0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Wendell Lopes Barbosa de Souza Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2013 1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Wendell Lopes Barbosa de Souza Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito das Relações Sociais, área de concentração de Direito Civil Comparado, sob a orientação da Professora Doutora Odete Novais Carneiro Queiroz. SÃO PAULO 2013 2 Banca Examinadora ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ Uma lamentável coincidência para a comarca de Ibiúna-SP no ano de 2012, que, no mais, é a representação do que ocorre no resto do país – 57 mil eleitores vivendo na cidade e 57 mil processos tramitando no fórum. Errado: faltam leis, juízes, servidores e computadores. Certo: os pais devem cuidar de seus filhos, os maridos devem respeitar suas esposas, os devedores devem pagar seus credores, os motoristas devem observar as regras de trânsito, as pessoas devem respeitar a vida e o patrimônio das outras, as empresas devem atender seus consumidores etc. Enfim, pode-se dizer: não é a justiça que não funciona; os homens é que não se respeitam. Não foi fácil escrever este trabalho na tela do mesmo computador que você me pedia para assistir a Galinha Pintadinha, mas eu faria tudo de novo por você, Rafaela, e por sua mãe, Ulliana, mais linda a cada dia. Amo as duas! Bom contar com o carinho de sempre dos meus pais, dos meus irmãos e dos meus cunhados. Pai e Mãe, que bela família vocês formaram! Vamos estar sempre juntos, enquanto Deus quiser, agora também com a Julinha. Mais uma vez agradeço o apoio de toda a família de minha esposa, sobretudo dos meus sogros. A acolhida aqui foi tão grande que ganhei minha única afilhada, a Fernandinha. Obrigado também pelo companheirismo diário dos servidores do fórum de Ibiúna, comarca em que judiquei durante todo o mestrado e o doutorado, e tive a honra de ser o único magistrado agraciado com o título de cidadão ibiunense. Dedico ainda o trabalho aos meus alunos dos cursos de graduação e pós-graduação. Obrigado a todos! 5 Acompanhando-me já há sete anos, mais uma vez agradeço a professora Odete Novais Carneiro Queiroz, não só pela orientação para a produção deste trabalho, mas também por não permitir que interrompesse a carreira acadêmica no mestrado, incentivando decisivamente ao ingresso no doutorado. A outras duas grandes juristas também devo lembrança. Para agradecer a Professora Maria Helena Diniz, como titular da cadeira de Direito Civil Comparado da PUC/SP, com quem tive oportunidade de cursar a disciplina “Ordenamento Jurídico e Sistema”, linha mestra do doutorado nesta instituição de ensino e lecionada com primazia. E também a Professora Toni Fine, como responsável pelos programas internacionais da Fordham University de Nova Iorque, que gentilmente me fez o convite para o curso sobre os recentes desenvolvimentos do direito americano em julho de 2012, propciando a pesquisa para esta tese em sua magnífica biblioteca. SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa. São Paulo, 2013. 300 f. Tese de Doutorado - Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. RESUMO Pode-se verificar verdadeira tendência da responsabilidade civil no direito brasileiro ao sistema americano dos precedentes do common law, guardadas as peculiaridades de cada sistema. De outro lado, examinando-se o direito americano, verifica-se a proliferação de leis escritas, que passam a serem parâmetros à produção jurisprudencial relativa aos casos de indenizações punitivas. Realmente, não obstante posicione-se o ordenamento jurídico brasileiro dentre aqueles assim considerados integrantes do sistema do civil law, amparados por robusta legislação positivada, no que toca à indenização por danos morais pode-se dizer tranquilamente que o caminhar da jurisprudência leva ao convencimento de que as questões indenitárias estejam hoje sendo resolvidas por decisões fincadas em bases eminentemente fáticas, que já contaram com pronunciamentos anteriores do Poder Judiciário. Resulta daí, por exemplo, que as lides judiciárias envolvendo o dano moral e seus consectários, como a tormentosa fixação do quantum indenitário, sejam resolvidas exclusivamente com base em precedentes jurisprudenciais relativos a fatos idênticos ou pelo menos semelhantes. Já nos Estados Unidos, país que adotou o sistema dos precedentes jurisprudenciais para a solução dos litígios forenses, integrando, em princípio, o grupo das nações adeptas do common law, hoje se vê na contingência da produção de leis escritas para a disciplina de temas relevantes, como a questão das indenizações punitivas, abrindo espaço para a positivação de normas jurídicas orientadoras das decisões judiciais. Daí se falar em interface entre civil law e common law no que toca à resolução das lides judiciárias que têm por objeto as questões indenitárias relativas aos danos morais no Brasil e aos punitive damages nos Estados Unidos no direito de imprensa, sobretudo quando se trata do conflito entre o direito de informar da empresa jornalística e o direito de privacidade do sujeito da notícia. Palavras-chave: Dano moral. Punitive Damages. Civil Law. Common Law. Imprensa. 7 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Non-economic damages in Brazil and punitive damages in United States and the press law. São Paulo, 2013. 300 f. Doctoral Thesis – Law School, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ABSTRACT It can be seen today the real tendency of the civil liability under Brazilian law to the American system of common law precedents, each one with its details. On the other hand, examining U.S. law, there is a proliferation of written statutes, which are parameters to the production of jurisprudence relating to the cases of compensation for punitive damages. In reality, despite being situated in the Brazilian legal system among those members of the labeled civil law, supported by robust written legislation, with regard to compensation for non-compensatory damages can be said without hesitation that the course of jurisprudence leads to the conviction that damage issues are today being resolved by decisions fixed to an eminently factual bases, which have relied on statements by the Judiciary. Consequently, the judicial cases, for example, involving the non-compensatory damage and its consequences, like the turbulent fixing quantum of money, are resolved exclusive under precedents for the fact identical or at least similar. In the United States, a country that adopted the system of precedents for the resolution of legal disputes, including, at first, the group of nations adept to common law, it is noticed today the contingency of the production of statutes for the discipline of relevant topics, as the issue of punitive damages, making room for the written law of legal rules guiding judicial decisions. Hence we speak in interface between civil law and common law regarding the judicial resolution of the cases that focus on issues relating to non-compensatory damages in Brazil and punitive damages in the United States in the press law, especially when the case is about the the press company’s right to inform and the right of privacy of the news’ subject. Keywords: Damages. Punitive Damages. Civil Law. Common Law. Press. 8 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADR Alternative Dispute Resolution ATRA American Tort Reform Association CC Código Civil CDC Código de Defesa do Consumidor CF Constituição Federal CMN Conselho Monetário Nacional CPC Código de Processo Civil EIRE República da Irlanda EUA Estados Unidos da América FDA Food and Drug Administration NHTSA National Highway Traffic Safety Administration STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo REsp Recurso Especial REx Recurso Extraordinário 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 14 1 OS GRANDES SISTEMAS DE DIREITO ................................................. 22 2 O CIVIL LAW – origens romanas e germânicas ................................... 25 3 O COMMON LAW .................................................................................... 29 3.1 Surgimento e Evolução Histórica.......................................................... 29 3.2 Diferenciação de Outras Expressões Aparentemente Sinônimas...... 36 4 O BRASIL COMO INTEGRANTE DO CIVIL LAW................................... 40 4.1 A Força do Direito Positivado................................................................ 40 4.2 O Normativismo Jurídico de Kelsen...................................................... 43 5 OS EUA COMO INTEGRANTES DO COMMON LAW ............................ 45 5.1 A Doutrina do Stare Decisis................................................................... 45 5.2 A Presença da Lei Positivada nos EUA................................................. 48 6 ALGUMAS TENDÊNCIAS DO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO AO COMMON LAW........................................................... 51 6.1 Noções Gerais ........................................................................................ 51 6.2 Controle Concentrado de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ....................... 57 6.3 Controle Incidental de Constitucionalidade nos Tribunais Estaduais e o Efeito Vinculante das Decisões do Órgão Especial ......................... 59 6.4 O Julgamento Monocrático nos Tribunais ........................................... 60 6.5 Súmula Vinculante ................................................................................. 61 6.6 Súmula Impeditiva de Recurso ............................................................. 63 6.7 Julgamento Liminar de Ação Idêntica .................................................. 63 6.8 A Repercussão Geral no STF e os Recursos Repetitivos no STJ...... 64 6.9 Outros Meios de Eficácia Erga Omnes do Provimento Judicial......... 66 6.10 Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto de Novo CPC........................................................................................................... 67 7 O SISTEMA CIVIL BRASILEIRO DE TIPIFICAÇÃO ABERTA................ 70 7.1 A Flexibilização das Normas Jurídicas................................................. 70 7.2 As Cláusulas Abertas Constantes do Novo Código Civil – um exemplo: a responsabilidade civil pela atividade de risco ................. 73 7.3 Os Conceitos Jurídicos Indeterminados – um exemplo: o “destinatário final” no Código de Defesa do Consumidor ........................................ 75 8 O EQUÍVOCO LEGISLATIVO DEMANDANDO A APLICAÇÃO DO PRECEDENTE JUDICIAL .......................................................................... 82 8.1 O Problema da Omissão Legislativa ..................................................... 82 8.2 O Problema da Incorreção Legislativa............................................ 86 8.3 O Problema da Imprecisão Legislativa ................................................. 88 8.4 As Consequências do Mau Trabalho Legislativo ................................ 90 8.4.1 O eventual desapego à lei ........................................................................ 90 8.4.2 O ativismo judicial ..................................................................................... 91 9 O DIREITO JURISPRUDENCIAL............................................................. 95 9.1 Posição da Jurisprudência na Teoria Geral do Direito no Civil Law.. 95 9.2 Uma Pequena Digressão sobre o Precedente no Common Law ........ 96 9.3 Condições para Mudança da Jurisprudência no Civil Law e suas Consequências...................................................................................... ..101 10 O DANO MORAL...................................................................................... 107 10.1 Natureza Jurídica Perante o Civil Law Brasileiro................................. 107 10.2 Conceito................................................................................................... 108 10.3 A Denominada “Pena Privada” do Direito Europeu.............................109 10.4 Meros Transtornos e Inadimplemento Contratual............................... 114 10.5 Uma Vexata Questio: Hipótese Jurisprudencial de Cabimento (ou não) da Indenização por Danos Morais – abandono afetivo........................117 10.6 A Atual Tramitação Legislativa do “Estatuto do Dano Moral” ...........120 11 PRECEDENTES DO STJ E TJ/SP SOBRE A LEGITIMIDADE ATIVA/PASSIVA E O VALOR DA INDENIZAÇÃO NO DANO MORAL..127 11.1 Sujeição Passiva ....................................................................................128 11.1.1 Pessoa jurídica e protesto liminarmente sustado .....................................128 11.1.2 Nascituro ..................................................................................................131 11.1.3 Dano moral ricochete ...............................................................................133 11.2 A Legitimidade Ativa ..............................................................................137 11.2.1 Legitimidade ativa no caso de morte da vítima .........................................137 11.2.2 A questão da transmissibilidade mortis causa ..........................................140 11.3 A Responsabilidade Civil dos Provedores de Internet pelo Conteúdo Ofensivo Postado por Terceiros e o Marco Civil da Internet ..............148 11.4 O Caso do Massacre Dentro do Cinema do Shopping Morumbi ........155 11.5 Da Cumulatividade da Reparação por Danos Morais, Materiais e Estéticos..................................................................................................158 11.6 Dos Parâmetros de Fixação e da Correção das Verbas Indenitárias .............................................................................................161 11.6.1 O arbitramento do valor devido pela lesão a direito da personalidade .....161 11.6.2 O princípio da equidade como critério para fixação da indenização por danos morais - art. 953, parágrafo único, do Código Civil ........................168 11.6.3 Forma de incidência dos juros moratórios e correção monetária .............169 11.7 Uso Indevido da Imagem e o Arbitramento da Respectiva Indenização .............................................................................................174 12 RELAÇÃO ENTRE A INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NO BRASIL E OS PUNITIVE DAMAGES NOS EUA ...................................................180 12.1 O Posicionamento da Doutrina Brasileira ............................................181 12.2 A Questão no Tribunal de Justiça de São Paulo .................................186 12.3 A Questão no Superior Tribunal de Justiça .........................................187 12.4 A Questão no Supremo Tribunal Federal .............................................188 12.5 Nosso posicionamento........................................................................... 189 13 PARTICULARIDADES DO SISTEMA JURÍDICO AMERICANO.............191 13.1 Organização Judiciária Estadunidense ................................................191 13.2 A Autonomia dos Estados Federados – a descentralização do poder........................................................................................................192 13.3 As Fontes do Direito Estadunidense ....................................................194 13.4 Brevíssimas Noções Procedimentais do Direito Estadunidense .......197 14 OS PUNITIVE DAMAGES........................................................................202 14.1 Conceito, Origem e Finalidade ..............................................................202 14.2 Classificação das Formas Indenizatórias nos EUA .............................205 14.3 Teses Pró ................................................................................................208 14.4 Teses Contra ...........................................................................................209 14.5 Pressupostos para Aplicação dos Punitive Damages (an debeatur) Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso State Farm Mutual Automobile Insurance v. Campbell .................................210 14.6 Elementos para Valoração dos Punitive Damages (quantum debeatur) Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso BMW of North America v. Gore............................................................................ 212 15 A TORT REFORM – UMA TENDÊNCIA NOS EUA AO CIVIL LAW .......215 15.1 Noções Gerais da Competência Legislativa nos Estados Unidos .....215 15.2 A Tort Reform nos Estados da Federação Americana ........................216 15.2.1 Estados que admitem incondicionalmente os punitive damages..............217 15.2.2 Estados que proíbem os punitive damages ..............................................218 15.2.3 Estados que limitam o valor dos punitive damages ..................................219 16 CASOS EMBLEMÁTICOS DE INDENIZAÇÕES PUNITIVAS NOS EUA ..........................................................................................................225 16.1 O Denominado McDonald’s Coffee Case .............................................225 16.2 O Caso do Medicamento “MER” ...........................................................226 16.3 O Ford Pinto Case ..................................................................................228 16.4 A fumante Bullock vs. Philip Morris......................................................230 17 O DIREITO DE IMPRENSA BRASILEIRO............................................... 236 17.1 Notas Introdutórias e Disciplina Constitucional ..................................236 17.2 Histórico................................................................................................... 237 17.3 A Não Recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal .......241 17.4 O Direito de Resposta ............................................................................243 17.5 O Controle da Atividade da Imprensa: Preventivo x Repressivo .......244 17.6 Os Artigos 12 e 20 do Código Civil – Controle Preventivo .................245 17.7 Nosso posicionamento ..........................................................................249 18 DANOS MORAIS E PUNITIVE DAMAGES NO CONFLITO ENTRE O DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO DE IMPRENSA .....................250 18.1 Noções Gerais ......................................................................................250 18.1.1 Conceito e conteúdo do direito à privacidade ...........................................251 18.1.2 Conteúdo e conceito do direito à palavra .................................................255 18.1.3 A colisão entre os direitos à privacidade e à palavra ................................257 18.1.4 Exame do conflito à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade........................................................................................262 18.1.5 Nosso posicionamento sobre a referida colisão de direitos...................... 265 18.2 A Questão nos Tribunais Brasileiros ....................................................266 18.2.1 No Tribunal de Justiça de São Paulo .......................................................266 18.2.2 No Superior Tribunal de Justiça ...............................................................267 18.2.3 No Supremo Tribunal Federal ..................................................................270 18.2.4 Um resumo da questão na jurisprudência brasileira .................................274 18.3 A Questão na Suprema Corte dos Estados Unidos.............................274 18.3.1 O caso New York Times Co. v. Sullivan ...................................................274 18.3.2 O caso Curtis Publishing Co. v. Butts .......................................................276 18.3.3 Um resumo da questão na jurisprudência da Suprema Corte ..................280 CONCLUSÕES .......................................................................................................281 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................291 SITES CONSULTADOS .........................................................................................300 14 INTRODUÇÃO A responsabilidade civil foi galgada, ao longo do século XX, ao patamar de um verdadeiro novo ramo da ciência jurídica, considerando o vasto campo de incidência que abarcou. Prova disso é que o estudioso que se propõe ao exame da questão indenitária, mormente na tentativa de ensiná-la em cursos de graduação e pós-graduação nas faculdades de Direito, acaba por abordá-la no âmbito de vários subsistemas jurídicos, como no Direito Civil, no Direito Empresarial, no Direito do Consumidor, no Direito Administrativo, no Direito Ambiental, no Direito do Trabalho, no Direito Processual e até no Direito Criminal, quando se trata da relativa independência entre as responsabilidades civil e penal. Essa autonomia decorreu do fato de a responsabilidade civil ter sido, sem nenhuma dúvida, o instituto jurídico que mais se desenvolveu ao longo dos últimos tempos, sobretudo a partir da revolução industrial e tecnológica do século XX. Algo foi decisivo para que se promovesse o presente estudo acerca dos punitive damages (indenização punitiva) no âmbito do sistema jurídico dos Estados Unidos: a pretensão de analisar as decisões judiciais americanas tocantes à questão indenitária para que se pudesse ratificar ou mesmo retificar alguns mitos que se formaram referentemente às quantias fixadas a título de indenizações por atos ilícitos naquele país, muitas delas, segundo se tem notícia, em valores milionários. Exemplo mais emblemático do que se está querendo referir colhe-se na famosa lide judiciária que se consagrou com o nome McDonald´s Coffee case, na qual a assim reconhecida vítima de um acidente de consumo, que derramou café quente em seu corpo porque colocou o copo cheio no meio de suas pernas com o veículo em movimento, foi contemplada, em primeira instância pelo júri popular, com indenização por danos materiais no valor de US$ 480 mil (quatrocentos e oitenta mil dólares) e indenização punitiva (punitive damages) no montante de 2,7 milhões de dólares. Talvez por isso, andando pelas ruas daquele país ou mesmo trafegando por suas estradas, pode-se visualizar, numa postura absolutamente contraposta à adotada pelo Estatuto dos Advogados no Brasil, enormes outdoors oferecendo serviço de advocacia a quem dele necessitar, especialmente no campo da responsabilidade civil, seja contratual ou extracontratual, com os seguintes dizeres: 15 INJURED? Auto Accident, slip & fall, wrongful death, personal injury – Attorney at Law, Free Consultation, Available 24.7 (livremente traduzido como: Ferido? Acidente de automóvel, escorregão e queda, homicídio culposo, lesão corporal – Advogado – Consulta grátis – disponível 24 horas, sete dias por semana). Esse é o caso da Jacoby & Meyers, uma famosa firma de advocacia americana que pretende expandir a sua “franquia” e abrir “lojas” em shopping centers. Isso parece dar ao menos uma pequena noção da cultura americana acerca da busca pela reparação de danos advindos de atos ilícitos, gerando para o ofensor o dever de pagamento dos danos materiais e morais, além dos punitive damages (indenização punitiva), a depender da decisão do órgão judiciário competente – o júri popular, na maioria das lides judiciárias daquele país neste tema. Por conta disso, num dos mais recentes filmes hollywoodianos acerca das questões envolvendo a justiça americana, intitulado “A qualquer preço”, um advogado especialista em direito indenizatório, interpretado por John Travolta, logo no início da película, numa entrevista a uma rádio, afirma que nos Estados Unidos “o direito de lesões corporais ganhou uma má reputação” e que os advogados desta especialidade são chamados de “caçadores de ambulância, mercenários, abutres que abusam do sofrimento alheio”. Mas, mesmo neste campo do direito indenizatório, foi como que um susto saber que nos Estados Unidos apenas 10% dos litígios relativos à responsabilidade civil chegam às barras da Justiça e que o trabalho do juiz togado é, na maioria dos casos, apenas o de condução do processo, cabendo a decisão final ao júri popular. Ainda nesse particular, outro esclarecimento de ordem formal é necessário, isto é, o porquê da eleição única e exclusivamente dos Estados Unidos para a consecução da pesquisa deste estudo, ciente do fato de que na grande maioria dos estudos comparativos o pesquisador escolhe um tema de seu interesse, examina-o à luz do Direito nacional e busca cotejá-lo com o regramento do mesmo instituto em vários outros sistemas jurídicos estrangeiros do mundo. Ora, deve haver, então, um convincente motivo para que neste estudo comparativo tenha sido eleito um único país como fonte de pesquisa para o cotejo com o Direito brasileiro. E há sim. Como se verá no decorrer do texto, a verdadeira autonomia, inclusive e especialmente legislativa, dos Estados Membros formadores da federação estadunidense, com a consequente descentralização do poder, aliada ao fato de pouquíssimas serem as lides judiciais que chegam ao exame da Suprema Corte, resulta que uma mesma 16 questão possa encontrar diversas soluções em cada uma das nada menos que 50 unidades federativas dos Estados Unidos. Daí, também, o fato de ter sido escolhido um único país para a consecução da presente pesquisa, sem a pretensão de exaurir os pronunciamentos judiciais sobre determinado tema em cada um dos Estados Membros daquela nação, mas com a certeza de trazer ao leitor um material mais abalizado para consulta sobre a justiça de um único e determinado país. No que toca aos sistemas de Direito adotados aqui (no Brasil) e lá (nos Estados Unidos), verifica-se a ocorrência de um interessante fenômeno, sobretudo nas décadas mais recentes. O Brasil, tido como país integrante do civil law, sistema jurídico que dá primazia à lei, vem recorrendo cada dia mais à jurisprudência para a solução dos casos submetidos ao seu Poder Judiciário. De outro lado, os Estados Unidos, tido como país integrante do common law, sistema jurídico que dá primazia às decisões judiciais antecedentes – os precedentes – para a solução das lides judiciais, estão recorrendo cada vez mais frequentemente à legislação, sobretudo por meio do movimento denominado tort reform, que, numa tradução livre, significa uma reforma no sistema de indenizações, visando normatizar as situações passíveis de aplicação e até mesmo os limites de fixação dos punitive damages. Na base desses dois movimentos contrários, encontram-se duas explicações lógicas e racionais. A legislação brasileira, resultado do sistema civil law, por mais que pretenda exaurir a disciplina dos direitos e deveres inerentes às pessoas, na vã tentativa de evitar ou minimizar as possibilidades de litígios judiciais, não pôde, não pode e não poderá, nunca, prever todas as situações fáticas possíveis, regulando-as definitivamente; daí a necessidade de se recorrer aos casos idênticos ou semelhantes já analisados pela Justiça para o julgamento dos futuros litígios, com base nos precedentes. Por outro lado, a decisão judicial baseada unicamente nas posturas assumidas anteriormente pelos juízes, primado máximo do common law, por vezes não consegue gerar a mesma segurança jurídica que se visa garantir com a edição de uma lei para a regência de determinada situação de fato. Como exemplo do que se está querendo dizer, no Brasil, tem-se como mais simbólica a questão do dano moral, que, não obstante se trate de um dos mais complexos problemas enfrentados pelo operador do Direito na vida forense diária, se fez presente, mesmo em se tratando de diploma jurídico de excelência e vanguarda, em algumas poucas e honrosas menções no vigente Código Civil de 2002, podendose citar como a mais importante aquela do seu artigo 186. Ocorre que o mencionado 17 dispositivo legal não vai além de mencionar que o dano indenizável pode ser material ou “moral”. Nada mais. Não há disciplina, a bem da verdade, para nenhuma situação de fato. Apenas como exemplo, não se tem a menor ideia da orientação legislativa a respeito das quantias a serem fixadas a título de indenização; quais as possíveis vítimas de atos ilícitos que poderiam se beneficiar com tais indenizações ou se até mesmo o nascituro poderia usufruir desse tipo de verba indenizatória; a contagem dos juros e da correção monetária quando da fixação da indenização; como se resolvem problemas por difamações proferidas no ambiente virtual da internet, e se provedores como o Google respondem ou não por informações injuriosas postadas por terceiros; questões atinentes ao direito de imagem e outras. Ao contrário, o legislador, quando chamado a enfrentar o problema, parece ter “lavado as mãos”. Explica-se. No caput do artigo 953 do Código Civil, fez constar que a indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resultar ao ofendido. E, no parágrafo único do mesmo dispositivo, quando se esperava que constasse o caminho pelo pedido de indenização por danos morais caso a vítima não consiga provar o prejuízo material, positivou-se que, nessa hipótese, “caberá ao juiz fixar, equitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso”. Bem, é óbvio que, não sendo provado o prejuízo material, restará à vítima a busca pela reparação do dano moral, como, aliás, é rotineiro nesses ilícitos contra a honra. Mas o legislador pareceu, como se disse, despreocupado no trato da questão, já que poderia ter simplesmente feito constar aquilo que era esperado por toda a comunidade jurídica: com ou sem a prova do dano material, resta ao ofendido a indenização por danos morais. Mas não, ao que tudo indica, a preferência foi por reduzir o trabalho legislativo e aumentar o judicial, prevendo-se, para a hipótese de ausência de prova de dano material, uma indenização “equitativamente” fixada pelo juiz, com base nas “circunstâncias do caso”, o que, na prática forense, quer dizer quase nada ou quase tudo, a depender da cabeça sentenciante, possibilitando-se a negação de qualquer valor indenizatório ou mesmo a fixação de centenas de milhares de reais a título de reparação por eventual dano moral. Prova de que esta disposição do Código Civil (o parágrafo único do artigo 953) não fornece qualquer critério ao julgador quando da fixação do valor da indenização por danos morais está na decisão do Superior Tribunal de Justiça que fixou em meio milhão de reais uma reparação em favor do ex-presidente Fernando 18 Collor de Melo, por ter sido chamado pela Revista Veja de “corrupto desvairado” (REsp 1.120.971/RJ). Ora, respeitado o entendimento rigorosamente técnico utilizado no julgado mencionado, ao menos se dá a possibilidade de se vislumbrar que a indenização neste caso poderia ser mais módica pelo fato de o ex-presidente ter renunciado ao mandato em meio a um processo de impeachment deflagrado por força de denúncias de corrupção que o envolviam diretamente. E, nesse sentido, realmente verificou-se divergência dentro da própria turma julgadora, votando os Ministros Sidney Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino pela fixação da quantia de R$150.000,00, enquanto entenderam os Ministros Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Massami Uyeda pela fixação do referido valor de R$500.000,00. Ora, esta diferença de mais de três vezes entre o valor proposto por dois Ministros e o efetivamente adotado por outros três Ministros, integrantes da mesma turma julgadora do mesmo tribunal, demonstra, data venia, que o denominado princípio da equidade não tem o alcance que a ele se pretende conferir como critério seguro ao balizamento da indenização por danos morais. Ademais, a referida decisão nos parece o exemplo mais claro de que o Brasil já adotou, por sua jurisprudência, a tese do caráter punitivo de que se reveste a indenização por danos extrapatrimoniais, já que, neste caso, de acordo com sua ementa, era “de rigor a elevação da indenização por dano moral, como desestímulo ao cometimento da figura jurídica da injúria”, impondo-se à Editora Abril uma pena civil pelo ilícito que se reconheceu ter cometido, ao tachar de “corrupto desvairado” o ex-presidente, não obstante tenha sido o único na história do país sujeito de um processo de impeachment. Realmente, o que se verifica hoje pela experiência forense é a prolação de julgados, cada vez mais comuns em primeira instância, devidamente confirmados em segundo grau, na instância especial (Superior Tribunal de Justiça) e na extraordinária (Supremo Tribunal Federal), impondo indenizações que, camuflando a roupagem de compensação por danos morais, em verdade, têm como intuito inescondível a imposição de uma sanção civil ao agente ofensor, como na pena privada do direito europeu ou nos punitve damages americanos. Resulta daquela lacuna legislativa referente aos danos morais – que poderia ter sido parcialmente evitada, a se considerar que, quando da edição do Código Civil de 2002, parte de tais questionamentos já se faziam presentes nos processos judiciais e nos simpósios de Direito há anos – que as lides judiciárias envolvendo 19 esta temática sejam resolvidas exclusivamente com base em precedentes jurisprudenciais relativos a fatos idênticos ou pelo menos semelhantes aos postos para exame no processo a ser decidido. Urgia, então, nesse cenário, que o legislador do Código Civil de 2002 declinasse ao menos orientações básicas a respeito de tantas e tantas dúvidas que já se faziam pendentes, inclusive algumas delas já tranquilizadas pelas decisões judiciais de primeira e segunda instâncias do Poder Judiciário nacional, além das instâncias especiais ou extraordinárias. Isso viria a solucionar uma série de pontos que até hoje se fazem obscuros a respeito do tema da indenização por danos morais, reduzindo sensivelmente as dúvidas no momento dos pronunciamentos dos juízes de primeiro grau de jurisdição e até mesmo mitigando acentuadamente a interposição de recursos desnecessários. Outra questão emblemática quanto à falta de sistematização e uniformidade no que respeita aos danos morais se traduz na acesa divergência havida dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça quanto à possibilidade de indenização pedida em virtude do abandono do filho por um dos genitores, normalmente o pai. Das duas Turmas competentes pelo julgamento das causas relativas ao Direito Privado, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, desde o ano de 2005, tem entendimento consolidado de que a indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à responsabilidade civil o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária (REsp nº 757.411/MG, Rel. Ministro Fernando Gonçalves). Ocorre que, numa polêmica decisão de abril de 2012, tal orientação foi completamente afastada, também por unanimidade, pela 3ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça, impondo-se indenização de R$200.000,00 a um pai que se reconheceu ter abandonado sua filha durante toda a infância e juventude, obrigando-a ao ajuizamento de ação de investigação de paternidade, fundamentando-se que “amar é faculdade, cuidar é dever” (REsp nº 1.159.242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi). Em outras palavras, o filho abandonado que tiver a sua ação indenizatória apreciada em grau de recurso por uma das Turmas de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça – a 3ª Turma – será compensado pelos danos morais que lhe foram ocasionados, enquanto se idêntica ação chegar à Corte Superior por meio do respectivo recurso e aportar na outra Turma de Direito Privado – a 4ª Turma – o pai que abandonou sua prole não se verá obrigado ao pagamento da reparação pecuniária. 20 Não se nega que a possibilidade de formação de mais de um convencimento acerca de uma mesma questão seja consequência de um sistema jurídico calcado na democracia e, sobretudo, permeado por cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados no âmbito de sua legislação de Direito Privado. Mas há aí um perigo iminente nesta formação de diversas interpretações acerca de um mesmo fato, já que, nestas condições, passa a prevalecer o convencimento que cada juiz tem a respeito do Direito, e não o mandamento da lei positivada, fator decisivo para o aumento das demandas e recursos judiciais, e gerador de nefasta insegurança jurídica. O Congresso Nacional brasileiro parece querer dar sua contribuição para uma certa uniformização da questão indenitária, estando em trâmite perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 523/11, que, segundo sua ementa, dispõe sobre o dano moral e sua reparação, trazendo, dentre outras disposições, uma absurda redução do prazo prescricional para tão somente 6 meses nos casos de reparação por ofensa extrapatrimonial, que será objeto de análise no momento oportuno. Na busca por uma solução para o mesmo problema da falta de coesão das decisões judiciais e o aumento vertiginoso do número de processos, nos Estados Unidos pugna-se por uma reforma no sistema dos chamados punitive damages, ainda aplicados aos montes em valores milionários, visando à elaboração de diplomas legislativos para a disciplina dessa mencionada forma indenizatória, autorizando sua fixação apenas em determinadas situações ou pelo menos limitando os seus valores. Então, com esses dois referenciais é que se busca demonstrar as bases em que está calcado o sistema jurídico brasileiro de primazia da lei, mas caminhando, a passos cada vez mais largos, na direção do respeito à anterior decisão judicial sobre um caso idêntico ou semelhante; enquanto isso, a autoridade do precedente judicial estadunidense vem cedendo espaço à legislação positivada, na busca de uma pretensa segurança jurídica, com superação da ideia comum que se dissemina sobre a existência exclusiva dos precedentes no direito daquela nação. Nesse quadro, à luz das virtudes de cada um dos sistemas de Direito – o civil law e o common law – indaga-se: não se poderia vislumbrar uma forma híbrida, na qual a lei teria a virtude de conferir uma mínima segurança jurídica aos agentes do sistema, mas sem a pretensão de exaurir e disciplinar toda e qualquer situação de fato futura, que poderia bem ser resolvida com um toque de sensibilidade só 21 passível de ser obtido por meio de um pronunciamento judicial? Indaga-se mais: isso já não acontece, ou seja, já não existe uma visível interface, uma mescla parcial, entre o civil law e o common law, tanto aqui no Brasil como lá nos Estados Unidos? E todas estas indagações se põem frente a uma das mais complexas questões no âmbito do moderno Direito Civil-Constitucional, referente ao conflito cada dia mais violento entre o direito à privacidade das pessoas e o direito de informar da imprensa, implicando no reconhecimento ou não da indenização por danos morais no Brasil ou por punitive damages nos Estados Unidos, sobretudo após o advento dos modernos meios de comunicação, especialmente a internet. Sem sucesso, a doutrina, tanto nacional quanto internacional, procura solucionar o conflito entre os mencionados direitos fundamentais à informação e à privacidade, propondo certa harmonização entre eles, observando no caso concreto a máxima efetivação e a mínima restrição possível de cada um, num tom pacificador que encontra vasto espaço no âmbito acadêmico, mas insuficiente para a solução das lides forenses que versam a questão. A jurisprudência brasileira vacila no enfrentamento do tema, e nem a cúpula da Justiça nacional tem posicionamento fechado sobre a prevalência no caso concreto do direito à privacidade ou do direito de informar da imprensa, conforme noticia o Ministro Sepúlveda Pertence no relatório do processo que se tornou mais conhecido como o caso O Globo x Garotinho, afirmando que: “[...] a respeito da polêmica assim vislumbrada – que reflete a viva dissensão no direito comparado – ainda não se pode divisar, no Brasil, uma orientação firme do Supremo Tribunal Federal”. Já a Suprema Corte americana, como será visto no exame dos casos New York Times v. Sullivan e Curtis Publishing v. Butts, apesar de alguma orientação genérica, como a natural restrição do direito à privacidade em consequência do exercício de função pública, também não apresenta solução uniforme para o problema. E essa falta de consenso parece ser mesmo natural, já que a almejada solução para o conflito de direitos constitucionais em exame deve ser buscada em cada caso concreto, sem que se permita à imprensa, a pretexto de informar, que transgrida os limites da liberdade de expressão invadindo a intimidade alheia injustificadamente, mas tampouco se pode reconhecer a privacidade como interesse absoluto em detrimento da livre circulação das ideias e por consequência do próprio Estado Democrático de Direito brasileiro. 22 1 OS GRANDES SISTEMAS DE DIREITO A fim de melhor discorrermos acerca do objeto do presente trabalho, qual seja, a interpenetração entre o common law e o civil law, é mister que se faça uma abordagem, ainda que panorâmica e resumida, a respeito dos grandes sistemas jurídicos existentes no mundo. Assim, como de regra, o primeiro passo é classificar os grandes sistemas de Direito, utilizando-se, para tanto, a consagrada organização elaborada por René David1, nos seguintes termos: 1º) o sistema romano-germânico, denominado civil law, no qual se encontra o Direito brasileiro; 2º) o sistema do common law, que é abrigado, sobretudo, pelos países de origem anglo-saxã, inclusive os Estados Unidos; 3º) o sistema dos Direitos socialistas, que era adotado pela chamada Europa do Leste, capitaneada pela URSS até a queda do Muro de Berlim; 4º) outras concepções da ordem social e do Direito, tais como os Direitos muçulmano, indiano, do Extremo Oriente, judaico e da África, sistemas de forte componente ligado à religião, que em determinados países é a principal fonte das normas jurídicas (Irã, Iraque etc.), relevantes para determinados ramos do Direito Privado, em particular em matéria de família. Podemos ver que a classificação supracitada agrupou os sistemas consoante as respectivas fontes principais de produção do Direito: para o sistema romanogermânico, a lei; para o sistema do common law, o precedente; para o sistema dos Direitos socialistas, o próprio socialismo; e para o derradeiro sistema referido, a teocracia. Frisamos que a mencionada classificação se mostra mais acertada em face daquelas que pretendem a mera dicotomização dos sistemas de Direito, reduzindoos aos sistemas romano-germânico (ou civil law) e do common law, sendo dois os fundamentos de sua adoção. Por primeiro, não há que se falar em sistemas mais importantes em relação a outros, ainda que hodiernamente alguns sejam mais ocorrentes que os demais. E, em segundo plano, porque existem diversos países que adotam sistemas mistos, com regras e princípios tanto do sistema civil law como do common law, constituindo-se em verdadeiras novas organizações, dada a 1 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. 23 ausência de preponderância de um ou de outro. Veja-se, por exemplo, o caso do Canadá, colonizado simultaneamente por países adotantes dos sistemas jurídicos do common law e do civil law, e que acabou por receber forte influência desses sistemas sem que se possa dizer da prevalência de qualquer deles, conforme dá conta José Rogério Cruz e Tucci: Desde o Colonial Laws Validity Act, de 1865, as normas da common law não incidem quando forem contrárias às leis ou aos costumes do povo canadense. Ressalte-se, por fim, que os dois sistemas jurídicos - codificado e casuístico - interagem e exercem recíproca influência: quando o juiz decide com base na lei escrita, na Província de Quebec, a sentença é 2 considerada precedente vinculante. Conclui-se que, a se ter pela estanque dicotomização entre os sistemas de Direito do civil law e do common law, se está negando a existência de outros, que, por possuírem tão intensa interpenetração das regras e institutos jurídicos de ambos os sistemas, não se enquadram quer num quer noutro, e culminam, portanto, na formação de um novo. Um outro interessante exemplo é o Japão, que, num período mais remoto, recebeu a influência do civil law, especialmente do Código Germânico, mas, num momento posterior, após a Segunda Guerra, passou a adotar peculiaridades do common law.3 Daí a importância de se adotar uma classificação não estanque e reduzida das grandes famílias de Direitos, mas sim a que permita a mistura entre os sistemas já existentes, bem como a conformação de novos ordenamentos. Conquanto não se possa falar em qualquer preponderância ou redução dos sistemas de Direitos, para o presente trabalho importa que se analisem com mais vagar apenas dois deles, salientando, novamente, não serem os únicos ou mais importantes: o sistema do civil law e o sistema do common law. Consoante lição de Luiz Guilherme Marinoni, “a contraposição entre common law e civil law cedeu lugar à ideia de que esses sistemas constituem dois aspectos de uma mesma e grande tradição jurídica ocidental”, e que os dois sistemas de 2 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 170. 3 MERRYMAN, John Henry. The civil law tradition – an introduction to the legal systems of Western Europe and Latin America. Stanford: Stanford University Press, 1969. p. 5. 24 direito “tendo surgido em circunstâncias políticas e culturais diferentes, fizeram surgir tradições jurídicas particulares, caracterizadas por institutos e conceitos próprios”.4 Nessa mesma ordem de pensamento, Phanor J. Eder afirmou que o mundo cristão é dividido entre dois grandes sistemas jurídicos – um derivado diretamente do Direito Romano (o civil law) e o outro do Direito Anglo-Americano (o common law).5 E, como será observado ao longo do presente trabalho, apesar da estanque diferenciação que se estabelece entre os dois sistemas jurídicos, notam-se importantes analogias entre o common law e o civil law, com alguma afinidade entre eles.6 Apenas ressalve-se que, enquanto os praticantes do civil law tendem a pensar em termos de normas que podem ser aplicadas ao caso concreto, os praticantes do common law pensam no caso em si e como as causas semelhantes foram decididas pelas cortes anteriormente.7 4 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 17. 5 EDER, Phanor J. A comparative survey of Anglo-American and Latin-American law. Littleton: Rothman, 1981. p. 4. 6 WALKER, James M. The theory of the common law. Littleton: Rothman, 1995. p. 127. 7 MOUSOURAKIS, George. Perspectives on comparative law and jurisprudence. New Zealand: Pearson Prentice Hall, 2006. p. 46. 25 2 O CIVIL LAW – origens romanas e germânicas Para um melhor desenvolvimento do estudo comparativo entre os sistemas de Direito pinçados dentre os demais – o civil law e o common law – é imprescindível que se conheça a evolução histórica de cada um, para que, assim, se averigue o porquê da formação de sistemas de Direito tão díspares para regular realidades sociais contemporâneas ocidentais tão semelhantes. Apenas para se ter uma ideia da importância do sistema de civil law no mundo, lembre-se da assertiva de John Henry Merryman, de que, das grandes tradições legais no mundo contemporâneo, o civil law, o common law e o Direito socialista, o civil law é o mais velho, o mais difundido e o mais influente deles.8 A gênese, não somente do sistema de Direito da família romano-germânica, está no Direito Romano, sem, contudo, que se possa afirmar ser uma simples reprodução deste, já que diversas instituições da família romano-germânica são oriundas de fontes outras que não o Direito Romano primitivo.9 A disseminação e o desenvolvimento do sistema romano-germânico se deram, obviamente, em decorrência das conquistas romanas no nascer da Era Cristã, pois, ao se assenhorearem de territórios, os romanos impunham suas formas de regulamentação social – à época o Direito dos pretores de Roma – visando à integração e à consequente submissão dos povos conquistados, com a diminuição das tensões sociais e dos riscos de insurreições locais. Conforme veremos, o sistema de Direito Romano-Germânico difundiu-se por todo o planeta, superando, inclusive, o esfacelamento da sociedade que o originou. Nos primórdios, o domínio romano – impulsionado, sobretudo, pela necessidade de manter suas proporções continentais unidas e subjugadas – elaborou um sistema jurídico capaz de atender à premente necessidade supramencionada de união da colônia, que, assim como o Império Romano, se constituiu num sistema sem precedentes. Ocorre que o Império Romano Ocidental – já cambaleante há algum tempo – deixou de existir por volta do século V d.C.. Tal fato se deu, sobretudo, em virtude da 8 MERRYMAN, John Henry. The civil law tradition – an introduction to the legal systems of Western Europe and Latin America. Stanford: Stanford University Press, 1969. p. 1. 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 25. 26 invasão de povos germanos que perambulavam pela Europa continental, sempre em busca de condições favoráveis ao seu desenvolvimento. E a partir daí, foi o próprio feudalismo, talvez, o principal responsável pela manutenção do Direito Romano enquanto sistema regulador das relações sociais, agora não mais de um império continental, mas de múltiplos feudos que se instalaram nas terras outrora romanas. Assim, pode-se dizer que não se verificou a elaboração de outro sistema jurídico em substituição ao romano justamente porque não houve a formação de um novo império. Ademais, era da essência dos feudos sua independência, de modo que o sistema romano de regulamentações sociais se manteve vivo. Entretanto, invariavelmente, sofria os influxos da cultura e dos costumes dos povos germanos, em virtude da miscigenação entre os grupos étnicos componentes do feudo. Dessa feita, embora haja ausência de consenso sobre o fato, foi no século XIII que se verificou o nascimento, cientificamente, do sistema de Direito RomanoGermânico.10 Nesse sentido, pode-se observar que, historicamente, os séculos XII e XIII, no Ocidente Europeu, se caracterizaram pela reorganização da sociedade, vale dizer, uma superação dos limites dos feudos, em muito fomentada pelo comércio de escambo e o próprio crescimento das sociedades feudais.11 É claro que tais relações e aglomerações demandaram uma estruturação do agora denominado Direito Romano-Germânico, visando proporcionar ordem e segurança necessárias ao progresso.12 Insta, então, nesse ponto, salientar que o sistema romano-germânico difere do sistema do common law, que, conforme se verá no transcorrer deste estudo, visou à evolução do poder real inglês e sua intensa centralização – diga-se, num ambiente propício até mesmo pelas características geográficas da Inglaterra, toda circundada por água e praticamente destacada do restante do Continente Europeu. Dentre outros motivos, na Europa continental o mesmo fenômeno centralizador não se observava. Ao revés, nos séculos em que eclodiu o sistema romano-germânico, a Europa continental não conhecia qualquer unidade político- 10 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 29. 11 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2002. p. 58. 12 DAVID, op. cit., p. 31. 27 territorial.13 Logo, o sistema romano-germânico fundou-se numa comunidade de cultura, o que permitiu sua subsistência no tempo, pois não estava atrelado a qualquer poder político centralizador e, portanto, não sucumbiria caso a organização política aglutinadora da sociedade fosse dissolvida.14 Outro fato marcante na gênese do sistema romano-germânico, segundo Guido Fernando Silva Soares: [...] foi a compilação e codificação do Direito Romano, que cristalizou, em textos harmônicos, normas costumeiras, normas escritas esparsas, decisões jurisprudenciais e doutrinárias, juntamente com a obra dos glosadores que, aos poucos, foram, em particular nas universidades medievais (que vicejavam à sombra dos mosteiros e conventos, portanto bem próximas dos cultores do Direito Canônico, na época, escrito e extremamente bem-elaborado), dando uma feição racional às soluções 15 casuísticas e assistemáticas dos jurisconsultos romanos. Nesse contexto de produção intelectual dentro das universidades, diversas escolas se sucederam no ensino do Direito. A escola dos denominados glosadores buscou o sentido originário das leis romanas, culminando com o abandono de alguns textos, seja porque se referiam a instituições desaparecidas, seja porque possuíam regramento afeto ao Direito Canônico.16 Entretanto, o trabalho desenvolvido pelos glosadores era limitado ao texto analisado, buscando alçá-lo à condição de instrumento de razão da verdade da autoridade, sem qualquer implicância prática.17 Diversamente se deu com a escola dos pós-glosadores, ou comentadores, que, nos idos do século XIV, submeteu o Direito Romano a experimentações, refinando-o e acabando por desenvolver institutos novos, apresentando-os de forma sistematizada e abolindo a casuística dos jurisconsultos romanos.18 Posteriormente, no século XV, sob a alcunha de usus modernus pandectarum, houve o ensino de um Direito Romano profundamente distorcido, sob a influência do Direito Canônico e das manifestações de alguns pós-glosadores.19 13 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 32. 14 Ibid., p. 32. 15 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 27. 16 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 122. 17 Ibid., p. 133. 18 Ibid., p. 134; DAVID, op. cit., p. 35. 19 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 35. 28 Prosseguindo na evolução temporal, nos séculos XVII e XVIII surge a escola de Direito natural, com grande apelo valorativo, dicotomizando a aplicação do Direito em duas esferas distintas, a saber, a do Direito Público e a do Direito Privado.20 Desse modo, a sucessão de diversas escolas intelectuais com o passar dos séculos propiciou ao Direito Romano puro a atualização do alcance de suas normas e a busca pelas regras mais justas, concomitantemente a uma sistematização lógica no intuito de regrar a sociedade. A despeito disso, as universidades geradoras da evolução supramencionada não tinham competência para fixar as regras oriundas de sua produção intelectual, não as estendendo a todos os países, juízes e práticos.21 Para superar essa deficiência de propagação, foi utilizada a codificação como técnica que permitiu a realização dos objetivos supracitados, explanando de forma sistematizada o Direito necessário ao desenvolvimento da sociedade moderna e que, justamente por isso, devia ser aplicado pelas cortes dotadas de jurisdição. Portanto, a escola de Direito natural arrematou a feição do sistema de Direito Romano-Germânico como o temos: fez estender o Direito às relações públicoprivadas e levou a cabo a codificação de toda a produção intelectual elaborada há séculos nas universidades.22 E, com a codificação das normas jurídicas, tem nascimento o sistema jurídico que se denominou civil law. 20 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 35-37. 21 Ibid., p. 35. 22 Ibid., p. 57. 29 3 O COMMON LAW 3.1 Surgimento e Evolução Histórica Em sua evolução histórica, o common law sempre esteve atrelado à Inglaterra, pois esse sistema de Direito surgiu e se expandiu a partir da referida nação, chegando posteriormente aos Estados Unidos para ganhar contornos definitivos. Nesse particular, vale a menção de Neil Andrews, traduzido por Teresa Arruda Alvim Wambier, de que “o moderno e dinâmico sistema do Common Law, relativo ao processo civil e as demais formas de resolução de conflitos, reflete a importância comercial da Legislação Inglesa e, naturalmente, o domínio econômico dos Estados Unidos da América”.23 Assim, tem-se que o sistema do common law superou os limites geográficos de seu nascedouro, sobretudo em virtude da expansão colonialista da Inglaterra, na qual preponderava um ordenamento de regras não escritas, nascido da prática negocial e aplicado por tribunais locais.24 Observa-se que, até os séculos XII e XIII, a história do Direito inglês guardou grande semelhança com a dos demais países do continente europeu, e, mesmo com o renascimento do Direito romano, os ingleses continuaram com sua tradição nativa.25 Segundo José Rogério Cruz e Tucci26: O direito que começava a germinar na antiga Britania era essencialmente autóctone, fundado na regra conhecida e na prática quotidiana, e muito pouco influenciado pelo ius romanorum. Quando, no crepúsculo do século XII, o estudo científico do direito romano-canônico passa a ganhar autoridade na praxe dos tribunais canônicos, e, no curso do século XIII, a influir nos tribunais laicos, já era muito tarde para que o direito inglês fosse, de alguma forma, seduzido pelas reflexões jurídicas de cunho científico. Desse modo, conclui-se que a adequação das regras embrionárias do sistema do common law às necessidades da sociedade inglesa da época era tão 23 ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de solução de conflitos na Inglaterra. Tradução de Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 27. 24 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 149. 25 MUSCARI, Marco Antonio Botto. Súmula vinculante. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 81. 26 TUCCI, op. cit., p. 150. 30 grande, ou seja, tão arraigada naquela realidade social, que o Direito RomanoCanônico e suas formas abstratas ideais não tiveram o condão de suplantá-lo. Ilustrativo de tal força embrionária do sistema do common law é a exitosa oposição dos barões às exigências do clero na modificação das leis inglesas reguladoras do matrimônio, assim como a inexistência – à época – de qualquer romanista em território inglês, culminando na proibição, por Henrique III (1216-1272), do ensino do Direito Romano na Inglaterra.27 Quanto a isso, o professor José Rogério Cruz e Tucci28 pontifica que: Enfim, a unidade jurídica, a configuração geográfica, a centralização judiciária e a homogeneidade da classe forense justificam a “recepção falhada” das fontes do direito romano-canônico na Inglaterra. Enquanto, por exemplo, na Itália e na Alemanha, a divisão territorial em comunas e pequenos reinos tornava indispensável recorrer ao direito romano como fonte jurídica mais aperfeiçoada, a Grã-Bretanha já tinha o seu próprio direito comum. René David29, ao realizar o retrospecto histórico do Direito inglês destaca que: Podem reconhecer-se quatro períodos principais na história do direito inglês. O primeiro é o período anterior à conquista normanda de 1066. O segundo, que vai de 1066 ao advento da dinastia dos Tudors (1485), é o da formação da Common Law, no qual um sistema de direito novo, comum a todo o reino, se desenvolve e substitui os costumes locais. O terceiro período, que vai de 1485 a 1832, é marcado pelo desenvolvimento, ao lado da Common Law, de um sistema complementar e às vezes rival, que se manifesta nas “regras de equidade”. O quarto período, que começa em 1832 e continua até os nossos dias, é o período moderno, no qual a Common Law deve fazer face a um desenvolvimento sem precedentes da lei e adaptar-se a uma sociedade dirigida cada vez mais pela administração. Deflui do trecho supracitado, portanto, que o período que medeia os anos de 1066 a 1485 pode ser apontado como sendo a época de formação do sistema do common law na Inglaterra. Nessa senda, diga-se que a conquista normanda ocorrida em meados do século XI, quando Guilherme I (1066-1087), Duque da Normandia, considera-se herdeiro dos reis saxões e, por isso, recepciona os seus costumes e decisões, foi fundamental para a consolidação do sistema do common law. Com efeito, tal fato fortaleceu o poder da Inglaterra e o sistema unitário que o formaria, suprimindo o sistema costumeiro-tribal e inserindo para dentro do território inglês os princípios 27 Ibid., p. 150-151. Ibid., p. 151. 29 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 283-284. 28 31 norteadores do feudalismo, concomitantemente à experiência administrativa existente no Ducado da Normandia.30 Num primeiro momento de formação do common law, imediatamente posterior à conquista normanda, os juízes ingleses aplicavam regras de origem germânica, de molde a dizer-se que os princípios do Direito germânico serviram de alicerce ao sistema jurídico anglo-estadunidense. De acordo com René David31, apenas a legislação de Henrique II (1154-1189) é que proporcionou a ampliação do espectro de julgamento, incluindo no Direito da época normas consuetudinárias, anglo-saxônicas e normandas. É imprescindível, outrossim, que se mencione o fato de que nesse período a interpretatio iuris não se submetia a qualquer critério mais rígido, sendo o rei o natural intérprete das normas e competindo aos juízes apenas a tarefa de moldá-las ao caso sub judice, inexistindo, pois, qualquer adstrição ou submissão a textos legais escritos.32 Também nessa época, “as decisões do rei e dos juízes, que continham o comando a seguir em um caso determinado, iam sendo catalogadas, ao longo dos anos, nos statute books” e, “assim, tais coletâneas encerravam os costumes da corte”.33 Tais decisões judiciais desse período eram obra exclusiva dos Tribunais Reais de Justiça, ditos Tribunais de Westminster, cortes constituídas pelo rei e a ele subordinadas diretamente.34 O processo desenvolvido nos Tribunais de Westminster, datado do século XIII, possuía múltiplas facetas externadas sob diversas formas de condução, de modo que a cada writ correspondia, de fato, determinado procedimento, o qual impunha uma sequência de atos a serem realizados, a maneira de prosseguimento de certos incidentes, as possibilidades de representação das partes, as condições de admissão de provas, as modalidades da sua administração e os meios de executar uma decisão.35 30 Ibid., p. 315. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 152. 32 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 152. 33 Ibid., p. 152. 34 SOARES, op. cit., p. 32. 35 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 289. 31 32 Fornecendo um belo panorama do sistema existente à época, veja-se a lição de Guido Fernando da Silva Soares36: A idéia do writ era de que se constituía numa ordem dada pelo Rei às autoridades, a fim de respeitarem, em relação ao beneficiado que obtinha o remédio, sua situação jurídica, definida pelo julgamento a seu favor. Se não houvesse um writ determinado para a situação, não haveria possibilidade de dizer-se o direito (e, sendo assim, criava-se uma intolerável denegação da justiça e a impossibilidade de saber qual o direito aplicável). Concedido o writ, posteriormente, um jury composto de leigos, em certos casos, julgaria as pretensões da pessoa beneficiada pelo writ. Deflui do trecho supramencionado que as Cortes Reais possuíam jurisdição de Direito comum, com competência universal. Entretanto, para que se tivesse franqueado o acesso a essa justiça, por primeiro, era imprescindível que ela mesma admitisse sua competência – sobretudo pela aceitação prévia da existência de um writ – para posterior submissão de um conflito fático e obtenção do provimento jurisdicional de mérito. Esses entraves processuais, já à época representados pela expressão remedies precede rights37 (expressão inglesa que significa: em primeiro lugar o processo), cercearam o desenvolvimento do common law em sua característica essencial: a capacidade de oferecer, rapidamente, mecanismos aptos a solucionar os conflitos observados na sociedade em que estavam inseridos. Então, ao longo do tempo, o rigorosíssimo formalismo procedimental houve de ser temperado, à vista das crescentes injustiças e tensões sociais que estava ocasionando. A primeira dessas moderações foi a concessão de determinados writs por analogia, sem que houvesse qualquer previsão a seu respeito. Cite-se o exemplo trazido pelo professor Guido Fernando Silva Soares:38 [...] inexistia um writ determinado para os contratos; contudo, através de um writ of detinue, originariamente destinado a beneficiar um possuidor de boafé, o mesmo passaria a servir para proteger quem detivesse, sem justo título, uma propriedade; portanto, quem detivesse a coisa sem ter um contrato que legitimasse a posse, ou ainda o writ of trespass, que originalmente servia para proteger um dano causado por um ato ilícito, seria aplicado, analogicamente, para proteger um contratante que tivesse sido prejudicado pela inadimplência. 36 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 32-33. 37 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 290. 38 SOARES, op. cit., p. 33. 33 Ocorre que mesmo a possibilidade de utilização analógica dos writs não foi capaz de trazer às Cortes Reais a necessária liberdade de atuação para diminuição das tensões sociais. Paralelamente, durante o século XIII, os juristas do sistema romano-germânico podiam avocar jurisdição com competência geral, podendo decidir sobre as mais diversas situações fáticas que se lhes apresentassem, sem que o processo pudesse caracterizar cerceamento em sua atuação.39 Desse modo, com vista à superação do formalismo existente no Direito comum aplicado pelas cortes de Westminster, iniciou-se o terceiro período de constituição do common law: o surgimento da Equity Law, enquanto Direito aplicado pelos Tribunais do Chanceler do Rei como forma de temperar o rigor do sistema anterior e de atender a questões de equidade.40 Nesse sentido, o Direito comum passou a ser tido por ultrapassado, descontentando sobremaneira os atores sociais da época. Estes, insurgindo-se contra as decisões prolatadas pelas Cortes de Westminster, recorriam à coroa real no intento de que ela aparasse os excessos e injustiças perpetrados pela excessiva preponderância procedimental.41 Por isso a lição de Guido Fernando Silva Soares42 de que: É bem evidente que tal sistema, formalístico e rígido, logo deveria sofrer radicais modificações, premido pelos fatos das patentes injustiças; os recursos ao Rei, fora das regras processuais da Common Law, aos poucos, se tornam possíveis, sendo que o Rei os decidia, em matéria de consciência, e não mais por motivos estritamente jurídicos. A reiterada prática de submeter as questões à Coroa acabou, ao longo dos anos, por sofrer uma mutação, passando de uma competência subsidiária – e portanto, revisora das decisões do Direito comum – para uma verdadeira competência originária, com a concessão de medidas de conhecimento originário das causas, não mais pelo Rei, mas pelo seu Confessor, o Chanceler.43 A seu turno, as próprias características das regras emanadas da Equity – brandas, concisas, precisas e não formalistas – aliadas à diuturnidade com que tais 39 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 06. 40 Ibid., p. 05. 41 SÈROUSSI, Roland. Introdução ao Direito inglês e norte-americano. São Paulo: Landy, 2001. p. 21. 42 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 34. 43 Ibid., p. 34. 34 procedimentos excepcionais eram requestados em virtude da ausência de writs e consequente impossibilidade de atuação do common law, redundaram na existência de uma verdadeira justiça paralela às Cortes de Westminster, com preceitos, competência e precedentes próprios.44 Ao corpo de normas formulado pelos Tribunais do Chanceler – as Courts of Chancery – chamou-se Equity, normas oriundas do Direito Canônico e que, por serem mais evoluídas e racionais que o casuísmo dos procedimentos do período anterior, acabaram por desenvolver verdadeira rivalidade com as Cortes de Westminster e puseram em risco a própria existência do common law.45 Assim, o Direito existente na Inglaterra no século XVI quase cedeu passo ao sistema romano-germânico, seguindo o restante do continente europeu, justamente em virtude da prevalência da jurisdição de equidade das Courts of Chancery e da decadência do common law aplicado pelas Courts of Westminster. Contudo, diversos fatores se consubstanciaram em verdadeiros impeditivos da consolidação da Equity e quiçá do sistema romano-germânico, em território inglês: A resistência dos juristas precisou ser levada em consideração pelos soberanos, porque os tribunais de Common Law encontraram, para a defesa de sua posição e da sua obra, a aliança do parlamento, com eles coligado contra o absolutismo real. A má organização da jurisdição do Chanceler, a sua morosidade e a sua venalidade forneceram armas aos seus inimigos. A revolução que teria conduzido a Inglaterra para a família dos Direitos Romano-Germânicos não se realizou; foi concluído um compromisso para que subsistissem, lado a lado, em equilíbrio de forças, os 46 tribunais de Common Law e a jurisdição do Chanceler. A cruzada do absolutismo real no intento de abolir o common law da Inglaterra era uma constante ameaça à existência do próprio parlamento, o que motivou referido órgão envidar esforços junto aos juristas ingleses para a manutenção da aplicação do Direito comum inglês nos tribunais, ainda que tal postura implicasse em uma limitação de seu poder, já que, em última análise, salvaguardaria sua própria existência. E esse embate estatal contra o common law surge do fato de que o Direito oriundo das relações sociais e externado de forma jurisprudencial era, em muito, 44 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 34. 45 Ibid., p. 34. 46 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 297. 35 limitador da atuação do Estado – à época constituído por monarquias efetivamente absolutistas – pelo que as tendências autoritárias tiveram na Inglaterra uma luta aberta no desiderato de abolir o Direito comum inglês, conforme anotado por Norberto Bobbio:47 Os soberanos absolutistas, como Jaime I e Carlos I, tentaram fazer valer a preeminência absoluta do direito estatutário, negando aos juízes o poder de resolver as controvérsias com base no direito comum; encontraram, porém, uma firme oposição, da qual o porta-voz e expoente máximo foi Sir Edward Coke (autor das instituições do direito inglês, trabalho considerado como a “summa” da common law). Todavia, o common law sagrou-se vitorioso na luta contra o absolutismo real, salientando o filósofo supracitado que: Na Inglaterra permaneceu sempre nominalmente em vigor o princípio segundo o qual o direito estatutário vale enquanto não contrariar o direito comum. O poder do Rei e do Parlamento devia ser limitado pela common law. Ora, o Rei, ao exercer a jurisdictio (através de seus juízes) era obrigado a aplicar a common law; esta última portanto limitava o poder do soberano. Isto explica por que a monarquia inglesa nunca detinha um poder ilimitado (diferentemente das monarquias absolutas continentais), porque na Inglaterra fora desenvolvida a separação dos poderes (transferida depois para a Europa graças à teorização executada por Montesquieu) e porque tal país é a pátria do liberalismo (entendido como a doutrina dos limites 48 jurídicos do poder do Estado). Dessa sorte, juntamente com as regras do common law, oriundas das Cortes de Westminster, que acabaram por prevalecer, o Direito inglês foi na verdade acrescido com as soluções da Equity, estabelecendo-se uma relação de complementaridade e aperfeiçoamento das regras do Direito comum.49 Mesmo porque, com o passar dos séculos, as soluções da Equity contaminaram-se pelo mesmo formalismo do common law, ou seja, tornaram-se extremamente estritas e jurídicas, distanciando-se da relação de intimidade que outrora possuiu com a equidade, facilitando a fusão entre as regras supracitadas.50 A referida fusão foi levada a cabo pelos Judicature Acts ingleses de 1873 e 1875, que dissolveram as Courts of Chancery, estendendo a competência para 47 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 34. 48 Ibid., p. 33. 49 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 298. 50 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 35. 36 aplicação tanto do common law quanto da Equity Law a tribunais comuns da Inglaterra.51 A partir de então, ambos grupos de Direito que outrora rivalizavam em território inglês foram fundidos, para que se amalgamassem na busca da realização da Justiça. A partir de então, as regras de common law e as de Equity Law podiam ser veiculadas numa mesma ação, perante uma jurisdição una: a Supreme Court of Judicature.52 Diga-se, ademais, que a forma unitária de Estado, aliada à concepção de organização judiciária centralizada, viabilizou a todos os homens livres o acesso à Justiça, disseminando-se à sociedade o conhecimento do Direito então vigente, de forma que a expansão colonizadora inglesa, no final do século XIV, não se conformou em óbice à inserção do novo sistema, que à época já possuía diversos tribunais reais orientados pelas regras do common law, cuja prática já estava naturalmente espalhada pelas regiões conquistadas.53 Sintetizando e concluindo com primazia a evolução histórica acima explanada, finalmente cita-se a lição de Norberto Bobbio,54 para quem: A common law não é o direito comum de origem romana, mas um direito consuetudinário tipicamente anglo-saxônico que surge diretamente das relações sociais e é acolhido pelos juízes nomeados pelo Rei; numa segunda fase, ele se torna um direito de elaboração judiciária, visto que é constituído por regras adotadas pelos juízes para resolver controvérsias individuais (regras que se tornam obrigatórias para os sucessivos, segundo o sistema do precedente obrigatório). O direito estatutário se contrapõe à common law, sendo ele posto pelo poder soberano (isto é, o Rei, e, num segundo momento, pelo Rei juntamente com o Parlamento). 3.2 Diferenciação de Outras Expressões Aparentemente Sinônimas Com esse referencial quanto ao estudo histórico do sistema do common law, tem-se agora como importante tarefa a delimitação do âmbito de utilização da sobredita expressão de forma técnica, dissociando-a de outras, vale dizer, afastando uma suposta relação de sinonímia existente com outros vocábulos. 51 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 35. 52 SÈROUSSI, Roland. Introdução ao Direito inglês e norte-americano. São Paulo: Landy, 2001. p. 23. 53 Ibid., p. 152-153. 54 Ibid., p. 33. 37 Essa possibilidade de confusão terminológica foi pinçada com perspicácia por Guido Fernando Silva Soares55, para quem se impõe a distinção da expressão common law de uma de suas supostas sinonímias, a expressão Direito AngloSaxão, uma vez que “o Direito Anglo-Saxão era o Direito das tribos e reinos da Inglaterra antes da conquista normanda, e que conviveria com o common law nos seus primórdios”, isto é, “o sistema do common law alberga o Direito Anglo-Saxão, mas com ele não se confunde”.56 Outra distinção conceitual merece elucidação: o common law não é Direito Inglês nem da Grã-Bretanha. No primeiro caso porque se aplica o common law em diversos outros países independentes afora a Inglaterra, tais como a Índia, o Paquistão, os Estados Unidos da América (EUA), dentre outros.57 No segundo caso porque, a despeito da união real havida entre a Inglaterra e a Escócia, em 1707, para a formação da Grã-Bretanha, e, posteriormente, com a inclusão da ilha da Irlanda (que, a partir de 1921, manteve apenas a Irlanda do Norte integrada, em virtude da separação da República da Irlanda), gerando o complexo do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, o fato é que o ordenamento jurídico escocês pertence à família romano-germânica, diversamente dos demais componentes do Reino Unido; logo, a expressão common law não pode ser associada à GrãBretanha, dado que um de seus integrantes – a Escócia – pertence à família de Direitos do civil law.58 Outra sinonímia a ser dissipada é a estabelecida entre common law e Direito costumeiro. Ora, o costume é a prática reiterada, diuturna, perene e que se incute na sociedade, passando, pois, a ser preceito obrigatório. Já no common law um único julgado pode ser considerado como vinculante, haja vista que declara a existência de uma norma jurídica para os fatos postos sub judice.59 55 SOARES, Guido Fernando da Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 25. 56 SOARES, Guido Fernando da Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 51. 57 SOARES, op. cit., p. 51. 58 Ibid., p. 51. 59 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 52. 38 Entretanto, é lógico que, sem embargo da conclusão de que o common law não se confunde com o Direito inglês, britânico, anglo-saxônico ou consuetudinário, é certo que estes contribuíram decisivamente para a conformação daquele.60 Dito isso, num passo subsequente, como outros aspectos relevantes, cumpre salientar que, desde as obras dos primeiros comentadores do common law, verificou-se a tendência desse sistema em considerar a necessidade de manutenção de decisões com o fito de salvaguardar o ordenamento de veredictos contraditórios, vale dizer, a importância de ater-se, no julgamento de casos similares, àqueles que já tinham sido antes decididos.61 E, com essa orientação, José Rogério Cruz e Tucci62 assevera que: Toda essa ideologia que marcou o início de formação da common law favorecia a que, cada vez mais, os operadores do direito, juízes e advogados, invocassem os precedentes judiciais. Afirma-se precisamente por essa razão, que, desde a sua fase embrionária, a common law mostrou natural vocação para ser um sistema de case law. Não havia regra jurídica que impusesse efeito vinculante ao precedente. Contudo, com frequência, os juízes ressaltavam a relevância dos julgados, e, sobretudo de uma série de decisões conformes, como sendo os melhores intérpretes da lei, e a exigência de que tais decisões deviam ser seguidas para conferir certeza e continuidade ao direito. Assim, podemos dizer que a natureza vinculante dos precedentes judiciais, alçando a jurisprudência como principal fonte produtora do Direito, é a grande marca do common law enquanto sistema de Direito. Lembre-se, todavia, para não se ter a falsa impressão do engessamento do sistema do common law por conta do respeito e vinculação dos juízes às decisões anteriores, da possibilidade da aplicação do instituto que se denomina overruling, significando a formal superação de um precedente por conta da mudança do entendimento que lhe deu lastro63, empreendendo-se uma nova orientação judicial. Daí a afirmação de que o common law é largamente caracterizado pela habilidade com que os juízes desempenham sua tarefa de decidir.64 E, em vista da importância que se dá aos casos julgados pelas Cortes de Justiça, afirma-se que, no 60 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 33. 61 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 153. 62 Ibid., p. 154. 63 SILTALA, Raimo. A theory of precedent – from analytical positivism to a post-analytical philosophy of law. Oxford: Hart Publishing, 2000. p. 73. 64 HUTCHINSON, Allan C. Evolution and the common law. New York: Cambridge University Press, 2005. p. 4. 39 contexto do common law, a noção de validade do ordenamento jurídico positivado não tem a mesma relevância que no civil law.65 Finalizando estas notas introdutórias a respeito do sistema jurídico em análise, segundo os dizeres do Magistrado da Suprema Corte dos Estados Unidos e considerado o maior jurista de todos os tempos daquele país, reconhecido como precursor da celeridade e pragmatismo no âmbito judicial, o Justice Oliver Wendell Holmes Jr., o common law é considerado o maior trabalho da jurisprudência americana66, deitando suas origens, como visto, nos primórdios do segundo milênio d. C., na região que hoje se encontra a Inglaterra. 65 EDLIN, Douglas E. Common law theory. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 185. HOLMES, Oliver Wendell. The common law. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009. p. 7. 66 40 4 O BRASIL COMO INTEGRANTE DO CIVIL LAW 4.1 A Força do Direito Positivado Como referido, o Brasil é considerado integrante do grupo dos países que adota o sistema do civil law ou sistema romano-germânico. Entretanto, a assertiva desprovida de qualquer exceção ou temperamento não encontra guarida na realidade jurídica pátria, conforme explicitaremos no transcorrer deste capítulo. Consoante abordagem anterior, o ápice da evolução histórica levada a cabo pela escola de Direito natural acabou por conformar o sistema romano-germânico à sua atual estrutura teórica, pretensamente adotada pelo Brasil. Segundo Guido Fernando Silva Soares67: O pensador que melhor caracteriza o sistema romano-germânico é Hans Kelsen, com sua Teoria pura do direito: o direito é uma construção escalonada (Stufenbau), tão racional e geométrica que, por isso mesmo, tem a forma de uma pirâmide, no ápice da qual se encontra uma norma fundamental (Grundnorm), a partir da qual as normas menos gerais retiram sua eficácia e vão perdendo sua generalidade, até aquelas normas colocadas na base (os contratos e as sentenças) em que o princípio geral guarda sua eficácia, após percorrer outros campos de particularismos crescentes (a Constituição, a lei ordinária, o artigo...). Nesse cenário, a função dos juristas se avulta precipuamente em revelar o alcance prático do arcabouço legislativo integrante do sistema, tarefa que se dá através de processos de interpretação, normalmente atendo-se à vontade legiferante ou ao espírito da lei. Ante a força da legislação positivada nesse sistema, Montesquieu chegou a afirmar, no seu clássico Do espírito das leis, que “(...) se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a um tal ponto que nunca sejam mais que um texto fixo da lei”, pois “se representassem uma opinião particular do juiz viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente quais os compromissos que nela são assumidos”.68 67 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 29. 