Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social “A Idioma” dos índios Kalankó: Por uma etnografia da música no Alto-Sertão Alagoano Mestrando – Alexandre Ferraz Herbetta Orientador: Prof. Rafael José de Menezes Bastos V Vaam môô m miinnhhaa ggeennttee,, qquuee uum maa nnooiittee nnããoo éé nnaaddaa.. ((22X X)) Ô Kaallaannkkóó Ô qquueem m cchheeggoo,, ffooii K nnoo rroom mppeerr ddaa m maaddrruuggaaddaa.. V Vaam môô vvee ssee nnóóiiss aaccaabbaa,, ccoom mppeelleeiittaaddaa1.. m oo rreessttoo ddaa eem 1 O termo empeleitada, indica a ação de passar uma noite inteira cantando e dançando o Toré. 2 Agradecimentos Este trabalho só pôde ser concluído graças à ajuda, colaboração, comprometimento, generosidade e engajamento de diversas pessoas, em diversos níveis e ocasiões. Algumas delas, desde sempre, a estas, não sei nem como agradecer: à família, minha mãe, meu pai, minha avó, a ju, mera, os irmãos. Obrigado também aos diversos amigos e às amigas, do mestrado ou não, por causa das conversas e idéias e das cervejas, e por mais bastante coisa. Especialmente à Serginho, Japa, Tonho, Karla, André, Oscar, Cabeça, Bárbara, Guillermo e a muitos outros. Obrigado a algumas pessoas que conheci durante o desenvolvimento do trabalho, e se tornaram fundamentais. Primeiro, obrigado ao Rafael, meu orientador. Sem sua cordial orientação não teria chegado até aqui (reconheço a grande importância de sua orientação e assumo toda responsabilidade pela obra). Obrigado também por me apresentar generosamente ao universo etnomusicológico. Obrigado aos colegas do MUSA – Núcleo de Estudos sobre Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe -, nossas reuniões sempre foram agradáveis e enriquecedoras. Também aos professores do Departamento de Antropologia que me abriram tão apaixonante caminho. Obrigado a Siloé, generoso amigo que me abriu, desde minha primeira viagem à região, sua casa em Maceió e seu belo trabalho sobre os povos indígenas de lá. À Clóvis, grande e generoso camarada sertanejo, obrigado à casa, à comida, aos amigos, ao escritório, ao gravador de cd, às caronas, enfim, obrigado. À vários outros amigos do sertão: Zé Silva (cheio de responsabilidades), Celina, Lili (vou esquecer dos nomes de uns, mas não de suas pessoas). À Fal, grande guerreira, obrigado pelo apoio e inspiração. Obrigado também ao CIMI de Alagoas, à Auta, Prazeres, ao Jorge Vieira, e ao Marcelo. Obrigado à Culezinha e Cida, Zé Magrinho, Tonho Preto, Paulo, Jardilina, Joana, Seu Pedro, Henrique, Rodrigo, Val, Pelé, Pedrinho, Neco, enfim, obrigado aos Kalankó, que me receberam como parente e amigo, tudo que sou agora. Obrigado também aos parentes dos outros povos indígenas que conheci. Obrigado também a quem colaborou financeiramente. À CAPES e ao CNPQ, ao Departamento de Antropologia da UFSC e à Prefeitura Municipal de Palhoça. 3 Nota sobre a grafia dos termos nativos. Os Kalankó e os outros quatro grupos indígenas do alto-sertão alagoano falam uma variante do português, que inclui uma série de termos e expressões idiomáticas com conteúdo semântico bastante diverso daqueles que teriam no “meu” português, além de uma fonética - o “sotaque” - bastante característica. Levando isto em conta, as letras das músicas e os depoimentos Kalankó serão transcritos neste trabalho da maneira mais próxima possível à pronúncia nativa, do ponto de vista de minha percepção não treinada em lingüística. Nas músicas de praiá, um dos gêneros musicais da comunidade, a grafia representará a sonoridade do canto. Similarmente, os termos e expressões nativas, especialmente aqueles (as) referentes à prática musical e seus nexos, como o complexo ritual e a mito-cosmologia serão transcritos em itálico. Estes termos e expressões serão desenvolvidos ao longo do texto, e, principalmente, no item 5.2. Nota sobre a grafia dos etnônimos indígenas. Grafo o nome dos diversos povos indígenas do alto-sertão alagoano, baseando-me nas formas que me foram passadas por suas lideranças durante o trabalho de campo. A formação destes etnônimos é sempre ligada à elaboração de uma imagem “indígena”. Neste processo, usam-se termos que lembram períodos anteriores, os quais apontavam para uma classificação indígena, especialmente aqueles componentes do nome pelo qual os índios se auto-classificavam no aldeamento de Brejo dos Padres/Pe, no século XIX: Pankararu Pancarú Geritacó Cacalancó Umão Canabrava Tatuxi de Fulo (ARRUTI, 1999). Assim, os Kalankó, por exemplo, optaram por um etnônimo que lembra os antigos Cacalancó. 4 Ademais, usam-se termos que conotem o exotismo, através do qual a maior parte das populações indígenas é inserida na sociedade nacional, esta classificação os possibilitando serem aceitos oficialmente como tais. Os Koyupanká, por exemplo, cujo nome era grafado como “Coiupanká”, compuseram seu etnônimo a partir da sigla da expressão “Comunidade Indígena Unida Pankararu”. Na sigla, as letras C e I foram trocadas por suas correspondentes menos usadas na grafia do português, e mais comuns na transcrição das línguas indígenas, respectivamente K e Y. Para os outros etnônimos citados nesta dissertação, baseei-me nos trabalhos que os citam, respeitando sempre a fonte. Nota sobre meus principais interlocutores. Esta dissertação está fortemente baseada nas conversas que mantive com uma considerável quantidade de pessoas, indígenas ou não, que conheci nas viagens que fiz à região do alto-sertão alagoano. Alguns destes personagens, porém, podem ser considerados interlocutores especiais, por tornarem-se, ao mesmo tempo, mestres musicais e amigos e assumirem uma participação de destaque no decorrer do trabalho. Por isso, torna-se necessária uma breve identificação deles antes do início do texto em si. Meus interlocutores centrais foram aqueles considerados por todos os Kalankó como os principais conhecedores dos cantos nativos, e descendentes das primeiras famílias no povoamento da área indígena, especialmente de Santina, que é filha do primeiro casal que chegou à região e de seu filho Antonio Grande, que pertence à terceira geração Kalankó. Ambos tidos como grandes cantadores do passado. O pajé Tonho Preto talvez tenha sido meu principal interlocutor. Ele tem 50 anos e é, atualmente, considerado o melhor cantador da comunidade, liderando os rituais na aldeia. 5 Seu filho, o cacique Paulo, mostrou-se, também, bastante amigo. Tem 28 anos e é cacique há seis. Junto com Edmilson, ele é visto como um dos grandes mestres cantadores de todo o alto-sertão. Edmilson tem 51 anos e é responsável pelo espaço ritual de Lageiro do Couro, aldeia central Kalankó. Seu filho, Dionísio, mais conhecido como Culezinha, tem 30 anos e é estimado como um dos grandes cantadores de um dos gêneros musicais da comunidade, o toré. Sua tia D.Jardilina, tem 50 anos. Ela mora em Lageiro do Couro e me ensinou bastante sobre o serviço de chão, outro gênero Kalankó. Por fim, D. Joana, cunhada de Culezinha, tem 67 anos e é tida como uma das grandes conhecedoras das músicas que se cantava no passado. No item 2.2.1. identifico-os um pouco mais, a partir da trajetória de vida de cada um e da posição que ocupam atualmente na comunidade. 6 Sumário 1. Agradecimentos 3 Nota sobre a grafia dos termos nativos 4 Nota sobre a grafia dos etnônimos indígenas 4 Nota sobre meus principais interlocutores 5 Resumo / Abstract 13 Introdução 14 Pequena discussão sobre a etnologia produzida no Brasil – 19 Tematizando o Contato 1.1. 1.2. Nota acerca da Etnologia elaborada sobre o Sertão nordestino Sobre a Música na etnologia das TBAS 25 30 2. As Comunidades Indígenas do Alto-Sertão Alagoano 39 2.1. 2.2. 2.2.1. 2.2.2. 2.3. 2.3.1. 2.4. Trabalho de Campo Os Amigos-Interlocutores Cantadores Dançadores Os Kalankó Organização Política Interna Os Outros Povos da Região 46 48 48 56 57 66 70 3. História e Genealogia – De Brejos dos Padres para Januária 75 3.1. 3.2. 3.2.1. 3.3. 3.4. 3.4.1. 3.4.2. A Chegada das Primeiras Famílias Dinâmica das Famílias Kalankó A Formação de Núcleos de Poder O Tempo Kalankó e suas Ramas Rede Social no Alto Sertão Alagoano As Festas Indígenas Repertório Indígena Sertanejo 75 77 80 81 84 87 88 4. Da Terra ao Espaço – A música como pivô de um complexo 90 ritual indígena 4.1. 4.1.1. 4.1.2. 4.2. 4.2.1. 4.2.2. Espaço – O mundo Encantado Coragem e Proteção – A Força Encantada Idéias e Cabeças A Terra – Lugar de Índio Base Ritual Instrumentos Musicais 92 98 99 100 112 113 7 4.3. O Terreiro: Entre o Mato e Cruz – ritmo e espaço na elaboração 114 do mundo encantado 5. A Idioma Kalankó 118 5.1. 5.2. 5.3. 5.4. 5.4.1. 5.4.2. 5.5. Etnos Músicos e Logia – Uma teoria nativa da música A Música no Alto-Sertão nordestino A Teoria Musical Kalankó – Uma aproximação Preliminar Categorias Voco-Sonoras – da voz humana para a voz encantada O Isturro A Voz O Poder da Música: a força encantada organizada a partir da voz 118 119 122 132 142 143 144 Ritual Musical e o Complexo da Jurema – transformações 146 6. indígenas na caatinga alagoana e formas de elaboração de uma indianidade 6.1. 6.2. 6.2.1. 8 O Complexo da Jurema Sistema Vivo – o Ciclo da Jurema entre os Kalankó Obrigações 146 148 153 Considerações Finais 155 Desnaturalizando uma Classificação - O Sertanejo vai virar Índio e o Índio vai virar Sertanejo Bibliografia 158 162 Documentos Sonoros 173 Anexo I – Relação dos principais eventos citados no texto 174 Anexo II – Relação das famílias e indivíduos Kalankó: dois 185 estudos Anexo III – Amostra dos Gêneros Musicais Kalankó em CD 202 Lista dos Diagramas de Genealogia. Diagrama 1 - Formação dos núcleos familiares no Assentamento 78 Salgadinho Diagrama 2 - Formação dos núcleos familiares do município de Santa 79 Cruz Diagrama 3 - Formação de Núcleos de Poder entre os Kalankó 81 Diagrama 4 - Conexão entre os grupos Kalankó, Geripankó e Koyupanká 85 Diagrama 5 - Conexão entre a família Higino Kalankó e Gabão Geripankó 86 8 Diagrama 6 - Conexão entre a família Higino Kalankó e Peba Geripankó 87 Lista dos Quadros Analíticos. Quadro 1 – Mundo Encantado 96-98 Quadro 2 – Elementos dos Gêneros Voco-Sonoros 142 Quadro 3 – Comparativo de Atuação da Força Encantada 145 Lista dos Esquemas Utilizados. Esquema 1 - Árvore Pankararu 73 Esquema 2 – Complexo Ritual 92 Esquema 3 – Gradação de Poder 99 Esquema 4 – Estrutura do Toré 104 Esquema 5 – Pontos de Poder no Terreiro 107 Esquema 6 – Movimentos dos Praias 108-109 Esquema 7 – Sistema Terminológico 128 Esquema 8 – Da voz humana para a voz encantada 143 Esquema 9 – Ciclo da Jurema entre os Kalankó 153 9 Lista das Músicas Citadas Toré 1 – Caboclo tá no mato 50 Toré 2 – Abre-te porta, janela 88 Toré 3 – Foi naquela mata 100 Toré 4 – Eu subi lá no alto da serra 102 Toré 5 – No céu, na lua cheia 102 Toré 6 – Caboclo de pena 133 Toré 7 – Em cima daquela serra 133 Toré 8 – Vamô minha gente 133 Toré 9 – Urubu de serra negra 134 Toré 10 – Somos índios brasilieros 135 Praiá 1- Linha 136 Praiá 2 – Linha 136 Praiá 3 – Linha 138 Praiá 4 – Linha 138 Praiá 5 – Parelha 140 Lista dos Mapas. Mapa 1. Localização Kalankó no Alto-Sertão Alagoano 15 Mapa 2. Antigo Aldeamento de Brejo dos Padres/Pernambuco 45 Mapa 3. Município de Água Branca/Al – Comunidades Kalankó 58 Mapa 4. Comunidades Indígenas do Alto-Sertão Alagoano 74 Relação das Fotos. Foto 1 - Tonho Preto 50 Foto 2 – Paulo 51 Foto 3 – Edmilson 52 Foto 4 - Culezinha 53 10 Foto 5 - Rodrigo e Henrique 53 Foto 6 - D. Jardilina 55 Foto 7 - D.Joana 56 Foto 8 - Time de futebol da aldeia 62 Foto 9 - Jogo de Cartas 62 Foto 10 – Casa Kalankó I 64 Foto 11 – Casa Kalankó II 64 Foto 12 – Cozinha Kalankó 65 Foto 13 – Pajé guiando o Praia 67 Foto 14 – Toré das Crianças I 69 Foto 15 – Toré das Crianças II 70 Foto 16 – Agamenon 71 Foto 17 – Tia Maria 76 Foto 18 – Pintura Corporal 91 Foto 19 – Altar 93 Foto 20 – Toré I 104 Foto 21 – Toré II 105 Foto 22 – Poró Koyupanká 106 Foto 23 – Dançador 110 Foto 24 – Praiá I 111 Foto 25 – Praiá II 111 Foto 26 – Instrumentos Musicais 114 Foto 27 – Oca 116 Foto 28 – Seu Zé Antonio 124 Foto 29 – A Pisada 129 Foto 30 – A Puxada 130 Foto 31 – Postura do Cantador I 131 Foto 32 – Postura do Cantador II 131 Foto 33 – Campiô 149 Foto 34 – Veste 151 Foto 35 – Cinta 151 11 Foto 36 - Arco e Flecha 152 Foto 37 – Saia 152 Foto 38 – Ritual do Umbu 176 Foto 39 – Senhora Koyupanká 178 Foto 40 – Índia Kalankó 179 Foto 41 – Desfile em Água Branca/Al 182 12 Resumo Esta dissertação é uma etnografia da música entre os Kalankó, grupo que vive no altosertão alagoano, mais especificamente no município de Água Branca/Al. Trata-se de um estudo exploratório da teoria musical nativa, que corresponde à identificação, taxonomia e classificação das coisas musicais. Este trabalho está baseado nos dados obtidos em três viagens a campo: outubro-novembro de 2001, agosto-setembro de 2003 e especialmente março-junho de 2005 e busca ainda compreender como a música nativa se relaciona com a elaboração de uma identidade indígena. Além disso, neste contexto, procura-se entender como a música age como o pivô de um complexo ritual que liga o sistema mitocosmológico a alguns domínios artísticos, especialmente a dança, complexo este que age como um sistema de comunicação entre os povos indígenas da região. Abstract This dissertation is an ethnography of the music among the Kalankó, group that lives in the alagoano high-hinterland, more specifically in the city of Água Branca/Al. It is an exploratory study about the native musical theory, that corresponds to the identification, taxonomy and the classification of musical things.This work is based upon three field works: october-november, 2001; august-september, 2003 and march-june, 2005 and try to understand the relation between music and the elaboration of an indigenous identity. Moreover, in this context, tries to compreend music as pivot of a ritual complex that binds the myth-cosmological system to some artistic domains, especially the dance, this complex that act as an communication system amongst the indigenous peoples of the same region. 13 Introdução “Os povos aqui do sertão ... é uma dança ... uma música ... é tudo parente ... é um só .... as música só tem pequena diferença”. Essa afirmação, feita numa tarde de sol escaldante na caatinga alagoana, por D. Joana, índia Kalankó grande conhecedora dos cantos de antigamente, traz diversas idéias implícitas sobre o que é ser ou não ser índio no alto-sertão alagoano. O que exatamente significa isso? O que é ser índio nesta região? Essa dissertação busca contribuir para o entendimento desta questão, tomando por base a idéia de que a cultura está intimamente ligada ao universo político, neste sentido não se podendo deixar de levar em conta seu papel na emergência e organização dos grupos étnicos, o que Carneiro da Cunha (1986) pioneiramente postulou. Parto também do princípio de que a questão identitária – relativa a índios ou não, no nordeste e alhures não pode ser abordada de maneira estática. Desta forma, a problemática de um grupo ser X ou não, deve antes ser equacionada em termos processuais, ou de ele devir X ou não. Finalmente, tomo como fundamento uma posição crítica em relação à natureza da categoria índio no Brasil, tão indissoluvelmente ligada que ela está ao mundo do adventício ocidental. Os Kalankó se dizem indígenas assentados na crença numa origem comum que os liga aos aldeamentos missionários. E também na prática de um complexo ritual, no qual a música é o pivô que liga a mito-cosmologia a alguns outros domínios tipicamente artísticos, especialmente à dança. Algumas outras pessoas da região, também ligadas às famílias originárias dos aldeamentos missionários, se identificam e são classificadas, porém, como não-índias. Note-se que elas não se apropriam nem da música nem do complexo ritual referidos. 14 Mapa 1 – Localização dos Kalankó no Alto-Sertão Alagoano. 15 Assim, ser índio no alto-sertão alagoano, ou mesmo em algumas outras partes do país, está relacionado a uma forma de classificação social, elaborada pela sociedade nacional – da qual os Kalankó fazem parte, o que não significa dizer que são parte - e utilizada pelo Estado-nação, e que toma a prática de alguns marcadores culturais específicos como critério distintivo. Esta classificação, entre outras coisas, é responsável por conceder ou limitar direitos a alguns contingentes populacionais. No nordeste, por exemplo, ela exprime a oposição: índio / não-índio, na qual a maior parte do contingente populacional é classificada na segunda opção, eximindo o estado de suas responsabilidades sociais, principalmente de garantia da terra. No alto-sertão alagoano, cinco comunidades foram oficialmente re-classificadas como povos indígenas e “ressurgiram”2 para a sociedade nacional a partir da década de 1980. Isto possibilitou a elas a reivindicação de direitos previstos por lei. Ser ou não índio na região está, portanto, longe de ser uma essencialidade. É uma polêmica, sempre em processo, que tem como mote a atuação e validação de algum sistema cultural diferenciado que marque diferenças em relação a outras populações. No caso aqui estudado, um sistema musical particular, ligado a um complexo ritual determinado. Este sistema musical mostra-se, assim, relevante politicamente, ao articular e distinguir tais coletividades, colaborando para a formação de unidades étnicas (WEBER, 1999: 267-77), nas quais é fundamental a consciência de orientação mútua, sobretudo na 2 Ressurgir se refere à reemergência pública e intencional, tendo como destinatários o estado-nação e a sociedade nacional, das populações que passaram a se afirmar, e demandar reconhecimento, como indígenas. Isto aponta para um processo – polêmico entre os próprios povos indígenas da região - de resgate ou ressurgimento cultural, como se tais povos e culturas não existissem antes. Levando a polêmica em conta, os grupos indígenas dali hoje preferem o rótulo de “resistentes”. Isto, a partir do I Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial, ocorrido entre 15 e 20 de maio de 2003, em Olinda/Pe. 16 esfera política, dando origem à “comunidades políticas” (: 270). Estas são entendidas como “nós coletivos imaginados”, que se constituem à medida que compartilham a crença numa origem comum e em alguns modos de atuação no mundo, e se reconhecem em oposição ao surgimento de diferenças conscientes em relação a terceiros (WEBER, 1989: 79-80). É objeto desta dissertação realizar uma etnografia exploratória do povo Kalankó e descrever, de maneira preliminar, sua teoria musical, tentando entender como ela se relaciona com a afirmação de uma identidade diferenciada. No primeiro capítulo faço uma breve revisão da literatura pertinente à presente pesquisa, procurando desenhar seu lugar na etnologia (incluindo a etnomusicologia) produzida sobre a região, por mim compreendida como setorial no contexto da etnologia das Terras Baixas da América do Sul (TBAS). No capítulo dois, apresento os Kalankó e as quatro outras comunidades indígenas do alto-sertão alagoano. No capítulo três, investigo a construção e uso de uma história Kalankó, a qual é baseada num sistema de genealogias que os ligam ao antigo aldeamento de Brejo dos Padres/Pe, no século XIX. A partir daí, apresento um estudo preliminar sobre a música Kalankó. Primeiro, focando-me no complexo ritual, no qual a música é o pivô que liga a mito-cosmologia tipicamente à dança. E em seguida, descrevendo a teoria musical nativa, constituída por um sistema de identificação, nomenclatura e classificação das coisas musicais. Por fim, penso como estes dados se relacionam com a elaboração e afirmação de uma identidade diferenciada. Esta dissertação está baseada nos dados bibliográficos e etnográficos coletados em três momentos diferentes: outubro-novembro de 2001, agosto-setembro de 2003 e especialmente março-junho de 2005. Nestes períodos, realizei trabalho de campo junto aos Kalankó, mantive contato com os outros quatro povos indígenas da região, viajei para 17 os núcleos urbanos mais próximos e visitei as principais bibliotecas nordestinas. Devido à limitação do tempo, reservo para trabalhos futuros a análise e interpretação etnomusicológicas baseadas em transcrições musicais. 18 Capítulo 1 - Pequena discussão sobre a etnologia produzida no Brasil – Tematizando o Contato. Tentar descrever um sistema cultural indígena no alto-sertão nordestino, até há pouco tempo, não era comum3. Na maioria dos casos os trabalhos ali se concentram numa linha de pesquisa que privilegia as relações interétnicas, centrando-se numa antropologia política, na qual a territorialização4 é o critério central para a constituição do grupo étnico. Estes estudos têm por base alguns conceitos da antropologia inglesa e norteamericana, principalmente aqueles vinculados à identidade, e posteriormente, etnicidade5, e elaboram uma etnologia na qual o grupo étnico é anterior ao grupo social e a cultura é uma metáfora política que só se torna autêntica em razão de uma territorialização. Do lado desta antropologia que estuda as relações interétnicas6 – entendida por alguns como sinal marcante da antropologia brasileira (RAMOS, 1990; 1999) -, constrói-se, ainda, um conhecimento em consonância com abordagens históricas (RAMOS, 1998), que se tornam relevantes para entender os processos pelos quais alguns grupos indígenas transformaram-se no imaginário nacional, de sujeitos de última categoria - empecilhos para o progresso do país – o sertanejo, em agentes políticos, o índio. 3 Como exceção, posso citar Ribeiro (1992) que descreve o sistema encantado e o imaginário Pankararu/Pe, Cunha (1999) e Pereira (2004), que trabalham a música de alguns povos indígenas, além de algumas tentativas abortadas, como Oliveira Junior (1998) que afirma a importância da dança como sistema cultural, mas acaba por apenas narrar os eventos em que ela aparece como sinal diacrítico com relação ao não-índio. 4 A noção em tela se origina no trabalho de Morgan (1980), encontrando em Fortes e Evans-Pritchard (1981) tematização importante. Brevemente falando, ela tem base na distinção entre formas de organização sóciopolíticas relacionadas ao parentesco e ao território. A territorialização aponta para um processo de reorganização social que compreende os domínios político e cultural, nestes incluindo-se a memória coletiva e a percepção de mundo dos sujeitos. 5 A grande maioria dos estudos em referência segue Barth (1969) quando este coloca que um grupo étnico é um tipo organizacional em constante interação com outros, utilizando-se de diferenças culturais para fabricar suas individualidades. 6 As relações sociais abordadas por este tipo de etnologia giram em torno tipicamente daquelas constituídas com o estado, a sociedade civil, as organizações não governamentais e entre os próprios indígenas. 19 Alguns autores discordam deste tipo de etnologia. Para Viveiros de Castro (1999), é reconhecidamente esta preocupação com o contato com a sociedade brasileira, a principal característica desta perspectiva etnológica – e a partir daí, seu ponto fraco – já que para ele o ponto de vista predominante não é o do índio. A visão nativa só existiria em oposição hierárquica a do estado e a história seria contada pelo estado. Deixar-se-iam de lado, portanto, ricos universos simbólicos e organizações sócioculturais particulares de extremo interesse e não se atentaria para as estruturas ou os significados nativos, mas para contextos históricos específicos. Isto reduziria o universo cultural e sociológico ameríndio a um processo único e a uma única categoria – o grupo étnico. Além de a uma única condição - a territorialização (VIVEIROS DE CASTRO, 1999). A formação da etnologia brasileira é baseada fortemente na perspectiva das relações interétnicas. Baldus (1937), por exemplo, discute o papel do índio na formação cultural do país a partir da teoria da aculturação7. Esta teoria privilegia o estudo do conjunto de fenômenos resultantes do intercâmbio cultural, direto e contínuo, de grupos culturais distintos, no qual a cultura não-índia impõe-se e o índio se integra à sociedade capitalista. Baldus observa dois sistemas aculturativos: um apontando a mudança parcial da cultura, através da assimilação cultural, e outro referente à mudança total da cultura. Além disso, classifica o contato em direto e indireto e contínuo e intermitente. A partir do meio do século XX, a produção com base na referida teoria cresceu significativamente no Brasil. Wagley e Galvão (1949) estudam os Tenetehara/Ma, Altenfender e Oberg (1949) os Terena e Oberg (1949) os Cadiueu/Mt, tendo como preocupação fundamental a caracterização das diferentes fases do contato. Nesta direção, 7 A referida teoria encontra seu chão inicial entre antropólogos norte-americanos a partir dos anos 1930 do século passado (REDFIELD, 1936). 20 recorrem à memória do grupo, dando prioridade à análise, entretanto, do segmento social em contato com o índio. O trabalho de Altefender e Oberg sobre os Terena destaca a expansão pecuária no sul do Mato Grosso, segmento que manteve contato com o nativo (SCHADEN, 1969: 19-21). Em 1953, a partir da 1°. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Museu Nacional, delinearam-se novas diretrizes para os estudos do contato interétnico. As exigências apontaram para investigações com uma perspectiva mais ampla, analisando a rede de interligações culturais resultantes do contato e observando as mudanças ocorridas nas várias esferas culturais desencadeadas pela introdução de elementos estranhos. Alguns trabalhos tornaram-se base desta linha de pensamento. Ribeiro (1957) aborda a demografia de diversas etnias em contato com o branco. Este estabelece quatro tipos de grupos: integrados, em contato permanente, intermitente e isolados. Outro autor importante, Florestan Fernandes8 (1960), analisa a sociedade Tupinambá e descreve as diferentes formas de reação destes índios frente ao encontro com o europeu. Nesse período, surgiram também, os primeiros trabalhos que se apoiaram no que Viveiros de Castro (1999) denomina como etnologia “clássica”. Este tipo de etnologia é elaborado a partir das particularidades encontradas entre os povos indígenas do continente, os quais não se encaixavam nas teorias etnológicas desenvolvidas até este momento, baseadas principalmente nos estudos das linhagens africanas e das alianças matrimoniais asiáticas. A partir de então, a etnologia brasileira inaugurou o estudo de novos temas antropológicos, como a onomástica, o dualismo, a guerra e a morte. 8 Autor emblemático na construção da etnologia brasileira, já que foi um dos fundadores da etnologia clássica e ao mesmo tempo um dos inspiradores da etnologia do contato (VIVEIROS DE CASTRO, 1999: 114). 21 Estas novas investigações giravam em torno da crítica aos estudos de aculturação, tendo ênfase no estudo dos povos Jê. Lévi Strauss (1996 [1955]), por exemplo, enfoca os Cadiueu e mostra como suas pinturas corporais, estão intimamente relacionadas com a forma hierarquizada da sociedade, possuindo, portanto, uma função sociológica. Nimuendaju (1954; 1987) aborda os Guarani e foca sua análise nos mitos. Ele também investiga o dualismo entre os Apinajé, que age a partir de um esquema de descendência paralela, no qual os homens descendem dos homens e as mulheres das mulheres, formando grupos aparentemente disfuncionais, evidenciando que o dualismo pode organizar mais do que as clássicas trocas matrimoniais. Alguns outros temas particulares à etnologia sul-americana foram, então, sendo elaborados. Clastres vê na violência, entre os Guarani, o elemento formador de uma rede social de afinidade e reciprocidade, garantindo a autonomia de cada grupo (1988 [1974]). Para ele, a guerra age como elemento positivo para a elaboração da rede social. Ao mesmo tempo, a etnologia brasileira continua desenvolvendo análises pautadas no estudo das relações interétnicas. Cardoso de Oliveira (1964) coordenou o projeto “Estudo de Áreas de Fricção Interétnica no Brasil”. A partir da crítica aos trabalhos baseados na idéia da aculturação, ele elaborou o conceito de fricção interétnica, referindo-se ao “contacto entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes, conflituais, assumindo esse contacto muitas vezes proporções “totais”, i.e., envolvendo toda a conducta tribal e não tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica (1964: 128). O projeto “Harvard / Brasil Central”, capitaneado por Maybury-Lewis em associação com o mesmo Cardoso de Oliveira, analisa também as transformações pela quais alguns povos indígenas passaram no processo de contato. 