz Orlando. “Não devia conversar com ele: quase gosto dele” (p. 62). — E prossegui: — Em outro trecho do livro o narrador deixa clara a distância, etária e política, entre Tristão e Orlando, a segunda distância quase que sendo totalmente derivada da primeira. Ouça — e li —: “Diga se não é um discurso belíssimo, disse Orlando, sem esperar resposta. Um belo discurso, disse Tristão” (p. 76, realcei). E Tristão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ainda consegue conceber a possibilidade do diálogo, diferentemente de Orlando, que fala somente para si, e do padre do outro romance, o Diário do farol, que escreve mais para si mesmo, satisfazendo a sua “Vaidade”, do que para o leitor, a quem não perde a oportunidade de insultar. “Eu conto porque conto, você lê porque quer”, anota o padre (Diário..., p. 20). Ocupam Tristão, de um lado, e Orlando e o padre, de outro, os dois diversos momentos de uma cadeia de desenvolvimentos. Leia este trecho aqui do narrador, ao final da primeira parte do segundo capítulo de Setembro... — e entreguei o livro aberto ao meu interlocutor: Tristão concordou em silêncio e não teve ânimo de dizer que não concordava, porque, principalmente, não poderia dizer por que não concordava. Explicações inúteis. Vá com Deus, meu jovem, disse Orlando, entrando pela couraça a dentro, mais uma vez. Despediram-se na entrada do prédio. Iam para lados diferentes. (p. 91, realçou) — Você apontou, em Setembro..., o paralelismo entre os discursos em primeira e terceira pessoa, materializados ambos nos personagens de Orlando e Tristão, respectivamente, que não se entendem — começou o meu interlocutor, com uma expressão de quem estava iniciando um novo pensamento. — Essa falta de entendimento está patente, ora porque o próprio Orlando diz que com Tristão não há conversa, ora porque o próprio narrador diz que eles ao final “iam para lados diferentes”... Há ainda uma estrutural falta de comunicação, no livro, entre os capítulos inteiros, os em primeira pessoa e os em terceira pessoa, que 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 160 configuram histórias relativamente autônomas, dentro, ambas, do mesmo mundo, “a atmosfera cerrada e asfixiante em que as províncias envolvem seus jovens”, para citar aqui uma resenha de 1968 sobre Setembro...292 — disse ele, manuseando meus jornais e lendo o texto que compara o primeiro romance de João Ubaldo Ribeiro ao filme Os boas vidas, I Vitelloni, de Fellini, de 1953.293 — Continue — pedi. — Mostro-lhe agora, ainda em Setembro..., um caso bem mais sutil de choque entre discurso direto de um personagem e voz narrativa em terceira pessoa: dentro de um mesmo contexto narrativo, no caso um comício político, dois candidatos estão realizando os seus discursos às massas ao mesmo tempo em que o narrador, um narrador em terceira pessoa, se empenha em descrever a cena. Observamos então dois registros: os discursos dos personagens a desenvolveremse em frases de efeito e sobre assuntos aparentemente elevados e, ao mesmo, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tempo, a desdizer os discursos, as observações do narrador acerca de detalhes “baixos”, de cunho escatológico e completamente estranhos ao elevado universo discursivo dos candidatos; observações que resultam extremamente críticas, principalmente porque estão sob o véu de uma descrição aparentemente neutra. Veja — e ele começou a ler, surpreendentemente familiarizado com o livro. (i) — Povo da Liberdade — disse finalmente o Vereador. Um cachorro peludo e preto esgueirou-se velozmente entre as pernas dos soldados da banda e um deles lhe deu um chute. (...) — Neste noite de festa (...). ... enche-se-nos o coração de júbilo (duas velhinhas se entreolharam interrogativamente e um dos soldados apalpou o cinto: estava começando a ficar com dor de barriga) e a alma de felicidade... (p. 123) (ii) ... O discurso do Sr. Dr. Candidato Vitorioso ao Governo do Estado. — ... o nível de vida mais baixo do mundo! O Candidato arrotou discretamente, um tanto amedrontado, ante a possibilidade de o arroto ser amplificado. (...) — ... milhares de pessoas não têm dinheiro nem para comprar uma roupa! O Candidato percebeu um fiapo de pano de bandeira pendurado na manga de 292 “Uma Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968. 293 — E reproduzo aqui, em nota, mais trechos — disse eu, e peguei da mão dele o jornal. — “Nos dois trabalhos, de resto tão diferentes, o centro da análise é a atmosfera cerrada e asfixiante em que as províncias envolvem seus jovens (...). (...) em ambos há o traço comum da tentativa de uma catártica autobiografia espiritual. (...) João Ubaldo narra sua aventura interior com mais humor, mais violência e mais sinceridade do que Fellini. (...) Entre personagens típicos da viscosa vida provinciana, eles se agitam entre a tentação permanente da sedução da vida burguesa e a rebelião instintiva de seus jovens espíritos” (id.). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 161 seu paletó e deu-lhe com o dedo indicador. (...) Não pôde evitar olhar para os pés, para ver se os sapatos haviam perdido o lustro, com toda aquela poeira. (p. 125) — Sim, seu exemplo é bem apanhado, vou usar isso na tese — e oferecilhe café. — Mas não se trata aqui, propriamente, de um choque entre discursos diretos em primeira pessoa e um discurso narrativo em terceira pessoa... Reportome à minha idéia do “terceiro excluído”: não há, de modo relevante, como eu já disse, uma presença narrativa em terceira pessoa em Setembro... Quando ela existe, observamos bem e verificamos então que ela está em Tristão. Quem dá conta dessas observações aparentemente neutras que acabam por desmentir tudo o que dizem os hipócritas candidatos é o próprio Tristão. Há uma pista para isso, e quem dá essa pista é, agora sim, o narrador em terceira pessoa, ele mesmo, numa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA de suas raríssimas aparições. Ouça, o contexto é o mesmo. Estamos no comício. ... A voz do Vereador enrouquecia-se e se exaltava (...). Tristão subitamente destacou-se daquela figura minúscula e gritalhona, como se ela estivesse a quilômetros de distância: como se fosse através de um telescópio: muito afastada, sem pertencer ao mundo real. Tristão era só no mundo, por uma infinitesimal porção de instante. (p. 123-124) — Observe que logo em seguida a focalização começa; o narrador incorpora Tristão e aí sim têm início as tais descrições aparentemente neutras. É Tristão a olhar para o candidato “de cima”, “de longe”, “através de um telescópio”, longe dos sentidos usuais; a olhar com olhos “livres”... — e li. O Vereador, que falava ele? Que coisa, falar. (...) As palavras encadeadas tornaram-se cada vez mais ininteligíveis, sem relação com nada. Palavras soltas, e uma ridícula figura pequena, agitando-se. (...) O cinto preto, com pontos brancos, pela barriga. Haveria de ter cabelos na barriga, umbigo, talvez cicatrizes. (...) O Vereador abriu sua agora enorme boca cheia de dentes e línguas e disse: “Sim, sou candidato à reeleição!” (p. 124) — E Orlando? Parece-me que é Orlando o coração de Setembro não tem sentido... — disse ele, retirando, literalmente, as palavras da minha boca. 3.3. É SETEMBRO NO DIÁRIO DE ÁGUA SANTA... EM SERGIPE E NA BAHIA — Pode haver entre o escritor e seus narradores uma estreita correlação — disse eu —, já que costumam por vezes compartilhar as mesmas palavras e idéias. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 162 Dou-lhe um pequeno exemplo de aberto diálogo entre o escritor João Ubaldo Ribeiro e o narrador de Setembro não tem sentido, separados agora pela distância de 31 anos. O primeiro vem do personagem Orlando, de 1968, o segundo trecho foi dito pelo escritor numa entrevista de 1999. (i) Haveria muito maior dignidade em mim se eu pudesse escrever em grego, disse Orlando, mostrando as gengivas sem dentes. É absolutamente lamentável que este jornal não possua caracteres gregos, escreveu rapidamente na máquina. A fim de permitir a fiel reprodução de nosso pensamento. (Setembro..., p. 76) (ii) Itaparica é a minha parte do Recôncavo e, claro, é o umbigo dele, o omphalos (omfalos — temos caracteres gregos no jornal? Caracteres gregos são essenciais para a correcta expressão do nosso pensamento...).294 — Ubaldo e Orlando a se inspirarem mutuamente... — disse ele, me oferecendo mais um café. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Não — disse eu —, apenas João Ubaldo Ribeiro a praticar o seu bovarismo particular, ou bovarismo auto-referente, repetindo não as cenas que leu, mas as cenas que escreveu... É o caso do personagem Ângelo Marcos, nO sorriso do lagarto, secretário de saúde, desonesto, mau-caráter, que começa, no discurso direto livre, a cometer as mesmas trapalhadas gramaticais que o próprio escritor apontou numa crônica para o jornal O Globo, bem mais antiga. E expus: ... vocês já notaram que, depois do advento da Nova República, só se usa sujeito duplo? Antigamente, era apenas um recurso estilístico — meio rebarbativo, tipo concurso de oratória de centro acadêmico de faculdade de Direito, mas recurso. Agora, não. Agora é norma, começando pelo Dr. Sarney e descendo pela hierarquia abaixo. Nenhum deles diz “a democracia é”, todos dizem “a democracia, ela é”.295 — A nível de atendimento, capacitação tecnológica e qualificação de pessoal — declamou, a frente do espelho (...) —, podemos afirmar que estamos (...). A democracia, ela não é a penalização do cidadão em nome de preconceitos xenófobos e retrógrados. A democracia, ela não é sinônimo de atraso, como a esquerda passadista parece desejar. (O sorriso do lagarto, p. 16) — Outro exemplo desse bovarismo ubáldico, este bem mais explícito, é o que segue entre a personagem CLB, certamente a personagem de Ubaldo que 294 José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999. 295 “Grilos gramaticais” (p. 183-187), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 185. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 163 concentra o maior número de elementos do universo intelectual do escritor baiano: suas idéias, suas intuições, suas obsessões, suas crenças, seus protestos, o que faz do romance A casa dos Budas ditosos um autêntico, repito, romance de idéias..., e o próprio João Ubaldo Ribeiro, na mesma crônica, bem mais antiga, dO Globo. Ouça — e eu li os dois trechos e as duas vozes da mesma pena. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) ... eu ainda padeço, embora me gabe de não padecer, da relação ritualística que o babaca do ser humano mantém com a palavra escrita. Terá sido por isso que a escrita era inicialmente privilégio de sacerdotes e depois de monges? Ou por causa disso existe essa reverência cretina? (...) Chega ao ponto de muitos débeis mentais se orgulharem de “falar como se escreve”, como se a grafia não fosse uma tentativa muito defeituosa de engessar as palavras em símbolos metidos a fonéticos, (...) como se a escrita tivesse precedido a fala. Ouço gente pronunciando os emes finais, como se esta merda desta língua fosse inglês. Umaúm, dizem eles, e não apenas nasalando o som do u, em “um-a-um”. Se fosse assim, “um alho” era a mesma coisa que “um malho”, “um olho”, “um molho” e a língua ficaria inviável. Outro abléptico que eu conheço (...) pronuncia a palavra “muito” como se escreve, ou seja “múito”, sem nasalação do u. Ai! Realmente, somos uma espécie muito atrasada e só faltamos bater a testa no chão para coisas a que não daríamos a mínima importância se fossem somente faladas. Estão escritas, assumem sacralidade, tanto assim que, como eu também já disse, certas palavras nunca adquiriram passaporte para a escrita e, quando conseguem penetrar pela mão de algum mártir, são logo deportadas de volta, condenadas à clandestinidade ou confinadas em guetos, como fazem com gente. (...) (A casa dos Budas..., p. 90) (ii) Outro movimento, não tão expressivo, mas crescendo dia a dia é o Movimento da Pronúncia-como-se-escreve. Maluquice completa, pois supõe que a palavra escrita é anterior à falada e, depois que aprisiona a fala em símbolos aproximados, tem prioridade sobre ela (...). No futebol, mesmo, há um exemplo ótimo. Não tem mais “um a um”. Tem, não sei por que cargas d’água, uma expressão esquisita, mais ou menos “umaúm”. Resolveram que o “m” final do primeiro “um” se pronuncia (pois, afinal, se escreve) e até se liga com a palavra que se segue. Nunca ouvi ninguém falar “umavião” em vez de “um avião” ou “umamor” em vez de “um amor”, para não falar nas confusões que ocorreriam quando alguém dissesse “umalho” e ninguém soubesse se era “um alho” ou “um malho”. (...) ... há exemplo extremos, como do “muito” que outro dia eu ouvi várias vezes num comercial. O camarada devia ser membro radical do Movimento, porque dizia “múi-to”, sem nasalizar o ditongo. Não tem coisa mais estranha do que falar “muito” sem nasalizar o “ui” — parece que a pessoa está tendo uma crise de sinusite —, mas ele não viu nem til nem “n” ali e, portanto, o certo é como está escrito, é “ui”.296 — João Ubaldo Ribeiro conseguiu, em Setembro..., escrito aos 21 anos — retomei —, antecipar um ceticismo que só vamos encontrar mais tarde, justa e principalmente no padre do Diário do farol. O personagem Orlando representa um 296 Id., p. 186. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 164 contraponto à utopia daquele universo jovem da Salvador dos anos sessenta. Orlando, também como seus amigos, é jornalista, tem 36 anos, mulher e dois filhos. Abandonou-os e permanece num quarto de pensão, freqüentando cada vez mais raramente o jornal onde trabalham Tristão e os outros. Não se dá com o pai, a quem considera um porco, tampouco com a mãe, “acima de tudo chata, fracota e débil” (Setembro..., p. 49). O mesmo se dirá do padre que narra a sua vida de torturador e depois faroleiro em sua ilha de nome Água Santa; uma vida que veio a ser o que foi graças à figura violenta e abjeta do próprio pai e à “hostilidade maldisfarçada” de sua madrasta Eunice (Diário..., p. 36). “... eu perguntava a mim mesmo (...) se aquele era de fato meu pai ou se alguma feiticeira dos livros que lia (...) na vasta biblioteca que ele mantinha pela casa toda havia trocado todos os meus parentes por diabos disfarçados” (Diário..., p. 40-41). — Você comentou, nas nossas conversas anteriores, a possibilidade de se PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA estabelecer uma relação entre esse narrador sem cabeça que você procura e a tal almazinha do romance Viva o povo brasileiro — disse ele. — A almazinha como uma representação ficcional de um tipo de narrador bastante peculiar: um narrador que incorpora o personagem a ser narrado e com ele aprende. — Sim. Os romances que vamos comentar aqui podem constituir uma espécie de itinerário de aprendizados para esse narrador. E Orlando... — E Orlando não me parece muito bem posicionado nessa escala... — e o meu interlocutor riu. — Nem Orlando e nem o padre-faroleiro do Diário... — Você tem razão, eu estava para chegar a esse ponto da conversa. A gente pode identificar um ponto inicial de aprendizados; um ponto que tem os seus sintomas e pode ser caracterizado por uma atitude generalizada de fechamento, presente na atitude do personagem, nos diálogos e nas imagens evocadas. O niilismo de Orlando e do padre, por exemplo... Um niilismo que eles pretendem elevar à categoria de uma prática quotidiana alimentada unicamente por uma certa idéia de liberdade; uma liberdade niilista, definida e concretizada, no caso de Orlando, pela via da inação, e, no caso do padre, pelo poder destruidor: a liberdade de não querer nada, não precisar fazer nada, não ser ninguém; e a liberdade de não se subordinar a nada, a não ser aos seus interesses. Ouça aqui Orlando e o padre a falarem do mundo: “Coitadinho, mal sabe o mundo que o espera, etc. e tal. Como, se o mundo, nos termos em que foi elaborado, é de uma 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 165 perfeição absoluta?” (Setembro..., p. 64); “Não pretendo mudar nada no mundo. (...) ele é perfeito” (Diário..., p. 24). — A obsessão de Orlando é a liberdade, mas uma liberdade que seja perfeita, ou seja, que não implique qualquer necessidade, nem mesmo a própria necessidade de ser livre? — Sim. E Orlando reconhece ser esta a sua maior necessidade: ser livre. A liberdade do padre-faroleiro é a de poder transcender Bem e Mal. — “Mas querer ser livre já não é uma sujeição?” (p. 65) — leu o meu interlocutor, citando Orlando e ilustrando a minha fala. — Perfeito — e prossegui. — Não há projeto político e muito menos “projeto de política” que o demova de sua tentativa de liberdade perfeita. — “Não vejo razão alguma para se pertencer ao Partido. Por outro lado, se quiser ser honesto, não vejo razão alguma para não se pertencer ao Partido. Não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA há razões. Eis uma grande verdade” (p. 63) — leu ele novamente, citando pensamentos do personagem. — Orlando deseja ser livre, mas para quê? — Para não fazer nada dessa liberdade. Aplicando aqui a metáfora da almazinha, podemos dizer isto: a almazinha, que encarnou porque encarnar é preciso, e somente encarnando é que poderá ela aprender e se desenvolver, encontrou em Orlando uma existência estagnada. — “Não quero”, diz Orlando, “absolutamente nada” (p. 58) — leu. — Estamos fazendo uma boa dobradinha: eu exponho e você ilustra. Deixe-me seguir: João Ubaldo Ribeiro, através de Orlando, deu voz a uma postura de descrença radical cuja conseqüência imediata é o imobilismo radical. Não há em Orlando a combatividade que ainda se pode entrever em Tristão, que se dá ao trabalho de discutir e discursar e debochar de tudo à sua volta, porque ainda se dá ao luxo de estar metido num dilema. — E citei aquela matéria que compara João Ubaldo Ribeiro a Fellini: — “Resolver esse conflito interno [a “sedução da vida burguesa e a rebelião instintiva de seus jovens espíritos”] de modo satisfatório, isto é, que ao mesmo tempo lhe pareça justo e racional e lhe satisfaça as próprias necessidades afetivas, é o superproblema de Tristão”.297 — Mas os dois são personagens iconoclastas... 297 “Uma Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 166 — Sim, é verdade, mas Orlando, mais velho, sequer acredita na própria iconoclastia; encerra-se em seu quarto, do qual não pretende sair nem mesmo para comer. Agora leio eu — e peguei o livro: — “Talvez sentisse fome, sim, mas isso seria uma restrição mínima à minha liberdade. (...) inteira liberdade de morrer de inanição” (p. 58). Orlando encerra-se também num tempo presente de deambulações, um tempo presente que inclui também o futuro, para ele não mais que uma sucessiva cadeia de mínimos acontecimentos presentes. O futuro é concebido de modo minimalista: ir ao dentista, por exemplo. Não há, no ponto inicial do aprendizado desse nosso narrador sem cabeça, qualquer futuro. Qual o futuro do padre-faroleiro? Leia para mim — e abri na página. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... cada vez mais penso que me dar esse tiro é a melhor solução para uma vida tão cheia quanto a minha, agora esvaziada de tudo mais. Não há ninguém a me opor obstáculos (...). Sim, é bem possível que, quando você tiver acabado de ler este relato, eu tenha me matado. (Diário..., p. 302) — Dê-me mais características desse ponto inicial de aprendizados. — A prisão no presente. São os solilóquios de Orlando os momentos mais enclausurados de Setembro não tem sentido. — E continuei: — O personagem, apresentado ao leitor logo ao início de uma crise, digamos, existencial, inicia, de seu quarto, uma narrativa na primeira pessoa, autodiegética, onde predomina o tempo presente imediatíssimo. Orlando fala de si, de dentro do seu quarto e debruçado à janela: “Limito-me a ficar aqui na sacada, ou sentado na inexplicável poltrona verde, sem fazer nada. (...) Novamente começa a chover” (p. 47). Seus pensamentos giram em torno dos assuntos mais prosaicos, alternados com curtas e nada agradáveis rememorações de infância: surras do pai, omissões da mãe etc. ... Novamente começa a chover e não me resta outra coisa, senão botar outra vez o penico debaixo da goteira. Por enquanto, é uma goteira pequena, sem maiores pretensões, mas julgo que deverá aumentar, principalmente se continuar a chover dessa forma (...). (...) Onde diabo estará esse penico velho? (p. 47) — Os solilóquios verdadeiramente introspectivos — eu disse — apresentam-se num tom de desabafo: menos narrativo, menos sóbrio, menos justificativo, uma fala, esta sim, para si: “Isso dois ou três amigos já vieram dizerme [que sou um desorientado] e eu os mandei todos à merda. Que sabem eles da 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 167 minha vida? (...) Evidente que não sou feliz. (...) Eu poderia estar realmente melhor, e daí?” (Setembro..., p. 48). Ou ainda: “Merda de jornal, escrever coisas” (p. 59). — Momentos em que o Orlando-personagem se sobrepõe ao Orlandonarrador... — disse ele. — Sim. E agora me ocorreu algo: a prisão no presente apresenta ainda uma outra modalidade pela qual se manifesta: a prisão no discurso. Os momentos de rebelião verdadeira do personagem Orlando somente acontecem no nível discursivo. Orlando não faz nada; ele apenas diz que fará, ou que poderia fazer, e em seguida confessa nada ter feito. Seus atos de revolta são atos apresentados no tempo presente, de validade instantânea: mal terminamos de ler a frase subversiva e ela já é negada pelo narrador no período seguinte. A alegação de Orlando para o não cumprimento real de suas ameaças de subversão é a velha justificativa da necessidade de se darem as coisas de modo radical, ou então não se darem. Ouça PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA alguns exemplos divertidos: (i) (...) Posso sentar-me. Sento. Não, não me sento. Devo ser rebelde (...). (...) Rebelo-me. Não me sento. Sento, sim, não me rebelo, porque seria necessário que eu o matasse e aviltasse seu cadáver e jogasse suas cinzas na latrina, para satisfazer meu ódio mortal, para que a rebelião fosse satisfatória. (p. 95 e 96) (ii) Levanto-me e enfio-lhe ambos os indicadores na boca, afastando-os para os lados, até deixá-lo sem bochechas? Faltam-me forças para isso. (p. 97) (iii) Dir-se-ia que eu viraria a minha boca em direção à sua mão e que cuspiria sobre ela com violência. Mas não. (p. 98) — Mais um sintoma do ponto zero de aprendizados do narrador sem cabeça — continuei — configura a ausência da experiência da alteridade. O fechamento de que tanto se fala aqui é o fechamento para aquele que está logo ali e que é igual e também diferente: o outro. “Ninguém me entenderia, e isso é desalentador” (p. 111), diz Orlando. Não há outros que valham a pena no introspectivo e imediatista modo de existência de Orlando. Ele tem a razão e todos os demais são detalhes incômodos sobre o seu caminho. Ouça: “... ninguém será capaz de me dar uma razão plausível para eu gostar das pessoas. Também não as odeio, é claro, Seria pueril” (p. 61). Orlando exercita, por todo o texto, uma espécie de elogio da clausura: o único momento em que se pode, efetivamente, ser verdadeiro é aquele em que se está sozinho. A vida na sociedade é dissimulação, estar em meio às pessoas é permanecer em estado de fingimento. Orlando, nas 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 168 suas referências ao mundo do lado de fora de seu quarto, aponta a falta de honestidade como sendo intrínseca à exterioridade: “Lá fora é interessante: todos parecem gostar muito de mim, me chamam de figura genial, mas ninguém vem aqui e eu continuo só” (p. 47). Nas suas rememorações de velórios e enterros a que era obrigado a ir, Orlando salienta, sempre que pode, a atitude das pessoas em público: a mãe gostava de “parecer uma senhora bondosa, fazia todo o ‘mise-enscène’”. O pai, “empertigado, (...) desfilava à frente” (p. 49); “... pomposo, (...) tentava parecer cortês e refinado” (p. 50). O cunhado Júlio Borba, invadindo o seu quarto para espioná-lo, “entrava com um olhar que abrangia tudo, fingindo que estava achando os arredores muito a seu gosto, fingindo vistas largas e despreconceituadas” (p. 55). — E quanto ao Diário...? — A mesma relação se pode estabelecer entre o quarto fechado de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Orlando e o isolamento do padre no farol... — disse eu. — Enquanto o faroleiro, do alto de seu farol, consegue vislumbrar toda a superfície do mar sendo varrida pelos fachos retilíneos dos refletores (Diário..., p. 184), Orlando, de seu quarto, faz lá o seu esforço: “Eu espiava um pedacinho de mar na ponta dos pés” (Setembro..., p. 55), diz ele, postado à janela o dia todo e irritado quando alguém lhe invadia o sossego, “... não tolerava aquelas intromissões” (p. 55-56). — Há alguma relação possível entre a diminuição da intolerância de Orlando e o seu empenho numa narrativa que não seja de si? Quando ele, por exemplo, funciona mais como Orlando-narrador do que como Orlandopersonagem? — arriscou o meu interlocutor. — Sim. A falta de interesse pelo outro encontra uma trégua nos momentos que ele mesmo qualifica de “pequenos acessos de sentimentalismo”, durante os quais o que faz Orlando é, mais uma vez, empenhar-se numa narrativa, não de si, mas daquilo que vê, sem os rígidos julgamentos aplicados em seus instantes de “lucidez”, ou seja, de descrédito, descrença e desânimo. A narrativa do outro funciona aqui como uma descrição, e quem a aciona é o narrador, num texto muito pouco auto-referente. Ouça: ... Manhã de sol, quando acontece eu me acordar antes das seis horas, pressentir, da sacada, a luz se elevando por trás do casario em frente. Os tetos irregulares e belos, silhuetados contra a luz. Então, se olhar para baixo, posso ver o menino que sai para distribuir o leite, um pretinho minúsculo, para quem uma 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 169 garrafa deve pesar toneladas, acariciando a garupa de seu jeguinho manso, antes de saírem para a rua. Abraçaria o pobre pretinho e o acolheria em mim, não como um filho que isso é ridículo — mas assim como um irmão, entidade que nunca cheguei a entender bem... (Setembro..., p. 61) — Os trechos que eu realcei na leitura indicam pequenas intrusões, dessa vez não do narrador, a quem se costuma acusar de intrusão, mas do personagem: Orlando-personagem a embrenhar-se por entre as frinchas do discurso de Orlando-narrador. Orlando-personagem e Orlando-narrador — frisei — digladiam por espaços ao longo do texto, realizando, cada qual, movimentos opostos: o narrador, incorporando Tristão, batalha por narrar tanto o que seu personagem vê quanto o que imagina ou relembra. A incorporação de Orlando é diferente: precisa, afinal, valer a pena, e o que faz o personagem é justamente anular a possibilidade de as experiências e os aprendizados acontecerem. O desencontro e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA a incomunicabilidade verificados em todo o livro também se vão reproduzir microscopicamente, no interior de Orlando, e Orlando caminha para a loucura. — É como se a relação do personagem com o seu narrador não funcionasse... — disse ele. — Sim, e o resultado disso é a esquizofrenia do texto, a abrir-se e fecharse, espelhando assim o dilema de Orlando em seu quarto, abrindo-se e fechandose para o mundo e para as suas reminiscências. — Dê-me um bom exemplo — pediu. — Veja este caso: depois de o narrador, operando na primeira pessoa, iniciar uma dinâmica descrição da praça Castro Alves à noite, com suas prostitutas, e também do mercadinho das Flores, e depois da Ribeira e do largo Dois de Julho e da feira, com seus barraqueiros ainda não entregues ao “mauhumor profissional da luz do dia”, e ainda lançar-se a algumas lembranças de seresteiros bêbados e seus violões, depois desse verdadeiro exercício de observação detalhada ao qual se lança o narrador, Orlando subitamente o interrompe para manifestar a sua opinião, fechando novamente a narrativa em si mesmo e nas suas idiossincrasias: “Detestava, sim, todas essas reminiscências em relação a barraqueiros e seresteiros, todas essas lembranças cartográficas da cidade, mas não podia fazer nada” (Setembro..., p. 88). — Outro sintoma desse ponto inicial da trajetória do narrador... 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 170 — A sua obsessão pela verdade e pela falsidade do mundo refletida na idéia que as pessoas fazem de si mesmas. Todo o solilóquio de Orlando gira em torno das suas concepções do que seja verdadeiro e falso, e é em torno de si mesmo também que está aquilo que ele poderia considerar como “a verdadeira verdade”, termo que aqui cunhamos em contraposição ao termo por ele utilizado e que abre o seu texto: “uma verdade inventada”. É com a verdade que Orlando se dirige pela primeira vez ao leitor. Refere-se aos jovens poetas iniciantes, iludidos quanto ao próprio valor literário e sempre bajulados pela crítica e pelos amigos. É também brandindo a verdade que Orlando avança por todo o seu texto, ora chamando esta ou aquela atitude de uma completa desonestidade, ora negando-se a usar dentadura, “que, além de falsa, será uma coisa incômoda” (p. 54). — E li PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA para ele, realçando as palavras: ... Não é mais nada do que uma verdade inventada, isso é o que é. Nada mais que uma porca invenção. O sujeito escreve dois ou três poemas nauseantes, junta-os num livro (...) e faz um lançamento num salão qualquer, cheio de gente. (...) Nos cantinhos, dizem horrores dele, mas ele não sabe disso. Nunca saberá. (...) Nunca subirá à altura de um mísero muro de alvenaria. Mas, no entanto, não dispõe de meios para saber a verdade. No outro dia, os amigos vão hipocritamente para os jornais e escrevem elogios para ele. (...) nenhum deles (...) tem a coragem de se aproximar e dizer a verdade. Fica aquele mundo falso, todo falso a cercar o homem (...). De qualquer maneira, não adiantaria mesmo dizer a verdade. Um sujeito tão embriagado pela falsidade alheia pensaria logo não ser a verdade mais do que o fruto do despeito. (Setembro..., p. 45-46) — O padre do farol, por incrível que possa parecer, não estende a sua indiferença a uma distinção entre bem e mal aos pólos da verdade e da mentira — eu disse. — Ele, como Orlando, é igualmente obcecado pela verdade, e isso a um tal ponto que seria capaz de matar quem duvidasse da veracidade do que diz ele em seus escritos. Não há para o padre, e tampouco para Orlando, a literatura; eles a vêem como a mentira em oposição à realidade, entendida como verdade. Ouça trechos do Diário do farol. (i) O conteúdo desta narrativa é honesto, corajoso e escrupulosamente verdadeiro (...) Conto aqui a mais integral verdade e acredito mesmo que me enfureceria a ponto de matar quem duvidasse dela. (p. 9) (ii) ... não se atreva, como já avisei, a duvidar de mim, porque, mesmo sem jamais chegar pessoalmente perto de você, eu o matarei... (p. 20) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 171 (iii) Interrompa esta leitura se quiser — até definitivamente, se quiser, mas, se prosseguir, não duvide do que lhe conto agora, como, aliás, já lhe adverti. (p. 269-270, realces meus) — O padre é um personagem que funciona todo o tempo dentro do nível da mentira — disse ele. — O espaço da vida, para o padre, constitui a prática da mentira, ao passo que o da literatura, que ele não chama de literatura, mas de diário ou relatório, configura o espaço da verdade. Orlando, por sua vez, exasperase com a ausência da prática da verdade justamente em seu quotidiano não-escrito. — Sim, e a obsessão pela verdade, por suas próprias verdades, transformaos em personagens elitistas e arrogantes. Orlando e o padre são elitistas na medida em que se situam a si mesmos como pertencentes a uma classe de privilegiados, intelectual e culturalmente. — “... os intelectuais salvando o Brasil, aclarando as trilhas estéticas para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA a humanidade.”298 Não foi isso que disse Ubaldo, acerca de si mesmo ainda jovem e de seu grupo de amigos? — Sim — e admirei-me de sua memória. — “Conheço cretinos que me citariam centenas de coisas, ignorando”, diz Orlando, “que (...) eu já tive tudo e vi tudo” (Setembro..., p. 144) — citei. — Orlando é arrogante porque deixa clara essa distinção de modo violento e através do rebaixamento daquele que não se encaixa, quase todos, em especial os personagens das classes mais pobres, a quem vê com preconceito: “Gostaria de tocar uns clássicos para ela [a moça da varanda em frente, mira dos olhares de Orlando], só para ver o que diria. Provavelmente, torceria o nariz e diria que era música de missa, como fazia a dona da última pensão” (p. 46-47). E diz o padre: “... a maior parte das pessoas não sabe ler e é no fundo muito ignorante, rol no qual incluo arbitrariamente você” (Diário..., p. 10). — Por outro lado — e ele me interrompeu —, o narrador de Setembro..., em seus momentos em terceira pessoa, ou, como você quiser, em seus momentos dedicados ao personagem Tristão, demonstra a sua disposição em somente manipular informações de alta cultura se estiverem estas contrapostas ou misturadas a um discurso de tom mais popular. A erudição, para esse narrador, não vem sozinha ou, por outra, não faz sentido se não estiver relacionada à cultura 298 Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983 (trecho já citado). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 172 popular. Lembra-se das palavras “Recordação da casa dos mortos” escritas, com esmalte, num cinzeiro de uma boate cheia de prostitutas? — E, depois de sorrir diante de seu próprio exemplo, continuou: — Imagino que você pretenda desenvolver na sua tese a idéia do personagem Orlando — disse ele, fazendo cara de quem teve uma idéia — como o prenúncio de uma certa imagem de escritor que Ubaldo refletia e cultivava em si mesmo quando um jovem intelectual... — Sim — disse eu —; imagem que irá mais tarde retornar sob a idéia do escritor já amadurecido, que escreve por dinheiro e cujo perfil pretendo esboçar bem mais à frente, quando entrarmos no assunto Jorge Amado e a defesa da idéia do escritor profissional.299 — O escritor que escreve por dinheiro e defende uma postura muito pouco romântica acerca do ofício literário, para ele nada mais que uma forma de ganhar dinheiro, a única que ele conhece bem e bem maneja... — disse ele. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Exato. Ouça o que diz Orlando de seu chefe, o Zebra: “Dá-me dinheiro em troca de palavras, na máquina. Se soubesse e pudesse escrever tudo [o Zebra], eu morreria de fome, porque ele não compraria minhas palavras” (p. 96). Observese aqui que não há nada a preencher os universos da literatura e do jornalismo: não há nada relacionado à sua suposta função; há apenas as palavras, transformadas em objetos a serem trocados por dinheiro. — O ofício do escritor-escrivão. — E o meu interlocutor leu para mim um pedaço de entrevista: — “... muitas vezes só penso em escrever um livro quando estou precisando de dinheiro”, disse Ubaldo.300 — Sim, este nome é bom: o escritor-escrivão. Vou tratar disso no último tópico da nossa conversa, que vai ser o último capítulo de minha tese, que pretendo intitular “Ubaldo Amado”. Bom título, né? 3.4. A ESCRITA DA ESCRITA DA ESCRITA... — Eu gostaria de voltar ao sintoma que descrevi antes para você — continuei —: a prisão no presente. “Eu estou aqui e agora dizendo isto” é a 299 — Ver o Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, item 6.3.: “O trabalho do escritor-escrivão (parte I)”, p. 418. 300 Beatriz MARINHO, “João Ubaldo Ribeiro — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 173 fórmula da enunciação em Orlando, que também pode ser encontrada no Diário do farol através dos seguintes trechos, em que esse retorno ao momento presente da escrita é radical e encharcado de intimismo. O padre diz que parou a escrita para fazer o que fez, masturbar-se, logo em seguida ao exato momento em que escreveu aquilo que o inspirou a fazer o que fez, masturbar-se. Ouça: “No momento em que escrevo, a cena me volta e interrompi um pouco este trabalho, para me masturbar in memoriam, gozando tanto que minhas pernas tremeram e se vergaram” (Diário..., p. 301). E agora outro ótimo exemplo: “Não pretendo mudar nada no mundo. (...) Parei para rir, antes de terminar este parágrafo” (p. 24). — É como se não houvesse distanciamento de espécie alguma entre o eu narrante e o eu narrado? — Sim, mas de maneiras diversas nos dois livros. No caso do Diário... há uma ausência de distância psicológica, havendo, conseqüentemente, o fechamento PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA da narrativa. Há, sim, uma distância temporal, uma grande distância temporal entre o eu-narrante e o eu-narrado, temos o faroleiro já com sessenta anos a contar a vida de um seminarista e depois de um padre, mas o personagem não tem essa distância efetivamente realizada dentro de si, porque ele, desde menino, é o mesmo personagem, um personagem que não se transformou e que nunca conseguiu exercitar o distanciamento narrativo sobre si mesmo. Seu caráter malvado, descrente, cínico, irônico, perverso e premeditado manteve-se da mesma forma, por todo o livro, à exceção do início, em que ele ainda não tinha ultrapassado a fronteira que ultrapassou e à qual nunca mais retornou. Não há clausura maior que esta. No caso de Orlando não há mesmo essa distância, uma vez que Orlando está falando no tempo presente. O Orlando que narra e o Orlando que é narrado permanecem os mesmos, com exceção dos momentos de relembramento, porque a narrativa de Orlando, embora não se abra para o futuro, se abre, contudo, com vagar e detalhes, para o passado... — ... aproximando-se da fronteira que ultrapassou o menino do Diário do farol — disse o meu interlocutor. — Sim. Quando se trata do passado e do rememoramento da figura paterna, tanto o menino-Orlando quanto o menino-padre do Diário... conseguem realmente realizar a separação entre o eu-narrante e o eu-narrado. — Por quê? 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 174 — Porque eles eram diferentes daquilo que se tornaram depois. É um passado, no entanto, de conteúdo fúnebre; um passado que não ilumina o estado presente de Orlando, e muito menos o do padre, antes escurecendo-os. Orlando recorda-se sobretudo das surras que levava do pai, das mortes bizarras e dos velórios de que era obrigado a participar... E Orlando recorda-se, ainda por cima, contrariado, já que não gosta de ter condições e memória para conseguir lembrarse do que quer que seja. “Não sei por que penso nessas coisas. Não adianta nada. Não adianta. Eis aí duas palavrinhas que venho repetindo há muito tempo” (Setembro..., p. 54). Fechar-se no tempo narrativo presente... — E li: — “Distraiome com uma pequena coceira no dedão do pé” (p. 92). Fechar-se, como eu ia dizendo, tem como conseqüência a irresistível tentação, ou a difícil obrigação, de não abandonar a consciência dos atos imediatos. — Talvez seja esta a maior clausura de Orlando... Ter a total consciência PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA dos mínimos atos, o que significa negar-se a todo e qualquer automatismo quotidiano, que, para ele, quer dizer escravidão. — Sim — concordei com o meu astuto interlocutor. E aproveitei para ilustrar: — “... estou ficando um animal domesticado, que cumpre as coisas supérfluas, somente porque me foram ensinadas” (p. 95). Ouça aqui este segundo trecho — e li para ele: (...) Nunca ninguém olhou para os degraus ao subir, e isso me incomoda. Quase me deixa na contingência de voltar a subir de novo, com a devida atenção. No meio, gastam-se, tantos foram os pés que passaram neles. (...) Tenho de subir a escada com gestos precisos, de quem está acostumado a subir escadas. Há de haver gestos precisos para isso também, mas não tenho certeza deles e hesito ao fazer meus movimentos. Principalmente, não sei como colocar a cabeça, que surge absolutamente incômoda, em meus planos. Bem considerados, meus pés também necessitariam de umas reformas, só que não posso especificar quais seriam elas. Já está, o fim da escada e, em quatro passadas, subo o resto dos degraus, com graça e equilíbrio. (p. 94-95) — Esse trecho guarda alguma intimidade temática com o pequeno conto de Julio Cortázar — disse o meu interlocutor, animado. — “Instruções para subir uma escada”.301 Criticam ambos os atos impensados do dia-a-dia, propondo ambos, em seu lugar, um olhar fresco, virgem e, assim, mais penetrante. 301 — Sim — disse eu, e citei o trechinho de outra crônica de João Ubaldo, bem antiga, de 1976, em que ele faz um jogo com as palavras “tomada” e “tomada” semelhante ao que faz Cortázar (cont.) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 175 — Vou me lembrar disso para a tese, obrigado — e anotei, para não esquecer.302 — Esta prisão no tempo presente com suas setas para um passado fechado em morte não se revela, contudo, tão simples. Se Orlando, por exemplo, não resiste e inicia afinal uma série de pequenas rememorações tendo como protagonista a figura grotesca do próprio pai, “Gordo e bruto, metido a inteligente e irônico” (Setembro..., p. 49), é porque sua fala não consegue manter-se nos limites de um solilóquio e porque, de algum modo, ele precisa falar e, falando, construir um mundo. A quantidade de detalhes das curtas histórias que rememora demonstra também que Orlando não está a falar somente para si, porque, se assim o fosse, não se preocuparia em trazer à tona, ordenada e persuasivamente, fatos e descrições que ele mesmo já conhece. Orlando organiza seus pensamentos e assume uma postura realmente narrativa: ordenada e lógica, como se visasse... — A um leitor... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Não, uma vez que ele, Orlando, não está escrevendo, como o padrefaroleiro está. Como se visasse Orlando a um ouvinte — retoquei. — Aqui, mais do que nunca, se pode dizer que as vozes de Orlando e do narrador sem cabeça se encontram misturadas. É o passado de Orlando sendo narrado como ele mesmo não narraria. Mas esse ele-mesmo não poderia narrar nada, uma vez que esse elemesmo não acredita na narratividade do que quer que seja. O padre também não acredita. Como diz Dominique Maingueneau, “... o mundo desencantado ou presa do spleen é também um mundo no qual existe, apesar de tudo, lugar para a poesia de (...) Baudelaire”.303 Se eu quero chegar àquela idéia que eu esbocei um pouco antes sobre situarem-se os narradores de Tristão, de Orlando e do padre-faroleiro numa posição próxima àquela ocupada pelo próprio escritor João Ubaldo Ribeiro, com 21 anos quando escreveu Setembro não tem sentido, e com sessenta anos, na com “pé” e “pé”. — “Outra [das coisas que mais me irritam em português] é a palavra ‘tomada’, porque português é a única língua em que a gente liga a tomada na tomada. Já deve ter morrido muita gente por aí, porque o sujeito fala ‘segure aí na tomada’, e o segurador entende que a tomada referida é a tomada, aí vem e pega na tomada em vez de na tomada e morre...” (J. U. RIBEIRO [ele assinava com iniciais], “Vida triste”, Jornal da Cidade, 25 jan. a 1 fev. 1976). 302 Julio CORTÁZAR, “Instruções para subir uma escada” (p. 18-19), in Histórias de Cronópios e de famas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972. 303 Dominique MAINGUENEAU, “Duplicidade enunciativa” (p. 157-172), in O contexto da obra literária, op. cit., p. 171. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 176 escritura do Diário do farol, tenho de admitir, por outro lado, que a correlação entre João Ubaldo e seus narradores será sempre problemática e relativa, sim. — Trata-se do “paradoxo do fênix”... — acertou ele. — Sim, isso mesmo. Vou ler. Ouça: “Jamais o mundo é desprovido suficientemente de sentido para excluir a obra que o diz desprovido de sentido. Existe uma contradição insuperável entre a presença da obra e as propriedades que ele atribuiu ao mundo representado”,304 diz Dominique Maingueneau. Pelo “paradoxo do fênix”, “a obra é gerada pela destruição que parece promover”.305 O niilismo de Orlando não é suficiente a ponto de impedir o seu narrador de contar. O desprezo do personagem do Diário... pela escrita de uma história não foi suficiente a ponto de o impedir de escrever a sua história; antes, pelo contrário, ele é estimulado a escrever justamente por esse desprezo pela escrita... — O desprezo pelo leitor também não é suficiente para o desestimular em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA sua tarefa de contar a esse mesmo leitor a sua vida... — Certo. Ouça aqui três falas, uma em que se observa a relação de Orlando com a literatura; outra a do próprio João Ubaldo; a última a do padre-faroleiro. (i) Os livros me enchem a paciência agora e também não escrevo nada. Desisti. Acho que escrever é uma inutilidade perfeita. (Setembro..., p. 47) (ii) — Uma vez, em Itaparica, estava escrevendo no meio de seis quilos de papel de Viva o povo brasileiro e falei para um amigo: “Veja que maluquice, que profissão absurda, eu aqui sentado escrevendo sobre gente que nunca existiu, contando coisas que nunca aconteceram, o que é isso?”. E ele: “Não foi você quem inventou isso; desde que o mundo é mundo que tem gente fazendo esse tipo de coisa, o resto é frescura”.306 Quando perguntam hoje por que eu escrevo, 304 Id., p. 172. 305 Id., ibid. 306 — Vale a pena aqui citar o escritor Javier Marías — disse eu, abrindo o que será uma grande nota —, em trechos de uma conferência que pronunciou quando recebeu o prêmio internacional Rómulo Gallegos, pelo livro Amanhã, na batalha, pensa em mim (Mañana em la Batalla Piensa em Mi). O texto de Marías poderia ser praticamente uma resposta a João Ubaldo Ribeiro, dada cinco anos depois, e também uma conversa entre os dois escritores; uma conversa em que partilham do mesmo estranhamento diante do mundo que criam a quatro paredes. Ouça: “Parece certo que o homem (...) tem necessidade de alguma dose de ficção, ou seja, necessita do imaginário, além do acontecido e real. Não me atreveria a empregar expressões que acho recorrentes ou ridículas, como seria assegurar que o ser humano necessita ‘sonhar’ ou ‘evadir-se’ (...). ¶ Prefiro antes dizer que ele necessita conhecer o possível além do certo, as conjecturas e as hipóteses e os fracassos além dos fatos, o descartado e o que teria podido ser, além do que foi. (...) ¶ (...) Nós talvez consistamos, em suma, tanto do que somos como do que não fomos, tanto do que pode ser comprovado e quantificado e rememorado, quanto do mais incerto, indeciso e difuso, talvez sejamos feitos, em igual medida do que foi e do que poderia ter sido. ¶ E atrevo-me a pensar que é precisamente a ficção que nos conta isso, (cont.) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 177 respondo sempre assim: “Não sei, mas desde que a humanidade aprendeu a escrever que tem gente escrevendo história. Então, é alguma coisa séria” (risos).307 (iii) De novo me alegro por não ser escritor profissional ou romancista escravizado à produção dos livros de que precisa para manter-se. (Diário..., p. 145) ... desmistifico mais um pouco a suposta possessão dos escritores pelas musas, ou a necessidade de aptidões especialíssimas para escrever um livro. (Diário..., p. 179) — São bastante diferentes mas, de algum modo, se assemelham... — disse ele. — No caso de Orlando e do padre, pergunto: podemos dizer que, mesmo quando estão eles próprios a tentar dar conta de suas vidas, através da narrativa de histórias, mesmo em primeira pessoa, é muito mais um narrador do que o personagem a contar as histórias? Como se o narrador estivesse, de algum modo, isentado da descrença na possibilidade de se contar qualquer coisa... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Sim. Alguém precisa dar-se ao trabalho de narrar... Ouça Orlando, ou melhor, muito mais o seu narrador em primeira pessoa, num momento de louvável empenho narrativo: (i) Tanto ela [minha mãe] como meu pai gostavam de enterros. E nos obrigavam a ir a velórios e funerais. Empertigado, Emanuel [o pai] desfilava à frente, roupa preta e bengala de bambu, que também usava para bater-me pelas costas. (Setembro..., p. 49) (ii) Quarantina morreu porque estuporou. Foi essa a única explicação que circulou na casa de meu pai. Morreu de noite, fazendo todo mundo acordar para lhe arranjar sacos de água quente e lhe dar colheradas de magnésia. (...) A negra estuporou completamente e foi morrendo devagarzinho, com as vistas reviradas. ou melhor dito, que nos serve de memória dessa dimensão que costumamos deixar de lado (...). E ainda hoje é a novela a forma mais elaborada da ficção (...). ¶ (...) O gênero da novela proporciona isso ou o acentua ou o traz à nossa memória e à nossa consciência, daí talvez decorra a sua perduração e que não tenha morrido, contrariamente ao que tantas vezes se anunciou. (...) ¶ (...) Saber tudo isso (...) não chega a ser às vezes suficiente para o escritor, enquanto está escrevendo. Há momentos em que ergo os olhos da máquina de escrever e acho estranho o mundo do qual estou emergindo e me pergunto como, sendo adulto, posso dedicar tantas horas e tanto esforço a algo sem o qual o mundo poderia passar muito bem, incluindo a mim mesmo; (...) como posso passar boa parte de minha vida instalado na ficção, fazendo acontecer coisas que não acontecem, com a extravagante e presunçosa idéia de que isso possa algum dia interessar a alguém” (Javier MARÍAS, “O mundo reinventado pela ficção”, Folha de S. Paulo, 5 jan. 1997, realcei). 307 Cláudio HENRIQUE, “O que é que o baiano tem?”, O Globo, 2 fev. 1992. — Esta história aparece recontada na crônica de nome “Do diário de um homem de letras” (p. 62-66), in O conselheiro come, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 65. E, ainda sobre o ofício do escritor e o sentido (ou a falta dele) de se escrever sobre gente que nunca existiu e situações que nunca ocorreram, vale a pena a leitura da crônica “Como é seu nome completo” (p. 207212), in Sempre aos domingos, op. cit. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 178 Eu estava lá. Quando ela começou (...) a soltar uma espuma esbranquiçada pela boca e a olhar meu pai esgazeadamente (...), me retiraram do quarto imundo em que ela vivia (...). Quando voltei, ela estava coberta por um lençol, exceto pela mão esquerda, que pendia sempre para fora da cama estreita, apesar de, a todo momento, tentarem pô-la embaixo do lençol. A mão, com as unhas brancas, insistia em voltar, quase viva. Tive medo e nojo. (p. 51-52) — E o mesmo se pode dizer do padre-faroleiro do Diário..., que não acredita em nada e que pode muito bem prescindir de tudo e todos, inclusive do leitor. Esse padre, no entanto, a despeito de sua auto-suficiência e seu desprezo por aquele que o lê, se dá ao copioso trabalho de escrever um livro e contar em detalhes toda a sua vida, dando satisfações a quem ele não conhece. É o narrador o responsável pela narrativa, e não o personagem... O personagem, levando-se em conta o seu perfil psicológico, não precisa contar nada ao leitor, a quem despreza, mas o narrador, esse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA sim... E aqui retorno ao ponto em que citei para você lá atrás, um trecho em que o narrador do Diário... se refere à “vasta biblioteca” de sua infância. 3.5. EM NOME DO PAI, DO PAI E DO PAI — Sim, sim. Imagino que não tenha passado despercebida aqui, para você, a presença dessa famosa “vasta biblioteca” a ocupar os espaços tanto da ficção quanto da biografia de Ubaldo... — disse ele.308 — Sem dúvida que não, e ainda arrisco dizer que essa “vasta biblioteca” aqui citada deve a sua presença no romance muito mais a uma necessidade de se inserir um dado biográfico do que a uma necessidade da narrativa propriamente dita. É muito pouco verossímil que um personagem como o pai do padre, descrito no texto como um autêntico brutamontes, assassino e crápula, tenha em casa uma vastíssima biblioteca. Pode ser uma herança de família, sim; pode ser propriedade da mãe do protagonista, sim, mas, de todo modo, a presença da biblioteca no romance seria gratuita não fosse a sua importância simbólica no campo biográfico. Não há, em nenhuma parte do texto do Diário..., um momento em que 308 — E lembrei-me, para que se possa ter uma idéia quase completa do universo dessa vasta biblioteca da infância do escritor, de algumas crônicas de imprensa em que ele trata diretamente do assunto. São elas: “Ele chegou mesmo” (p. 169-175, do livro Sempre aos domingos, op. cit.); “Memória de livros” (p. 137-153, de Um brasileiro em Berlim, op. cit.) e (cont.) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 179 o pai do faroleiro esteja em proximidade, mesmo que abstrata, com a sua “vasta biblioteca”, onde em nenhum momento entra, nem mesmo para conferir se os livros estão no lugar. O pai do protagonista encontra-se sempre no campo, a checar o funcionamento da fazenda, em seu jipe ou em seu cavalo, nunca na sua “vasta biblioteca”. — É como se essa biblioteca presente no Diário do farol estivesse fora do lugar... — disse ele. — Sim. Essa biblioteca, eu diria, é um fantasma; é um dado da tal “autobiografia fantasmagórica”, expressão dele mesmo, que João Ubaldo Ribeiro, aqui e ali, vai tecendo ao longo de seus romances, quase como uma obsessão. Podemos destacar mais uma recorrência no livro A casa dos Budas ditosos: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA também, à sua maneira, um acerto de contas com a infância. Ouça. Vejo tudo como se fosse hoje. A velha casa grande do Outeirão, que já peguei com as paredes cobertas de limo de verde a retinto, insetos por tudo quanto era canto, jias que no inverno miavam como gatos, plantas estalando, as telhas se entrelaçando com cipós e uma ou outra cobra cor de esmeralda, o resto da chuva ainda pingando das árvores nas plantas de folhas grandes em baixo, uns fedores e cheiros mornos saindo das rachas nos pisos de lajota, passarinhos cantando e piando, uns azulejos desmaiados nas paredes do varandão, umas quatro galinhas brabas ciscando debaixo das touças de bananeira, pedras soterradas pela lama, calangos trepando pelos troncos das mangueiras, duas ou três mutucas zumbindo e, apesar de tudo, um silêncio que chegava a doer. Isso. Foi nesse dia, nessa grande casa velha embolorada, que tinha uma estante de sucupira crua que as goteiras haviam empenado nas juntas. Já conhecia muito aquela estante, mas, mesmo assim, ou talvez por causa disso mesmo, fui mexer nos livros enrugados pela umidade, com as páginas tresandando inesquecivelmente e, a cada uma que eu folheava, essa exalação me trazia um arrepio no meio das costas e me deixava enlouquecida. Havia todos os tipos de livro. Lembro bem do “O Guarany”, com ípsilon, ilustrado pela figura de Pery, também com ípsilon, que eu achava que mostrava um volume fascinante do lado esquerdo da tanga de espanador, de Salambô, estampando uma mulata quase nua na capa, D. Quixote de ceroulas em meio a alucinações, uma coleção encadernada de Anatole France se desmanchando, tudo, tudo. (A casa dos Budas..., p. 23-24) — Estas bibliotecas pertencem muito mais ao universo biográfico do que ao ficcional. — Pertencem aos dois — corrigiu-me ele —, mas é a força genética dessas bibliotecas que comanda a sua inserção no mundo ficcional do autor... “Voltando aos velhos ares” (O Globo, 3 nov. 1985, reunida no livro Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 145-149). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 180 — Tem razão. Bem como a inserção de tudo o que pertence ao erudito universo de uma biblioteca, que é e sempre foi, desde a infância, o universo do menino, do jovem e do senhor João Ubaldo Ribeiro. Como escreveu uma jornalista, acerca do livro, embora de modo um tanto atrapalhado, mas vá lá...: “Na vida real e no romance, começa na infância a confusão das categorias díspares”.309 Observe que tanto o padre do Diário... quanto o próprio escritor mantêm as mesmas opiniões quanto ao que julgam essencial no mundo da literatura: o mínimo essencial... Ouça: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) Não preciso de nada de fora. Como todo homem inteligente da minha idade, sessenta anos completos, descobri há bastante tempo que poucos livros são mais do que suficientes para a leitura e tenho menos exemplares do que a famosa biblioteca de seiscentos volumes que tanto maravilhava os contemporâneos de Montaigne. (Diário..., p. 14) (ii) — Eu leio pouco. Hoje, leio os mesmos livros. (...) ... as mesmas coisas de antes, leio Rabelais, muito Jorge de Lima, lia muito Joyce e Graciliano Ramos, que não leio mais.310 (iii) Gosto de comparar a vida na casa paroquial à existência de um nobre seiscentista, um fidalgo de posses e poder como Montaigne, cujos escritos sempre me acompanharam, por alguma razão que tenho dificuldade em precisar. (Diário..., p. 121-122) (iv) — Montaigne é um nome admirado por Ubaldo, que o considera dono de um espírito claro, honesto, observador, erudito, conhecedor das paixões e da história humanas, como confessou em uma de suas crônicas.311 — Mais uma vez, concordo com o que você disse acerca da força genética dessa biblioteca a comandar a sua inserção no mundo ficcional. Você disse muito bem — observei, com alguma inveja. — Vou anotar isso... — e fiz uma pausa — ... para a tese. — E continuei: — Qual o centro da queixa, tanto de Orlando quanto do padre-faroleiro? — O pai. Mas você está fazendo... — Agora permita-me inserir mais um personagem nesse ponto de nossa conversa — e puxei para o centro da mesa mais um romance. — Vamos observar 309 Cris GUTKOSKI, “O cinismo é para o seu bem”, Zero Hora, 1 abr. 2002. 310 “João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984. 311 Ubiratan BRASIL, “Confissões de um padre amoral em Diário do farol”, Jornal do Comércio, 31 mar. 2002. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 181 o perfil dos pais de Orlando, do padre-faroleiro e também do peixeiro-biólogo João Pedroso, do romance O sorriso do lagarto.312 Você leu esse? — Li. Você teve sorte de encontrar um interlocutor já razoavelmente ciente do que se passa... — disse ele, vaidoso de suas leituras. — Não podemos deixar de atravessar essa ponte biográfica — interrompio. — Não precisamos passar para o outro lado, porque o outro lado é a vida pessoal do escritor João Ubaldo Ribeiro. Não passaremos para o outro lado, mas podemos, por alguns instantes, permanecer somente na ponte, no meio da ponte, no entre-lugar, para usarmos aqui a famosa expressão de Silviano Santiago, dessa vez fora do lugar... no entre-lugar da ficção e da vida. — Você está fazendo psicanálise... — Eu, não. Ninguém está fazendo psicanálise, embora também ninguém esteja aqui riscando a psicanálise do mapa... A psicanálise já está feita na PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA literatura, e é dessa literatura apenas mais um aspecto a ser levado em conta em nossa discussão. Talvez em nenhum outro romance, depois de Setembro não tem sentido, João Ubaldo Ribeiro tenha lançado mão, com tanta força, de um personagem que remeta, direta e indiretamente, ao seu próprio pai. E não estamos falando aqui do seu pai biograficamente constituído, é claro, isto é óbvio, mas de uma imagem de pai como uma presença marcante e difícil, que tinha tanta influência, força e domínio sobre o menino-João Ubaldo Ribeiro, como têm o pai do Diário do farol e o pai de Setembro não tem sentido sobre o menino-faroleiro e o menino-Orlando. Partem ambos da mesma constatação: “Desejo estragar, ou macular definitivamente, sua falsa felicidade, se você se ilude em tê-la” (Diário..., p. 12), escreve o padre. “Evidentemente que não sou feliz. Todo sujeito feliz é um boçal” (Setembro..., p. 48), reafirma Orlando, que assim fala do pai: “Meu pai dizia que eu não podia deixar de ser um maricas...” (p. 49), o mesmo dizendo o padre-faroleiro acerca de seu pai, que “acreditava que eu, com a minha fragilidade de maricas fracote... (Diário..., p. 83). — O pai de João Pedroso está longe de ocupar um lugar central na trama dO sorriso... — disse ele. 312 — “Assim como Ubaldo”, diz o texto da revista Veja — citei —, “João Pedroso, protagonista da trama, mora em Itaparica, vai ao botequim todo dia à mesma hora, senta-se à mesma mesa diante do mesmo copo de uísque (“Ninho de répteis”, Veja, 22 nov. 1989). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 182 — Sim, é verdade, mas o perfil do personagem deve, sim, e muito às lembranças que tem do pai. João Ubaldo Ribeiro, diferentemente do que fez com Orlando e o padre-faroleiro, trazendo à tona da memória alguns péssimos acontecimentos relacionados aos pais desses personagens, circunscreveu, de certa forma enfraquecendo, todo o arsenal de lembranças de João Pedroso a um pacote com cartas, as cartas do pai, a tratar de assuntos comuns tanto à biografia de João Pedroso quanto à do próprio escritor. — E nunca houve, na biografia de nenhum dos três, ou de nenhum dos quatro, se inserirmos Ubaldo nisso..., uma “Carta ao pai”? — Na biografia dos personagens, não. Quanto a João Ubaldo Ribeiro, não sei. Estamos tratando, vale a pena lembrá-lo disso, com um material biográfico público, e, nessa esfera, não há, não, senhor, nenhuma “Carta ao pai”, havendo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA apenas as “cartas do pai” — e li. ... Eram as cartas do pai, a complementação escrita do que lhe falava quando morava em sua casa, que nunca cessou de bombardeá-lo onde quer que estivesse e fazer com que se sentisse num permanente inferno de recriminação e culpa. A carta do vestibular de Direito, que não quis fazer, e o velho considerou aquilo covardia e traição. A carta sobre o caráter de um verdadeiro homem. A carta sobre fracasso. A de sua biografia, desde uma infância onde já se percebia fraqueza de vontade e lassidão. A da velhice desconsolada. A da permanente decepção. (...) Passou a vê-las, finalmente, como simples insultos despeitados, invejosos e doentios, partidos de um homem que, apesar de ser seu pai, jamais gostara dele, um homem que, se julgando superior, era na verdade um frustrado mesquinho, autocrático e recalcado. (O sorriso..., p. 262) João Ubaldo Ribeiro — Meu pai me mandava cartas quilométricas [para os Estados Unidos] falando sobre a minha tese. Escrevi para ele dizendo que não queria ser catedrático como ele, ficou puto, mandou várias cartas me esculhambando. (...) Voltei pra ser professor de Ciências Políticas, na Universidade Federal da Bahia e na Católica. (...) Não gosto desse período da minha vida. Jaguar — Se fosse um romance, você cortava esse pedaço? João Ubaldo Ribeiro — É, é.313 — Observe agora a semelhança entre as queixas do menino-Orlando e do menino-padre, nos dois outros livros. — E li, realçando trechos. 313 JAGUAR, Fernando VITA, Fernando de BARROS, Haroldo CARDOSO, André Luiz OLIVEIRA, “Pasquim vai à Itaparica entrevistar João Ubaldo. Muito riso e pouca literatura”, Pasquim, 23 nov. 1989. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 183 (i) Dizia que eu era cínico, não sei por quê. E batia mais. (Setembro..., p. 49) ... embora soubesse que ele certamente continuaria a me chamar de cínico, não ousei baixar o rosto para não correr o risco de ter minha cabeça levantada por um sopapo... (Diário..., p. 40) (ii) [O pai de Orlando] Você, meu filho mais velho, (...) que só me dá desgosto. (Setembro..., p. 49) [O pai do padre] Cínico! Descarado! Desqualificado! Desgosto, desgosto, desgosto! Não sei o que fiz a Deus... (Diário..., p. 40) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (iii) Quando, às vezes, eu não chorava, ficava ainda mais furioso: — Engrossando o cangote, heim? [diz o pai de Orlando] Querendo bancar o durão? Já lhe mostro! (Setembro..., p. 49) — ... o senhor já tem um filho homem. Eu sou homem. Padre pode usar saia, mas é homem. — Moleque! Está querendo engrossar o cangote, é? [diz o pai do padre] Fazendo gracinha, é? Não sei onde estou que não lhe dou uma surra de cipó! Quer levar uma surra de cipó? (Diário..., p. 73) — Podemos observar também outro paralelismo — continuei —, desta vez entre as figuras da mãe de João Pedroso, sempre omissa, da mãe de Orlando, “chata, fracota e débil” (Setembro..., p. 49) e da madrasta do menino do Diário do farol, cúmplice do cunhado no assassinato da irmã. Observe os três trechos: (i) ... nunca o desonrara em nenhum sentido, sempre levando uma vida correta, embora frouxa. Nem desonrara a mãe, embora secretamente houvesse abafado muita raiva dela, por nunca se ter oposto às violências e injustiças do pai, nem nunca ter defendido o filho contra acusações absurdas. (O sorriso..., p. 262) (ii) Duas ou três vezes, quando meu pai me surrava nu (...), ela me punha, a conselho dele, compressas de água e sal. Vinagre e sal, sei lá, não me lembro. Punha as compressas e dizia melancolicamente, em tom sofrido: — Meu filho, eu fico triste de ver como você obriga seu pai a tomar essas raivas (...). Seu pai é louco por você. Você não compreende seu pai. (Setembro..., p. 50, realcei) (iii) Creio até que poderia fantasiar uma infância mais ou menos feliz, se me deixasse iludir pelas falsificações da memória e se não fosse surrado pelo menos uma ou duas vezes por semana, geralmente nu e rolando pelo chão, para que depois minha madrasta, dizendo frases consoladoras que contradiziam (...) seu semblante prazenteiro, me aplicar compressas de água, vinagre e sal sobre os vergões de minha pele. (Diário..., p. 32-33, realcei de novo) 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 184 — E ele adverte: “... meu pai não foi o pai monstro do livro e não estou aqui a fazer análise”.314 — O fantasma, porém, da autobiografia fantasmagórica permanece — disse o meu interlocutor. — Sim. Ouça: “Que o pai era severo, era mesmo”, escreve a jornalista Cecília Costa, numa entrevista com o autor. “Que a educação foi rígida e havia uma lenda na família de que aos quatro meses o pai batia nele, por não suportar o choro do bebê, também é verdade”, diz ela, baseada, provavelmente, no que lhe disse o escritor durante a entrevista.315 E diz o padre-faroleiro nas suas confissões: “... sei, porque minha mãe me contou, que tomei minha primeira surra aos quatro meses de idade, por causa de meu choro de cólicas, que não o deixava conciliar sua sesta habitual” (Diário..., p. 29). E João Ubaldo Ribeiro — continuei —, apesar de saber que o fenômeno quase sempre acontece, sempre espera, segundo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA nos diz ainda a Cecília Costa, que o leitor não superponha escritor e personagem, um personagem, nesse caso, que “mata o pai, os irmãos, tortura, seduz, violenta”. E explica ele: “Sempre que escrevo na primeira pessoa acontece essa confusão. Mas juro que minha mãe está viva, não matei meu pai e meu pai não matou minha mãe”.316 E ele não apenas explica como também insiste em explicitar a sua condição: “Mas repito: não sou eu quem dialoga com o leitor, é o personagem que resolvi inventar”.317 Isto diz João Ubaldo Ribeiro, que de certo modo vai dizer a mesma coisa acerca das interpretações “entrelinhares”, só que através da pena de seu escrevinhador, encarapitado em seu farol. Ouça o trecho: Vejo certos defeitos nas páginas precedentes mas, em vez de reescrevê-las, apenas aponto esses defeitos (...). ... compete a mim manter a disciplina narrativa sob controle racional, procurando evitar tanto quanto possível interpretações equivocadas, irritantes e enervantes. Se você acha que posso estar me referindo a você, tem toda a razão. porque a maioria lê através de filtros a que se apega de forma demente e não vejo motivo para você ser exceção. Há muita gente, gente demais, que lê nas entrelinhas, um perfeito exercício de imbecilidade, defesa neurótica contra a realidade ou, em inúmeros casos, o achar-se tão sabido que se acaba sendo besta. Não existe essa coisa de entrelinhas. Pelo menos nos livros honestos, como este, não há nada nas entrelinhas, tudo deve ser procurado e será 314 Cecília COSTA, “A temível marca da maldade de João Ubaldo”, O Globo, 18 mar. 2002. 315 Id. 316 Id. 317 Ana Cláudia PERES, “O mau pastor”, O Povo, 13 mai. 2002. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 185 devidamente encontrado nas linhas, aqui não são oferecidas entrelinhas, à merda o entrelinhador (...). (Diário..., p. 180-181, realcei) — Você se lembra do que conversamos acerca do terceiro modo de relacionamento entre os universos da ficção e da biografia? — perguntou-me. — Do Javier Marías? Sim, me lembro.318 E eu disse que relacionaria esse terceiro modo aos romances Setembro não tem sentido e Diário do farol... Ele disse, relembremos, que “o autor apresenta a sua obra como obra de ficção, ou pelo menos não indica que não o seja; (...). No entanto, a obra em causa tem todo o aspecto de uma confissão (...). O resultado (...) é de uma ambigüidade tão assombrosa que as suspeitas do leitor oscilam (...) entre dois pólos (...)”.319 — O que acaba levando o escritor, no caso, Ubaldo, a ter de observar, quase que através de um grito de alerta, que ele, efetivamente, não matou o pai, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que por sua vez também não matou a mãe... — E no entanto a questão não é essa... Javier Marías observa que, justamente para que fique mantida a ambigüidade, ele introduz um detalhe concreto, um dado biográfico comprovável que impede seja realizada uma identificação total e irrestrita entre ele e o seu narrador. — E li: — “Este dado comprovável (...) deu-me ainda maior liberdade no momento de acentuar as semelhanças entre o Narrador e eu próprio, sem que”, escreve Marías, “o dado em questão quebrasse a ambigüidade deliberada pela qual havia optado ao não dar nome nem fazer qualquer descrição física do Narrador”.320 — Seu narrador, de Marías, casou-se, como eu disse lá atrás, e teve filhos... Javier Marías, o próprio, não — disse ele. — Pelo mesmo caminho segue João Ubaldo Ribeiro. João Pedroso, personagem dO sorriso, é filho único, e o escritor tem um irmão e uma irmã.321 O próprio João Pedroso ainda declara, numa conversa com o padre Monteirinho: “... 318 Ver Capítulo 2: “A infância barroca e a linha reta de Getúlio”, p. 87. 319 “Autobiografia e ficção”, op. cit., p. 69-70. 320 “Quem escreve”, op. cit., p. 91. 321 — Veja, aliás — e fiz com a mão uma nota —, como outra personagem, Ana Clara, vê João Pedroso, e como essa imagem coincide com muitas imagens construídas por e para João Ubaldo Ribeiro: “Cultíssimo. (...) E não é só Biologia, não, é tudo, parece que já leu tudo. E não é desses cultos chatóides, que só falam em polissílabos e torcem o nariz para tudo de que os outros gostam, é um homem de grande simplicidade, que se diz ignorante, e a gente vê que não se trata de afetação” (O sorriso..., p. 89, realcei). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 186 nem filhos fiz, não fiz nada”, e João Ubaldo fez quatro filhos. Outro ponto: “... eu acredito muito em Deus, e o clérigo do Diário do farol detesta. Trata-se de um personagem ficcional, envolvido em uma história verossímil”, diz ele322 — li, jornal à mão. — E ainda há inúmeras outras diferenças óbvias, tais como o fato de João Ubaldo Ribeiro nunca ter sido seminarista, nunca ter sido padre, nunca ter colaborado com os regimes de opressão e nunca ter sido faroleiro... Dei-lhe várias diferenças; dou-lhe agora uma semelhança — e li dois depoimentos de João Ubaldo que muito bem poderiam ter saído da boca do padre do romance: “Tive uma formação rígida católica, mas não suporto a Igreja Católica, padres ou qualquer outra religião institucionalizada”;323 “... não aceito o magistério da Igreja católica (...) e vivo uma esquizofrenia religiosa”;324 “... tenho dificuldades em aceitar o magistério da Igreja — faço força, mas é difícil. E tampouco vou à missa”.325 — ... bem poderiam ter saído da boca do padre e certamente saíram de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA mais duas bocas: da boca daquela devassa dA casa dos Budas ditosos — interrompeu-me ele, com o outro livro na mão — e ainda da boca de João Pedroso, herói dO sorriso do lagarto. Veja — e ele leu quatro trechos. (i) ... eu também fui criada como católica, tinha aulas de catecismo, fiz primeira comunhão vestida de organdi branco, só falava o estritamente necessário na sexta-feira santa, só comíamos peixe toda quinta-feira e assim por diante. (...) O magistério da Igreja me enerva. Prefiro eu mesma ler a Bíblia e pensar do que leio o que me parece certo pensar, quero eu mesma me inteirar das boas novas, sem nenhum padre de voz de tenorino gripado me ensinando incoerências, subestimando minha inteligência e repetindo baboseiras inventadas, semelhantes à desfaçatez de afirmar que no Pentateuco há mandamentos como guardar castidade, que os homens santos não batizados foram para um tal de limbo e tantas outras criações conciliares, já li a Bíblia de cabo a rabo e nunca vi nada disso nela. E por que também não observam o que também está lá, no Levítico? Fingem que não está. E o Papa é vigário de Cristo? Certos papas, todo mundo sabe o que foram certos papas, todos infalíveis e tantos safados? Enfim. Não vou falar mais nisso, perda de tempo. (A casa dos Budas..., p. 14-15) (ii) ... eu acredito muito em Deus, foi Ele Quem fez tudo, louvado seja Deus. Existe maior sádico, no melhor dos sentidos, do que Deus? Não precisa ler Sartre, 322 Ubiratan BRASIL, “Ubaldo revela detalhes da crueldade religiosa...”, O Estado de S. Paulo, 16 mar. 2002. 323 Cecília COSTA, “A temível marca da maldade de João Ubaldo”, O Globo, 18 mar. 2002. 324 Giovanni RICCIARDI, “João Ubaldo Ribeiro” (p. 349-370), in Auto-retratos, São Paulo, Martins Fontes, 1991, p. 353 (entrevista de outubro de 1986). 325 Crônica: “A Igreja Católica Apostólica Americana” (O Globo, 31 mar. 1985, reunida no livro Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 97-101, p. 98). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 187 que já foi a moda das modas, basta participar de um papo de botequim filosófico. Deus, Deus, Deus, eu acredito muito em Deus, acredito na Providência Divina, acredito mesmo. (A casa dos Budas..., p. 87) (iii) ... detesto religião organizada, qualquer que seja ela. (...) ... sempre honrei Seu Santo Nome, embora nunca tenha aceito o magistério da Igreja. E nunca blasfemei, jamais saiu de minha boca uma blasfêmia, uma queixa contra Ele, só louvor. (A casa dos Budas..., p. 162, realcei) (iv) João Pedroso conversando com padre Monteirinho: — ... eu sou um homem religioso, apesar de não aceitar o magistério da Santa Madre e odiar aquelas notas de pé de página das Bíblias católicas. (O sorriso do lagarto, p. 65) — Se você não me dissesse que o primeiro trecho vem de um romance, e descontadas as flexões próprias do gênero feminino, eu diria ser o trecho de uma entrevista de João Ubaldo Ribeiro. Disse, a propósito, uma jornalista: “João Ubaldo costuma argumentar que seus livros devem saciar quem queira saber PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA dele”.326 E aliás... — e resolvi apontar um outro viés para enxergarmos o escritor. — A compensação que o escritor criou para reequilibrar o caso de ser o seu alter ego, aqui nA casa dos Budas..., uma mulher é transferir para ela um ideal de inteligência e de beleza masculina que tem a si mesmo, João Ubaldo Ribeiro, e principalmente o bigode de João Ubaldo Ribeiro, como modelo... — e o meu interlocutor riu enquanto eu lia dois trechos cuja descrição poderia perfeitamente corresponder à descrição do escritor na idade de trinta a quarenta anos: no primeiro, o homem que a possuiu, e, no segundo trecho, a imagem do irmão, que era também seu amante: (i) ... Ele não era bonito, mas também não era feio. (...) E podia ser chamado de feio atraente por outras pessoas, ou mesmo feio, ponto final. (...) Para mim ele era bonito porque preenchia as condições para ser meu deflorador, é uma coisa complexa, muito pessoal, é uma conjuminação de tudo o que você acha que compõe uma pessoa e compõe você. Ele preenchia as condições objetivas e emocionais, pronto, falava à minha neurose. Óculos de tartaruga, que ainda não tinham entrado na moda como depois, magrinho no ponto certo, bundinha fornidinha, voz bem modulada, sabia tudo de Penal e outros direitos, era educadíssimo, era de esquerda — um must, nessa época —, sorriso lindo, uma graça, pensando bem. Um jeito entre acanhado e sardônico, facilidade de falar bem sem afetação, um rosto expressivo e franco e, óbvio, bigode. Não desses bigodinhos ridículos, mas bigode cheio mesmo, bigode de homem macho. (A casa dos Budas..., p. 62) (ii) Eu era louca por meu irmão (...). Ele era lindo, parecia comigo, só que 326 Isa PESSOA, “O que é que o baiano tem?”, Leia, dez. 1989. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 188 mais bonito ainda, era grande como eu, tinha os mesmos lábios (...) um bigode indizível, desses que descem pelas comissuras quase como o dos mongóis do cinema, só que mais cheio e menos comprido, era a pessoa mais carinhosa que se possa conceber, tinha um canto de olho enrugadinho como eu nunca vi em ninguém, a voz só um tantinho rouca, mas forte, os pés enérgicos (...), aquele sorriso entre maroto e tímido e no fundo resoluto (...), tinha uma inteligência acachapante (...). (A casa dos Budas..., p. 93, realcei) — O que não me parece muito óbvio — disse ele, retomando — é que Ubaldo tenha realmente optado por criar uma situação ambígua entre ele e o seu narrador, ou seus personagens, ou se não foi essa ambigüidade acidental... — João Ubaldo Ribeiro deu o nome de “João” ao seu personagem dO sorriso..., dando a ele não apenas um belo bigode, mas também manias e rotinas que são suas. Deu ainda o nome de Hans Flussufer a outro personagem, desta vez dO feitiço da ilha do Pavão, e refletiu nele duas posturas filosóficas bastante PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA recorrentes em si mesmo e em outros personagens, notadamente o padre faroleiro.327 Ouça uma declaração e em seguida um trecho de ficção — e li. — Ribeiro, no sentido de córrego, em alemão, seria Bach. Como eu não sou parente do compositor, apelei para o diminutivo, Flussufer. Portanto, Hans Flussufer é João Ribeirinho, sou eu. Mas é só molecagem mesmo, pois em comum eu e ele temos apenas o gosto por ficar “minhocando”, criando idéias.328 Narrador em Hans: É, acreditava em tudo e talvez por isso não acreditasse realmente em nada a não ser em Deus, mas não gostava mais de se ocupar de problemas filosóficos, que antigamente ocupavam tanto de seu pensamento e agora lhe pareciam circunscritos a duas ou três questões... (O feitiço..., p. 54) — No caso do Diário do farol, ele fez diferente — continuei —: não deu nome ao seu padre, nem fez dele qualquer descrição física relevante: “... você talvez não haja notado, nem venha a notar por si mesmo: tenho, ao longo destas páginas, sem mentir uma só vez, despistado minha identidade e pretendo continuar a despistá-la da mesma forma” (Diário..., p. 199). Pôs na boca desse 327 — Eu poderia ainda citar, para permanecer dentro da ilustração das auto-referências, uma parte da digressão que faz João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro acerca dos Pimentéis do Miséria e grandeza do amor de Benedita. Deoquinha Jegue Ruço, um dos protagonistas do livro, também tem, tal como João Pedroso, um bigode (à p. 87), sendo ainda, tal como Ubaldo, um Pimentel: “Nas tremendas guerras e bravosas peripécias das quais é tão prodigiosamente abundante a história da ilha, não houve Pimentéis que não se destacassem em cada uma delas (...). (...) E em tudo isso estiveram os Pimentéis, sendo lícito asseverar que a História da ilha se confunde com a deles, o que quer dizer que a História deles se confunde com a História do Brasil” (Miséria e grandeza..., p. 29 e 31). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 189 padre muitas de suas próprias opiniões sobre alguns aspectos da vida, à exceção, é claro, das opiniões mais perversas do personagem. Deu a esse padre, e também a João Pedroso, uma densidade filosófica que às vezes assalta o próprio escritor, a ponto de ele mesmo afirmar que o padre do livro “é muito diferente da minha persona como cronista.329 E as pessoas têm muita dificuldade em ver a diferença entre um cronista relaxado e descontraído e um escritor com preocupações, digamos, na falta de outra palavra, mais sérias”.330 Observe que ele disse “escritor”, e não “personagem”... Dotou esse padre da sua inteligência e da sua cultura humanística e literária. Dotou ainda esse padre, o personagem Orlando e o personagem João Pedroso de uma figura paterna semelhante, no tom, ao seu próprio pai, embora desse seu próprio pai bastante diferente também, justamente em nome da ambigüidade que deve prevalecer entre ficção e vida.331 “... meu pai não foi o pai monstro do livro”, disse João Ubaldo Ribeiro. Não, não foi, e é aí é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que está a graça, a graça da ficção. “... esse personagem tem muito a ver comigo porque foi feito por mim”, diz ele. “Mas ao mesmo tempo tem pouco a ver porque eu sou completamente diferente dele. Pelo menos eu acho que sou (risos)”.332 — Ambigüidade que faz do Diário do farol e, em certa medida, dO sorriso do lagarto, não uma autobiografia real — disse o meu interlocutor, compenetrado —, mas, nas palavras de Ubaldo acerca de Sargento Getúlio, uma autobiografia “fantasmagórica”... — E recortada — completei, feliz com o que ele havia dito. — Os momentos em que João Ubaldo Ribeiro mais se afasta de seus personagens são 328 Mànya MILLEN, “Uma ilha chamada Brasil”, O Globo, 22 nov. 1997. 329 — E acrescento aqui a observação de um jornalista, que diz: “[o] João Ubaldo Ribeiro, que dialoga com os leitores sobre problemas cotidianos na coluna dominical do jornal O Estado de S. Paulo, é apenas uma faceta do escritor. Se nas páginas do jornal ele prefere assuntos prosaicos”, escreve Ubiratan BRASIL, “em seus livros o autor revela, de uma forma sutil, uma profunda erudição (...). Ubaldo adiciona aos seus escritos pensamentos de filósofos prediletos, como Schopenhauer e Kierkegaard” (“Confissões de um padre amoral em Diário do farol”, Jornal do Comércio, 31 mar. 2002). 330 Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros...”, Jornal do Brasil, 6 abr. 2002. 331 — E ainda acrescento, também em nota, o interesse de João Ubaldo pela biologia de seu João Pedroso. Disse o escritor: “Uma vez, passei a noite em claro acompanhando o processo de divisão de uma ameba. Uma coisa linda. Eu fazia minhas próprias culturas e descobri alguns bichos não catalogados. (...) ... já tive um fascínio muito grande em olhar protozoários no microscópio. Fui visto muitas vezes colhendo material (...) e devo até ter descoberto algumas espécies, como o Baratinadus pitubensis” (“João Ubaldo faz hora extra na Ilha”, Tribuna da Bahia, 6 nov. 1988). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 190 aqueles que dizem respeito ao que fizeram eles de suas vidas, a partir dessa infância relativamente comum. — Hum, não sei, não sei... Quando você falou em “autobiografia fantasmagórica”, pensei num relato de vida que oscile entre as duas condições expostas por Javier Marías, dê cá o livro — e ele começou a estudá-lo. — O padre do Diário... e também João Pedroso podem corresponder à formula quem eu poderia ter sido mas não fui, o que faz Ubaldo aproximar-se dos personagens; ou a fórmula quem não é Ninguém é portanto é parecido comigo,333 condição que faz os personagens se aproximarem do escritor. — A segunda fórmula não me parece apropriada, dadas as fortes características dos dois personagens, o padre e João Pedroso, que estão longe de poder adaptar-se a qualquer perfil... — Será? João Pedroso é um dos mais angustiados personag... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Sim, você tem razão. João Pedroso funciona, em vários momentos dO sorriso do lagarto, como um eloqüente fantasma daquilo que João Ubaldo poderia ter sido caso não tivesse levado adiante sua profissão de escritor. A fórmula quem eu poderia ter sido mas não fui encontra aqui, nesta homologia — eu disse —, a sua explicitação... E repare que o fundo da discussão é o mesmo das discussões presentes no Diário do farol: o fundo teológico associado à traição pela negação do dom...334 (i) — Por que Deus não redime Satanás? Porque é impossível redimir aquele que peca por si mesmo [disse João Pedroso], pela sua própria degradação espiritual, aquele que teve a luz, o conhecimento e a oportunidade e, por si mesmo, lançou-se ao pecado, à inimizade com Deus e, conseqüentemente, com o Bem. (...) — ... você está se deixando levar por um desses seus arroubos de oratória desvairada [disse o padre Monteirinho], você já bebeu hoje? — Não, não bebi. (...) Meu pecado, você sabe (...), é o pecado de trair meu dom, não fazer nada do que posso e devia fazer, e não desempenhar minha parte na vida e na evolução, é trair o Criador e a Criação. E isso não é fruto de uma tentação, mas de mim mesmo. Nasci aqui, saí daqui, estudei, me acovardei, herdei umas coisas, voltei, me apaguei, não quero, não posso, não faço. Você podia me dizer: plante uma árvore, escreva um livro, faça um filho. Mas eu não nasci para plantar árvores, nem para escrever livros e sou praticamente donzelo 332 Felipe ARAÚJO, “O diário da maldade”, Diário do Nordeste, 28 mai. 2002. 333 “Quem escreve”, op. cit., p. 90. 334 — A mesma discussão pode ser vista ainda nas digressões de outro personagem dO sorriso do lagarto, o feiticeiro Sebastião Boanerges da Conceição, vulgo Bará da Misericórdia, às páginas 164 a 166, também angustiado ante a perspectiva de trair o dom que Deus lhe deu. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 191 (...). Eu nasci para estudar, investigar, descobrir, interpretar. Mas não faço nada disso e com certeza é esta a razão por que sinto o Mal me rondando... (O sorriso do lagarto, p. 129-131) (ii) — Eu não quero ser uma pessoa dissidiosa, ruim, que traísse, porventura, o dom que Deus lhe tenha dado. Se eu penso que sei escrever, tenho de usar esse dom. Eu tenho a vaga idéia de que haja um problema teológico gravíssimo. Quem não acredita em Deus, provavelmente, vai achar o meu argumento ridículo pela premissa. Mas mesmo as pessoas que não acreditam têm uma noção de que não é possível que essa ordem percebida seja uma ordem arbitrária. Desisti de querer saber para onde vamos, mas eu vou fazendo a minha tarefa. É como se agora fôssemos num navio onde houvesse um cozinheiro, um outro não sei o quê, e eu fosse o foguista. Não sei para onde o navio vai, não sou capaz de dar um palpite na rota do navio, não conheço navegação. Então, o melhor que posso fazer é fazer o meu serviço de foguista direito. Eu só sei fazer isso: vou ser um foguista. Então, quero ser o melhor foguista possível.335 — É impressionante a semelhança das angústias... — disse ele, e sacudiu a cabeça, como se chacoalhasse as tensões. — O que é importante nessa nossa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA discussão, ou, por outra, o que salta aos meus olhos, como já percebi, não é o quanto ou quando Ubaldo, João Pedroso e o padre se superpõem, mas o modo como olham para a própria vida — disse o meu interlocutor, aparentemente inspirado. — No caso específico de Ubaldo e do padre, eles olham para as próprias vidas como se olhassem para um texto; olham-na escrita ou por escrever, mas sempre de modo retrospectivo. — O quanto ou quando se superpõem é igualmente importante porque essa oscilação nos remete mais uma vez para o momento da escrita — interrompi-o. — Ouça aqui, em referência ao Diário...: “Não vou dizer que psicografei o livro”, disse João Ubaldo Ribeiro, “mas vivi o personagem enquanto escrevia”.336 E um jornalista perguntou a ele como foi a experiência de se colocar na pele de um narrador psicopata e se aquilo de certa forma o afetou. “Às vezes, afetava, porque eu tinha que escrever em primeira pessoa. E via uma certa repulsa”, diz ele. “Mas também é como se eu fosse um ator”.337 — Você se referiu ao momento da escrita e mais uma vez penso no Javier Marías e em como ele, como escritor, guarda semelhanças, não temáticas ou estilísticas, mas teóricas, com Ubaldo. 335 Giovanni RICCIARDI, “João Ubaldo Ribeiro”, op. cit., p. 370. 336 Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002. 337 Roberto NICOLATO, “A personificação do mal”, Gazeta do Povo, 8 abr. 2002. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 192 — João Ubaldo Ribeiro não teoriza sobre a sua escrita... “As discussões literárias me entediam”, diz ele numa entrevista.338 E escreveu ainda, numa crônica, sobre a sua dificuldade em participar de determinadas conversas havidas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA em festinhas e reuniões. — E li: ... sou aquele, na festinha ou na reunião, que é visto fingindo vasta admiração por um quadro pendurado na parede (...). (...) Adianta pouco, porque sempre aparece alguém para mexer na ferida. — Ah, gosta do Scliar, heim? — diz o alguém que, nestes casos, costuma ser um senhor gordo, alto e de voz tonitruante. — Sim, sim — digo eu. — O Scliar... — Ah, eu também gosto muito — fala o senhor gordo, aproximando-se do quadro com ar apreciador. — Ele tem uma sutileza estranha, eu diria uma sutileza agressiva, você não acha? — Acho sim, acho. Aliás, sinceramente, eu só sabia da atividade dele como escritor, ele é meu amigo, gosto muito, gosto muito. O senhor gordo me olha fulminantemente. Noto que disse alguma coisa errada. Tomo um gole de uísque, desvio a vista (...). — O senhor está falando do Moacyr. Eu estou falando do Carlos. O pintor! (...) Restam os passarinhos e os peixes (...) Quem sabe posso juntar-me àquela rodinha onde estavam discutindo futebol? Literatura nem pensar.339 — Eu percebo, isso sim, o quanto Ubaldo insiste em se colocar na posição do “escritor que não teoriza”, do escritor que simplesmente escreve e que pode dar-se ao luxo de se manter alheio ao que ele chama, de maneira genérica, de “discussões acadêmicas”, o que demonstra, sem dúvida, que ele ainda se vale de uma imagem já bastante anacrônica do que venham a ser essas teorias literárias — disse o meu interlocutor, um pouco indignado. — Ubaldo acaba se revelando um bocado preconceituoso com o que chama de “discussões acadêmicas”.340 — E ele, diante do meu silêncio, retomou: — Ubaldo não teoriza, mas Javier Marías, sim, e quando o faz não podemos deixar de pensar em Ubaldo — e ele me deu mais uma de suas surpresas... — Ambos têm uma relação com a escrita muito próxima com 338 Rogaciano LEITE FILHO, “Sargento Getúlio, e o Nordeste vivo”, O Povo, 21 jul. 1982. 339 “Mas não no sul”, in Sempre aos domingos, op. cit., p. 45-47, realcei. 340 Eu fiquei em silêncio me lembrando das frases anti-acadêmicas do meu objeto de estudo... Disse ele em 1986: “Esse negócio de processo criador é coisa de crítico” (Beatriz CARDOSO, “O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986); e disse em 1987: “Proscrevem a obra a um pseudoreinado da razão e somente a razão vai dar palpite. Aí você vira o idiota da objetividade e acaba produzindo uma coisa estéril, que não leva a ponto nenhum, porque só a razão não adianta” (Marcos GUSMÃO & Alberto FREIRE, “Viva o povo brasileiro pra inglês ler”, A Tarde, 24 abr. 1987); e disse em 1989: “A teoria cadaveriza as coisas” (Alcino LEITE NETO, “O paraíso perdido”, IstoÉ Senhor, 15 nov. 1989). 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 193 a relação que se tem com a vida, no sentido de que não se tem, com nenhuma das duas, tanto poder de intervenção... “Não podemos comportar-nos (...) em função de um final conhecido (...), devendo (...) esse final (...) ater-se ao já vivido (...), sem que isso possa apagar-se ou (...) sequer esquecer-se”,341 diz Marías, que não muda e nem reescreve a própria escrita. — E ele continuou a ler: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) Javier Marías: ... Não apenas não sei o que quero escrever, nem onde quero chegar, como não tenho um projeto narrativo que possa enunciar nem antes nem depois de os meus romances existirem, nem sequer sei, quando começo um, de que vai tratar, ou o que vai acontecer nele, ou quem e quantos serão as personagens, já para não falar em como terminará.342 (ii) João Ubaldo Ribeiro: — ... não sei planejar estrutura de livro nenhum...343 — ... não sei de onde surgiu a história.344 — Eu queria escrever um romance cujo enredo, sabia vagamente, seria um faroleiro solitário e mal-humorado.345 — Cheguei a pesquisar sobre o quotidiano de um faroleiro, os afazeres da profissão. Mas acabei não aproveitando minhas anotações porque fui atropelado pela narrativa.346 — Vou utilizar isto — disse eu, e voltei à fórmula de Marías. — A fórmula quem eu poderia ter sido mas não fui faz João Ubaldo Ribeiro aproximarse do personagem justamente porque deixa exposta a relação que ambos mantêm com a informação privilegiada: uma relação que é sempre de poder, no caso do padre, e também de poder, mas não só, no caso de João Ubaldo Ribeiro. Refirome, é claro, à informação como sendo duas coisas: esse poderoso arsenal cultural de ambos e um certo conhecimento da natureza humana, e não aos aspectos específicos e menores do enredo do livro, relacionados ao contexto da ditadura no país etc. etc... O padre, em relação ao escritor e à personagem CLB, dA casa dos Budas..., será sempre aquele que se utilizou da informação e desse certo conhecimento de uma maneira, ao passo que João Ubaldo Ribeiro e a pervertida 341 Javier MARÍAS, “Vaguear com bússola” (p. 93-96), in Literatura e fantasma, op. cit., p. 94. 342 Id., p. 93. 343 Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990. 344 Ubiratan BRASIL, “Ubaldo revela detalhes da crueldade religiosa...”, O Estado de S. Paulo, 16 mar. 2002. 345 Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002. 346 Id. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 194 CLB se utilizaram da mesma informação e do mesmo certo conhecimento, só que de outra maneira. Ele, que não pode reescrever a sua vida, porque ninguém pode, reescreve-a através de sua ficção, e através de sua ficção ele retorna no tempo. — Hum... — fez ele, e eu não soube interpretar aquele “hum”... — A biblioteca é a mesma, o ritual de se sentar todos os dias para escrever também é o mesmo, tanto para o escritor disciplinado quanto para o obstinado faroleiro e para a memorialista CLB, dA casa dos Budas... A vida a ser contada é que, na escritura, se transforma em outra, porque o personagem, na reescritura, também se transforma em outro... — ... transforma-se naquilo que Marías chama o “Outro-além-de-mim”.347 — Bom fecho — disse eu. — Estamos sintonizados. — E, enquanto o meu interlocutor nos preparava mais café, li. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) ... não vou reescrever nada do que já está no papel, nem fazer emendas, cortes ou outras alterações. Apenas não vou prosseguir contando minha vida e peripécias pouco dignas de menção, no seminário maior. Não há nada de notável nelas e talvez lograsse enxergar nelas matéria para escrita apenas um romancista necessitado de encher papel e espichar para quinhentas páginas o que podia contar em cem ou menos. (...) Não creio nem mesmo que vá falar sobre o farol onde hoje me encontro e que uso para título dessas páginas. Na verdade, elas são um diário mesmo, pois me sento aqui todas as tardes, às vezes à noite também, para escrever. E não deixa de ser o diário de um farol, porque o farol, já disse eu no começo do que acabo de reler, conota uma infinitude de imagens e símbolos, dos mais triviais aos mais escondidos no fundo da consciência. Quem quiser traga à tona os seus, se desejar ou puder. (Diário..., p. 182-183, realcei) (ii) — Não gostaria de reescrever nada. Gostaria apenas de ter tido um melhor relacionamento com o meu pai. Mas, para isso, eu teria que reescrever o meu pai. (...) No entanto, eu não poderia perceber isso aos 25 anos, por exemplo. Se eu pudesse voltar a essa idade, com o que sei aos 56, eu seria um homem perigosíssimo.348 (iii) ... Eu na realidade não tenho saudade de nada, a não ser do auge da juventude madura, mas eu queria ser jovem trazendo na cabeça tudo o que aprendi até hoje, aí não podia, eu ia ser ditadora do mundo. (A casa dos Budas..., p. 36, realcei) — O segundo trecho disse João Ubaldo Ribeiro numa entrevista de 1997... — Já do alto de seu farol antecipado... Um farol bastante diferente do farol do Diário... — disse ele, voltando com um café novo. 347 “Quem escreve”, op. cit., p. 92. 348 Márcio VASSALO, “A palavra é imortal”, Lector, 1997, realcei. 3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL 195 — Sim, porque cada um, seguindo os preceitos do personagem, deve possuir e manter o seu farol. — O mar, no entanto, é sempre o mesmo — disse ele, fazendo cara de poeta. E eu, ansioso por atracar em terra firme, firme mas disputada a tiros, peguei o romance Vila Real, não sem antes provar daquele novo café. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA *** 4 ____________________________________ O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA — O MUNDO DA CABEÇA DO NARRADOR349 Sendo não somos, disse e se admirou de que sua cabeça se enchia de clareza e de que todas as palavras se apresentavam. João Ubaldo Ribeiro, Vila Real PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Um dos aspectos mais importantes do romance Vila Real, de 1979 — e abri o livro —, é a transposição que realiza, para dentro de seu ambiente ficcional, de uma discussão bastante cara aos escritores, críticos de literatura, professores e todos aqueles preocupados com o fenômeno literário em sua dupla condição de autonomia e identificação diante de outros fenômenos culturais. É uma discussão que se alimenta, antes de tudo, da necessidade, cada vez maior, de se colocar entre parênteses aquilo que até então se revelava fora de dúvida: a literariedade da literatura, ou, para irmos além: a artisticidade da literatura. — E, se fôssemos ainda mais além, a artisticidade da arte... — disse ele. — Sim. Vila Real dá vida a esse debate através de seus próprios elementos ficcionais, localizados justamente na formação dos discursos do narrador e do protagonista. Vila Real — continuei — é um romance sobre a guerra entre o povo de Argemiro e o povo de Genebaldo e Godofredo. É também uma guerra entre o povo pobre daquela região e os grandes interesses capitalistas sobre a terra, que não é, de antemão, de ninguém, mas daquele que a ela chega e nela se instala. Ouça: “... um papel não poderia dar a ninguém direito à terra, porque esta era de quem chegava até a sentir seu cheiro à distância e com ela misturar-se pelo trato 349 — Este capítulo — eu disse a ele — constitui, em parte, a reformulação e o desenvolvimento da idéia central de um artigo que escrevi, já dirigido à tese, e cujo ingresso acabei propondo para integrar a fortuna crítica da obra de João Ubaldo Ribeiro, publicada pela editora Nova Aguilar (Juva BATELLA, “A fala do chefe: discurso e legibilidade no romance Vila Real”, in Zilá BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 105-118. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 197 de todo dia. E nada o papel tem a ver com a terra” (Vila Real, p. 36). Mas Argemiro e sua gente perdem a terra: para o povo de Genebaldo e Godofredo e em seguida para uma companhia internacional de mineração, que os expulsa na virada da noite, derrubando com suas máquinas de extração as casas, as roças e as cruzes do cemitério, agora totalmente revirado e profanado. Vou ler: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... [Argemiro] Lembrou que a única terra que todos os homens do mundo estavam dispostos a dar-lhes era a de suas covas. Mas assim mesmo, quando os donos das terras desejavam, até as covas dos defuntos eram tomadas de volta, como aconteceu em Vila Real, quando a Caravana Misteriosa [a companhia de mineração e seus tratores quebradores de pedras] pôs suas máquinas contra o cemitério e de lá arrancou todos os ossos e relíquias e matou a memória de muitos. Estes não tinham pai nem mãe nem ossos nem almas por quem rezar, nem onde botar uma flor, nem sabiam mais quem eram. (...) Até mesmo os gritos dos que imaginavam os parentes e filhos desenterrados e para sempre vagando (...) não conseguiram que eles detivessem as máquinas. (p. 24, 32) — Argemiro e os seus fogem então para mais longe, assentam acampamento num novo lugar e esperam por mais uma guerra contra o povo de Genebaldo e Godofredo, que os quer bastante longe... — ... ou bastante mortos — disse o meu interlocutor, e seguiu, com o livro aberto. — Vou ler o primeiro período, quero participar mais. Assim que Nicoto trouxe a notícia de que os homens de Genebaldo tinham armado suas tendas por todos os lados de Vera Cruz e agora as mulheres se persignavam nas encruzilhadas, rezando pelas vidas dos filhos e maridos, Argemiro previu que o terror se espalharia nos corações dos que estavam ali acampados. (p. 9) — Logo com esse primeiro período do romance podemos perceber três assuntos essenciais para a história — antecipou-se o meu interlocutor, querendo entrosar-se com o livro —: o recebimento de uma notícia ruim, a capacidade do chefe de ver à frente e, por fim, a natureza dessa visão. Caberá a Argemiro, como chefe que é, tomar as decisões, exercer o comando, dar proteção, ministrar ensinamentos e distribuir boas palavras. Cabe-lhe também, antes de tudo, preparar-se para a guerra, não é? — E sorriu. — Sim, uma guerra que ele não entende e para a qual não encontra sentido. Uma guerra só tem sentido se também empresta sentido à vida que guerreia. Uma vida sem sentido não merece uma guerra. Argemiro conseguirá 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 198 compreender a guerra e ser o verdadeiro chefe de sua gente quando encontrar, por si, uma razão para a vida, aquela vida sem razão aparente de ser. Mas nosso assunto é a guerra, e são também os discursos para a guerra. Para tanto, é importante que se descrevam as representações do poder no interior da história e, principalmente, à volta dos discursos do narrador sobre o seu protagonista, o personagem Argemiro, naturalmente um líder e, ao mesmo tempo, incapaz de acreditar em si mesmo como tal. — E por que não à volta dos discursos do próprio protagonista? — disse ele, e me entregou o livro. — Aqui mora o um curioso aspecto narrativo do livro. Argemiro não fala muito, embora pense o tempo todo. E é pela voz do narrador que conheceremos esse homem de poucas palavras em sua trajetória rumo ao mundo das palavras. Basta dizer que é pela voz do narrador que Argemiro vai dar-se conta de que está PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA em profunda paixão por uma das personagens, a mulher Ernesta, assunto das páginas 130 a 135, inteiramente narradas em discurso indireto e indireto livre... — e entreguei a ele o livro. — Vamos, em primeiro lugar, tentar compreender o formato que assumirá a relação de Argemiro com um carisma que ele não crê possuir e com um poder do qual ele não se julga merecedor. Em seguida, podemos fazer a conexão de Vila Real com um dos três mapas do poder de que se serve o antropólogo Clifford Geertz350 para analisar de que modo se dá a sustentação dos soberanos frente à sociedade que os entronizou. — Você está correndo... Você disse há pouco que Vila Real entra numa discussão cara aos intelectuais, uma discussão acerca da literariedade da literatura... De que modo entram, nessa história, o narrador, Argemiro e as suas dificuldades para falar? — quis saber o meu impaciente interlocutor. — A pergunta acerca das razões que levaram Argemiro ao poder e das razões que lá o mantêm é uma pergunta cheia de espelhos enganadores e provações. Por quê? A história de Argemiro é a história do transcurso de uma incumbência: a formação da legitimidade de seu comando junto a seu povo, uma legitimidade somente proporcionada através de uma conquista bastante específica: a conquista da própria fala, das próprias palavras, do próprio discurso. E, para tanto... 350 Referência ao texto “Centros, reis e carisma: reflexões sobre o simbolismo do poder” (p. 182219), in O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa, Petrópolis, Vozes, 1997. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 199 — Já entendi... E, para tanto, para a conquista da própria fala, Argemiro terá de realizar uma superação: terá de despojar o seu discurso, ou aquele discurso ideal que ele imagina para si, chefe que é, ou que deveria ser... despojar aquele discurso ideal de todos os seus valores intrínsecos, os valores intrínsecos de um discurso clássico de poder, para então transformá-lo numa fala que se apresente e se sustente como uma... uma... — e ele ficou me olhando. — ... mediação cultural. Eu não gosto muito dessa expressão — confessei —, mas ela aqui é a única coisa que nos resta... E o livro vai tornar bastante explícita essa relação entre Argemiro e o seu narrador, entre o silêncio do protagonista e a inevitável, inevitável porque constituinte da própria forma do romance, eloqüência do narrador, eloqüência que vamos voltar a encontrar num romance bem mais à frente: o Miséria e grandeza do amor de Benedita, publicado em 2000. — É porque Argemiro não fala que muito falará o narrador... E, pelos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA vistos, também Benedita e seu finado marido, Deoquinha Jegue Ruço... Eu li esse. E é por muito falar o narrador que Argemiro permanecerá silencioso... — Sim, são eloqüências excludentes. Agora volto à sua questão. Silviano Santiago, em seu texto “Democratização no Brasil — 1979-1981 (Cultura versus Arte)”, faz uma pergunta. Se parafrasearmos essa pergunta, teremos a seguinte variação: “Quando é que o discurso de Argemiro deixa de ser literário e sociológico para ter uma dominante cultural e antropológica?”.351 Substituindo “discurso de Argemiro” por “arte brasileira”, e realizando as devidas concordâncias de gênero, chegaremos à frase de Silviano Santiago... — Eu faria ainda uma outra pequena alteração: quando é que o discurso de Argemiro deixa de pretender ser literário e sociológico para ter uma dominante cultural e antropológica? E como não poderiam os personagens de Vila Real estar a falar de arte — continuou o meu interlocutor —, porque, afinal, não é de arte que se está a falar, mas de comida e terra, e não é por ela que se está a guerrear, mas por comida e terra, falar-se-á de poder e de discursos de poder. Tal é a superação necessária. 351 P. 11-23, in Raul ANTELO, Maria Lúcia de Barros CAMARGO, Ana Luiza ANDRADE & Tereza Virgínia de ALMEIDA (orgs.), Declínio da arte, ascensão da cultura, Florianópolis, Letras Contemporâneas e ABRALIC — Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1998, p. 11. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 200 — A Argemiro? Sim. Aliás, gostei da sua mesóclise... E eu pretendo — continuei, animado — que o meu capítulo sobre Vila Real, lá na tese, seja uma das maneiras de ver representada essa superação. — A outra maneira, claro está — concluiu, com evidente vontade de entrar no texto... —, constitui a própria história do romance Vila Real, não é? Vamos a ela. 4.1. O REI ESTÁ SEMPRE NU — Não. Vamos, antes, entrar no texto de Clifford Geertz, “Centros, reis e carisma: reflexões sobre o simbolismo do poder”, que nos vai propor de imediato uma alternativa de reflexão acerca do que pode significar a qualidade do carisma. — E eu, retirando mais um livro das nossas infinitas estantes, li: — “... um fenômeno cultural ou um fenômeno psicológico?”; “... um status, um estímulo ou PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA uma fusão ambígua dos dois”?352 — Eu me lembro de que Weber foi um dos que... — Sim, sim — interrompi-o, para variar. — Foi a sociologia de Weber que reconheceu no problema a sua merecida complexidade, isso diz Geertz, e ele chama a essa complexidade weberiana polifonia, atribuindo-lhe não apenas o mérito de salvar a questão do simplismo, mas também o defeito de torná-la indócil para o manejo teórico. — Weber é um pensador difícil... Mas por que ele a tornou “indócil”? — Uma das conseqüências dessa “intangibilidade crônica”, para responder à sua pergunta com um termo de Geertz, revela-se sobretudo na preponderância do aspecto psicológico sobre o aspecto cultural; aspecto psicológico entendido em sua faceta degradada e psicologizante. — Mas não é Weber o responsável pelo maior peso dado ao aspecto psicológico da discussão sobre o carisma, pois não? Não ele, que... — Não, não ele... Para Geertz, trata-se de uma redução operada pelas leituras que se fizeram de Weber — e citei —, “... redução da valiosa complexidade weberiana a clichês neofreudianos”.353 A partir dessa leitura degradada, que para 352 Op. cit., p. 182. 353 Id., p. 183. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 201 Geertz é típica desses “tempos mais recentes e menos heróicos”,354 toda a força do carisma derivaria não daquele que o possui mas de uma determinada configuração social caracterizada por uma desordem psicopatológica a dar vazão ao aparecimento desses seres de brilhosa personalidade... — O brilho da personalidade devendo-se aqui muito mais, por contraste, à opacidade do conjunto do que a alguma característica genuinamente singularizadora... — disse o meu interlocutor, e muito bem. — Sim, e isso pode resultar num esvaziamento do conceito de caráter, agora atrelado ao estabelecimento e à permanência de uma específica condição social com todas as características de uma cultura de massa. Geertz, em meio a tantas idéias, destaca uma necessidade: definir “a razão pela qual alguns seres humanos vêem transcendência em outros, e exatamente o que significa esta transcendência”.355 E Geertz cita Edward Shils — continuei — como um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA estudioso que procurou revitalizar aspectos adormecidos do complexo weberiano de carisma: entre eles a possibilidade de uma nova interação entre a coletividade e o indivíduo, representado este pelo seu valor simbólico e aquela através de seus centros ativos da ordem social. Tais centros... Escute: ... Tais centros, que “não têm qualquer relação com geometria e muito pouco com geografia” são, em essência, locais onde se concentram atividades importantes; consistem em um ponto ou pontos de uma sociedade, onde as idéias dominantes fundem-se com as instituições dominantes para dar lugar a uma arena onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos membros desta sociedade de uma maneira fundamental.356 — E mais tarde, no texto do próprio Geertz — segui —, há a exposição dos centros e dos momentos do poder onde tanto a geografia quanto a geometria ocupam posição decisiva para a permanência do poder como tal. — Muito bem, eu já percebi que você leu muito bem o Geertz, mas de que maneira podemos iluminar o romance Vila Real com as peculiaridades do raciocínio de Shils, ou de Geertz? — e ele cruzou os braços. 354 Id., p. 182. 355 Id., p. 183-184. 356 Id., p. 184. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 202 — Ora, Argemiro não se sente a priori chefe de povo nenhum. Falar de uma chefia a priori significa falar de uma chefia inata; significa falar de um carisma que então vem a resultar, pragmaticamente, em efetivo comando. Argemiro não se considera naturalmente um chefe até o exato momento em que ele e seu povo se vêem desprovidos de um centro para o giro da ordem social. — É justamente quando não há mais nada ao redor, não há terra nem comida nem armas, que Argemiro é alçado à condição de líder, não é? — Sim. Geertz faz referência, em seu texto, às estruturas simbólicas de dominação que, em determinadas sociedades mais complexas, se tornam extremamente palpáveis e evidentes, deixando o poder, digamos assim, exposto à sua máxima visibilidade. Ouça — e li —: “... a visibilidade é tanta que acaba deixando a descoberto aquela verdade que todo o misticismo do cerimonial da corte deveria supostamente esconder — ou seja, que a majestade não é inata, e sim construída”.357 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E que o rei, afinal, pode estar nu... — disse ele. — O rei está sempre nu! — e acrescentei a uma frase de efeito uma segunda frase de efeito. — Quando, em Vila Real, vemos a majestade de Argemiro se configurando justamente a partir da ausência de uma estrutura palpável de poder, de ritos, de cerimoniais e de cultos legitimadores, tendemos a atribuir à sua liderança um caráter mais inato do que construído. — Mas isso pode ser falso... — disse ele. — Sim, porque não se pode, por outro lado, permanecer por muito tempo na idéia da chefia congênita. Em Vila Real, será a ausência de um centro para a comunidade, uma ausência provocada do modo mais brutal, através da expulsão e do morticínio, o fator decisivo para a instauração da necessidade de um chefe... — Um chefe que passará a trabalhar numa espécie de vácuo geográfico? — Sim — e abri o livro. — Ouça: ... Primeiro, moraram na parte melhor da Jurupema, que não se chama Aratanha. Corridos, moraram em Vila Real. De lá, buscaram Aratanha, quando a Caravana Misteriosa fez com que eles saíssem de onde tinham plantado roças e pensado em sossegar. Se voltavam agora a Vila Real, cumpria dizer que não existia esperança de que os homens da Caravana Misteriosa (...) quisessem que eles ficassem ali. (p. 24-25) 357 Id., p. 187. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 203 — A esse vácuo geográfico — continuei — ele vai dever a razão de ser de seu comando. Toda a luta de Argemiro, no entanto, será o trespasse de sua condição de chefe. Para ele, tudo estará bem quando não precisar agir como um chefe, porque então seu povo terá um lugar para viver, já que ninguém “pode habitar uma estrada nem tampouco nela criar filhos” (Vila Real, p. 37). Um lugar para o restabelecimento da ordem social e a figura de um chefe vão aqui constituir, no entendimento de Argemiro, elementos excludentes. — Você chegou a atribuir à liderança de Argemiro um caráter inato..., e isso equivale a estarmos aqui falando, de certo modo, do carisma de Argemiro, não? E no entanto ele mesmo nega a sua liderança.... Mas o que fazer então do carisma? — “O carismático” — e citei Geertz — “não é necessariamente dono de algum atrativo especialmente popular, nem de alguma loucura inventiva; mas está bem próximo do centro das coisas.”358 O centro das coisas em Vila Real é a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA guerra, e mais nada. Estivesse o povo de Argemiro em condições de estabilidade, outras áreas da vida social poderiam emancipar-se, ganhando evidência e comando, como a agricultura, a religião ou a arte do artesanato. Argemiro, nesse caso, acredita ele, não teria de suportar o peso do comando, uma vez que ele não seria chefe de coisa alguma. — Mas, por razões que ele mesmo não consegue entender, ele constitui, mesmo assim, uma referência para a sua gente... Ouça — e o meu interlocutor leu um trecho de Vila Real —: “O senhor (...) fala com sabedoria”, diz-lhe o combatente Alarico, “como podia falar meu próprio pai. Muitas vezes ele me disse que sua voz era a de mais juízo entre todos os que viviam na Jurupema (...), que sua força era conhecida e sua idéia respeitada” (p. 22). — Sim. Alarico está a expor o que seria o carisma de Argemiro, ou a sua parte visível..., porque o romance, em sua grande parte, acontece apenas na cabeça de Argemiro e na fala do narrador, que expõe, para o leitor, o pensamento de seu principal personagem. E ainda acrescento: Geertz diz que o carisma não necessariamente deve sua aparição e seu desenvolvimento à extravagância de uma condição emergencial. O carisma deve ser entendido como parte da normalidade quotidiana da vida social.359 Argemiro, que tem o carisma... 358 Id., p. 184. 359 Id., ibid. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 204 — Já entendi. Argemiro, que tem o carisma, embora nele não acredite, não crê que esse carisma deva ser convertido em chefia permanente, pois somente um povo em guerra, pensa ele, precisa de um chefe. E... — Sim — retomei —, e é por não acreditar na transcendência exclusiva de seu carisma que Argemiro, sob hipótese alguma, será tentado a transformar seu poder em algo vitalício ou mesmo totalizante. Um dos principais problemas do personagem Argemiro... — Não tivesse ele problemas, não seria ele um herói ou, quando menos, um chefe... — Sim, sim. Um de seus problemas é justamente a sua incapacidade para reter somente para si a aura e o produto dessa transcendência, uma transcendência que ele acredita possuírem todos, e não apenas ele, ou, ainda, muito menos ele. Argemiro espatifa então a idéia de transcendência e seu corolário imediato, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA chefia, e espalha essa idéia entre os de seu povo. Ouça, e observe que quem está a falar é o narrador; Argemiro só pensa: “Como trazia também sob seu comando as mulheres e as crianças (...), Argemiro pensou com grande melancolia que todos eles teriam razão se, ao receberem a notícia, decidissem não mais haver motivo ou sustança para lutar” (p. 11, realcei). Argemiro, que não se sente um líder, não questionaria uma suposta desobediência às suas ordens. — E nem mesmo consegue agir como um líder? Refiro-me à encenação do poder... — Nem assim. Argemiro não consegue nem mesmo operar, ainda que minimamente, essa encenação do poder de que foi revestido pelo seu povo: tendo recebido a notícia de que, brevemente, seriam todos atacados, Argemiro sobe ao topo de uma pedra. Conforme revela o narrador, quase a todo o tempo em discurso indireto livre e, portanto, quase a todo momento por dentro da cabeça de seu personagem, Argemiro subiu à pedra “mais para ficar sozinho do que para sopesar qualquer grande questão” (p. 10). — Ou, poderíamos completar, para simular que sopesava qualquer grande questão... — observou ele, apontando-me a página 73: “... pôs a perna direita para a frente em cima de uma pedra e pensou em botar a mão no queixo (...). Ora, isto é hora de pensar na posição, se isto é hora de pensar nessas perfumarias”. — Sim, bem citado. Há, no entanto, uma outra modalidade de carisma que funcionará muito bem através do acionamento de uma qualidade oposta àquela de 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 205 que fala Geertz. À proximidade dos centros ativos da ordem social pode-se contrapor a sua ausência, uma ausência que será tanto mais carismática quanto mais cercada de incompreensão e imprevisibilidade. A organização social que se observa no romance Vila Real é toda ela marcada pela ausência: ausência de um lugar para se assentar a vida, ausência de um chefe, ausência de previsões e provimentos, ausência de grupos de poder rivais localizados internamente, ausência, enfim, de centros ativos da ordem social. Uma sociedade da ausência. — Mas você disse que o centro das coisas em Vila Real é a guerra... — Sim, eu disse, é verdade. O único centro ativo da ordem social é a guerra. Quando Argemiro e seu povo se vêem perdidos e bastante próximos de um segundo ataque por parte da gente inimiga de Genebaldo e Godofredo, surge dos matos aquele que é conhecido como o que não existe, “o Filho de Lourival”, alcunha sob a qual se revezam quatro homens, todos a responder pelo nome “o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Filho de Lourival”. Ouça: ... esse Filho de Lourival aparecia e desaparecia com petrechos de guerra e de amedrontamento, arremetido pelos ermos e pelos cerrados e pelos montes. Há quem diga, falou Argemiro (...), que ele é uma assombração, indo e voltando igual a luz de cemitério e que não tem nome. (p. 59) — Se o “carisma é sinal de envolvimento com os centros que dão vida à sociedade”360 — continuei, citando —, e se tais centros, no caso de Vila Real, se resumem à guerra, o carisma daqueles conhecidos como “o Filho de Lourival” nascerá de sua relação com a guerra iminente. — Mas não só... — Não só... Todo o magnetismo que os tais homens assim chamados “o Filho de Lourival” irão exercer sobre Argemiro e todo o carisma que se desprenderá de suas pessoas serão devidos à sua familiaridade com a guerra, sim — eu disse —, mas também à sua condição fugidia de homens raros. Ouça de novo: ... quando aparece o Filho de Lourival, nunca se diz o nome que traz de pia, nem qualquer outra informação. Por esta razão, quando ele vem, explica que não existe. (...) ... você pensa que eu existo? Você se engana, você esfregue os olhos e vai ver que eu não sou. Eu sou na sua cabeça, eu sou o que você quer. (p. 56) 360 Id., p. 186. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 206 — E serão devidos também a uma terceira razão. Argemiro irá respeitálos, a esses quatro homens, como se respeita a um verdadeiro líder, amedrontado e estimulado principalmente por essa terceira razão, à qual se atribuirá um conteúdo sagrado, e a esse conteúdo sagrado um poder soberano — e me levantei, fazendo pose —: a intimidade com as palavras. 4.2. VILA REAL, MARROCOS — O texto de Geertz — e recoloquei-o sobre a mesa, diante de um atentíssimo interlocutor — expõe o que poderiam ser considerados mapas do poder, em três sociedades e três tempos diversos: a Inglaterra do século XVII e seu centro máximo de poder, Elizabete Tudor; depois a terra de Java e seu rei Hayam Wuruk; e em seguida o Marrocos e o reinado a duras penas de Hasan. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E cada um desses mapas é o quê? A indicação do funcionamento das estratégias de manutenção do poder junto à sociedade? — Sim. Geertz mostra-nos então: Elizabete a manipular e a incorporar à sua imagem de soberana os símbolos morais e cristãos que davam sentido não apenas àquela sociedade mas a todo o universo, e o mesmo universo inteiramente geometrizado segundo uma rígida hierarquia de mandos a caracterizar e congelar na imortalidade o poder real e magnífico de Hayam Wuruk. Leia aqui, por favor, esse texto sagrado citado por Geertz — e indiquei-lhe a página. ... Camponeses reverenciam os chefes, (...) os chefes reverenciam os senhores, os senhores reverenciam os ministros, os ministros reverenciam o rei, os reis reverenciam os sacerdotes, os sacerdotes reverenciam os deuses, os deuses reverenciam os poderes sagrados, e os poderes sagrados reverenciam o Nada Supremo.361 — Obrigado. E, finalmente, o que mais nos interessa aqui, em função de sua proximidade com o mundo do romance Vila Real, o poder a bastar-se como coisa-em-si, o poder que, vou citar, “não precisa ser representado como outra coisa além de si mesmo para que se inunde de significados transcendentes”.362 361 Id., p. 195-196, citando T. Pigeaud, Java in the 14th century: a study in cultural history, 5 vols., Haia, 1963. 362 “Centros, reis e carisma...”, op. cit., p. 202. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 207 Alterei aqui o tempo verbal das duas frases citadas, para que se pudessem encaixar melhor no período — e me sentei. — Há algum princípio que oriente essa sociedade marroquina de Hasan? E também, conseqüentemente, que oriente a sociedade da ausência, em nosso Vila Real? — Há, sim, mas, antes, ouça este depoimento de João Ubaldo Ribeiro acerca dessa sociedade que ele tão bem conhece: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — ... o baiano do Recôncavo — falador, pegador, alisador, compositor, cantor, declamador, tomador de intimidades instantâneas, preguiçoso, relaxado, incapaz de compreender a necessidade de horários, festeiro, cara-de-pau... (...). Em contraste, vem o baiano do sertão, o euclideano “antes de tudo um forte” (aliás, Euclides da Cunha se referia a nós, do Recôncavo, como “mestiços neurastênicos do litoral” (...)), gente muito diversa do pessoal da praia. (...) São os baianos de ancestrais cangaceiros, coronéis, jagunços, combatentes de Canudos, acostumados a “tudo pouco”: pouco de comer, pouca chuva, pouca conversa, pouca brincadeira, pouca intimidade, tudo pouco.363 — Quanto ao princípio, objeto de sua pergunta — continuei —, ele pode ser assim expresso: “... as pessoas só possuem verdadeiramente aquilo que têm a capacidade de defender”.364 E porque estão sempre a defender algo, terras, honras e posições, estão sempre a viver a experiência da posse com a intensidade de quem está prestes a perdê-la. Se não é renovada constantemente através de luta e ameaça, a posse inverte os sinais de sua relação com o objeto possuído. E isso... — Há um trecho de Vila Real que resume essa inversão — disse ele, enquanto folheava o romance, todo sublinhado por mim. — Escute: “... a coisa possuída traz o condão de possuir mais do que é possuída”, diz Argemiro... — ... em discurso indireto livre do narrador, e conclama: “Vamos guerrear. Por quê? Porque tudo isto é uma discordância” (p. 75). Eu conheço, meu caro, os trechos que eu mesmo sublinhei... — E a sociedade da ausência que você mencionou como sendo a característica mais marcante do povo de Argemiro — continuou, impassível, o meu interlocutor — guarda sua razão de ser no estado de constante perdavigilância-perda em que vivem seus membros... 363 “Os baianos”, Manchete, texto sem data. 364 “Centros, reis e carisma...”, op. cit., p. 204. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 208 — Isso. O poder soberano, do mesmo modo como tudo o mais, é obrigado a renovar-se e a legitimar-se a cada dia, tendo por recurso apenas a si próprio. Este “a si próprio” poderia concretizar-se através do conceito norte-africano de baraka. Ouça: ... O termo já foi comparado a inúmeros outros conceitos na tentativa de explicá-lo — maná, carisma, “eletricidade espiritual”; trata-se de algo assim como um dom de poder sobrenatural que pode ser utilizado por aqueles que o recebem a seu bel-prazer (...). Mas o que melhor define baraka, e o que o diferencia de outros conceitos semelhantes, é que é radicalmente individualista.365 — Se eu lhe perguntasse qual a diferença entre o carisma de Argemiro e o carisma daqueles homens conhecidos como “o Filho de Lourival”, você saberia responder? — antecipou-se o meu interlocutor. — Acho que sim... O baraka é algo que se tem ou não se tem. O Filho de Lourival, como vimos, funda seu carisma na capacidade de organizar a guerra, nos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA mistérios de sua ausência e na boa lida com as palavras. O carisma de Argemiro não tem razão aparente de ser, e, por não ter razão aparente de ser, ele não o compreende e nele não acredita. Veja: “O senhor (...) fala com sabedoria”, já lhe disse o combatente Alarico, como vimos. Argemiro não alcança a natureza de seu carisma, justamente porque seu carisma é baraka: “... algo que um indivíduo simplesmente tem, como tem força, coragem, energia ou agressividade, e, como o são estes atributos, é também distribuído arbitrariamente”.366 — O baraka, no entanto, constitui apenas um dos caminhos para o poder; o outro encontra sua direção na força da linguagem como fator de comunicação, coerção e incitamento — disse ele. — Isso. Toda vez que se põe a pensar em seu próprio papel junto ao povo de Vila Real, Argemiro sopesa a qualidade de sua linguagem, não apenas de sua linguagem, mas a daqueles a quem considera. O povo de Vila Real não tem nada mais senão a linguagem de que Argemiro terá de valer-se para sobreviverem todos, e Argemiro, finda a guerra, sente que não é mais o mesmo, e tem a certa altura uma visão, a visão... ... das palavras que podiam trazer sangue ao rosto dos que as ouviam e podiam 365 Id., ibid. 366 Id., ibid. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 209 molhar aquela terra como a chuva ou secá-la como o sol e que uma só palavra bem posta — e viu então que não faltava nada a não ser palavras nos lugares em que sabia que faltava tudo (...) — e que uma só palavra podia resolver, a qual não sabia. (p. 148-149, realcei este belo trecho) — Bonito, né? Em outro momento do romance, quando estão Argemiro e o personagem Gaudêncio a mirar os matos que os cercam, verificando assim a fragilidade inconteste de todos ali, à espera do povo assassino de Godofredo e Genebaldo — disse eu —, ouve-se a fala de Gaudêncio: “Tem mais rolas nesses matos (...) do que rola em todos os matos da Jurupema”. Em seguida, a observação do narrador, em discurso indireto livre, incorporando o atento Argemiro: “A fala de Gaudêncio tinha uma nota clara e certeira e, no silêncio que boiava sobre todas as cabeças, ela soltou-se como a voz de uma corneta” (Vila Real, p. 11). O mesmo que diz Geertz acerca do poder intimidatório da linguagem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA na estrutura de poder no Marrocos poderíamos dizer aqui acerca das expectativas de Argemiro: a linguagem... ... dá a todo tipo de conversa que não seja totalmente fútil uma qualidade de um pega-pega com palavras, uma colisão frontal de imprecações, promessas, (...) desculpas, rogos, ordens, provérbios, argumentos, (...) citações, ameaças (...), que não só valoriza enormemente a fluência verbal como dá, à retórica, um poder inequivocamente coercitivo: (...) “ele tem palavras, oratória, máximas, eloqüência” também quer dizer, e não só metaforicamente, “ele tem poder, influência, peso, autoridade”.367 — A peculiaridade da sociedade marroquina de Hasan em relação aos contextos elizabetano e javanês mora... — começou o meu interlocutor. — ... mora, sim, na potência simbólica das palavras num universo onde, afora o discurso e a energia suficiente para mantê-lo em funcionamento, nada mais existe. — E prossegui: — O mesmo torneio de vontades verificado por Geertz no Marrocos de Hasan, torneio responsável pela criação de uma verdadeira “sociedade agonística”, pode ser encontrado no impasse de Argemiro acerca de qual discurso seria o certo e o apropriado para aquela gente, aquele tempo e aquela guerra. E seu torneio de vontades dá-se por dentro da cabeça, uma cabeça, a sua própria, que de início ele não compreendia e apenas sentia latejar; uma cabeça, a sua própria, que depois se foi tornando clara e amiga à medida que foi 367 Id., p. 173. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 210 encontrando dentro de si as suas palavras mesmas. — E citei, com um certo arrebatamento, o período que penso em usar como epígrafe ao meu capítulo sobre o universo de Argemiro: — “Sendo, não somos, disse e se admirou de que sua cabeça se enchia de clareza e de que todas as palavras se apresentavam” (p. 143). — Há uma idéia que podemos desenvolver — começou o meu interlocutor — acerca da relação entre a cabeça de Argemiro e a figura do narrador. Veja que... 4.3. O “ESPÚRIO LEGÍTIMO” — Deixe-me concluir — e me dispus a retomar a idéia que deu início à conversa sobre Vila Real. — Num artigo recente acerca do panorama da literatura brasileira contemporânea, Silviano Santiago escreveu: “O leitor estrangeiro não quer compreender as razões pelas quais, na literatura brasileira, o legítimo quer ser PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA espúrio a fim de que o espúrio, por sua vez, possa ser legítimo”.368 Silviano referiase a uma tendência de hibridização pouco apreciada e entendida pelo público de fora que se põe a ler a atual produção literária brasileira. Esse leitor de fora quer ver “o estético na arte e o político na política”.369 As mútuas contaminações afetam a vontade de pureza que se costuma esperar de ambos os campos. — Essa vontade de pureza, no entanto, é uma expectativa, como você mesmo disse, ou melhor, como disse o Silviano Santiago, uma expectativa estrangeira. E por que razão estamos aqui a percorrer o relevo de uma expectativa estrangeira sobre a literatura nacional? — Chego lá. Se um romance qualquer consegue trazer para o seu artesanato literário uma discussão política relevante, seja ela qual for, diga aí... — Sei lá... a injustiça social, a patética distribuição das riquezas nacionais, a violência banalizada, a indiferença dos governantes, a mediocridade intelectual das elites econômicas... — Sim, sim — e agradeci pela lista —, que se pense no tema mais desagradável e urgente... Se esse romance consegue, nas palavras de Silviano, 368 “Literatura anfíbia”, Folha de S. Paulo, 30 jun. 2002. 369 Id. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 211 deleitar e comover, e ainda por cima ensinar,370 ele alcança, não uma legibilidade para os de fora, o leitor estrangeiro, em sentido lato, que o vê como espúrio, mas uma legibilidade dirigida, para usarmos outra palavra em sentido lato, extremamente lato, ao povo. Vai tornar-se aqui, para este público, legítimo. Ouça. Silviano escreve, recuperando Pound, como você bem lembrou na nota: “Talvez pudéssemos nos ater apenas a dois princípios da estética: o livro de literatura existe ‘ut delectet e ut moveat’ (para deleitar e comover). Pudéssemos nos ater a esses dois princípios e deixar de lado um terceiro princípio: ‘Ut doceat’ (para ensinar)”.371 — Ora — e o meu interlocutor se levantou em direção ao café —, um dos aspectos desse artigo de Silviano reside na análise do desvio que teve de fazer a literatura brasileira para contornar uma deficiência de base na formação de nossa sociedade: o déficit educacional. Muito bem, mas como funciona essa discussão dentro do “conto militar” de Ubaldo? E, antes que você responda, deixe-me citar PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA aqui uma resenha do jornalista Renato Pompeu, escrita em 1979, que vislumbra importantes características de uma literatura brasileira então nascente — e ele retirou de nossos infinitos arquivos uma matéria de revista. — Trata-se, como você deve saber — e ele sorriu —, de uma resenha sobre Vila Real. ... Diante desse quarto livro de ficção de João Ubaldo Ribeiro (...) seja permitido meditar sobre o destino do bom escritor brasileiro. O pequeno público treinado para ler regularmente no país parece preferir obras de informação, tipo reportagens ou biografias, certo de que dados, estatísticas e datas proporcionam visão exata dos problemas nacionais.372 Quanto a obras de ficção, esse mesmo público tende a preferir romances estrangeiros, que lhe dão a visão da vivência desejada no futuro (...). (...) Ele [João Ubaldo] proporciona o que só a ficção pode dar: ao lado do prazer de ler, da fruição da palavra, também um comentário emotivo sobre a condição do homem, uma consciência sentimental de um modo de vida tão 370 — Nas palavras de Silviano, não — corrigiu-me ele, em nota —; nas palavras de Ezra Pound, a citar Rodolfo Agricola. — E, pegando o ABC... de Pound, leu que — “... numa edição que data de mil e quinhentos e pouco, diz que a gente escreve ut doceat, ut moveat aut delectet, para ensinar, para comover ou para deleitar” (“Segunda série, Capítulo VIII” (p. 65-66), in ABC da literatura, São Paulo, Cultrix, 1989-90, p. 65). 371 “Literatura anfíbia”, Folha de S. Paulo, 30 jun. 2002. — Quanto a isso, observa ainda João Ubaldo Ribeiro, nessa entrevista. Ouça. — E o meu interlocutor, aparentemente já inteirado dos papéis de minha pesquisa de imprensa, leu: — “Então, você (...) diz: ‘Itaparica é uma ilha de tantos quilômetros, com tal número de habitantes, tais atividades econômicas e determinados níveis de renda’. Isso é conhecer Itaparica? (...) A arte (...) é uma forma de conhecer, que você chama de ‘misteriosa’, na falta de melhor palavra. (...) Isso ao mesmo tempo é a maldição e a bênção do escritor” (Vander PRATA, Fernando ESCARIZ & Antônio RISÉRIO, “João Ubaldo Ribeiro: Viva o povo brasileiro”, Jornal da Bahia, 3 set. 1983). 372 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 212 distante do leitor, num mundo criado pela arte em que mesmo assim o leitor se pode reconhecer.373 — Posso observar — disse eu — o quão belamente o romance se encaixa no que está dizendo Silviano Santiago. Uma literatura para deleitar, comover e... ensinar — e folheei a matéria. — Estão dizendo praticamente o mesmo... — Sim. Silviano Santiago está a comentar a configuração de uma literatura anfíbia que, no entanto, já estava configurada, e comentada, 23 anos antes... — Sim. Vila Real foi publicado em 1979, ano referido por Silviano como um dos marcos para uma importante transformação dentro da arte e da cultura brasileiras. Ele circunscreve — e li — o “momento histórico da transição do século XX para o seu ‘fim’ pelos anos de 1979 a 1981”.374 Do mesmo modo, o discurso de Argemiro deverá ser e parecer-lhe, num primeiro momento, espúrio, ou seja, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA estranho àquilo que ele mesmo esperaria de um discurso a seu povo, um discurso que deveria ter em si o conhecimento que ele, Argemiro, não tinha; que deveria ter em si todas as muitas palavras que Argemiro não conhecia; que deveria ter em si toda a instrução que Argemiro não pôde adquirir devido ao óbvio fato de ter passado a vida sobre a enxada; um discurso que acabaria por aparentar, enfim, uma legitimidade que, no entanto, não conseguiria sustentar-se por muito tempo. Vou ler um trecho. Ouça: “— Sim — disse Argemiro, sentindo que o coração se apressava e a cabeça empacava, na falta das palavras que gostaria de dizer e que sabia trazer dentro de si, mas não havia como elas tomassem forma e voassem da boca” (p. 88). — Isso lembra Homero — disse ele. — “Que palavra rompeu a barreira de seus dentes?” etc. etc. E me lembra também um trecho daquele texto de Silviano Santiago, “Vale quanto pesa...”, em que ele fala do personagem Riobaldo, “sempre querendo afirmar-se como chefe, mas faltando-lhe a bravura e a hombridade necessárias”.375 No caso de Argemiro, faltam-lhe mesmo as palavras, as palavras — e me estendeu outra xícara de café. — E também a bravura. Ouça: “Ai, disse Argemiro, não sei falar, não sou valente, e ia gostar de estar num copiar, espiando bois, só peço que venha comida, só peço que não me peçam. Mais do fazer é o parir” (p. 121). — E continuei meu 373 “Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979, realces do meu interlocutor. 374 “Democratização no Brasil...”, op. cit., p. 11. 375 “Vale quanto pesa”, op. cit., p. 35. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 213 pensamento: — Pois bem. Esse legítimo discurso ideal presente somente na cabeça e nas vontades de Argemiro tem a obrigação de, necessariamente, jogar por terra suas qualidades apriorísticas, as suas muitas palavras instruídas, compridas e didáticas, e, com urgência, contextualizar-se. Ouça: “E aí Argemiro compreendeu todas as palavras, em primeiro lugar pelo som que fazem, o qual traz cólicas ou risos ao rosto (...) ou ódios imorredouros ou pesadelos esquecidos antes de deixarem de ser as nuvens escuras que rodeiam as cabeças das pessoas” (p. 146). — Bonito... E a partir do momento em que ganha espontaneidade mas perde, para Argemiro, a aura do que seria um legítimo discurso de poder, torna-se automaticamente, no seu apressado entendimento, espúrio? — arriscou ele. — Sim, mas espúrio apenas por um instante, porque, logo em seguida, se esse discurso consegue abrir-se para o seu contexto e dele se alimentar, consegue atingir uma terceira condição. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Torna-se então, de outro modo e sob outras máscaras, legível, ganhando assim uma nova e diferente legitimidade? — Sim — e eu, abrindo um sorriso, li um trecho. — Argemiro “teve perfeito entendimento das palavras enquanto as sopesava, avaliava e estimava, ao flutuarem elas no ar” (p. 147). A toda essa volta podem-se dar os nomes de engajamento, comprometimento e experiência social. — E continuei: — A legitimidade de uma posição de chefe, uma posição de chefe a ser conquistada e mantida pela via do discurso, ou seja, da escolha certa das palavras certas aos ouvintes certos acerca dos assuntos certos nos momentos certos, instaura um impasse, no entendimento do personagem Argemiro, acerca de qual discurso seria o discurso “correto” para os de sua gente. — Ainda é o caso de se perguntar o que há de errado com as palavras de Argemiro... — Sim, é sempre o caso de se perguntar o que há de errado com as palavras de Argemiro... Elas não correspondem àquilo que ele próprio esperaria das palavras de um líder. As palavras de um líder devem ser importantes, difíceis, poderosas e, antes de tudo, e esta qualidade restou em último lugar justamente para que ficasse salientada a sua precedência sobre as demais, antes de tudo, dizia eu, as palavras devem ser muitas. Mas essas palavras que Argemiro quer para si... essas muitas palavras são as palavras do narrador; não as dele. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 214 — “Se uma mulher sabe mais palavras do que nós, podemos chamar essa mulher de homem?” (Vila Real, p. 125) — leu o meu interlocutor. — Boa citação. Isto é o que pergunta a si próprio Argemiro, ensimesmado diante de uma mulher, Ernesta, por quem nutre uma admiração que ele não consegue entender, uma vez que baseada em qualidades normalmente associadas aos homens, tais como a voz do mando, voz firme, precisa, clara, a voz, enfim, de um chefe. É o que faz Diadorin, em Grande Sertão..., para sustentar-se como homem... Ernesta terá em Maria da Fé, de Viva o povo brasileiro, o seu espelho distante, e nem tão distante assim... — E também as palavras devem ter por trás de si conhecimentos adquiridos pelo estudo e pela leitura — animou-se ele, livro à mão, sem ouvir esta minha última idéia —, conhecimentos como os que tem o padre Bartolomeu, por exemplo, “cujo conhecimento ia além do de todos os homens” (p. 29), cuja cabeça PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA sabe de tudo e, portanto, conhece todas as palavras que se referem a esse “tudo”. — Mas ele, Argemiro, não tem capacidade para resolver os problemas de sua gente, porque ele, Argemiro — e citei, na mesma página, recuperando o livro —, “não sabia muitas das palavras de que iria necessitar, palavras que eram névoas e caroços por dentro do que via”. E agora volto a Silviano Santiago, antes que você me peça que o faça... Silviano identifica o campo da arte como especialmente convidativo para que se arme o debate acerca da explosão das muralhas, as muralhas que distinguiam “o erudito do popular e do pop” e as muralhas que distinguiam a então única esquerda brasileira, contraposta à repressão militar de 1964 a 1979,376 das novas esquerdas, diferenciadas, agora internamente, a partir de múltiplos discursos e múltiplas identidades sociais. Do mesmo modo... — Deixe-me concluir — disse ele. — O romance Vila Real, tomando como matéria-prima a política e a guerra numa pequena comunidade rural, realiza, a seu turno, a mesma discussão, tendo por agente Argemiro e por “questão” a necessidade de o seu discurso ser legível, total e potentemente legível por todos. Vou ler, dê-me o livro: 376 — Se tomado tecnicamente — interrompeu-me ele, abrindo uma nota didática —, o militarismo no Brasil só termina no dia 15 de março de 1985, data em que chega ao fim o governo de João Figueiredo e é implantada no país a República Nova, com a posse do vice-presidente José Sarney. O ano de 1979 pode ser, no entanto, tomado como um marco por ser o ano de término do governo Geisel (1974-1979), responsável pela “abertura política” no país. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 215 ... Não soube quanto tempo sentiu que de si saíam as palavras e não sabia se estava deitado, sentado ou de pé. Não sabia mesmo se estava ou estava onde e as palavras também não só saíam dele, como vinham de todos os cantos, fazendo daquilo tudo um oceano. Entendeu que as palavras vinham tomar corpo em sua cabeça e depois velejavam de todas as cores e se enfunavam loucamente, tudo uma festa panda e tremulante, e então pôde notar que aquelas palavras também pareciam pedras e passarinhos sobre o campo. (p. 147) — Então — e lhe tomei o livro —, do mesmo modo como o “poema se desnuda de seus valores intrínsecos para se tornar um mediador cultural”,377 as palavras de Argemiro não devem conter em si nada que não seja arrancado à força da vida de todos os dias de seu povo. Do mesmo modo como, em nome da comunicabilidade e da transitividade, se deve “esvaziar o discurso poético de sua especificidade (...), equipará-lo qualitativamente ao diálogo provocativo sobre o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA cotidiano”,378 com as suas novas palavras — e me levantei —, palavras que não sabia que sabia, falará Argemiro muitos discursos a seu povo, estabelecendo assim “a combinação extemporânea da prática política aliada à prática da vida”,379 para citarmos mais uma vez as palavras de Silviano Santiago acerca da mudança de lugar do discurso político das esquerdas: da Política para o exercício cotidiano da política; da Arte para o exercício quotidiano da arte. — ... do comando para o exercício quotidiano do comando. — Sim, sim — e pedi a ele mais café. 4.4. O NARRADOR-ENSAÍSTA — Gostei bastante de sua reflexão: o romance Vila Real como um universo onde se desenrolam dramaticamente as questões exposta por Silviano Santiago. Ele, em algum momento, em algum dos dois textos que você usou, cita Ubaldo? — Não, não cita, e, pelo que eu saiba, nunca citou... 377 Silviano SANTIAGO, “Democratização no Brasil...”, op. cit., p. 14 378 Id., ibid. 379 Id., p. 15. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 216 — Pois bem — e ele coçou a cabeça, mudando de assunto. — Eu gostei de sua reflexão, mas senti que nos afastamos do narrador, se é que chegamos a nos aproximar... — Sem dúvida que sim — e me sentei, disposto a uma nova conversa. — Vila Real constitui um universo de perspectivas narrativas bem mais completo do que o de Sargento Getúlio, este confinado ao ponto de vista enlouquecido do protagonista. — Mas o narrador de Vila Real incorpora antes de tudo o protagonista Argemiro... — Eu sei, mas o seu comprometimento é coletivo: é o povo de Argemiro o seu mundo, o que equivale a dizer: são as palavras do povo de Argemiro o seu mundo... — eu disse. — Se em Setembro não tem sentido, no Sargento Getúlio e no Diário do Farol vimos predominar no narrador o exercício de uma perspectiva PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA individual e individualista, em Vila Real o nosso facho já abarca o universo dos interesses de uma pequena comunidade... — Mesmo assim, é uma comunidade de pessoas cultural e economicamente semelhantes, e isso vai refletir-se na natureza discursiva do narrador, não é? Em diferentes palavras, o narrador de Vila Real é um narrador monocórdio? Sim ou não? — insistiu. — Sim... quero dizer: não. Não é um narrador monocórdio. Mas a relativa uniformidade do universo de personagens, “... em cada um uma história e em todos a mesma história” (Vila Real, p. 90) — citei —, tem conseqüência direta, é claro, sobre a personalidade do narrador, que não vai operar um estoque tão variado de discursos, como é o caso da performance narrativa de Viva o povo brasileiro, por exemplo, sobre o qual ainda conversaremos, inigualável entre todos os romances, onde o narrador transita de uma ponta a outra do leque discursivo da sociedade brasileira. Os escravos... — ... os índios, os padres, os fazendeiros, os pardos, os alforriados, as mulheres, os soldados, os banqueiros, os artistas, os guerrilheiros... — Sim, e também os discursos literários..., e ainda muitos outros tipos inclassificáveis, e também de uma ponta a outra de um período: do século XVII ao XX. Viva o povo brasileiro e, em menor escala, mas dentro da mesma pluralidade narrativa, O feitiço da ilha do Pavão serão o centro de minha discussão sobre o narrador sem cabeça e o ápice de sua performance. A nossa visada sobre o narrador 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 217 de Vila Real tem um caráter sincrônico: está confinada a um curto período de tempo e a um exíguo espaço de ação, onde se desenrolam poucos eventos, todos eles relacionados à luta de uma comunidade por recuperar o seu lugar no mundo. “Vila Real (...) fala das injustiças sociais e apresenta o drama dos posseiros, através de um realismo tenso, telúrico, cheio de lirismo e habitado de assombrações.”380 — Eu gostei dessa espécie de definição de Vila Real — disse o meu interlocutor. — Tão bom quanto essa é esse trecho do jornalista Mário Pontes, que fala do “conto militar” de Ubaldo... ... no qual a presença arcaica, medieval e bíblica se mostra a cada passo. (...) No sopro de religiosidade que atravessa o relato, eclética, por vezes maniqueísta, por vezes de uma dialética inacabada, que proclama a unidade do amor e do ódio, (...) da santidade e da danação. Nos nomes dos guerreiros sem biografia.381 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Mas você concentrou quase toda a sua reflexão sobre a legitimidade do poder no personagem Argemiro, os seus dramas, as suas assombrações e as suas dificuldades com a palavra — continuou ele. — O narrador, no entanto... — O narrador é o protagonista do romance, meu caro. Todo o discurso é dele, mas as suas façanhas narrativas se revelam pouco variadas... Eu estou chamando de façanhas narrativas o procedimento das múltiplas incorporações, que, como eu disse, veremos em profusão em Viva o povo... e nO feitiço... Então — e continuei —, quanto à sua pergunta acerca do caráter monocórdio do narrador, que é aquele que efetivamente fala em Vila Real, ouça este trecho: “Vendo assim seus defuntos virados em piso de estrada, muitos se revoltaram, mas os homens não pareciam ouvir. A terra lhes pertencia, como provavam os papéis que guardavam em seus barracões gelados” (p. 32, realcei). O ponto de vista aqui é o ponto de vista do povo expulso, e o termo “barracões gelados” demonstra que o narrador não tem em si todas as palavras e que seu campo semântico se restringe ao de uma das partes, a mais fraca. — Mas há algum momento em que esse narrador conduz a história sob o ponto de vista dos mineradores trancados em seus gabinetes com arcondicionado? — perguntou o meu interlocutor, já conhecedor de minha resposta. 380 José Mário PEREIRA, “O romance maior de João Ubaldo”, Última Hora, 5 jun. 1982. 381 “Epopéia no sertão”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 218 — Não, não há. Esses homens e seu universo revelam-se estranhos ao narrador, que não lança mão de nenhuma atitude de onisciência quando se põe a falar dos antagonistas. Não há gabinetes refrigerados; há apenas “barracões gelados”... Ouça: “— Ninguém bateu em seu pessoal — disse o homem, virando de face para baixo um papel que trazia alguma coisa anotada” (p. 35). O narrador, aliás, não lança mão da... — Lembrei-me agora do que ia dizer lá atrás quando você me interrompeu — disse ele, num salto, e sentou-se. — Foi um pouco antes... — Ei, ei! Um momento! Deixe-me concluir: eu dizia que o narrador não lança mão de uma onisciência clássica nem mesmo quando circula entre os pares de Argemiro. Veja esta passagem. Observe que é o narrador a contar, sim, sob o ponto de vista de Argemiro, sim, ou seja, ele é onisciente apenas dos assuntos de Argemiro, mas a sua focalização em Argemiro não é total, já que ele utiliza PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA marcações que fazem referência ao próprio Argemiro, procedimento que não seria necessário se a focalização interna fosse total. Veja: ... Debaixo do ingazeiro, iluminados pelos fachos que atravessam as copas, estavam Ernesta e Otoniel e, se não se tocavam, se olhavam. Desde cedo Argemiro aprendera que os homens mostram às mulheres desejadas aquilo que sabem fazer. (...) Por isso que o coração gaguejou, quando ele viu que Otoniel mostrava à Ernesta o modo de se pegar camarão. (...) Otoniel segurou um punhado de tripas de marreco e mostrou a Ernesta. Na mão esquerda, carregava as estopas amarradas num cordão. Estas tripas, achou Argemiro que disse Otoniel, não devem ser limpas, mas devem estar com o cheiro natural das tripas, não curadas. (...) Ernesta também baixou e subiu a cabeça e ainda esticou o pescoço para junto de Otoniel, quase como se cochichasse. Mas você pesca mesmo muitos camarões (...)? — perguntou Ernesta, na cabeça de Argemiro. (p. 130-131) — Como você vê, o narrador transita, entre os personagens que compõem o grupo de Argemiro, apenas como mais um ponto de vista, entre outros, e o relacionamento do narrador com o protagonista... — Agora falo eu — levantou-se o meu interlocutor, visivelmente disposto a falar muito. — Lembrei-me de algo. Foi um pouco antes de você começar a falar do discurso espúrio-legítimo... Podemos estabelecer a seguinte relação entre a cabeça de Argemiro e as palavras do narrador: estas estão naquela, mas quem fala não é Argemiro; é o narrador, porque Argemiro tem medo das palavras, mantendo com elas uma atitude cerimoniosa, e toda a história é a história do medo 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 219 gradualmente desfeito de Argemiro. Não, ainda não acabei... E eu creio poder ser capaz de convencer você da relativa desnecessidade de ficarmos aqui a analisar as pequenas incorporações do narrador ao longo dos personagens do grupo de Argemiro. Isso não importa, porque o grupo de Argemiro e Argemiro são a mesma coisa. Ouça este trecho: “Pois não era por ser melhor que os outros, mas porque encarnava todos os outros... (p. 114); e também este: “Sou, pensou Argemiro, filho de todas essas mulheres e pai de todos esses homens. Sou também filho de todos esses homens e pai delas” (p. 119). Esses trechos são muito eloqüentes. — E ele prosseguiu: — Se o narrador ainda se dispusesse a penetrar o universo dos grupos rivais, seja o de Godofredo e Genebaldo, seja o dos mineradores internacionais, vá lá, pois isso exigiria do narrador uma abertura e um deslocamento ideológico em direção a mundos diferentes, mas não é essa a peculiaridade narrativa do livro. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Tudo isso era mais ou menos o que eu ia dizer... — e sorri, sem graça. — Então escreva, mais tarde. O narrador, em Vila Real — disse ele, impassível —, tem um segundo papel, e podemos desde já deixar aqui estabelecido o óbvio: que o primeiro papel de um narrador, qualquer narrador, é narrar, muito bem. Mas alguns narradores têm uma segunda incumbência, que varia de caso para caso. — E nesse caso esse segundo papel é... — e cruzei os braços, animado com aquela idéia. — Tornar-se e manter-se como um duplo — disse ele, convicto. — Argemiro e o narrador formam um par, pertencendo Argemiro, originalmente, à esfera diegética e o narrador à esfera extradiegética, embora na prática, e a prática reflete-se na fala do narrador, as esferas se confundam, compondo ambos um mesmo personagem. Veja: “— Sim — disse Argemiro, principiando a falar como dera para acontecer de uns tempos para cá, como se não estivesse conversando, mas só pensando e falando” (p. 60). Entre eles, as palavras: as palavras de um que vão gradualmente sendo apreendidas pelo outro, que começa então a aprender a usálas, que começa então a aprender a vê-las como legítimas. Observe que estou relacionando a sua idéia inicial sobre a possibilidade de o discurso de Argemiro se tornar uma real mediação cultural para o seu povo, com o papel do narrador nessa missão... Você pode usar essa idéia na tese; pode até dizer que é sua... O que acha? 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 220 — Acho muito boa essa maneira de olhar para o livro. E aproveito aqui para ilustrar o que você disse. Ouça, e veja o narrador em ação: ... Argemiro achou-se tonto mais uma vez e de novo teve vergonha de si mesmo (...) e se via na falta das palavras. Olhando para cima e respirando fundo, no entanto, pôde falar como se tivesse decorado alguma coisa remota ensinada, uma voz de flauta lhe assoprando nos ouvidos (...). Disse ao homem que um papel não poderia dar a ninguém direito à terra, porque esta era de quem chegava até a sentir seu cheiro à distância e com ela misturar-se, pelo trato de todo dia. Disse que não era verdade (...) que eles não tinham raízes ali (...), pois a raiz se finca onde se trabalha, principalmente a terra, sendo esta a coisa mais verdadeira que existe... (p. 36, realcei) — Observe — antecipei-me — que o narrador diz que Argemiro disse, mas quem diz o que Argemiro disse continua sendo o narrador, que chega a fazer menção a uma suposta inspiração a acometer o espírito de Argemiro no momento PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA da fala. É quase uma menção a si mesmo como “a inspiração”, a “voz de flauta”, flauta mágica... Estamos na cabeça de Argemiro, você está certo, e a cabeça de Argemiro é a fala do narrador, e a fala do narrador é a reprodução de uma conversa íntima, porque Argemiro está sempre em dilema, ou seja, conversando consigo mesmo, o que equivale a dizer: conversando com o narrador e utilizando, nessa conversa, todas as palavras que não consegue utilizar em suas conversas com o mundo exterior. Ouça e observe que não há distinção alguma entre a fala do narrador e a fala de Argemiro. ... Ai, disse Argemiro, não sei falar, não sou valente e ia gostar de estar num copiar espiando bois (...). (...) É assim: quando não se concebe que exista qualquer coisa mais que o desespero, chega um rio de águas atrás: a água carrega a vida? conduz umas iluminações? seu barulho move as circulações? Mas, de fato, que se possa sentir, o rio carrega só as memórias. (...) (...) Este rio, este rio é indiferente, pensou Argemiro. Este rio tem seus negócios de rio a tratar, é a natureza de um rio. (...) Pode o Japiau sorrir, pensou Argemiro. Não, ele não pode sorrir, não porque não pode, mas porque não quer. O rio só faz viajar (...). (p. 121-123) — Não há distinção alguma entre as falas de Argemiro e do narrador — repeti —, e nem é relevante que haja essa distinção, não porque se trate de um mero recurso narrativo em discurso indireto livre, com um narrador a incorporar os pensamentos de um personagem focalizado... Não. Não há distinção entre as falas de Argemiro e do narrador por duas razões: porque o narrador não se 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 221 preocupou com isso, antes pelo contrário, já que são ambos, como você disse, e muito bem, o duplo um do outro; e também porque o narrador e Argemiro estão ambos envolvidos, sob diferentes condições, numa querela particular por palavras. — Com as palavras, talvez seja mais exato... — Sim, talvez... O que diz o narrador nem sempre é o que diz, ou pensa, Argemiro, e caberá ao leitor ensaiar uma distinção, que vai variar a cada leitura, é certo. Quando lemos, no interior da narrativa: “No meio da umidade e das folhas que transpiram arco-íris, as montanhas se desenterram. É necessário ver. As montanhas se desenterram porque, se as vistas as abandonam, não há certeza de que existam enquanto não as vemos. E de fato não existem” (Vila Real, p. 137); quando lemos isso, não sabemos quem diz, se o narrador ou se Argemiro. — Ah, isso quem diz é o narrador... — asseverou ele. — Por quê? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Porque nesse trecho ele está justamente falando da importância do olhar, do modo de ver, do ponto de vista, ou seja, do narrador, de si próprio, sem o qual não há Argemiro, não há montanhas, não há história alguma a narrar. Você não vê isso? — Vejo, sim, tem razão, e vou além: observe este trecho — disse eu, pedindo-lhe mais café —, ainda uma teorização não só sobre a importância do ponto de vista como um fator estruturante de toda tentativa de dar sentido ao mundo pela via da narrativa, como também uma teorização sobre a falácia da onisciência: “Quem conhece as paragens onde habita sabe que nada se repete e que erra todo aquele que prevê em demasia. Por isso Argemiro (...) Viu que toda coisa existente muda de parecença, quando muda quem a vê” (p. 110, realcei). — Sim. A reflexão sobre a narrativa percorre todo o livro — disse ele. — Você mesmo chamou essa parte de nossa conversa de “o narrador-ensaísta”... É essa, aliás, a pergunta que faz o Renato Pompeu naquela matéria da revista Veja.382 “Um romance-ensaio?”, pergunta ele, diante de Vila Real.383 — Sim, o narrador-ensaísta, aquele que deleita e comove, como narrador, e ensina e aponta e sugere, como ensaísta... O livro está pontuado de reflexões e 382 “Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979. 383 — E lhe cito, aqui em nota — disse ele —, uma afirmação de Ubaldo, menos de um mês depois de publicada a matéria de Veja; uma afirmação que pode ser lida como uma resposta...: “O livro fala de injustiças e, portanto, tem uma conotação política. Mas não é um comício, nem um (cont.) 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 222 frases bastante afirmativas e convictas, e me parece ser este o trabalho do narrador por todo o livro: encontrar sentidos. Observe a firmeza da idéia: “Todas as coisas acontecem na natureza, mas somente os homens escolhem o que é justo, enquanto as outras criaturas escolhem o que é bom, e nisto vai grande diferença” (Vila Real, p. 108-109), ensina o narrador. E para tanto toda a sua fala se concentra em estabelecer relações entre o mundo dos homens, mundo moral, e o mundo da natureza. Cito este exemplo: “Abençoou e maldisse as tiriricas que vestiam a rampa, pois, enquanto eram obstáculos para que o inimigo rastejasse pedra acima, também serviam para que se escondesse e se tornasse na alma ruim dos matos, na morte sem rosto” (p. 10). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E eu cito este — pegou o livro e leu: ... o ar da manhã está cheio de seres e pressentimentos. A terra nessas horas se abre para minhocas que querem sair para tomar sol e as rachas do chão todas têm finalidades (...), vindo também as completas obrigações matinais dos passarinhos e cavalinhos do cão e de tudo em que não se pode mexer sem que se mexa no futuro e na ordem das coisas. Os passarinhos vêem tudo de maneira assassina e cantam para ameaçar e assim se ouvem pelos ocos que reboam as vozes que dizem eu mato, eu mato... (p. 14-15) — Sim. Esses trechos são como um verso, essa prosa de João Ubaldo Ribeiro não é prosa. Vila Real é o seu primeiro e até agora único livro de versos. É a sua epopéia sertaneja — disse eu, terminando o meu café e pegando, ansioso, A teoria do romance, de Georg Lukács. 4.5. A EPOPÉIA SERTANEJA — Este é um livro bonito e difícil — disse o meu interlocutor, espichando o olhar para o meu Lukács. — O que é que vamos fazer com o Lukács? Tentar utilizar as suas distinções entre epopéia e romance na exploração do tipo de prosa que caracteriza Vila Real? — Você é mesmo um interlocutor de primeira linha — e sorri para ele. — Mas não vamos nos restringir ao tipo de prosa... Veja: Vila Real, segundo a epígrafe do próprio autor, é um conto militar... — prossegui, retirando uma ensaio, é um romance” (Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício, é um romance’”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979). 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 223 matéria de jornal de nossos infinitos arquivos e colocando-a sobre a mesa. — Ouça: “João Ubaldo (...) acha que a obra pode ser classificada de épica, pois nela, observa sorridente, ‘há pelos menos três boas batalhas’”.384 Há ainda um elemento que nos permite atribuir a Vila Real um espírito épico, embora não a ponto de a caracterizarmos com uma história épica: uma aproximação com a descrição e a sintaxe homéricas. Ouça e observe o mecanismo das comparações entre o mundo natural e os atos humanos, e entre as partes do corpo dos guerreiros e os objetos do cotidiano. Observe também os apostos explicativos junto aos nomes, a fazer referência à biografia das vítimas: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) ... Tal como, na embocadura de um rio nascido de Zeus, brame uma grande vaga resistindo à corrente, e, a toda a volta, os altos penhascos gritam sob o estrondo vômito do mar, assim foi, da mesma altura, o clamor dos Troianos em marcha. (...) O ilustre filho de Leto, o Pelasgo, Hipótoo, puxava Pátroclo por um pé na rude peleja (...). Mas, de repente, abateu-se sobre ele um mal de que ninguém o protegeu (...). O filho de Télamon, saltando através da multidão, feriu-o, de perto, traspassando o seu capacete de faces de bronze. O capacete de penacho de crina rasgou-se (...), percutido por aquele grande pique e aquela mão espessa. Por essa abertura, jorraram da ferida os miolos sangrentos. E logo se quebrou o ardor de Hipótoo (...). Não pagou a seus pais o preço da sua educação, e breve foi a sua vida (...).385 (ii) ... No meio da capineira, a cabeça ligeira de Alarico e seus braços de pás de catavento se rodeavam de explosões vermelhas, enquanto ele pulava entre as balas e decapitava os adversários. Assim fez, à vista de Argemiro, com Nestor, filho de Noêmio, que muitas vezes viera vender roupas (...). Nestor era da mesma idade que Alarico e talvez tivessem até jogado juntos algum dia (...). Nenhum sentimento, porém, se mostrou na cara de Alarico, quando, com o sol pelas costas, olhou a última vez para a face amedrontada de Nestor e, sem dizer qualquer palavra, inclinou a lâmina do facão e fez com que a cabeça do rapaz voasse pelo ar, o rosto com expressão ainda e os olhos ainda vendo. E assim ele avassalava a capineira como um vento (...). Junto a Alarico, na refrega, estava Rodenaldo. Seus braços são grossos como barris e sua cabeça é dura como pedra. (Vila Real, p. 17-18) — Essa sintaxe homérica será encontrada em vários momentos da prosa de João Ubaldo Ribeiro, e não à toa, já que Homero é dos seus autores preferidos, sempre citado em respostas acerca de suas predileções de leitura, sempre citado 384 385 Id. HOMERO, A Ilíada, Portugal, Publicações Europa-América, s/d., p. 249-250. — Baseei-me exclusivamente no texto homérico traduzido da versão francesa e sob a forma de um texto em prosa, que prefiro. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 224 em questões relativas às suas influências literárias. Como observou Wilson Martins, “Literariamente, seus mestres de eleição (...) são os escritores ricos de vitalidade e facúndia, tipos sangüíneos e pletóricos, forças da natureza e gênios desmedidos: Rabelais e Homero...”.386 Poderemos realizar com mais detalhes uma analogia entre João Ubaldo Ribeiro e Homero quando estivermos diante do Capítulo 14 de Viva o povo brasileiro — prometi.387 — A inspiração em Homero é, de fato, evidente — disse ele —, e os dois trechos lidos falam por si, mas eu prefiro ver isso em detalhes lá na frente, quando entrarmos em Viva o povo..., como você já antecipou. Agora eu gostaria de ir mais fundo nas reflexões do Lukács, se você não se importar... — Não, não me importo, desde que você faça mais café... Lukács sem café... Começo citando o húngaro, para quem o herói da epopéia nunca é um indivíduo e o seu traço central nunca tem como objeto um destino pessoal, mas o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA de uma comunidade.388 O personagem de Vila Real, embora individualizado na figura de Argemiro, compõe na verdade toda a comunidade. “O meu nome, disse ele, com a mais alta alegria, que vinha de não ser diferente de todas aquelas pessoas, de ser um deles e, portanto, cada um deles podia ser ele (...): o meu nome é Argemiro Meia-Lua” (p. 158). — Mas o fato de Argemiro estar por todo o tempo na mira do narrador não o singulariza em relação aos demais? — Argemiro é o herói de Vila Real... — Isso não é resposta. É tautologia — disse ele, dando-me a xícara cheia. — Obrigado. Inverta os termos. Não é a preferência do narrador por ele que o singulariza. Singulariza-o o fato de ser ele o herói, e por isso ele é o alvo do narrador. Há uma relação de mútua dependência e complementaridade entre o destino do herói e o destino do povo: formam ambos o cosmos épico. Ouça a queixa do fardo: “E depois (...) — pensou Argemiro — que desacerto é esse, quem foi que pediu para nascer e carregar nas costas esse destino (...)” (p. 72). E Lukács faz 386 “Crônica (picaresca) da vida brasileira”, Bravo!, out. 1997. 387 — Ver Capítulo 5: “O vozerio do povo brasileiro”, item 5.9.: “’Canta, ó, musa!’: uma descrição interpretativa”, p. 378. 388 “As formas da grande épica / epopéia e romance” (p. 23-96), in A teoria do romance — Um ensaio histórico filosófico sobre as formas da grande épica, São Paulo, Duas Cidades, Editora 34, 2000, p. 67. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 225 referência à completude e à organicidade desse cosmos épico: elas não permitem que uma de suas partes se volte sobre si mesma, “a ponto de descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade”.389 Argemiro, quando pensa em si, pensa em si mesmo como o depositário dos anseios de seu povo. Vou ler: ... Argemiro não sabia do que se passava nos momentos diminutos que cada um vivia, mas sabia de suas caras, quando vinham à frente indagar. Então, pensou Argemiro, estou escolhendo isto daqui, mesmo que seja só por causa deste povo, porque, sem esse povo, é muito provável que eu fosse somente um Sem-Nome do Sem-Nome, de tal forma que nem minha cara nem minhas palavras fossem reconhecidas e então a terra me chupasse de volta, como chupa a água que entrega. (p. 67) — Argemiro é o herói da história — insisti. — Ele não é uma diferença em relação a esse povo, mas a síntese desse povo. Além de herói, ele é também o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA chefe, embora não queira, e “por ser chefe, não sou melhor, antes pior” (p. 133134), e a sua vontade de não ser o chefe e de afastar-se do comando para viver uma vida sossegada e alheia não o afasta desse povo, mas, antes, constitui obstáculo dignificador de seu caminho, obstáculo que deve ser superado, porque ele é o herói, e o herói é aquele que supera e é também aquele que está preso ao seu destino. “... ai Argemiro, por que não ficou dentro das partes de seu pai, na barriga de sua mãe, por que não se deixou quieto, dentro dos outros labirintos?” (p. 66). O que significa o narrador eleger a figura de Argemiro como central e, ainda por cima, ocupar essa figura o posto de chefe de seu povo? Por que não é Alarico, um simples soldado, o personagem incorporado pelo narrador? Por que não é Alarico o herói? Por que o herói deve ser também o chefe? — Será porque as preocupações e o universo de um chefe não devem impregnar-se de um cotidiano ordinário? — Mais que isso, mas você tocou no ponto. Ouça o Lukács, que desenvolve essa idéia bem melhor que você... ... Que os heróis da epopéia, portanto, tenham de ser reis tem causas diversas, embora igualmente formais, da mesma exigência para a tragédia. Nesta, ela é fruto apenas da necessidade de remover do caminho da ontologia do destino todas as causalidades mesquinhas da vida (...). (...) O que era símbolo na tragédia torna-se realidade na epopéia: o peso da vinculação de um destino com uma 389 Id., ibid. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 226 totalidade. O destino universal (...) é o que, na epopéia, confere conteúdo aos acontecimentos; e o fato de portar tal destino não cria isolamento algum à volta do herói épico; antes, prende-o com laços indissolúveis à comunidade cujo destino cristaliza-se em sua vida.390 — O jornalista Mário Pontes, já em 1979, detectou muito bem esse traço épico do romance Vila Real: “... a narrativa de Ubaldo se constrói de modo extremamente simples, com um mínimo de acontecimentos, de simultaneidade dramática, de ação e de diálogo, mas também (...) com a ausência de um tipo de subjetividade tão freqüente na ficção contemporânea”.391 A ligação indissolúvel com a comunidade e o comprometimento do herói com os destinos de seu povo — continuei — não deixam espaço para uma subjetividade individualizada, se é que posso falar assim... A subjetividade é coletiva. Veja aqui este exemplo de infância compartilhada: “E [Argemiro] recordou que conhecia todos os momentos em que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA seu povo pensava no futuro, porque da mesma forma tinha pensado muitas vezes, quando criança” (p. 66-67). Diferentemente, a forma do romance, diz Lukács, concretiza-se na psicologia do herói, e falar de psicologia é falar de uma busca, e falar de uma busca é falar de uma condição, composta de objetivos e caminhos, uma condição que não está dada, daí a razão da busca. Mas Argemiro não busca nada, porque tanto os seus objetivos quanto os seus caminhos já estão dados de antemão, e é por isso que ele não é um herói romanesco, mas um herói épico. “Para um homem, pensou Argemiro, (...) não é preciso mais do que ficar onde nasceu e procurar aprender uma só coisa, já que, se sabendo tudo sobre esta só coisa, sabe-se tudo sobre todas as coisas” (p. 151). Você acha que estou sendo muito convicto? — Acho — disse ele, rindo. — Pois ainda não acabei. Eu disse lá atrás a você que Vila Real é o único livro em versos de João Ubaldo Ribeiro. E eu complemento essa observação apontando o momento mais importante da história: o momento em que o herói, Argemiro, traz à baila o que ele chamou de “O Evangelho Segundo Nós”, o documento dialético que legou ao seu povo e a partir do qual ele anuncia as boas novas, as outras, as que de fato interessam. E a anunciação dessas boas novas dáse através do canto de Argemiro, todo ele estruturado em versos e lágrimas. “O 390 Id., p. 67-68, realces meus. 391 “Epopéia no sertão”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 227 Evangelho Segundo Nós” resulta na estetização do que disse Silviano Santiago acerca legitimidade da voz narradora, do real comprometimento daquele que fala no romance, daquele que de fato “tem sofrido perseguições e mutilações”,392 daquele que é, ou deveria ser, o verdadeiro portador das chagas exibidas. “E cantou, acompanhado pelo rio Japiau (...) e chorando como mais não se podia chorar neste mundo: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Quem sabe do que vivemos? Sabemos nós, que vivemos. Quem sabe do que sofremos? Sabemos nós, que sofremos. Conheces os lobisomens? Conhecemos mais que tu. Falas como te falamos nós? Achas que falas, maninho. Tiveste fome em pequeno? Tivemos nós, ó maninha. (...) (Vila Real, p. 161) — Este canto-choro de Argemiro configura o paroxismo de sua “tomada de consciência” — disse eu —, para usarmos uma boa expressão, e o paroxismo de todo o livro, com a reaquisição das palavras e da força para o combate. E não poderia João Ubaldo Ribeiro ter expresso sob melhor forma o instante mais importante de seu romance, “O Evangelho Segundo Nós”, senão sob a forma dos versos, pois, de acordo com uma carta que Schiller escreve a Goethe, referida por José Marcos Mariani de Macedo, deveria ser quase “obrigatório”, pode-se dizer, “conceber em versos tudo o que tem de erguer-se acima do comum, pois o trivial em parte alguma assim vem à luz...”.393 — Veja bem — começou o meu interlocutor. — Eu também vejo esse espírito épico em Vila Real, e muito bem, mas tenho a impressão... — Não, não, deixe-me continuar: do que vou falar agora é justamente do que a gente pode chamar as “extremidades da diegética”, ou seja, o início e o fim de uma peça e o que significam ambos para o romance ou para a epopéia. Para Lukács, 392 393 Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 30. Carta de 24 nov. 1797, Goethe/Schiller, Briefwechsel, Frankfurt/M. Fischer, 1961, p. 257, citado por José Marcos Mariani de MACEDO, in Georg LUKÁCS, “As formas da grande épica...”, op. cit., p. 56. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 228 o romance, “... peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo”,394 tem em seu início e seu fim dois marcos de sentido. Lukács não está vinculando início e fim de um romance ao início e ao fim da vida de um homem, certo? Não necessariamente. Mas um romance começar onde começa e terminar onde termina significa o quê? Que aquele segmento escolhido para ser o romance-em-si constitui o “único segmento essencial determinado pelo problema”,395 e um romance quer dizer, sempre, um problema... E todas as referências a um antes ou a um depois são meras estratégias para dotar de sentido aquele segmento, e não outro. — E daí? Quero dizer, o que acontece então na epopéia, e o que acontece em Vila Real? — indagou o meu interlocutor. — Você é prático demais em questões teóricas... Lukács diz que uma vida só vale a pena ser representada num romance se aquela vida está conectada, ela mesma, a um sistema de idéias, e é por estarmos representando uma vida ligada a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA idéias que se pode falar de uma forma biográfica, e não por estarmos meramente a representar uma vida, e ponto, já que não há, na vida de todos os dias, aquilo a que se chama “uma vida”, havendo tão somente acontecimentos esparsos e sem narratividade. A epopéia, diz Lukács, é, por sua vez, um amálgama formado por vida e aventuras relevantes, que não se podem separar. Seus inícios e seus finais constituem recortes necessários para dar forma àquela manifestação, mas tanto podem ser uns quanto outros: “... são instantes de grande intensidade, semelhantes a outros que constituem pontos culminantes do todo, mas nunca significam mais que a origem ou o desenlace de grandes tensões”.396 Vila Real inicia-se com uma notícia de guerra iminente, mais uma, a agravar a situação do povo de Argemiro. Essa notícia que aciona o romance constitui mais um obstáculo, entre outros que esse mesmo povo superou e terá de superar, o mesmo se podendo dizer do final do livro, a ilustrar uma outra promessa de guerra, mais uma: “... e lá ficaram para combater pelo que tinha sido tomado sem razão. E não se sabe o resultado, mas se cobriram de poeira e glória e até hoje estão pelo sertão e os gritos que deram talvez se ouçam ainda agora” (Vila Real, p. 176). 394 “As formas da grande épica...”, op. cit., p. 82. 395 Id., p. 83. 396 Id., p. 84. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 229 — ... tenho a impressão, como eu ia dizendo, de que você está reduzindo o romance a uma vontade de demonstração de muitas das belas idéias do Lukács. — Não, não estou — defendi-me —, mas, de todo modo, essa sua crítica foi pesada... — Não, não me leve assim tão a sério. Eu sou apenas a sua possibilidade de diálogo. Não me superestime, mas também não deixe de me ouvir... Vila Real, como já vimos e veremos, é um romance engajado, e por isso não se aplicam a ele determinadas características presentes no que Lukács está chamando de o cosmos épico. Diz ele que epopéia e tragédia não conhecem nem o crime nem a loucura e que a epopéia ou constitui um mundo infantil onde a transgressão de normas fortes gera uma vontade de vingança, que por sua vez gera outra vontade de vingança, e assim ad infinitum, ou é a pura teodicéia, onde crime e castigo têm o mesmo peso nas balanças divinas etc. etc.397 — E continuou: — Não se trata, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA evidentemente, do caso de Vila Real. O narrador aqui levanta o véu do que está muito bem caracterizado como um crime. Transformar Vila Real numa epopéia é, de certo modo, despolitizar o romance. — Eu não olho para Vila Real como uma epopéia; eu olho para Argemiro como um herói épico... E ainda creio que podemos, sim, mesmo com o risco de despolitizarmos o romance, olhá-lo, ao romance por inteiro, como se olhássemos para um mundo épico. Ouça aqui o que diz novamente o Mário Pontes, em outro pedaço da matéria que eu já citei: ... isso é Vila Real: um conto cujos antepassados próximos são as gestas e os romances de cavalaria. Renunciando ao uso de recursos do realismo tout-court ou de qualquer um dos realismo adjetivados e em moda, o escritor se vale de alguns daqueles elementos comuns às narrativas épicas, características de povos que ainda não transpuseram o portal da modernidade. (...) Essa opção por uma forma eminentemente poética, épica e, portanto, quase arcaica de narrar (...) coaduna-se perfeitamente com a realidade levada para as páginas de Vila Real. O sertão nordestino (...) é uma área cultural ainda fortemente marcada por traços medievais. Da concepção basicamente ptolomaica do universo, que é a da maioria de seus habitantes, à maneira como eles se relacionam com o sobrenatural...398 397 Id., p. 60-61. 398 “Epopéia no sertão”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 230 — E por que eu olho para Argemiro como se olhasse para um pobre herói épico? — retomei. — O ponto mais sólido em que me apoiei para falar do espírito de uma epopéia sertaneja foi justamente a ausência, no herói, de um tipo de subjetividade que é, este sim, característico do romance: uma subjetividade problemática. “... à falta de um centro biográfico nos romances, estes tenderiam à epopéia”, diz o tradutor de Lukács, José Marcos Mariani de Macedo, citando Adorno.399 E por que problemática? Porque ela se alimenta de um descompasso, de uma clivagem, entre o mundo e o homem. Vejamos o que diz o Lukács, e depois vejamos o que acontece em Vila Real: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... Quando o indivíduo não é problemático, seus objetivos lhe são dados com evidência imediata, e o mundo (...) pode lhe reservar somente obstáculos e dificuldades para a realização deles, mas nunca um perigo intrinsecamente sério. O perigo só surge quando o mundo exterior não se liga mais a idéias, quando estas se transformam em fatos psicológicos subjetivos, em ideais, no homem.400 — O que acontece em Vila Real — continuei — é tudo, menos um descompasso entre o homem e o seu universo exterior, porque o homem, sendo não-problemático, é aquele que sabe de si. “Que os mistérios não são” (Vila Real, p. 109), diz o narrador. Uma das mais visíveis tarefas do narrador, aqui, é estabelecer relações de causalidade entre o que sabe e sente um homem e o que ele percebe como sendo uma reação àquilo tudo no mundo das coisas. Temos então, como sinais desse caráter não-problemático do herói, dou-lhe exemplos, a certeza na concretude de algumas prioridades. Um, Argemiro sabe, e sente, que a terra é “a coisa mais verdadeira que existe” (p. 36), muito mais verdadeira até do que ele mesmo. Dois, a capacidade de poder conhecer o outro homem em função do que se conhece acerca de si mesmo, simplificando, assim, enormemente, a existência: “Um homem que termina uma coisa construída como vê a noite? Vê em paz, uma noite funda como um funil e a vida aberta” (p. 43). Três, a capacidade de transferir para o mundo, e assim materializá-las, as intuições: “Argemiro soube que chegava o povo do filho de Lourival (...). Viu pelos cabelos eriçados dos cachorros e mesmo observou pelas cintilações novas das estrelas” (p. 399 Th. W. ADORNO, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Os pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 273, citado por José Marcos Mariani de MACEDO, in Georg LUKÁCS, “As formas da grande épica...”, op. cit., p. 79, nota 35. 400 “As formas da grande épica...”, op. cit., p. 79. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 231 57). E, por fim, quatro, o controle sobre a morte, que parece ser dos mais significativos emblemas dessa continuidade com o mundo. Diz o narrador, logo ao início do livro, que o personagem “Secundino morreu como prometera fazer”: ... Tirou a dentadura de que costumava gabar-se quando ficava bêbado e a entregou a sua mulher, Severa, dizendo: — Com esta dentadura, você presenteie a primeira pessoa necessitada que mereça. (...). — Você vai precisar da dentadura para mastigar — disse Severa. — Não — respondeu Secundino. — Nesta boca não entra mais nem comida nem bebida. Cruzou os braços sobre a barriga ferida, descansou as costas na árvore que lhe dava cobertura e não quis mais mexer-se. (...) ... morreu de maneira quieta e foi encontrado de manhã cedo (...). Severa tentou pôr nele de novo a dentadura (...), mas a boca do velho não se abriu (...). (p. 13-14) — Há um personagem de Viva o povo... que está em par com Argemiro no PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que se refere a esta necessidade de desproblematizar a existência através da estratégia de tornar o mundo familiar... — Filomeno... — Filomeno Cabrito. Exatamente. Você já leu Viva o povo brasileiro? Estamos sintonizados... Ouça aqui: “... nunca lhe tirariam a ventura de viver como sempre quisera viver, no meio de sua terra, falando as suas palavras, comendo sua comida, sabendo de suas respostas, não vendo em ninguém um estranho, tudo como deve ser no mundo...” (Viva o povo..., p. 551). E não há nada mais conforme “ao que deve ser” do que a morte... Também o velho Onofre, pai de Argemiro, que no dia anterior à sua morte redistribuiu as obrigações entre todos — continuei, animado —, é um belo exemplo desse destemor diante do fim da vida, destemor que vamos encontrar mais à frente, já que você citou o Viva o povo..., na personagem Dadinha, à página 82, ciente de que morreria no dia de seus cem anos. O velho Onofre, então, perguntado sobre suas razões, respondeu que daquele dia não passava, e “de fato amanheceu o dia morto (...). ... morreu quieto, como quem diz a um carroceiro — agora siga, e assim segue, sabendo ter cumprido a obrigação e sem medo de nada, porque não há do que ter medo” (Vila Real, p. 115). Um mundo em que a morte não é temida e não é uma questão; um mundo em que os homens vivem porque morrem e morrem porque vivem; um mundo em que se pode dizer: “... eu quero é saber que na hora estou morrendo e entregar minha carcaça ao deus que aparecer” (p. 169), diz o combatente Alarico; 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 232 este é um mundo de homens não-problemáticos. Não é, meu crítico e atento interlocutor, definitivamente, o mundo do romance. 4.6. O NARRADOR-BRASILEIRO: A BOA E VELHA “QUESTÃO” DA IDENTIDADE — Eu quero retomar aqui dois aspectos de nossa conversa sobre Vila Real — disse o meu interlocutor —; dois aspectos que ficaram lá para trás e que nem eu nem você abordamos, e eu quero fazer isso antes que você o faça... — Faça-o, enquanto eu faço outra coisa: mais café — e me levantei. — Nem Balzac bebia tanto café assim... Inspirado por tudo o que você falou sobre o texto de Silviano Santiago, eu afirmei que Vila Real tem por “questão” a necessidade de o discurso de Argemiro ser “legível, total e potentemente legível por todos”.401 Essa legibilidade não apenas diz respeito aos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA aspectos da eficácia do poder: o poder de Argemiro sobre a sua comunidade, o ter a capacidade de se fazer obedecer, ter a possibilidade de se fazer respeitar e de se fazer ouvir...402 Essa legibilidade deve ser ampliada. Como? Vamos seguir essa trilha: Vila Real tem por “questão” a necessidade de o seu discurso, não apenas o discurso do protagonista, mas o seu discurso como romance que é, como texto brasileiro em prosa, como manifestação artística, como literatura brasileira, escrita por autor brasileiro que quer ser lido por um público brasileiro, cada vez mais numeroso... a necessidade de esse romance ser legível, total e potentemente legível por todos os seus leitores. — Então — meti-me em seu raciocínio —, você quer dizer que não apenas Argemiro, mas também o narrador e, antes de tudo, o próprio João Ubaldo Ribeiro estão, cada um, comprometidos com a procura de uma legitimação: o discurso de 401 402 — Veja, neste capítulo, a página 214 — disse ele, abrindo uma notinha com a mão. — E me lembrei — disse ele, abrindo mais uma notinha — do professor José Carlos RODRIGUES. Diz ele, acerca da definição de poder, e em melhores palavras: “... a definição é tautológica. Ao incluir na definição o objeto a definir, impõe um retrocesso lógico que, sob a aparência de um procedimento intelectual de penetração, de aprofundamento e exame crítico, se limita a confirmar e a legitimar pré-noções sobre o poder que já povoavam nossas mentes. Assim, poder é a ‘capacidade de’, é a ‘possibilidade de’, é ‘dispor dos meios de’, é a ‘superioridade sobre’ — expressões que em última instância significam que ‘poder é poder’: poderíamos perfeitamente reescrever a definição, simplesmente dizendo que poder é ‘poder’ usar os meios de exercício da violência, que poder é ‘poder’ levar o adversário à morte e assim por diante” (“Quatro mitos e uma ilusão” (p. 169-287), in Tabu da morte, Rio de Janeiro, Achiamé, 1983, p. 275). 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 233 Argemiro ao seu povo, as descrições do narrador e a narrativa romanesca do escritor querem ser eficazes na medida em que conseguem ser legíveis? Não precisa responder... Eu concordo. E, você tinha razão, era isso mesmo o que eu ia dizer. A publicação de Vila Real deu-se numa época em que João Ubaldo Ribeiro estava, como nunca antes esteve... — E talvez como nunca depois estará... — Pois. ... preocupado em encontrar, com o seu texto, algo que soasse indubitavelmente brasileiro. E isso, em João Ubaldo Ribeiro, era evidente e sempre foi a sua marca. Ouça este depoimento do Antônio Torres e lembre-se do que disse o Silviano Santiago acerca da capacidade do romance de deleitar, comover e ainda ensinar: “Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro, O cobrador, de Rubem Fonseca, e Sangue na praça, de Edilberto Coutinho, são livros brasileiros, relatando problemas brasileiros, cada um à sua maneira, arte e beleza conjugadas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que podem encantar e fazer pensar cada leitor”.403 Observe agora a afirmatividade quase agressiva dessa postura, estamos em 1979: “... eu me considero” diz João Ubaldo Ribeiro à jornalista Vera Martins, “um dos escritores brasileiros importantes. (...) Dou o meu recado com a maior arrogância. E o que se pode ver de básico nos meus livros é que eles são brasileiros. Tenho absoluta segurança da minha individualidade”.404 Essa singularidade textual, esse som, esse vocabulário e essa sintaxe que vamos encontrar em Vila Real, a tudo isso ele vai chamar “identidade brasileira”. Veja esta declaração à imprensa, datada do próprio ano em que saiu o livro, e em seguida o que ele diz a um jornalista americano, um ano antes: (i) — Ao escrevê-lo, eu estava preocupado com um dos problemas básicos do país, hoje, que é a afirmação da identidade brasileira. Essa afirmação começa pela língua. (...) Quando digo que escrevo de uma forma não colonizada, não estou desenvolvendo nenhuma xenofobia. Estou apenas criticando uma certa subserviência a padrões estrangeiros.405 (ii) — I am not fascinating. I am lonely and frustrated. I live in a nation with 110 million people. Most of these people are presently living in conditions that would be unbelievable to you. I have a culture and a heritage. I have a language. 403 Vivian WYLLER, “Para os amigos no Natal, o melhor de 1979”, Jornal do Brasil, 15 dez. de 1979 (depoimento de Antônio TORRES). Realcei. 404 “Dou meu recado com arrogância”, S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979. 405 Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 234 I have seem your movies and I have learned your songs. You know nothing about mine. I know little sounds that are unknown to you, and you know little sounds that are unknown to me. I belong in the same tradition as you do; I am Western and came from Iberia and Africa and America. But also I am Brazilian and you are American. Let us try to understand each other.406 — Contudo — disse ele —, agora vamos brigar, e isso era a segunda coisa que eu queria dizer: entramos, nessa busca por uma identidade textual brasileira, numa outra espécie de dificuldade, a dificuldade e o perigo de se confundir uma legitimidade com a sua, conseqüente ou não, legibilidade. Estou fazendo referência, agora, à capacidade de leitura de um presumido público leitor, e gostaria de citar aqui mais uma vez o texto de Silviano, um texto bastante feliz em toda essa discussão, um texto escrito em 1978, um ano antes, portanto, da publicação de Vila Real, um texto que nós já vimos em nossa conversa sobre Sargento Getúlio, mas que também aqui se aplica, um texto onde se desenha o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA quadro da pouca presença em nosso país da “criatura leitora” e da pouca eficácia, do ponto de vista de um projeto social e político, de uma literatura que se pretenda “conscientizadora”. Veja que Ubaldo, na declaração que você citou, está criticando uma subserviência, por parte do público, e, nesse caso, do público leitor, a padrões estrangeiros. Agora veja também que Silviano Santiago, nesse texto, afirma que é pouco xenófobo o leitor de ficção brasileira.407 — Não seria melhor dizer “o leitor brasileiro de ficção”? — interrompi-o. — O “leitor brasileiro de ficção estrangeira”... — É verdade, mas ele escreveu assim mesmo, como eu disse... E dizer que esse leitor é pouco xenófobo equivale quase que a um eufemismo, não é? Ele poderia dizer “leitor colonizado”, isso sim, já que menciona o fato de o romance estrangeiro ter, aqui, melhor mercado que o nacional,408 não? — E ele prosseguiu: 406 — E traduzo livremente: “Eu não estou fascinado. Eu estou sozinho e frustrado. Eu vivo num país com 110 milhões de pessoas. A maioria dessas pessoas vive sob condições que seriam inacreditáveis para você. Eu tenho uma cultura e uma herança. Eu tenho uma língua. Eu vi os seus filmes e aprendi as suas canções. Você não sabe nada a meu respeito. Eu conheço pequenos sons que são desconhecidos para você, e você conhece pequenos sons que são desconhecidos para mim. Eu pertenço à mesma tradição a que você pertence; eu sou ocidental e vim da Península Ibérica, da África e da América. Mas, além disso, eu sou brasileiro e você é americano. Vamos tentar entender um ao outro” (“João Ubaldo Ribeiro”, Contemporary Authors, 1978). 407 Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 26. 408 Id., ibid. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 235 — E essa postura colonizada configura justamente aquilo contra o qual Ubaldo parece brigar, não é mesmo? — É. Está aqui na contracapa da edição brasileira de Vila Real. Ouça: “Procuro, basicamente, fazer uma literatura vinculada às minhas raízes, independente, não colonizada, comprometida com a afirmação da identidade brasileira”.409 — O problema é que justamente essa literatura vinculada às raízes, “independente” e “não colonizada” — continuou o meu interlocutor —, diante de um público leitor como esse apontado por Silviano, pouco xenófobo e colonizado, e também diante de um panorama crítico pouco convidativo, que não consegue “apreender a qualidade da ficção brasileira em si”...410 Diante desse quadro, livros como Vila Real, que Silviano não menciona porque ainda não havia sido publicado, mas que poderia ter mencionado porque é justamente o caso, o caso do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA “livro um pouco estranho (isto é, experimental)”, acabam confinados a um público bastante reduzido, o público do “gosto refinado, cosmopolita e auto-suficiente dos happy few”,411 nas palavras de Silviano. — E o próprio autor, deixe-me completar — pedi —; o próprio autor tem consciência da parca penetração de livros como Vila Real, sim, embora não se conforme. Diz uma jornalista que, “apesar do sucesso internacional de crítica de seus livros, João Ubaldo Ribeiro ainda não estourou no mercado da literatura no país...”.412 E disse João Ubaldo Ribeiro, também num tom presumivelmente agressivo, num texto sem data mas creio que da década de 70 ou 80: — ... já viram que a coisa que brasileiro mais gosta é que gringo diga que ele é bom? Comigo mesmo aconteceu isto, porque, quando meu livro saiu nos Estados Unidos e os americanos gostaram (embora escrevendo besteiras incríveis, na maior parte dos casos), houve grandes festejos locais e recebi propostas de (...) um porrilhão de países sobre os quais sei muito pouca coisa, nem quero saber.413 409 Primeira edição de Vila Real, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979. 410 Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 26. 411 Id., p. 27. 412 “Dou meu recado com arrogância”, S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979. 413 João Ubaldo RIBEIRO, “O analfabetismo erudito”, Enfim. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 236 — Você diz que ele não se conforma... Não se conforma por quê? Porque não o considera experimental... — Talvez não o considere, propriamente, experimental, mas apenas difícil... — eu disse. — Ouça esses trechos de matérias que tenho aqui: “Vila Real é meu romance órfão, todo mundo diz que é difícil, vende pouco. Fico sacaneado com isso, não acho difícil, mas, enfim”,414 diz ele, que “lamenta certo descaso perante o livro e a obsessão perante Sargento Getúlio. No fundo, Vila Real vive lá no cantinho de seu coração”,415 e completa: “... — há fãs ardorosos. João Bosco adora, sabe de cor”.416 Mas — e franzi o cenho —, enfim, onde é que você quer chegar com tudo isso? — Aqui: romances como Vila Real, que levantam “problemas de classe ou de grupos marginalizados pelo processo político neocapitalista e repressivo”, não conseguem “propor reflexões a camadas sociais diferentes”.417 Por quê? Porque PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA não conseguem ampliar o seu público leitor. Por quê? Porque o seu veículo, o livro, é elitista, como aponta Silviano. Essa busca por um verbo brasileiro e um modo de ser brasileiro, refletido na literatura, acaba por torná-la, a essa literatura, inacessível e elitista. — Não. Uma literatura que toca nos problemas sociais dos grupos marginalizados, que é o que faz o narrador em Vila Real, torna-se elitista a posteriori; não por razões intrínsecas ao livro, ao discurso, ao romance, e sim por razões que se relacionam à distribuição de renda e de cultura no país. Não concordo com essa idéia — insisti —, ou então não concordo com a sua maneira de dispor do texto de Silviano Santiago. O fato de romances como Vila Real não conseguirem atingir mais que um pequeno grupo de leitores não os caracteriza como elitistas. — A própria resenha do jornalista Renato Pompeu toca nesse aspecto do romance; toca porque fica muito difícil deixar passar em branco esse relativo hermetismo de Vila Real: hermetismo que conduz a elitismo, elitismo que resulta num público-leitor reduzidíssimo. Ouça — e ele leu: 414 “João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985. 415 Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984. 416 Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997. 417 Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 29. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 237 ... Mas, sem ser um simples pretexto, essa história, ou seja, o chamado “enredo”, é na verdade oportunidade para exercícios de alta tensão literária. Não há como esconder que o leitor (...) vá sentir inicialmente dificuldade com a prosa poética de João Ubaldo Ribeiro. Ocorrerá compreensível estranheza com suas inovadoras concepções de forma e conteúdo.418 — Ou seja, um romance experimental, sim. Mas se você não gosta dessa palavra, elitismo — disse ele, parecendo um pouco perdido —, podemos dizer que a força narrativa de Vila Real explode no vazio porque àquela busca por uma prosa legitimamente brasileira não vai corresponder nenhuma, ou quase nenhuma, legibilidade fora dos círculos intelectuais e acadêmicos. — Agora você está retirando toda a importância da recepção pelos círculos intelectuais e acadêmicos... Silviano dirá nesse mesmo texto que a área de recepção do livro de ficção é mínima, sim, mas “nem por isso sem importância”.419 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Continuo — e ele continuou. — Se Argemiro consegue falar a seu povo, diretamente, encontrando as palavras compreendidas por esse povo, o mesmo não se poderá dizer do romance como um todo, que, ao fazer a transposição dessa língua “popular” para a sua estrutura formal, não encontrará eco algum ou mesmo vestígio algum de um “povo leitor”. E por quê? O próprio Ubaldo responde — e o meu interlocutor me estendeu, vitorioso, um recorte de jornal, retirado de nossos compridos arquivos. — Veja o que acabei de descobrir: “Em Vila Real, uso a linguagem popular, mas não a oral, e sim a forma que ela toma quando escrita. Faço largo uso das estruturas arcaizantes que ainda se encontram no Nordeste. Daí porque posso dizer que meu livro aspira a um modelo clássico nordestino”.420 — Isso quer dizer... — Isso quer dizer — adiantou-se ele — que Vila Real está distante de qualquer linguagem atualizada e comunicativa, porque está distante da proposta de uma arte “mais voltada para os anseios e a vontade popular (...); [d]a proposta 418 “Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979. 419 Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 26. 420 Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 238 de um texto menos difícil, porque menos enigmático, mais acessível ao geral da população”, escreveu Silviano Santiago.421 — Não. Isso quer dizer que um romance não deve reduzir-se a um panfleto que tenha por meta conscientizar as massas. Isso, sim, é literatura populista. E eu lhe digo — e olhei bem para ele — que Vila Real se destaca desse conjunto visado por Silviano Santiago, esse conjunto que ele chamou de uma “escrita ficcional populista”, pelas mesmas razões graças às quais Sargento Getúlio também se destaca, como já vimos antes: por causa da postura do narrador. — Cá estamos novamente no narrador... — e ele sorriu com alguma ternura. — Sim, e a ele sempre retornaremos... Vila Real põe em funcionamento um narrador que consegue estar sempre no outro lugar, e o outro lugar localiza-se a uma segura distância daquele lugar clássico reservado ao narrador intelectual, a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA assistir de camarote às mazelas das camadas oprimidas etc. etc. Não há, em Vila Real, sequer arquibancadas. Veja ainda isto: o que diz Silviano que falta ao texto populista é justamente aquilo que temos de sobra em Vila Real. Ouça: “Falta ao texto populista (...) a exibição das chagas de quem tem sofrido perseguições e mutilações, chagas que eclodiriam num texto abafado e ríspido, fúnebre e cinza”.422 Você muito bem recuperou, lá atrás, a resenha do Renato Pompeu sobre Vila Real. Faço eu agora, da mesma resenha, um outro uso, estimulado por essa afirmativa de Silviano: ... a poesia de João Ubaldo Ribeiro, ao contrário do que aconteceu com a esmagadora maioria dos prosistas luso-brasileiros com pretensão à sonoridade, não está baseada na exploração dos jogos com as vogais (...). Pelo contrário, ela parece seguir a tradição anglo-saxônica e dar precedência à sonoridade das consoantes, às aliterações e contrastes advindos da repetição e/ou alternância das consoantes. Assim, sua prosa, se perde em suavidade, ganha em ossatura. (...) Mas a que vem essa forma requintada, se o próprio autor, como diz na contracapa, não se pretende um beletrista? (...) Ora, o romance lida com o sertão. E da mesma forma que, atrás da rudeza e brutalidade dos sons do texto, se esconde uma poesia que aspira à beleza, também por trás da paisagem rude do sertão (...) esconde-se uma certa beleza agreste bastante pungente.423 421 “Repressão e censura no campo das artes na década de 70” (p. 47-55), in Vale quanto pesa, op. cit., p. 55. 422 Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 30. 423 “Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979, realcei. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 239 — E agora — disse o meu interlocutor, com o romance na mão e bastante satisfeito por me ter posto para falar —, farei algo muito melhor. Não adianta você ilustrar um discurso explicativo, o do Silviano, com outro discurso explicativo, o do Pompeu. O que eu proponho é um diálogo direto: ilustrarmos os dois com o texto literário. Então, acerca da materialidade áspera da palavra, vejamos o discurso do próprio Argemiro, misturado ao do narrador. Permita-me uma leitura longa. Vale a pena. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... Entretanto, o que mais doeu foi o Verbo. O qual acometeu os ouvidos e as partes falantes por baixo das bochechas, (...) esboroou as peças interiores dos ouvidos e repicou nos ossos do crânio com marteladas (...). Igualmente a um arroto, subiu uma seta farpada pelos ocos da barriga, mas, em lugar de atingir o goto, esvaiu-se como coisas gasosas por todo o meio da cara e então retiniu uma clarinada e acompanhantes ribombos de zabumbas rastreando de cobra por cima dos descampados (...). ... as minhas palavras vieram para dentro de mim em forma de bofetadas (...) e verrumas e tantas travoelas e lancetas entre as curvaturas delicadas de meus ouvidos mais íntimos... (p. 145-146) — Tudo isto significa, mais uma vez — disse eu —, que Silviano está aqui a exaltar um narrador que tenha algo a ver, efetivamente, com aquilo que está ali narrando, e não um narrador bem-intencionado, sim, mas elitista no uso de seu discurso ficcional, que se torna então “réplica (no duplo sentido: cópia e contestação) do discurso de uma classe social dominante, que quer se enxergar melhor (...), que quer se conhecer a si mesma melhor, saber por onde anda e por onde anda o país que governa”.424 E essa identificação do narrador com o contexto narrado está refletida, em toda a sua materialidade, na linguagem áspera e embrutecida por dentro da qual vamos acompanhando o protagonista. Você escolheu um ótimo trecho. E é por isso que Jorge Amado se referiu ao romance Vila Real como sendo Os sertões “reescrito”... — “E assim como em Canudos só houve respeito depois da morte geral, aqui também que seja assim” (Vila Real, p. 74) — ia lendo, animado, o meu interlocutor. E, de repente, parou: — Mas por que reescrito? — Isso, você pegou! Jorge Amado pegou! A matéria de onde tirei isso diz: “A personagem central do romance, Argemiro, rude homem do campo que se transforma em líder de um movimento de resistência à expulsão da terra onde vive 424 Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 28. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 240 e trabalha, lembra (...) a figura de Antônio Conselheiro. Jorge Amado comentou: ‘É Os sertões reescrito’”.425 Por que haveria Os sertões de ser reescrito? Por que precisaria ser reescrito? Para corrigir talvez, aspemos a palavra, a sua “deficiência estrutural”: o narrador, o narrador-intelectual, jornalista, crítico, porta-voz de um discurso científico. — E, para não perdermos o jogo entre os nomes... esse narrador euclideano... Ouça — disse ele, com o romance na mão —: “De lá vieram os que mataram Canudos e conhecem o que é melhor para nós. Pois trazem as palavras... — ... que fazem com que matem sem remorsos” (Vila Real, p. 150) — completei. — Silviano Santiago menciona Euclides da Cunha, nesse artigo “Vale quanto pesa”, mas apenas para situá-lo como o narrador-antropólogo que está, de “caderneta de campo” à mão, a anotar “com minúcia de lingüista” as expressões e o falar caboclos, enquanto presencia “o dia-a-dia dos homens do Conselheiro”.426 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Mas Silviano pára aí e não menciona Euclides da Cunha como o personagem “de fora”, um narrador alheio àquilo tudo, ao início crítico daquilo tudo e apenas depois, bem depois, entendedor do que aquilo representava. Imagine-se agora a mudança do ponto de vista: um discípulo de Antônio Conselheiro, ou ele mesmo, o próprio, a escrever, ou melhor, falar, aquela história. Temos, guardadas as proporções e as diferenças, o espírito de Vila Real, cujo narrador, e à frente o escritor João Ubaldo Ribeiro, não consulta as notas minuciosas de uma caderneta de campo, mas apenas a memória, a sua memória pessoal, a memória de quem está escrevendo sobre a própria infância.427 Ouça: “... tanto Sargento Getúlio quanto Vila Real são obras cujas bases assentam na minha infância. Aliás, acho que a gente só escreve sobre a infância”,428 diz o escritor. — Silviano menciona Euclides da Cunha, mas também Guimarães Rosa, ambos citados como exemplos do escritor-antropólogo... — disse ele, e me estendeu 425 Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979. 426 “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 37. 427 — O mesmo, aliás — interrompeu-me o meu interlocutor —, disse Jorge Amado. Ouça: “Eu nunca tomo notas. Como escrevo sobre aquilo que vivi, aquilo que conheço, uso muito minha memória” (Jorge Amado, citado por Antônio Fernando de FRANCESCHI (org.), Jorge Amado, Cadernos de Literatura Brasileira, no 3, São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1997, citado por Ilana Seltzer GOLDSTEIN, “As criaturas ganham vida própria e o criador se torna criatura” (p. 217-269), in O Brasil Best Seller de Jorge Amado — Literatura e identidade nacional, São Paulo, Senac Editora, p. 220). 428 Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 241 uma reportagem de 1979. — E veja a pertinência de estarmos aqui a utilizar, para falarmos de Vila Real, este texto de Silviano Santiago, texto em que seus dois exemplos são justamente Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa. — E ele leu: ... Esse novo romance de João Ubaldo Ribeiro (...) descreve amplos movimentos de multidão, mas tudo parado, tudo deliberadamente fechado numa narração murmurante que se recusa a subir de tom. Parece coisa talhada em madeira. No tema como no tratamento, foi grande o risco que ele aceitou, pois teve que abrir uma brecha, uma picada através de dois píncaros: Os sertões e Grande Sertão: veredas.429 — Boa inclusão. De todo modo, Rosa, através justamente de seu narrador, permite que se misturem os discursos, o que não acontece com Euclides... — É curioso isto o que aconteceu agora... — disse ele. — Um mesmo texto, este do Silviano Santiago, a dar vazão a duas leituras e duas aplicações tão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA diferentes... É a tal da hermenêutica, essa senhora tão idosa... — e ele sorriu. — Mas eu ainda não acabei... Toma lugar aqui uma espécie de dança das cadeiras: sai então do assento do discurso o narrador-intelectual, que cede a palavra, por sua vez, ao narrador do povo, o “antípoda do ‘filho do fazendeiro’, pois nem mesmo chegou a conhecer seu pai”, diz Silviano, tendo em mira, para essa afirmativa, o personagem Riobaldo, “Deserdado pela sorte masculina e viajeira do sertão, deserdado ainda pelos sucessivos processos violentos (...) da colonização e do mandonismo local, sua vida é uma busca do nome verdadeiro, mas que nunca será o nome de família”.430 E nós aqui podemos, por nossa vez, fazer a comparação que Silviano não pôde fazer, entre ele, o Urutu-Branco, o Tatarana, e... — ... e o nosso Argemiro Meia-Lua. Deixe-me ler o trecho — pediu o meu interlocutor: ... Soube que toda frase deve ter sete pancadas, porque esta é a marcação da terra, que nossos ouvidos já têm o costume de acompanhar. Bem como os nomes dos homens, por isso que se batizou nesta hora de Argemiro Meia-Lua. Mas o meu nome, disse ele, afastando as batinas, as cordas e os cordões para os lados, o meu nome é Argemiro Meia-Lua. Como fogo, como trovão, como lua, como o que for preciso. O meu nome, disse ele, com a mais alta alegria (...): o meu nome é Argemiro Meia-Lua. (p. 158) 429 José Carlos OLIVEIRA, “Isto e aquilo”, Jornal do Brasil, 26 set. 1979. 430 “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 35. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 242 — Mas note que nem mesmo Guimarães Rosa vai escapar da pena afiada de Silviano... E Rosa não vai escapar — continuou ele, subitamente animado em discordar de mim mais uma vez — justamente porque “seu deixar falar o outro comporta ainda uma visão elitista da literatura”.431 E você disse o mesmo agora há pouco. Disse-o também de maneira elitista, condescendente: “... sai então do assento do discurso o narrador-intelectual, que cede a palavra, por sua vez, ao narrador do povo”. — Concordo, concordo, mas não aplique essa atitude condescendente ao narrador de João Ubaldo Ribeiro em Vila Real, onde será Argemiro aquele que vai conquistar/tomar a palavra, e o narrador faz o seu trabalho a partir de dentro, de dentro do clã. E também não aplique a condescendência, como já vimos, a Sargento Getúlio, porque o caso de Getúlio salta aos olhos pela sua potência: a potência de quem não pede licença para falar e fala até a morte, literalmente. — E PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA eu ainda continuei, porque precisava esclarecer um ponto: — Observe, meu caro, que eu sugeri aqui uma comparação de Argemiro com Riobaldo, e não a comparação de um tom narrativo com outro. Não confunda o personagem Riobaldo com o narrador em primeira pessoa na pele de Riobaldo. Nós já fizemos essa distinção lá atrás, em nossa conversa sobre Sargento Getúlio... — Distinção que, no entanto, permanece confusa e problemática... — reclamou. — Sim, mas não é isso o que quero esclarecer. Interessa-me agora o espírito que orienta a narrativa, e o espírito que mora em Vila Real não é o de um escritor-antropólogo; é antes um espírito sociológico.432 Estou seguindo os passos que você mesmo me apontou, quando propôs que voltássemos a esse texto de Silviano Santiago, praticamente contemporâneo de Vila Real. E Silviano, na página 39, aponta o discurso literário-antropológico como inativo e inapropriado para a velha questão de origem, qual seja, a necessidade de mudança social, e isso porque, por mais que deixe falar o outro, e o outro, graças a essa postura, de fato 431 Id., p. 37 (realces em itálico do Silviano Santiago, realces em negrito do meu interlocutor). 432 — Ilustro a idéia, nessa notinha, com palavras do próprio autor, sempre preocupado em não solenizar a própria literatura com o status do “conhecimento acadêmico”. — E li: — “Não me qualifico para falar em cultura brasileira porque não sou antropólogo, andei apenas de raspão por sociologia (...). ... não penso sistematicamente a respeito de problemas como o homem brasileiro, a cultura brasileira...” (Airton GUIMARÃES, “João Ubaldo Ribeiro — o romancista (cont.) 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 243 fala; fala de fato como nunca antes havia de fato falado, a sua preocupação central, como espírito antropológico, é muito mais a de, cadernetinha de campo à mão, construir a Biblioteca Verbal, a Biblioteca de Todos os Falares, com vistas à preservação da cultura, e não agir politicamente. — E o espírito que mora em Vila Real não é o de um escritor-antropólogo; é antes o espírito sociológico? — Sim. Vamos entrar nessa discussão? — Acabamos de entrar — disse ele, e foi pegar mais café. 4.7. UBALDO, ARGEMIRO E O NARRADOR — Você disse lá atrás — começou o meu interlocutor — que “o escritor João Ubaldo Ribeiro não consulta as notas minuciosas de uma caderneta de campo, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA mas apenas a memória, a sua memória pessoal”. Acho que podemos começar por aqui: o antropólogo é um personagem exterior ao campo observado e descrito... — O sociólogo também é: falam ambos a partir de seu saber. Mas, corrijo eu mesmo a nós os dois, nós não estamos tratando com antropólogos ou sociólogos, mas com os seus respectivos discursos e também com escritores que esbarram nesses discursos e neles se inspiram para a (re)criação de suas realidades. Silviano Santiago diz, estou resumindo..., que o discurso sociológico compreende melhor a estratificação social e o desequilíbrio econômico e desse modo propõe mais clara e agilmente uma mudança social.433 E esse comprometimento explícito com as questões sociais é a marca de muitos casos literários. Vila Real, diz João Ubaldo Ribeiro — e li —, “Mostra minhas preocupações com o socialismo e, mais do que isso, com a Sociologia do Comportamento, que eu estudava na época. Mistura fantasia e marxismo e há um personagem, Argemiro, que passa a noite inteira vomitando sangue”.434 — Entendi, mas há um porém, que o próprio Silviano levanta — disse o meu interlocutor —: o perigo de o discurso sociológico..., e conseqüentemente o escritor que está se valendo desse discurso sociológico, ... o perigo de ele se levar baiano passa os olhos sobre a cultura brasileira antes de ir morar na Alemanha”, Estado de Minas, 17 mar. 1990). 433 “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 39. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 244 a si mesmo por demais a sério e esquecer a sua condição de um discurso encharcado de valores pequeno-burgueses e acabar por se tornar solene em relação a si mesmo e se tornar, por outro lado, igualmente elitista e obcecado por seu próprio dogmatismo camuflado. — E ele colocou sobre a mesa o trecho de uma entrevista concedida por Ubaldo por ocasião do lançamento de Vila Real: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA João Ubaldo Ribeiro — Os artistas são tão falíveis quanto qualquer outra pessoa, têm dúvidas, se preocupam com o supermercado, com o aluguel. Vera Martins — O senhor acha que o intelectual deve ser engajado ou pode optar por fazer simplesmente a arte pela arte? — ... todos devem ser engajados. Você pode escrever sobre borboletas, mas é importante ter a certeza de que também outros temas estão à disposição. — Nesta fase de abertura, o senhor acha que escritor deve ter uma responsabilidade específica? — É evidente que a responsabilidade do escritor é mais ampla, inclusive por uma questão ética. Ele recebeu mais do que os outros em termos de educação, e é justo que pague o privilégio.435 — Há aqui — continuou o meu implacável interlocutor —, antes de tudo, por detrás de uma mal disfarçada defesa da falibilidade do artista, uma evidente auto-nomeação, que transcende, é claro, o contexto histórico. Não é por estar o país a viver uma fase de abertura que Ubaldo defende um papel mais destacado para o artista. Essa defesa soa como intransitiva. — Ela soa, de fato, como independente de contexto histórico, mas essa auto-nomeação não se baseia numa suposta superioridade do discurso científico, já que nós não estamos... — Como não? Como não? — e ele ergueu o corpo da cadeira. — “Ele recebeu mais do que os outros em termos de educação”, declarou Ubaldo, “e é justo que pague o privilégio”. Ora... — “Pague o privilégio”..., e pague com literatura; não com qualquer dogmatismo sociológico ou antropológico. Mais uma vez: nós não estamos falando do cientista, mas do artista. Ouça a ressalva de Silviano: ... esses valores [valores pequeno-burgueses que o discurso sociológico carrega consigo], transmitidos à ideologia da luta de classes, se encontram solidificados e empedernidos pela certeza dogmática da palavra científica. 434 Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997. 435 “Dou meu recado com arrogância”, S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 245 É aí que o bisturi literário, mais impiedoso e menos comprometido com as instituições burguesas (tanto a universidade quanto os centros de pesquisas), mais anárquico e bandido, mais marginal enfim, pode cortar com rigor e vigor as carnes esclerosadas da classe dominante brasileira.436 — E digo mais — adiantei-me, antes que ele me arrancasse a palavra. — Essa declaração de João Ubaldo Ribeiro sobre a responsabilidade do artista, sujeito alfabetizado e informado, é uma declaração realista, de confiança na capacidade de conscientização e mobilização que tem a arte, ou que deveria ter a arte... “Enquanto cidadão, o artista é outra coisa e, enquanto cidadão”, diz ele, “eu gostaria que meus livros fossem revolucionários”.437 — Esse soa como o Ubaldo de 1979. E hoje? — Este é um tópico posterior de nossa conversa — adverti. — Você está com tempo? Ótimo, porque eu acho que não seria capaz de escrever a minha tese PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA sem esta nossa conversa... Mas se precisar ou quiser ir embora, diga... Sim, sim, há mais café... Hum, que bom... Volto à declaração do escritor sobre a maior responsabilidade do artista. Veja este pensamento refletido agora nas idéias do narrador, ou seja, veja aqui a demonstração de um engajamento, ou seja, a demonstração de que há correspondência íntima entre o que pensa um escritor e o que diz o seu narrador. ... da mesma forma como Alarico nasceu para carregar o nosso grito em forma de armas, nasceram os que pensam, para justificar neste mundo que exista o povo que lhes dá o de comer. Temos desta maneira os homens militares, que combatem, e os homens da cabeça, que pensam. Que Deus permita haver dois num só, se bem que não goste. (Vila Real, p. 148) — Este “haver dois num só” — disse eu, olhando para o teto — parece ser a condição esboçada por Silviano Santiago para a produção de uma literatura mais legítima. Não que tenha o artista de pegar na enxada, mas que, de algum modo, ele se coloque, ou como personagem ou como narrador, numa posição mais biográfica em relação àquela realidade. E, desse modo — continuei —, João Ubaldo Ribeiro realiza, em Vila Real, provavelmente o seu romance mais político, embora de menor penetração popular, vá lá. Estou dizendo isto porque Sargento 436 “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 40. 437 Entrevista, João Ubaldo RIBEIRO, arquivo da Ed. Nova Fronteira. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 246 Getúlio e Setembro não tem sentido estão por demais enredados em momentos específicos da biografia de João Ubaldo Ribeiro: a infância e a mocidade, respectivamente. Com Vila Real o narrador abre-se, de fato, a uma realidade externa e urgente, embora ainda familiar, porque o sertão é o mesmo, o mesmo sertão de Getúlio, que é o mesmo sertão de Argemiro, que é o mesmo sertão da infância do menino João Ubaldo Ribeiro. Ouça o jornalista Mário Pontes e em seguida o próprio escritor, numa entrevista de 1977, dois anos antes, portanto, da publicação de Vila Real. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) Se o Nordeste em geral, com seus coronéis e cangaceiros, suas secas e retiradas, inspirou toda uma geração de romancistas, o sertão em particular, com sua herança medieval, permanece um filão quase virgem para a ficção brasileira. A verdade é que poucos até hoje tiveram olhos para distinguir o que há de específico na cultura plantada há séculos nas caatingas, e que, graças ao isolamento, conservou valores já perdidos pela civilização de beira-mar. Dessa especificidade tem consciência o contador de histórias João Ubaldo Ribeiro.438 (ii) João Ubaldo Ribeiro — Se você ouvir o depoimento de um nordestino a respeito do que acontece no interior do Maranhão, no interior do Piauí, no interior da Bahia, no interior de Sergipe, você pensa que realmente ele está inventando coisas, inclusive porque esse tipo de coisa é encorajado. A descrença em torno desse tipo de depoimento é encorajada porque, no tipo de situação que vivemos hoje em dia, não se quer saber da existência, por exemplo, de focos de rebeldia.439 — O mesmo sertão de Canudos... — disse ele. E leu para mim este trecho: — “Vila Real, editado pela Nova Fronteira, (...) persegue o mapa nordestino”440 — e também a reportagem da revista IstoÉ: — “De novo, um romance nordestino. E nem se poderia esperar outra coisa de um autor que se define, rigorosamente, como ‘um brasileiro não-colonizado’. (...) Seus heróis, no seu próprio dizer, ‘são os mesmos de Canudos’”.441 — O mesmo sertão de sua infância, e ele próprio, personagem em sua literatura. Observe e compare os universos do narrador/personagem e do escritor se encharcando mutuamente: “... e Argemiro procurou considerar se realmente estava louco. Devia admitir que, por não desejar pensar no assunto, talvez tivesse 438 “João Ubaldo — O sertão e sua gente...”, O Globo, 15 mar. 1981. 439 José Luiz AIDAR, “O jovem João Ubaldo, raivoso”, Jornal da Tarde, 30 mai. 1987 (entrevista de 1977). 440 Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984. 441 S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 247 secreto conhecimento de uma loucura se escondendo no fundo da cabeça, como uma pequena bola negra, com a qual não cabia facilitar” (p. 23). E agora cito uma entrevista em que o escritor afirma ter a suspeita de que sua cabeça é dividida em duas espirais que giram em sentidos contrários: “Eu imagino minha cabeça como uma série de esferas concêntricas e, dentro, tem uma bolinha preta. (...) Eu chamo essa bolinha preta a bola da paranóia, eu só me atrevo a ficar chegando perto dela em horas muito especiais, porque eu tenho medo de encostar demais, aí ela pega e empretece tudo e eu fico doido”.442 — É uma perfeita correlação — disse ele. — Argemiro me parece ser dos personagens de Ubaldo aquele onde mais nitidamente se depositou a obstinação do escritor por uma forma de expressão genuína. — Sim. Essa discussão, hoje, merece muitas aspas, mas o livro foi escrito em 1979. João Ubaldo Ribeiro não escreveria, hoje, um livro como Vila Real, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA porque a postura de Argemiro não poderia ser amenizada, a sua obstinação não poderia ser relativizada ou enfeitada com aspas, tamanho o seu empenho na busca de um verbo que seja realmente seu, e não imposto. Amenizada a obstinação de Argemiro, perde o livro grande parte de sua força. E, hoje, essa obstinação soaria quase quixotesca se não fosse amenizada. Mas, veja bem — ponderei —, eu não estou circunscrevendo o romance a esse momento; estou circunscrevendo é a preocupação do escritor, que se pode acompanhar com clareza em suas entrevistas e em seus artigos.443 Observe, mais uma vez, a intimidade entre o narrador em Argemiro e a própria posição política de João Ubaldo Ribeiro diante do assunto “identidade cultural”: (i) ... E entendo que vejo estas árvores como árvores e que tenho direito a minha língua e que posso olhar nos olhos dos estranhos e dizer: não me desculpe por não gostar do que você gosta; não me olhe de cima para baixo; não me envergonhe de minha fala (...). (...) Quem são os que vêm achando que falam a mesma língua? Quem são essas pessoas? Pois essa mesma língua só é possível quando se vê a mesma pintura do lado de fora da janela. (Vila Real, p. 153) 442 Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978. 443 — E também palestras... E cito aqui o momento de uma delas, no Centro de Estudos LusoBrasileiros da Universidade de Brown: “De facto, não há nada que eu possa fazer pelo meu país senão escrever em ordem a denunciar e a clarificar, ou (e pede desculpa pela tautologia) seja: identificar a nossa identidade” (citado por Domingos de Oliveira DIAS (EUA), “Do Brasil... e de Portugal — ouvindo João Ubaldo Ribeiro”, Letras & Letras, Porto, 1 dez. 1988). 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 248 (ii) — ... As revistas nacionais desenvolveram um estilo esquisitíssimo, cheio dos tais adjetivos na frente dos nomes, às vezes separados por vírgulas, cheio dos recursos jornalísticos americanos, como se fôssemos um povo imbecil, incapaz de adaptar sua própria língua (ou seja, sua identidade cultural) a exigências tecnológicas. Como se inglês, por ser a língua dos dominantes, tivesse sido, por essa razão mesma, predestinada (...) para servir melhor a propósitos tecnológicos. Na realidade, (...) inglês é uma língua que convive com imprecisões exasperantes (...). E o português, se não atingiu a precisão da navalha do francês, foi (...) porque os povos da língua portuguesa vêm pegando em baixo há bastantes séculos. (...) nós abdicamos da nossa sagrada autonomia de ver o mundo à nossa forma e importamos as formas pré-fabricadas que nos empurram. E aí ficamos fazendo comentários cretinos, tais como “em inglês isto é muito melhor de dizer”, esquecendo que, quando falamos tais coisas, estamos confessando que já somos ingleses (ou americanos). E o pior é que não somos, porque lá eles nos acham engraçados. E aí ficamos, coitados de nós, passando esta vida na colonização e morrendo sem entender nada.444 — Eu percebo — disse o meu interlocutor —, e isso é importante, preste atenção, que estamos agora, mais uma vez, utilizando o personagem Argemiro e o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA narrador que está por trás dele para um terceiro propósito. Já utilizamos as palavras de Argemiro, tanto as que ele não tinha quanto as que ele passou a ter, como uma representação de como deveria configurar-se um discurso para que ele soasse legível culturalmente, e lançamos mão, você o fez, da pergunta de Silviano Santiago, mesclada a uma alteração devida ao nosso assunto. Leio: “Quando é que a arte brasileira (o discurso de Argemiro) deixa de ser literária(o) e sociológica(o) para ter uma dominante cultural e antropológica?”.445 Esse é o caso um. Em seguida falei eu de uma legibilidade que deveria transcender a esfera de Argemiro e de seu narrador, rumo à trajetória do próprio romance Vila Real, livro considerado difícil, pouco lido e pouco conhecido; livro cujas mensagens diretas e indiretas não são, afinal, comunicadas, porque a linguagem escolhida por Ubaldo está longe do que seria uma linguagem trivial do quotidiano. Caso dois. Agora... — Agora — interrompi-o —, as palavras de Argemiro estão ocupando o lugar da língua portuguesa e até poderíamos falar de uma língua brasileira, desta vez em guerra, não com as palavras difíceis que Argemiro não sabe, representação do que vimos na pergunta de Silviano como sendo o discurso literário e sociológico, caso um, e também não com o vocabulário trivial dos romances nãodifíceis e bastante acessíveis, caso dois, mas sim, caso três, uma linguagem cujas 444 João Ubaldo RIBEIRO, “O analfabetismo erudito”, Enfim, texto sem data (realces meus). 445 “Democratização no Brasil...”, op. cit., p. 11. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 249 palavras estão em guerra com as palavras das outras línguas, as línguas dos atuais colonizadores, em especial o idioma inglês. — Ubaldo bateu-se muito contra essa estrangeirização da língua... Diz uma personagem, a velha: “Cuidado com as palavras. (...) E saibam escolher as palavras que ouvem, mais do que as palavras que dizem” (Vila Real, p. 140-141). — Boa citação — elogiei. — Bateu-se obstinadamente. Mostro a você o trecho de uma entrevista de 1979, e em seguida um trecho de Vila Real, subseqüente a um trecho que você já leu aqui sobre a materialidade áspera do Verbo, quando o Verbo era estrangeiro a Argemiro. Quando ele afinal encontra as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA suas próprias palavras, elas adquirem então outra textura: (i) João Ubaldo Ribeiro — ... nós hoje somos uma cultura dominada pela língua, pela cabeça; quer dizer, os romanos sabiam disso; onde está a língua romana, está Roma. É por isso que há a luta de afirmação de nacionalidades, como os Bascos (...), como todas as tribos européias — porque lá só tem tribo, (...). Então, (...) para manterem sua identidade, como reivindicação básica querem manter a língua (...), mas nós estamos indo pras picas. Não percebem que estão fazendo o jogo dos outros. (...) Como diz Glauber, ninguém sabe quem é da CIA.446 (ii) ... É repentino que o Verbo tome agora a forma de tapete, deslizando da minha boca, e faça sair de si perfumes exemplares. Não me bote ouvidos artificiais, que fique eu sem conchas, amparos e antolhos (...). (...) Entendeu que as palavras vinham tomar corpo em sua cabeça e depois velejavam de todas as cores (...), e então pôde notar que aquelas palavras também pareciam pedras e passarinhos sobre o campo. (Vila Real, p. 147) — E cinco anos mais tarde — disse o meu interlocutor —, voltaremos a encontrar, refletida em outros personagens, a mesma preocupação de Ubaldo acerca dessa peculiar condição do brasileiro: a condição de um sujeito apartado de sua língua; ou, ainda, a sua condição, diante da língua, de um não-sujeito. Observe o que diz o narrador de Viva o povo brasileiro, falando do personagem Filomeno, candidato a juntar-se ao povo do Conselheiro, em Canudos — e ele, sorrindo, começou a procurar o trecho. — Observe: o narrador poderia estar a falar de Argemiro, embora fale de Filomeno. ... Viva o povo brasileiro! Viva nós! Ergueu o bastão para o alto, os homens se levantaram e Filomeno, sem pensar, 446 “João Ubaldo: Estamos no mesmo barco”, Inimigos do Rei, abr. e mai. 1979. 4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA 250 se viu repetindo com eles a saudação que ela tinha feito. Tampouco compreendeu o orgulho esquisito que sentiu ao ouvir aquelas palavras, como se elas já estivessem dentro dele durante toda a sua vida e somente agora houvessem tomado forma. (Viva o povo..., p. 566) — Então você já leu Viva o povo...? — surpreendi-me. — Eu, aliás, já lhe fiz essa pergunta antes... — Não só li, como ainda cito trechos, embora tenha sido há muito tempo... — e ele, me estendendo um café, voltou a sorrir. — Aliás, vamos a ele? — e me entregou o livro. *** PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA FIM DO PRIMEIRO VOLUME (1/2) 5 ______________________________________ O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO — O MUNDO DO NARRADOR SEM CABEÇA — O novo livro que você está a escrever...? — Será um romance, talvez intitulado Viva o povo brasileiro, onde eu quero de certa maneira reescrever o livro de meu avô itaparicano Ubaldo. Entrevista a Fernando Assis Pacheco447 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Sim — disse-lhe eu —, vamos a ele, mas antes veja isto. — E peguei um outro livro da estante. — Veja aqui o modo como Francis Utéza se refere ao narrador em Viva o povo brasileiro: “... um narrador multifacetado encena a luta dos oprimidos frente a uma oligarquia implantada pelo sistema colonial”.448 Esse narrador multifacetado, o narrador de muitas faces, é, para melhorarmos a designação, o narrador sem cabeça, sem face alguma... — Maneiras diferentes de se dizer a mesma coisa... — provocou-me. — Não, não. Um narrador multifacetado é um narrador plural, de posse de todas as suas “facetas” e cabeças e consciente de todas elas; é um narrador que paira sobre o tempo narrativo e tem todos os personagens à mão. Não é esse o caso. O nosso narrador sem cabeça, sem, portanto, face alguma, vive no presente de sua narrativa e não detém controle sobre nada, ou quase nada. — Você pretende demonstrar essas idéias com exemplos do texto? — Não consigo trabalhar de outra forma... Quero conversar com você sobre as diferentes maneiras pelas quais o nosso narrador transita pelos discursos alheios. O narrador, que estamos chamando de sem cabeça, é um narrador infiel e instável: ele não permanece por muito tempo num mesmo personagem; ele troca 447 “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983. 448 “Viva o povo brasileiro ou O espírito da fraternidade” (p. 25-87), in Zilá BERND & Francis UTÉZA, O caminho do meio... op. cit., p. 25. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 252 todo o tempo de cabeça e, ao mesmo tempo, não tem a sua própria cabeça, não tem o seu próprio discurso coeso e claramente intencionado. Há um trecho de Viva o povo brasileiro em que um personagem pergunta a outro, referindo-se a uma mãe-de-santo em trabalho de incorporação: “Eu sei que ela, como você diz, incorporou uma entidade, mas aí ela deixa completamente de ser ela?”. E o outro responde: “É, aí é só o corpo dela. Aqui se diz que ela é o cavalo desse caboco” (Viva o povo..., p. 493-494, realcei). — Então podemos fazer o paralelo — disse ele —: o narrador sem cabeça incorpora um personagem, ou melhor, o discurso de um personagem, e deixa então de poder manter o seu próprio discurso. E, enquanto a mãe-de-santo mantém apenas o seu corpo, o narrador, no lugar de um corpo, mantém a voz narrativa, mantendo-se narrador apenas enquanto instância do discurso, ou seja, mantendo o status de uma voz narrativa, uma voz autorizada, relativamente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA confiável etc. O narrador sem cabeça é o cavalo do personagem... Eu digo isso pensando no trecho de uma história de Ubaldo, daquele Livro de Histórias,449 que li faz tempo mas bem me lembro... — e ele leu: Luiz terá prazer em lhe reproduzir história de Suspiro, se você insistir um pouco e não houver senhoras por perto. Se houver senhoras, mesmo que você insista, Luiz não contará a história e ficará mais gago que o habitual, porque, se há um sujeito respeitador de senhoras, este é Luiz Garçom, do Grande Hotel. Se não houver senhoras, Luiz lhe explicará que passou uma grande vevergonha e um enorme vevexame e, mesmo que Suspiro ainda estivesse vivo, ele nunca mais ia querer ver a cara daquele jejegue.450 — Isso. Fique com isto: o narrador sem cabeça comporta-se como uma alma errante e sua sina é vagar, transitando pelos discursos de seus personagens. Falarei do romance Viva o povo brasileiro e, em menor medida, dO feitiço da ilha do Pavão, do Miséria e grandeza do amor de Benedita e dO sorriso do lagarto. Esses quatro livros constituem o momento e o lugar em que se tornam evidentes as características principais desse narrador. — Borges diz que só podemos definir algo quando nada soubermos a respeito dele... — disse o interlocutor, e disse também que gostaria de começar 449 Reeditado, com mais duas histórias, sob o nome Já podeis da pátria filhos, e outras histórias, op. cit. 450 “O jegue Boneco e o jegue Suspiro” (p. 139-147), in Já podeis da pátria filhos..., op. cit., p. 143. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 253 falando do título, que, à sua maneira, não deixa de ser uma definição prévia de um livro. — Viva o povo brasileiro é um título que me incomoda... — revelou. — Por quê? — e eu sorri. — É a exclamação? — Sim, é a exclamação. Também. — Não há exclamação... Trata-se, como bem observou o Moacyr Scliar, baseado no que já havia dito o próprio João Ubaldo Ribeiro, de uma exortação. Deixe-me ler aqui o que disseram. Ouça três comentários. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) — ... o Viva o povo brasileiro do título tem uma conotação até irônica. Não no sentido de que eu não daria um “viva” ao povo brasileiro, mas no sentido de que não se trata do povo brasileiro realmente, mas do pessoal daqui de Itaparica e do Recôncavo Baiano. Que é brasileiro, mas não é todo o povo brasileiro.451 (ii) ... lembro-me de ter ouvido João Ubaldo explicar que o “Viva” de Viva o povo brasileiro não é uma interjeição do tipo “Viva o Brasil”, com exclamação e tudo. Não, expressa antes um desejo do autor de que o povo brasileiro, seu povo, permaneça vivo apesar de todas as agruras e adversidades. É uma exortação, portanto.452 (iii) Mesmo o título, sem ponto de exclamação, tem uma ambigüidade proposital. Pode ser: “Salve o povo brasileiro” ou “Entenda o povo brasileiro”, no sentido de vivenciá-lo.453 — Ouça agora este único comentário... — disse o meu interlocutor, com um sorriso esquisito. E leu: — “Ao se decidir por um título demagógico, claramente infeliz e estranho à natureza específica da ficção, o ideólogo João Ubaldo Ribeiro sobrepôs-se ao romancista e incorporou à admirável obra-prima que é o seu livro a verruga panfletária que vai desfigurá-la para sempre”.454 — E continuou: — Viva o povo brasileiro também é um título incômodo porque contém a idéia de uma amplidão nacional, contém a proposta de uma saga, já que está falando justamente de um povo, e um povo é um conceito que, antes de ser complexo, remete a um universo. — Em outras palavras — provoquei-o —, você o considera pretensioso? 451 José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de Itaparica, a longa marcha do povo brasileiro”, O Globo, 7 set. 1983. 452 Moacyr SCLIAR, “Prefácio” (p. 9-10), in Zilá BERND & Francis UTÉZA, O caminho do meio..., op. cit., p. 10. 453 Isa CAMBARÁ, “João Ubaldo, outro baiano na lista de ‘best sellers’”, Folha de S. Paulo, 24 dez. 1984. 454 Wilson MARTINS, “A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 4 mai. 1985. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 254 — Sim, mas, depois que se lê o livro, já não mais se revela pretensioso. — E por quê? — Talvez porque a tarefa a que o livro se lança seja, efetivamente, ao final, cumprida.455 — Essa sua afirmativa leva-nos a um tópico que eu gostaria de abordar mais tarde e que diz respeito ao caráter histórico ou não-histórico de Viva o povo brasileiro, cujo título, você mesmo disse, sugere, pretensiosamente ou não, um romance historicamente comprometido. E, já que você decidiu começar pelo título: o avô itaparicano de João Ubaldo Ribeiro parece ter sido uma grande inspiração para o livro, não apenas porque se dedicou a escrever uma história da ilha de Itaparica — continuei —, história que o escritor, de certa maneira, quis reescrever, mas também porque foi pivô, ele mesmo, de alguns casos pitorescos. Um deles, e cito isso porque você mencionou que não gostava do título, diz PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA respeito ao que motivou a idéia original para o nome inicial do romance, cuja história começou a ser elaborada em Portugal, entre 1980 e 1981.456 Ouça estas duas declarações, que se complementam: (i) — Quando pensei neste romance, me veio o título: Alto lá, meu general, em homenagem ao meu avô, que se chamava Ubaldo Osório e foi o historiador 457 oficial da ilha de Itaparica e um inveterado defensor de suas tradições. Mas quando estive com Glauber Rocha em Portugal e lhe falei do título, ele achou horrível. Daí em diante, fiquei em dúvida devido à sensibilidade que tinha o Glauber, que era meu amigo fraternal.458 (ii) — Eu planejei esse livro (...) a partir de um episódio ocorrido com meu avô, e que está levemente preservado na memória familiar: ele era coronel do interior de Itaparica e se rebelou, junto com a população, contra uma determinada obra que a seu ver ia desfigurar a cidadezinha. O comandante interventor foi lá tomar satisfações e ele o peitou: “Alto lá, meu general!”, disse.459 455 — Como escreveu Lúcia Helena — disse ele, sugerindo-me que isto seja uma nota —: “Se, ao ler o título do romance, o leitor imagina que vai encontrar diante de si uma obra em que se louva algo que, simbolicamente, o escritor estaria apresentando como ‘nosso povo’, do qual se traça um perfil de glórias patrióticas, cairá num ledo e grosseiro engano” (Lúcia HELENA, “Viva o povo brasileiro — a questão do nacional e do popular”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985). 