68 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 167-168. 41 Segundo essa ordem de ideias, as obras doutrinárias e a jurisprudência, não obstante o prestígio dos teóricos e juízes que as formulam, não têm o condão de se consubstanciar em regra para o deslinde de uma situação fática.69 Em suma, no sistema da família romano-germânica – sinônimo da expressão civil law – oriundo, como se viu, da revisão do Direito Romano, o que se tem é a prevalência da lei como fonte direta e única do Direito. Repita-se, a doutrina e a jurisprudência, além dos costumes, como fontes indiretas, são colocadas em posições secundárias, atuando num momento posterior ao da norma positivada, seja integrando-a, interpretando-a ou aplicando-a, frisandose, ademais, o caráter persuasivo de tais fontes secundárias nesse sistema quando do seu nascedouro. Entretanto, apesar desses aspectos, constata-se que o sistema do civil law tem se aproximado do common law, implicando em verdadeira mudança ontológica quanto às fontes supracitadas, aspecto que será objeto de um dos itens seguintes deste trabalho, refletindo na criação e na inserção de diversos institutos jurídicos no ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, nos horizontes do Direito pátrio não remanescem dúvidas do importantíssimo papel desenvolvido pela jurisprudência e pela atividade judicial como aperfeiçoadoras da prática forense, sobretudo ante a massificação das relações intersubjetivas, fomentada e viabilizada pela globalização, com um desmedido aumento na prestação jurisdicional, justamente em virtude da maior incidência de conflitos na teia social. Isso abarrotou nossas cortes de justiça de recursos, gerando a necessidade de busca de institutos jurídicos que evitassem a prolação de decisões contraditórias e enfraquecedoras do ordenamento jurídico. 70 O referido cenário é agravado ao se relembrar a organização judiciária de nosso país, composta por grande número de tribunais estaduais e regionais federais espalhados pelo território nacional, exigindo maior empenho na elaboração de mecanismos capazes de promover a uniformidade do Direito. 69 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 78. 70 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 257-258. 42 Na lição de José Rogério Cruz e Tucci71: Na verdade, a exigência de interpretação e aplicação, tanto quanto possível, homogênea do ius positum tem efetivamente ocupado a atenção do legislador pátrio, inclusive, por certo, como meio de minimizar o afluxo exagerado de demandas. O principal meio encontrado para resolver as modernas celeumas do ordenamento jurídico pátrio foi a inserção de institutos jurídicos próximos aos existentes no sistema do common law, de modo geral tidos por mecanismos processuais de uniformização da jurisprudência e que se encontram esparsamente incrustados no sistema jurídico adotado pelo Brasil. Dentre esses institutos podemos citar as súmulas vinculantes; as súmulas impeditivas de recurso; o controle concentrado de constitucionalidade; a eficácia vinculante da decisão acerca da repercussão geral em sede de recurso extraordinário; o efeito vinculante das decisões do plenário ou órgão especial dos tribunais; o julgamento monocrático com base em súmula, jurisprudência dominante ou precedente de tribunal superior; o julgamento liminar de ação idêntica pelo juiz de 1º grau de jurisdição72; dentre outros que serão abordados com o devido aprofundamento em capítulo apartado no presente estudo. Ora, um sistema jurídico dotado de tão grande número de mecanismos jurisprudenciais que gozam de efeito vinculante não pode ser tido como um adotante integral e exclusivo da família de Direitos romano-germânica, sendo necessário que se ressalve, ao menos, um acentuado temperamento em virtude da adoção de diversos institutos inspirados no sistema do common law, talvez rumando para a conformação de um sistema misto. No que concerne às fontes do Direito do sistema romano-germânico, a lei está situada em posição de prevalência em cotejo com as demais fontes, dentre elas, segundo Hans Kelsen, a Norma Fundamental, a qual está no ápice, constituindo-se em fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico remanescente, gerando um controle de harmonização da totalidade do sistema em função da sobredita norma (para nós, o controle de constitucionalidade), de sorte que as relações jurídicas públicas ou privadas têm suas bases norteadoras 71 Ibid., p. 258. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 457. 72 43 totalmente positivadas, seja na forma de códigos ou não, da forma como abaixo resumidamente se expõe. 4.2 A O Normativismo Jurídico de Kelsen Para Kelsen, o Direito deve ser entendido unicamente como um conjunto normativo positivado, estando livre de qualquer concepção social ou valorativa, sem que sua interpretação tenha a influência da psicologia, da sociologia, da política e da moral. A ideia fundamental da sua obra Teoria Pura do Direito é libertar o Direito de todos os elementos que não lhe são próprios, baseando-se, então, no mais singelo positivismo. Neste sentido, discorre o jurista em comento: Quando a si própria se designa como “Pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isso quer dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que 73 lhe são estranhos. Kelsen consegue ver o Direito como sendo apenas um conjunto de normas representadas por prescrições que revelam a categoria do “dever ser” e não da ordem do “ser”, conferindo a determinados fatos o caráter de jurídico ou antijurídico. Neste contexto, observa que a norma é um produto da vontade, elaborada com a finalidade de regular a conduta humana e que funciona como um esquema de interpretação, afirmando que “o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico ou antijurídico é o resultado de uma interpretação”.74 O autor segue ainda dizendo que “a norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico ou antijurídico recebe a sua significação jurídica de outra norma”.75 73 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pág 1. 74 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pág 3. 75 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pág 4. 44 Desta forma, a norma tem validade não pelo sentido de ser justa, mas sim por estar ligada a outra regra considerada superior, denominada de Norma Fundamental, com a qual Kelsen sistematiza toda a ordem jurídica. A questão da validade é um dos aspectos mais importantes sob a ótica da teoria Kelseniana. Com efeito, a validade da norma decorre sempre da sua ligação a outra norma, sendo a Norma Fundamental aquela considerada hierarquicamente superior. Kelsen também avalia se as normas são válidas segundo tenham sido produzidas por órgãos legislativos competentes, verificando se estes órgãos tiveram sua competência fundada em atos normativos superiores. O Direito, então, por ser entendido como uma estrutura de normas válidas, pode estabelecer sanções aplicáveis a agentes de condutas ilícitas. Assim, a norma jurídica é regulada por um princípio retributivo, ou seja, ela liga a norma prescrita ou proibida a uma consequência sancionadora. A ordem jurídica, nesse quadro, tem como principal função regular a conduta humana e estabelecer sanções, e é justamente no estabelecimento destas sanções que o Direito mostra suas forças. Portanto, o Direito é um conjunto de normas que regulam a conduta humana, e estas normas, por sua vez, quando legitimamente válidas, podem estabelecer sanções, caracterizando-se como uma ordem coercitiva despida de sentido valorativo, seja social, moral ou político. Segundo Maria Helena Diniz, comentando a doutrina em exame no cenário dos países integrantes do sistema de civil law de origem romano-germânica, “o racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria Kelseniana é a expressão máxima do estrito positivismo jurídico”76, e por isso mereceu nossa rápida atenção. 76 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 116. 45 5 OS EUA COMO INTEGRANTES DO COMMON LAW 5.1 A Doutrina do Stare Decisis Como cediço, os Estados Unidos da América são considerados integrantes do sistema do common law. Nesse particular, uma questão importante a ser analisada é a origem da força vinculante dos precedentes judiciais, resultando na aplicação da denominada doutrina do stare decisis. Como visto anteriormente, desde sua gênese, o common law possui aptidão para ser um sistema de case law – que tem como regra fundamental a ser seguida o conjunto de casos já decididos, os precedentes. Entretanto, não havia qualquer preceito que impusesse efeito vinculativo aos julgados, existindo tão-somente uma preocupação com a coesão do sistema.77 Veja-se que a sobredita tendência à adoção das próprias decisões como regramento não é outra coisa senão a própria essência do sistema do common law, sendo inerente à sua própria conceituação. Nos dizeres de André Gustavo Corrêa de Andrade78: A expressão common law, dentre outras acepções, é designativa de um sistema jurídico em que uma das fontes primárias do Direito é a decisão ou o precedente judicial (precedent). O conjunto dessas decisões (case-law), vinculadoras do julgamento de casos futuros, constitui o "Direito comum", aplicável preferencialmente em relação às normas estabelecidas abstratamente em leis ou outros diplomas emanados de órgãos com competência legislativa. A característica desse sistema, portanto, é a criação do Direito pelo juiz (judge-made law), em contraposição ao Direito estabelecido por órgão não integrante do Poder Judiciário (statute law). E a imposição da decisão do caso julgado a situações futuras de forma obrigatória é a chamada doctrine of stare decisis, também chamada de doctrine of precedents, expressão última que, traduzida para o português, seria regra do precedente.79 77 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 154. 78 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 174. 79 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 40. 46 A expressão stare decisis é o remanescente da expressão latina stare decisis et non quieta movere, que significa: que as coisas permaneçam firmes e imodificadas, em razão das decisões.80 Superada a origem histórica da nomenclatura, temos que, ontologicamente, a doctrine of stare decisis é a regra jurídica segundo a qual uma decisão tomada por uma corte de justiça mais elevada deve ser seguida pelas cortes inferiores da mesma jurisdição quando as circunstâncias de fato no caso subsequente sob análise forem as mesmas do caso precedente, que atua como paradigma. Para André Gustavo Corrêa de Andrade, “[...] busca-se, pois, aplicar as razões de decidir de casos passados”.81 Também nesse sentido é a conceituação de Guido Fernando Silva Soares82: Na verdade, o precedente não é uma regra abstrata, mas uma regra intimamente ligada aos fatos que lhe deram origem, razão pela qual, o conhecimento das razões da decisão é imprescindível; não se pode aplicar um precedente fixado em matéria de motivos para divórcio, por exemplo, à resolução de uma questão que verse sobre contratos ou obrigações alimentícias! A seu turno, José Rogério Cruz e Tucci assevera que “[...] o precedente então nasce como uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornarse a regra de uma série de casos análogos”.83 A justificativa para predileção à adoção da regra do precedente é de que há maior segurança para o desenvolvimento de relações jurídicas em virtude de saberse, de antemão, o posicionamento judicial a ser exarado sobre determinado conjunto de fatos para o caso de conflito, já que fatos idênticos ou análogos foram submetidos a julgamento anterior. Assim, um conjunto de precedentes obrigatórios confere consistência ao sistema jurídico, seja pela antecipação na direção dos pronunciamentos judiciais, seja pelo sentimento de justiça, afastando, em muito, a possibilidade de que casos iguais ou análogos sejam resolvidos de formas diferentes.84 80 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 35. 81 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 171-172. 82 SOARES, op. cit., p. 41. 83 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 11-12. 84 ANDRADE, op. cit., p. 172. 47 Anote-se que referidos precedentes podem ser originados de uma única ou várias decisões, desde que emanadas por um órgão coletivo de segundo grau, sendo obrigatório para o mesmo tribunal e juízes que lhes são subordinados, salientando-se que as decisões de órgãos de primeiro grau não se constituem em precedentes.85 No que tange à autoridade dos precedentes, ou seja, a força de impor-se a casos futuros, André Gustavo Corrêa de Andrade86, numa acepção mais restrita, menciona como obrigatório apenas o binding precedent − prévia decisão proferida por um tribunal em relação a órgão judicante de primeiro grau ou prolatada por tribunal superior em relação a um colegiado inferior, pontuando que: Entre órgãos judiciários de igual hierarquia, os precedentes não têm força obrigatória, mas meramente persuasiva (persuasive precedent), o mesmo ocorrendo com decisões de uma corte estadual em relação a órgãos judiciários de outro estado. Um outro fator de importância vital à força que se confere aos precedentes liga-se à maneira como são encarados os litígios perante a Justiça americana, que procura, mais do que julgar as lides, determinar, a partir delas, enunciados normativos para as situações semelhantes que ocorrerão no futuro, como nos dá conta Odete Novais Carneiro Queiroz, pontuando que: Comparando-se decisões jurisprudenciais americanas e brasileiras, haveremos de perceber que o direito americano tem procedido de duas maneiras; na primeira soluciona o caso sub judice, na segunda oferece nortes, fixando regras para deslindes de casos que ainda virão. Já o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, criado de modo similar à Suprema Corte americana, tem deixado a desejar, pois se prende unicamente ao julgamento que está a fazer, não se preocupando com uma interpretação normativa que pudesse oferecer parâmetros para demandas 87 futuras. 85 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 40. 86 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 172. 87 QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. O devido processo legal. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 748, p. 50-51, fevereiro 1998. 48 Não obstante a recorrente necessidade de adequação do sistema à dinâmica social, o abandono de um precedente na lição de José Rogério Cruz e Tucci88: [...] sobretudo no ambiente de uma experiência jurídica dominada pelo case law, exige do órgão judicial uma carga de argumentação que supõe não apenas a explicação ordinária das razões de fato e de direito que fundamentam a decisão, mas, ainda, justificação complementar. Essa imposição natural é geralmente esclarecida pelo denominado princípio da inércia, segundo o qual a orientação já adotada em várias oportunidades deve ser mantida no futuro (por ser presumivelmente correta, pelo desejo de coerência e pela força do hábito). Não pode, pois, ser desprezada sem uma motivação satisfatória. Em arremate, insta salientar que tais mudanças são mais frequentes na jurisprudência estadunidense do que na inglesa, o que é explicado pela própria complexidade da sociedade americana e seu sistema jurídico, já que, nesse ponto, como informa André Gustavo Corrêa de Andrade: Os Estados Unidos, diferentemente da Inglaterra, possuem uma Constituição escrita, datada de 1787 e acrescida de diversas emendas. Muitas de suas disposições sofreram importantes mudanças de interpretação ao longo dos anos, para adaptá-las à evolução social. Além disso, cada um dos cinquenta estados americanos goza de relativa 89 autonomia e possui sua própria Constituição. 5.2 A Presença da Lei Positivada nos EUA Pois bem, a essa altura, já analisados ao menos superficialmente alguns dos principais institutos jurídicos componentes do sistema do common law, é possível que se averigue a suposta adesão dos Estados Unidos da América a esse sistema, à luz da produção legislativa atual. Por primeiro, cumpre salientar que, desde a época da colonização, o sistema do common law vige em praticamente todo o território estadunidense. Entretanto, com o transcorrer do século XVIII, o Direito nos Estados Unidos da América se distanciou, por diversos fatores, da antiga tradição jurídica da Inglaterra. 90 Desses fatores, a organização federal – inexistente no Estado unitário da Inglaterra – e, sobretudo, a existência de uma Constituição Federal rígida e escrita, 88 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 181. 89 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 174. 90 TUCCI, op. cit., p. 165. 49 fenômeno também desconhecido pelos ingleses, impuseram ao ordenamento jurídico dos Estados Unidos sérios contrastes em cotejo com o Direito inglês.91 O Direito dos Estados Unidos é dominado pela transcendental importância da Constituição Federal, promulgada em 1787, marcando a ruptura no seguimento da experiência jurídica inglesa.92 Deveras, o maior traço distintivo entre o Direito nos Estados Unidos e na Inglaterra – vale dizer, o que fundamenta a não adoção pelos estadunidenses do sistema do common law em sua forma pura – está na maior importância que o statue law (Direito escrito) tem no sistema adotado por eles, com a consequente modificação da atuação do common law stricto sensu.93 E, da mesma forma que o Brasil, a adoção pelos EUA de um sistema misto, situado entre o common law e o civil law, também é evidenciada pelas substanciais modificações tendentes à codificação das normas jurídicas, denotando boa aproximação de seu ordenamento jurídico ao sistema do civil law. Afora essas principais evidências, Guido Fernando Silva Soares94 assevera que: [...] importa observar que a adaptação e recepção da Common Law inglesa nos EUA não se fizeram de maneira automática. As realidades de um país do Novo Mundo, com as extensões continentais dos EUA, não poderiam permitir a recepção de institutos concebidos para uma sociedade cercada de água por todos os lados e profundamente enraizados numa divisão feudal, como é o caso do direito agrário (land law); por tais razões, os institutos como a primogenitura, que é a base do sistema hereditário na Inglaterra, nunca tiveram qualquer aceitação nos EUA. Assim, as fontes do Direito estadunidense são precipuamente a própria Constituição, as leis federais (US Statues, v.g. Uniform Commercial Code; Federal Rules of Civil Procedure) e as constituições e leis estaduais95. Sem prejuízo, é inequívoca a relevância das normas oriundas do common law na atividade jurisdicional nos Estados Unidos, de modo que suas cortes de justiça julgam, com 91 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 59. 92 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 165. 93 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 59. 94 Ibid., p. 59. 95 TUCCI, op. cit., p. 166. 50 extremada frequência, segundo os princípios da regra do stare decisis, citado pela própria doutrina como decisional law96, com esteio nos precedentes. Isso posto, é evidente que os Estados Unidos da América não integram o sistema puro do common law, como o inglês (este baseado em um ordenamento jurídico calcado unicamente nos precedentes), como supostamente acredita-se, possuindo uma tendência legislativa atual que lhe aproxima em alguns momentos do civil law, evidenciado, inclusive, pela adoção pura deste sistema no Estado da Louisiana, pertencente à sua federação.97 96 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 166. 97 Ibid., p. 60. 51 6 ALGUMAS TENDÊNCIAS DO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO AO COMMON LAW 6.1 Noções Gerais Conforme visto, a lei, em sentido lato, é, em regra, no sistema de civil law, a fonte primacial do Direito, atuando praticamente com exclusividade na criação das normas jurídicas em se tratando de países que adotam o sistema de Direito romanogermânico.98 Ocorre que, diuturna e hodiernamente, a produção legislativa – lenta, burocrática, omissa, imprecisa e equivocada – vê o crescente e pujante fortalecimento da jurisprudência nesse sistema de Direito, seja pela imediatidade no contato dos juízes com as lides, seja pela maior rapidez na adaptação das decisões judiciais às necessidades sociais. Nesse sentido, o processo hermenêutico da legislação – diga-se, imprescindível ao processo de subsunção do fato à norma inerente ao sistema da civil law – levado a cabo pelas cortes e seus juízes se intensificou na mesma proporção do aumento da quantidade e complexidade das relações jurídicas açambarcadas pela sociedade, atuando a criação jurisprudencial no preenchimento de lacunas, disciplinando novas áreas carentes de atuação legislativa e até solucionando lides para as quais inexiste qualquer positivação legal. Não fosse por tudo isso, o próprio processo globalizador contribuiu de forma determinante para que os sistemas jurídicos mundiais passassem a se comunicar reciprocamente, identificando suas carências e, simultaneamente, buscando sanálas através da incorporação de institutos jurídicos outrora repudiados ou não adotados. Definindo esse processo globalizador, Jürgen Habermas99 aduz que: A globalização pressiona o Estado nacional a se abrir internamente para a pluralidade de modos de vida estrangeiros ou de novas culturas. Ao mesmo tempo, ela limita de tal modo o âmbito de ação dos governos nacionais, que o Estado soberano também tem de se abrir para fora diante de administrações internacionais. 98 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 87. 99 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 107. 52 Assim, as sociedades reguladas pelo sistema de Direito romano-germânico, sopesando a funcionalidade existente no instituto jurídico do precedent, tanto do tradicional common law inglês como do moderno common law estadunidense, passaram a utilizá-lo, primeiramente, como corretivo das mazelas verificadas em seus sistemas, evoluindo posteriormente para sua utilização como verdadeira fonte de Direito. Veja-se, entretanto, que o caminho evolutivo percorrido pela jurisprudência, tradicional fonte secundária de Direito e vista com reservas no sistema do civil law, somente foi viabilizado pelo processo de globalização supradescrito, que a alçou ao posto em que se encontra hoje, qual seja, fonte de primeira grandeza no sistema de Direito romano-germânico.100 Reflete essa mudança no grau de importância da jurisprudência o fato de que nenhum advogado praticante negará hoje a importância de um arquivo de jurisprudência dominante nos vários assuntos de sua atuação, bem como que qualquer estudante sabe da importância de seu conhecimento como um dos mais poderosos instrumentos na aplicação do Direito. Para Guido Fernando Silva Soares101: Outra prova disso é a aceitação generalizada de compilações de jurisprudência uniforme em certas matérias tópicas, conforme as publicações que se tornam cada vez mais frequentes entre nós; quando se fala em Informática no Direito ou em Informática Jurídica, a primeira indagação é saber quando serão aquelas engenhocas inteligentes aplicáveis para melhor conhecer-se a jurisprudência e dela extrair maior aproximação com a realidade dos fatos correntes! Logo, pode-se dizer que a evolução do Direito está em tudo atrelada à evolução humana, consignando que o atual estágio da técnica já permite ampla consulta juscibernética, sobretudo porque todos os tribunais estaduais e federais pátrios gozam de acervo jurisprudencial informatizado e disponível para consulta online. Insta salientar que tais compilações de jurisprudência estão evoluindo e se transformando paulatinamente há um século nos países que adotam o civil law, acompanhando a aproximação desse sistema ao do common law. Hoje tais compilações são o resultado do importantíssimo papel delegado à jurisprudência, de 100 STRENGER, Irineu. Direito Internacional privado. São Paulo: LTr, 2003. p. 125. SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 30. 101 53 modo que diversos países adotantes do sistema romano-germanista possuem compilações oficiais de jurisprudência, tais como Alemanha, França, Itália, Suíça e Turquia.102 Através dessas análises, podem ser vislumbradas as transformações que o sistema do civil law vem sofrendo, sobretudo pela maior produção e sistematização jurisprudencial, sendo certo que as aberturas gerais supradescritas são de todo existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, analisados os fatores genéricos de abertura do sistema romano-germânico, é mister que se examinem as brechas específicas e exclusivas encontradas no sistema adotado pelo Brasil ao sistema de precedentes. Consoante visto anteriormente, não remanescem quaisquer dúvidas quanto ao fato de que o sistema jurídico brasileiro avizinhou-se do sistema do common law, sobretudo daquele sistema misto vigente nos Estados Unidos da América. Tal fato é evidenciado, especialmente, pela inserção de instrumentos jurídicos capazes de conferir efeito vinculativo à jurisprudência pátria, como um primeiro passo à inserção da doctrine of stare decisis entre nós. Historicamente, a referida inserção – efetivamente realizada com a publicação da Emenda Constitucional nº 45/2004, possibilitando ao Supremo Tribunal Federal a edição de súmulas vinculantes – teve seu embrião nos primórdios da fase republicana através da obra doutrinária de Ruy Barbosa.103 Na seara legislativa, a eficácia vinculante dos precedentes apareceu na Constituição Federal de 1934, com a criação do instituto da suspensão, pelo Senado Federal, de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, buscando estender os efeitos de referida declaração – feita em sede de controle difuso e, portanto, com eficácia inter partes, já que o controle concentrado de constitucionalidade foi inserido em nosso ordenamento jurídico em momento posterior. Após isso, o Código de Processo Civil de 1939, em seu artigo 861, possuía disposição expressa de que um Tribunal poderia se manifestar previamente acerca da interpretação a ser dada a uma determinada norma jurídica. 102 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 124. 103 SOTELO, José Luiz Vasquez. A jurisprudência vinculante na common law. Temas atuais de Direito Processual ibero-americano. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 374. 54 Posteriormente, quando da elaboração da Constituição Federal promulgada em 1946, houve diversas propostas para a inserção de um sistema de procedimentos vinculantes. A referida fase embrionária culminou com os estudos elaborados por ocasião da apresentação do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, capitaneado por Alfredo Buzaid (1964), que visavam ao restabelecimento de antigos assentos anteriormente vigentes e redundariam na atribuição de efeito vinculativo às decisões judiciais (artigo 519 e item 29 da exposição de motivos). Em 1963, houve modificação no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, especificamente em seu artigo 102, que passou a conter a súmula da Jurisprudência Predominante do Excelso Tribunal, instrumento ainda existente e que visa dar eficácia persuasiva aos precedentes da Corte. A Emenda Constitucional nº 16/1965 criou a representação de inconstitucionalidade, trazendo efeito erga omnes às decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade.104 A evolução legislativa para dotar de efeito vinculante os precedentes judiciais continuou, alcançando os diplomas infraconstitucionais. Nesse sentido, o regime original do Código de Processo Civil de 1973 previa um mecanismo de uniformização de jurisprudência e do feitio de súmulas em seu artigo 479, buscando salvaguardar a igualdade nas decisões judiciais. Logo após, a Lei Complementar nº 35/1979 – Lei Orgânica da Magistratura – em seu artigo 90, § 2º, franqueou ao relator, nos processos sujeitos à competência derivada do Tribunal Federal de Recursos, que negasse seguimento a recurso contrário à súmula daquele Tribunal ou do Supremo Tribunal Federal.105 Nessa esteira e no mesmo sentido adveio o artigo 38 da Lei nº 8.038/90, que facultou ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de seus relatores, negar seguimento a recursos que contrariassem, em matéria de Direito, o teor das súmulas elaboradas pelos respectivos Tribunais. A partir de 1994 as reformas legislativas avançaram, sobretudo no Código de Processo Civil, visando dar força vinculante não somente aos precedentes sumulados, mas também aos demais. Assim, a nova redação do artigo 557 e de seus parágrafos permitiu, no âmbito dos tribunais de segunda instância, ao relator, 104 ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 01 dez. 2011. p. 16. 105 Ibid., p. 17. 55 individualmente, negar seguimento/dar provimento a recursos. Os §§ 3º e 4º do artigo 544 atribuíram competência monocrática aos relatores dos recursos de agravo de instrumento interpostos em face de despachos denegatórios de Recurso Especial e Extraordinário para, conhecendo o agravo, dar provimento ao REsp ou REx com fulcro em jurisprudência ou súmulas do STJ e STF. Já o parágrafo único do artigo 481 inseriu o sistema de vinculação dos órgãos fracionários dos Tribunais aos seus próprios precedentes e, caso inexistentes, aos do STF, nos incidentes de inconstitucionalidade.106 Ainda no Código de Processo Civil, em 1998, o parágrafo único do artigo 120 autorizou o relator a decidir de plano um conflito de competência, se houver jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada. Em 2001, o § 3º do artigo 475 dispensou a remessa necessária enquanto requisito à produção de efeitos das sentenças prolatadas em desfavor da Fazenda Pública, caso tenham adotado jurisprudência do plenário do STF ou súmula de Tribunal Superior competente. No mesmo ano, o artigo 741, parágrafo único, passou a dotar as decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade de eficácia executiva inibitória, impedindo a execução de sentenças que lhes fossem contrárias, fato repetido em 2005 pelo artigo 475-L, § 1º.107 No que tange aos Juizados Especiais Federais, já em sua gênese, a Lei nº 10.259/2001, em seu artigo 14, inseriu-se o mecanismo de uniformização de interpretação de lei federal, dando eficácia vinculante às decisões da Turma de Uniformização (§ 2º) e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (§ 4º). Isso em virtude de se ter a força vinculante dos precedentes como inerente e essencial ao atendimento dos princípios norteadores dos Juizados Especiais. A inserção da regra do stare decisis prosseguiu a passos largos e a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 sedimentou a tendência à aproximação do nosso sistema ao common law. Insta salientar que a importância dessa alteração, no que tange à consolidação do temperamento ao sistema civil law adotado, não reside somente em seu conteúdo (a criação de um instituto jurídico capaz de atribuir efeito vinculante às reiteradas decisões de um Tribunal - a súmula vinculante), mas também na forma como se deu referida alteração, através da 106 ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 01 dez. 2011. p. 17. 107 Ibid., p. 17-18. 56 inserção de texto normativo no conjunto de normas da mais alta hierarquia dentro do sistema romano-germânico adotado pelo Brasil, nossa rígida Constituição Federal. Analisando seu conteúdo, podemos inferir que o acréscimo do artigo 103-A à Constituição Federal franqueou ao Supremo Tribunal Federal a edição de súmulas que, a partir de sua publicação, gozam de efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo (administração pública direta e indireta, seja federal, estadual ou municipal). Para a edição dessa súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, oficiosamente ou mediante provocação, necessita da aprovação de dois terços de seus membros, mesmo quórum necessário à revisão ou cancelamento do preceito vinculativo, procedimentos regulamentados pela Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Nesse mesmo ano várias reformas foram empreendidas nas diversas codificações existentes, ocasião em que novos institutos de aproximação ao sistema do common law foram inseridos no sistema jurídico brasileiro. São exemplos desses institutos: o artigo 518, § 1º, do CPC (que consagrou a súmula impeditiva de recurso, impedindo a apelação contra sentenças fulcradas em súmulas do STF e STJ); o artigo 285-A do Código de Processo Civil (inserindo o julgamento antecipadíssimo, para os casos em que a matéria discutida for unicamente de Direito e no juízo já houver sido proferida sentença de improcedência em casos idênticos, podendo haver a dispensa da citação e ser prolatada sentença de igual teor à anteriormente proferida); os artigos 543-A e 543-B do CPC (que disciplinaram a repercussão geral – artigo 102, § 3º, da Constituição Federal – como pressuposto recursal dos recursos extraordinários); o artigo 543-A, § 3º, do CPC (que presumiu a repercussão geral de decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal); e o artigo 543-B, caput e § 3º, do CPC (que instituíram um sistema de decisões vinculantes quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia). Em 2008, a Lei nº 11.672/2008 acresceu o artigo 543-C ao Código de Processo Civil, instituindo um sistema de julgamento para os recursos especiais análogos ao da repercussão geral (recursos repetitivos), outorgando elevada força persuasiva aos precedentes do STJ e, ao mesmo tempo, visando à aplicação prática dos precedentes aos casos pendentes de julgamento. Nesse cenário, mesmo antes de se adentrar na análise mais aprofundada dos institutos jurídicos supramencionados, segundo o Professor Danilo Knijnik: 57 Embora não seja certo dizer que o juiz brasileiro, p. ex., está jungido ao precedente tanto quanto o estaria um juiz norte-americano ou inglês, também será falso, mormente na atualidade, dizer que o precedente é uma categoria jurídico-processual estranha ao direito pátrio, ou que tem apenas 108 força meramente persuasiva. Insta salientar que a doutrina, assim como as academias jurídicas, constatando essa crescente aproximação do sistema jurídico brasileiro ao do common law, evidenciado sobremaneira pelas alterações legislativas, têm publicado diversos trabalhos realçando as vantagens – e até mesmo a necessidade – de se adotar institutos jurídicos oriundos do common law como instrumentos corretivos do sistema do civil law. Nesse sentido, Luís Guilherme Marinoni109 aduz ser imprescindível que se tenham efetivas investigações sobre a jurisdição do common law, numa postura de abandono ao preconceito acadêmico-doutrinário em relação ao Direito estadunidense, constatando que: Não há qualquer empenho em ressaltar que o juiz, no Estado constitucional, deixou de ser mero servo do legislativo. A dificuldade em ver o papel do juiz sob o neoconstitucionalismo impede que se perceba que a tarefa do juiz do civil law, na atualidade, está muito próxima da exercida pelo juiz do common law. É exatamente a cegueira para a aproximação destes juízes que não permite enxergar a relevância de um sistema de precedentes no civil law. Assim, estatuídos os fundamentos gerais e a evolução no tempo da aproximação do sistema do civil law ao do common law, é necessário que analisemos particularmente alguns dos mais importantes institutos jurídicos presentes no ordenamento jurídico pátrio que efetivamente se consubstanciam em aberturas ao sistema americano. 6.2 Controle Concentrado de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal Como dito, o controle concentrado abstrato faz parte do sistema misto adotado para o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis no sistema jurídico brasileiro. É de competência restrita, atua diretamente e possui a força da coisa julgada erga omnes em sua parte dispositiva. 108 KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 59. 109 MARINONI, Luiz Guilherme. A transformação do civil law e a oportunidade de um sistema precedentalista para o Brasil. Cadernos Jurídicos da OAB-PR, Curitiba, v. 03, p. 1- 3, jun. 2009. 58 A Emenda Constitucional nº 3, de 1993, ao efetuar um sem-número de alterações no ordenamento jurídico pátrio, introduziu a denominada ação declaratória de constitucionalidade, de competência do Supremo Tribunal Federal, bem como disciplinou seus efeitos, no § 2º do artigo 102 da Magna Carta, in verbis: As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. O procedimento das ações de controle de constitucionalidade foi disciplinado pela Lei nº 9.868 de 1999, que estendeu o efeito vinculante, ab initio existente apenas na ação declaratória de constitucionalidade, às ações declaratórias de inconstitucionalidade e à arguição de descumprimento de preceito fundamental. Desse modo, esse diploma legal acabou ampliando expressivamente a eficácia vinculante dos precedentes do Supremo Tribunal Federal no que toca ao controle concentrado da constitucionalidade das leis.110 Para José Rogério Cruz e Tucci111, “abriu-se, assim, a passos largos, o caminho da adoção, no Brasil, do precedente judicial com força vinculante em situações nas quais se encontram em jogo importantes quaestiones iuris, de inequívoco peso político”. Com a admissão dessa eficácia vinculante da decisão em controle abstrato é que ela passou a ter qualidade de precedente constitucional, de acordo com Luiz Guilherme Marinoni.112 E mais, a conotação vinculante também dos motivos determinantes da decisão exarada em controle concentrado abstrato de constitucionalidade acresceu, via de consequência, maior abrangência ao espectro de incidência de reclamo às violações constitucionais que passaram a albergar a não observância dos motivos essenciais do decisum, extrapolando os limites das determinações constantes de sua restrita parte dispositiva.113 Nesse sentido, para Luiz Guilherme Marinoni114: [...] partindo-se da premissa de que a eficácia vinculante incide sobre os motivos determinantes da decisão proferida em sede de controle abstrato, 110 Ibid., p. 271. Ibid., p. 271. 112 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 467-468. 113 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 468. 114 Ibid., p. 469. 111 59 deixa de importar apenas a coisa julgada material e passa a ter relevância o delineamento da ratio decidendi ou dos motivos determinantes para a segura definição dos limites em que os demais tribunais estão obrigados perante o precedente constitucional, o que significa que tal decisão indisfarçavelmente assume novo significado ou qualidade. Desse modo, não remanescem dúvidas de que a força obrigatória dos motivos determinantes das decisões em sede de controle concentrado abstrato de constitucionalidade denota o caráter de fonte de Direito dos precedentes judiciais do Supremo Tribunal Federal115, em tudo adotando o instituto típico do sistema do common law e se consubstanciando numa claríssima abertura a este sistema. 6.3 Controle Incidental de Constitucionalidade nos Tribunais Estaduais e o Efeito Vinculante das Decisões do Órgão Especial Veja-se o disposto no artigo 97 da Constituição Federal: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. Assim, os órgãos fracionários dos tribunais, tais como as câmaras e turmas, não podem atestar a inconstitucionalidade de lei sem que o tenha sido pela maioria absoluta do tribunal ou de seu órgão especial, se existente. A referida norma constitucional consagra a cláusula da reserva de plenário, que reflete o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, de modo que, para haver declaração de inconstitucionalidade pelo tribunal, exige-se um quórum qualificado.116 Apenas quando os órgãos fracionários entendem pela constitucionalidade da norma é que estão dispensados de encaminhar a questão ao plenário. 117 Decidida a questão constitucional submetida ao plenário pelo órgão fracionário, é evidente que este não poderá decidir de forma contrária, devendo acatar e decidir de acordo com o pronunciamento oriundo da maioria qualificada, seja pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Frise-se que não será somente o órgão fracionário submissor da quaestio ao plenário que estará vinculado 115 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 275. 116 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 504. 117 Ibid., p. 504-505. 60 ao decisum, mas todas as câmaras ou turmas, inclusive os juízos de 1º grau de jurisdição estarão obrigados na forma da decisão constitucional tomada pelo plenário ou órgão especial.118 Nesse particular, Luiz Guilherme Marinoni119 acrescenta que [...] uma vez decidida a questão constitucional no tribunal, as Câmaras ou Turmas não mais podem submeter arguição de inconstitucionalidade ao plenário ou ao órgão especial. Até porque estes estão proibidos de voltar a tratar da questão constitucional sem que presentes os requisitos hábeis a justificar a revogação de precedentes, como a transformação dos valores sociais ou da concepção geral do direito ou ainda erro manifesto. 6.4 O Julgamento Monocrático nos Tribunais Conforme dito alhures, o julgamento monocrático fulcrado em súmula, jurisprudência dominante ou precedente de tribunal superior se consubstancia em outra específica abertura do ordenamento jurídico brasileiro ao sistema do common law. O referido instituto jurídico está positivado no artigo 557, caput e § 1º-A, do Código de Processo Civil. Veja-se: Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1º-A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. Das próprias disposições legais supracitadas deflui que o julgamento monocrático em comento é decorrência do efeito vinculante existente nos precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, sendo o seu primordial fundamento o respeito à autoridade das decisões das Cortes superiores.120 No que tange à expressão “jurisprudência dominante”, inserta no texto legal, numa análise superficial, não poderia abarcar os motivos determinantes de casos 118 Ibid., p. 508-509. Ibid., p. 508. 120 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 510. 119 61 isolados, apenas tomando corpo quando da repetição de casos. Entretanto, segundo o professor Luiz Guilherme Marinoni121 há que ser feita uma distinção, pois: Tratando-se de “casos repetitivos”, há de se buscar o precedente que, a partir de certo momento ou com base na técnica dos recursos repetitivos, pacificou o entendimento da Corte, e, dessa forma, fez-se dominante. Assim, para o julgamento monocrático, além das súmulas e da jurisprudência dominante vista como o entendimento que prevaleceu no tribunal, importa o “precedente isolado”, ou melhor, o precedente que, tratando de “caso isolado”, firmou ratio decidendi a respeito de determinada questão jurídica. Dessa feita, o precedente oriundo de caso único está albergado pela expressão “jurisprudência dominante”, pelo simples fato de que não haveria sentido em se retirar a autoridade dos motivos determinantes fixados por um tribunal superior apenas porque a questão não foi repetida, de modo que um único caso − de per si − traduz a jurisprudência dominante.122 6.5 Súmula Vinculante Por primeiro, relembre-se que as súmulas nada mais são do que o extrato das reiteradas decisões judiciais oriundas dos casos postos em juízo, que, num paralelo com o sistema do common law, poderíamos denominar como um agrupamento de holdings ou ratio decidendis. A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, alterou o texto da Constituição Federal, acrescendo-lhe o artigo 103-A e seus parágrafos, a seguir transcritos: Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º. A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esse e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º. Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. 121 Ibid., p. 510. Ibid., p. 510. 122 62 Das disposições normativas supracitadas, temos que o caput do artigo deixa evidente a eficácia da súmula vinculante em face dos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como que sua edição poderá se dar mediante provocação ou de ofício pelo Pretório Excelso. Insta salientar a possibilidade de que a referida proposição sumular – não obstante seu efeito vinculativo – pode perfeitamente ser revisada ou cancelada.123 A súmula, apenas por ser vinculante, não pode infirmar a natureza eminentemente transitória do próprio Direito, sendo ínsita na sua existência a possibilidade de revisão e cancelamento que, devidamente regulamentados, tornamse fortes fundamentos ao afastamento das teses que atrelam o engessamento do ordenamento jurídico à eficácia vinculativa sumular.124 Na lição do professor Cândido Rangel Dinamarco125: [...] sem essa flexibilidade, haveria o perigo de estagnação da jurisprudência, que não convém a sistema algum. O mais nobre dos predicados do chamado direito jurisprudencial é a sua capacidade de adaptar-se às mutações sociais e econômicas da nação, de modo a extrair dos textos constitucionais e legais a norma que no momento atenda aos reclamos axiológicos da sociedade. Assim, a súmula vinculante nada mais é do que a inscrição de um enunciado a partir dos motivos determinantes de precedentes que tratam da mesma questão constitucional. Desse modo, segundo Luiz Guilherme Marinoni126, não se pode: [...] pensar em adotá-la, revisá-la ou cancelá-la como se fosse um enunciado geral e abstrato, ou mesmo tentar entendê-la considerando-se apenas as ementas ou a parte dispositiva dos acórdãos que lhe deram origem. Lembre-se que a ratio decidendi nada mais é do que o fundamento determinante ou o motivo essencial da decisão. Ora, se a elaboração da “súmula vinculante” depende da adequada percepção dos fundamentos determinantes do precedente ou dos precedentes, é pouco mais do que evidente a impossibilidade de aplicá-la, revisá-la ou cancelá-la sem se considerar os fundamentos determinantes dos precedentes que deram origem à sua edição. 123 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 283. 124 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 1011. 125 DINAMARCO, Cândido Rangel. Súmulas vinculantes. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999. p. 64. 126 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 489-490. 63 De todo o exposto vê-se que o instituto jurídico das súmulas vinculantes implica em verdadeiro veículo condutor da doctrine of stare decisis oriunda do sistema do common law no Direito brasileiro. 6.6 Súmula Impeditiva de Recurso Outra espécie de proposição sumular que se consubstancia em instrumento de abertura ao sistema do common law é a denominada súmula impeditiva de recurso. Sua positivação se encontra no § 1º do artigo 518 do Código de Processo Civil, in verbis: “Art. 518, § 1º: O recurso de apelação não deve ser recebido quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal”. Como adverte Luiz Guilherme Marinoni127, “[...] embora o texto da norma fale em súmula, hoje, como é óbvio, o precedente de tribunal superior é suficiente para impedir o recebimento de recurso que a ele diretamente se opõe”, traduzindo-se, uma vez mais, em instituto que tendencia o sistema brasileiro ao common law. 6.7 Julgamento Liminar de Ação Idêntica O julgamento liminar da demanda também está adstrito à força vinculante dos precedentes. Sua disciplina legal está no artigo 285-A, caput e §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil. Art. 285-A: Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. § 1º. Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de cinco dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação. § 2º. Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso. Desse programa normativo depreende-se que não há qualquer alusão à possibilidade de o magistrado julgar procedente a demanda oriunda de ações repetitivas anteriormente decididas. Também silencia quanto aos precedentes dos tribunais superiores, apenas fazendo referência à prolação de sentenças de 127 Ibid., p. 517. 64 improcedência para casos idênticos anteriormente decididos. Nesses termos, para Luiz Guilherme Marinoni128: O artigo comete lapso ao tratar somente da possibilidade de o juiz julgar liminarmente o pedido quando já houver proferido sentença de improcedência em ações que trataram de questão idêntica. É que, se não há lógica em admitir que o juiz pode julgar liminarmente improcedente o pedido quando há, em sentido contrário, súmula ou jurisprudência consolidada de tribunal de justiça ou regional federal, é indiscutível que, quando há precedente de tribunal superior, esse não pode ser contrariado pelo julgamento liminar. Deveras, havendo precedente hígido, não vergastado pela jurisprudência ou socialmente ultrapassado, este deve balizar o julgamento liminar, determinando seu direcionamento. Apenas pontua-se ser evidente a necessidade de o magistrado, ao se utilizar do instituto jurídico do julgamento liminar lastreado em precedente judicial, analisar se o caso sub judice não contém característica que o distingue de seu paradigma.129 Não obstante a deficiência na redação do artigo e o sem-número de possibilidades interpretativas que lhe permeiam, o fato é que o julgamento liminar de improcedência, com fulcro no artigo 285-A do Código de Processo Civil, também é exemplo de instituto jurídico que traz consigo uma exceção ao sistema do civil law. 6.8 A Repercussão Geral no STF e os Recursos Repetitivos no STJ No âmbito do STF, a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, trouxe a previsão da Repercussão Geral como pressuposto ao Recurso Extraordinário, com a seguinte redação: Art. 102, § 3º. No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. Os artigos 543-A e 543-B do CPC disciplinaram a Repercussão Geral em termos de legislação infraconstitucional. 128 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 515-516. 129 Ibid., p. 516. 65 Reconhecida a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário, a decisão de mérito que sobrevier referente à questão posta para julgamento deverá ser respeitada, sob pena de cassação ou reforma liminar do acórdão contrário à orientação firmada, nos termos do § 4º do art. 543-B do CPC. Noticia-se que um ano após a aplicação da Repercussão Geral, o Supremo Tribunal Federal divulgou resultados positivos, onde se identificou uma redução relevante nos processos decididos naquele período. Já no âmbito do STJ, em 2008, a Lei nº 11.672/2008 acresceu o artigo 543-C ao Código de Processo Civil, instituindo uma forma de julgamento para os Recursos Especiais denominado sistema de Recursos Repetitivos, nos seguintes termos de formulação: Art. 543-C, caput. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. O denominado sistema dos Recursos Repetitivos acabou por outorgar elevada força persuasiva aos precedentes do STJ. Com efeito, após a prolatação da decisão do Recurso Especial submetido ao sistema de Recursos Repetitivos, dispõe o § 7º do art. 543-C do CPC que: Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: I – terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça. Vê-se que, apesar da ausência de efeito vinculador, os Recursos Especiais submetidos ao sistema dos Recursos Repetitivos obstarão os processos que tratam de matéria semelhante, que vão aguardar o julgamento do leading case. Este, então, será o precedente da questão e afetará, de algum modo, os processos que estão nos Tribunais Federais e Estaduais que pretendam chegar ao Superior Tribunal de Justiça. A importância da implementação dos institutos em referência, tanto da Repercussão Geral como dos Recursos Repetitivos, como filtros eficazes no combate à morosidade do Judiciário, se revela também como mais uma das tendências do nosso sistema de civil law à adoção de aspectos do common law, na medida em que as decisões agora firmadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo 66 Superior Tribunal de Justiça, no âmbito de atuação destes institutos, passam a carregar uma carga mais que meramente persuasiva, mas ainda não vinculativa, numa posição que se poderia dizer intermediária, já que vão gerar, de alguma forma, efeitos sobre as decisões dos tribunais inferiores. 6.9 Outros Meios de Eficácia Erga Omnes do Provimento Jurisdicional A concessão de efeitos erga omnes (do latim erga - para, e omnes - todos) a determinados provimentos jurisdicionais, como cediço, significa a atribuição das mesmas consequências de uma decisão judicial a todas as pessoas submetidas a um mesmo ordenamento jurídico ou parte dele. Bem, aí está a ideia central do sistema do stare decisis, afirmando que a regra produzida em um determinado precedente judicial vale para todas as outras lides e, por consequência, para as pessoas nelas envolvidas, que tenham mesma identidade de fato. Pode-se catalogar, sem pretensão de exaurimento, algumas hipóteses de atribuição de efeitos erga omnes a determinadas decisões judiciais previstas na legislação nacional, aproximando-as, então, do sistema de common law. As decisões proferidas em Ação Civil Pública, nos termos da Lei nº 7.347/85, nos termos de seu art. 16: A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. Da mesma forma, os provimentos judiciais calcados na Ação Popular, a Lei nº 4.717/85, constando em seu art. 18 que: A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova. O Código de Defesa do Consumidor, com sua disciplina acerca dos direitos difusos em sentido amplo, traz valiosas hipóteses de concessão de efeitos erga omnes nas ações de que cuida em seu art. 81: Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: 67 I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. E acerca dos efeitos da coisa julgada erga omnes advinda da sentença nestes casos, existe previsão legal também no artigo 103 do mesmo Código de Defesa do Consumidor: Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81. Enfim, tratam as hipóteses acima mencionadas do denominado Processo Coletivo, gerando efeitos erga omnes às decisões proferidas no seu âmbito de atuação, aproximando-se da sistemática do stare decisis, já que não só as pessoas diretamente relacionadas à lide são atingidas pelas consequências da decisão judicial nele proferida, mas também todo um grupo de pessoas daquele mesmo ordenamento jurídico ou de parte dele. 6.10 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto de Novo CPC A eventual aprovação do projeto de novo Código de Processo Civil trará o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, consistente na identificação de processos com mesma questão de direito que estejam tramitando no primeiro grau de jurisdição, para que haja decisão conjunta no Tribunal Estadual ou Regional Federal. 68 Trata-se de mecanismo que visa deslocar, para o Plenário ou para o Órgão Especial do tribunal competente, a apreciação de questão de índole jurídica potencialmente geradora de multiplicação de processos, buscando, segundo o próprio texto legal, evitar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. O incidente poderá ser provocado pelo juiz ou relator, pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública. Admitido o incidente, suspender-se-ão os processos pendentes em primeiro e segundo graus de jurisdição, facultada a concessão de medidas de urgência no juízo de origem. A lei imporá a adoção de ampla divulgação e publicidade em relação ao incidente, cuja tese jurídica adotada será aplicada a todos os processos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal. Na hipótese de recurso ao STF ou ao STJ contra a decisão proferida no incidente, e sendo a matéria apreciada em seu mérito pelo plenário do primeiro ou pela corte especial do segundo, a tese jurídica adotada terá aplicação cogente em âmbito nacional. O instituto pode ser aplicado, por exemplo, para as ações por perdas em planos econômicos, para a definição dos índices de correção do FGTS, o questionamento do pagamento da assinatura básica de telefonia fixa, ou ao percentual de reajuste de mensalidades escolares e de planos de saúde, dentre outros casos. Para que seja instaurado o incidente, é preciso que as ações tenham um potencial de multiplicação, por se referirem, por exemplo, a questões da vida cotidiana do cidadão. Esse é o caso das causas de relação de consumo, por exemplo, geralmente de grande interesse da coletividade. Após a decisão do processo pelo sistema do incidente em exame, os juízes de primeira instância ficam obrigados a aplicá-la a todas as ações semelhantes que forem julgar, às demandas em curso e àquelas que ainda vierem a ser submetidas ao Poder Judiciário, daí sua real aproximação ao sistema anglo-saxão, em virtude da vinculação da orientação traçada no processo piloto. 69 Tal é a disciplina do mencionado incidente no projeto do novo Código de Processo Civil: Art. 895. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. Art. 896. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça. Art. 897. Após a distribuição, o relator poderá requisitar informações ao órgão em cujo juízo tem curso o processo originário, que as prestará em quinze dias; findo este prazo improrrogável, será solicitada data para admissão do incidente, intimando-se o Ministério Público. Art. 898. O juízo de admissibilidade e o julgamento do incidente competirão ao plenário do tribunal ou, onde houver, ao órgão especial. Art. 899. Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará, na própria sessão, a suspensão dos processos pendentes, em primeiro e segundo grau de jurisdição. Art. 900. As partes, os interessados, o Ministério Público e a Defensoria Pública, visando à garantia da segurança jurídica, poderão requerer ao tribunal competente para conhecer de eventual recurso extraordinário ou especial a suspensão de todos os processos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente. Art. 901. O relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de quinze dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida; em seguida, no mesmo prazo, manifestar-se-á o Ministério Público. Art. 902. Concluídas as diligências, o relator pedirá dia para o julgamento do incidente. Art. 903. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito. Tratar-se-á, na verdade, dado o caráter vinculativo de que eventualmente estará dotada a decisão proferida no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, do instrumento processual brasileiro mais contundente de uniformização de jurisprudência, e mais, criador de verdadeiros precedentes judicias obrigatórios em todo o território nacional. Daí porque mereceu de Teresa Arruda Alvim Wambier a consideração de que “um dos pontos altos do projeto (de CPC) foi a criação do incidente de julgamento de demandas repetitivas”.130 Será, em síntese, caso aprovado, a aproximação mais tênue entre o nosso sistema de civil law ao common law, e com ele se encerra o capítulo atinente a esta interface entre os dois tipos de ordenamentos no que toca aos instrumentos processuais brasileiros, restando agora o exame da questão à luz dos nossos institutos de direito material. 130 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 725. 70 7 O SISTEMA CIVIL BRASILEIRO DE TIPIFICAÇÃO ABERTA 7.1 A Flexibilização das Normas Jurídicas Como sabido de todos, com a promulgação da Lei nº 10.406/02, passou a viger o novo diploma legal regente das relações intersubjetivas civis, o novo Código Civil que veio para substituir aquele datado do ano de 1916. Entretanto, as mudanças inseridas na ordem jurídica não se limitaram à atualização de institutos jurídicos e regramentos. O Código Civil de 2002, de forma sensível, afastou-se da tendência dogmática existente até o início do século XX que impunha o império da lei como o único pressuposto do Estado de Direito, reservando, pois, à área de atuação jurisdicional, a simplória função de interpretação da mens legislativa. Na lição de Jorge Tosta131: Essa tendência foi substituída no Código Civil de 2002 pela abertura e flexibilização de diversas normas jurídicas que remetem diretamente ao juiz a solução do caso concreto, seja por meio da concreção judicial de “conceitos vagos ou indeterminados”, seja por intermédio da incidência de normas cuja aplicação se faz por juízos de oportunidade. Noutras palavras, o Poder Legislativo criador do Código Civil de 2002 abandonou a meta – utópica, frise-se – de solucionar exaustivamente todas as controvérsias existentes na sociedade brasileira e forneceu aos operadores do Direito, desde sempre incumbidos de resolvê-las in concreto, o poder de solucionálas segundo valorações vigentes à época e à luz do caso concreto litigioso, por meio das normas de tipo aberto. Veja-se que essa flexibilização do ordenamento posto se deu não pela conscientização de sua conveniência, mas sim, segundo Eros Roberto Grau 132, pela “complexidade da realidade, que propicia maior velocidade da atuação de suas forças produtivas, reclamando a flexibilização das normas jurídicas (e dos textos normativos), de molde a assegurar (e estimular) aquela atuação”, sendo “fundamental, de toda sorte, não confundir segurança com imobilidade”. 131 TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes do juiz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 03. 132 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 188. 71 Por isso é que Tereza Arruda Alvim Wambier133 preleciona que: A interpretação dos conceitos vagos vem adquirindo cada vez mais importância no mundo contemporâneo porque o uso desses conceitos consiste numa técnica legislativa marcadamente afeiçoada à realidade em que hoje vivemos, que se caracteriza justamente pela sua instabilidade, pela imensa velocidade com que acontecem os fatos, com que se transmitem informações, se alteram “verdades” sociais. Por normas de tipo aberto entendem-se aquelas constituídas por termos vagos ou indeterminados, um produto de técnica legislativa que visa, em última análise, manter a efetividade e a incidência das normas componentes do ordenamento jurídico. Para tanto, confere aos operadores a possibilidade de proceder à integração da vagueza através das regras de experiência, das exigências atuais do bem comum, dos valores éticos e morais incorporados à sociedade, das novas tecnologias e das características regionais e locais.134 Veja-se, nesse ponto, a lapidar lição de José Carlos Barbosa Moreira135: Nem sempre convém, e às vezes é impossível, que a lei delimite com traço de absoluta nitidez o campo de incidência de uma regra jurídica; isto é, que descreva em termos pormenorizados e exaustivos todas as situações fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico. Recorre então o legislador ao expediente de fornecer simples indicações de ordem genérica, dizendo o bastante para tornar claro o que lhe parece essencial, e deixando ao aplicador da norma, no momento da subsunção quer dizer, quando lhe caiba determinar se o fato singular e concreto com que se defronta corresponde ou não ao modelo abstrato, o cuidado de “preencher os claros”, de colorir os “espaços em branco”. O poder de criação deferido aos operadores do Direito, consubstanciado pela inserção de normas de tipo aberto no ordenamento positivo e levado a efeito através da interpretação e preenchimento valorativo de referidos claros legais, foi denominado de judicialização do Direito Privado, fenômeno típico do final do século XX e início do século XXI e reagente ao positivismo jurídico então reinante.136 133 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 145. 134 TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes do juiz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 10. 135 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. Estudos em homenagem ao professor Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 609-610. 136 TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes do juiz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 03. 72 É óbvio que tais abordagens doutrinárias no trato da temática das normas de tipo aberto são deveras fecundas e demandariam uma análise mais perfunctória, que, entretanto, não dizem respeito diretamente ao tema do presente estudo. Este é tocado apenas quando da constatação de que a judicialização do Direito Privado, levada a cabo pela promulgação do novo Código Civil, é conformada pela inserção das denominadas normas de tipo aberto no corpo normativo do citado diploma legal, estas que demandam dos operadores do Direito o seu preenchimento segundo processo integrativo subsuntivo ou discricionário, sendo evidente que a legitimação da interpretação (preenchimento) feita por estes será declarada pela jurisprudência, através dos precedentes judiciais. Ora, são os próprios precedentes judiciais que atuam na última instância das etapas de concreção judicial das normas de tipo aberto, determinando qual a interpretação prevalente para um conceito indeterminado. Nesse sentido, o professor Jorge Tosta137 leciona que: A própria história da jurisprudência dos tribunais mostra que os sistemas fechados não evitaram a criatividade do juiz, muitas vezes até contra legem. Em outras, representaram avanços e inovações que acabaram sendo incorporados aos textos normativos. Basta lembrar, entre tantos, o reconhecimento do direito da companheira a alimentos (que, na época, a criatividade dos juízes denominou indenização por serviços domésticos); do direito à meação de bens (que passou da necessidade de efetiva colaboração na constituição do patrimônio à exigência de simples convivência more uxorio); e dos efeitos jurídicos da união entre pessoas do mesmo sexo (que até hoje carece de regulamentação legal). Assim, as normas de tipo aberto têm sua integração determinada, em último grau, pela jurisprudência, através dos precedentes judiciais, podendo-se asseverar que a norma aberta concretizada pelo precedente judicial é outra exteriorização da interpenetração do common law no sistema de civil law existente no Brasil. E esse movimento de flexibilização das normas jurídicas, a partir, principalmente, da edição do Código Civil de 2002, veio positivado naquilo que a doutrina, com algum vacilo, resumiu como sendo os institutos das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, objetos dos itens a seguir. 137 Ibid., p. 13. 73 7.2 As Cláusulas Abertas Constantes do Novo Código Civil - um exemplo: a responsabilidade civil pela atividade de risco As cláusulas gerais são formulações genéricas e abertas da lei, normas orientadoras, diretrizes dirigidas ao juiz, que, simultaneamente, vinculam-no e lhe conferem liberdade para decidir, aplicar o direito ao caso concreto. Em verdade, constituem o instrumento legislativo que permite a entrada, no ordenamento, de princípios valorativos expressos ou implícitos, de forma que valores tidos tradicionalmente como metajurídicos sejam alocados aos códigos, efetivados. Lembrando, com Cláudio Luiz Bueno de Godoy, que a cláusula geral: [...] encerra um preceito normativo cujos termos são propositadamente vagos, ganhando enorme relevo a atuação integrativa da doutrina e da jurisprudência, implicando, na concessão, pelo legislador, como que de um mandato ao juiz para que, diante do caso concreto, desenvolva a norma, 138 preencha seu conteúdo. Segundo Judith Martins-Costa139, as cláusulas gerais, para além das funções supraidentificadas, serviriam como uma espécie de elemento de conexão entre as regras presentes no interior do sistema jurídico e os valores situados fora dele e que podem nele ser introduzidos por meio da atividade judicial. E, sintetizando a conceituação por ela formulada, arremata: Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente “aberta”, “fluida” ou “vaga”, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar 140 fora do sistema. Como exemplo de cláusula geral inserida no Código Civil, podemos citar o dispositivo legal que consagrou a responsabilidade civil objetiva genérica pela 138 GODOY, Cláudio Luiz. A responsabilidade civil pelo risco da atividade. A responsabilidade civil pelo risco da atividade: uma cláusula geral no Código Civil de 2002. 277 f. Tese (Livre Docência em Direito Civil) − Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 85-88. 139 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 343. 140 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 303. 74 atividade de risco, prevista na segunda parte do artigo 927 do Código Civil de 2002, prevendo que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.141 Tem-se um longo conceito da responsabilidade civil objetiva genérica pela atividade de risco: [...] é a sanção civil consistente na reparação do prejuízo causado à vítima, imposta ao agente danoso, sem que se cogite de sua culpa, unicamente decorrente de lei, não só pelo fornecimento de serviços e produtos, praticado organizada e profissionalmente com finalidade de lucro, mas também em virtude da realização de condutas que não visem ao enriquecimento, havendo necessidade de mínima ligação entre a conduta danosa e as práticas rotineiras de determinada pessoa física ou jurídica, regular ou irregular, em virtude da própria atividade desenvolvida pelo agente ou dos meios pelos quais ela é executada, diante da previsibilidade 142 e efetivação do dano. E como se pontuou: Na esteira do que fez o Código Civil de 2002 em várias outras passagens, a nova modalidade de responsabilização objetiva foi colocada como mais um instituto jurídico que impõe extraordinária atividade hermenêutica ao juiz, porquanto dele será exigida a interpretação da cláusula geral constante da segunda parte do parágrafo único do artigo 927. Em outras palavras, caberá ao julgador aclarar o que pretendeu o legislador ao impor o dever de indenizar independentemente de culpa quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os 143 direitos de outrem. Veja-se que ao Poder Judiciário está entregue a tarefa de afirmar, em cada caso concreto, qual será a atividade normalmente desenvolvida que, implicando risco aos direitos alheios, ensejará a adoção da responsabilidade objetiva ou independente de culpa. Dessa forma, somente o precedente jurisprudencial será capaz de integrar a norma em análise, de tal sorte que aqui também o sistema brasileiro aproxima-se, sobremaneira, do common law estadunidense. 141 Objeto de nossa dissertação de mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, posteriormente publicada: SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. A responsabilidade civil objetiva fundada na atividade de risco. São Paulo: Atlas, 2010. 142 Ibid., p.112. 143 Ibid., p. 10-11. 75 7.3 Os Conceitos Jurídicos Indeterminados – um exemplo: o “destinatário final” no Código de Defesa do Consumidor Tratando-se de uma outra forma de flexibilização das normas civis brasileiras, os conceitos jurídicos indeterminados não podem ser confundidos com as cláusulas gerais, como abaixo será visto. Exemplos em nossa legislação seriam: a “função social do contrato” (art. 421 do CC), a "boa-fé objetiva” (art. 422 do CC) e outros tantos. De acordo com Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, que os denominam de conceitos legais indeterminados, estes: São palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão altamente vagos, imprecisos e genéricos, e por si mesmo esse conceito é abstrato e lacunoso. Sempre se relacionam com a hipótese de fato posta na causa e cabe ao juiz no momento de fazer a subsunção do fato à norma, 144 preencher os claros e dizer se a norma atua ou não no caso concreto. Preenchido o conceito legal indeterminado, segundo os juristas acima citados, a solução já está preestabelecida na própria norma legal, competindo ao juiz apenas aplicar a norma, sem exercer nenhuma outra função criadora.145 No conceito jurídico indeterminado, então, a lei enuncia o conceito indeterminado e dá as consequências dele advindas.146 Por fim, Nelson Nery e Rosa Nery estabelecem uma distinção entre as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados da seguinte forma: Com significação paralela aos conceitos legais indeterminados, as cláusulas gerais são normas orientadoras sob a forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir. Distingue-se dos conceitos legais indeterminados pela finalidade e eficácia, pois aqueles, uma vez diagnosticados pelo juiz no caso concreto, já têm sua solução preestabelecida na lei, cabendo ao juiz aplicar referida solução. Estas ao contrário, se diagnosticadas pelo juiz, permitem-lhe preencher os claros com os valores designados para aquele 147 caso, para que se lhe dê a solução que ao juiz parecer mais correta. 144 NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 198. 145 NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 198. 146 NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 198. 147 NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 199. 76 De tais ensinamentos, pode ser extraída a conclusão de que, como os conceitos jurídicos indeterminados se referem, em todos os casos, à descrição de um fato, em sua precisão de significado pelo juiz, há apenas interpretação e não criação do direito. E aí reside a sua distinção substancial com relação às cláusulas gerais. Isto é, enquanto as cláusulas gerais exigem que o juiz crie o direito no caso concreto (concorra ativamente para a formulação das normas jurídicas), os conceitos jurídicos indeterminados exigem apenas interpretação das normas por parte do magistrado. Pois bem, tem vez agora o exame de um conceito jurídico indeterminado pinçado da Lei 8.078/90, contido no caput do seu artigo 2º: o significado da expressão destinatário final, para o estabelecimento do conceito de consumidor e consequente aplicação do Código de Defesa do Consumidor a certo negócio jurídico, com afastamento das regras diretas do Código Civil e do Código de Processo Civil. Para que se possa afirmar que entre duas pessoas se desenvolve uma relação de consumo, se faz necessário que estejam presentes três elementos, dois deles de ordem subjetiva e o terceiro de ordem objetiva. Quanto aos dois elementos de ordem subjetiva, trata-se do fornecedor (artigo 3º do CDC) e do consumidor (artigo 2º do CDC), enquanto o elemento objetivo se refere ao produto ou serviço (§§ 1º e 2º do artigo 3º do CDC), in verbis: Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 1º Produto é qualquer bem móvel ou imóvel, material ou imaterial. § 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. A problemática surge quanto ao conceito de “consumidor”, notadamente se este, in casu, se apresenta como uma pessoa jurídica prestadora de outros serviços (v.g. transporte de alimentos, de pessoas etc.), havendo certa divergência quanto a se enquadrar esta pessoa na expressão destinatário final contida no caput do artigo 2º do CDC acima transcrito. 77 Diante de tal expressão legal (destinatário final), surgiram, basicamente, duas maneiras de se pensar quem seria o consumidor, nessa hipótese, sustentadas nas teorias maximalista e finalista. Para a teoria maximalista, dá-se uma interpretação extensiva ao conceito de consumidor e assim se encara qualquer agente da cadeia de consumo que adquira produtos ou serviços, mesmo que faça disso um insumo para a fomentação de sua própria atividade econômica e lucrativa. Segundo a teoria finalista, havendo qualquer relação, direta ou indireta, entre o produto ou serviço adquirido e a atividade desenvolvida pelo adquirente, não se estará diante de uma relação de consumo, sendo considerado consumidor apenas o verdadeiro destinatário final econômico da cadeia de produção. Entre a aplicação da teoria finalista ou da maximalista, no que tange a se estabelecer quais seriam as relações de consumo e quais seriam as relações jurídicas ditas comuns regidas pelos Códigos Civil e de Processo Civil, pendeu, em princípio, o Superior Tribunal de Justiça – instância última na estrutura do Poder Judiciário brasileiro a examinar a causa – pela primeira. Realmente, num primeiro momento, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 541.867/BA, optou pela concepção subjetiva ou finalista do conceito de consumidor, sedimentando seu entendimento nos termos da seguinte ementa: COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE. A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas 148 Cíveis da Comarca. Sucede que, nesse julgamento, os Ministros Pádua Ribeiro, Humberto Gomes de Barros, Castro Filho e Nancy Andrighi manifestaram expressa predileção pela teoria maximalista ou objetiva, sendo que a tese vencedora recebeu não mais que cinco dos nove votos proferidos na ocasião. 148 REsp 541.867/BA, Rel. Ministro Pádua Ribeiro, Rel. pelo Acórdão o Ministro Barros Monteiro. DJ, 16 mai. 2005. 78 De acordo com esse julgado, o conceito de consumidor ficou restrito, alcançando apenas a pessoa física ou jurídica que adquire o produto no mercado a fim de consumi-lo imediatamente. Em outras palavras, o consumidor foi conceituado como o destinatário final no sentido econômico, ou seja, aquele que consome o bem ou o serviço sem destiná-lo à revenda ou ao insumo de qualquer outra atividade produtiva. Passados quatro anos do controvertido julgamento, a Segunda Seção novamente se reuniu para exame da matéria, ocasião em que o mencionado Tribunal nacional responsável pela uniformização da interpretação da legislação federal, analisando o conceito legal de consumidor fornecido pelo artigo 2º da Lei nº 8.078/90, ratificou o entendimento anterior e pacificou a divergência jurisprudencial que havia naquele momento, em acórdão de fevereiro de 2009, agora por votação unânime, entendendo que consumidor é aquele que de fato se apresenta como destinatário final econômico do produto ou serviço (CC nº 92.519/SP, relator Ministro Fernando Gonçalves), concluindo-se, também com fundamento na teoria finalista ou subjetiva, que [...] para que o consumidor seja considerado destinatário econômico final, o produto ou serviço adquirido ou utilizado não pode guardar qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele desenvolvida; o produto ou serviço deve ser utilizado para o atendimento de uma necessidade própria, pessoal do consumidor. Após tal julgamento, esperávamos uma estabilidade na interpretação da expressão destinatário final e do conceito de consumidor através da aparente adoção da teoria finalista ou subjetiva pela Corte Superior nacional. Entretanto, numa análise cronológica dos julgados posteriores às decisões acima transcritas (REsp 541.867/BA e CC 92.519/SP), veremos que não se verificou a esperada pacificação sobre o tema, vislumbrando-se, até mesmo, uma tendência à superação dos precedentes citados. Isso porque se verificaram temperamentos feitos pelo Superior Tribunal de Justiça à teoria anteriormente adotada, com tendência ao overruling. Com efeito, conquanto a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao conceituar o termo “consumidor”, tenha sufragado pela adoção da teoria finalista, de forma unânime na última oportunidade, o que se tem é que paulatinamente referida 79 corte superior vem revendo seu posicionamento, através de abrandamentos feitos à mencionada teoria. Veja-se que posteriormente ao REsp 541.867/BA, houve julgados utilizando a teoria maximalista à conceituação do que seja o consumidor para a lei, o que tornou evidente a manutenção do dissídio interno, inobstante o já citado posicionamento adotado pela Segunda Seção da Corte nacional. Nesse sentido: No que tange à definição de consumidor, a Segunda Seção desta Corte, ao julgar, aos 10.11.2004, o REsp 541.867/BA, perfilhou-se à orientação doutrinária finalista ou subjetiva, de sorte que, de regra, o consumidor intermediário, por adquirir produto ou usufruir de serviço com o fim de, direta ou indiretamente, dinamizar ou instrumentalizar seu próprio negócio lucrativo, não se enquadra na definição constante no art. 2º do CDC. Denota-se, todavia, certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente, a aplicação das normas do CDC a determinados consumidores profissionais, desde que demonstrada, in concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica. Recurso 149 Especial não conhecido. Mesmo após a nova reunião da Segunda Seção – presidida pela Ministra Nancy Andrighi, que, portanto, não votou – e ratificação unânime da adoção da teoria finalista no julgamento do CC 92.519/SP, permaneceu a dissidência já manifestada desde o ano de 2004, através de temperamentos ao finalismo, conforme se vislumbra do julgado abaixo transcrito: Consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire produto como destinatário final econômico, usufruindo do produto ou do serviço em benefício próprio. Excepcionalmente, o profissional freteiro, adquirente de caminhão zero quilômetro, que assevera conter defeito, também poderá ser considerado consumidor, quando a vulnerabilidade estiver caracterizada por alguma hipossuficiência quer fática, técnica ou econômica. Nesta hipótese está justificada a aplicação das regras de proteção do consumidor, notadamente a concessão do benefício processual da inversão do ônus da 150 prova. Recurso especial provido. Note-se que a data de julgamento do aresto supracitado é posterior à ratificação da adoção da teoria finalista, acabando por flexibilizar o entendimento anterior para considerar destinatário final quem usa o bem em benefício próprio, independentemente de servir diretamente a uma atividade profissional sua. Sedimentando a relativização da teoria finalista, temos o recente acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, no REsp 1.010.834/GO, que ratificou a extensão do conceito de consumidor à pessoa que utilize determinado produto para 149 REsp 660.026/RJ. Rel. Ministro Jorge Scartezzini, 4ª Turma. DJ, 27 jun. 2005. REsp 1.080.719/MG. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma. DJ, 17 ago. 2009. 150 80 fins de trabalho e não apenas para consumo direto, ao fundamento de que “ainda que o adquirente do bem não seja o seu destinatário final econômico, poderá ser considerado consumidor, desde que seja constatada a sua hipossuficiência, na relação jurídica, perante o fornecedor”. E, em arremate, reconheceu “a possibilidade de abrandamento da teoria finalista, admitindo a aplicação das normas do CDC a determinados consumidores profissionais, desde que seja demonstrada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica”. Referido acórdão restou assim ementado: PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE MÁQUINA DE BORDAR. FABRICANTE. ADQUIRENTE. VULNERABILIDADE. RELAÇÃO DE CONSUMO. NULIDADE DE CLÁUSULA ELETIVA DE FORO. 1. A Segunda Seção do STJ, ao julgar o REsp 541.867/BA, Rel. Min. Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão o Min. Barros Monteiro, DJ 16/05/2005, optou pela concepção subjetiva ou finalista de consumidor. 2. Todavia, deve-se abrandar a teoria finalista, admitindo a aplicação das normas do CDC a determinados consumidores profissionais, desde que seja demonstrada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica. 3. Nos presentes autos, o que se verifica é o conflito entre uma empresa fabricante de máquinas e fornecedora de softwares, suprimentos, peças e acessórios para a atividade confeccionista e uma pessoa física que adquire uma máquina de bordar em prol da sua sobrevivência e de sua família, ficando evidenciada a sua vulnerabilidade econômica. 4. Nesta hipótese, está justificada a aplicação das regras de proteção ao consumidor, notadamente a nulidade da cláusula eletiva de foro. 5. Negado provimento 151 ao recurso especial. Assim, com esse novo entendimento, houve um significativo passo para o reconhecimento de não ser o critério do “destinatário final econômico” o determinante para a caracterização de relação de consumo e do conceito de consumidor. Ainda que o adquirente do bem não seja o seu destinatário final econômico, poderá ser considerado consumidor, desde que seja constatada a sua hipossuficiência, na relação jurídica, perante o fornecedor. Pode-se dizer que a tendência jurisprudencial acerca do tema, ao invés de ser a estabilidade, é o overruling, e, como visto, esta expressão, oriunda dos sistemas jurídicos do common law, significa a superação de um precedente jurisprudencial anterior, tudo a demonstrar a interface vivida entre os sistemas jurídicos brasileiro e estadunidense. 151 REsp 1.010.834/GO. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma. DJe, 26 ago. 2010. 81 Nesse sentido, veja-se o recente acórdão do STJ, de fevereiro de 2012, que dispõe sobre a controvérsia supracitada, demonstrando, uma vez mais, que a produção de legislação extravagante calcada em tipos abertos gera a necessidade do recurso ao precedente judicial para se dar a definição dos institutos jurídicos que se aprecie: DIREITO DO CONSUMIDOR. PESSOA JURÍDICA. NÃO OCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. UTILIZAÇÃO DOS PRODUTOS E SERVIÇOS ADQUIRIDOS COMO INSUMOS. AUSÊNCIA DE VULNERABILIDADE. NÃO INCIDÊNCIA DAS NORMAS CONSUMERISTAS. 1. Inexiste violação ao art. 535 do CPC quando o tribunal de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma suficiente sobre a questão posta nos autos, sendo certo que o magistrado não está obrigado a rebater um a um os argumentos trazidos pela parte se os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. 2. O art. 2º do Código de Defesa do Consumidor abarca expressamente a possibilidade de as pessoas jurídicas figurarem como consumidores, sendo relevante saber se a pessoa – física ou jurídica – é “destinatária final” do produto ou serviço. Nesse passo, somente se desnatura a relação consumerista se o bem ou serviço passa a integrar a cadeia produtiva do adquirente, ou seja, torna-se objeto de revenda ou de transformação por meio de beneficiamento ou montagem, ou, ainda, quando demonstrada sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica frente à outra parte. 3. No caso em julgamento, trata-se de sociedade empresária do ramo de indústria, comércio, importação e exportação de cordas para instrumentos musicais e afins, acessórios para veículos, ferragens e ferramentas, serralheria em geral e trefilação de arames, sendo certo que não utiliza os produtos e serviços prestados pela recorrente como destinatária final, mas como insumos dos produtos que manufatura, não se verificando, outrossim, situação de vulnerabilidade a ensejar a aplicação do Código de Defesa do 152 Consumidor. 4. Recurso especial provido. 152 REsp 932557/SP. Relator(a) Ministro Luis Felipe Salomão; Órgão Julgador: T4 - Quarta Turma; Data do julgamento: 07/02/2012. DJe, 23 fev. 2012. 82 8. O EQUÍVOCO LEGISLATIVO DEMANDANDO A APLICAÇÃO DO PRECEDENTE JUDICIAL 8.1 O Problema da Omissão Legislativa Questão posta para exame judicial em praticamente todos os dias refere-se aos juros cobrados nos contratos de empréstimo bancário. É sabido de todos que o § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, antes de sua revogação, à surdina, pela Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de 2003, previa o limite de 12% ao ano para os juros bancários, com a seguinte redação: Art. 192, § 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar. A discussão que se punha, à época de sua vigência, era se tal dispositivo constitucional tinha ou não eficácia imediata, isto é, se poderia ser aplicado de plano, ou se havia necessidade de sua regulamentação por lei complementar para que pudesse gerar efeitos. Referida discussão se fez presente em todos os foros brasileiros, em milhares e até pode-se dizer milhões de processos, e acabou decidida na conhecida ADIN nº 4 do Supremo Tribunal Federal, fixando-se o entendimento pela necessidade de lei complementar regulamentadora do tema para que os juros bancários fossem restringidos a 12% ao ano, reconhecendo expressamente a vigência da legislação reguladora do Sistema Financeiro Nacional anterior à Constituição de 1988 (Lei nº 4.595/64 e atos normativos do CMN), até que fosse editada a lei complementar exigida pelo caput do artigo 192 da CF/1988, in verbis: Tendo a Constituição Federal, no único artigo que trata do Sistema Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado por Lei Complementar, com observância do que determinou no caput, nos seus incisos e parágrafos, não se pode admitir a eficácia imediata e isolada do disposto em seu parágrafo 3º, sobre taxa de juros reais (12 por cento ao ano), até porque estes não foram conceituados. Só o tratamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com a observância de todas as normas do caput e dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e desde que estes também sejam conceituados em tal diploma. Em 83 consequência, não são inconstitucionais os atos normativos em questão (parecer da Consultoria Geral da República e Circular do Banco Central), o primeiro considerando não autoaplicável a norma do parágrafo 3º sobre juros reais de 12 por cento ao ano, e a segunda determinando a observância da legislação anterior à Constituição de 1988, até o advento da Lei Complementar reguladora do Sistema Financeiro Nacional. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade julgada improcedente, por maioria de votos. Nunca foi editada a lei a que se refere o decisório acima ementado e, como se disse, à surdina, foi simplesmente revogado o § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, no ano de 2003. Com a revogação, o tema deixou de ter conotação constitucional e, assim, o foro de exame das questões envolvendo os contratos bancários aos poucos foi se deslocando do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça, que passou a decidir da maneira como segue. De início, após algum vacilo jurisprudencial, decidiu-se pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários. Nesse tema, a divergência que havia dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça cessou. No mês de setembro de 2004, foi editada a súmula nº 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. Quanto à questão acima ventilada do teto para os juros bancários, não fosse só pelo resultado da ADIN acima mencionada, considerou o Superior Tribunal de Justiça permitida a cobrança acima de 12% ao ano, sumulando a questão com os seguintes verbetes. Súmula nº 296: “Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado”. Súmula nº 382: “A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”. Ficou permitida a capitalização dos juros remuneratórios, inclusive mensalmente. Esse foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, por sua Seção de Direito Privado: “a partir de 31/3/2000, data da publicação da Medida Provisória 1.963-17/2000, atualmente reeditada sob o nº 2.170-36/2001, está permitida a capitalização dos juros”. Nem a entrada em vigor do Código Civil de 2002, com sua disposição do artigo 591, parte final, foi capaz de mudar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que, sob a relatoria do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, por maioria 84 de votos, reafirmou a possibilidade da capitalização mensal dos juros para os contratos bancários, em aresto de 23 de agosto de 2007, no Recurso Especial 821.357/RS. Bem, essa pequena digressão a respeito da atual situação dos juros bancários na jurisprudência brasileira, escapando um pouco do tema referente aos danos morais e aos punitive damages, tem como finalidade demonstrar que a situação dos cidadãos e das empresas brasileiras frente às instituições financeiras pode ser resumida numa verdadeira luta de fracos contra poderosos, travada todos os dias nas agências bancárias e também nos fóruns do país. Como se pôde observar, ao emprestar dinheiro, os bancos podem fazê-lo sem limite de juros preestabelecido em lei, impondo, como se sabe, valores astronômicos aos mutuários e podendo ainda capitalizar mês a mês as taxas praticadas. Isso nada mais é que o resultado de longa omissão legislativa, que perdurou desde a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, até 29 de maio de 2003. E, quando se esperava do Congresso Nacional que desse uma conveniente resposta ao povo no que refere a tão sensível ponto para a sociedade, uma vez que hoje praticamente não se vive e não há desenvolvimento sem o recurso ao empréstimo bancário, o legislativo nacional, como se disse, à surdina, simplesmente revogou o §3º do artigo 192 da Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 40. É algo que realmente causa estranheza, para dizer o mínimo, pois o caminho que vinha sendo percorrido era no sentido de se limitar os juros a 12% ao ano. Com efeito, isso constava de disposição constitucional expressa, como se viu, no § 3º do artigo 192. O Poder Judiciário, por meio da ADIN nº 4 do Supremo Tribunal Federal, afirmou a necessidade de lei complementar para que se atribuísse eficácia ao retro citado dispositivo constitucional, e não havia outra coisa a se esperar senão a aprovação da esperada norma complementar. Mas, adotando postura absolutamente contrária ao anseio popular, ao invés de cessar a omissão que perdurava anos, houve por bem o Congresso Nacional simplesmente revogar a norma constitucional que necessitava, ao contrário, de regulamentação. 85 Em outros termos de formulação, a norma constitucional que o Poder Judiciário afirmou ser carente de lei complementar, isto é, que deveria ser regulamentada por lei do Poder Legislativo, foi, ao contrário, apagada do ordenamento jurídico nacional pelo próprio Congresso Nacional, que, sem a menor dúvida, nesse particular, andou na contramão da vontade popular. Por outro modo, após longa e injustificada demora, o legislador nacional adotou conduta não querida pelo seu mandante – o povo – e causou verdadeira desgraça financeira a milhões de famílias e empresas brasileiras, em benefício de poderosos conglomerados bancários daqui e principalmente do exterior! Acredita-se, após o fornecimento desse panorama, não haver necessidade de se referir ao astronômico número de processos tocando exatamente a questão dos juros bancários que deram ingresso no Poder Judiciário brasileiro desde a promulgação da Constituição Federal até os dias de hoje. Esse vultoso número de processos resultou não de outra coisa senão da omissão legislativa quanto ao dever de regulamentação da matéria por parte do Congresso Nacional. E essa proliferação de processos basicamente se orientou por dois movimentos judiciais. Por um primeiro movimento, verificada a omissão quanto à regulamentação dos juros, os juízes passaram a entender pela imediata eficácia do § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, entendimento esposado em milhões de processos pelo Brasil afora. Por um segundo movimento, após a decisão na ADIN nº 4 do Supremo Tribunal Federal e a revogação do § 3º do art. 192 da Constituição Federal, passou o Poder Judiciário a se engajar na pacificação do entendimento acerca de todas as questões que envolvem os juros bancários, culminando na edição das súmulas retro transcritas do Superior Tribunal de Justiça. Hoje, num resumo que agora sim se enquadra no tema proposto para exame neste trabalho, está consagrada a ideação de que as questões relativas aos contratos bancários, sobretudo no que toca aos juros, encontram regramento, quase que exclusivo, nos entendimentos judiciais a seu respeito, devendo aquele que se interessa pelo assunto, para fins acadêmicos ou processuais, recorrer, portanto, aos precedentes jurisprudenciais para encontrar as soluções adequadas ao seu interesse. 86 No encerramento deste item não se pode deixar de mencionar a opinião mais franca que se encontrou a respeito da não regulamentação e posterior revogação do § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, deixando o Congresso de limitar os juros bancários a 12% ao ano, abrindo, assim, espaço para a situação vexatória hoje vivida pelos mutuários do sistema financeiro nacional, da lavra de Lucival Lage Lobato Neto153: Devido ao alto lucro amealhado nesses últimos anos pelas instituições financeiras, como conseqüência da política monetária então vigente, essas têm interesse de manter o “status quo” econômico adquirido, por conseguinte, procuravam bloquear qualquer tentativa de regulamentação do art. 192 pela lei complementar nele prevista, especificamente do seu § 3º. Para isso, as grandes instituições financeiras vêm financiando as campanhas políticas de membros do Congresso Nacional e do Presidente da República. Por exemplo, nas eleições de 1994 e de 1998, os recursos originários dessas instituições para o candidato presidencial eleito e reeleito foram, respectivamente, 23 % e 26,73% do total formalmente declarado. Essas instituições também fazem um forte lobby no Congresso Nacional, quer diretamente, quer por meio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). 8.2 O Problema da Incorreção Legislativa Outro nicho para o crescimento da tendência aos precedentes se dá em virtude da incorreção legislativa. Veja-se que agora não se trata mais da omissão do legislador quanto ao seu trabalho de regulamentar a vida em sociedade, mas sim dos erros que comete nesse mister. A fim de se exteriorizar o que se pensa acerca dos mencionados equívocos legislativos, chama-se a atenção para apenas um dos incontáveis erros de que padece o nosso ordenamento jurídico, qual seja, a disciplina acerca da responsabilidade civil dos incapazes, regulada pelos artigos 928 e 932, incisos I e II, e 942, parágrafo único, todos do Código Civil. Trata-se da denominada responsabilidade civil subsidiária mitigada do incapaz. Ocorre que para chegar a essa conclusão, doutrinadores, advogados, juízes, promotores e professores de Direito tiveram de se debruçar exaustivamente sobre os mencionados artigos do Código Civil anteriormente mencionados, numa tarefa que seria absolutamente desnecessária se o legislador tivesse se conduzido 153 LOBATO NETO, Lucival Lage. As vantagens advindas com a reforma do art. 192 da Constituição Federal. Jus Navigandi, Teresina, n. 253, 17 mar. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4983/as-vantagens-advindas-com-a-reforma-do-art-192-daconstituicao-federal>. Acesso em: 10 dez. 2001. 87 com um mínimo de atenção ao disciplinar a questão. Cabe agora a explicação, também para que não se pense que o legislador está sendo injustamente culpado. Pois bem, a leitura do artigo 928 do Código Civil não deixa a menor dúvida que existe uma relação de subsidiariedade entre a responsabilidade do incapaz e seu responsável, devendo o credor buscar em primeiro plano no patrimônio deste último a indenização para o ato danoso de que foi vítima, para depois sim recorrer ao patrimônio do incapaz. É essa a mensagem do artigo 928, caput, do Código Civil: “O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes”. Já a mensagem legislativa extraída da leitura conjunta do artigo 932, incisos I e II, e artigo 942, parágrafo único, do mesmo Código Civil, também não abre espaço para dúvida de que impera a solidariedade entre os patrimônios do incapaz e seu responsável quanto aos atos de prejuízo causados pelo primeiro. Com efeito, dispõem os mencionados dispositivos. Artigo 932, incisos I e II: “São também responsáveis pela reparação civil os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia, e o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições”. Artigo 942, parágrafo único: “São solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas no art. 932”. Note-se, então, a completa divergência havida entre os dispositivos mencionados, o primeiro (928) impondo a subsidiariedade e os últimos (932 e 942) a solidariedade no que refere à relação entre incapaz e seu responsável quanto ao dano produzido por aquele, o que não passou sem o reparo de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, que assim se pronunciou sobre o problema: Acentue-se, por fim, a contradição de fato existente entre a determinação do parágrafo único do preceito – que, por não ressalvar a hipótese, pode ser considerada também alusiva a uma responsabilidade solidária existente entre o pai e o filho, pelos atos por este praticado – e a responsabilidade 154 subsidiária dos incapazes, contida no art. 928. E o mais triste nisso é notar que se trata de normas contraditórias contidas na mesma Parte Especial, dentro do mesmo Livro I (Do direito das obrigações), dentro do mesmo Título IX (Da responsabilidade civil) e dentro do mesmo Capítulo I (Da 154 GODOY, Cláudio Luiz Bueno. PELUSO, Cezar. (Org.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri: Manole, 2007. p. 907. 88 obrigação de indenizar). Em outras palavras, o legislador, dentro de um mesmo núcleo de regência, ao produzir os artigos 942 e 932, simplesmente se esqueceu do que havia feito alguns poucos dispositivos atrás, no artigo 928. Por certo que as críticas devem se pontuar de maneira urbana e polida, mas não se pode deixar de dizer que se tratou, na espécie, de um serviço muitíssimo mal feito, que gerou, como se disse, um trabalho absolutamente desnecessário, em milhares de processos para consertá-lo. Bem, está aí mais uma demonstração de que a equivocada postura legislativa, agora consubstanciada em erro mesmo, na forma de contradição entre normas positivadas, gerou a necessidade da busca pela orientação jurisprudencial sobre o tema, que acabou consolidando o entendimento de que a responsabilidade do incapaz, em casos como tais, é subsidiária com relação ao patrimônio do seu responsável, em verdadeira necessidade de pronunciamento judicial, gerando precedente a ser seguido. 8.3 O Problema da Imprecisão Legislativa Não se trata agora de omissão ou incorreção legislativa, mas de uma imprecisão tal que demanda solução jurisprudencial para as lides surgidas no contexto em que se trabalha, como, por exemplo, o § 4º do artigo 1.228 do CC: O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. De tão impreciso o dispositivo, não se uniformiza a doutrina a respeito do que se trata, sabendo-se apenas se tratar uma hipótese de perda da propriedade imóvel. O próprio Professor Francisco Eduardo Loureiro dá o tom da falta de consenso sobre o dispositivo em tela. Segundo o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, “recebeu do professor Miguel Reale o preceito em exame a denominação de desapropriação judicial”, mas, adverte, na sequência, que “não há, na verdade, desapropriação, nem indenização a ser paga pelo Poder Público”, tratando-se, por conclusão, de “uma nova modalidade de perda da propriedade 89 imóvel, por sentença judicial”.155 Aliás, é nova e completamente desprovida de uma orientação ainda que minimamente uniforme sobre seu conteúdo e aplicação. Tanto assim que o mesmo Francisco Loureiro pondera que “algumas questões permanecem em aberto e merecem comentários”, mas “a primeira delas é saber quem paga a indenização”, e “embora haja controvérsia da incipiente doutrina a respeito, parece claro que o preço deva ser pago pelos beneficiários, vale dizer, os possuidores da gleba”.156 Já Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery sustentam que [...] como pode haver desapropriação, pelo poder público, por interesse social, o instituto pode evoluir no sentido de que o poder público venha a ter responsabilidade pela desapropriação judicial, isto é, fique responsável pelo 157 pagamento da indenização, pois a ele cabe fazer a reforma agrária. Veja-se que a divergência doutrinária acima exposta com relação a quem deverá arcar com a indenização ao proprietário que for privado de sua propriedade é apenas a ponta do iceberg no assunto, já que o dispositivo em comento contém termos e expressões que demorarão décadas para serem esclarecidos pela doutrina e principalmente pela jurisprudência, a saber: qual o tamanho da extensa área de terra que pode ser objeto da perda da propriedade? Qual o considerável número de pessoas que nela devem introduzir benfeitorias? Quais são as obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante? Ora, não se pretende com isso simplesmente deixar de lado toda a evolução do Direito Privado no sentido de produzir as denominadas cláusulas gerais, tampouco se está esquecendo do dinamismo e eficiência que tais tipos abertos conferem ao sistema judicial de um dado país. Mas, daí a se criar normas de conteúdo tão aberto a permitirem a subsunção de praticamente qualquer situação de fato, existe um longo e perigoso caminho a ser percorrido, resvalando a questão na própria cláusula de independência dos Poderes da República. Bem, considerado o dispositivo da forma como positivado, tem-se que a presente modalidade de perda da propriedade imobiliária, em verdade, terá sua disciplina consolidada, se é que vai ter um dia, apenas pelo trabalho da 155 LOUREIRO, Francisco Eduardo. PELUSO, Cezar. (Org.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri: Manole, 2007. p. 1.170. 156 Ibid., p. 1.171. 157 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 881. 90 jurisprudência, que deverá firmar o precedente a ser seguido em cada uma das lides judiciárias que se aforar a respeito do tema, dada a radical imprecisão legislativa, mais uma vez com necessidade de recurso ao sistema de precedentes. 8.4 As Consequências do Mau Trabalho Legislativo 8.4.1 O eventual desapego à lei Perigoso, em última instância, para a própria Democracia, mas citado cada vez mais frequentemente por doutrina de excelência, o aqui denominado “eventual desapego à lei” encontra fundamento nos problemas que acima se detectou no trabalho de feitura das normas jurídicas – a omissão, a incorreção e a imprecisão legislativas, como se passa a demonstrar. Maria Garcia abre um dos capítulos de sua obra “Desobediência civil - Direito fundamental”158 com uma citação que fala por si a respeito do que se está querendo dissertar: “Se a lei contiver erros de tal ordem que nos obrigue a ser um instrumento de injustiça para alguém, e se somente isso for o caso, então eu digo, viole a lei”.159 Na mesma obra, Maria Garcia segue afirmando que “o homem é um ser para a liberdade, mas, quando em sociedade, defronta-se com a autoridade, com o Poder do Estado e com a lei”.160 E, para ela, “é o moderno Estado de Direito que explica o estabelecimento do princípio da legalidade”.161 Mas, adverte: [...] a lei passou a ser, em nossas complexas estruturas sociais um simples meio técnico de organização coletiva, de modo que pode não só fazer nenhuma referencia à justiça, senão, muito mais, pode também se converter num modo de organização antijurídico, num modo de perversão do 162 ordenamento. Comenta Regis Fernandes de Oliveira, citado por Maria Garcia, que: Há leis tão absurdas casuísticas e desprovidas de sentido que fatalmente não são obedecidas. Passa a ser importante a manutenção da desobediência. Daí denominada desobediência civil, que significa uma desqualificação do detentor do poder. Não se aceitam mais as ordens 158 GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 240. 159 THOREAU, 1964, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 240. 160 GARCIA, op. cit., p. 243-244. 161 Ibid., p. 246. 162 Ibid., p. 247. 91 expedidas porque falta legitimidade ao governante. As ordens passam a ser 163 descumpridas com a aquiescência de toda a comunidade. O próprio Miguel Reale, citado por Maria Garcia, admite que “infelizmente” pode haver as leis nascidas puramente do arbítrio ou de valores aparentes que só o legislador reconhece.164 Daí o problema: o da obediência ou não às leis destituídas de fundamento. A feitura da lei encontra-se polarizada no Poder Legislativo e, pelo princípio da representatividade, existe uma presunção de que ela é elaborada pelos cidadãos – na pessoa de seus representantes políticos. Mas essa representação política vem revelando-se de todo insuficiente para a satisfação de seus objetivos, em especial na realização e na defesa da cidadania. Isso porque o atual representante do cidadão no Poder Legislativo atua com independência, não estando sujeito a qualquer instrução ou determinação de seu eleitor, e muitos países, como o Brasil, sequer adotam o instituto de revogação de mandato, chegando-se à constatação de uma completa dissociação entre a vontade do representante e do representado, sem compromisso político para com os eleitores.165 Constata-se, em virtude disso, a insuficiência deste processo legislativo para a garantia da cidadania, que requer, assim, formas mais atualizadas na participação no poder, o que vale dizer mais atualizados direitos e formas de garantia.166 8.4.2 O ativismo judicial Ora, como outra consequência natural do mau desempenho do legislador, surge o ativismo judicial. O Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Walter de Almeida Guilherme, ao ser indagado sobre o que seria ativismo judicial, afirmou que: O ativismo tem um lado positivo que é preencher as lacunas da lei quando o próprio sistema jurídico permite, como é o caso do Mandato de Injunção para obrigar o Executivo a enviar um projeto ou o Legislativo a votar. Ativismo judicial não é nada mais que isso: um juiz decidindo na ausência da lei quando ele é autorizado a fazê-lo. Fala-se de ativismo quando o 163 OLIVEIRA, 1988, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 248. 164 REALE, 1953, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 248. 165 GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 257. 166 Ibid., p. 258. 92 Judiciário atua numa área que aparentemente não é dele, mas a própria Constituição permite por meio da Ação Declaratória de 167 Inconstitucionalidade, por exemplo. De acordo com Luís Roberto Barroso168: O ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. E segue afirmando que “o ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário”, tratando-se “de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso”, concluindo que “os riscos do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias”.169 Para Elival da Silva Ramos, Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Essa ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional se faz em detrimento, particularmente, da função legislativa, não envolvendo o exercício desabrido da legiferação (ou de outras funções não jurisdicionais) e sim a descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo 170 essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Podres. E continua o mesmo autor a informar que, “se no positivismo clássico a interpretação se subsume à vontade do legislador”, de outro lado, “no positivismo renovado o que prevalece é a vontade da lei, mas contando também com a vontade do intérprete”.171 167 GUILHERME, Walter de Almeida. Entrevista concedida ao site Consultor Jurídico. Disponível em: <www.conjur.com.br>. Acesso em: 30 nov. 2011. 168 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf>. Acesso em: 09 dez. 2011. 169 Ibid. 170 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial - parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 308. 171 Ibid., p. 308. 93 Ainda, segundo o mesmo autor, [...] o primeiro e principal dos parâmetros fornecidos pelo próprio ordenamento jurídico para a identificação do ativismo judicial diz respeito à exigência de que toda interpretação constitucional seja compatível com 172 amplitude de sentidos projetada pelo texto da norma. No Brasil, segundo se noticia, “a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal, entretanto, indica um avanço do ativismo judicial”.173 Dentre os fatores de fomento deste ativismo judicial brasileiro, pode se citar o modelo de estado intervencionista, “que leva juízes e tribunais a revelar, em algumas situações, a existência de limites impostos pelo próprio ordenamento cuja atuação lhes incumbe”.174 E um segundo fator de fomento do ativismo judicial no Brasil, este essencialmente ligado ao que se propôs a estudar neste trabalho, é, segundo o mesmo Elival da Silva Ramos, a denominada principiologização do Direito, “abrindo as portas do sistema jurídico ao subjetivismo das decisões judiciais”, resultando na produção de julgados “ao sabor das preferências axiológicas de seus prolatores”.175 Bem, como se viu nas questões postas para pensamento a respeito do ruim trabalho feito pelo legislador, a orientação sobre a solução dos litígios tem sido dada pelo Poder Judiciário, de modo proativo nas situações de retração e contradição entre os pronunciamentos do Poder Legislativo e a vontade popular. Daí que o surgimento de precedentes verdadeiramente regulatórios de determinadas situações é inevitável ante a maneira como vem se portando o legislador nacional. É lógico que se tem em mente a advertência de Maria Helena Diniz de que “ao Poder Judiciário está reservada a grande responsabilidade de adequar o direito, quando sua vigência social apresenta sintomas de inadaptabilidade em relação à realidade social, mantendo-o vivo”, mas que “desta afirmação não se infere que o juiz tenha liberdade onímoda”176, ou ilimitada. 172 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial - parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 310. 173 Ibid., p. 313. 174 Ibid., p. 314. 175 Ibid., p. 314. 176 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 501. 94 Sabe-se que a aplicação do Direito é, de acordo com Miguel Reale, “uma decorrência de competência legal”.177 Assim, “o juiz, ao aplicar o Direito, não deve exceder aos ditames jurídicolegais”, nas palavras de Maria Helena Diniz178, que, reforçando sua ideia, afirma: Dentro desse quadro da ordem jurídica, o poder de jurisdição do magistrado tem uma zona de liberdade, dentro da qual pode exercer sua atividade. A liberdade de julgar só é garantida nos limites da órbita jurídica que lhe corresponde; se o órgão judicante ultrapassar esses marcos, invade órbitas jurídicas alheias e sua atividade torna-se uma perturbação da ordem, um 179 abuso de direito. Mesmo assim, não há como se negar a produção judicial cada vez mais intensa a respeito de temas em que se omite, erra ou se faz imprecisa a lei, até contra legem, como é o caso da fixação das indenizações punitivas no Brasil, que, em tese, não encontram respaldo legal expresso. 177 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 291. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 501. 179 Ibid., p. 502. 178 95 9 O DIREITO JURISPRUDENCIAL 9.1 Posição da Jurisprudência na Teoria Geral do Direito no Civil law John Gilissen conceitua a jurisprudência como um conjunto de normas jurídicas extraídas das decisões judiciárias, e, analisando-a no sistema de civil law, afirma que: De uma forma geral, as decisões judiciárias não valem senão entre as pessoas que são partes no processo; não enunciam normas jurídicas gerais e, mesmo que o façam na sua motivação, estas normas não têm forças vinculativas erga omnes. No entanto, os juízes, sobretudo os juízes profissionais formados pela disciplina jurídica (por oposição aos juízes populares) têm tendência a interpretar a lei e o costume como o fizeram 180 seus predecessores. Mesmo assim, o papel da jurisprudência, segundo ele, tem sido crescente no decurso dos séculos XIX e XX, tendo realizado uma “uniformidade real na interpretação das leis, por uma segurança jurídica acrescida por sua fixidez e uma adaptação constante às realidades da vida social”.181 Assim, “sem admitir o princípio do stare decisis dos países anglo-saxões, as jurisdições dos países de direito romanista admitem a força de fato da jurisprudência”.182 E acaba por reconhecer que “a história da evolução da jurisprudência no decurso dos últimos cento e cinquenta anos não foi ainda suficientemente descrita”, já que: Pode verificar-se que os Tribunais se mostraram ora demasiadamente tímidos e conservadores ora muito ousados. Devem-se muitas soluções justas e uteis, à margem das leis. Um dos exemplos mais notáveis da contribuição da jurisprudência para a evolução do direito é o volume de decisões relativas à responsabilidade aquiliana: um só artigo do Código Civil francês de 1804 (o artigo 1832) deu origem a milhares de decisões judiciárias, formando uma das partes mais importantes e mais vivas do 183 Direito Civil atual. 180 GILISSEN, John. 2008. p. 27-28. 181 GILISSEN, John. 2008. p. 505. 182 GILISSEN, John. 2008. p. 507. 183 GILISSEN, John. 2008. p. 508. Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 96 Em tom crítico, Teresa Arruda Alvim Wambier afirma que “o excesso de dispersão de jurisprudência, fenômeno tipicamente brasileiro e latino-americano, compromete a segurança, a estabilidade e a previsibilidade184, e que O fato de os Tribunais Brasileiros interpretarem diferentemente a mesma norma jurídica, decidindo-se casos idênticos de formas diversas, gera descrédito ao Poder Judiciário e uma indesejável sensação no 185 jurisdicionado de que está sofrendo uma injustiça. Assim, conclui, “é preciso que os Tribunais Superiores não sejam Tribunais de grandes viradas: é necessário que respeitem sua própria jurisprudência”.186 Tercio Sampaio Ferraz Jr., examinando a jurisprudência à luz dos sistemas de direito estudados neste trabalho, pontua que: O sistema romanístico, assim, em oposição ao anglo-saxão, caracteriza-se, em primeiro lugar, pela não vinculação dos juízes inferiores aos tribunais superiores em termos de decisões; segundo, cada juiz não se vincula às decisões dos demais juízes de mesma hierarquia, podendo decidir casos semelhantes de modo diferente; terceiro, o juiz e o tribunal não se vinculam sequer às próprias decisões, podendo mudar de orientação mesmo diante de casos semelhantes; em suma, vige o princípio da independência da magistratura judicial: o juiz deve julgar segundo a lei e conforme sua 187 consciência. Por essas razões, segundo o mesmo jurista, no direito romanístico-germânico a “doutrina costuma negar à jurisprudência o caráter de fonte, ao contrário do que sucede com a teoria do precedente no mundo anglo-saxão”.188 9.2 Uma Pequena Digressão sobre o Precedente no Common Law Nesta contextualização do common law, o precedente, segundo Neil Duxbury, trata-se de um evento passado que serve como guia para uma ação presente 189, 184 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 725. 185 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 726. 186 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 726. 187 FERRAZ, Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 210. 188 FERRAZ, Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 211. 189 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. United Kingdom: Cambridge University Press, 2008. p. 1. 97 tendo, de acordo com Michael J. Gerhardt, o poder de iluminar as decisões futuras, de forma constante e duradoura.190 O principal fundamento para se seguir a orientação traçada nos precedentes, como já anotado superficialmene, é que a noção de Justiça impõe que um novo caso submetido às Cortes tenha uma solução igual ou pelo menos parecida com os casos semelhantes anteriormente apresentados ao Poder Judiciário.191 José Rogério Cruz e Tucci192 assevera que: O efeito vinculante das decisões já proferidas encontra-se condicionado à posição hierárquica do tribunal que as profere. Normalmente, na experiência jurídica da common law, o julgado vincula a própria corte (eficácia interna), bem como todos os órgãos inferiores (eficácia externa). Não se delineia possível, à evidência, a aplicação dessa regra em senso contrário. Saliente-se que uma decisão que tenha se consubstanciado em regra importante, seja por seu pioneirismo no trato da matéria sub judice, seja por ser o centro gravitacional de outras decisões, é denominada leading case, consubstanciando-se em primordial paradigma para a solução dos casos análogos futuros, bem como para o exercício do ofício dos operadores do Direito no sistema do common law.193 Mesmo nessas decisions ditas leading cases, como noutras que criam precedentes (sem o pioneirismo e força de atração daquelas), ressalve-se, não existirá in totum o efeito vinculante, mas somente em certas e determinadas fundamentações, de forma a ser necessário que se esclareçam quais seriam essas fundamentações vinculativas. Para tanto, é mister que se distinga o que é um holding de um dictum. Aquele é a determinação da regra de Direito relacionada diretamente à solução da demanda. Este se consubstancia em argumentação incidental que não guarda relação de imediatidade com a causa.194 190 GERHARDT, Michael J. The power of precedent. New York: Oxford University Press, 2008. p. 204. 191 GOLDSTEIN, Laurence. Precedent in law. Oxford: Clarendon Press, 1987. p. 90. 192 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 170. 193 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 40. 194 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 173. 98 Na lição de Guido Fernando Silva Soares:195 Holding é o que foi discutido e arguido perante o juiz e para cuja solução foi necessário “fazer” (criar/descobrir) a norma jurídica; reafirme-se, assim, a importância do conhecimento dos facts of a case, aos quais a norma jurídica está ligada; dictum é tudo que se afirma na decision, mas que não é decisivo para o deslinde da questão e, embora seja meramente persuasive, tem importância suasória para as cortes subordinadas e para o advogado, no aconselhamento de seus clientes. Já os facts of the case podem ser subdivididos em substantive facts e em procedural facts. Aqueles constituem os acontecimentos que levaram à propositura da demanda e irão delimitar o alcance do precedente formulado. Estes, também chamados judicial history of the case, constituem os fatos ocorridos durante a tramitação processual, do julgamento em primeiro grau até o julgamento final pelo tribunal.196 Em resumo, é a essência da regra de Direito bastante a decidir o caso concreto e extraída dos facts of the case, denominada holding, que vincula os julgamentos futuros. E cumpre salientar que tal regra não é destacada ou individualizada pelo órgão prolator da decisão, cabendo aos juízes, em momento posterior, ao examinarem-na enquanto precedente, extrair a norma que incidirá ou não na situação concreta análoga posta em juízo. 197 Essa complexa atividade lógico-interpretativa dos precedentes judiciais, na busca de seu conteúdo vinculativo, é viabilizada pelo método de confronto denominado distinguishing. Através dele o juiz analisa se os fatos postos em juízo podem ou não ser considerados análogos ao paradigma, sendo certo que o precedente deve guardar absoluta pertinência substancial com a holding do caso sucessivo − precedent in point − para que tenha eficácia vinculante.198 A técnica do distingo, para além de identificar a holding, pode interpretá-la, seja de modo restritivo (restrictive distinguishing) ou ampliativo (ampliative distinguishing). Veja-se a lição de Guido Fernando Silva Soares199: 195 SOARES, op. cit., p. 42. ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 173. 197 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 175. 198 Ibid., p. 174. 199 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 42. 196 99 Nos casos novos, apresentados na lacuna de case laws, ou a corte pode reler os holdings anteriores com um espírito de interpretação restritiva (“to narrow the holding”), ou de uma interpretação extensiva (“to read a holding more broadly”), ou, ainda, meramente declarativa (na afirmação de que o caso se aplica à espécie, tal e qual). A seu turno, o efeito vinculante existente numa holding tem a natureza de regra hermenêutica de cunho universal, repercutindo, portanto, sobre todos os casos futuros aos quais ela tenha pertinência, de modo que o vínculo açambarcado pela regra do stare decisis se distingue do dever de respeito à coisa julgada, esta que, disciplinando o caso concreto, possui efeito apenas inter partes.200 Entretanto, referida submissão às decisões anteriores não é absoluta, sendo o distinguishing uma das técnicas de se furtar à força vinculativa do precedente, sobretudo quando, por ocasião da distinção, verificar-se que os casos não são análogos e que não comportam sequer um ampliative distinguishing. Ocorre que, afora a situação supracitada, existem técnicas que permitem a desconsideração de um precedente, ainda que se trate de caso análogo ou idêntico, numa postura mais drástica do que a verificada no distinguishing. Nas palavras de Guido Fernando Silva Soares: Podem as cortes superiores, igualmente, desconsiderar um precedent e decidir com novas razões um caso semelhante: é o overruling (autêntica abrogação do precedente, ou, no que é mais comum, sua derrogação, continuando válido para certos aspectos da questão examinada - o que 201 nada mais é do que transformar um holding num dictum!). Num primeiro momento, quanto às motivações para substituir – overruled – determinado precedente, tem-se que as cortes superiores podem fazê-lo por ser considerado superado ou, até mesmo, equivocado − per incuriam ou per ignorantia legis. Nesses casos, a decisão que inova o ordenamento jurídico revoga expressamente a holding anterior – express overruling – retirando-lhe o valor vinculante.202 Outrossim, é possível que, sem qualquer menção ao posicionamento jurisprudencial vinculante, a nova decisão siga fundamento absolutamente distinto que implique em novo resultado de julgamento, caso em que terá havido uma 200 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 176. 201 SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 42-43. 202 TUCCI, op. cit., p. 179. 100 revogação implícita do precedente – implied overruling – retirando, do mesmo modo, a carga vinculante do precedente substituído.203 Desse modo, a regra do stare decisis é flexibilizada pela possibilidade de mudança das regras estabelecidas nos precedentes, chamada to overrule a precedent, podendo ser levada a cabo pela própria corte da qual emanaram ou por corte de hierarquia superior.204 Ademais, conforme sua produção de efeitos no tempo, podem ser citadas como formas de excetuar a força vinculativa de um precedente os denominados retrospective overruling, prospective overruling e antecipatory overruling. Um retrospective overruling ocorre quando a revogação do precedente se dá com efeitos ex tunc, não permitindo que a decisão substituída possa ser invocada como paradigma em casos que ocorreram antes da revogação e que aguardam julgamento. Já o prospective overruling, instituído pela Suprema Corte estadunidense, opera a revogação do precedente com eficácia ex nunc, ou seja, somente deixa de ser adotado aos casos sucessivos à substituição, de forma que a holding substituída continua a ter eficácia vinculante aos fatos ocorridos anteriormente à revogação. E, por derradeiro, o antecipatory overruling consistente na revogação preventiva do precedente, efetivada pelas cortes inferiores sob o pálio de que não mais constitui um bom fundamento, conforme implicitamente já teria sido reconhecido pelos tribunais superiores, bastando que na jurisprudência da corte superior tenha havido uma modificação no vetor referente ao respectivo precedente.205 Esse arcabouço de mecanismos aptos a mitigar a força vinculante do precedente, podendo retirá-la totalmente em algumas hipóteses, está a evidenciar que a regra do stare decisis não implica no engessamento do ordenamento jurídico, já que não impede que determinada tese dominante, antes sedimentada, possa ser superada por um novo processo de normatização jurisprudencial. Ora, a dinamicidade social, consubstanciada pela constante modificação dos paradigmas de interpretação de determinado fato social alçado à condição de fato jurídico, demanda um sistema jurídico capaz de assimilar, arregimentar e disciplinar 203 Ibid., p. 179. ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 173. 205 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 179-180. 204 101 referidas mutações, como corolário da própria justiça ou, ao menos, para a diminuição das tensões sociais.206 De acordo com José Rogério Cruz e Tucci, “o ponto de referência normativo no âmbito da commom law é exatamente o precedente judicial, enquanto no tradicional sistema da civil law o precedente, geralmente dotado de força persuasiva, é considerado fonte secundária do direito”207, e “tal eficácia persuasiva, dependendo de inúmeras variantes, pode ser maior ou menor”.208. Esclarece Cruz e Tucci, outrossim, “que em determinados ordenamentos jurídicos de direito escrito, como, por exemplo, do Brasil, adota-se, um modelo misto, vale dizer de precedentes vinculantes e de precedentes persuasivos”209, concluindo que Na atualidade, o Direito Brasileiro adota um modelo misto quanto à eficácia dos precedentes judiciais, a saber: a) precedentes com eficácia meramente persuasiva; b) precedentes com relativa eficácia vinculante; c) precedentes 210 com eficácia vinculante. 9.3 Condições para Mudança da Jurisprudência no Civil Law e suas consequências Diz Teresa Arruda Alvim Wambier que “a mudança da jurisprudência é um fato que dificilmente passa despercebido no Brasil”, e “uns veem esse fenômeno com entusiasmo, afirmando que este é o caminho para a evolução do direito”, enquanto “outros, com veemência, criticam essas alterações, afirmando, 211 vigorosamente, que os precedentes devem ser obedecidos”. Assevera também que: Parece que nós ainda carecemos de uma teoria adequada que nos ajude a explicitar em que circunstâncias as Cortes podem ser inovadoras, e quando devem ser conservadoras; quando devem passar por cima das velhas 206 Ibid., p. 180. TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo: 100. 208 TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo: 101. 209 TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo: 101. 210 TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo: 111-112. 211 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São 2012, p. 12. 207 Revista dos Tribunais, 2012, p. Revista dos Tribunais, 2012, p. Revista dos Tribunais, 2012, p. Revista dos Tribunais, 2012, p. Paulo: Revista dos Tribunais, 102 decisões e quando os juízes insistem em que esta mudança ou reforma 212 deve ser feita pelo Poder Legislativo . Para ela, “uniformidade não significa uniformidade de um certo e determinado entendimento para sempre; e estabilidade não significa imutabilidade”.213 Pondera que “uma das mais relevantes funções do direito é a de, justamente, gerar previsibilidade”, todavia, “como o direito serve à sociedade e esta se modifica, é também necessário que, em alguma medida, o direito exerça a delicada função de adaptar-se”.214 Noticia Teresa Arruda Alvim Wambier que “muitas vezes, na Inglaterra, o overruling não se dá de modo expresso, explícito e direto, às vezes se estendendo por anos, por um longo período: a erosão de um precedente é gradual”, de forma a não gerar “um efeito abrupto no direito”.215 Tenha-se presente a advertência de José Rogério Cruz e Tucci que: Deve ter-se presente que a abrupta alteração dos posicionamentos da jurisprudência acarreta, em regra, gravíssimas consequências no plano da dinâmica do direito, visto que: a) vulnera a previsibilidade dos pronunciamentos judiciais; e, por via de consequência, b) produz 216 insegurança jurídica. E com esta advertência, encerrando o presente capítulo, tem vez o exame da questão que se refere à mudança da orientação judicial sobre determinado assunto e suas consequências imediatas para a sociedade submetida ao crivo das decisões do Poder Judiciário, num determinado caso concreto que, não obstante não toque a temática dos danos morais, tem seu relevo e merece ser examinado ante a oscilação valorativa que recebeu do sistema judicial brasileiro. Para tanto, pinçou-se da literatura jurídica um ponto que, como se verá, vem sendo tratado da maneira mais variada possível pela jurisprudência, causando verdadeira balburdia no dia a dia dos chamados “loteamentos fechados” ou 212 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São 2012, p. 13. 213 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São 2012, p. 13. 214 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São 2012, 14. 215 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São 2012, p. 42. 216 TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo: 110. Paulo: Revista dos Tribunais, Paulo: Revista dos Tribunais, Paulo: Revista dos Tribunais, Paulo: Revista dos Tribunais, Revista dos Tribunais, 2012, p. 103 “condomínios de fato”, no que refere à questão da cobrança da taxa associativa, como passa a ser explanado. Normalmente, a administração dos assim denominados “loteamentos fechados” ou “condomínios de fato” é feita por uma associação, oferecendo serviços para os moradores do local, como segurança privada, coleta de lixo, opções de lazer etc. A questão que vem sendo colocada para exame é a da cobrança da taxa associativa referente à prestação desses serviços. Óbvio que os moradores que se associaram à entidade que presta os serviços devem pagar a taxa, pela simples razão de terem se associado. Nada mais se trata do que a cobrança fundada no ato de vontade do morador que livremente se associou, tendo de cumprir com as prestações deliberadas em assembleia. O problema surge com aqueles moradores que, por qualquer motivo, não se associaram, seja porque não quiseram, seja porque simplesmente não souberam da existência da associação, o que não se mostra incomum. As duas alegações principais trazidas por esses moradores que não se associaram são as seguintes: primeira, que eles não têm obrigação de se associarem, daí que não têm obrigação de pagarem a taxa associativa; segunda, que o loteamento não se trata de um condomínio, daí que não devem o valor das despesas para a manutenção do local. Posta a questão, demanda-se que se tragam as orientações jurisprudenciais sobre o tema. Por um primeiro entendimento, mostra-se como correta a cobrança da taxa associativa, desde que devidamente comprovada a prestação dos mencionados serviços. Afirma-se que aqueles que não querem pagar a taxa associativa são donos de terrenos nos “loteamentos fechados” administrados pelas associações, usufruindo dos serviços que são disponibilizados à comunidade de proprietários e possuidores, tais como manutenção de ruas, lazer, segurança, coleta domiciliar de lixo etc. Para essa corrente não há motivo algum para que um pequeno grupo de pessoas pague por serviços que são colocados à disposição de toda uma comunidade. Caso fosse negada a possibilidade de cobrança da taxa associativa daqueles que não são associados, mas que têm terrenos no loteamento, se estaria coadunando com o enriquecimento sem causa de uns em detrimento de outros, pela valorização do imóvel daqueles que não querem pagar a taxa. E essa orientação chegou a ser sufragada no Colendo Superior Tribunal de Justiça: 104 O proprietário de lote integrante de loteamento aberto ou fechado, sem condomínio formalmente constituído, cujos moradores constituíram sociedade para prestação de serviços de conservação, limpeza e manutenção, deve contribuir com o valor correspondente ao rateio das despesas daí decorrentes, pois não se afigura justo nem jurídico que se beneficie dos serviços prestados e das benfeitorias realizadas sem a devida 217 contraprestação. Mas acabou vencida quando da reunião das duas Turmas da Segunda Seção do Colendo Superior Tribunal de Justiça, em 26 de outubro de 2005, ocasião em que, no exame dos Embargos de Divergência no REsp 444.931/SP, relator Ministro Humberto Gomes de Barros, por maioria de votos, julgado em 26/10/05, decidiu-se pela inadmissibilidade da cobrança em comento, sob os seguintes fundamentos: As taxas de manutenção criadas por associação de moradores não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo. A questão é simples: o embargado não participou da constituição da associação embargante. Já era proprietário do imóvel, antes mesmo de criada a associação. As deliberações desta, ainda que revertam em prol de todos os moradores do loteamento, não podem ser impostas ao embargado. Ele tinha a faculdade – mais que isso, o direito constitucional – de associar-se ou não. E não o fez. Assim, não pode ser atingido no rateio das despesas de manutenção do loteamento, decididas e implementadas pela associação. No nosso ordenamento jurídico há somente três fontes de obrigações: a lei, o contrato ou o débito. No caso, 218 não atuam qualquer dessas fontes. E essa vinha sendo a orientação predominante no mesmo Colendo Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, como se verifica nos seguintes julgados: AgRg no EDcl no Ag nº 551.483-SP, REsp 778.145 e REsp 1.034.349/SP. Todavia, não se pode deixar de mencionar que, em um julgado mais recente do próprio Colendo Superior Tribunal de Justiça, de agosto de 2009, por sua 4ª Turma, em votação unânime, o relator Ministro Luis Felipe Salomão, no AgRg nº 703.266-RJ, voltou a controverter a questão, afirmando categoricamente que, não obstante o reconhecimento anterior da impossibilidade da cobrança da taxa associativa, o tema deve ser examinado à luz de cada caso concreto, perquirindo-se se o proprietário do lote foi ou não beneficiado por serviços prestados pela associação. E ele concluiu que: [...] conquanto a Segunda Seção desta Casa tenha traçado orientação no sentido de que “as taxas de manutenção criadas por associação de moradores, não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é 217 AgRg no REsp 490.419/SP; Rel. Min. Nancy Andrighi; 3ª T. DJU, 30 jun. 2003, p. 248. REsp 444.931/SP; Relator Ministro Humberto Gomes de Barros; Julgado em 26/10/05; DJ, 01 fev. 2006, p. 427. 218 105 associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo”, a questão deve ser examinada considerando a realidade de cada caso, não havendo como generalizar a tese. Não obstante a polêmica em torno da matéria, com jurisprudência oscilante desta Corte, a posição mais correta é a que recomenda o exame do caso concreto, e, para ensejar a cobrança da cota-parte das despesas comuns, na hipótese de condomínio de fato, mister a comprovação de que os serviços são prestados e o réu deles se beneficia. Nada obstante, em julgado mais recente ainda e agora prolatado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, em virtude da competência constitucional para exame do tema advindo da questão atinente à liberdade de associação, a orientação que prevaleceu foi contrária, no sentido de negar-se à associação a possibilidade da cobrança da taxa em referência. Com efeito, a E. 1ª Turma reformou acórdão que determinara ao recorrente satisfazer compulsoriamente a mensalidade à associação de moradores à qual não era vinculado. Ressaltou-se não se tratar de condomínio em edificações ou incorporações imobiliárias regido pela Lei nº 4.591/64. Consignouse que, conforme dispõe a Constituição, ninguém estaria compelido a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e, embora o preceito se referisse à obrigação de fazer, a concretude que lhe seria própria apanharia, também, a obrigação de dar. Esta, ou bem se submeteria à manifestação de vontade, ou à previsão em lei. Asseverou-se que o aresto recorrido teria esvaziado a regra do inciso XX, do artigo 5º, da Constituição Federal, a qual revelaria que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado. Aduziu-se que essa garantia constitucional alcançaria não só a associação sob o ângulo formal, como também tudo que resultasse desse fenômeno e, iniludivelmente, a satisfação de mensalidades ou de outra parcela, seja qual for a periodicidade, à associação, pressuporia a vontade livre e espontânea do cidadão em associar-se.219 Como se viu, ao contrário do que se pode pensar, não se divisa, na jurisprudência, solução única para a problemática da cobrança da denominada taxa associativa. Note-se que, em poucos julgados e num curto período de tempo, a oscilação quanto à decisão da questão foi radical: num primeiro momento deferiu-se a cobrança da taxa contra o não associado; na sequência julgou-se improcedente tal cobrança; depois a cobrança foi novamente admitida; e, por fim, foi dada como indevida a taxa associativa no âmbito dos “condomínios de fato”. 219 Recurso Extraordinário nº 432.106, julgado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em 20 de setembro de 2011, relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello. 106 Tal confusão tem, dentre outras, uma causa, qual seja, a ausência total de legislação que discipline uma modalidade de ocupação do solo que se avulta a cada dia, isto é, o denominado “loteamento fechado”, que não se trata do loteamento regular da Lei nº 6.766/79, tampouco de um condomínio edilício previsto no Código Civil (artigos 1.331/1.358). Tentando solucionar a questão e evitar maiores delongas processuais, nos autos do agravo de instrumento n°. 745831, o Ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal, em novembro de 2011, reconheceu a repercussão geral da matéria, afirmando que “a questão posta apresenta densidade constitucional e extrapola os interesses subjetivos das partes”. O julgamento, dessa forma, é aguardado com expectativa pela comunidade jurídica. Conclui-se, dessa sorte, que seria importante a edição de legislação federal contempladora de normas gerais sobre os “loteamentos fechados”, ou, na sua ausência, que a jurisprudência firmasse um precedente forte e com autoridade suficiente para ser seguido nas instâncias inferiores, conferindo segurança jurídica aos loteadores e aos proprietários de lotes, podendo ser, quem sabe, a própria decisão a ser proferida no futuro julgamento acima citado em que se reconheceu a repercussão geral da matéria. Com isso, se estaria fomentando cada vez mais a atividade econômica do país no plano imobiliário, além de proporcionar redução considerável dos litígios judiciais hoje enfrentados no dia a dia forense acerca do tema. 107 10 O DANO MORAL 10.1 Natureza Jurídica Perante o Civil Law Brasileiro A possibilidade de se indenizar o dano moral sofrido por uma pessoa, em tese, nenhuma relação guarda com a concomitante punição a ser impingida ao causador do prejuízo. Indenizar, como sabido, trata-se da recomposição do patrimônio material daquele que se viu vítima de um infortúnio. Em princípio, deveria a palavra “indenização” ser empregada apenas para a reparação do dano material. Com alguma divergência, entende a grande maioria da doutrina que o dano moral não pode ser reparado, porquanto a dor espiritual não tem conteúdo econômico, daí não poder ser mensurada a respectiva indenização. Para os casos de dano moral, nesse quadro, teria cabimento uma mera compensação da dor sofrida pela vítima por uma quantia em dinheiro. Assente, então, que o dano material se indeniza e o dano moral se compensa por valor em espécie. Nada obstante, tanto a doutrina quanto a jurisprudência aceitam, sem problemas, o termo “indenização” para tratar da reparação do dano material e da compensação do dano moral. Resumindo, então, não há qualquer equívoco ao se falar em “indenizar” o dano material ou o dano moral. Isto posto, pode-se dizer que, tendo sido praticado um ato causador de dano material ou moral, terá cabimento uma indenização, por meio da qual uma quantia em dinheiro servirá como reparação pelo prejuízo material e como compensação pelo prejuízo imaterial. Consoante frisado no início do presente trabalho, as questões que orbitam no entorno do abalo moral indenizável – à exceção de sua possibilidade de reparação prevista expressamente no artigo 186 do Código Civil de 2002 – são as que mais expressivamente denotam a mitigação do sistema civil law adotado no Brasil. O maior relevo do dano moral nesse aspecto se dá, essencialmente, por dois motivos: porque tais questões se consubstanciam em um dos mais complexos problemas enfrentados pelo operador do Direito na vida forense diária, e porque, não obstante a grande incidência social, que demandaria um regramento minudenciado e exaustivo como decorrência do sistema romano-germânico adotado 108 pela nossa nação, o abalo moral indenizável gozou de poucas e superficiais menções no vigente Código Civil de 2002, podendo-se citar como a mais importante aquela do seu artigo 186. Ocorre que o mencionado dispositivo legal não vai além de mencionar que o dano indenizável pode ser material ou “moral”, ou “exclusivamente moral”, restando absolutamente desprovidas de regramento todas as demais questões que gravitam em seu entorno; vale dizer, a multiplicidade de situações fáticas e suas nuances soçobraram diante da desértica previsão legal da matéria. Nesse vácuo de atuação legislativa, ao longo do tempo, casuisticamente soergueram-se questões a respeito das quantias a serem fixadas a título de indenização; quais as possíveis pessoas vítimas de atos ilícitos que poderiam ser beneficiadas por tais indenizações, ou se até mesmo o nascituro; se um simples inadimplemento contratual geraria ou não o dano moral; como haveria de se dar a contagem dos juros e correção monetária quando da fixação da indenização por danos morais etc. Por óbvio, tais controvérsias, a despeito da lacuna legislativa existente, não puderam ser subtraídas da apreciação pelo Poder Judiciário, de modo que as lides judiciárias envolvendo o dano moral e seus consectários passaram a ser resolvidas exclusivamente com base em precedentes jurisprudenciais relativos a fatos idênticos ou semelhantes em cotejo aos postos para exame no processo a ser decidido. E é esse o fundamento para que o dano moral e os questionamentos que lhe são correlatos traduzam com maior relevo a temperança evidenciada pela existência de institutos e mecanismos típicos do sistema do common law como corolário de que o nosso sistema jurídico não adota, exclusivamente, o sistema romano-germânico. 10.2 Conceito José de Aguiar Dias220 entende que “[...] o dano moral consiste na penosa sensação da ofensa, na humilhação perante terceiros, na dor sofrida, enfim, nos efeitos puramente psíquicos e sensoriais experimentados pela vítima do dano, em consequência deste [...]”. 220 DIAS, José Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 783. 109 Para Antonio Jeová Santos221 “[...] o que configura o dano moral é aquela alteração no bem-estar psicofísico do indivíduo, uma alteração desfavorável, aquela dor profunda que causa modificações no estado anímico [...]”. Assim, como é corrente na doutrina, pode-se dizer que o dano moral trata-se de lesão provocada a um direito da personalidade. E, nesse sentido, Carlos Alberto Bittar222 esclarece o que são os direitos da personalidade, devendo ser compreendidos como: a) os próprios da pessoa em si (ou originários), existentes por sua natureza, como ente humano, com o nascimento; b) e os referentes às suas projeções para o mundo exterior (a pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu relacionamento com a sociedade). Álvaro Villaça Azevedo223 afirma que “se o dano for moral, para que se indenize, certamente, no Direito brasileiro, é preciso que agrida direitos da personalidade, com ou sem reflexos de perda patrimonial”. Nessa linha de orientação, podemos concluir que constitui dano moral a ofensa, a lesão e a redução dos atributos personalíssimos, a violação a direitos inatos. O bem jurídico lesado no dano moral é justamente a intimidade, a liberdade, o nome, o sigilo, a vida privada, a integridade física, a honra, a imagem e outros atributos sem os quais não seria possível exercer os demais direitos subjetivos. 10.3 A Denominada “Pena Privada” do Direito Europeu Veja-se, que, em princípio, não se menciona a indenização por danos morais como instrumento hábil à punição do agente causador do dano, mesmo tendo este agido imbuído de dolo ou culpa grave. Assim, como se viu, numa formulação mais restritiva, não se poderia pensar na indenização como meio para punir o agente causador de dano, tampouco como instrumento para dissuadir a prática de outras condutas ilícitas idênticas. Não poderia, dessa forma, a indenização por danos morais desenvolver os aspectos de repressão e prevenção quanto à prática de atos causadores de prejuízos, como se dá com a indenização punitiva estadunidense. 221 SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. São Paulo: Método, 2001. p. 100. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 164. 223 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Código Civil comentado: negócio jurídico. Atos jurídicos lícitos. Atos ilícitos. São Paulo: Atlas, 2003. v. 2, p. 380. 222 110 Como dito, entretanto, apenas num tom mais restritivo de tratamento do tema é que se pode chegar a tal conclusão. Isso porque, com algum vacilo, a pesquisa da doutrina e da jurisprudência brasileiras aponta conclusão diversa da acima mencionada. Com razão, não é reduzida a doutrina civil nacional propondo que a indenização não tem como única finalidade a recomposição do dano material e a compensação pelo dano moral, com a possibilidade também de servir como instrumento de punição ao agente causador do prejuízo, da forma como atuam os punitive damages dos Estados Unidos. Ora, afinal, então, tem ou não a indenização por danos morais no Brasil a função punitiva ao agente causador do dano, atuando como instrumento de repressão e prevenção, como a pena criminal para os ilícitos considerados de repercussão pública? A questão ganhou seus contornos por meio daquilo que se denominou pena privada no direito europeu. Relata Giovanni Ettore Nanni que “na contramão da história, inspirados, entre outros elementos, nos punitive damages oriundos do common law, autores da Europa continental buscaram nos últimos vinte anos reavivar o antigo conceito da pena privada”.224 Mas, segundo entende, “apesar da opinião de alguns autores clássicos em defesa de tal ponto de vista, a pena privada não vingou como um elemento preponderante na fixação dos danos patrimoniais”225, mesmo ressalvando que “a questão continua a ser debatida”.226 Nesse sentido, afirma-se que a pena privada é uma alternativa intermediária à ideia de simples ressarcimento do dano e à pena pública, pois também tem a finalidade de punir e intimidar o ofensor, e inibir que torne a praticar determinada ilicitude. Assim, apesar de a pena privada se mostrar um instrumento útil e autônomo, é algo que não afasta a tipicidade do direito penal e tampouco o ressarcimento típico do direito civil, eis que se trata de meio de colaboração no alcance da justiça. Aponta-se que a recente retomada dos debates em torno da aplicação da pena privada deve-se à atual tendência de reduzir a pena pública (a "despenalização" do setor público). No entanto, alega-se ser estranho e contraditório 224 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 348. NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 348. 226 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 349. 225 111 defender-se, no mesmo momento, de um lado, a redução da pena como sanção do ato ilícito no setor público, e, de outro, propor exatamente o inverso, penalizando o setor privado. O interesse pelo tema da pena privada apresenta uma razão bastante profunda: deve-se à insatisfação que se verifica em torno da tutela dos direitos da pessoa nos dias atuais, em relação aos quais os mecanismos tradicionais de ressarcimento de danos mostram-se insuficientes. Contrário à aplicação da pena privada, Giovanni Ettore Nanni pondera que: A fixação da indenização derivada do dano extrapatrimonial deve acompanhar duas diretrizes, quais sejam, ressarcir o dano sofrido e punir o ofensor a fim de que não reincida na prática do ato danoso. Porém, assim procedendo, estar-se-ia concedendo uma indenização superior ao dano 227 efetivo, o que, em princípio, configuraria um enriquecimento sem causa. E conclui que “a pena privada não seria um critério coerente para subsidiar a fixação dos danos extrapatrimoniais”228, pois “violaria, dentre outros, o princípio da legalidade”229. Não há como não se reconhecer os jurídicos argumentos expendidos pelo doutrinador acima citado, sobretudo no que toca à ausência de disposição legislativa para aplicação da pena privada. Mas, de outro turno, respeitosamente, entende-se, hoje, não só pertinente, como também essencial, a fixação de penas privadas ou mesmo punitive damages – como queira – no bojo das indenizações por danos morais. Realmente, o que se verifica na atualidade, pela experiência forense, é a prolação de julgados, cada vez mais comuns em primeira instância, devidamente confirmados em segundo grau de jurisdição, nas instâncias especial (Superior Tribunal de Justiça) e extraordinária (Supremo Tribunal Federal), impondo indenizações que, camuflando a roupagem de compensação por danos morais, em verdade, têm como intuito inescondível a imposição de uma sanção civil ao agente ofensor, como na pena privada do direito europeu ou nos punitve damages americanos. Pode-se afirmar, assim, ser cada vez mais vigorosa a jurisprudência nacional no sentido da fixação reiterada de indenizações punitivas em valores que só fazem 227 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 351. NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 354. 229 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 354. 228 112 aumentar, calcada em posição doutrinária que tem em mira o princípio da irrestrita indenizabilidade da vítima. O fato é que, repita-se, seja justificada pelo princípio da irrestrita indenizabilidade à vítima, seja por qualquer outro elemento que se insira como fundamentação do decisório, como, por exemplo, o dolo ou culpa grave por parte do agente danoso, e até mesmo a situação financeira das partes, não há como se frear a tendência do Poder Judiciário brasileiro à fixação da indenização punitiva. Não há como se esperar, por exemplo, que as sanções administrativas incutam na postura das empresas o devido respeito ao consumidor, bastando uma leitura cotidiana dos jornais para se constatar que as agências reguladoras dos serviços de telefonia, transporte aéreo e terrestre, água, energia elétrica e tantos outros, não alcançam qualquer solução aos problemas enfrentados pelos consumidores com relação à péssima qualidade do serviço prestado. O Poder Público, de outro lado, nos serviços que centraliza, sequer oferece um hospital descente para a população, numa desídia vergonhosa com o serviço mais essencial para a pessoa humana, o de saúde. Some-se a isso a tendência, também de duvidosa eficácia, de descriminalização de condutas, galgando o Direito Penal à condição de última ratio, e se tem o cidadão colocado numa situação de absoluta vulnerabilidade em sua proteção administrativa e criminal, restando-lhe, portando, buscar a observância de seus direitos por meio da fixação de indenização por danos morais, neles incluídos a pena privada ou mesmo os punitive damages, visando a não reincidência da prestação defeituosa de serviços essenciais à sociedade ou mesmo a não reiteração de condutas dolosas ou movidas por culpa grave em situações as mais variadas. Pensa-se, dessa sorte, que a pena privada pode ser útil para a fixação do valor do ressarcimento por danos morais, devendo observar alguns critérios sempre focados na finalidade retributiva e preventiva dessa sanção. Assim, a pena privada judicial seria aquela imposta pelo juiz sem que haja necessidade de sua previsão negocial ou legislativa, calcada em princípios como o da irrestrita indenizabilidade da vítima ou da dignidade da pessoa humana. Verifica-se, portanto, que, no momento em que o magistrado brasileiro fixa a indenização por danos morais levando em consideração aspectos como, por exemplo, o dolo do agente, está, ainda que se valendo de outras palavras, aplicando a pena privada do direito europeu ou os punitive damages americanos. 113 Nesse cenário, o que se tem hoje é a adoção da teoria dos punitive damages ou pena privada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, consoante recentíssimo julgado de maio do ano de 2012, por votação unânime da 4ª Turma: RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. AGRESSÃO FÍSICA AO CONDUTOR DO VEÍCULO QUE COLIDIU COM O DOS RÉUS. REPARAÇÃO DOS DANOS MORAIS. ELEVAÇÃO. ATO DOLOSO. CARÁTER PUNITIVO-PEDAGÓGICO E COMPENSATÓRIO. RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Na fixação do valor da reparação do dano moral por ato doloso, atentando-se para o princípio da razoabilidade e para os critérios da proporcionalidade, deve-se levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômico-financeiras do ofensor e do ofendido, sem se perder de vista o grau de reprovabilidade da conduta do causador do dano no meio social e a gravidade do ato ilícito. 2. Sendo a conduta dolosa do agente dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, mediante emprego de reprovável violência física, o arbitramento da reparação por dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação, sem perder de vista a vedação do enriquecimento sem causa da vítima. 3. Na hipótese dos autos, os réus espancaram o autor da ação indenizatória, motorista do carro que colidira com a traseira do veículo que ocupavam. Essa reprovável atitude não se justifica pela simples culpa do causador do acidente de trânsito. Esse tipo de acidente é comum na vida diária, estando todos suscetíveis ao evento, o que demonstra, ainda mais, a reprovabilidade da atitude extrema, agressiva e perigosa dos réus de, por meio de força física desproporcional e excessiva, buscarem vingar a involuntária ofensa patrimonial sofrida. 4. Nesse contexto, o montante de R$ 13.000,00, fixado pela colenda Corte a quo, para os dois réus, mostra-se irrisório e incompatível com a gravidade dos fatos narrados e apurados pelas instâncias ordinárias, o que autoriza a intervenção deste Tribunal Superior para a revisão do valor arbitrado a título de danos morais. 5. Considerando o comportamento altamente reprovável dos ofensores, deve o valor de reparação do dano moral ser majorado para R$ 50.000,00, para cada um dos réus, com a devida incidência de correção monetária e juros moratórios. 6. Recurso especial provido. REsp 839923/MG; RECURSO ESPECIAL: 2006/0038486-2; Relator(a): Ministro RAUL ARAÚJO; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 15/05/2012; Data da Publicação/Fonte: DJe 21/05/2012. Veja-se que o julgado inteiro faz menção a aspectos que deixam isenta de qualquer tipo de dúvida a adoção de conteúdo punitivo da indenização por danos morais, que acabou majorada, exatamente em virtude do viés punitivo nela inserido, de R$ 13.000,00 fixados na instância ordinária, para R$ 50.000,00 imputados a cada um dos réus pelo ato de agressividade que tiveram no trânsito contra outro motorista. Com o máximo respeito, pensa-se que, por mais técnica que possa ser a tese contrária, os danos morais fixados hoje no Brasil carregam um caráter punitivo inescondível, sendo mais franco que se admita logo isso às claras, de tal sorte que se possa gerir as relações pessoais ciente desse fato. 114 10.4 Meros Transtornos e Inadimplemento Contratual Trata-se de duas hipóteses de não configuração de dano moral, sem que se possa falar em sua indenização, por consequência. Isso porque, segundo o doutrinador Sérgio Cavalieri Filho, o dano moral À luz da Constituição vigente, nada mais é do que agressão à dignidade. (...) Se dano moral é agressão a dignidade humana, não basta para configurá-lo qualquer contrariedade. (...) Nesse linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em 230 seu bem-estar. Assim, afirma, “mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, não são aptas a romper o equilíbrio psicológico do indivíduo”.231 Ademais, de acordo com Humberto Theodoro Júnior232, Viver em sociedade e sob o impacto constante de direitos e deveres, tanto jurídicos como éticos e sociais, provoca, sem dúvida, frequentes e inevitáveis conflitos e aborrecimentos, com evidentes reflexos psicológicos, que, em muitos casos, chegam mesmo a provocar abalos e danos de monta. Para, no entanto, chegar-se à configuração do dever de indenizar, não será suficiente ao ofendido demonstrar sua dor. Somente ocorrerá a responsabilidade civil se reunirem todos os seus elementos essenciais: dano, ilicitude e nexo causal. Se o incômodo é pequeno (irrelevância) e se, mesmo sendo grave, não corresponde a um comportamento indevido (licitude), obviamente não se manifestará o dever de indenizar (ausência da responsabilidade civil cogitada no art. 159 do Código Civil). Destarte, sem ofensa relevante a um dos direitos da personalidade, descabe a indenização por danos morais. O decidido no REsp 844.736/DF é emblemático nesse ponto, tratando-se de pleito indenitário fundado no recebimento de "spams", ocasião em que o Ministro Honildo Amaral de Mello Castro asseverou que: [...] Em verdade, não compreendo como o envio de SPAM possa ser considerado fundamento para justificar a ação de dano moral, se essa evolução tecnológica pode ser bloqueada, deletada ou simplesmente 230 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 80. 