22 Este projeto estabeleceu, ainda, ligações com outros pesquisadores interessados nas sociologias nativas e cujos trabalhos influenciaram as investigações sobre as TBAS. Rivière (1969, 2001), por exemplo, produz abordagens ligadas à relação mito-história, à cosmologia e aos ritos. Já DaMatta (1973) e Carneiro da Cunha (1978), dedicam-se especialmente ao enfoque da dimensão simbólica. Esta dimensão simbólica acabou assumindo maior importância nas investigações etnológicas e a cosmologia foi eleita o espaço privilegiado de análise deste simbolismo. Isto gerou diferentes tipos de abordagens e permitiu levantar algumas questões teóricas relevantes para a formulação de modelos interpretativos adequados à comparação entre as sociedades indígenas das TBAS. Assim, novas temáticas, como o animismo e o perspectivismo, recentemente, somaram-se aos temas analisados na etnologia da região. Descola (2000) trata do animismo. Ele investiga como as populações ameríndias estabelecem relações sociais com seres invisíveis e defende que a natureza é palco de interação social, sendo responsável pela organização cognitiva dos Achuar da Amazônia. O mundo natural passa, assim, de objeto inanimado a agente social e a sociedade se objetifica a partir da relação com ele. Já Lima (2002) analisa a sociedade Juruna/Mt, questionando a perspectiva antropológica que separa natureza e cultura. Ela trabalha a partir de abordagens ligadas ao estudo do perspectivismo e considera que tanto índios quanto alguns animais são sujeitos sociais, ambos elaborando um mundo com multiperspectivas. Assim, se um Juruna enxerga o porco do mato como tal, o inverso também pode ser verdadeiro. Todos estes novos temas elaboraram uma etnologia renovada e fonte para muita antropologia produzida em outros continentes. Não por acaso, o próprio Levi Strauss assumiu publicamente, numa edição da revista suiça Nouvel Observateur Hebdo (número 23 1979), que é talvez do Brasil as maiores contribuições atuais à disciplina, influenciando a etnologia produzida em todas as TBAS. Os estudos das relações de contato interétnico, porém, não pararam de produzir análises relevantes sobre a questão indígena brasileira. Pacheco de Oliveira (1993; 1995; 1998; 2000), por exemplo, seguindo uma linha baseada na antropologia política, investiga os processos de etnogênese da região nordeste, apresentando estas coletividades étnicas como sujeitos históricos plenos (1999a), os quais a partir de estratégias sociais específicas, se re-elaboram como indígenas. Suas investigações adotam uma perspectiva processualista, nas quais a relação entre a etnicidade e a territorialização configuram os processos de ressurgimento étnicos da região. Neste contexto, a metáfora da “viagem de volta” (1999) torna-se importante para evidenciar a re-elaboração de uma tradição, baseada em elementos culturais que remetem ao passado. Ele ainda trabalha a partir de uma antropologia histórica, na qual propõe situar as coletividades indígenas na contemporaneidade, e investigar não só os protagonistas sociais dos processos de emergências identitárias, mas também as condições conjunturais da pesquisa antropológica. Hoje, as linhas de pesquisa que se estabelecem na abordagem das TBAS têm a tendência de unir as duas perspectivas etnológicas, trabalhando temas como identidade, agência e mudança, e seus desdobramentos, como alteração, subjetivação e transformação. Elas incluem o estudo de temas como a mitologia, o xamanismo e as relações de parentesco, mas também a monetarização da economia, a migração para a cidade, a conversão religiosa e as políticas de identidade. Um bom exemplo desta etnologia é o trabalho intitulado, “Pacificando o Branco: Cosmologias do Contato no Norte-Amazônico” (2002), organizado por B. Albert e Alcida R. Ramos, no qual, a partir 24 das cosmologias nativas, busca-se estudar as relações de contato do ponto de vista dos índios. Destaco também Gow (2001), que estuda os Piro da Amazônia peruana. Ele demonstra que a situação vivida por eles é fruto da transformação histórica, e também um processo inerente à estrutura cognitiva desta população. E destaca, ainda, que os mecanismos de processamento cognitivos internos ao grupo, a partir da categoria nativa de “mundo vivido”, elabora a idéia de um sistema em estado de transformação. 1.1. Nota acerca da etnologia elaborada sobre o Sertão Nordestino. Para Pompa (2002: 339-340), “a antropologia não foi generosa com os grupos indígenas do sertão nordestino colonial, que não tiveram seus Métraux e seus Clastres”9, o que colaborou para que eles desaparecessem dos registros nacionais por volta de 1870. A própria historiografia brasileira, apesar da grande quantidade de fontes disponíveis (POMPA, 2002), ignorou por muito tempo a presença indígena no sertão nordestino, classificando o contingente populacional da área a partir da categoria social de sertanejo. O que sempre eliminou parte da responsabilidade social do estado, negando-lhes uma série de direitos previstos por lei. Este processo de invisibilidade social começou a mudar por volta da década de 1930, a partir da relação constituída, entre os Fulni-ô, a igreja, na figura do padre Alfredo Dâmaso10, o SPI – Serviço de Proteção aos Índios e alguns etnólogos. E, além disso, 9 Os textos holandeses, jesuíticos e capuchinhos, sobre os Tapuia, permaneceram restritos a seus círculos de produção intelectual. 10 Dâmaso foi capelão militar das tropas do Norte. Seu livro publicado em 1931, no Rio de Janeiro, forneceu um dos primeiros documentos aceitos pelo estado brasileiro, reconhecendo a questão dos “remanescentes indígenas” no Nordeste. 25 valeu-se do contexto modernista brasileiro, no seio do qual o país preocupava-se em registrar as diversas manifestações culturais nordestinas11. As primeiras análises etnológicas foram produzidas na mesma década de 1930 e trouxeram novamente os indígenas nordestinos à tona. Estas análises colaboraram já nos primeiros processos de reconhecimento étnico, elegendo o ritual do Toré como sinal diacrítico de identificação indígena (POMPEU SOBRINHO, 1934; DâMASO, 1935; OLIVEIRA, 1938, 1941). Neste mesmo período e por mais algumas décadas, um outro tipo de análise, esta sob a perspectiva folclórica12, passou a ser o instrumento de apreensão e entendimento da população brasileira, produzindo inúmeros trabalhos sobre os rituais praticados na região. Estas análises, porém, entendiam a cultura destas comunidades como blocos estáticos e fragmentários, na qual qualquer transformação ou incorporação cultural era vista como 11 Em 1937, Mário de Andrade, então Diretor de Cultura de São Paulo, idealizou e enviou uma missão de pesquisa para a região Norte e Nordeste brasileira, com o objetivo de registrar manifestações culturais. Este trabalho ficou conhecido como Missão de Pesquisas Folclóricas, e em março de 1938 chegou à região de Tacaratu, antigo aldeamento de Brejo dos Padres/Pe, onde registrou cantos e danças Pankararu. Hoje, temos acesso ao material produzido por esta expedição no Centro Cultural São Paulo. Além de um disco reeditado, o qual contém parte das canções coletadas naquele período (SANDRONI, 2004). 12 A música sempre teve papel de destaque nos estudos folclóricos, que se interessavam especialmente pelos cantos populares nordestinos. Estes estudos ajudaram a formular o conhecimento que temos sobre o universo sonoro da região, no qual a idéia principal é a de que a música indígena não contribuiu para a formação da música nordestina. A música brasileira passou a ser entendida, então, como sendo composta unicamente pelo ritmo africano e pela melodia e harmonia lusas (MENEZES BASTOS, 2002), enquanto a musicalidade nativa era desqualificada como música nacional, apesar de ter sempre dado sinais de ser matriz importante de boa parte da música produzida em diversas regiões brasileiras, inclusive no nordeste (SIQUEIRA, 1951; CAMÊU, 1977). Mario de Andrade (1928, 1935, 1976, 1984) elegeu a música como elemento cultural relevante para a compreensão da identidade nacional. Para ele, uma música essencialmente indígena – ou mesmo essencialmente portuguesa ou negra - não representava a música popular brasileira, que era fruto da mistura. A música indígena era parte do passado, tendo contribuído minimamente para a formação da música popular brasileira. Apesar de ser a visão preponderante até então, neste mesmo período alguns trabalhos destoam da linha de pensamento que desconsidera a música indígena na formação da música popular. Siqueira (1951) é talvez um pensador quase solitário e tenta mostrar a grande apropriação da música indígena na formação da musicalidade nordestina. Ele analisa a estrutura musical dos dois ambientes musicais (índio e sertanejo) através da comparação de elementos tais como a quadratura rítmica, a direção da linha melódica e a estrutura escalar e mostra a apropriação da música ameríndia na música da região. 26 perda. O que colaborou para a formação do conhecimento do índio “aculturado” e “integrado”, concepção que foi responsável, no século XX, pela idéia - quase nunca problematizada – da eliminação do indígena nordestino na formação da cultura brasileira (CASCUDO, 1967, 1971; FERNANDES, 1938). Câmara Cascudo, por exemplo, citando Pereira da Costa (CASCUDO, 1979), também se refere ao Toré, definindo-o como uma flauta de taquara e uma dança indígena do agreste pernambucano. Ele ainda elabora uma grande enciclopédia da cultura popular nordestina (1967, 1971), arrolando uma gama imensa de elementos constituintes dos eventos populares (desde uma listagem dos viajantes que relataram tais ritos até uma série de itens culturais independentes, tais como práticas medicinais, dança e música). Fica claro que para ele a cultura brasileira era composta pela mistura de diversos povos, mas o índio era parte do passado. Gonçalves Fernandes (1938), outro folclorista, escreve sobre as práticas mágicas no nordeste brasileiro. Ele identifica alguns elementos e atores sociais fundamentais à eficácia das manifestações populares, como o feiticeiro e o curador, cujos papéis são comparados ao do médico ocidental. No mesmo período, alguns trabalhos etnológicos estudaram as poucas comunidades que eram identificadas como indígenas, como os Pankararu, os Fulni-ô e os Xukuru, todos de Pernambuco (PINTO, 1956; HOHENTHAL Jr, 1954, 1960). Nestas investigações, o Toré continua sendo entendido como marcador de identidade diferenciada, sendo considerada a dança mais praticada entre os chamados caboclos nordestinos. Hohenthal (1954) ainda divide o Toré em dois tipos, um público, realizado como brincadeira e outro privado, praticado somente entre os índios. Os trabalhos ainda eram em pequeno número e com exceção dos grupos citados o resto da população indígena era considerada extinta. Somente a partir da década de 1990, 27 a perspectiva etnológica fortaleceu sua presença no sertão nordestino, desenvolvendo análises, constantes e relevantes, a partir de conceitos como identidade ou, posteriormente, etnicidade13 e territorialização. Estes trabalhos contribuíram para o fortalecimento da abordagem que veio a ser denominada como processo de etnogênese, que diz respeito ao modo pelo qual os sertanejos são re-classificados em índios a partir de alguns elementos culturais “re-aprendidos” (OLIVEIRA, 1993, 1995, 1999, 1999 a, 2000; ARRUTI, 1999, 2004; FOTI, 2000), especialmente o complexo ritual do Toré, no qual a música exerce papel relevante. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os Pankaru / Ba, que compreendem cerca de 60 pessoas no município de Bom Jesus da Lapa, na A.I. Vargem Alegre, identificada desde 1985 (RICARDO, 1991: 373; CEDI, 85-86: 259), e com os Kantaruré/Ba, originários das missões do São Francisco e que compreendem 30 famílias vivendo em Batida, no município de Glória. Estas análises contribuíram diretamente para o surgimento de dezenas de outros povos indígenas antes desconhecidos – entre eles, os cinco povos aqui estudados - e para inserir a questão indígena nordestina novamente nas discussões político-nacionais14. O que passou a ser fundamental para garantir-lhes a reivindicação de certos direitos previstos por lei, especialmente a territorialização. A etnologia continuou aprofundando os trabalhos na região. Os estudos dedicaram-se, então, a novas abordagens, preocupando-se com a organização social destas populações – principalmente com o faccionalismo – e com seu universo simbólico e ritual, 13 As análises no campo da etnicidade tiveram seu grande desenvolvimento na década de 1960 e seu ápice com Barth (1969) que partiu de uma perspectiva interacionista. Ele procurou de-construir o conceito de aculturação, que previa o fim das ditas minorias étnicas, a partir de uma concepção estática de cultura, na qual o isolamento era parte fundamental para a manutenção cultural e o contato o elemento desagregador. No Brasil, a obra de Roberto Cardoso de Oliveira, pode ser classificada como aparentada à de Barth. Um trabalho entre tantos outros, que evidencia isso é a dissertação que Cardoso de Oliveira orientou, no Museu Nacional, intitulada, “Índios Camponeses: Os Potiguara da Baía da Traição” (AMORIM, 1971). 14 Desde então, são mais de 64 povos remanescentes (nacionalmente), com o nordeste somando hoje cerca de 41 povos indígenas e mais de 170 mil índios, representando a segunda maior população indígena por região brasileira (CIMI, 2001: 163). 28 especialmente do ponto de vista da performance. Neves (2004), por exemplo, investiga nas performances do Toré, as emoções e sentimentos responsáveis pelo comportamento individual dos Xukuru de Pesqueira/PE, buscando recompor a delimitação de fronteiras culturais interiores ao grupo e a atribuição de papéis sociais específicos aos indivíduos. Já Valle (2004) trabalha a partir da diversidade contextual e dinâmica do Toré, mostrando os diversos significados presentes no rito, além de aspectos sociais, culturais e históricos. Ele trabalha com os grupos Tremembé e Tapeba do Ceará. Enquanto Mota (2004) analisa a performance e significação do Toré entre os Xocó/Se e os Xocó-Kariri/Al, buscando interpretar o fenômeno social como texto nativo. É a partir das narrativas que ele busca os símbolos e signos que ajudam a construir a memória coletiva do grupo, o que contribuiria para a invenção de tradições que legitimariam a indianidade da comunidade. A discussão sobre a invenção de tradições, também está presente no texto de Palitot e Souza (2004). Eles analisam o Toré, a partir do discurso Potiguara e percebem que a invenção cultural não deve desmerecer a antiguidade e o valor social da tradição, já que justamente por ser elemento de antiguidade cultural, pode melhor construir uma nova tradição – legitimada a partir deste passado ancestral (HOBSBAW, 1997). Hoje, se dezenas de comunidades nordestinas estão reconhecidas oficialmente como indígenas, ainda é claro que os estudos produzidos sobre a região privilegiam a análise da relação índios/não-índios, deixando ainda de lado o rico universo simbólico sertanejo e indígena. Proponho, então, como já foi apontado em outras obras (GRUNEWALD, 2004; PEREIRA, 2004; RIBEIRO, 1992; OLIVEIRA JUNIOR, 1998), direcionar esta dissertação para a percepção de mundo de uma população: os Kalankó. E para um aprofundamento num sistema cultural específico: a música. Entendendo a cultura, para além da territorialização, como elemento formador do grupo étnico imaginado. 29 1.2. Sobre a Música na etnologia das TBAS15. Os estudos sobre a música ameríndia nas TBAS seguiram as tendências de renovação da etnologia brasileira iniciadas na década de 1970. Estas centram-se na busca do ponto de vista nativo, com relevo para as dimensões cognitivas e simbólicas, com ênfase na mito-cosmologia, e a partir dela, nos diversos nexos da sociabilidade indígena, como por exemplo, a política e as relações de gênero e afeto. As investigações no campo em consideração desenvolveram-se, principalmente, graças ao incremento dos programas de pós-graduação, que incentivaram o desenvolvimento de dissertações, teses e pesquisas em geral. De início, porém, e durante um bom tempo, os trabalhos eram esparsos e concentrados, preponderantemente, em duas regiões: na Amazônica propriamente e no Alto Xingu. E as publicações eram em número pequeno. O trabalho fundador do campo de estudos da música ameríndia nas TBAS foi Menezes Bastos (1999 [1976])16. Fruto de uma dissertação de mestrado, ele trata da música Kamayurá, grupo do Alto Xingu e aborda o metassistema de cobertura verbal da música indígena, mostrando sua atuação como sistema de comunicação intertribal, ao lado das trocas matrimoniais e comerciais (: 27-33). Menezes Bastos (1999 [1976]) investiga aspectos do conhecimento indígena, partindo do princípio de que a percepção – sócio-culturalmente construída – está na base do mundo conceptual (: 101-102; 108), e assim da teoria musical nativa, que abrange um sistema de identificação, nomenclatura e a classificação das coisas do universo musical. Algumas estruturas coreográficas e composicionais que se tornariam recorrentes em diversos outros 15 Sobre a etnomusicologia das três últimas décadas das TBAS, conforme Menezes Bastos (1996, 1999 e 2004). 16 Vale ressaltar que praticamente da mesma época é a tese de doutorado de Smith (1977) sobre os Amuesha do Peru. 30 estudos sobre a música ameríndia (PIEDADE, 1997, 2004; MELLO, 1999, 2005; MONTARDO, 2002; COELHO, 2003) são também identificadas e relacionadas com a teoria Kamayurá de música. São elas: a estrutura mito-música-dança, que entende a música como pivô de um complexo ritual, que “traduz” o mito em dança; a seqüencial, que identifica uma seqüência padrão de músicas, responsável pelo desenvolvimento do rito e a núcleo-periferia, que aponta para uma estrutura musical dialógica, na qual a música feita pelos seniôres, no centro da formação coreográfica, se relaciona com a que é produzida na periferia pelos juniôres. Menezes Bastos (1989), posteriormente, aprofunda sua musicológica Kamayurá. Na sua tese de doutorado, intitulada “A Festa da Jaguatirica: Uma Partitura CríticoInterpretativa”, ele produz uma etnografia densa do ritual do Yawari, realizado em junho de 1981. Nesta etnografia, o autor elabora um modelo musicológico próprio que passa pela análise da estrutura social e da cosmologia, além da descrição detalhada do sistema musical e dos processos de composição nativos. Ele constrói, então, uma teoria da semântica musical, na qual o estudo deve estar baseado no pré-conhecimento da gramática e da fonologia musicais, além de centralizar-se no desvendamento das transformações entre expressão e conteúdo musicais. A partir principalmente do primeiro trabalho, fundador de um campo de estudos, o reconhecimento de que a música é um elemento central para diversos povos indígenas tornou-se clara. Vários estudos vieram, então, a contribuir para o desenvolvimento do campo da etnomusicologia nas TBAS, relacionando a música com outros domínios, como a cosmologia. A relação entre mito e música foi trabalhada, por exemplo, por Werlang (2000; 2001). Ele estuda as relações entre mito e música entre os Marubo, grupo Pano do sudoeste amazônico. Werlang investiga um gênero musical denominado saiti (pode ser 31 traduzido por canto-mito), o qual narra as origens do mundo. Além de nomear as festas nas quais os mitos são cantados e dançados. O autor centra-se no saiti: Mokanawa Wenia, o “canto-mito do surgimento”. A partir daí, ele descreve a estrutura musical deste saiti, composta por uma célula repetida ininterruptamente enquanto a letra é narrada. Esta única célula é dividida em duas frases, cada uma delas combinada por um par de intervalos melódicos. Werlang ressalta que, a partir desta estrutura musical, são expressos elementos fundamentais da cultura Marubo, como os movimentos históricos dos grupos residenciais e a estrutura diametral. O trabalho deixa ainda claro, o papel central dos saiti na elaboração do mundo Marubo. Além de ressaltar a importância do estudo da estrutura musical. O estudo da música ameríndia articulou-se também, ao campo em expansão dos estudos das artes, o qual aponta para sistemas de expressões individuais ou coletivas, a partir de uma determinada estética particular. No trabalho de Gebehart-Sayer (1986), o estudo da música relaciona-se a antropologia estética. A autora aborda os sistemas de crenças dos Shipibo-Conibo, na Amazônia peruana, investigando a relação entre percepção sensorial, apreensão de formas estéticas e procedimentos de cura. Para os Shipibo-Conibo, a cura está ligada a mecanismos sinestésicos, ou seja, na correspondência entre os cantos xamânicos e visões luminosas. É a partir das visões luminosas que o xamã percebe a música, que vai curar o doente. Surgem, então, novos estudos que relacionam a música com outros domínios culturais, como as artes gráficas, a ornamentação corporal, a dança, e a cultura material, a qual foi estudada, por exemplo, por Beaudet (1983), que estuda uma família de instrumentos musicais, dos Waiapi, na Guiana Francesa, ou Velthem (s/d), que trabalha 32 com os Wayana do lado brasileiro e cujo grupo tem uma forte musicalidade, amparada, entre outras coisas, na variedade de instrumentos musicais. O campo das artes verbais foi especialmente trabalhado por alguns autores (ver Urban e Sherzer, 1986), os quais trouxeram abordagens inovadoras, tratando desde as narrativas, do “storytelling”, até outros gêneros de fala. Muitas vezes estes estudos trabalham também com a questão da performance. Basso (1973, 1985, 1987), por exemplo, aborda a arte como performance entre os Kalapálo, xinguanos Karib. Ela investiga como, a partir de determinada forma de expressão verbal, no caso as narrativas que acontecem a partir do “storytelling”, tem-se a transmissão de conhecimentos. Este processo acontece a partir da narrativa Kalapálo, que é baseada no cotidiano do grupo e no uso de recursos da linguagem falada, e constrói realidades paralelas, que são socialmente compartilhadas. Estas realidades paralelas compõem espaços apropriados para reflexão, afirmação da tradição e para a criação do grupo, e são momentos privilegiados de elaboração e transmissão de conhecimentos sócio-cosmológicos Kalapálo. Franchetto (1993) investiga a tradição oral dos Kuikúro, outro grupo Karib xinguano. Seu foco de análise é num gênero de discurso específico, denominado anetâ itaríñu (que pode ser traduzido por “conversa de chefe”) e é relacionado à abertura das grandes festas intertribais. Os próprios Kuikúro definem este gênero voco-sonoro como fala cantada, o que indica que a musicalidade transforma a linguagem, do plano corriqueiro para o plano da denominada língua verdadeira, distinguindo-a “da língua ordinária por ser esta última sempre sujeita à mentira e à ilusão” (BASSO, 1985: 115). Assim, se os Kalapálo, segundo Basso, entendem, a partir da narrativa, a decepção e o engano como fundantes da condição humana, os Kuikúro, segundo Franchetto, vêem no plano da musicalidade, a possibilidade de uma “língua verdadeira”. Isto evidencia como determinadas formas de 33 expressão verbal são entendidas, por determinados povos, como elemento de acesso à verdade ou a um conhecimento privilegiado. Ambos elaborados a partir de uma oposição com relação à fala comum. Seeger (1987) também trabalha com gêneros voco-sonoros. Ele mostra a musicalidade dos gêneros de arte vocal dos Suyá, do Alto-Xingu, e foca seu trabalho na performance e emergência dos processos sociais. Isto, através de um rito de passagem, a “Cerimônia do Rato”, já que para ele o sentido da música só pode ser apreendido na performance musical. Seeger parte do princípio de que existem vários gêneros de comunicação verbal, e a canção é apenas um deles. Sua análise prima pela perspectiva inter-relacional das formas de comunicação verbal, na qual uma só pode ser inteiramente compreendida quando se apreende o todo. Do estudo das formas de expressão vocal, algumas musicologias focam diretamente a música vocal, que se mostra central para diversos povos, como, por exemplo, o estudo de Avery (1977) ou a dissertação de Coelho (2003), que estuda um repertório de canções Arara, Karib do Pará. Este autor realiza transcrições e análises musicais e busca sistematizar alguns aspectos do plano de expressão fonológico-gramatical de um repertório em foco. Conclui-se que as dualidades, identificadas no plano da expressão musical, podem ser relacionadas com as dualidades observadas em outros sistemas culturais Arara. Algumas outras investigações mostraram que a música ocupa espaço central nos estudo sobre a cura xamânica. Nestes casos, ela foi muitas vezes tratada como um sistema de comunicação, responsável pelo contato entre o mundo cultural e o sobrenatural, o que é fundamental para a eficácia da cura. Em Aytai (1985) a música é o meio de comunicação utilizado para estabelecer contato com o mundo sobrenatural (: 31). Ele trabalha com a 34 música Xavante, do Mato Grosso, e enumera algumas referências importantes para seu estudo, como a determinação do centro tonal, e do contorno melódico que caracteriza uma peça - o qual pode ser ascendente, descendente ou ondulado (: 56) -, critérios estes que foram usados em diversos outros trabalhos etnomusicológicos (COELHO, 2003). A partir da segmentação das melodias, o autor identifica, ainda, três tipos de estruturas, baseadas na repetição dos segmentos (: 83-84): estrutura reiterativa – com repetição imediata de um setor da peça; estrutura retrógrada – com repetição (não imediata) de trechos que já ocorreram; e estrutura progressiva – com inclusão de trechos que expõem material melódico novo. Montardo (2002) também estuda a música e o xamanismo. Isto entre os Guarani, que vivem nas regiões sul, sudeste e centro-oeste do Brasil, além de partes do Paraguai, Argentina e Uruguai. A autora investiga a música dos rituais xamanísticos produzida pelos Guarani Kaiová, tomando-a como canal de comunicação com as divindades. Ela descreve, então, uma teoria musical nativa e identifica dois gêneros distintos, um relacionado à prece e outro à guerra. Ambos caracterizados “pela forte dialogia” (: 194). Ressalte-se também que a literatura que relaciona a música a rituais de curas xamânicas é, já, extenso (TRAVASSOS,1984; MENEZES BASTOS,1984/85; WOODWARD,1991; LUNA e AMARINGO,1991:37-43; LUNA,1992;; HILL,1992,1993; GRAHAM,1994). A partir da década de 1990, outras questões começaram a ser inseridas nos trabalhos de música ameríndia. Piedade (1997) pesquisa os Ye’pâ- Masa, grupo Tukano do alto Rio Negro, e segue a linha de estudos que utiliza conceitos como performance (como Seeger e Basso) e se apóia em idéias desenvolvidas por Menezes Bastos, como aquelas sobre a estrutura mito-música-dança (: 17), além de entender a música como sistema semântico. 35 Piedade analisa os cantos masculinos e femininos e chega ao que denominou, “o cerne do problema do antagonismo sexual no mundo ritual-musical Ye’pâ-Masa: a ação masculina é estruturada, fixa, enquanto a feminina é histórica, móvel” (: 131). Ele identifica, então, os gêneros musicais17 Ye’pâ-Masa, e os divide em: música instrumental (Cariço, Japurutu, Jurupari, de tipo aerofones) e música vocal (kapiwaiâ, cantos coletivos masculinos e ãhadeaki, cantos individuais femininos). A música de Jurupari, por seu caráter sagrado, é destacada e praticada num ritual ligado ao complexo de flautas sagradas. Este rito aponta, ainda, para uma menstruação masculina simbólica, na qual “a capacidade feminina de criar gente encontra sua contrapartida na capacidade masculina de criar homens com os instrumentos Jurupari” (: 110). Posteriormente, Piedade (2004) trabalha entre os Wauja, do Alto-Xingu. Ele realiza uma etnografia do ritual das flautas sagradas Kawoká, centrando sua análise na cosmologia e no xamanismo, além de em alguns nexos da sociabilidade com o gênero e a política. Neste trabalho, Piedade parte do discurso nativo para descrever o sistema motívico, no qual a repetição e a diferenciação são centrais. Mello (1999) também trabalha com música e gênero. Ela apresenta um estudo de música entre os Wauja, Aruak do Alto Xingu, entendendo a mitologia como porta de entrada para o mundo simbólico. Sua análise parte das narrativas míticas para lançar hipóteses a respeito das relações de gênero, a partir de correspondências na música. Ela estabelece, então, que os repertórios femininos de música vocal do ritual de Iamurikuma e Kawokakuma são como uma versão cantada da música masculina do ritual de Kawoká. Posteriormente, Mello (2005) analisa a ligação entre mito, rito e música, entre os mesmos 17 Piedade entende “gênero musical” a partir da noção de gêneros da fala de Bakhtin (1986), como “esferas onde há tipos relativamente estáveis de músicas do ponto de vista do conteúdo temático, do estilo e da estrutura composicional” (PIEDADE, 1997: 53). 