456 Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984. 457 — Ubaldo Osório escreveu o livro A ilha de Itaparica — história e tradição (Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1979). 458 Reynivaldo BRITO, “João Ubaldo Ribeiro”, texto sem referência, 12 jan. 1985. 459 Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 255 — Como título, Alto lá, meu general é mesmo ruim, mas essa reação verbal do Ubaldo Osório-avô não poderá ser lida como uma síntese das motivações políticas do romance? — sugeriu o meu interlocutor. — Sim. Há na frase o questionamento da autoridade e a tentativa de aproximar a entidade militar do povo mesmo, duas atitudes que vemos presentes no comportamento da personagem-chave, Maria da Fé,460 a partir da segunda metade do livro. Em conversas com seus companheiros e também nas discussões com o tenente Patrício Macário, a guerrilheira Dafé expõe as suas idéias: diante do negro Budião, que lhe pergunta o que fazer com os dois prisioneiros, tenente Macário e capitão Vieira, e diante do próprio Macário, algemado à sua frente e todo sobranceiro: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) — (...) Esses homens não sabem, mas deviam estar do nosso lado, porque eles pertencem ao nosso lado. Se pensassem, veriam que não pertencem ao lado daqueles que os exploram e os mandam morrer como carneiros (...). (p. 400) (ii) — Então? — disse ela passando os olhos pelo quarto. — Está sendo tratado de acordo com a dignidade de um oficial? (...) — O Exército Brasileiro... — ... não passa de um bando de rufiões mal-amados, cuja principal missão é combater seu próprio povo. — Protesto! (...) Isso é uma grave ofensa, que não posso aceitar e... — (...) Não vim para discutir, vim para ver pela primeira e última vez o prisioneiro, sempre tive curiosidade pelo tipo de homem que encara como ideal matar ou morrer e viver se perfilando. Pode ficar à vontade, não sou general. (p. 401-402) — E quanto ao narrador? Há nele esse mesmo arrojo que se observa na guerrilheira Dafé? — Somente se ele estiver incorporando a guerrilheira Dafé... Como eu estava dizendo, antes de ser interrompido com essa história do título, o narrador sem cabeça é promíscuo e instável; não permanece por muito tempo num mesmo personagem e nem tem o seu próprio discurso coerente e claramente intencionado. O narrador sem cabeça é um narrador em contínua incorporação. Como eu já lhe disse, inspirei-me, para criá-lo, ou melhor, para registrar e formalizar a sua existência, na almazinha de Viva o povo brasileiro: a almazinha em busca de corpos nos quais encarnar. A almazinha é parte da ficção; o narrador, não. Ela é o 460 — “... que João Ubaldo acredita (...) ser a mais marcante, ‘a mais da pá virada’ do livro” — eu li, citando trecho da resenha de José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de Itaparica...”, O Globo, 7 set. 1983. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 256 fio condutor do romance e uma espécie de variação do narrador, mas ela é acrítica e ingênua — disse eu. — Ouça este trecho: ... No céu de Cachoeira, misturada à luminosidade e à vibração quente do firmamento, a almazinha do Alferes Brandão Galvão, ainda entontecida pela visão do Imperador, com as grandezas que se sucediam de roldão e com o lindo quadro em que já acreditava piamente, acompanhou os atos do barão lá de cima, estremecendo de admiração e reverência. (p. 35) — Se essa almazinha, assim ingênua e acrítica, é uma clara referência ao povo brasileiro, por sua vez também ingênuo e acrítico, isso me parece um pouco simplista... — disse ele. — Não, não é. A almazinha não é um personagem fixo: ela não apenas encarna, tornando-se diferente a cada vez, como também, ao encarnar, aprende. Pode-se dizer que a almazinha é, sim, uma almazinha brasileira, mas em processo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA de formação. O exemplo que eu citei está na página 35, e a almazinha ainda tem um longo percurso. O narrador de Miséria e grandeza do amor de Benedita explica isso muito bem quando menciona a necessidade que têm de voltar os que já se foram. Vemos nesse exemplo seguinte que João Ubaldo recupera, dezesseis anos depois, a mesma imagem da ilha de Itaparica como um lugar de almas, de personagens e de aprendizados realizados e por realizar, e o mesmo feitio do narrador como aquele que conhece o comportamento das almas. Ouça. ... Sabe-se de gente que está nela faz mais de quarenta ou cinqüenta encarnações e, a cada reencarnação, por mais bem vividas que tenham sido as anteriores, o encarnado pode até pensar que já compreende muita coisa, mas, quando fica velho, vê que não compreende quase nada, precisa voltar sabe-se lá quantas vezes (...). ... (...) garantem os mais antigos que a fila de almas para reencarnar na ilha já 461 vai de uma ponta do céu à outra (...). (Miséria e grandeza..., p. 13-14) — O narrador sem cabeça tem diante de si uma grande variedade de personagens que nele encarnam, ou cujas cabeças ele toma para si, através justamente de suas inserções em discurso indireto livre. O narrador sem cabeça 461 — E vale a pena também citar, em nota, o que ele disse numa crônica dO Globo, de 24 nov. 1985: “Meu consolo é que aqui [em Itaparica], não se acredita muito em morte e, ao que tudo indica, quem quer continua por aqui mesmo, só que em forma de alma, mas fazendo as mesmas coisas que fazia quando tinha corpo” (“Os alegres mortos da nossa ilha” (p. 157-162), incluída no livro Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 161). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 257 tem a capacidade de se metamorfosear ao incorporar, adotando assim variantes de linguagem em suas metamorfoses. João Ubaldo, no Viva o povo brasileiro, nO feitiço da ilha do Pavão e no Miséria e grandeza do amor de Benedita, exerceu plenamente essa “antropofagia incorporante” como forma narrativa. Mas não me pergunte ainda nada sobre isso, porque isso tem lá o seu lugar. — E você pretende chegar a que conclusão? — Essa pergunta é ambiciosa. — Mas é bem intencionada... Não me venha falar aqui que você só quer levantar discussões e que não pretende chegar a lugar algum... — Um dos lugares a que quero chegar é a mim mesmo... — Hum... — fez ele, torcendo o nariz. — Mais modernidades... — Saber, de antemão, o que vou encontrar ao final desse trajeto é desconsiderar a possibilidade de o trajeto produzir efeitos sobre mim e, como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA conseqüência, transformar a mim mesmo, e bastante, ao longo dessa experiência. — Você ainda não é uma almazinha... — Precisamos eu e você — continuei, tentando esconder o riso — de um contato maciço com essa capacidade narrativa de nosso narrador sem cabeça. A leitura que farei, que faremos, você já está comprometido com isso, deve traduzirse, ao fim e ao cabo, em uma experiência particular. — Sobre isso que você disse há um trecho que gostaria de citar, de Eneida Maria de Souza, e a seu favor... — E leu o meu interlocutor: — O crítico, “ao pensar estar interpretando a palavra do outro através de suas leituras, está igualmente se inserindo como leitor de sua própria vida”.462 É isso que vamos fazer, pelo que entendi... — E, aparentemente feliz com a sua citação,463 continuou: — Mas antes temos de ser um pouco técnicos. Nem sei se temos, mas eu gostaria que você fosse. Que tal se começarmos por traçar as linhas básicas do tipo de narração predominante no romance Viva o povo brasileiro, nO feitiço da ilha... e no Miséria e grandeza...? Refiro-me ao seu tipo narratológico. 462 “Madame Bovary somos nós” (p. 129-143), in Giovanna BARTUCCI (org.), Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação, Rio de Janeiro, Imago, 2001, p. 130. 463 A qual eu acrescentei outra: “Toda a crítica deve incluir no seu discurso (mesmo que da maneira mais desviada e mais pudica possível) um discurso implícito sobre si mesma; toda a crítica é crítica da obra e crítica de si mesma” (Roland Barthes, Ensaios críticos, Lisboa, Edições 70, 1977, citado por Manuel RIBEIRO, “Narciso Crítico Literário ou o Fascínio da (cont.) 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 258 — Você é o homem das teorias... Pois lá vai: tecnicamente, pode-se dizer que se trata de um narrador extradiegético, ou um narrador narrando em terceira pessoa, exercendo múltiplas focalizações internas, alternadas com momentos de aparente onisciência, quando então sua focalização é zero ou não-focalizada, caso típico dos narradores clássicos do século dezenove. Repare que estou lançando mão de termos oriundos dos autores dedicados ao estudo da narratologia. — Você poderia mencioná-los? — Com prazer: Wayne C. Booth, Edward M. Forster, Norman Friedman, Percy Lubbock, Jean Pouillon, Tzvetan Todorov, Gerard Genette e outros, todos, ou quase todos, já citados aqui em nossas conversas anteriores. Se você quiser mais detalhes, e o que não falta nesse ramo da narratologia são detalhes, sugirolhe, como um verdadeiro compêndio, o Dicionário de Narratologia, dos professores portugueses Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes. Tome. E ainda há PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA um pequeno setor especializado que pretendo criar na minha bibliografia final, dedicado aos estudos de narratologia.464 — Eu que lhe dei essa idéia... — disse ele, inflado. — É verdade... Eu disse que o narrador de João Ubaldo Ribeiro, e principalmente em Viva o povo..., tem esse perfil. Trata-se de um perfil técnico inicial. Quero crer que esse perfil vai revelar-se mais sofisticado e até, em alguns pontos, completamente diverso dessa configuração que acabei de apresentar. — Poderia dar-me um exemplo? — Tenho a suspeita de que a onisciência não é, como poderia aparentar, uma característica predominante na narrativa de Viva o povo brasileiro. NO feitiço da ilha do Pavão e no Miséria e grandeza..., o narrador é bem mais senhor dos acontecimentos, mas em Viva o povo... a onisciência é sempre relativa, com o perdão do paradoxo, ou seletiva, isto é, restrita ao pequeno universo do personagem focalizado. Mas ainda é cedo para chegarmos a essas conclusões, e eu não sei se estamos diante de um ponto de chegada ou um ponto de partida. Quero conhecer ainda mais esse evento: como se dá essa narrativa antropofágica pelas mãos de nosso narrador sem cabeça. Vou lhe dar amostras do que acontece pelo Imagem através do Discurso”, Guest Book, em <http://www.letras.up.pt/upi/ilc/i_info_texts_ on_line_Narciso_Critico.htm>, acesso em 18 out. 2005). 464 — Ver Bibliografia, p. 515, item 8.2.3.: “Estudos citados sobre o narrador”. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 259 livro todo e depois chegaremos aos grandes exemplos, entre os quais estão o caboco Capiroba e a velha Dadinha. Vamos? — Já deveríamos ter ido... 5.1. PEQUENAS INCORPORAÇÕES: O NARRADOR A CAVALO — Observe o seguinte trecho, em que o narrador descreve um momento do personagem Perilo Ambrósio, recentemente nomeado Barão de Pirapuama: “Socou o lenço volumoso no bolso, sem dobrá-lo, ajeitou o chapéu na cabeça e principiou uma marcha paquidérmica em direção à praça. Malditos punhos de renda, malditas mulheres que o obrigam a tirar o chapéu e repetir as mesmas saudações” (Viva o povo..., p. 29). No mesmo pequeno trecho, o narrador conseguiu concretizar duas posturas, nesse caso, completamente opostas: um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ponto de vista exterior, o do narrador que consegue ver Perilo Ambrósio e sua triste figura de longe, do alto, gordo, lento, desconfortável dentro de seu imenso corpo, ponto de vista demonstrável através da expressão “marcha paquidérmica”, claramente ofensiva, e outro ponto de vista, agora interno, o do próprio Ambrósio, que se impacienta com as regras de etiqueta que se esperam dele em seu passeio pela rua da Matriz abaixo, e o narrador torna-se então o seu cúmplice. Podemos detectar, então — continuei —, um momento em que o narrador é intruso e está emitindo um juízo de valor acerca de seu personagem, e outro momento imediatamente seguinte em que está em focalização interna com esse personagem, que no narrador encarna, fazendo com que veja o mundo através de seus olhos de personagem. Dou-lhe um exemplo dO feitiço da ilha..., com a mesma estrutura, em que o narrador não lê os versos pregados à porta, mas os narra, trazendo para dentro de sua narrativa o espírito do poema. Iô Pepeu aproximou-se para ler o que estava escrito no papel pregado na porta. No inimitável estilo do mestre Joaquim Moniz Andrade, dodecassílabos de grande poder evocativo exaltavam a formosura do outono, a dadivosa estação das frutas, dom do ubertoso solo que Deus abençoa. Incumbe ao homem por ele afortunado erguer as mãos para os céus, na alegria da colheita, quando as macieiras, cerejeiras e pessegueiros tornam ledos os campos, na deleitável cornucópia da abundância. (p. 39) — Está comigo? 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 260 — Estou. Mas não sou seu cúmplice... — Essa alternância de posições, na grande velocidade em que se deu, coloca o narrador na curiosa posição de precisar esconder-se de uma através do disfarce proporcionado pela outra. — A forma antropofágica de narrar — disse ele — é essa capacidade do narrador de transitar entre pontos de vista diversos, dentro do mesmo núcleo narrativo? E pontos de vista diversos significam tipos diversos de discursos e ideologias? — Sim, mas esse trânsito não costuma ser tão dinâmico e tão evidente. O narrador, em regra, adota o ponto de vista do personagem que está incorporando, e o encampa. Ouça estes dois exemplos. No primeiro, o narrador descreve o Quilombo de Mani Banto, rei Banto, um quilombo não de negros fugidos, mas de negros escravizados... por outros negros... e em seguida, na mesma frase, adota o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ponto de vista da ideologia dos negros senhores. (i) ... Os fundadores são negros oriundos da grande cidade de Mbonza Congo, nas beiras do rio Congo (...), tudo nas costas d’África e em terras e domínios que o mundo já esqueceu. Os outros negros são descendentes dos que pertenciam aos primeiros por herança de conquista ou foram por eles comprados como escravos, negros uolofes, mandingas, minas, jagas, todos negros ordinários, que nem mereciam ser chamados de negros legítimos, todos feios, horrorosos, diferentes, nascidos para a servidão e agora cheios de liberdades (...), como se por acaso fossem negros do Congo e como estes fossem gente e tivessem direitos. (O feitiço da ilha..., p. 91-92) (ii) ... todos no Recôncavo e fora dele sabiam que pirapuama era baleia e, se não fosse, seria, pois afinal estava ali o Barão das Baleias, aquele que, na esteira de incontáveis sofrimentos e tribulações, lutando pela Pátria, (...) obrigado a combater a própria família, era hoje o maior entre os senhores da pesca dos grandes bichos marinhos... (Viva o povo..., p. 31, realcei) — Você disse que o narrador encampa o ponto de vista do personagem... Os trechos negritados parecem muito mais uma... — ... ironia? Sim — disse eu. — O narrador sem cabeça quer dizer uma coisa e diz outra, e o efeito dessa distância é a ironia, e a função dessa ironia é crítica. O narrador está incorporando os donos do Quilombo e também o Barão de Pirapuama; o narrador está vendo o mundo pelos olhos do senhor de escravos negros e pelos do nobre Barão, e, no entanto, mal incorpora, transforma essa 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 261 incorporação em um olhar crítico sobre os negros do Congo e sobre o próprio Barão. A focalização interna, nesse caso, para utilizarmos a terminologia de... — Gerard Genette? — ... é um disfarce do narrador, que, travestido de negro senhor do Congo e de Perilo Ambrósio, narrando aparentemente em “visão com” os dois, na terminologia de outro francês, o Jean Pouillon, sobre o qual já falei em outro ponto de nossa conversa,465 está na verdade deixando evidente sua visão crítica sobre o que representam o congolês negreiro e o Barão: a escravidão, o mandonismo, o olhar colonizado. Essa capacidade de esconder-se no discurso do outro é de tal maneira presente no perfil de nosso narrador sem cabeça, que praticamente não há momentos em que esse feitio não esteja em exercício. — Diga isso de outra maneira — pediu ele. — Quero dizer que o narrador não apresenta uma uniformidade no tom e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA nos seus posicionamentos. Ele está o tempo todo adotando um ou outro ponto de vista. Ele não tem a sua própria cabeça; tem, sim, a capacidade de olhar para o mundo com outros olhos, sempre outros.466 Há uma festa na casa de Ângelo Marcos e sua mulher, Ana Clara, personagens dO sorriso do lagarto, e o narrador não cessa de transitar, alternando indiretos livres e, portanto, pontos de vista — e li, procurando mudar o tom de voz na mudança de incorporação do narrador. [em Ana Clara] Ai, (...) que coisa mais surrealista isso tudo, parece aqueles filmes ingleses sobre a Índia. (...) os ingleses dando garden parties e fingindo que convivem com a aristocracia crioula. Lá se vai Bebel, se embarafustando pela casa adentro, mais rebolativa do que nunca (...). Esse martíni vai demorar. Um drinque é bom para o nervosismo. Nervosismo, meu Deus? É, nervosismo, nervosismo, sim. (...) Por que Ângelo Marcos não aparece, afinal este povo todo está aqui por causa dele, só quem não vem aqui por causa dele é João. Mas Ângelo Marcos apareceu, sim, e justamente na hora em que o prefeito estendeu a mão para Ana Clara e ela já tinha resolvido que ia falar “meu prefeito!”, ou qualquer coisa assim. (...) [em Ângelo Marcos] Tinha acabado de fumar um cigarro de maconha no sótão e antecipava com enorme felicidade o copo de vinho que (...) tinha decidido beber (...). (...) Muita gente, hem? Ângelo Marcos, sentindo a cabeça muito leve e um 465 — Ver Capítulo 3: “Setembro fechado sob o farol”, página 143, na minha nota no 278. 466 — E, desse modo — completei, em nota —, emprestando ao leitor esses olhos, ou seja, o ponto de vista do personagem em questão. Essa operação, nos casos em que João Ubaldo quer produzir mais impacto narrativo, acaba por expor o leitor “a uma brutalidade sem reservas e sem mediações” (Rita OLIVIERI-GODET, “Sujeito totalitário e violência em Viva o povo brasileiro e Diário do farol” (p. 145-162), in Zilá BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 148). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 262 grande bom humor, passeou os olhos pelo pátio. Prestígio, prestígio, mesmo formalmente fora do poder. (...) [em João Pedroso] João Pedroso sorriu, quis dizer alguma coisa espirituosa, (...) e continuou sorrindo sem saber mais o que fazer (...). (p. 140-143) — O narrador contextualiza-se a todo momento — continuei —, podendo ser capaz de realizar, sobre uma mesma matriz factual, duas narrativas parecidas e ao mesmo tempo bastante diversas, como pode ser o caso destes dois exemplos: o primeiro tirei do Miséria e grandeza do amor de Benedita. Trata-se do encontro entre Cadinha, a irmã de Benedita, e Deoquinha, o marido de Benedita. Deoquinha precisa de uma favor de Cadinha, e esta exigiu em troca que Deoquinha se deitasse com ela. Não há discursos diretos, e é o narrador quem conduz tudo. Começo com o narrador a incorporar Deoquinha, e depois seguimos, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA alternadamente, com as minhas marcações. [Em Deoquinha] Primeiramente Cadinha, exalando vinte e cinco mil penicos de perfume do tipo aqui propriamente cognominado de mijo de gringo, embora o dela nem de gringo fosse, mas de produção da baixa dos Sapateiros, fez com que o coração de Deoquinha lhe despencasse até o estômago, com uma conversa de olho enviesado, na qual dizia que estava em dúvida sobre se sua consciência permitia que fizesse o combinado. [em Cadinha] Havia pensado, havia mesmo rezado, e será que não estaria cometendo pecado abominável, traindo sua irmã daquela forma odiosa e velhaca? [em Deoquinha] Somente depois que Deoquinha, suando e imaginando o que ainda teria pela frente, lhe fez um discurso candente e apaixonado, não só sobre como Deus com certeza aprovava o que se fizesse para pôr no mundo mais um sacerdote, como sobre a coragem com que ela sempre honrara a palavra empenhada, é que, finalmente, com a aparência não muito convicta, ela assentiu. [Em Cadinha] Mas estava claro que ele não a procurara por aquela razão, aquilo já estava acertado e ela não lhe havia participado suas dúvidas. Ele queria mais alguma coisa, naturalmente, mais um sacrifício. Era sempre assim, sempre queriam dela tudo, sem nada dar em troca. (...) Não precisava remanchar, relambórios dispensados, nada, absolutamente nada, alteraria sua calma de pedra, ele podia falar à vontade. (...) [Em Deoquinha] Que forças (...), que reforços arrancados do fundo d’alma foram necessários para suportar a expressão de esfinge malevolente com que ela, sentada na cadeira de balanço (...), ignorava as palavras suplicantes com que Deoquinha abria seu coração esmagado! (...) (p. 77-79) — O segundo exemplo vem do Viva o povo... e constitui o estupro da negrinha Vevé, premeditado e antevisto pelo Barão e em seguida revisto pela própria Vevé, como coisa já acontecida. A primeira descrição, com o narrador incorporando Perilo Ambrósio, é extremamente agressiva, dispondo o narrador de todas as vulgaridades possíveis e bem adequadas ao modo de ser do senhor, para 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 263 quem a mulher, sendo negra e escrava e, portanto, um objeto, deveria ficar imóvel e em seguida estalar de dor e morrer. O contexto mostra Ambrósio a masturbar-se à varanda, contemplando a sua propriedade, e a imaginar o que segue: ... sem dizer uma palavra, atirá-la à cama, abrir-lhe as pernas, deixar bem claro que não queria que se mexesse e, passando cuspe por aquela cabeça de carne inchada e embrutecida, deflorá-la de um só golpe (...), sentir qualquer estalo de pele ou cartilagem se rompendo, pressentir que ela era rasa ou estreita e, empurrando-lhe os joelhos para cima, enfiar-lhe tudo com um só golpe rude que quase a lançasse contra a cabeceira, (...) como quem trespassa, como quem empala, como quem gostaria de que a mulher fosse inteiramente atravessada e morresse com as vísceras destroçadas, (...) bem no instante em que (...) gozasse dentro dela, senhor completo, senhor completo... (p. 91) — Quando é a vez de o narrador, em indireto livre, incorporar a negrinha Vevé e rememorar com ela o estupro — continuei, ante a expressão de horror de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA meu interlocutor —, temos um outro contexto: a descrição das baleias fazendo sexo, a imaginação de Vevé a criar cenas de amor com seu noivo Custódio e em seguida, como contraponto, o instante do pós-estupro. O narrador, com esse preâmbulo, insere-nos no imaginário de Vevé, do mesmo modo como ele nos meteu no universo das fantasias de Ambrósio, a masturbar-se “por tudo aquilo que era infinitamente seu, os negros, as negras, as outras pessoas, o mundo” (p. 90). ... Que fazer agora? Levantar-se, consertar o corpo ainda retorcido na mesma posição em que tinha ficado quando ele (...) se limpara nos trapos em que se transformara a sua bata branca, numa das muitas posições em que ele a tinha virado e revirado com brutalidade (...) como um frango sendo depenado? (p. 133) — O ponto de vista aqui é o do objeto, do corpo que foi maltratado e “poluído” irreversivelmente pelas mãos do Barão. — E eu disse ainda: — Observe que o narrador, aqui, faz referência à brutalidade com que o corpo de Vevé foi virado e revirado, referência essa que não teria lugar no trecho em que o narrador está incorporando o próprio Barão, pois que a brutalidade não existe como conceito isolado, já que ela é a própria constituição do Barão e de seu ato. O mesmo se pode dizer da comparação com o frango: o narrador, incorporando Vevé, diz que Ambrósio a expôs como a um frango depenado. Toda a descrição do estupro pelo narrador encabeçando o Barão de Pirapuama é a descrição de um senhor de engenho que se comporta como se diante de um frango estivesse. — E continuei: — Você falou, antes de eu entrar nas visões do estupro, que pelos 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 264 vistos o enjoaram..., você falou em ironia. Leio para você agora um outro exemplo de Viva o povo... em que não há, da parte de nosso narrador, qualquer ironia, ou seja, não se trata de ele querer dizer uma coisa, dizendo outra, não havendo clivagem de pontos de vista: o narrador, cúmplice, escorrega para dentro do discurso de seu personagem, no caso, Turíbio Cafubá, filho de Dadinha, eufórico com o nascimento de sua filha Daê, conhecida como Vevé, cuja história de sua “primeira vez” você já conhece, e reproduz-lhe as maneiras de se expressar. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... Desembarcou com o balaio equilibrado na cabeça, fez uns passos dentro da água que lhe chegava aos joelhos. Pariu ao vento, foi? Tá muito certo! Homem de boa fortuna, não? (...) Homem de boa fortuna, sim senhor, ali estava peixe de primeira, era todo seu, o senhor não deixava? Nhô não deixava quando não tinha trabalho na caieira ou outro serviço, Nhô não deixava que ele fosse pescar e nunca que queria o peixe? Ha-ha-ha! Aqui é Turíbio Cafubá, meu filho, assim chamado porque de preto quase que fica branco do pó e da queima do cal (...). E Daê não nasceu no domingo, para ele poder dançar o dia todo, com o espírito que veio da terra do Daomé, ou senão do Maomé? Daê-Naê-ê! (p. 95) — Então se podem perceber duas posturas do narrador, a depender de serem os personagens oprimidos ou opressores? — Sim, mas a condição de oprimido e opressor não é estanque, fixa e prédeterminada. Ela varia conforme a relação que se estabelece. Mesmo assim, há quem veja em Viva o povo brasileiro o desenvolvimento de duas linhagens básicas. Diz-nos a professora Eneida Leal Cunha, em sua tese Estampas do imaginário, que o romance expõe uma divergência básica entre os descendentes de Perilo Ambrósio, os “bem falantes” donos do poder, e os que constituem as encarnações da almazinha: a gente do povo, os escravos e os índios.467 — E quais são as conseqüências dessa dicotomia sobre os modos de narrar presentes no livro? — Esse é um dos pontos muito bem desenvolvidos pela professora Eneida Leal Cunha — eu disse. — Segundo ela observa, o narrador se comporta de modo muito mais retraído quando se põe a narrar à volta da linhagem dos poderosos e “bem falantes”. O narrador deixa-os falar, e sua fala é longa e tagarela. 467 “O imaginário brasileiro: entre a genealogia e a história” (p. 147-217), in Estampas do imaginário — literatura, cultura, história e identidade, Depart. de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, Rio de Janeiro, abr. 1993, p. 160 (este capítulo encontra-se presente também, sob a forma de um artigo, na Obra seleta de João Ubaldo Ribeiro, sob o nome “Viva o povo brasileiro: história e imaginário” (p. 163-180), op. cit.). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 265 — Ou, por outra: são esses personagens da linhagem de Perilo Ambrósio, os poderosos e “bem falantes”, que na verdade tomam a palavra do narrador, que se limita, em seus trabalhos narrativos, às apresentações iniciais e aos fechamentos... — Sim. Segundo Eneida Leal, o narrador ocupa-se das apresentações, interioriza o seu discurso no indireto livre, dando conta das relembrâncias do personagem poderoso e “bem falante”, e então o que acontece? Assistimos ao apagamento progressivo das “marcas do discurso do narrador, até culminar na sua completa retração, neutralizado pela dramaticidade do diálogo e das longas falas das personagens”,468 diz ela, e muito bem. — Ser o dono da pátria, das terras e do dinheiro é ser também o dono da fala e do discurso e de todas as palavras... — disse ele, animado. — É o que diz a Eneida na página seguinte... Há muitos exemplos, ao longo de todo o romance, dessa eloqüência dos personagens, contraposta à relativa PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA mudez do narrador, que os deixa falar por páginas a fio, transformando-se praticamente em dramático o gênero do texto. Uma das estratégias do nosso narrador sem cabeça é justamente falar com as palavras do outro ou então deixar falar o outro, sendo essa fala direta uma maneira de operar a descrição. As páginas 300 e 301 de Viva o povo... ocupam-se de apresentar ao leitor, pela primeira vez, o personagem Clemente André, padre, homossexual, filho de Amleto Ferreira, guarda-livros do Barão de Pirapuama, com Teolina. — Entendi. Estou lendo aqui — disse o meu interlocutor, com o livro aberto. — Ao invés do procedimento clássico de aproximar-se cada vez mais do personagem, a partir de fora, e então adentrar-lhe as tripas através da focalização interna, do discurso indireto livre ou da incorporação, para usarmos um termo mais afeito ao caso desse nosso universo de fantasmas, almas e possessões... Ao invés disso, o narrador simplesmente faz o contrário: abre a cortina e atira o padre Clemente André no palco da narrativa, sem qualquer introdução e já com o seu travessão, marca da total independência expressiva. A própria fala do personagem, e não o trabalho do narrador, é que vai fornecer o panorama psicológico. O narrador, ao não fazer nada, mas apenas doar o travessão, permitiu o contato direto do personagem com o leitor. Posso ler? — Desde que leia com a entonação do personagem... 468 “O imaginário brasileiro: entre a genealogia e a história”, op. cit., p. 160. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 266 ... — Como é que fica a pessoa que precisa desesperadamente de uma coisa e, quando essa coisa chega, não é nada daquilo que a pessoa queria? Fica morta, isto é o que ela fica! Então uma firma como a Ambrósio Nunes & Irmãos, que se jacta de ser tradicionalíssima e servir aos mais ilustres prelados e homens públicos, apresenta esta garnacha mal amanhada, esta obra de albardeiro, e ousa chamá-la de batina? (...) Olhem, olhem este enfranque, olhem isto, dá vontade de rasgar! (...) É por isso que sempre mandei fazer minhas batinas em Roma (...). Não gosto de nada, (...) não gosto de nada, nada, nada! E que são essa tripinhas, essas minhoquinhas, são sutaches? Que feio, joga isto fora, joga isto fora (...)! (...) Os senhores podem retirar-se. Domiciano, vê-me um copo d’água com um poucochito de açúcar. (p. 300-301) — Somente depois — continuei —, já feitas as apresentações por parte do próprio personagem, é que entra o narrador, num modo narrativo bem próximo ao chamado narrador-câmera. O efeito seria certamente outro se a disposição dos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA trechos fosse invertida. Veja agora o trabalho do narrador: ... Padre Clemente André caiu exausto no sofá, as mãos na testa dolorida. Esticou a perna e abriu a porta do guarda-roupas com a ponta da bota. Olhou com desalento a extensa fileira de sotainas, capas, paramentos e chapéus — tudo usado, tudo cansado, tudo sem brilho, nada à altura do domingo que tanto antecipava. Levantou-se, abriu a outra porta, dedilhou as roupas penduradas, sentiu um aperto na garganta, sentou-se novamente, desta vez para chorar com as mãos cobrindo o rosto. (p. 301) — Mais à frente — disse eu —, o narrador vai repetir o procedimento, também utilizando o personagem de Clemente André, bem mais velho e já morando na Itália. A diferença é que desta vez o personagem não virá à cena de frente com um desabafo de viva voz, mas com uma carta, mandada de Roma para o irmão Bonifácio Odulfo, já senhor dos negócios do pai Amleto Ferreira, que enriquecera roubando o Barão. A carta, escrita pelo próprio punho de Clemente André, vem entre aspas, não sendo o texto, portanto, parte específica do universo discursivo do narrador. O narrador, diante dos personagens poderosos e “bem falantes”, não apenas os deixa tagarelar à vontade, como também permite que sejam bastante visíveis as suas aparições escritas, às quais confere então uma espécie de personalidade textual, desta vez caricata e bem mais marcante que a personalidade textual que vimos no texto de outro padre, o do Diário do Farol... O texto da carta de Clemente André não é um texto qualquer, neutro e apenas informativo; ele tem os tiques, os trejeitos e a afetação do personagem. Veja, o 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 267 excesso na pontuação é sutil, mas, à medida que avançamos na carta, vamos percebendo que o texto caminha aos pulinhos, os pulinhos da vírgula: ... “Recomende-me, à Dona Teresa Henriqueta, tua santa esposa, e a meus queridos sobrinhos, que antecipo, com alegria, rever. Espero, também, que tenha a oportunidade de estar, para despedir-me, com o nosso irmão caçula, o Coronel Patrício Macário... etc. etc.” (...) ... A carta continuava, pois, como sempre, o monsenhor deixava seus intrincados problemas financeiros para o final. (...) Ainda outro dia, em Salvador, era apenas um seminarista brincalhão — e agora quem lhe escrevia era um velho, um velho de 60 anos, com aquela pontuação pesada e caturra que insistia ser a correta, pois se considerava um mestre da prosa... (p. 537-538, realces meus) — Do mesmo modo, as conversas do jovem poeta Bonifácio Odulfo Nobre dos Reis Ferreira-Dutton com seus colegas intelectuais são paradigmáticas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA dessa retirada do narrador — disse eu. — As páginas 289 a 300 são praticamente uma sucessão ininterrupta de travessões, ficando o narrador encarregado apenas de uma certa focalização interna, levada a cabo nos momentos em que o personagem se encontra sem interlocução, ao final da longa passagem. — É impossível não fazer comparações entre o comportamento do jovem arrogante Bonifácio Odulfo e os jovens igualmente arrogantes Tristão e Orlando, de Setembro não tem sentido — lembrou-se o meu interlocutor. — Uma comparação que os une pela arrogância e pela juventude e os separa pela visão de mundo... Em Bonifácio Odulfo, o ano é 1853, o espírito é romântico, abolicionista e nacionalista. Em Tristão e Orlando, o início dos anos 60, pelos menos para esses dois personagens, é de desilusão... — Em seguida, por oposição... — Por oposição — continuo —, os personagens da segunda linhagem, pobres e oprimidos, os que não têm a possibilidade de falar as suas próprias línguas, as indígenas, as africanas, as totalmente oralizadas, estes é como se perdessem a voz e precisassem de uma maior presença vocal do narrador, que também fala por aqueles que, mesmo tendo o português como língua de uso, não conseguem expressar-se verbalmente por não poderem expressar-se socialmente. Veja o caso da viúva de um funcionário despedido por Amleto Ferreira, um funcionário que sabia de todas as falcatruas cometidas pelo guarda-livros do Barão de Pirapuama. Maria d’Alva Bonfim apresentou-se no gabinete de Amleto, mas não abriu a boca; abriu-a o narrador: “A mulher estava nervosa, teve 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 268 dificuldade em começar a falar, principalmente depois que ele se levantou e, junto à janela, declarou-se sem tempo a perder. Finalmente, gaguejando muito (...), disse que...” (p. 330). E tudo corre em discurso indireto livre. — O narrador não apenas fala pela dona Maria, como incorpora seus trejeitos, sua pontuação, suas desculpas, como se vê na página seguinte... — Sim. E o romance Miséria e grandeza do amor de Benedita talvez seja o livro em que João Ubaldo mais fez uso desse caráter acéfalo do narrador.469 Há poucos discursos diretos — eu disse —, e o narrador é então o grande personagem, a falar por todos, mas na linguagem que é de cada um... Observe os elementos da linguagem de cada personagem inseridos no discurso do narrador em terceira pessoa: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (i) [Incorporando o delegado que prendeu o alemão] Mocorota, aliás Sua Excelência, o delegado Dr. Marcos Massaranduba, apareceu em pessoa, disse que o alemão acabara de ser surpreendido vertendo água em praça pública, em flagrante ultraje ao pudor, e que podia ser alemão, mas era um bom filho-daputa e ia cair na chave tão certo como o porco ronca e a galinha cisca. (p. 104) (ii) [Incorporando um soldado e um cabo que conduziram o alemão] O soldado Rominivaldo e o cabo Lincoln seguraram o homem, segurou um cada braço e foram levando o elemento para a cadeia. (p. 104-105) (iii) [Incorporando Juvenal a consolar Deoquinha] Mas Juvenal (...) não se deixou abalar. Com a mão no braço do amigo, disse-lhe que, nesta vida, os bons pagam por serem bons, é conforme está escrita a História da Humanidade e corroborado à fartura nas vidas dos grandes homens, de Napoleão a Pastéul, um pagando por ser o maior dos generais, outro pagando por ter desmascarado o micróbio (...). (p.72-73) (iv) [Incorporando o escrivão Zenóbio Merdinha, a anotar a tradução que o suíço René fez do depoimento do alemão preso] ... ninguém vai dizer isso aqui de René, mas errar é humano e o suíço também humano é. E não se vai declarar que ele errou de propósito, foi um problema da psicologia dele, a psicologia nem sempre é levada em consideração, mas influencia muito no desempenho do indivíduo. (p.107) — Esse tipo de silenciamento dos personagens sem voz não é marcante, por outro lado, nO feitiço da ilha... — disse ele, depois de um tempo, e colocou para falar o índio Balduíno Galo Mau. 469 — “É o narrador quem rouba a cena no romance. Irônico, ele enche a narrativa de rodopios (...). ¶ A história fica em segundo plano, e o que encanta é esse doce falastrão que mistura o mais afetado tom erudito a expressões baixíssimas, típicas de um conversador de botequim” (Chico MATTOSO, “Novo romance de João Ubaldo Ribeiro”, Jornal do Comércio, 27 nov. 2000). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 269 — Cadê o tendente? Cadê? Dão Filipe de Meulo Furutado? Cadê condenado pecador, tendente estrumo? Uá! Uá! Índio mata, índio dá carne de branco postadinha pra guará, pra raposa, pra tatu (...)! Índio pega toda gente e mata de dentada, arrum, arrum (...)! (...) Cadê tendente? Não manda ele? Manda eu também! Aqui tudo, índio já mandava antes de branco parecer! Vão te à merda do caraio da postema da barabaridade! (O feitiço..., p. 36) — Sim — e assenti. — NO feitiço da ilha..., João Ubaldo, talvez por estar menos preocupado com algum rigor quanto ao linguajar dos personagens, e certamente empenhado numa escrita que fosse, antes de tudo, engraçada,470 não economizou discursos diretos para índios e negros.471 — E prossegui: — Antes de citar um trecho da professora Eneida Leal Cunha, gostaria de referir aqui o que talvez seja o maior exemplo dessa presença vocal do narrador diante dos personagens sem voz em Viva o povo brasileiro. João Ubaldo, no exemplo que darei agora, levou ao extremo essa condição, metonimizando-a através da história PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA do negro Feliciano, que teve a língua cortada para não dedurar a impostura de Perilo Ambrósio, que ganhou glória de guerra pintando-se com o sangue de um escravo morto especialmente para a composição da fraude. Feliciano não faz mais que emitir grunhidos, e somente o entende seu amigo Budião, que, no entanto, em nenhum momento repassa o que sabe. Quem traduz em boas palavras os grunhidos emitidos por Feliciano e entendidos por Budião é o narrador. É ele, com as palavras dele, e não as de Feliciano, quem de fato incorpora o personagem sem língua, literal e figurativamente sem língua, e em seu nome fala: ... e souberam como tinha sido cortada a língua de Feliciano, mesmo ele havendo chorado e jurado por todos os santos brancos que se o poupassem jamais diria uma palavra sobre o assunto. Mas não adiantou — contou Feliciano a Budião, os braços tremendo, os olhos cheios d’água —, pois eles apertaram minhas bochechas dos dois lados até que eu abrisse a boca, puxaram minha língua para fora com uma torquês, cortaram bem fundo com um cutilão de magarefe e depois queimaram o toco no ferro em brasa. Não é só falar — contou Feliciano dando uns roncos guturais — que a falta da língua impede, mas não se 470 — “Sei que queria fazer um livro picaresco, sem muito desenvolvimento de personagem. Trabalhar mais os acontecimentos...”, disse João Ubaldo, numa entrevista (Beth NÉSPOLI, “João Ubaldo cria ilha em cobertura do Rio”, O Estado de S. Paulo, 15 out. 1997). 471 — Mesmo assim — e abri uma nota —, podemos encontrar, também nO feitiço..., um narrador a socorrer, com o seu discurso indireto, aqueles que não sabem falar direito, notadamente índios, negros cativos, mulheres pobres. Quem se encarrega de transmitir a notícia de que o índio Balduíno Galo Mau e Iô Pepeu foram capturados pelos guardas do Quilombo de Mani Banto é Cirilo Índio Pequeno, ou melhor, o narrador que ao lado dele está: “Cirilo Índio Pequeno não sabia contar mais nada, só sabia aquilo que acabara de contar. Que estava na aldeia do Mato Preto, de onde...” (p. 109). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 270 mastiga, não se engole o cuspe, não se sente o dente, não se sente o gosto, não se pode conter a baba e, de vez em quando, no meio da noite, é como se a língua tivesse voltado a seu lugar, coçando e querendo mexer-se, mas não se pode coçála nem movê-la, porque ela não está lá, é uma assombração. (p. 157-158) — Cito-lhe agora a professora Eneida: ... Retomando a divergência de fundo entre as duas linhagens — a posse da voz e a possibilidade do discurso —, tem-se na segunda fração do romance um elenco de personagens marcadas pela carência, pela impossibilidade social, econômica, cultural e, muitas vezes, lingüística de penetrarem na malha cerrada dos territórios discursivos que informam o romance (...). Para essas personagens de pouca voz, o autor providencia um narrador em terceira pessoa, que intervém na narrativa com freqüência, extensão e intensidade diversas do que ocorre na primeira linhagem.472 — Estou pensando novamente no personagem Turíbio Cafubá... — disse o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA meu interlocutor. — Sim, bem pensado. Quando recebeu a notícia de que sua filha Vevé tinha acabado de nascer, o escravo Turíbio dançou e cantou à volta da menina, e, mesmo sob os protestos de sua mãe, Dadinha, contou à pequena uma história, que vem a ser justamente a história que ele imaginou para a sua “herdeira”. Essa história, que tecnicamente configura o que a narratologia chama de narrativa encaixada, ou encaixe,473 tem dentro de si uma outra, uma segunda narrativa encaixada, e desenrolam-se todas em discurso indireto livre, ou seja, Turíbio Cafubá, na verdade, não conta nada; é o narrador que nos conta o que conta Turíbio Cafubá à sua filha Vevé. Ouça: ... Dadinha perdeu quase todo o ar de riso e disse a ele que estava bem, que dançasse e festejasse, mas que não ficasse tendo fantasias (...). (...) Ele, entretanto, não se conformou e, como se fosse de noite e o tempo não existisse, contou uma história de trancoso. Era uma vez, disse, um negro fumbambento de cal... (p. 97, realcei) — Desculpa lá — disse ele. — A segunda narrativa encaixada acontece em discurso direto. É ainda o narrador a falar, mas incorporando o tal espírito das danças que aparece a Turíbio. Está na página seguinte: “... espírito esse que garra 472 Eneida Leal CUNHA, “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 175-176. 473 — Lanço mão dos verbetes encaixe (p. 121) e/ou nível narrativo (p. 297), de Carlos REIS e Ana Cristina M. LOPES, Dicionário de narratologia, op. cit. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 271 esse negro fumbambento e (...) lhe cochicha a seguinte outra história: ah, não sabe mecê, negro velho fumbambento de cal...” — leu o meu interlocutor, realçando um trecho. — Mas eu pensei no Turíbio Cafubá — continuou —, não tanto para concordar com o que disse a Eneida sobre a maior presença vocal do narrador na fala dos “sem voz”, mas para apontar uma sutileza: Turíbio Cafubá está contando a história da sua vida, e isto é em si um ato de resistência: ter, ainda, mesmo quando não se é dono da própria vida nem do próprio corpo, porque dono é o senhor Barão de Pirapuama..., ter ainda a capacidade e a ousadia, e a fantasia, como disse Dadinha, de querer contá-la, e é isso o que faz Turíbio Cafubá. — Você quer dizer, então, que considera questão irrelevante ser esta vida contada em discurso direto ou em discurso indireto livre? — De certo modo, sim... — provocou o meu interlocutor. — Isto é um grande equívoco. Turíbio não fala; quem fala é o narrador, e o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA narrador canibal e sem cabeça somente fala porque realizou o movimento de “comer” Turíbio, comer seus feitios e suas palavras, transformando-as em outra coisa, em um discurso. “... a incorporação do outro acaba configurando-se como um modo de dar corpo ao outro, seja ele inimigo ou amigo”, diz Ettore FinazziAgrò.474 Além disso, ser o narrador a contar um episódio da vida de Turíbio Cafubá, o dia em que sua filha nasceu e ele contou a essa filha histórias, confere à narrativa um caráter muito mais oral do que se fosse o próprio Turíbio o dono da voz. É como se fosse o narrador a contar ao leitor do romance a história de Turíbio a contar histórias: a fala do narrador é mais uma narrativa encaixada na narrativa de Turíbio Cafubá. E isso — continuei — tem uma função: a narrativa acerca das histórias que conta o Turíbio Cafubá chega perto do que disse o escravo à sua filha, mas nunca o reproduz. — E qual a função de chegar perto mas nunca reproduzir? — Manter em funcionamento o duplo caráter do narrador: ele está falando “... por si na linguagem de outrem, e por outrem na sua própria linguagem”,475 como diz o Bakhtin. A forma de narrar do narrador sem cabeça é uma forma 474 “A identidade devorada — Considerações sobre a antropofagia” (p. 615-626), in João Cezar de Castro ROCHA (org.), Valdei Lopes de ARAUJO (colab.) & OUTROS, Nenhum Brasil existe — Pequena Enciclopédia, Rio de Janeiro, TopBooks, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e UniverCidade Editora, 2003, p. 618. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 272 antropofágica: quando incorpora o modo de falar de Turíbio Cafubá, o narrador sem cabeça concretiza uma diversidade. O narrador abre-se a uma alteridade e... aprende: “... come-se para absorver as virtudes do comido”, diz Ettore FinazziAgrò, “para ‘encarnar’ seu valor”.476 — Qual então a porção Turíbio da linguagem do narrador? — A simplicidade das idéias e os temas. E a porção do próprio narrador dá conta da sintaxe, da escolha dos termos e da clareza da exposição: é onde entra o narrador, com a sintaxe. Turíbio Cafubá não tem o mesmo status verbal que tem Dadinha, que veremos depois, e, em menor escala, Joana Leixona,477 alma encarnante dO feitiço da ilha... Vou expor agora um outro aspecto da linguagem do narrador em Turíbio Cafubá. O narrador, vez por outra, envolvido, através da focalização interna, com um personagem da linhagem dos “sem voz”, introduz no seu discurso o que podemos chamar um pensamento pronto, repetido tanto pelos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA opressores quanto pelos oprimidos: um pensamento que reproduz uma ideologia. O efeito é irônico. Veja: o narrador, com a cabeça de Turíbio, com as palavras de Turíbio veiculadas em um discurso indireto livre, reproduz um pensamento que lhe foi ensinado por seus patrões e pela vida. A reprodução desse pensamento acontece através das premissas do próprio pensamento — eu disse —, e é isso que confere a essa reprodução um caráter crítico. Turíbio é castigado com chibatas: “Castigo leve, não lhe tomaram o privilégio de pescar, são bons cristão, boas pessoas (...), era só porque ele deveria ter pedido consentimento para distribuir o peixe, pois saber que ele ia ser dado não dispensava o pedido, essas coisas não se pode deixar passar, se fosse assim onde se ia parar?” (Viva o povo..., p. 99). — Nesse caso — disse ele —, não está a elite econômica a expressar-se em discurso direto, mas está aqui expresso, através do discurso indireto livre, e pela consciência de Turíbio Cafubá, um pensamento cuja origem está na postura arrogante e paternalista dessa elite. 475 Mikhail BAKHTIN, “O plurilingüismo no romance” (p. 107-133), in Questões de literatura e de estética — A teoria do romance, São Paulo, Hucitec, 1993, p. 119. 476 “A identidade devorada — Considerações sobre a antropofagia”, op. cit., p. 618. 477 — “Tinha sido puta de alto bordo no Porto e na grande cidade de Leixônia, puta lena, alcoviteira de primeira, dona de casa de puta, corretora de escravos (...) e ladra até quanto pôde. Em vista desses seus enormes pecados, estava condenada por mil e duzentos anos a baixar para servir aos outros” (p. 71) — leu o meu interlocutor, na página aberta que lhe entreguei. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 273 — Sim, e, além disso, a presença desse pensamento na zona de expressão do personagem Turíbio, um pobre escravo, demonstra o quanto a ideologia colonizadora está introjetada nos colonizados. Ouça esse caso agora — segui —: o narrador, incorporando Perilo Ambrósio, está a desfiar um rosário de queixas. Ambrósio, o Barão de Pirapuama, não gosta nada de sua mulher, Antônia Vitória, e desse modo o explicita: ... Perilo Ambrósio lembrou amargamente que casara com aquela viúva branca como alvaiade, quase tão gorda quanto ele (...), porque assim entraria para o ramo comercial através do Empório e Trapiche Soares de Almeida (...), pai dela. (...) e, se Antônia Vitória tinha alguma boa qualidade, esta era ser filha única de pai viúvo velho. O escaler bordejou a mancha escura dos arrecifes submersos, anegou de novo a proa, ressurgiu quase feérico entre os cetins e filós multicores da companhia feminina, embicou para a barca fundeada ao largo, os negros se levantaram para manejar o cordame e acostar. (p. 58-59, realcei) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Eu li esse longo trecho — disse eu — para que você veja a diferença entre os dois tipos de discurso. O pedaço realçado pode representar uma voz que seria a voz neutra do narrador, em contraste com o discurso de sua focalização em Perilo Ambrósio: uma voz desvinculada de qualquer personagem e de qualquer discurso “do povo”. Quase não há acentos, havendo somente uma descrição que se quer objetiva das manobras do barco em que estão Ambrósio, sua mulher e alguns convidados. É como se o narrador interrompesse uma ladainha, a ladainha do Barão de Pirapuama, para “voltar ao trabalho”: o trabalho de narrar à distância. — Mas pode ser feita uma ressalva com relação ao vocabulário, bastante específico, desse trecho que você realçou... — disse o interlocutor. — Você quer dizer que se trata, aqui, de um narrador neutro mas afeito ao conhecimento singular da navegação? — Logo, não tão neutro assim... Os termos escaler, bordejar, um termo da marinharia, anegar, fundear, cordame e acostar constituem indícios de que o narrador está submerso em uma linguagem de outrem. Isso me lembra o Bakhtin, que você citou, mas continue, eu quero mais exemplos. — Esse feitio do narrador, essa sua capacidade de falar pela boca do outro, não constitui apenas o trânsito entre pontos de vista, com o narrador a transformar-se ideologicamente — disse eu —, mas também um trânsito 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 274 vocabular, como acabamos de ver. O narrador é canibal478 graças à sua capacidade de adotar a linguagem e os modos de falar do personagem que está incorporando, mas também, como você ressalvou, a linguagem específica de um saber específico, que não é dele, narrador, mas de um outrem inidentificável. — Ou nem tão inidentificável assim... — disse ele, abrindo uma página dO sorriso do lagarto. — Veja — e leu: ... Orientada pelos cochichos de Jereba ao pé do ouvido de Rufino, a lancha amainou ao largo da ilha dos Frades e lançou poita à popa, afilando morosamente com a correnteza do fim da vazante, até parar de todo e aninhar seu bojo branco na água (...). Marcação precisa, náilon 90, chumbada de 200 gramas, anzol 6, anzol 5, paradas de aço, muita linha para trabalhar o peixe, iscas de saúna e lula, silêncio tenso... (O sorriso..., p. 191, realçou) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA 5.2. ANTROPOFAGIA(S) DE ONTEM E HOJE: O “CABOCO” COME — Vejamos o exemplo do trecho em que João Ubaldo apresenta o universo do índio Capiroba, o personagem antropófago. — E aí podemos fazer a inevitável associação com o Movimento Modernista de 1922... — disse o meu interlocutor. — O narrador sem cabeça será sempre um antropófago. Acho que você precisa aprofundar essa idéia, aprofundar as conexões que se podem estabelecer entre esse narrador antropófago e toda aquela estética antropofágica... — Como assim? — e franzi o cenho. — Não estamos aqui justamente para isso? Talvez você é que deva aprofundar a sua questão... — provoquei, mas o meu interlocutor pareceu não se abalar. — Quem discutiu isso foi a Eneida Leal Cunha, que num momento de seu texto aproxima Capiroba e todo o ambiente antropofágico que o cerca com o Manifesto Antropofágico e os demais textos que compõem o Modernismo de 20. Aproxima-os e em seguida os afasta. Aproximaos invocando as suas características inclusivas: deglutem ambos os aspectos recalcados de nossa formação, o que ela chama “os baixos começos”; aproxima-os 478 — Faço aqui como fez Ettore FINAZZI-AGRÒ, que não se deu ao trabalho de estabelecer, em seu ensaio, uma distinção entre antropofagia e canibalismo (vendo este último como a antropofagia em sua forma americana) e tratou-os assim, como sinônimos, mesmo sob o risco de uma vaia etnológica. A indistinção não o impediu, no entanto, de esboçar alguma genealogia para o termo canibal, às páginas 618 e 619 (“A identidade devorada”, op. cit., p. 618). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 275 a crítica que ambos fazem à eliminação da diversidade na formação de nosso “povo”. Agora passo a palavra à própria Eneida Leal: ... Apesar dos pontos de convergência, o lugar de Viva o povo brasileiro e de João Ubaldo Ribeiro é outro, muito diverso do lugar de onde fala Oswald de Andrade (...). A antropofagia, em um romance da década de 80, já não tem o sentido programático e político, mesmo no âmbito da metáfora cultural, que foi possível e necessário a Oswald. Radicalmente contrário aos primeiros textos coloniais e colonizados que investiram contra a antropofagia, João Ubaldo Ribeiro está também relativamente distante de Oswald. Compõe a sua fábula antropofágica, mas já não atribui ao traço antropofágico valor negativo ou positivo. (...) A antropofagia havia sido condenada ou defendida por vozes opostas mas igualmente autorizadas (...). Em Viva o povo brasileiro já não é viável uma voz autoritária ou autorizada, a apontar caminhos. A sua estratégia é deixar falar o dominado da cultura e da história.479 — Observe — disse eu — que estamos colocando lado a lado duas PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA antropofagias, a de 22 e a de hoje... — Hoje, não! A de 1984, data em que o livro foi publicado! — É verdade... Mas utilizo aqui a pergunta do Ettore Finazzi-Agrò: “... de que forma se manifesta e o que nos comunica a antropofagia hoje? O que ela pode explicar-nos de nós mesmos, de nosso relacionamento com o fora-de-nós?”.480 — Temos então três tempos: 1922, 1984 e este tempo de agora... — Sim, mas eu não me aventuro a falar desse “tempo de agora”. Isto se chama pensamento de risco, ou riskfull thinking, nas palavras do Gumbrecht.481 O ensaio do Ettore Finazzi-Agrò, de certo modo, decidiu abordar a antropofagia para falar, ainda que breve e cautelosamente, e nas suas últimas linhas, do estado atual da Europa diante do multiculturalismo e da necessidade de se “chegar à harmonia 479 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 191-192, realcei. 480 “A identidade devorada...”, op. cit., p. 616. 481 — “Universities are important because they allow scholars to practice ‘riskfull thinking’ — to pursue ideas and research that won't produce just one or a few easy answers but that will, on the contrary, often lead to more questions, he [Hans Ulrich Gumbrecht] said” (John SANFORD, “’Elementary pleasures’ and ‘riskfull thinking’ matter to Gumbrecht”, Stanford Report, 17 nov. 2000, disponível em: <http://news-service.stanford.edu/news/2000/november29/gumbrecht-1129.html>, acesso em 6 dez. 2005). E traduzo: “As universidades são importantes porque permitem aos estudantes a prática do ‘pensamento de risco’ — para buscarem idéias e pesquisas que não irão resultar em uma ou algumas respostas fáceis, mas, ao contrário, poderão conduzir a mais questões”. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 276 somente mediante uma plena assunção da Diferença, uma assimilação sem hegemonia, uma incorporação que dá corpo ao Outro”.482 Isto é riskfull thinking. — Isto é utopia... O que diz o próprio João Ubaldo acerca disso?... Se é que ele diz alguma coisa acerca disso... — pergunta o interlocutor. — Diz: “Os modernistas paulistas tiveram bem pouca influência sobre mim”. 483 E disse também, numa entrevista mais antiga: — No meu livro Viva o povo brasileiro tem um personagem, um caboclo mestiço de índio com negro, que come holandeses. Antes comia portugueses, depois passou para holandeses. Admito que isto esteja ligado a essa tradição antropofágica de Macunaíma, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Semana de Arte Moderna. Quem trabalha na área cultural brasileira é herdeiro da Semana de Arte Moderna, quer queira, quer não (...). Posso admitir isso como elemento inconsciente do que fiz. Mas, na realidade, quis fazer uma gozação mesmo.484 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Ele admite a relação com essa tradição modernista, mas não se sente, ou não quer se sentir, devedor dessa tradição... — disse ele. — E retomo o que você disse... Veja que Lúcia Helena concorda que a antropofagia em Ubaldo não é resultado de influência, embora constitua, sim, uma retomada como estratégia não positiva ou negativa... Um mero “passar a palavra a outrem”... Ouça. A opção de João Ubaldo é um achado pessoal, mas é também a retomada (...) de um veio marioandradino (e observe-se que não falo de influência): aquele veio que permite a ambos apresentar a divisão entre a colônia e o não colonial, entre o mítico e o real, entre o literário e o social, entre o “meu” discurso e o do outro, entre a história “oficial” e suas contraversões como algo que necessita ser focalizado a partir de uma perspectiva de desmascaramento paródico e do resgate alegórico de vozes culturais silenciadas.485 — A dificuldade de João Ubaldo Ribeiro em inserir-se em uma determinada tradição literária modernista, de sentir-se devedor de uma influência, tem mais a ver com um seu comportamento bem particular: não solenizar nenhum aspecto de sua literatura — e lembrei-me de algumas declarações que ele fez à imprensa. — Sobre Capiroba, veja o que diz o próprio João Ubaldo acerca do nome de seu índio: 482 “A identidade devorada...”, op. cit., p. 625. 483 “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002. 484 Airton GUIMARÃES, “O romancista baiano passa os olhos sobre a cultura brasileira...”, Estado de Minas, 17 mar. 1990. 485 “Viva o povo brasileiro — a questão do nacional...”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 277 — Capiroba ia ser Capiroca. Piroca na minha terra não tem o significado de pênis, como no resto do país. É apelido de Pedro (...). Conheço pelo menos um Piroca. Tinha um até que era tribuno popular (...). Mas o apelido vinha atribuído de tensões, então mudei para Capiroba. Os holandeses... foi uma brincadeira. Sempre quis sacanear com eles, e quando o livro foi traduzido eles adoraram.486 — Vejo aqui aquilo a que você se referiu lá atrás — disse o meu interlocutor —: a operação de des-aprofundamento, des-solenização que ele realiza ao falar de seu próprio universo ficcional e das possíveis relações que se podem estabelecer entre esse universo ficcional, a cultura e a História: “Os holandeses... foi uma brincadeira. Sempre quis sacanear com eles”, diz João Ubaldo, sempre gozador-de-si.487 Veja só... — E agora você imagine como fica um trabalho acadêmico que tenha como tema a cultura holandesa diante de fenômenos literários tais como a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA antropofagia do caboco Capiroba... Como fica um trabalho diante de uma declaração dessas vinda da boca do autor... — Se os textos ficassem na dependência de uma chancela de origem autoral que os legitimasse — disse ele —, muitas teses instigantes não teriam sido escritas: o que seria mesmo uma pena... — Muitas vezes os autores são os menos autorizados a falar de seu trabalho... — João Ubaldo não pensa assim — disse ele, com uma entrevista na mão. — Ouça — e leu. José Carlos de Vasconcelos — Sempre disseste que O feitiço da ilha do Pavão era uma simples história divertida, às vezes brejeira, sem nenhum outro significado. Não admites que ele também é uma metáfora (...)? João Ubaldo Ribeiro — ... prefiro que o leitor veja por si mesmo as metáforas. Se precisar explicá-las, serão más metáforas. Acho que, com o tempo, fui inventando (...) uma série de respostas um tanto cínicas para perguntas muito repetidas, tais como “pode dizer-nos alguma coisa sobre o seu livro?”. Aí eu digo a primeira besteira que me ocorre e, de tanto repetir essa besteira, ela se torna automática. Para ser perfeitamente honesto há uma vasta falsa modéstia no que eu falo a respeito de meu trabalho, mas tenho boas razões para isso: não é decoroso 486 Nahima MACIEL, “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997. 487 — E a explicitação da irônica preferência do narrador pelos holandeses ressurge no romance Miséria e grandeza do amor de Benedita — disse ele. E leu: — “... melhor um holandês novo com medo de ser comido de moqueca do que um português velho, que nem no couro mais daria”, diz o narrador (p. 30). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 278 o sujeito sair por aí, rasgando-se em elogios a si próprio ou impondo visões sobre o que faz. Eu gosto do que faço e tenho lá minhas pretensões (esse “lá” aí já é a falsa modéstia em operação (...)). Minha acção, pois, é devolver a peteca ao freguês. Ele que ache alguma coisa mais no Feitiço do que uma simples história divertida. Se não achar nada, terá sido, das duas, uma: ou é mau achador ele, ou sou eu mau carpinteiro. Ou ambas as coisas; nada impede que o leitor tenha um nível de incompetência comensurável com o do escritor.488 — De modo que eu — continuou ele — não marcaria assim uma hierarquia entre os mais ou os menos autorizados a falar de um texto. A voz do autor deve ser apenas mais uma voz a se levar em consideração, como você já observou em nossa conversa sobre o Sargento Getúlio, ao associar uma fala de Ubaldo a uma leitura de Malcolm Silvermann, contrapondo ambas à crítica de Zilá Bernd, lembra? Não a voz principal nem mesmo a voz de origem, mas apenas mais uma voz...489 E agora vamos voltar? Temos muito trabalho... Você, aliás... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — E muitas vozes... Quero mostrar a você um outro tipo de canibalismo discursivo, este bem mais radical, já que o narrador está incorporando não apenas um ponto de vista ideológico, como também um modo de raciocinar e de se expressar. O narrador está tentando dar conta da confusão mental em que ficaram os índios depois que os padres portugueses tomaram conta da terra e iniciaram os trabalhos de catequização. Estamos dentro de Viva o povo..., em Vera Cruz de Itaparica, a 20 de dezembro de 1647. Ouça: ... Depois da redução, viu-se que alguns eram maus e outros eram bons, apenas antes não se sabia. Mulher má não quer ir à doutrina, quer andar nua, não quer que o padre pegue na cabeça do filho e lhe besunte a testa de banha esverdeada, dizendo palavras mágicas que podem para sempre endoidecer a criança. Feio, feio, mulher má. Mulheres boas não falam com mulher má, mulher má fica sozinha, marido de mulher má também homem bom, mulher má cada vez mais sozinha, fica com gênio muito ruim, parece maluca. Cada vez mais maluca, castigo do céu porque é mulher má. (p. 40) — Parece-me que o narrador está envolvido em uma tarefa dupla: reproduz o pensamento dos padres através de um modo de expressão dos índios. 488 José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999. 489 — Ver o Capítulo 2: “A infância barroca e a linha reta de Getúlio”, p. 63, a nota no 94. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 279 — Exatamente — e eu me animei com a síntese de meu interlocutor.490 — O narrador abandona a sua sintaxe de narrador, se é que se pode falar aqui de uma sintaxe de narrador... — Talvez se possa falar da sintaxe que não é a do narrador, e só. Você não disse que o seu narrador é sem cabeça?... Quem não tem a própria cabeça não tem a própria boca e não tem a própria voz. Isso de certo modo contraria o que diz a professora Eneida Leal Cunha, não? Ouça o que diz ela: ... Presente e atuante, o narrador se torna mais visível porque, à medida que narra, constitui um discurso que é sempre igual a si mesmo, homogêneo e unívoco, e ainda porque, contrastando com a outra linhagem, mantém quase sempre estáveis e explícitos os limites entre o seu registro e as variações dialetais das personagens (...).491 — Você tem razão — disse eu —, mas não exatamente contraria. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Contraria o que diz a Eneida, porque o narrador, na verdade, não mantém nunca um discurso que é sempre igual a si mesmo. Pelo contrário: não é o narrador que intervém nos discursos dos personagens da linhagem dos “sem voz”, emprestando-lhes, simbolicamente, a sua fala de narrador, doando-lhes, e somente, dessa maneira, uma voz. É o contrário. São os personagens que levam a sua voz até o narrador, emprestando-lhe um jeito de se expressar. O narrador não tem cabeça e, a rigor, não tem uma voz unicamente sua, como você bem lembrou; ele é sempre a voz do outro, seja este outro o da linhagem dos “bem falantes” donos do poder ou da linhagem dos “aparentemente sem voz”. O narrador fala, sim, como diz a Eneida, no lugar de seus “personagens sem voz”, mas a linguagem que ele utiliza não é uma que seja sua e sempre igual. Ele se vale da linguagem oralizada e particularizada do índio e do negro — e parei. — Não, não. Não pare; continue. — A própria Eneida Leal Cunha, mais adiante — e eu obedeci —, vai apontar o artifício do discurso indireto livre como a maneira narrativa pela qual o narrador se expressa. Veja esse caso, em que o narrador muda de discurso e 490 — E o mesmo acontece aqui neste trecho dO feitiço da ilha do Pavão: o pensamento dos padres através de um modo de expressão dos índios, com a diferença de que o discurso, neste exemplo, é direto. Veja o índio Balduíno Galo Mau: “Índio anda nu porque é nocente, (...) não sabe mardade, padre cura disse, padre cura não se poquenta com índio nu!” (p. 40). 491 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 176. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 280 começa a falar e a pensar como um índio falaria e pensaria, lançando mão de um léxico básico. Lembremo-nos de que os índios estão justamente em processo de alfabetização, aprendendo as primeiras palavras... Esse discurso “índio”, no entanto, traz consigo o simplismo daquele modelo de catequese. Veja: “Matar um bicho: pôr na lista do Mal? Não. Sim. Não. Sim, sim. Não, a depender de outras coisas da lista do Mal e das coisas da lista do Bem.492 Sim, talvez” (p. 39). Diz a Eneida Leal Cunha: “... o narrador (...) habilmente molda a própria voz ao ponto de vista da personagem”.493 A questão de fundo, no entanto, não é do índio e não lhe diz respeito. Essa questão de fundo é a questão do branco obsedado pela eternidade e pela expiação dos pecados. Essa encenação do narrador não tem apenas a função de bem descrever o comportamento esquizofrênico a que ficaram submetidos os índios, mas sim a de criticar, a partir de dentro do discurso do oprimido, o conteúdo perverso e simplista do pensamento do opressor. O PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA narrador, aqui, está ingerindo, digerindo e devolvendo o discurso colonizador,494 e ele faz isso incorporando o modo de expressão dos índios, reproduzindo essa ingestão e essa digestão tal qual faria, e tal qual provavelmente fez, um nativo diante do pensamento absurdo da catequese. “... se não puder derrotar o outro (...), então siga mastigando sua língua, destroçando seus discursos, abocanhando suas ideologias, filosofias, obras de arte e pensamento”, diz Ettore Finazzi-Agrò.495 492 — “Trepar com todo mundo dá ou não dá inferno? Comer filho dá inferno?” Abri aqui esta nota para citar a personagem-protagonista dA casa dos Budas ditosos em dilema semelhante quanto à simplicidade, que neste caso é irônica, e não ingênua como em Viva o povo brasileiro. O que está em jogo, em ambos os casos, são os desejos e as conseqüências advindas de sua satisfação. “Aliás, vamos deixar de lado esse negócio de inferno”, continua a mulher, “ainda conservo um certo grilo de inferno” (p. 47). 493 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 187. 494 — O poeta Haroldo de CAMPOS — eu disse, abrindo com a mão um parêntese —, comparando Viva o povo brasileiro a Catatau, de Paulo Leminski, publicado em 1975, escreveu, acerca das duas obras: “Tudo as separa e tudo as aproxima. O compacto, complexo e às vezes tautológico livro-limite de Leminski e o desmedido, exorbitante, caudaloso romancerio de Ubaldo. (...) Não por acaso, nos dois livros, a antropofagia é tematizada como processo simbólico. Na irreverente devoração canibal, a História Brasílica (num caso), senão o próprio logos do Ocidente para aqui transplantado (no outro), são objeto de trituração. Digesto indigesto. Por um lado, o ‘caboco’ Capiroba, guloso da carne macia e branquinha dos holandeses, criação rabelaisiana do bardo Ubaldo. Por outro, o monstro Occam, ogre filológico, mastigador de textos, papaletras e papa-línguas, fantasmagoria sígnica do rapsodo Leminski. Por cima das muitas diferenças de concepção e de fatura, esse vínculo voraginoso é mais um elo emblemático que os liga” (“Uma leminskíada barrocodélica”, Folha de S. Paulo, 2 set. 1989). 495 “A identidade devorada...”, op. cit., p. 622. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 281 — Sim — disse ele. — O narrador é bastante feliz na sua crítica justamente porque em nenhum instante ele nomeia de maniqueísta esse discurso do opressor. O narrador toma emprestada a cabeça do índio e fala pela boca do índio as palavras absurdas e o pensamento absurdo do branco colonizador. Ele apresenta esse discurso em funcionamento e toma a enunciação desse discurso para si, trazendo-o à própria boca, que não é própria, mas a boca de um outro... — Disse-o bem, meu caro. Em outro trecho o narrador está contando do medo de Capiroba: estar possuído, “permanentemente carregando algum diabo do cão do inimigo do belzebu do tinhoso das profundas nas entranhas e na mente” (p. 40-41). O nome do “bicho preto”, do jeito que se apresenta, em fileiras de substantivos e adjetivos, demonstra que o narrador não está fazendo mais que repetir a ladainha que julga ter o caboclo Capiroba ouvido da boca dos padres. — Há um exemplo parecido no romance Sargento Getúlio, não há? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Sim. É Getúlio nomeando o preso que ele precisa transportar de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros: não são as suas palavras, do sargento, mas palavras que ele ouviu de seu chefe e, como um macaco, repete. De todo modo, o caso de Getúlio já vimos: trata-se de um narrador em primeira pessoa, ou seja, o narrador é um personagem que conta a história de uma vida que é a sua própria vida, ou, ainda segundo os termos de Friedman, “o eu é o protagonista”.496 A mesma operação de crítica ao discurso opressor pode ser realizada não apenas pela boca do oprimido, mas através do próprio discurso opressor e pela boca mesma do opressor, ou melhor, do narrador a reproduzir esse discurso no indireto livre. Veja este desmascaramento nO feitiço da ilha do Pavão: ... o mestre de campo levantou-se e (...) expôs primeiramente o que os mais modernos sábios, estudiosos, cronistas e navegantes concordavam ser a verdade sobre os selvagens. (...) ... ostentam espantosa indolência e falta de indústria, que os faz viver sem veste ou agasalho e nada guardar (...). ... deve-se sempre trazer na memória sua natureza (...) traiçoeira, ardilosa, velhaca e mentirosa (...). Finalmente, porque foram criados no mato como bichos, não vêem nada de mais naquilo que para os brancos é gravíssimo excesso, pecado ou motivo de desonra, não havendo entre eles (...) ladrões, cabrões ou patifes em geral (...). (p. 61-62) 496 “’I’ as protagonist”, citado por Ligia Chiappini Moraes LEITE, “Narrador protagonista (’I’ as protagonist)” / “A tipologia de Norman Friedman” (p. 25-70), in O foco narrativo — ou a polêmica em torno da ilusão, São Paulo, Ática, 2002, p. 43. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 282 — Mas eu gostaria de voltar ao Viva o povo brasileiro e às estratégias canibais do nosso narrador sem cabeça... Posso? — Pode, e comece falando da antropofagia de Capiroba — pediu ele. — Era justamente esse o meu intento. Estamos, eu e você, pensando pela mesma pena... Vejo o seguinte: até um pouco antes de o narrador entrar no tema propriamente dito da antropofagia de Capiroba, ele elenca algumas histórias de selvagens perversos, apontando os canibais de outrora como seres endemoinhados, “gentios em estado de brabeza e nenhuma cristandade” (p. 41), com “dentes limados em serra para melhor rasgar a carne inocente” (p. 42), e o canibalismo como prática imperdoável aos olhos de Deus. O narrador começa então a tratar do tema a partir do ponto de vista dos cristão devorados, e as vestimentas com as quais a antropofagia se apresenta são as da brutalidade e do primitivismo. É esse o tom do narrador. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Quase escandalizado... — diz ele. — Sim, escandalizado. Quando a narrativa penetra no universo de Capiroba, o nosso narrador sem cabeça simplesmente se adapta à sua nova posição: a posição de estar ele incorporando o índio Capiroba e carregando nos ombros a consciência de Capiroba e nas costas o seu universo simbólico. E aí acontece uma inversão curiosa: a antropofagia, para Capiroba, um primitivo, é tratada da maneira mais requintada, diferentemente do caso anterior, em que o canibalismo, sob a ótica dos padres brancos, seres superiores e civilizados, é tratado do modo mais torpe e selvagem. Quando o narrador começa então a falar dos hábitos antropofágicos do nosso índio, ele elenca, como se estivesse a listar pratos da culinária tradicional, tipos de preparo para as carnes dos padres. — Fizemos, de certo modo, a nossa distinção particular entre antropofagia e canibalismo... — disse ele. — Estou vendo aqui, à página 42: os miúdos dão ensopados e “moqueca de miolo bem temperada na pimenta”, além da “farofinha de tutano” e dos “culhõeszinhos na brasa”. O vocabulário e o tom não diriam mesmo tratar-se de pratos feitos à base da carne dura dos portugueses... — A antropofagia então, subitamente, com a mudança do ponto de vista, passa a ser uma outra antropofagia: uma antropofagia cultural. Na página 43 o narrador sofistica ainda mais a prática: apresenta uma lista das pessoas comidas pelo caboco; uma lista de nomes próprios, com direito a sobrenome e ainda os cargos e as patentes da criatura saboreada. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 283 — Esse artifício desbrutaliza a antropofagia de Capiroba — diz ele. — Justamente — e eu completo —, e isso porque não trata os comidos como objetos (como crêem os padres que os canibais façam), embora também não os trate como pessoas (como os próprios padres afinal vêem os seus companheiros de ofício, todos eles vítimas inocentes, pobres cristãos). O narrador vai tratar os prisioneiros almoçados e jantados como variedades de pratos, com nomes e pequenas histórias, e dessa maneira os vai personalizar e individualizar. — Não se tratará então de um pedaço de carne — começa o meu interlocutor — nem tampouco do quartel-mestre Lourenço Rebelo Barreto, mas sim do “quartel-mestre Lourenço Rebelo Barreto, saudoso pela textura inigualável de sua alcatra”, ou do jovem biscainho Jorge Ceprón Nabarro, “de laivo azedo e enérgico, tutano suculento, triplas amplas” (p. 43 e 44). Trata-se de uma nova leitura para o prato “filé à(de) Oswaldo Aranha”: é o próprio Oswaldo o servido... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Isso — e não pude deixar de achar alguma graça àquilo. — Veja: a antropofagia está longe ainda..., e esta idéia é antropológica por natureza, ... a antropofagia está longe, dizia, de uma prática bárbara, já que o fato de se decidir comer alguém de modo cru ou cozido já é em si um fato cultural, bem como a classificação do corpo em partes comíveis e não-comíveis... Comer com ou sem discursos também constitui uma demarcação entre civilização e barbárie. Ouça este trecho do romance Vila Real, de 1979: ... não deviam ter comido as carnes dos homens de Godofredo, e de fato comeram, porque essa proibição existe desde o tempo dos avós de todos os avós, ao que se sabe. (...) O certo é que comeram homens como se fossem índios ou urubus (...). Diz o povo que quando os índios comiam gente, faziam discursos aos comidos e explicavam com preocupação que a dita gente era mesmo o de comer. Neste caso, comeram sem palavrear, só comeram. (Vila Real, p. 95) — Também o fato de um canibal se recusar a comer alguém — disse o interlocutor —, por ser esse alguém indigno de ser comido, configura um dado cultural... Lembro-me do que escreveu o Sergio Vilas Boas: ... nem os índios nem o caboco Capiroba comiam covardes. Os rituais de antropofagia tinham um caráter que Darcy Ribeiro chama de “cultural e coparticipado” (...). Um dos primeiros visitantes do Brasil, o alemão Hans Staden, 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 284 foi levado três vezes a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência.497 — A esses requintes se entrega a culinária sofisticada de Capiroba, que deixa então, relativamente falando, de ser um bárbaro. — Ocorreu-me — adiantou-se o meu interlocutor, desta vez sério — que você também deveria relacionar esse feitio canibal com a teoria do plurilingüismo no romance. Está me ouvindo? Estou falando do Bakhtin, que você inclusive já citou... Não faça essa cara, eu não estou aqui para avaliá-lo. Eu sou o seu interlocutor, ou melhor, sou o interlocutor que você é, ou deveria ser... de você mesmo. Talvez a mais produtiva relação que se possa estabelecer com esse feitio canibal seja esta: o fato de ter esse feitio canibal um forte componente humorístico, que, para Bakhtin, é a forma, e aqui cito, “exteriormente mais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA evidente e, ao mesmo tempo, historicamente mais importante de introdução e organização do plurilingüismo”498 no romance. Ele usa como base alguns exemplos do romance humorístico inglês, onde podemos localizar uma “evocação humorístico-paródica de quase todas as camadas da linguagem literária escrita e falada de seu tempo”,499 e utiliza muitos exemplos do romance Little Dorrit, de Dickens, de 1891. Ora, penso que também a partir de Viva o povo brasileiro se podem identificar e descrever essas tais “camadas da linguagem literária escrita e falada de seu tempo”. O livro corre três séculos, do dezessete ao vinte, não é? Escreveu o Márcio Moreira Alves que a linguagem de Viva o povo... “vai mudando com os séculos, à medida que se desdobra a história das gerações da família que o dinheiro embranquece e que serve de fio condutor da trama”.500 No livro encontraremos, usando as palavras do Bakhtin, uma verdadeira “enciclopédia de todas as camadas e formas da linguagem literária”.501 Você se lembra do que ele chama de “construção híbrida”? — perguntou o meu interlocutor bakhtiniano. 497 “João Ubaldo Ribeiro — o escritor carioca-baiano tenta conciliar duas metades de um Brasil cada vez mais incompreensível”, Gazeta Mercantil, 18 e 19 mar. 2000. 498 “O plurilingüismo no romance”, op. cit., p. 107. 499 Id., ibid. 500 “Ler por prazer”, O Globo, 25 dez. 1997. 501 “O plurilingüismo no romance”, op. cit., p. 107. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 285 — Sim, lembro-me, sim, e sou capaz de dar um exemplo tirado do Viva o povo... e outro de Miséria e grandeza do amor de Benedita. Ouça esse trecho em que o narrador, não inteiramente sob a focalização do caboco Capiroba, já que não utiliza a sua específica linguagem, mas bastante simpático ao ponto de vista do índio, explicita a sua preferência pela carne holandesa: (i) ... Rês melhor que essa, tão pálida e translúcida, encorpada e ao mesmo tempo delicada ao tato e ao delibamento, ao mesmo tempo rija e macia, ao mesmo tempo salutar e saborosa, ao mesmo tempo rara e fácil de caçar, rês como essa não havia cá nem jamais haveria, cabendo ao homem aproveitar sem questionar o que lhe dadiva a natureza, pois que do jeito que se dá se tira, não sendo outra a fábrica da vida. (Viva o povo..., p. 44) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (ii) A verdade, como não ignoram os grandes sábios, é muitas vezes inaceitável. Tanto assim que Lourival, evitando o olhar bisbilhoteiro dos circunstantes e fazendo um sinal enérgico para que a irmã o acompanhasse sem dizer palavra, entrou na casinha com ela... (Miséria e grandeza..., p. 10) — Observe — continuei, animado —, no caso de Viva o povo..., antes de tudo, a sofisticação da linguagem narrativa ao tratar de assunto outrora tão bizarro: o canibalismo, mas isso já frisamos há pouco... Observe agora um caso que bem se aplica ao que diz o nosso russo acerca da construção híbrida. Os trechos citados, e sigamos mais uma vez com as palavras de Bakhtin, dê-me o livro, “pertence[m] a um único falante, mas (...) na realidade estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos”.502 Os trechos realçados procuram representar uma fala difusa, veiculadora de um conteúdo didático, uma espécie de moral, de preceito. Há então dois tipos de discurso, o do narrador a sofisticar a antropofagia de Capiroba, em contraste com a rudeza de cores com que a arte de comer gente estava representada entre os portugueses; e em seguida o outro discurso, oriundo da linguagem comum, da opinião pública, do estoque compartilhado de ditos e desditos populares. O mesmo raciocínio de aplica ao trecho de Miséria e grandeza...: um narrador o tempo todo a recorrer a um estoque de conhecimentos oriundos dos antigos sábios, não poucas vezes citando Tulcídio e os antigos, e ao mesmo tempo um narrador incorporando o personagem Lourival diante do corpo defunto de Deoquinha Jegue Ruço. Entre os dois discursos, nenhuma fronteira 502 Id., p. 110. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 286 formal: convivem ambos dentro do mesmo período, e a “divisão das vozes e das linguagens”, diz Bakhtin, “ocorre nos limites de um único conjunto sintático”.503 — A presença de Capiroba como personagem antropófago fortalece e legitima a estratégia antropofágica do narrador sem cabeça, que por sua vez fortalece e legitima o projeto central de Viva o povo brasileiro, que é o de deixar falar o outro — disse o meu interlocutor, simpático à minha causa, e eu sorri, lembrando a ele outro personagem cuja voz já ouvimos aqui, o índio Balduíno Galo Mau, dO feitiço da ilha do Pavão, bem mais eloqüente que Capiroba, bem mais malicioso que Capiroba e tão tupinambá quanto Capiroba...504 E, em agradecimento, li para ele um comentário da professora Lúcia Helena, para quem os diálogos do livro, especialmente os travados entre Dafé, Patrício Macário, o Barão de Pirapuama e o negro Leléu, “apontam todos para um tema subjacente no qual insistentemente se pergunta: como nos vemos? Como vemos o outro (...)? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Como ele parece se ver e nos ver?”.505 5.3. JOÃO UBALDO FAZ CEM ANOS — Agora eu quero saber o seguinte — começou ele —: esse feitio canibal só é detectável na voz do narrador strictu sensu? Não se pode apontar como uma narrativa antropofágica, operada pelo narrador, a locução de um personagem em discurso direto? — Não. Nesse caso não há propriamente um feitio canibal, já que não é o narrador a falar: trata-se do próprio personagem a falar, a ser quem ele de fato é. Não há disfarces, pois a sua fala é legítima... — Tenho a dizer sobre isso duas coisas — começou o interlocutor, com um ar divertido diante de minha expressão curiosa —: a primeira diz respeito ainda ao que escreveu Bakhtin, para quem uma outra manifestação do 503 Id., ibid. 504 — “... índio tupinambá muito do péssimo (...), rastejador mestre, doutor dos matos, amigo de todas as ervas, conhecedor de todos os bichos, íntimo de todas as árvores (...), matreiro como oitocentos curupiras, mentiroso como um frade viajante, o maior entendido em aguardente de cana que se tem notícia, do fabrico ao desfrute” (O feitiço..., p. 31). 505 “Admirável mundo, o do povo”, Jornal do Brasil, 15 dez. 1984. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 287 plurilingüismo no romance é justamente o discurso direto dos personagens, que ele chama de as “palavras de outrem numa linguagem de outrem”.506 — Certo, certo, muito bem, mas aonde você quer chegar? O meu interesse aqui é o narrador, a voz do narrador, o discurso do narrador. Se entrarmos em considerações sobre as falas dos personagens, sobre o discurso direto dessas variadíssimas criaturas, esta conversa só vai acabar quanto estivermos eu e você a dar com as bengalas um no outro... — O seu interesse é a pluralidade dos discursos... E eu vou chegar ao narrador, só que por outro lado — disse ele —; pelo lado dos personagens. Veja: estudando a maneira como os discursos dos personagens variam, em sua sintaxe, sua ideologia, seu vocabulário, tom e ritmo, podemos também sustentar a existência de um feitio canibal que não se restrinja ao narrador, mas sim que contamine o narrador, vindo de seus personagens. Ouça o que diz o Bakhtin: “... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA as palavras de um personagem quase sempre exercem influência (às vezes poderosa) sobre as do autor, espalhando nele palavras alheias (...) e introduzindolhe a estratificação e o plurilingüismo”.507 — Não, não é o caso — interrompi-o. — Mas você acabou de me dar a oportunidade de observar o que eu talvez não tivesse observado não fosse essa sua idéia. Em Viva o povo brasileiro, quanto mais os personagens vão adquirindo a sua linguagem própria, menos vai o narrador misturar-se a esse discursos “deles”. — Agora fui eu que não peguei — disse o interlocutor. — Digo de outro modo: o narrador, antes de colocar em cena um personagem em sua plena atividade falante, totalmente dono de seu discurso, com direito a discurso direto, com direito a ter lá o seu travessão, digamos... Antes disso, o narrador exerce, com potência narrativa total, o indireto livre, misturando os discursos, falando, para citar o seu autor russo, “... por si na linguagem de outrem, e por outrem na sua própria linguagem”,508 os itálicos são dele... — Os itálicos são russos... — Sim, os itálicos são russos... São as apresentações. Depois que os personagens são então apresentados através do narrador, podemos notar com 506 “O plurilingüismo no romance”, op. cit., p. 119. 507 Id., p. 120. 508 Id., p. 119. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 288 clareza que este último vai aos poucos se retirando da cena, em meio a tanto palavrório de personagem, personagens, em geral, seguindo os passos da idéia da Eneida Leal Cunha, oriundos da linhagem dos poderosos e “bem falantes”. Essa diminuição da “personalidade” do narrador funciona como um eficaz contraponto ao exibicionismo retórico de suas criaturas. — Discordo — disse o interlocutor. — Certo, estamos aqui para isso, mas antes veja lá os exemplos que tenho. Ah, eu já citei exemplo semelhante quando lhe falei antes do trecho da embarcação bordejando “a mancha escura dos arrecifes submersos”, e os negros se levantando “para manejar o cordame”, em que você observou a existência de um vocabulário específico de navegação. Aquele caso, no entanto, contrapunha um discurso do narrador em indireto livre, incorporando Ambrósio, e em seguida a descrição das manobras da embarcação. Os exemplos que tenho agora PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA contrapõem, desta vez, o discurso direto dos personagens, verborrágicos, com uma discreta entrada descritiva do narrador, que baixa o tom inflamado das ideologias encaixadas nos discurso e, assim, deixa evidentes o seu absurdo e o seu destempero. Dou-lhe dois exemplos longos, antes que você fique bravo comigo: (i) ... — Querem os naturalistas ímpios — disse muito alto [o cônego D. Araújo Marques] — fazer revogar a existência do elemento flogístico, como querem revogar a própria existência divina, é uma analogia inevitável para eles. Mas não, senhor guarda-livros, a mera lógica, sem o recurso à fé, desmoraliza-os. A mera lógica! Agora mais próximos da costa da ilha, podiam ver alguma praias, casinholas, plantações, longas e recurvas cercas de ossos de baleia, uma ou outra canoa encalhada na maré baixa. O dia não estava bonito, mas o mormaço quase se fora (...). (p. 67-68) (ii) ... — (...) A decadência da autoridade pública [diz o cônego], a flacidez do espírito de honra e de decência, o pactuar com a insolência das classes servis, (...), até mesmo a falta de uma verdadeira guerra, que eduque a grande massa do povo e lhe tempere a fibra, tudo isto, estimado Barão, é-me causa de grande receio e pena por terra como esta, que, em mãos firmes e cônscias das verdades fundamentais, muito teria a dar à civilização européia que aqui os bons mourejam por plantar e os maus por deitar abaixo. Abyssus abyssum invocat, Senhor Barão, não sei verdadeiramente onde vamos parar. O sudeste bateu mais forte, o chapéu do cônego aflou as abas como um grande morcego. E ele, os olhos muito abertos e os cotovelos no balaústre, continuou a discursar com veemência, enquanto a barca, mexendo suas rodas em compassos diferentes, aprumava para Amoreiras. (p. 69) 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 289 — Viu como o narrador surgiu em meio ao palavrório geral como uma câmera iniciando uma descrição afastada? Agora me diga: por que discorda? — Porque mesmo nesse discurso “neutro” e “liso” do narrador, nesse discurso “discreto”, podemos detectar o chamado plurilingüismo bakhtiniano, o que faz desse discurso algo apenas aparentemente “neutro”. O narrador diz, no exemplo dois, que o chapéu do cônego aflou as abas. Esse termo está em perfeita sintonia com o tom geral do discurso anterior, do próprio cônego. Em seguida, caracterizar o movimento, digamos, aflante do chapéu do sujeito como semelhante a um grande morcego pode sugerir aqui que o olhar do narrador se deslocou então para o ponto de vista de quem estava diante do cônego, ou seja, Perilo Ambrósio, Barão de Pirapuama, cuja antipatia pelo cônego fica clara justamente graças a essa comparação com o morcego. — Estou pensando... O que diz o Bakhtin sobre isso? Era a sua intenção PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA citá-lo, não? — provoquei. — Sim. Diz ele que, mesmo quando, “numa observação superficial, a linguagem do autor parece una e comedida, direta e francamente intencional, no entanto, atrás desse plano liso e unilíngüe descobrimos uma prosa tridimensional, um plurilingüismo profundo que responde aos imperativos do estilo, definindoo”.509 Bakhtin ainda refere as chamadas zonas particulares — continuou ele, animando-se —, compostas de semidiscursos oriundos dos personagens, compostas de pedaços de estilo, de termos e expressões que migram do discurso dos personagens para o discurso do autor. Bakhtin chama autor, nós chamaremos narrador. Ele escreveu isso numa outra época, antes de o autor ser esfaqueado pelo Barthes, que operou a separação entre o autor e sua obra e cometeu, assim, o crime perfeito.510 A Eneida Leal Cunha, que você citou antes, diz que os registros lingüísticos característicos de cada personagem se generalizam, “borrando as fronteiras entre o discurso do narrador e os discursos de personagens”.511 — Há, de todo modo, nos exemplos que dei, uma mudança de cor entre os discursos, e essa mudança de cor revela-se, ao final, produtiva — insisti. — Ah, e 509 Id., p. 120. 510 — Sobre isso, o texto de Roland BARTHES, “A morte do autor” (p. 49-53), in O rumor da língua, Lisboa, Edições 70, 1984 — e o meu interlocutor o encontrou debaixo de uma pilha de livros. 511 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 162. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 290 antes que eu me esqueça: você disse mais lá atrás que tinha a dizer duas coisas sobre o discurso dos personagens. A primeira você já disse: o discurso dos personagens pode ser também um modo de manifestação desse feitio canibalesco. Esse discurso apenas não provém diretamente do narrador, mas o ilustra e o complementa, se é que entendi... — Sim, entendeu. — E a segunda? — Para a segunda coisa — disse ele —, eu pedirei a você que seja mais, um pouco mais ousado em sua análise... Quando não é um personagem a falar, mas o narrador a falar em indireto livre tal como se fosse ele o personagem, você nos diz que está o narrador incorporando um personagem, na verdade o seu discurso, e, a depender da força desse discurso, uma outra cultura, muito bem. E quando não é o narrador a falar lá em seu indireto livre, mas o personagem, com PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA toda a especificidade de sua linguagem, eu lhe pergunto: quem é que está, então, aí, escondido, mais uma vez, além do narrador? — Além do narrador? Provavelmente o escritor... — E eu senti novamente essa idéia sendo produtiva... Já tínhamos conversado sobre isso antes, e agora esse assunto reaparecia, se é que chegou alguma vez a desaparecer da conversa... — Penso que sim. E nesse caso teremos o mesmo fenômeno: a capacidade do escritor, e aqui falo do escritor mesmo, do baiano João Ubaldo Ribeiro, de, através da sua escrita, exercer plenamente essa antropofagia narrativa. — E ele continuou, um pouco sem graça: — Eu cheguei a reagir a esse movimento de entrada no mundo da biografia pública quando você levantou esse assunto lá em nossa conversa sobre Sargento Getúlio, Setembro..., o Diário do farol, O sorriso do lagarto e Vila Real, lembra-se? De certo modo ainda sou resistente a essa idéia, mas gosto de levantar essa bola... saber se você é capaz de um bom chute... — Sim, você referiu “os perigos do recurso fácil ao biografismo como válvula de explicação do universo romanesco”.512 Nunca mais me esquecerei dessas palavras... De todo modo, estamos ambos, como você já observou, mudando muito ao longo dessa interlocução, não é? E esta idéia de esbarrarmos no escritor significa torná-lo, a ele também, um personagem de toda essa grande diegese... — e comecei a pensar nas declarações públicas de João Ubaldo Ribeiro, 512 Ver Capítulo 2: “A infância barroca e a linha reta de Getúlio”, p. 48. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 291 em suas entrevistas e em seus artigos auto-referentes. Pensei também no que escreveu a professora Eneida Maria de Souza, referindo-se à... ... presença do autor não mais como ausente do texto, mas na condição de ator e de representante do intelectual no meio acadêmico e social. Preserva-se, portanto, o conceito de autor como ator no cenário discursivo, considerando-se o seu papel como aquele que ultrapassa os limites do texto e alcança o território biográfico, histórico e cultural.513 — Você acredita que esse tipo de operação inclusiva pode ser feito? — perguntou o meu interlocutor, retirando-me de meus devaneios. — Ele já está sendo feito... — e continuei convicto da existência, à nossa frente, de um grande campo de ação. Eu pensava no que eu havia conversado com o meu interlocutor acerca da marca “João Ubaldo Ribeiro”, com as aspas, e na figura necessária do escritor. Bem depois eu fui ler o texto da professora Eneida PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Maria de Souza e vi o que ela diz acerca disso: “A figura do escritor substitui a do autor, a partir do momento [em] que ele assume uma identidade mitológica, fantasmática e midiática”.514 Eu disse então a ele: — Quando vemos um personagem como a Dadinha, por exemplo, gangana velha, mulher que no dia em que faz cem anos morre... Quando assistimos ao verdadeiro espetáculo de encarnações e testemunhos operado por essa estonteante e desvairada personagem às vésperas de sua morte, estamos frente a frente não mais com as capacidades metamorfoseantes do narrador, mas do próprio escritor João Ubaldo, que ali, com o discurso de Dadinha bem seguro no bico da pena, teve de lançar mão de inúmeros registros culturais, identificáveis nos mais variados tipos de discurso, e incorporar todos eles através de sua “gangana velha”. Você tem razão, meu caro interlocutor. E eu, que em alguns momentos não cheguei a acreditar muito nessa nossa interlocução... — É mesmo? Você ainda não viu nada... Ainda vamos discordar muito — disse ele. — Continue, estou gostando. — Certo. Talvez não haja mais em trecho algum de toda a obra romanesca de João Ubaldo Ribeiro um momento em que ele mais teve de ser, literalmente, trezentos, quatrocentos, quinhentos e cinqüenta para lograr chegar ao resultado a 513 “Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 46. 514 Id., p. 47. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 292 que chegou com Dadinha: a representação máxima do plurilingüismo de João Ubaldo, desse feitio canibal do próprio João Ubaldo e de sua escrita como um todo. Veja você como o narrador resume para o leitor as linhas mestras do discurso de Dadinha em Viva o povo...: ... Compreenderam então que Dadinha ia mesmo morrer e se ajeitaram para aprender tudo o que pudessem e não envergonhá-la na hora da despedida, tendo ela feito o seguinte discurso, voz dó maior, por vezes lá menor, arpejos longos, acordes dissonantes harmonias escrupulosas, compassos múltiplos, ataques surpreendentes, andamento expressionista, diálogos certeiros... (p. 72) — Dadinha é a única personagem daquela linhagem dos “sem voz”, a única personagem, representante dos tradicionalmente desvalidos de nossa história, que fala plenamente. Ela é a exceção ao que diz a Eneida Leal. Dadinha tem o mesmo status verbal do cônego D. Araújo Marques, de Ambrósio, de sua PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA mulher Antônia Vitória e de tantos outros poderosos tagarelas.515 — É verdade... — concordei, lembrando-me do trecho de uma crônica do escritor em que se refere ao processo de escritura de Viva o povo..., e diz: “Um dos personagens — um tal cônego que eu em má hora incluí nos convidados de um passeio — não cala a boca há 40 laudas, está ficando cada vez mais difícil aturá-lo”.516 Ela não necessita de um narrador em terceira pessoa que intervenha na narrativa, como necessitou o escravo Turíbio Cafubá, lembra-se? Ela não precisa que lhe comam e assim possam reinventar o seu discurso... Ela arranca a palavra do narrador e segue, ininterruptamente, com uma eloqüência somente comparável à do próprio João Ubaldo Ribeiro. Dadinha começa por receber em seu corpo a almazinha do caboco Capiroba, que é a mesma almazinha que encarnou no alferes Brandão Galvão, personagem que abre o romance. Dadinha, descobre-se logo ao início, vem a ser justamente a neta de Vu, filha do caboco Capiroba. Vu e o holandês Sinique, digo Zernike, tiveram uma filha, que teve uma filha, que vem a ser a Dadinha. É esta a árvore genealógica dos despossuídos... 515 — O cônego “não calava a boca”, escreveu Nahima MACIEL, numa entrevista com o escritor. “Por dez páginas seguidas, falou e falou. E João Ubaldo não conseguia fazê-lo calar” (“João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997). 516 “A crise by night” (p. 23-27), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 25. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 293 ... rrreis! Prochantan, prochantan, prochotan, prr-pprrr, sai-se di qui, pipoco e zombeira no miolo! Arrum, prochantan, prochotan, sai-se daqui, desgrachado de estralo ni juízo, palavra de sangue com pecado no tinote! Sai-se di qui, có qui mioleira do caboco non goenta! (...) Não, anchente. Capiroba caboco grande — rrreis! — faz mais de quinze anos que não vem, deve de ter entrado em cavalo novo nachendo, ficando sem querer. É um recebimento geral aqui (...). (p. 72) — Veja você — continuei — a descrição que faz Dadinha de si mesma: um corpo aberto à entrada das almas e à convivência de vários tipos de discurso. E veja que essa descrição tem uma característica singular: a rima. Dadinha está à morte, e a fala que faz de si mesma através das rimas é uma fala já dotada de posteridade: fala de si como se já não mais existisse. A rima confere à sua fala um certo ar de anedota, historinha rimada que atravessa os tempos, coisa já finalizada e repassada às gerações que decoraram os versinhos da vida de Dadinha... Dadinha, ainda viva, mitologiza a si mesma e se vê à distância. Dadinha controla PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tudo, tendo escolhido o dia e a hora certa para “assistir” à sua própria morte: a História inteira, principalmente a sua história de vida, em rimas, está na sua mão. (i) ... Nachida no 21, começo do setechentos, meu pai eu não conheci, morreu no meu nachimento, antes do meu nachimento, minha mãe também não vi, mãe esta que foi vendida antes de me desmamar, partindo por Serigi, para nunca mais voltar. Que quando eu fui nacher, naquela hora tinha dezoito almas doidas em Amoreiras e todas elas vieram para ne mim encarnar, tendo o cura porém dito que eu não ia me criar. Encarnou a minha alma por uma grande disputa, disputa que até hoje haja gente que discuta, fazendo com que visite, que nem a casa da puta, meu corpo mais de cem almas, por vezes em grande luta. (p. 73) (ii) ... Tocou as vespras? Eu só quero ir no toque das vespras, como cheguei. (...) Vou, mas fico um pouco em Amoreira! Não deixem matar Nozinho Pirilo Ambrósio. (...) An-bem, eu apareço. Tão com essa cara, quere saber mais alguma coisa? Que quantas presepada! Mas as vésperas começaram a tocar nos sinos da capela e Dadinha se interrompeu (...). Cruzou os braços muito composta, fechou os olhos e, com a expressão de quem vai assistir a alguma coisa fascinante, morreu exatamente como havia escolhido. (p. 82) — O mesmo não se pode dizer de Joana Leixona, espírito encarnante dO feitiço da ilha... Leixona não exibe a mesma potência verbal de Dadinha; tanto é assim que o narrador mal a deixa falar, intrometendo-se em seguida, em indireto livre, em nome da comunicação e da clareza: — Caraclo! (...) Carái Caráiles, poriquê si mi li acordam, si mi li abusam? Poriquê si mi li porturbas? Non tenes aqueles que tis ocúpis os rábis sujos, 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 294 desinfelizes, troços de carvones? Quales das quales nigrinhas rampeiras queres mi faláris? Que si mi li fales logo, senão eu bato! Si mi li fales logo, hum, hum? Joana Leixona havia baixado com a disposição prevista. Olhou desdenhosamente para as quatro mulheres, cuspiu de lado, pôs as mãos nas cadeiras e passou a discorrer sobre si mesma. Aquelas negrinhas brasileiras de merda não sabiam nem de longe o que era o verdadeiro luxo (...). ... ó azêmolas fedidas, (...) caganitas de breu! E, agora tirando os punhos dos quadris, começou a gesticular para falar com mais efeitos (...). (p. 73, realcei) — E João Ubaldo... — continuei, disposto a relacionar, com alguma intimidade, o feitio antropofágico de meu narrador sem cabeça ao comportamento “literário” público do escritor —, João Ubaldo não fica atrás de Dadinha em matéria de hibridismo. Nasceu na Bahia mas se criou no Sergipe. Seu hibridismo é cultural. Tenho aqui muitas entrevistas. Ouça: “Às vezes penso que não sou uma coisa nem outra. Nem na maneira de falar eu me defino como baiano ou sergipano. (...) ... numa hora eu me comporto de forma ruidosa, aberta, meio PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA afrescalhada, típica do baiano do Recôncavo, e de repente eu viro uma espécie de selvagem”.517 E é também um hibridismo literário: “... tenho uma gama muito variada de interesses, gosto de ler tudo, me ligo em tudo e talvez por isso escreva tanto. Meus livros são diferentes uns dos outros, e cada qual é uma obra distinta”, diz ele.518 Como jornalista teve de escrever sobre tudo e sob vários estilos e pseudônimos: “Fui obrigado, durante vários anos, a escrever editoriais, num estilo que não era meu e com uma opinião que não era a minha”.519 No suplemento literário Literatura, Cultura e Arte, do Jornal da Bahia, “... na época os suplementos literários eram poderosos. (...) Estava se inventando tudo neste período na Bahia”,520 João Ubaldo redigia uma coluna chamada Periscópio:521 “Eu assinava LCA; tinha ainda o poeta José Lins Ribeiro Neto, que era eu também; tinha um tradutor de poemas árabes e chineses, que também era eu, que não sei nem árabe nem chinês...”.522 Interessa-se por tudo e não apenas por 517 Cícero SANDRONI, “O João da ilha”, Elle, nov. 1989. 518 Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990. 519 Marcos GUSMÃO & Alberto FREIRE, “Viva o povo brasileiro pra inglês ler”, A Tarde, 24 abr. 1987. 520 “João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984. 521 “... a coluna humorística mais prestigiada da imprensa de Salvador”, escreveu o amigo de João Ubaldo, João Carlos Teixeira Gomes (“João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, op. cit., p. 84). 522 “João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...”, Jornal da Telebahia, jun. 1984. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 295 literatura, olha para os próprios livros e os vê como peças distintas e desuniformes, independentes e autônomas, confessa-se extremamente sensível, no momento da escrita, a influências literárias de todo tipo, e por isso precisa isolarse fisicamente e fechar-se literariamente para conseguir escrever sem que lhe acometam “visitas” que resultem em plágios, mesmo que camuflados: “... é um estado extra-sensível”, diz ele.523 — Deixar-se influenciar assim com tanta facilidade por escritas alheias — interrompeu-me o interlocutor — é ter, assim como Dadinha, esse “corpo aberto” que você mencionou. É mesmo uma tentação estabelecer essa relação entre o comportamento antropofágico do narrador e a capacidade do próprio Ubaldo de manipular os mais variados tipos de discurso... — Sim. Ele pode ser tão variado quanto variada é a galeria de seus personagens escritos. Pode ser, por alguns segundos, Pablo Neruda, no dia em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que, ao sopé da Sierra Maestra e percebendo que teria de escalá-la, pergunta a Fidel Castro: “Pero no hay un ascensor?”. Pode ser Cauby Peixoto, Nélson Gonçalves e também Lawrence Oliver recitando King Lear. Pode ser também uma criação sua, o coronel J. P. Bloodsworth, da Royal Navy, que um dia serviu na Índia e, vivendo no Brasil, chegou a trocar cartas com o poeta Haroldo de Campos, a quem esculhamba por chamar-se Haroldo: “Harold”, diz o coronel Bloodsworth, “Harold is a name, not Haroldo”.524 — Ouça aí Dadinha novamente recebendo pedaços da almazinha do caboco Capiroba... — leu o meu interlocutor, romance à mão. ... Caboco Capiroba — rreis! — comia muito landês, era um, era dois, era três, verde, maduro e de vez, he-he-he-he! Vosmecês, quem daí come landês? Mentira sua, tem muito landês aí, nunca que vai acabar a espece deles. (...) prochantá, prochantan, prochotá, ui, ai, segura cabeça, hum, prochantan rrreeeeis! (p. 79) — Dadinha incorpora a variedade do mundo porque João Ubaldo, para escrevê-la, teve de incorporar a variedade do mundo — disse eu. — João Ubaldo é Dadinha? — João Ubaldo é Dadinha — e rimos. — Ouça o que diz ele: 523 Id. 524 Informações retiradas da matéria de Cícero SANDRONI, “O João da ilha”, Elle, nov. 1989. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 296 — ... continuamos [os baianos do Recôncavo] a ser e não ser tudo aquilo que pensam de nós, a ser cidadãos de um país grande e nativos de uma nação especial. E não aceitamos presentes de pulseiras e colares, nada que amarre (...), não gostamos que nos passem a mão na cabeça (...), não sentamos de costas para a porta, não damos nem nome nem objeto pessoal à gente de pouca confiança (...), não esquecemos o santo na hora de beber, gostamos de conversar sobre comida, temos hábitos sexuais pouco ortodoxos, somos compositores, cantores, vaqueiros, sofredores, curtidores, lutadores.525 — E agora — continuei — ouça a fala de Dadinha nesta sua última sessão de vida, em que ela se dispõe a transmitir todos os ensinamentos e as experiências que aqueles seus cem anos têm guardados. Se fosse possível, e João Ubaldo demonstra que é quase possível, e assim o quer o seu texto, que seja possível... Se fosse possível, os cem anos de Dadinha, do primeiro ao último, estariam, ali, inteiriços, naqueles trechos representados, sem lacunas, como se ele pudesse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA demorar os mesmos cem anos para escrever aqueles cem anos, numa espécie de realismo radical, à Joyce. — Por que à Joyce? — Porque essa vontade que a gente observa no texto de Ubaldo, de reproduzir o discurso de Dadinha, quase como se fosse em tempo real — disse eu —, lembra a obsessão de Joyce em reproduzir a sua Dublin, em seus mínimos detalhes. Joyce dizia que Ulisses havia sido escrito “de tal modo que, se Dublin fosse destruída, seria possível reconstruí-la com base no romance”.526 Ouça agora Dadinha a “citar” João Ubaldo: ... Se cubra, não aceite pulseira nem cordão de prenda, nem nada que amarre, não deixe ninguém passar a mão na vossa cabeça, tou avisando, laralá-lerelê! Cê que se vire de costa pra janela e guinorando a porta, cê que aceite qualquer de comer, cê que vá confiando, cê que vá contando o seu particular, cê que vai ver o que cê vai ser, he-he-he, ai meu Deus, nem sei... (p. 78) — Há ainda pequenos exemplos espalhados por todo o Viva o povo... — continuei —; pontos de contato entre facetas de personagens e facetas do próprio escritor João Ubaldo... Veja o caso de Stalin José, personagem já do século XX, 525 João Ubaldo RIBEIRO, “Os baianos”, Manchete, texto sem referência. 526 “James Joyce”, in Malcolm BRADBURY, O mundo moderno — Dez grandes escritores, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 148. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 297 comunista de coração e descendente dos Popós, representados pelo patriarca João Popó, itaparicano do século XIX e patriota até o mais alto grau possível de conservadorismo.527 O patriotismo de Stalin José seguiu provavelmente a inspiração do filho de João Popó, Zé Popó, companheiro de Maria da Fé, combatente do povo e vergonha para o pai. Pois Stalin José não era simpático aos símbolos nacionais entendidos como legitimadores de uma opressão e mantenedores de uma distribuição injusta de poder e riquezas. Não, não era esse o patriotismo de Stalin José, cuja fraqueza eram mesmo os desfiles escolares dos dias da Pátria em Itaparica. O patriotismo era outro. E mesmo a posição da própria Maria da Fé diante dos símbolos nacionais é ambígua, já que são símbolos de opressão, mas também de solidariedade e união. O resultado, no entanto, faz PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA parelha com o que sente o próprio escritor João Ubaldo. (i) ... e mesmo os poucos amigos [de Stalin José] (...) não entenderiam o que tentasse explicar-lhes sobre sua ânsia incontrolável de chorar, quando via os meninos de Itaparica desfilando nas paradas das datas cívicas. (p. 632) (ii) Eu [Maria da Fé] também sinto um arrepio quando se fala no Brasil, quando ouço os hinos e vejo o povo levantar os olhos para a bandeira. Pois não é nossa bandeira e é nossa bandeira. (p. 431) (iii) João Ubaldo Ribeiro — ... as pessoas, mesmo as mais simples, sempre festejaram com muito orgulho o 7 de Setembro e outras datas. Aliás, eu sempre fico emocionado quando assisto ao desfile do 7 de Setembro aqui em Itaparica, com aquelas crianças de chapeuzinho verde e amarelo...528 527 — Valeria a pena citar, em nota, e pensando-se numa provável inspiração para o personagem João Popó, a história segundo a qual o nascimento de João Ubaldo Ribeiro era para ter sido, de acordo com o desejo de seu avô, não no dia 23, data em que efetivamente nasceu, mas no dia 7 de janeiro — disse eu, e li. — “Eu ia nascer em dezembro. Aí não nasci, virou o mês, e nada. Meu avô inventou que eu tinha que nascer aqui em Itaparica, aparado pela parteira que aparou não sei quem importante, e queria que eu nascesse na data magna de Itaparica, mas o 7 de janeiro passou e eu não nasci, minha mãe começou a sentir as dores do parto no dia 22 e nasci no dia 23 (...). Aí, na hora de nascer, disseram que estava de cabeça dura, nasci de 10 meses, com unhas e cabelo” (JAGUAR, Fernando VITA, Fernando de BARROS, Haroldo CARDOSO, André Luiz OLIVEIRA, “Pasquim vai à Itaparica entrevistar João Ubaldo. Muito riso e pouca literatura”, Pasquim, 23 nov. 1989). Tudo por causa da luta do povo contra os holandeses e também contra os portugueses; luta que “não teve a dimensão dramática que as pessoas gostariam às vezes de admitir”, diz o escritor, e continua, contando outro caricato patriotismo do avô: “Meu avô Ubaldo, segundo a lenda local, tentou, e foi impedido na última hora pelo padrinho da criança, pôr o nome de ‘Setedejaneiro’ a um tio, o finado irmão de minha mãe, que acabou se chamando Flaviano (...), mas na realidade o nome dele era ‘Setedejaneiro’. E minha mãe se chama Maria Felipa, com ‘e’, porque uma das heroínas da independência se chamava Maria Felipa e meu avô fez questão...” (Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983). 528 Maria José QUADROS, “Por João Ubaldo, uma história com agá minúsculo do povo do Recôncavo”, O Globo, 3 nov. 1984. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 298 — É de se mencionar ainda o personagem “real” que pode fazer parelha com João Popó, Zé Popó ou Stálin José — disse eu —, todos sensíveis às festa cívicas nacionais: Ary de Maninha, figura de uma das crônicas de João Ubaldo para O Globo e também figura “real” presente ficcionalmente no Miséria e grandeza do amor de Benedita. Veja, de novo, o imbricamento dos universos: (i) ... Ary de Maninha, verbo inflamado, tribuno destemido, palavra tonitruante, que já fez muito marmanjo chorar cachoeiras quando discursava na festa cívica do Sete de Janeiro.529 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (ii) ... Quem a fortuna tiver de comparecer a Itaparica por ocasião dos festejos da verdadeira data magna da nacionalidade, o Sete de Janeiro, ouvirá discursos só comparáveis, em muitos casos favoravelmente, aos que fazia o padre Vieira na Sé e, se a sorte o agraciar, poderá até mesmo escutar a palavra sem rival de Ary de Maninha, no palanque do Campo Formoso. (Miséria e grandeza..., p. 119) — E João Ubaldo ainda aproveita de Stalin José outra faceta, relativa à sua falta de traquejo com questões prático-administrativas, para montar o seu personagem... — Você inverteu os termos — observou o meu interlocutor, sorrindo. — Inverteu escritor e personagem... Deveria ter dito: “João Ubaldo ainda aproveita de si mesmo outra faceta, relativa à sua falta de traquejo com questões práticoadministrativas, para montar o seu personagem Stalin José”... E essa inversão deve ter lá a sua razão de ser, não? — Olhe... Acho que sim. Toda a sua vida intelectual pública, as suas convicções, as suas angústias estão distribuídas entre seus personagens. Eu ia justamente lhe dar um outro exemplo relativo ainda a Stalin José, que contava a um conhecido a sua biografia de sofrimentos, prisões e sucessivos períodos de clandestinidade. Fazia Stalin José uma espécie de mea culpa, para tentar entender, em analogia com o caso de Dom Casmurro, as razões de sua mulher, que já não mais olhava para ele como antes... (i) ... a clandestinidade o deixou fora de casa meses, anos seguidos, os parentes tinham sempre que sustentá-la, e ele não conseguia deixar de sentir vergonha, por mais que fizesse sermões exaltados a si mesmo, de não ter nada, 529 João Ubaldo RIBEIRO, “Acho que venho falhando”, O Globo, texto sem data. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 299 não dar nada, não oferecer nada, de não ser um homem como os outros, que faziam coisas, resolviam coisas, entendiam de transações, ganhavam dinheiro e se divertiam. (p. 634) (ii) João Ubaldo Ribeiro — Acho que Deus nos dá alguns poucos e preciosos talentos. Definitivamente não saberia administrar nada, me falta absoluta competência para isso.530 — Qual o contexto dessa afirmação de Ubaldo? — É uma resposta à pergunta sobre se participaria de uma campanha política, e João Ubaldo respondeu dizendo ainda que jamais exerceria um cargo político. Mas o contexto, aqui, não é relevante para os meus propósitos — salientei. — Essa inabilidade de gerência não se restringe, é claro, ao universo técnico da administração pública, mas a aspectos de sua vida aos quais ele associa um tipo de humor a la Chaplin ou Woody Allen e cria, assim, o seu personagem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA de ares atrapalhados e pouco à vontade com as chamadas “questões práticas da vida”.531 Há ainda, inserido no personagem Stalin José, um detalhezinho acerca do pai do próprio João Ubaldo: uma impossibilidade de reconhecer e diferenciar notas musicais. Stalin José não sabia cantar, nunca soube e nunca cantou nada na vida (p. 627): “A quem teria saído, com essa surdez especializada?” (p. 628). Diz o escritor: “Meu pai era surdo tonal, incapaz de assoviar, mas tinha gosto pela música e uma boa cultura musical. Sempre ouvi os clássicos (...), mas meu preferido é Bach. Só gosto de Bach”.532 — Há pedaços de Ubaldo espalhados por todo o romance... — disse ele. — Sim, e não foi você quem chamou a minha atenção para isso... Foi você, isso sim, quem concordou comigo quanto à possibilidade de isso constituir mais uma maneira de entender a sua ficção... Mais uma... — Se fosse o caso de elegermos um único representante para o plurilingüismo de Viva o povo brasileiro, este seria — anuncia o meu interlocutor, convicto — ela mesma, Dadinha... — e ele me ofereceu um café fresquinho. 530 Isa PESSOA, “O que é que o baiano tem?”, Leia, dez. 1989. 531 — “Sou um chefe de família abominável, não sei providenciar nada. Fico atrapalhado se chega um mero aviso bancário, que pode ser até uma coisa favorável: ‘Chegou-dinheiro-para-vocêno-banco’. Eu fico completamente assustado, grito: ‘Que diabo é isso? Eles querem me pegar!’. E a minha mulher tem de ler e ir ao banco pra mim” (“João Ubaldo Ribeiro”, in Giovanni RICCIARDI, Auto-retratos, op. cit., p. 368). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 300 5.4. A LÍNGUA-MULETA DO MULATO AMLETO533 — Sim, seria o personagem Dadinha, e Dadinha tem o seu contraponto. — Um personagem que represente o monolingüismo? — pergunta ele. — Não exatamente. Dadinha transforma em suas todas as palavras estranhas, sendo ela a dona de todas as palavras. Você repare que ela reconta, à sua maneira, com suas palavras, sua pronúncia e sua representação gráfica, todas as histórias que ouviu e viveu, atraindo para o seu universo toda a expressão alheia. — Ela é, à sua maneira, tão antropofágica quanto Capiroba... — Sim, e o oposto se dá com o personagem Amleto Ferreira, de Viva o povo..., o funcionário “mulato” do Barão de Pirapuama, o personagem que vai constituir o início da estirpe forjada dos Ferreira-Dutton. Amleto não tem em si nenhuma palavra, e por isso as decora, mecanicamente, com o único intuito de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA parecer ser aquilo que não é, e aquilo que ele não é, um homem branco europeu, superior e bem falante, também, por sua vez, não passa de uma outra construção fictícia. Como sobra, há aquilo que ele é e que renega: um mulato, filho de uma mulher negra e um almirante inglês desconhecido. Eneida Leal Cunha com a palavra: ... não será a eficácia comunicativa o objetivo pleiteado pelo mulato Amleto; ao contrário, a personagem estará às voltas com a assimilação das formas estereotipadas e esterilizadas da língua, o arquivo (quase morto) de um léxico e uma sintaxe dignificados pelo seu desuso no cotidiano.534 — Estou a me lembrar agora — começou ele — do que nós conversamos lá atrás acerca do personagem Argemiro, do romance Vila Real. — Sim. O problema de Argemiro é justamente encontrar para si as palavras de que precisava para conseguir comunicar-se junto ao seu povo. Ele não se sentia um chefe porque não se acreditava capaz de sustentar as palavras que ele considerava serem as palavras de comando e de poder: o discurso de um chefe. O mundo da cabeça do narrador, em Vila Real, era um, e aos poucos se foi transformando em outro. Não se podem comparar, no entanto, os estatutos dos 532 “João Ubaldo faz hora extra na Ilha”, Tribuna da Bahia, 6 nov. 1988. 533 — Aquele “ladrãozinho ordinário, covarde, luxurioso”, escreveu Leandro Konder (“Viva o povo brasileiro”, Nas Bancas, 3 out. 1985). 534 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 166-167. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 301 dois personagens, Amleto e Argemiro. Estão ambos a lutar com as palavras? Sim, mas Amleto facilita o seu trabalho porque ele não quer nada mais que um efeito de superfície, sendo as palavras para ele nada mais que um meio em direção a uma escalada social, e por isso as decora madrugada adentro. — Você disse que Amleto facilita o trabalho? O trabalho dele é cem vezes mais difícil... — disse o meu interlocutor. — Argemiro encontrou as suas próprias palavras quando, de certo modo, ele próprio se encontrou a si mesmo, com o perdão das redundâncias e dos psicologismos... Amleto, por sua vez, não terá com a língua outra relação que não a da reprodução mecanicista. — Tem razão... Você disse um pouco antes que Dadinha era tão antropofágica quanto Capiroba. Amleto, por sua vez, não realiza nenhum tipo de antropofagia em sua relação com a língua. Representa, ao contrário, o conjunto das práticas colonizadas contra as quais se insurgiu toda a antropofagia, ou melhor, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA representa a razão de ser do surgimento da idéia antropofágica aqui entre nós. Amleto revela-se uma máquina reprodutora duas vezes mais patética, já que não é branco-europeu nem pode ser considerado um personagem culto. Ouça este trecho: ... Ensaiara pequenos ditos e observações e esperava rememorar com a facilidade habitual coisas aprendidas nos livros de boa Gramática e Retórica, nos cartapácios bolorentos que se obrigara, tantas e tantas noites a fio, a ler com a testa perolada de suor (...), os brocardos latinos vindos depois de capitulares repolhudas (...). Faria uns torneios hábeis, usaria boas palavras, daquelas que coletava com avidez para escrever num livrinho de notas e passar o dia repetindo em voz alta. Nada mais era esta gleba, Senhor Monsenhor, que uma arrotéia agreste e inculta, antes que nela se assinalara o arrojo do Senhor Barão de Pirapuama, cum dilectione hominum et odio vitiorum... (p. 101-102) — Lido todo o pedaço que vai da página 100 à página 108, que representa o nosso primeiro contato íntimo com Amleto e seus pensamentos — continuei —, chegamos à conclusão de que Amleto é mesmo uma farsa, sim, mas é uma farsa tão convicta de si mesma que se torna uma farsa legítima. O uso que faz da língua pode ser pedante e afetado, mas não é errado nem chulo. Ele é, antes de tudo, um pragmático, e sua relação com a cultura que ele insiste em memorizar é de pragmatismo, como bem atestam estas palavras atribuídas a ele e relembradas no dia da missa de um ano por sua morte, já velho, já rico, já feito comendador: “... o que não tem finalidade prática carece de sentido, é coisa vazia, de que a 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 302 Humanidade precisa aprender a livrar-se” (p. 414). Amleto conhece muito bem a “elite” que ele precisa imitar e seduzir, caso queira ser o que quer: branco e rico. — E conhece muito bem a sociedade racista da qual ele faz parte, também ele a compactuar com esse racismo... — completou o meu interlocutor. — Tocamos num ponto importante da personalidade de Amleto — aproveitei. — Você consideraria caricatas as cenas nas quais o narrador mostra Amleto passando goma no cabelo, para alisá-lo, passando cuspe no nariz, para afiná-lo, e protegendo-se do sol, “pois o sol na pele lhe era uma agressão pessoal, caso pensado contra ele, para escurecer-lhe a cor sem piedade, como já acontecera, virando-o mais uma vez num mulato” (p. 228)? Veja esses trechos, em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que Amleto se ressente do filho, Macário, de todos eles o menos “branco” — e li: ... só ele nascera com aquela nariganga escarrapachada e aqueles beiços que mais pareciam dois salsichões de tão carnudos — um negróide, inegavelmente, um negróide! O cabelo, felizmente, não chegava a ser ruim, era meio anelado, mas, com bastante goma e forçado à noite pelas toucas, podia ser penteado razoavelmente, numa espécie de massa quebradiça puxada em direção à nuca. (...) Para aquelas ventas, teria havido remédio. Sua mãe o empregara com ele, e o nariz de Carlota Borroméia [irmã de Patrício Macário] ficara bem afiladinho com a mesma técnica. Ou seja, cuspe em jejum: umedecer o cata-piolhos e o fura-bolos na língua e massagear o nariz no sentido do afilamento. (p. 322) — As cenas guardam um certo exagero, sim — admitiu —, que, aliás, é uma das marcas da narrativa de João Ubaldo: um exagero e um detalhismo que têm uma função de fundo humorístico... Vejo-as, sim, como uma caricatura.535 — São, sim, uma caricatura — concordei —, apenas na medida em que o seu efeito é caricato... Mas as motivações de Amleto tornam essa caricatura complexa e, de certo modo, o isentam do ridículo de tentar parecer um branco; isentam-no e o tornam mais problemático do que pode parecer numa primeira leitura... O modo como Amleto via os negros não é igual, mas é semelhante a outra visão, bem posterior no tempo, variando-se apenas o grau de tolerância e 535 — Aliás — disse ele, pegando num recorte de jornal e abrindo com um gesto uma nota de rodapé —, há aqui uma leve crítica a esse estilo profuso de Viva o povo brasileiro, associandoo, inclusive, ao campo das literaturas best seller. Ouça: “In tried and tested ‘Bestseller’ fashion it’s more concerned with the accumulation of details and narrative than with insight. (...) It is, however, lovingly detailed and expansively and imaginatively written” (Maria LEXTON, “João Ubaldo Ribeiro’s An Invincible Memory, Preview Books, texto sem referência). E ele mesmo traduziu: “Na já tentada e testada moda best sellers, está-se mais preocupado com a acumulação de detalhes e narrativas do que com inspiração. (…) [Viva o povo…] É, no entanto, belamente detalhado e expansiva e imaginativamente escrito”. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 303 condescendência. Veja que a sociedade brasileira, na segunda metade do século XIX, não tinha sequer rascunhada uma idéia de identidade nacional na qual se apoiar ou da qual se orgulhar, nada, muito menos ainda a partir do universo cultural, do suposto universo cultural, da chamada “raça” negra — continuei, segurando um livro do Caio Prado Júnior e me inspirando. — Eu insisto: a caricatura no modo como Amleto e os seus pares vêem os negros e a sua cultura é apenas aparente. Vou ler para você esse trecho, escrito em 1942, na primeira edição do Formação do Brasil contemporâneo. Ouça: é um texto acadêmico, sério, conceituado, respeitado PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA e citado. Você o considera uma caricatura? Provavelmente não. A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula. Não que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressão; mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão do seu sangue, que uma intervenção ativa e construtora. O cabedal de cultura que traz consigo da selva americana ou africana, e que não quero subestimar, é abafado, e se não aniquilado...536 — Não sei se você foi feliz nessa citação... — disse ele. — Está aí, clara, a encharcar todo o texto, uma grande tolerância por parte do Caio Prado, que não via muito futuro, no máximo uma certa potência, nesse cabedal cultural do universo dos negros... Não, não o considero uma caricatura. Formação do Brasil contemporâneo é um texto de 1942, um texto que inaugurou um novo olhar sobre o negro, que não mais surge como um objeto fixo definido unicamente por sua raça, mas se torna uma categoria de análise mais complexa, ou seja, sujeita a contingências econômicas, sociais e históricas. Isso hoje pode parecer natural, mas não era na época... De todo modo, o texto do Caio Prado ainda é muito marcado pela prevalência da visão do intelectual estudioso que acredita estar em uma posição de vantagem diante de seus objetos de estudo, ali, à sua disposição, à disposição do olhar aprimorado... Ou seja, é, de certo modo, etnocêntrico. — Veja o que diz o Caio Prado algumas linhas antes — insisti —, veja o vocabulário, estamos em 1942: ele faz referência à escravidão na América, ao “recrutamento de povos bárbaros e semi-bárbaros, arrancados de seu hábitat 536 “Vida social — organização social” (p. 269-297), in Formação do Brasil contemporâneo — Colônia, São Paulo, Brasiliense, 2001, p. 272. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 304 natural e incluídos, sem transição, numa civilização inteiramente estranha”.537 Negros e índios são referidos aqui e ali, aliás, de maneira muito pouco elegante: como “pretos boçais e índios apáticos”,538 a formar um “continente estranho e heterogêneo de raças que beiravam ainda o estado de barbárie”.539 Se esse vocabulário com o qual Caio Prado se refere aos negros e índios não deve ser visto como uma caricatura, um exagero, mas tão-somente como um resquício de um modo de olhar para povos diferentes do nosso, um modo de olhar ainda marcado por algum etnocentrismo, como você disse, a obsessão de Amleto em não querer parecer um negro também não pode ser vista como uma caricatura. O imaginário de Amleto é justamente a origem desse resquício em Caio Prado, que se coloca a si mesmo, sem dúvida, em uma posição de superioridade cultural e intelectual diante do diferente. Isso, hoje, academicamente falando, dentro da sua lógica, é quase uma caricatura também... — disse eu. — Mostro a você um outro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA exemplo, este do personagem Nego Leléu, outro grande realista, com sua neta, uma das personagens-chave de Viva o povo..., a jovem Maria da Fé. Mais uma vez, veja aqui que o desprezo pelo negro era uma constante lindamente introjetada, e não um exagero ou uma aberração: ... Nascer preto, tudo certo, não se pode fazer nada. Mas querer ser preto? Quem é que pode querer ser preto? Mostrasse um que, podendo, não ficasse tão branquinho quanto uma garça! Como é que a pessoa pode aproveitar para procurar deixar de ser preta e não aproveita? — Eu nunca vou deixar de ser preta, voinho? — E tu é preta? Não é preta, senão mulata, mulata de olhos verdes, e muitas menos bem parecidas (...) hoje são quase-quase brancas, são consideradas, estão arrumadas na vida. Eu mesmo sei de muita gente bem raceada, mas bem raceada mesmo, que hoje é branca, atingiu as posições, tem importância na vida. (p. 376) — O racismo de Amleto, que não é uma caricatura — e retirei um livro das nossas generosas estantes —, alimenta-se de seu profundo realismo. Talvez em nenhum outro personagem João Ubaldo Ribeiro tenha desenvolvido tão bem a sua crítica a uma sociedade que não conseguia de modo algum, e, de certa forma, ainda consegue pouco, conciliar a cor negra da pele à capacidade intelectual e à 537 Id., ibid., realces meus. 538 Id., p. 277. 539 Id., p. 275. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 305 possibilidade de ascensão social. — E mostrei-lhe que livro era: o romance A marca humana, do escritor norte-americano Philip Roth.540 — Mas... — ia começar ele. — Eu sei: a sociedade é outra, é a norte-americana, o tempo histórico é outro, a segunda metade do século XX, mas a aguda consciência das próprias, e reduzidas, possibilidades no meio social é a mesma para os dois personagens: Amleto Ferreira e Coleman Silk, que, assim como Amleto, possui uma branca pele negra, à qual renunciou por toda a vida, e com êxito: nasceu mulato, em uma família negra, em meio a uma infância negra, mas viveu como um branco e renegando seus parentes negros. Silk casou-se com uma judia, viveu, morreu e foi PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA enterrado como um autêntico judeu. Vou ler aqui o Roth: ... Coleman estava certo de que conseguiria fazê-la entender por que ele tinha tomado o futuro em suas próprias mãos em vez de deixar que uma sociedade preconceituosa determinasse seu destino — uma sociedade em que, mais de oitenta anos após a abolição, pessoas intolerantes ainda desempenhavam um papel importante demais. Ele conseguiria fazê-la entender que não havia nada de errado na sua decisão de se identificar como branco: pelo contrário, era a opção mais natural para uma pessoa com as opiniões, o temperamento e a cor de pele que ele tinha. Tudo o que ele sempre quisera, desde pequeno, era ser livre: não negro, nem mesmo branco — simplesmente independente e livre.541 — Um momento... — protestou ele. — Coleman não é racista; Amleto, sim. Coleman não está preocupado em negar uma identidade; Amleto não apenas renega a sua origem brasileira, como ainda venera a sua pseudo-origem inglesa... — Coleman está, sim, preocupado em afastar-se o mais que pode de uma identificação a um grupo, o nós dos negros. Veja — e li. ... Não à tirania do nós, àquela conversa do nós, a tudo aquilo que o nós quer empilhar sobre sua cabeça. Não, jamais a tirania do nós, sempre louco para tragálo, aquele nós moral coercitivo, abrangente, histórico, inevitável (...). (...) Em vez disso, o eu nu e cru, com toda a sua agilidade. A autodescoberta (...). A singularidade.542 540 — O título original, com a tradução de Paulo Henriques Britto, é The Human Stain, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. 541 Id., p. 157. 542 Id., p. 142. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 306 — Você tem razão... — disse ele. — E veja que Amleto ainda tem a aguda consciência de que não é suficiente tornar-se cada vez mais branco, melhorando assim a sua imagem e a de sua família e, desse modo, garantindo para si um futuro de prosperidade e reconhecimento social. É necessário, para o sucesso desse futuro, orientar-se com igual afinco para o passado... — ... e é o que faz Amleto, em transações secretas com o padre adjutor do Vigário Geral, que lhe forja uma nova certidão de nascimento, para si e para todos os seus filhos, com a inclusão do nome inglês “Dutton”. — Isso. Até que enfim concordamos... — e ele riu. — E essa passagem em que Amleto, bastante ansioso, recebe o padre, bastante nervoso, “enfiando com nervosismo a mão pelas dobras da sotaina para sacar a certidão de batismo falsa, tão meandrosamente obtida” (p. 232) — citei —, é na sua aparência bastante engraçada, pois João Ubaldo Ribeiro deixa explícita a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA hipocrisia de ambos os homens: um a mentir e quase a acreditar na própria mentira; o outro a fingir que acreditava na mentira do outro, mentira que tentava justificar a legitimidade do pedido de uma nova certidão. — Pois. Pois, se bem percebo, Vossa Excelência, antes desta correção, chamava-se tão-somente Amleto Ferreira. — Sim, pois, vicissitudes, coisas das questões religiosas do tempo de Dão João, incúria talvez dos padrinhos, as guerras napoleônicas... Eram tempos conturbados (...). — Sim, pois. — Mas a correção é necessária, de há muito que se faz necessária e, graças à compreensão de Vossa Reverendísima e do Excelentíssimo Senhor Vigário... Vossa Reverendíssima compreende, em primeiro lugar era preciso restaurar a verdade dos fatos, a herança histórica de nossa família — afinal, nossa linhagem perde-se no tempo, tanto em Inglaterra como em Portugal... (p. 233-234) — Na sua aparência — disse eu —, a passagem é mesmo risível, mas a passagem tem outra força por trás de todo aquele discurso, discurso desnecessário, pois Amleto não precisava justificar-se para o padre... Amleto pagou, e não foi pouco, pelo serviço de correção... — O discurso é muito mais um artifício do próprio Ubaldo para colocar o leitor ciente do que se passava — disse o meu interlocutor, com o livro aberto. — Sim. E essa passagem funciona aqui como um resumo de toda a vida de Amleto, pois significa a coroação de uma guerra de esforços cujo objetivo era conseguir, não a brancura, a riqueza e a nobreza, mas a liberdade, obtida pela 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 307 brancura, pela riqueza e pela nobreza, de poder reinventar o seu passado, ou seja, poder reinventar o seu futuro. — Que talvez seja a maior liberdade que um homem pode ter... — disse ele, com uma expressão grave. — Merecemos um café? — Sim — concordei, com outra expressão grave. E continuei a falar de Amleto: — O narrador vai mostrar-se inclemente com Amleto em outro aspecto: não na relação que o personagem estabelece com essa “elite” e seu arsenal cultural europeizado, uma verdadeira e legítima relação de glorificação da cultura alheia... O mulato Amleto vai tornar-se patético no trato com os negros e a sua cultura. — Por que você diz “inclemente”? — Veja o que diz Eneida Leal, que elenca uma série de tópicos aos quais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Amleto dedica feroz atenção e nos quais se sai ele, na verdade, muito mal — e li. ... se o tópico são as relações de classe e de dominação, Amleto não será mostrado em situações produtivas, explorando a força de trabalho do negro, e sim nos excessos economicamente improdutivos da instituição escravagista, espancando negros que conspurcam a pureza castiça da língua, ou degradando o corpo escravo do outro em prol de um prazer físico perverso e excrescente: não é necessário possuir carnalmente uma negra, basta humilhá-la, obrigando-a a expor os seios aos seus olhos e à dureza das suas mãos para que Amleto atinja o orgasmo desejado...543 — A impressão que se tem a partir do trecho de Eneida Leal Cunha é a de que Amleto humilha a negrinha Vevé. Se há no entanto um humilhado, é este o próprio Amleto, e isto Eneida não menciona, porque ela de fato não está orientada para os efeitos da narrativa sobre a visão geral do leitor acerca dos personagens. — Você não respondeu à minha pergunta... — impacientou-se. — Por que você diz que o narrador foi “inclemente” com Amleto? — Porque o nosso narrador sem cabeça não permanece incorporando Amleto todo o tempo; abandona-o, se o termo não é por demais dramático... Bastou sair de sua focalização e deixar o indireto livre, praticando assim uma descrição “a partir de fora” do personagem, e temos então quase que um outro personagem, observado, agora sim, sob uma visão bem mais crítica. Diante de uma cena de embate entre um escravo e Amleto, o narrador escolhe o ponto de vista favorável ao escravo, reiniciando a narrativa sob outras bases. O narrador 543 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 166. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 308 abandona então uma cabeça e logo em seguida serve-se de outra, capacitando-se, portanto, para um outro tipo de descrição. Observe que as relações de poder ao longo de todo o romance são móveis: na conversa entre o cônego visitador e Amleto, o narrador mostrou-se simpático a Amleto, o elemento dominado e subordinado, o “mulato sarará, magro e um pouco melhor falante do que seria conveniente” (p. 63), segundo a descrição de seu patrão, Perilo Ambrósio. Como escreveu Lúcia Helena: “A questão do poder, da opressão, de suas modulações — o fato de ser o poder uma rede complexa de relações que não podem ser explicadas nem entendidas a partir da visão maniqueísta que oponha romanticamente os ‘bons’ aos ‘maus’ — é tema que perpassa todo o (...) texto de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA João Ubaldo”.544 Agora é Amleto o algoz, o patético algoz. ... O mestre, que como todos os outros tinha parado de falar assim que a presença de Amleto foi sentida, fez uma expressão perplexa. Providenciavam o embarque, estavam guarnecendo a chalupa, era a última a sair, as outras já haviam zarpado (...). — Não admito! — gritou Amleto. — Não admito! Tinha as veias do pescoço inchadas, falava levantando-se nas pontas dos pés e baixando outra vez a cada grito, sacudia um dedo em riste apontando para os pretos. (p. 102) — E por mais que o mestre diga a Amleto que o negro cafuleteiro que orienta as embarcações é “variado da idéia” e não consegue articular bem as palavras e nem os pensamentos, Amleto não se convence, ou não entende, e continua a dar chiliques: “Não sabe que posso mandá-lo à chibata por se comportar pior do que um animal?” (p. 103), grita ele, e continua gritando e exigindo dos negros que utilizem a língua cristã. — Não estou assim tão convencido de que é Amleto aqui o humilhado... — Eu não terminei. O narrador em seguida realiza um verdadeiro embate de palavras, pondo-se ele mesmo, narrador, em franca competição retórica com o próprio Amleto — eu disse. — O longo trecho da página 105 é a descrição da saída da última embarcação para a pesca das baleias. É o narrador no inteiro comando descritivo da cena que se desenrola diante do nariz de Amleto, que, assim revela o narrador, tem medo de água... — E o narrador está incorporando quem, dessa vez? 544 “Viva o povo brasileiro — a questão do nacional...”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 309 — Não um personagem específico, mas um conjunto de saberes — disse eu. — Vou falar disso daqui a algum tempo, mas já lhe adianto que se trata de uma incorporação diferente: o narrador sem cabeça dessa vez às voltas com as suas noventa cabeças, ou, em outras palavras, o narrador incorpora um saber popular, incorpora uma narrativa de conhecimento consensual acerca de assuntos específicos, incorpora um arcabouço intelectual, o que você já apontou para mim antes, lembra-se? Agora é a arte da pesca, mais à frente será o consórcio carnal das baleias... Dou-lhe uma pequena amostra de uma narrativa cujo conhecimento veiculado e cujo vocabulário não vêm de modo algum de Amleto: é o narrador a exibir-se e a mostrar que Amleto não tem à sua disposição todas as palavras PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA daquela língua cristã que tanto cultiva e tanto decora... ... Lá dentro da chalupa, um barco esbelto e longo de quarenta pés e duas caras, pois que seu trabalho requer que popa e proa tenham a mesma construção externa (...). Como se estivesse em terra firme e não pisando aquele casco sem quilha (...), um negro amarrou um pedaço de estopa a cada chumaceira, equilibrando-se para fora num pé só. No banco de arvorar, o mestre de mar seguia os movimentos dos outros e alisava os cabos, o gurutil da vela ainda baixada e as costuras da verga de biriba que logo ia subir mastro acima, acompanhava a contagem e arrumação dos arpões nos guarda-lanças (...). (p. 105, realcei) — Amleto fica contraposto então — interrompeu-me o meu interlocutor — a um discurso “autorizado”, o do narrador especialista, e também a uma visão da realidade totalmente nova para ele, qual seja, a dos negros como guerreiros expedicionários, descrita na mesma página, logo a seguir. — Exatamente — disse eu, um pouco contrariado por ele ter falado antes de mim. — Observe que o narrador, no mesmo parágrafo, desincorpora Amleto, incorpora um saber especializado para realizar a sua descrição “autorizada” da saída de uma embarcação e em seguida volta a incorporar o nosso “mulato sarará” para revelá-lo mordido de inveja daqueles negros... E o que faz ele diante da realidade corporal daqueles escravos, guerreiros do mar, fortes e ágeis? Faz o único movimento que conhece: recorre a algum contexto europeu forçadamente semelhante para, de algum modo, poder legitimar aquele outro contexto de esforços negros em terras bárbaras. Veja: “Falarei dessa partida durante a visitação, resolveu Amleto, pensando se não haveria uns versos de Virgílio, sobre heróis a fazer velas, anotados em seu caderno. Poderia decorá-los antes das sete horas, quando sairia a excursão?” (p. 106). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 310 — Mas isto, isto é uma tarefa associativa que tem lá seus ares de uma “antropofagia à Amleto”... Ele viu os negros, viu o mar, associou tudo à bravura das expedições marítimas e lembrou-se de Virgílio... — Não, não, não — falei, pausadamente. — Não, não, não. Virgílio é aqui um véu, nada mais que um véu. A atitude de Amleto não é antropofágica. Ele recorre a Virgílio para não ter de enfrentar a possibilidade de aqueles negros constituírem, eles mesmos, a sua própria epopéia. Ele recorre a Virgílio para decorá-lo e repeti-lo, ipsis litteris, eliminando, dentro do possível, qualquer associação com a cena originária dos negros a preparar a chalupa. Virgílio tem a função, mal comparando, de um purificador de ar, a enobrecer e glorificar aqueles negros. Virgílio versa sobre “heróis a fazer vela” (p. 106); não sobre escravos imundos e incultos a preparar uma chalupa... — Hum... — fez ele, com O sorriso do lagarto aberto à sua frente. — Há PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA aqui então, nesse outro romance, um movimento semelhante. Do mesmo modo como Amleto tenta anular a imagem dos negros, procurando substituí-la por outra, de cunho clássico, podemos ver aqui o personagem Lúcio Nemésio, cientista, racionalista, ateu, pragmático, a observar pescadores a preparar um barco para sair ao mar, e o que ele vê não são os pescadores negros, ou muito menos os heróis de Virgílio, a que recorre Amleto, mas simplesmente espécimes humanos hiperresistentes às doenças da Ilha. Sentados, com as cabeças baixas, os três tripulantes do batelão tainheiro, todos de chapéu e sem camisa, acabaram de marcar o peixe e principiaram a manobrar para botar a rede (...). Firme como se estivesse em terra e não sobre uma peça de madeira bamboleante, um dos homens (...) levantou-se começou a bater com um mourão na água. — Admirável — disse Dr. Lúcio Nemésio, que havia parado perto da fortaleza (...), para assistir à pescaria. — Um espetáculo realmente admirável. (...) Quando eu disse admirável estava pensando numa coisa completamente diferente, estava pensando em como são resistentes esses sujeitos. Verdadeiros zoológicos ambulantes, todos eles, todo tipo de nematóide, platelminto, protozoário, esses bichinhos que você conhece muito melhor do que eu, o que você lembrar tem aqui. (p. 34-35, realçou) — Os heróis de Virgílio e os espécimes de Nemésio devem substituir os negros imundos, e nada mais — concordei. — A comparação dos “escravos” da antiguidade clássica, esses com aspas, e os escravos aqui das Américas, sem aspas, 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 311 é também empregada pelo Caio Prado Jr., que eu agora cito a reboque, aproveitando que eu já o tirei das estantes e já o atirei aqui em nossa arena de papel. Ouça: ... a comparação com o que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. Neste último a escravidão se forneceu de povos e raças que muitas vezes se equiparam a seus conquistadores, se não os superam. Contribuíram assim para estes com valores culturais de elevado teor. Roma não teria sido o que foi se não contasse com o que lhe trouxeram seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo conhecido, e que nela concentram o que então havia de melhor e culturalmente mais elevado. Muito lhes deveu e muito deles aprendeu a civilização romana. O escravo não foi nela a simples máquina de trabalho bruto e inconsciente que é o seu sucessor americano.545 — Está convencido da idéia de que o narrador, ao final de todo aquele trecho, não poupa Amleto de nada? — Não, não estou — disse ele. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Então leia as páginas 107 e 108, contrapondo-as ao que disse a Eneida Leal Cunha no trecho em negrito que li lá atrás.546 Reproduzo para você um dos parágrafos finais: — Vês? Vês como fico por ti? [perguntou Amleto, segurando os peitos da negrinha Vevé] Mais uma vez ela não disse nada e, puxando-lhe a mão inerme para esfregá-la por cima da braguilha, ele ia ordenar “aperte, aperte!”, quando um estertor invencível lhe constrangeu o escroto e, sem poder abafar os gemidos, escorregou as mãos pelos braços dela abaixo e terminou de gozar sentado no chão, quase deitado, as pernas somente aos poucos deixando de estertorar. — Posso ir? — perguntou ela, com a voz tão indiferente quanto o rosto. (p. 108) — Certo, certo, convenci-me — disse ele, rindo de Amleto. E continuou: — Você poderia arriscar a idéia de que o mulato Amleto não é apenas o contraponto de Dadinha, como também representa tudo aquilo contra o qual João Ubaldo, como escritor, combate? — Que vem a ser? — Que vem a ser — disse o interlocutor —, para simplificar, o uso colonizado da língua. Isso pode parecer uma discussão já hoje fora de moda, mas em 1984, data em que foi publicado o Viva o povo brasileiro, não era, e digo 545 “Vida social — organização social”, op. cit., p. 272. 546 — Ver, neste capítulo, p. 307. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 312 mais: era uma verdadeira questão cultural a necessidade do uso, digamos, brasileiro da língua portuguesa. Nós já discutimos isso, eu sei, eu sei. João Ubaldo é Dadinha; não é Amleto Ferreira. Digo isso me lembrando de outro pedaço da declaração do escritor na contracapa de seu romance Vila Real, de 1979, e era essa, e não outra, a sua preocupação: “Sou contra as belas letras, a contrafação, o elitismo. Acho que o principal problema do escritor brasileiro é a busca da nossa linguagem, do nosso fabulário, dos nossos valores próprios”. — Você tem razão — disse eu —, e aqui está mais uma vez o próprio escritor a dialogar com a sua obra, de fora da obra. Amleto Ferreira, em 1979, não existia, mas existia aquilo de que ele se alimenta: as belas letras, a contrafação.547 Em 1984 essa ainda era, como você disse, uma, digamos, “questão” para João Ubaldo. E hoje? O que temos? — Não sei — disse ele, me oferecendo um café. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Como não sabe? A “questão da identidade nacional” tornou-se para ele quase um falso problema, ou um problema invadido pela retórica. Veja o que falou João Ubaldo no ano de 2000, por ocasião de um seminário na Alemanha, em que a grande discussão era justamente o “problema” da identidade brasileira: “Quando chegou a minha vez, eu disse: ‘No Brasil não temos esse problema’”. E, diante do silêncio geral, João Ubaldo arremata: “’— Nós temos isso aqui’, eu disse, mostrando meu RG”.548 — Há aqui dois Ubaldos: o de 1979 e o de 2000... — E provavelmente dois momentos muito diversos para esta suposta “questão” da identidade nacional... — disse eu —, que nós já discutimos exaustivamente em nossa conversa sobre Argemiro e o romance Vila Real. 547 — E escreveu João Ubaldo em 1977: “Todas as causas da Ignorância são políticas, inclusive a Burrice. (...) O produto da Ignorância e da Burrice é o malpensar. (...) O problema político é fazer do Estado Brasileiro o Estado dos Brasileiros. Isto não é gratuito, porque é uma questão de Sobrevivência. A Sobrevivência ocorre quando se preserva a Identidade. Quando não se preserva a Identidade, a Sobrevivência é a do Outro. Não adianta sobreviver usando a cara do Outro, pois cada ser é responsável somente pela sua Cara” (“Novenário do malpensar e da mistificação”, Tribuna da Bahia, 16 nov. 1977, realcei). Na linha deste arrazoado contra a colonização dentro do mesmo estilo exemplar, cito aqui um dos conselhos de Manoel Ribeiro, pai de João Ubaldo: “Conselho no 2 - Não seja colonizado: ‘(...) Não seja macaco, não imite. Tenha coragem de ser mulato, de ser cafuso e até de ser branco. (...) ... não tenho compromisso de me humilhar perante representante de povo desenvolvido nenhum’” (“Os 10 conselhos de Manuel Ribeiro, segundo o autor”, Correio da Bahia, 3 dez. 1981). 548 Sergio Vilas BOAS, “... o escritor carioca-baiano tenta conciliar...”, Gazeta Mercantil, 18 e 19 mar. 2000. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 313 5.5. JOÃO UBALDO, A CAVALO, É MARIA DA FÉ — Aquilo que você disse há pouco sobre os diferentes graus da presença do escritor em sua própria obra de ficção lembra-me agora o papel de Maria da Fé em toda essa história... — comecei. — E também o papel do personagem Capitão Cavalo, dO feitiço da ilha... — O papel de uma espécie de porta-voz? — Sim, porta-voz das convicções políticas do próprio João Ubaldo, e um porta-voz — disse eu — muito pouco dissimulado... Sim, eu me refiro à pouca preocupação de Ubaldo em singularizar Maria da Fé e Capitão Cavalo do ponto de vista lingüístico, tal como ele faz com os demais... Para os demais personagens, o narrador de Ubaldo se mostrou um verdadeiro “marqueur de paroles”.549 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Há para isso uma razão inicial bastante óbvia: Dafé, pelo que me lembro..., graças aos empenhos de seu avô Leléu, foi alfabetizada e adquiriu, com esse processo, uma relação mais objetiva com a língua. A professora, dona Jesuína... — Não, isso não parece suficiente — protestei. — O discurso de Maria da Fé, por exemplo, é de uma transparência, de uma objetividade, de uma retidão muito pouco típicas dos personagens de Viva o povo brasileiro. Mesmo os discursos mais preparados e cultos e sintaticamente corretos têm o seu grau de exagero, têm a sua porção de redundância, têm os seus vícios, as suas manias, os seus cacoetes, a sua personalidade sintática. Maria da Fé, não. Maria da Fé fala como se fosse... o próprio João Ubaldo a falar, em conteúdo e forma, ou a consciência autoral, se você preferir, ou alguma idéia de autor implícito... Há em sua fala, e também na fala do Capitão Cavalo, um projeto político autoexplicativo. Refiro-me, é claro, aos dois personagem já em sua fase adulta. E refiro-me também, não às intervenções em indireto livre do narrador, mas aos discursos diretos de Dafé e Cavalo. — Não se sabe se ela fala tão bem porque sabe bem o que pensa ou se sabe bem o que pensa porque fala tão bem... — disse ele. — Quero dizer, a linguagem constrói o seu pensamento, que constrói a sua linguagem... 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 314 — Ouça — e pedi silêncio — o correr desta fala de Dafé a seu companheiro Zé Popó, que pensava em alistar-se para a Guerra do Paraguai e pedia a ela conselhos. Observe a clareza, o engajamento e a extrema correção sintática do discurso, a colocação dos pronomes, a concordância na regência... Observe também, no trecho que vou realçar, a evidente consciência de si que tem a personagem. E em seguida Capitão Cavalo, em resposta a uma delegação de poderosos que gostaria de elegê-lo senhor absoluto da ilha, sob um regime PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA autoritário e escravagista. (i) — Sim, eu sei, essa vontade também me dá — falou ela, para grande espanto dele, que esperava pelo menos uma risada irônica. — Eu sei que é verdade tudo o que pensamos sobre essa guerra (...), mas também esta é a nossa terra (...). Portanto, há alguma coisa nessa guerra que também é nossa, é a nossa terra, ou será um dia a nossa terra. (...) Eu é que não posso ir: sou mulher, sou bandida e tenho uma responsabilidade mais importante. Se eu deixar que essas idéias caiam, como vai ser? Mas tu não, tu podes ir, tu tens que viver isso também, lutar pelo que se ama, sem se poder amar, pelo que é da gente mas se vira contra a gente (...). (...) talvez tu aprendas alguma coisa que nos possa ensinar. (Viva o povo..., p. 430-431) (ii) — ... nunca quis ser o dono supremo da ilha do Pavão, que para mim deve ser de todos os que nela vivem e labutam. (...) Quanto aos índios, não sei por que não terão o direito de entrar e viver nas vilas, pois que se encontravam aqui antes de qualquer um de nós (...). Se têm seus costumes, também temos os nossos e, se queremos os nossos respeitados, respeitemos os dos outros. Quanto aos negros, se estão quase todos livres, é porque compreendo que muito melhor que escravos é ter comigo homens livres...” (O feitiço da ilha..., p. 155). — E esses dois discursos ainda avançam por quase duas páginas, num texto impecável e pouco caracterizado do ponto de vista dramático. São Maria da Fé e Capitão Cavalo a falar, mas também não são; é algum vestígio de autor implícito mas também não é; é João Ubaldo mas também não é; é uma idéia — disse eu. — Maria da Fé, Cavalo e, em seguida, no avançar da história de Viva o povo..., o general Patrício Macário são o porta-voz de uma idéia, de um projeto. Isto aqui que diz esta senhora... Ouça o trecho que vou ler... A utilização de mecanismos multidialetais como recurso de expressão literária não é infreqüente na literatura brasileira e se manifesta no vocabulário, em 549 Expressão de Patrick Chamoiseau, autor do Caribe, citado por Zilá BERND, “A invencível memória do povo brasileiro” (p. 89-105), in Zilá BERND & Francis UTÉZA, O caminho do meio...”, op. cit., p. 94. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 315 estruturas sintáticas, em realizações fônicas refletidas na grafia, sobretudo nas falas diretas em que o personagem se apresenta agindo e interagindo. No caso do romance de João Ubaldo Ribeiro, esses recursos são utilizados, mas (...) não é aí que reside a força verbal da obra; ultrapassa-os e penetra em um nível de estruturação dos discurso mais profundo e mais abrangente, que faz com que a fala de um personagem, se não houvesse outros indicadores, poderia ser suficiente para caracterizá-lo como pertencente a determinado segmento da sociedade estratificada de que é parte. O autor consegue sem nenhum esforço, (...) o que indica um extraordinário domínio da língua portuguesa na sua diversidade, expressar, reelaborados literariamente, claro, desde o dialeto dominante do português colonizador e dos brasileiros colonizadores aos dialetos crioulizados dos negros em fase de aquisição do português e conseqüente perda de suas línguas de berço. Nessa sinfonia lingüística (...), os desempenhos lingüísticos, que vivificam os personagens, se manifestam na estruturação argumentativa de seus discursos (...), na retórica própria aos diversos dialetos, nos referentes culturais específicos a cada segmentos sócio-cultural (...).550 — Mas isto — disse eu —, no entanto, não se aplica a Maria da Fé, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Macário ou Capitão Cavalo em processo discursivo. — E essa idéia de pertencimento a uma pátria etc. etc., de que Dafé e Macário são portadores, constitui o ponto nervoso da ideologia de Viva o povo brasileiro... Você se lembra do que diz a Eneida Leal Cunha? — perguntou o meu interlocutor, abrindo a tese da professora e já totalmente à vontade com o trabalho. — Para ela o romance existe justamente para narrar a história de Maria da Fé,551 que ela vai chamar de a terceira encarnação da almazinha, depois do alferes Brandão Galvão e do caboco Capiroba... — Sim, mas a professora Eneida atribui a Maria da Fé um papel que me parece brigar com o espírito do romance: o papel de uma proposta de João Ubaldo para... — e peguei a tese — ... “a verdadeira e mais própria encarnação da alma do povo brasileiro, que daria uma feição definitiva à identidade nacional”.552 — Ela afirma isso convictamente?553 550 Rosa Virgínia Mattos e SILVA, “Viva o povo brasileiro! E a língua portuguesa!”, A Tarde, 19 mai. 1985, realcei. 551 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 193-194. 552 Id., p. 195. 553 E o meu interlocutor perguntou isso provavelmente pensando numa declaração de João Ubaldo, datada de 1989, e eu digo isso porque o vi com a matéria do jornal A Classe Operária nas mãos. O jornalista pergunta: “Você acha que em Viva o povo brasileiro descobriu a alma do povo brasileiro? Foi isso que você perseguiu?”, e o autor responde: “... eu tive o cuidado de evitar isso. Eu não me oponho a que se diga isso, nem acho ofensivo dizer que eu descobri a alma do povo brasileiro, mas não foi essa a minha intenção. (...) eu imagino que o leitor possa sentir isso, depois de ter lido o livro achar que compreendeu o povo, sua alma no sentido de (cont.) 