231 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 80. 232 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano Moral. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 8. 115 recusada, havendo, ainda, a hipótese de se solicitar que não mais sejam enviados. Acredito que seja, realmente, um incômodo para todos que recebam o indesejado SPAM. Contudo, não vejo como esse veículo de propaganda se constitua ilícito, por falta de previsão legal, além de não ser visto como dano se não contém ataques a honra ou a dignidade de quem o recebe, formalmente, portanto sem nexo causal entre a pretensão judicial de condenação de dano moral e o fato que a justificaria. Juntamente à hipótese supracitada, de ocorrência de meros dissabores cotidianos, podemos citar aquela outra situação de não cabimento de indenização moral jurisprudencialmente consagrada: a decorrente de mero descumprimento contratual, cristalizada nos REsps 844.736/DF, 628.854/ES, 653.819/MG, dentre outros. Registre-se que neste campo do descumprimento contratual outro não é o trilhar da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, negando-se a indenização por danos morais: Apelação 0207071-51.2009.8.26.0100 – Relator Paulo Hatanaka – 19ª Câmara de Direito Privado – data do julgamento 22/11/2011. Ementa: DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C.C. ANTECIPAÇÃO PARCIAL DE TUTELA - Por aplicação das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor, tornou-se abusiva as cobranças das tarifas das ligações telefônicas celulares em desacordo com a renegociação encetada pelas partes litigantes - Cumpria à Ré-Apelante ter feito provas de suas alegações da peça contestatória - Não demonstração de que os valores cobrados eram efetivamente devidos e regulares em conformidade com o acordado - Ocorrência de falta de adequada e clara informação dos serviços prestação ao consumidor - Tipificação de má prestação de serviços telefônicos - Artigo 14, "caput", CDC - Recursos não providos. RESPONSABILIDADE CIVIL INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS – DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL - SERVIÇO TELEFÔNICO - MERO DISSABOR - O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se dirige - A inobservância das cláusulas contratuais por uma das partes pode trazer aborrecimentos ao outro contratante, mas esse dissabor pode afetar qualquer cidadão em decorrência da complexidade da vida em sociedade - Inexistências de danos morais a serem ressarcidos - Recursos não providos. Insta esclarecer, todavia, que, excepcionalmente, os tribunais vêm reconhecendo a ocorrência de abalo moral fundada em descumprimento contratual, circunscrevendo o cabimento do pedido a hipóteses pontuais, como na injustificada negativa de cobertura de procedimento cirúrgico por parte da empresa de plano de saúde. 116 Nesse sentido, veja-se recente julgado do STJ de 2013: RECURSO ESPECIAL Nº 1.322.914 – PR, RELATORA MINISTRA NANCY ANDRIGHI. EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. RECUSA INDEVIDA À COBERTURA DE TRATAMENTO DE SAÚDE. DANO MORAL. FIXAÇÃO. 1. A recusa, pela operadora de plano de saúde, em autorizar tratamento a que esteja legal ou contratualmente obrigada, implica dano moral ao conveniado, na medida em que agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito daquele que necessita dos cuidados médicos. Precedentes. 2. A desnecessidade de revolvimento do acervo fáticoprobatório dos autos viabiliza a aplicação do direito à espécie, nos termos do art. 257 do RISTJ, com a fixação da indenização a título de danos morais que, a partir de uma média aproximada dos valores arbitrados em precedentes recentes, fica estabelecida em R$12.000,00, cuja atualização retroagirá à data lançada na sentença. 3. Recurso especial provido. Na mesma quadra o julgado abaixo do TJSP: Apelação 0027659-35.2010.8.26.0001 – Relator James Siano – 5ª Câmara de Direito Privado – data do julgamento 14/12/2011. Ementa: AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. Plano de Saúde. Autora menor impúbere, portadora de paralisia cerebral. Contrato de prestação de serviços médicos e hospitalares firmado em novembro de 2009 mencionando a pré-existência da patologia. Após sete meses da contratação, autora necessitou se submeter a cirurgia para obstar o agravamento do quadro clínico de subluxação do quadril e joelhos. Recusa da operadora em custear o tratamento sob a assertiva de que o prazo de carência seria de 24 meses. Necessidade de obtenção de liminar para realização de cirurgia de emergência. Sentença de procedência condenando a operadora a arcar com os custos da cirurgia e pagar indenização por danos morais no valor de R$ 10.200,00. Apelo da ré insistindo na legalidade da recusa em razão do conveniado se encontrar no período de carência e na inexistência de dano moral indenizável, por se tratar de hipótese de mero descumprimento contratual. Outrossim, insurgese contra o valor fixado a título de indenização. A autora teve recusada cobertura de internação e cirurgia em caráter de emergência. Cirurgia que só foi realizada após obtenção de liminar. Situação de urgência e emergência caracterizada. Nas situações de emergência aplicável seria o prazo de 24h, estipulado no capítulo XVII, 17.1, do contrato e Resolução 13 do CONSU. O dano moral prescinde de comprovação, pois presumível diante da gravidade da doença da autora e da urgência do tratamento, sendo inegável o agravamento do quadro clínico e da situação psicológica da autora, até obter a liberação judicial. Valor da indenização por danos morais fixada em R$ 10.200,00 é exagerada, comportando redução para R$ 5.000,00, por ser mais consentânea à realidade dos autos. Sentença de procedência mantida, exceto no que tange ao valor da indenização. Recurso parcialmente provido. 117 10.5 Uma Vexata Questio: Hipótese Jurisprudencial de Cabimento (ou não) da Indenização por Danos Morais – abandono afetivo Passemos à análise de uma hipótese jurisprudencial concreta na qual ainda não se decidiu de forma definitiva a respeito do cabimento ou não da reparação civil por abalo moral – o abandono afetivo. Repise-se que a previsão legal inexistente atinente à matéria é, novamente, o leitmotiv desse subitem, já que, do ponto de vista normativo, não há qualquer hipótese legal casuística de cabimento ou exclusão da indenização decorrente de lesão a direitos da personalidade. Assim, coube inteiramente aos precedentes judiciais o tratamento da matéria, fixando os casos em que o pleito indenitário é devido. Nesse desiderato, o Superior Tribunal de Justiça editou as súmulas 370, 385 e 388, consagrando como causadoras de abalo moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado, a anotação irregular em cadastros de maus pagadores e a devolução indevida de cheque. Mas, ao lado destas hipóteses objetivas e já consagradas como passíveis de indenização por danos morais, há outras que geram extramada dúvida sobre sua indenizabilidade, como no caso em exame do abandono afetivo. Com efeito, em princípio, o STJ reconheceu a inocorrência de abalo moral fulcrado na propositura de ação de investigação de paternidade, com alegação de falta de afeto, abandono moral e rejeição dos filhos, ao fundamento de que esses atos não são ilícitos, de modo a inviabilizar o pleito indenitário: RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. REsp nº 757.411/MG, Rel. Ministro Fernando Gonçalves. E, mesmo posteriormente, referida corte ratificou este entendimento, através de uma de suas turmas: CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO. DANOS MORAIS REJEITADOS. ATO ILÍCITO NÃO CONFIGURADO. I. Firmou o Superior Tribunal de Justiça que "A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária" (Resp n. 757.411/MG, 118 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 29.11.2005). II. Recurso especial não conhecido. REsp 514350 / SPT4 - QUARTA TURMA28/04/2009Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR. Ocorre que, recentemente, referida corte, através de uma de suas turmas componentes da seção de direito privado, acabou por franquear a reparação por abalo moral em caso de abandono afetivo, consoante julgado abaixo ementado: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. Processo: REsp 1159242 / SP; RECURSO ESPECIAL 2009/0193701-9; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 24/04/2012; Data da Publicação/Fonte: DJe 10/05/2012 Trata-se, esta, então, de questão emblemática quanto à falta de sistematização e uniformidade no que respeita aos danos morais, se traduzindo em acesa divergência havida dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça quanto à possibilidade de indenização pedida em virtude do abandono do filho por um dos genitores, normalmente o pai. Repita-se, em virtude da perplexidade que isso poderia gerar numa pessoa não letrada na ciência jurídica. Das duas Turmas competentes pelo julgamento das causas relativas ao Direito Privado, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, desde o ano de 2005, tem entendimento consolidado de que “a indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, 119 incapaz de reparação pecuniária” (REsp nº 757.411/MG, Rel. Ministro Fernando Gonçalves). Ocorre que, numa polêmica decisão de abril de 2012, tal orientação foi completamente afastada, também por unanimidade, pela 3ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça, impondo-se indenização de R$200.000,00 a um pai que se reconheceu ter abandonado sua filha durante toda a infância e juventude, obrigando-a ao ajuizamento de ação de investigação de paternidade, fundamentando-se que “amar é faculdade, cuidar é dever”, e que “não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no direito de família” (REsp nº 1.159.242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi). Em outras palavras, o filho abandonado que tiver a sua ação indenizatória apreciada em grau de recurso por uma das Turmas do Superior Tribunal de Justiça de Direito Privado – a 3ª Turma – será compensado pelos danos morais que lhe foram ocasionados, enquanto se idêntica ação chegar à Corte Superior por meio do respectivo recurso e aportar na outra Turma de Direito Privado – a 4ª Turma – o pai que abandonou sua prole não se verá obrigado ao pagamento da reparação pecuniária. Impõe-se, nesse quadro, a reunião das duas Turmas competentes para a elucidação definitiva da questão, de forma a que toda a sociedade e as instâncias inferiores do Poder Judiciário tomem conhecimento da orientação a ser seguida, se o caso de admissão da vinculação ao julgado. Já o Tribunal de Justiça de São Paulo tem posicionamento firme acerca do não reconhecimento de indenização por danos morais nestes casos: Apelação 9216109-79.2005.8.26.0000, Relator(a): Francisco Loureiro, Comarca: Ribeirão Preto, Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 04/06/2009, Data de registro: 26/06/2009, Ementa: Indenização - Dano moral - Abandono afetivo - Possibilidade, em tese, desde bem caracterizada violação aos deveres extrapatrimoniais que integram o poder familiar, causando o comportamento antijurídico traumas expressivos ou sofrimento intenso ao filho - Prova dos autos que apontou para distanciamento de ambas as partes, diante da nova situação criada com a separação dos pais - Filhos que foram viver em outro Estado da Federação, dificultando os contatos recíprocos - Ação indenizatória somente ajuizada após citação em ação revisional de alimentos proposta pelo pai Filha universitária e recém-formada em direito - Filho estudante de medicina - Ausência de prova de que a violação dos deveres inerentes ao poder familiar tenham provocado sofrimento intenso ou traumas severos na filha Inexistência de deliberada intenção de abandonar os filhos - Precedentes jurisprudenciais - Ação improcedente - Apelação da autora não provida. 120 Apelação 0086836-40.2004.8.26.0000, Relator(a): Viviani Nicolau, Comarca: São Paulo, Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 06/09/2011, Data de registro: 09/09/2011, Ementa: APELAÇÃO INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Danos imputados ao reconhecimento tardio da paternidade – Improcedência. Apelo do autor. Inconsistência. Improcedência ratificada nos moldes do artigo 252, do Regimento Interno deste Tribunal - Danos materiais e morais não caracterizados - Ausência de fundamento jurídico para obrigar o apelado a indenizar a apelante. Sentença mantida. Negado provimento ao recurso. Apelação 9164226-59.2006.8.26.0000, Relator(a): J. L. Mônaco da Silva, Comarca: São José do Rio Preto, Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 28/09/2011, Data de registro: 29/09/2011, Ementa: PRESCRIÇÃO - Desacolhimento - Fixação do termo inicial para o exercício do direito de ação - Dano decorrente de omissão - Situação que se prolonga no tempo - Preliminar de mérito rejeitada. INDENIZAÇÂO Danos morais - Abandono moral - Filha rejeitada pelo pai - Abalos psicológicos - Improcedência da demanda - Inconformismo Inadmissibilidade - Atos praticados pelo réu na ação de investigação de paternidade que não ensejam reparação pecuniária - Exercício regular de direito - Sentença mantida - Recurso desprovido. Preliminar rejeitada e recurso desprovido. Apelação 0120671-14.2007.8.26.0000, Relator(a): Maia da Cunha, Comarca: Ituverava, Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado, Data do julgamento: 21/05/2009, Data de registro: 03/06/2009, Ementa: Dano moral por abandono afetivo. Teoria de responsabilidade civil que se afasta do fato concreto de que não há obrigação legal de o pai amar o filho, de onde advém o carinho e o afeto naturais. Inexistência de ato ilícito porque não se pode obrigar a amar ou manter relacionamento afetivo. Jurisprudência do STJ. Hipótese em que se trata de filho cuja paternidade só foi reconhecida judicialmente e na qual falta o amor natural que se tem normalmente em relação aos filhos esperados e amados desde a concepção. Dano psíquico que, quando existe, não acarreta indenização de quem poderia e não deu afeto e amor. Deficiência física no desenvolvimento das orelhas que não foi a causa da falta de relacionamento do pai com o filho. Ação corretamente julgada improcedente. Recurso improvido por maioria de votos. Apelação 9109865-58.2007.8.26.0000, Relator(a): Marco César Müller Valente, Comarca: Itatiba, Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Privado A Data do julgamento: 06/11/2007, Data de registro: 13/11/2007, Ementa: Dano moral - Ação indenizatória por dano moral, proposta por filho ao pai, reconhecido o vínculo genético em ação de investigação de paternidade, buscando indenizar-se peia falta de afeto, e suas decorrências no piano social e psicológico - Improcedência decretada em primeiro grau - Apelo do autor improvido - Os desdobramentos morais dos vínculos familiares devem estar fora da ingerência burocrática estatal, inclusive a judiciária, pena de desnaturamento, tratando-se o que repousa em plano superior como assunto para ser resolvido por terceiros, alheios à relação personalíssima e inclusive emocional. 10.6 A Atual Tramitação Legislativa do “Estatuto do Dano Moral” Encerrando este capítulo, tem oportunidade o exame daquele que se pode denominar o futuro e eventual “Estatuto do Dano Moral”, que, uma vez aprovado, 121 será resultado da promulgação do atual Projeto de Lei nº 523/11, em trâmite na Câmara dos Deputados, já contando com a anuência do Relator na Comissão de Constituição e Justiça, acrescido de uma emenda comum e uma emenda substitutiva. Para melhor apreciação daquele que pode vir a ser um importantíssimo diploma legislativo no quadro da situação das indenizações por danos morais no Brasil, transcreve-se o texto original do projeto de lei de autoria do Eminente Deputado Walter Tosta, do Partido da Mobilização Nacional (PMN), de Minas Gerais: Projeto de Lei n. 523, de 2011 - Dispõe sobre o dano moral e dá outras providências. Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre o dano moral e dá outras providências. Art. 2º. Dano moral é todo àquele em que haja irreparável mácula à honra subjetiva de pessoa natural ou jurídica. Art. 3º. São hipóteses suscetíveis à indenização por dano moral: I – a inscrição indevida em cadastros de inadimplentes; II – a cobrança indevida de valores; III – a contratação em relação de consumo, sem a anuência formal expressa do consumidor; IV – a realização de procedimento de revista em consumidor; V – o fornecimento ou vendagem de passagem para veículo de transporte coletivo cujas vagas estejam esgotadas. VI – o fornecimento de produto fora das especificações técnicas ou adequadas às condições de consumo; VII – o fornecimento de produto alimentício contaminado, fora do prazo de validade ou em condição diversa às estipuladas pelas normas sanitárias; VIII – a disposição de cláusula leonina ou abusiva em instrumento de contrato; IX – a realização de cobrança de débito, por qualquer meio, em local de trabalho; X – o assédio moral no ambiente de trabalho; XI – a exposição vexatória no ambiente de trabalho; XII – o descumprimento das normas técnicas da medicina do trabalho; XIII – o erro médico que cause dano à vida ou à saúde do paciente; XIV – a exposição da vida ou da saúde de outrem a risco; XV – a exposição de dados pessoais, sem a anuência formal da pessoa exposta; XVI – a veiculação por meio de comunicação em massa de notícia inverídica; XVII – a comprovada exposição pública de caso extraconjugal; XVIII – os casos de dano decorrente da violação do dever de cuidado; XIX – o abuso no exercício do poder diretivo; XX – a interrupção injustificada do fornecimento de serviço essencial; XXI – a demonstração pública de discriminação racial, política, religiosa, de gênero ou qualquer outro atentado discriminatório; XXII – a exposição vexatória ou não consentida da imagem pessoal; 122 XXIII – negar a alguém direito expresso em lei; XXIV – o ato ilícito ainda que não gere dano específico; Art. 4º. Para o arbitramento da indenização serão levados em consideração o potencial econômico da vítima e do autor do dano, sendo a média aritmética obtida entre o potencial econômico comprovado das partes envolvidas o parâmetro final para arbitramento da indenização quando o requerente for a parte com menor potencial econômico. Parágrafo único. Quando o requerente for a parte com maior potencial econômico da relação processual o parâmetro final será o potencial econômico da parte hipossuficiente. Art. 5º O potencial econômico das partes deverá ser documentalmente comprovado. § 1º. O potencial econômico da parte requerente deverá ser comprovado como requisito objetivo do pleito. § 2º. O potencial econômico da parte requerida deverá ser comprovado em sede de contestação sob pena de ser acolhido aquele porventura ventilado pelo requerente ou presumido pelo Juízo. Art. 6º. A indenização será fixada entre 10 e 500 salários mínimos, levando-se em consideração os parâmetros dispostos no artigo 4º desta Lei. Art. 7º. Nas ações coletivas ou naquelas com efeito erga omnes não há limite máximo para arbitramento de valor pecuniário apto a reparar o dano indenizável, podendo ser requerido aquele que a parte entender de direito ou arbitrado aquele julgado adequado. A seguir, transcreve-se a modificação do projeto original, consubstanciado no texto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça pelo Relator o Eminente Deputado Paes Landim, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) do Piauí: Substitutivo ao Projeto de Lei n. 523/11 - Dispõe sobre o dano moral e sua reparação. Art. 1° - Constitui dano moral a lesão ao patrimônio moral da pessoa natural, da pessoa jurídica e dos entes políticos, ainda que não atinja o seu conceito na coletividade. § 1° - Como pressupostos para a caracterização da obrigação de indenizar, deverá ser comprovada a ação ou omissão do agente, a existência de culpa, a ocorrência de nexo de causalidade entre o fato e o evento danoso e a efetiva ocorrência de prejuízo. § 2° - A ocorrência de caso fortuito ou de força maior constituem fatos excludentes de responsabilidade. Art. 2º - São bens juridicamente tutelados por esta lei aqueles inerentes à pessoa física: o nome, a honra, a imagem, a intimidade. Art. 3º - São bens juridicamente tutelados por esta lei aqueles inerentes à pessoa jurídica e aos entes políticos: a imagem, o nome, a respeitabilidade. Art. 4° - É considerado responsável pela reparação do dano moral aquele que, por ação ou omissão, causar lesão ao patrimônio moral de outrem. Parágrafo único – Todo aquele que, de alguma forma, tenha colaborado para a ocorrência do dano, também será responsável pela sua reparação, na proporção de sua ação ou omissão. Art. 5º - A indenização por danos morais pode ser pedida cumulativamente com os danos materiais decorrentes do mesmo ato lesivo. § 1º - Se houver cumulação de pedidos de indenização, o juiz, ao exarar a sentença, discriminará os valores das indenizações a título de danos patrimoniais e de danos morais. § 2º - A composição das perdas e danos, assim compreendidos os lucros cessantes e os danos emergentes, não se prestarão como parâmetro para a fixação do valor de indenização dos danos morais. Art. 6° - A situação de irregularidade do agente ou preposto da Administração não a isenta da responsabilidade objetiva de indenizar o dano moral, ressalvado o direito de regresso. 123 Art. 7° - Ao apreciar o pedido, o juiz considerará o teor do bem jurídico tutelado, os reflexos pessoais e sociais da ação ou omissão, a possibilidade de superação física ou psicológica, assim como a extensão e duração dos efeitos da ofensa. § 1º - Se julgar procedente o pedido, o juiz fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes níveis: I - ofensa de natureza leve: até dez mil reais; II - ofensa de natureza média: até quarenta mil reais; III - ofensa de natureza grave: até cem mil reais; § 2º - Na fixação do valor da indenização, o juiz levará em conta, ainda, a situação social, política, econômica e creditícia das pessoas envolvidas, as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral, a intensidade do sofrimento ou humilhação, o grau de dolo ou culpa, a existência de retratação espontânea, o esforço efetivo para minimizar a ofensa ou lesão e o perdão, tácito ou expresso. § 3º - A capacidade financeira do causador do dano, por si só, não autoriza a fixação da indenização em valor que propicie o enriquecimento sem causa, ou desproporcional, da vítima ou de terceiro interessado. Art. 8° - Prescreve em seis meses o prazo para o ajuizamento de ação indenizatória por danos morais, a contar da data do conhecimento do ato ou omissão lesivos ao patrimônio moral. Pois bem, transcritos o projeto original e seu substitutivo, impende agora que se promova um cotejo entre os dois, na medida em que contêm uma diferença marcante entre si. E, infelizmente, a diferença que se estabeleceu entre os dois – entre o projeto original e seu substitutivo – implicou numa piora sensível daquilo que já não se tratava de um satisfatório trabalho técnico a respeito do tema que se pretende legislar. Com efeito, afora a irrelevante mudança do nome de uma ementa para outra, o ponto fulcral que se tocou quando do trâmite do projeto, perante a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, se referiu ao conteúdo do artigo 3º do projeto original, que deu lugar ao § 1º do artigo 7º do seu substitutivo. O projeto original, ainda que de forma muito deficitária, apontava objetivamente algumas hipóteses passíveis de fixação de indenização por danos morais, sendo a primeira delas uma das situações mais corriqueiras das lides forenses, qual seja, a inscrição indevida em cadastros de inadimplentes. O substitutivo eliminou a delimitação de hipóteses concretas e abriu três cláusulas genéricas permissivas da indenização por danos morais, nos casos de ocorrência de ofensa de natureza leve, média e grave, cujos conceitos ficam a cargo do juiz. Vê-se, nesse passo, a clara orientação legislativa de passagem de uma orientação calcada no sistema do civil law para o common law, já que o projeto original, que impunha o dever indenizatório por danos morais em hipóteses legais concretas, foi superado pelo seu substitutivo, com a entrega ao magistrado quanto ao exame das situações passíveis de reparação por prejuízo extrapatrimonial. 124 Não há, pensa-se, espaço para críticas nem quanto ao projeto original nem quanto ao seu substitutivo, já que cada um possui suas virtudes pelo sistema que adota. Realmente, o estabelecimento de hipóteses concretas, segundo o projeto original, seguindo o caminho do civil law, traz como benefício o fato de pontuar algumas situações em que não se deixa ao alvedrio de ninguém – senão da lei – dizer se é ou não cabível a indenização por danos morais. De outro lado, por mais óbvio que isso possa parecer, necessário que se afirme que o projeto original não teria condições de estabelecer todas as infindáveis hipóteses de compensação por danos morais, de sorte que o seu substitutivo tem como ponto favorável a entrega desta aferição ao crivo judicial, que, sensível ao caso concreto, terá condições de decidir com maior grau de justiça. E é por isso que, nesse particular, não se pode estabelecer críticas nem quanto ao projeto original nem quanto ao seu substitutivo; mas, sim, deve-se promover uma crítica – que se espera seja construtiva – quanto à pretensão de prevalência ou superação total de um ou de outro. Veja-se que, nesse momento, o que se propugna, nada mais é do que a adoção, num determinado e específico diploma legislativo, dos caracteres benéficos de ambos os sistemas jurídicos examinados ao longo deste estudo – o civil law e o common law. Isso é perfeitamente possível e necessário. Hipóteses, por exemplo, de morte de parentes próximos e de cônjuge, podem, perfeitamente, por se tratarem de fatos objetivos, constarem de uma lista de casos passíveis de indenização por danos morais, além de contarem com fixação predeterminada de valores indenizatórios, permitindo-se uma essencial coesão das decisões judiciais nestes casos, de forma que não se permita mais que um filho que perdeu um de seus pais consiga 50 salários mínimos como reparação por danos morais, enquanto outro seja compensado com 500 mil reais por ter sido vítima da mesma infelicidade. Não se alegue que se trata isso de tarifação inconstitucional ante o princípio da indenização integral da vítima de atos ilícitos. Trata-se, isso sim, de se delimitar, por meio de trabalho legislativo legítimo, o valor que se entende necessário e suficiente para a compensação devida por lesão a direito da personalidade, que visa, ademais, a garantia da preservação de interesses constitucionais de grandeza também muitíssimo relevantes, como o princípio da igualdade. 125 Isso mesmo se tendo em conta a advertência de Alberto Gosson Jorge Junior de que “não tem caído nas boas graças dos Tribunais a limitação tarifada”.233 Mas, pensando-se naquele que poderia ser um “Estatuto do Dano Moral” mais próximo da melhor técnica legislativa possível, ao lado de tais hipóteses concretas de indenização, que seriam estabelecidas com fulcro na consolidação das questões indenitárias promovida pelo Superior Tribunal de Justiça e na mais cristalizada jurisprudência dos Tribunais Estaduais, abrir-se-ia, subsidiariamente, uma cláusula geral de exame judicial de possíveis outras situações passíveis de compensação por danos morais, de sorte que novas ocorrências não ficariam excluídas do crivo do magistrado. Respeitosamente, esta é a ideia que, resumidamente, se entende como a mais adequada a promover uma melhora no texto do Projeto de Lei nº 523/2011 da Câmara dos Deputados, que dispõe sobre o dano moral e sua reparação, segundo sua ementa. Necessária, por último, uma ressalva, já que, ao se mencionar acima que não merecem crítica o projeto original e seu substitutivo, deve ser dito que essa blindagem refere-se unicamente ao fato de adotarem, cada um deles, aspectos do civil law e do common law, criticando-se, isso sim, a pretensão de prevalência absoluta de um ou de outro. Isso porque o projeto de lei, tanto na sua forma originária quanto em seu substitutivo, merece e deve ser melhorado em uma série de outros pontos. A título unicamente de exemplo, o projeto original, ao relacionar as hipóteses suscetíveis de indenização, listava a “comprovada exposição pública de caso extraconjugal” (inciso XVII do artigo 3º), numa situação que, sendo desnecessária qualquer delonga, se trata de um pitoresco caso que não encontra mínima consolidação jurisprudencial como passível ou não de indenização, devendo ser excluído do rol. De outro lado, o substitutivo, em seu § 1º do artigo 1º, impõe como um dos pressupostos para a caracterização da obrigação de indenizar a “existência de culpa”, desconsiderando por completo toda a evolução da responsabilidade civil, desde os tempos da irreparabilidade até a imposição do dever indenizatório em virtude 233 do risco da atividade, passando pelas hipóteses concretas de JORGE JUNIOR, Alberto Gosson. Subsídios para uma interpretação das cláusulas gerais no novo Código Civil. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2003, p.147. 126 responsabilidade objetiva, que, hoje, ademais, representam a maioria esmagadora das situações envolvendo a temática atinente à reparação por danos morais, sendo prescindível, como sabido de todos, a comprovação da culpa. E, por uma última crítica, mais a título de sugestão neste caso, o prazo de prescrição estabelecido no substituto do projeto, que reduz os 5 anos do Código de Defesa do Consumidor e os 3 anos do Código Civil para apenas e tão somente 6 meses (artigo 8º), é, para dizer o menos, desarrazoado. Para se sustentar isso, basta um argumento de ordem pragmática: em inúmeros casos de atos ilícitos, num prazo exíguo de 6 meses, a vítima sequer teve a oportunidade de se recuperar minimamente do abalo sofrido, sem condições, ainda, de estabelecer conversações com o agente danoso a respeito do pagamento extrajudicial de eventual indenização ou contratar advogado, e porque não mencionar os casos em que sequer houve uma consolidação ainda que parcial das lesões verificadas. Enfim, entende-se o Projeto de Lei nº 523/2011 da Câmara dos Deputados como uma iniciativa salutar e fundamental ao manejo desta sensível ramificação do Direito Civil, que, devidamente adequada a uma melhor técnica legislativa, pode e deve contribuir de forma decisiva para a racionalização das lides judiciárias e a preservação da igualdade constitucional entre as vítimas de atos danosos. 127 11 PRECEDENTES DO STJ E DO TJSP SOBRE A LEGITIMIDADE ATIVA/PASSIVA E O VALOR DA INDENIZAÇÃO NO DANO MORAL Reza a Constituição Federal, em seu artigo 105, inciso III, alínea “c”, competir ao Superior Tribunal de Justiça [...] julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida [...] der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal. Da determinação constitucional supracitada emana a função precípua do Superior Tribunal de Justiça: salvaguardar a segurança jurídica relativa à aplicação da legislação federal. Decisões discrepantes sobre uma mesma questão federal devem ser extirpadas do ordenamento jurídico, sendo certo que os julgados do Colendo Superior Tribunal de Justiça que busquem tal desiderato – sobretudo quando pacificados em seu âmbito interno – devem, o quanto possível, se constituir em precedentes a serem observados.234 Interpretação contrária, possibilitando aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais a aplicação da lei de forma diversa à anterior decisão uniformizadora prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça, redundaria no esvaziamento de sua autoridade e de sua própria existência, bem como militaria em desfavor da coerência do Direito, da segurança jurídica, da previsibilidade e da igualdade. Em resumo, na lição de Luiz Guilherme Marinoni235 [...] se o pressuposto da divergência de interpretação é requisito de admissibilidade do julgamento do Superior Tribunal de Justiça, o único sentido da norma constitucional é o de que, após a decisão da Corte afirmando a interpretação cabível, todos os tribunais inferiores estão a ela vinculados. Com essa consideração, ao lado da coleta de dados do Superior Tribunal de Justiça, como se mencionou, é necessário que se promova também a pesquisa, quanto ao tema em exame, sobre a orientação da maior corte estadual de justiça da América Latina, em virtude da jurisprudência de excelência que ali se produz, tratando-se do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, que vem, há nada menos 234 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 492. 235 Ibid., p. 492-493. 128 que 137 anos, contribuindo decisivamente para a segura aplicação da legislação no que toca ao tema da responsabilidade civil. E é dessa forma que se passa a examinar as lides forenses decididas em última instância pelo STJ, assim como aquelas resolvidas no âmbito do TJSP, acerca de alguns pontos relativos à indenização por danos morais, que, em virtude da carência legislativa em torno da questão, geram consequentemente uma força mais que persuasiva às decisões destes tribunais, constituindo-se em verdadeiros precedentes a serem observados. 11.1 Sujeição Passiva 11.1.1 Pessoa jurídica e protesto liminarmente sustado Cite-se, por primeiro, a edição da Súmula nº 227 pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, embasada nos Recursos Especiais 129.428, 161.739 e 161.913, por meio da qual se afirmou taxativamente que “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. Dentre os fundamentos utilizados para a edição da súmula podemos citar ainda o REsp 134.993, relatado pelo então Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que em seu voto ponderou: Bem é verdade que a pessoa jurídica não sente, não sofre com a ofensa à sua honra subjetiva, ao seu caráter, atributos do direito de personalidade, inerente somente à pessoa física. Mas não se pode negar a possibilidade de ocorrer ofensa ao nome da empresa, à sua reputação, que, nas relações comerciais, alcançam acentuadas proporções em razão da influência que o conceito de empresa exerce. Referido acórdão restou assim ementado: CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. HONRA OBJETIVA. DOUTRINA. PRECEDENTES DO TRIBUNAL. RECURSO PROVIDO PARA AFASTAR A CARÊNCIA DA AÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA ‒ A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO, NO QUAL CONVERGIRAM JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA, VEIO A AFIRMAR, INCLUSIVE NESTA CORTE, ONDE O ENTENDIMENTO TEM SIDO UNÂNIME, QUE A PESSOA JURÍDICA PODE SER VÍTIMA TAMBEM DE DANOS MORAIS, CONSIDERADOS ESSES COMO VIOLADORES DA SUA HONRA OBJETIVA. REsp 134.993/MA; Relator(a): Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA; Órgão Julgador: T4 QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 03/02/1998; Data da Publicação/Fonte: DJ 16/03/1998, p. 144. 129 O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui farta jurisprudência calcada no entendimento sumular supracitado, consoante recente ementa que segue: Apelação nº 9209718-40.2007.8.26.0000; Relator: S. Oscar Feltrin; Comarca: Itararé; Órgão julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 14/12/2011. Ementa: As pessoas jurídicas são dotadas de conceito e de outros atributos imateriais economicamente valoráveis, ostentando imagem perante a sociedade, podendo assim sofrer dano moral passível de reparação pecuniária. Nesses termos, vimos que a pessoa jurídica pode sofrer abalo moral caso lesada em sua honra objetiva, entendida esta como seus atributos externos e imprescindíveis ao desenvolvimento da atividade empresarial. Ocorre que, mesmo nesse ponto específico, nova divergência jurisprudencial surgiu, na corriqueira hipótese em que uma pessoa jurídica tem seu nome empresarial levado a protesto decorrente de um título por ela não emitido ou quitado anteriormente. É óbvio que eventual protesto tirado sobre um título nessas circunstâncias geraria abalo à honra objetiva da empresa, já que seu nome empresarial restaria maculado, alijando-a da obtenção do crédito necessário à atividade exercida. Entretanto, proposta ação cautelar para sustação do protesto e obtido o provimento jurisdicional liminar que obsta o apontamento, pergunta-se: haveria abalo moral a ser indenizado mediante a propositura de ação principal, certo que o ato notarial não surtiu qualquer efeito? A questão é tormentosa, havendo dois precedentes distintos que restaram evidenciados no julgamento dos Recursos Especiais 254.073 e 752.672, cujas ementas seguem, respectivamente, abaixo: Pela possibilidade de indenização, o REsp 254.073/SP: CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. APONTAMENTO INDEVIDO DE TÍTULO A PROTESTO. PESSOA JURÍDICA. DANO MORAL. CABIMENTO. SÚMULA N. 227-STJ. PROVA DO PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. O apontamento de título para protesto, ainda que sustada a concretização do ato por força do ajuizamento de medidas cautelares pela autora, causa alguma repercussão externa e problemas administrativos internos, tais como oferecimento de bens em caução, geradores, ainda que em pequena expressão, de dano moral, que se permite, na hipótese, presumir em face de tais circunstâncias, gerando direito a ressarcimento que deve, de outro lado, ser fixado moderadamente, evitando-se enriquecimento sem causa da parte atingida pelo ato ilícito. II. “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral” Súmula n. 227-STJ. III. Recurso conhecido e provido. REsp 254.073/SP; Relator(a): Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR; Órgão Julgador: T4 - 130 QUARTA TURMA; Data do Julgamento: Publicação/Fonte: DJ 19/08/2002, p. 170. 27/06/2002; Data da Pela impossibilidade de indenização, o REsp 752.672/RS: RECURSO ESPECIAL. DANO MORAL. PESSOA JURÍDICA. NECESSIDADE DE PUBLICIDADE E REPERCUSSÃO. PROTESTO INDEVIDO. CAUTELAR DE SUSTAÇÃO QUE IMPEDIU O REGISTRO. INEXISTÊNCIA DE PUBLICIDADE. 1. A pessoa jurídica não pode ser ofendida subjetivamente. O chamado dano moral que se lhe pode afligir é a repercussão negativa sobre sua imagem. Em resumo: é o abalo de seu bom-nome. 2. Não há dano moral a ser indenizado quando o protesto indevido é evitado de forma eficaz, ainda que por força de medida judicial. REsp 752.672/RS; Relator(a): Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 16/10/2007; Data da Publicação/Fonte: DJ 29/10/2007, p. 219. E a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reflete a inexistência de uma única orientação judicial a ser seguida no trato da questão, havendo divergência jurisprudencial no trato da questão, conforme se verifica pelos julgados abaixo ementados, do ano de 2011: Pela possibilidade de indenização mesmo com o protesto liminarmente sustado: Apelação nº 0013387-56.2004.8.26.0224; Relator(a): Rebello Pinho; Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 05/12/2011. Ementa: Apontamento indevido de título a protesto constitui, por si só, fato ensejador de dano moral. Indenização fixada na quantia de R$ 15.000,00, com incidência de correção monetária a partir da data da prolação da r. sentença. Recurso desprovido. Apelação nº 9162935-92.2004.8.26.0000; Relator(a): Fernandes Lobo; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 09/06/2011. Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. Apresentação de duplicata por indicação para protesto, sustado por liminar concedida em medida cautelar. Lastro mercantil inexistente. Nulidade decretada. Conquanto sustado o protesto, o fato de ter sido a tanto apontado (e a publicidade daí decorrente) caracteriza dano moral in re ipsa, de inenizabilidade presumida. Quantum arbitrado, com proporcionalidade e moderação, em R$ 5.000,00, afora juros (da citação) e atualização monetária (da publicação do acórdão). Apelação provida. Pela impossibilidade de indenização pelo simples apontamento: Apelação nº 0005065-73.2009.8.26.0191; Relator(a): Souza Lopes; Comarca: Poá; Órgão julgador: 17ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 19/10/2011. Ementa: Cambial Duplicata. Declaratória cumulada com indenização. Endosso mandato. Banco que age dentro dos limites do mandato que lhe foi conferido. Ilegitimidade de parte passiva para figurar em ação indenizatória e declaratória de nulidade de título. Dano moral não configurado. Protesto não efetivado em razão da concessão de liminar na Medida Cautelar. Recurso da autora improvido. Honorários 131 advocatícios. Sucumbência recíproca. Fixação de rigor, nos moldes do art. 21 do CPC. Recurso da corré parcialmente provido para este fim. Apelação nº 9180831-80.2006.8.26.0000; Relator(a): Eduardo Sá Pinto Sandeville; Comarca: Leme; Órgão julgador: 28ª Câmara da Seção de Direito Privado; Data do julgamento: 26/07/2011. Ementa: Responsabilidade Civil – Dano moral - Inexistência - Mero apontamento para protesto que não chegou a ser lavrado - Ausência de repercussão externa - Recurso improvido. Assim, quanto à hipótese de protesto ilegítimo eficazmente sustado por tutela jurisdicional cautelar, não está evidente, por ora, qual seria o precedente judicial aplicável ao caso, permanecendo a dúvida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo. 11.1.2 Nascituro Outra difícil questão quanto à sujeição passiva do dano moral, enquanto matéria exclusivamente orientada por precedentes judiciais, é aquela relativa à possibilidade de indenização fixada em favor do nascituro. Afora as teorizações sobre o momento inaugural da personalidade civil, temse que o nascituro − entendido como o ser já concebido, mas ainda inserto no meio intrauterino − possui alguns direitos inerentes a um ser humano em formação embrionária. Nesse sentido, o artigo 2º do Código Civil: “A personalidade civil começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Mas quais seriam esses direitos? Coube à jurisprudência, então, fixá-los por meio de precedentes judiciais, como, por exemplo, no exame do REsp 1.120.676/SC, relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino do STJ, que conferiu indenização securitária de DPVAT aos ascendentes do nascituro que foi considerado como “segurado falecido”, constando no voto condutor que: O Código Civil Brasileiro, no art. 2º, concebe como necessário à aquisição da personalidade civil, o nascimento com vida (teoria natalista), resguardando, todavia, desde a concepção, os direitos do nascituro (teoria concepcionista). Se é certo que a lei brasileira previu como aptos a adquirirem direitos e contraírem obrigações, os nascidos com vida, dotandoos de personalidade jurídica, não excluiu do seu alcance aqueles que, ainda não nascidos, remanescem no ventre materno, reconhecendo-lhes a aptidão de ser sujeitos de “direitos”. Nessa toada, o legislador resguardou aos nascituros: direitos relacionados com a garantia do seu por vir (v.g. direito aos alimentos gravídicos, penalização do aborto, direito à assistência pré-natal), com o resguardo do seu patrimônio (v.g. doação; posse em 132 nome do nascituro; percepção de herança ou legado), com a preservação da sua dignidade enquanto ser humano em formação (direito ao nome; ou, em infeliz situação como a presente, aos cerimoniais fúnebres), desse rol não havendo excluir-se a indenização securitária a ser alcançada aos ascendentes do segurado falecido em face do seu passamento. Assim, temos que o nascituro titulariza todos os direitos imprescindíveis para que venha, em condições dignas, a nascer vivo. Logo, tendo o nascituro alguns dos direitos da personalidade, é certo que poderia, em tese, sofrer abalo moral passível de reparação. Inobstante essa conclusão, o Superior Tribunal de Justiça expressa divergência acerca da diminuição ou não do quantum indenitário no caso em que o nascituro efetivamente não chegou a conhecer seu genitor, em cotejo com os valores a serem percebidos pelos demais irmãos, no caso de morte de um dos pais. Veja-se a referida divergência pelas ementas dos julgados abaixo: RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. MORTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. FILHO NASCITURO. FIXAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. DIES A QUO. CORREÇÃO MONETÁRIA. DATA DA FIXAÇÃO PELO JUIZ. JUROS DE MORA. DATA DO EVENTO DANOSO. PROCESSO CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTO NA FASE RECURSAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO CONFIGURADA A MÁFÉ DA PARTE E OPORTUNIZADO O CONTRADITÓRIO. ANULAÇÃO DO PROCESSO. INEXISTÊNCIA DE DANO. DESNECESSIDADE. Impossível admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser quantificado com precisão. Embora sejam muitos os fatores a considerar para a fixação da satisfação compensatória por danos morais, é principalmente com base na gravidade da lesão que o juiz fixa o valor da reparação. É devida correção monetária sobre o valor da indenização por dano moral fixado a partir da data do arbitramento. Precedentes. Os juros moratórios, em se tratando de acidente de trabalho, estão sujeitos ao regime da responsabilidade extracontratual, aplicando-se, portanto, a Súmula nº 54 da Corte, contabilizando-os a partir da data do evento danoso. Precedentes. É possível a apresentação de provas documentais na apelação, desde que não fique configurada a má-fé da parte e seja observado o contraditório. Precedentes. A sistemática do processo civil é regida pelo princípio da instrumentalidade das formas, devendo ser reputados válidos os atos que cumpram a sua finalidade essencial, sem que acarretem prejuízos aos litigantes. Recurso especial dos autores parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. Recurso especial da ré não conhecido. REsp 931.556/RS; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 17/06/2008; Data da Publicação/Fonte: DJe 05/08/2008. DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. MORTE. ATROPELAMENTO. COMPOSIÇÃO FÉRREA. AÇÃO AJUIZADA 23 ANOS APÓS O EVENTO. PRESCRIÇÃO INEXISTENTE. INFLUÊNCIA NA QUANTIFICAÇÃO DO QUANTUM. PRECEDENTES DA TURMA. NASCITURO. DIREITO AOS DANOS MORAIS. DOUTRINA. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO NESTA INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I - 133 Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum. II - O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum. III - Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional. REsp 399.028/SP; Relator(a): Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 26/02/2002; Data da Publicação/Fonte: DJ 15/04/2002, p. 232. Na jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há maciço entendimento de que o nascituro pode sofrer abalo moral indenizável, havendo alguma divergência quanto ao valor devido em face de seus irmãos já nascidos no caso de morte de um dos pais. Confira-se: Apelação nº 0002316-60.2010.8.26.0252; Relator(a): Arantes Theodoro; Comarca: Ipauçu; Órgão julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 24/11/2011. Ementa: Acidente automobilístico. Indenização por morte. Ação ajuizada 18 anos após o fato, por filho que na ocasião estava sendo gestado. Particularidade que não desautorizava o reconhecimento de dano moral, apenas influía na determinação de seu valor. Sentença não combatida no tocante aos danos materiais. Recurso parcialmente provido. Apelação nº 9178877-33.2005.8.26.0000; Relator(a): Norival Oliva; Comarca: Caçapava; Órgão julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 06/04/2010. Ementa: Não exclui o direito indenizatório do filho pela morte do pai, causada por terceiros, prévia ação de indenização promovida pela mãe e esposa do falecido. 11.1.3 Dano moral ricochete Temos por igualmente tormentosa quanto à sujeição passiva do dano moral a hipótese denominada pela jurisprudência como dano moral ricochete e vislumbrada, v.g., na legitimidade ou não dos pais de uma vítima sobrevivente a um infortúnio em pleitear compensação por danos morais, principalmente quando se considera, hipoteticamente, que a própria desafortunada teve reconhecido o direito de receber importância a título de compensação por danos morais. Não obstante a indenização por dano moral seja devida, em regra, apenas ao próprio ofendido, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm firmado sólida base na defesa da possibilidade de os parentes do ofendido, a esses jungidos afetivamente, postularem com ele uma compensação pelo prejuízo experimentado, conquanto sejam atingidos apenas de forma indireta pelo ato lesivo. Neste ponto, a Ministra Nancy Andrighi, ao relatar o REsp 1.208.949/MG, asseverou que: 134 Trata-se de hipótese de danos morais reflexos, ou seja, embora o ato tenha sido praticado diretamente contra determinada pessoa, seus efeitos acabam por atingir, indiretamente, a integridade moral de terceiros. É o chamado dano moral por ricochete ou préjudice d’affection, cuja reparação constitui direito personalíssimo e autônomo [...]. No direito comparado, há de se destacar que tanto a doutrina francesa quanto a alemã admitem a existência de danos reflexos (par ricochet ou Reflexschaden), ou seja, ofensa a bem jurídico de terceiros diretamente envolvidos com o sofrimento experimentado pelo principal prejudicado em razão do evento danoso. E, ao finalizar seu voto, a Ministra pontuou: Assim, são perfeitamente plausíveis situações nas quais o dano moral sofrido pela vítima principal do ato lesivo atinjam, por via reflexa, terceiros como seus familiares diretos, por lhes provocarem sentimentos de dor, impotência e instabilidade emocional. É o que se verifica na hipótese [...] em que postulam compensação por danos morais, em conjunto com a vítima direta, seus pais, perseguindo ressarcimento por seu próprio sofrimento, decorrente da repercussão do ato lesivo na sua esfera pessoal, eis que experimentaram, indubitavelmente, os efeitos lesivos de forma indireta ou reflexa. Trilhando o mesmo caminho, o Ministro Sidnei Beneti, ao relatar o REsp 876.448/RJ, asseverou: Deve-se reconhecer, contudo, que, em alguns casos, não somente o prejudicado direto padece, mas outras pessoas a ele estreitamente ligadas são igualmente atingidas, tornando-se vítimas indiretas do ato lesivo. Assim, experimentam os danos de forma reflexa, pelo convívio diuturno com os resultados do dano padecido pela vítima imediata, por estarem a ela ligadas por laços afetivos e circunstâncias de grande proximidade, aptas a também causar-lhes o intenso sofrimento pessoal. [...] O dano moral por ricochete ou préjudice d’affection constitui direito personalíssimo dos referidos autores, e autônomo, conferindo-lhes direito à indenização por dano reflexo, por terem sido atingidos, também, em sua esfera de sofrimento. No caso, têm direito os autores à indenização decorrente da incapacidade e da gravidade dos danos causados à integridade física da vítima, eis que experimentaram, indubitavelmente, os efeitos lesivos de forma indireta ou reflexa. No trato doutrinário da matéria, segundo Caio Mário da Silva Pereira 236: [...] Todas essas situações podem ser enfeixadas numa fórmula global ou num princípio genérico: têm legitimidade ativa para a ação indenizatória as pessoas prejudicadas pelo ato danoso. Não basta, entretanto, como no lugar próprio já desenvolvi (Capítulo IV), um dano hipotético. Somente enseja a titularidade à pretensão indenizatória exigível (Anspruch), quem diretamente sofra o prejuízo. Esta regra comporta, entretanto, exceções, das quais a mais contundente é a teoria do dano em ricochete (Capítulo IV). Pessoa que não pode evidenciar dano direto, pode, contudo, argüir que o fato danoso nela reflete, e, assim, adquire legitimidade para a ação, com exclusividade ou cumulativamente com o prejudicado direto, ou em condições de assistente litisconsorcial. Se se reconhece a existência do dano em ricochete, não se pode recusar o direito de ação, esclarecendo 236 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 330. 135 desde logo que o direito da vítima mediata (reparação do dano material ou moral) é distinto do da vítima imediata. No mesmo sentido, Sérgio Severo237 assinala que “sobrevivendo a vítima direta, a sua incapacidade pode gerar um dano a outrem”, e “os familiares mais próximos da vítima direta gozam o privilégio da presunção juris tantum de que sofreram um dano em função da morte do parente”, todavia, “se a vítima sobreviver, devem comprovar que a situação é grave e, em função da convivência com a vítima, há um curso causal suficientemente previsível no sentido de que o dano efetiva-se”. Conquanto vislumbrada pela doutrina e jurisprudência a hipótese do multicitado dano moral ricochete, Humberto Theodoro Júnior 238 é cuidadoso no trato da tese de reparabilidade a pessoas ligadas à vítima, ponderando que: Quando o ofendido comparece, pessoalmente, em juízo para reclamar reparação do dano moral que ele mesmo suportou em sua honra e dignidade, de forma direta e imediata, não há dúvida alguma sobre sua legitimidade ad causam. Quando, todavia, não é o ofendido direto, mas terceiros que se julgam reflexamente ofendidos em sua dignidade, pela lesão imposta a outra pessoa, torna-se imperioso limitar o campo de repercussão da responsabilidade civil, visto que poderia criar uma cadeia infinita ou indeterminada de possíveis pretendentes à reparação da dor moral, o que não corresponde, evidentemente, aos objetivos do remédio jurídico em tela. Nesse cenário, torna-se imperioso consignar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça confere legitimidade ativa aos parentes do sujeito passivo direto das lesões morais, no denominado dano moral ricochete: DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. LEGITIMIDADE ATIVA. PAIS DA VÍTIMA DIRETA. RECONHECIMENTO. DANO MORAL POR RICOCHETE. DEDUÇÃO. SEGURO DPVAT. INDENIZAÇÃO JUDICIAL. SÚMULA 246/STJ. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DE SÚMULA. DESCABIMENTO. DENUNCIAÇÃO À LIDE. IMPOSSIBILDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ E 283/STF. 1. A interposição de recurso especial não é cabível quando ocorre violação de súmula, de dispositivo constitucional ou de qualquer ato normativo que não se enquadre no conceito de lei federal, conforme disposto no art. 105, III, “a”, da CF/88. 2. Reconhece-se a legitimidade ativa dos pais de vítima direta para, conjuntamente com essa, pleitear a compensação por dano moral por ricochete, porquanto experimentaram, comprovadamente, os efeitos lesivos de forma indireta ou reflexa. Precedentes. 3. Recurso especial não provido. REsp 1.208.949/MG; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 07/12/2010; Data da Publicação/Fonte: DJe 15/12/2010. 237 SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 25-26. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano moral. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 16. 238 136 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535, II, DO CPC NÃO CARACTERIZADA. AÇÃO REPARATÓRIA. DANOS MORAIS. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO VIÚVO. PREJUDICADO INDIRETO. DANO POR VIA REFLEXA. I - Dirimida a controvérsia de forma objetiva e fundamentada, não fica o órgão julgador obrigado a apreciar, um a um, os questionamentos suscitados pelo embargante, mormente se notório seu propósito de infringência do julgado. II - Em se tratando de ação reparatória, não só a vítima de um fato danoso que sofreu a sua ação direta pode experimentar prejuízo moral. Também aqueles que, de forma reflexa, sentem os efeitos do dano padecido pela vítima imediata, amargando prejuízos, na condição de prejudicados indiretos. Nesse sentido, reconhecese a legitimidade ativa do viúvo para propor ação por danos morais, em virtude de ter a empresa ré negado cobertura ao tratamento médicohospitalar de sua esposa, que veio a falecer, hipótese em que postula o autor, em nome próprio, ressarcimento pela repercussão do fato na sua esfera pessoal, pelo sofrimento, dor, angústia que individualmente experimentou. Recurso especial não conhecido. (REsp 530.602/MA, Rel. Min. CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, DJ 17/11/2003). No mesmo sentido é a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Apelação nº 0024727-50.2011.8.26.0224; Relator(a): Beretta da Silveira; Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 04/10/2011. Ementa: Apelação - Indeferimento da petição inicial, por inépcia - Pedido de assistência judiciária prejudicado, face a sua concessão no Agravo de Instrumento nº 0127248-66.2011.8.26.0000, desta Relatoria - Veiculação, na exordial, da tese do dano moral reflexo, cuja indenização é pretendida dos estabelecimentos médico-hospitalares (clínica médica e hospital) aos quais se encontra vinculado o profissional responsável pelo suposto erro médico, que ocasionou lesão física à companheira do apelante e sofrimento e constrangimento morais, por ricochete, a este e a sua família - Reconhecimento indevido da ilegitimidade ad causam, passiva e ativa - Sentença terminativa que deve ser reformada Recurso provido, prejudicado o exame do pleito de assistência judiciária. Apelação nº 9150906-68.2008.8.26.0000; Relator(a): Gomes Varjão; Comarca: Taubaté; Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 09/05/2011. Ementa: Acidente de trânsito. Ações de indenização por danos morais julgadas conjuntamente, dado o reconhecimento da conexão. O dano moral independe de prova, porque advém da experiência comum, sendo irrelevante a dependência econômica em relação às vítimas, bem como valor recebido pelo ex-cônjuge e pai delas em ação diversa. Hipótese em que se reconhece o dano por ricochete, já que a mãe e irmãs de um dos falecidos foram inegavelmente atingidas pela repercussão do evento danoso, em razão dos laços afetivos que as unia. Razoabilidade da indenização em 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos para cada um dos autores. Os juros são devidos desde a data do evento danoso, por se tratar de responsabilidade extracontratual. Deve ser considerado o salário-mínimo vigente quando da prolação da r. sentença, a fim de que não seja utilizado como fator de reajuste, bem como para se adequar a indenização ao disposto na Súmula 362 do STJ. Improvido o recurso da ré e parcialmente providos os dos coautores e da denunciada. Vale a advertência de que este item tratou da questão do dano moral denominado ricochete, no qual se discute a possibilidade de parentes próximos ou 137 cônjuges pleitearem reparação por danos morais juntamente com a vítima do ato ilícito que permaneceu viva e também promoveu a ação indenizatória perante a justiça, diferenciando-se da situação que será examinada no tópico abaixo atinente à legitimidade para a demanda reparatória quando da morte da pessoa atingida pelo evento danoso. 11.2 A Legitimidade Ativa 11.2.1 Legitimidade ativa no caso de morte da vítima Outro ponto problemático acerca da reparabilidade das lesões morais é aquele relativo à legitimidade ativa para postular sua reparação. Delimitando o âmbito da controvérsia, frisamos não haver qualquer discussão quanto à legitimidade para dedução de pretensão ressarcitória por pessoa que alegue ter sofrido um dano. Entretanto, na clarividente lição de Sérgio Cavalieri Filho239: A questão que se coloca, e para a qual ainda não há solução definitiva na lei, nem na doutrina e na jurisprudência, é quanto ao limite para a reparação do dano moral. Até que grau um parente pode pleitear indenização por esse dano em razão da morte de familiar? Irmãos, primos, tios? E o amigo íntimo, teria também legitimidade? Os fãs de uma artista ou atleta famoso também teriam? Ainda que sejam milhões? Não há que se negar que todos sofrem intensamente com a perda de alguém querido, mas só por isso todos terão direito à indenização pelo dano moral? Um parente próximo pode sentir-se feliz pela morte da vítima, enquanto o amigo sofrerá intensamente. Nesse cenário, exsurge o posicionamento daqueles que entendem não haver qualquer limitação e mui menos concorrência entre os atingidos pelo ilícito, de sorte que a indenização pode ser pleiteada por qualquer prejudicado. A defesa de tal posicionamento, mormente sustentada quando os supostos titulares da pretensão à reparação guardam relação de parentesco, é fulcrada, simultaneamente, na impossibilidade de hierarquização do direito postulatório dos ofendidos e na criação de um direito de preferência entre eles, de forma a salvaguardar o direito de uns em detrimento de outros. Logo, a reparação do dano moral não se circunscreveria a nenhuma regra sucessória ou previdenciária.240 Consoante reiteradamente frisado nesses últimos itens, a referida questão não goza de disposições legais a seu respeito. E, carecendo de previsão legal, 239 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 91. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 91. 240 138 coube à doutrina e à jurisprudência dizerem o modo pelo qual se dá a legitimidade para se pleitear reparação por abalo moral, assim como os seus eventuais limites. Para trazermos à baila a resposta aos questionamentos trazidos no início deste subitem, citamos, novamente, a lição de Sérgio Cavalieri Filho241, para quem: O nosso Código Civil, lamentavelmente, nada dispôs a respeito. A regra de seu art. 948, II, entretanto, embora pertinente ao dano material, pode ser aplicada analogicamente para limitar a indenização pelo dano moral àqueles que estavam em estreita relação com a vítima, como o cônjuge, companheira, filhos, pais e irmãos menores que viviam sob o mesmo teto. A partir daí, o dano moral só poderá ser pleiteado na falta daqueles familiares e dependerá de prova de convivência próxima e constante. O doutrinador supracitado utiliza, como fundamentos legais à restrição à legitimidade ativa para a busca da reparação moral, o inciso II do artigo 948 e os parágrafos únicos dos artigos 12 e 20, todos do Código Civil, e que seguem abaixo transcritos: Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Conquanto plausível a aplicação analógica de referidos dispositivos legais, é certo que limitar a legitimação à pretensão ressarcitória por abalo moral apenas nos seus termos acaba por não responder, de forma satisfatória, todas as indagações anteriormente feitas, sobretudo por excluir − de forma absoluta − a pretensão à reparação moral daqueles que, a priori, não se subsumem às hipóteses de pessoas que não guardam relação de parentesco com a vítima nos moldes supradescritos. E 241 Ibid., p. 91. 139 é por isso que Sérgio Cavalieri Filho arremata seu raciocínio, afirmando que “só em favor do cônjuge, companheira, filhos, pais e irmãos menores há uma presunção juris tantum de dano moral por lesões sofridas pela morte da vítima”, e que, “além dessas pessoas, todas as outras, parentes ou não, terão que provar o dano moral sofrido em virtude de fatos ocorridos com terceiros”.242 O Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema e o fez nos termos inframencionados, decidindo, por exemplo, que o noivo da vítima de infortúnio fatal não tem legitimidade para o pleito indenizatório: 1. Em tema de legitimidade para propositura de ação indenizatória em razão de morte, percebe-se que o espírito do ordenamento jurídico rechaça a legitimação daqueles que não fazem parte da “família” direta da vítima, sobretudo aqueles que não se inserem, nem hipoteticamente, na condição de herdeiro. Interpretação sistemática e teleológica dos arts. 12 e 948, inciso I, do Código Civil de 2002; art. 63 do Código de Processo Penal e art. 76 do Código Civil de 1916. 2. Assim, como regra ‒ ficando expressamente ressalvadas eventuais particularidades de casos concretos ‒, a legitimação para a propositura de ação de indenização por dano moral em razão de morte deve mesmo alinhar-se, mutatis mutantis, à ordem de vocação hereditária, com as devidas adaptações. 3. Cumpre realçar que o direito à indenização, diante de peculiaridades do caso concreto, pode estar aberto aos mais diversificados arranjos familiares, devendo o juiz avaliar se as particularidades de cada família nuclear justificam o alargamento a outros sujeitos que nela se inserem, assim também, em cada hipótese a ser julgada, o prudente arbítrio do julgador avaliará o total da indenização para o núcleo familiar, sem excluir os diversos legitimados indicados. A mencionada válvula, que aponta para as múltiplas facetas que podem assumir essa realidade metamórfica chamada família, justifica precedentes desta Corte que conferiu legitimação ao sobrinho e à sogra da vítima fatal. 4. Encontra-se subjacente ao art. 944, caput e parágrafo único, do Código Civil de 2002, principiologia que, a par de reconhecer o direito à integral reparação, ameniza-o em havendo um dano irracional que escapa dos efeitos que se esperam do ato causador. O sistema de responsabilidade civil atual, deveras, rechaça indenizações ilimitadas que alcançam valores que, a pretexto de reparar integralmente vítimas de ato ilícito, revelam nítida desproporção entre a conduta do agente e os resultados ordinariamente dela esperados. E, a toda evidência, esse exagero ou desproporção da indenização estariam presentes caso não houvesse, além de uma limitação quantitativa da condenação, uma limitação subjetiva dos beneficiários. 5. Nessa linha de raciocínio, conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém, como um sem-número de pessoas que se encontram fora do núcleo familiar da vítima, significa impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador. Assim, o dano por ricochete a pessoas não pertencentes ao núcleo familiar da vítima direta da morte, de regra, deve ser considerado como não inserido nos desdobramentos lógicos e causais do ato, seja na responsabilidade por culpa, seja na objetiva, porque extrapolam os efeitos razoavelmente imputáveis à conduta do agente. 6. Por outro lado, conferir a via da ação indenizatória a sujeitos não inseridos no núcleo familiar da vítima acarretaria também uma diluição de valores, em evidente prejuízo daqueles que 242 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 9192. 140 efetivamente fazem jus a uma compensação dos danos morais, como cônjuge/companheiro, descendentes e ascendentes. 7. Por essas razões, o noivo não possui legitimidade ativa para pleitear indenização por dano moral pela morte da noiva, sobretudo quando os pais da vítima já intentaram ação reparatória na qual lograram êxito, como no caso. 8. Recurso especial conhecido e provido. REsp 1076160/AM; RECURSO ESPECIAL 2008/0160829-9; Relator(a): Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 10/04/2012; Data da Publicação: DJe, 21/06/2012. Assim, quanto à legitimidade ativa para dedução da pretensão reparatória pelo sofrimento de dano moral, pode-se afirmar, com esteio na doutrina e jurisprudência, que nosso ordenamento jurídico não concede uma legitimidade irrestrita, exigindo daqueles que não guardam certa relação de parentesco com o ofendido a prova do abalo moral ensejador de reparação, especificamente traduzida na comprovação de convivência próxima e estreita. No âmbito da jurisprudência do TJSP a questão possui alguma controvérsia quanto à limitação dos legitimados no caso de morte, sendo tranquilo o direito indenizatório do cônjuge ou convivente sobrevivente e também dos pais e filhos, restando alguma divergência na questão dos irmãos – não os menores, mas os maiores, colocando-se como ponto de exame fundamental saber se o caminhar das vidas não lhes subtraiu a necessária afetividade que daria lastro à indenização pugnada pelo colateral supérstite: Apelação nº 9169267-41.2005.8.26.0000; Relator(a): Artur Marques; Comarca: Mogi-Guaçu; Órgão julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 29/08/2011. Ementa: CIVIL. DANO MORAL. MORTE DO IRMÃO EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. LEGITIMIDADE ATIVA RECONHECIDA. PRETENSÃO QUE, NO MÉRITO, É IMPROCEDENTE. LAÇOS AFETIVOS QUE SÃO GRADATIVAMENTE ROMPIDOS, DESDE O INSTANTE EM QUE CADA UM DELES PASSOU A CONSTITUIR SUA PRÓPRIA FAMÍLIA. NECESSIDADE DE PROVA EFETIVA DE QUE OS LAÇOS AFETIVOS FORAM MANTIDOS DESDE ENTÃO. Doutrina e jurisprudência são uníssonas em garantir legitimidade aos irmãos para postular em juízo reparação por danos morais no caso de morte de um deles. Nada obstante, o deslinde da causa depende da inequívoca existência de laços afetivos, presumidos durante a moradia conjunta e paulatinamente reduzidos quando, maiores, os irmãos passam a ter vida própria e muitas vezes isolada dos demais. 11.2.2 A questão da transmissibilidade mortis causa Feitas tais considerações, derivadas da problemática análise da legitimidade ativa, também temos por questão não isenta de controvérsias aquela relativa à transmissibilidade, mortis causa, do direito de indenização pelo dano moral. A 141 peculiar natureza dos bens ou interesses atingidos por essa espécie de dano levou a doutrina e a jurisprudência a divergir sobre a possibilidade de o respectivo direito de indenização ser exercido por outrem que não a própria vítima. Desnecessário salientar a importância do tema, que, em razão do crescente número de ações de reparação, vem sendo trazido cada vez mais frequentemente para exame judicial. Segundo Pontes de Miranda243, quanto à possibilidade de transmissão por morte do direito indenizatório do dano moral, três correntes se formaram a respeito na doutrina: a) intransmissibilidade; b) transmissibilidade condicionada ao ajuizamento da ação indenizatória pelo lesado ou à sua manifestação da vontade de exercer a pretensão; c) transmissibilidade irrestrita. Para a primeira corrente, que contou com defensores como Wilson Melo da Silva, a honra (subjetiva), sendo direito personalíssimo, extingue-se com a morte, e, segundo ele: Não existe, pois, o jus hereditatis relativamente aos danos morais, tal como acontece com os danos materiais. A personalidade morre com o indivíduo, arrastando atrás de si todo o seu patrimônio. Só os bens materiais 244 sobrevivem ao seu titular. Noutras palavras, o doutrinador Wilson Melo da Silva argumenta que os bens morais são inerentes à pessoa e com ela desaparecem quando de sua morte, pois dizem respeito a seu foro íntimo. Embora os terceiros possam compartilhar da dor da vítima, sentindo, eles próprios, por eles mesmos, as mesmas angústias, não se concebe que a vítima possa transferir as suas dores e angústias para terceiros. E arremata seu raciocínio ao afirmar que o dano moral, “dado seu caráter eminentemente subjetivo, jamais se transferiria ativamente a terceiros, seja pela cessão comum, seja pelo jus hereditatis”.245 Ao explicar referida corrente, Sérgio Cavalieri Filho 246 aduz que, “por esse enfoque, não se afigura razoável admitir que o sofrimento do ofendido se prolongue ou se estenda ao herdeiro, e este, fazendo sua a dor do morto, demande o responsável a fim de ser indenizado da dor alheia”. O C. STJ chegou a endossar a tese da intransmissibilidade, evidenciada no julgamento do REsp 302.029/RJ, que restou assim ementado: 243 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2008. Tomo XXII, p. 218. 244 SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 469. 245 Ibid., p. 648-649. 246 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 93. 142 Recurso especial. Processual civil. Acórdão. Omissão. Invalidade. Inexistência. Divergência jurisprudencial. Comprovação. Dano moral. Ação de indenização. Herdeiro da vítima. Legitimidade ativa ad causam. Inexistência de invalidade do acórdão recorrido, o qual, de forma clara e precisa, pronunciou-se acerca dos fundamentos suficientes à prestação jurisdicional invocada. Não se conhece o Recurso Especial pela divergência se inexiste a confrontação analítica dos julgados. Na ação de indenização de danos morais, os herdeiros da vítima carecem de legitimidade ativa ad causam. REsp 302.029/RJ; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 29/05/2001; Data da Publicação: DJ, 01/10/2001, p. 212. Por ocasião desse julgamento, o Ministro Pádua Ribeiro divergiu da maioria, lançando os fundamentos que, mais tarde, implicariam em verdadeiro overruling na jurisprudência do C. STJ. Por esse motivo, merecem transcrição os fundamentos por ele exarados: Ressalte-se que, ainda que a vítima tenha sido ofendida em seus direitos personalíssimos, a relação obrigacional que se forma entre ela e o agente do dano (CC, art. 1.518), não é personalíssima, como se daria, por exemplo, com a obrigação de pintar um quadro ou esculpir uma imagem. A meu ver, não se trata de uma obrigação personalíssima. O art. 1.526 do Código Civil assegura que “o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança, exceto nos casos que esse Código excluir”. É claro que, tendo a vítima ou seus herdeiros direito à reparação do dano e a faculdade de exigi-la (pretensão), têm também ação material correspondente, segundo o citado art. 75 do Código Civil, que antes li. Se assim se dá com os danos materiais, o mesmo, a meu ver, ocorre com os danos morais, pois, como dito, a eles aludiu a Constituição Federal, não havendo como discriminá-los em seus efeitos e em relação à transmissibilidade da sua reparação. Dessarte, falecido aquele que experimentou o dano moral, têm seus herdeiros não só a legitimidade para sucedê-lo na relação processual que ele integrava, visando à indenização, segundo o art. 43 do Código de Processo Civil, como também para propor ação com esse objetivo. De fato, a reparação de um dano qualquer, seja moral, seja material, far-se-á, via de regra, com bens materiais. Quanto à transmissibilidade deste por direito hereditário, não tenho dúvida. Portanto, a legitimidade dos herdeiros para propor a ação de indenização por ato dirigido contra o de cujus é, em tese, de ser reconhecida. Cabe ali indagar, em cada caso concreto, o porquê de não ter sido proposta a ação pela própria vítima. Essa teria o prazo prescricional de 20 anos para ajuizar a ação, segundo o art. 177 do Código Civil, mas pode ter deixado de fazê-lo porque não se sentiu ofendida, ou seja, porque entendeu mesmo inexistente o dano moral. Nesse caso, há de se verificar concretamente. Pode haver hipótese de que o falecido não propôs a ação porque não se sentiu ofendido. Mas esse é um caso concreto a se examinar. Em tese, entendo que têm plena legitimação os herdeiros para propor a ação por dano moral. O tema é complexo, mas a minha convicção é esta: a haver indenização por dano moral, não se transmitirá o aborrecimento, não se transmitirá o malestar causado em situações como essa, mas o direito patrimonial correspondente, a obrigação de indenizar correspondente. Creio que não há razão nenhuma para que não se transmita o direito à indenização, mesmo porque não há nenhuma limitação legal para que isso ocorra. O próprio dispositivo do Código Civil, que li, art. 1.526 é claro, diz que o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmite-se com a herança, exceto nos casos em que o Código o excluir. A meu ver, não há nenhum 143 dispositivo no Código excluindo a possibilidade de ajuizamento desta ação pelos herdeiros. Esse excerto final do voto do eminente Ministro delineia os fundamentos da corrente que pugna pela transmissibilidade incondicionada. Para essa doutrina, o direito de indenização do dano moral é sempre transmissível, como o é o direito de indenização do dano material. Distingue-se, acertadamente, o direito da personalidade do direito de indenização. O primeiro, sim, é por natureza intransmissível, enquanto o último tem caráter patrimonial e é transmissível aos herdeiros do falecido. Em última análise, o direito indenizatório constitui um crédito que integra o conjunto de bens patrimoniais da vítima e pode, como os créditos em geral, ser cedido por ato entre vivos ou transmitido por morte do titular. Nesse sentido, é o magistério de José de Aguiar Dias247: A ação de reparação é transmissível? Não há princípio nenhum que a isso se oponha. A ação de indenização se transmite como qualquer outra ação ou direito aos sucessores da vítima. Não se distingue, tampouco, se a ação se funda em dano moral ou patrimonial. Rui Stoco248, também enveredando pela análise principiológica da questão, assinala que: Não há princípio algum que se oponha à transmissibilidade da ação de indenização visando à reparação de danos, ou do direito à indenização. A ação de indenização se transmite como qualquer outra ação ou direito aos sucessores da vítima, por força do princípio da substituição processual contido no art. 43 do CPC. Não se distingue, tampouco, se a ação se funda em dano moral ou patrimonial. Sérgio Cavalieri Filho249 enfatiza a necessidade de distinguir entre o dano moral e o direito de indenização daquele resultante: o primeiro é profundamente pessoal e intransmissível, cessando com a morte da vítima; o último ingressa no patrimônio da vítima no momento da lesão e é transmitido aos sucessores por ocasião da morte do titular: O dano moral, que sempre decorre de uma agressão a bens integrantes da personalidade (honra, imagem, bom nome, dignidade etc.), só a vítima pode sofrer, e enquanto viva, porque a personalidade, não há dúvida, extingue-se com a morte. Mas o que se extingue – repita-se – é a personalidade, e não o dano consumado, nem o direito à indenização. Perpetrado o dano (moral 247 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. v. 2, p. 938. STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 93. 249 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 94. 248 144 ou imaterial, não importa) contra a vítima quando ainda viva, o direito à indenização correspondente não se extingue com sua morte. E assim é porque a obrigação de indenizar o dano moral nasce no mesmo momento em que nasce a obrigação de indenizar o dano patrimonial - no momento em que o agente inicia a prática do ato ilícito e o bem juridicamente tutelado sofre a lesão. Nesse mesmo momento, também, o correlativo direito à indenização, que tem natureza patrimonial, passa a integrar o patrimônio da vítima e, assim, se transmite aos herdeiros dos titulares da indenização. E o citado jurista finaliza seu raciocínio com a perspicácia que lhe é peculiar, afirmando que, a se adotar a tese de intransmissibilidade do direito indenizatório neste caso, “a morte da vítima seria um prêmio para o causador do dano se o exonerasse da obrigação de indenizar”.250 Por derradeiro, para a intermediária corrente que sustenta a transmissibilidade condicionada, deve ser feita uma análise casuística da situação deduzida em juízo, a saber: se a vítima do dano moral falece no curso da ação indenizatória, é irrecusável que o herdeiro suceda o morto no processo, por se tratar de ação de natureza patrimonial. Exercido o direito de ação pelo ofendido, o conteúdo econômico da reparação do dano moral fica caracterizado e, dessa forma, transmite-se aos herdeiros.251 Desse modo, antes de exercida, a pretensão indenizatória é de natureza personalíssima e, portanto, intransmissível. Assume o caráter patrimonial, contudo, depois da propositura da ação. Pressupõe-se que a falta de ajuizamento da demanda indenizatória pode significar, v.g., que a vítima não se sentiu injuriada ou agravada em sua honra; ou que, simplesmente, não tivesse a intenção de pleitear indenização; pode, ainda, significar que ela renunciou à pretensão ou perdoou o ofensor. Em contrapartida, o ajuizamento da ação indenizatória pela própria vítima revelaria não apenas a existência do dano moral, mas a disposição daquela em obter a reparação, que poderia, a partir de então, ser transmitida aos herdeiros. Descritas as três correntes acerca da transmissibilidade do direito à reparação moral, insta salientar que a jurisprudência do STJ, em autêntico overruling, vem se consolidando no sentido de ser possível a transmissão do direito à indenização por dano moral, não do próprio dano moral, como dito. Em vários casos nos quais o de cujus propusera em vida a ação de indenização por dano moral, decidiu-se que os herdeiros poderiam prosseguir com a 250 Ibid., p. 94. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 94. 