36 Wauja. Ela realiza uma etnografia do ritual feminino de Iamurikuma, que é realizado em contraponto ao mundo masculino das flautas Kawoká (PIEDADE, 2004), e no qual as mulheres não podem ver as flautas. Para ela, a música produzida neste ritual seria a expressão dos afetos, especialmente do ciúme e da inveja na sociedade Wauja. Em outro trabalho que relaciona gênero e música, Silva (1997) questiona a construção ocidental de gênero. Ele demonstra a atividade transformadora da mulher Kulina, relacionando mulher à cultura e homem à natureza (: 138), princípios opostos aos encontrados na sociedade ocidental. Além disto, ele investiga a relação entre a música e a construção da pessoa, que têm a ver com o ciclo de transformações simbólicas que se referem à relação entre cultura e natureza. Ademais, algumas investigações, ainda que timidamente, começaram a ser realizadas em outros espaços. A região do sertão nordestino, desde então, tem sido palco de alguns estudos, os quais relacionam a música a questões de identidade e organização social, acompanhando as linhas gerais da etnologia produzida na região. Cunha (1999) estuda a música dos Pankararu de Pernambuco. O autor busca os aspectos particulares a esta musicalidade, os quais podem ser articulados à organização social do grupo, além de entendê-la como sinal diacrítico em relação à sociedade nacional. Ele identifica, então, algumas características musicais, como a estrutura melódica e rítmica, as escalas e os intervalos, e as articula à organização social da comunidade, que está conectada ao mundo encantado, base espiritual do grupo. Pereira (2004) trabalha com a música Kapinawá/Pe, entendendo-a como marcador étnico do grupo, além de meio de comunicação com outros espaços sociais sertanejos, com outras paisagens sonoras, outras tecnologias e com novos públicos receptores. A partir daí, investiga, entre outros temas, a influência desta música indígena na música 37 popular da região, apostando na hibridez dos gêneros musicais. Ele identifica três gêneros musicais: os benditos, os toantes e o samba de coco. Os dois últimos evidenciando a grande importância atribuída ao som do maracá, que funciona como uma pulsação intermitente e irregular, sendo responsável por todo o desenvolvimento musical. Ele parte, por fim, para uma análise estrutural da música Kapinawá, estabelecendo alguns princípios importantes, como a recorrência na música vocal de duas fases (AB) e a forma poética da quadra, com versos de sete sílabas (ABCB); além de uma organização em forma de chamada (solista) e resposta (coro); e em alguns momentos, a presença de uma quarta aumentada e uma sétima menor. Todas, características recorrentes da música sertaneja nordestina. Ele percebe, também, uma ordem na execução dos cantos, indicando uma estrutura seqüencial, a qual é observada em outras musicologias ameríndias. As etnografias realizadas até o momento apontam, portanto, para uma gama significativa de abordagens possíveis, elaborando nexos entre a música e diversos temas, como o mito, o xamanismo, a política, as relações de gênero e a etnicidade. E mesmo, entre vários destes temas. Além disso, várias referências musicais comuns às regiões pesquisadas já foram identificadas, como: as estruturas coreográfica-composicionais (MENEZES BASTOS, [1976] (1978); PIEDADE, 1997; 2004; MELLO; 1999, 2005; MONTARDO, 2002; COELHO, 2003), as estruturas musicais (AYTAI, 1985; PEREIRA, 2004), e as análises do centro tonal e do contorno melódico (AYTAI, 1985; COELHO, 2003), entre outras. Estamos, pois, face a um significativo corpus de estudos, abrindo espaço para investigações comparativas entre os grupos de uma mesma região, de áreas diferentes, e das TBAS com um todo (veja MENEZES BASTOS, 1996, 1999, 2004). 38 Capítulo 2 - As comunidades indígenas do Alto-Sertão Alagoano. O alto sertão nordestino compreende a região do entorno da parte nordestina do Rio São Francisco, mais especificamente a área que atravessa os estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco. A partir do século XVII, esta região atuou como via de penetração e assentamento, sendo alcançada por tropeiros e fazendeiros, que abasteciam centros urbanos (principalmente Salvador e Olinda) e proviam também os produtores açucareiros, com animais de trabalho (boi e cavalo) e carne (ANDRADE, 1963: 173). Ainda na segunda metade do século XVII, mais exatamente em 1654, os holandeses foram expulsos da região, o que ocorreu após um grande período de ocupação e contribuiu, também, para a entrada e ocupação da região. Tais frentes de ocupação mantiveram contato com os nativos, que pertenciam a diversas etnias, mas eram denominados genericamente, na época, como “Tapuias”, ou seja, os não-Tupi, “caboclos de língua geral” ou “Cariri” (ASSUNÇÃO, 1999: 37)18, que “ao princípio senhores da orla marinha cearense, espalhavam-se também pelo sertão nordestino, desde a riba esquerda do S. Francisco às margens baixas do Itapicuru” (STUDART, 1939: 124-130). A partir deste contato, alguns povos foram simplesmente exterminados, outros foram descidos, o que quer dizer, deslocados do sertão para o litoral a fim de viverem próximos a núcleos de povoação. A grande maioria dos indígenas, porém, manifestou grande reação à invasão de suas terras, o que teve como conseqüência a chamada “Guerra dos Bárbaros” 18 Tapuia foi a denominação dada pelos colonizadores e missionários, aos índios que falavam língua diversa do Tupi do litoral, e que pertenciam, na sua maioria, ao tronco Macro-Jê. 39 ou “Confederação dos Kariri”19, iniciada em 1687 e finalizada apenas em 1720 (MEDEIROS, 2000: 114). Os interesses da coroa portuguesa sobre os nativos cresciam progressivamente. Eles compreendiam objetivos econômicos, através do aproveitamento da mão-de-obra indígena (PINTO, 1935: 178), além da liberação de grande quantidade de terra para a exploração econômica, principalmente ligada à pecuária. E objetivos militares, já que os índios funcionavam como soldados de defesa contra inimigos, tanto externos quanto internos. Com a expropriação das terras indígenas, e a liberação delas para a exploração econômica, a região tornou-se centro já em 1710, dos maiores latifúndios brasileiros, os quais contavam mais de 340 léguas (espaço maior do que muitos reinos europeus). Além das grandes propriedades, os pequenos lavradores se faziam presentes, já que a pecuária necessitava de cereais, produzidos pela pequena lavoura, e o sistema de posse tornou-se, também, uma forma importante de uso da terra na região (WOORTMANN, 1995: 221222). O aldeamento missionário foi a forma mais utilizada no período para o controle da população nativa. Os missionários, que haviam iniciado seus trabalhos na região litorânea, partiram para o sertão, nas denominadas missões rurais. Os primeiros a chegar na região do São Francisco foram os capuchinhos franceses (antes mesmo de 1671, deixando a região em 1702). Os jesuítas, que no resto do território tinham a preferência da coroa, no sertão do São Francisco foram preteridos pelos carmelitas, oratorianos, franciscanos, 19 Dentro do contexto de resistência indígena à colonização do sertão nordestino, talvez tenha sido a mais prolongada de todas as guerras, e a que mobilizou o maior número de indígenas - cerca de dez mil – além de tropas de moradores e bandeirantes. Ela teve início no Rio Grande do Norte e estendeu-se até Pernambuco, resultando, para o lado nativo, no apresamento e morte de milhares de indivíduos (MEDEIROS, 2000). 40 beneditinos e capuchinhos (DANTAS & SAMPAIO & CARVALHO, 1992), os quais exerceram o papel de capelães militares, sempre ligados ao poder do estado. Especialmente no século XVIII, o estado português intensificou o processo de aldeamento, agrupando uma série de grupos diferentes num mesmo espaço, a fim da liberação de suas terras e da catequização de seu espírito. Nestes aldeamentos, os indígenas passaram por um amplo processo de transformação, através do contato (muitas vezes violento20) com outros grupos indígenas, missionários, negros incorporados e com a sociedade do entorno. O que acabou levando à construção de um horizonte cultural pannordestino (POMPA, 2002: 364). A partir da Lei de Terras de 18 de setembro de 1850, os aldeamentos foram progressivamente extintos e as terras anexadas a municípios ou adquiridas por grandes proprietários, incentivando o processo migratório responsável pela fragmentação dos aldeamentos. O sistema de posse, bastante utilizado na região e responsável pela maior parte do povoamento do sertão nordestino, não era mais legalizado pelo estado. O uso da terra, neste momento, dava-se, então, através do sistema de propriedade particular e o preço da unidade aumentava progressivamente. Os vários entraves burocráticos serviram para afastar o pequeno proprietário e assim “no sertão do São Francisco e, provavelmente, em outras partes da Província, a Lei de Terras agudiza o conflito entre pequenos lavradores e grandes criadores, pois tornava os primeiros expropriáveis” (WOORTMANN, 1995: 228). Para os indígenas, a lei teve duas vertentes: parte de suas terras foi considerada proveniente do “indigenato”, e, portanto, reconhecida como indígena por direito 20 O encontro do indígena com estes outros agentes sociais trouxe doenças, escravização, descimento para o litoral, ataques dos curraleiros, recrutamento para as guerras e a própria Guerra dos Bárbaros (POMPA: 414). 41 originário. Isto, porém, quase nunca significou a real posse da terra21 pelo povo nativo. A maior parte, proveniente da colonização dos índios, foi considerada “devoluta” e deixada à mercê dos latifundiários, que passaram a reivindicar a legitimação de tais territórios. A partir do artigo 87, que deixava nas mãos dos juízes municipais, delegados e subdelegados, o controle sobre as terras “devolutas”, e do artigo 14, que possibilitava ao governo vender estas terras “devolutas”, “como e quando julgar mais conveniente” (BONAVIDES & AMARAL, 1996), achou-se um padrão que seria muito utilizado pelos governadores de províncias, sobretudo das regiões Nordeste e Sudeste: declarar, por decreto, a extinção dos aldeamentos, para que os terrenos fossem revertidos para o patrimônio das províncias, daí para as Câmaras Municipais e, então, para o domínio de particulares22. 21 Durante toda a história do Brasil, a regulamentação da terra indígena, vem sendo tema de muito discurso e pouca prática a favor dos índios. Em 1680 (através de um alvará expedido pela coroa portuguesa), as leis já reconheciam o direito nativo à posse da terra. Desde então, são várias as tentativas de regulamentar o acesso do índio à terra. O Aviso Imperial de 1855 dizia que eles deveriam permanecer no domínio de suas terras; já a Constituição Republicana de 1891 foi interpretada em favor dos grandes latifúndios, incorporando as terras devolutas ao poder dos estados membros da federação. A constituição de 1934, no Estado Novo de Vargas, também previa a posse territorial indígena, além de proibir a alienação de tais territórios. No período militar (1964 -1985), as reservas indígenas foram consideradas uma forma de solucionar o problema, por isso, áreas pequenas foram concedidas a alguns povos, o que não evitou centenas de conflitos motivados pelo “milagre econômico”, que trouxe a expansão da relação capitalista com o meio e o povo. A partir do Estatuto do Índio, lei n. 6.001, de 1973, no governo de Médici (1969-1973), imputou-se um prazo (dezembro de 1978) para que todas as terras indígenas fossem demarcadas, o que nunca foi cumprido. A Constituição de 1988 trouxe inovações importantes para os povos indígenas. Ela reconheceu o direito de se praticar uma cultura diferenciada. Além de promulgar o prazo para a demarcação das terras, 5 de outubro de 1993, o que, também, não foi cumprido. Ainda, apenas cerca de 30% das terras indígenas foram demarcadas e registradas em cartório, o que é pouco, muito pouco para os cerca de 225 povos distintos, 180 línguas diferentes e complexas culturas presentes em nosso território. 22 Ver CIMI, 2001: 170. 42 A própria miscigenação, intensificada com a política pombalina23, cem anos antes, foi utilizada neste momento para desqualificar o indígena como tal, o que significava mais liberação de terras. Assim, vários aldeamentos em Pernambuco e em todo o Brasil foram extintos sob esta alegação (CUNHA, 1986: 114). Ao indígena “des-desterritorializado”, restou migrar, hábito já conhecido das populações nativas. Eles se incorporaram, então, aos municípios vizinhos, escondendo sua origem e suas práticas tradicionais, como forma de resistência, mas mantiveram alguns sistemas culturais tradicionais, através de um processo de re-elaboração e adaptação. É só a partir de reivindicações políticas pela posse do território, que têm início na década de 1930 e seguem até hoje, que ainda muito timidamente e se aproveitando de uma conjuntura política brasileira favorável, algumas comunidades voltaram a se afirmar como indígenas. Este processo de re-afirmação foi legitimado pela posição do SPI – Serviço de Proteção aos Índios -, através da figura de seu inspetor regional, Raimundo Dantas Carneiro, que acompanhando o etnólogo Carlos Estevão Oliveira reconheceu um dos rituais religiosos - o Toré - como critério para reconhecimento étnico. O Toré se tornou, então, expressão obrigatória da indianidade nordestina. Outros rituais praticados por algumas comunidades, como o Praiá, foram classificados como Xangô, acompanhando a posição que se tinha sobre os rituais de origem africana, duramente reprimidos durante o século XX, o que fez com que diversas comunidades deixassem de praticá-lo. 23 O governo pombalino teve por objetivo diminuir a dependência econômica e política de Portugal em relação à Inglaterra. Para isso, buscou a nacionalização e racionalização administrativa do Brasil, destacandose aqui algumas medidas, como a proibição das línguas gerais (1755), a expulsão dos jesuítas (1759) e a transferência da capital para o Rio de Janeiro (1763). Muitos povos que ainda não haviam sido aldeados o foram então, e muitos aldeamentos passaram à condição de vila, recebendo uma denominação portuguesa e um contingente populacional não-índio. O ano de 1755 foi marcante nessas transformações. Em um alvará do dia 14 de abril, a coroa impôs que quem se casasse com um indígena ficaria proibido de sofrer qualquer retaliação ou infâmia. Posteriormente, em 1757, estabeleceu-se um diretório, no qual se proibiam: o uso das línguas nativas e a nudez, além de se impor o uso de nome e sobrenome portugueses. 43 As “novas” comunidades indígenas, resultado das sucessivas migrações, do processo de contato com o não-índio e do abandono dos antigos aldeamentos missionários, passaram a se classificar como “ramas” em relação à categoria “tronco”. Elas elaboraram assim, um sistema genealógico – de figuração filogenética vegetal - que envolve de um lado os “Troncos Velhos”, representados pelos citados aldeamentos, e do outro as “Pontas de Rama”, as “novas” comunidades. Por volta de cem anos atrás, cinco “pontas de ramas” de um único “tronco velho” migraram para o alto-sertão alagoano. Eram elas: os Kalankó, Karuazu, Koyupanká, Katókin e Geripankó, e o tronco velho sendo o aldeamento de Brejo dos Padres / Pe24. Estas “novas” comunidades ressaltam sempre sua origem comum e o uso de alguns sistemas culturais semelhantes, como por exemplo, a música. 24 De acordo com Hohenthal (1960), os primeiros vestígios do nome Pankararu (Pancarú, Pancaráru) vêm dos relatórios das Missões das Ilhas do São Francisco, em 1702, onde conviviam com os Karacúzes (Caracus), os Tacaruba e os Porús. Posteriormente, o mesmo Hohenthal (1960) observa a presença dos Pankararu em outros dois aldeamentos missionários, ainda antes da criação de Brejo dos Padres, possivelmente em 1802. 44 Mapa 2 – Antigo Aldeamento de Brejo dos Padres/Pe – Baseado no Mapa do ISA –Instituto SócioAmbiental, 2000. Kalankó Antigo Aldeamento de Brejo dos Padres/Pe 45 2.1. Trabalho de Campo. O desenvolvimento desta dissertação se apóia em três pequenas viagens antropológicas, realizadas nos meses de outubro-novembro de 2001, agosto-setembro de 2003 e especialmente março-junho de 2005. Elas foram responsáveis pelo conhecimento da região, pela entrada e inserção no grupo e pela coleta de informações e desenvolvimento do projeto. Realizei ainda diversas visitas esporádicas aos centros urbanos mais próximos, ideais para investigar situações de encontro interétnico. No campo, procurei trabalhar a partir de entrevistas semi-dirigidas, a fim de identificar o sistema terminológico da música e os aspectos particulares do sistema musical. Além de coletar as narrativas relativas aos encantados, que são os espíritos dos antepassados, que atuam no tempo presente para proteger a comunidade (ver item 4.1.). Trabalhei também com as exegeses musicais, a fim de identificar as idéias relacionadas à música. E a partir daí, através da observação participante – momento inesquecível da viagem -, e de anotações em diário de campo, procurei apreender a teoria musical Kalankó. A base desta dissertação é a terceira viagem, na qual pude vivenciar mais profundamente o mundo Kalankó, participar do seu dia-a-dia e estabelecer “relações de amizade” mais próximas com os indivíduos da comunidade e dos outros grupos indígenas ou não da região. Estas “relações de amizade” me motivaram sentimentos comuns a este tipo de relacionamento, como alegria e segurança, e por englobar as “relações de informante” colaboraram para a geração de informações – muitas delas segredo, ou como me diziam da ciência do índio – relevantes para o desenvolvimento da dissertação. Mas a amizade é um tipo de “relação de aliança” e exige uma contrapartida. Para os Kalankó, assim como para os outros povos indígenas do alto-sertão alagoano, o trabalho 46 do pesquisador exige como retorno, duas atividades que são consideradas relevantes. A primeira delas é a de registrar uma cultura diferenciada. Na minha primeira viagem me lembro que o pajé, num de seus “discursos de liderança” (ver item 5.4) na oca de Lageiro do Couro (a aldeia principal dos Kalankó, localizada no município de Água Branca, na caatinga alagoana), deixou muito claro a todos quem eu era e porque tinha viajado tantos quilômetros para estar ali. Na época, eu era estudante de História e fui apresentado publicamente como um historiador responsável por registrar e conseqüentemente dar “autenticidade” à história do grupo. História que ligava a nascença25 Kalankó aos dias de luta atuais, e que legitimava o grupo étnico face à sociedade nacional, o que era importante para o futuro reconhecimento indígena pelo estado brasileiro. A segunda atividade do pesquisador é a divulgação. Os índios acreditam que a pesquisa pode servir para dar visibilidade ao grupo nos meios acadêmicos e como conseqüência na opinião pública nacional, o que pode contribuir para a legitimidade do grupo e a conquista de suas reivindicações. Me lembro também, que durante a realização do Ritual do Umbu (fruta característica da região), na Semana Santa de 2005, fui procurado pelo cacique Koyupanká e convidado a trabalhar e divulgar sua comunidade. Assim, a viagem, e conseqüentemente a pesquisa antropológica são vistas pelos indivíduos, como armas de luta política, assumindo um papel semelhante àquelas viagens realizadas pelos líderes indígenas. E o pesquisador assume, então, seu papel social junto às comunidades que pesquisa, comprometendo-se em registrar e divulgar uma cultura diferenciada. Ser classificado como um “pesquisador amigo” e muitas vezes como “primo”, me foi fundamental para a coleta de tantas informações, num espaço geográfico grande e em tão pouco tempo. Além de facilitar as análises decorrentes, influindo em todo 25 Refere-se à origem no aldeamento de Brejo dos Padres/Pe. 47 o desenvolvimento do trabalho. Como todo amigo, devo agora cumprir minha parte do “trato”, registrando e divulgando os Kalankó e seus parentes e torcendo para que consigam conquistar seus direitos adquiridos por lei, especialmente a territorialização. 2.2. Os amigos-interlocutores. Durante as três viagens, convivi com índios e não-índios de todos os gêneros e idades, líderes, cantadores ou não. Mas foi na terceira viagem que fiz, entre março e junho de 2005, quando já cursava o mestrado em Antropologia Social, que tive oportunidade de vivenciar mais profundamente o dia a dia da comunidade Kalankó. Desta vez, vivi na casa de um reconhecido cantador da região – Culezinha – cuja difícil missão era transformarme em um aprendiz de cantador. Tarefa na qual ele foi ajudado por alguns outros interlocutores, que se tornaram importantes para o desenvolvimento da pesquisa: Seu Edmilson, o pajé Tonho Preto, o cacique Paulo, além de D. Jardilina e D. Joana. Todos eles, durante o período de campo, transformaram-se em queridos amigos, responsáveis pela minha incursão no universo sertanejo e indígena, além de mestres musicais. 2.2.1. Cantadores. Os cantadores são os indivíduos de maior destaque político entre os Kalankó, tendo maior poder de decisão e mais obrigações no grupo. Os principais cantadores entre eles são: Tonho Preto, Paulo, Edmilson, Culezinha, D. Jardilina e D.Joana. Apesar de afirmarem constantemente que o canto nasce com o indivíduo, ficou claro no trabalho de campo, que tal atributo passa de geração a geração, seguindo uma linha genealógica que é ligada às primeiras famílias que chegaram de Brejo dos Padres/Pe (conforme adiante). E especialmente a duas pessoas, ambos descendentes da família 48 Higino: Santina, filha do primeiro casal que chegou à região e que não cantava toré26 por ter uma voz baixa, mas dominava o serviço de chão. E Antonio Grande, seu filho, que apesar de gago era cantador fino de toré, conforme me disse seu Pedro, marido de D. Joana, num delicioso almoço27. Hoje, o cantador considerado mais forte28entre os Kalankó, é o pajé Tonho Preto. Ele é sobrinho de Santina e foi procurado pelos encantos, através dos quais aprendeu os cantos na posição de natureza (quer dizer que nasceu com a capacidade de cantar). Tonho se destaca puxando desde o toré, até as linhas mais pesadas do serviço de chão. É ele também quem lidera o ritual do Praiá29, que aprendeu quando viveu próximo à nascença Kalankó, em Tacaratu, antigo aldeamento de Brejo dos Padres / Pe. Isto quando já era pai de família. Tonho Preto nasceu em Januária, primeiro núcleo de povoamento Kalankó, e passou a infância cantando toré com Santina e Antonio Grande. Ele pertence a uma família de grandes cantadores do alto-sertão indígena e seus parentes são os principais cantadores dos Koyupanká. Com certeza foi minha maior fonte de informações, mostrando-se sempre acessível e hospitaleiro. Ele foi fundamental também para a transformação de seu filho mais velho, Paulo, em cacique, tornando-o inclusive um cantador respeitado. Ele é, ainda, o Kalankó que possui mais sementes encantadas (objetos que representam os encantados ou encantos) e o maior criador de torés, dos quais um dos mais famosos no alto-sertão é o que presta homenagem aos Geripankó e cuja letra é: 26 Um dos gêneros musicais, os outros são o praiá e o serviço de chão. No anexo III, encontra-se um CD com alguns exemplos destes gêneros. 27 No dia 29 abril de 2005. 28 Os cantadores Kalankó são classificados em forte ou fraco. Os fortes têm a capacidade de guiar um ritual. 29 As músicas Kalankó são todas praticadas em rituais específicos, que possuem o mesmo nome do gênero musical. O termo que indica o rito será aqui posto em letra maiúscula, o que indica o gênero musical, em minúscula. 49 O caboclo tá no mato tá apanhando murici30 (cantador) ele vem pra ajuda o povo do ouricuri31 (participantes). Foto 1. O pajé Tonho Preto com os instrumentos musicais: o chocalho e a gaita (ver item 4.2.2.) Paulo, filho de Tonho Preto, concedeu-me boas entrevistas sobre a música nativa. Ele nasceu em Gregório, uma das comunidades Kalankó, e é um grande cantador de toré, além de ser reconhecido por puxar linhas pesadas, apesar de eu nunca ter presenciado uma atuação sua. Paulo também afirma que nasceu sabendo cantar, mas que só conheceu o praiá aos 16 anos. Ele é um grande conhecedor do sistema musical indígena, tornandose, graças ao seu conhecimento musical e seu parentesco com Tonho Preto, o cacique da 30 Murici é um fruto de cor amarelada, e que é muito consumido em algumas áreas do alto-sertão alagoano. Representa, também, um encantado presente nos Koyupanká, cujo nome é Jiquiri. 31 Ouricuri é como a terra dos Geripankó é conhecida na região. Representa uma árvore que dá um coquinho muito apreciado. Além de nomear um espaço ritual, que só os Geripankó possuem. 50 comunidade. Apesar de algumas divergências políticas internas, principalmente com Culezinha, ele é bastante respeitado na região. Seguindo a linha de Tonho Preto, seus parentes são indivíduos de destaque em outras comunidades, especialmente nos Koyupanká. Foto 2 – O cacique Paulo com sua sobrinha em Gregório, uma das comunidades Kalankó. Edmílson é neto de Santina e nasceu em Januária, terra tradicional Kalankó. Ele também afirma que nasceu sabendo cantar, além de ter sido procurado pelos encantados Carro Branco e Lambuzinho, que lhes confidenciaram seus cantos. Confessa, porém, que cantar praiá e serviço de chão aprendeu somente a partir de um episódio quando tinha 17 anos, no qual ficou doente e curou-se graças à intervenção de sua avó, prometendo seguir participando dos trabalhos pesados. Edmílson é um dos cantadores mais respeitados da área. Além do toré, é muito procurado para cantar serviço de chão, além de conhecer as linhas do praiá, apesar de não participar como cantador no ritual. Ele foi considerado o melhor cantador da região do 51 Riachão, na caatinga alagoana, onde cresceu sua família. Seu Edmílson me concedeu três boas entrevistas sobre os cantos e encantos Kalankó, além de se mostrar sempre acessível a boas conversas. Foto 3 – Seu Edmilson preparando a garapa, bebida produzida a partir da mistura de água com algo doce e consumida durante os rituais. Dionísio dos Santos da Silva, conhecido no alto-sertão como Culezinha, nasceu na região do Riachão, onde havia um terreiro32 no qual Edmilson, seu pai, era o mestre cantador. Ele conta que já nasceu com a capacidade de cantar. Sua especialidade é o canto do toré, mas diz que tem capacidade para puxar outras linhas. Seus filhos, Rodrigo e Henrique, são as principais promessas de cantadores para o futuro, já que se destacam em todos os Torés infantis. Desde minha primeira viagem para Lageiro do Couro, 32 É o espaço ritual demarcado na forma retangular nas principais aldeias do alto-sertão alagoano. É nele que se realiza o ritual do Praiá. Lá, se pode realizar, também, o Toré (ver item 4.3.). O terreiro é um dos lugares privilegiados para se receber a força encantada (ver item 4.1.1.). 52 Culezinha mostrou-se muito amigo e aberto a conversas. Foto 4 – Culezinha na porta de sua casa em Lageiro do Couro/Al. Foto 5 – Rodrigo (esquerda) e Henrique (direita), promessa de cantadores para o futuro. Culezinha já chegou a “tentar a sorte” com sua família numa migração para São 53 Paulo, mas como alguns de seus “irmãos” Pankararu, resolveu retornar à terra de seus ancestrais em busca de alguma estabilidade. Ele é, porém, obrigado a migrar anualmente para a usina de cana de açúcar de João Lyra, influente político alagoano, em busca de melhores condições financeiras. De setembro a março ganha R$ 2,50 por tonelada de cana cortada. Mesmo na usina, conta que leva seu campiô (cachimbo indígena) e canta o toré para lembrar-se de casa e pedir ajuda aos encantos. D.Jardilina é a cantadora mulher mais forte da comunidade. Ela é irmã de Edmilson e não pode participar do Praiá (por ser mulher). Porém, canta muito bem o toré e o serviço de chão, sendo presença importante em ambos rituais. Ela falou-me muito sobre o Serviço de Chão e seus cantos específicos. E é uma das únicas pessoas a possuir uma semente (que me mostrou, parece um cristal) e ter contato direto com seu encanto. Um dos seus filhos, Valdomiro, apesar de timidamente negar sua capacidade de cantar, revelou-se num Serviço de Chão que presenciei, como um bom cantador para o futuro. 54 Foto 6 – D.Jardilina segurando pote com a semente de seu encanto (ver item 4.1.). D. Joana da Conceição nasceu também na Januária, mas mora na Gangorra, comunidade vizinha a Lageiro do Couro. Ela é cunhada de Culezinha e não pode receber os encantados por possuir um corpo fraco, como afirma. Apesar de não ser a cantadora principal de toré ou de serviço de chão, conhece um bom repertório das músicas que se cantavam no passado e é uma liderança respeitada na comunidade. Foi a partir dos deliciosos almoços a que fui convidado em sua casa, que comecei a entender melhor os cantos e cantadores que se destacaram no passado e da relação destes com os atuais. 55 Foto 7 – D. Joana fumando seu cachimbo na sala de sua casa em Gangorra, uma das comunidades Kalankó (ver item 2.3.). 