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 316 — Ainda bem que não... Diz ela que a tarefa é difícil de dimensionar: saber o quanto o autor elege mesmo Maria da Fé como projeto de construção final da identidade brasileira, ou se ela não passaria de mais uma encarnação da almazinha, historicamente datada etc. etc.554 — E continuei: — Maria da Fé, de todo modo, tem papel central no romance, e a professora Eneida demonstra isso muito bem através dessa ótima biografia-resumo. Maria da Fé é... PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... o índio antropófago e o herói da pátria das encarnações anteriores; é neta de Dadinha, a matriarca, porta-voz do imaginário negro; é filha de Vevé, uma escrava, e do Barão de Pirapuama; foi criada pelo Nego Leléu, que aprendeu ser a subserviência um trabalho (...); conviveu com Budião e Merinha, negros da senzala do Barão que o envenenaram; foi escolarizada por Dona Jesuína, mestiça e pobre, a mãe renegada de Amleto Ferreira, que lhe incute [ela, Dona Jesuína] o amor à pátria, o respeito aos seus heróis e aos valores instituídos, e, logo a seguir, educada por Zé Pinto, que lhe transfere a memória de seus ascendentes (...), heróis de uma outra história que não está nos livros escolares; finalmente apaixona-se por Patrício Macário, militar destinado a (...) exterminá-la (...), mas que descobre em Maria da Fé o valor da “Irmandade do Povo Brasileiro”.555 — É uma senhora biografia... — disse ele, franzindo o beiço —, e me parece bastante razoável a idéia de ser Maria da Fé esse amálgama final a constituir a identidade brasileira... Mas há um contraponto para isso; um contraponto que vulnerabiliza a força dramática do personagem... — continuou ele, mas eu o interrompi para falar o que ele provavelmente estava pensando. — Essa biografia é na verdade uma espécie de resumo do livro — eu disse. — O papel de Maria da Fé, bem como o do Capitão Cavalo, é outro; é o de porta-voz: ela desenvolve, ao longo do livro e a partir do momento em que se torna o que é, uma série de pequenas teses sociais, para as quais terá depois a adesão de seu companheiro, o velho Patrício Macário: a do exército como parte do povo, e não instrumento de dominação dos poderosos (Viva o povo..., p. 431); a da vida como tendo muitos lados e podendo ser vista e vivida de muitas maneiras (p. 509); a responsabilidade do livre-arbítrio na conduta dos homens (p. 511); a da entender a sua maneira de ser (...). Mas a expressão ‘alma do povo’, ‘espírito do povo’, é uma expressão associada com o nacionalismo de direita. Quer dizer, é a expressão Volk Geist em alemão, muito usada pelo nazismo, que quer dizer precisamente isto — espírito do povo. Eu não pensei nunca num negócio nacionalista. Eu fiz uma coisa sobre minha comunidade” (José Reinaldo CARVALHO, “João Ubaldo indaga sobre a alma humana”, A Classe Operária, 12 a 25 jan. 1989). 554 Eneida Leal CUNHA, “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 194. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 317 arte como forma de conhecimento (p. 318). E Capitão Cavalo, a partir da idéia da ilha do Pavão como um ensaio do que poderia ter sido ou poderia ser ainda a sociedade brasileira, também funciona como o personagem-articulador da idéia de liberdade para todos, de não-opressão, de livre-propriedade, de mistura de raças e de liberdade de crenças. Sua adesão a toda a forma de justiça e solidariedade social teve início após o passamento da esposa, Maria Joana, cujo abatimento às vésperas de morrer, depois de parir Iô Pepeu, único filho dos dois — expliquei —, é assim descrito pelo narrador em indireto livre: “Sua tristeza era ver tanta abastança nas mãos de uns poucos, que nem mesmo tinham o que fazer com ela, e miséria e infelicidade para muitos” (O feitiço da ilha..., p. 149). — Descrito pelo narrador com algum excesso, talvez, de didatismo e clareza, não? — e ele sorriu. — Eu chego lá. E todas essas teses se tornam bastante evidentes porque as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA falas de Dafé e do Capitão Cavalo são claras, articuladas e firmes, características atribuídas, nos dois livros, somente aos poderosos e “bem falantes”. A segunda razão do realce está no fato de que Dafé, bem como o Capitão Cavalo, embora este em menor medida, porque não tem o ímpeto revolucionário da primeira..., Dafé, dizia eu, não fala às paredes, mas aos seus pares, que “usam” a sua fala como arma de guerra. Sua fala é, portanto, eficaz, e não vazia. E ela fala também aos seus opositores, que até chegam a argumentar de volta, sempre aos berros, mas acabam calando, ficando a última palavra, e a última palavra é quase sempre a mais forte, na boca da guerreira, como muito bem ilustra toda a grande discussão de Dafé com um prisioneiro seu, um tenente da República encarregado de destruir todas as expedições ao Arraial de Canudos. — O povo brasileiro não deve nada a ninguém, tenente — disse ela. — Ao povo é que devem, sempre deveram, querem continuar sempre devendo. (...) — O Governo não pode dar satisfações a qualquer ralé que pretenda violar o princípio da autoridade! — Da autoridade? Quem lhes deu autoridade? De onde tiraram sua autoridade? (p. 563-564) — Quero fazer aqui uma observação que complementa o que você disse sobre esse discurso escorreito de Maria da Fé — anunciou o meu interlocutor, antecipando 555 Id., p. 196-197. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 318 uma crítica. — Você comentou, há coisa de meia hora, os casos de Turíbio Cafubá e do negro Feliciano diante do narrador, que entra em cena para falar “em nome dos” oprimidos e sem voz. Você citou também a professora Eneida Leal Cunha, segundo a qual “o autor providencia” para os personagens de pouca voz um narrador em terceira pessoa, incumbido, então, da tarefa de falar. E esse narrador... — Sim — interrompi-o. — Esse narrador, porque é sem cabeça e porque tem o dom de incorporar as características orais dos discursos originais dos personagens, apresenta então um discurso nada neutro, nada correto e nada sóbrio, antes, pelo contrário, marcado pelas oralidades e pelos vícios de linguagem do personagem em questão. É o narrador sendo cavalo dos discursos dos outros... E dou-lhe um bom PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA exemplo. Veja: é o narrador a falar e a operar essas adaptações ortográficas... Alguém perguntou se Edésia, que era a mais antiga comedora de baiacu, já havia sentido alguma coisa e ela respondeu que somente uma vez. Deu tomichão nos beiços, deu tomichão nas pontas dos dedos, deu formidamento nas pernas. Depois deu tontura, mas tontura dostosa, melhor do te tontura de vinho. E depois deu uma leseira de mais de tinze dias, mas só foi isso te deu, se dissesse te sentiria mais alduma toisa era potota. (p. 593) — Pois bem — voltou o meu interlocutor. — Isso não acontece quando se está diante dessas tais pequenas teses sociais do livro. Ou seja, nem os discursos de Maria da Fé ou Capitão Cavalo, como você já demonstrou, nem determinados discursos do narrador em indireto livre, como pretendo mostrar, se preocupam em singularizar-se lingüisticamente quando estão envolvidos na explicitação de uma dessas pequenas teses sociais. — É como se houvesse, por parte do autor, uma tal preocupação com a clareza na enunciação dessas teses, que ele prefira sacrificar determinados feitios de linguagem ou mesmo erros de sintaxe e pronúncia que seriam típicos das falas de tal ou tal personagem... — Sim. E, sacrificando feitios de linguagem, o romance acaba por sacrificar o que ele tem de mais potente, caindo no erro de se tornar, nesses momentos, nada mais que a ficcionalização de um punhado de ideologias, as ideologias do autor... E isso pode ser detectado nalgumas críticas feitas ao livro, no caso, Viva o povo..., mas que bem poderiam estender-se aO feitiço da ilha do Pavão. Algumas bastante contundentes e com as quais nem eu mesmo concordo, 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 319 como é o caso da resenha do New York Times, embora concorde parcialmente. Você certamente leu... Eu estava lendo e... — Sim, sim — e coloquei as matérias sobre a mesa, para lermos juntos. (i) ... the real problems is the characters themselves. Rather than being flashed-out, organic outgrowths of the story, they are stereotypes, inventions in the service of an idea. (...) ... we have a novel of ideas told by a student of history, rather than a story told by a real storyteller.556 (ii) While worthies such as Patricio and Maria tend somewhat to clichè, most characters, even minor ones, are individualized, sharply drawn and memorable.557 (iii) Maria da Fé, figura inesquecível (...), dá ao romance um certo tom épico. Os seus discursos, às vezes à beira do precipício do retórico e que não excluem o panfletário, têm a beleza e a força das autênticas criações literárias.558 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — É o Wilson Martins, no entanto — disse ele, segurando uma matéria de jornal —, que resume bem esse desequilíbrio e aponta a sua medida. Para ele, constituem o título, como já mostrei a você, e alguns discursos mal disfarçados a “verruga” panfletária do livro. Ouça: O romance de João Ubaldo Ribeiro foi escrito por um ideólogo em luta constante contra o romancista ou por um romancista em luta constante contra um ideólogo: a vitória coube à literatura brasileira, porque foi afinal o romancista que se sobrepôs ao ideólogo e o obrigou a escrever um grande romance em lugar do mau panfleto polêmico e simplista de que restam, aqui e ali, alguns traços inoportunos.559 — E agora lhe dou um exemplo disso tudo — continuou o meu interlocutor, disposto a ilustrar ainda mais a sua observação —: as páginas 482 e 483 dedicam-se ao personagem Zé Popó... 556 — Traduzo: “O verdadeiro problema são os personagens eles mesmos. Ao invés de serem arrebatamentos, crescimentos orgânicos dentro da história, eles são estereótipos, invenções a serviço de uma idéia. (...) ... nós temos um romance de idéias contado por um estudante de história, mais do que uma história contada por um escritor de verdade” (Mary MORRIS, “E Pluribus Brazil”, New York Times, 16 abr. 1989). 557 — “Enquanto pesos pesados como Patrício e Maria tendem de alguma maneira ao clichê” — traduziu ele, livremente —, “muitos dos personagens, mesmo os de menor interesse, são individualizados. nitidamente desenhados e memoráveis” (Thomas CHRISTENSEN, “Brazilian saga — A nation’s soul portrayed on a vast fictional canvas”, Chicago Tribune, 4 abr. 1989). 558 José Carlos de VASCONCELOS, “Viva o povo brasileiro e... João Ubaldo Ribeiro”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 4 fev. 1986. 559 Wilson MARTINS, “A matéria brasileira (II)”, Jornal do Brasil, 11 mai. 1985. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 320 — É justamente sobre ele que fala o Wilson Martins, em outra matéria, que você, aliás, já citou aqui, mas apenas o trecho final, a respeito da infelicidade do título... Ouça — e li. Seu livro é um grande romance ideológico, por ser, antes de mais nada, um grande romance literário e, nessas perspectivas, mesmo o que poderia ser um erro técnico em outro contexto é valor homogêneo com a história nas coordenadas que o autor desejou conscientemente estabelecer. É o que ocorre, por exemplo, com o discurso de Zé Popó de volta do Paraguai ou com o de Maria da Fé no encontro com os oficiais do Exército em Canudos, ou, ainda, com o monólogo interior de Patrício Macário a 30 de junho de 1871. (...) O romancista propõe uma visão ideológica da nossa história, estruturada no populismo e no nacionalismo (valores para ele indistinguíveis e intercambiáveis), o que implica, está claro, o inevitável maniqueísmo romântico na construção dos personagens e o irrealismo historiográfico que ignora, precisamente, o que a história tem... de histórico.560 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Sim, sim — disse ele, visivelmente contrariado por eu me ter antecipado. — Mas você me interrompeu, e bruscamente. Eu ia mencionar, antes que o Wilson Martins o fizesse, o personagem Zé Popó. As páginas 482 e 483 mostram-no a responder a perguntas em uma praça pública; perguntas sobre a sua participação na Guerra do Paraguai. Não há travessões para Zé Popó, não há um discurso direto para Zé Popó. Há o narrador, um narrador em terceira pessoa, que o autor providenciou para falar “em nome de” Zé Popó. E esse narrador exibe, em seu discurso em indireto livre, alguma incorporação dos modos de falar de Zé Popó? — Não, não exibe. É um discurso neutro, correto e claro, sem marcas lingüísticas, um discurso tão-somente ocupado com a explicitação de algumas idéias políticas acerca dos significados daquela guerra. E isso salta aos olhos — disse eu — justamente porque essa não é a característica preponderante desse narrador. Sua marca pessoal é justamente a oposta: trata-se do narrador sem cabeça, que está o tempo todo, ou quase todo..., a incorporar um modo alheio de se expressar. O seu discurso indireto livre... — Deixe-me dizer isto melhor, citando Lúcia Helena, que resumiu bem essa inconstância narrativa — antecipou-se ele, já dono de todo o meu material de imprensa. — “O discurso indireto livre, com que dinamiza processos oníricos belíssimos, também é obscurecido pela preferência em prol do narrador em 560 Wilson MARTINS, “A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 4 mai. 1985. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 321 terceira pessoa, pelo diálogo construído a partir de soluções previsíveis e consagradas”.561 — E ele leu um trecho do livro que provavelmente ilustraria esta segunda forma de aparição do narrador: Não tinha presenciado nenhum dos grandes atos de heroísmo de que tanto se falava desde que a Campanha começara? Tinha, sim, tinha visto muitos atos de valentia e coragem, em ambos os lados. (...) Eram todos heróis e não nasceram heróis, eram gente do povo, gente como a gente da ilha e da Bahia, que também suportava muitas dessas coisas e mais outras, até piores, sem ir à guerra nem ser chamada de heróica. E também foram heróicos os paraguaios. Não tinha ódio aos paraguaios, nem achava que se devia ter ódio deles, pois lutaram pela sua terra como nós lutamos pela nossa. Também os paraguaios eram um povo... (p. 483) — E por aí vai — disse ele. E concluiu: — Viva o povo brasileiro não teria a força e as cores narrativas que tem, caso o narrador se mantivesse fiel a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA esse tom neutro e coerente por toda a história... 5.6. O NARRADOR DE NOVENTA CABEÇAS: LITERATURA E CONHECIMENTO — Qual a diferença entre esse narrador de noventa cabeças e o nosso já conhecido narrador sem cabeça? Trata-se do mesmo? — Sim, trata-se do mesmo, mas com a sua característica central, incorporar discursos alheios, levada ao paroxismo. Como eu disse um pouco antes, o narrador incorpora um saber popular, incorpora uma narrativa de conhecimento consensual acerca de assuntos específicos. O efeito desse tipo de procedimento é a presença de uma voz “naturalmente legitimada” a falar de tal e tal tema. Trata-se de uma legitimação conferida pelo tempo, pela tradição e pela experiência. Há uma espécie diferente de saber nesse tipo de narrativa: um saber não-científico, ou seja, não preciso, não verificável e não mensurável. Esse saber pode ser particular e dirigir-se a aspectos circunscritos à vida pessoal de um personagem, ou pode ser mais amplo e referir-se a arsenais maiores de conhecimento. Você não vai me interromper pedindo que eu lhe dê exemplos? — provoquei. — Exemplos, por favor... — disse ele, e me ofereceu um cafezinho. — O romance Viva o povo... é farto em exemplos desse tipo. Há aqui, sob uma forma literária, quase que uma espécie de projeto epistemológico subterrâneo 561 Lúcia HELENA, “Admirável mundo, o do povo”, Jornal do Brasil, 15 dez. 1984. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 322 de revelação de culturas brasileiras, em minúsculas e no plural. A entrada em cena, no romance, do personagem Nego Leléu, por exemplo, vai revelar ao leitor um narrador diferente, com um modo de expressar-se e uma visão de mundo sintonizadas com os feitios de Nego Leléu, um narrador desenvolvido especialmente para a descrição desse cativante personagem,562 e esse narrador carrega consigo um saber que vem dele e de seu grupo. — O narrador, mesmo aqui — disse ele —, vai manter aquela sua estratégia que já conhecemos? Ou seja, apresentação dos personagens em abundantes massas de discursos sob a forma do indireto livre e focalização interna quase que constante sobre o personagem descrito? Em suas palavras, narrador em trabalho de incorporação... — Sim, mas esse narrador, com todas essas características, terá aqui um estatuto conferido pelo tipo de conhecimento que ele possui: quem descreve Nego PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Leléu é o povo de onde vem Nego Leléu; é alguém que conhece as matreirices de Nego Leléu. Na descrição que realiza do negro liberto Leovigildo, o narrador não está necessariamente incorporando o próprio Leléu, mas alguém de fora e íntimo: um amigo, um observador, uma pessoa do povo, ou então nada mais que um ponto de vista geral.563 562 — Tão cativante que nestes termos se expressou o autor desta entrevista, inspirado pelo que lhe disse o escritor. Ouça — e li —: “Nego Leléu chegou de mansinho, para participar de apenas algumas cenas, poucas páginas, quase nada. Foi ficando, ficando. Preencheu uma, duas, três, quatro folhas. Vinha de longe, não era nem para ficar. Mas ficou. Falava muito, e falava bem. Encantou o dono do papel, que não soube como manter Nego Leléu em segundo plano. O sujeito de boa aparência, com jeitão de preto rico e pinta de sabido seduziu o autor da história. Tomou corpo e muitas linhas. E também viveu bastante, perigou até entrar na eternidade, mas morreu menino, empinando pipa. (...) Matar Nego Leléu foi quase um drama. A decisão, tomada pela manhã, precisou de tempo para amadurecer. Naquele dia, ele tinha que sair da história, já estava lá há muito tempo e, afinal, o livro continuava” (Nahima MACIEL, “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997). 563 — Talvez, e digo isso numa nota, o ponto de vista aqui sobre Leléu seja o do próprio Ubaldo, em primeira mão, uma vez que a sua inspiração para o personagem tenha vindo, concretamente, de um amigo íntimo. Ouça aqui esta resenha de 1984. — E li: — “... Leléu (...) foi um dos poucos personagens (...) a serem descritos (...) a partir de uma pessoa real: o pescador José Raimundo dos Santos, 52 anos, mais conhecido por José de Honorina, amigo do escritor desde a infância” (Mário Sérgio CONTI, “Um brado retumbante”, Veja, 19 dez. 1984). E diz o escritor: “... tem uma porção de coisas que o Zé sabe e eu não sei, então fica uma conversa muito rica. Sem charme nenhum, eu aprendo muito com ele, com o discernimento dele. Zé tem a cabeça feita desde os sete anos de idade, uma coisa raríssima, e em companhia de Stela de Oxóssi, mãe-de-santo de Caymmi, de Carybe e de Jorge Amado. Pois Zé é um homem importantíssimo que pouco sai de Itaparica. Uma figura que me acrescenta muito...” (Renato SÉRGIO, “João Ubaldo Ribeiro — Um personagem que esqueceu de se incluir num dos seus oito livros...”, Ele Ela, texto sem data). E continua: “... me acrescenta muito mais do que certas figuras tidas como orientadoras da cultura brasileira e que na verdade vivem na periferia (cont.) 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 323 — Você quer dizer que um narrador não precisa ser uma consciência? Ele pode ser nada mais que um ponto de vista? — quis saber ele. — Não precisa sequer ser uma pessoa? — Isso mesmo. Seymour Chatman defende a possibilidade de uma narrativa não ser realizada através de uma mediação humana reconhecível, e ainda diz que o dado da personalidade humana não é uma condição sine qua non para a máscara narratológica...564 “O narrador”, diz ele, “não precisa ser um ‘alguém’. Toda afirmativa narrativa é proferida por um narrador, e esse narrador pode não ser um ‘alguém’, mas um ‘algo’. O agente da apresentação não precisa ser humano”, conclui Chatman, “para merecer o nome de ‘narrador’”,565 mas isso é uma discussão... — Vamos a ela. — Já estamos nela... Veja o início do trecho a que me refiro, observe a posição geográfica do narrador, o seu conhecimento específico do valor e das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA características da vestimenta do negro e a gradual aproximação, espacial e psicológica, que o leitor começa a experimentar em relação a Leléu: ... Quem é aquele que lá vem lá longe, todo serelepe, lépido e fagueiro? Ora se não é Nego Leléu muito bem fatiotado, chapeirão de coro mole, burjaca toda catita, pantalonas mais que galhardas, gravata tipo plastrão, alcobaça repolhuda, camisa de batista fino, ceroulas do melhor algodãozinho, um par de chapins lustrosos pendurado nos dedos, embotadeiras com ligas de cadarço jogadas no ombro — e as piores intenções! (Viva o povo..., p. 126) — A exclamação ao final do trecho — continuei —, uma exclamação que é do narrador e denota um certo entusiasmo de sua parte, pode sugerir a presença de um interlocutor, o leitor, a quem se dirige o narrador no intuito de descrever, o mais fielmente possível, o personagem que ora se apresenta. Há ao longo dessa grande fala de abertura outras marcas da presença desse interlocutor, as sentenças de alguma coisa européia que chegou aqui, escorregou e foi mal digerida” (Renato SÉRGIO, “João Ubaldo Ribeiro — Um best seller desabafa: ‘A qualidade de vida das grandes cidades não me diz nada’”, Manchete, 19 out. 1985). 564 — Traduzi livremente deste original: “... a kind of narration that is not performed by a recognizably human agency. I argue that human personality is not a sine qua non for narratorhood” (Seymour CHATMAN, “The Literary Narrator” (p. 109-123), in Coming to Terms — The Rhetoric of Narrative in Fiction and Film, Ithaca and London, Cornell University Press, 1990, p. 115). 565 No original: “But the narrator need not to be a ‘someone’. Every narrative statement is presented by a narrator, and the narrator may be not a someone, but a something. The agent of presentation need not be human to merit the name ‘narrator’” (id., p. 116). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 324 “Podem crer!”, “... é o que estou lhe dizendo!” e “... meu amigo, o que é que está pensando?” (p. 128). Esse interlocutor, que é imaginário, tal como no caso de Grande Sertão: veredas, não se manifesta nunca. O narrador, que vê Leléu à sua frente, conhece-o muito bem, e também às suas graças e artimanhas, e deixa isso claro. Veja: “Quem visse assim sua marcha altiva e sua roupa airosa podia pensar que era um negreiro preto muito rico (...). Mas não, era Nego Leléu ensaiando sua cara de inocente” (p. 126-127). — Não consigo ver esse narrador externo incorporando uma “pessoa do povo” ou “algo abstrato” relacionado a um saber popular...; consigo ver apenas uma incorporação de Leléu pelo narrador... — Não, não. Se fosse um narrador focalizado apenas em Leléu e nos seus pensamentos, não haveria a necessidade de esse trecho seguinte existir, uma vez que Leléu não ficaria a revelar a si mesmo o que ele mesmo já sabe. Está claro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que temos aqui um narrador preocupado em revelar ao seu interlocutor imaginário, o leitor, um universo: o universo, a vida e as conquistas de Leléu. Veja o trecho: “Nego Leléu ficou forro por testamento de um português de Salinas de Margarida, não quiseram libertar, olhavam para o papel e liam mentiras que não estavam escritas nele” (p. 127-128). Não é Leléu e nem tampouco um narrador focalizado em Leléu, que está a dizer isso... — Hum... — fez ele. — E que conhecimento veiculado é esse que se percebe das palavras desse narrador? Onde está esse saber de que você falou? — Vejo aí nesse grande trecho de apresentação do Nego Leléu um conhecimento do que significa levar a vida tal qual Nego Leléu a leva. — Não entendi. — O narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu, conhece muito bem as possibilidades materiais de sua gente para saber que Leléu estava naquele dia bem vestido e vestido como um negro liberto que tem lá o seu dinheiro guardado, e muito bem guardado, “num lugar marcado que só ele sabia” (p. 128). O narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu — continuei —, conhece muito bem as graças que fazem os negros, a “graça da bochecha de abóbora”, a “graça da risada” e a “graça do velho africano bem velhote” (p. 127), para agradar às crianças e assim ser bem recebido nos locais propícios a bons negócios. O narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu, sabe muito bem do valor de se dormir com uma professora parda, velha e surda, casar com ela, montar casa, lhe 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 325 dar “bom serviço de marido três vezes por semana senão mais” (p. 128) e assim aprender a ler e a contar para subir na vida e ser alguém; sabe do valor de se ficar amigo de coronel, de se formar oficial alfaiate, de ter negros libertos trabalhando na oficina, de fechar luto quando a mulher morre, de arranjar mulher dama para os ricos, de montar um prostíbulo, de louvar e sempre paparicar Perilo Ambrósio e sua mulher Antônia Vitória, de fazer sempre o que esperam dele, Leléu, que faça; do valor, enfim — eu disse —, de ter conduzido todos os seus negócios da exata maneira como Leléu os conduziu, e não de outra. — O narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu, sabe muito bem do valor de se ter aprendido, na vida, “ser a subserviência um trabalho”, como bem disse a Eneida Leal Cunha; “o mais produtivo trabalho disponível aos negros”566 — citou o meu interlocutor, acho que dessa vez plenamente convencido da minha idéia. — Trata-se — continuou ele — de um conhecimento acerca do que é necessário a um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA negro alforriado para conseguir ser um pouco mais que um negro alforriado... Sim, é isso. Veja aqui o que diz o narrador nesse trecho: “Tudo neste mundo se consegue com trabalho e quem é preto consegue menos com muito mais trabalho...” (p. 127). — Veja aqui agora o exemplo de um saber mais amplo e impessoal do narrador, mas um saber oriundo de uma vivência junto aos elementos do conhecimento que estruturam esse saber: o sexo entre as baleias. Quem narra está narrando o que ouviu falar, o que viu ou o que lhe contaram gerações a fio; não o que estudou ou aprendeu nos livros... O narrador é antes um observador e um ouvinte do que vê e lhe conta o povo do lugar.567 ... As baleias, das grandes e das pequenas, de qualquer das muitas famílias e raças que todo ano aqui passeiam e são caçadas, não casam como os outros peixes. (...) não o peixe baleia, que quando se enamora primeiro canta e assovia (...). E também se lamenta no meio das canções, ouvindo-se cada hora seus gemidos de paixão, a música de toda noite nesta época do ano. Assim do alto e de longe, vê-se chispando pela flor d’água uma baleia, mas depois vê-se que são duas. É que vão tão juntas e harmonizadas que parecem um só bicho (...), espelhando o sol nos couros azulados. Como, nos dias mais frios, seus esguichos se aglutinam em gotinhas vaporosas que viram rodas de arco-íris contra a luz, acha o povo que as baleias noivas constroem assim suas grinaldas e anunciam às outras o casamento. (Viva o povo..., p. 131-132) 566 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 196. 567 — “... para João Ubaldo” — e o meu interlocutor me interrompeu —, “o escritor, antes de saber escrever” disse José CASTELLO, “tem que saber ouvir” (“Com os olhos do povo — O escritor João Ubaldo e seu novo romance”, IstoÉ, 19 dez. 1984). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 326 — É um trecho bonito... — disse o meu interlocutor. — Fica mais bonito ainda depois, quando há a descrição do ato amoroso propriamente dito: a “grande pilastra colorida” como “um mastro festeiro” saindo “das dobras da barriga dele” e a baleia fêmea com suas próprias dobras se entreabrindo “em vermelhos, roxos, brancos e violetas latejantes” (p. 132). Há duas observações a serem feitas aqui: a primeira diz respeito a algo que falei a você bem antes e que ainda pretendo desenvolver mais à frente, sobre a “onisciência relativa” do narrador. Observe pelos trechos que eu realcei que o narrador não está, contrariamente ao tom dessa descrição, que pediria total onisciência... que o narrador não está de posse de todos os ângulos de visão: ele não está debaixo d’água; está fora d’água e consegue ver as baleias apenas quando emergem. Aquilo que ele descreve sem ver não passa de uma dedução fantasiosa, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA como é o caso da descrição dos órgãos sexuais das duas baleias. — Isso me lembrou o início daquele livro do Peter Benchley: Tubarão. Você leu? — Não, não li — e fiz cara de pouco caso. — Não seja preconceituoso... — disse ele, e eu enrubesci. — Veja este início. Dou-lhe esse exemplo para servir de contraste entre um narrador parcialmente ciente, caso de Ubaldo, e um onisciente de fato. O narrador de Benchley não está fora, mas ao lado do peixe. Ouça — e ele pegou o livro de uma estante mais recuada. ... O imenso peixe deslocava-se (...) pelo mar noturno, impulsionado por movimentos curtos do rabo em forma de crescente. A boca estava aberta apenas o suficiente para permitir que um jato de água lhe passasse pelas guelras. Quase não havia outro movimento: apenas uma correção ocasional do curso, aparentemente a esmo, pelo ligeiro levantar ou abaixar da barbatana peitoral, (...). Os olhos nada viam na escuridão e os outros sentidos não transmitiam nada de extraordinário ao cérebro pequeno e primitivo. O peixe poderia estar adormecido, se não fosse pelo movimento determinado por incontáveis milhões de anos (...). Carecendo da bexiga de flutuação (...) e das abas móveis para fazer a água rica em oxigênio passar pelas suas guelras, ele só podia sobreviver deslocando-se. Se parasse, iria para o fundo (...) e morreria de anoxia.568 568 Peter BENCHLEY, Tubarão, São Paulo, Círculo do Livro, 1975, p. 9. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 327 — Sim — eu disse. — O narrador de Tubarão não é apenas onisciente, mas infalível. Não há qualquer hesitação em sua narrativa: ele sabe, e sabe que sabe, e o que faz é comunicar ao leitor a sua ciência. O narrador de João Ubaldo Ribeiro é tudo, menos um convicto. O início do romance O sorriso do lagarto, de 1989, é paradigmático dessa cautela narrativa diante dos eventos: “Talvez isto não fique claro ainda por muito tempo, mas o exame consciencioso dos fatos que levaram aos acontecimentos principais deste relato mostra que sua primeira cena se desenrolou em data já um pouco distante, sem que ninguém então pudesse saber o que pressagiava” (p. 9); bem como o início do próprio Viva o povo...: “Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias...” (p. 9). — Você disse que tinha duas observações a fazer sobre a descrição do amor entre as baleias... Qual a segunda? PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — A segunda vai por aqui: o narrador desse trecho também faz as vezes de um homem do povo, talvez um pouco mais instruído, dadas as palavras que usa, mas o seu conhecimento é adquirido pela observação daquilo que está a descrever. O que eu falei antes sobre a descrição das conquistas de Nego Leléu também aqui se aplica, ainda mais certeiramente: há na literatura de João Ubaldo Ribeiro um projeto epistemológico subterrâneo de revelação e veiculação de saberes — eu disse mais uma vez, com uma dramaticidade talvez exagerada... — De saberes... — fez o meu interlocutor, desconfiado. E, de repente, pareceu lembrar-se de algo: — Lembrei-me de algo que declarou o José Saramago acerca disso: “Com petulância de romancista, escrevi uma vez que a melhor maneira de explicar as coisas ainda é a metáfora, isto é dizer uma coisa por outra”.569 Creio que isso faz eco ao que você está dizendo... — Faz, sim. O próprio João Ubaldo diz que o escritor de ficção “não tem de ser analítico, não tem de ser crítico, não tem de confiar na racionalidade”, e continua: — ... e, com isso, evita dúvidas secretas e suarentas, dúvidas mal seguradas por bulas de remédios (...), dúvidas de quem, por algum motivo muito irracional, tem de segurar-se na razão e em uma ou mais formas de a razão organizar-se. 569 José SARAMAGO, “O tempo e a história”, Jornal de Letras, 27 jan. 1999, citado por Rita OLIVIERI-GODET, Université de Paris 8, “Memória, história e ficção em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro”, in <http://www.geocities.com/ail_br/memoriahistoriaficcaoemviva. html>, acesso em 18 out. 2005. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 328 Enfim, são coisas loucas, epistemológicas, que me dá vontade de falar e me fazem lembrar meu amigo Glauber, cuja palavra favorita era (...) “epistemologia”. (...) E quando o sujeito consegue ser absolutamente “sujeito” (no sentido epistemológico, viva Glauber, que saudade!), como é o caso do ficcionista, este sujeito, se é potente, vence o absurdo, a ponto de não mais notá-lo.570 — Ele acredita que o escritor... — e continuei a ler. — ... manipula (...) uma forma de conhecimento meio capeta, tão capeta que não é redutível às categorias elementares do chamado método científico (...). Então o sujeito pode contestar a “objetividade” do que o escritor faz, mas não pode contestar o fato de que, “objetivo” ou não, o que o escritor faz é uma forma de conhecimento da realidade, e, muitas vezes, essa forma é privilegiada sobre as formas “científicas”.571 — Umberto Eco vai, não numa direção contrária a esse pensamento de Ubaldo, mas eu diria que uma direção paralela, não apenas chamando essa forma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA de conhecimento de forma “metafórica de conhecimento”, como também alinhando os pontos de vista sobre a realidade, proporcionados pela arte e pela ciência ao longo da História — disse ele. — Não é à toa que a epígrafe de Viva o povo... é, de uma ponta a outra, nietzscheana... “O segredo da verdade é o seguinte” — li —: “não existem fatos, só existem histórias”.572 — Ouça — e ele retirou das estantes a Obra aberta, de Eco. ... é sempre arriscado sustentar que a metáfora ou o símbolo poético, a realidade sonora ou a forma plástica constituem instrumentos de conhecimento do real mais profundos do que os instrumentos proporcionados pela lógica. O conhecimento do mundo tem na ciência seu canal autorizado, e toda aspiração do artista à vidência (...) contém sempre algo de equívoco. A arte, mais do que conhecer o mundo, produz complementos do mundo (...). Entretanto, toda forma artística pode (...) ser encarada, senão como substituto do conhecimento científico, como metáfora epistemológica: isso significa que, em cada século, o modo pelo qual as formas da arte se estruturam reflete (...) o modo pelo qual a ciência ou (...) a cultura da época vêem a realidade.573 570 Entrevista, João Ubaldo RIBEIRO, arquivo da Ed. Nova Fronteira. 571 Id. 572 573 — “Essa minha frase não tem nada de original”, disse João Ubaldo Ribeiro. “É uma constatação. Cada sujeito da História vê a realidade de acordo com determinantes de classe, de profissão, formação. Várias influências socialmente adquiridas. De certa maneira, alguns fatos da História do Brasil não aconteceram realmente como aprendemos na escola” (Márcio VASSALO, “A palavra é imortal”, Lector, 1997). “A poética da obra aberta” (p. 37-66), in Obra aberta, São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 54-55. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 329 — Parece que estamos a ver João Ubaldo Ribeiro e Umberto Eco envolvidos numa discussão — disse eu. — E Ubaldo está fazendo mais do que o papel do artista; ele está fazendo o papel do artista que teoriza sobre a própria arte, ao passo que Eco, o papel do teórico que se coloca no papel do artista que defende um novo status para a sua arte; um status que pode ultrapassar o artístico em direção ao epistemológico... — Você diria que essa opção, na obra de Ubaldo, pela literatura como orientadora do conhecimento, em detrimento de discursos mais científicos oriundos de outras áreas, pode ser a conseqüência de uma feição que teve o meio intelectual brasileiro principalmente no século XIX e início do XX? — Desenvolva. — Disse isso pensando no Antonio Candido, para quem “as melhores PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária”,574 e ele se refere não apenas à parte estritamente literária, e cita José de Alencar, Machado e Graciliano, como as de formato históricosociológico, como Euclides da Cunha e Gilberto Freire. — Eu não disse nada, e ele continuou: — Veja bem, eu não estou querendo criar aqui um padrão para aquilo que vamos descobrindo pelo meio do caminho. Não. Apenas percebo que Ubaldo pode ser um herdeiro desse modo de interpretar o mundo à volta. — Sim, mas ele faz literatura, e é claro que todas as suas convicções filosóficas, as suas idéias políticas e as suas maneiras de ver a vida se materializam, quando efetivamente se materializam..., através de sua prosa literária, porque é isso o que ele predominantemente faz. Contudo — continuei —, o que ele diz em entrevistas, em crônicas e em artigos também não deixa de ser uma via de entendimento de sua obra, como você mesmo apontou em algum momento de nossa conversa... Ou fui eu que apontei. Já não me lembro... — Claro, claro! — disse ele. — Mas em tudo o que ele diz há essa postura... Essa que você apontou sobre a arte como via alternativa, mas não menor, de conhecimento. Ouça: “A literatura”, diz o Antonio Candido, para ficarmos aqui mais um pouco, permitiu e forçou “a proeminência da interpretação poética da descrição 574 “Literatura e Cultura, de 1900 a 1945” (p. 109-138), in Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1985, p. 130. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 330 subjetiva, da técnica metafórica (da visão, numa palavra), sobre a interpretação racional, a descrição científica, o estilo direto (ou seja, o conhecimento)”.575 — Essas palavras do Candido estão focando uma outra época... — comecei, percebendo que o meu interlocutor é que estava, afinal, guiando a nossa conversa, o que não era mau... — Não — reagiu ele, mais destemperado do que seria o razoável. — Não me venha dizer que o Antonio Candido está se referindo a uma outra época e escrevendo em uma outra época, que isso eu já sei, porque sei ler, e sei contar. Eu o citei aqui porque, pelo que vi no que você disse sobre Ubaldo, há naquilo que o Candido apontou sobre os nossos círculos intelectuais no final do século XVIII e início do XIX uma concepção de conhecimento que é esta: e o cito novamente: “... o espírito da burguesia brasileira se desenvolveu sob influxos dominantemente literários, e a sua maneira de interpretar o mundo circundante foi estilizada em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA termos, não de ciência, filosofia ou técnica, mas de literatura”.576 — Você disse muito bem... Deixe-me dar um outro exemplo retirado de Viva o povo... — pedi, quase sem graça por retomar o fio. — As páginas 248, 249 e 250 dedicam-se a uma espécie de digressão sobre o bicho tatu. Menciona o narrador que pouco se sabe sobre o tatu, embora muito se diga que o que se deve saber sobre o tatu é que ele cava buracos. E, partindo da constatação dessa ignorância inicial, desata o narrador a demonstrar que quase ninguém sabe nada sobre o tatu, somente o povo que lida com tatus e provavelmente os especialistas que se dedicam a estudá-los. E muitas informações são transmitidas sob a forma de um discurso pouco comprometido com a verificabilidade e com a precisão: os hábitos alimentares de cada tipo de tatu, suas formas, suas cores e seus gostos. As informações são entremeadas com referências ao que diz ou não diz a gente do lugar e com juízos de valor do próprio narrador, que se coloca numa posição de mediador entre o leitor e o povo da Ilha. — Mostre-me esse discurso “epistemológico” sobre o tatu. Mostre-o em funcionamento — pediu-me o meu interlocutor, tentando disfarçar um sorriso. — Sim, veja: “O tatu não tem dentes. Quer dizer, bem olhado tem, não na frente da boca mas atrás, umas nonadinhas que nem dentes se afiguram 575 Id., p. 131. 576 Id., p. 133. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 331 propriamente ser” (p. 248). Você vê aqui uma afirmação categórica, característica do discurso científico, e, logo em seguida, a sua negação já num discurso coloquial, cheio de meios termos. Há dentes? Não há dentes? Sim, há dentes, mas não na frente, e sim atrás, e mesmo assim não são dentes, mas coisinhas pequenas. Então não há dentes... Em seguida diz que o tatu não morde, mas mastiga. E mais abaixo o narrador diz: “Há muitas raças de tatu na ilha, caçando-se mais notadamente o chamado tatu-galinha, que é o tatu verdadeiro, como diz o povo” (p. 249). Este “como diz o povo” atenua a peremptoriedade da afirmação anterior, sobre ser o tatu-galinha um tatu verdadeiro, assertiva pouco científica, uma vez que todos os tatus são tatus e, logo, são verdadeiros... — João Ubaldo diz que o artista tem de ser ininteligível — citou o meu interlocutor, que não estava lá muito interessado em tatus e começou a ler um texto que retirou de minhas mãos —, “... fecundamente ininteligível, pois a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ambigüidade é a força da arte. O artista pode utilizar uma distinção de Dilthey, feita a propósito de ciências humanas e ciências ‘naturais’ ou ‘exatas’. Estas explicam, aquelas compreendem. O artista, bem ou mal, compreende”,577 diz ele aqui nessa entrevista.578 E com isso chegamos à defesa de uma outra legitimidade para o conhecimento, a firmar-se ao longo de duas vias comumente negligenciadas por razões mais que evidentes: o conhecimento pela via da arte e o conhecimento pela via de um saber popular. — Sim. E bem mais à frente observamos que todo o conhecimento acerca do bicho tatu estava sendo veiculado a partir de uma origem: o personagem Luiz Tatu, homem do povo, caçador pobre e sem ciência, mas um profundo conhecedor de tudo o que dizia respeito ao tatu, e isso a um tal ponto que o próprio Luiz Tatu ia aos poucos, como notava Leléu, transformando-se ele mesmo em um tatu, “de tanto comer tatu, falar em tatu e até conversar com tatu” (p. 251). Veja — 577 Entrevista, João Ubaldo RIBEIRO, arquivo da Ed. Nova Fronteira. 578 — E diz também — completou o meu interlocutor, em nota —, diz em outra entrevista, em que parece estar ainda mais convicto: “A literatura, como suas artes, é renitente e resiste aos repetidos anúncios de sua morte (...). (...) Ninguém sabe de merda nenhuma, esta é que é a verdade, todos temos epifanias e caminhos abertos para saber onde fica o absoluto. (...) Os artistas preservamos o sagrado direito do homem ao delírio, e já sofremos o bastante com isso, para que a caretice crítica nos queira submeter ao escruciante processo de dissecação e redução a categorias manejáveis. A comunidade nos devia defender. Sem nós — e principalmente sem Nelson Gonçalves —, ela estaria [trecho censurado]. Sem os artistas, onde ficaram todos? (“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 332 continuei — como o narrador desvenda a origem de seu conhecimento, apontando o verdadeiro responsável por aquilo que, acreditávamos, era acervo seu, de origem indefinível: “Toda esta ciência e arte do tatu, mais muitas outras observações da Filosofia da Caça e do Alimento, foi Nego Leléu obrigado a escutar com grande paciência nas palavras de Luiz Tatu” (p. 250). — Há mais exemplos? — Há, sim, e dou-lhe dois, mas desta vez não teremos a possibilidade de indicar uma origem para o conhecimento veiculado. Podemos observar aqui o narrador diante de um pequeno impasse epistemológico... E veja que mais uma vez o narrador se vai valer de sua forma de narrar para deixar evidentes a dúvida e os desacordos quanto a uma questão muito importante: o cozimento do peixe baiacu. Veja que o narrador não diz com clareza que não há certezas acerca do cozimento do bicho e nem, o que seria esperado, apresenta personagens a falar em discurso direto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA acerca das controvérsias quanto ao preparo do peixe. A controvérsia está embutida na forma de narrar. O narrador incorpora os desacordos à sua própria maneira de expor a questão, transformando em linguagem, uma linguagem vacilante, a própria idéia da falta de consenso quanto ao assunto. — É como se ele próprio, o narrador sem cabeça, se transformasse na questão que é objeto de sua narrativa? — Sim. Ouça: ... o baiacu é também venenoso, costumando matar com rapidez quem o come sem saber tratá-lo. Felizmente, existe quem saiba tratá-lo com competência. Basta, por exemplo, remover a pele. Não, não basta remover a pele, a pele não tem veneno, há até gente que come a pele. O problema é o umbigo. O baiacu tem aquele umbiguinho encaroçado e é ali que está o veneno (...). É bem verdade que na cabeça é que pode estar a sede da peçonha, de forma que o mais seguro talvez seja jogar a cabeça fora. Claro que é bem possível assistir razão aos que afirmam que o veneno está em todo o peixe, mas o cozimento longo em panela destapada faz com que ele vire fumaça e vá embora. Não, não, a questão é outra, é a lua, pois não passa de arrematada loucura comer baiacu na lua cheia (...). Que lua, que nada, o segredo é o mês... (p. 589-590)579 579 — João Ubaldo explora a mesma brincadeira de ir adotando, sucessivamente, variadas “certezas” acerca da origem do “mal do baiacu” na crônica “Os comedores de baiacu” (O Globo, 30 out. 1983, reunida no livro Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 45-49), tendo Luiz Cuiúba e Sete Ratos, personagens de Itaparica, como os supostos detentores do saber acerca do misterioso peixe. Os mistérios a envolver o preparo do baiacu são também invocados nas crônicas “Mangia che ti fa bene” (p. 127-132), do Sempre aos domingos, op. cit., p. 130; na referência à morte de Vaza-Maré, provavelmente graças a “uma moqueca de baiacu malpreparada”, em “O dia em que o diabão levantou a saia da Viúva Martins” (O (cont.) 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 333 — Eu disse a você que não podemos indicar uma origem para o conhecimento veiculado. Há, sim, uma origem, mas ela se encontra fora da diegese: num conhecimento popular, e polêmico, acerca do baiacu e, neste segundo exemplo que lhe darei agora, numa experiência de escrita e observação que encontramos com facilidade numa determinada idéia de escritor — disse eu —, que é a idéia de escritor que João Ubaldo gosta de relacionar ao seu narrador: a condição de “intérprete de seu povo e do seu tempo”.580 — ... condição que também gosta de incorporar para si mesmo como escritor e na qual se sente à vontade — interrompeu-me ele. — Não sei... Veremos isso à frente...581 Este segundo exemplo, de todo modo, eu tiro dO feitiço da ilha do Pavão. Ouça: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Não se deve rir da desgraça alheia, nem fazer pouco caso dos desventurados, até porque aquilo que a um vitima sói muitas vezes sobrevir a outro, não raro piormente. (...) São tantas as penas inventariadas nos infernos, obrigatoriamente pagas por pecados e más ações (...), que livros com mais de cem vezes as páginas deste cá, o qual tão desutilmente vos ocupa, não seriam bastantes para conter-lhes os resumos. Mas, desde o começo do mundo, o vizinho ri do vizinho quando devera chorar, ou chora quando rir devera (...). (...) Rimos do que aflige o outro, mas sabemos que o outro entre os outros virá a rir de nós (...). Portanto, ao rir do outro, rimos de nós mesmos (...). O mundo é perfeito,582 já diziam os antigos, e com eles nos vemos obrigados a concordar, eis que, se tudo se passasse como quer cada um de nós, não duraria este mesmo mundo mais do que três peidos de mula... (O feitiço da ilha..., p. 241-242, realcei)583 Globo, 19 jan. 1986, em Arte e ciência de roubar galinha, p. 169-173); e ainda em “Noble na peixarada” (O Globo, 12 out. 1986, idem, p. 217-221, p. 219). 580 Expressão utilizada por Eduardo MARETTI, “Ciências versus religião na Bahia de João Ubaldo”, O Estado de S. Paulo, 16 nov. 1989. 581 Ver Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, p. 407. 582 — E João Ubaldo vai retomar essa frase na epígrafe do romance Miséria e grandeza do amor de Benedita — lembrei. E li: — “O mundo é perfeito, disse Benebê no Bar de Espanha, e todos ficaram pensativos”. Todos, tal como o narrador dO feitiço da ilha..., concordaram, ou seja, “ficaram pensativos”... 583 — O romance O feitiço da ilha do Pavão apresenta numerosos exemplos, através da fala do narrador, da utilização desse estoque compartilhado de ditos e desditos populares — disse eu, salientando que o mais longo e de mais fôlego talvez seja o próprio início do livro, onde se empreende a descrição minuciosa do lugar simbólico ocupado pela ilha do Pavão na mente dos habitantes do continente: “Ninguém fala nesse pavão ruante e, na verdade, não se fala na ilha do Pavão. (...) O forasteiro que perguntar por ela receberá como resposta um sorriso e o menear de cabeça reservado às perguntas insensatas. (...) Não se pode negar que a verdade é distinta para cada um e talvez estejam certos os que sustentam que este mundo não passa de miragem e, portanto, pode ser isso ou aquilo, segundo quem olha e pensa” (O feitiço da ilha..., p. 9-10, realcei). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 334 — Eu estou vendo aqui — apontou o meu atentíssimo interlocutor uma página do Viva o povo... — uma espécie de teorização sobre essa idéia bastante defendida pelo Ubaldo e que você mencionou antes. Esse trecho, aliás, é daqueles que eu definiria como trecho engajado — e abrimos na página 318, no trecho apontado por ele. — Através da personagem Dafé ainda menininha, o narrador, ou melhor, Ubaldo, que, já vimos, também é Maria da Fé, veicula a sua tese de duas pontas: a da arte como uma forma de conhecimento não-mensurável e a do conhecimento como uma forma de arte, distante, portanto, de uma formalização acadêmica; distante, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA portanto, de uma tendência à elitização. Veja — disse ele. — Leia você — e eu li. ... Dafé se admirou de ver tanta ciência naquela gente comum, se admirou também de nunca ter visto nos livros que pessoas como essas pudessem possuir conhecimentos e habilidades tão bonitos (...). Quantos estudos não haveria ali, como ficavam todos bonitos fazendo ali suas tarefas, agora também ela ia ser pescadora! Até pouquinho, estivera meio convencida, porque ia ser professora e portanto sabia muito mais coisas do que todos eles juntos, mas se via que não era assim. Tinha gente que pescava o peixe, gente que plantava a verdura, gente que fiava o pano, gente que trabalhava a madeira, gente de toda espécie, e tudo isso requeria grande conhecimento e muitas coisas por dentro e por trás desse conhecimento (...). (p. 318) 5.7. A “ONISCIÊNCIA RELATIVA” — Esse assunto da onisciência relativa merece mais atenção de nossa parte. Há um jogo entre o sabido e o insabido a permear todo o romance Viva o povo brasileiro. — Deixe-me antecipar a sua idéia: é possível afirmar que o narrador, na sua condição de narrador onisciente, brinca com o leitor, escamoteando informações que, em nome de uma dinâmica de suspense e tensão, necessária ao romance, somente mais tarde serão reveladas? Ou, em outras palavras — concluiu o meu apressado interlocutor —, estamos aqui desenvolvendo uma outra característica de nosso narrador sem cabeça: ele não é confiável, se é que algum narrador o é... — Não, meu caro — e cocei a cabeça. — Você infelizmente não pegou a idéia. Isso que você disse poderia ser dito em relação a um modelo narrativo clássico, com onisciência típica, e toda onisciência típica é, ou pode ser, “traiçoeira”. O narrador sem cabeça de Viva o povo... e também dO sorriso do 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 335 lagarto, dois romances em que esse narrador está todo o tempo a “passear” entre as consciências de seus personagens, esse narrador, dizia eu, é onisciente apenas no âmbito do personagem que está incorporando ou cujos movimentos está descrevendo de perto. Veja este momento: o leitor já tinha sido apresentado à personagem Ana Clara, dO sorriso do lagarto, mas, mesmo assim, diante da cena em que uma tartaruga é destripada em praça pública, o narrador, incorporado que estava em João Pedroso, narra, em indireto livre, o que se segue, e em nenhum momento traz à tona o nome que em outros trechos já tinha referido: o nome de Ana Clara. O narrador só vai nomeá-la dentro de sua própria narração algumas páginas à frente, quando uma outra personagem, Bebel, a chama, enfim, pelo nome. A partir desse ponto, como se o narrador tivesse acabado ser, de certo modo, apresentado à personagem, o nome “Ana Clara” começa então a aparecer. O narrador passa conhecer o nome da mulher no exato instante em que o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA personagem João Pedroso ouve a amiga chamar por ela. Depois de muitos “disse ela” e “disse a mulher”, surge o nome. O narrador é o mesmo? Quantos narradores há nO sorriso do lagarto? — Que horror! — disse uma mulher atrás de João Pedroso. — E não é proibido matar tartaruga? Voz de gente de fora, voz de turista, levemente afetada, mas não desagradável. Ele virou-se, levantando um pouco a aba do chapéu, e viu uma mulher de trinta e poucos anos, de bermudas folgadas, blusa amarrada na barriga (...). (...) ... e ela olhou para João Pedroso, como se esperasse que ele se apresentasse. (...) (...) [Bebel] — Ah, não sei, Ana Clara e eu fizemos tantos planos, que é que você acha, Aninha? — Passeio por passeio, o melhor é ir à praia (...) — disse Ana Clara, olhando novamente para João Pedroso (...). (O sorriso do lagarto, p. 79-83) — Mas isso que você está me dizendo é o efeito, é o efeito da artimanha narrativa! — disse ele. — Temos a impressão de que o narrador não sabe, mas ele sabe, ora!... Você está demasiadamente preso ao texto. Veja este caso aqui — e pegou o Viva o povo.... — As páginas 161 a 164 dedicam-se a revelar ao leitor os detalhes da situação física do Barão de Pirapuama: sua doença misteriosa, os esforços do médico Justino José em encontrar uma explicação, as “bostas presas” do paciente, agravadas pelo seu incurável apetite, suas chagas e seu mau-humor crescente... — Eu ia justamente citar esse exemplo... 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 336 — Mas agora me deixe continuar. Observe que nós já sabemos que o Barão iria ser envenenado, porque o próprio narrador disse isso quando descreveu o escravo Budião saindo dos matos com um punhado de ervas maléficas apanhadas para esse fim. Se o narrador não menciona que a causa da doença é o trabalho de envenenamento dos negros, é porque isso o leitor já sabe, ou já deduziu, e não porque o narrador não saiba... — O narrador só sabe aquilo que sabe o personagem que está sendo incorporado. Se está incorporando Maria da Fé, no exato instante em que ela entra no quartinho fechado onde está preso o tenente Patrício Macário e onde não há mais ninguém, senão os dois — eu disse —, o narrador é então capaz de revelar ao leitor que “Ela parou junto ao catre, (...) fechou os olhos um instante (...). O coração disparando, (...) curvou-se para ele, tão belo e forte (...), levantou o lençol”. Se está incorporando todo o seu bando que ficou de fora e não entrou no PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA dito quartinho, o narrador então pergunta: “O que ela fez em seguida?”. E ele mesmo responde: “Ninguém sabe. O que se sabe é que saiu dali algum tempo depois com um ar quase maroto” (Viva o povo..., p. 404). — Você está aqui postulando a existência de um narrador sincero? — Sim. A sua narrativa da agonia do Barão, por exemplo, é, pese-se a palavra, “sincera”, na medida em que toda a focalização se dá pela ótica da baronesa e pela ótica do cirurgião Justino José, que nada sabem. O narrador descreve o desânimo geral e dá um certo relevo à figura de Merinha, escrava de nome Emerenciana, bastante carinhosa e paciente com o seu Nhozinho. A sua descrição do comportamento de Merinha é legítima, porque se trata daquilo que vêem a baronesa, o cirurgião e os outros membros da casa, todos ignorantes do que realmente acontecia. Mas observe que o narrador não diz isso: que todos estão ignorantes do que realmente acontecia. Se estivéssemos diante de um narrador onisciente clássico, nós teríamos essa informação e seríamos alçados, como leitores, a um patamar de ciência semelhante ao do narrador: seríamos, por nossa vez, leitores oniscientes e cúmplices, ou então, o que é de certa maneira uma espécie de conhecimento, o conhecimento da própria ignorância: saberíamos, pelo narrador, que há algo de podre no reino do Barão, mas nem isso o narrador nos diz, e por quê? — Porque ele também não sabe? — Sim, porque ele também não sabe. Aqui, neste caso, e diversamente do que diz o professor Ronaldo Costa Fernandes em seu livro sobre o narrador — 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 337 continuei —, o narrador não sabe. Ele narra, mas não sabe. “Quem se propõe a narrar é porque teve uma experiência anterior de compreensão de determinado fato. Ninguém narra sem saber”,584 diz ele. Pois o nosso narrador sem cabeça narra, sim, sem saber. Somente mais tarde nós iremos saber, juntamente com o narrador, que Merinha, na outra casa, a do continente, está entregue à tarefa quotidiana de continuar praticando o envenenamento do Barão. E saberemos disso quando o narrador estiver incorporando, em discurso indireto livre, os artífices do plano de envenenamento: Budião e Feliciano, que sabiam não haver na “Armação quem pudesse prosseguir no serviço que Merinha vinha fazendo com tal eficiência que as notícias da moléstia do Barão chegavam (...) à Armação (...) já o desenganando” (p. 176). Como nem a baronesa nem o cirurgião sabem da conspiração e de seu alcance, e isso você precisa entender, o narrador também não sabe. Quando, nO sorriso do lagarto, personagem Ângelo Marcos encontra os cadernos secretos de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA sua mulher, Ana Clara; cadernos em que ela escrevia sob o pseudônimo, ou melhor, sob o manto da personalidade da escritora sócio-erótica Suzanna Fleischman, diz o narrador, ocupado em dar conta da briga entre o casal, mas incorporando, aqui e ali, o personagem do marido “traído”, logo incorporando, também, a sua nãoonisciência: “Sim, os cadernos chegaram a rasgar-se bastante, na verdadeira luta corporal pela posse deles. E ela ainda teve o cinismo de referir-se a uma tal Suzana Friedman, Fondman, Foster, qualquer coisa assim” (p. 221). — E segui: — Ouça aqui o que escreveu o Mario Pontes acerca das operações narrativas dO sorriso do lagarto, mas que bem podem estender-se ao nosso caso. Ubaldo (...) avança sem precipitações, valendo-se quase todo o tempo de outros narradores que, mesmo querendo, não poderiam andar mais depressa, pois é vagarosamente que se dão conta do que acontece ao seu redor e dentro deles próprios. (...) ... esse narrador só raramente dá mostras de saber tudo acerca daquele que lhe requisita a voz. Mantém-se de fora, ou finge que o faz. Ouve e fala. Não repetindo as palavras que lhe são ditas, mas registrando a ação que se expressa em palavras e revelando aquilo que só ele ouviu: as razões porque tal personagem se conduz assim.585 — Isto — disse-me o interlocutor —, isto é uma estratégia! 584 “Capítulo 2, as naturezas do narrador” (p. 40-43), in O narrador do romance, Rio de Janeiro, Sette Letras, 1996, p. 40. 585 “As provetas do diabo”, Jornal do Brasil, 4 nov. 1989. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 338 — Do escritor. Não do narrador. — Ora! Isso... — Não é a mesma coisa. A nossa tentativa de estabelecer pontes entre o narrador e a figura pública de João Ubaldo... Pontes, não; cordas, vá lá... Essa tentativa não se alimenta desse tipo de conexão. João Ubaldo conhece a história que está escrevendo, mas isso não significa que ele pretenda legar ao narrador o arsenal de sua ciência. Todo o modo de ser, todo o espírito de Viva o povo... se estrutura sobre um narrador que não pode e não deve conhecer a história que conta, porque a história que conta não está pronta! Trata-se de um recurso narrativo, portanto formal, que entorna e se esparrama sobre um modo de se “ler” tanto a vida histórica do país quanto o espírito do próprio romance. Viva o povo brasileiro é isso: uma história que não está terminada, porque a história que está terminada é a História oficial, com o seu grande H, uma História quase que “pré-preparada”, se me PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA permite, para servir de modelo de dominação. E João Ubaldo Ribeiro “‘não conta a história do povo brasileiro, mas a história com h minúsculo’ do povo do Recôncavo Baiano”,586 cita Sonia Apolinaro, citando palavras do próprio escritor; “... o povinho anônimo do Recôncavo, que serve de símbolo para todo o povo brasileiro”, completa ele.587 Há também um outro texto, que, 13 anos depois da publicação, volta a falar de Viva o povo..., mas devido ao projeto de levá-lo às telas. Ouça: O volume ilustra aquela frase surrada, mas sempre pertinente: retratar o mundo a partir da aldeia. É possível mesmo que um país como o Brasil não tenha centro.588 É provável que sua realidade, talvez a sua “verdade”, deva ser buscada na periferia. É mais ou menos o que faz João Ubaldo. Ele come pelas bordas (...). Faz do seu microcosmo periférico de Itaparica o laboratório de tudo o que se trama e se tramou no relacionamento entre os que mandam e os que tentam não ser mandados. É com esse olhar terno, mas não maniqueísta, dirigido para “os de baixo”, que ele procura captar a essência da saga de um povo.589 586 “Livro de João Ubaldo pede passagem e sai na Passarela”, O Globo, 13 jul. 1986. 587 — “... o personagem principal do romance, como o próprio título indica, é uma entidade mítica e fugidia — o povo brasileiro”, escreveu Mário Sérgio CONTI, que o entrevistou (“Um brado retumbante”, Veja, 19 dez. 1984). 588 — Quando muito — e ele abriu com a mão uma nota e me interrompeu —, teremos um grande formigueiro, à la Antonio Callado... — disse ele, fazendo referência ao romance Quarup, publicado em 1967. 589 Luiz Zanin ORICCHIO, “Filme deverá estrear no ano 2000”, O Estado de S. Paulo, 15 out. 1997. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 339 — Se o narrador conhecesse a história que conta, do começo ao fim — continuei —, ele estaria representando uma espécie de totalitarismo narrativo que João Ubaldo sempre condenou e que o espírito de Viva o povo... em cada uma de suas páginas combate.590 Ninguém conhece a história do romance: não a conhece o narrador e, arrisco-me até a dizer isso, também não a conhecia o próprio escritor no momento em que estava escrevendo. — Você não estará supondo coisas... — Não, não estou. Digo isso baseado em entrevistas. Ouça: “Aquelas datas lá não têm nada a ver”, disse João Ubaldo acerca da divisão não-linear das datas que nomeiam os capítulos. “Até o meio do livro não sabia ainda que rumo tomar. Só dali em diante é que comecei a formar um índice de razão, porque já tinha certo controle sobre o trabalho. O começo foi muito espontâneo. Talvez seja o livro que mais gostei de fazer”.591 Diz, acerca dos livros que escreve, que não os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA planeja: “O Viva o povo brasileiro (...) tem 670 páginas. Os originais tinham 1.670 laudas, pesavam seis quilos, mas eu escrevi de um fôlego só e nem revisei, sequer passei a limpo”.592 Também diz: “Eu nunca planejo livro, ele sai da minha cabeça, é meio psicografado”.593 Diz ainda: “... os personagens vão chegando e entrando. (...) Não consigo dissecar os personagens. (...) Não imagino os personagens fisicamente”.594 E também não tem a menor idéia do que vai acontecer com os tipos que inventa: “Já me aconteceu diversas vezes de mudar o personagem, a forma dele de pensar e agir. Às vezes ele se recusa a fazer algo e eu tenho que acatar”.595 Esse modo de proceder do narrador, que vai gradualmente sabendo das coisas, à medida que os personagens que lhe são próximos também vão sabendo, e assim aprendendo sobre a vida, reflete, como você viu, e eu insisto 590 — E ilustro isso aqui com um comentário de Lúcia Helena: “... nesta obra riquíssima, ele (...) mais pergunta do que responde, mais duvida do que afirma, mais dialoga do que tenta impor uma pretensa e única (e ideológica) ‘verdade’”. E ela continua: “Viva o povo brasileiro não é um ‘retrato’ ou uma radiografia do Brasil e de seu povo. É, antes de tudo, ficção e como tal se comporta, metamorfoseando nosso absurdo colossal sem dele extrair lições exemplares (...). Ao contrário, o texto de João Ubaldo apreende e interpreta rica e obliquamente a realidade sociocultural brasileira, transgredindo-a na realidade ficcional, urdida pelo imaginário” (“Viva o povo brasileiro — a questão do nacional...”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985). 591 Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990. 592 Id. 593 Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978. 594 Nahima MACIEL, “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 340 nisso, um comportamento de trabalho do próprio escritor. Estamos rodeando essa idéia desde o início de nossa conversa... Não sei mais quem é que pariu isso... Foi você, realmente, quem apontou para isso, ou fui eu? — Você falava que o narrador em Viva o povo... — e ele retomou a marcha — não é um onisciente absoluto, mas um onisciente relativo, ou seletivo... — Sim. A onisciência absoluta o colocaria na posição de conhecedor total da história que ele conta, ou seja, ciente antes de tudo do futuro, e isso não acontece quase nunca — disse eu —, salvo em um ou outro caso, como esse. Veja, e abro aqui um parêntese: o narrador está ao lado de Bonifácio Odulfo e de súbito desloca-se, passando a operar em outro lugar, simultaneamente e com a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA clarividência dos narradores clássicos. ... [Bonifácio] Perdeu-se um pouco na paisagem, talvez sentindo o bafo cálido da inspiração poética, certamente sentindo alguma paz. Porque não era ele, era Patrício Macário que, muito longe dali, quase à mesma hora em que ele rezava na Sé, baixava ao chão a cornetada de “corpos ajoelhados” e fazia a oração à Virgem das Batalhas, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, junto a outros oficiais e praças, a maior parte dos quais morrerá amanhã, ali mesmo nos alagadiços de um lugar chamado Tuiuti. (p. 421, realcei) — Fecho aqui o parêntese — e fechei. — Às vezes o narrador pratica um outro tipo de onisciência, transitando velozmente de onisciência seletiva em onisciência seletiva, ou seja, de personagem em personagem. Veja aqui: reunião no gabinete de Amleto Ferreira, com amigos e familiares, data em que Amleto comunica oficialmente a todos que fará seu filho Patrício Macário, no intuito de domesticar seu espírito selvático, alistar-se nas fileiras do Exército brasileiro. Observe o passeio do narrador, que não apenas observa como uma câmera, como chega mesmo a adentrar algumas mentes: ... Amleto recostado em sua cadeira, com a expressão satisfeita, Vasco Miguel, levantando-se um pouco impaciente pela hora de sair, o major Magalhães entregue a graves pensamentos com o olhar perdido janela afora, o monsenhor imaginando se seria convidado para jantar, Noêmio Pontes tomando notas de nomes e endereços, Clemente André preocupado com sua batina nova que devia chegar a qualquer momento, Bonifácio Odulfo silencioso, revoltado, humilhado, rancoroso... (p. 339) 595 Id. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 341 — Agora eu quero mostrar aqui para você um exemplo em que João Ubaldo opera uma curiosa inversão — continuei —; uma inversão cuja função, além de fazer graça, é apontar o estado de fragilidade do próprio narrador. Observe isto: — Só com a língua cortada — repetiu Dandão. Mas, como tudo isso? [pensa Budião] Que sabia ele, quem lhe havia contado essas coisas?, como sabia de Feliciano, fazendo aquela alusão a línguas cortadas? Quem lhe havia contado, que bobagens tinha inventado Merinha, aquela desmiolada sem juízo? — Não é desmiolada, nem sem juízo [disse Dandão]. Ela sabia que poderia me contar, sabia que devia me contar. (p. 108-181) — Observe — disse eu — que o narrador é onisciente apenas no que diz respeito ao universo imaginário de Budião. O outro personagem, Júlio Dandão, é inacessível ao narrador e também a nós, leitores. E o que faz João Ubaldo: divide PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA os pensamentos de Budião entre o narrador e Dandão, que, numa atitude típica de um narrador totalmente onisciente, repete palavras que Budião não disse, mas pensou. As palavras de Budião em discurso indireto livre não estão na história e nunca foram ditas. Estão apenas naquele segundo nível diegético: o que caracteriza a relação do narrador com o leitor. — Hum. — E o meu interlocutor repetiu o que eu havia dito, só que com melhores palavras: — Então, estava o narrador a contar ao leitor o que se passava pela cabeça do negro Budião, quando um personagem, Júlio Dandão, insolitamente invade esse nível diegético e, exercendo a sua onisciência, transfere uma informação que pertencia somente a esse nível narrador-leitor, levando-a para o nível personagem-personagem... — Muito bem, veja que a brincadeira de João Ubaldo Ribeiro com a onisciência narrativa continua, sob outras formas, aqui mesmo neste trecho. O que é que está acontecendo: Júlio Dandão está justamente ali, com Budião, Feliciano e Zé Pinto, fundando a Irmandade do Povo Brasileiro, e eu só não falo mais dessa Irmandade propriamente dita, que isso é assunto longo, porque o Francis Utéza já escreveu muito bem sobre isso.596 Toda essa seção do livro é um discurso politicamente articuladíssimo de Júlio Dandão, mas Júlio Dandão, propriamente, pouco fala. Quem fala é o narrador, e em discurso indireto livre. Você dirá, então, 596 “Viva o povo brasileiro ou O espírito da fraternidade”, op. cit. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 342 seguindo a nossa linha de procedimentos, que o narrador está ali, em discurso indireto livre, incorporando Júlio Dandão e seu discurso. Mas não. O narrador não vai meter-se com Júlio Dandão, que este é figura inapreensível e misteriosa, e seria uma bela contradição entre conteúdo e forma narrativa se topássemos com o narrador agora dentro da cabeça de Dandão... — ... ou Dandão dentro da cabeça do narrador, utilizando-se aqui as palavras encarnação e incorporação, a servir cada um para contemplar o ponto de vista que se está adotando. — Sim, sim — concordei, impaciente. — E veja que o narrador, sem ser onisciente com relação a Dandão, mas incorporando, isto sim, os seus ouvintes, vai dando conta de duas tarefas ao mesmo tempo: dos conteúdos verdadeiramente revolucionários do discurso de Dandão e de como esse discurso vai sendo recepcionado por Budião, Feliciano e Zé Pinto, que, e cito, “continuaram sem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA compreender direito o que ele estava dizendo, mas não sentiram vontade de perguntar nada, como se tivessem certeza de que acabariam compreendendo” (p. 211). — E há uma outra coisa — lembrou-me o meu interlocutor. — Como você mesmo disse, o narrador não deixa Júlio Dandão falar, e por quê? Mais uma vez podemos notar aqui aquilo que menciona a Eneida Leal Cunha, lembra? Foi você mesmo que a citou... Os personagens sem voz e sem poder acabam por requerer do narrador uma maior presença vocal, como se esses personagens não tivessem condições de, por si, exprimir-se... — Bem lembrado, mas não sei se isso se aplica ao caso de Júlio Dandão, que é, dos personagens do grupo dos “sem voz” e dos “sem nada”, um dos mais articulados... Ele tem as palavras que faltam aos outros. — Hum, não sei... — ponderou ele. — Ele é, isto sim, dos mais calados. Nós não ouvimos os seus discursos. Quem ouviu foram os três negros da Casa da Farinha. Lembre-se de como termina essa seção: “... essa Irmandade, se bem que mate e morra, não fala” (p. 212). A presença do narrador aqui, não para representar Dandão, porque você já me convenceu de que o narrador está representando os assustados ouvintes... Mas a presença do narrador a falar no lugar dele é fundamental... — E por quê? Por quê? — insisti. — Não porque ele seja um personagem sem condições de exprimir-se... Por quê? Por causa do teor do que ele estava dizendo. O narrador acaba, com a sua presença vocal, mediando conteúdos que 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 343 resultariam muito pouco convincentes se saídos diretamente da boca de um homem como Dandão. — O que, de certo modo, foi o que Ubaldo não fez com Maria da Fé, colocando-a para falar, e para falar muito bem, talvez até bem demais... — Sim — tive de concordar. — Agora ouça: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... Dandão virou-se para ele e disse (...) que efetivamente tinham matado o barão. Não só tinham matado o barão, como matariam muitos mais barões e fariam outras coisas igualmente portentosas. Observassem bem (...). Morrendo esses senhores de terras, aconteceriam duas coisas: a primeira era que as terras poderiam ser divididas por herdeiros, multiplicando-se em lotes menores, já não tão capazes de sustentar aquela riqueza e enfraquecendo a todos os proprietários, além de lançar entre pretendentes a discórdia pela cobiça; a segunda era que estavam sempre esses senhores endividados e hipotecados (...), devendo em letras e obrigações mais do que valia a produção de suas terras e fazendas, de maneira que os credores (...) é que se apossariam delas, alguns das máquinas, outros das plantações, outros das casas, outros dos negros, tornando confusa a propriedade e complicada a produção. (p. 209-210) — Agora veja como Francis Utéza traduz isso em outras palavras, uma tradução, diga-se de passagem, mais que desnecessária, dada a clareza do raciocínio do narrador a reformular as palavras de Dandão: ... Contra a dupla injustiça em que a discriminação racial encontra a segregação sócio-econômica, o orador estipula a eliminação física dos latifundiários, o que, de acordo com a sua teoria, acarretaria a curto prazo as dissensões internas entre os múltiplos herdeiros e, a médio prazo, a falência de um sistema incapaz de produzir a mais valia necessária para cobrir o endividamento crônico provocado pelo funcionamento baseado no tráfico negreiro. Tal raciocínio de perito em ciências econômicas pode surpreender na boca de um artesão dos anos 1827.597 — Não, não creio que seja desnecessária... — contrapôs o meu interlocutor. — A tradução de Francis Utéza é necessária, sim, porque faz um contraste com o discurso de Dandão, do modo como ele foi dito pelo narrador, ou seja, do modo como ele foi entendido pelos ouvintes da Casa da Farinha. Esse raciocínio “de perito em ciências econômicas”, como se disse, está bem mais simplificado nas palavras do narrador... 597 Id., p. 33. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 344 — É verdade — disse eu. E pensei: isto é mesmo uma guerra. O meu interlocutor gosta de discutir, e eu preciso aprender a recuar. E continuei pensando: esse jogo com a privacidade do narrador, porque é isso mesmo o que aconteceu: uma invasão da privacidade do narrador... Esse jogo não foi gratuito. A escolha do personagem Júlio Dandão é acertada, porque desse modo, e nenhum modo poderia ser mais eloqüente do que esse, João Ubaldo Ribeiro conseguiu passar com precisão a idéia de que Júlio Dandão era considerado pessoa de poderes fantásticos e, portanto, bastante capaz de um exercício de onisciência como aquele: “Seu nome indicava os mais poderosos pesadelos, não se desconhecendo tampouco que ele nunca se benzeu uma vez na vida, nem nunca respeitou qualquer cruz” (p. 177), disse eu para mim mesmo. — E você sabia que “dandão”, a propósito, quer dizer pesadelo? — disse ele, adivinhando meus pensares. — Quem observou isso, porque teve o cuidado PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA de ir lá ao dicionário, foi o Francis Utéza nesse ensaio que estamos lendo.598 — Sim, sim — disse eu. E retomei, cutucando o meu interlocutor: — O grande interesse que tem para mim esse narrador sem cabeça mora justamente na sua capacidade de potencializar, com a sua forma de narrar, os conteúdos de sua narrativa... Você pegue um romance como Os Maias, por exemplo, em que o Eça já está bem mais versátil com seu narrador extradiegético do que estava com O primo Basílio e O crime do padre Amaro. NOs Maias o narrador funciona com mais regularidade em discurso indireto livre, é muito menos onisciente e exerce bem mais focalizações internas do que nos outros dois. Mesmo assim, o narrador é sempre o mesmo, tem sempre a mesma fala, o mesmo vocabulário, o mesmo tom e a mesma consciência, a despeito da variedade de situações e da variedade de personagens... — É verdade... Viva o povo brasileiro e, em menor escala, O feitiço da ilha do Pavão têm grande quantidade de personagens, todos muito diversos entre si, psicológica e contextualmente, e para cada um o narrador se comporta de uma maneira, narrando eventos sob formatos narrativos que se adaptam aos eventos narrados — fez o meu interlocutor. — Mas... — ia começar ele, mas desistiu. — Bom... Veja aqui este caso — mudei de assunto. — Desde que a filha de Vevé com o Barão de Pirapuama nasceu, Leléu, ao princípio ainda tímido, mas depois completamente assumido, não largou mais da menina, de nome Dafé, 598 Id., p. 30. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 345 Maria da Fé, tornando-se cada vez o seu avô postiço, e é desde então que o povo diz que Leléu se transformou em dois: um Leléu do jeito que sempre foi: serelepe, lépido, fagueiro, manhoso e cheio de malícias, artimanhas e as piores intenções, e outro Leléu, esse bobo, carinhoso, generoso, paciente e orgulhoso da neta. Ora, toda aquela passagem com Leléu ao lado de Luiz Tatu, preparando-se para ir à mata caçar um tatu a pedido da neta Dafé, toda aquela passagem é narrada tendose em conta essa idéia de existirem dois Leléus. O narrador então vai contar aqui duas histórias, cada uma delas protagonizada por um Leléu, e através do recurso cinematográfico da montagem paralela. O tempo presente desenvolve um Leléu no barraco de Luiz Tatu e em seguida o mesmo Leléu nos matos, a caçar o tatu. O narrador, ao mesmo tempo, vai dando conta dos pensamentos de Leléu e das lembranças de Leléu acerca do nascimento de seu afeto por sua netinha Dafé. É este então o segundo Leléu, o avô-coruja-bobo, e o narrador prioriza visivelmente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA o segundo Leléu, e assim incorporando visivelmente o segundo Leléu. Vou ler, e aqui começam a deambulação de Leléu e o lento deslocamento da atenção do narrador: do barraco de Luiz Tatu e do contexto da caçada para as lembranças do avô de Dafé, o avô-coruja-bobo: ... Por causa de que Nego Leléu estava metido nessa embaixada era coisa que nem ele mesmo sabia direito, talvez fosse por causa do efeito da tal história de ele estar virando dois (...). (...) dois Leléus completamente diferentes, na fala, no jeito de andar, na cara, nas maneiras (...). — Mentira desse povo — pensou em voz alta, e Luiz Tatu, que estava mexendo no fogo e era duro de ouvido, achou que ele perguntara pelo aipim. — Ainda demora — disse (...). (p. 250-251) — E Leléu continua a pensar, completamente alheio a Luiz Tatu e à caçada ao tatu, acerca de estar ele a virar dois, ou não. E começou a recordar o parto precoce de Vevé, o nascimento de Maria da Fé e a aporrinhação em que ele ficou por ter de sustentar agora não uma, mas duas mulheres. Isso toma algumas páginas, e em seguida o narrador cede lugar a outro narrador, o que está ocupado com o Leléu e com a caçada ao tatu, este bem mais “preguiçoso” que o outro, o que está envolvido nas deambulações: “Leléu sorriu outra vez, reparou apenas vagamente nos preparativos que Luiz Tatu fazia, remexendo miuçalhas poeirentas, pondo uma faca à cinta” (p. 255, realcei). E o narrador segue, contando a história principal, a história de como Leléu se tornou menino e avô- 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 346 coruja, de modo retrospectivo e em segundo plano, embora com muito mais detalhes e incorporações do que a outra história, a da caçada, narrada em primeiro plano mas com um narrador praticamente ausente, tão ausente que, em determinado ponto das duas histórias — continuei —, o narrador ocupado com a descrição da caçada se dá conta de que afinal não fizera o seu trabalho de narrar tão bem quanto o outro, dedicado às lembranças do negro Leléu-avô. Veja aqui: “Aliás, pensou Leléu, quem sabe de alguma coisa, a não ser o sujeito que é avô?” (p. 263). Agora o outro: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — O tição se sacode assim — falou Luiz Tatu, agitando uma acha de lenha com uma brasa na ponta que retalhava a escuridão, e Leléu tomou um susto. Pois não é que já estava nos matos, já havia comido o aipim, ainda tinha uns cisquinhos de farinha com cabaú pelas dobras das bochechas, os cachorros já estavam trabalhando e não vira nada? Reparou que também levava um tição, embora apenas pendurado na mão direita... (p. 263, realcei) — Temos então para essa longa passagem da caçada e das lembranças dois Leléus, dois narradores e dois tempos narrativos. O Leléu das lembranças, o Leléu-avô, não sabia o que fazia o outro Leléu, o Leléu-caçador, assim como também o narrador que optou por incorporar apenas um dos Leléus não sabia o que descrevia o outro narrador e o que fazia o outro Leléu. Nesse trecho que eu li temos então a coesão, o encontro dos dois narradores e a demonstração mais que evidente da minha idéia da onisciência relativa do narrador sem cabeça. — Dito — disse ele, e me serviu de mais café. — E o lugar de Viva o povo brasileiro no conjunto da obra de Ubaldo... Por que essa posição de destaque? — Você mudou bruscamente de assunto... Temos de abrir um novo item para a nossa conversa... Hum... Há muitas respostas para essa pergunta. Veja o que disse o próprio João Ubaldo, recapitulando a sua experiência logo após a publicação do romance: — Imaginei que seria um livro importante, sim, e até fiquei um pouco decepcionado com a recepção inicial a ele, que não considerei à altura do esforço que eu tinha feito. Escrevi ao meu então editor, Sebastião Lacerda, em tom de brincadeira e seriedade ao mesmo tempo: “Eu fiz todas as minhas gracinhas, usei tudo o que eu sei, e não estou vendo o resultado”.599 599 “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002, realcei. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 347 — Em cima dessa declaração... — começou o meu interlocutor — Ah! E ouça aqui também, desculpe-me por interromper, outra declaração sobre Viva o povo..., totalmente diversa desta que acabei de ler, que com ela entra em choque e na qual percebemos aquela atitude de des-solenização típica do escritor: “O que eu me lembro mais é que foi o segundo livro que eu traduzi para o inglês,600 depois de Sargento Getúlio. E foi mais fácil de escrever do que os que vieram depois”.601 — Bom — disse ele —, em cima da primeira declaração eu faço duas perguntas: a primeira diz respeito à sensação que ele teve de que seria um livro importante. Por quê? A segunda é esta: quais são essas “gracinhas” que alega ter feito e para as quais não viu resultado? — João Ubaldo diz que Viva o povo brasileiro não é um romance histórico.602 Estamos voltando àquilo que conversamos no início, acerca da força, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA pretensiosa ou não, do título. Um título como Viva o povo brasileiro não pode, em princípio, encabeçar um romance que não seja histórico. O livro é “quase uma ‘correção histórica’ do Brasil”, escreveu Beatriz Cardoso.603 “O romance mete em seus lugares algumas verdades...”, escreveu João Antônio.604 “Imaginei uma espécie de metáfora do povo brasileiro, a partir de Itaparica. (...) Glauber deu a maior força, fez um discurso em favor do povo brasileiro. No livro, falo de um povo à beira do abismo”,605 escreveu João Ubaldo Ribeiro. Temos de começar por aqui. 600 — E disse João Ubaldo sobre as dificuldades de encontrar uma palavra inglesa para “mucama”: “... amarguei decepções rudíssimas, como na vez em que recorri a Gilberto Freyre e Samuel Putnam. (...) Procurei uma edição em inglês de casa Grande & Senzala que foi traduzido por Samuel Putnam, tradutor da pesada, responsável também pelo texto em inglês de Os sertões. Tinha! Alvíssaras! Gilberto Freyre fala em mucamas, logo Samuel Putnam traduziu mucama, logo este que vos fala achou a palavra. ¶ Achei nada. O Putnam taca lá uma nota de pé de página, explicando o que é mucama, assim como senzala, quilombo e uma porção de outros termos” (“Desventuras de um tradutor” (p. 225-230), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 230). 601 Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997. 602 — E diz isso, aparentemente, sozinho, porque é quase uma unanimidade o caráter histórico do livro: “Viva o povo brasileiro é uma espécie de distintivo ficcional desse processo formador. Valendo-se do recurso fantástico de uma alma que reencarna em habitantes de Itaparica, Bahia — do tempo da colonização da ilha pelos holandeses (1647) até a ditadura militar, já por volta do final do governo Geisel (1977) —, João Ubaldo desfia em estilo barroco vários momentos decisivos da história do Brasil — Independência, Guerra do Paraguai, proclamação da República, Estado Novo” (Sergio Vilas BOAS, “... o escritor carioca-baiano tenta conciliar...”, Gazeta Mercantil, 18 e 19 mar. 2000). 603 “O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986. 604 “A falsa fama do bom baiano João Ubaldo”. O Estado de S. Paulo, 14 out. 1986. 605 “João Ubaldo às voltas com mil páginas”, O Estado de S. Paulo, 11 set. 1983. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 348 — Temos de começar — disse ele, devagarinho — por definir o que seja “histórico”... 5.8. AS HISTÓRIAS DE UM ROMANCE HISTÓRICO QUE SE QUER ESTÓRIA — Um professor meu, Júlio Diniz, disse, em sala de aula, que Viva o povo... foi o último grande romance brasileiro... — comecei, para ver o efeito de minhas palavras. — É uma afirmativa peremptória... — e o meu interlocutor franziu a testa. — Que não deve ser interpretada de maneira peremptória — disse eu. — Não se trata de um juízo de valor, a dizer que de 1984 para cá não se escreveram grandes romances. Escreveram-se, mas nenhum com a proposta de uma abrangência como a de Viva o povo..., que decide contar muitas longas histórias e todas elas esbarrando, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA quer queira o autor, quer não queira o autor, em aspectos da história nacional. Viva o povo... é o último grande romance brasileiro porque é o último romance histórico brasileiro. É uma questão de embocadura...606 João Ubaldo Ribeiro disse que começou a contar a “história de um falso herói de guerra da Independência”, e se deu conta de que “tinha começado ‘com embocadura de livrão’”.607 Ouça: (i) — Meu novo romance, Viva o povo brasileiro, não é um romance histórico. Todo romance é um delírio, como toda obra de arte é um delírio. A redução desse delírio a categorias objetivas é sempre uma ação empobrecedora....608 (ii) Ele explica que, embora venha mantendo um razoável background, “para evitar falar em Deodoro na época de Dom Pedro I” —, não está fazendo qualquer pesquisa de linguagem ou de costumes, e muito menos consultando documentos e outras fontes, para que o livro não acabe se tornando “uma espécie de tese de mestrado romanceada”. — Na realidade — diz ele —, o meu assunto é um pouco o povo brasileiro, porque faço de Itaparica uma metáfora do Brasil em geral.609 606 — E foi também pensando na questão da embocadura — observei, em nota — que João Carlos Teixeira GOMES mencionou, ao lado de Viva o povo..., outros trabalhos literários importantes. E citei: “... só quatro outros romances com ele rivalizam pela densidade e pela vastidão do projeto romanesco: As minas de prata, de José de Alencar; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; O tempo e o vento, de Erico Verissimo; e, finalmente, a Pedra do reino, de Ariano Suassuna. Cada um à sua maneira, todos eles reconstituem a saga da formação heterogênea e rica do Brasil” (“João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, op. cit., p. 100). 607 Vivian WYLLER, “João Ubaldo Ribeiro e o último dos livros que ‘tem’ de escrever”, Jornal do Brasil, 30 set. 1983. 608 “João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 349 — A professora Eneida Leal Cunha começou muito bem esta discussão — continuei —, quando referiu a negativa de João Ubaldo acerca do status de romance histórico atribuído a Viva o povo..., e a contrariou, afirmando que o romance é, sim, um romance histórico, e usa como um dos argumentos a “permanente articulação da trajetória das personagens a acontecimentos ou versões estabelecidos e estabilizados pela historiografia oficial”,610 e exemplifica: a “catequese, a invasão holandesa, a independência da Bahia, o regime escravagista e sua abolição, a proclamação da República e o golpe de 1964”.611 Ela diz ainda... Você está me acompanhando? — Estou, estou... Mas estou pensando também neste artigo do José Castello, que também cita Italo Moriconi e outros. Falam de espécies diferentes de embocadura, com especial atenção à estética já fragmentada e fragmentária daquela PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA literatura dos anos 80, em contraposição àqueles que seriam já uma espécie de exceção aberrante, como Viva o povo... Ouça — e o meu interlocutor leu. Por que não surgiram grandes romances nos anos 80? “Porque nossos romancistas parecem ter desistido da idéia de encontrar o Romance Brasileiro, tal qual foi concebido desde os anos 40”, propõe o professor de literatura Ítalo Moriconi Jr. (...). No lugar da grande obra que sirva de retrato à nação, os romancistas passaram a engendrar pequenas obras que captem aspectos propositadamente parciais do Brasil moderno. “Os ficcionistas, hoje, não querem mais produzir a grande obra. Preferem projetos localizados, que proponham a fragmentação ao invés da unidade. Que busquem o mínimo detalhe ao invés do 609 610 611 José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de Itaparica...”, O Globo, 7 set. 1983. — Essa articulação da trajetória das personagens a acontecimentos estabilizados pela historiografia oficial é, no entanto, sempre desarticuladora. — E citei para ele o que escreveu Luiz Fernando Valente, para quem há “uma tentativa consciente da parte dos escritores brasileiros das décadas de 70 e 80 de se distanciarem de tudo o que fosse ‘oficial’. Tal atitude reflete-se na predileção (...) por histórias que focalizam os socialmente marginalizados (...), e por personagens concebidos como indivíduos atípicos, movimentando-se num espaço político e social marcado por descontinuidades e fragmentação (...). Desse modo, o retorno ao romance histórico pode ser visto como uma resposta às condições sociais e históricas das décadas de 70 e 80. Perplexos diante do fato de que a definição otimista do Brasil, baseada na harmonia e na unificação, do modo como foi forjada no século XIX e manipulada tanto pela ditadura varguista quanto pelo governo militar de 1964-1985, contradiz a realidade de uma sociedade que é fragmentada política e socialmente, os escritores brasileiros se voltaram para o passado em busca de explicações para as divisões percebidas no presente” (Luiz Fernando VALENTE, “João Ubaldo Ribeiro: a ficção como história” (p. 181-203), in Zilá BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 196. Segundo nota do autor, esse texto foi publicado originalmente em inglês como “Fiction and history: the case of João Ubaldo Ribeiro”, in Latin American Research Review, University of Texas Press, 1993). “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 150. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 350 todo”, assegura Ítalo. ... Os textos de Noll lembram os filmes inóspitos de um Win Wenders, narrativas que fazem uma opção radical pelo empobrecimento das salvaguardas do escritor, pela minimalização da parte da realidade que a escrita pode abarcar. “É uma escrita rarefeita, que trata quase que só do irrelevante”, define Ítalo. “É uma rarefação quase completa do ato de contar”. ... “Ele [Silviano Santiago] e Noll fazem uma ficção muito mais violenta e demolidora do que os romances pretensamente totalizantes, que desejam ser enormes painéis do social”, afirma, sem titubear, o poeta Armando Freitas Filho (...). “Não querem fazer romances-painéis, mas dar vôos rasantes e determinados em cima de pequenos temas. Mesmo se tornando antiépicos, estes escritores se tornam muito mais eficazes”. “Acho que surgiram grandes romances nos anos 80”, enfatiza o escritor Ignácio de Loyola Brandão, autor do consagrado Zero (...). “Livros como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo, ou A grande arte, de José Rubem Fonseca, são geniais”. “... É uma literatura que não se quer grande arte. Ela perdeu a esperança de servir de moldura ao país, e deseja ser apenas um diminuto, mas penetrante, foco de luz sobre a tela”.612 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — A professora Eneida Leal diz ainda que João Ubaldo não o considera um romance histórico porque provavelmente ele, autor, tem como referência básica de romance histórico aquele modelo “consagrado no século passado”,613 século XIX, na verdade, no século retrasado... — Mas por que ela diz isso? Em que se baseia para afirmar que a referência de Ubaldo são os modelos de romance histórico do século XIX? — Não sei. Será porque foi um século produtivo em matéria de romances históricos? — perguntei. — Será porque os modelos de romance histórico do século XIX são abordagens tradicionais, “que o autor, na mesma entrevista, qualifica de colonizadas”,614 segundo cita a própria Eneida? Não sei. Acho que a negativa de João Ubaldo se baseia em algo mais simples, mais direto, mais intimamente relacionado ao corpo ficcional de Viva o povo brasileiro. — A própria professora Eneida Leal Cunha não teria chegado perto desse “algo mais simples, mais direto, mais intimamente relacionado ao corpo ficcional” do romance — perguntou o meu interlocutor —, quando observou que Ubaldo faz questão de dizer que não empreende qualquer tipo de pesquisa histórica? 612 José CASTELLO, “Os anos 80 deram romance?”, Jornal do Brasil, 20 fev. 1988. 613 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 150. 614 Id., p. 151. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 351 — Acredito que sim. Veja o que diz ele: “Não fiz pesquisa justamente porque não me interessava o rigor histórico, nem a historiografia oficial”.615 — Penso que estão os dois a ver de dois modos diferentes a significação de ser histórico. Ser um romance histórico, para Ubaldo, é ter sido feito a partir do rigor historiográfico, é ter sido alicerçado em extensíssimas pesquisas históricas, é estar todo ele eivado de teses subjacentes à ficção ela mesma, é manter com a chamada História oficial uma relação íntima e... — ... corroboradora, ou seja, colonizada, e deve ser por isso que João Ubaldo não o vê como histórico. Como diz a Rita Olivieri-Godet, o romance é PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA um... — e li. ... libelo contra a historiografia tradicional e sua cumplicidade com o poder; posiciona-se contra uma história que silencia, através de uma escrita unificada, o movimento vivo e plural da memória coletiva; bate-se contra uma história que aprisiona, ao impor o pensamento de um grupo como o pensamento da sociedade como um todo.616 — Assim é mais fácil entender por que razão a gente pode afirmar que João Ubaldo olha para Viva o povo... como um romance até mesmo anti-histórico. E ser um romance histórico para a professora Eneida Leal vai significar — continuei — a incorporação de... ... tendências recentes, como a vontade de construir um contraponto à história dos dominantes que possibilite a expressão dos dominados, ou ainda construir uma história das mentalidades, que relegue a um plano secundário o acontecido para penetrar e espraiar-se na malha complexa dos discursos, das representações, do simbólico.617 — Nesse caso — disse o meu interlocutor —, e principalmente se levarmos em conta o último ponto da citação da Eneida Leal, ou seja, que um romance histórico tem por força penetrar e se espraiar na “malha complexa dos discursos, das representações, do simbólico”, nesse caso — e fez uma pausa —, vou novamente citar aqui o José Saramago, que defende a idéia de que “toda a 615 “João Ubaldo Ribeiro, história e ótica popular”, O Estado de S. Paulo, 12 abr. 1985. 616 Rita OLIVIERI-GODET, “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit., realcei. 617 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 152, realcei. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 352 ficção literária (e, em sentido mais lato, toda a obra de arte) não só é histórica, como não poderia deixar de o ser”.618 — O que me parece importante nessa discussão — eu disse — não é tanto se Viva o povo brasileiro é ou não é um romance histórico, mas sim quando é histórico e quando não o é. A professora Eneida Leal Cunha, como eu já disse a você, sustenta que o romance é, sim, histórico... ... em especial quando se constata que o gênero acontece na atualidade, incorporando as transformações do próprio discurso histórico ou, o que no caso parece mais procedente, incorporando o questionamento, a desconstrução e o descentramento aos quais a contemporaneidade submete a história tradicional.619 — E o que me interessa aqui — continuei — são justamente as relações que a gente pode estabelecer entre momentos diferentes do romance e o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA comportamento do narrador diante desses momentos. — Em outras palavras, interessa a você identificar os momentos em que o narrador ele mesmo se comporta, ou não, como um narrador histórico... — Sim. E você muito bem observou que João Ubaldo e Eneida têm conceituações diferentes para a palavra histórico. Talvez eu prefira trabalhar com a noção do próprio João Ubaldo. E nesse caso o narrador sem cabeça será histórico justamente quando percebermos nele o rigor historiográfico, as ideologias subjacentes à ficção ela mesma, a manutenção de uma versão já legitimada da História e, acima de tudo, a postura do nacionalismo idealizante, alicerçado em um discurso patriótico colonizado, encaixotado e pronto para a exportação. Esse discurso patriótico colonizado é veiculado através de dois personagens, parentes entre si mas situados em dois tempos diferentes, séculos XIX e XX: João Popó e Ioiô Lavínio. — E esse narrador será anti-histórico justamente quando não estiver a serviço da versão colonizadora; quando estiver atento à micro-história, à história das mentalidades de que fala a professora Eneida, quando for — disse ele, frisando a palavra — histórico no sentido mais atual do termo? 618 José SARAMAGO, “O tempo e a história”, Jornal de Letras, 27 jan. 1999, p. 5, citado por Rita OLIVIERI-GODET, “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit. 619 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 152. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 353 — Sim. Agora, veja bem: o nosso foco aqui são as estratégias de nosso narrador sem cabeça; é com o narrador e com aquilo que ele diz ou narra que quero preocupar-me, e o nosso narrador sem cabeça é um narrador sem um padrão de comportamento, o que equivale a dizer que o narrador sem cabeça não está comprometido com esta ou aquela ideologia, e isso é o que torna Viva o povo brasileiro um romance narrativamente dinâmico; um romance que abre espaço para que seu narrador seja, por exemplo, histórico em um momento e antihistórico em outro, no sentido que estamos chamando de “sentido ubaldiano”, ou “ubáldico” do termo histórico, entenda-se... — Então você vai discordar do que escreveu a Rita Olivieri-Godet, que menciona, em seu artigo sobre Viva o povo..., a “solidariedade entre o discurso do narrador e o das personagens populares”?620 — perguntou o meu interlocutor. — Segundo o seu ponto de vista, o narrador está solidário com o personagem que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA está incorporando no momento, não é isso? — Sim, é isso mesmo — disse eu. — E essa idéia da Rita Olivieri-Godet me parece muito menos uma solidariedade do narrador do que uma direção principal de todo o romance; e quando eu falo em “direção principal de todo o romance” eu não estou falando mais de narrador mas sim de autor implícito, cujo conceito é aqui central. Segundo a noção de autor implícito, “implied author”, do teórico inglês Wayne C. Booth, o autor pode escolher disfarçar-se, sim, mas não pode escolher nunca desaparecer.621 O autor implícito de Booth não constitui apenas uma idéia genérica de homem, criada pelo autor real, que podemos chamar a “pessoa que escreve”, mas uma versão implícita que ele constrói de si mesmo durante a escrita, uma espécie de “segundo eu”622 cuja presença no texto é captada 620 Rita OLIVIERI-GODET, “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit. 621 “Telling and Showing”, in The Rhetoric of Fiction, Chicago & London, The University of Chicago Press, 1961, p. 20. No original: “... though the author can to some extent choose his disguises, he can never choose to disappear”. 622 — Booth cita, em nota, um trecho da aula inaugural de Kathleen Tillotson na Universidade de Londres e publicada como The Tale and The Teller (Londres, 1959, p. 22): “Writing on George Eliot in 1877, Dowden said that the form that most persists in the mind after reading her novels is not any of the characters, but ‘one who, if not the real George Eliot, is that second self who writes her books, and lives and speaks through them’. ‘The second self’, he goes on, is ‘more substantial than any mere human personality’ and has ‘fewer reserves’ (...)” (The Rhetoric of Fiction, op. cit., nota nº 8, realcei). E traduzo: “Escrevendo sobre George Eliot em 1877, Dowden diz que a forma que mais permanece na mente depois da leitura de seus romances não é a de nenhum personagem, mas a de ‘alguém que, se não a própria George Eliot, aquele segundo eu que escreve seus livros e vive e fala através deles’. ‘Este segundo eu’, (cont.) 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 354 pelo leitor e absorvida como se fosse um dos rastros, ou um dos braços, o mais importante, da pessoa que escreve; como se fosse um feixe dos seus diferentes aspectos.623 A noção de autor implícito não deve ser vista como mais um fantasmático ser, o terceiro, situado entre a pessoa que escreve e o narrador,624 embora ele lá esteja, a meio caminho entre os dois. O narrador, justamente porque parece não se dar conta de seu papel de mediador entre o autor real e o leitor, justamente porque não configura uma mediação suficientemente eloqüente, precisa da ajuda do autor implícito, que assim..., estou citando..., inibe a idéia de que é facultado ao leitor um acesso direto, através do texto ficcional, às intenções e às ideologias do autor real.625 Além disso, a relevância da noção de autor implícito para a compreensão de um texto não deve partir da pergunta acerca de sua existência ou não, neste ou naquele caso, mas sim da pergunta: o que é que se ganha com essa noção? Ganha-se uma maneira de, com um único termo, nomear e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA analisar o intento626 textual de uma narrativa de ficção... — ... e sem o recurso ao biografismo — disse ele. — Nesse texto da Rita Olivieri-Godet — continuei, ignorando — há referência às palavras da professora Lúcia Helena, para quem “a obra focaliza a História como embate contínuo de uma argumentação discursiva em que vencedores e vencidos tentam inscrever o texto de suas versões”.627 E o narrador, aqui, serve a ambos. A própria Rita complementa essa citação da Lúcia Helena, ele continua, é ‘mais substancial que qualquer mera personalidade humana, e tem bem menos reservas’ (...)”. 623 Sobre o autor implícito em Wayne C. Booth, ver especialmente as páginas 70 a 76, The Rhetoric of Fiction, op. cit. 624 — Como escreveu Seymour CHATMAN: “Few reject the distinction between real author and narrator, but some wonder why a third, seemingly ‘ghostly’ being should be situated between the two” (“In Defense of the Implied Author” (p. 74-89), in Coming to Terms, op. cit., p. 74). E traduzo: “Poucos rejeitam a distinção entre autor real e narrador, mas alguns perguntam por que um terceiro, aparentemente fantasmático, ser deveria situar-se entre os dois”. 625 “Positing an implied author inhibits the overhasty assumption that the reader has direct access through the fictional text to the real author’s intentions and ideology” (id., p. 76, realcei). 626 — Frisemos aqui a distinção de Seymour Chatman entre intento (“intent”) e intenção (“intention”): “I use ‘intent’, rather than ‘intention’, to refer to a work’s ‘whole’ or ‘overall’ meaning, including its connotations, implications, unspoken messages” (id., p. 74). E traduzo: “Eu uso ‘intento’, ao invés de ‘intenção’, para referir um significado geral e ‘acima de tudo’ de todo o trabalho, incluídas as suas conotações, implicações e mensagens não ditas”. 627 A narrativa de fundação: Iracema, Macunaíma e Viva o povo brasileiro, Letras 1, Universidade Federal de Santa Maria, RS, 1991, p. 80-94, citado por Rita OLIVIERI-GODET, “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 355 afirmando ser também “verdadeiro o fato de que ela [a obra] não permanece neutra em relação a essa discussão”.628 Então — eu disse —, é a obra que não permanece neutra; é a obra que se orienta solidariamente para os dominados, os sem voz, os personagens populares; não o narrador. A obra compromete-se, sim, com uma ideologia libertadora baseada na justiça social etc. etc. O narrador, não. O narrador é sem cabeça. O autor implícito, não. — Vamos entrar no texto? — Com prazer. Gostaria de sugerir uma relação entre o comportamento narrativo caracterizado pela onisciência absoluta e o status de histórico, no sentido ubáldico. Quando o narrador, e eu já citei esse trecho, diz, referindo-se aos oficiais e praças sob o comando de Patrício Macário, que “a maior parte (...) morrerá amanhã, ali mesmo nos alagadiços de um lugar chamado Tuiuti” (Viva o povo..., p. 421), ele está colocando a si próprio em uma posição privilegiada em relação PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA não apenas à história do romance, mas à História dos fatos referentes à Guerra do Paraguai, demonstrando ao leitor que ele a conhece e que desse modo, e não de outro, ela aconteceu, porque ele está, afinal, manuseando uma história já escrita e já institucionalizada. Ele a corrobora e se torna, dessa maneira, histórico. — A famosa Batalha de Tuiuti — disse o meu interlocutor — aconteceu, tal como nos informa o próprio romance Viva o povo brasileiro, no dia 24 de maio de 1866. Pergunto: a mera presença desse dado, historicamente verificável, por si só não tornaria o livro histórico, bem como outros dados históricos relevantes, todos corretamente encaixados? E faço outra vez a mesma pergunta que fiz há pouco e você não respondeu...: quando Ubaldo diz ao seu editor, naquele trecho que você leu para mim há pouco, que ele imaginou que o livro seria importante, sim: “Eu fiz todas as minhas gracinhas, usei tudo o que eu sei, e não estou vendo o resultado”.629 Que gracinhas são essas? O que significaria este “... usei tudo o que sei”? Por que seria o livro importante? Mais uma pergunta: podemos arriscar dizendo que as “gracinhas” e esse “tudo o que sei” são justamente o esforço de pesquisa e, de certa maneira, o esforço narrativo de Ubaldo em juntar, tão magistralmente como o fez, informações históricas estabilizadas com ficção, ficção que é, por si, desestabilizadora? 628 “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit. 629 “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 356 — Creio que sim — eu disse —, e o narrador está impregnado dessa postura histórica oficial quando esse mesmo narrador está às voltas com um personagem que representa todo ele a corroboração do universo histórico oficial. Veja o trecho acerca do ímpeto nacionalista do personagem João Popó:630 o narrador deixa evidente para o leitor que ele, narrador, sabe muito mais do que aquilo que está ali, naquele momento, a contar. Veja como o narrador muda de tom e se revela possuidor de um saber exclusivo: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA E, claro, João Popó não sabia, mas saberia depois com orgulho inexprimível, que a afortunada coincidência a que aludira em seu discurso era ainda mais extraordinária do que lhe parecia. Pois, no mesmo dia, quem sabe na mesma hora, enquanto ele invectivava o inimigo na praça da Quitanda e o espectro da guerra estendia sua sombra gélida sobre o Brasil, o Governo de Sua Majestade Imperial, do alto da Corte do Rio de Janeiro, baixava decreto criando os Voluntários da Pátria, a flor da mocidade nacional que iria bater-se nos longínquos campos de honra da campanha do Paraguai. (p. 413, realcei) — Eu bem sei que você não está falando disso — começou ele — e que o assunto de nossa conversa é agora o grau de historicismo do narrador em relação ao modo como ele está narrando, eu sei. Mas... eu não posso deixar de notar que essa postura aqui, nesse trecho do Popó, é antes de tudo satírica. Veja o que diz a Rita Olivieri-Godet: “... quando se trata de demolir o discurso mistificador ou despótico das elites”, e João Popó representa a elite em meio a um surto de nacionalismo conservador, o comportamento da narrativa se baseia na paródia e no escárnio, “que marcam a distância do narrador em relação à ideologia veiculada por esses discursos”.631 Em outras palavras, esse tom histórico que você detectou no trecho lido agora é baseado na ironia e na galhofa, e por isso não é nem de longe total e irrestrita a incorporação que realiza o narrador de um personagem como João Popó e tantos outros membros da elite colonizadoraconservadora-reacionária-escravocrata. Há uma distância, e quem a produz é o tom irônico-satírico da narrativa — disse ele. 630 — Podemos observar nos primeiros momentos da crônica intitulada “A República dos ladrões” a descrição da bibliografia responsável pelos arroubos de patriotismo do próprio João Ubaldo: uma provável fonte de inspiração para o personagem João Popó. Trata-se dos livros Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso; e O Brasil e suas riquezas, de Waldomiro Potsch (O Globo, 26 ago. 2001, crônica reunida no livro Você me mata, mãe gentil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004., p. 141-145, p. 141). 631 “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 357 — Hum... — E pensei em voz alta: — Por detrás do narrador há o nosso bom e velho autor implícito. Esse tom irônico e satírico nasce numa instância anterior e se concretiza na fala do narrador. Não nos esqueçamos de que o romance, visto como um todo orgânico, se orienta em uma direção, não se mantendo neutro em relação à discussão que encena em seus palcos discursivos, como bem disse a própria Rita Olivieri-Godet. Há uma postura diante da História, uma postura que precisa ser criticada. O narrador incorpora o discurso dessa postura, mas, em nome de uma opção ideológica, o que faz é apenas realçar as cores dessa postura, tornando-a exagerada e, assim, caricata, e essa é a estratégia crítica.632 Essa “distância do narrador em relação à ideologia veiculada por esses discursos”, palavras da Rita Olivieri-Godet, é uma distância em relação a uma ideologia, e não passa de um aspecto, entre muitos, da relação do narrador com o personagem que ele incorpora, ou melhor, com o discurso de que aquele PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA personagem é, naquele momento, porta-voz. — O que você quer dizer é que essa distância não é decisiva? — Ela não é suficiente para afastá-los, ao narrador e ao personagem. E a fala de um personagem transcende a sua ideologia. A ideologia de um discurso é um aspecto, entre muitos, desse discurso, e não o discurso todo. — Gostaria de retomar o trecho lá atrás do João Popó: os momentos em que o nosso, o seu..., narrador sem cabeça — disse ele — se revela um narrador onisciente; momentos, como você já demonstrou, raros e que se contam nos dedos..., esses momentos de onisciência absoluta acontecem diante de fatos conhecidos e já estabilizados da história nacional... — Sim, estamos voltando ao nosso tópico... É como se, diante de “fatos” e “conhecimentos” da História, o narrador não pudesse se comportar de outro modo. Ele se comporta narrativamente como um narrador histórico, e um narrador histórico, porque o fazer histórico que é alvo da crítica de João Ubaldo não passa de um fazer linear, inteiriço, norteado por uma suposta Razão e levado adiante a 632 — Lembro-me — e abri com a mão uma nota — do trecho de uma história em que João Ubaldo abre com humor as cortinas de um determinado fazer histórico: “Vicente, que tem o sangue quente (...), disse (...) que ia dar uma bolacha na cara de Nequinho. E de fato, se Nequinho não fosse meu primo, eu ia contar que efetivamente Vicente deu bolachas bem-sucedidas, mas Nequinho é meu primo e então Vicente tomou muitíssima porrada, a História é assim feita, já dizia meu avô” (“Vavá Paparrão contra Vanderdique Vanderlei” (p. 65-72), in Já podeis da pátria filhos..., op. cit., p. 72). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 358 partir de um ponto de vista também supostamente isento e situado acima dos homens, um narrador histórico é um narrador onisciente e onipotente, é um narrador que sabe mais do que sabem os personagens que ele incorpora, porque ele, e mais ninguém, conhece a História, sendo o único detentor de um saber. — Ele narra a História e vive as histórias... — Sim. A primeira ele conhece e, ironicamente ou não, reproduz-lhe os discursos legitimantes. As segundas ele não pode conhecer de antemão, e por isso as vive. E você veja a diferença de tom do narrador no momento em que ele está incorporando Zé Popó, filho de João Popó. É o momento de uma batalha — eu disse. — Um narrador histórico, dono de todas as informações e conhecedor, portanto, de todas as batalhas, uma vez que sabe, como já vimos que sabe, que as batalhas são sangrentas e que muitos morrerão, entre brasileiros e paraguaios, um narrador histórico, dizia eu, jamais poderia falar isso e se revelar assim tão PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ignorante do que vinha pela frente: ... ele olhou para os lados sem acreditar. Não havia um inimigo por perto, não havia nada a não ser camaradas, até a fuzilaria virara um bramido distante. Tinham ganho a batalha, então, era isso que era uma batalha, já estivera em brigas piores. (p. 440, realcei) — Eu comecei a falar da família Popó porque todos os trechos em que o narrador se dedica a descrever e incorporar João Popó, um personagem que aparece já tardiamente no romance, à página 405, convergem para o evento narrado nas páginas 479 a 484 e têm sua razão de ser numa disputa verbal entre João Popó e seu filho Zé Popó, uma disputa entre dois tipos de discurso e de visões sobre a História: um discurso nacionalista-idealista, formado todo ele por uma narrativa ascética dos feitos heróicos de um povo que deve sua força e invencibilidade aos seus grandes chefes e dirigentes da Nação, e não aos soldados, ou ao acaso; e um outro discurso — continuei —, este desprovido de solenidade ou romantismo, ambos levados adiante, note-se, através da fala, em indireto livre, do narrador, que adquire então os dois feitios. Trata-se mesmo do conflito entre um tom epopéico e um tom prosaico, anti-epopéico, ambos orientados para uma descrição da guerra. João Popó, que a imagina, com ela sonha e sobre ela escreve, e seu filho Zé Popó, que nela viveu. Veja: 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 359 (i) ... Já galopa desabrido o Centauro dos Pampas. Sob uma saraivada inclemente de balas, ergue o peito majestoso e, diante de sua aparição magnífica, recobram nossos homens o ânimo vergastado pela sanguinolência da batalha. Não é um homem. É um deus. (ii) ... Corinto Mello (...) indagou de Zé Popó qual, entre todas as suas ricas experiências como herói da Pátria, a imagem que mais lhe ficara, a reminiscência que mais o perseguia (...), e Zé Popó respondeu: as bicheiras. Sim, as bicheiras, falou com simplicidade. (...) João Popó (...) imediatamente perguntou sobre qual era o sentimento que dominava o soldado na hora de combater pela Pátria, ao que Zé Popó respondeu: medo. (p. 480-481) — E essa mesma disputa de discursos tendo como tema o nacionalismo a gente vai encontrar em outros momentos do livro — adiantou-se o meu interlocutor, animado —: a descrição do heroísmo literário do alferes, ao início do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA romance, e do heroísmo de araque de Perilo Ambrósio, feito Barão de Pirapuama por se ter sujado em sangue escravo para fingir ferimentos de guerra.633 — Agora deixe-me chegar a um ponto importante — pedi, sem dar muita atenção ao que ele acabava de dizer. — Esse narrador histórico que mencionei há pouco, que se comporta narrativamente de acordo com um fazer histórico que é alvo de críticas, desse modo ilustrando esse próprio fazer histórico, já que se trata de um narrador onipotente e onisciente, situado acima dos homens e conhecedor de tudo e observador de tudo, como se a História já fosse uma partida ganha de antemão... Esse narrador histórico, em determinado ponto do livro, encontra o seu contraponto ficcional e realiza, com a sua personalíssima narrativa, uma espécie de meta-história, uma espécie de meta-Viva o povo brasileiro. — Estou curioso. — Então me dê café... Para fazer uma crítica a uma visão da História que João Ubaldo considera colonizadora e autoritária, e na defesa de um outro tipo de fazer histórico, nascido à beira das fontes oficiais, fora da escrita e veiculado tão somente pela força do que contam oralmente as gerações passadas às futuras, Viva 633 — Eu estou vendo aqui a matéria de uma revista portuguesa — disse o meu interlocutor, fazendo uma notinha —, em que o jornalista menciona Perilo Ambrósio, mas se revelando ignorante de sua farsa como herói de guerra. Diz ele que Ubaldo “... fez um hino, Viva o povo brasileiro, e nele (...) [pôs] um dos mais belos heróis, Perilo Ambrósio, português e combatente da independência brasileira” (Ferreira FERNANDES, “Ubaldo das bundas ditosas”, Focus, 17 jan. 2000). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 360 o povo brasileiro apresenta, já próximo de seu final, a narração de sua própria história, pela boca de um outro personagem que dela não participou e já sob o peso dos anos passados. Essa narração é conduzida por um cego, que conta a um grupo o que a ele contaram, e o que se lê/ouve do cego é a história do romance Viva o povo brasileiro apresentada tal qual ela seria caso não tivesse sido escrita. — E não foi mesmo... — disse ele. — A história que nos conta o narrador de Viva o povo... nunca foi, dentro da lógica interna do romance, escrita... — Sim. A história, ela mesma, não sabe, não registrou a sua transformação em um romance. Entendi... A história que nos conta o cego foi apenas passada de boca em boca: uma história transformada a cada rememoração, imprecisa, ambígua, móvel e pontilhada por personagens com nomes trocados e às vezes inexistentes. O negro Inocêncio é agora o negro Inocente, e essa alteração justifica-se pelo teor da história de vida de Inocêncio... A negra Daê vira Adaê; Budião, vira Bodeão, e o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA único guarda que vigiava Budião na cela transforma-se num exército de mais de mil soldados... O então tenente Patrício Macário e o outro oficial seu amigo foram deixados nus no Largo da Glória, debaixo de uma árvore... Para o cego foram os dois comandantes obrigados por Maria da Fé a dançar pelados em meio a todo o povo da ilha de Itaparica... “O cego desconstrói a noção de história, antecipando a relatividade dos fatos que são narrados a seguir”, diz Karina Kushnir — e mostrei a ele o artigo dela. — “A cegueira, ao invés de obscurecer-lhe a visão, lhe permite enxergar o que está submerso.”634 O cego vai descredenciar todas as outras histórias escritas e vai eleger como única e verdadeira justamente a história de Viva o povo..., que não é História, mas ficção, e que para ele não é, nem nunca foi ou será, uma história escrita, mas uma história ouvida e repetida. — O cego é a representação do anti-historiador... — Sim, ou de um historiador não circunscrito à cientificidade. Veja: ... toda a História é falsa ou meio falsa e cada geração que chega resolve o que aconteceu antes dela (...). Além disso, continuou o cego, a História feita por papéis deixa passar tudo aquilo que não se botou no papel e só se bota no papel o que interessa. Alguém que tenha o conhecimento da escrita pega de pena e tinteiro para botar no papel o que não lhe interessa? (...) Então toda a História dos papéis é pelo interesse de alguém. 634 “Literatura e identidade nacional” (p. 259-276), in Gilberto VELHO (org.), Revista de Cultura Brasileña, Embajada de Brasil en España, mar. 1998, p. 267. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 361 (...) Porém esta história que eu vou contar, disse o cego, é verdadeira, tão certo como Deus está no céu. E então contou que era uma vez... (p. 515-516, realcei) — O trecho que eu salientei para você demonstra ficcionalmente que João Ubaldo vincula as possibilidades de transformação social à necessidade de uma reformulação da visão que se tem do passado social do país. Essa vinculação — continuei — está presente na convicção do cego de que a força dos poderosos se deve antes de tudo à capacidade que tiveram, e ainda têm, de montar um passado bem de acordo com os seus interesses. Essa é a diferença, apontada pela PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA professora Eneida Leal Cunha, entre João Ubaldo e a... ... vertente da prosa de ficção brasileira no século vinte, no Nordeste e na Bahia, da qual o autor descende, [e que] esteve sempre muito mais atenta ao presente, e muito mais preocupada com a correção futura das desigualdades sócio-econômicas, do que especulando acerca do passado, especialmente do passado colonial.635 — A palavra do cego tem especial valor, já que ele funciona aqui como a personificação de uma consciência histórica, e a consciência histórica do cego parece-me a consciência histórica não apenas de uma idéia de autor implícito, mas do próprio João Ubaldo — disse ele. — A consciência histórica do cego em Viva o povo... é uma consciência histórica imaginativa, de olhos abertos para as porções, vou usar uma variante que já não se usa mais, estóricas em uma narrativa histórica, e isso me faz pensar no Hayden White e em seu livro Meta-história — e retirei, feliz, o volume da estante. — O problema aqui para nós é que White realiza o seu raciocínio às avessas, segundo ele mesmo diz em uma nota, referindo-se a dois livros e a dois teóricos: Mimesis, do Erich Auerbach, e Art and Illusion, do E. H. Gombrich. Vou ler: “Eu, de certo modo, inverti a formulação deles”, escreve White. “Eles perguntam: quais são os componentes ‘históricos’ de uma arte ‘realista’? Eu pergunto: quais são os elementos ‘artísticos’ de uma historiografia ‘realista’?”.636 Toda a atenção de White..., você está me ouvindo? ... todo o seu empenho dirige-se ao século XIX 635 “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 151. 636 “Introdução — A poética da História”, in Meta-história — A imaginação histórica do século XIX, São Paulo, Edusp, 1992, p. 19, nota nº 4 da p. 18. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 362 e a alguns de seus historiadores, Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt, e filósofos da história, Hegel, Marx, Nietzsche e Croce. Ouça: ... Diz-se com freqüência que a história é uma mescla de ciência e arte. Mas, conquanto recentes filósofos analíticos tenham conseguido aclarar até que ponto é possível considerar a história como uma modalidade de ciência, pouquíssima atenção tem sido dada a seus componentes artísticos. Através da exposição do solo lingüístico em que se constitui uma determinada idéia de história tento estabelecer a natureza inelutavelmente poética do trabalho histórico...637 — Então nós estamos necessariamente, ao contrário de White, à procura da natureza, para citá-lo, inelutavelmente histórica do trabalho poético... — ponderou o meu interlocutor. — Não. Eu não pretendo aqui caminhar na mesma via de White, só que no sentido oposto. Não, embora isso possa ser em alguns momentos produtivo. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Quais momentos? — interrompeu-me. — Já lhe digo. Eu o citei por causa da passagem do cego. O cego de Viva o povo... não está fazendo literatura; ele está fazendo história, e ele lê a história do mesmo modo como White o faz, e João Ubaldo, aí é que está o ponto a que quero dar relevo, e João Ubaldo está dizendo, em suma, o mesmo que White, só que através de um texto literário que está fazendo as vezes de uma rememoração histórica. O cego não se vê a si mesmo como um escritor, mas como um historiador, um historiador heterodoxo, vá lá, mas um historiador, ao passo que White está lançando mão de um texto acadêmico. Não se trata de João Ubaldo estar apresentando e revisitando momentos históricos em sua ficção. Há um texto jornalístico que chama Viva o povo brasileiro de uma “revisão na história oficial”.638 João Ubaldo Ribeiro, aqui, não faz isso... — Faz aqui, sim — disse o meu interlocutor —, se você situar esse cego no contexto histórico sugerido pelo capítulo. Onde está o cego? No famosíssimo Arraial de Santo Inácio, ponto de parada daqueles que rumavam para Canudos, um arraial que está longe de ser, como muito bem alertou Francis Utéza, uma invenção de Ubaldo... O arraial, olhe que coisa bonita eu vou dizer, e eu deixo você colocar isso na sua tese como se fosse idéia sua... O Arraial de Santo Inácio 637 Id., p. 13. 638 “Um ano bem brasileiro”, Siga, dez. 1984. Matéria: “Viva o povo brasileiro”. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 363 representa aqui, na ficção de Ubaldo, uma espécie de entroncamento e meio de caminho, não apenas para jagunços e bandidos, mas também para os universos da ficção e da história, que ali se encontram, se arrostam e se fundem. “Os dados espaciais e temporais fornecidos pelo narrador vêm diretamente de Euclides da Cunha”, diz Utéza, e elenca vários pontos de contado entre os lugares por onde passa o jagunço ficcional Filomeno Cabrito, um dos ouvintes do cego e um amálgama de todos aqueles jagunços que se dirigiam para os braços do Conselheiro, e os locais descritos pela pena de Euclides da Cunha nOs sertões. Em um desse pontos se esconde justamente o Arraial de Santo Inácio: (i) Cerca de dez ou oito léguas de Xiquexique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, erecto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais.639 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA (ii) Arraial de Santo Inácio, 29 de fevereiro de 1896. A noite baixou de sopetão e uma friagem seca cobriu as cercanias do Gentio do Ouro e de Xique-Xique, a umas boas léguas das barrancas do São Francisco, onde o arraial se esconde pelo meio dos montes. Esconde-se porque é um arraial fora da lei, cafua de bandidos, jagunços fugidos e cangaceiros... (p. 514) — Sim, sim — concordei. — E no Arraial de Santo Inácio, local nãofictício e portanto não-aleatório, já que Canudos é um pano de fundo, está justamente o narrador, através de um cego ficcional, discutindo o próprio fazer histórico. A sua idéia do entroncamento ficção/história é mesmo boa e eu vou usála: um cego fictício recontando a história fictícia de Viva o povo... como se fosse real, e tratando todas as demais histórias-reais-escritas como se fossem a ficção enganadora dos poderosos, está ali, às portas de um dos mais sangrentos acontecimentos da História do Brasil, por sua vez relatado pelo jornalista Euclides da Cunha, que não resistiu à tentação de ser, à sua maneira, literário, diante de um fato que, pressentira ele, estava destinado aos compêndios de História... 639 “A luta — preliminares” (p. 145-168), in Os sertões — Campanha de Canudos, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1980, p. 152. — A edição a que Utéza se refere é outra — esclareceu o meu interlocutor —, também da ed. Francisco Alves, mas do ano de 1911, com o citado trecho situado na p. 222. O trecho, de todo modo, foi trazido à tona pelo Francis UTÉZA, “Viva o povo brasileiro ou O espírito da fraternidade”, op. cit., p. 53. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 364 — A Walnice Nogueira Galvão ilustra muito melhor do que você essa idéia do Euclides da Cunha de ter de recorrer à literatura para conseguir dar conta do recado... Ouça: ... Euclides privilegia uma figura que reúne duas forças contraditórias e desvela a incapacidade raciocinante de encontrar uma síntese entre elas. Por exemplo, a seu ver, António Conselheiro era ao mesmo tempo um grande homem, enquanto líder, porém um degenerado enquanto encarnação das piores potencialidades presentes nos mestiços. Como resolver tal dilema, ao nível do discurso? Empregando a figura da antítese (...) ou sua forma mais extremada, que é a figura do oxímoron. Isto é, resolvendo o problema não ao nível do raciocínio, mas ao nível da literatura.640 — Antes que você me diga que eu preciso desenvolver essa sua idéia do Arraial de Santo Inácio como entroncamento entre ficção e história, eu gostaria de continuar o meu raciocínio lá de trás, quando você me interrompeu: quando o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA cego conta a sua história, ele o faz concebendo-a do mesmo modo como White concebe esse fazer histórico: “... a saber: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram representando-os”.641 E diz o cego, diante do seu próprio fazer histórico: “... esta história que eu vou contar (...) é verdadeira, tão certo como Deus está no céu” (p. 516). — O cego faz história — disse o meu interlocutor —, e faz de sua história um modelo, ou seja, uma história do que realmente aconteceu, ao contrário das outras... Para ele, a história que realmente aconteceu é justamente a história não escrita... — A história escrita, e agora cito as palavras da feiticeira Rita Popó, tem um ar arrumadinho, e “a única coisa arrumada é a mentira, a qual é a explicação certinha” (p. 596). E João Ubaldo Ribeiro ilustra muito bem essa idéia algumas páginas à frente, quando revela, e dou dois exemplos, que a história “que ficou” para as gerações futuras, acerca do suicídio de Carlota Borroméia, filha de Amleto Ferreira, guarda-livros do Barão de Pirapuama, foi a história de que “tinha morrido de um colapso ainda bem moça” (p. 655). O outro exemplo são os detalhes do estudo de genealogia encomendado por um descendente de Bonifácio Odulfo Nobre dos Reis Ferreira-Dutton, filho do velho Amleto. E o dr. Eulálio 640 “Introdução” (p. VII-X), in Euclides da CUNHA, Os sertões, op. cit., p. IX-X. 641 “Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 18 (negritos meus, itálicos do White). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 365 Henrique Martins Braga Ferraz, trineto de Amleto, lê em seu estudo acerca da “estirpe” dos Ferreira-Duttons, estirpe que nós já vimos não passar de uma grande farsa, as minigâncias de uma bela história “para inglês ver”, cheia de detalhes inverificáveis e de eventos românticos e heróicos a envolver uma filha de “mãe inglesa católica” e de um pai brasileiro herdeiro de viscondes, e algum sir inglês de “uma família aparentada com a casa de Windsor”... Nada parecido com a provável história dos pais de Amleto — continuei —: uma brasileira quase negra, talvez estuprada por um pirata inglês que fugiu às risadas e cuja maior qualidade era mesmo ser inglês, e nada mais... O próprio Amleto, no “romance genealógico” encomendado, não era um mero ladrão guarda-livros do Barão, mas nada menos que um sócio sagaz que salvou os negócios de Perilo Ambrósio da ruína. “... ta-tata, ta-ta-ta, tudo história já conhecida” (p. 642), diz o narrador, incorporando o dr. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Eulálio Henrique, que olhava... ... para o retrato do trisavô, sisudo, colarinho alto, pescoço empertigado, sobrancelhas cerradas. Branco que parecia leitoso, o cabelo ralo e muito liso escorrendo pelos lados da cabeça, podia perfeitamente ser um inglês, como, aliás, quase era, só faltou nascer na Inglaterra. Traços nórdicos visíveis. (...) Evidente que era desses velhos caturras, poços de honestidade e austeridade... (p. 642) — O mesmo tom aristocrático que gostavam de portar as famílias coloniais a gente ainda vai encontrar em famílias como as de Amleto — disse ele —, que não era aristocrática mas se tornou, ou seja, e cito o Caio Prado Jr., Amleto viveu o mesmo empenho de “todas as castas privilegiadas de curto passado: o de querer entroncar-se em outras mais antigas”.642 — Sim, muito bem citado. E de modo bastante diverso — continuei — é escrita a outra história, a história ágrafa das demais famílias do romance. As gerações posteriores vão aprendendo sobre as anteriores através de relatos diretos e testemunhos de parentes e amigos. Não há papéis, logo não há “provas” que legitimem algum passado; há apenas as histórias e a crença no fio condutor da possessão espírita, que unifica e dá sentido ao passar do tempo. Ouça, e veja também que as noções de tradição, de estirpe, de linhagem e de nobreza se mantêm, embora constituídas de outra matéria. O segundo exemplo é a síntese da conexão familiar dos personagens “sem voz”... 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 366 (i) ... — Minha mãe — disse Zé Popó [a Patrício Macário] — é herdeira de uma grande tradição. Tudo o que ela sabe aprendeu com a falecida Mãe Inácia, de quem o senhor nunca deve ter ouvido falar, mas pertencia a uma espécie de linhagem, uma linhagem que tem sua nobreza, que vem de Mãe Dadinha, de Mãe Inácia e de outras, muito raras e prezadas para esse povo todo. (p. 492-493) (ii) Contou-lhe [a Patrício Macário] Rufina que ele tinha a mesma alma que Vu, filha do caboco Capiroba e, portanto, num certo sentido, ele era Vu. (...) Disse ainda que ele (...), Patrício Macário, logo encontraria uma mulher que antes era o caboco Capiroba e essa mulher e ele se amariam. Mostrou-lhe então, narrando tudo em pormenores, como essa mulher (...) era também descendente carnal do caboco Capiroba, pai de Vu, bisavô de Dadinha, trisavô de Turíbio Cafubá, tetravô de Daê, também chamada de Vevé, avô no quinto grau dessa dita mulher, a qual, portanto, considerando as almas, era ancestral de si mesma... (p. 498-499) — A propósito — disse o meu interlocutor — e voltando à figura do cego: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA se este seu cego opera aqui no romance como um historiador, mesmo que heterodoxo, vale então a provocação de White aqui nesta nota de rodapé. — E ele pegou o livro que estava folheando e leu: — “Os historiadores em geral, por mais críticos que sejam de suas fontes”, e o cego era bastante crítico de todas as fontes..., “tendem a ser ingênuos contadores de histórias”.643 — Sim, e o faz sem dissimular o seu caráter passional, sem dissimular que ele, necessariamente, ao transmitir aquelas informações, está empenhado em um esforço de dar um sentido narrativo àquilo. “Sem narrativa”, diz Karl Erik Schollhammer — e citei —, “não existe, para White, nem ‘compreensão’ nem ‘explicação’ histórica.”644 O Karl Erik Schollhammer, não sei se já lhe disse, é o meu orientador na tese que vou escrever... —Não, não me disse — disse ele, e não disse mais nada. — Bom... Veja aqui a história que o cego conta do assassinato de Vevé, mãe de Maria da Fé, por quatro brancos, os quatro brancos que mais tarde foram por sua vez mortos por Leléu, que lhes cortou os pescoços e em seguida afundou o barco em que estavam. Foram para o fundo do mar e nunca mais apareceram. Veja a relação de causalidade que teve de criar o cego, para dar sentido àquilo 642 “Vida social — organização social”, op. cit., p. 290. 643 “Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 24, nota nº 6 (da p. 23). 644 “Estudos Culturais — Os novos desafios para a teoria da literatura”, in VÁRIOS AUTORES, Anais do 6º Congresso Abralic — Literatura Comparada igual a Estudos Culturais?, Florianópolis, 1998. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 367 tudo, uma vez que Leléu nunca falou do crime de vingança para ninguém e, portanto, não legou à história essa informação: “Mesmo depois que, por obra daquela dita Irmandade, os oito brancos foram engolidos por uma grande onda do mar e nunca mais se viu nem cisco de nenhum deles...” (p. 518). O que vemos aqui? Uma operação narrativa a sobrepor-se a uma operação investigativa, para citarmos as expressões de Hayden White. Ouça: “Admitimos que uma coisa é representar “o que aconteceu” e “por que aconteceu como aconteceu” e outra bem diferente é prover um modelo verbal, na forma de uma narrativa, de modo a explicar o processo de desenvolvimento que conduz de uma situação a uma outra situação”, escreve White.645 O cego “opta” pelo segundo método — disse eu, fazendo o gesto de colocar as aspas. — Essa relação de causalidade criada em nome de um sentido antes de tudo estético é parte integrante do mundo ficcional, ao passo que é raramente PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA admitida no universo histórico... — arriscou o meu leigo aprendiz de historiador. — Sim, e é em nome disso que se bate o Hayden White: a assunção do espaço de efetiva criação no interior do universo de “fatos” da história. Para o professor Karl Erik, o “mérito principal de White tem sido mostrar para os historiadores o papel ativo dos Tropos retóricos e das estruturas narrativas na criação, na descrição e na compreensão da realidade histórica”, diz ele, “liberando, assim, a historiografia da polêmica tradicional sobre a história como ‘arte’ ou como ‘ciência’”.646 Veja aqui duas declarações: uma do White; outra do próprio João Ubaldo Ribeiro, que está desempenhando, como ficcionista, o papel de um historiador; papel que White gostaria de ver sendo desempenhado, ou ao menos assumido, às inversas, pelos historiadores: o papel de ficcionistas. Ouça: (i) ... Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado através do “achado”, da “identificação” ou “descoberta” das “estórias” que jazem enterradas nas crônicas; e que a diferença entre “história” e “ficção” reside no fato de que o historiador “acha” suas histórias, ao passo que o ficcionista “inventa” as suas. Essa concepção da tarefa do historiador, porém, obscurece o grau de “invenção” que também desempenha um papel nas operações do historiador.647 645 “Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 27. 646 “Estudos Culturais — Os novos desafios para a teoria da literatura”, op. cit. 647 “Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 22. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 368 (ii) ... o Recôncavo (...) é meu mundo básico (...). (...) Nunca se contará nem uma fração pequena das histórias que o Recôncavo viveu, vive e viverá. (...) fui criado entre mentirosos estupendos e renomados em todas aquelas partes, sempre quis ser um deles, vou conseguindo. E, como tudo o que se conta do Recôncavo no Recôncavo pode acontecer, tudo efetivamente aconteceu ou está por acontecer. Não faço literatura, digo isto a sério.648 — A partir destas duas declarações podemos mesmo ver o texto ficcional de Viva o povo... como o contraponto das idéias de White, e isso me faz retornar à minha pergunta anterior, baseada no que você disse: em quais momentos seria produtivo caminhar na mesma via de White, só que no sentido oposto... — quis saber ele, talvez me testando para ver se eu não estava atirando palavras ao chão e à toa... — Antes deixe-me abrir um outro flanco bastante importante nessa história: esse flanco chama-se Dominick LaCapra, e eu o cito em cima do texto do professor Karl Erik. LaCapra bate de frente com o White, defendendo, não uma PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA reconstrução narrativa do passado histórico, mesmo que essa reconstrução seja toda ela a partir da assunção de que se trata de uma reconstrução que beira a ficcionalidade, uma reconstrução, portanto, que não está à cata de um “fato” puro localizado lá longe nesse passado, e que a reconstrução justamente pretenda trazer à tona... Não — disse eu. — Isso, para LaCapra, não é suficiente, porque isso ainda assim é uma maneira de olhar para a realidade histórica de modo a querer vê-la, ou lê-la, como superfície coerente e objetiva, passível, portanto, de ser submetida a uma operação narrativa. LaCapra posiciona-se contra essa reconstrução porque acredita ser ela mais uma, entre muitas, tentativas dos historiadores de “domesticar” o passado. Ouça: “Utilizando-se da noção bakhtiniana de diálogo”, diz Karl Erik, “LaCapra procura ferramentas teóricas que permitam que o passado autônomo continue desafiando as tentativas do historiador de domesticá-lo na ordem discursiva”.649 — Bom, você disse que se tratava de um flanco importante... Transporte esse discussão White-LaCapra para dentro de nossa história — pediu ele. — Você pegou a idéia. Era isso o que eu pretendia fazer: a discussão entre os dois pode ser transportada para os palcos de Viva o povo brasileiro. Você observe que eu citei o Hayden White justamente quando entramos na passagem do 648 José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999, realcei. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 369 cego, um cego que não está fazendo literatura, mas história, como eu disse; um cego que vai recontar para outros personagens toda a história que estávamos lendo em primeira mão. O papel do cego é justamente recuperar uma história aleatória, incoerente, não-objetiva, totalmente oralizada, alterada em inúmeras versões, e reconstruí-la quase toda, como ele de fato faz, mesmo que oralmente e defendendo a legitimidade e a superioridade de sua própria história em relação às demais, escritas e, portanto, mentirosas. O cego arma uma teia de coerência e objetividade sobre uma história que, em si, não tem nem mesmo esse nome de história. Você se lembra da arrumação que ele fez para justificar o naufrágio dos “oito” brancos que mataram Vevé? — Por outro lado... — Por outro lado, temos todo o romance, ou melhor, todas as histórias que o romance tenta contar, a disputar com o cego uma visão da história. Todas as PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA histórias do romance formam o material inapreensível que o cego, não obstante, busca apreender, e ele se põe então a contar, a narrar, a domesticar todas aquelas histórias em uma só... O romance é todo ele esse material inapreensível, e é como um material inapreensível que LaCapra vê a história. — Todas as histórias variadas, conflitivas e desarrumadas de Viva o povo... estão para o esforço do cego assim como a história sob o olhar de LaCapra está para a tarefa narrativista de White... — disse ele. — Sim. Desarrumadas, inclusive cronologicamente... Uma desarrumação que o cego, em sua recontagem, procura justamente reordenar em linha, sincronia transformada em diacronia... Ouça isto: LaCapra enfatiza a importância da interação conflitiva, das vozes contestatórias ou daquilo que Bakhtin chamaria imaginação dialógica na tensão entre texto e contexto, que, idealmente, mantém o discurso explicativo aberto, criando, em vez de uma interpretação representativa, uma simulação textual da complexidade e do objeto analisado. A ênfase de LaCapra na história enquanto conversação e um diálogo com o passado, em detrimento da história como reconstrução do passado, contesta no discurso histórico usos tradicionais de narrador onisciente, de ponto-de-vista unificado e da cronologia temporal ordenadora.650 649 “Estudos Culturais — Os novos desafios para a teoria da literatura”, op. cit. (itálicos meus). 650 Id. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 370 — Sim — disse ele, animado. — E Viva o povo..., com exceção da passagem da história do cego, é uma visão da história, e da própria história que vai sendo contada por um narrador que a vive no presente... uma visão da história como conversação e diálogo, onde não há muito espaço para a narrativa onisciente, para pontos de vista unificados e para uma cronologia ordenadora... E essa discussão ainda pode ser transportada também para o cenário que temos nO feitiço da ilha do Pavão — continuou —, um romance que também, à sua maneira, ensaia a possibilidade de ser uma leitura crítica da nossa história brasileira... Senão, vejamos — e ele fez um ar acadêmico.651 — A ilha do Pavão abriga, no século dezoito, uma sociedade de classes, sim, mas embaralhadas e comunicantes, não é? — Sim — e ajudei-o, embora acreditando que O feitiço da ilha... não pode nem de longe ser chamado um romance histórico, e isso pelas razões que eu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA pretendia ir descobrindo à medida que conversávamos. — A ilha do Pavão abriga, no século dezoito, uma sociedade em que “elementos saídos da cultura popular, massiva e culta se entrelaçam e interagem”, escreve Zilá Bernd, “sem que o autor intervenha para hierarquizá-los”.652 Às representações ordinárias dos diversos elementos formadores do que se convencionou chamar “o povo brasileiro”, João Ubaldo contrapõe outras: são as representações rebeldes, para ficarmos em apenas três, do índio que não quer ser índio e não quer viver no mato, do negro que não tolera negros de outras origens e, sentindo-se superior, se organiza para escravizálos, do branco colonizador e rico que não quer mandar em ninguém, não é 651 E eu fiquei pensando no trecho de uma entrevista que lhe fez o José Carlos de Vasconcelos, que às tantas lhe pergunta: “... será que cada vez te interessa menos, como escritor, essa (esta) realidade e os aspectos sociais que lhe estão ligados?”. E João Ubaldo responde: “Não sei se concordo com as premissas da pergunta. Fico curioso em saber o que foi que o levou a essa percepção. Talvez nossos quadros de referência sejam mais diversos entre si do que pensamos. (...) E os tipos, personagens e situações [dO feitiço da ilha do Pavão] me parecem — e foi você quem puxou o assunto — metáforas do Brasil, e do Brasil de hoje. Portanto, não me creio tão alheado assim. Mas fiquei preocupado agora. Acho que gostaria de conversar com você mais extensamente sobre isso, estou me sentindo um pouco frustrado. Você não viu, através do ‘quilombo ao contrário’, o problema racial passado através do prisma económico/tecnológico e com suas bases na ‘realidade’ ridicularizadas? A corrupção, a advocacia administrativa, a hipocrisia, a desmitificação do indiozinho inocente e assim por diante? Só pra chatear, mostrar a Inquisição a pleno vapor na Alemanha, em vez de na Ibéria, entre nossos sebentos torquemadas? E mais outras tantas brincadeiras sérias? Eu sou mau carpinteiro” (José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Idéias, Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999). 652 “Identidades compósitas: escrituras híbridas”, Matraga, no 12, 1999, apresentado no Congresso da Anpoll, 12 jun. 1998, em: <http://www2.uerj.br/~pgletras/re-vista/zila.htm>, acesso em ago. 2004. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 371 arrogante e não se vê como superior nem credor de nada. São os casos de Balduíno Galo Mau, índio mentiroso, conhecedor de todas as matreirices e avesso à idéia sedimentada de um ser inocente, ingênuo e organicamente ligado à natureza; caso de Afonso Jorge II, negro nobre do reino do Congo, filho do majestoso Afonso Jorge I, conhecidos traficantes de negros de raças “muito justamente apelidadas de infectas, raças porcas, estúpidas, atrasadas e fedorentas” (O feitiço da ilha..., p. 92), chefes sucessivos do grande Quilombo do Mani Banto, quilombo não de negros fugidos, mas de negros cativos;653 caso de Capitão Cavalo, senhor de muitas terras, branco, bastante poderoso e no entanto avesso ao poder e aos seus exigentes caprichos, acolhedor de escravos fugidos, estimulador de casamentos multi-étnicos, defensor do trabalho justo e da justa divisão do produto do trabalho, socialista dos bons, revolucionário como poucos, odiado por alguns e muito cioso de seu sossego e de sua boa consciência. A sociedade que PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA vamos encontrar na ilha do Pavão é, como vimos e para dizer o mínimo, diferente, porosa e multi-étnica. — E li um trecho. ... Possivelmente [o viajante apressado] também estranhará ver negros calçando botas, sentando-se à mesa com brancos, tuteando-os com naturalidade e agindo em muitos casos como homens do melhor estofo e posição financial, além de negras trajadas como damas e de braços dados com moços alvos como príncipes do norte. (O feitiço da ilha..., p. 17) — Não se manteria como singular, sendo diferente, poroso e multi-étnico, contudo — disse ele —, um povo que não estivesse de algum modo apartado. Nada melhor, para se inventar um Brasil, do que um outro lugar, “fora” do Brasil, onde se irá plantar um projeto de Brasil. A ilha do Pavão situa-se nalgum ponto do Recôncavo Baiano, dentro do território brasileiro mas inacessível à maioria dos brasileiros, não? Ela será sempre, neste sentido, o “outro Brasil”, ilha dentro da qual se vive bem, mas “da qual não se conhece navegante que não haja fugido”, diz o narrador, “dela passando a abrigar a mais acovardada das memórias” (O feitiço da ilha..., p. 9). Disse o escritor — e ele pegou um recorte de jornal —: 653 — Outra desconstrução opera João Ubaldo no romance Miséria e grandeza do amor de Benedita — completei, abrindo com a mão uma nota. — É o caso do narrador a incorporar uma opinião de três negros cativos da casa de Iaiá Naninha, mãe de Deoquinha Jegue Ruço; negros “que se babavam de raiva quando ouviam falar na princesa Isabel, por ter ela se metido no bem-bom da escravidão deles, forçando tantos a arranjar emprego, porfiar por obter o que comer e entrar na luta da vida sem necessidade...” (Miséria e grandeza..., p. 27). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 372 “Fiz uma brincadeira e resolvi imaginar (...) alternativas para aquele Brasil, como se um outro país se desenvolvesse paralelamente ao que conhecemos”.654 — Não bastará, no entanto, ser a vida na ilha do Pavão boa para todos aqueles de todas as cores; não bastará funcionar a ilha como uma espécie de paraíso contraposto ao continente desigual e totalitário. O espaço insular de Ubaldo é produtivo, como escreve Elisalva Oliveira-Joué, na medida em que “remete constantemente para o começo de tudo, do país e do povo, forjados pelo encontro, na maior parte das vezes forçado, das três etnias”.655 Se permanecesse ancorada à condição de paraíso paralelo... — Há ainda que se mencionar aqui — interrompeu-me ele, pegando o livro — o romance Miséria e grandeza do amor de Benedita, num momento em que Ubaldo deixa bem clara a relação de identidade entre a ilha do Pavão, “porosa e multi-étnica”, e a própria ilha de Itaparica, com os seus Pimentéis,656 que “... nos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA deixaram a herança de, na ilha, nunca termos tido preconceito, podendo a mulher ser morena, loura, preta, mulata, cafuza, fumbambenta, roxinha, azul, índia, chinesa, japonesa ou alemoa” (p. 29). — Se permanecesse ancorada à condição de paraíso paralelo... — disse eu, anotando a observação e a página mas seguindo em frente —, como você sugeriu lembrando a sua condição insular, a reunir as condições ideais de um Brasil que poderia ter sido, mas acabou não sendo, estaríamos a falar da ilha do Pavão como um lugar de utopia, e eu não creio que seja esse o caso... Acredito mais na sua condição mítica... Uma das tarefas dos lugares míticos é esta: devem funcionar como simulações de inícios. A ilha do Pavão torna-se então, sob essa idéia, o lugar da gênese, por excelência, de uma alternativa de sociedade brasileira. O mito deve ser ainda distinguido da utopia (projeção de um futuro ideal), da lenda (que tem fundamento ou caráter de certo modo histórico), do conto (uma forma dessacralizada) etc. Mas o vocabulário é hesitante, mesmo quando se trata de especialistas, como sucede por exemplo com K. Mannheim, que designa sob o nome de utopia aquilo que entendemos aqui como mito. Além do mais, pode 654 Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997. 655 Elisalva OLIVEIRA-JOUÉ, “Identidade mestiça e ilhamento na obra de João Ubaldo Ribeiro”, 1999, em: <http://www.geocities.com/ail_br/identidademesticaeilhamento.html>, acesso em 18 out. 2005. 656 — Lembre-se — disse ele, em nota — da sua observação acerca dos Pimentéis do romance e os Pimentéis da família de Ubaldo (Capítulo 3: “Setembro fechado sob o farol”, p. 188, nota 327). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 373 acontecer mais de uma vez que tal forma narrativa se situe a meio caminho do mito com relação à lenda, ou do mito com relação ao conto e à utopia.657 — A ilha do Pavão brilha na mente dos que não a conhecem e que nela nunca pisaram como um lugar, tal como um mito, de existências não vivenciadas, “paisagens adivinhadas, aos quais dar vida, sensações apenas entrevistas, lembranças vívidas do que não se passou” (O feitiço da ilha..., p. 12). A ilha do Pavão, no tempo narrativo do romance, é capaz de engendrar, para os seus personagens, muitos prováveis futuros. — E continuei: — A história de seus habitantes, no entanto, está confinada à ilha, e, mesmo que o leitor possa, e deva, aumentar para níveis continentais o diâmetro de sua leitura, os acontecimentos narrados não se esparramam para o resto do Brasil. Não é o Brasil, ou o povo do Recôncavo Baiano, o personagem do livro, tal como é o Brasil, ou o povo do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Recôncavo, o personagem de Viva o povo brasileiro... João Ubaldo Ribeiro não está a brincar com a história do país, imaginando o que poderia ter acontecido conosco se... os portugueses tivessem abandonado a tarefa colonizadora e os padres católicos desistido da missão catequética, os holandeses afinal se firmado na terra, os negros escravos conseguido organizar-se e lutar... Não. A sociedade que vamos conhecer lendo o romance de João Ubaldo Ribeiro é a sociedade brasileira na medida em que todos os nossos antepassados étnicos lá estão, sim, mas nem sempre mantendo preservadas as suas características como classe. A sua configuração e os seus níveis de relacionamento desenvolveram-se de modo diverso e se afastaram totalmente da experiência “continental”. A ilha permanece isolada, e esse isolamento lhe confere características míticas, não históricas. A metáfora do ilhamento é um dos recursos estilísticos utilizados pelo autor para impedir que os seus relatos deslizem para uma literatura panfletária, pois, ao situar a narrativa entre dois espaços, o insular de Itaparica ou da imaginária ilha do Pavão e o resto do Brasil (...), o autor (...) afirma a legitimidade dos componentes negro e índio do povo brasileiro e deixa o caminho aberto para que brotem do texto a negação do Único — a cultura européia e o tipo branco — e a valorização do Múltiplo e do Outro — o branco, o negro, o índio e o mestiço.658 657 André DABEZIES, “Mitos primitivos a mitos literários” (p. 730-736), in Pierre BRUNEL (org.), Dicionário de mitos literários, Rio de Janeiro, José Olympio, Editora UnB, 1998, p. 732. 658 Elisalva OLIVEIRA-JOUÉ, “Identidade mestiça e ilhamento...”, op. cit. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 374 — A ilha do Pavão pode não ser ainda um mito... — disse ele. — Ubaldo, ou seu narrador, vá lá, é o primeiro a nomeá-la. Trata-se de uma criação exclusivamente ubáldica e presente apenas em seu romance de 1997. Do mesmo modo podemos dizer, já que você citou o Dabezies, que um mito “tampouco é identificável com um texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita imagens míticas”.659 Podemos ir além então e afirmar também que a ilha do Pavão, em si, não constitui um mito, mas um lugar de mitos. — Sim, sim... João Ubaldo revela ao leitor que a ilha do Pavão possui escondida em seu centro uma gigantesca esfera mágica a funcionar como uma espécie de toca do tempo. Inicia-se então, dentro da história, um desfile de experimentações: os personagens protagonistas, ao entrar e sair da esfera, conseguem paralisar o andamento dos eventos e produzir, durante a paralisação, futuros latentes. Os prováveis futuros que aquela sociedade do século XVIII PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA vivenciou correspondem, para o leitor de hoje, aos passados que tivemos ou que poderíamos ter tido. A brincadeira remete a nossa imaginação às inúmeras possibilidades de sociedade brasileira. ... E foi assim que começaram a usar de fato a toca do tempo, sobre a qual aprendiam cada vez mais, embora não entendessem nada de seus mecanismos misteriosos. Agora tinham certeza de que, enquanto o presente parava, ilimitados e indefinidos futuros ficavam em perpétua gestação e o tempo os recebia ao acaso, não tinha preferências. Ou podia ser levado a tê-las, pelo menos por exclusão, embora não por inclusão. Escolher um dos futuros disponíveis, sim; plasmar esse futuro, não, não parecia ser possível. Como não? Cada mudança mudava tudo mais, mas como saber? (O feitiço da ilha..., p. 313) — O que faz um mito? O mito situa-se fora do tempo — continuei. — A ilha do Pavão abandona o seu espaço em meio às águas do Recôncavo, e é como se deixasse de existir. O mito suspende o tempo. Mal um personagem adentra a esfera mágica, a ilha do Pavão transforma-se, e um gigantesco Pavão abre a sua cauda e se ilumina, produzindo à sua volta luz e ofuscamento. Em seguida o breu e a suspensão efetiva do tempo, uma suspensão prenhe. O mito recria passados e inventa futuros. — E li outro trecho: ... Portanto, o tempo parava, quando o pavão acendia. E o pavão acendia 659 André DABEZIES, “Mitos primitivos a mitos literários”, op. cit., p. 732. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 375 quando algum deles entrava na bola. (...) E o povo via o pavão fulgurar, mas depois não se lembrava, só se lembrava de que, repentinamente, a lua sumira, tudo escurecera, a ilha parecera ser a única terra no meio do mar, para depois voltar tudo a como estava antes. (O feitiço da ilha..., p. 299-300) — Mas o mito tem também uma verdade, que não é apenas poética ou simbólica, como o era para os antigos, mas uma verdade híbrida: “... nos dias de hoje, o mito deve travar um diálogo”, diz-nos Dabezies, “e ter uma relação de simbiose com a racionalidade metafísica ou cotidiana”.660 A ilha do Pavão é a morada do tempo; um lugar literário que possui uma esfera mágica literária que, no entanto, foi inspirada pelo que João Ubaldo chamou de a “toca do tempo”, tradução livre de “wormhole” (buraco de verme), um conceito da ciência, fruto de um raciocínio operado com teorias da ciência, sim, mas que se reporta — eu disse —, pela via da literatura, à aventura mítica do viajante do tempo.661 O mito provoca a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ciência, que inspira a literatura, que se volta para o mito, mas alimentada, desta vez, num diálogo específico e mais ou menos verossímil, pela ciência. ... Vem de uma especulação já conhecida de cosmólogos sobre a possibilidade de uma viagem no tempo. Isso tem alguns fundamentos científicos. Como eu não escrevo ficção científica nem sou cientista, não me senti obrigado a me restringir às limitações e normas que existem para que isso aconteça. (...) ... essa esfera é chamada por um cientista americano de “wormhole” (...). É uma complicação. Seria uma dobra na curvatura espaço-tempo, que permitiria a você atravessar o tempo. Como eu quis dar uma verossimilhança ao fato de a ilha aparecer e desaparecer, recorri a isso.662 — Você propôs a inserção do romance O feitiço da ilha do Pavão entre as possibilidades de uma discussão sobre o romance histórico em João Ubaldo, e... — mas ele me interrompeu. — Eu disse que o romance é também, à sua maneira, a possibilidade de ser uma leitura crítica da nossa história brasileira... À sua maneira, eu disse... E eu entendi a sua ressalva, e entendi o quão diferentemente Viva o povo... e O feitiço da ilha... se posicionam em relação à história brasileira... Eu ainda insisto, no entanto... 