251 145 demanda. Nesse sentido, vejam-se os REsp 11.735/PR, 219.619/RJ e 440.626/SP, cujas ementas seguem abaixo transcritas: Dano moral. Ressarcimento. Se a indenização se faz mediante pagamento em dinheiro, aquele que suportou os danos tinha direito de recebê-la e isso constituiu crédito que integrava seu patrimônio, transmitindo-se a seus sucessores. Possibilidade de os herdeiros prosseguirem com a ação já intentada por aquele que sofreu os danos. REsp 219.619/RJ; Relator(a): Ministro EDUARDO RIBEIRO; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 23/08/1999; Data da Publicação: DJ, 03/04/2000 p. 147. DANO MORAL. Morte da vítima. Transmissibilidade do direito. O direito de prosseguir na ação de indenização por ofensa à honra transmite-se aos herdeiros. Recurso não conhecido. REsp 440.626/SP; Relator(a): Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 03/10/2002; Data da Publicação: DJ, 19/12/2002, p. 373. Posteriormente, aquela Corte se viu diante da questão da transmissibilidade incondicionada, ou seja, de casos nos quais a pretensão indenizatória havia sido formulada originariamente por herdeiros da vítima, que não chegara a ajuizar a ação em vida. Em um primeiro julgamento, o STJ se manifestou no sentido da intransmissibilidade desse direito. Conforme já frisado anteriormente, no julgamento do recurso especial nº 302.029/RJ, da 3ª Turma, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, entendeu-se que as filhas da pessoa que fora ofendida em vida não tinham legitimidade para a propositura de ação de indenização por danos morais. Como visto, a decisão foi tomada por maioria, com voto divergente do Ministro Pádua Ribeiro, que se manifestou favorável à transmissibilidade, observando que, em caso de dano moral, não se transmite a dor ou o aborrecimento, mas o direito à indenização, de cunho patrimonial. Para tanto, ele invocou o artigo 1.526 do antigo Código Civil (correspondente ao artigo 943 do Código Civil vigente), sustentando que “o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança”. Já o Ministro Ari Pargendler acompanhou o voto da relatora, por entender não estar demonstrado que o de cujus tivesse sofrido o dano moral, pois nunca manifestara em vida, nem mesmo aos parentes, ter sido atingido em sua honra ou reputação. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito também acompanhou o voto da relatora diante das circunstâncias especiais do caso, deixando ressalvada a possibilidade de reexame da tese jurídica em outro caso. Depois desse julgamento em que as opiniões ficaram tão divididas, o Superior Tribunal de Justiça passou a reconhecer, explicitamente, a transmissibilidade sem 146 restrições do direito à indenização por dano moral, ainda quando a ação indenizatória não tivesse sido ajuizada pela própria vítima. Primeiro, no julgamento do Recurso Especial nº 324.886/PR, que tratou de dano moral sofrido por indivíduo do sexo masculino atingido em sua intimidade, vida privada e imagem, com a publicação abusiva de edital que divulgara a sua condição de portador do vírus HIV, fato que lhe causou constrangimentos. Após o falecimento do lesado, seus pais ajuizaram ação, postulando, na condição de herdeiros, indenização pelo dano moral sofrido pelo filho. Considerou-se que o direito de indenização por dano moral tem natureza patrimonial e, por conseguinte, se transmite aos sucessores da vítima. Esse entendimento foi reafirmado pouco depois, no julgamento do Recurso Especial nº 343.654/SP, que cuidou de dano moral decorrente de lesões corporais sofridas por vítima de acidente de trânsito. Quatro anos após o acidente, tendo falecido a vítima, o espólio ajuizou ação para pleitear indenização pelo dano moral sofrido pelo de cujus. Entendeu-se que o direito de exigir reparação, tanto do dano moral quanto do material, transmite-se com a herança, nos termos do artigo 1.526 do Código Civil de 1916, então vigente, e que tal pretensão pode ser deduzida pelo espólio do de cujus. Referidos julgados restaram assim ementados: PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. HERDEIROS. LEGITIMIDADE. 1. Os pais estão legitimados, por terem interesse jurídico, para acionarem o Estado na busca de indenização por danos morais, sofridos por seu filho, em razão de atos administrativos praticados por agentes públicos que deram publicidade ao fato de a vítima ser portadora do vírus HIV. 2. Os autores, no caso, são herdeiros da vítima, pelo que exigem indenização pela dor (dano moral) sofrida, em vida, pelo filho já falecido, em virtude de publicação de edital, pelos agentes do Estado, réu, referente à sua condição de portador do vírus HIV. 3. O direito que, na situação analisada, poderia ser reconhecido ao falecido, transmitese, induvidosamente, aos seus pais. 4. A regra, em nossa ordem jurídica, impõe a transmissibilidade dos direitos não personalíssimos, salvo expressão legal. 5. O direito de ação por dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores da vítima (RSTJ, vol. 71/183). 6. A perda de pessoa querida pode provocar duas espécies de dano: o material e o moral. 7. “O herdeiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se prolongasse ou se entendesse (deve ser estendesse) ao herdeiro e este, fazendo sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser indenizado da dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando ainda vivo, tinha contra o autor do dano. Se o sofrimento é algo entranhadamente pessoal, o direito de ação de indenização do dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmitese aos sucessores” (Leon Mazeaud, em magistério publicado no Recueil Critique Dalloz, 1943, pg. 46, citado por Mário Moacyr Porto, conforme referido no acórdão recorrido). 8. Recurso improvido. REsp 324.886/PR; Relator(a): Ministro JOSÉ DELGADO; Órgão Julgador: T1 - PRIMEIRA TURMA; Data do Julgamento: 21/06/2001; Data da Publicação: DJ, 03/09/2001, p. 159. 147 Responsabilidade civil. Ação de indenização em decorrência de acidente sofrido pelo de cujus. Legitimidade ativa do espólio. 1. Dotado o espólio de capacidade processual (art. 12, V, do Código de Processo Civil), tem legitimidade ativa para postular em Juízo a reparação de dano sofrido pelo de cujus, direito que se transmite com a herança (art. 1.526 do Código Civil). 2. Recurso especial conhecido e provido. REsp 343.654/SP; Relator(a): Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 06/05/2002; Data da Publicação: DJ, 01/07/2002, p. 337. Em suma, a problemática acerca da transmissão, hodiernamente, cinge-se em saber se houve ou não dano moral; se a vítima, antes de morrer, foi ou não atingida em sua dignidade. Se sim, não há razão para não transmitir a seus sucessores o direito à indenização252, sobretudo ante a existência de texto expresso de lei nesse sentido, a saber, o artigo 943 do atual Código Civil, in verbis: “O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança”. Frise-se, por oportuno, que a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não possui qualquer uniformidade no trato da sucessão mortis causa da indenização por abalo moral, havendo acórdãos adotantes das duas correntes doutrinárias mais radicais acerca da temática, além da tese intermediária, e nenhuma estabilidade na análise da matéria no âmbito da Justiça bandeirante, como se pode verificar pelas três ementas abaixo colacionadas, uma para cada orientação. Pela intransmissibilidade absoluta do direito indenizatório: Apelação nº 9126616-91.2005.8.26.0000; Relator(a): Elcio Trujillo; Comarca: São Joaquim da Barra; Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 26/10/2011. Ementa: NULIDADE Julgamento antecipado da lide - Cerceamento inexistente - Presentes as condições que ensejam o julgamento antecipado da causa, é dever do juiz, e não mera faculdade, assim proceder - Aplicação do disposto pelo I, do artigo 330, do Código de Processo Civil - PRELIMINAR AFASTADA. DANOS MORAIS - Negativação do nome da mãe do autor, já falecida, junto ao cadastro de inadimplentes - Ausência de legitimidade ativa para pleitear reparação por danos morais - Direito personalíssimo - Sentença confirmada - Aplicação do disposto no art. 252 do Regimento Interno deste Tribunal Apelante beneficiário da assistência judiciária gratuita - Sobrestamento da condenação da parte vencida - Incidência do art. 12 da Lei nº 1060/50 RECURSO NÃO PROVIDO. Pela transmissibilidade incondicionada do direito indenizatório: Apelação com Revisão nº 1082316003; Relator(a): Andreatta Rizzo; Comarca: Santo André; Órgão julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; 252 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 9495. 148 Data do julgamento: 28/07/2008. Ementa: Seguro de veículo Indenização por danos morais – Legitimidade ativa dos herdeiros Renovação automática da apólice após a morte do segurado - Débito das parcelas em conta corrente - Inscrição do nome do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito após o seu falecimento - Fixação da indenização em montante que mitigue o sofrimento e desestimule a reiteração de atos da espécie - Redução da quantia arbitrada pela sentença - Necessidade Manutenção da verba honorária de 15% sobre o valor da condenação - Preliminares rejeitadas - Apelo principal parcialmente provido e desprovido o adesivo. E pela transmissibilidade do direito indenizatório condicionada ao ajuizamento da ação de reparação por danos morais pela vítima do evento danoso quando ainda em vida: Apelação nº 9201575-62.2007.8.26.0000 / Contratos Bancários; Relator(a): Maia da Rocha; Comarca: Campinas; Órgão julgador: 17ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 12/09/2007. Ementa: DANO MORAL - Indenização - Inclusão indevida de dados em órgão de restrição ao crédito - Ilícito configurado - Morte do ofendido após a propositura da ação Herdeiro que remanesce com a legitimidade ativa - Restrição realizada pela sociedade bancária - Legitimidade passiva configurada - Inocorrência de cerceamento de defesa - Valor arbitrado a título de dano imaterial que merece redução - Fixação em 10 (dez) salários-mínimos - Verba honorária mantida no percentual fixado - Sentença reformada em parte - Recurso provido parcialmente. 11.3 A Responsabilidade Civil dos Provedores de Internet pelo Conteúdo Ofensivo Postado por Terceiros e o Marco Civil da Internet Passemos a analisar os precedentes judiciais firmados pelo Superior Tribunal de Justiça referentes às relações jurídicas decorrentes das informações postadas na rede mundial de computadores, especialmente no que tange à responsabilidade civil dos provedores de internet. Por oportuno, saliente-se que os provedores disponibilizam espaços na rede mundial de computadores para que outras pessoas os utilizem, sempre se valendo da escusa, no caso de ilícito contra a honra e a imagem, de que não podem ser responsabilizados por eventual informação ofensiva direcionada a outrem por não terem controle do conteúdo postado. Noutros termos, os denominados “provedores de internet” são pessoas físicas ou jurídicas que exercem diversas funções no âmbito da rede mundial de computadores, e a partir do tipo de atividade desenvolvida podem ser divididos em provedores de acesso, provedores de serviços e provedores de conteúdo. 149 Os provedores de serviços são responsáveis, por exemplo, pelos serviços de correio eletrônico, hospedagem de páginas eletrônicas e chave de busca. Dentre esses, o que nos interessa para a compreensão do tema em debate é a hospedagem de páginas eletrônicas, que inclui, no mais das vezes, a disponibilização de ferramentas para o usuário produzir uma página e o fornecimento de espaço para armazenamento dos dados criados. No Superior Tribunal de Justiça instalou-se, em princípio, certa dúvida a respeito da responsabilidade civil dos provedores de internet nestas situações de ofensas postadas por terceiros usuários. Por um lado, já se negou a responsabilidade nestes casos ao argumento de que as provedoras não têm controle prévio sobre as informações postadas e que sua atividade não poderia ser considerarada de risco a ponto de imputar-lhes a responsabilização civil objetiva do parágrafo único do art. 927 do Código Civil: RECURSO ESPECIAL Nº 1.193.764-SP (2010/0084512-0); RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI. EMENTA: DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. 1. A exploração comercial da internet sujeita às relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração” contido no art. 3º, § 2º, do CDC deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. 3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos. 4. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02. Por outro lado, pela simples aplicação do Código de Defesa do Consumidor, reconhecendo-se como defeito na prestação de serviço a inserção de dados difamatórios na internet, já foi uma provedora condenada ao pagamento de indenização por danos morais a uma vítima de ofensas postadas por terceiros: DIREITO DO CONSUMIDOR E RESPONSABILIDADE CIVIL - RECURSO ESPECIAL - INDENIZAÇÃO - ART. 159 DO CC/16 E ARTS. 6º, VI, E 14, 150 DA LEI Nº 8.078/90 - DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO - SÚMULA 284/STF - PROVEDOR DA INTERNET - DIVULGAÇÃO DE MATÉRIA NÃO AUTORIZADA - RESPONSABILIDADE DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇO - RELAÇÃO DE CONSUMO - REMUNERAÇÃO INDIRETA DANOS MORAIS - QUANTUM RAZOÁVEL - VALOR MANTIDO. 1 - Não tendo a recorrente explicitado de que forma o v. acórdão recorrido teria violado determinados dispositivos legais (art. 159 do Código Civil de 1916 e arts. 6º, VI, e 14, ambos da Lei nº 8.078/90), não se conhece do Recurso Especial, neste aspecto, porquanto deficiente a sua fundamentação. Incidência da Súmula 284/STF. 2 - Inexiste violação ao art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, porquanto, para a caracterização da relação de consumo, o serviço pode ser prestado pelo fornecedor mediante remuneração obtida de forma indireta. 3 - Quanto ao dissídio jurisprudencial, consideradas as peculiaridades do caso em questão, quais sejam, psicóloga, funcionária de empresa comercial de porte, inserida, equivocadamente e sem sua autorização, em site de encontros na internet, pertencente à empresa-recorrente, como “pessoa que se propõe a participar de programas de caráter afetivo e sexual”, inclusive com indicação de seu nome completo e número de telefone do trabalho, o valor fixado pelo Tribunal a quo a título de danos morais mostra-se razoável, limitando-se à compensação do sofrimento advindo do evento danoso. Valor indenizatório mantido em 200 (duzentos) salários-mínimos, passível de correção monetária a contar desta data. 4 - Recurso não conhecido. REsp 566468/RJ; Relator(a): Ministro JORGE SCARTEZZINI; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 23/11/2004; Data da Publicação: DJ, 17/12/2004, p. 561. Gize-se que referido debate, até recentemente, ainda não havia aportado na instância especial da justiça nacional para uma análise mais perfunctória. Podia-se dizer que tais questões encontravam-se abertas à fixação de precedentes judiciais que as regulassem, e podia-se citar como principal vetor diretivo das futuras decisões que se seguiriam o quanto fundamentado pelo Ministro Herman Benjamin ao relatar o REsp 1.117.633/RO, no sentido de que: A internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer que seja um universo sem lei e sem responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer. No mundo real, como no virtual, o valor da dignidade da pessoa humana é um só, pois nem o meio em que os agressores transitam nem as ferramentas tecnológicas que utilizam conseguem transmudar ou enfraquecer a natureza de sobreprincípio irrenunciável, intransferível e imprescritível que lhe confere o Direito brasileiro. Quem viabiliza tecnicamente, quem se beneficia economicamente e, ativamente, estimula a criação de comunidades e páginas de relacionamento na internet é tão responsável pelo controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade de internautas e terceiros como os próprios internautas que geram e disseminam informações ofensivas aos valores mais comezinhos da vida em comunidade, seja ela real ou virtual. Essa coresponsabilidade é parte do compromisso social da empresa com a sociedade, sob o manto da excelência dos serviços que presta e da merecida admiração que conta em todo mundo é aceita pelo Google, tanto que atuou, de forma decisiva, no sentido de excluir páginas e identificar os gângsteres virtuais. Tais medidas, por óbvio, não bastam, já que reprimir certas páginas ofensivas já criadas, mas nada fazer para impedir o surgimento e multiplicação de outras tantas, com conteúdo igual ou assemelhado, é, em tese, estimular um jogo de Tom e Jerry, que em nada 151 remedia, mas só prolonga, a situação de exposição, de angústia e de impotência das vítimas das ofensas. Posteriormente, o C. STJ, por meio de sua 3ª Turma, ao decidir o REsp 1.186.616/MG, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, em recentíssima decisão do mês de agosto de 2011, acabou por se manifestar decisivamente quanto à imposição da responsabilidade civil dos provedores de conteúdo de internet apenas se, devidamente notificados, não providenciarem a exclusão das informações injuriosas, assentando-se que: Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo que registra o número de protocolo (IP) na internet dos computadores utilizados para o cadastramento de cada conta mantém um meio razoavelmente eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de serviço de internet. A partir de então, a referida orientação vem sendo sistematicamente adotada pelo STJ, somente remanescendo como dever dos provedores de acesso a obrigação de retirada do conteúdo ofensivo tão logo sejam notificados ou em prazo judicialmente fixado. Apenas quando infringido este dever de retirada é que se tem por ocorrente o abalo moral indenizável, na modalidade omissão do provedor. Vejase outro julgado nesse sentido do ano de 2012, Relator Ministro Sidnei Benetti: RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. PROVEDOR. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. RETIRADA. REGISTRO DE NÚMERO DO IP. DANO MORAL. AUSÊNCIA. PROVIMENTO. 1 - No caso de mensagens moralmente ofensivas, inseridas no site de provedor de conteúdo por usuário, não incide a regra de responsabilidade objetiva, prevista no art. 927, parágrafo único, do Cód. Civil/2002, pois não se configura risco inerente à atividade do provedor. Precedentes. 2 - É o provedor de conteúdo obrigado a retirar imediatamente o conteúdo ofensivo, pena de responsabilidade solidária com o autor direto do dano. 3 - O provedor de conteúdo é obrigado a viabilizar a identificação de usuários, coibindo o anonimato; o registro do número de protocolo (IP) dos computadores utilizados para cadastramento de contas na internet constitui meio de rastreamento de usuários, que ao provedor compete, 152 necessariamente, providenciar. 4 - Recurso Especial provido. Ação de indenização por danos morais julgada improcedente. Processo: REsp 1306066/MT; RECURSO ESPECIAL 2011/0127121-0; Relator(a): Ministro SIDNEI BENETI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 17/04/2012; Data da Publicação: DJe, 02/05/2012. E no mesmo sentido trilha a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Apelação nº 0003610-89.2008.8.26.0294; Relator(a): Percival Nogueira; Comarca: Jacupiranga; Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 08/03/2012. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Ação julgada improcedente. Alegação de que ficou exposto a humilhações em razão da não fiscalização da ré das mensagens postadas com sua autorização. Inadmissibilidade. Ausência de qualquer ilicitude na conduta da apelada que, após receber a denúncia, excluiu as ofensas do site de relacionamento. Impossibilidade de vigilância prévia. Sentença mantida. Recurso desprovido. Por fim, anote-se que, em consonância com o entendimento jurisprudencial acima alinhavado, verifica-se a tramitação do denominado Marco Civil da Internet no Congresso Nacional, acolhendo a tese de que a responsabilidade da provedora somente se deflagra por omissão, após a notificação para a retirada do conteúdo difamatório, desde que não tome tal providência, in verbis: Art. 15 do Projeto de Lei nº 2.126/11 da Câmara dos Deputados: Salvo disposição legal em contrário, com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e evitar a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Vale dizer que, segundo a última notícia que se tem, do final do ano de 2012, o projeto de lei em comento teve sua votação adiada por mais de seis vezes na Câmara dos Deputados, a demonstrar a completa ausência de vontade política para a disciplina de questões de fundamental importância para os brasileiros, como é o caso da internet, hoje essencial para a vida das pessoas e das empresas nacionais. Diferente dos casos acima foi a situação julgada neste ano de 2013 pela 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, reformando decisão que concedia tutela antecipada para que o site Google Brasil Internet Ltda. suprimisse veiculação de matéria referente à prisão ou indiciamento de uma advogada na conhecida Operação Durkheim que se referia a espionagem de políticos. 153 O relator do processo, Desembargador Alvaro Passos, afirmou em seu voto que “por primeiro, há que se fixar a natureza da atividade operacional do agravante (Google)”, já que “em se tratando de um site de busca, e não de hospedagem de conteúdo ou de redes sociais, o seu operador não detém controle sobre o conteúdo indexado”, reconhecendo que “as páginas para as quais direciona a pesquisa dos usuários são de autoria e responsabilidade exclusiva de quem as postou”. A respeito da natureza jurídica do serviço prestado neste caso – e é este o elemento de diferenciação desta situação das demais acima tratadas pela jurisprudência – o relator disse que “inicialmente, é preciso determinar a natureza jurídica dos provedores de serviços de internet, em especial dos sites de busca, pois somente assim será possível definir os limites de sua responsabilidade”. Para ele, “a world wide web (www) é uma rede mundial composta pelo somatório de todos os servidores a ela conectados”, e “esses servidores são bancos de dados que concentram toda a informação disponível na internet, divulgadas por intermédio das incontáveis páginas de acesso (webpages)”. O Desembargador Alvaro Passos destacou que o Google é um desses sites que “não incluem, hospedam, organizam ou de qualquer outra forma gerenciam as páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados, se limitando a indicar links onde podem ser encontrados os termos de busca fornecidos”. Assim, segundo o julgado, impor ao Google “a obrigação de bloquear toda e qualquer consulta da qual resulte o direcionamento do usuário à prisão e/ou indiciamento da agravada é de todo impossível”, resultando a seguinte ementa: OBRIGAÇÃO DE FAZER. Antecipação dos efeitos da tutela visando à abstenção de veiculação de resultado de pesquisa na internet relativa à matéria jornalística criminal envolvendo a autora. Não concessão Impossibilidade técnica de cumprimento da obrigação pelo provedor de pesquisa, que não detém controle sobre o conteúdo indexado, direcionando apenas os usuários para as páginas que contenham palavras que, por exatidão ou semelhança, estejam contidas nos artigos publicados e disponibilizados na rede. Inviabilidade do bloqueio pretendido. Precedente do E. Superior Tribunal de Justiça. Decisão reformada. Agravo provido. Agravo de Instrumento nº 0274787-02.2012.8.26.0000. Vê-se, assim, que a solução para estas demandas relativas aos provedores de internet não conta com orientação tranquila da jurisprudência, sendo necessário, logo no início do exame do caso, que se determine qual o tipo da prestação de serviço eletrônico que está sendo oferecida, disso dependendo o decisório a ser 154 proferido, daí a importância da aprovação de uma vez por todas do Marco Civil da Internet, que viria a regulementar todas essas modernas nuances. E, como sustentado durante todo o trabalho, é de fundamental importância que esta legislação atenda aos preceitos ditados pelo Superior Tribunal de Justiça quando teve a oportunidade de enfrentar litígios envolvendo os provedores de internet, momentos em que fez a devida diferenciação entre os provedores de serviço e de conteúdo, especialmente podendo ser citada a decisão na qual a apresentadora Xuxa requereu, sem sucesso, que todas as informações a respeito de um filme que estrelou há alguns anos não fossem reveladas nas buscas perante o Google (Recurso Especial nº 1.316.921/RJ): 1. A exploração comercial da Internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração”, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. 3. O provedor de pesquisa é uma espécie do gênero provedor de conteúdo, pois não inclui, hospeda, organiza ou de qualquer outra forma gerencia as páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados, se limitando a indicar links onde podem ser encontrados os termos ou expressões de busca fornecidos pelo próprio usuário. 4. A filtragem do conteúdo das pesquisas feitas por cada usuário não constitui atividade intrínseca ao serviço prestado pelos provedores de pesquisa, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não exerce esse controle sobre os resultados das buscas. 5. Os provedores de pesquisa realizam suas buscas dentro de um universo virtual, cujo acesso é público e irrestrito, ou seja, seu papel se restringe à identificação de páginas na web onde determinado dado ou informação, ainda que ilícito, estão sendo livremente veiculados. Dessa forma, ainda que seus mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de páginas cujo conteúdo seja potencialmente ilegal, fato é que essas páginas são públicas e compõem a rede mundial de computadores e, por isso, aparecem no resultado dos sites de pesquisa. 6. Os provedores de pesquisa não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde este estiver inserido. 7. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa. 8. Preenchidos os requisitos indispensáveis à exclusão, da web, de uma determinada página virtual, sob a alegação de veicular conteúdo ilícito ou ofensivo – notadamente a identificação do URL dessa página – a vítima carecerá de interesse de agir contra o provedor de pesquisa, por absoluta falta de utilidade da jurisdição. Se a vítima identificou, via URL, o autor do ato ilícito, não tem motivo para demandar contra aquele que apenas facilita o acesso a esse ato que, até então, se encontra publicamente disponível na rede para divulgação. 9. Recurso especial provido. 155 11.4 O Caso do Massacre Dentro do Cinema do Shopping Morumbi Caso emblemático de acesa divergência sobre a legitimidade processual passiva para o processo em que se pleiteia indenização por danos morais é extraído do massacre promovido por um estudante de medicina dentro do cinema do conhecido Shopping Morumbi na Capital Paulista. O caso foi assim resumido pela imprensa253: Na noite de 3 de novembro, o acaso reuniu no mesmo shopping um exterminador à procura de alguma platéia e vítimas que, seguindo a rotina de sempre, encontraram a morte. Às 8h30min do dia 3 de março de 1999, uma quarta-feira, o estudante de medicina Mateus da Costa Meira deixou o quarto 915 do Príncipe Hotel, no centro de São Paulo. Morava sozinho e tinha alucinações. Elas haviam começado a chegar dez dias antes, desde que suspendera a medicação antipsicótica e antidepressiva prescrita pelo psiquiatra. Eram 22h46min quando o telefone 190, do Comando da Polícia Militar de São Paulo, recebeu o primeiro dos três chamados para atender a uma ocorrência no Cine 5 do MorumbiShopping. Ali se consumara um massacre. Os policiais chegaram às 22h55min, tarde demais. Deveria estar sendo exibido o filme Clube da Luta. A projeção fora interrompida. O estudante de Medicina havia executado três pessoas. Outras cinco pessoas, também atingidas, sobreviveram. Depois de deixar o hotel onde dormira, Mateus Meira foi à Zona Sul de São Paulo. Comprou uma submetralhadora 9mm. Semi-automática, é capaz de disparar 1.200 balas por minuto. Mateus pôs tudo numa sacola e rumou para seu destino. Armado, sentia-se pronto para lutar contra as alucinações. Já no shooping, o estudante de medicina sacou a metralhadora da bolsa, apontou para sua imagem no espelho do banheiro e atirou. O disparo foi abafado pelo barulho do filme. Ninguém na platéia percebeu que se tratava do som de um tiro. Ninguém suspeitou de que assassino estava fora da tela, pronto para agir. Mateus deixou o banheiro, passou por trás da tela da Sala 5 e postou-se diante da platéia. Olhou para o filme e apertou o gatilho da submetralhadora uma vez. Mateus virou-se para a platéia e apertou várias vezes o gatilho. O pente de balas tinha cerca de 40 cartuchos. Descarregou todos. Alguns espectadores que estavam próximos avançaram sobre o assassino e conseguiram imobilizá-lo. A segurança do shopping finalmente prendeu Mateus da Costa Meira, que foi levado à 96ª Delegacia de Polícia de São Paulo. As vítimas sobreviventes e as famílias das vítimas fatais pleitearam na justiça indenização por danos materiais e morais contra o Shopping Center Morumbi e contra a responsável pela sala de cinema, o Grupo Internacional Cinematográfico, alegando que entre as empresas e as vítimas havia uma relação de consumo, em virtude da prestação de vários serviços, como de estacionamento, de gastronomia, de entretenimento e de segurança principalmente. 253 Revista Época. Disponível em <www.época.com.br>. Acesso em 8 de maio de 2009. 156 Indagava-se, à época do ajuizamento das ações: como fica a questão da responsabilidade civil neste caso, de um terceiro que invadiu o local e matou e feriu pessoas? Respondem as empresas ou não? Podem alegar que a culpa pelo acidente foi de terceiro? A responsabilidade não é objetiva, sem culpa? Enfim, como se constitui o pólo passivo dos respectivos processos. A seguir, tem-se um resumo de como a questão foi resolvida na justiça paulista de primeira instância, tendo quatro Varas Judiciais do Fórum Central da Capital se pronunciado (21ª, 23ª, 25ª e 27ª unidades judiciárias). Os juízes da 23ª e 25ª julgaram improcedentes os pedidos, acolhendo os seguintes argumentos das empresas: 1) a indenização só poderia ser reconhecida caso provada a falha de algum de seus funcionários ou representantes, o que no caso não ocorreu; 2) não houve culpa pelo evento, não tendo havido falha no sistema de segurança, pois uma pessoa não pode ser tida como suspeita em razão de seu aspecto físico ou maneira extravagante de se trajar; 3) o fato se constituiu num episódio inédito, imprevisível e inevitável (caso fortuito ou força maior), e mesmo com todos os seguranças atentos e as câmeras ligadas, com funcionários monitorando o movimento no shopping, o evento era inevitável; 4) as empresas não têm poder de polícia, porque segurança pública é dever do Estado. Os juízes da 21ª e 27ª julgaram procedentes os pedidos, acolhendo os seguintes argumentos das vítimas: 1) o dever de indenizar funda-se no riscoproveito, isto porque, aproveitando-se da violência generalizada que existe na sociedade moderna, a segurança passou a ser um produto agregado ao serviço prestado pelos shoppings, vendido na busca de se conquistar o mercado de consumo; 2) houve falha do serviço de segurança do shopping quando da entrada do agente com uma submetralhadora, além disso, testou a metralhadora no banheiro do shopping, efetuando um disparo contra o espelho do local, fato incomum que poderia ser atentado pelos seguranças. Nos dois casos de procedência as sentenças foram mantidas no Tribunal de Justiça de São Paulo (apelações nº 421.435.4/1-01 e 385.046-4/3-00), mas com um voto divergente na primeira apelação citada. Nas duas apelações, os relatores afirmaram o que segue. Na apelação nº 421.435.4/1-01, o Relator Desembargador Beretta da Silveira pontuou que: Os réus bem poderiam ter cuidado da segurança de modo a impedir a entrada de alguém portando arma de fogo no interior do shopping, ou, no mínimo, no interior das salas 157 de projeção de filmes. Na Apelação nº 385.046-4/3-00, o Relator Desembargador Arthur Del Guércio ponderou que: Nunca é demais lembrarmos que a segurança e a tranquilidade é que fazem com que as pessoas procurem os shoppings, por que isso é da sua essência. Já o voto divergente acima citado nos pareceu o mais adequado à situação, da lavra do Desembargador Gilberto Souza Moreira: Não há como incluir o ato imprevisível de um louco, cuja doença não é identificável, como justificativa para aplicar-se a teoria objetiva do risco. Não parece razoável considerar a ação inesperada de um doente mental, em surto de loucura e violência, como defeito de serviço de segurança. Certamente, os seguranças dos réus, seus vigilantes, seus guardas, enfrentaram o inopinável, não havia como identificar o agressor. Imagina-se que tenha chegado ao shopping dissimulado, por óbvio com a arma perfeitamente escondida na mochila usada a tira colo. Não havia como supor que trazia nada menos que uma metralhadora; disso não cogitaram os guardas nem ninguém. Anormal seria o contrário, a infundada desconfiança e a suposição dos horrores que viriam a acontecer. Não há – e espera-se nunca venha a haver – revista pessoal para entrar-se num cinema do shopping center. Enfim, foram acontecimentos inopinados, imprevisíveis, absolutamente inesperados. Caso fortuito por excelência, fato de terceiro, não há como responsabilizar as empresas, a menos que se adote a responsabilidade objetiva sem limitações, o que se tem por impossível. A seguir esta tese, o estabelecimento pagaria pelos danos causados por um meteorito que desgraçadamente atingisse a vítima. As decisões foram submetidas à competência do Superior Tribunal de Justiça por meio de recurso especial e lá as empresas administradoras do shopping e do cinema obtiveram êxito total na declaração de sua isenção de responsabilidade pelo fato, que foi atribuído unicamenta ao terceiro – o homicida. No Resp 1.164.889, a Quarta Turma do STJ, por votação unânime, de acordo com o relator do recurso, o desembargador convocado Honildo de Mello Castro, afirmou que, para que haja o dever de indenizar, não é suficiente ao ofendido demonstrar sua dor, e “somente ocorrerá a responsabilidade civil se estiverem reunidos, no caso em questão, elementos essenciais como dano, ilicitude e nexo causal”. O desembargador afirmou, também, que não existe no Brasil nenhuma lei específica obrigando os shopping centers a fiscalizar os clientes e seus pertences antes de adentrarem as dependências desses locais. Trata-se de um tipo de fiscalização que, conforme destacou, “não existe nem mesmo nos Estados Unidos, onde esse tipo de crime ocorre com certa frequência”. O desembargador relator ainda considerou que a imputação de responsabilidade civil supõe a presença de dois elementos de fato, que são a conduta do agente e o seu consequente resultado 158 danoso, e um elemento lógico-normativo, que é o nexo causal. Nesse sentido, deixou claro que “somente se considera causa o evento que produziu direta e concretamente o resultado danoso de uma ação”. E citou outros juristas ao enfatizar que “pode existir responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem nexo causal”. Aduziu, finalmente, que: O crime ocorrido choca e causa espanto, pois todos nós acreditamos que esse tipo de situação não aconteceria dentro de um shopping center, estando, portanto, fora do risco inerente à atividade empresarial exercida pelo recorrente (o Morumbi Shopping). Não se ignora aqui a dor das famílias que perderam seus entes queridos de forma tão selvagem. Porém, não se pode perder de vista que o mesmo crime poderia ter sido cometido no saguão de um aeroporto, por exemplo, onde qualquer pessoa pode chegar com uma arma dentro da mochila, sem ser notado, começar a disparar a esmo e causar a morte de várias pessoas, exatamente como fez Matheus, até que a segurança chegue e controle a situação. Pensa-se que, realmente, não havia espaço para imposição do dever indenizatório no caso em comento às empresas acionadas, por conta da quebra do nexo causal e impossibilidade de reconhecimento de realização de atividade de risco por parte do shopping ou do cinema. De qualquer sorte, a questão ainda não está totalmente resolvida, havendo um outro recurso especial a ser examinado também pela Quarta Turma do STJ (nº 1087717/SP). Lamentável, todavia, foi o caso do sujeito que não foi vítima de qualquer disparo e ainda assim ajuizou ação por danos morais por conta do mesmo fato, num pedido absolutamente improcedente e ganancioso, que acabou dessa forma reconhecido na Apelação nº 270.064-4/1-00 do TJ/SP. Segundo se entende, esta pessoa deveria se contentar e agradecer a Deus pela sua vida, não se podendo esquecer que famílias ficaram sem seus filhos, maridos e mães, enquanto ele, não contente com a preservação de sua vida e integridade física, propôs mais uma ação perante o Poder Judiciário, que, já atolado com as demandas dos verdadeiros vitimados, teve que examinar mais um processo absolutamente temerário. 11.5 Da Cumulatividade da Reparação por Danos Morais, Materiais e Estéticos Analisado o rol exemplificativo das situações concretas ensejadoras de abalo moral indenizáveis e não indenizáveis, consoante jurisprudência do Colendo 159 Superior Tribunal de Justiça e do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, passemos agora à questão da cumulatividade dos danos morais com os danos materiais e estéticos. Nunca pareceu problemática a cumulação das indenizações por danos morais e materiais no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo porque se trata de um tribunal formado após e por força do advento da Constituição da República de 1988, que previu expressamente a cumulatividade de tais indenizações (art. 5, inciso X). Com efeito, referida Corte passou a admitir a cumulação dos dois tipos de danos, consolidando tal entendimento com a edição de sua Súmula nº 37: São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato. Dentre outros precedentes utilizados à formação da súmula nº 37, podemos citar o REsp 4.236/RJ, ocasião em que o Ministro Eduardo Ribeiro sustentou a cumulatividade da indenização de dano material com o dano moral, pontuando que: Se há um dano material e outro moral, que podem existir autonomamente, se ambos dão margem à indenização, não se percebe porque isso não deva ocorrer quando os dois se tenham como presentes, ainda que oriundos do mesmo fato. De determinado ato ilícito decorrendo lesão material, esta haverá de ser indenizada. Sendo apenas de natureza moral, igualmente devido o ressarcimento. Quando reunidos, a reparação há de referir-se a ambos. Não há porque cingir-se a um deles, deixando o outro sem indenização. Algum problema se verificou, sim, quanto à cumulatividade do dano moral com o dano estético, dada a dificuldade de separar cada um dos tipos de danos, já que geralmente oriundos de um mesmo fato. O Superior Tribunal de Justiça acabou firmando entendimento de que também os danos estéticos são cumuláveis com os danos morais, podendo-se citar como leading case o REsp 65.393/RJ, relatado pelo Ministro Ruy Rosado Aguiar, em que afirmou: No âmbito dos danos à pessoa, comumente incluídos no conceito de dano moral, estão a dor sofrida em consequência do acidente, a perda de um projeto de vida, a diminuição do âmbito das relações sociais, a limitação das potencialidades do indivíduo, a “perdre de jouissance de vie”, tudo elevado a um grau superlativo quando o desastre se abate sobre a pessoa com a gravidade que a fotografia de fls. 13 revela. Essas perdas, todas indenizáveis, podem existir sem o dano estético, sem a deformidade ou o aleijão, o que evidencia a necessidade de ser considerado esse dano como algo distinto daquele dano moral, que foi considerado pela sentença. E tanto não se confundem que o defeito estético pode determinar, em certas 160 circunstâncias, indenização pelo dano patrimonial, como acontece no caso de um modelo. Antes mesmo do julgado supramencionado, o i. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito já havia propugnado referida cumulatividade, muito embora vencido, por ocasião do julgamento do REsp 156.453/SP, nos seguintes termos: [...] tecnicamente, é possível que a indenização decorrente da lesão deformante alcance verbas independentes de dano material, dano moral e dano estético. Na realidade, com essa perspectiva o dano estético perde a sua característica inaugural de espécie do gênero dano moral, à medida que comporta ressarcimento diverso daquele, mesmo que, em alguns casos, haja o seu cômputo dentro da rubrica dano moral. Da década de 1990 para cá, veio se solidificando a tese de cumulação do dano moral com o dano material e estético, tratando-se de tipos de indenizações distintas, mesmo sendo o prejuízo originado de um só fato, entendimento que se consolidou com a edição da súmula 387: É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral. E a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também reflete em seus julgados essa possibilidade ampla de cumulação: Apelação nº 9131523-41.2007.8.26.0000; Relator(a): Egidio Giacoia; Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 22/11/2011. Ementa: APELAÇÃO. Ação de indenização por danos morais c/c perdas e danos. Parcial Procedência. Acordo celebrado antes da prolação da sentença, mas que não foi analisado pelo d. Magistrado por não ter sido juntado aos autos. Necessária a homologação para surtir efeitos processuais. Decisão deve subsistir. No mérito: possibilidade de cumulação dos danos morais e estéticos. Súmula 387 ‒ STJ. Aplicação do art. 252 do Regimento Interno do TJSP. Decisão que deverá ser mantida. Precedentes. Readequação do valor da indenização. Recurso Parcialmente Provido. Apelação nº 9148468-69.2008.8.26.0000; Relator(a): Moacir Peres; Comarca: Poá; Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 26/09/2011. Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL - DANOS MATERIAIS E MORAIS - QUEDA ENTRE O TREM E A PLATAFORMA AMPUTAÇÃO DO MEMBRO SUPERIOR DIREITO. Inaplicabilidade do artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. Inocorrência de prescrição. Responsabilidade objetiva. Comprovados, suficientemente, o dano e o nexo de causalidade, faz jus o autor à indenização pelos danos materiais, morais e estéticos pleiteados. Ausência de comprovação de culpa exclusiva da vítima. Pensão mensal devida. Danos morais reduzidos. Possibilidade de cumulação dos danos morais com os estéticos. Juros moratórios que devem observar a legislação vigente na época da mora. Agravo retido improvido. Recursos parcialmente providos. 161 Apenas para uma referência histórica serviu a explanação desta cumulatividade indenizatória, já que hoje, como se viu, trata-se de questão pacificada, o que não se dá, minimamente, com relação ao tema do tópico abaixo. 11.6 Dos Parâmetros de Fixação e da Correção das Verbas Indenitárias Por muitos anos, uma dúvida pairou sobre o Judiciário e retardou o acesso de vítimas à reparação por danos morais: é possível quantificar financeiramente uma dor emocional ou um aborrecimento? A Constituição de 1988 bateu o martelo e garantiu o direito à indenização por dano moral. Desde então, magistrados de todo o país somam, dividem e multiplicam para chegar a um padrão no arbitramento das indenizações. O STJ tem a palavra final para esses casos e, ainda que não haja uniformidade entre os órgãos julgadores, está em busca de parâmetros para adequar e uniformizar os valores das indenizações. 11.6.1 O arbitramento do valor devido pela lesão a direito da personalidade O valor do dano moral tem sido enfrentado no STJ sob a ótica de atender uma dupla função: reparar o dano buscando minimizar a dor da vítima e punir o ofensor para que não reincida no ilícito, apenas alterando os valores de indenizações fixados nas instâncias locais quando se trata de quantia irrisória ou exagerada. A dificuldade em estabelecer com exatidão a equivalência entre o dano e o ressarcimento se reflete na quantidade de processos que chegam ao STJ para debater o tema. Segundo a assessoria de imprensa do STJ, em 2008 foram 11.369 processos que, de alguma forma, debatiam dano moral. O número é crescente desde a década de 1990 e, nos últimos 10 anos, somou 67 mil processos só no Tribunal Superior em comento. Quando analisa o pedido de dano moral, o juiz tem liberdade para apreciar, valorar e arbitrar a indenização dentro dos parâmetros pretendidos pelas partes. Não há um critério legal, objetivo e tarifado para a fixação do dano moral, dependendo muito do caso concreto e da sensibilidade do julgador. A indenização não pode ser ínfima, de modo a servir de humilhação à vítima, nem exorbitante, para não representar enriquecimento sem causa. 162 Essa é uma das questões mais difíceis do Direito brasileiro atual. Considerase, quanto à vítima, o tipo de ocorrência (morte, lesão física, deformidade), o padecimento para a própria pessoa e familiares, circunstâncias de fato como a divulgação maior ou menor e consequências psicológicas duráveis do evento. Quanto ao ofensor, considera-se a gravidade de sua conduta ofensiva, a desconsideração de sentimentos humanos no agir, suas forças econômicas e a necessidade de maior ou menor valor, para que a quantia seja um desestímulo efetivo para a não reiteração. Tantos fatores para análise resultam em disparidades entre os tribunais na fixação do dano moral, no que se denomina de “jurisprudência lotérica”. É justamente para evitar que a fixação do quantum indenitário se torne carente de qualquer parâmetro que o STJ visa uniformizar os valores a título de condenação por danos morais. Abaixo seguem exemplos de quantificação das indenizações por danos morais retiradas da jurisprudência do STJ. No caso de morte ocorrida dentro de estabelecimento oficial de ensino, o STJ fixou como devido o valor de 300 salários-mínimos a indenização por danos morais ajuizada pelos pais da vítima fatal. Quando a ação por dano moral é movida contra um ente público (União, Estados e Municípios), cabe às Turmas de Direito Público do STJ o julgamento do recurso. Foi o que ocorreu no julgamento do REsp 860.705, relatado pela Ministra Eliana Calmon. O recurso era dos pais, que, entre outros pontos, tentavam aumentar o dano moral de R$ 15 mil para 300 salários-mínimos em razão da morte do filho ocorrida dentro da escola, por um disparo de arma. A Segunda Turma fixou a indenização no valor pretendido pelos pais, a ser ressarcida pelo Distrito Federal. O patamar, no entanto, pode variar de acordo com o dano sofrido. Em 2007, o Ministro Castro Meira levou para análise, também na Segunda Turma, um recurso do Estado do Amazonas, que havia sido condenado ao pagamento de R$ 350 mil à família de uma menina morta por um policial militar em serviço. Em primeira instância, a indenização havia sido fixada em cerca de 1.600 salários-mínimos, mas o tribunal local reduziu o valor, destinando R$ 100 mil para cada um dos pais e R$ 50 mil para cada um dos três irmãos. O STJ manteve o valor, já que, devido às circunstâncias do caso e à ofensa sofrida pela família, não considerou o valor exorbitante nem desproporcional (REsp. 932.001). 163 Já para os casos de paraplegia, o STJ fixou como parâmetro o valor de 600 salários-mínimos. A subjetividade no momento da fixação do dano moral resulta em disparidades gritantes entre os diversos Tribunais brasileiros. Num recurso analisado pela Segunda Turma do STJ em 2004, a Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul apresentou exemplos de julgados pelo país para corroborar sua tese de redução da indenização a que havia sido condenada. Feito refém durante um motim, o diretor-geral do hospital penitenciário do Presídio Central de Porto Alegre acabou paraplégico em razão de ferimentos. Processou o Estado e, em primeiro grau, o dano moral foi arbitrado em R$ 700 mil. O Tribunal estadual gaúcho considerou suficiente a indenização equivalente a 1.300 salários-mínimos. Ocorre que, em caso semelhante (paraplegia), o Tribunal de Justiça de Minas Gerais fixou em 100 salários-mínimos o dano moral. Daí o recurso ao STJ. A Segunda Turma reduziu o dano moral devido à vítima do motim para 600 salários-mínimos (REsp 604.801), mas a relatora do recurso, Ministra Eliana Calmon, destacou dificuldade em chegar a uma uniformização, já que há múltiplas especificidades a serem analisadas, de acordo com os fatos e as circunstâncias de cada caso. Para os casos em que houve a morte de filho por ocasião do parto, o STJ tem fixado como referência o valor de 250 salários-mínimos. Passado o choque pela tragédia, é natural que as vítimas pensem no ressarcimento pelos danos e busquem isso judicialmente. Em 2002, a Terceira Turma fixou em 250 salários-mínimos a indenização devida aos pais de um bebê de São Paulo morto por negligência dos responsáveis do berçário (Ag 437968). Caso semelhante foi analisado pela Segunda Turma no ano de 2009. Por falta do correto atendimento durante e após o parto, a criança ficou com sequelas cerebrais permanentes. Nesta hipótese, a relatora, Ministra Eliana Calmon, decidiu por uma indenização maior, tendo em vista o prolongamento do sofrimento: A morte do filho no parto, por negligência médica, embora ocasione dor indescritível aos genitores, é evidentemente menor do que o sofrimento diário dos pais que terão de cuidar, diuturnamente, do filho inválido, portador de deficiência mental irreversível, que jamais será independente ou terá a vida sonhada por aqueles que lhe deram a existência. A indenização, neste caso, foi fixada em 500 salários-mínimos (REsp 1.024.693). 164 Para as ocorrências das denominadas “fofocas sociais”, o STJ tem determinado a condenação no equivalente a 30 mil reais. O STJ reconheceu a necessidade de reparação a uma mulher que teve sua foto ao lado de um noivo publicada em jornal do Rio Grande do Norte, noticiando que se casariam. Na verdade, não era ela a noiva. Em primeiro grau, a indenização foi fixada em R$ 30 mil, mas o Tribunal de Justiça potiguar entendeu que não existiria dano a ser ressarcido, já que uma correção teria sido publicada posteriormente. No STJ, a condenação foi restabelecida (REsp 1.053.534). Para as situações de protesto indevido de títulos de crédito, o STJ tem determinado o valor aproximado de 20 mil reais. Um cidadão alagoano viu uma indenização de R$ 133 mil minguar para R$ 20 mil quando o caso chegou ao STJ. Sem nunca ter sido correntista do banco que emitiu o cheque, houve protesto do título devolvido por parte da empresa que o recebeu. Banco e empresa foram condenados a pagar cem vezes o valor do cheque (R$ 1.333). Houve recurso e a Terceira Turma reduziu a indenização. O relator, Ministro Sidnei Beneti, levou em consideração que a fraude foi praticada por terceiros e que não houve demonstração de abalo ao crédito do cidadão (REsp 792.051). Para as situações de disparo, sem causa, de alarme antifurto em lojas, o STJ fixou como parâmetro o valor de 7 mil reais. Nesse sentido, a Terceira Turma manteve uma condenação no valor de R$ 7 mil por danos morais devido a um consumidor do Rio de Janeiro que sofreu constrangimento e humilhação por ter de retornar à loja para ser revistado. O alarme antifurto disparou indevidamente. Para a relatora do recurso, Ministra Nancy Andrighi, foi razoável o patamar estabelecido pelo Tribunal local (REsp 1.042.208). Ela destacou que o valor seria, inclusive, menor do que noutros casos semelhantes que chegaram ao STJ. Em 2002, houve um precedente da Quarta Turma que fixou em R$ 15 mil a indenização para um caso idêntico (REsp 327.679). Afora as hipóteses particularizadas supramencionadas, de um modo geral, podemos extrair da jurisprudência do STJ os precedentes judiciais que fixam a forma como devem ser dar as referidas quantificações dos pleitos indenizatórios por dano moral, frisando-se que, também quanto a esse particular, não há qualquer diretriz normativa. Por primeiro, citemos o padrão dos fundamentos empregados pelo citado tribunal e passíveis de utilização na generalidade, se é que assim se pode dizer, dos 165 pleitos de reparação moral e constantes dos Recursos Especiais 592.047/RS e 1.133.386/RS. Naquele, relatado pelo Ministro Massami Uyeda, se afirmou que: No tocante ao quantum, assinala-se que a fixação da indenização por dano moral deve revestir-se de caráter indenizatório e sancionatório, de modo a compensar monetariamente o constrangimento suportado pelos recorrentes, sem que caracterize o enriquecimento ilícito, adstrito ao princípio da razoabilidade e, de outro lado, há de servir como meio propedêutico ao agente causador do dano. No último recurso citado, o Ministro Honildo Amaral de Mello Castro pondera que: A indenização por dano moral trata-se mais de uma compensação do que propriamente de ressarcimento (como no dano material), até porque o bem moral não é suscetível de ser avaliado, em sua precisa extensão e em termos pecuniários. O critério utilizado por esta Corte na fixação do valor da indenização por danos morais tem considerado as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e de modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. Também nesse sentido é a jurisprudência do E. TJ/SP: Apelação nº 0011258-72.2008.8.26.0019; Relator(a): Paulo Ayrosa; Comarca: Americana; Órgão julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 19/12/2011. Ementa: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TELEFONIA - INDENIZAÇÃO - INCLUSÃO INDEVIDA NOS CADASTROS DE INADIMPLENTES - PROCEDÊNCIA DA AÇÃO MANTIDA. Tendo o autor comprovado que seu nome foi incluído nos cadastros de inadimplentes por negligência da ré, que não trouxe nenhum elemento para afastar as afirmações, de rigor a procedência da ação. A inclusão indevida do nome do autor em cadastro de inadimplentes é circunstância geradora de dano moral. DANO MORAL - ARBITRAMENTO - PARÂMETROS EXCESSO RECONHECIDO - REDUÇÃO - RECURSO NESTA PARTE PROVIDO. A quantificação da compensação derivada de dano moral deve levar em consideração o grau da culpa e a capacidade contributiva do ofensor, a extensão do dano suportado pela vítima e a sua participação no fato, de tal sorte a constituir em um valor que sirva de bálsamo para a honra ofendida e de punição ao ofensor, desestimulando-o e a terceiros a ter comportamento idêntico. Constatando-se o excesso, de rigor a sua redução. Apelação nº 0007584-03.2008.8.26.0564; Relator(a): Cesar Lacerda; Comarca: São Bernardo do Campo; Órgão julgador: 28ª Câmara da Seção de Direito Privado; Data do julgamento: 13/12/2011. Ementa: Aluguel de veículo a ser utilizado no exterior - Ação de indenização por danos morais e materiais - Voucher pré-pago não aceito - Lançamento indevido de novo débito no cartão de crédito dos autores Constrangimentos e dificuldades gerados aos autores que importam no reconhecimento de danos materiais e morais indenizáveis - Restituição do valor indevidamente cobrado pelo serviço previamente pago - Devolução em dobro descabida - Má-fé do credor não comprovada – Quantificação da 166 indenização pelos danos morais que deve levar em conta a gravidade do dano, a sua extensão, a posição social e econômica das partes, as finalidades reparatórias e punitiva da indenização, devendo ser suficiente para coibir novos abusos das demandadas, sem que permita o enriquecimento sem causa dos demandantes - Indenização reduzida Exclusão da multa imposta com fundamento no parágrafo único do art. 538 do CPC, por não se identificar manifesto intuito protelatório na interposição dos embargos de declaração - Recurso parcialmente provido. Assim, as condições econômico-pessoais das partes litigantes, bem como a vedação à irrisoriedade e ao enriquecimento indevido são os balizamentos-padrões à quantificação das indenizações por danos morais. Entretanto, tais nortes não se mostram suficientes para todas as situações concretas geradoras de abalo moral, fazendo-se necessária a fixação de outros critérios. Para as situações de cadastramento indevido, o STJ, no REsp 760.841/RS, levou em conta, além dos critérios-padrões, o diminuto valor da dívida, decisum que restou assim ementado: PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. NÃO COMUNICAÇÃO PRÉVIA DE INSCRIÇÃO EM REGISTROS DE INADIMPLENTES. EXEGESE DO ART. 43, § 2º, DO CDC. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA. INDENIZAÇÃO FIXADA. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. 1. Divergência jurisprudencial comprovada, nos termos do art. 541, § único, do CPC, e art. 255, e parágrafos, do Regimento Interno desta Corte. 2. No pleito em questão, as instâncias ordinárias concluíram que “não houve comunicação prévia da inscrição do nome do autor no órgão de restrição ao crédito, conforme exige a disciplina do art. 43, § 2º, do CDC, configurando, assim, a reparação a título de danos morais”. 3. Constatado evidente exagero ou manifesta irrisão na fixação, pelas instâncias ordinárias, do montante indenizatório do dano moral, descumprindo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é possível a revisão nesta Corte da aludida quantificação. 4. Consideradas as peculiaridades do caso em questão, ou seja, o valor da dívida que originou a indevida inscrição (R$1.478,46 - mil quatrocentos e setenta e oito reais e quarenta e seis centavos), o fato de que o autor não tenha comprovado nenhuma repercussão negativa, restrição creditícia ou outra, decorrente do fato danoso, e, sobretudo, em atenção aos parâmetros adotados nesta Corte em casos assemelhados a este, o valor fixado pelo Tribunal de origem (em R$10.400,00 - dez mil, quatrocentos reais) mostra-se excessivo, não se limitando à compensação dos prejuízos advindos do evento danoso, pelo que se impõe sua redução à quantia certa de R$ 1.000,00 (um mil reais). 5. Recurso conhecido. REsp 760.841/RS; Relator(a): Ministro JORGE SCARTEZZINI; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 28/03/2006; Data da Publicação: DJ, 08/05/2006, p. 232. Já no REsp 994.253/RS o fator de ponderação na fixação do quantum indenitário foi o período em que perdurou o cadastramento indevido, fundamentando a Ministra relatora Nancy Andrighi ser [...] necessário destacar que o curto lapso de permanência da inscrição indevida em cadastro restritivo, apesar de não afastar o reconhecimento dos 167 danos morais suportados, deve ser levado em consideração na fixação do valor da reparação, porquanto é inequívoco que uma manutenção prolongada possui, em tese, a possibilidade de gerar constrangimentos ainda maiores ao consumidor vítima da ilegalidade. De fato, a jurisprudência do STJ tem definido certos parâmetros para a estipulação da compensação por danos morais, a fim de torná-la a mais adequada possível, sem, no entanto, estabelecer qualquer tipo de tarifação de valores, já que, conforme salientado no REsp 663.196/PR, de minha relatoria, “é da essência do dano moral ser este compensado financeiramente a partir de uma estimativa que guarde alguma relação necessariamente imprecisa com o sofrimento causado, justamente por inexistir fórmula matemática que seja capaz de traduzir as repercussões íntimas do evento em um equivalente financeiro”. Assim, considerando as peculiaridades do presente feito, dentre as quais se destaca a circunstância de a manutenção indevida ter perdurado por apenas 9 (nove) dias, bem como levando em conta a necessidade de que a compensação não importe em enriquecimento indevido, mas signifique, com razoabilidade, um adequado tratamento ao sofrimento experimentado, apresenta-se pertinente a fixação da compensação por danos morais em R$ 10.000,00 (dez mil reais). Num último exemplo, para as hipóteses de cerceamento oficial de liberdade de forma ilegal, tal qual uma prisão cautelar por tempo excessivo, o STJ utilizou como parâmetro os dias em que perdurou o cárcere ilegal, como no REsp 1.209.341/SP, relatado pelo Ministro Humberto Martins, que restou assim ementado: 1. Inexiste violação do art. 535 do CPC quando a prestação jurisdicional é dada na medida da pretensão deduzida. Descumprido o necessário e indispensável exame dos dispositivos de lei invocados pelo acórdão recorrido, apto a viabilizar a pretensão recursal da recorrente, a despeito da oposição dos embargos de declaração. Incidência da Súmula 211/STJ. 2. A Corte de origem não analisou, sequer implicitamente, o art. 133 do Código de Processo Civil. Incidência da Súmula 211 do Superior Tribunal de Justiça: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”. 3. O Tribunal a quo entendeu presente o erro judiciário, apto a gerar a responsabilidade indenizatória, porque substancial, inescusável e culposo, decorrente de prisão indevida do autor, como depositário infiel, fixados em 200 salários-mínimos a compensação por danos morais. 4. O tempo de duração da prisão indevida é fator influente ao cálculo da compensação por danos morais. Considerado que pelo tempo de cárcere, aproximadamente sete horas, a fixação do dano moral em 200 salários-mínimos é exorbitante, devendo ser reduzida para a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais), que melhor se ajusta aos parâmetros adotados por esta Corte. 5. Quanto à aplicação de multa em embargos declaratórios opostos pela recorrente, merece reparo o acórdão, haja vista que, no caso particular, não possuem o necessário caráter protelatório a autorizar a manutenção da penalidade insculpida no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil. Recurso especial parcialmente provido. REsp 1209341/SP; Relator(a): Ministro HUMBERTO MARTINS; Órgão Julgador: T2 - SEGUNDA TURMA; Data do Julgamento: 21/10/2010; Data da Publicação: DJe, 09/11/2010. 168 11.6.2 O princípio da equidade como critério para fixação da indenização por danos morais - art. 953, parágrafo único, do Código Civil No Recurso Especial nº 1.152.541/RS (2009/0157076-0), de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Sua Excelência recorda sua fundamental obra no assunto em tela, denominada “O Princípio da Reparação Integral – indenização no Código Civil”, na qual destaca o princípio da equidade, mencionado no parágrafo único do art. 953 do Código Civil, como o critério adotado pelo ordenamento jurídico civil vigente para a correta fixação do valor da indenização por danos morais. O voto condutor do julgado mais parece uma obra de doutrina acerca do assunto em exame, merecendo destaque pausado uma de suas partes que toca mais de perto o assunto deste trabalho. Sua Excelência inicia pela constatação da extrema dificuldade hoje vivida pela jurisprudência para a quantificação da indenização por danos morais; afirma que o sistema da tarifação legal da indenização não se coaduna com nosso ordenamento jurídico civil-constitucional, à vista do princípio da integral reparação, importando, inclusive, na declaração de não recepção constitucional da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal; e, por fim, chega ao sistema do arbitramento pelo juiz de forma equitativa como parâmetro adequado à fixação do quantum indenizatório nas lesões aos direitos da personalidade, nos seguintes termos: II – Arbitramento equitativo pelo juiz. O melhor critério para quantificação da indenização por prejuízos extrapatrimoniais em geral, no atual estágio do Direito brasileiro, é por arbitramento pelo juiz, de forma eqüitativa, com fundamento no postulado da razoabilidade. Na reparação dos danos extrapatrimoniais, conforme lição de Fernando Noronha, segue-se o “princípio da satisfação compensatória”, pois “o quantitativo pecuniário a ser atribuído ao lesado nunca poderá ser equivalente a um preço”, mas “será o valor necessário para lhe proporcionar um lenitivo para o sofrimento infligido, ou uma compensação pela ofensa à vida ou integridade física” (NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 569). Diante da impossibilidade de uma indenização pecuniária que compense integralmente a ofensa ao bem ou interesse jurídico lesado, a solução é uma reparação com natureza satisfatória, que não guardará uma relação de equivalência precisa com o prejuízo extrapatrimonial, mas que deverá ser pautada pela eqüidade. No Brasil, embora não se tenha norma geral para o arbitramento da indenização por dano extrapatrimonial semelhante ao art. 496, n. 3, do CC português, tem-se a regra específica do art. 953, parágrafo único, do CC/2002, já referida, que, no caso de ofensas contra a honra, não sendo possível provar prejuízo material, confere poderes ao juiz para “fixar, eqüitativamente, o valor da indenização na conformidade das circunstâncias do caso”. Na falta de norma expressa, essa regra pode ser estendida, por analogia, às demais hipóteses de prejuízos sem conteúdo econômico (LICC, art. 4º). Menezes Direito e 169 Cavalieri Filho, a partir desse preceito legal, manifestam sua concordância com a orientação traçada pelo Min. Ruy Rosado de que “a eqüidade é o parâmetro que o novo Código Civil, no seu artigo 953, forneceu ao juiz para a fixação dessa indenização” (DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil: da responsabilidade civil, das preferências e privilégios creditórios. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 13, p. 348). Esse arbitramento eqüitativo será pautado pelo postulado da razoabilidade, transformando o juiz em um montante econômico a agressão a um bem jurídico sem essa natureza. O próprio julgador da demanda indenizatória, na mesma sentença em que aprecia a ocorrência do ato ilícito, deve proceder ao arbitramento da indenização. A autorização legal para o arbitramento eqüitativo não representa a outorga pelo legislador ao juiz de um poder arbitrário, pois a indenização, além de ser fixada com razoabilidade, deve ser devidamente fundamentada com a indicação dos critérios utilizados. A doutrina e a jurisprudência têm encontrado dificuldades para estabelecer quais são esses critérios razoavelmente objetivos a serem utilizados pelo juiz nessa operação de arbitramento da indenização por dano extrapatrimonial. Tentando-se proceder a uma sistematização dos critérios mais utilizados pela jurisprudência para o arbitramento da indenização por prejuízos extrapatrimoniais, destacam-se, atualmente, as circunstâncias do evento danoso e o interesse jurídico lesado, que serão analisados a seguir. Como se vê, nos termos em que redigido o parágrafo único do art. 953 do Código Civil brasileiro, segundo o julgado acima ementado, a equidade deve ser o critério a ser levado em conta pelo magistrado para a fixação do valor indenizatório no caso de danos morais, sopesado ainda o princípio da razoabilidade, além das circunstâncias do evento danoso, como a gravidade do fato em si e suas consequências para a vítima (dimensão do dano), a intensidade do dolo ou o grau de culpa do agente (culpabilidade do agente), a eventual participação culposa do ofendido (culpa concorrente da vítima), a condição econômica do ofensor, as condições pessoais da vítima (posição política, social e econômica), e, por último, a valorização do bem jurídico lesado (vida, integridade física, honra, nome etc.). 11.6.3 Forma de incidência dos juros moratórios e correção monetária Muito se discute, e ainda assim se decide de forma bastante confusa, a respeito da atualização dos valores apurados a título de danos morais, ou seja, quanto à incidência de juros moratórios e correção monetária. Sumulou-se que os juros moratórios terão como termo inicial a data do evento danoso, nos termos do enunciado nº 54 do Colendo Superior Tribunal de Justiça. Veja-se: “Súmula 54: Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”. 170 A correção monetária fluirá a partir da data do arbitramento do valor da indenização, ou seja, da prolação da sentença ou do acórdão que a reconhecer, nos termos da Súmula nº 362 do Superior Tribunal de Justiça: “Súmula 362: A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”. Veja-se que, nesse ponto, o próprio Tribunal entendeu pelo afastamento de sua Súmula nº 43, que dispõe que para os casos de ilícito extracontratual a correção monetária incide desde a data do evento danoso, consoante decidido no REsp 657.026/SE, relatado pelo Ministro Teori Albino Zavaski, que assim se manifestou: No que pertine à correção monetária sobre dívida decorrente de ato ilícito, determina a Súmula 43/STJ que esta deve correr a partir do evento danoso. Entretanto, consolidou-se o entendimento segundo o qual, nas indenizações por dano moral, o termo a quo para a incidência da atualização monetária é a data em que foi arbitrado seu valor, tendo-se em vista que, no momento da fixação do quantum indenizatório, o magistrado leva em consideração a expressão atual de valor da moeda. Assim, inaplicável, nesses casos, o enunciado da Súmula 43/STJ. Feitos esses esclarecimentos, cumpre-nos, por derradeiro, salientar a existência de recentíssimo julgado do STJ divergente quanto às formas de atualização supracitadas. Assim é que, inobstante os vetores de atualização estarem consagrados em proposições sumulares, no julgamento do REsp 903.258/RS, datado de 30 de junho de 2011, a Ministra Maria Isabel Galloti determinou que os juros moratórios, em se tratando de indenizações por danos morais, devem ter seu termo inicial também desde a data do arbitramento, pouco importando se oriundos de ilícito contratual ou extracontratual; vale dizer, os juros de mora referentes à reparação de dano moral contam-se, de acordo com este julgado, a partir da sentença que determinou o valor da indenização ou do acórdão que a reconheceu. A decisão é da Quarta Turma do STJ e representou novo entendimento sobre o tema na Corte. A maioria dos ministros seguiu o voto da relatora, considerando que, como a indenização por dano moral só passa a ter expressão em dinheiro a partir da decisão judicial que a arbitra, “não há como incidirem, antes desta data, juros de mora sobre a quantia que ainda não fora estabelecida em juízo”. A Ministra Gallotti esclareceu que, no caso de pagamento de indenização em dinheiro por dano moral puro, “não há como considerar em mora o devedor, se ele não tinha como satisfazer obrigação pecuniária não fixada por sentença judicial, arbitramento ou acordo entre as partes”. Como os danos morais somente assumem 171 expressão patrimonial com o arbitramento de seu valor em dinheiro na sentença de mérito, a ministra concluiu que o não pagamento desde a data do ilícito não pode ser considerado omissão imputável ao devedor, para efeito de tê-lo em mora: “Mesmo que o quisesse, o devedor não teria como satisfazer obrigação decorrente de dano moral não traduzida em dinheiro nem por sentença judicial, nem por arbitramento e nem por acordo”. O julgamento que inovou a posição da Quarta Turma diz respeito a uma ação de indenização – por danos materiais, morais e estéticos – de um paciente do Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre (RS). Internado nos primeiros dias de vida, ele foi vítima de infecção hospitalar que lhe deixou graves e irreversíveis sequelas motoras e estéticas. Após a condenação do hospital ao pagamento de pensão mensal vitalícia à vítima, a ministra se propôs a reexaminar a questão do termo inicial dos juros de mora. Nesse ponto, o Ministro Luis Felipe Salomão discordou, considerando que os juros devem contar a partir do evento danoso, afirmando que uma mudança brusca na jurisprudência precisa de uma discussão pela Seção ou pela Corte Especial. Foi, porém, vencido pelos outros ministros, que acompanharam a relatora em seu voto. Assim, consoante todo o fundamentado, ainda que se tenha pela adoção dos critérios sumulados, a jurisprudência do STJ sinalizava um possível overrruling, talvez um dia fixando como termo inicial para a contagem da atualização monetária e também dos juros moratórios a data da sentença ou do acórdão que arbitrar a indenização por danos morais. Entretanto, quando se dava a pensar numa nova orientação a esta respeito, posteriormente ao julgamento do Recurso Especial 903.258/RS acima citado, a questão foi novamente trazida a lume, agora no bojo do REsp 1132866/SP, examinado pela Segunda Seção do STJ, cuja relatoria novamente coube à Ministra Maria Isabel Gallotti, que, mais uma vez, votou no sentido de que a fluência dos juros moratórios deveria começar na data do julgado da condenação. Segundo ela, a questão do termo inicial dos juros de mora no pagamento de indenização por dano moral deveria ser reexaminada, tendo em vista as peculiaridades desse tipo de indenização. A relatora foi acompanhada pelos Ministros Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi e Raul Araújo. Porém, o Ministro Sidnei Beneti iniciou a divergência, no que foi acompanhado pela Ministra Nancy Andrighi e pelos Ministros Luis Felipe 172 Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Villas Bôas Cueva. Assim, a relatora ficou vencida. Para o Ministro Sidnei Beneti, o acórdão do TJ/SP vergastado estava em conformidade com o entendimento do STJ no sentido de que os juros moratórios incidem desde a data do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual (Súmula nº 54/STJ). “Assim, diante de súmula deste Tribunal, a própria segurança jurídica, pela qual clama toda a sociedade brasileira, vem antes em prol da manutenção da orientação há tanto tempo firmada do que de sua alteração”, acrescentou. A Ministra Isabel Gallotti, ao apresentar ratificação de voto após o início da divergência, esclareceu que não estava contradizendo a Súmula nº 54. Especificamente no caso de dano moral puro, que não tem base de cálculo, ela aplicava por analogia a Súmula nº 362, segundo a qual “a correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”. A relatora afirmou ainda que o magistrado, ao fixar o valor da indenização por dano moral, leva em consideração o tempo decorrido entre a data do evento danoso e o dia do arbitramento da indenização pecuniária. Por essas razões, considerou que a data fixada no acórdão proferido pelo tribunal paulista é que deveria ser o termo inicial dos juros de mora, mas acabou vencida. Logo, os juros de mora, nos casos de condenação por dano moral, continuam a incidir a partir da data do evento danoso, consoante decisão da Segunda Seção do STJ, no bojo do REsp 1.132.866/SP, que negou recurso da Empresa Folha da Manhã S/A, condenada a pagar indenização por dano moral ao jornalista Marcelo Fagá (morto em 2003). Com isso, a Segunda Seção manteve o entendimento que já prevalecia no STJ – cuja revisão, ante as peculiaridades do caso, era defendida por parte dos ministros. Apenas para que conste, os juros moratórios e a atualização monetária são acessórios da verba principal devida, que independem, para que constem da condenação, de pedido expresso da parte a quem aproveitam, como deixa claro Renan Lotufo: O novo dispositivo acresce sobre o de origem (art. 1.056 do Código Civil de 1916) por deixar evidente a incidência de juros e atualização monetária das perdas e danos. Portanto, a regra, nessa hipótese, é de aplicação de ofício 173 pelo juiz, não havendo necessidade de pedido da parte. É a sanção do 254 sistema para o inadimplemento absoluto. No âmbito do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há plena adoção das proposições sumulares e jurisprudenciais emanadas do C. STJ e que regulam os termos iniciais dos juros moratórios e correção monetária referentes às indenizações por dano moral: Apelação nº 0000426-44.2010.8.26.0072; Relator(a): Adilson de Araujo; Comarca: Bebedouro; Órgão julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 19/12/2011. Ementa: Ficou demonstrado que o réu incluiu o nome da autora no cadastro de inadimplentes quando esta já havia efetuado o pagamento da parcela apontada no registro desabonador. A quantia fixada a título de danos morais não pode ser fator de enriquecimento injustificado do indenizado, mas também não pode gerar excesso na direção oposta, tornando-se extremamente modesta e não provocando qualquer esforço à devedora para adimpli-la. O arbitramento feito atende a tais princípios, ajustando-se à situação fática apresentada. O termo inicial da correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento na sentença conforme Súmula nº 362 do STJ. Apelação nº 9218340-45.2006.8.26.0000; Relator(a): João Carlos Saletti; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 13/12/2011. Ementa: Dano moral. Situação de tristeza e angústia de compradores de imóvel novo, que o encontram danificado por águas servidas provindas do vizinho de cima. Danos demonstrados. Indenização devida. Valor fixado conforme os princípios de razoabilidade e proporcionalidade. Sentença mantida. Juros moratórios. Incidência. Termo inicial. Data do evento lesivo. (Súmula 54 do STJ). Sentença mantida. De todo o exposto, espera-se ter ficado esclarecido que a jurisprudência adotou para as verbas acessórias dos danos morais termos iniciais parcialmente diversos daqueles que o Código Civil e a legislação extravagante disciplinam para a indenização por danos materiais. Assim, por exemplo, o termo inicial da correção monetária nos danos morais se dá apenas no momento da prolação da decisão que fixar a indenização desta espécie, isso em virtude de pura construção jurisprudencial, enquanto a reparação por danos materiais, se líquida e exigível a dívida, tem como termo a quo a data do vencimento da prestação, nos termos do art. 397 do Código Civil (mora ex re). No que toca à contagem dos juros de mora, que pareciam ter seu termo inicial de fácil constatação, por expressa previsão dos artigos 405 do CC e 219, § 5º, do CPC, isso é, após a citação, também se verificou uma variante. Com efeito, tratando254 LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2, p. 431. 174 se de indenização por danos morais, fica reconhecida a aplicação do art. 398 do Código Civil, bem como da súmula 54 do STJ, contando-se os juros moratórios desde a data do ato ilícito que gerou a compensação. Neste caso, o art. 405 do CC e o art. 219, § 5º, do CPC, reservam-se à hipótese de indenização por danos materiais que não tenham data de vencimento (mora ex persona) e também se inexistente notificação extrajudicial ou judicial para pagamento, caso contrário este último será o termo inicial, em virtude da constituição da mora antes da citação para o processo de cobrança. 11.7 Uso Indevido da Imagem e o Arbitramento da Respectiva Indenização O uso indevido da imagem, enquanto lesão a direito da personalidade ensejador de reparação, merece uma análise mais pausada, pois, segundo Sérgio Cavalieri Filho255, “[...] embora revestida de todas as características comuns aos direitos da personalidade, a imagem destaca-se das demais pelo aspecto da disponibilidade”. A imagem foi expressamente tutelada no artigo 20 do Código Civil. Vejamos: Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Referida inviolabilidade da imagem foi previamente assegurada pela Constituição Federal, especificamente em seu artigo 5º, incisos V e X. Ocorre que a imagem de uma pessoa, a despeito da proteção supradescrita, pode ser utilizada em campanhas publicitárias de produtos e serviços, mediante autorização de seu titular. É certo, contudo, que a autorização da utilização da imagem não importa em renúncia por seu titular, já que não produz a extinção do direito e possuiu um destinatário favorecido por sua cessão. E, é claro, essa disposição em favor de outrem não implica em qualquer lesão, tornando legítimo o uso da imagem por terceira pessoa.256 255 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 108. Ibid., p. 109-110. 