2.2.2. Dançadores. Se os cantadores afirmam já nascer conhecendo os cantos a partir de uma posição de natureza, a dança é aprendida no decorrer da vida do sujeito, que é dividida em alguns períodos marcados pela atividade cerimonial. A pessoa, que já nasce no Toré, é considerada criança até os 12 anos, quando então o menino pode participar do Praiá. Dos 12 aos 16, ele é classificado como jovem e após os 16 anos se torna adulto, podendo assumir o papel de cantador. Muitos dos meus informantes-cantadores afirmaram que começaram a cantar praiá nesta idade. A pessoa – homem ou mulher - é considerada adulta até os 45 anos, quando se torna ancião(ã) e tem alguns privilégios: não precisa mais ir para a roça, nem fazer a maior parte das obrigações cotidianas. Todos são extremamente respeitados e a anciã pode até entrar no Poró (casa considerada sagrada, onde as vestes cerimoniais são guardadas). Os dançadores Kalankó são: Edmilson, Pelé, Antonio, Luis da Silva, Manoel dos 56 Santos, Manuel Belo da Silva (Neco), Pedro e Aparecido, todos netos de Santina, e descendentes do primeiro núcleo familiar a chegar na região (ver item 3.3.). Além deles, o cacique Paulo e Gildésio - filhos de Tonho Preto -, Culezinha e Abdias, filhos de Edmilson, e Zé Magrinho, filho de Antonio. Eles não são considerados tão fortes quanto os cantadores, mas possuem também, prestígio especial na comunidade. Além disso, torna-se claro que muitos dançadores são cantadores e que todos descendem das primeiras famílias de Januária. Muitos deles me proporcionaram boas entrevistas. 2.3. Os Kalankó. Conheci os Kalankó na minha primeira viagem para a região, quando estava no sexto semestre da graduação em História (2001), e fui convidado a ir para o sertão pelo projeto “Formação e Capacitação para a Sustentabilidade”, que atuava na área da educação ambiental. A partir da oportunidade, continuei viajando pela região, diretamente motivado pela questão indígena e pelos Kalankó, realizando um primeiro trabalho de campo com duração aproximada de um mês e uma primeira incursão por bibliotecas nordestinas – nesta oportunidade em Pernambuco e Ceará. Os Kalankó somam cerca de 54 famílias, o que perfaz um total de mais ou menos 278 indivíduos (ver anexo II). Eles vivem no alto-sertão de Alagoas, no município de Água Branca, mais especificamente Lageiro do Couro e em algumas outras localidades, todas distantes cerca de 15 kilometros do centro urbano. São elas: Gregório, Januária, Gangorra, Batatal e Quixabeira, além de algumas famílias que moram no município de Santa Cruz do Deserto, na mesma região e outras que moram na comunidade de Barriga na Bahia. 57 Mapa 3 – Município de Água Branca/Al – Fonte: Prefeitura Municipal de Água Branca. Comunidades Kalankó Assentamento Salgadinho 58 O nome indígena foi uma escolha consciente da comunidade e remete a um dos etnônimos existentes no aldeamento de Brejo dos Padres/Pe, no século XIX. Além de lembrar um animal bastante comum e comestível nesta região, é,é um lagartinho [...] é um calango, aqui é costume até hoje mesmo a gente ainda tem, ainda mais no tempo de inverno que temo que aperta [...] mas até hoje mesmo tem gente que costuma ainda come [...] aí a gente demo esse nome Kalankó, devido dessa [...] que vem mantendo a gente alimentado, sustentando a gente, a gente demo o nome Kalankó, por modo de calango33. Os Kalankó se assemelham física e culturalmente aos sertanejos da região. Atribuemse, porém, uma identidade diferente e reconhecem sua origem indígena, marcando diferenças com outros grupos, como os sertanejos, os negros e até os sem-terra. Em julho de 1998, “re-apareceram” para o município de Água Branca, afirmando uma identidade indígena e cantando o toré no centro da cidade. Desde então, repetem este momento todos os anos, em julho. Em 25 de julho de 2001, surgiram para a imprensa nacional, no jornal “Tribuna de Alagoas”. Nesta ocasião, eles cantaram o toré numa apresentação em Gregório34, na qual tiveram participação algumas organizações e pessoas ligadas à questão indígena nordestina como o CIMI – Conselho Indigenista Missionário -, os outros povos indígenas da região, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Água Branca e a imprensa. 33 Entrevista com o Kalankó Culezinha, em Lageiro do Couro, no dia 17 de novembro de 2001. Os Kalankó só foram reconhecidos oficialmente pelo estado brasileiro como povo indígena em julho de 2003. O que aconteceu graças à Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário e que acabou por reconhecer dezenas de outros povos. 34 59 Primeira Capa do Jornal “Tribuna de Alagoas”, divulgando o grupo. 60 A comunidade vive a partir de uma lavoura de subsistência durante o inverno, que vai de abril a setembro, baseada no feijão, milho, mandioca e em algumas árvores frutíferas, como o cajuzeiro, acerola, coqueiro e o umbuzeiro, árvore bastante comum e cujo fruto é muito apreciado, puro ou com leite, quando então é chamado de umbuzada. Além de uma cultura de algodão herbáceo, comercializado nos centros urbanos mais próximos, principalmente em Delmiro Gouveia/Al. Possuem também uma pequena criação de ovinos e caprinos, que dura o ano inteiro. A carne de caça é bastante apreciada e os animais caçados preferidos são o peba (espécie de tatu) e uma espécie de lagarto. Algumas pessoas trabalham na lavoura de outros proprietários em troca de diárias miseráveis. Outros migram no verão, que vai de outubro a fevereiro (março é o mês das trovoadas) para o litoral, onde trabalham na lavoura de cana de açúcar de grandes proprietários rurais e usineiros, a maioria, políticos da região. As brincadeiras cotidianas giram em torno de alguns jogos: baralho, dominó e futebol. Este é vivido intensamente, os Kalankó contribuindo com a organização e participando de campeonatos por toda caatinga alagoana, o que torna possível a criação de um canal importante de relações sociais com não-índios. Participei de alguns jogos, nos quais o prêmio por vitória é o frango, a cachaça e a coca-cola, sendo o mais marcante o que ganhamos no dia da minha despedida da terceira viagem. 61 Foto 8 - Time de futebol da aldeia no jogo da despedida de minha terceira viagem. Foto 9 - Jogo de cartas, atividade comum entre todos, especialmente às crianças. A energia elétrica chegou a alguns pontos da região entre a primeira e terceira viagem, tornando a televisão um meio de reunião noturna em Lageiro do Couro. Isto acontece especialmente na hora das novelas da noite, das quais as preferidas são as que retratam o passado. Na ocasião da terceira viagem, não perdíamos um capítulo de “Escrava Isaura”, exibida pela Rede Record. O grupo enfrenta, como diversas comunidades nordestinas, algumas doenças 62 temporárias e perigosas à saúde da população, principalmente das crianças. Em determinados momentos, principalmente “no caso do verão a diarréia, a diarréia sempre atinge mais, e no inverno vem a virose, sempre tem mais gripe [...] dentro dessa área aqui eu só tenho um a criança desnutrida [...] de 0 a 9 meses, [...] enquanto de 1 ano a 3 anos eu tenho 4”35. As principais doenças são dor de barriga e de cabeça, febre e dor no espinhaço (quer dizer dor nas costas). A cura para elas é feita de preferência com remédio do mato e com a intervenção dos encantados. Conforme me disse D Joana36, antigamente não se tomava remédio de farmácia e não se ia ao médico. Hoje em dia, antes de ir ao médico, deve-se fazer um Toré e consultar o pajé e os encantados. Os Kalankó moram em habitações construídas pelo modo tradicional nordestino. As casas são feitas de taipa ou em alvenaria, e contam com divisões internas como nas zonas rurais brasileiras. A maioria dos indivíduos não tem os documentos básicos do cidadão, como o registro de identidade, o que traz dificuldades para a obtenção de alguns direitos, ligados desde aos empréstimos bancários até o acesso a educação. 35 Entrevista com o (na época) agente comunitário de saúde, Geraldo Amaral de Lima, em Lageiro do Couro, no dia 21 de novembro de 2001. Ele é não-índio e mora no centro de Água Branca. Hoje, Geraldo possui uma barraca onde vende bebida e alguns petiscos nos dias de feira do município (segunda-feira). Sua barraca tornou-se interessante ponto de encontro dos povos indígenas da região. 36 Numa das comunidades Kalankó, Gangorra, no dia 02 de abril de 2005. 63 Foto 10 – Casa Kalankó construída no modelo de pau-a-pique, tradicional em toda região. Foto 11 – Outro tipo de casa Kalankó, esta construída no modelo de alvenaria, também tradicional na região. 64 Foto 12 – Modelo de cozinha Kalankó, construída para fora da casa, no estilo pau-apique. A comunidade é atendida pela Escola Municipal Santa Ana, cuja professora é Nena, não-índia que vive no centro do município. Ela trabalha para a prefeitura e já está lecionando na comunidade há algum tempo, o que faz com que tenha um bom relacionamento com os Kalankó. Nena, porém, não participa dos rituais realizados na aldeia. A primeira vez que ela participou de um Toré, foi na parte final da minha terceira viagem, quando a escola e os Kalankó realizaram uma confraternização referente ao final do período letivo, na oca de Lageiro do Couro. A escola atende também às crianças nãoíndias da região e o currículo é exatamente o mesmo de uma escola urbana (chegam até a aprender noções de trânsito). Além disso, o conteúdo não é problematizado para uma realidade diferenciada. Hoje, os Kalankó não têm suas terras demarcadas e encontram-se territorialmente misturados à parte do município de Água Branca. Grande parte da terra tradicional passou às mãos dos fazendeiros da região. Isto aconteceu através da venda, resultado de pressão econômica, pela simples apropriação do grande fazendeiro, como também a partir do 65 casamento e conseqüente presença do não-índio na aldeia. Assim, mais do que tudo, os Kalankó necessitam da demarcação de suas terras, que significam além da sobrevivência material, a própria existência do “grupo étnico imaginado”. 2.3.1. Organização Política Interna. Os primeiros Kalankó que conheci foram o pajé Tonho Preto e o cacique Paulo, a quem fui apresentado pelas coordenadoras do projeto em que eu trabalhava. Durante as primeiras idas à comunidade, principalmente o pajé mostrou-se bastante aberto a conversas. Era como se ele fosse o representante de um discurso oficial, que falava da luta do grupo e das esperanças de territorialização. A partir da segunda viagem, Paulo mostrou-se mais solícito debatendo os assuntos que eu levava para conversar. Com o passar do tempo, fui conhecendo e me relacionando com as outras pessoas do grupo. O prévio conhecimento dos líderes da comunidade, porém, foi fundamental, para o conhecimento dos outros indivíduos e o aprofundamento das relações. A partir de 1998 e do “re-aparecimento” dos Kalankó, processo que trouxe um constante contato com agências do estado como a FUNAI – Fundação Nacional do Índio e a FUNASA – Fundação Nacional de Saúde-, com organizações da Igreja Católica, como o CIMI – Conselho Indigenista Missionário - e com ONGs, eles re-elaboraram sua forma de arregimentação de líderes, a partir de então baseada no voto direto. Anteriormente, os referidos líderes – o pajé ou pai de terreiro (ligado à esfera cerimonial) e o cacique ou chefe (político-diplomática) – se estabeleciam através de critérios genealógicos e referentes ao prestígio no domínio cerimonial. Assim, as lideranças Kalankó, atualmente, são escolhidas pelo voto direto. O pajé Tonho Preto fica responsável pelo comportamento interno do grupo, liderando os rituais, 66 incentivando os valores tradicionais e mediando conflitos. Além de fiscalizar o cumprimento das obrigações dos indivíduos (ver item 6.2.1.). O cacique, Paulo Antônio Santos, tem o papel de levar as reivindicações da comunidade para fora, representando-a junto ao estado e à sociedade nacional. Foto 13 - O pajé liderando o rito de Praiá em Lageiro do Couro, 2001. As decisões de ambos são legitimadas por quatro conselhos. O primeiro é chamado de Conselho Tribal, sua jurisdição sendo o relacionamento externo da comunidade. Seus líderes são Tonho, que vive em Quixabeira, comunidade vizinha a Lageiro do Couro, e Abdias, dançador e filho de Edmilson. O segundo se chama Conselho Local e diz respeito à resolução dos conflitos internos. Seus integrantes são Culezinha, Edmílson, Paulo, Tonho Preto, Francisco e Cícera, que vivem em Santa Cruz do Deserto, município da região; D. Jardilina e seu filho Valdomiro e D.Joana. É interessante perceber como os integrantes de todos os conselhos, com exceção de Tonho de Quixabeira e Francisco e Cícera, de Santa Cruz do Deserto, são sempre os principais cantadores e dançadores. 67 Posso, portanto, afirmar que os indivíduos de destaque político da comunidade são aqueles que também exercem papéis importantes nos campos musical e ritual. Participei de duas reuniões do Conselho Local. Na primeira, em 31 de março de 2005, discutiram-se conflitos internos, principalmente referentes ao uso do álcool. Eles foram expostos e discutidos abertamente pela comunidade. A segunda, em 28 de abril de 2005, concentrou-se no debate sobre um projeto apresentado pela “Cáritas do Brasil”, ONG que propôs uma série de projetos relacionados ao desenvolvimento de atividades agrícolas na comunidade. A discussão girou em torno do número de famílias que seriam contempladas pelo projeto. A decisão de aceitar ou não foi vinculada à participação de todas as famílias Kalankó. O que se não acontecesse, segundo o conselho, enfraqueceria a unidade do grupo. Existe um terceiro conselho que se reúne desde 1999. Este é chamado de Conselho da Saúde e trata de assuntos relacionados com a FUNASA. Ele é liderado pelo cacique Paulo e por Cícera. Os outros integrantes são Valdomiro, filho de D. Jardilina; Edmilson, D. Joana e Abdias. O quarto conselho é o Conselho das Crianças, cuja líder é D.Joana e os outros integrantes são Zé Magrinho, dançador; Lena, que vive em Januária e Culezinha. Suas atividades são realizadas objetivando a inserção das crianças no entendimento de mundo Kalankó. O conselho organiza a “Festa das Crianças” todo mês, no terreiro ritual de Lageiro do Couro. Nesta festa realiza-se um Toré, somente com a participação das crianças. Culezinha é o responsável pela pintura corporal e o pajé pelo canto. As crianças que participam do rito, sempre são levadas para apresentações fora da aldeia, como as que já fizeram em Maceió/Al e em Delmiro Gouveia/Al. No dia 21 de maio de 2005, na parte da tarde, pude assistir um Toré especialmente 68 realizado para as crianças. O ritual começou com três cantos de toré, seguido por uma palestra sobre religião católica, proferida pela índia Quitéria (mulher do dançador Abdias). O ritual foi finalizado com mais cinco cantos de toré, que foram cantados por Rodrigo e Henrique, filhos de Culezinha. Uma semana depois, novamente na parte da tarde, o Toré das crianças foi cantado por Tonho Preto e não houve qualquer conversa sobre religião. Foto 14 – “Festa das Crianças”. Foto 15 - Toré das Crianças liderado por Rodrigo, filho de Culezinha. 69 Os Kalankó participam, também, ativamente da problemática indígena brasileira e nordestina, visitando outras comunidades e passando sua experiência de luta, e também participando de eventos e conferências sobre o tema. Os encontros fora da região do altosertão alagoano são denominados encontros internacionais. Este tipo de participação faz parte e colabora para o processo de “ressurgimento” de outras comunidades indígenas. 2.4. Os outros povos da região. Na segunda viagem que fiz para a região, em setembro de 2003, entreguei meu Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado “Kalankó –Índios Encantados”37, para a comunidade, algumas bibliotecas e pesquisadores da região. Estava pensando no significado político que o registro da história Kalankó poderia gerar. Além disso, dei prosseguimento à investigação sobre a população local, aproveitando para aprofundar minha pesquisa bibliográfica nas universidades da região. Desta vez na Bahia e em Alagoas. E conheci também os outros povos indígenas que vivem no alto-sertão alagoano. Os Geripankó têm origem num processo migratório iniciado no século XIX, no qual índios do aldeamento de Brejo dois Padres/Pe migraram para diversos pontos da região do alto-sertão alagoano, dando origem a cinco novas comunidades – os Geripankó e os Kalankó já citados, mais os Karuazu, os Koyupanká e os Katókin. Os Geripankó vivem no município de Pariconha, no mesmo alto-sertão alagoano, somando aproximadamente 1.500 indivíduos, os quais foram os primeiros a serem “reconhecidos” oficialmente como indígenas. Por isso os Geripankó tornaram-se essenciais nos outros processos de 37 No qual estudei a percepção nativa de história, de acordo com a idéia muitas vezes mal interpretada de Lévi Strauss sobre a existência de diversos tipos de historicidade e contra o imperialismo de uma filosofia da história etnocêntrica (GOLDMAN, 1999). 70 reconhecimento étnicos da área38. Além disso, é o único grupo da região que tem a terra demarcada, a qual, porém, tem tamanho muito inferior às necessidades da comunidade. O contato com os Geripankó foi fundamental para fortalecer minhas hipóteses sobre o papel central da música entre os povos da região aqui em estudo. Entre os Geripankó, minha principal fonte de informações foi Agamenon, na época presidente da APOINME – Articulação dos Povos e Organização Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo - e grande conhecedor da dinâmica política indígena e indigenista brasileira. Foto 16 – Agamenon (esquerda) numa aldeia Geripankó. Os Karuazu estão presentes, também, no município de Pariconha/Al e são compostos por três comunidades – Campinho, Tanque e Alto Pariconha. Eles “reapareceram” para o município onde vivem, em abril de 1999, porém em 2001, por divergências políticas, se dividiram em duas comunidades: os Karuazu de Tanque e os de Campinho. As duas comunidades somam aproximadamente 700 pessoas, e 115 famílias. Entre os Karuazu, construí também boas amizades, as quais se tornaram importantes interlocutores no grupo, como o cacique Edvaldo Soares de Araújo, que não é cantador, mas profundo conhecedor 38 Graças às constantes viagens de integrantes dos povos indígenas da região, o processo de reconhecimento Geripankó serviu como modelo aos outros, concedendo aos Geripankó posição especial entre eles. 71 do processo de fortalecimento étnico em que vivem, e o renomado cantador Francisco, que me falou muito sobre música. Mas principalmente, a mãe do cacique, D. Elieta, cujos pais eram do Brejo dos Padres/Pe e que me narrou, emocionada, as viagens de seu povo. O cacique Karuazu lidera a comunidade de Tanque e o pajé, Antônio José da Silva, a do Campinho. A de Alto da Pariconha, ao separar-se dos Karuazu, deu origem a um novo povo – e um novo etnônimo – os Katókin, cujo pajé é Jovelino Soares de Araújo e cuja cacique é Maria das Graças Soares de Araújo, a Nina, filha de Jovelino. Os Katókin, cujo nome foi recebido dos encantados pela cacique Nina, através de sonhos, “reapareceram” em setembro de 2002 e são compostos por 62 famílias totalizando cerca de 350 índios. Por fim, conheci os Koyupanká, que chegaram, de acordo com o cacique Zezinho, à região do Inhapi/Al, vindos de Brejo dos Padres/Pe, há cerca de 100 anos. O grupo soma cerca de 825 pessoas, que vivem no município de Inhapi/Al e em algumas comunidades vizinhas: Baixa do Galo, Baixa Fresca, Sítio Roçado, Pau-Feio e Sitio Chã. Seu cacique é Zezinho Sustero, e o pajé Antonio Gomes. A comunidade “re-apareceu” em 1999. 72 Consolido no quadro abaixo o até aqui exposto: Esquema 1. P Geripankó (1985) A N Kalankó (1998) K A R Karuazu (1999) Koyupanká (2001) A R Katókin (2002) U 73 74 Capítulo 3- História e Genealogia – De Brejo dos Padres para Januária. O primeiro elemento que evidencia o pertencimento Kalankó é a história que os liga ao antigo aldeamento de Brejo dos Padres/Pe, a partir da qual eles elaboram a memória de uma origem comum. No contexto desta memória, eles se consideram parentes dos Pankararu e dos outros quatro povos indígenas do alto sertão alagoano. A referida história, com sua memória - e esquecimentos -, sustenta-se num sistema de cálculo genealógico que constrói a conexão das famílias Kalankó atuais com aquelas das gerações passadas. O cálculo genealógico em tela alcança até a sexta geração, ou seja, a geração das primeiras famílias que chegaram na Januária. A tendência é que, com o desenvolvimento das gerações, esse cálculo aumente sua profundidade, de sorte que estas mesmas primeiras famílias sejam atingidas. Desta maneira, os Kalankó têm uma concepção genealógica da história, tudo se passando como se a história destas famílias fosse a própria história Kalankó. Nesta, o tempo de chegada das primeiras famílias na Januária é o ponto zero, a partir do qual o tempo da luta (veja adiante) foi desencadeado. 3.1. A chegada das primeiras famílias. De acordo com meus interlocutores, os Kalankó estão presentes na Januária há pelo menos cem anos, onde chegaram graças a uma migração liderada por um antigo pajé Pankararu, que teria se dirigido para lá a partir da dissolução do aldeamento de Brejo dos Padres/Pe. Não se sabe o tempo exato da chegada. Baseio-me nos mais velhos, que já nasceram na região, e principalmente em tia Maria Higino, senhora de 97 anos e forte ainda o suficiente para sobreviver em condições tão adversas. Tia Maria vive na Januária, lugar histórico e sagrado para seu povo, já que foi o local da primeira ocupação e prova da 75 longevidade do grupo. Ela faz parte da segunda geração dos Kalankó. A primeira é constituída pelas primeiras famílias que chegaram à área, que foram os Higino (o casal Francisco Higino da Silva e Antonia da Conceição) e a família Severo (o casal Severo e Tertulina). Foto 17 - Tia Maria Higino, pertencente à segunda geração Kalankó. Segundo meus interlocutores, a viagem de Brejo dos Padres/Pe para Januária foi feita em levas sucessivas de famílias nucleares. Com as primeiras já assentadas, chegaram outras famílias, aparentadas as primeiras. Assim, em pouco tempo, chegou a família de João Benedito dos Reis, a terceira a migrar para Januária. Em seguida a de José Benal e de José Benedito. Novos indivíduos foram também chegando, como Clarinda, Antonio, Renato, Firmina, João Gino, Zé Gino, Madelena, Marcolina, Josefa e Bastiana. 76 Com a ocupação da região, os casamentos foram se realizando entre as famílias que vinham de Brejo dos Padres/Pe e entre famílias não-índias (o que era evitado39), o que gerou a aceitação de novos sobrenomes pelo grupo. Além disso, neste processo algumas famílias originalmente assentadas entre os Kalankó viajaram para outras regiões do altosertão nordestino. 3.2.Dinâmica das famílias Kalankó. De acordo com dois estudos (ver anexo II): um realizado pela FUNAI, em 1998 e outro pelos próprios Kalankó, em 2005, a comunidade divide-se, hoje, entre as famílias Santos, Silva, Batalha, Gomes, Reis, Conceição e Higino, além de algumas derivações como Santos Silva, Conceição Silva, Conceição Santos e Gomes Silva. O número de famílias, porém, variou muito entre os dois estudos, o que pude comprovar no período do trabalho de campo, já que várias famílias saíram da comunidade, enquanto outras foram incorporadas. Entre a primeira e terceira viagem que fiz à região, por volta de 11 famílias descendentes dos Severo retiraram-se para o Assentamento Salgadinho, localizado ainda na caatinga alagoana. Isto aconteceu a partir de desavenças internas, quando Tonho Severo, antigo cacique Kalankó (em 2000) e pertencente à família Severo, foi acusado pelo grupo de se beneficiar financeiramente da condição de liderança. Tonho foi, então, expulso e toda a descendência dos Severo o acompanhou. Seu Jorge, mestre no Serviço de Chão do Salgadinho, por exemplo, nasceu na Januária e cresceu brincando com Tonho 39 Tonho Preto, principalmente, sempre me deixou isso bem claro, já que sua filha se casou com um não-índio e vive, hoje, do lado de fora da aldeia de Lageiro do Couro. Apesar de considerar o casamento ideal aquele realizado entre os indígenas, o relacionamento com a família de sua filha é bastante cordial. A casa dela chega a se constituir como ponto de encontro noturno entre o pajé, o cacique e alguns amigos. Lá, tomei deliciosos cafés e mantive boas conversas. 77 Preto e Edmilson. Porém, hoje vive na comunidade vizinha. Conheci também José Severo, índio “das antigas” e avô de Tonho Severo, o antigo cacique. Ele morou na Januária, no tempo de Santina, mas hoje vive viajando pelo alto-sertão nordestino visitando seus parentes. Abaixo, um diagrama que procura registrar a consolidação do Assentamento Salgadinho a partir das famílias descendentes dos Severo, isto posto em relação à família dos Higino. Diagrama 1. ? ? Maria Leonor Gomes Sandro Se alguns indivíduos se retiraram do grupo, o processo inverso também aconteceu. Algumas famílias que se mudaram de Januária a partir da segunda geração Kalankó e, hoje, vivem em Santa Cruz do Deserto/Al, foram novamente incorporadas à comunidade. Isto aconteceu quando Seu Francisco Higino da Silva, líder das famílias que vivem neste 78 município, procurou o pajé Tonho Preto, em 2002. Neste encontro, ficou acertado que estas pessoas seriam agregadas ao grupo por pertencerem à mesma linha de descendência, ligada à família Higino. Além de voltarem a praticar a música nativa participando ativamente das festas e cerimônias. O diagrama 2 procura mostrar, como a partir de um núcleo da família Higino, de Januária, deu-se a formação das famílias que vivem em Santa Cruz do Deserto/Al. Diagrama 2. 79 3.3. A Formação de núcleos de poder. A família Higino, primeira a chegar na Januária, constitui ainda hoje, o centro de poder e pertencimento ao grupo Kalankó. De alguma forma, todos os cantadores e dançadores têm alguma relação com ela e suas derivações. Estes indivíduos possuem destaque também nos Conselhos da comunidade. Além disso, todas as famílias que descendem dos Higino são aceitas como Kalankó. O diagrama 3 mostra a trajetória desta família, a partir de um único casal (Geração I), além de destacar quais são os indivíduos que possuem posição especial na comunidade40. . 40 Em todos esses diagramas vale notar como, na tentativa de seguir o pensamento Kalankó (no qual a chegada das primeiras famílias a Januária constitui o ponto zero da história), numero as gerações a partir do passado para o presente, inversão do procedimento mais usual em relação a diagramas deste tipo. 80 Família Higino Diagrama 3. Geração I Geração II Antonio Menino Honório Geração III Luis J da Silva Maria Santina Conceição Geração IV Iracema Geração V Cida Paulo Geração VI Henrique Rodrigo Cantadores - Crianças Cantador Dançador Cantador / Dançador 3.4. O Tempo Kalankó e suas ramas. Como foi posto, os Kalankó elaboram a sua história baseados num sistema de genealogias que liga as gerações atuais às primeiras famílias que chegaram de Brejo dos Padres/Pe. Esta história torna-se importante para entenderem o “novo” mundo em que 81 vivem e os processos aos quais estão ligados. Ao mesmo tempo em que legitima o grupo face à sociedade nacional. Como parte dessa história, coloca-se uma concepção de tempo, baseada em períodos vivenciados, cada qual vivido por algumas gerações, sendo a origem de tudo a desterritorialização Pankararu no século XIX. O primeiro período, denominado principalmente como tempo dos antepassados, mas também como tempo dos avôs ou tempo anterior compreende o período no qual tiveram que se misturar à sociedade do entorno. Então, como colocam, tiveram que esconder sua origem diferenciada e não tiveram a capacidade41de lutar como grupo. Esse tempo abrange desde a chegada da primeira rama (no sentido de geração) na qual “os mais velho não tinha mistura a que se encontra hoje”42; passa pela segunda rama que “só se encontra uma pessoa ... com 94 anos [Tia Maria]”43; até a terceira rama, que compreende os pais e tios dos principais cantadores e dançadores atuais44. Nesse período, o contato com a região do entorno foi importante para a reelaboração da visão de mundo nativa baseada na adequação dos costumes tradicionais à nova situação, caracterizada pela inserção Kalankó como pólo “despoderado” do universo das relações de poder estabelecido no alto-sertão alagoano. O nascimento é, desde então, praticado conforme o costume do não-índio. Normalmente, eles aproveitam alguma viagem que fazem para Água Branca para batizar seus filhos na igreja matriz, na praça central do município. Porém, quando a criança 41 Termo que indica uma relação de poder relacionada ao canto de determinada música. Este termo, entre outros, será trabalhado no item 5.3. 42 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 28 de abril 2005. 43 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 28 de abril 2005. 44 Como se vê, a categoria rama tem um segundo sentido, evidentemente relacionado ao primeiro e mais inclusivo, de grupo étnico – geração. 