660 661 662 Id., p. 734. Oracle ThinkQuest — Education Foundation, em: <http://library.thinkquest.org/2890/index. htm>, acesso em 15 mar. 2005. Bernardo CARVALHO, “Ubaldo, finalmente, solta novo romance”, Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 376 — No que você poderia insistir, agora sou eu a interrompê-lo..., é na conveniência de relacionarmos a discussão White-LaCapra com a situação central dO feitiço da ilha... Uma reconstrução narrativa do passado histórico, mesmo que admitidas as suas estratégias ficcionais, incluídas as inevitáveis cirurgias ficcionais, é, ainda assim — disse eu —, uma maneira de observá-lo, a esse passado, como uma superfície domesticável, passível de um controle que o tornará mais assimilável e mais duradouro como memória estabelecida. Situação semelhante nós temos nesse outro romance de Ubaldo, com a diferença de que vamos encontrar um narrador totalmente empenhado em resolver a “questão”, não dos passados, mas dos possíveis futuros para a ilha. Eu citei antes as palavras do Karl Erik: “LaCapra procura ferramentas teóricas que permitam que o passado autônomo continue desafiando as tentativas do historiador de domesticá-lo na ordem discursiva”.663 — No caso dO feitiço da ilha..., teremos então um futuro também autônomo, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA muito mais autônomo que o passado, uma vez que ele, o futuro, de modo algum aconteceu, ao passo que o passado — meditou o meu interlocutor —, de algum modo, modos diversos, é verdade, mas de algum modo o passado já aconteceu. — E o que veremos nO feitiço da ilha... é justamente uma série de futuros autônomos a desafiar as tentativas do narrador de reuni-los de modo a comporem, não uma História do Brasil, mas uma história da ilha do Pavão... Veremos um narrador a tentar demonstrar o quão risíveis são as tentativas de se domesticar uma ordem temporal, porque um pequeno incidente desata uma série imponderável de acontecimentos, todos eles imprevisíveis. Do mesmo modo como o cego de Viva o povo... se debruça sobre as histórias do livro, reunindo-as sob a égide de um passado, o narrador dO feitiço da ilha... vai atirar-se em direção a séries de futuros, elencando-os e deles escolhendo o melhor, entre vantagens e desvantagens... A diferença, e a força mítica do livro está aí, ao lado de sua “fraqueza” como romance histórico..., a diferença, eu dizia, é que o narrador, ao fim e ao cabo, escolhe de fato um futuro, e, escolhendo um futuro, demonstra ser capaz de alterar a História, já que terá sido capaz, então, de ter escolhido um passado... Observe o esforço narrativo em ação: ... No primeiro futuro que lhes foi dado a conhecer, um súbito ataque de 663 Karl Erik SCHOLLHAMMER, “Estudos Culturais — Os novos desafios...”, op. cit. (itálicos meus). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 377 erisipela incapacitou o intendente Tomé Ferrão, fortalecendo as hoste de (...), mas também alimentando as ambições de (...), a ponto de, quando os quatro tomaram ciência do que ocorria, terem corrido de volta aonde estavam antes. Noutro deles, o mestre-de-campo perdia de vez a razão e passava a (...). Oh, senhoras e senhores, como os futuros são caprichosos! Num deles, acontecia tudo o que gostariam que acontecesse, com a ilha livre, em paz e harmonia, mas Hans morria por mordida de cobra. Regressando às pressas, salvaram Hans das presas da jararaca (...), mas o futuro que substitui este lhes mostrou o mestre-de-campo (...) na condição de duque e tirano da ilha e mandando esquartejar Balduíno Galo Mau (...). Em outros futuros (...), todos os habitantes submetidos a um jugo cruento, voluntarioso e sem peias. Em outro, as frotas portuguesas (...) trazendo de volta tudo o que os quatro queriam para sempre abandonar e esquecer. Em ainda outro deles, os acontecimentos levaram Balduíno à posição de rei da ilha, (...) mas o que vinha depois, em matéria de devassidão, (...) os fez desistir. (...) E todos os futuros, depois de descartados, voltavam aleatoriamente, aparentando a mesma face mas sutilmente modificados, de modo que quase se desesperançaram, até que lhes apareceu uma revolução no quilombo... (O feitiço da ilha..., p. 314-315) — Agora — disse ele —, fechemos este flanco LaCapra e voltemos à PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA minha pergunta de antes: em quais momentos seria produtivo caminhar na mesma via de White, só que no sentido oposto... — Você se refere à inversão que o White fez das formulações do Auerbach e do Gombrich, que perguntam pelos componentes ‘históricos’ de uma arte ‘realista’, e o White pergunta pelos elementos ‘artísticos’ de uma historiografia ‘realista’, não é isso? Bom. Podemos utilizar raciocínios do White acerca dos modos de operação do discurso histórico para tratar momentos do Viva o povo..., momentos ficcionais que podem ser abordados de maneira semelhante. Veja: Hayden White diz que é possível chegar a um sentido possível de uma estória através da detectação da “modalidade” por meio da qual foi contada aquela estória, e isso é o que ele chama de “explicação por elaboração de enredo”.664 E ele continua. Ouça: “Se, ao narrar sua estória, o historiador lhe deu a estrutura de enredo de uma tragédia, ele a ‘explicou’ de uma maneira; se a estruturou como uma comédia, ele a ‘explicou’ de outra maneira”.665 Muito bem, agora vamos aplicar esse raciocínio ao trecho, por exemplo, em que João Ubaldo aborda a Batalha de Tuiuti, da Guerra do Paraguai. Ele trabalha com um narrador que tem a sua própria cabeça, não permeável a possíveis incorporações, não solidário a este ou àquele personagem, mas somente aos orixás brasileiros, que ele trata como deuses. 664 “Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 23. 665 Id., ibid. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 378 — E ao incorporar deuses onipotentes e oniscientes — disse ele —, o narrador transforma-se então em um narrador onipotente e onisciente... — Sim, e João Ubaldo criou para essa passagem da Guerra do Paraguai nada menos que um narrador épico, o que pode significar que ele a vê, ou assim quis que ela, a guerra, surgisse em seu romance: como um acontecimento épico. — E quais são para White os modos de elaboração de enredo? — Você quer dizer as “explicações por elaboração de enredo”... São quatro: a estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira. E ele diz: “Pode haver outros, e é provável que um determinado relato histórico contenha estórias vazadas num modo como aspectos ou fases do conjunto inteiro de estórias postas em enredo de outro modo”.666 — Hum... Esse trecho ficou confuso: não me pareceu bem escrito — disse o meu interlocutor —, mas entendi que ele abre aqui a possibilidade de um relato PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA apresentar variados tipos de elaboração de enredo, e conseqüentemente variados tipos de explicações surgidas a partir das elaborações de enredo contidas no texto. E podemos, realizando a operação inversa, aplicar ao texto ficcional de Viva o povo brasileiro essa observação: Viva o povo... surge aqui como comédia, como sátira, como estória romanesca e também como texto épico. — Você tirou todas as palavras da minha boca... — e, pegando capacete, lança e escudo, demorei-me um pouco mais naqueles campos alagados do Tuiuti. 5.9. “CANTA, Ó, MUSA!”: UMA DESCRIÇÃO INTERPRETATIVA — Eu gostaria de me deter um pouco mais na narrativa homérica e no conjunto de cantos que, reunidos, formam o poema épico conhecido como A Ilíada.667 — Aqui está — e o meu interlocutor colocou o livro sobre a mesa. — A Ilíada — comecei —, guerra monumental de homens monumentais auxiliados por deuses monumentais, tem como um dos pivôs uma mulher, Helena de lindos cabelos, filha de Zeus porta-égide. Os troianos, tendo à frente 666 Id., ibid. 667 HOMERO, A Ilíada, Portugal, Publicações Europa-América, s/d. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 379 Alexandre, seu segundo marido, retêm-na... e por aí vamos...668 O que quero mostrar aqui, em funcionamento, é o diálogo que o narrador estabelece com a narrativa homérica nesse Capítulo 14 de Viva o povo brasileiro.669 Veremos aqui o narrador, embrenhado em duas culturas, apoderar-se de um discurso clássico e bastante cultivado pelo próprio escritor, deslocando-o para um outro contexto épico, composto por outros personagens heróicos e motivado por uma outra causa. João Ubaldo Ribeiro recria o discurso homérico para dar conta da intromissão dos orixás brasileiros na Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870. — Antonio Risério chamou este capítulo de uma autêntica Ilíada Negra.670 — É uma feliz expressão — concordei.671 — No lugar de uma Guerra de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Tróia, ou a tomada de Ílion, uma guerra igualmente novelesca, sanguinária e 668 — Ubaldo pode continuar esta descrição do mundo grego com uma crônica de 1969 — disse o meu interlocutor, divertindo-se com a minha pastinha das antiguidades. E ele leu: — “Nos tempos heróicos houve uma guerra, conhecida como a guerra de Tróia. Oficialmente, a guerra foi por causa de Helena, mulher de Menelau (...). Na realidade, sabe-se que os troianos tinham descoberto petróleo e os gregos decidiram intervir, para manter a integridade ideológica da Ásia Menor. (...) Mais tarde os gregos ficaram muito civilizados e produziram grandes espíritos, como Sócrates, que fazia perguntas, Platão, que dava respostas, Aristóteles, que dava diretrizes à vida política, e Alcebíades, que dava qualquer coisa. Havia também Sófocles, que escrevia peças de teatro e depois distraía-se dançando nu e untado de óleo. Essa gente de teatro sempre foi muito estranha. (...) Os gregos tinham uma organização social e política perfeita. Todos votavam, com exceção dos escravos, dos metecos, das mulheres, dos ostracizados e de outros indesejáveis. (...) Os gregos mais famosos eram os filósofos. Todos os outros gregos os admiravam, porque eles não faziam nada a não ser falar mal do governo, discutir o tamanho do sol e reclamar contra a falta de subvenção ao ensino. Houve diversas escolas de filósofos, entre as quais os sofistas, que distorciam o pensamento alheio, os epicuristas, que gostavam da boa vida, os estóicos, que não gostavam de nada e os cínicos, que só queriam perturbar” (Jornal da Bahia, 23 e 24 fev. 1969). 669 — Referido por Haroldo de CAMPOS — completei, em nota —, naquela sua comparação com o Catatau, de Leminski, como “... o esplêndido capítulo 14 da gesta ubáldica. Datado do Acampamento de Tuiuti, 24 de maio de 1866, nele se relata o embate entre os soldados brasileiros e o exército paraguaio, narrado agora em termos da refrega homérica, com apurados giros estilísticos, substituindo-se os deuses do panteão grego pelas divindades do céu iorubá, com seus vistosos atributos e nomes sonoros...” (“Uma leminskíada barrocodélica”, Folha de S. Paulo, 2 set. 1989). 670 “Viva Ubaldo brasileiro” (p. 91-102), in VÁRIOS AUTORES, João Ubaldo Ribeiro, Cadernos de Literatura Brasileira, op. cit., p. 101. 671 — Embora — e abri uma nota — sua origem esteja em Oswald de Andrade, que viu, mas na obra de Jorge Amado, essa espécie de Ilíada Negra, conforme nos diz Pierre Rivas. — E li, associando as justificativas de Oswald de Andrade ao espírito desse Capítulo 14 de João Ubaldo Ribeiro: — “... as figuras homéricas de Jorge Amado tornam supérfluo o aprofundamento interior. Seu clima é a ação: seu meio de comunicação é a aventura; seu destino é o de querer viver. Obra de rapsódia e canto de trovador” (in Ponta de lance, “Fraternité de Jorge Amado”, citado por Pierre RIVAS, “Fortuna e infortúnios de Jorge Amado (recepção comparada da obra amadiana)” (p. 13-43), in Rita OLIVIERI-GODET & Jacqueline PENJON (orgs.), Jorge Amado: leituras e diálogos em torno de uma obra, Casa de Palavras, Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, Bahia, 2004, p. 37). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 380 monumental entre brasileiros e paraguaios; em substituição aos imortais do Olimpo a ajudar aqueus e troianos, os movimentos do mesmo modo apaixonados dos orixás brasileiros a contribuir para o extermínio do povo de Solano López; no lugar dos apostos qualificativos das características de cada herói olímpico, os apostos adaptados ao feitio de cada orixá; no lugar de deuses, santos. — Você pretende fazer na sua tese uma leitura comparada? — Não sei. João Ubaldo transforma a sua narrativa da Guerra do Paraguai em uma matéria mítica, e miticamente a organiza, aproveitando do poema épico de Homero o tema, os pontos dramáticos e a forma. O tema: a guerra entre os homens, a velha guerra, sempre presente em sua história. Os pontos dramáticos: a existência de uma dimensão mítica habitada por deuses ou orixás; sua intromissão em assunto de homens; sua angústia diante da morte de seus filhos mais valorosos; o orgulho que não abandona seus corações; a estrutura de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA acontecimentos e a descrição do espaço, do tempo e dos personagens envolvidos na grande querela. Observe — segui — que essa dimensão mítica expõe o modo como os próprios brasileiros, ou melhor aqueles brasileiros, viviam aquela guerra. — A sua própria fala está funcionando sob esta forma... — É verdade, e é isso o que mais certamente nos vai entreter: a forma do texto, ou seja, a linguagem utilizada tanto pelo poeta quanto pelo nosso narrador, agora épico, a pedir a ajuda ao divino, corporificado pelas musas, no dar conta daquela que foi a mais antiga guerra supostamente acontecida, e pelos santos, mortificados pelo passamento de seus filhos mais queridos. A forma do texto constitui uma categoria soberana, a influenciar, comandar e iluminar o tema e os pontos dramáticos presentes nos dois textos de guerra. — Permita-me citar — disse ele, retirando mais um livro de nossas infinitas estantes —: “Nesse sentido, consideram-se os conteúdos, também eles, matérias formais”,672 escreve Roberto Corrêa dos Santos, que diz acerca da tragédia de Sófocles o mesmo que poderíamos afirmar dA Ilíada: que “manifesta toda a sua força, em virtude da exploração ao extremo de sua potência formal”.673 — Continue — pedi. 672 “Estados da forma” (p. 83-88), in VÁRIOS AUTORES, Revista de Estudos Literários, Ipotesi, da Universidade Federal de Juiz de Fora, jul.-dez. 1999, Juiz de Fora, EDUFJF, 1999, p. 84. 673 Id., p. 86. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 381 — Certo. Agora, uma outra citação, e pegou de outro lugar: “... o divino, em Ubaldo, não está no Deus judaico-cristão”, escreve Antonio Risério, “mas no politeísmo nagô-iorubá, com o seu elenco de orixás façanhudos e faiscantes”.674 — Sim, são estes orixás “façanhudos e faiscantes”, são aqueles deuses luminosos e eloqüentes, ou, antes, a linguagem de que são feitos santos e deuses, a nossa substância, o nosso motivo, a razão de ser desta razão que aqui se está a formar. — Pelo que percebi, você vai lançar-se a uma descrição do comportamento narrativo de seu narrador sem cabeça, agora com uma cabeça épica, e para isso tenho aqui uma boa citação do professor Roberto Corrêa dos Santos, para quem as categorias da descrição e da interpretação se comportam do seguinte modo: a interpretação é uma força que avalia a descrição, mas não consiste, em relação a ela, em “uma fase posterior, em um acréscimo requintado sobre os dados já ordenados. A interpretação não é um depois”, continua o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA professor, “nem mesmo um antes, mas um com, em que ambas — descrição e interpretação — se vêem transformadas”.675 O que acha? — perguntou ele. — Acho perfeita a sua intromissão. Esse jogo da descrição e da interpretação contaminando-se mutuamente e assim metamorfoseando-se à medida que avançam sobre o seu objeto, no caso presente, um objeto textual, me parece bem mais estimulante que o jogo tradicional, que tratava a descrição como uma espécie de duplo minucioso de seu objeto, ou a versão decupada, exposta, aberta à visitação pública do olhar estudioso... — Um jogo que via a interpretação como uma visão deturpada de algo, deturpada porque pessoal, subjetiva, parcial e, portanto, longe de um sentido neutro só alcançável através da pontiaguda e desinteressada atividade descritivoanalítica — disse o meu interlocutor, num surto de eloqüência. E continuou, dessa vez citando: — “Assim, por privilegiar-se isto ou aquilo”, escreve Roberto Corrêa dos Santos, “separou-se de modo simplista: a interpretação está para o sujeito, 674 “Viva Ubaldo brasileiro” , op. cit., p. 96. 675 “A história partida” (p. 11-23), in Para uma teoria da interpretação — Semiologia, literatura e interdisciplinaridade, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, p. 14. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 382 assim como a descrição e a análise estão para o objeto”.676 Mas não — disse ele, triunfante —; a interpretação “sofre a ação daquilo sobre o que atua”.677 — Isto é um convite a que iniciemos, nós mesmos, eu e você, meu caro interlocutor, através do ato interpretativo, uma guerra, uma guerra com a leitura e com as palavras em campo. O motivo da guerra é a produção de um novo texto. Ao final, tomaremos café, sopesando a tarefa realizada. Nossa interpretação anseia por ser a reescritura das duas guerras: a reescritura da Guerra de Tróia, a reescritura da Guerra do Paraguai, descrevendo-as, interpretando-as. Nosso olhar estará depositado sobre um combate de cada uma das duas. A extensão da guerra não tem aqui qualquer importância. Valem as palavras ditas pelo guerreiro e seu inimigo entre um ou outro dardo, e não o tempo de combate. Um único segundo antes da morte, a olhar para o adversário, em algum campo de guerra, significa e compreende a guerra inteira. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — Você tornou-se, subitamente, épico... — À nossa frente, à frente, portanto de nossa tarefa descritivointerpretativa, dois universos de mitos e mistérios; à nossa disposição, a linguagem utilizada para a “apalavração” desse universo. Nossa vontade de combate configura o nosso método, o confronto de dois textos de guerra, levandose em conta os três aspectos que mencionei acima: o tema, os pontos dramáticos e a forma. Nosso objetivo: flagrar o narrador em mais uma de suas muitas incorporações, a incorporação de um espírito épico em sua forma de narrar. — Escreve Roberto Corrêa dos Santos — citou mais uma vez o meu interlocutor —: “A interpretação quer escrever sempre, diferente cada vez que tocar um texto. Como quem rasga”.678 — Isso é bonito. Rasguemos então o canto vigésimo dA Ilíada, “A batalha dos deuses”, do suposto Homero, aquele acerca de quem não se sabe se existiu, e o Capítulo 14 do romance Viva o povo brasileiro — e me levantei, procurando com os olhos o café. — Diante dos dois textos, a nossa leitura será antes de tudo composta de “cortes, destaques de aspectos e, sobretudo, esquecimentos”,679 676 Id., p. 15. 677 Id., p. 14. 678 Id., p. 21. 679 “O convite ao olhar” (p. 3-9), in Para uma teoria da interpretação..., op. cit., p. 4. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 383 segundo as palavras de Roberto Corrêa dos Santos, um autor de quem você gosta e que dessa vez eu consegui citar antes que você o fizesse... Diante dos dois textos, nossa ação equivalerá a um golpe de olhar. Vou valer-me aqui de uma imagem que é sempre muito rica e muito adaptável. Ouça: estamos posicionados no meio da plataforma de uma estação de trens no exato momento em que por nós passam ao mesmo tempo, porém seguindo diferentes direções, duas locomotivas. Não podemos mirar ambas simultaneamente, porque está cada uma de um lado, mas somos capazes de vê-las com o rabo dos olhos. Pense numa linha imaginária horizontal, perpendicular à direção dos trilhos, começando em uma janela do primeiro trem, atravessando nossa cabeça, a entrar por um ouvido e sair pelo outro, e terminando em uma janela do segundo trem. Esta linha imaginária só poderia existir, em seu ângulo perpendicular, por um átimo de segundo, o segundo exato em que as nossas específicas janelas se defrontam, intermediadas pela nossa atenta PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA figura, ali parada na plataforma. No átimo seguinte as janelas já se afastam, indo cada qual para um destino oposto, criando-se assim uma diagonal. Esse átimo de segundo deve ser congelado, e o relacionamento que essa linha estabelece entre nós e as duas janelas das duas locomotivas em alta velocidade deve ser capaz de representar a relação que estamos a estabelecer entre os dois textos de guerra... — Sem “a aflição do controle”, escreve Roberto Corrêa dos Santos, “sem o impulso de reter na análise o objeto”...680 Os objetos, no caso, já partiram, cada qual em sua direção. Não esqueçamos — continuou por mim o meu interlocutor — de que algumas locomotivas são como alguns textos: não param em determinadas estações, e alguns textos, assim como algumas janelas, se defrontam. — Sim — e retomei. — Homero conta a sua guerra através de um texto épico, originalmente em versos e eventualmente transposto para a prosa. A marca épica, de todo modo, se mantém e dá o tom à narrativa. Do mesmo modo faz João Ubaldo Ribeiro em seu combate em Tuiuti. Uma das principais características da sintaxe épica é a utilização à farta de apostos explicativos e descritivos antecedendo ou procedendo os nomes dos personagens. Através dos apostos, os nomes adquirem, dentro do texto, suplementos que os transformam em algo mais do que são. O aposto retira os nomes de seu ordinarismo e dá-lhes qualidades que os singularizam, num 680 Id., ibid. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 384 claro efeito poético de celebração. Tudo no épico é celebrativo, porque tudo deve ser suficientemente marcado para que possa, no futuro, manter-se vivo.681 — É verdade — disse o meu incansável interlocutor, e pegou o texto homérico. — O banquete não é apenas o banquete, mas o banquete onde todos são iguais. A Aurora, além de deusa, é referida como a Aurora do véu de açafrão, ou a Aurora dos dedos róseos... que alguns traduzem como rosidáctila... — Pois então: estes dois exemplos nos servem, agora, para que possamos fazer uma distinção. Por vezes o aposto é mero suplemento, o caso da Aurora, que você pescou aí, pelo qual suas características originais são simplesmente realçadas: a cor amarelada da Aurora, a cor amarelada do açafrão, os dedos cor-de-rosa como os raios do sol, e um véu, a participar aqui como poesia. Em outros momentos, o aposto cumpre uma função ideológica: se, durante o banquete, todos são iguais, será durante o banquete que se poderá instaurar um espaço democrático; será durante o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA banquete que se processarão as decisões encaminhadoras da narrativa. É importante que, ao menos no banquete, sejam os homens todos iguais, de vez que na guerra, assim como no amor, os homens são, antes de tudo, diferentes. E é porque são diferentes que há nesta vida coisas como o amor e coisas como a guerra. — Estamos ambos, eu e você, muito solenes agora... E cito mais uma vez o professor Roberto Corrêa dos Santos, para quem os principais processos da forma são a seleção, a combinação e a repetição. Fale um pouco da importância da repetição no texto homérico — pediu ele. — A repetição dos apostos em um texto de guerra como A Ilíada tem a função de um martelo, o martelo da memória. Graças à repetição conseguimos memorizar os atributos dos nomes e, como resultado, abocanhar um pouquinho de eternidade: trata-se de um rasgo de memória diante daquilo que se vai extinguir no instante seguinte. A repetição constitui um dos modos de se comportarem o excesso e o desperdício... — Excesso e desperdício, perdão por interromper, mas não posso deixar passar, que “fazem parte, por mais paradoxal que possa parecer, do que se costumou chamar de economia textual”,682 escreve Roberto Corrêa dos Santos. 681 — “Com uma retórica explicitamente homérica” — citei, de uma revista —, “João Ubaldo moderniza e abrasileira o estilo da Ilíada, usando todos os elementos formais do épico, os epítetos, as repetições, a sonoridade da toada quase hipnótica” (Rodrigo LACERDA, “Além do delírio”, Cult, nov. 1997). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 385 — Então — continuei —, uma vez caracterizado Aquiles como o divino, ou o de pés rápidos, ou como o filho de Peleu, a princípio não seria mais necessária a repetição da especificidade, mas ela ocorre. A cada vez que o nome de Hera aparece, está ali ao lado, grudada, insistente, a sua marca: de níveos braços. Um narrador romanesco não se comporta assim em relação à descrição de seus personagens, mas um narrador com a cabeça no texto homérico, um narrador épico, sim. — Como se desenvolvem os pontos dramáticos nos dois textos? Em quais momentos se aproximam; em quais se afastam? — O Capítulo 14 de Viva o povo... funciona como uma amostra reformulada dos principais momentos e motivos dA Ilíada: um — e contei nos dedos da mão —, os lugares simbólicos de Zeus e de Oxalá diante dos outros deuses e dos homens; dois, a distribuição das forças nos dois campos adversários e as intrigas entre deuses e orixás: os olímpicos a dividirem-se entre aqueus e troianos, os santos em bloco a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ajudar os brasileiros, com exceção de um, cuja traição será decisiva para a revanche paraguaia; três, a teimosia e o orgulho de Aquiles, de um lado, a teimosia e o orgulho de Ogum, de outro, e a sua posterior capitulação diante dos perigos da derrota iminente; e quatro, o amor dos deuses e dos orixás por seus filhos e filhas e a importância do pequeno relato de vida do combatente à hora da morte: o que vem a ser o estabelecimento de seu “lugar no mundo”. — Será então a guerra a única oportunidade de os negros e os pobres se destacarem; será então na guerra que terão eles um nome, uma localização e uma história de vida, porque na vida fora da guerra voltam a ser o que sempre foram... — Sim — eu disse. — Lembre-se do que aconteceu ao negro Budião quando retornou de sua participação na Guerra dos Farrapos: seus papéis alforriantes não valiam nada na Bahia; de escravo passou a herói e de herói voltou a escravo... “Isto aqui não tem valor nenhum”, disse-lhe o homem, “isso é coisa da Província do Rio Grande”, “Não, é do Império”, diz-lhe Budião, “é do Imperador ”, “Para nós é um escravo fugido do Engenho do Manguinho” (Viva o povo..., p. 313). — Vamos então ao primeiro ponto. — Perfeitamente: os lugares simbólicos de Zeus e Oxalá. O canto vigésimo tem início com Zeus, o ajuntador de nuvens, falando a todos os deuses do Olimpo, reunidos em assembléia — e impostei a voz —: “Preocupo-me com esses homens, 682 “A história partida”, op. cit., p. 20. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 386 ainda que se percam. No entanto, vou ficar num recesso do Olimpo, sentado, e o espetáculo deles encantará a minha alma; ide vós, os outros deuses, ao encontro dos troianos ou dos aqueus; ajudai um dos dois partidos, cada qual segundo a sua idéia”.683 Do outro lado do mundo, do outro lado do tempo, em campos distantes chamados de Tuiuti, brasileiros e paraguaios digladiam, e morrem valorosos homens de ambos os lados. “Oxalá, pai dos homens, vê as batalhas. (...), e viu (...) quando seu filho Oxóssi dardejou para fora dos matos, visível somente para ele como um raio azulado (...). Que queria Oxóssi (...) nessa batalha dos homens, em que muitos bons haveriam de morrer, se estava escrito assim?” (p. 440-441). — Oxalá, pai dos homens, e Zeus, pai dos deuses, ocupam então lugares semelhantes nas duas guerras... — disse ele. — Permanecem os dois sentados, espectadores de batalhas, e nada fazem... — Nada fazem. Oxalá, tal como Zeus, o glorioso filho de Crono, também PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tem consciência de que não pode intrometer-se, senão indiretamente, através de conselhos. Zeus ordena a Témis que chame todos os deuses à assembléia, depois da qual serão redistribuídos para a guerra. É o máximo que se permite. “Sentes alguma inquietude a respeito dos troianos e dos aqueus?”,684 pergunta-lhe Posídon, Aquele que sacode a Terra. E a resposta de Zeus, o ajuntador de nuvens, é simples e significativa: “Preocupo-me com esses homens, ainda que se percam”.685 Este preocupar-se com os homens, “ainda que se percam”, representa toda a ambigüidade que é a própria matéria formadora dos deuses, sempre a meio caminho entre o destino dos homens e a necessidade de se lutar contra esse mesmo destino. — A preocupação revela seu divino paternalismo — disse ele —, e a noção de que vão perder-se revela a consciência de que do destino ninguém escapa. — E a mesma consciência, embora relativizada, a tem Oxalá, filho de Olorum, senhor da alvura, respondendo a seu filho Oxóssi, que lhe vai pedir ajuda: “Há muitas coisas que estão escritas”, diz Aquele que tem mais nomes, admitindo a irrevogabilidade do destino. Em seguida reconsidera: “... há muitas mais que compete aos homens escrever por si mesmos, por que sua almas são livres e, se guerreiam, é porque escolheram a guerra”. No entanto, se Oxalá interrompe aqui 683 A Ilíada, op. cit., p. 284. 684 Id., ibid. 685 Id., ibid. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 387 seu pensamento, não tem como justificar sua intromissão, mesmo que somente através de conselhos. Por isso arremata, olhando bem no fundo dos olhos de seu valoroso filho Oxóssi: “Mas não te aflijas, pois também está escrito que quem com fé combate por aquilo de bom em que acredita terminará por vencer” (p. 445). — Já entendo aonde você quer chegar: se os brasileiros, seus filhos, não vencerem a batalha em Tuiuti, isto significará que afinal não têm a fé no bom combate, e isto resultaria na ruína de si mesmos, santos orixás, uma vez que existem graças à fé que neles é depositada. Logo, devem os brasileiros vencer, sim, e para que vençam precisam contar com ajuda, e uma ajuda quer dizer uma intromissão, mesmo que numa guerra laica. — Exatamente. E agora passo ao segundo ponto — e passei. — Quanto à estrutura de ação dos personagens, olímpicos ou orixás, podemos observar que a distribuição das forças e das ajudas na Guerra de Tróia se dá de modo PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA aparentemente diverso daquele apresentado pelo narrador de João Ubaldo em sua Guerra do Paraguai. Os deuses, no combate que é a matéria do vigésimo canto, já tendo assumido suas preferências por este ou aquele humano, entre gregos e troianos, iniciam a luta e de certo modo transformam uma batalha que não era deles em assunto olímpico, aproveitando assim a oportunidade para o aparo de suas próprias diferenças. Podemos ver que, em Homero, os adversários, aqueus e troianos, pertencem a uma mesma cultura e são, por isso, assistidos ambos pelos mesmos deuses, que então se dividem, segundo a sua predileção. Vou ler. — Não, deixe-me ler — pediu ele —: “Hera foi na direção do círculo dos navios, bem como Palas Atena, Posídon (...) e (...) Hermes (...). Hefesto ia com eles (...). Na direção dos troianos foram Ares (...) e, com ele, Febo [Apolo] (...) e Ártemis (...), Latona, Xanto e Afrodite, amiga dos sorrisos”.686 — Obrigado. Em Viva o povo..., participamos apenas de um dos lados da querela, o dos brasileiros e seus santos orixás... — O que não significa estejam os paraguaios desassistidos... — disse ele. — E não estão. Oxalá, o que tudo vê, viu que “as entidades paraguaias, estranhos seres de inacreditável aparência, estavam prestes a sair das águas, árvores e nuvens, para também socorrer seus filhos” (p. 454). O nosso narrador tem clara predileção por seus filhos brasileiros... 686 Id., p. 285. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 388 — Sim, ele é o narrador do lado de cá. Mas ele também deixa clara a pouca concórdia entre os orixás brasileiros... — Lembre-se de que este narrador está em sua fase épica, o que significa, também — eu disse —, que ele não problematiza o material narrado. Não há, da parte do narrador, uma “questão”: ele é onipotente, onipresente e onisciente. Ele precisa narrar, e narrar para ele quer dizer dar conta de uma totalidade... — e eu continuei. — A revelação das rixas havidas no interior do grupo dos orixás brasileiros é um detalhe significativo a dar graça e ritmo dramático à Ilíada Negra de João Ubaldo Ribeiro: um orixá, Omolu, que demonstra, à semelhança do que ocorre nA Ilíada com os deuses, não estarem os santos sempre unidos, como não estão e nem nunca estiveram os majestosos olímpicos... Omolu, o orixá que mata sem faca, “o orixá da peste e da doença, senhor da lepra e da creca”, apresenta-se a Ogum, “dono do ferro, mestre das armas, ferreiro incriticável” (p. 452), como PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA voluntário na guerra contra os paraguaios. Ogum, orgulhoso e arrogante, maltratao e dispensa seus serviços, motivado por antiga e insolúvel disputa: Ogum, que é antes de tudo um ferreiro, deu de presente a Omolu uma faca, a mesma faca que deu a todos os homens e a todos os orixás para que sejam feitos os sacrifícios aos santos. Omolu, conhecido como “o que mata sem faca”, realiza seus sacrifícios matando os animais por exaustão e doença, ausentando-se assim das homenagens a Ogum, realizadas sempre que se usa uma faca. — Ótima história! — Ogum, orgulhoso como quê, dispensa a presença de seu irmão na guerra. Este, ofendido, inicia, ao término da batalha, uma epidemia de mortais doenças, durante a qual muitos brasileiros sucumbem... — desculpe lá por toda esta explicação, mas não pude resistir. Tudo, aqui e acolá, é muito bem arquitetado...687 — Foi um prazer ouvi-lo. Só estou preocupado porque sinto que estamos concordando demais... Isto pode resultar enfadonho... — Bom — continuou o 687 — E João Ubaldo deve parte dessa arquitetura ao seu amigo, José de Honorina, que já citei antes. Ouça — e li —: “’Apenas dei umas informações ao João Ubaldo sobre as coisas dos orixás’, diz José de Honorina, filho de santo do Axé Opo Afonja, um dos mais importantes terreiros de candomblé de Salvador (...). Durante o período em que João Ubaldo se isolou em Itaparica para escrever o romance, ele costumava encontrar-se diariamente com José de Honorina, sempre às seis da manhã para conversar, principalmente sobre as religiões de origem africana”. E diz o escritor, dentro da matéria: “’O José de Honorina é depositário de uma enorme tradição oral, de uma inteligência popular que é impossível encontrar nos livros’” (Mário Sérgio CONTI, “Um brado retumbante”, Veja, 19 dez. 1984). 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 389 meu interlocutor —, essa história que você contou acerca de Omolu é certamente uma referência de Ubaldo à contaminação dos rios com cadáveres, durante a Guerra do Paraguai, graças à qual morreram muitos soldados de ambos os lados. Com relação a isso, encontramos no livro de Julio José Chiavenato, Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai, Capítulo 52, referências ao crime de contaminação dos rios com cadáveres coléricos a dizimar as populações ribeirinhas do Paraguai. Chiavenato cita um despacho do Duque de Caxias ao Imperador Pedro II, datado de 18 de setembro de 1867, em que confessa o crime, “a ‘guerra bacteriológica’ primitiva” levada a cabo contra os paraguaios. Vou ler: “O general Mitre está resignado plenamente e sem reservas às minhas ordens; (...) em tudo, ainda enquanto a que os cadáveres coléricos se joguem nas águas do Paraná, (...) para levar o contágio às populações ribeirinhas, principalmente às de Corientes, Entre Rios e Santa Fé que lhe são opostas”.688 Uma referência de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Ubaldo a essa estratégia pouco digna... — Não sei... — protestei, para discordar um pouco. — Apenas provavelmente. Não se sabe, evidentemente, do alcance dessa contaminação, nem se sabe se morreram apenas paraguaios ou também brasileiros, argentinos ou uruguaios. O que importa aqui é a presença da doença como fator determinante a preponderar sobre as armas, ou seja, a simbolização levada a cabo por João Ubaldo Ribeiro: Omolu, sem muito esforço e muito bem acomodado na copa de uma árvore, mostra a dimensão de sua força, mais sutil e certeira que a de todos os instrumentos de guerra reunidos, e acaba levando a melhor sobre os demais orixás. Omolu, ao praticar a traição, mesmo que motivada por razões pessoais, orienta-se então para o lado dos paraguaios, abandonando tanto seus irmãos orixás quanto seus filhos brasileiros, e recupera assim a dinâmica de forças observada no texto homérico. — Hum... O que tinha tudo para configurar uma participação em monobloco apresenta então a sua surpreendente dissidência: Omolu, o que mata sem faca. Agora o terceiro ponto, por favor... — Com prazer. Aquiles e Ogum ocupam posições semelhantes, tendo-se em vista o comum sentimento que os (des)motiva: o orgulho. O vigésimo canto dA Ilíada narra um decisivo combate entre troianos e aqueus, estes últimos já 688 “Mitre e Caxias: contaminando água com cadáveres coléricos”, in Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 139. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 390 podendo contar com a presença de seu bravo Aquiles, de pés rápidos, ausente durante quase toda a guerra por questões de orgulho besta. As razões para a ausência de Aquiles estão no canto primeiro, que tem por nome “A peste: a ira de Aquiles” e por tema uma briga insolúvel entre Agamémnon e o bravo filho de Peleu e da deusa Tétis. Agamémnon e seu irmão Menelau, conhecidos como os Atridas, representam o principal motivo de estarem os aqueus atocaiados em seus navios, prontos para a invasão de Ílion ou Tróia, em sangrenta guerra contra seu povo, os troianos. Menelau, por causa de Helena de belos cabelos, raptada por Alexandre; Agamémnon, porque lhe tiraram a jovem Criseide, uma prenda de guerra, devolvendo-a a seu pai. Então... — Lá está você de novo a me contar coisas que já sei — protestou o meu interlocutor. — Eu li A Ilíada. Agora deixe-me então ilustrar o que você disse: “Consinto em devolvê-la, se é o que mais convém (...)”, responde o Atrida, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA contrariado. “Mas preparai-me sem tardança uma recompensa, a fim de que eu não seja o único dos argivos não recompensado”.689 — E o que responde Aquiles? — perguntei-lhe. — Aquiles responde, indignado, que não há mais recompensas disponíveis, e completa: “Não foi por causa dos troianos armados de piques que eu vim pelejar aqui, pois eles nada me fizeram. (...) Foi a ti, homem de grande impudência, que nós seguimos, a fim de te agradar, procurando tirar satisfação para Menelau e para ti, cara de cão”.690 E Agamémnon, transtornado, decide então roubar de Aquiles a bela Briseide; Aquiles então se enfurece e renuncia à peleja, orientado por sua mãe, a deusa Tétis, que assim lhe dirige estas palavras aladas. Veja como estou pegando o tom...: “Tu, permanece ao pé dos teus navios, (...) mostra a tua ira aos aqueus: cessa absolutamente de combater”.691 — Obrigado. Continuo então: Agamémnon é a razão da duradoura fúria do rápido Aquiles, que durante a maior parte da guerra se mantém em seu navio, cozinhando seu orgulho, diante dos aqueus e de alguns deuses, que passam grande parte dA Ilíada a lamentar a ausência de tão valoroso guerreiro. A indignação de 689 A Ilíada, op. cit., p. 14. 690 Id., p. 15. 691 Id., p. 21. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 391 Aquiles deriva do fato de se haver rompido uma determinada ordem: “... me arrebatais o que me havíeis dado”,692 diz ele a Agamémnon. — A guerra teria durado menos, não fosse a ira de Aquiles... — E do mesmo modo, na segunda parte do Capítulo 14 de Viva o povo brasileiro, nos campos chamados de Tuiuti, menos filhos valorosos teriam morrido não fosse a demora de Ogum em entrar em campo. O orixá Ogum, “ferreiro sem par, senhor da ferramenta, (...) cujo nome é a própria guerra” (p. 443), à semelhança de Aquiles, o filho rápido de Peleu, também cruza os braços, indignado por não ter sido o primeiro a ser chamado por Oxóssi, “caçador da madrugada, rei das matas, senhor da astúcia, imbatível no arco e flecha” (p. 441), que, depois de saudar o orixá guerreiro, peca por falar demais: “Já lá estamos, nosso irmão Xangô e eu, ajudando nessa porfia, mas nossa ajuda não é suficiente (...). Eis porque procuro a ajuda de meu insuperável irmão, o grande Ogum” (p. 443). Ogum responde PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA imediatamente, e toda a sua resposta significa um desejo de que seja a tradição mantida e os ritos realizados. Ogum aborrece-se, tal qual Aquiles diante do fato de Agamémnon lhe ter tomado de volta um presente dado, diante do que ele considerou uma subversão da ordem: “... devia ser eu o primeiro a ser chamado”, reclama Aquele cujo nome é a própria guerra. E continua, reivindicando seus ritos: “Que animais mataram para mim antes da grande batalha? Quem me pediu que propiciasse bom destino aos ferros dos armamentos?” (p. 444). — Tanto em toda A Ilíada quanto no combate em Tuiuti podemos observar uma espécie de lei das compensações a envolver, de um lado, o melhor guerreiro e, de outro, toda a guerra, como se ambos não pudessem “acontecer” ao mesmo tempo, como se fossem excludentes... — animou-se ele. — Assim que Aquiles entra em campo, a longa e sanguinária guerra começa a aproximar-se de seu fim. Do mesmo modo ocorre com a peleja entre brasileiros e paraguaios quando Ogum desperta de seu orgulho e põe a mão em suas armas sagradas. Aquiles e Ogum, os mais esperados e temidos guerreiros, retornam à guerra não tanto pelos motivos que a guerra oferece, mas por razões pessoais... — Razões de amor... — suspirei. — Aquiles, transtornado diante do corpo morto de seu amado Pátroclo, o filho valente de Menécio, urra de dor e raiva. A ira que cresce em seu glorioso peito supera em cem vezes a ira que vinha nutrindo contra 692 Id., p. 18. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 392 o Atrida Agamémnon por causa de Briseide. O próprio Aquiles reconhece, mais tarde, ter sido sua ira desproporcionalmente aumentada em razão de seu objeto: uma mulher... Diz o veloz filho de Peleu: “Atrida, terá valido a pena, para nós os dois (...), lançarmo-nos na querela que mina a alma, e isto por uma mulher?”.693 Sua vontade de vingar a morte de Pátroclo faz-lhe renunciar à ira anterior. Diz-lhe sua mãe Tétis: “... convoca desde já para a ágora os heróis aqueus, renuncia à tua ira contra Agamémnon, (...) apressa-te a armar-te para o combate, e a revestir a tua valentia”.694 — Do mesmo modo... — Do mesmo modo — continuei —, urra de raiva aquele cujo nome é a própria guerra: sua revolta dirige-se contra um sonho em que lhe surge a bela Iansã, deusa dos ares, rainha dos ventos e das tempestades. Ogum ferve de raiva porque não pode responder a ela, “pois não há como responder a um sonho” (p. 449). Tal como Aquiles, vemos aqui uma ira a substituir outra; um orgulho a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA sobrepor-se a outro. Oxalá, pai dos homens, condoído da angústia de Oxóssi por não ter ido primeiro a seu irmão Ogum, senhor do ferro, chama Exu, “o que conhece mil ardis e se deleita em estratagemas, o que ri na escuridão” (p. 449), e o encarrega da missão de convencer o orixá da guerra a abandonar seu orgulho besta e ajudar seus valorosos filhos no combate em Tuiuti. — E o que faz Exu? — Exu penetra “em forma de sonho no sono de Ogum (...). Mas não entrou como Exu, entrou transmutado na figura de Iansã, deusa dos ares” (p. 448). Iansã chama-lhe covarde, dorminhoco e orgulhoso, ameaçando-o de nunca mais deixar que toque em suas coxas macias: “... os meus peitos veludosos jamais outra vez te aceitarão a cabeça, não mais consentirei que enfies a mão por baixo de meu vestido” (p. 449), diz-lhe Iansã, ou melhor, Exu, o que trabalha no escuro. Ogum, ferido por se ver rebaixado por Iansã, esquece o orgulho anterior e entra na peleja. — Você veja — disse ele — que o narrador não se contenta em fazer uma reprodução do discurso homérico em seus termos basicamente sintáticos; ele introduz um elemento que na epopéia grega está velado: a lascívia, a sensualidade... — Sim. Você está pensando em Iansã, não? 693 694 — Em nota de pé de página aqui mesmo neste ponto inserida, o tradutor Cascais Franco observa: “Na Antiguidade, as mulheres eram tidas por naturalmente inferiores, e o seu papel limitava-se à procriação e à execução das tarefas domésticas” — eu li (A Ilíada, nota à p. 276). A Ilíada, op. cit., p. 275. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 393 — “Muitos aqueus não teriam mordido a terra imensa sob as mãos dos nossos inimigos, enquanto durava a minha ira”, diz o valoroso filho de Peleu, Aquiles de pés rápidos — assim leu o meu interlocutor, ignorando a minha provocação. E continuou: — “Agora, portanto, suspendo a minha bílis: não se deve nutrir sempre, sem descanso, uma ira ardente”.695 E diz o orixá: “Não cabe a mim dormir como um carneiro velho”, berra Ogum, “enquanto morrem na ingrata guerra os nossos filhos mais valorosos” (p. 450). — Outra essencial semelhança entre Aquiles e Ogum diz respeito à relação que mantêm com o ferro. Aquiles — disse eu — não resiste ao brilho e ao ressoar das ótimas armas que lhe dá o deus Hefesto, ferreiro sem par, assim como Ogum: “... armas gloriosas, tão belas, como jamais homem algum as trouxe sobre os seus ombros”.696 O ferro e o aço incitam-lhe o ardor guerreiro. Diante de tais armas Aquiles não pode furtar-se ao combate. Ogum, por sua vez, é o próprio ferro e a PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA própria guerra. Não se faz guerra sem que se homenageie aquele que é conhecido como o que vai à frente, perdendo a guerra todo o seu sentido se não tiver em suas dianteiras o orixá ferreiro. — Se Aquiles aparecesse e em Tuiuti fincasse os pés, seria de Ogum, e não de Hefesto, que receberia suas gloriosas armas... — Passo agora — disse eu — ao quarto ponto: como se dá, em meio à guerra, o amor de um deus ou orixá por seu filho? Estamos em guerra: os mortais aqui são os homens, não os deuses. Para que morram em paz, devem deixar garantida a memória de sua passagem sobre a terra. Essa memória reside no pequeno esboço de sua vida, esboço que empreendem Homero e João Ubaldo tão logo acontece de o narrador focar um ou outro valoroso guerreiro às portas do Inferno, ou do Hades. Essa pequena biografia produzida em meio à morte de um soldado representa a tentativa de deixar bem marcado o seu “lugar no mundo”, ou o lugar que um dia ocupou, o nome de seu pai, o local de seu nascimento. Vejamos algumas cenas sanguinárias levadas a cabo por Aquiles, de pés rápidos, contra Ifítion. Leia para mim, por favor. — “Aquiles precipitou-se no meio dos troianos (...); e primeiro ele dominou Ifítion, nobre filho de Otrinteu, destruidor de cidades, ao pé do Tmolo, 695 Id., p. 276. 696 Id., p. 275. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 394 nevoso, na fértil região de Hida. (...) o divino Aquiles atingiu-o, com seu pique, no meio da cabeça. Esta abriu-se em duas”.697 — E agora diz Aquiles, dirigindo-se ao morto e, assim, homenageando-o, como se de fato estivesse a enterrá-lo, realizando os ritos fúnebres. O conhecimento de Aquiles parece infinito, porque se trata, na verdade, do conhecimento do narrador, que sabe da vida, e da morte, de todos os guerreiros. Leia, por favor. — “Jaze, pois, filho de Otrinteu, o mais assustador de todos os homens. Aqui morres, e nasceste à beira do lago Gigeu, onde fica o domínio de teus pais, perto de Hilo piscoso e do Hermo turbilhonante”.698 Agora continue você — pediu ele. — Certo. Aquiles continua a peleja e acerta mais um: “Demoleonte, (...), filho de Antenor. O capacete de bronze não resistiu; atravessando-o com ímpeto, a ponta quebrou o osso, e os miolos (...) espalharam-se todos”.699 Descrevo agora o lado de Viva o povo brasileiro. Veja as tristezas que se abatem sobre Ogum diante do fato de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA que não conseguiu chegar a tempo de salvar o sargento Matias Melo Bonfim, filho de Ogum desde menino: “Vinha de Amoreiras, onde florescem os mimos-do-céu e os passarinhos cantam mais. Deixara seus dois filhinhos, Matilde e Baltazar, sua mulher Mariocota e sua roça de milho e feijão, deixara sua mãe viúva e sua criação, prometendo voltar assim que ganhasse a guerra” (p. 450). — Não voltou... — Não, não voltou. Ogum atrasou-se e não pôde impedir que a bala inimiga entrasse pescoço adentro de Matias Melo Bonfim. Em seguida, volta-se novamente o narrador para a vida de Matias: “... a Morte, a qual lhe aspirou a alma pela boca, boca que nunca mais beijaria Matilde e Baltazar, nem nunca mais falaria para contar das belezas de Amoreiras”. O mesmo sucedeu com outro filho de Ogum, cabo Lívio, que, “ao erguer-se, teve a cabeça fendida pela cutilada de um sabre e caiu morrendo, a lembrança de sua linda Gamboa, terra onde os mariscos são fartos e as tardes frescas” (p. 451, todos os realces são meus). Você veja — disse eu — que o narrador, tal como o faz Homero, interrompe a narração da guerra para realizar esta espécie de enterro verbal do herói que está a morrer. 697 Id., p. 292, realçou. 698 Id., ibid., realçou. 699 Id., ibid., realcei. 5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO 395 — Você não crê que o narrador, ao retomar essa linguagem homérica, inserindo-a em uma outra realidade cultural, não está apenas fazendo uma imitação servil, um pastiche de Homero? — Não. A retomada que faz Ubaldo da linguagem homérica na Guerra de Tróia é transformativa tanto de Homero quanto da própria narrativa brasileira que da forma clássica nesse caso se alimentou. Homero e Ubaldo saem dessa experiência transformados, já que representam um para o outro, tão distantes no tempo, uma oportunidade de releitura. Vou citar aqui o seu autor: “A literatura, com seu poder imaginativo e ficcional, tem exercido constantemente esse trabalho de reapropriação e de redirecionamento das formas, em especial as clássicas, que, ativadas e modificadas, vão-se tornando o que foram e o que jamais foram: revigoradas, produzem outras, então (ir)reconhecíveis”.700 Essa narrativa da cultura que vimos aqui, essa terceira guerra, da cultura dos orixás misturada à cultura dos PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA velhos gregos, para manter-se sempre potente, deve permanecer no tempo presente, como se as guerras originais de que tratam os textos, a de Tróia e a do Paraguai, ainda estivessem em pleno funcionamento. As guerra assim continuam, nos campos de Tuiuti ou ao pé das muralhas da velha Ílion. Os deuses atiram os homens à luta, os santos orixás ajudam seus filhos valorosos em querela contra os paraguaios. A descrição da guerra e a própria guerra continuam. Um ponto final não é uma trégua ou uma capitulação, mas um convite a que se recomece a batalha. — Que venham novos guerreiros! Há aqui um estandarte de guerra a ser entregue a uma das partes! Quanto a nós... — começou ele, em tom épico, mas não conseguindo disfarçar o colossal bocejo. — Quanto a nós, fartamo-nos de sangue... — disse eu, e fechei Viva o povo brasileiro. — Merecemos tomar café. *** 700 Roberto Corrêa dos SANTOS, “Estados da forma”, op. cit., p. 84. 6 _________________________________ UBALDO AMADO — A CABEÇA DO NARRADOR NO MUNDO O escritor dá à sociedade uma arte declarada, visível a todos nas suas normas, e em troca a sociedade pode aceitar o escritor. Roland Barthes701 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA — ... o único profissional — no sentido mais amplo da palavra —, o único profissional literário competente que eu conheço é Jorge Amado. Tenho uma bruta inveja dele. João Ubaldo Ribeiro, em 1968, com 27 anos702 Se recebemos dinheiro por nossa obra, tudo bem. Mas escrever para ganhar dinheiro é uma abominação. Essa abominação se paga com o abominável produto que assim se engendra. Ernesto Sabato703 — Acho que você deve ainda incluir mais um elemento na sua tese — disse o meu incansável interlocutor. E, diante de meu silêncio, ele seguiu: — Uma espécie de apresentação biográfica do escritor; apresentação, aliás, que deveria constar das páginas iniciais do trabalho..., e não começar a ser desenvolvido aqui, neste ponto, epilogadamente... 701 Roland BARTHES, “O artesanato do estilo” (p. 54-56), in O grau zero da escrita, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 56. 702 “João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968. 703 “O outro ofício do escritor”, in O escritor e seus fantasmas, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 96. 6 - UBALDO AMADO 397 — Mas você está cansado... — e eu franzi a testa ao ouvir aquele “epilogadamente”. — Eu sei que estou cansado, mas não quero parar agora. — Bom — e retornei —, não creio que deva inserir nada no começo do trabalho. Estivemos ao longo de toda essa conversa a conhecer tanto o escritor quanto o seu texto. Concordo, sim, que eu deva prosseguir e apresentar um retrato do escritor, mas não ao início. Os fatos da biografia de João Ubaldo Ribeiro, fatos relacionados à escrita de seus textos, bem entendido, adquirem mais consistência e significado agora do que se tivessem sido apresentados antes. Antes, uma apresentação biográfica soaria protocolar. É o que acontece na maioria das teses. Agora, quase ao fim dos trabalhos, ela se torna, de fato, um conjunto relevante de informações. Permita-me apresentar, então, um dos meus dois objetos de estudo: o escritor João Ubaldo Ribeiro. O outro objeto são os romances. — Você em nenhum momento de nossa conversa se deu ao trabalho de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA separá-los. Vai fazê-lo agora? — Não, vou apresentar escritor e obra. — Apresente-os, ao menos, de modo original, já que você recusa com tanta veemência o protocolo... De trás para frente, por exemplo, ou melhor... — e ele fez uma pausa sorridente —, de frente para trás, já que de trás para frente, do passado ao presente, é como são apresentadas quase todas as biografias, ou ao menos as sinopses... — Vou tentar — e me abasteci das fontes704 e de mais café. 6.1. O LUGAR DO ESCRITOR NO MUNDO — João Ubaldo Ribeiro tem livros publicados na Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Espanha, Holanda, Suécia, Hungria, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Rússia, no Canadá e nos Estados Unidos e em Portugal, Israel e Cuba — disse eu. E então comecei a retroceder. — Publicou em 2004 o livro de crônicas Você me mata, 704 Informações retiradas, filtradas e rearticuladas a partir da seção “Memória seletiva” (p. 8-14), da série Cadernos de Literatura Brasileira, João Ubaldo Ribeiro, op. cit.; do livro de Wilson COUTINHO, João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, op. cit., p. 8-16; dos sites: <http://www.releituras.com/joao_ubald.htm> e <http://www.novafronteira.com.br/papo/jubaldo.htm>; bem como das diversas fontes jornalísticas adiante citadas. 6 - UBALDO AMADO 398 Mãe gentil e, em 2002, o romance Diário do farol. Em janeiro de 2000, em Portugal, foi homenageado por alguns escritores portugueses e participou da Semana de Estudos Lusófonos, na Universidade de Coimbra. Em 1999, foi um dos escritores escolhidos em todo o mundo para falar ao jornal francês Libération acerca do novo milênio que então se aproximava. Também nesse ano ficaram prontas as edições portuguesa e alemã de seu livro O feitiço da ilha do Pavão. O insólito romance A casa dos Budas ditosos, da série Plenos Pecados, da editora Objetiva, apareceu pela primeira vez em abril, na IX Bienal do Livro, no Rio de Janeiro. O lançamento em Portugal tornou-se um assunto polêmico, dada a recusa de duas redes de supermercados em ter em suas prateleiras essa pequena história, um depoimento sobre a luxúria. O sucesso em terras lusitanas, não obstante, foi grande. Venderam-se em poucos dias, segundo os jornais, cinco mil exemplares, chegando-se, mais tarde, a muitos mil livros vendidos. — “Não obstante”? — e ele riu. — O sucesso em Portugal foi grande por PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA causa disso... E as vendas no Brasil? — Algo em torno de 150 mil exemplares, lembrando-se que o Brasil tem algo em torno de 160 milhões de pessoas e Portugal tem algo em torno de dez milhões de pessoas... Sim, eu sei que o que temos de considerar são os números referentes ao público leitor, ou melhor, comprador, uma vez que comprar um livro está longe de significar ler um livro, mas são números que devem ser levados em conta. — E continuei, pedindo-lhe mais café: — Ainda em 1999, escreve, com Cacá Diegues, o roteiro de Deus é brasileiro, filme baseado em seu conto “O santo que não acreditava em Deus”. Em 1998, vendeu os direitos de Viva o povo brasileiro para o cinema, em filme que já está sendo dirigido por André Luís Oliveira. As crônicas que escreveu para O Globo e O Estado de S. Paulo foram reunidas no livro Arte e ciência de roubar galinha. Um ano antes, em 1997, publicou o romance O feitiço da ilha do Pavão e vendeu para Cacá Diegues os direitos de filmagem do livro Já podeis da pátria filhos. É ainda homenageado na Avenida Marquês de Sapucaí pelo romance Viva o povo..., escolhido como samba-enredo da escola Império da Tijuca para o carnaval de 1987. Detém, em 1996, a cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tubigem, Alemanha. Seu primeiro trabalho para crianças, Vida e paixão de Pandonar, o cruel, em edição alemã, recebeu em 1995 um prêmio concedido ao melhor romance infanto-juvenil 6 - UBALDO AMADO 399 sobre minorias não-européias, o Die Blaue Brillenschlange, em Zurique. Também nesse ano de 1995 publicou Um brasileiro em Berlim. — E a Academia Brasileira de Letras? — É agora, um ano antes. No dia 8 de junho de 1994, João Ubaldo, recebido pelo acadêmico Jorge Amado, sentou-se na cadeira do jornalista Carlos Castello Branco, a de número 34, para a qual havia sido eleito no dia 7 de outubro do ano anterior.705 Ainda em 1994, recebeu, na Feira de Frankfurt, o prêmio Anna Seghers, exclusivamente dirigido a escritores alemães e latino-americanos. Ao lado de Cacá Diegues e Antonio Calmon, termina a adaptação para o cinema do romance de Jorge Amado, Tieta do Agreste, com Sônia Braga e direção de Cacá Diegues. João Ubaldo Ribeiro já tinha trabalhado com adaptações em 1993, quando entregou à série Caso Especial, da TV Globo, o seu conto “O santo que não acreditava em Deus”, com Lima Duarte a fazer novamente o papel central, já tendo estado na pele do obstinado sargento Getúlio, filme dirigido por Hermano Penna, já analisado aqui PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA detidamente. O filme, não o Hermano Penna... — E prossegui: — Em 1991, outro romance seu, O sorriso do lagarto, que havia sido publicado em 1989, foi ao ar, desta vez sob a forma de uma minissérie para a TV Globo, adaptada por Walter Negrão e Geraldinho Carneiro, com a participação de Tony Ramos, Maitê Proença e José Lewgoy. Esse foi o ano em que retornou ao Brasil, depois de passar quinze meses em Berlim, a convite da Deutsch Akademischer Austauschdienst, a escrever para o jornal Frankfurter Rundschau e a produzir algumas peças para rádio. O seu “Santo que não acreditava em Deus”, antes de virar Caso Especial, foi peça radiofônica adaptada pelo próprio autor. Nesse mesmo ano voltou a escrever todos os domingos uma crônica para o jornal O Globo, começando também a publicar a mesma crônica nO Estado de S. Paulo. Em 1990, antes de se mudar com toda a família para Berlim, publicou A vingança de Charles Tiburone, seu segundo livro 705 — “Meu ‘namoro’ com a Academia foi longo”, disse João Ubaldo. “Quando o Austregésilo de Athayde morreu, o senador Álvaro Pacheco se inscreveu para concorrer à vaga dele. Eu não estava pensando no assunto quando, um belo dia, me ligou o Afrânio Coutinho. Ele queria me ditar a carta à ABL, como candidato à cadeira. Jorge Amado me aconselhou a não me candidatar. ‘Você é um grande escritor. Se você se candidatar agora, competirá com o Álvaro Pacheco. Você vai fazer o papel do candidato do contra’. Aí recusei. Em 1993 a cadeira número 34 vagou, com a morte do Carlos Castello Branco, e o Cândido Mendes me convidou a concorrer, desde que, caso ganhasse, não falasse nunca mais mal da Academia. Aceitei. O Jorge escreveu cartas a meu favor e acabei eleito. Fui o pior candidato da história da ABL” (Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002). 6 - UBALDO AMADO 400 infanto-juvenil. Viva o povo brasileiro, considerado seu mais importante trabalho, foi publicado seis anos antes, em 1984, ano em que recebeu por ele o Prêmio Jabuti, na categoria “Romance”, e o Golfinho de Ouro e participou, a convite de uma TV estatal canadense, de um grupo de filmes sobre literatura latino-americana; ao lado do seu, os nomes de Gabriel García Marques e Jorge Luis Borges. Terminado o Viva o povo..., o autor lançou-se à tarefa de preparar sua tradução para o inglês, acabada dois anos depois e, segundo o autor, bem mais trabalhosa que a própria escritura do romance. Durante esses dois anos, João Ubaldo Ribeiro começou, à viva força, a trabalhar com um microcomputador. Vida e paixão de Pandonar, o cruel estreou, em 1983, a presença do autor na literatura infanto-juvenil. Também nesse ano estreou o filme Sargento Getúlio, arrebanhando, no Festival de Gramado, como já vimos, muitos prêmios. No ano anterior, 1980, João Ubaldo Ribeiro casase com a sua terceira mulher, a fisioterapeuta e psicanalista Berenice de Carvalho Batella, com quem teve dois filhos. Também nesse ano participou do Festival PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA Internacional de Escritores, em Toronto, no Canadá, e também começando a escrever Alto lá, meu general... — O romance que mais tarde veio a chamar-se Viva o povo brasileiro... — Sim. O livro, segundo o próprio autor, nasceu de um desafio de seus editores e de uma pequena provocação de seu pai, que um dia lhe disse, referindo-se à pouca espessura dos livros que seu filho João havia publicado: “Livro que não fica em pé sozinho não presta”.706 — E prossegui, sempre andando para trás, a desmontar a figura do escritor, tornando-o, assim, cada vez menos conhecido e menos famoso: — Em 1981, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, foi para Lisboa, de onde, com o jornalista Tarso de Castro, editou a revista Careta e publicou Política e Livro de Histórias. Também de Portugal começou a escrever para O Globo uma crônica por semana, mais tarde, em 1988, reunidas no livro Sempre aos domingos.707 Em Cuba, no ano de 1980, ao lado de Antonio Candido e Gianfrancesco Guarnieri, participou do júri do concurso “Casa das Américas”, cujo 706 — Tenho aqui outra informação, segundo a qual quem disse isso foi o avô português do escritor, João Ribeiro, nascido em Fafe. Disse ele ao neto que “um livro só o é quando se põe de pé” (Manuel Augusto dos SANTOS, “Um serão com o autor do livro das bu(n)das apetitosas”, Jornal de Matosinhos, Portugal, 4 fev. 2000). 707 Vejam-se especialmente as crônicas “Não carregue o autoclisma!”, “A grande corrida de toiros”, “O mistério do Shaub-Lorenz”, “O revertério da colonização”, “Seres imaginários em Lisboa” e Velhos conhecidos” (João Ubaldo RIBEIRO, Sempre aos domingos, op. cit., p. 133-168). 6 - UBALDO AMADO 401 primeiro prêmio foi para Ana Maria Machado. Um ano antes publicou seu terceiro romance, Vila Real, o primeiro editado pela Nova Fronteira, e foi, por nove meses, para os Estados Unidos, a convite do International Writing Program da Universidade de Iowa. O próprio João Ubaldo Ribeiro entregou-se à versão de Sargento Getúlio para o inglês, pronta em 1978. Sete anos antes, em 1971, o romance havia saído enfim do prelo, depois de muita batalha, pela Civilização Brasileira, sua segunda editora, e recebido o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria “Revelação de Autor”. Também em 1969, João Ubaldo casa-se com sua segunda mulher, a historiadora Mônica Maria Roters, que lhe deu duas filhas. Em 1974, a editora Artenova, do Rio de Janeiro, publicou o livro de contos Vencecavalo e o outro povo,708 cujo título anterior, como já lhe disse na nossa conversa introdutória, era A guerra dos Paranaguás. Em 1968, João Ubaldo Ribeiro viu publicado o seu primeiro romance pela carioca José Álvaro Editor: A semana da Pátria, em seguida, por sugestão editorial, mudado para Setembro não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA tem sentido. Concluído em 1963, o livro somente conseguiu ser impresso e distribuído, segundo o próprio autor, graças ao empenho de Glauber Rocha, que lhe fez o prefácio e conseguiu convencer o escritor Flávio Moreira da Costa a interceder junto aos editores do Rio de Janeiro para publicar o original, e graças, também, à ajuda conselheira e constante de Jorge Amado. Setembro não tem sentido foi então considerado, em 1968, um dos cinco melhores romances do ano pelo Jornal do Brasil. — Você disse estar desmontando a figura do escritor — interrompeu-me o meu interlocutor —, mas, na verdade, não. A figura do escritor continua montada desde o início. Você desmontou a sua consagração pública, e mesmo assim relativamente, porque João Ubaldo Ribeiro, desde o seu primeiro romance, foi reconhecido como escritor, senão pelo público, ao menos pela crítica. 708 “... Vencecavalo e o outro povo (...) reúne cinco histórias desnudando os mitos a que nos acostumamos desde a infância — heróis, estadistas, intelectuais, militares, santos, descobridores —, investindo agressivamente contra os bloqueios do falso moralismo impostos à sociedade brasileira por tempos políticos mais severos. ¶ (...) uma obra questionadora, mordaz e satírica, que tem como traço comum em suas cinco histórias uma arrasadora desmistificação, tão generalizada que atinge o próprio fazer literário e as categorias comportadas em que costuma ser enquadrado. É, assim, um livro de extrema singularidade (...) no panorama da literatura brasileira” (“O cáustico e brasileiro humor do baiano Ubaldo”, O Estado do Paraná, 30 dez. 1984). 6 - UBALDO AMADO 402 — E essa relação, hoje, tornou-se de certo modo invertida. O reconhecimento e a consagração partem agora de seu público leitor, não mais da crítica especializada. — E segui, pensando nisso que havia acabado de falar: — Em 1965, começou a lecionar Ciência Política na Universidade Federal da Bahia, recém-chegado de sua primeira viagem aos Estados Unidos, onde fez, na Universidade da Califórnia do Sul, um mestrado em Administração Pública e Ciência Política, tendo sido professor da Escola de Administração e da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e professor da Escola de Administração da Universidade Católica de Salvador. Em 1960, casou-se pela primeira vez, com Maria Beatriz Moreira Caldas Ribeiro, colega da faculdade de Direito que começaria a cursar em 1958. A mesma Universidade Federal da Bahia, na coletânea Reunião, organizada por Noêmio Spinola e Sônia Coutinho, publicou em 1961 alguns contos seus. Lá estão “Josefina”, “Decalião” e “O campeão”.709 No entanto, foi através da antologia Panorama do conto baiano,710 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA organizada por Nelson de Araújo e Vasconcelos Maia, uma publicação da Imprensa Oficial da Bahia, que se deu a estréia de João Ubaldo Ribeiro na ficção brasileira. O ano é 1959, e o conto chama-se “Lugar e circunstância”. Ganhava dinheiro, nesta época, trabalhando como office-boy para o Gabinete da Prefeitura de Salvador e depois como redator para o Departamento de Turismo. — Sua biografia constitui, aqui, um autêntico retorno ao útero... — Sua vida universitária teve início, como eu disse, em 1958, como aluno do curso de direito da Universidade Federal da Bahia — continuei, ignorando a piada. — Editou revistas e jornais de sabor cultural e político, participou do 709 E o meu interlocutor comete aqui uma pequena interrupção, para ilustrar este trecho biográfico com uma apreciação crítica da época: — “... se Sônia Coutinho e David Salles não são ficcionistas de personagem, no sentido, pelo menos, da ficção tradicional” — escreve Adonias Filho, em 1961 —, “João Ubaldo Ribeiro, dentre os quatro estreantes da Bahia, nasceu para caracterizar uma figura em conformação por assim dizer sólida. Nos três contos publicados (...), que correspondem a três figuras psicologicamente medidas, o contista de caracteres se descobre para jamais ocultar-se. Em ‘Josefina’, por exemplo, quando o poder de fixação se extravasa, há uma mulher a mostrar-se inteira e completa no fundo mesmo de todos os instintos e uma consciência. Esse conto, aliás, a ser incorporado pela melhor novelística brasileira contemporânea, já nos obriga a ver João Ubaldo Ribeiro como um autêntico escritor” (ADONIAS FILHO, “Quatro ficcionistas da Bahia: ‘Reunião’”, Jornal da Bahia, 2 e 3 jul. 1961). 710 “... cerca de trinta histórias curtas escritas por autores nascidos na Bahia. (...) A escolha dos nomes foi a mais ampla possível. Figuram no volume escritores famosos, de milhares de exemplares espalhados pelo mundo afora, como Jorge Amado. Ao seu lado estão rapazes ainda inéditos, mal chegados à casa dos vinte, como Glauber Rocha, David Sales, João Ubaldo Ribeiro” (Vasconcelos MAIA, “Viagem para o Rio”, texto sem referência, 23 set. 1959). 6 - UBALDO AMADO 403 movimento estudantil e, acima de tudo, leu e releu os autores clássicos que, anos depois, estariam a respirar e mesmo a gritar dentro de sua literatura, entre eles Graciliano Ramos e Jorge de Lima, Shakespeare e Homero. Mal tinha completos os dezessete anos e já trabalhava, em 1957, como repórter, tendo sido, ao longo da vida, redator, chefe de reportagem e colunista do Jornal da Bahia; colunista, editorialista e editor-chefe da Tribuna da Bahia; colunista do jornal Frankfurter Rundschau, na Alemanha; e ainda colaborador de vários jornais e revistas no país e no exterior, como o alemão Diet Zeit, o inglês The Times Literary Supplement e os portugueses O Jornal e JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias. Sua primeira reportagem cultural foi uma entrevista com ninguém menos que o escritor Aldous Huxley, autor de Contraponto, A ilha e Admirável mundo novo, entre outros. A carreira de jornalista o levou mais tarde ao posto de editor-chefe dA Tribuna da Bahia — e pedi ao meu atento interlocutor mais um café, que ninguém é de ferro. — Saímos já da esfera pública... Este período biográfico refere-se a um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA João Ubaldo eminentemente doméstico, e não sei se isso interes... — Sim, mas é uma fase curta, uma vez que ele começou a trabalhar muito cedo, e justamente como jornalista. Mas vamos a ela, para chegarmos ao fim, ou melhor, ao início... — E prossegui: — João Ubaldo Ribeiro começou o curso clássico no chamado “Colégio Central”, o Colégio da Bahia, e um ano depois, em 1956, veio a conhecer Glauber Rocha, seu grande amigo de décadas. Sua experiência escolar anterior deu-se no colégio baiano Sofia Costa Pinto, onde, segundo conta, acabou perseguido por uma professora de inglês, que “não percebeu que eu falava um inglês britânico, já que estudara em Sergipe com um professor educado na Escócia”, diz João Ubaldo Ribeiro, referindo-se ao seu segundo colégio, o Estadual de Sergipe, que o acolheu em 1951 e onde trabalhou duro, a tentar corresponder às expectativas do pai, o alagoano Manoel Ribeiro, chefe da Polícia Militar à época, que o obrigava a traduzir canções francesas e verbetes enciclopédicos, a praticar o latim, a copiar os sermões do padre António Vieira e a ler, ler, ler e ler, principalmente nas férias. Começou a estudar para valer em 1947, aos seis anos, com um professor particular. Entrou, em seguida, para o Instituto Ipiranga, em Sergipe, onde deu início a uma verdadeira bibliofagia, estimulada, alimentada e exigida por seu pai, que não se contentava com nada menos que o primeiro lugar e a excelência, e o menino João Ubaldo permaneceria então horas na biblioteca de sua casa, às voltas com livros infantis, 6 - UBALDO AMADO 404 principalmente os de Monteiro Lobato. A infância toda o menino passou em Aracaju, a colecionar, sem o saber, as histórias que convergiriam para o seu romance Sargento Getúlio; a infância toda, com exceção dos dois primeiros meses, vividos na casa de seu avô, na Rua do Canal, número um, na ilha de Itaparica, a casa onde, no dia 23 de janeiro do ano de 1941, como filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro e sob o nome de João Ubaldo711 Osório Pimentel Ribeiro, nasceu. 6.2. A FORTUNA CRÍTICA — Ficou bem feita a apresentação às avessas, sim, mas não podemos ficar aqui... Estou sentindo falta de um capítulo que discuta, ou no mínimo exponha, para posterior discussão, a ambígua posição da literatura de Ubaldo diante da crítica e diante do público — disse ele. — Estou pensando naquilo que você disse PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA acerca de o reconhecimento e a consagração partirem, hoje, muito mais de seu público leitor do que da crítica especializada... Ouça isto: ... João Ubaldo é um escritor de talento, comprovado em livros como Vencecavalo e o outro povo (1974) e Viva o povo brasileiro (1984). Mas há muito não lança uma obra de peso, capaz de seduzir a crítica, embora venha tendo um ótimo retorno do público, e isso deve ser levado em conta. (...) Seu último trabalho aclamado pela crítica foi O sorriso do lagarto, em 1989. As imperfeições do Diário do farol só reforçam a impressão de que ainda se espera um novo grande livro do autor.712 — Esse tema, no entanto, talvez extrapole um pouco os meus objetivos neste capítulo, uma vez que quero tratar da idéia de escritor profissional, além, é claro, do narrador e das rel... — ... das relações desse narrador com o próprio escritor... Eu sei, eu sei que você já tencionava falar da condição do escritor profissional, um assunto caro a Ubaldo e, pelos vistos, crucial para entendermos a sua literatura e a sua 711 — Você sabia — perguntou-me o meu interlocutor, me interrompendo — que João Ubaldo herdou o nome do avô, e é histórica a razão para tantos Ubaldos na família? — E ele leu: “... a denodada Vila de Itaparica passa à categoria de município a 16 de maio de 1883, dia de santo Ubaldo” (Cícero SANDRONI, “O João da ilha”, Elle, nov. 1989). 712 Paulo SALES, “Inventário da maldade”, Correio Folha da Bahia, 14 abr. 2002. 6 - UBALDO AMADO 405 identidade como escritor,713 mas esse assunto é conseqüência desse outro que mencionei. Podemos observar, aqui e ali — disse ele —, momentos em que Ubaldo e, por extensão, o seu narrador dão a impressão de que têm algo a dizer, e o dizem, fora e dentro da literatura, respectivamente... têm algo a dizer sobre o tipo de literatura que fazem, sobre o tipo de história que contam... — E também — completei — sobre a condição do escritor na sociedade, a relação do escritor com o público leitor e o trabalho do escritor como devendo ser remunerado, rentável e, portanto, profissional...714 Veja este texto do Silviano Santiago — e li para ele: PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA ... Não podendo ser profissional numa sociedade em que a sua mercadoria não circula e não é rentável, em que tampouco pode crer em dispositivos estatais ou empresariais que o amparem economicamente e em que o produto estrangeiro e concorrente é adquirido com mais constância — o escritor acaba sendo aquele que dispõe do lazer que a sua classe lhe possibilita, que as suas atividades profissionais (paralelas e rendosas) lhe proporcionam. Autor do tempo que o romance e o leitor lhe permitem. Escravo deles em suma.715 — Houve uma mudança da posição de Ubaldo perante a crítica, que se deve à mudança de seu universo temático, dos conteúdos literários que manipula e da forma de narrar, agora bem mais preocupada com a legibilidade... — Continue — pedi.716 — Ubaldo, como cânone literário, membro da Academia Brasileira de Letras e presença obrigatória em qualquer lista que se faça dos mais importantes escritores brasileiros — disse ele —, é, hoje, menos felicitado pela crítica do que era à época em que ele ainda via com reservas e pruridos a sua própria condição 713 — Sim, sim... — fiz eu com a cabeça, e me lembrei de uma declaração do escritor, que acha ruim “esse neoromantismo brasileiro, essa glorificação boba do escritor como um ser privilegiado” (Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros...”, Jornal do Brasil, 6 abr. 2002). 714 “Mario da Silva Brito já havia advertido que, no Brasil”, escreveu João Carlos Teixeira GOMES, “a literatura é fruto do cansaço e das horas roubadas ao lazer, depois que os escritores levam seus melhores momentos e esvair-se na guerra pela sobrevivência” (“João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, op. cit., p. 84). 715 “Vale quanto pesa”, op. cit., p. 28. 716 E me lembrei de uma matéria não assinada, publicada no Jornal da Tarde, por ocasião do lançamento do Diário do farol, que diz: “João Ubaldo Ribeiro virou marca registrada. O que fará de Diário do farol (...) um best seller, mesmo que pareça mais uma crônica com mania de grandeza que um livro à altura de Sargento Getúlio ou Viva o povo brasileiro” (“Um padre cínico e amoral se confessa na ilha”, Jornal da Tarde, 28 mar. 2002). 6 - UBALDO AMADO 406 de escritor, ou à época em que ele praticava outro tipo de literatura... — E o meu PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA interlocutor começou a desdobrar um jornal que folheava há pouco. — Ouça. O sorriso do lagarto não é comparável a pelo menos duas grandes obras de Ubaldo Ribeiro: Sargento Getúlio, traduzido em várias línguas, e Viva o povo brasileiro, uma espécie de romance metafísico cultural. O texto se perde, em alguns momentos, em diálogos desnecessários, longos demais, redundantes, em que tramas e situações narradas com profundidade até filosófica (o que é comum em João Ubaldo) se transformam em passagens perdulárias, prescindíveis à história e ao próprio prazer que, nos momentos mais importantes, O sorriso do lagarto proporciona ao leitor. Falta-lhe o poder de síntese, a percepção que Sargento Getúlio, por exemplo, incorpora: nem um parágrafo, nem uma divagação a mais do que o necessário para que a história seja a quase perfeita fusão entre a cultura e a literatura. [Box:] LINGUAGEM — COM FÔLEGO NARRATIVO, O AUTOR VAI ALÉM DO KITSCH. O mais interessante na carreira literária de João Ubaldo Ribeiro — sem contar o melhor livro, Sargento Getúlio — é a opção pelo romance. (...) Jorge Amado se situa num limite perigoso. Ele não trabalha, como um Vargas Llosa, com um contraponto crítico. João Ubaldo, que como seu conterrâneo tem fôlego narrativo, sabe dos perigos e se arrisca, colocando-se na perspectiva do romancista tradicional, intérprete de seu povo e do seu tempo, tem muito chão a percorrer, mantendo em pé um gênero capenga que persiste por causa do mercado. De resto fica de novo a pergunta: por que tantos escritores brasileiros têm seu melhor momento no início de carreira?717 — Esse jornalista menciona a idéia de que João Ubaldo Ribeiro mantém “em pé um gênero capenga que persiste por causa do mercado”. Ele se refere ao romance, e eu pergunto: por causa de que outra boa razão deveria o gênero persistir, senão também por causa do mercado? O gênero romance deveria persistir então por causa de quem? — perguntei. — Da crítica? E por que ele usa o verbo “persistir”? E os outros gêneros literários, como a poesia, os gêneros que não têm respaldo mercadológico traduzido em vendas e grandes tiragens, qual o verbo que se deve usar para eles? Não têm eles de “persistir” ainda mais? É então a dependência do mercado que torna o gênero romance capenga? Ou ele é capenga devido a alguma deficiência estrutural? — Tornou-se capenga porque os tempos mudaram... A crítica Flora Süssekind escreveu, acerca da literatura brasileira dos anos 90, num artigo que não por acaso está aqui em cima da mesa, que... “Chama a atenção (...) uma espécie de variação sistemática de escala, manifesta tanto em exercícios (...) de expansão e 717 Eduardo MARETTI, “Ciências versus religião na Bahia de João Ubaldo”, O Estado de S. Paulo, 16 nov. 1989, realces do meu interlocutor. 6 - UBALDO AMADO 407 compressão, quanto em movimentos de narrativização da lírica, de um lado, e de miniaturização da narrativa, de outro (...)”. E ela faz referência — continuou ele — à “... rejeição da forma novelesca mais vasta, contínua”. E termina com esta crítica à grande narrativa histórica, situando-a, hoje, como texto anacrônico que só encontra lugar nas estantes porque vende bem: “É em direção conservadora semelhante que se pode entender, por exemplo, a imposição edit