256 175 Consoante lição de Sérgio Cavalieri Filho 257, a violação do direito de imagem pode gerar para a pessoa dano material, moral, ou os dois, cumulativamente, nas seguintes hipóteses: O uso indevido da imagem alheia ensejará dano patrimonial sempre que for ela explorada comercialmente sem a autorização ou participação de seu titular no ganho através dela obtido, ou, ainda, quando a sua indevida exploração acarretar-lhe algum prejuízo econômico, como, por exemplo, a perda de um contrato de publicidade. Dará lugar ao dano moral se a imagem for utilizada de forma humilhante, vexatória, desrespeitosa, acarretando dor, vergonha e sofrimento ao seu titular, como, por exemplo, exibir na TV a imagem de uma mulher despida sem a sua autorização. E pode, finalmente, acarretar dano patrimonial e moral se, ao mesmo tempo, a exploração da imagem der lugar à perda econômica e à ofensa moral. Da vasta casuística que envolve a proteção à imagem, transcrevemos abaixo os julgados do Colendo Superior Tribunal de Justiça que demonstram a proteção que se confere ao referido direito personalíssimo: REsp nº 1.082.878/RJ; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão Julgador: T3 TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 14/10/2008; Data da Publicação/Fonte: DJe 18/11/2008. Ementa: Ator de TV, casado, fotografado em local aberto, sem autorização, beijando mulher que não era sua cônjuge. Publicação em diversas edições de revista de “fofocas”. A existência do ato ilícito, a comprovação dos danos e a obrigação de indenizar foram decididas, nas instâncias ordinárias, com base no conteúdo fático-probatório dos autos, cuja reapreciação, em sede de recurso especial, esbarra na Súmula nº 7/STJ. Por ser ator de televisão que participou de inúmeras novelas (pessoa pública e/ou notória) e estar em local aberto (estacionamento de veículos), o recorrido possui direito de imagem mais restrito, mas não afastado. Na espécie, restou caracterizada a abusividade do uso da imagem do recorrido na reportagem, realizado com nítido propósito de incrementar as vendas da publicação. A simples publicação da revista atinge a imagem do recorrido, artista conhecido, até porque a fotografia o retrata beijando mulher que não era sua cônjuge. Todas essas circunstâncias foram sopesadas e consideradas pelo TJ/RJ na fixação do quantum indenizatório, estipulado com base nas circunstâncias singulares do caso concreto. A alteração do valor fixado implicaria em ofensa à Súmula nº 7/STJ. Tratando-se de responsabilidade extracontratual, decorrente de ato ilícito, os juros de mora contam desde a prática do ilícito, de acordo com a regra do art. 398, do CC, e com a Súmula nº 54/STJ. Tendo o autor decaído apenas em pontos de pouca significância em face do pleito indenizatório, a recorrente deve arcar com a totalidade das custas e honorários advocatícios. Em ação de danos morais, os valores pleiteados na inicial são meramente estimatórios, não implicando em sucumbência recíproca a condenação em valor inferior ao pedido. Recurso especial não conhecido. REsp 1.063.304/SP; Relator(a): Ministro ARI PARGENDLER; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 26/08/2008; Data da Publicação/Fonte: DJe 13/10/2008. Ementa: CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. REPORTAGEM DE JORNAL A RESPEITO DE BARES FREQUENTADOS POR HOMOSSEXUAIS, ILUSTRADA POR FOTO DE DUAS PESSOAS EM VIA PÚBLICA. A 257 Ibid., p. 110. 176 homossexualidade, encarada como curiosidade, tem conotação discriminatória, e é ofensiva aos próprios homossexuais; nesse contexto, a matéria jornalística, que identifica como homossexual quem não é, agride a imagem deste, causando-lhe dano moral. Recurso especial conhecido e provido em parte. Mesma proteção conferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Apelação nº 0134250-63.2006.8.26.0000; Relator(a): José Luiz Gavião de Almeida; Comarca: Osasco; Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 29/11/2011. Ementa: Responsabilidade civil. Dano moral. Configuração em razão do uso indevido da imagem. Caso em que se demonstrou que não foi dada autorização para a veiculação das fotografias. Redução da indenização indevida. Recurso improvido. Apelação nº 9247965-56.2008.8.26.0000; Relator(a): Fábio Quadros; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 24/11/2011. Ementa: Uso indevido de imagem. Indenização por danos morais. Evento ocorrido nas dependências da ré com divulgação não autorizada de foto da autora em revista de circulação interna. Desimportância de tratar-se a ré de entidade sem fins lucrativos e de ter ocorrido prejuízo com o evento. Dever de indenizar que decorre do próprio uso indevido da imagem. Honorários advocatícios que devem ser reduzidos, aplicado o § 3º, do art. 20, do Código de Processo Civil. Preliminar afastada. Recurso parcialmente provido com observação. Apelação nº 0119966-16.2007.8.26.0000; Relator(a): Moreira Viegas; Comarca: Franca; Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 23/11/2011. Ementa: Indenização - Danos materiais e morais. Violação à imagem. Matéria jornalística que mostra os menores com referência expressa a uma gravidez precoce. Uso indevido da imagem dos menores sem a devida autorização de sua representante. Danos morais configurados Incidência da Súmula nº 403, do STJ. Recurso não provido. Vê-se, assim, que o uso indevido da imagem alheia pode acarretar o dever de pagamento da indenização por danos materiais e morais, sendo a fixação da verba indenizatória desta última espécie de dano (o moral) a que mais nos importa neste estudo. Num primeiro momento, houve a defesa da tese de que o valor da indenização por abalo moral decorrente do uso indevido da imagem se circunscreveria ao proveito econômico obtido pelo lesante caso a publicação fosse autorizada. Posteriormente, doutrina e jurisprudência, de forma majoritária, passaram a afirmar que o valor da indenização pela indevida utilização da imagem não deve ser o mesmo que normalmente se obteria pela utilização autorizada.258 Isso porque, 258 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 112. 177 segundo o doutrinador Sérgio Cavalieri Filho259, “se assim não for, a ilicitude passará a ser um estímulo e ninguém mais respeitará a imagem de ninguém”, pois, “com ou sem o consentimento do titular, a sua imagem será utilizada e as consequências serão as mesmas”, e, por óbvio, “o efeito do ato vedado não pode ser o mesmo do ato permitido, sobretudo quando há implicações de ordem moral”. A jurisprudência se apresenta, sobretudo no STJ, tendenciosa a esta posição, não se pautando o valor indenizatório dos danos morais ao lucro obtido pelo lesante, nem se o ofendido é desconhecido, nem se é conhecido: REsp 1.208.612/RJ; Relator(a): Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 15/03/2011; Data da Publicação/Fonte: DJe 24/03/2011. Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. USO INDEVIDO DA IMAGEM. JORNAL DE GRANDE CIRCULAÇÃO. DIREITO AUTÔNOMO. SÚMULA Nº 403/STJ. VALOR DA INDENIZAÇÃO. VINCULAÇÃO À TIRAGEM DO PERIÓDICO. IMPROPRIEDADE. 1. A preferência do julgador por esta ou por aquela prova está inserida no âmbito do seu livre convencimento motivado, não cabendo compelir o magistrado a acolher com primazia determinada prova, em detrimento de outras pretendidas pelas partes, se pela análise das provas em comunhão estiver convencido da verdade dos fatos. 2. “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais” (Súmula nº 403/STJ). 3. Cuidando-se de pessoa anônima, a vinculação da indenização por uso da imagem ao percentual do preço de venda do veículo no qual a imagem foi publicada, de regra, não é consentânea com a essência de indenizações desse jaez. Indeniza-se o titular do direito de imagem pelo não recebimento do preço que lhe seria devido, caso a concessão fosse feita mediante autorização, e pelo respectivo valor econômico da imagem, que varia a depender do potencial publicitário da pessoa retratada. 4. Com efeito, no caso concreto, tendo em vista que o autor é absolutamente desconhecido e certamente não poderia, mediante a vinculação de sua imagem ao produto, propiciar qualquer alavancagem nas vendas do periódico, não se mostra razoável atrelar o valor da indenização à vendagem do jornal. 5. Recurso especial da Infoglobo Comunicações S.A. parcialmente provido. 6. Recurso especial da Empresa Folha da Manhã S.A. provido, por inexistência de qualquer ato ilícito de sua parte. REsp 100.764/RJ. RECURSO ESPECIAL: 1996/0043232-5; Relator(a): Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 24/11/1997; Data da Publicação/Fonte: DJ 16/03/1998, p. 137. Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. DIREITO À IMAGEM. INDENIZAÇÃO. JUROS. ÁLBUM DE FIGURINHAS. “HERÓIS DO TRI”. O valor do dano sofrido pelo titular do direito, cuja imagem foi indevidamente incluída em publicação, não está limitado ao lucro que uma das infratoras possa ter auferido, pois o dano do lesado não se confunde com o lucro do infrator, que inclusive pode ter sofrido prejuízo com o negócio. Os juros devidos na indenização por ilícito absoluto correm desde a data do fato. Recurso conhecido em parte e, nesta, provido. 259 Ibid., p. 112. 178 Além do pagamento da indenização por danos materiais e morais, impende ainda que se refira ao posicionamento jurisprudencial que determina a publicação, pelo veículo de informação ofensor, da sentença de procedência da demanda indenizatória contra uso indevido do direito de imagem, como no caso de exposição ilegítima em revista masculina de uma mulher, julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: Apelação nº 0086833-85.2004.8.26.0000; Relator(a): Enio Zuliani; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 10/11/2011. Ementa: Apelação antiga (redistribuída em virtude da Resolução nº 542/2011). Responsabilidade civil. Indenização por danos morais e materiais. Utilização, de fotografia da autora em revista especializada direcionada ao público masculino (Playboy). Ausência de autorização. Alegação de consentimento tácito. Inexistência. A obrigação da reparação decorre do próprio uso indevido do direito personalíssimo, não havendo de cogitar-se da prova da existência de prejuízo ou dano. Sentença de procedência, condenando a ré ao pagamento de indenização por danos materiais, morais, e determinação para que o periódico publicasse a sentença. Recurso de ambas as partes. Provimento, em parte, do recurso da ré, para reduzir o quantum da indenização por danos morais para R$ 5.000,00, afastando a condenação por danos materiais, bem como a determinação para publicação da sentença. Também do Tribunal de Justiça de São Paulo, colhe-se um julgado do ano de 2013, no qual se pontuou que o fato de a pessoa conversar com um repórter, por si só, já demonstra sua anuência com a publicação de reportagem, mesmo que não haja autorização por escrito, negando o direito de um homem ser indenizado pela TV Globo por conta de uma reportagem feita com ele depois de seu envolvimento em um acidente de trânsito. Após atropelar e matar um agente de trânsito em São Paulo, dias depois do acidente, em agosto de 2003, o autor da ação foi entrevistado para uma reportagem sobre mortes em acidentes de trânsito no Brasil. Ele alega, porém, que não autorizou a exibição da entrevista — o que daria causa ao dano moral. O homem argumentou, ainda, que a veiculação da reportagem causou transtornos a ele e seus familiares, como a perda de seus clientes de transporte escolar e a demissão de sua esposa. Além disso, o autor sustentou que houve abuso da liberdade de imprensa na exibição de matéria tendenciosa, que o apenou por um erro já sancionado pela Justiça. Entretanto, o magistrado Roberto Maia, relator do recurso, considerou que, embora não haja prova da autorização por escrito, o homem concordou em falar e permitiu que a equipe de reportagem entrasse em sua casa. Fundamentou ainda que não houve desrespeito à intimidade 179 e que o Globo Repórter se limitou a retratar um fato reconhecido pelo próprio autor e que havia se tornado notícia em todo país. Acrescentou que a emissora agiu de acordo com a liberdade de imprensa e dentro de padrões de qualidade, sem ferir a honra do homem, que teve participação mínima na reportagem, nos seguintes termos da ementa do julgado: APELAÇÃO n° 9168942-95.2007.8.26.0000, 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Roberto Maia. Ementa: AÇÃO INDENIZATÓRIA. ENTREVISTA GRAVADA E EXIBIDA NA TELEVISÃO SEM AUTORIZAÇÃO POR ESCRITO DO AUTOR. PEDIDO DE DANOS MORAIS. 1) Direitos à privacidade e à imagem. Artigo 5º, inciso X, CF. Ausência de violação. Demandante concordou em falar com o repórter da demandada, deixando que ele e a equipe do programa entrassem na casa, onde foi gravada a conversa. Quando não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, a gravação feita por um dos interlocutores, ainda que sem autorização do outro, é lícita, de modo que o material daí extraído pode ser usado até mesmo como prova em processo penal, conforme sólida jurisprudência do STF. Tendo se colocado nessa situação, por vontade livre e consciente, não pode o autor, agora, retroceder e querer punir a ré. Boa-fé objetiva, princípio geral do direito, proíbe o venire contra factum proprium. 2) Direito à intimidade. Inexistência de desrespeito. Programa da demandada se limitou a retratar um fato amplamente divulgado nas páginas dos jornais e no noticiário televisivo. Foi instaurado processo penal em virtude do acidente provocado pelo demandante, de sorte que os autos poderiam ser consultados por qualquer indivíduo. 3) Direito à honra. Não ocorrência de qualquer menoscabo. Requerida divulgou em um programa jornalístico fatos verídicos, sem qualquer distorção da realidade. 4) Liberdade de imprensa. Artigos 5º, inciso IX e 220, caput, §§ 1º e 2º, da CF. Exercício regular. Ré abordou a questão da embriaguez ao volante, tema de grande interesse público. Não recorreu ao sensacionalismo, nem a comentários grosseiros e apelativos. Participação do autor no programa foi mínima. Para finalizar este item, vale lembrar a redação da recente Súmula nº 403 do STJ: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”. Bem por isso, a Rádio e Televisão Bandeirantes Ltda. foi condenada a pagar para a apresentadora Xuxa a quantia de R$1.000.000,00 (um milhão de reais) por danos materiais e mais R$100.000,00 (cem mil reais) por danos morais, em virtude da exibição de fotos antigas e originalmente feitas para uma revista masculina, ante a ausência de autorização da artista para tanto (AResp n. 301.020 do STJ). 180 12 RELAÇÃO ENTRE A INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NO BRASIL E OS PUNITIVE DAMAGES NOS EUA A possibilidade de se indenizar o dano moral sofrido por uma pessoa, em tese, nenhuma relação guarda com a concomitante punição a ser impingida ao causador do prejuízo. Indenizar, como sabido, trata-se da recomposição do patrimônio material daquele que se viu vítima de um infortúnio. Em princípio, deveria a palavra “indenização” ser empregada apenas para a reparação do dano material. Com alguma divergência, entende a grande maioria da doutrina que o dano moral não pode ser reparado, porquanto a dor espiritual não tem conteúdo econômico, daí não poder ser mensurada a respectiva indenização. Para os casos de dano moral, nesse quadro, teria cabimento uma mera compensação da dor sofrida pela vítima por uma quantia em dinheiro. Assente, então, que o dano material se indeniza e o dano moral se compensa por valor em espécie. Nada obstante, tanto a doutrina quanto a jurisprudência aceitam, sem problemas, o termo “indenização” para tratar da reparação do dano material e da compensação do dano moral. Resumindo, não há qualquer equívoco ao se falar em “indenizar” o dano material ou o dano moral. Isto posto, pode-se dizer que, tendo sido praticado um ato causador de dano material ou moral, terá cabimento uma indenização, por meio da qual uma quantia em dinheiro servirá como reparação pelo prejuízo material e como compensação pelo prejuízo imaterial. Veja-se, entretanto, que, em momento algum, mencionou-se a indenização como instrumento hábil à punição do agente causador do dano, mesmo tendo este atuado imbuído de dolo, má-fé ou culpa grave. Por outro modo, em termos técnicos, não se poderia pensar na indenização como meio para se apenar o agente causador de dano, tampouco como instrumento para dissuadir a prática de outras condutas danosas idênticas. Não poderia, assim, a indenização desenvolver os aspectos de repressão e prevenção quanto à prática de atos causadores de prejuízos materiais e morais, como se dá com a indenização punitiva estadunidense. Como dito, entretanto, apenas no trato estritamente técnico do tema é que se pode chegar a tal conclusão. Isso porque a pesquisa da doutrina e da jurisprudência brasileiras aponta conclusão diversa da acima mencionada, qual seja, de que a 181 indenização não tem como única finalidade a recomposição do dano material e a compensação pelo dano moral, com a possibilidade também de servir como instrumento de punição ao agente causador do prejuízo, da forma como atuam os punitive damages dos Estados Unidos. Ora, afinal, então, tem ou não a indenização por danos morais no Brasil a função punitiva ao agente causador do dano, atuando como instrumento de repressão e prevenção, como a pena criminal? É exatamente esta dúvida doutrinária e jurisprudencial que se põe para exame nos itens que se seguem neste capítulo, iniciando-se pela doutrina e passando-se pelo posicionamento dos tribunais. 12.1 O Posicionamento da Doutrina Brasileira Em primeiro plano está a doutrina que responde negativamente à indagação em comento, sem que se reconheça à indenização por danos morais qualquer elemento de caráter punitivo. Nesse sentido, o texto que se considerou o mais bem fundamentado foi escrito por Maria Celina Bodin de Moraes, que inicia seu pronunciamento alertando para a existência de eminentes doutrinadores e julgados pela tese contrária à que defende, nos seguintes termos: De fato, a tese da função punitiva da reparação do dano extrapatrimonial conta atualmente no Brasil com ilustres e ardorosos defensores, tanto em doutrina como na jurisprudência. Não são poucos os que afirmam que a satisfação do dano extrapatrimonial visa, além de atenuar o sofrimento injusto, desafrontar o inato sentimento de vingança, retribuindo o mal com o mal; prevenir ofensas futuras, fazendo com que o ofensor não deseje repetir o comportamento; e servir de exemplo, para que tampouco se queira imitálo. Diz-se, então, que a reparação do dano extrapatrimonial possui uma dupla função, constituindo-se por meio de um caráter compensatório, para confortar a vítima, ajudando-a a sublimar as aflições e tristezas decorrentes do dano injustificado, e de um caráter punitivo, cujo objetivo é, em suma, impor uma penalidade exemplar ao ofensor, consistindo esta na diminuição de seu patrimônio material e na transferência da quantia para o patrimônio 260 da vitima. Feita esta ressalva, todavia, passa Maria Celina Bodin de Moraes, com fundados argumentos, a externar seu posicionamento contrário à tese punitiva da indenização por danos morais, afirmando que “apesar do posicionamento doutrinário 260 MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 47, abr./jun. 2004. 182 e jurisprudencial acima referido, não há na legislação brasileira nada que autorize a aplicação de uma função punitiva, ao lado da função compensatória, à indenização de danos extrapatrimoniais”.261 Ao contrário, chama a atenção para o fato de que “o instituto dos chamados (erroneamente) danos punitivos foi, por diversas vezes, rejeitado pelo legislador nacional”.262 Com efeito, o artigo 16 do Projeto do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, que contemplava a indenização punitiva, foi vetado quando da sanção do Código. Assim, afirma Maria Celina Bodin de Moraes que [...] relevante parece ser o fato de que quando se teve a melhor oportunidade para tanto, isto é, no âmbito da proteção ao consumidor, cujo correspondente americano é a tortius liability, onde os punitive damages alcançaram a fama e o sucesso, a opção brasileira foi no sentido de não 263 adotar qualquer caráter punitivo na reparação do dano. O dispositivo previa: Art. 16 - Vetado - Se comprovada a alta periculosidade do produto ou serviço que provocou o dano, ou grave imprudência, negligência ou imperícia do fornecedor, será devida multa civil de até um milhão de vezes o Bônus do Tesouro Nacional - BTN, ou índice equivalente que venha substituí-Io, na ação proposta por qualquer dos legitimados à defesa do consumidor em juízo, a critério do juiz, de acordo com a gravidade e a proporção do dano, bem como a situação econômica do responsável. Das razões do veto consta que [...] o art. 12 e outras normas já dispõem de modo cabal sobre a reparação do dano sofrido pelo consumidor. Os dispositivos ora vetados criam a figura da “multa civil”, sempre de valor expressivo, sem que sejam definidas a sua 264 destinação ou validade. Segundo, ainda, a mesma Maria Celina Bodin de Moraes, [...] não há no Código Civil de 2002 – e nem tampouco havia no de 1916 – a contemplação de um caráter punitivo, não trazendo qualquer regra permissiva de inserção de parcela punitiva na reparação do dano extrapatrimonial; aliás, os indícios são fortemente contrários ao juízo de punição: basta pensar no parágrafo único do art. 944, quando alude a reduzir o valor da indenização (e, em obrigatória interpretação a contrário sensu, impede que o juiz a aumente), e no art. 403, em tema de responsabilidade contratual, quando afirma que “ainda que a inexecução 261 MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 47, abr./jun. 2004. 262 Ibid. 263 Ibid., p. 47-48. 264 Ibid., p. 48. 183 resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos 265 efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato”. O Projeto de Lei n° 6.960, apresentado em 2 de junho de 2002, pelo deputado Ricardo Fiuza, previa a inclusão de um novo parágrafo ao artigo 944, no bojo das 188 modificações ao texto do sancionado Código de 2002, com a seguinte redação: “Art. 944, § 2º. A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”. Já o relatório que gerou o Substitutivo ao Projeto de Lei nº 6.960/2002, de autoria do deputado Vicente Arruda, veio rejeitar a proposta, sob a seguinte justificativa: Art. 944. A doutrina define o dano moral de várias formas. Todas as definições, entretanto, são coincidentes no que diz respeito a ser referente ao dano de bens não patrimoniais ou não econômicos do lesado. Em nenhum lugar a indenização por dano moral é relacionada à pena. É justamente esse caráter de pena que ora se pretende dar quando o PL diz: “adequado desestímulo ao lesante”. Além do mais confere-se ao juiz um arbítrio perigoso porque não delimita a fronteira entre o dano efetivo e o adequado desestímulo ao cometimento de futuros atos ilícitos. Cria também um duplo critério de avaliação da indenização. O critério para cálculo do valor da indenização do dano, tanto para o material quanto para o moral, deve ser o da sua extensão. Pela rejeição. Ainda, argui-se que a quantia fixada a título de indenização punitiva atuaria como elemento de enriquecimento sem causa, como alertado por Giovanni Ettore Nanni. Para ele, “apesar da opinião de alguns autores clássicos em defesa de tal ponto de vista, a pena privada não vingou como um elemento preponderante na fixação dos danos extrapatrimoniais”266, já que, “assim procedendo, estar-se-ia concedendo uma indenização superior ao dano efetivo, o que, em princípio, configuraria um enriquecimento sem causa”267, concluindo que, “à luz dessas vertentes, apesar de consistir tema arenoso, não parece ser apropriada a adoção da linha oriunda da common law para aplicação de danos punitivos ou ditos punitive damages no Direito Brasileiro”268. Enfim, aí estão os argumentos de que se valem os juristas que negam à indenização por danos morais qualquer elemento de repressão ou prevenção quanto aos atos causadores de prejuízos extrapatrimoniais. 265 MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 48-49, abr./jun. 2004. 266 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 354. 267 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 358. 268 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 354. 184 Por outro lado, mesmo diante dos fortes argumentos acima alinhavados, é torrencial a doutrina nacional que enxerga na indenização por danos morais também um aspecto dos punitive damages, isto é, de punição ao agente prejudicial, como se demonstra adiante. Para Maria Helena Diniz, “a reparação pecuniária do dano moral deverá proporcionar ao lesado uma satisfação compensatória e desestimular a prática de atos ofensivos, inibindo conduta antissocial”.269 Segundo Wilson Melo da Silva, o quantum indenizatório “apresentaria um aspecto iniludível de pena”.270 Cláudio Luiz Bueno de Godoy, se pronuncia da maneira a seguir: Com efeito, o dano que se prefere denominar extrapatrimonial consubstancia vulneração a direitos de personalidade e reclama fixação indenizatória que represente uma compensação à vítima, da mesma maneira que, simultaneamente, deve representar um desestímulo ao ofensor, ainda que, no caso concreto, se pondere o grau de culpabilidade do agente, se afinal não se arbitra o quantum indenizatório pela extensão de 271 um prejuízo que não é materialmente mensurável. Para Sérgio Cavalieri Filho, “a indenização punitiva do dano moral surge como reflexo da mudança de paradigma da responsabilidade civil e atende a dois objetivos bem definidos: a prevenção (através da dissuasão) e a punição (no sentido de retribuição)”.272 Carlos Roberto Gonçalves chama a atenção para que: A reparação pecuniária do dano moral tem duplo caráter: compensatório para a vítima e punitivo para o ofensor. Ao mesmo tempo em que serve de lenitivo, de consolo, de uma espécie de compensação para atenuação do sofrimento havido, atua como sanção ao lesante, como fato de desestímulo, 273 a fim de que não volte a praticar atos lesivos à personalidade de outrem. Silvio de Salvo Venosa aponta que “a indenização por dano exclusivamente moral denota um cunho eminentemente punitivo e não indenizatório”. 274 Segundo Luiz Antonio Rizzato Nunes: Como se viu, no dano moral não há prejuízo material. Então, a indenização nesse campo possui outro significado. Sue objetivo é duplo: satisfativopunitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá proporcionar ao ofendido uma satisfação, uma sensação de compensação capaz de amenizar a dor 269 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 859. SILVA, Wilson Melo da. Da responsabilidade civil automobilística. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 371. 271 GODOY, Cláudio Luiz. PELUSO, Cezar. (Org.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Barueri: Manole, 2007. p. 910. 272 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. P. 98. 273 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 628. 274 VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p. 204. 270 185 sentida. Em contrapartida, deverá também a indenização servir como punição ao ofensor, causador do dano, incutindo-lhe um impacto suficiente 275 para dissuadi-lo de um novo atentado. Para Arnaldo Rizzardo, “domina a teoria do duplo caráter da reparação, que se estabelece na finalidade da digna compensação pelo mal sofrido e de uma correta punição do causador do ato”.276 E, segundo Carlos Alberto Bittar, “o caráter reparatório impõe, ademais, como vimos realçando, a atribuição de valor que iniba o agente de novas investidas”.277 Nas palavras de Luís Antonio Rizzato Nunes, no dano moral não há prejuízo econômico, possuindo a indenização outro significado. Seu objetivo é duplo: satisfativo-punitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá amenizar a dor sentida. Em contrapartida, deverá também a indenização servir como castigo ao ofensor, causador do dano, incutindo-lhe um impacto tal, suficiente para dissuadi-lo de um novo atentado.278 Por fim, Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler se posicionam favoráveis à indenização punitiva afirmando que os instrumentos colocados à disposição pelo sistema jurídico nacional, sobretudo a cláusula de indenizabilidade irrestrita da Constituição Federal (artigo 5º, incisos V e X), são suficientes à fixação de quantia em favor da vítima desde que respeitadas algumas condições, como a prática de um ilícito pelo agente imbuído de dolo ou até mesmo culpa grosseira.279 Em arremate da questão, conforme noticiam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, a função pedagógica da responsabilidade civil foi consolidada na Jornada nº. IV de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, resultando no enunciado nº 379: “O CC 944 caput não afasta a possibilidade de se reconhecer a função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil”.280 275 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 70-71. 276 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 261. 277 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civil: teoria e prática. São Paulo: Forense Universitária, 2005. p. 116. 278 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. O dano moral e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 2. 279 MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana de Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista CEJ, Brasília, n. 28, p. 15-32, jan./mar. 2005. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/revista/numero28/artigo02.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2011. 280 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 723. 186 12.2 A Questão no Tribunal de Justiça de São Paulo Da mesma forma, é torrencial a jurisprudência paulista que enxerga na indenização por danos morais também um aspecto dos punitive damages, isto é, de punição ao agente prejudicial, como assentado no v. acórdão relatado pelo Exmo. Desembargador Sérgio Shimura e nos julgados que se seguem, todos recentíssimos: INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS. Protesto e negativação indevidas. Reconhecimento da ilegalidade das anotações em ação declaratória de inexistência de débito. Petição inicial que veio acompanhada dos documentos indispensáveis à propositura da ação. Inocorrência de inépcia da inicial. Protesto datado de 17/05/2001. Ordem judicial, datada de 14/07/2008, para cumprimento do acórdão, para excluir o nome da autora do SCPC e dar baixa no protesto. Dano que se prolongou no tempo. Ausência de prescrição. Reconhecimento judicial da ilegalidade do protesto e negativação do nome da autora Indenização por dano moral que tem previsão constitucional (artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal), tendo caráter dúplice, devendo ser considerado tanto o aspecto compensatório à vítima como o punitivo ao causador do dano, desestimulando-o à prática de atos semelhantes - O dano moral não se limitou a um mero aborrecimento, até porque ninguém fica indiferente ao ter seu nome negativado - O valor fixado, de R$ 1.500,00, mostra-se abaixo do devido Majoração para R$ 10.000,00, mais consentâneo ao caso em tela Apelação nº 0026037-42.2009.8.26.0554 - 23ª Câmara de Direito Privado – TJSP, Relator Sérgio Shimura (grifado). Apelação nº 9101010-22.2009.8.26.0000; Relator(a): Rubens Rihl; Comarca: Santos; Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 26/10/2011. Ementa: APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM DÍVIDA ATIVA. PROPOSITURA DO EXECUTIVO FISCAL. Dano moral decorrente da inscrição indevida. Caracterização de erro da municipalidade. Existência de nexo de causalidade entre o ato da Administração e o evento danoso. Incidência da responsabilidade objetiva do ente público. Inteligência do art. 37, § 6º do CF. Dano moral caracterizado por força do simples fato da violação. Desnecessidade de comprovação do prejuízo. Quantum a ser arbitrado com adequação, observando-se os critérios de razoabilidade e proporcionalidade, bem como em atenção aos aspectos reparador, punitivo e pedagógico da medida. Apelação nº 0187770-84.2010.8.26.0100; Relator(a): João Pazine Neto; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 06/12/2011. Ementa: Ação indenizatória c/c obrigação de fazer. Negativação indevida. Negligência e falta de cautela da Ré/Apelante ao não confirmar a veracidade dos dados do suposto cliente. Dano moral configurado. Dever de indenizar caracterizado. Montante fixado em 50 salários-mínimos, ora reduzido para R$ 5.000,00, nos termos de precedentes da Câmara. Congruência entre as funções ressarcitória e punitiva. Honorária adequada, em consequência da redução da indenização, para 15% do valor da condenação. Apelação nº 0012784-74.2008.8.26.0019; Relator(a): Mendes Gomes; Comarca: Americana; Órgão julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 05/12/2011. Ementa: Para a fixação do valor do dano 187 moral levam-se em conta, basicamente, as circunstâncias do caso, a gravidade do dano, a situação do lesante, a condição do lesado, preponderando, em nível de orientação central, a ideia de sancionamento. Apelação nº 9164982-34.2007.8.26.0000; Relator(a): Soares Levada; Comarca: Santos; Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 28/11/2011. Ementa: Prestação de serviços de telefonia. Cobrança indevida de faturas extraídas de ligações não atribuíveis ao autor, sob pena de inscrição de seu nome nos cadastros de proteção ao crédito. Transtorno indevido e abalo psicológico evidenciado. Indenização a título de dano moral devida, com a dúplice finalidade compensatória às vítimas e punitiva à ofensora. 12.3 A Questão no Superior Tribunal de Justiça Outra não é a posição do Superior Tribunal de Justiça, conferindo também uma conotação de pena pecuniária à indenização por danos morais visando dissuadir a prática de atos da mesma espécie, consoante se verifica das ementas abaixo transcritas: 1. Não há que falar que a apreensão do veículo em blitz por estar o documento de licenciamento fornecido com o ano de exercício errado é um “transtorno corriqueiro”. “Os simples aborrecimentos triviais aos quais o cidadão encontra-se sujeito devem ser considerados como os que não ultrapassem o limite do razoável, tais como: a longa espera em filas para atendimento, a falta de estacionamentos públicos suficientes, engarrafamentos etc.” (REsp 608.918/RS; Rel. Min. José Delgado; Primeira Turma; julgado em 20/05/2004, DJ, 21/06/2004, p. 176.) 2. Não resta dúvida, no presente caso, que o proprietário do veículo sofreu desconforto e constrangimento bastantes para se impor uma compensação pelo infortúnio, que deve ter finalidade compensatória e punitiva, sem patrocinar o enriquecimento sem causa. Recurso especial provido em parte, para determinar a condenação em danos morais no valor de R$ 4.000,00 (quatro mil reais) e honorários advocatícios em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação. (REsp 1.181.395/SC; Relator: Min. Humberto Martins; julgado em 20/04/2010). É de todo conveniente trazer à baila os fundamentos sobre os quais se sustentou o precedente supracitado. A Ministra Nancy Andrighi, ao relatar o REsp 1.171.826/RS, asseverou que, inobstante o STJ evitar rediscussão quanto a questões de fato e de direito, no que tange às indenizações por danos morais: [...] muito excepcionalmente o quantum arbitrado tem sido modificado se a Corte identifica ausente qualquer das seguintes funções: (i) a proporcionalidade da compensação em relação ao sofrimento; (ii) a exemplaridade da punição do ofensor para evitar novo ato danoso. [...] Em situações de serviços de relevância pública que resultam acidentes com vítima fatal, a jurisprudência do STJ baliza a indenização conforme a 188 natureza do dano, a gravidade das consequências, a proporção da compensação em relação ao sofrimento e sua função punitiva. Já o Ministro Honildo Amaral de Mello Castro, ao improver o Agravo Regimental 850.273/BA, manteve in totum a decisão monocrática do eminente Juiz Federal Convocado, Dr. Carlos Fernando Mathias, e que se deu com esteio no fundamento infradescrito: Há, como bastante sabido, na ressarcibilidade do dano em destaque, de um lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima. Como fixar a reparação? Quais os indicadores? Por certo, devido à influência do direito norte-americano muitas vezes invoca-se pedido na linha ou princípio dos “punitive damages”. “Punitive damages” (ao pé da letra, repita-se o óbvio, indenizações punitivas) diz-se da indenização por dano, em que é fixado valor com objetivo a um só tempo de desestimular o autor à prática de outros idênticos danos e a servir de exemplo para que outros também assim se conduzam. Ainda que não muito farta a doutrina pátria no particular, têm-se designado as “punitive damages” como a “teoria do valor do desestímulo” posto que, repita-se, com outras palavras, a informar a indenização, está a intenção punitiva ao causador do dano e de modo que ninguém queira se expor a receber idêntica sanção. No caso do dano moral, evidentemente, não é tão fácil apurá-lo. Ressalte-se, outrossim, que a aplicação irrestrita das “punitive damages” encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada em vigor do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884, do Código Civil de 2002. Assim, o critério que vem sendo utilizado por esta Corte na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e, também, de modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. 12.4 A Questão no Supremo Tribunal Federal Por derradeiro, cumpre citar a ementa de recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Eminente Ministro Decano Celso de Mello, na qual se alude, expressamente, aos punitive damages: 189 Responsabilidade Civil Objetiva do Estado ‒ Dano Causado em Hospital Público. AI 455846/RJ; RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO. EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO. ELEMENTOS ESTRUTURAIS. PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA INCIDÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. FATO DANOSO PARA O OFENDIDO, RESULTANTE DE ATUAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO NO DESEMPENHO DE ATIVIDADE MÉDICA. PROCEDIMENTO EXECUTADO EM HOSPITAL PÚBLICO. DANO MORAL. RESSARCIBILIDADE. DUPLA FUNÇÃO DA INDENIZAÇÃO CIVIL POR DANO MORAL (REPARAÇÃOSANÇÃO): (a) CARÁTER PUNITIVO OU INIBITÓRIO (“EXEMPLARY OR PUNITIVE DAMAGES”) E (b) NATUREZA COMPENSATÓRIA OU REPARATÓRIA. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO. Ocorre que a competência final para exame da grande maioria das questões de Direito Privado, sobretudo as relacionadas à responsabilidade civil, e, por consequência, dos danos morais e sua relação com os punitive damages, após a Constituição Federal de 1.988, se deslocou do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça, daí o reduzido número de julgados da Excelsa Corte acera do tema em comento, salientando-se que a decisão acima referida tratou da indenização punitiva num caso em que era ré uma entidade de Direito Público interno, atraindo a mais alta competência do país por conta da responsabilidade civil objetiva da Administração Pública, a teor do art. 37, § 6º, da Carta Constitucional. Mas o fato é que a decisão tratou de deixar isenta de dúvidas a conclusão de que o Supremo Tribunal Federal acompanha expressamente o raciocínio que atribui “dupla função da indenização civil por dano moral (reparação-sanção): (a) caráter punitivo ou inibitório (“exemplary or punitive damages”) e (b) natureza compensatória ou reparatória”. 12.5 Nosso posicionamento Nesse quadro, mesmo se tendo em consideração que o ativismo judicial somente tem lugar quando autorizado pelo legislador, vê-se o Poder Judiciário, hoje, colocado na berlinda, como última tábua de salvação dos direitos civis, sobretudo dos interesses dos consumidores contra enormes conglomerados econômicos, que, tendo como único norte o lucro, reiteram-se na lesão a direitos alheios. Com efeito, estudos e mesmo a experiência forense apontam que empresas dos ramos bancário, telefônico, securitário, e até prestadoras de serviços essenciais como água e energia elétrica, além de, é claro, o próprio Poder Público, tratam o consumidor como um “nada”. Os serviços de pós-venda, por exemplo, são feitos por 190 atendimento telefônico computadorizado, com infindáveis minutos e até horas de espera. Nada se resolve! Afora isso, no que toca ao tema específico deste estudo, é sabido que existem empresas de comunicação que vivem do sensacionalismo e da imputação de notícias difamatórias contra quem quer que seja que possa gerar lucro, e nem deveriam ser chamadas de entidades de imprensa. E ainda o dolo, a arbitrariedade, e todo o tipo de elemento de má-fé têm hoje impulsionado um número cada vez maior de condutas que só fazem gerar verdadeira desgraça na vida de pessoas de bem, e isso não pode continuar. Resultado disso é, como se viu, a prolação de julgados, cada vez mais comuns em primeira instância, devidamente confirmados em segundo grau, na instância especial (Superior Tribunal de Justiça) e na extraordinária (Supremo Tribunal Federal), impondo indenizações que, camuflando a roupagem de compensação por danos morais, em verdade, têm como intuito inescondível a imposição de uma pena civil ao agente ofensor. E não há como negar a correção desta postura judicial, certo do fato de que nem sempre o direito criminal, sobretudo em tempos de adoção de sua noção como última ratio, pode fazer frente às aspirações da sociedade por uma proteção mais efetiva de seus direitos fundamentais. Assim, a fixação de indenização punitiva é muito bem vinda, e não há necessidade alguma de se promover qualquer mudança relativa à sua nomenclatura ou posicionamento. Em outras palavras, a utilização de critérios como grau de culpabilidade, dolo, reiteração da conduta lesiva, elevado potencial econômico do ofensor e extensão do prejuízo para a vítima, são o bastante para se introduzir na própria indenização por danos morais o conteúdo punitivo ao agente. O fato é que a importação de institutos jurídicos de outros países nem sempre se dá de forma natural, em virtude das peculiaridades de cada país, de forma que não se há de falar em pena privada ou mesmo punitive damages nos Brasil. Basta que a indenização por danos morais seja praticada com mais intensidade no dia a dia dos tribunais para que vá ganhando seus contornos definitivos com o tempo, de forma natural e à moda brasileira. Por outro modo, o tempo trará a consolidação das hipóteses de fixação de indenização punitiva no bojo da compensação por danos morais e o seu respectivo valor. 191 13 PARTICULARIDADES DO SISTEMA JURÍDICO ESTADUNIDENSE 13.1 Organização Judiciária Estadunidense Em síntese, o sistema judiciário estadunidense está dividido em Cortes Estaduais de primeira e segunda instâncias, em Cortes Federais Distritais e Cortes Federais de Apelação do Circuito. A Corte Estadual de última instância, ao decidir um caso, cria o precedente para aquele Estado, o mesmo acontecendo com o julgamento da Corte Federal de Apelação de Circuito, que também cria seus precedentes. Além disso, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabelece precedentes em nível nacional e que são vinculantes para todas as Cortes estaduais e federais. Dessa sorte, quanto à forma de organização do sistema judicial, tal como no Brasil, o Poder Judiciário estadunidense está dividido em âmbitos estadual e federal, que consubstanciam dois sistemas de cortes independentes: o sistema estadual de cortes, gerido autonomamente por cada estado soberano, e o sistema federal de cortes, organizado hierárquica e geograficamente.281 A esfera estadual é formada por Cortes de 1º grau (State Court), uma instância intermediária no caso de alguns Estados (State Court of Appeals) e uma Suprema Corte estadual, que estabelece seus precedentes em relação à interpretação da Constituição Estadual e das leis estaduais, sendo que suas decisões são passíveis de serem atacadas por recurso endereçado à Suprema Corte americana.282 A jurisdição federal é composta por Cortes de 1ª Instância (Federal District Courts) e pelas Cortes Federais de Apelação (United States Circuit Courts of Appeal), totalizando onze regiões mais o distrito federal. As Cortes Distritais Federais julgam relações jurídicas regradas por leis federais, com recursos interpostos perante a Corte de Apelação do respectivo Circuito, que também elabora seus precedentes, podendo ter suas decisões igualmente atacadas por recursos endereçados à Suprema Corte estadunidense. 281 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 03. 282 HAZARD JUNIOR, Geoffrey C.; TARUFFO, Michele. American civil procedure. An introduction. New Haven: Yale University Press, 1993. 192 A Suprema Corte dos EUA é composta por oito magistrados mais o juiz presidente, denominados Justices e Chief in Justice, respectivamente. O Tribunal Excelso estadunidense não está regulado por mandamento legal quanto aos requisitos de admissibilidade dos recursos, sendo detentor de grande autonomia e discricionariedade na seleção de casos que aceita conhecer e julgar, sendo menos de 100 (cem) casos os recebidos, instruídos e julgados a cada ano. Durante uma aula na Escola Paulista da Magistratura de São Paulo, no campus da Rua da Consolação, no ano de 2010, a convidada Professora Toni Fine, Dean Assistant (cargo equivalente a pró-reitor) da Faculdade de Direito da Fordham University de Nova Iorque, indagada por um estudante brasileiro quanto a esse reduzido número de processos julgados anualmente, da forma espontânea e didática que lhe é peculiar, deu exatamente o tom da discricionariedade da Suprema Corte de Justiça americana quanto aos feitos que aceita conhecer, devolvendo a pergunta ao aluno da seguinte maneira: como estudante, se você fosse se submeter a uma prova na faculdade e tivesse a opção de ler 10 livros ou 100 livros para se preparar, quantos você leria? Um silêncio de início se seguiu de algumas gargalhadas e todos entenderam que a competência da Suprema Corte americana é tão ampla ou tão restrita quanto entenderem seus magistrados, como dito, sem nenhum critério legal a ser levado em consideração para tanto. 13.2 A Autonomia dos Estados Federados – a descentralização do poder A formação das federações brasileira e estadunidense adotou caminhos inversos. Enquanto no Brasil havia uma unidade administrativa e, para a formação da federação, houve necessidade de se descentralizar o poder entre os membros federativos, nos Estados Unidos havia várias unidades administrativas autônomas que, em determinado momento, se uniram numa só. Como consequência lógica, a unidade central brasileira, ao repassar poderes às unidades descentralizadas para a formação da federação, o fez de forma cautelosa, resguardando para si a maior parte das atribuições administrativas e legais. Já nos Estados Unidos, o repasse de poder também foi cauteloso, mas lá, como se viu, quem resguardou para si a maior parte das atribuições administrativas e legais foram os Estados Membros, já que eram os detentores originais da soberania. 193 O resultado prático dessa adoção de caminhos contrários para a formação da federação é que no Brasil a maior parte do poder soberano é exercida pela Administração Federal, enquanto nos Estados Unidos são os Estados Membros os maiores executores do poder popular, com suas próprias e acentuadas atribuições administrativas, legais e jurisdicionais. Assim, como primeiro traço relevante da descentralização da soberania estadunidense, citamos a notável divisão de poder, tanto vertical como horizontal, nas estruturas governamentais daquele país. O segundo ponto importante é o fato de que do sistema jurídico estadunidense deflui uma variedade ímpar de fontes do Direito oriundas de cada ramificação governamental – quer federal, quer estadual – gerando uma multiplicidade de fontes secundárias de maior ou menor influência persuasiva. Como um terceiro aspecto relevante, diga-se que o sistema jurídico em comento particulariza-se pela excelência de uma dessas fontes, qual seja, o case law (o precedente) que, consoante já discorrido, tem observância compulsória por força da teoria do stare decisis – política segundo a qual decisões judiciais devem ser seguidas em casos subsequentes que envolvam a mesma questão fáticojurídica. Os pontos acima levantados serão objeto de exame nos itens abaixo, sendo pertinente, agora, que se discorra brevemente sobre a descentralização do poder soberano estadunidense. Consoante já dito, as estruturas governamentais daquele país são caracterizadas por uma minuciosa divisão de poder. Nesse sentido, a Professora Toni M. Fine283 leciona que Os pais da Constituição procuraram descentralizar o poder o quanto possível, a fim de evitar a acumulação de poder em um único organismo ou nas mãos de uma só pessoa. Essa divisão de poder foi pensada e adotada com o intuito de preservar os direitos e as liberdades individuais. Nesse sentido, o federalismo mostra-se como um importante arranjo constitucional, sob o qual os poderes são divididos entre um governo nacional (ou federal), de um lado, e diversos governos estaduais, do outro. Assim, é o federalismo que assegura o relacionamento harmônico entre os poderes de que são dotadas as diversas estruturas governamentais estadunidenses, sendo certo que o poder federal é limitado e tem sua fonte suprema na Constituição dos EUA. Com efeito, a Carta Magna enumera os poderes delegados pelos Estados ao governo federal (diferentemente do Brasil, onde os poderes da União atrofiam os 283 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 2. 194 dos Estados e Municípios). Novamente, valemo-nos das lições proeminentes da citada professora nova-iorquina Toni Fine284: Nos Estados Unidos, o governo federal possui ampla autoridade, mas poderes limitados. Ou seja, a autoridade do governo é limitada aos poderes enumerados na Constituição, sendo que os estados detêm poderes consideráveis. Em cada soberania, isto é, o governo nacional e o governo de cada estado, os poderes estão divididos entre as três ramificações: a legislativa (responsável pela criação das leis), a executiva (responsável pela execução da lei) e a judiciária (responsável pela interpretação das leis. Essa separação de poderes é complementada por um sistema de freios e contrapesos pelo qual cada poder mantém algum controle (freio) sobre os demais. In concreto, a Emenda X à Constituição estadunidense, abaixo transcrita e traduzida, de forma explícita, reserva aos Estados Membros os poderes não delegados ao governo federal central. Dessa forma, os Estados Federados mantiveram considerável grau de autonomia, convivendo numa espécie de dualidade soberana com o governo federal. Vale ainda trazer a anotação de Toni M. Fine de que “a Constituição dos Estados Unidos determina, com base no que pertine ao governo nacional, que cada um dos Estados da Federação deva possuir uma Constituição com sistema semelhante de separação de poderes”.285 13.3 As Fontes do Direito Estadunidense No que concerne às fontes do Direito, consoante já dito, a problemática exsurge do fato de o Direito anglo-americano ser produto de várias destas mencionadas fontes, que podem ser classificadas em primárias ou secundárias, mais especificamente na constatação de que a dualidade do sistema de governo federalista dos Estados Unidos acarreta uma dúplice existência de fontes primárias, que são criadas tanto em nível federal como estadual, sendo este o seu centro nevrálgico.286 Para harmonizar tal aparente reduto de conflituosidade, a Professora Toni M. Fine287 aduz que 284 Ibid., p. 02. FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 2. 286 Ibid., p. 03. 287 Ibid., p. 03. 285 195 Essas fontes devem ser diferenciadas de acordo com os níveis de respeito, baseados em princípios de supremacia (sob a qual uma lei federal válida sobrepõe-se a uma lei estadual que conflita com ela) e de hierarquia (sob a qual normas constitucionais sobrepõem-se às leis que possuem precedência sobre determinações do Poder Executivo, o qual, por sua vez, tem precedência sobre o case law). E, arrematando o raciocínio anterior, assevera que “quando não existe norma definidora primária, as cortes devem consultar fontes primárias não vinculantes, ou uma variedade de fontes secundárias de direito”.288 Nesses termos, pode-se ter a impressão de que o precedente judicial (case law) estaria relegado a uma função marginal e subsidiária ante a produção legislativa dentro do sistema judicial misto dos Estados Unidos. Porém, contraditoriamente, o case law encontra-se em posição de destaque no sistema do common law estadunidense, sendo certo que a leitura, análise e sumarização dos precedentes judiciais são aspectos da diuturna prática forense e do estudo do Direito naquele país.289 Mais uma vez, para equalizar a questão aparentemente inconciliável, deve ser observada a lição da eminente Professora Toni M. Fine290: Segundo as regras do stare decisis, o precedente - os casos judiciais decididos anteriormente - deve vincular a Corte subsequente que esteja considerando uma mesma questão legal. Ainda, embora as fontes constitucionais e legais sejam superiores aos casos na hierarquia das fontes de direito, qualquer case law relevante é consultado quando da aplicação de regras constitucionais ou legais (ou similares) no futuro. Noutras palavras, as cortes estadunidenses não empreendem nova interpretação das normas constitucionais e estatutárias para cada novo caso sub judice; antes, consultam decisões preexistentes sobre a norma legal e que estejam à disposição do julgador, em relação às quais o precedente pode ou não estar vinculado.291 Assim, podemos afirmar que as fontes do Direito estadunidense são classificadas em primárias e secundárias, de forma hierárquica, com base na força de aplicação que carregam. Fontes primárias são as Constituições (federal e estaduais), leis, regulamentos e precedentes vinculantes (as decisões de tribunais 288 Ibid., p. 03. FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 3. 290 Ibid., p. 3-4. 291 Ibid., p. 4. 289 196 de mesma jurisdição). São elas de aplicação obrigatória, sempre que for o caso. As fontes secundárias são decisões não vinculantes (tribunais de jurisdições distintas), doutrina e direito comparado, como tais, meramente persuasivas. Por todo o exposto e consoante dito anteriormente, a tradição jurídica dos Estados Unidos da América é, em princípio, o common law, e, por consequência, a que inspira o seu sistema judicial. Contudo, existem tantas peculiaridades nesse sistema, que sequer pode ser tido como um puro sistema de Direito common law, sendo mais corretamente denominado de sistema misto, justamente em virtude da existência de considerável produção legislativa típica do civil law, que será objeto de estudo mais adiante. Frise-se que, para muitos estudiosos e operadores do civil law, os sistemas inspirados na tradição common law produzem um caótico emaranhado de regras e normas esparsas. Esse fato obriga o operador do Direito a examinar dezenas ou até centenas de decisões das mais diversas jurisdições para conseguir extrair o Direito aplicável e poder construir de forma racional o seu argumento jurídico. Essa circunstância é agravada haja vista a lei também desenvolver relevante função nesse sistema a ponto de prevalecer sempre que em conflito com algum precedente. Entretanto, não raras são as vezes em que a interpretação dos diplomas legais se rende à subjetividade da racionalidade articulada nas decisões dos magistrados. Assim, o operador do Direito nos EUA, quando diante de uma questão jurídica, é obrigado a esmiuçar diversos precedentes à procura de fatos semelhantes que lhe possibilitem construir o argumento jurídico do caso em concreto. Tal método não prescinde, por óbvio, da articulação das leis e regulamentos eventualmente aplicáveis. Dessa sorte, a qualidade de um advogado ou de um magistrado será medida na proporção de sua respectiva perspicácia e eficiência na pesquisa da lei e de decisões de casos concretos. Embora a descrição desse processo cognitivo possa se assemelhar ao de uma jurisdição inspirada pelo civil law, a racionalidade e a metodologia de ensino, além da prática forense, são divergentes. Enquanto no common law o acadêmico é sempre testado a partir de um caso concreto, e em sua capacidade de articular e analisar os fatos semelhantes e a racionalidade do Direito aplicável, no civil law o operador jurídico é treinado e inspirado com base nas teorias jurídicas e 197 principiológicas, e testado em sua capacidade de retratar e transcrever a linguagem da ciência jurídica lecionada a partir do ordenamento jurídico positivado. É por isso que, na derradeira lição da Professora Toni M. Fine 292 deste item, “essas e várias outras características peculiares do sistema jurídico dos Estados Unidos geram grandes desafios aos estudantes, operadores de direito e juízes”. 13.4 Brevíssimas Noções Procedimentais do Direito Estadunidense Quanto às peculiaridades procedimentais existentes no sistema judiciário estadunidense, dentre as infindáveis diferenças com o sistema adotado no Brasil, podemos sintetizá-las na constatação de que o sistema adversarial dos Estados Unidos impõe às partes – através de seus causídicos – o desenvolvimento de todo o caso, este externado pelos fatos e pelas questões legais. Em tal cenário, o magistrado assume papel relativamente passivo em diversos aspectos do julgamento, restando incumbido de garantir que os requisitos atinentes às provas e às outras determinações legais sejam cumpridos, bem como que as questões legais sejam devidamente apresentadas ao júri, competente na maior parte dos litígios judiciais.293 Com efeito, diz-se que o júri é o cartão postal do processo por atos ilícitos nos Estados Unidos.294 E, originalmente, os jurados eram selecionados pelos seus conhecimentos, mas hoje são convocados para dar representatividade à sociedade.295 Assim, o que se verifica é que o sistema processual de responsabilidade civil americano põe um enorme poder na mão dos jurados.296 Por isso, o júri tem um poder sem igual nos casos de danos pessoais naquele país.297 Frise-se, nesse particular, que o direito ao júri é constitucionalmente garantido em causas criminais e civis pelas Emendas VI e VII à Constituição estadunidense, respectivamente.298 292 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 04. 293 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 4. 294 FLEMING, John G. The American tort process. Oxford: Claredon Press, 1988. p. 101. 295 Ibid., p. 105. 296 Ibid., p. 115. 297 O’CONNEL, Jeffrey l. The Lawsuit Lottery – only the lawyers win. New York: The Free Press, 1979. p. 86. 298 Tradução livre do autor das Emendas mencionadas: Emenda VI. Em todos os processos criminais, o acusado terá direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial do Estado e distrito 198 Como dito, o corpo de jurados é formado por leigos, que são reunidos para um julgamento específico, sendo incumbidos de decidir os fatos em litígio, aplicando o Direito a tais fatos em conformidade com as instruções fornecidas pelo juiz. Ainda no que concerne à existência deste júri, enquanto exteriorização de uma das peculiaridades do sistema processual estadunidense, a Professora Toni M. Fine 299 constata que A presença do júri como o investigador do fato gera desafios especiais e uma dinâmica única. Dos procedimentos investigatórios preliminares ao julgamento, no país, são muito mais extensos do que em qualquer outro lugar do mundo. Tais procedimentos têm sido criticados por serem considerados prejudiciais ao sistema, mas também têm sido elogiados por promoverem soluções racionais e permitirem que os julgamentos transcorram de forma mais suave e sem vantagens estratégicas baseadas na surpresa. Vale dizer, outrossim, que a simples possibilidade de ocorrência de condenações pesadas a título de punitive damages, embora para alguns isso não seja comum (e muito menos de incidência obrigatória e desprovidas de quaisquer critérios, como erroneamente imaginado aqui no Brasil), tem um forte impacto nas estratégias de litigância e de acordo. E é nessa esteira que se deu o desenvolvimento dos ADR - Alternative Dispute Resolution, constituídos por uma série de procedimentos que fornecem alternativas ao sistema de ações em juízo, proporcionando benefícios ao sistema e às partes, e que, hodiernamente, vêm se tornando cada vez mais comuns.300 onde o crime houver sido cometido, distrito esse que será previamente estabelecido por lei, e de ser informado sobre a natureza e a causa da acusação; de ser acareado com as testemunhas de acusação; de fazer comparecer por meios legais testemunhas da defesa, e de ser defendido por um advogado. Emenda VII. Nos processos de direito consuetudinário, quando o valor da causa exceder vinte dólares, será garantido o direito de julgamento por júri, cuja decisão não poderá ser revista por qualquer tribunal dos Estados Unidos senão de acordo com as regras do direito costumeiro. Original em inglês das Emendas menciondas: Amendment 6. In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury of the State and district wherein the crime shall have been committed, which district shall have been previously ascertained by law, and to be informed of the nature and cause of the accusation; to be confronted with the witnesses against him; to have compulsory process for obtaining witnesses in his favor, and to have the Assistance of Counsel for his defense. Amendment 7. In Suits at common law, where the value in controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by jury shall be preserved, and no fact tried by a jury, shall be otherwise re-examined in any Court of the United States, than according to the rules of the common law. 299 FINE, op. cit., p. 4. 300 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 87-88. 199 Com efeito, alguns reformistas propõem se afastar dos aspectos legais do processo por indenizações e buscar a mediação ou arbitragem das disputas. 301 Nesse sentido, afirma-se que a vasta maioria dos casos de danos pessoais são resolvidos fora das Cortes de Justiça, sem processos judiciais, talvez 98 ou 99 por cento dos litígios.302 Corroborando a informação, falam por si os dados informados pela Professora Toni M. Fine303: A grande maioria das disputas, nos Estados Unidos, é resolvida por meio de acordos entre as partes. A estimativa é que mais de 90 por cento das disputas cíveis são resolvidas dessa maneira. Um percentual similar de casos criminais é resolvido a partir de transação. Realmente seria muito difícil, senão impossível, para o funcionamento do sistema jurídico norteamericano se um grande percentual de disputas não fosse resolvido antes de um julgamento formal. O acordo pode ocorrer a qualquer momento da disputa: antes mesmo de uma queixa formal ser apresentada perante a corte até o momento do julgamento. Acordos prévios, é claro, são uma ferramenta muito mais eficiente para o sistema jurídico e também para as partes. A maioria dos acordos ocorre após a realização de algumas investigações dos fatos. Dentre os modos alternativos de resolução de conflitos podemos citar, por serem mais conhecidos, a mediação e a arbitragem. A despeito de terem como traço comum o fato de se tratar, ontologicamente, de mecanismos alternativos à justiça, tais institutos possuem um elemento diferenciador. A mediação é um processo facultativo e eletivo, pelo qual um terceiro imparcial aproxima as partes, visando obter a composição, mas não lhes impõe qualquer solução, ou seja, em última análise, o êxito da mediação depende diretamente das partes. Já a arbitragem é processo de natureza privada, em que o árbitro avalia as questões conflituosas e, sopesando os parâmetros legais aplicáveis ao caso, profere decisão atinente ao mérito, que é impositiva às partes que deram sua concordância prévia ou posterior à lide quanto a isso.304 Em certa medida os institutos da mediação e da arbitragem nos EUA guardam aspectos em comum com a lei federal brasileira correspondente ao tema (de n°. 9.307/96), como, por exemplo, seu caráter vinculante após seu ajuste, já que, também no Brasil, “estando prevista a convenção de arbitragem, se uma das partes 301 OLSON, Walter. New Directions in Liability Law. New York: Capital City Press, 1988. v. 37, p. 3. O’CONNEL, Jeffrey l. The Lawsuit Lottery – Only the lawyers win. New York: The Free Press, 1979. p. 84. 303 FINE, op. cit., p. 88. 304 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 88-89. 302 200 propuser a ação perante o Poder Judiciário, o requerido pode invocá-la em preliminar (art. 301, IX, do CPC), sendo caso de extinção do processo sem julgamento do mérito (art. 267, VII, CPC)”.305 Sobre a aplicação concreta da mediação nas lides estadunidenses, a Professora Toni M. Fine306 declara que Algumas cortes atualmente consideram a mediação obrigatória para os advogados e até mesmo para as partes. Essas pessoas são solicitadas a comparecer perante um mediador escolhido pela corte para tentar resolver a contenda mediante acordo. Nas cortes federais, juízes não togados normalmente atuam como mediadores. Além da mediação judiciária, existem diversos serviços de mediação privada que as partes podem contratar na tentativa de resolver suas controvérsias. A mediação é benéfica em particular às partes que queiram resolver suas controvérsias de forma rápida e privada e com um custo bem mais baixo do que outros mecanismos normalmente utilizados, sendo aconselhável em questões de família e relações pessoais. Já quanto à aplicação da arbitragem no sistema estadunidense, a professora supracitada aduz que Em grande medida, os procedimentos na arbitragem tendem a ser mais flexíveis do que os procedimentos aplicados nas cortes, onde os juízes estão vinculados a rígidas regras procedimentais e probatórias. A menos que sejam especificados como não vinculantes, os acordos de submissão à arbitragem são tratados como vinculantes, havendo poucos e limitados direitos de recurso em relação às decisões arbitrais. A política judicial de respeito às decisões arbitrais é consideravelmente robusta, e decidir a resolução de uma disputa por meio de arbitragem também afasta o direito de litigar perante uma corte estadual. De acordo com o Ato Federal de Arbitragem (Federal Arbitration Act) de 1925, uma decisão arbitral somente poderá ser questionada perante uma corte estadual em bases muito restritas, argumentado que a arbitragem foi procedida viciada por corrupção, fraude ou meios indevidos; que um ou mais árbitros não foram imparciais ou foram corrompidos; que os árbitros foram acusados de má conduta de natureza grave ou excederam seus poderes. Em regra, a decisão arbitral não será desconsiderada mesmo que o árbitro cometa um erro de fato ou 307 de direito. Em suma, podem ser elencados os seguintes benefícios aos mecanismos alternativos de resolução de conflitos: menor gasto de tempo e dinheiro; menos formalidades; controle, pelas partes, sobre o processo a que serão submetidas as controvérsias; privacidade e confidencialidade; e procedimento mais harmonioso 305 SHIMURA, Sérgio. Título Executivo. 2. ed. São Paulo: Método, 2005, p. 356. Ibid., p. 89. 307 FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 90. 306 201 para a solução dos conflitos, incluindo menores prejuízos às relações pessoais e comerciais entre as partes.308 Maiores informações a respeito do processo civil norte-americano escapariam à finalidade deste estudo, e os pouquíssimos elementos trazidos foram conhecidos apenas como uma melhor forma de se analisar as decisões relativas aos punitive damages e o próprio sistema do common law. 308 Ibid., p. 91. 202 14 OS PUNITIVE DAMAGES 14.1 Conceito, Origem e Finalidade Os punitive damages são definidos como: “Indenização outorgada em adição à indenização compensatória quando o ofensor agiu com negligência, malícia ou dolo”.309 William L. Prosser, John W. Wade e Victor E. Schwartz afirmam que os punitive damages, às vezes chamados de exemplary ou vindicte damages, ou smart money − ao pé da letra “dinheiro esperto” − consistem numa soma adicional acima da remuneração, para a vítima dos danos sofridos, concedida com a finalidade de punir o réu e de advertí-lo a não fazê-lo de novo, além de intimidar os outros com o exemplo.310 Os pedidos de punitive damages, até a metade do século XX, não eram frequentes nos Estados Unidos.311 Mas, a partir daí, a concessão de indenizações punitivas se tornou um dos mais controversos e importantes aspectos da responsabilidade civil no Direito americano.312 Para melhor entender a teoria e aplicação dos punitive damages como parte da jurisprudência de hoje, algumas considerações devem ser buscadas na origem do instituto, e pode-se dizer que, como em muitos outros aspectos do common law, esta doutrina pode ser primeiramente encontrada nos antecedentes ingleses.313 Eles surgiram na Inglaterra, nos dias de George III, em situações de abuso de autoridade ultrajante por oficiais do governo, em casos como Wilkes v. Wood e Huckle v. Money, de 1763. Os autores das duas ações foram presos pelo mensageiro do Rei, por meio de um mandado gerérico, emitido sem causa provável, e mantidos em custódia por algumas horas sob suspeita, o primeiro de ter impresso um panfleto muito crítico contra o monarca. Segundo consta, embora tenham sofrido 309 Damages awarded in addition to actual damages when the defendant acted with recklessness, malice, or deceit (GARNER, Bryan A. (Ed.). Black’s Law Dictionary. St. Paul: West, 2004. p. 448). 310 PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New York: Foundation Press, 2010. p. 566. 311 HAMMESFAHR, Robert W.; NUGENT, Lori S. Punitive Damages – a state by state guide to law and practice. New Jersey: West, 2011. p. 5. 312 LEVMORE, Saul; SHARKEY, Catherine M. Foundations of tort law. New York: Foundation Press, 2009. p. 394. 313 KIRCHER, John J.; WISEMAN, Christine M. Punitive Damages – law and practice. St. Paul: West, 2000. v. 1, p. 2. 203 pouco em danos reais, o veredicto do júri foi favorável a eles porque a evidência mostrou que a Magna Carta havia sido violada, e, portanto, uma indenização exemplar deveria ser garantida aos presos.314 Segundo esta primeira visão, portanto, os punitive damages ou exemplary damages foram aplicados originalmente por conta de atos ilícitos praticados como forma de opressão por parte de agentes do governo inglês. 315 Como visto, então, os punitive damages são concedidos desde o século XVIII, na Inglaterra, em casos de lesões pessoais causadas intencionalmente, em hipóteses específicas, em que o juiz podia condenar o réu a um ulterior pagamento a título de indenização punitiva, remédio que surgiu para tutelar os direitos civis dos súditos em suas relações com funcionários do governo, cujo comportamento era, frequentemente, vexatório e arbitrário. No entanto, os punitive damages foram progressivamente perdendo importância, até que, na primeira metade do século XX, tais penas quase foram abolidas, sob a consideração de que seriam incompatíveis com a natureza estritamente compensatória da reparação dos danos. Sua aplicação foi, assim, limitada a três reduzidas hipóteses: i) quando a administração pública privasse um cidadão de seus direitos fundamentais; ii) quando alguém obtivesse um enriquecimento como consequência de uma conduta culposa; ou iii) quando a hipótese estivesse especialmente prevista em lei.316 Tendência inversa, a partir da segunda metade do século XX, fortemente expansiva dos punitive damages, verificou-se na experiência estadunidense, até pelo menos meados dos anos 90. Com efeito, desde os anos 70, especialmente no que se refere a danos decorrentes de acidentes de consumo (products liability), o valor das indenizações, quando relativa aos punitive damages, supera com alguma frequência a faixa do milhão de dólares. É dessa forma, então, que, nos Estados Unidos, a política de concessão de indenizações punitivas em casos de atos ilícitos tem sido objeto de muita disputa. 317 Com efeito, segundo André Gustavo de Andrade, “embora os punitive damages, em 314 PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New York: Foundation Press, 2010. p. 566. 315 KIRCHER, John J.; WISEMAN, Christine M. Punitive Damages – law and practice. St. Paul: West, 2000. v. 1, p. 4. 316 MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 56, abr./jun. 2004. 317 PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New York: Foundation Press, 2010. p. 566. 204 sua feição moderna, tenham se originado na Inglaterra, foi na jurisprudência americana que o instituto ganhou impulso”, daí que “é principalmente a experiência americana que fornece os mais valiosos elementos para a análise do instituto”.318 Além das denominações antes indicadas, outras, menos usuais, são empregadas para fazer referência aos punitive damages, dentre as quais: vindictive damages, punitory damages, speculative damages, imaginary damages, presumptive damages, added damages, smart money, punies, penal damages e retributory damages.319 De acordo com André Gustavo de Andrade, “o propósito geral dos punitive ou exemplary damages é o de punir o ofensor, estabelecendo uma sanção que lhe sirva de exemplo para que não repita o ato lesivo, além de dissuadir comportamentos semelhantes por parte de terceiros”, entendendo que, “na realização desses propósitos, os punitive damages atuam em prol do interesse público e social”.320 Para o autor acima citado, “a necessidade dos punitive damages estaria demonstrada principalmente, mas não exclusivamente, em situações nas quais um ato delituoso, por razões de ordem jurídica ou prática, escapa de um processo criminal”; além disso, “preencheria lacunas da legislação criminal, punindo condutas que, a despeito de sua atipicidade, merecem punição”321, e, “secundariamente, exerceriam outras funções, dentre as quais a de atuar como mecanismo para a proteção de consumidores contra práticas comerciais fraudulentas ou ofensivas à boa-fé”.322 De acordo com outra teoria, a doutrina dos punitive damages foi desenvolvida por conta da relutância das cortes em reconhecer que certos interesses eram dignos de proteção legal, e que sua ofensa poderia ser reconhecida como dano a ser judicialmente compensado.323 Como visto, os punitive damages também podem ser concedidos para desencorajar terceiros de praticarem o mesmo ato ilícito que gerou a punição.324 318 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 184. 319 Ibid., p. 186. 320 Ibid., p. 187. 321 Ibid., p. 187. 322 Ibid., p. 187. 323 KIRCHER, John J.; WISEMAN, Christine M. Punitive Damages – law and practice. St. Paul: West, 2000. v. 1, p. 5. 324 Ibid., p. 1.111. 205 Como se verá com muito mais vagar, com exceção de alguns Estados, permite-se, então, a fixação de indenização punitiva, mediante a verificação de alguns requisitos325, quais sejam: a) preponderantemente a existência de uma conduta dolosa; b) um sofrimento mental ou estado psicológico negativo da vítima como consequência desse comportamento do agente326; ou c) quando o ato do ofensor for considerado malicioso, violento, opressivo, fraudulento, temerário ou significativamente (grotescamente) negligente.327 Dessa forma, os punitive damages também podem ser ocasionalmente aplicados nas situações de negligência grosseira, mesmo ausente o dolo, como, por exemplo, um cirurgião que deixa um bisturi dentro de um paciente durante uma operação, talvez seja considerado um caso de negligência grosseira pela comunidade médica e passível de punição civil.328 Assim, e diversamente do que muitos creem, a indenização por punitive damages não ocorre, em tese, nos casos de simples culpa; ela só surge se o ofensor tiver agido com culpa grave ou dolo. E, como se verá com mais vagar abaixo, para chegar à fixação do valor dos punitive damages, o júri deve considerar a natureza e a repreensão a ser imposta ao réu, o tipo de dano que foi produzido, tanto atual quanto potencial, a ciência por parte do agente quanto ao mau que produziu, além de sua condição financeira.329 Por isso se diz que, “na realidade, cada vez mais, vê-se uma tendência limitativa dessa forma de indenização”.330 14.2 Classificação das Formas Indenizatórias nos EUA O surgimento da responsabilidade civil como um ramo independente do Direito, ao contrário do que se pensa, veio muito tarde na história dos Estados 325 PHILLIPS Jerry J. et al. Tort law: cases, materials, problems. New Jersey: LexisNexis, 1998. p. 711. 326 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 185. 327 MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 56, abr./jun. 2004. 328 BUCKLEY, William R.; OKRENT, Cathy J. Torts and personal injury law. New York: Delmar Publishers, 2004. p. 97. 329 Ibid., p. 1.115. 330 NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 354. 206 Unidos, sendo lecionada pela primeira vez numa escola de Direito no ano de 1870, com o primeiro livro publicado sobre o tema quatro anos depois.331 Afirma-se que a responsabilidade civil extracontratual americana, o common law of torts, é complexa, bagunçada e portadora de uma gama enorme de vários objetivos332, e que não existe um só aspecto de vida contemporânea dos americanos que não esteja ligado à responsabilidade civil e aos seguros como consequência.333 Diz-se, por isso, que em determinado momento a sociedade americana se viu obrigada ao pagamento de um novo tributo, que veio com o nome de tort tax. Para os adeptos desta ideia, a tort tax é uma prática não muito antiga, que, apesar de já existir há séculos no Direito, só recentemente saiu do segundo plano e alçou lugar de destaque, isso a partir dos anos 50 na legislação e principalmente com uma nova geração de juristas dos anos 60 e 70.334 São variadas as modalidades indenizatórias no Direito estadunidense, segundo a ampla e didática classificação apresentada por André Gustavo de Andrade. Segundo ele, os “actual damages ou compensatory damages (integrantes da categoria substantial damages) constituem uma soma estabelecida em favor da vítima para a compensação de perdas e danos comprovados” 335, e, assim, “correspondem à tradicional indenização reparatória ou compensatória, pois visam a restabelecer a situação patrimonial que a vítima apresentava anteriormente ao dano”.336 Já os nominal damages, segue o autor acima referido, [...] constituem uma soma de valor insignificante e simbólica estabelecida em caso de lesão que não causa dano material, ou quando este não é demonstrado em sua extensão, sendo sua função assinalar, em uma situação na qual nenhum dano foi efetivamente sofrido, o reconhecimento 337 da prática de um ilícito. 331 WHITE, Edward. Tort law in America. New York: Oxford University Press, 1985. p. 3. MADENN, M. Stuart. (Ed.). Exploring tort law. New York: Cambridge University Press, 2005. p. 336. 333 ABRAHAM, Kenneth S. The liability century, insurance and tort law form the progressive era to 9/11. Cambridge: Harvard University Press, 2008. p. 1. 334 HUBER, Peter W. Liability, the legal revolution and its consequences. New York: Basic Books, 1988. p. 4. 335 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 184. 336 Ibid., p. 184. 337 Ibid., p. 184. 332 207 A expressão general damages (também chamados direct damages ou necessary damages), de acordo com André Gustavo de Andrade, serve como “referência a danos não redutíveis a pecúnia e que independem de comprovação, tais como a perda de um ente querido, o dano à reputação, a diminuição da expectativa de vida, a dor e o sofrimento em geral”.338 Os special damages fazem referência tanto às perdas e danos comprovados pelo lesado, incluídos aí os danos emergentes e os lucros cessantes, quanto à indenização correspondente a tais prejuízos.339 O mesmo André Gustavo de Andrade menciona que “figuras assemelhadas, em razão de seu caráter essencialmente punitivo, mas que não se confundem com os punitive damages, são os multiple damages, double damages e treble damages ou triple damages” que “constituem formas exacerbadas ou agravadas de indenização estabelecidas por lei, correspondentes a duas ou três vezes a soma que seria devida à vítima como compensação pelos danos sofridos”.340 Os punitive damages, pela sua natureza, constituem figura à parte em relação às demais espécies de indenizações, constituindo “uma soma de valor variável, estabelecida em separado dos compensatory damages, quando o dano é decorrência de um comportamento lesivo marcado por grave negligência, malícia ou opressão”.341 O tema envolvendo a indenização por danos materiais e morais de um lado, e a indenização punitiva de outro, no sistema indenizatório estadunidense, gera para a doutrina estrangeira alguma confusão no que toca à sua nomenclatura, como pode ser observado pela seguinte passagem de José de Aguiar Dias, para quem “também se chama danos morais, na Inglaterra e nos Estados Unidos, vindictive, punitory e exemplary damages”.342 Veja-se a presença da mencionada confusão com relação aos nomes dos institutos, já que não se considera exatamente correto afirmar-se que a indenização por danos morais pode ser chamada de exemplary damages, expressão que deveria ser reservada à indenização punitiva, ao menos em se tratando do sistema estadunidense de responsabilidade civil. 338 Ibid., p. 184-185. Ibid., p. 185. 340 Ibid., p. 185. 341 Ibid., p. 186. 342 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 1.015. 339 208 Por isso é que os punitive damages foram chamados até de “camaleão do direito”, já que existe muita discordância a respeito de seus objetivos e por consequência de seu nome343, divergindo também a doutrina e a jurisprudência a respeito de seus aspectos favoráveis e desfavoráveis, como passa a ser demonstrado. 