82 nasce, apresentam-na também no terreiro, num ritual de Praiá. O casamento é também, no mesmo costume do branco, é, porque a gente, tempos anterior, a gente era as pessoa muito massacrada, nos tempos de nossos antepassados, e a gente acompanho uma certa parte no costume do branco, né ... as rama mais nova ... tenho uma filha que puxo um branco aqui pra aldeia mesmo não tendo tanto apoio ... mas não pode obriga a vontade e amizade de cada um pra não desgosta a família mesmo sabendo ... é umas passagem errada que acontece de puxa um branco pra dentro da aldeia porque ao passar do tempo pode dar problema. 45 E o sepultamento, a partir deste tempo, é realizado na cidade (até mesmo por falta de espaço), já que se a gente fizesse, chegasse a fazê um sepultamento de qualquer pessoa ... nóis tinha que arretirá, levá pro cemitério do branco, ia sê tirado na marra, ia forçá nóis tirá, aí não tinha como a gente construir dentro da nossa cultura que é uma das coisas que é muito importante ... antepassado implantado46 dentro da própria área47. As falas nativas acima caracterizam algo muito comum no período: a perseguição. Tanto a polícia do município e os grandes latifundiários como as populações não-índias locais classificavam alguns hábitos praticados pelos Kalankó, - tipicamente da esfera religiosa - como Xangô, a partir do que faziam com as populações afro-brasileiras. Por isso, os Kalankó foram duramente reprimidos no tempo dos antepassados. Isto fez com que escondessem, inclusive, alguns rituais e gêneros musicais, já que só podiam cantar o que não chamava a atenção do não-índio, como o toré e o serviço de chão. O ritual do 45 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro no dia 19 de novembro de 2001 e 28 de abril 2005. 46 O termo implantado dá a idéia de que o morto não é enterrado, mas plantado. O que remete a outras etnografias do sertão nordestino, como, por exemplo, a tese de Neves (2005), na qual ela descreve como Xicão Xukuru, líder dos Xukuru de Pernambuco, ao ser assassinado, não foi enterrado, mas plantado na aldeia. Isto indica uma simbologia vegetal (como a de tronco/rama) forte nos grupos da região, a ser ainda trabalhada. Esta equação do enterramento funerário com a plantação vegetal evoca equações similares, de grupos indígenas não nordestinos, como, por exemplo, os Kamayurá (Menezes Bastos 1989). 47 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 20 de novembro de 2001. 83 Praiá e seus cantos eram reprimidos. Esta estratégia de ocultamento durou até o momento que denominam como tempo da luta. Este período compreende o tempo presente, iniciado a partir do processo de ressurgimento do grupo e da afirmação de sua identidade indígena. É um tempo de batalha, no qual o grupo torna-se mais forte na medida em que se reconhece e é reconhecido como Kalankó. No tempo da luta a comunidade conseguiu incorporar mais um gênero musical, o praiá, visto como relevante por todos. Desde então, os Kalankó procuram afirmar sua identidade diferenciada a fim de terem acesso a seus direitos previstos na lei brasileira, principalmente a terra. O terceiro período, denominado tempo futuro, ainda não está muito bem definido na mentalidade Kalankó. É um tempo localizado em um futuro indefinido e que só poderá ser atingido após inúmeras batalhas. É o tempo ideal, no qual o alto-sertão alagoano vai voltar a ser e pertencer ao índio. E os ancestrais encantados terão maior poder de atuação sobre a caatinga alagoana. 3.5. Rede Social no Alto-Sertão Alagoano. Conforme se pôde ver, o sistema de genealogias apresentado liga também os Kalankó aos outros povos indígenas da região. Eles possuem relações familiares de primeiro e segundo graus48 com os Koyupanká e Geripankó. Com os Katókin e Karuazu, a relação é de terceiro ou quarto grau. A partir da segunda geração que chegou de Brejo dos Padres/Pe, já é possível identificar relações de casamento e deslocamentos de residência, o que fez com que algumas famílias tenham se misturado e se dividido entre as diversas comunidades indígenas do alto-sertão alagoano. 48 Indica os graus de proximidade no sistema de genealogias. 84 A família Gomes, por exemplo, possui indivíduos entre os Kalankó, Koyupanká e Geripankó. D. Maria Jose Gomes (Koyupanká), é mãe da esposa de Tonho Preto (Kalankó). Seu pai, o pajé Koypanká, João Gomes é, portanto, sogro de Tonho Preto, e irmão de Zé Gomes (Geripankó). Do mesmo modo, Renato, filho de Francisco Higino e Antonia Conceição, primeiro núcleo familiar da Januária e irmão de Santina, deslocou-se para os Geripankó. Lá, constituiu família, representando uma conexão de primeiro grau entre os Kalankó e os Geripankó. O diagrama 4 procura mostrar como a partir de um único núcleo familiar e através de diversos deslocamentos e casamentos, a família Higino se espalhou entre os outros povos da região: Diagrama 4. 2. geração 85 Outros exemplos confirmam esta tendência. A família Conceição (Kalankó) tem parentes em segundo grau com a família Peba (Geripankó). Isto em relação à avó de Tonho Preto, Antonia Conceição. Logo, Juvino Peba, Antonia Peba e Luisa Peba, todos Geripankó, são primos de Tonho Preto. Veja o diagrama 5: Diagrama 5. A família Higino (Kalankó) também mantém relações de parentesco de segundo grau com a família Gabão (Geripankó). Isto em relação ao avô de Tonho Preto. Logo, Vicente Gabão e João Gabão são seus primos Geripankó, conforme o diagrama 6: 86 Diagrama 6. 3.5.1. As festas indígenas. A rede que liga as famílias indígenas do alto sertão alagoano é alimentada por uma série de festas, que contam com a participação dos grupos indígenas da região, com destaque para aqueles que mantêm ligações genealógicas de grau mais próximo.A Festa do Umbu Kalankó49, realizada na Semana Santa de 2005, por exemplo, contou com a participação dos Koyupanká. A recíproca aconteceu, algumas semanas depois, na Festa do Murici Koyupanká. 49 No anexo I, encontra-se uma relação dos principais eventos citados neste trabalho. Esta lista tem o objetivo de não carregar o texto com identificações e descrições repetidas. 87 Durante as três viagens que fiz à região, os exemplos mostraram-se muitos e abrangem todos os povos do alto-sertão alagoano. Na festa anual Karuazu, por exemplo, na qual celebraram o sexto aniversário de “ressurgimento”, conheci, pela primeira vez, alguns cantadores vindos diretamente do Brejo dos Padres /Pe. Isto aconteceu, porque a ligação genealógica mais próxima dos Karuazu é com os Pankararu. 3.5.2. Repertório indígena sertanejo. As festas em comentário estão assentadas na contínua reprodução e elaboração de um repertório musical comum entre os cinco povos indígenas da região, pois as canções que são cantadas nos vários encontros por determinado grupo são aprendidas pelos outros presentes e reproduzidas nas comunidades. Isto evidencia a existência de um sistema de comunicação músico-ritual supra local – espécie de linguagem franca –, o que evoca o caso xinguano (MENEZES BASTOS 1999, [1976])50. Algumas canções do repertório em consideração são bastante comuns de se ouvir por toda a caatinga alagoana. Como por exemplo, o seguinte toré cantado por D. Jardilina, e considerado particularmente importante, por ser de origem Pankararu, no Brejo dos Padres/Pe, Abre-te porta, janela, Que por ela, Eu quero entra (2X) 50 Siqueira (1951) e Menezes Bastos (2002) sugerem que esta linguagem franca com fulcro tipicamente no toré aponta para algo muito mais extenso e tradicional, pan-indígena, na região do nordeste brasileiro. 88 Eu quero visitá A mesa do ajucá (2X) A prática do complexo músico-ritual em análise, se por um lado caracteriza e constitui os povos indígenas do alto-sertão alagoano, por outro os distingue de outros grupos sociais, tipicamente não-índios. 89 Capítulo 4. Da Terra ao Espaço A música como pivô de um complexo ritual indígena. O segundo elemento que evidencia o pertencimento Kalankó é a prática de um complexo ritual, no qual a música age como pivô que liga a mito-cosmologia a alguns domínios culturais, especialmente à dança. O papel de pivô exercido pela música nos complexos rituais indígenas das TBAS tem sido evidenciado por vários autores, o que tem como âncora o trabalho de Menezes Bastos sobre os Kamayurá do Alto Xingu (1999 [1976]). Neste texto, o autor mostra que a música intermedia, “traduzindo”, os discursos verbal mitológico, de um lado, e o corporal, da dança, de outro. Isto configura o que o mesmo Menezes Bastos rotulou de estrutura mito-música-dança, para ele traço marcante da música ameríndia na região das TBAS (MENEZES BASTOS 1996, 2001). As investigações de Smith (1977) – sobre os Amuesha da selva peruana – e de Basso (1985) – tendo como objeto os Kalapálo, xinguanos Karib – dão maior amplitude a essa proposta de Menezes Bastos. Para o primeiro, a música é o centro integrador dos demais discursos rituais, para a segunda os rituais Kalapálo – quase sempre rituais musicais – encontram na música a sua chave. Entre os Kalankó, esse papel pivotal da música no complexo ritual parece também ter vigência, a música, também, “traduzindo” o mundo encantado – ou melhor, a mitocosmologia que o revela – especialmente em dança, e também em pintura corporal e adereços, assim comunicando símbolos e significados fundamentais para a visão de mundo nativa. 90 Foto 18 – Pintura corporal baseada no desenho da cruz e em formas circulares cheias, ambas comumente encontradas entre os Kalankó. O pajé Tonho Preto tem consciência do colocado acima. Ele afirma constantemente que o complexo ritual “vai dá contato com a face da terra, o espaço, né”, ou que é neste momento que se tem “a conjugação da terra ao espaço”51. O que apesar de não referir diretamente à música, aponta para a idéia de que é no complexo ritual que a mitocosmologia é “traduzida” para o índio, já que o espaço, para os Kalankó, é o lugar onde vivem os encantados, os espíritos dos antepassados que atuam no mundo terreno e a terra é onde estão os índios, que vivem o tempo da luta. Apresento abaixo, um quadro que busca esquematizar a estrutura mito-música-dança entre os Kalankó. 51 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Gregório, no dia 01 de abril de 2005. 91 Esquema 2. Complexo Ritual Pintura Corporal MitoCosmologia Música Dança Sistema de Adereços 4.1. Espaço: O Mundo Encantado. Consideremo os encanto como ser humano, apesar de não te acesso de come feijão e farinha junto, mas a gente não considera como homem morto não ... como ser da natureza, que sobrevive ... considera como qualquer árvore da natureza ... considera como vivo ... por ordem da natureza pra se vira ... numa pedrinha, numa árvore, num beija flor 52 [...] O encanto igualmente a nóis é um homem, agora só que ele é uma posição espiritual [...] ele apresenta a semente pra gente ... vive abaixo de Deus, porque maior do que Deus não tem, né, mas que trabalha, tem força pra nos defender do perigo, como indica como a gente podê se defendê53 [...]Nóis tem o nosso pai Tupã que a gente considera como um protetor da gente e significado do mesmo Cristo, [...] Deus é um só, agora aqui na linguagem, cada um povo tem [seu Deus] [...] a gente aqui se considera como católico [...] agora a gente tem nosso pai Tupã e nossa mãe Tamãin [...] a gente considera como um [...] mesmo Cristo, de todos, né, porque é um só.54 Tonho Preto gosta de falar da religião Kalankó. Em diversos momentos, nas três viagens que fiz até a aldeia, sentamos debaixo de alguma árvore, especialmente do umbuzeiro que tem na entrada de Lageiro do Couro e passamos horas conversando sobre 52 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 28 de abril de 2005. Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 19 de novembro de 2001. 54 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 18 de novembro de 2001. 53 92 os encantos, Deus, Tupã e a mãe Tamãin55. As três afirmações acima, selecionadas de nossas conversas, trazem diversas idéias do que os Kalankó pensam sobre sua espiritualidade, e especialmente sobre o mundo dos encantados. Note-se que este mundo não é objeto de crença somente Kalankó. Ele, com diferenças aqui e ali, aponta para um tipo de religião popular, comum no norte e nordeste brasileiros, que se apropria de elementos católicos, ameríndios e afro-brasileiros56. Foto 21 – Altar localizado dentro de uma casa Kalankó e facilmente encontrado na maioria delas. Para os Kalankó, Deus está acima de tudo. Tupã e a mãe Tamãin, elementos de religiões indígenas, são como Cristo e vêm logo abaixo. A base do mundo espiritual, porém, compreende a crença nos encantados, os antepassados que se transformaram em 55 Observe-se que, historicamente, Tupã é uma divindade Tupi, identificada com o raio e o trovão. Tamãin, em vários grupos também Tupi, é o termo de referência e vocativo para “avô” ou para qualquer masculino da geração +2, inclusive para cima. 56 Em Prandi (2001), por exemplo, traça-se um panorama etnográfico da crença nos encantados, presente em algumas religiões brasileiras das regiões norte e nordeste. 93 encantados, quando ainda eram vivos – portanto, não morreram - tornando-se parte da natureza. Muitos, inclusive, representam algum elemento natural, como por exemplo, o encanto Cinta Vermelha, que tem relação com o umbu. Isto aponta novamente (ver nota 46) para uma simbologia vegetal entre os Kalankó, que funciona através da elaboração de metáforas com plantas, o que é bastante interessante, e será mais bem analisado numa próxima etapa de trabalho. Os encantados estão muito ligados ao sistema medicinal Kalankó, atuando para prevenir e curar doenças, tendo, porém, outros tipos de competências. Na ocasião da morte do marido de D. Jardilina, por exemplo, os encantados consultados disseram que a causa foi uma injeção aplicada no município de Água Branca. O indivíduo é, a princípio, procurado pelo encanto, através de sonho ou numa consulta espiritual de Serviço de Chão. Posteriormente, o encanto a ele aparece na forma de uma semente, que representa algum símbolo particular do encanto. Esta semente, conforme o cacique Paulo, pode ser uma pedra, apontando pra uma litolatria, estudada por Fernandes (1938), e até uma bola de gude. O pajé Tonho Preto tem cinco sementes e D. Jardilina, uma. A semente deve ser sempre zelada, senão pode desaparecer. Os encantos que não possuem sementes no grupo devem ser autorizados a ali trabalhar pelo respectivo dono Pankararu (ou seja, o indivíduo que tem contato com o encanto). A partir do momento que se encontra uma semente, quem a encontra tem a obrigação de “coloca em trabalho”57, que significa fazer uma consulta espiritual para saber de quem é a semente e se é preciso levantar o homem. Levantar um homem tem como sentido fazer a veste que o dançador usará no terreiro. Nem todos os encantos são levantados, a maioria deles não o sendo. Os encantos que não são levantados atuam quando convocados 57 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 28 abril 2005. 94 em alguma consulta espiritual, ou apenas observando e cuidando da comunidade nos Torés. Se o encanto for levantado, o indivíduo deve confeccionar sua veste de Praiá para a qual é particularmente responsável, sendo tratado por moço entre seus iguais. Apesar de ser segredo, consegui descobrir algumas das relações entre os indivíduos Kalankó e os encantados: Culezinha, por exemplo, trabalha com Cinta Vermelha, Neco com Mestre Gavião, Edmílson com Carro Branco, Lambuzinho e Sereno; e D Jardilina com Carro Branco e Sereno. Atualmente os Kalankó possuem 11 vestes, há pouco tempo possuíam 16, além de possuírem vários outros encantos não levantados. É possível também o surgimento de novos encantos. Na terceira viagem que fiz a campo, presenciei o surgimento do caboclo (outra denominação do encantado) Seu Antônio, cuja dona é Marcinha, jovem índia Kalankó, moradora da comunidade de Quixabeira. Seu Antonio apareceu através de uma visão, quando ela estava internada no hospital do município de Água Branca, na segunda semana de maio de 2005 e faz parte dos ritos agora. O grupo dos encantados é bem dinâmico, conforme me disse D. Joana. Antigamente havia outros encantos, como a Sereia do Mar, que apesar de não possuir veste e não atuar mais no Praiá, ainda mantém seus torés cantados na comunidade. Além de Sereia do Mar, identifiquei outros encantados de destaque no tempo dos antepassados: Manoel Brabo, Caboclo da Meia Noite, Caboclo da Imburana, Caboclo Xofreu, Lenço Branco, Mestre Bizunga e Quebra Pedra. A música é sempre particular em relação a um determinado encanto, que é convocado a partir de seu canto. Cada um dos encantados tem um número específico de músicas, sendo que o máximo é 25 (divididos entre o toré, o praiá e o serviço de chão). Quanto mais cantos possuir, mais forte é o encanto, já que alguns trabalhos de cura necessitam de 95 vários cantos e, portanto, só alguns encantos podem resolver. Os mais fortes encantos entre os Kalankó são Carro Branco, Sereno, Lambuzinho e Cinta Vermelha. O mundo encantado Kalankó tem sua hierarquia, elaborada pelos encantos na época em que eram índios da terra, não do espaço. Esta hierarquia assenta-se na seguinte ordem, de clara origem militar: comandante, capitão, dono de batalhão, mestre e caboclo. Os encantados do alto-sertão alagoano fazem parte, também, de um sistema mais abrangente, podendo atuar em todas as comunidades indígenas do alto-sertão nordestino. De acordo com seu Edmilson “eles veve correndo o mundo”58. Apresento a seguir um quadro que reúne os encantados que pude identificar entre os Kalankó. Assim temos, Quadro 1. Encantado Cinta Vermelha Dono Semente Observação Levantado Culezinha Pankararu A cinta é representada por duas listas brancas encruzando Pankararu Caboclo Muderno Pankararu Caboclo Levantado Pankararu Dono de Batalhão Levantado (?) Pankararu Mestre Não Levantado Não Levantado Mestre Andorinha Capiazinho Pankararu Mestre Posição Mestre Jardim Juazeiro Verde Beija-Flor Carro Branco 58 Origem Hierarquia Símbo lo Pankararu Dono de Umbu Batalhão Não Levantado Levantado Pankararu Caboclo Pankararu Caboclo Arroz Doce Levantado Edmilson Pankararu Tonho Preto Tonho Preto Tonho Preto Edmilson e D. Jardilina Kalankó Kalankó Kalankó Pankararu Pankararu Pankararu Entrevista com Seu Edmilson, em Lageiro do Couro, no dia 10 de abril 2005. 96 Capitão Dandaruré Juazeiro Verde Lambuzinh o Sereno Pankararu Capitão Pankararu Caboclo Pankararu Comandan te Não Levantado Não Levantado Levantado Antonio Pankararu Pankararu Edmilson Pankararu Abdias também dança com esse veste Kalankó semente de D. Jardilina Pankararu Dono de Batalhão Não Levantado Mestre Gavião Jaburitiba Pankararu Mestre Levantado D.Jardilin a e seu Edmilson Pedro Pankararu Caboclo Levantado Pelé Pankararu Capitão Fernando Pankararu Levantado Paulo Pankararu Levantado Tonho Preto Kalankó Capitão Dono de Batalhão Pankararu Mestre Mestre Lavandeira Mestre Serra Branca Umbuzinho Pankararu Mestre Não Levantado Pankararu Caboclo Levantado Antonio seu Antonio ? Caboclo Não Levantado Marcinha Manoel Pankararu Bravo Kalankó semente de Tonho Preto Considerado o terceiro mais forte Pankararu Pankararu Zé Magrinho, filho de Antonio, também dança com o veste ? Surgiu durante o trabalho de campo Tempo dos Antepassado. Este encanto trabalhava com Antonio Grande, um dos grandes cantadores do passado. Seu nome original é, Manoel da Vera Cruz, mas é conhecido como Manoel Bravo, pois, conforme Paulo, é “um encanto bem esperto ... não gostava que as pessoa 97 Sultão da Mata Pankararu Sereia do Mar Pankararu Caboclo da Meia Noite Pankararu Caboclo da Imburana Pankararu Caboclo Xofreu Pankararu Lenço Branco Pankararu Mestre Bizunga Pankararu Quebra Pedra Pankararu brinque com ele”. Tempo dos Antepassado s Tempo dos Antepassado. Ela era considerada forte porque levava a doença pra zona do mar. (conforme D. Joana) Tempo dos Antepassado s Tempo dos Antepassado s Tempo dos Antepassado s Tempo dos Antepassado s Tempo dos Antepassado s Tempo dos Antepassado s 4.1.1. Coragem e Proteção: a força encantada. Os Kalankó têm a idéia de uma força encantada, proveniente da presença e atuação dos encantados no espaço ritual - o terreiro “é feito pra recebe né”59 a força, a partir do canto. A origem desta força encantada é sempre ligada a um lugar ideal na natureza, como “as mata virge da Amazônia”, como me foi confidenciado por D Joana ou a Cachoeira de Paulo Afonso, como me contou Tonho Preto. A natureza para os Kalankó é dividida em 59 Entrevista com o Kalankó Culezinha, em Lageiro do Couro, no dia 23 abril 2005. 98 três partes - a mata (selva ou força caroá), a água e o espaço. De acordo com Tonho Preto, os encantos, em sua maioria, vivem no espaço. A força encantada tem três níveis de atuação. O primeiro acontece no Toré, quando a partir do canto, os encantos apenas observam o evento. O segundo se realiza no Praiá, quando a força encantada chega ao terreiro e é dividida entre todos os dançadores, já que “o encanto faz a visita e dá força ao moço pra agüenta a caloria”60. O terceiro momento é no Serviço de Chão, quando a referida força atua de forma direta no cantador e o encanto fala para os presentes. Esquematizo abaixo esta escala de níveis de atuação. Esquema 3. - + Toré Praiá Serviço de Chão A força encantada é traduzida como fonte de coragem e proteção, sentimentos que juntos geram, de acordo com o nativo, emoção e saúde no indivíduo. Mas nem todas as pessoas têm condições de receber a força. Para recebê-la, ainda de acordo com o nativo, o corpo precisa ser forte. D Joana, por exemplo, me contou que ela não tem condições de recebê-la, por ter um corpo fraco. 4.1.2. Idéias e Cabeças. Cada música pertence a um encanto em particular. Elas são comunicadas aos indivíduos e aparecem na forma de uma idéia, que pode surgir tanto durante um sonho, quanto nas atividades cotidianas. Culezinha me disse que ”tá às vezes dentro de casa ou 60 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Gregório, no dia 1 abril de 2005. 99 mesmo no terreiro ... tá dançando ... vem aquela idéia de como é que vai se feito aquele toré ... sai na mente, a gente vai na comunidade”61. Para se entender uma idéia, deve-se ter uma cabeça boa. Entre os Kalankó, as melhores cabeças são as de Tonho Preto e Culezinha. No alto-sertão alagoano, Zezinho Koyupanká é, talvez, o mais respeitado. Culezinha, por exemplo, teve a idéia do seguinte toré de Cinta Vermelha: Foi naquela mata O caboclo vem de lá (cantador 2X) Ele vem pro terreiro vestido de caroá (participantes 2X) O lê lê lê há há Olé lê lê há há (Complemento) 4.2. A Terra – lugar de índio. Nas três viagens que fiz à comunidade, presenciei uma série de cerimônias em lugares e com significados diversos. Na primeira e segunda, tive a oportunidade de observar os Kalankó se apresentando para não-índios. Em 2001, na aldeia de Lageiro do Couro, por exemplo, eles mostraram o Toré e o Praiá para duas austríacas, que 61 Entrevista com Culezinha, em Lageiro do Couro, no dia 23 abril 2005. 100 representavam uma ONG européia62. Na oportunidade, ficou clara a significação política da apresentação, já que com ela delimitavam uma identidade na demanda de benefícios. Especialmente na terceira viagem, presenciei dezenas de apresentações internas à comunidade, quando então o termo usado é festa63 (como são, na maioria das vezes denominadas), rito ou penitência (como prefere o pajé, referindo-se mais ao Praiá). Os Kalankó praticam 3 rituais: o Toré, o Praiá (que pode ser ligado ao Menino do Rancho ou não) e o Serviço de Chão. Todos os momentos rituais ocorrem pela noite, cabendo principalmente ao pajé ser o líder e cantador principal deles, ou seja, aquele que guia o desenvolvimento do rito. Em alguns casos, porém, o pajé pode passar a responsabilidade a algum outro indivíduo de destaque da comunidade. As mulheres podem participar do Toré e do Serviço de Chão, porém não do Praiá. Neste, elas trabalham na preparação das comidas. A esposa do pajé é a coordenadora da atividade, a culinária deste ritual sendo baseada na carne de carneiro, já que nele não se pode comer da de bode, ou porco. Elas se responsabilizam também pela preparação das pinturas corporais. O Toré é, geralmente, oferecido por um indivíduo, como promessa a algum encantado, como o Toré que D Joana oferece todo mês, há 40 anos, como promessa pela cura de sua mãe. O ritual pode ser oferecido, ainda, em homenagem a alguma data especial ou, como falam, só por brincadeira. Trata-se de um rito de caráter coletivo e público que conta com a participação de toda comunidade, além de não-índios. Observei também, em diversas ocasiões, a grande participação das crianças. 62 Ver Anexo I. A celebração da festa sempre constituiu o núcleo irrenunciável da cultura “Tapuia”, na medida em que permitia gerir a refundação do tempo (o começo do ano ou da estação). A festa acompanhou de várias formas a vida indígena nas aldeias missionárias e é no quadro deste ritual – junto com a cosmologia – que se organizou a absorção dos elementos cristãos – como a cruz (POMPA, 2002:376). 63 101 O rito pode ser realizado em diversos espaços. Presenciei desde alguns feitos no interior da casa de um indivíduo64, até alguns praticados fora da aldeia, quando assumem também um significado político externo, agindo como sinal diacrítico de identificação. O ritual acontece constantemente – basicamente todo sábado -, e se realiza a partir da prática de alguns cantos e danças específicas, que cessam quando o cantador emite um grito. O canto é baseado na estrutura “pergunta-resposta”, na qual o cantador canta dois versos e os participantes respondem com mais dois, como por exemplo, Eu subi lá no alto da serra Só pra ver a fundura do mar (cantador) Canta homem, canta mulher E os índio que chegam lá (participantes) Além de algumas variações, No céu, na lua cheia na terra nasce uma flor (Cantador) no espaço, quero andorinha Para ser meu protetor (Participantes) lê o há hei lê o há há 64 Ver Anexo I – Terço Rezado para Nossa Senhora da Saúde. 102 lê o hei lê o há há (Complemento) Em cada Toré, sempre se deve cantar pelo menos três músicas65. A dança baseia-se na estrutura “núcleo-periferia”, na qual os cantadores se colocam no centro da roda e os participantes na periferia. Ela é realizada sempre no sentido antihorário, sendo feita em solo ou parelha. Os passos consistem em rodopios e voltas. Na festa de emancipação política do município de Água Branca66, percebi um terceiro passo. Este lembra a movimentação realizada em um dos momentos do Praiá, quando os participantes vão e voltam em direção ao cantador e o ritmo da música torna-se mais rápido. No centro do círculo, permanecem os cantadores e os melhores dançadores, ele sendo considerado espaço de maior poder. Na periferia, os outros participantes, cujo canto tem caráter responsivo. Isto dá a idéia de uma gradação de prestígio e senioridade entre o estar no núcleo ou na periferia da formação músico-coreográfica, o que pode ser comparado à relação espaço sagrado/centro e espaço profano/periferia, que Ribeiro (1992: 101) identificou entre os Pankararu/Pe. O esquema abaixo representa a formação núcleo/periferia identificada no Toré Kalankó, na qual o centro indica o sagrado ou o espaço, local onde vivem os encantados, e a periferia aponta para a terra, onde vivem os índios. 65 Conforme Tonho Preto em entrevista, é lei cantar pelo menos três, “é um direito é por lei que a gente exige que cante pelo menos as três se não tem condição de canta mais ... não é aceitável cantar uma ou duas ... é um costume nativo mesmo, é de tradição“ - Lageiro do Couro, 28 abril 2005. 66 Ver Anexo I. 103 A estrutura núcleo/periferia é recorrente em outras musicologias ameríndias. Menezes Bastos (1978, 1996) a identifica entre os xinguanos Kamayurá, onde no núcleo de uma performance musical localiza-se o canto central, que se relaciona com uma atividade musical periférica, cuja música é de caráter “comentacional” em relação ao núcleo. Foto 20 - Toré realizado em 2005 em Januária. Nele, percebe-se os cantadores localizados no centro da dança e a maioria dos participantes na periferia. 