14.3 Teses Pró Os punitive damages têm sido defendidos como um método saudável de desencorajar maus motivos e como um remédio parcial para o processo civil estadunidense permitir a compensação das despesas de litígio gastas pela vítima, incluindo honorários advocatícios, bem como uma forma de retirar dos demandantes o desejo de vingança e ingressarem em canais pacíficos, além de também servirem para corrigir uma longa série de pequenos casos de indignação e opressão.344 Todavia, segundo André Gustavo de Andrade, “diz-se que a finalidade dissuasória muitas vezes não é alcançada, pois contratos de seguro cobrem grande parte dos valores impostos a título de punitive damages”.345 Mas, adverte o mesmo autor, [...] os partidários dos punitive damages contrapõem-se a esse argumento, ponderando que, mesmo quando uma seguradora possa responder pelo pagamento de punitive damages atribuídos ao segurado, muitas vezes a cobertura é inferior ao valor da indenização; e, mesmo quando a cobertura é suficiente, depois de efetuado o pagamento da indenização securitária, muito provavelmente os valores referentes ao prêmio de um novo seguro serão objeto de um substancial aumento, se não houver o próprio 346 cancelamento de toda e qualquer cobertura posterior. Também a favor dos punitive damages afirma-se que a indenização por danos materiais, muitas vezes, não é o bastante para compensar as vítimas de atos ilícitos, sequer para pagar seus advogados ou as taxas do processo.347 343 GROVES, John R. (Ed.). Extracontractual damages – torts and insurance pratice section. Chicago: American Bar Association, 1983. p. 106. 344 PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New York: Foundation Press, 2010. p. 566. 345 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 197. 346 Ibid., p. 197-198. 347 PHILLIPS, Jerry J. et al. Tort law: cases, materials, problems. New Jersey: LexisNexis, 2006. p. 711. 209 14.4 Teses Contra De acordo com André Gustavo de Andrade, “os partidários da tort reform argumentam que os punitive damages são contrários à longa tradição do Direito norte-americano, que separa o Direito Civil do Criminal”, já que “o Direito Criminal se preocupa em punir o ofensor, enquanto o Direito Civil tem o objetivo de reparar ou compensar o dano sofrido pela vitima”.348 Argumenta-se que as multas tipicamente penais são destinadas ao Estado, enquanto os punitive damages são pagos à vitima, para a qual o montante indenizatório constitui um ganho inesperado e em certa medida uma fonte de enriquecimento sem causa (windfall).349 Todavia, comumente, as Cortes rejeitam os argumentos de que os punitive damages sejam uma dupla condenação, penal e civil, mesmo que o réu tenha sido sujeito de uma anterior condenação criminal.350 Um outro argumento contrário aos punitive damages é que não há dados afirmando que sua fixação serve de caráter pedagógico para que outras pessoas não se conduzam da mesma forma que o réu. E que também não seria justo que o júri impusesse uma condenação economicamente nefasta contra uma empresa sem que tenha elementos seguros para tanto.351 Alguns chegam a afirmar que a maior preocupação a respeito dos punitive damages hoje é que nos Estados Unidos estão “out of control”, isto é, fora de controle.352 E por isso as empresas começam a ser impactadas pelos punitive damages conferidos frequentemente em valores muitas vezes excessivos quando comparados com os compensatory damages.353 Por vezes, entretanto, as Cortes de Justiça comparam os potenciais punitive damages com os compensatory damages e tentam não deixar que o valor do primeiro exceda em muito o valor do segundo.354 348 ANDRADE, op. cit., p. 197. Ibid., p. 197. 350 DIAMOND, John L.; LEVINE, Lawrence C.; BERNSTEIN, Anita. Understanding torts. New Jersey: LexisNexis, 2010. p. 219. 351 PHILLIPS, Jerry J. et al. Tort law: cases, materials, problems. New Jersey: LexisNexis, 2006. p. 711. 352 LEVMORE, Saul; SHARKEY, Catherine M. Foundations of tort law. New York: Foundation Press, 2009. p. 394. 353 HAMMESFAHR, Robert W.; NUGENT, Lori S. Punitive Damages – a state by state guide to law and practice. New Jersey: West, 2011. p. 6. 354 DIAMOND; LEVINE; BERNSTEIN, op. cit., p. 219. 349 210 Segundo Roberta Corrêa Gouveia355, “outra questão a ser decidida é se uma conduta que submeteria um sujeito tanto aos punitives damages quanto à sanção criminal violaria o princípio do non bis in idem”. Entretanto, afirma, a jurisprudência majoritária, inclusive da Suprema Corte, é de que a sanção penal não apresenta uma barreira à punição na esfera cível, conforme o precedente Wittman v. Gilson (1988). E conclui que a razão apontada pelas cortes é que a indenização punitiva visa corrigir um dano privado, enquanto a sanção criminal pretende reparar uma violação pública, motivo pelo qual devem operar independente e complementarmente em suas respectivas esferas. Um estudo de natureza híbrida, de caráter social e jurídico, feito nos Estados Unidos, concluiu que as indenizações punitivas fixadas pela justiça daquele país são altamente variáveis e arbitrárias356, daí estarem causando toda a preocupação nos dias correntes, sobretudo visando à imposição de requisitos mais ou menos objetivos como parâmetro ao corpo de jurados, como se expõe no item seguinte. 14.5 Pressupostos para Aplicação dos Punitive Damages (an debeatur) Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso State Farm Mutual Automobile Insurance v. Campbell357 No ano de 2003, a Suprema Corte estadunidense se posicionou sobre os pressupostos necessários à aplicação da indenização punitiva, especificando os requisitos que os tribunais devem verificar presentes no caso concreto para a imposição de punitive damages, isso quando do exame da lide judiciária denominada o caso State Farm Mutual Automobile Insurance v. Campbell. Tratou-se de uma ação ajuizada por um casal (os Campbell) em virtude da prática de ilícitos contratuais por parte da seguradora State Farm Mutual contra os autores e outros de seus segurados, consistentes no não pagamento de indenizações devidas. Em primeira instância, o valor da condenação foi de US$ 2,6 milhões como indenização compensatória e de US$ 145 milhões a título de 355 GOUVEIA, Roberta Ferreira. Limites à indenização punitiva. Tese de doutorado pela PUC/SP, 2012. p. 349. 356 PAYNE, John W. et al. Punitive Damages – How juries decide. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. p. 74. 357 A narrativa deste caso foi extraída da obra de André Gustavo de Andrade, já citada por diversas vezes neste trabalho, tal a sua importância no tema, qual seja, Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 200/202. 211 indenização punitiva. Embora o Tribunal de Apelação tenha reduzido o valor da compensação a US$ 1 milhão, bem como a punição a US$ 25 milhões, a Suprema Corte de Utah restaurou a condenação original, motivando sua decisão no intuito de punir a State Farm Mutual Insurance Co. pelas reiteradas operações fraudulentas praticadas, em nível nacional, pela companhia de seguros contra seus clientes. A Suprema Corte dos Estados Unidos, contudo, avaliou que a indenização punitiva determinada pela Corte de Utah teve, na verdade, o objetivo punir e desestimular comportamentos que não tinham qualquer nexo de causalidade com os danos sofridos pela parte em julgamento. Entendeu a Suprema Corte que a companhia deveria ser julgada e eventualmente condenada, só e exclusivamente, com base nas ações que causaram danos unicamente às vítimas daquele processo, e não também por “fatos considerados desagradáveis ao corpo de jurados”. Com base nestas premissas, a decisão de condenar a State Farm Mutual lnsurance Co. a pagar a indenização punitiva de US$ 145 milhões pareceu à Suprema Corte de impossível justificação, determinando a devolução dos autos à origem para a fixação de um novo valor. Assim, no caso State Farm Mutual Automobile Insurance Co. v. Campbell, o excelso tribunal estadunidense indicou novos critérios para uniformizar, nas diversas cortes americanas, tanto federais quanto estatuais, o exame acerca da determinação do grau de repreensão da conduta do réu a gerar a possibilidade de indenização punitiva. Dessa sorte, aos tribunais cumpre avaliar, essencialmente: I se o dano causado à vítima é um dano físico ou se tem caráter econômico; II - se o dano é resultado de dolo, de fraude ou de grave negligência do réu; III - se o dano é resultado de ações reiteradas por parte do réu ou se representa apenas um fato isolado; e IV - também ser levada em conta a conduta do réu para verificar se é reveladora de absoluta falta de consideração e/ou de respeito pela vida ou pelos interesses de outrem. Afirma-se, dessa forma, por conta dos requisitos acima estabelecidos, ser absolutamente incorreto supor que indenizações punitivas sejam um problema de ocorrência diária nos Estados Unidos, como se propaga358, posição esta que, de outro lado, já foi muitas vezes infirmada neste trabalho por vários tratadistas do assunto. 358 SPENSER, Stuart M.; KRAUSE, Charles F.; GANS, Alfred W. The American Law of Torts. St. Paul: West, 2009. v. 2A, p. 359. 212 14.6 Elementos para Valoração dos Punitive Damages (quantum debeatur) Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso BMW of North America v. Gore359 No ano de 1995 a Suprema Corte americana teve a oportunidade de se pronunciar também acerca da quantificação dos punitive damages, ao apreciar a lide conhecida como o caso BMW of North America v. Gore. O médico Ira Gore Jr. moveu a ação em face da BMW pelos seguintes fatos: em 1990 o autor adquiriu um automóvel BMW no valor de US$ 40 mil; nove meses depois, detectou que algumas partes do carro tinham sido repintadas, embora o automóvel tivesse sido vendido como novo; aparentemente o dano fora causado por uma chuva ácida durante o transporte do veículo da Alemanha aos Estados Unidos. Convencido de que houve omissão de informação relevante, Gore Jr. propôs ação em face da BMW of North America (o distribuidor estadunidense da BMW), alegando que o veículo por ele adquirido valia 10% menos (cerca de US$ 4 mil) do que um automóvel inteiramente novo, não repintado. A esse valor somava-se um pedido, a título de punitive damages, de US$ 4 milhões, correspondente ao prejuízo sofrido por compradores de cerca de 1.000 automóveis repintados, nas mesmas condições do seu, que haviam sido vendidos como novos pela BMW nos Estados Unidos. Na contestação, a BMW alegou que desde 1983 adotava a seguinte política relativa a veículos danificados no decorrer da fabricação ou do transporte: se o custo do reparo fosse superior a 3% do preço do veículo, este seria vendido como usado; se, no entanto, o custo fosse inferior a 3%, o veículo seria vendido como novo, sem qualquer notificação ao comprador acerca da realização dos reparos. Como o custo do reparo do veículo adquirido pelo autor correspondia a apenas 1,5% de seu preço, não houve divulgação da preexistência de danos e da realização do respectivo reparo. Alegou a BMW que agiu, portanto, de boa-fé. No entanto, além da condenação ao pagamento de US$ 4 mil dólares (como compensação), o júri do Tribunal de Birmingham aceitou o pedido de Ira Gore e condenou a BMW a pagar 4 milhões de dólares como punitive damages, 359 Repita-se que a narrativa deste caso foi extraída da obra de André Gustavo de Andrade, já citada por diversas vezes neste trabalho, tal a sua importância no tema, qual seja, Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 200/202. 213 entendendo que a política de não divulgação de danos adotada pela ré constituía omissão fraudulenta. Inconformada, a BMW interpôs recurso de apelação perante a Suprema Corte do Alabama. Sustentou que a política por ela adotada obedecia à lei de 25 Estados da Federação, sendo tal legislação mais rigorosa comparativamente com os demais estados. A Suprema Corte do AIabama condenou-a a pagar US$ 2 milhões em punitive damages, determinando a redução no valor inicialmente fixado pelo júri, porque este, impropriamente, teria levado em conta, para estabelecer a pena pecuniária, o número de vendas realizadas nos Estados Unidos e não somente as vendas efetuadas em determinados Estados, com legislação semelhante à do Alabama. Em 1995, foi interposto recurso perante a Suprema Corte estadunidense, que aceitou analisar o caso e considerou “enormemente excessivo” o valor indenizatório a título de punitive damages. Em síntese, a Corte entendeu que “a decisão de 2 milhões de dólares a título de indenização punitiva é enormemente excessiva e portanto ultrapassa o limite constitucional”, diante da “garantia fundamental contra indenizações arbitrárias ou irracionais”. A partir da decisão BMW v. Gore, considera-se violado o dispositivo constitucional do Due Process sempre que se verificar arbitrariedade na fixação dos punitive damages. Como consequência, restaram fixados três critérios para analisar situações deste gênero, já que a falta de razoabilidade na fixação da indenização no caso em exame, vista como atentatória da Due Process Clause em seu aspecto substancial, foi deduzida dos seguintes argumentos: I - o grau de repreensão da conduta do ofensor; II - a relação entre o valor da indenização compensatória e o valor da indenização punitiva; e III - a diferença entre o valor da indenização punitiva e o das penalidades civis ou criminais impostas em casos semelhantes no Estado. No caso BMW v. Gore, quanto à repreensão da conduta, a Suprema Corte fez a distinção entre a conduta que causa dano físico e a conduta que causa dano econômico, e considerou que o dano causado pela BMW havia sido puramente econômico. Considerou a Suprema Corte que poucos veredictos cuja proporção entre indenização punitiva e compensatória seja igual ou maior do que 10 serão conformes à exigência da Due Process Clause. No caso em comento, no que referia à relação entre o dano sofrido e o valor arbitrado a título punitivo, observou-se que 2 milhões de dólares representava quantia 500 vezes superior ao dano real, medido 214 pelo valor arbitrado a título de compensação, sendo que não havia qualquer indicação de danos pessoais. Como principal consequência, a Suprema Corte, desde então, tem reiterado que a Due Process Clause impõe uma substancial limitação aos valores a serem pagos a título de indenização punitiva. Além disso, declarou que os três pressupostos por ela fixados no caso BMW v. Gore para balizar os limites constitucionais das sentenças punitivas devem ser seguidos por todos os tribunais daquele país, construindo um sólido precedente sobre a questão. 215 15 A TORT REFORM – UMA TENDÊNCIA NOS EUA AO CIVIL LAW 15.1 Noções Gerais da Competência Legislativa nos Estados Unidos Em quais situações é possível a aplicação dos punitive damages e quão reprovável deve ser a conduta do causador do dano para justificar essa espécie de indenização, além da própria problemática da fixação do quantum indenitário, é algo que varia consideravelmente de um para outro Estado dos EUA, no que toca ao trato tanto legal quanto, por consequência, ao jurisprudencial do tema. Para melhor visão da matéria, é necessário que se discorra a respeito da competência legislativa reservada aos Estados da Federação estadunidense; afinal, é por meio de lei que muitos deles têm regrado a questão dos punitive damages, gerando reflexos na jurisprudência, por óbvio. Dispõe a Constituição dos Estados Unidos360: Artigo I, Seção 8. O Congresso deverá ter o poder para instituir e coletar taxas e impostos, para pagar as dívidas e prover a defesa comum e o bem estar em geral dos Estados Unidos, mas todos impostos e taxas deverão ser uniformes por todos os Estados Unidos; Emprestar dinheiro no crédito; Regular o comércio com nações estrangeiras, e entre os diversos Estados, e com as Tribos Índias; Estabelecer uma regra de naturalização uniforme, e Leis sobre Falências uniformes por todos os Estados Unidos; Cunhar dinheiro, regular o valor deste, e de moeda estrangeira, e fixar o padrão de pesos e medidas; Providenciar pela punição de falsificar as seguranças e moeda corrente dos Estados Unidos; Estabelecer escritórios e estradas de correio; Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou descobertas; Constituir tribunais inferiores à Suprema Corte. Emenda X. Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem por ela negados aos Estados, são reservados aos Estados ou ao povo. 360 Article 1, Section 8. Powers of Congress. The Congress shall have Power To lay and collect Taxes, Duties, Imposts and Excises, to pay the Debts and provide for the common Defence and general Welfare of the United States; but all Duties, Imposts and Excises shall be uniform throughout the United States; To borrow money on the credit of the United States; To regulate Commerce with foreign Nations, and among the several States, and with the Indian Tribes; To establish anuniform Rule of Naturalization, and uniform Laws on the subject of Bankruptcies throughout the United States; To coin Money, regulate the Value thereof, and of foreign Coin, and fix the Standard of Weights and Measures; To provide for the Punishment of counterfeiting the Securities and current Coin of the United States; To establish Post Offices and Post Roads; To promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to Authors and Inventorsthe exclusive Right to their respective Writings and Discoveries; To constitute Tribunals inferior to the supreme Court. Amendment 10. Powers of the States and People. The powers not delegated to the United States by the Constitution, nor prohibited by it to the States, are reserved to the States respectively, or to the people. 216 Isso significa que, nos termos das disposições acima transcritas, em matéria de competência para legislar sobre Direito Privado, a Constituição estadunidense reservou ao Congresso Nacional apenas a disciplina do empréstimo a crédito e a das falências. Portanto, por autorização da Emenda X, acrescentada posteriormente ao documento constitucional estadunidense original, está reservada aos Estados a competência legislativa acerca da temática referente à responsabilidade civil contratual ou extracontratual. Assim, nos Estados Unidos da América, em tese, não há como existir legislação federal que determine critérios de aplicação universal dos punitive damages, em todo o país.361 Os punitive damages são, em maior ou menor extensão, admitidos em 45 dos 50 Estados dos EUA. Em alguns Estados vêm previstos em lei, em outros têm sua origem no common law. De tal maneira, o presente capítulo terá como norte a pesquisa e a análise das leis promulgadas nos Estados dos EUA que tenham como conteúdo a disciplina de questões afetas aos punitive damages, bem como o pronunciamento da Justiça a seu respeito. 15.2 A Tort Reform nos Estados da Federação Estadunidense362 Hoje os punitive damages são o centro das maiores batalhas contemporâneas no tema da responsabilidade civil americana, por meio da tort reform.363 Os valores das indenizações estabelecidas a título de punitive damages têm sido objeto de acirrada controvérsia entre partidários e opositores da tort reform, ou, em outras palavras, da reforma do sistema de indenização estadunidense. Os 361 “Ressalve-se apenas que, dentre os estatutos que vedam os punitive damages, há, por exemplo, o Federal Tort Claims Act, que exclui a imposição dessa espécie de indenização contra o Governo Federal ou qualquer de seus departamentos, por mais reprovável que seja a conduta do agente”, segundo André Gustavo de Andrade, in Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 188, mas aí se está diante de um caso especial, por tratar de interesse do próprio governo federal, o que dá legitimidade à existência desta lei federal. 362 As informações contidas neste capítulo a respeito da reforma no sistema indenitário dos Estados Unidos foram extraídas do site da ATRA – American Tort Reform Association. Disponível em: <http://www.atra.org>. Acesso em: 13 dez. 2011, que nos foi indicado pela obra retro citada de André Gustavo de Andrade, p. 196. 363 SPENSER, Stuart M.; KRAUSE, Charles F.; GANS, Alfred W. The American Law of Torts. St. Paul: West, 2009. v. 2A, p. 352. 217 primeiros sustentam que os montantes indenizatórios estão fora controle, o que é atribuído, de um lado, a um excessivo poder discricionário entregue ao júri, e, de outro, à falta de preparo dos jurados para estabelecer esses valores. 364 Convencidos do acerto desses argumentos, muitos Estados dos EUA têm fixado limites aos valores dos punitive damages e até mesmo requisitos à sua imposição, por meio de estatutos legais, o que se denominou tort reform. Registre-se que, se esses estatutos mudam efetivamente os limites dos punitive damages, isso na prática ainda não é claro.365 Em outras unidades da Federação o tema permanece sem disciplina normativa, ficando a aplicação e a fixação do valor dos punitive damages a critério único da Justiça. Chama atenção a mensagem que se encontra inserta no site da ATRA366, da lavra de seu presidente Tiger Joyce, para quem a Tort Reform é, em última análise, uma questão econômica, não uma questão política, e que é visível o fato de empregadores e empresas estarem fugindo dos Estados em que são impostas altas indenizações a título de punitive damages, como a Califórnia, Illinois e Nova York. Neles, segundo consta, os advogados dos querelantes controlam o processo legislativo, concluindo que não é necessário ser um economista vencedor do Nobel para entender que os limites razoáveis de responsabilidade promovem a prosperidade, enquanto expansões de responsabilidade civil minam a prosperidade. 15.2.1 Estados que admitem incondicionalmente os punitive damages Alguns Estados dos EUA não proíbem nem sequer limitam os valores dos punitive damages por meio de leis, ficando a decisão inteiramente à mercê do Poder Judiciário, apenas respeitada a condição de produção de prova clara acerca do dolo, má-fé, fraude ou malícia do causador do dano. Tais requisitos, entretanto, como se viu, consubstanciam-se em pressupostos gerais estabelecidos pela Suprema Corte estadunidense para toda e qualquer imposição de indenização punitiva, sem que 364 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 198. 365 HAMMESFAHR, Robert W.; NUGENT, Lori S. Punitive damages – a state by state guide to law and practice. New Jersey: West, 2011. p. 9. 366 ATRA – American Tort Reform Association. Disponível em: <http://www.atra.org>. Acesso em: 13 dez. 2011. 218 seja necessária a edição de lei para sua observância, em virtude do próprio sistema de precedentes. No caso da Califórnia, estabelece seu Civil Code, 3.294: (a) Em uma ação fundada no descumprimento de obrigação não derivada de contrato, quando estiver comprovado por provas claras e convincentes que o réu atuou com opressão, fraude ou malícia, o autor, em adição à indenização reparatória, pode fazer jus a uma indenização que exerça a 367 finalidade de exemplo e tenha o propósito de punir o réu. Interessante notar que as unidades federativas onde estão situadas as três maiores e mais pujantes cidades dos Estados Unidos: Nova York (Estado de Nova York), Los Angeles (Estado da Califórnia) e Chicago (Estado de Illinois), nessa ordem de grandeza, não possuem qualquer proibição ou mesmo limitação à fixação das indenizações punitivas. Vale dizer também que no Estado de Illinois tentou-se uma reforma, em 1995, limitando a concessão de indenizações punitivas a três vezes a indenização de danos econômicos, bem como proibindo a concessão de punitive damages quando ausente a prova de que o acusado participou do ato danoso "com um motivo doloso, ou com uma despreocupação para com os direitos dos outros", determinando-se ainda que a indenização punitiva deveria ser feita em um processo separado. Tal reforma, todavia, foi considerada inconstitucional no caso Best v. Taylor Machine Works, Inc., de sorte que nesse Estado os punitive damages não encontram óbice algum para sua aplicação e fixação do valor devido. 15.2.2 Estados que proíbem os punitive damages Como se viu, considerável é o movimento de vários segmentos da sociedade estadunidense em busca da implementação de reformas no campo da responsabilidade civil368, e a denominada tort reform tem levado à adoção de várias medidas restritivas em relação aos punitive damages no âmbito estadual. 367 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 188. 368 Ibid., p. 196. 219 Muitos Estados buscam a abolição do instituto ou, ao menos, o estabelecimento de normas que restrinjam os casos de aplicação dos punitive damages e limitem os valores indenizatórios.369 E, talvez por isso, por essa proliferação de leis, já se tenha propugnado por uma suposta crise do common law.370 Segundo André Gustavo de Andrade, dentre as organizações que apoiam a tort reform, como se mencionou, uma das principais é a ATRA, entidade representada basicamente por associações de classe e grandes corporações. Os objetivos por ela já declarados incluem, além da limitação dos punitive damages: a limitação dos noneconomic damages em geral, a reforma das regras de responsabilidade civil em caso de acidentes provocados por produtos defeituosos, a reforma das regras de responsabilidade civil na área da saúde, a reforma da class action e a abolição da regra da solidariedade passiva dos responsáveis pelo dano.371 Assim, à vista de tal movimento, das 50 unidades federadas estadunidenses, já não admitem os punitive damages os Estados de Massachusetts, Louisiana, Nebraska e Washington.372 Diga-se que alguns Estados ainda desenvolveram legislações disciplinando os punitive damages de outra forma, como em New Hampshire, onde os punitive damages não são possíveis, mas quando o ato ilícito envolve arbítrio, malícia ou opressão, a indenização compensatória pode refletir essas circunstâncias agravantes.373 15.2.3 Estados que limitam o valor dos punitive damages Num caminho intermediário, nem autorizando ilimitadamente nem proibindo a imposição dos punitive damages, encontra-se a grande maioria dos Estados dos EUA, valendo a menção da disciplina de alguns deles, que podem ainda contar com regras especiais sobre julgamento em processo separado com relação à 369 ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 196. 370 BRUDNER, Alan. The unity of the common law – studies in hegelian jurisprudence. Berkeley: University of California Press, 1995. p .1. 371 ANDRADE, op. cit., p. 197. 372 MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 57, abr./jun. 2004. 373 SPENSER, Stuart M.; KRAUSE, Charles F.; GANS, Alfred W. The American Law of Torts. St. Paul: West, 2009. v. 2A, p. 229. 220 indenização punitiva e até mesmo indicar uma terceira entidade a ser beneficiada com parte do respectivo montante indenizatório, juntamente com a vítima, evitando o alegado enriquecimento sem causa. Vejamos a situação Estado a Estado, repita-se, com as informações do site da ATRA374. Em Connecticut os exemplary damages são limitados às despesas da vítima com o litígio e, por conseguinte, têm finalidade compensatória. Em Michigan, os punitive damages são estabelecidos como forma de compensação adicional à vitima e há limites punitivos em ações de responsabilidade do produto a duas vezes a concessão de indenizações compensatórias. O Code of Alabama estabelece que os punitive damages não podem exceder certos limites, prevendo que: “[...] nenhuma indenização a título de punitive damages excederá três vezes os compensatory damages ou quinhentos mil dólares (US$ 500 mil), o que for maior”, mas esse limite é aumentado para um milhão e meio de dólares em caso de ações fundadas em danos corporais. No Colorado Statute os exemplary damages não podem exceder o valor dos compensatory damages, exceto se caracterizado que o agente, no curso da ação, persiste em seu comportamento lesivo ou agrava o dano, caso em que o montante pode chegar a três vezes o valor dos compensatory damages. Em Nova Jersey o Punitive Damages Act estabelece o limite de US$ 350 mil para os punitive damages ou cinco vezes o montante dos compensatory damages, mas esse teto não se aplica aos casos envolvendo crimes de preconceito, discriminação, resultado de teste de AIDS, abuso sexual ou motoristas embriagados. Requer que o autor demonstre que o réu agiu com “dolo” ou “irresponsabilidade e desrespeito voluntário” para com os direitos dos outros, e a determinação da indenização punitiva deve ser feita em um processo separado. A reforma não se aplica a casos que envolvam responsabilidade civil ambiental. No Texas, a partir da reforma das indenizações punitivas de 2003, requer-se veredicto unânime para a atribuição de indenizações punitivas e especifica que o júri deve ser assim instruído. Também houve reforma das indenizações punitivas, em 1987, para que o autor demonstre que as ações do réu foram fraudulentas, maliciosas, ou grosseiramente negligentes, limitando a concessão de danos 374 ATRA – American Tort Reform Association. Disponível em: <http://www.atra.org>. Acesso em: 13 dez. 2011. 221 punitivos ao máximo de quatro vezes a quantidade de danos reais ou US$ 200 mil. A Flórida limita as indenizações punitivas a três vezes a indenização material, a menos que o autor demonstre, por “claras e convincentes” evidências, que uma maior compensação não seria excessiva. Sessenta por cento da indenização deve ser paga ao Fundo Geral do Estado ou ao Fundo Fiduciário de Assistência Médica (alterado em 1992 para 35%). No Kansas a reforma das indenizações punitivas limitou os valores em US$ 5 milhões. Requer do autor que demonstre que o réu agiu com conduta dolosa, devassa, fraude ou dolo. Estipula também que a determinação da indenização punitiva deva ser feita em um processo separado. Em Oklahoma a reforma impôs fatores que o júri deve considerar na fixação de uma indenização punitiva. Prevê que quando um júri encontra provas “claras e convincentes” de que o réu: (1) atuou com “descaso pelos direitos dos outros”, a indenização é limitada ao máximo de US$ 100 mil; ou (2) agiu intencionalmente e com malícia, a indenização é limitada a US$ 500 mil. O limite não se aplica se o tribunal concluir que há evidência de que o réu agiu intencionalmente e com dolo na conduta, com risco de vida para outrem. Em Ohio a reforma impôs limites punitivos para não mais de duas vezes os danos compensatórios. Requer-se que o autor demonstre por “claras e convincentes” provas que sofreu “danos reais” e que o réu agiu com “dolo, fraude ou flagrante opressão ou insulto”, para a concessão de indenizações punitivas. Em Nevada a reforma colocou limites punitivos no valor de US$ 300 mil, mas não se aplica a casos contra fabricante, distribuidor ou vendedor de um produto defeituoso; uma seguradora que age de má-fé; uma pessoa que viola as leis de discriminação; uma pessoa vítima de danos causados por tóxicos radioativos ou resíduos perigosos, ou por difamação. Requer-se que o autor demonstre por “provas claras e convincentes” que o réu agiu com “opressão, fraude ou dolo”, e que a determinação da indenização punitiva seja feita em um processo separado, permitindo a admissibilidade das provas das finanças do réu. Na Pensilvânia foi imposto um limite à indenização punitiva de 200% dos valores compensatórios. Em Utah requer-se do autor que demonstre por provas “claras e convincentes” que as ações do réu foram imprudentes, e a determinação da indenização punitiva deve ser feita em um processo separado. Exige-se que 50% de 222 todas as indenizações punitivas maiores que US$ 20 mil sejam pagos ao fundo estadual. Na Geórgia há limites punitivos em US$250 mil, a menos que o autor demonstre que o réu agiu com intenção específica de dano. No Alasca limita-se a concessão de indenizações punitivas na maioria dos casos a três vezes o valor da indenização compensatória, ou US$ 500 mil. Requerse que o autor demonstre por “claras e convincentes” provas que o réu agiu com “indiferença irresponsável” ou estava engajado em conduta “ultrajante”. Determinase que a indenização punitiva deva ser feita em um processo separado e exige-se que 50% dos valores relativos a danos punitivos sejam pagos ao Tesouro do Estado. A Virgínia limita a concessão de indenizações punitivas a US$ 350 mil, e sua Corte de Apelações confirmou a constitucionalidade dessa lei no caso Wackenhut Applied Technologies Inc. v. Centro de Sistemas de Proteção Syngetron (em novembro de 1992). Na Carolina do Norte há um limite para a concessão de indenizações punitivas de três vezes a quantia da indenização compensatória ou 250 mil dólares. Requer-se que o autor demonstre por provas “claras e convincentes” que o réu foi responsável por danos compensatórios e agiu com dolo, fraude, ou conduta devassa. A determinação da indenização punitiva deve ser feita em um processo separado, a pedido do réu. No Mississipi os limites são impostos de acordo com os ganhos líquidos do réu: US$ 20 milhões para o réu com um patrimônio líquido de mais de US$ 1 bilhão; US$ 15 milhões para o réu com um patrimônio líquido de mais de 750 milhões de dólares e não mais de US$ 1 bilhão; US$ 5 milhões para o réu com um patrimônio líquido de mais de 500 milhões de dólares e não mais de US$ 750 milhões; US$ 3,75 milhões para o réu com um patrimônio líquido de mais de US$ 100 milhões e não mais de US$ 500 milhões; US$ 2,5 milhões para réus com um patrimônio líquido de mais de 50 milhões dólares e não mais de US$ 100 milhões; dois por cento de seu patrimônio líquido para o réu com um patrimônio de US$ 50 milhões ou menos. No Tenesse há limites punitivos de duas vezes a indenização compensatória ou US$ 500 mil, o que for maior. Os limites da indenização punitiva não se aplicam se o réu agiu com a intenção de prejudicar, ou agiu sob a influência de drogas ou álcool. 223 Em Indiana exige-se que 75% do valor das indenizações punitivas sejam pagos ao fundo estadual e que seus valores não ultrapassem três vezes as indenizações compensatórias. No Missouri fixou-se o limite das indenizações punitivas em US$ 500 mil ou cinco vezes o prejuízo, o que for maior, mas o limite não se aplica a determinados casos envolvendo discriminação. A determinação da indenização punitiva deve ser feita em um processo separado. Exige-se que 50% de todos os valores punitivos sejam pagos ao fundo estadual. Em Wisconsin há limites punitivos de US$ 200 mil ou duas vezes os danos compensatórios, o que for maior. Na Dakota do Norte o limite da indenização punitiva é equivalente a duas vezes os danos compensatórios ou US$ 250 mil. No Colorado há proibição de que uma pessoa apresente uma reclamação por danos morais a menos que o queixoso possa demonstrar a prática de ação dolosa ou devassa que justifique tal afirmação. Prevê-se que o prêmio de indenização punitiva não possa exceder o valor dos danos compensatórios. Permite-se ao tribunal conceder aumento de indenizações punitivas equivalente a três vezes o valor dos danos compensatórios, se o mau comportamento continuar durante o julgamento. Em Montana há limites punitivos, salvo expressa disposição de lei, em US$ 10 milhões. Requer-se que um juiz reveja todas as indenizações punitivas e emita um parecer sobre sua decisão de aumentar ou diminuir o valor, ou deixá-lo como fixado. O júri deve ser unânime. Na Carolina do Sul os fatores para o júri considerar na determinação do montante da indenização punitiva são: grau de culpabilidade do réu; gravidade do dano causado pelo requerido; medida em que a conduta dos próprios autores contribuiu para o prejuízo; duração da conduta; a consciência do réu; conduta passada similar; rentabilidade da conduta para o requerido; capacidade do réu de pagar; probabilidade que a indenização tem de deter o réu ou outros de conduta igual; concessões de indenização punitiva contra o réu para o mesmo ato; sanções penais contra o réu para o mesmo ato; multas civis contra o réu para o mesmo ato. Limitação em primeiro lugar: o valor da indenização punitiva não pode exceder o maior de três vezes o montante dos danos compensatórios ou US$ 500 mil. Limitação segunda: o valor da indenização punitiva não deve exceder o maior de 224 quatro vezes o montante dos danos compensatórios ou US$ 2 milhões de dólares se a conduta ilícita comprovada foi motivada principalmente por ganho financeiro. Porém, tais limitações não são aplicadas: (1) se no momento da lesão o réu tinha a intenção de prejudicar o requerente, ou (2) se o réu se declarou culpado ou foi condenado por um crime decorrente do mesmo ato, ou ainda (3) se o réu agiu sob a influência de álcool ou drogas. No Iowa requer-se do autor que demonstre que a conduta do réu se constituiu em desrespeito intencional e arbitrário dos direitos ou da segurança de outrem. Exige-se que 75% ou mais de todos os valores punitivos devam ser pagos para o Fundo Civil Estadual de Reparações. Na Dakota do Sul o autor tem que demonstrar que o ato do réu foi “opressivo, arbitrário, fraudulento, malicioso ou ultrajante”, para a concessão de indenizações punitivas. Em Idaho foi elevado o padrão para a imposição de indenizações punitivas, quando há “provas claras e convincentes” do ato ilícito, para US$ 250 mil ou três vezes os valores compensatórios. Em Óregon requer-se do autor que demonstre por “claras e convincentes” evidências que o réu “agiu com dolo ou mostrou uma indiferença irresponsável e ultrajante para a saúde, segurança e bem-estar dos outros”. Prevê-se a possibilidade de revisão da decisão do tribunal de júri que concedeu indenização punitiva. Em Minesota impõe-se que o autor demonstre que o réu agiu com “desrespeito deliberado” para a concessão de indenizações punitivas. Apenas ressalva-se que a determinação da indenização punitiva deva ser feita em um processo separado, a pedido do réu, mas autoriza que juízes de segunda instância possam rever todas as indenizações punitivas por danos. Além dos Estados que já foram vistos, Arizona, Kentucky e Maryland também exigem, para a concessão da indenização punitiva, que o autor demonstre por “claras e convincentes” provas que o réu agiu com fraude, opressão ou malícia. Verifica-se, dessa forma, a absoluta falta de uniformidade entre as diversas entidades federativas americanas, o que resulta na constatação de que o sistema de responsabilidade civil daquele país é bem mais complexo que o nosso, já que aqui disciplinamos o tema mediante a promulgação unicamente de legislação federal, nos termos do art. 22, inciso I, da Constituição da República brasileira. 225 16 CASOS EMBLEMÁTICOS DE INDENIZAÇÕES PUNITIVAS NOS EUA Noticia Maria Celina Bodin de Moraes375 que “a principal crítica que sofrem os punitive damages nos Estados Unidos se apega à sua absoluta imprevisibilidade, para alguns um fenômeno que se encontra fora de controle”, havendo, “de fato, situações quase anedóticas, que fazem a alegria dos estudantes de responsabilidade civil”, como em casos que passam ser retratados. 16.1 O Denominado McDonald’s Coffee Case O mais conhecido caso de condenação em punitive damages nos Estados Unidos é o da senhora que derramou café em seu colo e obteve, em primeira instância, uma indenização punitiva de US$ 2,7 milhões da McDonald's Corporation, considerada a mais emblemática indenização no assunto. O aspecto mais incompreensível nesse caso parece ser o fato de que a idosa senhora buscou − e conseguiu − reparação para algo que não foi nada mais do que um acidente cotidiano e que lhe cabia evitar porque estava inteiramente no seu âmbito de ação e controle, numa hipótese típica de culpa exclusiva da vítima. Um resumo detalhado talvez possa oferecer uma visão mais abrangente dos acontecimentos. Stella Liebeck, de 79 anos, comprou o café na lanchonete e, enquanto seu neto dirigia o carro, ela colocou o copo entre suas pernas e removeulhe a tampa para adicionar creme e açúcar. Uma manobra fez derramar café em seu colo, tendo-lhe causado queimaduras de segundo e de terceiro graus, comprometendo cerca de 10% de sua pele. Em razão dos ferimentos, permaneceu diversos dias hospitalizada e passou algumas semanas recuperando-se em casa, ajudada pela filha, tendo sidos necessários, depois, cerca de dois anos de reabilitação. Naquele período, perdeu quase 20% de seu peso. Foi quando a Sra. Liebeck escreveu à McDonald’s solicitando que diminuísse a temperatura do café, ajustada em 180º F (82º C). Pediu também indenização pelas despesas médicas, no valor de aproximadamente vinte mil dólares além dos salários não recebidos por sua filha, durante o período em que lhe atendera. A McDonald’s recusou. Ela, então, acionou 375 MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 58, abr./jun. 2004. 226 a empresa, pedindo US$ 100 mil como indenização compensatória e o triplo desse valor como indenização punitiva. No julgamento, um perito testemunhou que o café a 180°F causa queimaduras de segundo grau muito rapidamente, apenas 3,5 segundos depois de atingir a pele, enquanto se a temperatura baixasse para 160°F somente após 8 segundos ocorreriam queimaduras daquela gravidade. Além disso, o supervisor de controle de qualidade da McDonald’s informou aos jurados que a companhia não havia diminuído a temperatura do café a despeito de ter recebido cerca de 700 queixas de queimaduras em 10 anos. Um consultor de segurança, perito contratado pela empresa, advertiu, por outro lado, que as 700 queixas correspondiam, aproximadamente, a 1 em 24 milhões de copos, o que, do ponto de vista estatístico, é praticamente igual a zero. A esse argumento respondeu depois um jurado, entrevistado em seguida ao julgamento: “cada estatística é alguém seriamente queimado; aquilo me deixou realmente irritado”. Após poucas horas de deliberações, o júri deu razão a Sra. Liebeck. Foi-lhe atribuída a quantia de US$ 200 mil como indenização compensatória, reduzida em 20% (US$ 160 mil) porque ela havia contribuído para o acidente, e US$ 2,7 milhões como indenização punitiva. Segundo um jurado, “foi a nossa maneira de dizer: ei, abram os olhos; as pessoas estão se queimando”. O juiz depois reduziu a quantia punitiva para US$ 480 mil, calculando o valor como o triplo da indenização compensatória estipulada. A quantia final obtida pela Sra. Liebeck, em posterior acordo celebrado com a empresa, permanece em segredo até hoje. O caso Liebeck tornou-se um verdadeiro ícone no quadro dos punitive damages estadunidenses, embora esteja longe de ser o único, como veremos abaixo. 16.2 O Caso do Medicamento “MER”376 Foi apenas em 1967 que os punitive damages ganharam nova dimensão, com o julgamento de dois casos envolvendo a comercialização, pela empresa 376 A narrativa deste caso foi extraída da obra de André Gustavo de Andradejá citada por diversas vezes neste trabalho, qual seja, Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 190/191. 227 Richardson-Merrell Inc., de uma droga, o “MER 29”, indicada para a redução do colesterol, mas que, como se descobriu, produzia efeitos colaterais, dentre os quais o surgimento de catarata nos usuários. A droga, que foi administrada em aproximadamente 400 mil pessoas, rendeu para a fabricante, Richardson-Merrell, cerca de US$ 7 milhões e gerou 490 casos de catarata relatados. Dois julgamentos tornaram-se Ieading cases. O primeiro foi Roginsky v. Richardson-MerreI Inc. Em primeiro grau de jurisdição, a empresa fabricante do medicamento fora condenada a pagar US$ 17.500 como compensatory damages e US$ 100 mil em punitive damages ao autor da ação, vítima do efeito colateral do medicamento. Todavia, a Corte de Apelações reformou a decisão, excluindo os punitive damages. O relator da decisão da Corte, Judge Friendly, argumentou que não havia evidências suficientes de um comportamento de tal maneira pernicioso do fabricante que desse ensejo ao estabelecimento de uma indenização de caráter punitivo. Mas o argumento mais controvertido foi o seguinte: a maciça distribuição do medicamento deu ensejo a um potencial de centenas de processos judiciais semelhantes e, em consequência, aumentou a possibilidade de imposição de indenizações punitivas cumulativas, cujo montante total poderia ultrapassar o necessário para punir e dissuadir a empresa fabricante, que poderia ter a sua saúde econômica irremediavelmente afetada. Dois meses depois, foi julgado o segundo leading case, Toole v. RichardsonMerrel Inc. Toole, o autor da ação, fora vítima de catarata em um dos olhos como efeito colateral decorrente do uso da droga. O fabricante do medicamento foi condenado pelo júri a pagar US$ 175 mil de compensatory damages pela lesão sofrida pela vítima e US$ 500 mil adicionais a título de punitive damages, reduzidos estes últimos pelo juiz para US$ 250 mil. No julgamento considerou-se que houve malícia por parte da empresa, que sabia que o produto não era seguro, pois testes realizados previamente em animais teriam demonstrado o desenvolvimento de catarata. Além disso, o fabricante teria distorcido relatórios e deixado de advertir os usuários quanto aos riscos inerentes à utilização do medicamento. A Corte de Apelações confirmou os punitive damages, rejeitando as razões anteriormente apresentadas no anterior case e argumentando que a conduta da empresa ré foi imprudente e demonstrou falta de consideração com relação às suas prováveis consequências danosas. Toole v. Richardson-Merrell Inc. pode ser considerado um 228 caso seminal de indenização punitiva em situação de responsabilidade objetiva (strict liability) pelo produto (product liability). Posteriormente, já no ano de 1979, no julgamento do caso Sturm, Ruger & Co. v. Day foram reforçados os fundamentos da aplicação dos punitive damages em casos envolvendo a responsabilidade civil decorrente de defeito de produto. Reconheceu-se, então, expressamente que os punitive damages não eram incompatíveis com a responsabilidade objetiva, quando estivesse caracterizado que o fabricante, antes da colocação do produto no mercado, sabia da existência do defeito e, ainda mais, tinha ciência dos riscos envolvendo o uso desse produto. Observou-se que os punitive damages desempenhariam papel de dissuasão principalmente em casos nos quais é economicamente mais vantajoso para o fabricante pagar indenizações compensatórias às vítimas que postulem indenização do que corrigir o defeito do produto, como na lide que se consagrou com o nome Ford Pinto Case, abaixo examinada. 16.3 O Ford Pinto Case377 A ideia de aplicar a indenização punitiva como forma de mudar a mentalidade administrativa de fornecedores de produto que se pautam por uma racionalidade estritamente econômica é simbolizada pelo famoso “Ford Pinto Case” (Grimshaw v. Ford Motor Co). Em 28 de maio de 1972, a senhora Gray, acompanhada do jovem de 13 anos Richard Grimshaw, dirigia seu automóvel Ford Pinto por uma freeway, quando o veículo, após uma troca de faixa, repentinamente enguiçou. O carro que vinha imediatamente atrás desviou, mas o seguinte (um Galaxie) não conseguiu evitar a colisão com a parte traseira do Ford Pinto. No momento do impacto o Ford Pinto pegou fogo e o seu interior ficou tomado pelas chamas. De acordo com o laudo de peritos, o impacto causou ruptura no tanque de combustível, que vazou para o compartimento de passageiros. Ambos os ocupantes dos veículos sofreram sérias queimaduras. Quando saíram do veículo, suas roupas estavam quase completamente queimadas. A senhora Gray morreu alguns dias depois de parada cardíaca 377 A narrativa deste caso também foi extraída da obra de André Gustavo de Andradejá citada por diversas vezes neste trabalho, qual seja, Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 192/193. 229 resultante de complicações provocadas por essas queimaduras. O jovem Grimshaw conseguiu sobreviver após intenso tratamento, um grande número de cirurgias e vários enxertos de pele. Ele perdeu pedaços dos dedos da sua mão esquerda e parte da sua orelha esquerda, enquanto sua face precisou de vários enxertos extraídos do seu corpo. As lesões causaram-lhe marcas de queimadura permanentes no rosto e em todo o corpo. Grimshaw e os herdeiros da senhora Gray processaram a Ford Motor Company. O júri condenou a Ford a pagar a Grimshaw uma indenização compensatória de US$ 2.516.000 e punitive damages de US$ 125 milhões; em favor dos herdeiros da senhora Gray foi estabelecida uma indenização compensatória de US$559.680. No julgamento, considerou-se a circunstância de que os engenheiros da Ford teriam descoberto, em testes de colisão (crash tests) realizados anteriormente à produção comercial do veículo, que um acidente envolvendo a traseira poderia causar facilmente a ruptura do sistema de combustível. Como a linha de produção já se encontrava pronta quando os engenheiros encontraram o defeito, altos executivos da Ford decidiram produzir o automóvel como projetado originalmente, embora modificações de baixo custo pudessem ter corrigido o problema. O juiz, todavia, por considerar excessivo o valor fixado pelo júri, reduziu o montante dos punitive damages para US$ 3,5 milhões, valor que acabou confirmado pela Corte de Apelações da Califórnia. A despeito disso, foi importante a rejeição, pela Corte de Apelações, do apelo da Ford, que pretendia a eliminação dos punitive damages. Reconheceu a Corte a excepcional reprovabilidade da empresa, que poderia ter tomado as providências necessárias para prevenir o acidente em questão e outros envolvendo o mesmo modelo de automóvel. Importante, também, foi o fato de que, em 1978, mesmo ano em que foi dado o veredicto do júri, a Ford se viu compelida pela National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA) a fazer o recall de mais de um milhão de automóveis modelo Ford Pinto fabricados entre 1971 e 1976. Matéria jornalística publicada pouco depois do julgamento expôs que, em uma estimativa conservadora, o Ford Pinto, em razão do defeito na concepção do seu projeto, teria provocado a morte de cerca de 500 pessoas, talvez 900. Nessa matéria foi revelado que um memorando interno da Ford continha estudo que calculava o seguinte: de um lado, o custo estimado das indenizações com acidentes envolvendo 230 o Ford Pinto (US$ 200 mil por vida perdida multiplicados por prováveis 180 mortes por ano, além de US$ 67 mil por estimadas 180 lesões não fatais, mais os danos com os veículos); e, de outro lado, o valor que teria de ser gasto para corrigir o problema do veículo (cerca de US$ 11 por unidade, multiplicados por 12,5 milhões de unidades). A conclusão do estudo foi que, do ponto de vista estatístico, o pagamento das indenizações, ao custo total estimado de U5$ 49,5 milhões, seria economicamente mais vantajoso do que o aperfeiçoamento necessário em todos os veículos, ao custo total de U5$ 137,5 milhões, para prevenir cerca de 180 mortes por ano e um número equivalente de feridos. Qualquer comentário seria despiciendo para o caso depois destes dados. 16.4 A fumante Bullock vs. Philip Morris No ano de 2002, a Philip Morris, a maior fabricante de cigarro do mundo, foi condenada a pagar uma indenização recorde de US$ 28 bilhões para uma mulher de 64 anos com câncer de pulmão que culpava pela doença o vício do tabaco, imputando falha da empresa em adverti-la sobre os riscos do tabagismo. Com a notícia, as ações da Philip Morris caíram mais de 7% em apenas um dia, já que os 28 bilhões de dólares equivaleriam a 38% por cento do faturamento anual da empresa, de 72,9 bilhões de dólares. A mesma Sra. Bullock, em processo anterior, já havia ganhado US$ 850.000 em indenização compensatória, e o valor de US$ 28 bilhões se destinou unicamente a punir a empresa, com aplicação dos punitive damages. Segundo se alegou, a Sra. Bullock começou a fumar aos 17 anos e foi diagnosticada no ano de 2001 com câncer de pulmão que já havia se espalhado para seu fígado. Durante o julgamento, a Philip Morris voltou sua defesa inteira sobre Bullock e sua decisão espontânea de fumar. “Se ela tivesse parado de fumar, mesmo na década de 1980, ela não teria câncer de pulmão, hoje", disse Peter Bleakley, o advogado que representou a Philip Morris, aos jurados, no início do julgamento. A empresa disse que o depoimento de Bullock mostrou que ela estava consciente dos riscos do tabagismo na saúde e que foi avisada várias vezes sobre esses riscos por seus médicos ao longo de quatro décadas. 231 Advogado de Bullock, Michael Piuze, argumentou que a Philip Morris passou anos escondendo os perigos do cigarro, com uma campanha de desinformação generalizada, que começou na década de 1950. William Ohlemeyer, outro advogado da Philip Morris, confiante de que um tribunal de apelações iria reverter os danos, afirmou: "este é o exemplo do júri ignorar a lei e fazer o que não se deve fazer". No recurso, a Philip Morris alegou que a indenização punitiva do júri foi cerca de 33.000 vezes maior do que a indenização por danos compensatórios, "bem acima da proporção de quatro para um, como posta na orientação permissiva da Suprema Corte dos EUA". Na segunda instância a indenização foi reduzida para 13,8 milhões de dólares. Houve novo recurso para a Suprema Corte do Estado da Califórina, mas o valor acima acabou ratificado no ano de 2011. Diga-se que a atribuição do dever indenizatório, neste caso, de fumante que adoece por conta do tabagismo, tem tratamento absolutamente divergente se comparadas as justiças americana e brasileira. Lá, como se viu, foi aplicada a elevada indenização contra a Philip Morris, pelos motivos que acima se expôs. Aqui, apenas a título de informação, o cenário da questão na justiça brasileira, segundo dados fornecidos pela Souza Cruz, é o seguinte: do total de 554 ações ajuizadas contra a companhia desde 1995, há 344 ações judiciais com decisões rejeitando tais pretensões indenizatórias (237 definitivas) e 10 em sentido contrário, as quais estão pendentes de recurso378. Outrosim, a orientação do STJ é franca quanto ao não reconhecimento de dever indenizatório nestes casos. Sem que isso tenha qualquer conotação de convencimento sobre a correção do que produzimos na operação prática do Direito, tudo estando sob o crivo até mesmo dos estudantes que se iniciam na ciência jurídica, a situação foi objeto de exame em sentença proferida pela Segunda Vara Judicial da Comarca de Ibiúna. Pedia-se indenização por danos materiais e morais contra uma fabricante de cigarros pelo fato de a suposta vítima ter consumido o produto por anos a fio e após ter sofrido danos à saúde, inclusive com amputação de parte de um membro inferior. 378 Disponível em: www.conjur.com.br. Acesso em 29 de janeiro de 2009. 232 Foi negada a indenização e, por lealdade ao leitor, que poderá aferir seu acerto ou erro, no rodapé, transcreve-se a sentença que se encontra aguardando reexame pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo.379 379 Processo nº de ordem 653/07 - 2ª Vara Judicial da Comarca de Ibiúna. Vistos. CELSO AMARO propôs ação indenizatória em face de CIA DE CIGARROS SOUZA CRUZ S/A, alegando que: desde os treze anos de idade fuma vários maços de cigarros por dia, inclusive de marcas fabricadas pela ré; em razão desse consumo adquiriu tabagismo e doença de buerguer, afetando-lhe a circulação sanguínea; como consequência sofreu amputação transtibial, que lhe impôs aleijão; foi afastado permanentemente do mercado de trabalho, pois era trabalhador braçal; a ré obteve lucro com seu sofrimento físico-moral, devendo repará-lo (fls. 02/04). Indeferida em primeira instância, a gratuidade judiciária foi concedida posteriormente e o processo teve regular seguimento. A ré contestou o feito, argüindo, preliminarmente, a inépcia da petição inicial. No mérito, sustentou que: a comercialização de tabaco é uma atividade lícita em todo o mundo, bem como no Brasil; inexiste qualquer defeito no produto colocado no mercado; a comercialização de produto de periculosidade inerente não enseja responsabilidade civil; os riscos à saúde dos consumidores são aceitáveis desde que normais e previsíveis; a comercialização de cigarros não padece de qualquer defeito de informação; os riscos associados ao consumo de cigarros são de conhecimento público pelo menos desde o século XIX, sendo, por todos, razoavelmente esperados há muitas décadas; houve o cumprimento estrito das normas que disciplinam as informações a serem prestadas aos consumidores; antes de 1988 não poderia ser responsabilizada por omissão em informar porque não existia lei que lhe impusesse essa obrigação; não se pode retroagir a noção de boa-fé objetiva; a propaganda inerente aos cigarros não é enganosa ou abusiva, pois os riscos associados ao consumo são de conhecimento público há décadas; a publicidade é destinada à venda de cigarros para adultos que já fumam; não há comprovação de que a doença alegada pelo autor é exclusivamente decorrente do tabagismo; as doenças vasculares periféricas são de natureza multifatorial; inexiste prova do nexo de causalidade entre a doença que teria acometido o autor e o consumo de cigarros; o autor decidiu fumar por livre e espontânea vontade; nada há no cigarro, incluindo a nicotina, que tenha o poder de neutralizar a vontade própria do fumante e evitar que ele tome decisões conscientes sobre o prosseguimento ou interrupção da prática de fumar; não há prova de que o autor efetivamente consumiu cigarros, bem como que consumiu exclusivamente os cigarros por ela produzidos (fls. 145/205). Réplica (fls. 1297/1301). Instadas as partes (fls. 1302), o autor pugnou pela produção de provas e a ré requereu o julgamento antecipado da lide (fls. 1303 e 1305/1323). É o relatório. Fundamento e decido. Julgo a lide antecipadamente com autorização do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil, sendo desnecessária produção de outras provas, conforme abaixo se fundamentará com mais vagar. O pedido é improcedente. Frise-se, por primeiro, que o julgamento antecipado decorre da impossibilidade e da desnecessidade de o exame pericial requerido pela parte-autora (fls. 1303) modificar os rumos da demanda, certo que redundaria tão-somente em procrastinação para a prestação da tutela jurisdicional. A citada impossibilidade se dá porque a doença manifestada no autor – e que lhe ocasionou o aleijão – não necessariamente tem como única causa o tabagismo, consoante atual literatura médica (nesse sentido, veja-se o Resp 886.347/RS), de modo a se ter pela inaptidão da prova técnica para comprovar a causa de sua moléstia. Já a mencionada desnecessidade do exame pericial médico decorre da própria maneira como a exordial foi redigida, certo que não há possibilidade de se comprovar a utilização exclusiva, pelo autor, dos produtos fabricados pela ré. Nesse ponto, anoto que o autor fundamentou seu pleito indenitário no fato de que [...] desde os treze anos de idade, fuma vários maços de cigarros por dia, incluídos os das marcas [...] fabricadas pela ré. (primeiro parágrafo de fls. 03), e que tal consumo lhe gerou tabagismo que, posteriormente, deflagou a doença de Buerguer. Ora, o próprio termo incluídos (primeiro parágrafo de fls. 03) denota que o autor assume ter se utilizado de diversas marcas de cigarros, não afirmando sequer a existência de preponderância na utilização de marcas fabricadas pela ré. Nestes termos, mostra-se despicienda a realização de exame pericial e a oitiva de testemunhas, pois não há possibilidade de se estabelecer nexo de causalidade entre os danos e a utilização única ou preponderante dos produtos fabricados pela ré – já que o próprio autor admitiu fato contrário em sua inicial, consoante supra-exposto. E, indubitavelmente, essas razões fundamentam – a um só turno – o julgamento antecipado do feito e também sua improcedência. Nesse sentido, insta salientar que a imputação de responsabilidade civil supõe a presença de dois elementos de fato: a conduta do 233 agente e o resultado danoso; e de um elemento lógico-normativo: o nexo causal (que é lógico, porque consiste num elo referencial, numa relação de vinculação entre os elementos de fato; e é normativo, porque tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito, segundo o qual a responsabilidade civil só se estabelece em relação aos efeitos diretos e imediatos causados pela conduta do agente). À evidência, a questão jurídica da forma como posta em juízo merece atenção com relação à impossibilidade de estabelecimento do nexo de causalidade entre a suposta conduta da ré e os danos experimentados pelo autor. Não haveria mesmo como se deferir qualquer pretensão indenizatória sem a comprovação do nexo de causalidade entre as lesões e enfermidades descritas na inicial e o suposto tabagismo oriundo unicamente do consumo dos cigarros produzidos pela ré, já que este último fato, consoante todo o fundamentado, não poderia ser comprovado mesmo com a produção de prova pericial e testemunhal. Com efeito – e a despeito deste reconhecimento – não se pode olvidar que a doutrina, mesmo em sede de teoria de responsabilidade objetiva, se aperfeiçoou no sentido da indispensabilidade do nexo de causalidade como elemento configurador do dano. Nesse panorama, vejo que in casu está ausente o nexo causal. E sendo este um dos pressupostos da existência da responsabilidade civil, é certo que sua ausência importa em improcedência do pedido indenitário. Ainda que assim não se entendesse, vejo que, do caso ora examinado, exsurge o livre-arbítrio como excludente da responsabilidade civil. Por primeiro, veja-se o significado de livre-arbítrio, consoante definição do dicionário Hoaiss: Possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante. Já o dicionário Aurélio assim o define: 1. Filos. Possibilidade de exercer um poder sem outro motivo que não a existência mesma desse poder; liberdade de indiferença. [Refere-se o livre-arbítrio principalmente às ações e à vontade humana, e pretende significar que o homem é dotado do poder de, em determinadas circunstâncias, agir sem motivos ou finalidades diferentes da própria ação. Nestes termos, o livre-arbítrio determina a possibilidade de escolher entre o bem e o mal, o certo e o errado. Trata-se, pois, de uma capacidade humana que permite apreciar os valores e as conseqüências das diversas possibilidades resultantes de sua vontade, dos seus atos ou ações, razão por que o homem responde por tais conseqüências. E nada há nos autos – sequer uma frase –afirmando eventual vício de consentimento por parte do autor, sendo certo que desde os idos de 1.988 passaram a ser veiculadas nos maços de cigarro as advertências contra os malefícios provocados pelo fumo, conforme determinou a Portaria n. 490 do Ministério da Saúde, de 25 de agosto de 1.988, que impôs para as indústrias do ramo a obrigação de colocar nos maços a cláusula de advertência: O Ministério da saúde adverte: Fumar é prejudicial à saúde. Tal fato acaba por legitimar o livre arbítrio exercido pelo autor, afastando a pretensão à responsabilização da ré pelos danos decorrentes do tabagismo por ele adquirido, já que, mesmo com as advertências explicitamente estampadas nos maços, repete-se, ele optou por adquirir, espontaneamente, o hábito de fumar, valendo-se de seu livre-arbítrio. No mais, para a Professora TERESA ANCONA LOPEZ, titular do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, a liberdade de fumar é um direito humano tanto quanto a liberdade de não fumar, e é dever do Estado tutelar e tornar harmônicas essas duas liberdades quando estiverem em rota de colisão. Em sua obra Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: a experiência brasileira do tabaco, p. 15/17, Ed. Quartier Latin do Brasil, São Paulo, a insigne professora considera que: a produção e comercialização de cigarros não só é lícita, mas amplamente regulamentada, de acordo com o que dispõe a Constituição (art. 220, §4º), o Código de Defesa do Consumidor e os regulamentos da Anvisa; a propaganda do cigarro não é enganosa ou abusiva; o cigarro não é um produto defeituoso, mas um produto de periculosidade inerente; os riscos associados ao consumo de cigarros são de conhecimento dos consumidores há várias décadas; não há como estabelecer o nexo causal entre o ato de fumar e “doenças multifatoriais” (diversos fatores de risco são concorrentes), mormente pelo fato de que a associação dessas doenças ao tabaco é meramente estatística, não levando em consideração o indivíduo isolado; ao consumidor deve ser imputada culpa exclusiva, porque fumar é uma opção que envolve riscos conhecidos e nada impede que o fumante decida parar de fumar a qualquer tempo, já que a nicotina é incapaz de intoxicar o consumidor a ponto de afetar a sua autodeterminação. Neste cenário, pode-se concluir que atos como fumar, beber, consumir produtos altamente calóricos, com altas doses de açúcar, sódio ou gorduras, ou, ainda, praticar esportes radicais trata-se de escolha individual, que se dá no exercício de liberdade protegida constitucionalmente. Ninguém, ressalvados os casos patológicos de falta de higidez mental, ignora os riscos que cada uma dessas atividades possui. Se opta por fazê-las, manifesta sua livre e espontânea vontade, e, portanto, deve arcar com os riscos inerentes às suas opções. No caso concreto, a se ter pela responsabilidade da ré, o dever de 234 indenizar estaria configurado para determinada fabricante de bebidas alcoólicas na hipótese de um cliente que fosse portador de alcoolismo, simplesmente porque aquela pessoa diz ter o hábito de ingerir – além das bebidas de outras marcas – aquelas fabricadas por tal empresa, mesmo sabendo dos riscos atrelados ao tipo de bebida que ingere. Assim, in casu, tem-se que o autor, no uso de seu livre-arbítrio, submeteu-se, conscientemente, a um risco que poderia ser evitado, se ele tivesse optado por não começar a fumar, ou deixar de fumar a partir do momento em que adoeceu. Especificamente quanto a este último aspecto, vejo que o único documento médico que instrui a petição inicial consigna que o autor possuía antecedentes de amputações prévias (fls. 06verso), de modo a reforçar a necessidade da abstenção de fumar, evitando assim o agravamento de suas lesões e a ocorrência de novas amputações. Outrossim, é importante consignar que o Brasil adota uma política de apoio às pessoas que desejam parar de fumar, nos moldes previstos na Portaria do Ministério da Saúde n.º 1.035, de 31 de maio de 2004, que amplia o acesso à abordagem e tratamento do tabagismo para a rede de atenção básica e de média complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS) conjugada com a Portaria da Secretaria de Atenção à Saúde/MS n.º 442, de 13 de agosto de 2004, que aprova o Plano para Implantação da Abordagem e Tratamento do Tabagismo no SUS e o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas – Dependência à Nicotina. Sob este prisma, o autor tinha não somente a faculdade legítima – eis que ciente dos riscos – mas a possibilidade in concreto de abandonar o fumo, esta possibilitada pelos programas governamentais supracitados, o que realça o fundamento de que o uso do cigarro é manifestação do livre-arbítrio inato aos cidadãos em um Estado Democrático de Direito, que poderão deixar de fazê-lo se quiserem, afastando, assim, o dever de indenizar. A todas estas ponderações, acresça-se o fato de que o cigarro, de per si, não pode ser considerado como um produto defeituoso, ou que seu consumo, inexoravelmente, leve à caracterização de responsabilidade civil pelo fato do produto, nos termos do artigo 12, caput, do Código de Defesa do Consumidor, pois, hodiernamente, não deixa de oferecer a segurança que dele legitimamente se espera. Ora, não se pode, legitimamente, esperar que o cigarro não faça mal à saúde do fumante. Em outras palavras, se pode esperar do cigarro, por exemplo, rigoroso processo de fabricação, com adequado controle de qualidade, mas dele não se pode esperar que não prejudique o sistema respiratório do usuário. E, como já mencionado, aí estão as políticas públicas que impõem a intensa divulgação da advertência dos males do tabagismo, bem como pela existência de programas governamentais de apoio aos dependentes, sendo certo que a periculosidade inerente de um produto, de modo algum, pode ser confundida e caracterizada como um seu defeito, consoante os percucientes fundamentos trazidos pelo Excelentíssimo Ministro Luis Felipe Salomão, ao relatar o Resp. 1.113.804 /RS, e a seguir descritos: Por outro lado, não parece possível que o cigarro seja considerado um produto defeituoso, nos termos do que imaginara o Diploma Consumerista, no § 1º do art. 12, que está assim redigido: § 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação. Deveras, o defeito a que alude o dispositivo consubstancia-se em falha que se desvia da normalidade, capaz de gerar uma frustração no consumidor ao não experimentar a segurança que ordinariamente se espera do produto ou serviço. Assim, o defeito previsto no artigo não pode dizer respeito a uma capacidade própria do produto de gerar danos, presente em todas as unidades, mas a algo que escapa do razoável, discrepante do padrão de outros produtos congêneres ou de outros exemplares do mesmo produto. Até porque, em sendo acolhida a tese e considerado o produto defeituoso, seria possível a troca do produto viciado por outro em perfeitas condições de uso, o que é impossível de se imaginar no caso do cigarro, pela simples razão de que todos os demais exemplares ostentam os mesmos problemas apontados (por exemplo, a nicotina viciante, ou as muitas alegadas substâncias tóxicas e potencialmente cancerígenas), sendo incontornável a conclusão de que o cigarro é um produto de risco inerente. É essa a conclusão que se chega, inclusive ao se interpretar o CDC à luz da Constituição Federal de 1988 - o que é absolutamente recomendável. Não por acaso a Carta Maior agrupou, no art. 220, § 4º, "tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias", mas precisamente porque se cuida de produtos e serviços de categorias assemelhadas, de periculosidade inerente, cujos riscos de dano decorrem do seu próprio uso. Equivale dizer, pois, que é inerente ao tabaco a circunstância de ser ele fator de risco de diversas enfermidades, tal como o álcool o é em relação a tantas outras moléstias, inclusive patologias de impacto social, como o alcoolismo, além de ser fator intimamente relacionado a acidentes de trânsito. A nicotina, por sua vez, é inerente não só ao cigarro. Mais que isso, é inerente à própria folha do tabaco, recebendo essa planta o nome 235 científico de nicotiana tabacum, em homenagem a Jean Nicot, diplomata francês em Lisboa, que ministrara à Rainha Maria Catarina de Médicis a inalação de sua queima, como paliativo à enxaqueca (DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo. Curitiba: Juruá, 2007, p. 30). Vale dizer, não há cigarro que não seja um fator de risco à saúde, assim como não há bebida alcoólica que não embriaga e possa causar danos ao usuário e a terceiros, assim como não há medicamento fármaco ou agrotóxico que não tenha a aptidão de causar intoxicação. No particular, valho-me do magistério de Cláudia Lima Marques, para quem "o art. 9º refere-se a produtos e serviços 'potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança', daí incluir, segundo a doutrina (Denari, p. 149), bebidas alcoólicas, tabaco, agrotóxicos, fogos de artifício, material radiativo, pilhas, dedetização de prédios, serviços, como piscinas, esportes radicais, ou serviços públicos, como energia elétrica" (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.243). Com efeito, à luz da legislação vigente, em meu juízo, resta firmada a premissa de ser o cigarro um produto de periculosidade inerente, seguindo-se que o fornecedor somente se responsabilizará por eventuais danos causados pelo uso do produto em caso de informação inadequada alusiva aos seus riscos, se também, por outro lado, o dano figurar como consectário da implementação do risco (nexo). Sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, a doutrina é clara em prever o dever de informação do fornecedor acerca dos riscos que potencialmente o produto pode causar ao usuário: Nas hipóteses elencadas, o fornecedor deverá informar de maneira ostensiva e adequada a respeito da respectiva nocividade e periculosidade. Uma informação é ostensiva quando se exterioriza de forma tão manifesta e translúcida que uma pessoa, de mediana inteligência, não tem como alegar ignorância ou desinformação. É adequada quando, de uma forma apropriada e completa, presta todos os esclarecimentos necessários ao uso ou consumo de produto ou serviço. Assim, por todos esses fundamentos, a responsabilidade civil pretensamente imputada à ré há que ser excluída, pois comprovou, com quase mil laudas de documentos, que o produto por ela fabricado atende às políticas públicas que o regulamentam, de modo a realçar a legitimidade do livre arbítrio exercido pelo autor, concluindo-se que as lesões – ainda que supostamente – ocasionadas pelo consumo de cigarro são, legitimamente, dele esperadas, por se tratar de produto de periculosidade inerente, sendo, pois, inaplicável o artigo 12, §1º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor. Por derradeiro, a solução dada a esta demanda encontra amparo na jurisprudência do Eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Veja-se: 1) INDENIZAÇÃO - Ação movida por doente de câncer em face de fabricante de cigarros - Inexistência de prova de consumo exclusivo de produtos da ré - Inexistência de prova de nexo entre a doença e o tabagismo, apesar do truísmo de que o cigarro causa câncer - Adesão espontânea ao vício - Dever de indenizar não reconhecido - Ação improcedente - Apelação não provida. Ap. 110.454.4/3; órgão julgador: 4a Câmara de Direito; Relator: NARCISO ORLANDI. 2) INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil Dano moral - Morte por câncer de pulmão - Fato atribuído ao tabagismo - Ação proposta em face da fabricante dos cigarros consumidos pelo falecido - Improcedência - Admissibilidade - Vício atrelado ao livre-arbítrio do indivíduo - Recurso não Provido. Ap 235.799.4/9; órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; relator: LAERTE NORDI. 3) SENTENÇA. Nulidade. Cerceamento de prova. Requisito da utilidade da prova que não está configurado. Julgamento no estado permitido. Preliminar rejeitada. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Tabagista que, voluntariamente, entregou-se a este vício. Culpa exclusiva do consumidor. Atividade lícita da ré. Exercício regular do direito a ser pronunciado, atraindo a excludente de indenização também por esse motivo (inteligência do artigo 188, II, do CC). Indenização descabida. Sentença mantida. Recurso improvido (Ap. 228.659-4/4-00; órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; relator: JOSÉ JOAQUIM DOS SANTOS; j. 21.01.10, v.u.). 4) INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Ex-fumante que responsabiliza a empresa fabricante do cigarro pelo vício e suas conseqüências. Desacolhida a tese sobre a nulidade da r. sentença e reafirmada a tese da impossibilidade da responsabilização da empresa-ré. 'Volenti non fit injuria', reconhecido o livre arbítrio do viciado. RECURSO NÃO PROVIDO (Ap n. 541.059-4/9; órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; relator: GILBERTO DE SOUZA MOREIRA; j . 30.01.2008, v.u.). Ante ao exposto, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO, extinguindo o feito com resolução de mérito, nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil. Condeno o autor ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios do patrono da ré no valor de R$ 2.000,00, nos termos do artigo 20, §4º, do Código de Processo Civil, respeitada a gratuidade judiciária que lhe foi deferida a fls. 132/135. P.R.I. Ibiúna, 28 de setembro de 2011. Wendell Lopes Barbosa de Souza - Juiz de Direito. 236 17 O DIREITO DE IMPRENSA BRASILEIRO 17.1 Notas Introdutórias e Disciplina Constitucional Pode-se afirmar que o termo imprensa não tem apenas o significado restrito de meio de difusão de informação impressa, mas deve-se levar em conta sua acepção ampla de significar todos os meios de divulgação de informação ao público, principalmente quando através dos modernos e poderosos veículos de difusão como a internet, cujo alcance sobre a grande massa é ilimitado. Segundo Claudio Luiz Bueno de Godoy, “a função jornalística, não se pode negar, cumpre mais que uma finalidade informativa”, já que “forma, a rigor, a consciência de uma comunidade”, e “quando menos, a tanto concorre, de forma decisiva”, forjando “valores culturais e sociais, divulgando e estimulando a produção artística, literária e econômica, fomentando a relação entre os povos e países”.380 Como já mencionado É certo que, em tempos atuais, ao termo imprensa não se reserva apenas seu sentido estrito e original, vinculando mesmo a própria descoberta da maquina de imprimir, a prensa. Não se concede mais a imprensa adstrita às informações impressas, geralmente em jornais e periódicos, ou ainda em qualquer produto impresso. A liberdade de imprensa passa a abarcar todos os meios de divulgação de informação ao público. Destarte, tem-se hoje a liberdade de imprensa como a de informação por qualquer meio jornalístico, 381 aí compreendida a comunicação e o acesso ao que se informa. Veja-se a postura constitucional assumida pelo Estado brasileiro com relação à atividade da imprensa quando da promulgação da Constituição Federal de 1988: Art. 5º, IV – É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; Art. 5º, IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. 380 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 1. 381 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 52. 237 § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. § 3º - Compete à lei federal: I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada; II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. § 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio. § 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. 