104 Foto 21 – Toré realizado em 2001 em Lageiro do Couro. Nele, fica claro o movimento realizado em sentido anti-horário. Na parte final do rito, consome-se uma garapa – bebida feita a partir da mistura de água com algum tipo de doce, seja rapadura, mel ou mesmo açúcar. Antes do consumo, encruza-se (quer dizer desenhar uma cruz) a garapa três vezes com o maracá (instrumento musical – ver item 4.2.2.) e o campiô (cachimbo). O segundo tipo de ritual praticado entre os Kalankó é o Praiá ou “Festa dos Encantados”. Ele é realizado apenas em algumas datas especiais: no Sábado de Aleluia, quando tem o nome de Ritual do Umbu, já que é a época do umbu selvagem, e no dia 25 de julho (em comemoração ao “ressurgimento”). Além disso, ele é praticado quando os Kalankó são convidados para participar da festa de grupos aliados. Tenta-se, de acordo com a disponibilidade dos participantes, realizar um ritual-treino no terreiro de Januária, de quinze em quinze dias. O Praiá só pode ser praticado em espaço indígena, especialmente nos diversos terreiros espalhados pelo sertão nordestino e pode dar origem ao Menino no Rancho. Nesta variação, um grupo de dançadores e outro de padrinhos praticam um duelo ritual no 105 qual os padrinhos atuam para a proteção de um menino. Geralmente participam dois homens para cada dançador e o rito é realizado em agradecimento pela cura de alguma criança. Antes de cada Praiá, o grupo de dançadores reúne-se no interior do Poró, onde colocam as vestes e iniciam o rito a partir de cantos baseados principalmente na gaita (instrumento musical – ver item 4.2.2.) e no uso do campiô. No Poró não pude entrar, o não-índio não é aceito. As mulheres, só algumas que tenham mais de 45 anos, indicando uma relação com a menopausa. Foto 25 – Poró Koyupanká, localizado em Inhapi/Al e baseado no modelo utilizado por todos os povos indígenas do alto-sertão alagoano que o possuem. Cada um dos dançadores pode ter um parceiro de rito, que atua no caso de ele não estar em condições de participar, seja por alguma viagem ou pela falta no cumprimento das obrigações (atividades diárias baseadas na defumação e encruzamento dos elementos rituais, no uso do campiô e na prática de banhos cheirosos – ver item 6.2.1.). Antonio, 106 dançador, por exemplo, tem em seu filho Zé Magrinho, um parceiro que o substitui constantemente, sendo seu substituto natural quando ele não tiver mais condições físicas de atuar. O canto do Praiá é baseado no jogo de sílabas e vogais, como por exemplo, ae eia heio eio, emitidos por um cantador. E a dança pode ser realizada de dois modos. O primeiro tipo de formação é em linha ou cordão, no qual os dançadores dançam em fila, realizando alguns movimentos específicos, mas sempre em roda e com sentido antihorário. O que caracteriza uma estrutura circular que abrange a totalidade do terreiro (desenhando muitas vezes a forma de uma cruz). Os dois dançadores mais importantes desta formação são: o primeiro da fila, denominado cabeceira e o último, derradeiro. O cabeceira deve entender o que o cantador está cantando e guiar a movimentação dos outros. O derradeiro deve fazer a ronda e proteger a fila formada pelos dançadores. Os outros dançadores devem seguir o movimento do cabeceira e manter o ritmo do cantador, realizando a marcação da música, que se faz com o grito. Estes gritos não podem ser à esquerda do cantador e devem ser feitos nos quatro pontos de força do terreiro. Estes pontos são localizados nos quatro extremos do terreiro e se ligados formam o desenho de uma cruz (conforme o esquema abaixo). 107 Os principais movimentos dos dançadores na formação em linha são: (C representa o cantador nas figuras abaixo), O movimento pode variar para, 108 Ou ainda, A cada duas ou três músicas, os dançadores fazem outro tipo de formação, a parelha, na qual o canto se torna mais rápido e os dançadores realizam pequenas rodas em casal, com movimentos de ida e volta em direção ao cantador. Na parelha “é que todos encanto tão ali presente participando ... ali o negócio tá quente, o negócio tá bom ... abafado ...”67. O ritual, que tem início às oito horas da noite do sábado, prossegue até o dia seguinte, quando ao meio dia, cada dançador pega seu prato de comida, preparado especialmente para a ocasião e dá três voltas no terreiro, além de um grito em cada um dos pontos de força, para depois se retirar para o Poró. 67 Entrevista com o cacique Paulo, em Lageiro do Couro, no dia 01 de abril de 2005. 109 Foto 23 – Dançador de Praiá no Ritual do Umbu, levando seu prato para o terreiro. No final do ritual, consome-se a garapa, que é colocada no centro do terreiro. Cada dançador, além do cantador, abençoa a garapa com o campiô e o maracá (três vezes, através da defumação e encruzamento), sendo que a partir daí a garapa que é produzida por Tonho Preto a partir da mistura de suco de umbu com mel silvestre, é servida a todos. Para finalizar, os dançadores realizam mais um movimento em forma de cruz, a partir do qual se fecha o terreiro. Então, os dançadores iniciam o Toré e se retiram para o Poró. O Toré continua por mais uma hora e os cantadores puxam pelo menos mais três rodas68. 68 Cada roda tem a duração de um canto. 110 Foto 24 – Um dos movimentos realizados pelos dançadores no Praiá em Linha. Foto 25 – Outro movimento dos dançadores no Praiá em linha. Neste, circulam em sentido anti-horário por toda extensão do terreiro. O terceiro tipo de ritual é o Serviço de Chão ou Mesa do Ajucá69. Nele, busca-se a cura para alguma enfermidade através de consulta direta aos encantados. Caso não se resolva o problema no ritual, encaminha-se o doente a um médico da sociedade não-índia. O ritual é realizado com centro em um pano quadricular colocado no chão, com um pouco 69 Ajucá é a denominação de uma árvore comum na região, possivelmente, uma das espécies da Jurema. 111 de fumo e alho em cada uma das extremidades. Na primeira etapa do rito, os indivíduos dão três voltas ao redor do pano, fumando o campiô. Depois de aberto, o ritual prossegue com três rodadas de cantos, sendo que o primeiro deve ser um canto específico ao ritual. Os outros podem ser músicas de outros gêneros consideradas poderosas. Então, encruzase o doente três vezes, com o campiô, maracá e alho. O cantador e alguns auxiliares (só com o maracá) cantam algumas músicas. Após a segunda ou terceira, o cantador recebe um (ou vários) encantado(s), que receita algum remédio do mato, dá conselhos ou responde a consultas. Na parte final, encruza-se a garapa, que é servida a todos os presentes. 4.2.1. Base Ritual. É interessante observar como tanto os elementos utilizados nos rituais, os movimentos, a ordem de desenvolvimento e as relações estabelecidas são semelhantes. Os elementos: o fumo, o alho, o campiô e o maracá, e o uso que se faz deles são os mesmos nos três ritos. Os movimentos também são semelhantes. Os movimentos circulares realizados com o alho no Serviço de Chão são exatamente os movimentos dos dançadores de Praiá e dos participantes do Toré. A ordem de desenvolvimento do rito é também comparável. O Toré deve ter pelo menos três cantos, o que comparo com o momento da parelha no Praiá, que acontece após duas ou três músicas. Semelhante à chegada do encanto no Serviço de Chão, que acontece após dois ou três cantos. Esta ordem musical aponta para uma estrutura seqüencial, identificada por Menezes Bastos (1999 [1976]) entre os Kamayurá, e que se refere a uma seqüência musical padrão, responsável pelo desenvolvimento do rito, através de transformações de vários tipos. 112 Acredito, porém, que das três estruturas coreográficas e composicionais70 identificadas pelo autor, esta é a de menor uso entre os Kalankó. Do mesmo modo, as relações cosmológicas estabelecidas nos três ritos são também as mesmas. De acordo com Tonho Preto, os ritos articulam a terra, ligada ao índio e o espaço, aos encantados, estabelecendo uma conexão entre ambos e entre os Kalankó e seus ancestrais. 4.2.2. Instrumentos Musicais. Os Kalankó têm dois instrumentos para a prática musical, o chocalho e a gaita. O chocalho trabalha direto com o encantado e é chamado de maracá ou chichiá, sendo, às vezes, identificado como a semente do encanto. Ele é feito da cabaça do coité, uma fruta característica da região, e é particular a um indivíduo, que deve encruzar e zelar pelo instrumento, já que se não o fizer, a música sai meio moxa, quer dizer fraca. A gaita é um instrumento de sopro. Ela é produzida a partir do bambu ou do cano de PVC e funciona como um apito, sendo utilizada no espaço ritual para a comunicação entre os dançadores. Em oposição ao chichiá, a gaita não precisa ser zelada e por isso não é fundamental para o contato com os encantados. 70 Ver item 1.2. 113 Foto 26 – Detalhe de foto que mostra o maracá e a gaita na mão do pajé Tonho Preto. 4.3. O Terreiro: Entre o Mato e a Cruz – ritmo e espaço na elaboração do mundo encantado. Os Kalankó possuem dois terreiros onde praticam seus rituais, um em Lageiro do Couro e o outro em Januária. O terreiro sempre é chefiado por um indivíduo, que é denominado pai de terreiro e pertence a um encanto, denominado dono. No caso de Lageiro do Couro, o pai do terreiro é Seu Edmilson e o dono do terreiro é o encantado Lambuzinho. No caso de Januária, é Tonho Preto e o dono é Cinta Vermelha. Todo terreiro deve, preferencialmente, possuir o Poró. Os Kalankó só o possuem em Januária. 114 Desenho produzido pelas crianças Kalankó durante minha primeira viagem. Este desenho representa a aldeia e o terreiro de Lageiro do Couro, que se localiza entre o primeiro conjunto de casas (1, 2, 3, 4, 5) e a oca, ao lado da roça. Além disso, pode ser tomado como modelo referente à organização da aldeia e do terreiro entre todos os povos indígenas do alto-sertão alagoano. 115 Além disso, observei um espaço denominado oca na maioria dos terreiros da região, lá os indivíduos se juntam para alguma reunião dos Conselhos ou para praticar o Toré. Foto 27 – Oca (à esquerda) do terreiro de Lageiro do Couro. No momento do ritual, o terreiro se transforma em mato, espaço onde os encantados podem atuar. Esta transformação acontece a partir da formação em cruz, o encruzamento, que abre o terreiro para a força encantada. O uso da cruz evidencia a apropriação pelos Kalankó de um elemento da religião católica, traduzido no processo de catequese. Ela é fruto da história do grupo e, aí da imposição dos missionários (POMPA, 2003) e representa um símbolo de proteção e abertura aos encantados. O mato, ou a posição do mato é, também, constantemente usado no discurso Kalankó. O mato é relacionado à natureza e de acordo com Tonho Preto é o espaço que os encantados podem atuar, representando também a cultura tradicional indígena. Não é por acaso que o ritual anual dos Praiás acontece na época do umbu selvagem ou do mato – em março. 116 Neste contexto, a música dá a dinâmica ao complexo ritual e permite aos dançadores realizarem o desenho da cruz, transformando a terra em mato. Por isso, conforme Paulo me disse, o canto Kalankó é o ritmo da cruz. O que me faz pensar que a cruz é o símbolo chave de abertura da sinfonia musical nativa, espaço-tempo onde os encantos podem atuar, e momento de transformação e re-elaboração da caatinga alagoana. 117 Capítulo 5. A Idioma Kalankó. Tonho Preto me disse que a música Kalankó, que se constituí pelo toré, o praiá e o serviço de chão, é denominada a idioma, dando a idéia da globalidade do sistema musical. Os outros povos que também possuem gêneros musicais afins, como os Tremembé/Ce, os Kiriri/Ba, os Tuxá/Ba e os Pankararé/Ba (OLIVEIRA, 1986), ainda de acordo com Tonho Preto, por possuírem algumas diferenças na música e na dança, teriam idiomas paralelas. Culezinha me confidenciou, em outra ocasião, que na verdade, tratam-se de três modos diferentes de cantar uma mesma base. Nesta, o toré, aponta a terra, lugar onde os Kalankó vivem e no qual a atuação do encanto é menor; o praiá indica a dimensão mediadora entre a terra e o espaço e representa o mato, possibilitando o contato com o encanto; e o serviço de chão que atua no espaço, possibilitando a ação direta do encanto. 5.1. Etno, Musicos e Logia – Uma Teoria Nativa da Música. Procuro, a partir de agora, descrever a teoria musical Kalankó. Uma teoria musical, de acordo com Menezes Bastos (1999 [1976]), compreende um sistema de identificação, nomenclatura e classificação dos elementos que constituem um universo musical. Trabalho de acordo com o campo de estudos da etnomusicologia, baseando-me em algumas obras surgidas em fins da década de 1970, que trouxeram uma nova postura para a disciplina, identificada com a busca da explicitação do ponto de vista nativo (ZEMP (1978), MENEZES BASTOS (1999[1976])). Este último autor produziu, ainda, um modelo de etnografia da música a partir de um suporte teórico-metodológico inovador, o qual influenciou todo o desenvolvimento do campo de estudos da etnomusicologia (SEEGER, 1999). 118 Além disso, baseio-me nos trabalhos pioneiros da escola de estudos da música popular inglesa, principalmente em Middleton (1990) e Shepherd (1991), que também fundam uma nova postura de abordagem da música, entendendo a música como meio de expressão social que elabora identidades sociais. Para esta escola, a música não tem limites fixos e definidos, podendo ser sempre re-elaborada, o que aponta a denominada “teoria da articulação dos significados musicais” (MIDDLETON, 1991), e remete ao conjunto das representações sociais construídas e articuladas através de uma estrutura musical, e ao processo de criação e recepção musical. A base da investigação deste campo de estudos é a experiência social, para o conhecimento da qual deve-se dar ênfase à própria performance musical. Shepherd (1990), ainda indica que ao se construir uma estrutura analítica para se abordar a música popular, deve-se entender particularmente os aspectos sociais, culturais e pessoais da música, estudando-a não isoladamente, mas como um aspecto da realidade social. 5.2. A Música no Alto-Sertão Nordestino. Eu mesmo, como pesquisador, identifiquei a música Kalankó – compreendida como integrante de um complexo ritual -, já na minha primeira viagem à região, como elemento relevante para o grupo. Afinal, participei de diversos momentos musicais na comunidade, os quais ficaram marcados na minha memória e serviram de inspiração para minha entrada num programa de pós-graduação em antropologia social. Após a viagem, pesquisando a história Kalankó para meu TCC, percebi que esta música tinha origem no aldeamento de Brejo dos Padres/Pe, no século XIX. E desde lá já era identificada pelos missionários como elemento principal na negociação cultural com 119 os indígenas, agindo como tradutora e dando novo sentido aos dois universos simbólicos distintos (POMPA, 2002)71. Posteriormente, a partir da década de 1930, a mesma música tornou-se um dos sinais de diferenciação étnica eleitos pelo estado brasileiro como indicador de indianidade, o que fica claro, por exemplo, no trabalho de Dâmaso (1935), que mostra como o Toré foi fundamental nos processos de territorialização da região. Nestes processos, o Toré foi constantemente utilizado como forma de comunicação e diferenciação com relação à sociedade nacional, produzindo significados sociais específicos e servindo como base de determinados processos sociais (SHEPHERD, 1991). No caso aqui tratado, dos processos de etnogênese observados no alto-sertão nordestino. Assim, nas palavras de Shepherd (1991), a música pode alterar o status quo social, constituindo um meio de expressão e comunicação que liga diretamente o indivíduo ao grupo social e à sociedade inclusiva. Se a música ocidental permite ao indivíduo sentir a sua ocidentalidade, tanto quanto conhecêla, a música indígena permite ao índio sentir sua indianidade, tanto quanto conhecê-la. Então, se por um lado esta música, que teve origem imediata no século XIX, sempre serviu como critério de identificação indígena para os missionários, o estado, a sociedade civil e o indivíduo, de outro lado, ela criou redes de sociabilidade entre os próprios grupos indígenas. Isto ocorreu a partir da re-elaboração dos seus significados, através de novas relações construídas entre os diversos elementos musicais e os agentes sociais envolvidos, o que criou novas ordens musicais e sociais (MIDLLETON, 1990). Posteriormente esta música tem um papel extremamente relevante como elemento constituidor das relações sociais e políticas entre os grupos indígenas sertanejos, que 71 Processo pelo qual, ambos os universos culturais convergiram para um remanejamento em direção a um novo significado. 120 trocam músicas para fortalecer alianças, como por exemplo, quando os Kalankó incorporaram novas famílias de Santa Cruz do Deserto/Al, por conhecerem um determinado repertório musical. Isto aconteceu em 2002, quando seu Francisco, descendente da família Higino e morador do município acima citado, procurou o pajé Tonho Preto negociando a inserção de algumas famílias no grupo – todas descendentes dos Higino. O que foi prontamente aceito baseado na linha de descendência e no conhecimento do toré (ver item 3.2.). Trocar músicas, por outro lado, pode também dividir determinados grupos, como ocorreu com os Kambiwá/Pe, que em 1998 passaram por um processo de segmentação a partir do embate entre dois repertórios musicais específicos, cada qual representando um grupo. Isto gerou o surgimento dos Pipipã/Pe, mais identificados com um tipo de música presente nos rituais do Praiá (BARBOSA, 2004). No alto-sertão nordestino, portanto, além de mulheres, bens ou palavras (LÉVISTRAUSS, 1970), trocam-se músicas. No caso aqui tratado, as comunidades que partilham da mesma linguagem musical possuem também as mesmas canções. Estas são transmitidas de grupo a grupo, construindo um mesmo repertório musical e alimentando uma intensa rede de migração musical, na qual destacam-se algumas músicas que são mais identificadas com o aldeamento de Brejo dos Padres/Pe, que de acordo com os indivíduos, possuem maior poder, são músicas pesadas72. 72 Termo bastante utilizado quando se fala de música na região. Quer dizer que tem mais importância ou tem mais poder. Isto em oposição ao termo brincadeira utilizado para cantos mais leves ou menos poderosos que remetem a outros gêneros musicais e a outros significados. 121 5.3. A Teoria Musical Kalankó – Uma Aproximação Preliminar. Um dos maiores estranhamentos que tive no trabalho de campo foi com o modo de falar nativo. Conforme coloquei desde o início, os Kalankó falam uma variante do português – que segundo conheço não mereceu tratamento lingüístico especializado - que inclui uma construção semântica do vocabulário e uma fonética bastante próprias. Assim, a fim de entender com que tipo de universo semântico eu estava lidando, procurei logo de começo estabelecer a terminologia musical Kalankó partindo das palavras e suas conotações para a prática musical. Keil (1979) foi a base desta atividade. Ele estuda a música dos Tiv da Nigéria, mas esbarra no fato de que estavam em guerra e os eventos musicais suspensos. Keil teve, então, que repensar seus procedimentos antropológicos, baseados nos modelos, principalmente, de Merriam (1964) 73. Sua solução foi partir do sistema terminológico da vida diária, para entender o significado da música Tiv. Para minha sorte, os eventos musicais Kalankó, não estavam suspensos. Ao contrário, principalmente na terceira viagem, pude observar o momento de maior intensidade musical da comunidade: as principais festas anuais. O método de Keil, porém, foi importante, já que evitou erros grosseiros de interpretação, removendo as distorções naturais do meu vocabulário. E, além disso, ajudou a formular corretamente o objeto de 73 Trabalho que se tornou marco no desenvolvimento da etnomusicologia. É Merrian quem dá uma boa contribuição ao estudo do antigo e permanente dilema etnomusicológico. Este supõe a disciplina como composta por duas vertentes distintas, a musical e a antropológica, e conseqüentemente por dois objetos separados – a música, ligada à arte e ao sentimento, e a cultura, vinculada à ciência. Ele formula, então, o estudo da música, a partir do comportamento (cultural) humano. A música é entendida aí como comportamento aprendido e modelado (1964: 06), ou cultura. Posteriormente, ele toma a etnomusicologia como o estudo da música na cultura. Suas perspectivas, porém, continuam a entender a música como uma esfera ontologicamente destacada da cultura (veja MENEZES BASTOS, 1995). 122 trabalho, abrindo uma porta fundamental para a pesquisa – a própria comunicação com o mundo musical nativo. Seguindo o raciocínio, minha primeira preocupação foi procurar o conjunto de termos específicos da música Kalankó, deixando de lado boa parte de termos gerais, que não representariam semanticamente o universo a ser pesquisado. Os principais termos selecionados, a partir das entrevistas, do contato diário e da observação participante, foram: trabalho, levantar, entoar, toré, pesado, capacidade, brincadeira, posição, linha, toante, puxar, pisada, puxada, voz e canto. Estes termos foram depois divididos por categorias sintáticas, tais como verbos, adjetivos, advérbios e substantivos, para a elaboração de um sistema terminológico. Procurei, então, compreender a semântica das palavras, através da análise dos diversos textos e contextos utilizados. Busquei o texto no discurso nativo, que é diretamente ligado à representação de si e nos dá acesso aos outros códigos e sistemas culturais. E o contexto, nos diversos momentos, nos quais o discurso é produzido, já que as metáforas ou imagens elaboradas para significar a música são usadas em outras esferas da vida social, com destaque para os momentos em que falam sobre o ritual e o futebol. Por fim, tentei entender quais são os conceitos nativos que são referentes à prática musical. Já que todo o processo de elaboração de um vocabulário musical, apesar de inconsciente, não é feito ao acaso e remete a significados próprios. O que me permite refletir sobre as significações mais profundas da prática musical. O próprio termo “música” não existe no vocabulário nativo. Música para eles serve para designar o que é produzido pelo não-índio. Os termos Kalankó equivalentes são canto, toante ou linha, apontando para o que é produzido pelo índio. Estes três termos podem ser substituídos pela expressão a idioma, representando a globalidade do sistema 123 musical. Observo que assim, dá-se especial valor para o que é produzido na comunidade e tem origem na tradição. Seu Zé Antonio, um dos mais velhos do grupo, por exemplo, contou e cantou-me no Ritual do Umbu, diversas linhas de toré, dizendo conhecer todas. O verbo “cantar” também não é utilizado. O termo correto é puxar. Noto que puxar significa “trazer algo novo à realidade”, e assim (como para os Tiv) dá a idéia de “iniciar um processo”. Logo, “cantar” para os Kalankó é “iniciar um processo” e requer uma série de complementos à ação. Outro verbo bastante utilizado é entoar, que significa acompanhar um canto, auxiliando o cantador principal. Cantar é “iniciar um processo” o que aponta para uma transformação da realidade. Para os Kalankó o verbo levantar74 traz esta idéia de criação e transformação. No almoço anterior ao Ritual do Umbu, realizado na Semana Santa, seu Zé Antonio, anfitrião da tarde, falou muito sobre o levantamento de seus filhos, indicando o processo de cura de ambos. Foto 28 – Seu Zé Antônio fuma seu cachimbo na oca de Lageiro do Couro. 74 De todos os termos destacados para esta análise preliminar, levantar é o que menos me aparece claro. Isto ocorre devido, possivelmente, à sua especialmente profusa polissemia. 124 Outros exemplos confirmam esta tendência: na novena de Santa Cruz do Deserto75, que presenciei no mês de maio da minha terceira viagem, seu Francisco, líder das famílias Kalankó da região, me contou a história do levantamento do grupo étnico ou da transformação pela qual passou a comunidade ao afirmar a identidade indígena. As vestes de Praiá também são levantadas ou criadas e transformadas. A música também pode ser levantada. O termo levantamento, na prática musical, tem a ver com criação musical e indica que a música pode consolidar um processo e transformar a realidade. O termo posição é outra palavra importante. Ele designa que tipo de processo vai ser trazido para a realidade, apontando qual das linhas ou gêneros musicais vão ser praticadas. As posições podem ser classificadas a partir dos termos, brincadeira, trabalho e pesado, indicando o conteúdo da posição. Zé Magrinho, por exemplo, filho de Antonio e dançador Kalankó, contou-me que o time de futebol da aldeia tem uma zaga bem pesada. A princípio, imaginei que ele referia-se a uma zaga devagar e lenta, fácil de ser superada. Mas estava enganado. O mesmo termo pesado foi usado por Paulo, numa outra conversa sobre futebol. Ele me disse que o jogador Romário tem um pé pesado. Imaginei, então, que a palavra indicasse a potência do chute. Estava no caminho certo. Numa terceira ocasião, o mesmo Paulo me disse que o clássico paulista Palmeiras e Corinthians, é um jogo pesado. Imaginei, então, que o termo remetesse à tensão do jogo e a sua importância. Acho que me aproximei do verdadeiro significado. O adjetivo pesado indica na prática musical toda aquela música mais intensa, nas quais a presença do encantado é mais forte e sua atuação é mais direta. Além disso, aponta para tudo que é mais relevante e poderoso para a comunidade. Outros exemplos apontam 75 Ver Anexo I. 125 a mesma tendência. Numa conversa76 com Val, filha de seu Jorge Gomes e moradora do Assentamento Salgadinho, ela usou o termo pesado para designar um livro muito bom e útil – referindo-se à sua qualidade. Em outra ocasião, num jogo de cartas denominado “burrinho”, ouvi a expressão carta pesada, indicando a importância da carta. Outro adjetivo que aponta para o mesmo significado é trabalho. Trabalho indica também uma posição de puxar um canto poderoso, próprio para o encanto atuar diretamente. O adjetivo brincadeira, outra posição para o canto, é utilizado sempre que se refere à prática do toré. Isto em oposição à posição pesada, apontando para o caráter “menos poderoso” ou “mais aberto” do canto e indicando o tipo de processo a ser iniciado. Todos ressaltam, porém, que o toré é uma brincadeira de respeito. Assim, se para praticar o toré deve se ter respeito, para se praticar o praiá deve se ter respeito e capacidade. Afinal, só assume uma posição e inicia um processo, transformando a realidade, quem tem capacidade para isso. Existem pessoas que têm capacidade para assumir determinada posição, outras são capazes de assumir todas. D. Jardilina, por exemplo, tem a capacidade de puxar o toré e o serviço de chão, mas não o praiá. Valdomiro, filho de D Jardilina, só puxa o toré. Já o pajé Tonho Preto tem capacidade de puxar todas as linhas. O termo capacidade parece apontar, assim, para duas idéias relacionadas: competência discursiva e poder. Note-se que não por acaso, quem tem a capacidade musical, tem um destaque político maior, já que possui o poder de transformação da realidade. Na minha segunda viagem, numa das conversas que tive com Tonho Preto, perto de sua roça em Gregório, ele me disse que no tempo dos antepassados, os Kalankó não tiveram a capacidade de assumir a posição pesada. Eles só puxavam linhas de 76 Em 18 de abril de 2005. 126 brincadeira e não tinham o poder de transformar a realidade. Por isso viviam escondidos e incorporados ao município de Água Branca. A expressão tempo da luta, referente à história Kalankó e elaborada em relação de oposição à de tempo dos antepassados, apesar de não estar ligada diretamente à prática musical, é bastante comum no discurso Kalankó quando falam sobre música. Ela mostra o difícil período em que vivem, iniciado a partir do momento em que tiveram a capacidade de puxar posições pesadas e transformar a realidade da caatinga. O termo terra, também seguidamente repetido, mostra o quão importante é para a comunidade a territorialização, e traz também a idéia do mundo encantado, ligado como se viu, ao espaço. Concluo, assim, que o tempo da luta só vai ser vencido quando os Kalankó – territorializados tiverem capacidade de “transformar a realidade” da caatinga alagoana e instaurar o mundo encantado. O termo terra parece ser, então, a chave do tempo da luta, a territorialização podendo garantir aos Kalankó o início de uma nova posição. A posição do tempo futuro, o tempo encantado e ideal. Resumo abaixo o sistema terminológico até aqui apresentado: 127 Espaço O esquema acima representa o processo que é iniciado pela música e que transforma o mundo nativo. Este processo, que é baseado no canto, tem origem no mundo encantado, e atua diretamente na terra. A partir do espaço, as canções que são levantadas podem ser puxadas ou entoadas, apontando para sua posição, ou seja, para que tipos de processo vão iniciar. O que depende da capacidade do cantador. O processo iniciado pode estar ligado ao rito do Praiá e do Serviço de Chão, quando então o canto é denominado pesado ou de 128 trabalho, e pode estar, também, ligado ao rito do Toré, quando então o canto é denominado brincadeira. Alguns outros termos são importantes para se entender a teoria musical nativa. Três deles, definem os elementos constituintes do canto Kalankó – a pisada, a puxada e a voz. A pisada, de acordo com Tonho Preto, é o que determina a força da música. Ela é produzida a partir do som que os pés fazem ao bater no terreiro no momento da dança. O bom cantador deve ter uma boa pisada para manter o bom andamento do canto, garantindo o ritmo da música. A pisada pode ser pesada ou mais fraca. Para Culezinha, por exemplo, a pisada preferida é a pesada, é ela que dá emoção. A expressão pisada pesada é muito comum na comunidade, eu mesmo fui identificado através dela, quando depois de dançar a noite toda no Ritual do Murici Koyupanká77, fui parabenizado pelo cacique Zezinho, que disse que eu tinha uma pisada pesada. A pisada é, às vezes, reconhecida como sendo do próprio encanto. D Joana me disse que, numa ocasião, os encantos apareceram para curar sua mãe, através de um trupé (quer dizer o barulho que os cavalos fazem quando galopam, “... terereterere”). O que indica que a pisada está relacionada ao mundo encantado. Isto aponta para a idéia de que uma boa pisada depende da puxada. Foto 29 – Detalhe da pisada num Toré, cujo som é um dos elementos constituintes do canto nativo. 77 Realizado entre 16 e 17 de Abril de 2005 -Ver anexo I. 129 A puxada é produzida através do balanço do maracá, a partir da pulsação intermitente do instrumento, que determina o andamento do canto. Note-se que isto está de acordo com os estudos de Pereira (2004) sobre os Kapinawá/Pe. Além disso, a puxada deve ter um tom mais fraco do que a voz, ou seja, a voz deve sempre prevalecer. O bom cantador sabe controlar a puxada, que pode variar mesmo em se tratando do mesmo gênero musical, já que os cantos Kalankó podem ter a puxada mais ou menos rápida, o que é fundamental para a prática cerimonial e a relação com o mundo encantado. Quanto mais rápido o andamento da puxada, maior a atuação do encanto. Foto 30 – Detalhe da puxada num Toré, outro dos elementos constituintes do canto nativo. O terceiro elemento do canto Kalankó é a voz. A voz talvez seja o elemento mais importante de todos, já que é classificada como viva (indica ser da tradição do índio – ver item 6.2.) e deve ser acolhida78 pelos demais participantes. O que garante a qualidade da voz é o registro e o timbre, que podem ser facilmente reconhecidos entre os povos do altosertão alagoano. A característica preferida da voz masculina varia entre tenor e barítono, com preferência para a primeira. A voz feminina preferida tem característica de soprano. A postura corporal é fundamental para a boa voz – talvez por garantir certa empostação. É interessante como eles odeiam o cantor do programa de televisão 78 Termo que indica que a voz deve ser aceita, respeitada e obedecida. 130 “Domingão do Faustão”, o Caçulinha, justamente pela falta de atitude ou empostação da voz ao cantar. Foto 31 – Pajé Koyupanká mostra uma das posições do cantador na hora do canto. Foto 32 – Pajé Koyupanká, mostra outra posição do cantador na hora do canto. 131 5.4. Categorias Voco-Sonoras - Da voz humana para a voz encantada. Para aproximar a classificação Kalankó dos gêneros musicais, baseei-me nas gravações dos eventos in-loco e nas entrevistas semi-dirigidas, nas quais registrei um bom repertório para análise (cerca de 400 cantos e discursos). De acordo com Seeger (1987), que estuda os Suyá, existem vários gêneros de comunicação verbal e sua análise deve primar pela perspectiva inter-relacional entre eles. Os Suyá possuem quatro gêneros vocosonoros: o discurso (speech); a instrução (instruction); a canção (song) e a invocação (invocation). Todos possuem algumas características sonoras referenciais, que são expressas de forma diferente em cada um dos gêneros, como o tom, o timbre, a alteração fonética e o tempo. Os Kalankó possuem cinco gêneros voco-sonoros e entre eles, três gêneros musicais. São eles: o “discurso da liderança”, o toré, o praiá, o serviço de chão e o “discurso encantado”. Seguindo Seeger (1987), procurei estudar estes gêneros voco-sonoros como um sistema inter-relacionado, no qual os diversos gêneros distinguem-se pelo emprego diferencial de características sonoras inerentes à teoria nativa Kalankó, como a pisada, a puxada e a voz. O “discurso de liderança” é público e utilizado tanto nas reuniões dos conselhos, nas reuniões exteriores, como nos encontros festivos. Ele tem a voz como elemento principal e a puxada como complemento. A voz assume valor maior, já que deve ser acolhida (ver nota 78) pelos demais indivíduos. A puxada serve para abrir a memória, proporcionar a concentração necessária e para proteção, já que sempre se está gastando energia numa reunião. Os Kalankó possuem três gêneros musicais. Como os Suyá, eles não cantam canções de amor, de trabalho ou de protesto – suas categorias musicais compreendem músicas 132 cerimoniais, nas quais, é através do canto que se estabelece o encanto no tempo presente e se transforma a realidade. O toré é um gênero chave neste sistema musical. A voz é o elemento fundamental e a pisada o complementar. Um bom cantador de toré é aquele que puxa a roda por muito tempo e conhece um bom repertório de cantos. Estes são baseados numa estrutura “pergunta-resposta”, na qual o cantador canta dois versos e os participantes respondem com mais dois, além de algumas variações. O canto termina com um grito, emitido pelo cantador, e outro repetido pelos participantes. Por exemplo, Caboclo de pena, não pisa no chão (cantador); Peneira no ar, que nem gavião (participantes) Ou ainda, Em cima daquela serra, tem um terreiro de preá (cantador); Canta homem, canta mulher, e os índios que chegam lá (participantes). Além de algumas variações sobre esta base, com um complemento produzido a partir do jogo de vogais, característicos do praiá, Vamô minha gente, uma noite não é nada (2 X) ô, quem chego foi Kalankó (Cantador) 133 No romper da madrugada (participantes) Vamo vê se nóis acaba(Cantador) O resto da empeleitada (participantes) Lê lê lê eio há há Há há he Eio a há há (Complemento) Muitas vezes, o desenvolvimento da peça, baseia-se no canto e repetição deste complemento. O toré permite maior variação. De acordo com Tonho Preto, uma só letra pode dar origem a quatro ou cinco novos torés, como por exemplo: Urubu de serra negra caiu as pena, de come mangaba verde (cantador) lá na baixa da jurema ole olé côa (participantes) Que pode ser cantado como, olé olé côa gavião fez o ninho, lá na baixa da jurema, olé olé côa. O canto pode ser realizado a partir da improvisação, conforme observei na volta da 134 novena de Santa Cruz do Deserto79, quando cantamos um toré criado na hora por Tonho Preto, falando de mim, da festa e de Culezinha. O toré é a música que se canta desde o tempo dos antepassados e a que se pratica no dia a dia. Foi muito comum durante minhas três viagens observar como os indivíduos cantam em diversos momentos cotidianos, desde num jogo de dominó até na hora de ninar o filho, como fez Zé Magrinho, deitado na rede de sua sala, em Lageiro do Couro. O toré age, também, como marco na memória dos indivíduos. É a partir de algum canto, que o indivíduo se lembra das suas realizações e daquelas do grupo. Cida, esposa de Culezinha, por exemplo, me cantou um lindo toré, memória de quando invadiram a sede da FUNAI em Maceió: Somos índios brasileiros da bandeira nacional(cantador) viemos por nossos direitos no governo federal(participantes) De acordo com meus registros, o canto de toré pode durar de 3 a 22 minutos. Alguns torés podem, ainda, ser usados no Serviço de Chão. Isto acontece quando, conforme Paulo me disse, são classificados como mais pesados, por terem origem Pankararu. É comum ouvir na comunidade que todos nasceram no toré, porém é o praiá que é por vezes, considerado mais vivo. O praiá é um canto masculino cujo elemento fundamental é a pisada, que é complementada pela puxada. O cantador é responsável por estabelecer a puxada, que deve ser seguida pelos dançadores. 79 Ver anexo I. 135 O canto do praiá pode ser denominado de linha (ou cordão) e de parelha, e ambos dependem da repetição de células, baseadas num jogo de sílabas e vogais, que são repetidas durante a execução da peça. De um universo de aproximadamente 150 praiás, registrados durante a pesquisa de campo, o padrão de execução identificado é a formação de três células, A, B e C, que podem ser articuladas nas seguintes formas, He o ha he80 He ha he hoa A He ho ha he He ho ha haia He ho ha he He ho ha haia He ho ha he He ho ha haia B He ho ha he He ho ha hoa A He ho ha he He ho ha haia B He ho ha he Ha he ha heia He ho ha he He ho ha heia C Ou, 80 81 o hái hai81 o há hai o hai hai A Um hai hai ha Um Hai hai hai B Canto executado por Tonho Preto, no Ritual do Umbu, em Lageiro do Couro. Praiá executado por seu Edmilson, no dia da despedida da minha terceira viagem, em Lageiro do Couro. 136 o hai ha A Hai ha hum Hai ha hum Hai ha hum Hai ha hum Hai ha hum B O Hai hum O Hai hum O Hai hum C Ho hai hai A Ho hai ha hum Ho hai ha hum Ho hai ha hum Ho hai ha hum Hai ha hum Hai ha hum Hai ha hum B Ho hai hai A Hai ha hum B o hai ha hum oha ha hum C hai ha hai A ho hai ha hum B ha i ha hum oi C 137 Ou ainda, Ha ua hei o hei he82 Ha ua hei o hei he Ha ua hei o hei he Ha ua hei o hei he A Hei ho hei ho ha hei ha he Hei ho ha hei ho ha hei B Ha ai hei a hei a Ha ua hei o hei a Ha ua hei o hei u C Hei ho hei ho hei ha hei Hei ho hei ha hei ha B Ha ai hei a hei a Ha ua hei o hei a Ha ua hei o hei u C Ha heio he hoy he Ha hei o ha hei a B Alguns cantos têm uma introdução, realizada com as gaitas, Gaitas Hei han há83 Heio heio han há Heio heio han há Heio heio han há Heio há hei han há Heio há hei han há Heio há hei han há Heio há hei han há Introdução A B 82 Executado por Tonho Preto, no Ritual do Umbu, em Lageiro do Couro. Canto executado por Tonho Preto, num ritual treino realizado no dia 10 de abril de 2005, no terreiro de Lageiro do Couro. 83 138 Heio heio han há Heio heio han há A Heio há hei han há Heio há hei han há Heio há hei han há B Haua há hau han há Hau há há hau han C Em alguns outros praiás, ainda, identifiquei trechos cantados em português, baseados nas letras do toré ou nas saudações presentes no “discurso encantado”. Esta forma de cantar, característica do praiá, é semelhante à de outros grupos indígenas das TBAS, como a dos Xavante, estudados por Aytay (1985), em cujo canto é bastante comum o uso de “sílabas” aparentemente sem conteúdo lingüístico semântico (: 73-76)84. No praiá, a puxada, a pisada e a voz são mais lentas ou, de acordo com Tonho Preto, mais arrastadas. Quando a puxada do canto se torna mais rápida, os dançadores realizam pequenas rodas em casal e fazem movimentos de ida e volta em direção ao cantador. É o que chamam de praiá de parelha. Na parelha, a pisada continua sendo o elemento mais importante, já que confere a qualidade de pesada à música. Tonho Preto me disse que “a puxada de parelha sempre é mais pesada ... é a diferença que tem no canto mesmo ... a pisada é mais forte ... força mais” 85, o que torna o canto de parelha mais ligeiro. Assim, na parelha a voz é mais forte, a pisada é mais intensa e a puxada é mais rápida. 84 Não somente algumas destas “sílabas” – aparentemente “non sense” lingüísticos – como muitas de suas seqüências aparecem profusamente nas letras das canções do Yawari xinguano conforme descrito por Menezes Bastos (1989). 85 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 01 de abril de 2005. 139 No canto de parelha o desenvolvimento da peça é o mesmo do praiá de linha. Adiciona-se, porém, uma complementação (A -cantador e B -dançadores), na qual o cantador emite uma frase, que é respondida pelos dançadores. O que acontece no momento em que os dançadores vão e voltam em direção ao cantador, como, por exemplo, no canto abaixo, He ho hei o86 he ho hei o he ho hei o A he ho hai B he ho hei o he ho hei o A he ho hai he ho hei o he ho hei o he ho hai B A B Ho hai hei o Hau ha hei a C He ho hei o A He ho hai B Ho Ha Ho PARELHA Ha Ho ha Do universo pesquisado, o canto de praiá – de linha ou parelha - variou de (+-) 3´30” até (+-) 11´30”. Porém, a grande maioria dura por volta de 5 minutos. 86 Praiá executado no Ritual do Umbu, em 26 e 27 de Março de 2005, na Januária. 140 O outro gênero musical é o serviço de chão, que é muitas vezes classificado como uma variação bem próxima do praiá, e é geralmente cantado na abertura e no fechamento do rito de mesmo nome. Entre estes momentos cantam-se torés pesados e praiás. Este canto é feito também, através da repetição de estruturas baseadas num jogo de sílabas e vogais, porém não identifiquei nenhuma estrutura repetida. Além disso, a diferença em relação ao praiá é que o andamento é bem mais rápido. A puxada é seu elemento mais importante, já que garante o andamento acelerado, o que é fundamental para o estabelecimento pleno do encanto e sua conseqüente ação direta. A voz deve ser mais fraca, como a praticada pela melhor cantadora do tempo dos antepassados, Santina. Identifiquei ainda entre os Kalankó outro gênero voco-sonoro: o “discurso encantado”. Este tipo de discurso acontece no ritual do Serviço de Chão, após o cantador puxar dois ou três cantos, e é emitido pelo encantado, que se manifesta no próprio cantador. Ele é público e a voz é a característica principal, já que deve ser acolhida (ver nota 78) pelos outros participantes. Normalmente o encanto faz uma saudação a Deus, Nossa Senhora, alguns personagens importantes do alto-sertão, como Padre Cícero, Frei Damião e às pessoas presentes, e realiza uma consulta espiritual relacionada principalmente a uma doença, quando então aconselha o uso de alguns remédios do mato. 141 Abaixo, um quadro que reúne comparativamente os cinco gêneros estudados: Voz Pisada Puxada + - +- Toré + +- - Praiá - + +- Serviço de Chão - - + Discurso Encantado + - +- Discurso de Liderança Neste quadro, percebe-se como as características inerentes à música Kalankó variam entre os diversos gêneros voco-sonoros da comunidade e perfazem uma trajetória que vai da voz acolhida do “discurso de liderança” à voz acolhida do “discurso encantado”, caracterizando o sistema da música vocal nativa. O que expressarei melhor no item 5.4.2. 5.4.1. O Isturro. O isturro é o grito que o cantador e/ou os dançadores emitem no meio de uma execução musical e serve para marcar momentos importantes da peça. Quando é um só, o isturro marca o fim e o começo de uma peça, seja ela de qualquer gênero. O cantador só para de cantar quando ouvir este grito. Neste caso, o isturro é aquilo que Menezes Bastos (1989) chama de vinheta, espécie de afixo marcador de início e começo de peça ou seqüência de peças musicais. O isturro pode marcar também o momento do cantador aumentar a voz, o que acontece no praiá, quando os dançadores emitem três gritos. 142 5.4.2. A voz. É a voz, seja do índio ou do encanto, o elemento fundamental do canto Kalankó, já que deve ser acolhida (ver nota 78), e interfere, portanto, diretamente no mundo Kalankó. Isto fica claro ao se olhar para o conjunto de gêneros reunidos no sistema dos gêneros voco-sonoros da comunidade. Neste sistema, pode-se notar que há uma trajetória de transformação que vai da terra ao espaço, ou da voz acolhida do homem para a voz acolhida do encantado. No esquema abaixo, apresento cada etapa desta trajetória. Terra Discurso de Liderança - Voz Toré - Voz / Pisada Praiá - Pisada / Puxada Serviço de Chão - Puxada / Voz Discurso Encantado - Voz Espaço 143 5.5. O poder da música: a força encantada organizada a partir da voz. Como se pôde ver, os Kalankó identificam o que é “música” – para eles idioma - em relação ao que é não-“música”, baseados na relação entre a base sonora produzida na comunidade e o mundo encantado. Assim, “música” é o que estabelece o encantado no terreiro e tem poder de atuação na comunidade. Os gêneros musicais Kalankó têm uma mesma base sonora, produzida através de uma música preponderantemente vocal, que se utiliza do chocalho e da gaita como complementos. A melodia contém, ainda, algumas características especiais, como variações microtonais, alterações de afinação e emissões de voz não convencionais. Evidentemente que tudo isto somente poderá ser adequadamente objetivado através de procedimentos analíticos, baseados em transcrições musicais e espectografia acústica, os quais pretendo realizar em estudos futuros. Mesmo na ausência – no presente trabalho – dos referidos procedimentos, e baseando-me exclusivamente na audição continuada da música Kalankó, entendo que vale a pena levantar a seguinte hipótese geral sobre a música Kalankó: quanto maior o perfil de freqüência da onda sonora característica de cada gênero musical, maior a presença dos respectivos encantos, ou seja, maior a força encantada – proveniente do espaço - na terra. Isto constitui um continuum que varia do toré – menor freqüência / menor presença - ao serviço de chão – maior freqüência / maior presença, o praiá nele ocupando posição intermediária. Por outro lado, compreendo que é possível estabelecer uma relação também interessante entre as dimensões do espaço ritual características de cada gênero e o maior ou menor poder de atuação dos respectivos encantados. Agora, teríamos um continuum que varia do Serviço de Chão (espaço menor) ao Praiá (espaço maior), o Toré posicionando-se a meio caminho. Cruzando os dois continua, o seguinte quadro pode ser 144 levantado – como hipótese -, sobre a relação entre a freqüência da onda sonora, as dimensões do espaço ritual e a atuação do encanto (força encantada) nos três gêneros musicais Kalankó. Espaço Físico Freqüência da Onda Sonora Atuação Toré +- - < Praiá + +- +- - + > Serviço de Chão Isto configura ainda o sentido indicado pelos Kalankó quando se referem à elaboração e uso de pontos de energia no espaço ritual, através dos quais atuam os encantados. Portanto, de acordo ainda com o que foi colocado no item 4.1.1, a força encantada tem três níveis de atuação na comunidade. No toré, a força está presente, mas não tem muito poder de ação. No praiá, ela já atua mais no terreiro, sendo dividida entre os dançadores. E no serviço de chão, ela tem poder pleno de atuação e transformação do mundo Kalankó. 145 Capítulo 6. Ritual Musical e o Complexo da Jurema – Transformações indígenas na caatinga alagoana e formas de elaboração de uma indianidade. Depois de exploratoriamente investigar a elaboração de uma história Kalankó e a prática de um complexo ritual, no qual a música é o pivô que liga a mito-cosmologia aos discursos no/do corpo; após descrever preliminarmente a teoria musical nativa que está na base do referido complexo e da citada história; intento agora brevemente entender quais são as relações e os significados articulados no complexo ritual que expressam a idéia de indianidade. Nesta direção, vale reter que os ritos Kalankó caracterizam-se como rituais musicais, similares aos de muitos outros grupos das TBAS (MENEZES BASTOS, 1989, 2001). Recordo que Basso (1985) identifica os ritos Kalapálo como musicais (: 246), na medida em que “a natureza especificamente musical da performance é o meio simbólico a partir do qual a comunicação é fabricada” (: 253). 6.1. O Complexo da Jurema. A cultura indígena é a cultura viva, nativa do mato, porque os antepassado, quando os branco chegaram, encontraram os índio foi na mata, não foi em casa, foi no mato ... as oca ... era de palha de capim ... não era casa de alvenaria ... nem estrada tinha pra anda, era vareta ... pra caça, pesca ... os antepassado buscava nas mata, caçava fruta, buscava mel pra come com caça ... hoje, a gente se sente e conhece que a parte da gente busca o suco do umbu é uma parte nativa, dos antepassado, o mel a mesma coisa ... o ritual é parte dos antepassado ... continua no ritual vivo nativo da terra87 No começo da minha terceira viagem, devido ao forte calor noturno, fui dormir alguns dias na oca central de Lageiro do Couro. Numa destas ocasiões, o cacique Paulo também estava lá. Como fazia tempo que não nos falávamos, passamos boa parte da madrugada conversando sobre a vida no sul do país e na caatinga alagoana. O depoimento 87 Entrevista com Paulo, no dia 01 abril de 2005, em Lageiro do Couro. 146 apresentado acima foi feito por Paulo no meio de nossa conversa, e me fez pensar sobre o que é ser índio no alto-sertão alagoano. E o que é ser ou estar vivo para ele? De acordo com o filosofar de Paulo, os Kalankó acreditam que ser índio é ser do mato, o qual é considerado vivo. Ser índio é, portanto, estar vivo. O que aponta para uma relação mato / vivo, em oposição a tudo que não é do mato e, portanto, é não vivo. Percebi, então, que estas idéias são ordenadas e praticadas no complexo ritual musical, o que ocorre a partir da articulação de determinados elementos, que são classificados como vivos, através da qual se elabora um ciclo que vai da Jurema88(madeira viva) aos encantos, entidades que vivem no mato, e por isso, são vivas. Isto indica uma relação Jurema / Encantado e aponta para o Complexo Ritual da Jurema89, bastante trabalhado na literatura sobre o alto sertão nordestino (REESINK, 2000; MOTA & ALBUQUERQUE, 2002), complexo este no/do qual os Kalankó, que aparentemente não estavam inseridos, se mostram praticantes, de uma maneira própria, conforme adiante trabalharei. O Complexo da Jurema, segundo Mota e Barros (1990), é uma evidência da mistura afro-indígena que existe no território brasileiro, e compreende não só o uso do elemento chamado Jurema, mas todo o universo de representações e concepções que existem em volta dela, a partir do que se elabora uma identidade indígena (MOTA, 2005). Ser índio, assim, no nordeste brasileiro, está ligado à posse de uma história em comum, e especificamente à prática de um amplo universo de rituais musicais, inserido num complexo ritual maior, denominado Complexo da Jurema, através do qual os Kalankó têm contato com alguns símbolos e significados articulados e relevantes para o grupo, e que 88 O termo jurema designa na fitoterapia tradicional brasileira diferentes espécies dos gêneros Mimosa, Acácia e Pithecelobium, entre outras; e ganha, na sinonímia popular, diferentes sobrenomes de adjetivações, como : Jurema Mirim ; Jurema Preta ; Jurema de Caboclo ; Jurema Branca e Jurema Roxa. 89 Este Complexo Ritual se estende pelos estados de Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe. 147 devem ser, ainda, situados e interpretados para se tornarem conhecimento Kalankó. 6.2. Sistema vivo – o ciclo do Jurema entre os Kalankó. A prática do Complexo da Jurema entre os Kalankó torna-se clara ao se reunir o universo dos elementos rituais por eles classificados como vivos. Estes elementos pertencem, para os Kalankó, à tradição do índio e, por isso, representam sua identidade. Para ser classificado como vivo, muitos destes elementos devem receber o sinal da cruz, ou seja, devem ser encruzados. Os elementos classificados como não-vivos não são reconhecidos como tradicionais e, portanto, não têm tanto efeito nos rituais e no dia-a-dia. Os elementos vivo muitas vezes são relacionados com a natureza, como o mel, as ervas medicinais, as frutas, as raspas de árvores e os encantados. O primeiro elemento deste sistema ritual é uma árvore: a jurema. Ela é comum na área, é considerada viva e com sua madeira faz-se o campiô, além de se preparar banhos medicinais. Os Kalankó, porém, não a usam em bebidas, como acontece com outros povos da região. Ajucá, que aponta para o ritual de cura Kalankó, é outra denominação para a jurema. Os Kalankó detêm ainda, um grande conhecimento sobre as propriedades medicinais de outros elementos naturais, entre os quais, a imburana de cheiro, usada como aditivo ao tabaco, podendo também servir tanto como remédio para dor de barriga e tosse, quanto para banho de limpeza. Usam também a raiz do alecrim de vaqueiro e a semente da melancia, como remédios contra a febre, e a vassourinha de botão, contra dor de barriga. Outros elementos são, ainda, utilizados para banho medicinal e remédio do mato: flor da catingueira, andu branco, a raiz do poi, cabeça de frade, maracujá de estrada e ameixeira. Outros elementos que integram este universo provêm da cultura material. Entre os mais importantes está o cachimbo ou campiô (também chamado de poi ou coaqui). O 148 campiô pode ser feito da madeira da jurema, quando é considerado vivo, ou a partir do barro queimado (não-vivo). Ele é usado para a defumação dos outros elementos e deve ser fumado cotidianamente (para isso, desenha-se uma cruz na testa de quem for usá-lo). O fumo é misturado, principalmente, com a imburana de cheiro e com o alecrim90. Foto 33 – Detalhe de campiô na mão de Culezinha. Todos os itens da cultura material Kalankó são ligados a seu sistema ritual, podendo ser classificados como vivos ou não-vivos. Estes objetos agem, também, como símbolos materiais da identidade indígena, colaborando para a sua diferenciação do não-índio e a construção de sua imagem91. Para a produção destes itens, utilizam-se os materiais encontrados no meio ambiente, como sementes, madeiras, bambus, cascas do côco, o meiru, uma planta nativa e o carcará, outra - difícil de ser achada atualmente. Usa-se, também, o osso de gado, além de materiais industrializados, como é o caso do colar que observei em Tonho Preto, feito a partir de fragmentos de peça de dominó. O sistema ritual vivo segue com o chocalho, que serve para dar a dinâmica musical do rito e encruzar os outros elementos. O chocalho é considerado vivo porque trabalha direto 90 91 Entrevista com o Pajé Tonho Preto, em Lageiro do Couro, no dia 18 de novembro de 2001. Ver trabalho de AMORIM, 2003. 149 com o encantado e é fundamental para a prática musical. A gaita, outro instrumento musical, é considerada não-viva. Outro elemento de grande importância do universo em descrição é a veste de Praiá, produzida entre os Kalankó desde o começo da década de 1970, quando Tonho Preto viveu em Tacaratu, próximo do Brejo dos Padres /Pe, onde aprendeu a confeccioná-la. Ela é feita com a palha de coqueiro (caroá) e é considerada viva, sendo marcante na prática ritual e na construção da imagem da comunidade. A veste é composta pela máscara, cinta, chapéu e saia. E deve ser refeita ano a ano, mas, por causa da falta de caroá, a matéria prima, os Kalankó fazem-na de dois em dois anos. O chapéu é da pena do peru, ave bastante encontrada na aldeia. As penas são importantes, também, para a fabricação do cocar, no qual se usa a pena da galinha (guiné). A máscara é feita da mesma palha do veste. E a cinta, que é um pano retangular colocado nas costas do dançarino no momento do ritual do Praiá, é fabricada pela esposa do pajé. Ela é confeccionada com o algodão produzido na região e traz algumas representações gráficas ligadas aos encantados (na maioria das vezes, relacionada à cruz). 150 Foto 34 – Modelo de veste do dançador de Praiá. Foto 35 – Modelo de cinta utilizado na veste de Praiá. O elemento seguinte é a garapa, como vimos, a mistura de água com algo doce, especialmente o mel do mato. Ela é considerada viva, a partir do encruzamento e 151 defumação. Os Kalankó produzem outros artesanatos, os quais são considerados nãovivos, como é o caso do arco e flecha, saia, rede ou colares e pulseiras. Foto 36 – Um dos artesanatos Kalankó. Foto 37 – Modelo de saia produzida a partir da palha de um coqueiro comum na aldeia e bastante utilizado no Toré. Por fim, o elemento que completa o sistema volta à esfera natural: os encantados, que são considerados parte da natureza. Fecha-se, então o ciclo Jurema / Encantado. E a força encantada pode ser puxada ao espaço ritual. 152 É o universo destes elementos vivos que constrói e expressa a indianidade Kalankó, no contexto do complexo ritual, intermediado pela música, e no qual elementos da natureza e da cultura material são colocados em conexão. No esquema abaixo, o universo em consideração é apresentado na ordem em que seus elementos são usados nos ritos. Vivo Cruz Jurema Não Vivo (Natureza) Antepassados Campiô + C U L T U R A Chocalho Garapa + Veste (Natureza) + + Mundo Encantado + 6.2.1. Obrigações. O mundo Kalankó é cheio de obrigações. Para que o elemento vivo se mantenha como tal, seja uma semente, veste, ou terreiro, seu portador deve cumprir algumas obrigações ou deve zelar por ele. Existem vários tipos de obrigações, que são ligadas ao encruzamento e à defumação do elemento. 153 O maracá encruza-se de dois em dois dias. A veste de Praiá, todo dia. A semente encantada que representa materialmente o próprio encanto também deve ser zelada. O corpo é outro espaço para obrigações. A obrigação do índio é tomar nove banhos cheirosos antes do ritual, três por dia (na terça, na quinta e no sábado). O banho cheiroso é composto por maracujá de estrada (mato), catinga de cheiro (mato), imburana de cheiro (árvore grande), junco (batata de planta) caroá (batata de planta nativa) e dente de alho. O dia Kalankó também tem suas obrigações. Tonho Preto me disse que deve sempre, ao acordar, fazer o sinal da cruz. Este sinal deve ser repetido quando for para a cama dormir. Ele deve, também, fumar o campiô diariamente e encruzá-lo duas vezes ao dia. O ciclo anual também tem suas obrigações. O Ritual do Umbu, no Sábado de Aleluia, é uma obrigação, diferente do rito de 25 de julho, realizado em celebração ao dia em que os Kalankó “reapareceram”. Este ainda não virou tradição e por isso é classificado como não-vivo. 154 Considerações Finais. O desenvolvimento deste trabalho baseou-se na exploração do que significa ser – ou melhor, vir a ser - índio no alto-sertão alagoano. Isto a partir da investigação de uma concepção de história, elaborada pelos Kalankó, baseada num sistema de genealogias que liga as famílias Kalankó de hoje àquelas que viviam no aldeamento missionário de Brejo dos Padres/Pe, no século XIX. Além disso, baseou-se também na análise preliminar de um complexo ritual, no qual a música exerce o papel de pivô, ligando a mito-cosmologia a alguns domínios artísticos, especialmente à dança. Centro também deste trabalho, foi a descrição exploratória desta teoria musical, que diz respeito a um sistema de identificação, nomenclatura e classificação dos elementos referentes ao universo musical. Entendo que obtive evidenciar que os objetos por mim estudados são absolutamente fundamentais para a elaboração do vir a ser Kalankó na região, constituindo também diferenças em relação a outros grupos – indígenas e não - e formando uma rede de sociabilidade entre os povos indígenas que vivem no alto-sertão nordestino. Compreendo também que as descrições dos objetos acima aproximam os Kalankó – tipicamente quanto à sua música e complexo ritual - de outros tantos povos indígenas das TBAS. As estruturas mito-música-dança e núcleo-periferia – como também, em menor grau, a estrutura seqüencial -, características segundo Menezes Bastos (1996, 1999, 2001) da musicalidade ameríndia das TBAS, parecem estar amplamente presentes na música Kalankó. Além disto, o uso da música como canal de comunicação com o mundo espiritual, observado em todas as cerimônias Kalankó, mas especialmente na música do Serviço de Chão, é recorrente em diversas etnografias das TBAS, como, entre tantas outras, as de Aytai (1987) e Montardo (2002). Por fim, o caráter de sistema de 155 comunicação que o citado complexo músico-ritual Kalankó detém, sistema que elabora uma rede supra-local entre os cinco povos do alto-sertão alagoano, uma vez mais nos leva para paisagens ameríndias amazônicas, como especialmente a xinguana (MENEZES BASTOS 1999 [1976]). Não se trata, aqui – anacronicamente -, de recolher elementos sócio-culturais, deles vindo a compor uma lista a ser comparada com uma ideal lista de “amerindianidade”, a partir do que poder-se-ia proferir o veredicto “os Kalankó são índios”. Não, o que propõem-se evidenciar neste trabalho é que efetivamente os Kalankó constituem um grupo étnico, grupo este que para sua construção encontra na história genealógica e no complexo ritual – prenhe de musicalidade – seus elementos básicos. Que este complexo de rituais musicais evoca seus similares ameríndios das demais áreas das TBAS, não resta dúvida. Isto parece apontar para ele, então, como elemento estratégico, eventualmente residual, mas irrenunciável e irredutível do devir índio de todos esses povos. Em termos especificamente Kalankó, o complexo músico-ritual em consideração descortina uma forma toda sua de atuação no/do mundo nativo, sendo desencadeador de processos extremamente importantes para a vida da comunidade, envolvida numa muitas vezes dramática situação de contato com o mundo não-índio. Estes processos estão relacionados com a força encantada e têm poder de transformação na caatinga alagoana, possibilitando a construção de novos tempos para o grupo. A primeira das transformações indicadas neste trabalho é a que se refere à mudança do tempo dos antepassados para o tempo da luta. Ela é fortemente referida na história nativa, mostrando uma tomada de consciência do grupo e expressando uma nova realidade. Aponta, também, para o processo de afirmação de uma identidade indígena, 156 ligada a uma concepção de história e à prática de um complexo ritual no qual a transformação do terreiro em mato é fundamental. O mato se torna, então, o espaço, morada dos encantados. As transformações em comentário possuem, em comum, alguns padrões de relações antagônicas, já apontadas e trabalhadas. São elas, Vivo/Não Vivo; Pesado/Brincadeira; Centro/Periferia, e especialmente a relação Espaço/Terra, que é fundamental na prática musical Kalankó e para a afirmação de sua identidade diferenciada. A música Kalankó – no seio do complexo ritual do qual é o pivô - é, assim, mais do que sistema de negociação, tradução, identificação ou significação. Trata-se ela, na realidade, de uma variante local, Kalankó, de uma linguagem indígena pan-nordestina, uma linguagem franca responsável, no contexto sertanejo, pela formação de uma ampla rede de sociabilidade entre indígenas e não-indígenas e pela elaboração da visão de mundo nativa. É ela que estabelece as relações mais estratégicas da sociedade indígena, de um lado com o estado e a sociedade nacionais, de outro com os próprios indígenas Kalankó e outros, e entre os indivíduos. É, por fim, ela que torna possível a ponte com os encantados, o meio ambiente e a história. 157 8. DESNATURALIZANDO A CLASSIFICAÇÃO - O SERTANEJO VAI VIRAR ÍNDIO E O ÍNDIO VAI VIRAR SERTANEJO A população do alto sertão alagoano que se identifica e é identificada como sertaneja descende de famílias que para ali foram, a partir de fluxos migratórios e processos históricos diversos. Estas famílias elaboraram no decorrer do tempo algumas redes de sociabilidade com o objetivo de conviverem na mesma região. Seguindo a tendência mais comum da população brasileira, elas negaram na maioria das vezes, a presença indígena na área. Até mesmo para a manutenção do status quo, no qual participam em boa parte do tempo como sujeitos territorializados e melhor posicionados nas relações de poder econômico-sociais estabelecidas na região. Do mesmo modo, parte da população que se identificava no tempo dos antepassados apenas como sertaneja, a fim de se preservar perante os municípios do entorno e manter alguns de seus sistemas culturais em constante uso, se re-classificou como indígena, no período denominado como tempo da luta. Tal processo ocorreu a partir da construção de uma linha de descendência – genealogicamente constituída - ligada ao aldeamento de Brejo dos Padres/Pe - orientada, pois, para os ancestrais -, e da prática e inserção num complexo ritual no qual a música exerce papel pivotal. Num exercício de reflexão, quando estava deitado na rede numa tarde ensolarada do alto-sertão alagoano, me propus identificar as diferenças reais entres as duas populações acima citadas, a fim de entender melhor o contexto social da região, assim como suas redes sociais estabelecidas e as identidades elaboradas. No dia seguinte comecei a inserir tais questionamentos indiretamente nas conversas com os moradores da cidade de Água Branca, a fim de não dirigir as respostas. 158 O professor Clovis92 me disse que tem parentes Geripankó, o que lhe garante certo acesso à área - mas afirmou que não gosta da música indígena. O jovem professor de História, Gilberto, que se mudou para Maceió há alguns anos, me disse que tem parentes Kalankó. Ele não sabe bem de que parte da família e assim como Clóvis não tem muito apreço pelo toré. Outras ocasiões serviram para aprofundar a pesquisa. Num almoço93, na casa da diretora escolar municipal, Vera, Rita e sua irmã, nascidas na região e identificadas como não-índias, me lembraram que descendem de indígenas de Águas Belas/Pe - mas não sabem muito sobre a cultura de seus ancestrais. Em outra situação, no bar da Marciana, localizado na praça central do município de Água Branca e interessante ponto de encontro para a população local, Lili, jovem aguabranquense que trabalha no Sindicato dos Trabalhadores Rurais, me disse que passaria o próximo final de semana na casa de seu Elias, pajé Geripankó. Ela tinha como objetivo descansar um pouco, já que sua mãe descendia destas famílias. Lá, no mesmo bar da Marciana (passei um bom tempo lá), Celina, irmã de Lili e presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais, me confirmou que sua mãe, Maria do Carmo dos Santos Santana, era índia, mas afastou-se da comunidade por um tempo. Ela retornou, posteriormente, por determinado período, para resolver problemas espirituais, o que fez com que alguns de seus filhos ainda mantivessem contato com tais índios. Celina e sua irmã, porém, não sabem dançar e cantar qualquer música nativa. Vários outros exemplos de relação familiar entre as duas populações começaram a surgir. Na festa de emancipação do município de Água Branca, Maria Salete, dona de 92 Clóvis é professor de inglês no município de Água Branca e me recebia em sua casa quando eu necessitava passar uns dias na cidade. 93 Em 2 de maio de 2005. 159 casa e agricultora do município, me contou que tem parentes em todas as aldeias da região, já que sua família, por parte de mãe, descende dos índios sertanejos. No intuito de aprofundar-me na questão e aproveitando o excelente acesso que tive nos diversos espaços de interlocução social na cidade, especialmente aos ligados às escolas da área, pedi a lista dos estudantes. Com isso, tentava estabelecer mais relações entre famílias indígenas e famílias aguabranquenses. Qual não foi minha surpresa quando percebi que estas relações eram muitas. Conforme já colocado, as famílias Kalankó dividem-se entre os Santos, Silva, Gomes, Conceição, Reis, Higino e algumas variações, como Santos Silva, Conceição Silva, Conceição Santos e Gomes Silva (ver item 3.2.). Na Escola Estadual Domingos Moeda, de um universo de 384 alunos divididos entre a 6ª, 7ª e 8ª séries do ensino fundamental, identifiquei 108 alunos da família Santos, 97 da Silva, 5 da Gomes, 8 da Conceição, 4 da Reis, 16 da Santos Silva, 2 da Conceição Santos, 5 da Gomes Santos, 2 da Conceição Santos, 1 da Conceição Silva e 1 da Gomes Silva. Isto perfaz um total de 249 alunos de famílias que provavelmente descendem das mesmas famílias Kalankó, ou 64,84% dos alunos pesquisados. No Colégio Monsenhor Sebastião, o panorama é o mesmo. Dos 211 alunos pesquisados, do 2ª e 3ª anos do ensino médio, identifiquei 52 Santos, 53 Silva, 1 Gomes Silva, 7 Gomes, 8 Conceição, 2 Conceição Silva, 10 Silva Santos, 1 Conceição Santos, 2 Gomes Santos e 3 Conceição Gomes. O que dá um total de 139 alunos com provável grau de parentesco com as famílias Kalankó, ou 65,87% do universo pesquisado. Apesar de serem nomes comuns em praticamente todo o território brasileiro, acredito, baseado na grande expressão numérica e na análise focada numa região bem específica, que tais números confirmam a tendência dos indivíduos - classificados como índios e não160 índios - descenderem das mesmas famílias. Assim, algumas semanas depois, relaxando novamente na rede, comecei a refletir sobre o resultado desta atividade. Tornara-se claro que boa parte das famílias aguabranquenses que tinham migrado para a região faziam parte das mesmas famílias indígenas aldeadas e abandonadas no século XIX. A única diferença era a assunção de um sistema músico-ritual específico, uma idioma nativa, responsável por diferenciar o índio do não-índio, construindo novas identidades no altosertão alagoano e estabelecendo outras redes de relacionamento social. Imaginei, então, que esta descendência comum e a baixa contrastividade cultural da região (OLIVEIRA, 1998: 47-77) poderia ser tomada como um dado positivo para investigar a relação entre as duas populações. Se ambas empiricamente descendem das mesmas famílias e o índio é aceito como tal por praticar uma cultura músico-ritual específica, é possível que, se o toré se tornar uma música difundida por toda a região, poderá colaborar para a re-classificação de todos – ou grande parte dos - sertanejos como indígenas. Tudo faz parecer, portanto, que no nordeste brasileiro a oposição entre índio e não-índio tem valia fundamental tipicamente no plano jurídico-político, limitando o direito a terra à maioria das comunidades da região. Desta maneira, ao invés de classificar os nordestinos em índios e não-índios, poderíamos, antes, desnaturalizar esta classificação e pensar que eles têm tanto do indígena quanto do sertanejo, ou que todos eles – ou a grande maioria deles – devirão índios (MENEZES BASTOS, 2002). 161 BIBLIOGRAFIA. ALMEIDA, Renato. 1942. História da Música Brasileira. Rio de Janeiro. Briguiet Corp. ANDRADE, Mario. 1935. Os Congos. Boletim da Sociedade Felipe d’Oliveira, n.2. Fev/35. Rio de Janeiro: Lanterna Verde. 1963. Música de Feitiçaria no Brasil. São Paulo: Livraria Martins. Vol XIII. 1976. O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria de Cultura. 1984. Os Cocos. 1987 [1944]. Pequena História da Música. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda. 1989. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, Ministério da Cultura; São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros. AMORIM, Paulo Marques Pires. 1971. Índios Camponeses: Os Potiguara da Baía da Traição. Rio de Janeiro: Museu Nacional. 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Responde a Roda Outra Vez – Música Tradicional de Pernambuco e da Paraíba no Trajeto da Missão de 1938. 173 ANEXO I – Relação dos principais eventos citados neste trabalho. • Apresentação de Toré e Praiá para uma ONG austríaca. Realizado no terreiro de Lageiro do Couro, em 17 de Novembro de 2001. Este evento contou com a participação da equipe do projeto “Formação e Capacitação para a Sustentabilidade” – UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), além do CIMI - Conselho Indigenista Missionário, e duas integrantes da ONG. Os Kalankó apresentaram-se em agradecimento a um projeto no qual as crianças austríacas arrecadaram dinheiro para doar para a comunidade brasileira. A aldeia estava lotada. No início, as duas austríacas discursaram na oca central de Lageiro do Couro, seguidas por Jorge Vieira, integrante do CIMI. Por fim, o pajé fez um “discurso de liderança” longo e emocionante, falando sobre a situação da comunidade, suas lutas e conquistas. Depois disso, os Kalankó cantaram alguns torés e por fim, realizaram o Praiá. • Ritual do Umbu Kalankó – Realizado na Semana Santa, entre o sábado de aleluia e o domingo (26 e 27/03/2005), no terreiro da Januária. As preparações para o ritual começaram bem antes. O dinheiro para a preparação da comida foi arrecadado entre os dançadores e, pelo menos nesse ano, junto à Prefeitura Municipal de Água Branca, cuja vice-prefeita é ex-integrante do CIMI e tem ótima relação com a comunidade. Na quinta-feira, todos jantamos na casa do dançador Pedro, em Lageiro do Couro. No dia seguinte, seu Edmilson passou o dia abatendo carneiro, e pela tarde fomos todos para Januária almoçar na casa de seu Zé Antonio, um dos mais velhos da comunidade. 174 O almoço foi servido em cima de uma toalha quadrada no chão, o que me fez pensar no ritual de Serviço de Chão. Os homens foram os primeiros a comer, enquanto as mulheres esperavam do lado de fora da casa. O prato já vinha servido com feijão, e em cima da toalha, podíamos nos servir de arroz, peixe e farinha. A travessa passava por um de cada vez, completando o círculo no sentido anti-horário - novamente como nos rituais. Após a refeição principal, serviu-se a umbuzada, prato preparado à base de umbu e leite. Uma delícia. No dia seguinte, todos só falavam do ritual. Não se fazia nada, a não se esperar a hora de seu início. Chegamos em Januária por volta das 18:00 hs e terminamos de preparar a iluminação do terreiro. Januária estava cheia de gente. Os Koyupanká, que foram convidados a participar chegaram por volta das 19:00 hs. Neste momento, os dançadores se separaram do resto do grupo, indo para o Poró, a fim de se prepararem para o evento. A partir das 20 hs, o cantador Tonho Preto e os dançadores realizaram a abertura do terreiro, que consiste em desenhar a partir do canto e da movimentação dos Praiás, uma cruz. É a partir daí que os encantados podem participar do ritual. A festa dos encantados teve início, os moços realizaram uma série de movimentos pelo terreiro, sempre em sentido anti-horário. A festa começou com 19 vestes, mas o número variou no decorrer do rito, que foi até à meia-noite, quando os dançadores se retiraram para o Poró. 175 Foto 38 – Ritual do Umbu, na Semana Santa de 2005. A partir daí, os cantadores iniciaram o Toré, que contou com a participação de todas as pessoas que estavam presentes e durou até o sol nascer. Os torés foram puxados por Tonho Preto, Paulo e Edmílson, pelos Kalankó. E pelo pajé e o cacique Koyupanká. Na manhã seguinte, a partir das 8 hs, os dançadores retornaram ao terreiro e dançaram até o meio dia, quando então cada moço pegou seu prato de comida, preparado especialmente para a ocasião e deu três voltas no terreiro, além de um grito em cada um dos pontos extremos. Depois se retiraram para comer no Poró. A carne preferida é o carneiro, abatido anteriormente por Edmilson, o moço não pode comer nem o bode, nem o porco. Todas as pessoas que estão presentes no ritual foram servidas. Por volta de 13:30 hs, o ritual recomeçou e os dançadores continuaram movimentando-se com base nos cantos, até o momento em que se colocou a garapa no centro do terreiro e cada dançador, além do cantador, a defumou e encruzou três vezes. A partir daí, a garapa que foi feita por Tonho Preto, misturando suco de umbu com mel silvestre, foi servida a todos. 176 Apesar da chuva, o ritual prosseguiu durante à tarde, até o fechamento do terreiro, quando os dançadores desenharam mais uma cruz. No final, os dançadores iniciaram o Toré e se retiraram para o Poró. O Toré continuou por mais uma hora e os cantadores puxaram pelo menos mais três rodas. • Terço rezado para Nossa Senhora da Saúde. Realizado na casa de Culezinha, Lageiro do Couro, em 02 de abril de 2005. Pela manhã, visitei D Joana e seu Pedro, em Gangorra. Conversamos sobre o tempo dos antepassados, seus cantos e encantos. Tive um delicioso almoço e voltei para Lageiro do Couro por uma trilha, junto com os filhos de Culezinha. Nesta noite, D Joana foi até a aldeia de Lageiro para rezar um terço em homenagem a Nossa Senhora da Saúde, resultado da promessa que Culezinha fez quando esteve doente no corte de cana do verão anterior. Este procedimento me fez lembrar muito do Toré, quando é oferecido como promessa pela cura de algum indivíduo. A comunidade compareceu em peso e Culezinha fez um “discurso de liderança” antes do evento ter início. D Joana liderou, então, a reza, que foi finalizada com três rodadas de toré, puxados no interior da sala de Culezinha, por ele e seu Edmilson. • Ritual do Murici Koyupanká. Realizado no município de Inhapí/Al, nos dias 16 e 17 de abril de 2005. Viajamos pelas serras alagoanas até a aldeia Koyupanká. É o terceiro final de semana seguido que tem ritual no terreiro de Inhapi. Os dois primeiros foram em homenagem ao milho e a mandioca, este é em celebração ao murici, fruta característica da região, e que representa também o encantado dono do terreiro. 177 O ritual teve início por volta das 20:00 hs, quando os dançadores desenvolveram seus movimentos, e eu, convidado a conversar com o cacique Zezinho, que, entre outras coisas, me disse que o rito tem o sentido da penitência. Ele me explicou, também, a história de seu povo e a luta por seus direitos. O movimento dos Praiás terminou por volta de 23:30 hs, quando então começamos a dançar Toré, até o dia amanhecer. Pela manhã, a festa prosseguiu até a hora do almoço, quando todos almoçamos juntos, com exceção dos dançadores que comeram no Poró. Pela tarde, observei a Dança do Cansanção (árvore cujas folhas queimam a pele), variação do ritual que não conhecia. Neste momento, homens e mulheres entraram juntos no terreiro com folhas de cansanção à mão e durante os movimentos queimaram suas peles. Após a Dança do Cansanção, a garapa produzida a partir do murici, foi servida a todos. O rito terminou com o fechamento do terreiro a partir do desenho da cruz. Os dançadores voltaram para o Poró e dançamos mais umas rodadas de toré. Foto 39 - Senhora Koyupanká que conheci durante o evento. 178 • Novena de Santa Cruz do Deserto – Realizada em 01 de maio de 2005, na cidade de mesmo nome, localiza bem próxima da aldeia de Lageiro do Couro. Os Kalankó participam desta Novena há três anos, desde que algumas famílias que vivem nesta cidade foram agregadas ao grupo. Isto acontece porque o falecido pai do líder das famílias que vivem aí, seu Francisco Higino, foi um grande colaborador e entusiasta da festa. A partir de sua morte, seus filhos assumiram a produção de um dos dias de celebração. Foto 40 – Índia Kalankó, habitante do município de Santa Cruz do Deserto/Al. Neste dia cheguei com Culezinha bem cedo à cidade e visitamos as famílias Kalankó. Passamos a tarde no bar de uma das famílias bebendo cerveja e comendo carne. O resto do grupo chegou no final da tarde, quando então todos se reuniram numa casa ao lado do bar e cantaram diversos torés para esquentar. 179 No início da noite desfilamos pela rua central da cidade em cima de um caminhão. Após isso, assistimos a missa na igreja, quando o pajé e o cacique fizeram “discursos de liderança”. As festividades se encerraram com três torés na praça central. Voltamos debaixo de chuva, em cima de um caminhão, cantando diversos torés improvisados. • Ritual de Serviço de Chão. Realizado em 23 de Abril de 2005, na casa de seu Jorge, no Assentamento Salgadinho. Caminhei com alguns amigos até o Riachão, região onde seu Edmilson era o pai do terreiro. Passei a tarde ao lado de um poço d’água, onde se comemorou o aniversário da filha de seu Jorge, moradora do Salgadinho. Nadamos, comemos carne e tomamos batida de maracujá até a noite, que estava iluminada pela lua cheia. Na parte da noite, presenciei o ritual que foi liderado por Seu Jorge, quem fez questão de dizer que só canta no Serviço de Chão e não sabe os outros cantos indígenas. Durante todo o ritual, seu Jorge puxou os cantos correspondentes ao rito e a partir do segundo ou terceiro canto, recebeu algum encantado que então auxiliou alguns doentes receitando uma série de remédios do mato. Na segunda parte do ritual, seu Jorge foi auxiliado por mais uma pessoa com maracá. Novamente ele recebeu diversos caboclos, os quais saudaram Nossa Senhora, Padre Cícero, Frei Damião e os presentes. E, então, responderam a algumas consultas. Na parte final, consumimos a garapa, que foi servida em sentido anti-horário. • Festa pelo de Emancipação Política do Município de Água Branca (130ª). Realizada em 24 de abril de 2005, no centro do município. 180 Os Kalankó foram convidados a participar do desfile e a apresentar o Toré na praça central da cidade. Chegamos no município por volta das 14:00 hs. e eles foram se preparar para o desfile no Colégio Cinecista. Culezinha e seu Edmilson ficaram responsáveis pela pintura corporal. Às 15:00 hs, todos se juntaram aos outros grupos que foram para o desfile, que estava organizado em ordem histórico-cronológico, ou seja, os primeiros grupos representavam as primeiras famílias que chegaram à Água Branca, especialmente os Sandes. A parte central era dedicada ao Barão de Água Branca, considerado o responsável pelo progresso do município. Os Kalankó foram posicionados no setor classificado como folclore, junto com o reisado e algumas outras manifestações populares. Era como assistir a uma aula de história positivista. Enfim, todos desfilaram, enquanto eu fiquei pela festa. Por volta das 18:00 hs, os Kalankó apresentaram três cantos de toré na frente do palco central e depois voltaram para a aldeia. Eu ainda permaneci no evento que terminou com um show de forró (gênero musical bastante apreciado pelos Kalankó). 181 Foto 41 – Momento em que os Kalankó desfilam na festa de emancipação política de Água Branca/Al. • Festa Karuazu - celebrando o 6ª aniversário de “ressurgimento”. Realizado em 14 e 15 de maio de 2005, em Pariconha/Al. Esta festa é considerada importante por todos os grupos indígenas da região, inclusive pelos pesquisadores, já que todos tentam participar. Quase não chego a tempo. Estava chovendo muito na caatinga e não consegui carona até à noite. Quem me salvou foi Clóvis, amigo de Água Branca que me levou de moto até a aldeia Karuazu. Por causa da chuva, tinha dúvidas sobre a realização do ritual. Logo na chegada, conheci d. Elieta, mãe do cacique. Ela nasceu no Brejo dos Padres/Pe e me contou sobre a migração de seu povo até a região. O ritual teve início às 20:00 hs. Como de costume, os dançadores iniciaram os movimentos pelo terreiro Karuazu, desenhando a cruz. Nesta mesma noite, conheci algumas pessoas que vinham de Brejo dos Padres/Pe. No dia seguinte, chegaram todos os outros povos indígenas do alto-sertão alagoano, com exceção dos Kalankó, que não conseguiram ir por causa de problemas financeiros. 182 Durante à tarde pude presenciar e dançar torés de diversos povos. Fui embora com o pessoal do CIMI, que também participava da festa. • Ritual de Serviço de Chão – Realizado em 21 de maio de 2005, em Lageiro do Couro. A segunda oportunidade em que presenciei o Serviço de Chão foi na sala da casa de D. Jardilina. O rito teve início após a novela exibida pela rede Record, “Escrava Isaura”. Os cantos foram puxados principalmente por Edmilson, que estava sendo auxiliado por mais sete maracás. O ritual foi oferecido por Seu Luis, um dos mais antigos da comunidade e avô de boa parte dos cantadores. D. Jardilina também puxou diversos cantos e recebeu o Caboclo Sereno, um dos encantos Kalankó. Marcinha, jovem indígena, moradora da comunidade da Quixabeira, recebeu um caboclo novo, chamado, seu Antonio. Consumimos a garapa e depois brincamos o Toré até depois da meia-noite, quando Marina, uma das filhas de D. Jardilina, recebeu algum caboclo e passou mal, interrompendo a brincadeira. • Torés em homenagem a despedida de minha terceira viagem. Realizado nos dias 28 e 29 de maio de 2005, em Lageiro do Couro. Momento bem emocionante da viagem e que contou com participação massiva de toda comunidade Kalankó, inclusive de integrantes das famílias de Santa Cruz do Deserto, Quixabeira e do Salgadinho. Já havia combinado uma festa de despedida com o cacique e o pajé, além de algumas outras pessoas mais próximas, como Culezinha. Porém, Pedrinho, dançador 183 Kalankó, me surpreendeu no sábado à noite, oferecendo-me um Toré. Passamos à noite de sábado dançando em sua casa. A participação foi grande. Finalizamos já de madrugada com uma garapa. No dia seguinte, eu e Culezinha fomos pela manhã em Santa Cruz do Deserto comprar carne, quando aproveitei para convidar algumas pessoas para o Toré que se realizaria na parte da noite em Lageiro do Couro. Antes do ritual, na parte da tarde, Culezinha organizou um jogo de futebol entre dois times da aldeia, após o qual iniciamos um churrasco, que durou até o anoitecer e contou com participação intensa de toda comunidade. O Toré teve início por volta das 21:00 hs, com um “discurso de liderança” do pajé. Os cantos foram puxados por boa parte dos cantadores, que se revezaram cantando diversos tipos de toré. Isto até às 2:00 hs da manhã, quando, então, bebemos a garapa e finalizamos o ritual. A chuva que começou neste instante, foi até o dia amanhecer. Grande despedida. 184 Anexo II – Relação das famílias e indivíduos Kalankó – Dois estudos: 1998 (FUNAI); 2005 (Kalankó) 185 186 187 188 189 190 191 192 193 194 195 196 197 198 199 200 201 Anexo III – Amostra dos Gêneros Musicais Kalankó em CD Faixa 1Gênero – Toré Evento – Novena de Santa Cruz do Deserto Data – 01 de Maio de 2005 Cantador – Tonho Preto Duração – 7’29’’ Letra: Olha aquela mata O caboclo vem de lá Ele vem pro terreiro Vestido de caroá O le i lei a he O lehe hei o há Faixa 2 – Gênero – Toré Evento – Ritual do Murici Koyupanká Data – 16 e 17 de Abril de 2005 Cantador – Pajé Koyupanká Duração – 4’55’’ Letra: Olé lê coã Na baixa da jurema Olé lê côa Na baixa da jurema ... Faixa 3 Gênero – Toré (Pesado – usado em serviço de Chão) Evento – entrevista Data – 15 de Março de 2005 Cantadora – D. Jardilina Duração – 1’13’’ Letra: Abre-te porta, janela 202 Que é por ela Eu quero entra Eu quero visita A mesa do ajucá Faixa 4 – Gênero – Praiá de Linha Evento – Ritual Karuazu Data – 14 e 15 de Maio de 2005 Cantador – Francisco Duração – 4’08’’ Faixa 5 – Gênero – Praiá de Linha Evento – Ritual do Umbu Kalankó Data – 26 e 27 de Março de 2005 Cantador – Pajé Koyupanká Duração – 4’54’’ Faixa 6 – Gênero - Praiá de Linha Evento – Ritual do Umbu Kalankó Data – 26 e 27 de Março de 2005 Cantador – Pajé Koyupanká Duração – 6’23’’ Faixa 7 – Gênero - Praiá de Parelha Evento – Ritual do Umbu Kalankó Data – 26 e 27 de Março de 2005 Cantador – Tonho Preto Duração – 5’07’’ Faixa 8 – Gênero - Praiá de Parelha Evento – Ritual do Umbu Kalankó Data – 26 e 27 de Março de 2005 Cantador – Pajé Koyupanká Duração – 5’33’’ Faixa 9 – Gênero – Serviço de Chão Evento – entrevista 203 Data – 24 de Março de 2005 Cantador – Antonio, dançador Kalankó Duração – 32’’ Faixa 10 – Gênero – Serviço de Chão Evento – Ritual de Serviço de Chão Data – 21 de Maio de 2005 Cantador – Seu Edmilson Duração – 5’34’’ 204