17.2 Histórico No Brasil, na época da monarquia, era total a proibição de imprimir informações. Em 13 de maio de 1808, suspendeu-se a proibição, todavia ainda não existia a livre atividade da imprensa. Nesse mesmo ano, surgiu o primeiro jornal no Brasil, “A Gazeta do Rio de Janeiro”, submetido à censura prévia. Posteriormente, o Príncipe Regente Dom Pedro editou o aviso de 28 de agosto de 1821, no qual constava “que não se embarace por pretexto algum a impressão que se quiser fazer de qualquer escrito”, abolindo a censura prévia. O primeiro anúncio relativo à legislação de imprensa surgiu com a portaria baixada em 19 de janeiro de 1822, pelo Ministro José Bonifácio de Andrada e Silva, que proibiu os impressos anônimos, atribuindo responsabilidade, pelos abusos, ao seu autor ou, na sua falta, ao editor ou impressor. O Senado da Câmara do Rio de Janeiro preocupado com essa portaria, pediu ao Príncipe Regente a criação de um juízo para o julgamento dos abusos de opinião imprensa. Dom Pedro atendeu ao pedido e por meio do Decreto de 18 de junho de 1822 criou o júri de imprensa. Após a independência do Brasil, a primeira Assembleia Constituinte cuidou de elaborar uma Lei de Imprensa. Mesmo com a dissolução da Assembleia Constituinte, o governo aproveitou o projeto de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e transformou-o no Decreto de 22 de novembro de 1823. Essa lei repudiava a censura 238 e declarava livres a impressão, a publicação, a venda e a compra de livros e escritos de toda a qualidade, com algumas exceções. Essa foi, então, a nossa primeira Lei de Imprensa, na qual se inseriu o princípio da liberdade de informação, bem como o processo contra os eventuais abusos que se praticassem. A Constituição do Império de 1824, inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, manteve o princípio da liberdade de imprensa. Uma lei de 20 de setembro de 1830 procurou regulamentar o dispositivo constitucional relativo à liberdade de imprensa, todavia teve rápida vigência, porque, em 16 de dezembro de 1830, foi sancionado o primeiro Código Criminal brasileiro, que incorporou as disposições dessa lei com pequenas alterações. Em 11 de outubro de 1890, entrou em vigor um novo Código Penal, englobando, também, os dispositivos relativos à imprensa. A Constituição da República de 1891 proclamou, no art. 72, § 2º, que “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar”. Mas o período republicano, ao contrário da época monárquica, acabou marcado por vários atentados à liberdade de imprensa, como, por exemplo, o Decreto nº 4.269, de 17 de janeiro de 1921, de repressão ao anarquismo, incluindo normas relativas à imprensa. A primeira Lei de Imprensa da era republicana foi a de nº 4.743, de 31 de outubro de 1923, que retirava do Código Penal os crimes de imprensa. Essa lei fixava as penas aplicáveis aos crimes de injúria, difamação e calúnia, quando cometidos pela imprensa, bem como os atos definidos como anarquismo pelo Decreto nº 4.269/21, quando praticados através dos instrumentos de comunicação. Puniam-se os atos de incitação ao anarquismo, os atentados à honra alheia, a publicação de segredos do Estado e de matéria que violasse a segurança pública, de ofensa a nação estrangeira, de ofensas à moral e aos bons costumes, de anúncios de medicamentos não aprovados pela Saúde Pública, de escritos visando à chantagem. Instituiu-se o direito de resposta e reformou-se o processo dos delitos de imprensa. Não se instituiu, entretanto, a censura prévia. Quanto à responsabilidade, esta era apurada após a prática do abuso, segundo o princípio da liberdade responsável de cada um. 239 Com a Revolução de 1930, vigorou o arbítrio e a vontade pessoal do ditador Getúlio Vargas quanto aos destinos da imprensa. A Carta Constitucional de 1934 restabeleceu, no art. 113, inciso 9º, a regra da Constituição de 1891, excetuando-se a censura prévia quanto aos espetáculos públicos. Em 14 de julho de 1934, dois dias antes da promulgação da nova Constituição, o então Presidente Getúlio Vargas, baixou o Decreto nº 24.776, que foi a nossa segunda Lei de Imprensa no período republicano. Esse decreto sofreu alterações com o advento da Constituição outorgada em 10 de novembro de 1937, data do golpe de Estado e instauração do Estado Novo. O art. 122, inciso 15, da Carta de 1937, prescrevia que “todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento oralmente, por escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei”. Contudo, a Constituição não deixou essa questão para o legislador ordinário, prescrevendo, em pormenores, uma série de limitações à imprensa. Dispunha, ainda, o referido art. 122, inciso 12, da Carta de 1937, que “a lei pode prescrever: a) com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação; b) medidas para impedir as manifestações contrárias à moralidade e aos bons costumes, assim como as especialmente destinadas à proteção da infância e da juventude; c) providências destinadas à proteção do interesse público, bem-estar do povo e segurança do Estado. Constava que a imprensa regular-se-ia por lei especial, de acordo com os seguintes princípios: a) a imprensa exerce uma função de caráter público; b) nenhum jornal pode recusar a inserção de comunicados do Governo, nas dimensões taxadas em lei; c) é assegurado a todo o cidadão o direito de fazer inserir, gratuitamente, nos jornais que o infamarem ou injuriarem, resposta, defesa ou retificação; d) é proibido o anonimato; e) a responsabilidade se tornará efetiva por pena de prisão contra o diretor responsável e pena pecuniária aplicada à empresa; f) as máquinas, caracteres e outros objetos tipográficos, utilizados na impressão do jornal, constituem garantia do pagamento da multa, reparação ou indenização, e das despesas com o processo nas condenações pronunciadas por delito de imprensa, excluídos os privilégios eventuais derivados do contrato de trabalho da empresa 240 jornalística com os seus empregados; g) não podem ser proprietários de empresas jornalísticas as sociedades por ação ao portador e os estrangeiros, vedado tanto a estes como às pessoas jurídicas participar de tais empresas como acionistas. Esse regime da censura durou até 1945, fim do estado ditatorial, voltando a viger o Decreto nº 24.776, com a promulgação da Constituição Federal de 1946. Em 12 de novembro de 1953, foi promulgada a Lei nº 2.083, que, em seu art. 63, revogou o Decreto nº 24.776/34. A Constituição de 1967 também proclamou a liberdade de imprensa, inserindo-a em seu § 8º do art. 150. Com o advento da Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, foi revogada a Lei nº 2.083/53. Essa lei veio para regular, além da liberdade de imprensa, a liberdade de manifestação do pensamento e da informação. A lei declarou intolerável a propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem pública e social ou de preconceitos de raça ou de classe (artigo 1º, § 1º). O § 2º do art. 1º da referida lei excluiu, expressamente, da liberdade de manifestação de pensamento, os espetáculos e diversões públicas. Havia a proibição de publicações clandestinas e as que atentassem contra a moral e os bons costumes, a necessidade de permissão ou concessão federal para a exploração de serviços de radiodifusão e a livre exploração do agenciamento de notícias, desde que registradas as empresas (artigo 2º da Lei nº 5.250/67). Também havia a vedação a propriedade de empresas jornalísticas, sejam políticas ou simplesmente noticiosas, a estrangeiros e a sociedades por ações ao portador, nos termos do art. 3º, caput, da Lei nº 5.250/67. No exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, proibia o anonimato, e, no entanto, assegurava o respeito ao sigilo quanto às fontes e origens de informações recebidas ou recolhidas por jornalistas (art. 7º, caput). Esta Lei nº 5.250/67 acabou declarada como não recepcionada pela Constituição Federal pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2011, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, conforme será visto. A Emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969 repetiu o princípio da liberdade de imprensa constante da Constituição de 1967 e o inseriu no § 8º do art. 153, somente acrescentando, ao final, a intolerabilidade para “as publicações de exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”. 241 Hoje nós temos a disciplina do direito de imprensa na Constituição Federal de 1988, sem nenhuma pormenorização infraconstitucional, pelo motivo abaixo. 17.3 A Não Recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal Recentemente, no ano de 2009, o Excelso Supremo Tribunal Federal, na Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, julgou procedente o pedido para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei Federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, a Lei de Imprensa, definindo-se que, nas causas decorrentes das relações de imprensa, aplicam-se as normas da legislação comum, notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal.382 382 EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA “LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA”, EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A “PLENA” LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA. PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. PROIBIÇÃO DE MONOPOLIZAR OU OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E AUTÔNOMO FATOR DE INIBIÇÃO DE ABUSOS. NÚCLEO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E MATÉRIAS APENAS PERIFERICAMENTE DE IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº 5.250/1967 PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 242 Entendeu-se que o corpo normativo da Constituição Federal prevê a liberdade de informação jornalística e a liberdade de imprensa, rechaçantes de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização. Segundo constou na decisão, [...] o art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. Afirmou-se que “os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos”, resultando que “as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas”, ou seja, “antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização do pleno gozo das primeiras”. Segundo o decisório, “Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário”, conforme se asseverou. Consta também na decisão da ADPF que [...] a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. A plena liberdade de imprensa, segundo a r. decisão, [...] é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. Mas o direito de resposta que era previsto na antiga Lei de Imprensa subsiste por força de dispositivo constitucional, como passa a ser observado. 243 17.4 O Direito de Resposta Com efeito, estando previsto em norma constitucional de eficácia plena e imediata, não há motivo algum para que não se reconheça o exercício do direito de resposta ao argumento de ausência de legislação infraconstitucional que o preveja. Dispõe o inciso V do artigo 5º da Constituição Federal: é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Em voto de fevereiro de 2013, o Desembargador Beretta da Silveira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator da apelação nº 9000005-5.2008.8.26.0011, conferiu o direito de resposta ao jornalista Luis Nacif contra a Editora Abril, em virtude de uma publicação na Revista Veja, afirmando que “não se pode coibir o direito de a imprensa divulgar, noticiar e comentar qualquer tipo de assunto, ainda mais quando dizem respeito diretamente a pessoas públicas, sejam elas do mundo público/político lato sensu, ou privado”, mas “de outro lado, entretanto, também não se pode tirar o direito daquele que se sentiu ofendido a possibilidade de responder ao que lhe foi imputado, seja falso ou verdadeiro”. Para ele, “o direito de resposta, que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável por parte daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal, norma essa de eficácia plena e de aplicabilidade imediata”. Em suma, afirmou, “não se pode deixar de ter em conta que a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão devem, sempre, vir junto com a responsabilidade da imprensa e de expressão, de molde a que, em contrapartida ao poder-dever de informar, exista a obrigação de divulgar a verdade, preservando-se a honra alheia, ainda que subjetiva”. E concluiu “que nenhuma liberdade é e nem pode ser absoluta” e “a interpretação de qualquer lei e da Constituição há de atender a essa contingência elementar”. O acórdão acabou assim ementado: Direito de resposta - Matéria jornalística - Excesso no dever/direito de informação – Não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal que não tem o condão de extinguir o direito de resposta - Garantia constitucional - Ponderação entre os direitos à informação, à honra e à dignidade da pessoa humana - Existência de excesso a ensejar o exercício do direito de resposta – Sentença mantida – Recurso improvido. 244 17.5 O Controle da Atividade da Imprensa: Preventivo x Repressivo Acerca do controle da atividade da imprensa, posicionam-se a doutrina e a jurisprudência em dois sentidos extremamente opostos, cada qual com firmes argumentos de suas teses.383 Primeiro, orientam-se os estudiosos do tema pelo controle preventivo da atividade, permitindo-se que o Poder Judiciário proíba a veiculação de informações que atinjam a privacidade de outrem. Note-se que a proibição aqui ventilada é de competência exclusiva do juiz de direito, jamais podendo partir de órgãos da Administração Pública. Segundo, posicionam-se outros pensadores pelo controle repressivo, não se permitindo a proibição prévia da informação sequer pelo juiz, mas deferindo-se a reparação pelos danos materiais e morais decorrentes do abuso do direito de informar. Pelo controle preventivo, posicionam-se Luiz David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, no seguinte sentido: Fica proibida a censura ideológica, política e artística. É evidente que a proibição, imposta pelo Poder Judiciário, com fundamento em outros valores constitucionais, não configura exercício de censura, já que o próprio texto constitucional garantiu o direito, “observado o disposto nesta Constituição”. O que está proibido, portanto, é a censura administrativa, levada a efeito por órgãos do Poder Executivo. E complementam os doutrinadores afirmando que: A limitação com fundamento constitucional não poderia constituir censura em nenhuma de suas fórmulas, pois o conflito concretamente surgido pelo exercício de dois direitos constitucionais deve ser resolvido pelo Poder Judiciário que, desta feita, pode impor limites à manifestação do 384 pensamento. Alexandre de Moraes se posiciona pelo controle posterior ou repressivo, impondo-se responsabilização civil e penal ao agente informador que abusa de seu direito: O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia. Essa previsão, porém, não significa que a liberdade de imprensa é absoluta, 383 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 196. 384 ARAÚJO, Luiz Alberto; NUNES, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 397-398. 245 não encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, pois a responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação a eventuais danos materiais e morais. Terminando o constitucionalista por asseverar que: A liberdade de imprensa em todos os seus aspectos, inclusive mediante a vedação de censura prévia, deve ser exercida com a necessária responsabilidade que se exige em um Estado Democrático de Direito, de modo que o desvirtuamento da mesma para o cometimento de fatos ilícitos, civil ou penalmente, possibilitará aos prejudicados plena e integral indenização por danos materiais e morais, além do efetivo direito de 385 resposta. Veja-se, dessa sorte, que a Carta Constitucional brasileira permite ambas as interpretações, cabendo ao estudioso adotar a que entender adequada segundo sua visão, primando pelo controle preventivo da imprensa com possibilidade de ordem judicial para a não exposição de notícias alheias ou postergando para depois da reportagem supostamente ofensiva a indenização por danos morais e materiais. 17.6 Os Artigos 12 e 20 do Código Civil – Controle Preventivo Disciplina o Código Civil: Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Pois bem, ao que parece, a legislação infraconstitucional, consubstanciada nos artigos 12 e 20 do Código Civil, permite não só a reparação posterior por meio de ação de indenização por danos morais, como também autoriza, expressamente, que a ordem judicial seja dirigida à cessação imediata e até preventiva da eventual ofensa a ser perpetrada por meio da imprensa contra os direitos da personalidade, dentre eles a honra a, imagem, o nome, a intimidade e a privacidade. 385 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006. p. 128. 246 Resta saber se se trata, esta decisão judicial, de uma espécie de censura prévia, proscrita pela Constituição Federal. O texto mais franco a tal respeito nos pareceu escrito por Pedro Frederico Caldas, em sua dissertação de mestrado da Pontifícia Universidade Católica, no ano de 1996. Aduz o autor que “a liberdade de imprensa tem limites internos e limites externos”; “os limites internos traduzem-se nas responsabilidades sociais e um compromisso com a verdade” e “os limites externos encontrariam muros justamente nos limites de outros direitos de igual hierarquia constitucional”.386 Segundo ele, “as limitações à liberdade de impressa, por mais liberal o sistema, se justificam por não ser tal liberdade um fim em si mesmo”, mas “uma garantida para que o direito à informação se consume, principalmente”; e “o direito à informação e tudo mais se justifica como meio de promoção da pessoa, esta, sim, é o centro gravídico e a razão ultima da ordem jurídica”. E isto, afirma o autor, Quer dizer que se qualquer direito ou garantia desanda e desborda, no seu exercício, para atingir a dignidade humana, obviamente que o próprio sistema deve oferecer, como efetivamente oferece, a terapêutica jurídica necessária à sanação do mal causado, não sendo rara a oferta legal de dispositivos eficientes em prevenir, com a cautela, o mal potencial ou iminente. Aliás, sempre que possível, o judiciário pode, presentes determinados pressupostos legais, antecipar a prestação jurisdicional 387 reclamada pela via cautelar. E prossegue afirmando que “o dispositivo citado interdita qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”, e “não parece indicar, seja pela sua dicção ou literalidade, seja pelo viés teleológico, que a intervenção judicial para prevenir o dano moral ou material esteja abarcada pelas palavras do dispositivo”, concluindo que “parece-nos buscar o versículo constitucional o impedimento da censura administrativa, ou seja, a censura estatal, seja qual for o órgão de controle social”.388 Assim, para ele, “não parece que a intervenção do judiciário esteja abarcada pela vedação constitucional”, “pelo contrário, a Constituição diz que não se pode 386 CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 100. 387 CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 100. 388 CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 101. 247 excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, XXXV)”.389 E conclui que: Assim, perante o caso concreto em que o jurisdicionado compareça a juízo para requerer a cautela liminar judicial para prevenir ato da imprensa atentatório à dignidade, traduzido em matéria que injustamente implique violação e sua honra, imagem ou vida privada, caso venha ser editada, caberá à autoridade judicial agir preventivamente, determinando a não edição da matéria ou sua cessação na hipótese de já estar sendo 390 editada. Adere a esta mesma opinião Cláudio Luiz Bueno de Godoy, constatando que, “em matéria de tutela preventiva, não raro suscita a divergência com a aferição sobre se ela, em algum instante, pode representar indevida censura à atividade da imprensa”, se posicionando no sentido de que “todavia, a resposta a essa indagação, com efeito, só pode ser negativa, a começar pela verificação, já externada, de que a liberdade de expressão do pensamento não é direito absoluto”391, com a conclusão de que Isso não deve ser entendido como censura. Não se trata de, previamente e de forma injustificada, obstar o exercício da liberdade de imprensa. Cuidase, antes, de garantir a própria função institucional que lhe é inerente. Não faria sentido algum, por exemplo, permitir publicação ou programa que, frise-se, de antemão, já se saiba falso ou sensacionalista, em nome da preservação de um direito que não é absoluto e que, se indevidamente exercido, causará danos irreparáveis. Sim, porque, como se sabe o dano moral é daqueles que não comportam reparação ou restituição integral, 392 retorno completo à situação anterior. Nessa senda, aliás, conforme a finalização do mesmo doutrinador “o novo Código Civil, em boa hora, ao dispor sobre a tutela dos direitos da personalidade, deferiu-a mesmo diante de ameaça, já, de lesão àqueles bens (art. 12)”.393 Na questão versando o controle preventivo do direito à palavra, colhe-se um caso interessante da justiça da Inglaterra, decidindo-se que ônibus não é lugar para anunciar tratamento para deixar de ser gay.394 389 CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 102. 390 CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 102. 391 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 99. 392 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 100. 393 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 101. 248 Uma juíza considerou que a liberdade de expressão garante a colocação de ideias num debate saudável, mas não um anúncio ofensivo e ostensivo em transporte público. Para a magistrada, a expressão, dessa forma, gera apenas revolta e acentua o preconceito. A decisão foi anunciada no dia 22 de março de 2013 e validou a posição adotada pelo departamento de transporte de Londres no ano passado, quando vetou propaganda de uma ONG anglicana. A instituição religiosa queria comprar espaço nos ônibus londrinos de dois andares para divulgar a seguinte frase: NOT GAY! EX-GAY, POST-GAY AND PROUN. FET OVER IT! (tradução livre “Não gay! Ex-gay, pós-gay e orgulhoso. Supere isso!”). A proposta da ONG era chamar a atenção para tratamento que ela diz ser capaz de fazer uma pessoa deixar de ser homossexual. A ONG anglicana conseguiu, inicialmente, que sua propaganda fosse aprovada. Pouco depois, no entanto, foi informada de que a companhia de transporte de Londres tinha decidido vetar o anúncio. Ao analisar a reclamação da entidade religiosa, a juíza Beverley Lang, do Tribunal Superior da Inglaterra, reconheceu que se tratava de interferência na liberdade de expressão, direito garantido pela Convenção Europeia de Direitos Humanos. A juíza, no entanto, explicou que esse direito não é absoluto e a própria convenção europeia aceita como legítima interferência que atenda duas exigências: esteja prevista em lei e seja necessária para garantir a liberdade de outros. No caso do anúncio, a juíza considerou que o veto respeitou a política de publicidade adotada pela companhia de transporte, e ponderou que, caso o outdoor fosse autorizado, ele ofenderia boa parte da população e teria o potencial de aumentar a discriminação contra os homossexuais, entendendo que um cartaz pregado em um ônibus é muito mais invasivo do que qualquer outro tipo de propaganda, já que não existe a possibilidade de trocar o canal, como acontece com a televisão, ou virar a página da revista. A juíza ressaltou o direito de o grupo expressar suas ideias sobre o homossexualismo, mas explicou que isso deve ser feito dentro de um ambiente de debate construtivo, e não apenas com frases publicitárias de efeito. Veja-se, assim, que a impossibilidade de controle judicial prévio da atividade da imprensa poderia até resvalar em concessões a ataques preconceituosos, com o que não se pode coadunar. 394 Disponível em www.conjur.com.br. Acesso em 22 de março de 2013. 249 17.7 Nosso posicionamento Com razão, não nos parece que a censura de natureza política, ideológica ou artística (§ 2º do art. 220 da CF) possa abarcar a decisão judicial proferida em processo movido por alguém que, de alguma forma, tome conhecimento de futura veiculação de notícia injuriosa a seu respeito e promova ação com requerimento de tutela de urgência visando que seja obstada a publicização do conteúdo inverídico. Destarte, os posicionamentos exarados pelo Poder Judiciário não têm conteúdo político, ideológico e muito menos artístico, de sorte que não se subsumem à dicção posta no dispositivo constitucional em exame. De outro turno, dentre os direitos fundamentais positivados na mesma Constituição Federal está a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV), conferindo a cada cidadão a prerrogativa de acionar a justiça seja para reparar lesão seja a fim de evitá-la, quando haja ameaça a direito. Com efeito, não se concebe como possa o magistrado, diante do caso concreto, verificar a demonstração de que haverá a divulgação de notícia, por exemplo, manifestamente inverídica e difamatória contra alguém, e deixar de tomar qualquer providência a título de preservar o direito de informação. Ora, mesmo à luz do princípio da razoabilidade, isso é impensável! É evidente que esta tarefa deve ser exercida excepcionalmente e com muita cautela pelo juiz, responsável por constatar a verossimilhança da alegação de futura veiculação de informação, como se disse, manifestamente, inverídica e injuriosa. Mas, uma vez constatado este fato, outra solução não lhe resta senão a concessão do provimento cautelar ou antecipatório e proibir a publicização da notícia, com fundamento nos artigos 12 e 20 do Código Civil. Isso porque, ademais, sabe-se que a reparação dos danos de ordem moral nunca pode às completas apagar o enxovalhamento e a desmoralização de uma pessoa vitimada pela força da imprensa, como se pode recordar pelo famoso caso da “Escola Base”. E isso visa inclusive barrar posturas deliberadamente voltadas à ofensa de terceiras pessoas por maus profissionais da imprensa, como de resto existentes em todas as carreiras, autorizando a intervenção judicial prévia, como se disse, com cautela e em ambiente excepcional. 250 18 DANOS MORAIS E PUNITIVE DAMAGES NO CONFLITO ENTRE O DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO DE IMPRENSA NO BRASIL E NOS EUA 18.1 Noções Gerais A respeito do atual embate entre os direitos à privacidade e o direito de informar por meio das novas modalidades tecnológicas, especialmente a internet, nos Estados Unidos, apenas pelo nome, duas obras sobre o assunto dão a exata noção do problema nos dias em curso: uma se chama The computer invasion, de Craig T. Norback, 1981; e a outra foi denominada Uncle Sam is watching you, de Alan Barth, 1971. Destarte, as últimas décadas ficaram marcadas por grandes mudanças na sociedade em virtude da evolução da ciência e da tecnologia, bem como, por consequência, dos meios de informação, e em muitos aspectos esse fato simplificou a vida das pessoas, especialmente quanto à facilidade da comunicação, com a agilidade na troca de informações, especialmente após o advento da internet.395 No entanto, estas mesmas facilidades trouxeram situações que em outros tempos não geraram grandes preocupações, como o desrespeito hoje corriqueiro à privacidade das pessoas, através da utilização dos mais avançados recursos de comunicação.396 Nesse cenário, as constituições e legislações dos países têm procurado se adaptar à mencionada nova problemática, buscando meios de, ao mesmo tempo, garantir o direito à informação e impedir a violação do direito de privacidade do cidadão.397 Lembre-se que num Estado Democrático de Direito que se alicerça na dignidade da pessoa humana, a reserva da vida privada se apresenta como cláusula pétrea. Nesse particular, dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 5º, que é livre a manifestação do pensamento (inciso IV), mas são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (inciso X).398 395 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 186. 396 Ibid., p. 186. 397 Ibid., p. 186. 398 Ibid., p. 186. 251 Vale, para se demonstrar a relevância do tema em exame, recordar do caso que se perpetuou com a denominação “Escola Base”, em que o casal de proprietários foi exposto em praticamente todos os veículos de imprensa como tendo cometido crimes sexuais contra as crianças que estudavam naquela instituição de ensino, mas depois vieram a ser declarados inocentes pela justiça criminal.399 É nesse contexto que se põe o presente estudo, visando saber, diante desse quadro constitucional de proteção da privacidade das pessoas e à liberdade de manifestação do pensamento, qual dos dois interesses prevalecerá quando entrarem em colisão, a qual se tornou inevitável em virtude do crescimento da atividade da imprensa.400 Isso porque, ao mesmo tempo em que a privacidade pode ser exercida por meio da livre expressão de pensamento, esta pode ser usada para atacar aquela, numa constante tensão entre os dois direitos.401 Relevante dizer que toda a ponderação acerca da colidência dos mencionados direitos à privacidade e à informação será examinada à vista dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, orientadores de toda a hermenêutica constitucional, tratando-se de valiosos instrumentos de proteção dos direitos fundamentais, sobretudo porque propiciam a aplicação do Direito à luz de cada um dos casos concretos postos para julgamento, sem espaço para perigosas generalizações.402 18.1.1 Conceito e conteúdo do direito à privacidade Como visto, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X, declarou invioláveis a honra, a imagem, a vida privada e a intimidade das pessoas. Como se vê pelo texto do citado dispositivo, são distintos os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, porém todos integram o chamado direito à privacidade, fórmula genérica adotada por José Afonso da Silva, significando “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu 399 Ibid., p. 186. Ibid., p. 186. 401 MOORE, Adam D. Privacy rigths – moral and legal foundations. University Park: The Pennsylvania State University Press, 2010. p. 134. 402 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 186. 400 252 exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”.403 O direito à privacidade situa-se dentre os direitos da personalidade, também denominados direitos da pessoa ou direitos personalíssimos.404 Na definição de Adriano de Cupis, os direitos da personalidade, por serem essenciais, são direitos inatos, inerentes a cada pessoa, que, como tal, nasce provida desse bem, o qual consiste em, querendo, subtrair-se à publicidade para recolher-se na própria reserva.405 Luiz Olavo Baptista afirma que a privacidade de uma pessoa “possibilita que se tenha um retrato ou perfil de sua personalidade pessoal, familiar e social”. 406 No mesmo sentido segue Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem a privacidade pode se traduzir pela “vida em ambiente de convívio, no interior de um grupo fechado e reduzido, normalmente, ao grupo familiar”.407 Entretanto, a privacidade não foi um valor expressamente reconhecido e protegido pela legislação dos séculos passados, vindo a ser citada nas disposições legais somente a partir do final do século XX e início do século XXI, como, por exemplo, no artigo 21 do Código Civil brasileiro de 2002408: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Nos Estados Unidos, a expressão “direito de ser deixado só” foi insculpida em 1888 pelo juiz Thomas Cooley, já prevendo que as invenções e as novas práticas do mercado iriam exigir uma proteção legal que garantisse a privacidade dos indivíduos. Depois da leitura do conceito dado pelo magistrado estadunidense, parece não pairar qualquer dúvida sobre o significado do direito à privacidade, podendo ser resumido no interesse que tem uma pessoa de não ser perturbada. Segundo Amaro Moraes e Silva Neto, “[...] as Constituições modernas preconizam 403 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 205. 404 GRECO, Marco Aurélio. Direito e internet: relações jurídicas na sociedade informatizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 46. 405 CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Tradução de Adriano Vera Jardim; Antonio Miguel Caeiro. Lisboa: Morais, 1961. p. 15. 406 BAPTISTA, Luiz Olavo. (Coord.). Novas fronteiras do Direito na informática e telemática. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 225. 407 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 1, p. 35. 408 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 187. 253 esse mesmo ideal, e, de uma forma ou de outra, com as mesmas palavras ou sinônimos, sempre acabam repetindo as ideias de Cooley”.409 Posteriormente, em 1928, o juiz Louis D. Brandeis e o advogado Samuel Warren, também estadunidenses, conceituaram privacidade como a ideia de estar só, o direito de ser deixado só.410 As ideias transmitidas por Warren e Brandeis influenciaram diretamente todos os pensadores e doutrinadores do nosso tempo que se debruçaram sobre o assunto. Segundo Daniel J. Solove e Paul M. Schwartz, há uma significante quantidade de leis regulamentando a privacidade nos Estados Unidos e ao redor do mundo, e isso é relativamente novo.411 Segundo eles, em nossa Era da Informação, privacidade é uma questão de primordial importância para a liberdade, para a democracia e para a segurança412, por isso é que se tornou uma prioridade na agenda legislativa do Congresso Nacional e em muitas legislaturas estaduais daquele país.413 Assim, referem, nos Estados Unidos, o direito de privacidade é protegido por um corpo de normas constituído pelos precedentes do common law, pelo Direito Constitucional, pelo Direito Estatutário e ainda pelas normas aplicáveis do Direito Internacional.414 E, embora a Constituição dos Estados Unidos não mencione especificamente a privacidade, há inúmeros dispositivos que a protegem, por meio de uma interpretação sistemática e teleológica que se dê a eles, como, por exemplo, a primeira emenda.415 Assim, repita-se, mesmo a palavra privacidade não aparecendo expressamente na Constituição americana, perguntado a qualquer americano a esse respeito, você ouvirá que este é um direito absoluto dos cidadãos daquele país.416 Nesse senti, noticia Edson Ferreira da Silva que os vizinhos de uma pessoa na Califórnia desconfiaram que houvesse tóxicos na sua lata de lixo; a polícia foi acionada, constatou o fato e os viciados foram condenados; entretanto, a Suprema 409 SILVA NETO, Amaro Moraes e. Privacidade na internet – Um enfoque jurídico. São Paulo: Edipro, 2001. p. 22. 410 Ibid., p. 20. 411 SOLOVE, Daniel J.; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology. New York: Aspens Publishers, 2009. p. 1. 412 Ibid., p. 2. 413 Ibid., p. 2. 414 Ibid., p. 10. 415 . Ibid., p. 3 416 ALDERMAN, Ellen; KENEDDY, Caroline. The rigth to privacy. New York: Alfred A. Knopf, 1995. p. 13. 254 Corte daquele Estado, entendendo que a lata de lixo constituía um apêndice da economia doméstica, reformou a sentença porque a coleta da prova teria atentado contra o direito à intimidade.417 Com razão, os dados da opinião pública sugerem que a maioria dos americanos dá relevante papel à proteção de sua privacidade no dia a dia de suas vidas.418 Privacidade no seu maior sentido é ter controle de suas próprias ações e informações419, e é um direito que requer espaço420, sendo que uma boa reputação é valiosa e é certamente um interesse que o Direito Civil-Constitucional americano protege com vigor.421 A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 12, dispõe que: Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões, ou ataques, toda pessoa tem direito à proteção da Lei. O tratamento da privacidade do homem começou a ser examinado sob nova ótica devido às mudanças políticas, sociais e econômicas verificadas especialmente no mundo ocidental a partir do século XIX, sobretudo em virtude dos reflexos da Revolução Industrial, que culminou, no fim do século XX, com a disseminação das tecnologias de tratamento da informação e comunicação, gerando a necessidade da adequação das legislações aos novos direitos, resultando em que a privacidade passasse a ser objeto de estudo mais acurado pelos juristas. Diversas foram as conquistas individuais do homem ocidental nos últimos séculos, com destaque para aquelas defendidas pelos ideólogos da Revolução Francesa, no século XVIII, pois “[...] era necessário garantir eficazmente os direitos naturais dos indivíduos contra os abusos do poder”. 422 Nesse sentido, a necessidade de se proteger a vida privada surgiu da conflitante relação entre o indivíduo e a 417 SILVA, Edson Ferreira da. O direito à intimidade. Dissertação de Mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 93. 418 CHAIRMAN, David F. Linowes. Personal privacy in an information society. Washington, D.C.: US Government Printing Office, 1977. p. 5. 419 DOTY, William Aspray Philip. Privacy in America – Interdisplinary perspectives. Lanham: The Scarecrow Press Inc., 2011. p. 114. 420 VETRI, Dominick et al. Tort law and practice. New Jersey: LexisNexis West, 2006. p. 1156. 421 GOLDBERG, John C.P.; ZIPURSKY, Benjamin C. Torts. New York: Oxford University Press, 2010. p. 39. 422 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 68. 255 sociedade. Afinal, “o interesse geral e os interesses particulares não podem ser pesados na mesma balança”.423 Pode-se dizer, diante desse quadro, que, durante quase toda sua existência, o homem pôde usufruir do seu direito de ser deixado só. Contudo, especialmente a partir da segunda metade do século XX, sua privacidade passou a ser alvo de constantes ataques, em virtude do avanço da tecnologia, sobretudo pelos meios impressos de comunicação, do rádio e da televisão. Enfim, nas últimas duas décadas, defrontamo-nos com a talvez maior mudança social de todos os tempos: o desrespeito total à privacidade alheia, devido à forma como os dados pessoais têm sido divulgados pelos meios de informação, principalmente a internet. Nesse cenário, não se discorda da ideia de que a revolução social em andamento pode tornar impossível a reserva da privacidade de cada um.424 Segundo John L. Mills, palavras normalmente associadas à privacidade são independência, liberdade, autonomia, individualidade, dignidade e abstenção de intrusão425, interesses cada vez mais colocados à prova, como se verifica pelo próprio título da obra do citado autor, denominada Privacy the lost right. 18.1.2 Conteúdo e conceito do direito à palavra O direito à palavra, considerado como o interesse em informar, coincidindo com a liberdade de manifestação do pensamento, por escrito ou por qualquer outro meio de difusão, vem previsto, inicialmente, no inciso IV, do artigo 5º, da Constituição Federal. José Afonso da Silva afirma que “a liberdade de informação compreende a procura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada qual pelos abusos que cometer”.426 423 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 67. 424 MCCLELLAN, Grant S. The right to privacy. New York: The H.W. Wilson Company, 1976. v. 48, n. 1, p. 11. 425 MILLS, John L. Privacy the lost right. New York: Oxford University Press, 2008. p. 4. 426 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 205. 256 Para Rosângelo Rodrigues de Miranda, “a liberdade de informação é pressuposto fundamental para garantir-se o direito ao resguardo da vida privada”.427 A respeito, leciona Celso Ribeiro Bastos que “a liberdade de expressão de pensamento é tida por uma das mais importantes” e “talvez por isto mesmo seja das que maior número de problemas levanta”.428 Consta na Declaração dos Direitos do Homem: Art. 11. A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, pois, falar, escrever, exprimir-se livremente, sujeito a responder pelo abuso desta liberdade nos casos determinados pela lei. No tocante à liberdade de pensamento, defende-se que ninguém pode ser obrigado a pensar de forma diferente de sua convicção, incluindo-se, ainda, o direito de não manifestá-lo, mantendo-se o pensamento a respeito do que quer que seja em segredo. A informação, para Pietro Perlingieri “em uma sociedade democrática, representa o fundamento da participação do cidadão na vida do País e, portanto, do próprio correto funcionamento das instituições”.429 É sabido que o homem não se conforma em simplesmente poder ter as opiniões que quiser. Ele necessita também do aval da sociedade, através da lei, para ter liberdade de exprimir suas crenças e opiniões, buscando inclusive a persuasão e a adesão de outros indivíduos às suas ideias. E é daí que surge a necessidade da proteção e da regulamentação jurídica para a livre manifestação dos pensamentos, inserindo-se, nesse quadro, o regramento jurídico dos meios de comunicação, da imprensa, das telecomunicações e até da correspondência.430 Isso porque, segundo Rui Stoco, “o ser humano é um ser político e, como tal, integra-se na sociedade, dela sendo célula e parte integrante e nela interferindo e recebendo eflúvios interferentes” e “do estrato social politicamente organizado recebe concessões ou direitos e a ele compromete-se com obrigações”.431 427 MIRANDA, Rosângelo Rodrigues de. A proteção constitucional da vida privada. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996, p. 142. 428 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 187. 429 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 186. 430 BASTOS, op. cit., p. 187. 431 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 1.661. 257 Nos Estados Unidos, como no resto do mundo, a informação é o lifeblood da sociedade de hoje, o que, numa tradução livre, seria o seu sangue vital. 432 E, como aqui no Brasil, lá no país da América do Norte, a legislação federal, mais que a local ou estadual, é mais importante para questões envolvendo privacidade em sistemas de computador e comunicações computadorizadas, já que os dados eletrônicos atravessam as linhas dos Estados.433 E, nesse contexto, a internet foi uma das primeiras áreas de comunicação em que o governo federal americano regulou o direito de privacidade 434, enquanto, por aqui, ainda se aguarda a edição do chamado Marco Civil da Internet, não se sabe até quando, que já teve sua votação adiada no Congresso Nacional brasileiro por mais de seis vezes. 18.1.3 A colisão entre os direitos à privacidade e à palavra Põe-se debate antigo e polêmico: o direito à privacidade colocado em choque com o direito à palavra. Trata-se de verdadeiro conflito de direitos constitucionais individuais. Alguém pretende informar algum fato relativo a outrem – direito esse previsto no inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal. O sujeito da notícia pretende que ela não seja tornada pública, a fim de preservar sua privacidade – direito esse previsto no inciso X, também do artigo 5º, da Constituição Federal.435 Como se vê, qualifica-se o mencionado conflito de direitos por serem ambos previstos na Constituição Federal, de maneira que a preservação dos dois interesses em dadas situações concretas não conta com solução simples. Por vezes, um deverá sucumbir ao outro: ou será preservado o direito à informação ou será preservado o direito à privacidade.436 As regras tradicionais de solução de conflitos de normas (norma de hierarquia superior derroga norma de hierarquia inferior; norma especial derroga norma geral; e norma mais nova derroga norma mais antiga) não são suficientes para a solução do problema proposto, dado que os dois direitos em questão são previstos na mesma 432 SOLOVE, Daniel J.; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology. New York: Aspens Publishers, 2009. p. 1. 433 HENDERSON, Harry. Privacy in the information age. New York: Facts On File, Inc., 1999. p. 52. 434 WITH, Andrew B. Serwin; MCLAUGHLIN, Peter F.; TOMASZEWSKI, John P. Privacy, security and Information Management: an overview. Chicago: American Bar Association, 2011. p. 13. 435 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 190. 436 Ibid., p. 190. 258 Constituição Federal, valendo dizer ainda que constam de dois incisos inseridos dentro de um mesmo artigo, dentro de um mesmo capítulo, dentro de um mesmo título (Dos Direitos e Garantias Fundamentais).437 É o que Maria Helena Diniz denomina de incompletude dos meios de solução das antinomias jurídicas, fenômeno que ocorre quando: [...] em que pese à existência de critérios para a solução dos conflitos normativos e das antinomias de segundo grau, há casos em que se tem lacuna das regras de resolução desses conflitos, ante o fato daqueles critérios não poderem ser aplicados, instaurando-se uma incompletude dos 438 meios de solução e uma antinomia real. Nota-se, então, a dificuldade para se decidir no caso concreto qual dos dois interesses prevalecerá – se o direito do indivíduo que pretende informar algum fato relativo a outrem ou se o direito do sujeito da notícia em preservar sua privacidade. Os constitucionalistas Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior denominaram esta situação de limitabilidade dos direitos fundamentais, significando que o comando de sua aplicação concreta não pode resultar na aplicação da norma jurídica em toda a sua extensão e alcance.439 Segundo os citados constitucionalistas, apresenta-se a seguinte solução para a colisão dos direitos fundamentais: a regra de solução do conflito é da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada de outro direito fundamental ou outro interesse constitucional em causa.440 Sobre a questão, Alexandre de Moraes afirma que: Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas 441 finalidades precípuas. 437 Ibid., p. 190. DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 53. 439 ARAÚJO, Luiz Alberto; NUNES, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 81. 440 Ibid., p. 82. 441 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006. p. 28-29. 438 259 Tem-se, assim, que a melhor doutrina constitucional propõe que o conflito de direitos fundamentais seja resolvido de maneira harmônica, respeitando-se no caso concreto a máxima efetivação possível e mínima restrição de cada um deles.442 Ocorre que, por vezes, a solução genérica proposta pela doutrina simplesmente não tem aplicação em muitas das lides forenses. E, ao que parece, o próprio José Joaquim Gomes Canotilho compartilha desta ideia, ao afirmar que: Os exemplos anteriores apontam para a necessidade de as regras do direito constitucional de conflitos deverem construir-se com base na harmonização de direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência de um direito ou bem em relação a outro. Todavia, uma eventual relação de prevalência só em face das circunstâncias concretas e depois de um juízo de ponderação se poderá determinar, pois só nestas condições é legítimo dizer que um direito tem mais peso que outro, ou seja, um direito prefere outro 443 em face das circunstâncias do caso. A questão recentemente esteve na ordem do dia referente à publicação da biografia do cantor Roberto Carlos, sem autorização deste. O artista ajuizou ação civil perante a Justiça do Estado do Rio de Janeiro se insurgindo contra a publicação, requerendo a antecipação dos efeitos da tutela para que fossem interrompidas a publicação, a distribuição e a comercialização do livro, tendo o processo tomado o número 2007.001.006607-2 da 20ª Vara Cível central carioca. O magistrado deferiu a antecipação de tutela, valendo-se dos seguintes fundamentos: A biografia de uma pessoa narra fatos pessoais, íntimos, que se relacionam com o seu nome, imagem e intimidade e outros aspectos dos direitos da personalidade. Portanto, para que terceiro possa publicá-la, necessário é que obtenha a prévia autorização do biografado, interpretação que se extrai do artigo 5º, inciso X, da Constituição da República, o qual dispõe serem invioláveis a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas. No mesmo sentido e de maneira mais específica, o artigo 20, caput, do Código Civil/02, é claro ao afirmar que a publicação de obra concernente a fatos da intimidade da pessoa deve ser precedida da sua autorização, podendo, na sua falta, ser proibida se tiver idoneidade para causar prejuízo à sua honra, boa fama ou respeitabilidade. Registre-se, nesse ponto, não se desconhecer a existência de princípio constitucional afirmando ser livre a expressão da atividade intelectual e artística, independentemente de censura ou licença (inciso IX do mesmo artigo 5º). Todavia, entrecruzados esses princípios, há de prevalecer o primeiro, isto é, aquele que tutela os direitos da personalidade, que garante à pessoa a sua inviolabilidade moral e de sua imagem (negritamos). 442 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 191. 443 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2007. p. 1.274. 260 Veja-se que acima o magistrado carioca decidiu pela prevalência do direito à privacidade, enquanto abaixo, em caso análogo, outro Eminente Magistrado, quando ainda Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, hoje o Desembargador aposentado Pedro Gagliardi, decidiu pela preservação do direito à informação: No cotejo entre o direito à honra e o direito de informar, temos que este último prepondera sobre o primeiro. Porém, para que isto ocorra, necessário verificar se a informação é verídica e o informe ofensivo à honra alheia inevitável para a perfeita compreensão da mensagem [...]. Nesse contexto, que é onde se insere o problema proposto à nossa solução, temos as seguintes regras: 1ª – o direito à informação é mais forte do que o direito à honra; 2ª – para que o exercício do direito à informação, em detrimento da honra alheia, se manifeste legitimamente, é necessário o atendimento de dois pressupostos: a informação deve ser verdadeira e inevitável para passar a mensagem (RJDTACrimSP, 17:206-9). Para Cláudio Luiz Bueno de Godoy, o “primeiro ponto que se entende fundamental ao exame da questão está na consideração de que não relação de hierarquia entre os direitos mencionados, não sendo nenhum deles considerados absolutos”444, tratando-se “de direitos de igual dignidade constitucional”.445 Acerca desses direitos constitucionais, de igual hierarquia, afirma “forçoso observar inexistir qualquer ordem cronológica de sua previsão normativa, de sorte a permitir que um possa ser considerado derrogatório do outro”.446 Da mesma maneira, “nenhum desses mesmos direitos contempla previsão especial, que, por essa especialidade, sirva a derrogar outro, de conteúdo geral”.447 Então, “não se tem em vista o fenômeno da simples antinomia aparente de normas”, mas “está-se, em verdade, diante de antinomia real de normas”448, e “não há, como visto, possível aplicação daqueles critérios de solução da antinomia aparente”.449 444 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 56. 445 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 56. 446 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 60. 447 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 60. 448 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 61. 449 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 62. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. 261 De acordo com o mesmo Cláudio Luiz Bueno de Godoy, “no caso da antinomia de que ora se cuida, o critério equitativo vem-se exteriorizando em um juízo de ponderação”, “cuidando-se de, na hipótese concreta, ponderar as circunstância que, afinal, venham a determinar a prevalência de um ou outro direito – é a técnica do ad hoc balancing, ou a doutrina do balancing”.450 Mas alerta que “essa doutrina nem sempre passou imune a críticas, como, por exemplo, que poderia esse juízo representar um perigo na relação entre preceitos constitucionais”.451 E pondera que “um fato é certo e deve ser reconhecido, inexiste qualquer standard ou modelo especifico pré-concebido, ou mesmo qualquer regra que tipifique o que vem a ser este juízo equitativo”452, concluindo que: É preciso verificar-se, no caso concreto, o sacrifício da privacidade de uma pessoa se impõe diante de determinada informação ou manifestação que, de alguma forma, se faça revestida de interesse social, coletivo sem o que 453 não se justifica a invasão da esfera intima ou moral do indivíduo. Assim, “ao juízo de ponderação, importa a aferição sobre se com a informação almeja-se a prossecução de um fim legítimo, a ser atingido por meios idôneos, no sentido de que necessários e adequados, como consequência verificando-se ainda se presente o dever de verdade e cautela do jornalista”.454 Quanto à questão do político, aduz que este “gere coisa pública ou representa vontade popular”, agindo, destarte, “em nome e no interesse da coletividade. Sua atividade se desenvolve de forma pública, sob a fiscalização da sociedade, para o que, é evidente, necessário que mais se amplie a possibilidade de limitações a seus direitos da personalidade, sem anulá-los, é certo”.455 450 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 62. 451 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 63. 452 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 64. 453 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 65. 454 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 67. 455 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. São Paulo: Atlas, 2008. p. 70. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. 262 E “da mesma forma que os políticos, há pessoas que, por sua notoriedade, em qualquer campo – econômico, artístico, desportivo e cultural – igualmente vem sua esfera de privacidade reduzida”.456 Mas, “mesmo as pessoas públicas e notórias devem estar a salvo da perseguição sensacionalista, lamentavelmente de ocorrência não tão rara nos dias que correm”.457 E, por fim, “quanto ao fato de pessoas comuns quando retratadas em locais públicos, insta examinar se o indivíduo, tal como retratado, se fez incerto no contexto do cenário”, e “para que não prevaleça o direito à privacidade não pode haver por parte da imprensa a individualização da pessoa, ou, em outros termos, a imagem do indivíduo deve ser uma ‘paisagem de fundo’”.458 18.1.4 Exame do conflito à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade O princípio da dignidade da pessoa humana, conforme nos dá conta a Professora Anna Cândida da Cunha Ferraz, “alicerça uma série de limitações restritivas à atuação dos poderes e da sociedade e é o valor inspirador de um grande número de direitos especificados no núcleo central dos direitos fundamentais”,459 tendo “tido assento em várias decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, fundamentando e informando a interpretação de uma enorme gama de diferentes direitos presentes no texto constitucional”.460 No que toca ao tema tratado neste estudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, como não poderia deixar de ser, tem especial relevo, na medida em que “tem desdobramentos no art. 5º da Carta Magna, sendo de salientar-se, para os efeitos deste estudo, seu inciso X, que regulamenta, dentre outros, o direito 456 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 71. 457 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 73. 458 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 76. 459 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Aspectos da positivação dos direitos fundamentais na Constituição de 1988. Osasco: Edifieo, 2006. p. 132. 460 Ibid., p. 132. 263 fundamental da pessoa de ter sua intimidade e sua vida privada invioladas”, 461 no dizer da Professora Débora Gozzo. Já o princípio da proporcionalidade funciona “como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema”.462 Insta, por primeiro, esclarecer alguma dúvida que possa pairar acerca da nomenclatura do princípio em análise. Luís Roberto Barroso, não obstante reconhecer que o princípio da razoabilidade tem origem no Direito anglo-saxão e o princípio da proporcionalidade no Direito alemão, emprega os termos de modo fungível, abrigando “os mesmos valores subjacentes de racionalidade, justiça, medida adequada e senso comum”463, sendo, por essa razão, “conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis”464, mesmo deixando isento de dúvidas o fato de que a equivalência por ele propugnada não é assente na totalidade da doutrina. De qualquer modo, segundo Robert Alexy465, a máxima da proporcionalidade resulta no fundo da própria essência dos direitos fundamentais. Para ele, a máxima da proporcionalidade em sentido estrito, é dizer, o mandado de ponderação, se segue da relativização com respeito às possibilidades jurídicas; se uma norma de direito fundamental com caráter de princípio entra em colisão com um princípio oposto, então a possibilidade jurídica da realização da norma de direito fundamental depende do princípio oposto; para chegar a uma decisão, é necessária uma ponderação no sentido da lei de colisão; como a aplicação de princípios válidos, quando devidos, está ordenada e como para a aplicação no caso de colisão se requer uma ponderação, o caráter de princípio das normas fundamentais implica que, quando entram em colisão com princípios opostos, está ordenada uma ponderação. Para Alexy, agora citado por Gilmar Ferreira Mendes, a ponderação se realiza em três planos. Começa-se por definir a necessidade da intervenção. Depois, devese saber da importância dos fundamentos justificadores da intervenção. Por fim, 461 GOZZO, Débora. Dignidade humana, inseminação artificial heteróloga e contestação de paternidade. Osasco: Edifieo, 2006. p. 218-219. 462 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 373. 463 Ibid., p. 373. 464 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 373. 465 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2002. p. 112. 264 realiza-se a ponderação sem sentido estrito. Enfatiza-se que o postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma lei de ponderação, segundo a qual, “quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, mais significativos ou relevantes hão de ser os fundamentos justificadores dessa intervenção”.466 Não obstante sua ausência expressa na Constituição Federal, o princípio da proporcionalidade, decorrente seja da própria noção de Estado Democrático de Direito seja do princípio da isonomia, assegura as primordiais finalidades do constitucionalismo, quais sejam, a proteção da liberdade, a contenção dos poderes e o resguardo dos direitos fundamentais.467 Dito isso, impõe-se mencionar que “o princípio da proporcionalidade vem sendo utilizado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como instrumento para solução de colisão entre direitos fundamentais”, conforme dá conta o Ministro Gilmar Ferreira Mendes468 que, com relação especialmente ao tema abordado neste estudo, anota que: No que refere à tensão entre a liberdade de expressão e de crítica e o direito à honra e à intimidade, existe, no Supremo Tribunal Federal, precedente que reconhece a possibilidade de diferenciações, consideradas as diferentes situações desempenhadas pelos eventuais envolvidos. Assim, admite-se, tal como na jurisprudência de outros países, que se estabeleçam critérios diversos para aferição de possível lesão à honra, tendo em vista a 469 maior ou a menor exposição pública das pessoas. Tratava-se do exame do habeas corpus nº 78.426-6-SP, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, assentando-se que: ao decidir-se pela militância política, o homem público aceita a inevitável ampliação do que a doutrina italiana costuma chamar de zona de iluminabilità, resignando-se a uma maior exposição de sua vida e de sua personalidade aos comentários e à valoração do público, em particular, dos seus adversários. 466 ALEXY, 1998, apud MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 94. 467 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional brasileiro concretizado. São Paulo: Método, 2006, p. 73. 468 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 67. 469 Ibid., p. 104. 265 18.1.5 Nosso posicionamento sobre a referida colisão de direitos fundamentais Parece-nos que a solução da máxima aplicação e da mínima restrição dos direitos constitucionais em conflito não tem, em algumas situações, idoneidade para resolver os problemas colocados no dia a dia forense. Realmente, a vida do dia a dia forense nos traz grande inquietude acerca dessa propagada solução harmônica quando da ocorrência de um conflito entre direitos fundamentais. Isso porque não cremos na viabilidade desta solução em grande parte dos problemas que são colocados para julgamento. Data venia, não significa muito afirmar que um dos direitos em choque deve ter a máxima aplicação com a mínima restrição do outro. Ora, isso é impossível em muitos casos concretos, não havendo como restringir “um pouco” um dos direitos. Por exemplo, no conflito em exame neste trabalho, ou haverá a possibilidade de informar sobre a vida alheia ou o sujeito da informação conseguirá a proibição da publicação da notícia. Em determinado momento, haverá necessidade de se ter uma posição fechada sobre o assunto, de um lado ou de outro. Imagine-se a hipótese de o sujeito da notícia ajuizar uma ação pedindo que seja proibida a veiculação da informação. O juiz não poderá – nem terá como – produzir uma sentença que acolha em parte o pedido. Como se diz, “o martelo vai ser batido” para um lado ou para o outro. O magistrado deverá julgar procedente ou improcedente o pedido, proibindo ou liberando a publicação da notícia. No caso, por exemplo, da questão da biografia do cantor Roberto Carlos, o magistrado fluminense teria que tomar uma decisão absolutamente contemplativa de um direito ou de outro. Ou proibia a veiculação da biografia do cantor, preservando no todo o direito à privacidade, ou liberava a publicação do livro, contemplando em absoluto o direito à informação. Não havia solução intermediária, sendo inviável a máxima aplicação de um direito com a mínima restrição de outro. Pensamos que a verdadeira solução é a seguinte o julgador deve decidir no caso concreto qual dos direitos deverá prevalecer em detrimento do outro. Qualquer outra proposta de equacionamento conciliatório está, data maxima venia, procurando encontrar um caminho inexistente para a solução da problemática, que só pode ser resolvida por um método, qual seja, a decisão judicial, que deve ser, por óbvio, fundamentada numa ponderação entre os princípios da proteção da dignidade da pessoa humana e da livre imprensa. 266 18.2 A Questão nos Tribunais Brasileiros 18.2.1 No Tribunal de Justiça de São Paulo Basicamente, quando da colisão entre o direito à privacidade e o de imprensa, como se viu, duas podem ser as tendências jurisprudenciais no assunto: a que procura resguardar o direito de informação da imprensa e a que tende a proteger a privacidade do sujeito da notícia. Não é diferente a questão no Tribunal de Justiça de São Paulo, havendo farta jurisprudência acolhedora do direito de imprensa, especialmente quando o sujeito da notícia é uma pessoa pública, como um político, um artista ou até mesmo um famoso esportista: A notoriedade do artista, granjeada particularmente em telenovela de receptividade popular acentuada, opera por forma a limitar sua intimidade pessoal, erigindo-a em personalidade de projeção pública, ao menos num determinado momento. Nessa linha de pensamento, inocorreu iliceidade ou o propósito de locupletamento para, enriquecendo o texto, incrementar a venda da revista. [...] cuida-se de um ônus natural, que suportam quantos, em seu desempenho exposto ao público, vêm a sofrer na área de sua privacidade, sem que se aviste, no fato, um gravame à reserva pessoal da reclamante (JTJ/Lex 153/196-200, 197/198, Rel. Des. NEY ALMADA – TJSP). Os políticos estão sujeitos de forma especial às críticas públicas, e é fundamental que se garanta não só ao povo em geral larga margem de fiscalização e censura de suas atividades, mas sobretudo à imprensa, ante a relevante utilidade pública da mesma (JTJ 169/86, Rel. Des. MARCO CESAR). AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. MATÉRIA JORNALÍSTICA SOBRE O AUTOR, EX- FUTEBOLISTA. I - Alegação de que a matéria implicou em transtornos, vexames e sofrimentos morais. Não reconhecimento. Abordagem, calcada em fatos noticiados por outros meios de comunicação, em simetria com a realidade. Veiculação que encerra análise crítica envolvendo uma pessoa pública, ex-jogador de futebol de renome, que não vingou como empresário. Inexistência de ato ilícito decorrente da veiculação a servir de lastro à condenação dos réus por danos morais. II - Equívocos exibidos pela matéria. Conduta justificada, à vista da natureza da atividade jornalística, que exige agilidade na divulgação, franqueando-se pequenos erros de informação. SENTENÇA REFORMADA. APELO PROVIDO (Apelação nº 910279638.2008.8.26.0000; Relator(a): Donegá Morandini; Comarca: Campinas; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 14/02/2012). De outro turno, havendo excesso por parte daquele que propaga a notícia, as indenizações são exemplarmente impostas pelo mesmo Tribunal de Justiça, transcrevendo-se abaixo parte do acórdão relatado pelo Desembargador Elliot Akel, 267 por meio do qual o jornalista Jorge Reis dos Santos, conhecido como Jorge Kajuru, foi condenado a indenizar em R$ 50 mil o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), por dizer em programa de televisão que o político teria mandado violentar sua ex-mulher: Não se pretende, por certo, cercear a liberdade de manifestação de pensamento e de informação, nem limitar o direito-dever dos órgãos de comunicação de massa de denunciar os desmandos, de apontar os agentes públicos desonestos ou arbitrários. O que não se pode admitir é que, em nome do dever de informar, sejam lançadas “denúncias” sem a prévia averiguação de sua seriedade e pertinência. No caso dos autos, não há comprovação de que Isabela Pinheiro Mendes, ex-mulher do requerido, tenha de fato sofrido ameaças e “tentativa de agressão” física a mando do requerente. Insuficiente, para tanto, à evidência, o boletim de ocorrência de fl. 107. Da mesma forma, não socorre ao réu a alegação de que os conflitos entre as partes são públicos e notórios. A animosidade entre as partes, embora patente, não tem o condão de afastar a responsabilidade do requerido pelas declarações desabonadoras contra o autor. Os fatos antecedentes ao evento de que aqui se trata não se afiguram relevantes a ponto de legitimar a conduta do réu. Assim, demonstrados pelo requerente o fato constitutivo de seu direito, a culpa do agente, o dano e o nexo de causalidade entre o ato e o prejuízo, não há como eximir o requerido da responsabilidade de indenizar. Impossível afirmar que as declarações do réu não representaram, para o autor, profunda perturbação em suas relações psíquicas, em sua tranquilidade, em seus sentimentos e afetos, mormente se considerado o meio de difusão empregado (programa de televisão exibido em rede nacional). E a indenização, em hipóteses como a dos autos, tem de um lado a função compensatória, para a vítima, a fim de agir com prudência, ética e bom senso no uso das palavras. Porém, deve o quantum indenizatório ser fixado em termos razoáveis, “não se justificando que a reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, com manifestos abusos e exageros, devendo o arbitramento operar com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das partes, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso. Ademais, deve procurar desestimular o ofensor a repetir o ato” (REsp. nº 245.727/SE). Em tais circunstâncias, levando em consideração a gravidade, a natureza e a repercussão da ofensa e a situação econômica do réu, cabível fixar a indenização em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), com juros de mora desde o evento danoso, por tratar-se de ilícito extracontratual (Súmula nº 54 do STJ), e correção monetária a partir desta data. Apelação nº 9102188-74.2007.8.26.0000, 1ª Câmara de Direito Privado. 18.2.2 No Superior Tribunal de Justiça No Superior Tribunal de Justiça encontram-se expressivos julgados da visão pertinente à plena legitimidade do direito de crítica fundado na liberdade constitucional de comunicação, como se pode ver: 268 RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – [...] DIREITO DE INFORMAÇÃO – “ANIMUS NARRANDI” - EXCESSO NÃO CONFIGURADO [...]. 3. No que pertine à honra, a responsabilidade pelo dano cometido através da imprensa tem lugar tão-somente ante a ocorrência deliberada de injúria, difamação e calúnia, perfazendo-se imperioso demonstrar que o ofensor agiu com o intuito específico de agredir moralmente a vítima. Se a matéria jornalística se ateve a tecer críticas prudentes (“animus criticandi”) ou a narrar fatos de interesse coletivo (“animus narrandi”), está sob o pálio das “excludentes de ilicitude” [...], não se falando em responsabilização civil por ofensa à honra, mas em exercício regular do direito de informação (REsp 719.592/AL, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI). RESPONSABILIDADE CIVIL. MATÉRIAS JORNALÍSTICAS. ALEGAÇÃO DE QUE ESPALHADOS BOATOS INVERÍDICOS DE RELACIONAMENTO AFETIVO DE CANDIDATA ÀS VÉSPERAS DE ELEIÇÃO PRESIDENCIAL, DE MODO A DESMORALIZÁ-LA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE PELO TRIBUNAL DE ORIGEM À DETIDA ANÁLISE DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME, NOS TERMOS DA SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1 - Tratando-se de panorama fático que se compõe de várias etapas de ocorrência, não pode este Tribunal novamente analisar os fatos de modo a chegar à conclusão diversa da conclusão do Tribunal de origem (Súmula 7/STJ). 2 - No caso de debate fático-probatório complexo, envolvendo várias informações em variados momentos, não se tem base fática segura, sobre a qual puramente valorar conseqüências jurídicas, sem infringência da Súmula 7/STJ, diversamente do que ocorre em precedentes atinentes a escrito incontroverso, que encerre todo o manancial fático, de modo que inadmissível o reexame por esta Corte. 3 - Diante da conclusão do Acórdão recorrido de que os boatos que a Recorrente considera inverídicos e ofensivos foram por ela mesma trazidos a debate ao responder, em debate público, a respeito de pergunta genérica sobre relacionamento afetivo, não há como atribuir a notas jornalísticas a ilícita disseminação de boatos, matéria, ademais, que não pode ser discutida neste Tribunal sem nova análise de prova (Súmula 7/STJ). 4 - Fortes termos e expressões, que, em determinadas circunstâncias, poderiam assumir conotação ofensiva autônoma por extrapolarem o âmbito da matéria jornalística, não se desproporcionalizavam, no contexto do caso, de termos e expressões também fortes, externados, no mesmo contexto, pela própria Recorrente. 5 Recurso Especial improvido. Processo: REsp 1235637/DF; RECURSO ESPECIAL 2011/0025153-6; Relator(a): Ministro SIDNEI BENETI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 14/02/2012; Data da Publicação: DJe 07/03/2012. De outro lado, o direito de informar não pode contemplar a possibilidade de ofensa, e a ilicitude dessa forma está sendo coibida por meios de julgados do Superior Tribunal de Justiça como o que abaixo se transcreve, tratando-se do caso referente ao ex-presidente Collor, chamado pela Revista Veja de “corrupto desvairado”, rendendo-lhe uma indenização no valor de nada menos que meio milhão de reais: Ementa: DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. PUBLICAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA OFENSIVA À HONRA. MODIFICAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. ELEVAÇÃO NECESSÁRIA, COMO DESESTÍMULO AO COMETIMENTO DE INJÚRIA. CONSIDERAÇÃO DAS CONDIÇÕES 269 ECONÔMICAS DOS OFENSORES, DA CONCRETIZAÇÃO POR INTERMÉDIO DE VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO DE GRANDE CIRCULAÇÃO E RESPEITABILIDADE E DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO OFENDIDO. PREVALECIMENTO DE VALOR MAIOR, ESTABELECIDO PELA MAIORIA JULGADORA EM R$ 500.000,00. 1 - Matéria jornalística publicada em revista semanal de grande circulação que atribui a exPresidente da República a qualidade de “corrupto desvairado”. 2 - De rigor a elevação do valor da indenização por dano moral, com desestímulo ao cometimento da figura jurídica da injúria, realizada por intermédio de veículos de grande circulação e respeitabilidade nacionais e consideradas as condições econômicas dos ofensores e pessoais do ofendido, exPresidente da República, que foi absolvido de acusação de corrupção cumpriu suspensão de direitos políticos e veio a ser eleito Senador da República. 3 - Por unanimidade elevado o valor da indenização, fixado em R$ 500.000,00 pelo entendimento da D. Maioria, vencido, nessa parte, o voto do Relator, acompanhado de um voto, que fixavam a indenização em R$ 150.000,00. 4 - Recurso Especial provido para fixação do valor da indenização em R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Processo: REsp 1120971/RJ; RECURSO ESPECIAL 2008/0112653-7; Relator(a): Ministro SIDNEI BENETI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 28/02/2012; Data da Publicação: DJe 20/06/2012. Nesse mesmo sentido, ou seja, agasalhando o direito de privacidade quando do excesso por parte da imprensa, em caso em que foi vítima um juiz de direito acusado de envio de crianças ao exterior sem observação das diretrizes legais, inclusive para fins libidinosos, pode ser citado o seguinte julgado: RECURSO ESPECIAL Nº 997.479/SP (2007/0243255-6); RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI. EMENTA: CIVIL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. PUBLICAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA. OFENSA À HONRA. VALOR FIXADO CONSIDERADO IRRISÓRIO. POSSIBILIDADE DE REVISÃO PELO STJ. 1. Hipótese de veiculação de matéria em revista de circulação nacional, em que o recorrente (Juiz de Direito) foi acusado de “enviar” crianças ao exterior em desconformidade com a lei e até para fins libidinosos, no exercício da função jurisdicional. Esse fato deu ensejo à instauração de processo administrativo no respectivo Tribunal, investigações perante o Poder Legislativo Local e à Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso Nacional. 2. Nas ações de compensação por danos morais, se o arbitramento do valor compensatório foi realizado com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível socioeconômico do autor e, ainda, ao porte econômico do réu, o STJ tem por coerente a prestação jurisdicional fornecida. 3. Ao STJ, todavia, é dado revisar o arbitramento da compensação por danos morais quando o valor fixado revela-se irrisório ou excessivo e destoa daqueles estipulados em outros julgados deste Tribunal, observadas as peculiaridades de cada litígio. 4. Assim, considerando a gravidade das acusações levianas veiculadas na revista publicada pelo recorrido, deve-se reformar o acórdão que reduziu o valor compensatório a patamar ínfimo. 5. Recurso especial conhecido e provido, para majorar o valor compensatório para R$ 300.000,00 (trezentos mil reais). Brasília (DF), 28 de setembro de 2010. 270 18.2.3 No Supremo Tribunal Federal Dado que o conflito acima referido entre o direito à privacidade e o direito à palavra trata de interesses consagrados na Constituição Federal, impõe-se conhecer o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o embate, o que passa a ser exposto. No Recurso Extraordinário nº 208.685-1, julgado em 14 de junho de 2003, a Segunda Turma do Excelso Tribunal, consagrou, por unanimidade de votos, a prevalência do direito à informação, sendo válida a leitura de um trecho do relatório da Ministra Ellen Gracie: O voto condutor do acórdão recorrido vislumbrando conflito entre dois princípios fundamentais, o direito à informação (CF, art. 220) e a inviolabilidade da intimidade (CF, art. 5º, inciso X), entendeu que este último encontra-se situado em patamar superior ao da liberdade de informação, admitindo o dano moral por entender, também, que a notícia veiculada pela recorrente teria ofendido a honra objetiva e subjetiva do recorrido. Na espécie, o dano moral pretendido pelo recorrido somente se justificaria se positivado o abuso do direito de informar. Ora, o próprio voto condutor do acórdão recorrido reconhece que a acusação de mau uso de verbas públicas, prática de nepotismo e tráfico de influência constou de um dossiê elaborado por um sindicato e que foi encaminhado ao TST. A notícia veiculada no texto jornalístico reproduziu, tão-somente, essa acusação devidamente formalizada junto ao TST para fins de investigação. O texto jornalístico tido como lesivo à honra do recorrido estava, portanto, sob a proteção do artigo 220, da CF. Não poderia, portanto, ensejar responsabilidade por dano moral, porque ausente o abuso de direito. No mais, a notícia de que o recorrido é primo de um ex-presidente da república e de que pretenderia candidatar-se a um cargo eletivo em hipótese alguma poderia caracterizar situação justificadora de reparação por dano moral. De resto, cabe lembrar que o texto jornalístico em questão resultou em denúncia por suposta infração dos artigos 21 e 22 da Lei de Imprensa que foi, entretanto, rejeitada em decisão judicial. Em outro acórdão, o Supremo Tribunal Federal mais uma vez afirmou a prevalência do direito de informar sobre o direito à privacidade, constando no r. voto condutor que: A questão posta não é de inviolabilidade das comunicações e sim da proteção da privacidade e da própria honra, que não constitui direito absoluto, devendo ceder em prol do interesse público (HC 87341 – PR – 1ª T. – Rel. Min. Eros Grau – DJU 03.03.2006 – p. 73). E, em junho de 2010, a crítica jornalística foi tida como prerrogativa do profissional de imprensa, podendo exercê-la com base na Constituição Federal, segundo o Ministro Celso de Mello ao relatar o Recurso Extraordinário nº 271 705630/SC. De acordo com os autos, o trecho da notícia que motivou a ação foi o seguinte: O judiciário catarinense é uma ilha de agilidade. Em menos de 12 horas, o desembargador Francisco de Oliveira Filho reintegrou seis vereadores de Barra Velha, após votar contra no mesmo processo. Os ex-cassados tratavam direto com o prefeito, ignorando a Constituição. A Câmara vai recorrer. O povão apelidou o caso de “Anaconda de Santa Catarina”. O autor da ação contra o jornalista responsável foi o desembargador mencionado no trecho. O Ministro Celso de Mello considerou que o conteúdo da reportagem está “longe de evidenciar prática ilícita contra a honra” e que ela representa o verdadeiro exercício da liberdade de expressão, lembrando que a Constituição assegura o direito de o jornalista exercer o direito de crítica contra qualquer pessoa ou político. Disse, ainda, que, em uma sociedade democrática, “é intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a crítica revele-se inspirada pelo interesse coletivo e decorra da prática legítima de uma liberdade pública”. O Ministro disse também que a crítica pode ser plenamente oponível àqueles que exercem qualquer atividade de interesse da coletividade geral, já que o interesse social “sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar as pessoas públicas”. O Ministro Celso de Mello deixou claro que, quando o objeto da reportagem for uma figura pública, governamental ou não, ainda que a notícia contenha observações de caráter irônico ou mordaz e incluir críticas severas, a liberdade “qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender”. De outro lado, na medida cautelar em reclamação nº 9.428 do Supremo Tribunal Federal, no caso que ficou mais conhecido por uma das pessoas envolvidas, Fernando José Macieira Sarney. Tratava-se de reclamação, com pedido de liminar, proposta pela empresa jornalística S.A. O Estado de São Paulo, contra a decisão da 5ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que, nos autos do Agravo de Instrumento n° 2009.00.2.010738-6 manteve, com base no poder geral de cautela (artigo 798, do CPC), a decisão liminar do relator original da causa para a inibição de publicação de dados sigilosos sobre Sarney. “Inconstitucional” e “censura prévia” foram as expressões mais repetidas entre representantes de instituições ligadas às áreas de imprensa e de defesa do Estado de Direito, em comentários a respeito da decisão judicial contra o jornal. A decisão 272 que manteve a proibição de O Estado de S. Paulo publicar conversas interceptadas de Fernando Sarney, filho do presidente do Senado José Sarney, não foi baseada na Lei de Imprensa; por esse motivo, o Supremo Tribunal Federal não analisou a reclamação apresentada pelo jornal contra a decisão. Esse foi o fundamento central dos Eminentes Ministros Cezar Peluso e Dias Toffoli ao extinguir tal ação, sem examinar o mérito. Relevante anotar que seis ministros votaram pela extinção, mas os Ministros Celso de Mello, Ayres Britto e Cármen Lúcia entenderam que a reclamação do jornal deveria ser examinada. Mas o fato é que, por força da decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal confirmando o pronunciamento de primeira instância, e não cassada pelo Supremo Tribunal Federal, o jornal O Estado de S. Paulo está há longos anos impedido de publicar notícias sobre os desdobramentos da operação “Boi Barrica” da Polícia Federal, envolvendo Fernando Sarney, empresário e filho do ex-presidente do Senado, que, dias após a decisão de última instância, desistiu da ação, mas que acabou não sendo aceita pelo jornal. E, por fim, o tema em estudo foi diretamente tocado, com resguardo mais uma vez do direito de privacidade em detrimento do direito de imprensa na medida cautelar em petição nº 2.702, julgada em 18 de setembro de 2002, pelo pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos. Trata-se do caso O GLOBO X GAROTINHO, em que foi consagrada a prevalência do direito à privacidade sobre o direito à informação, sendo interessante saber das origens do julgado e do posicionamento de cada ministro no caso. A Juíza da 1ª Vara Cível Central da Capital do Rio de Janeiro deferiu em favor de Anthony Garotinho liminar para que a empresa de comunicação “O Globo” não veiculasse conversa telefônica do político. A decisão foi agravada e o Egrégio Tribunal de Justiça Fluminense, por maioria de votos dos integrantes de sua 18ª Câmara, negou provimento ao recurso, sendo interposto o Recurso Extraordinário em exame. O relator foi o Ministro Sepúlveda Pertence, com voto vencedor, acompanhado pelos Ministros Gilmar Mendes, Moreira Alves, Sydney Sanches, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Ellen Gracie, negando-se a veiculação da gravação. Ainda assim, nos pareceu que o voto mais interessante foi o único vencido, lançado pelo Ministro Marco Aurélio Mello, valendo a transcrição de alguns de seus trechos: Se analisarmos os incisos do artigo 5º, veremos que a própria Carta confere ênfase maior ao direito-dever de informar. A interpretação desses 273 dispositivos leva-me a concluir que há de prevalecer a informação, tal como assegurada no artigo 220 da Constituição Federal. Não vejo como deixar de pedir licença à Sua Excelência, o relator, e aos demais integrantes da Corte, para divergir. Vislumbro este julgamento como emblemático quanto à liberdade de informação jornalística prevista na Carta da República, no que, mediante medidas acauteladoras, possíveis interessados na ausência da divulgação de matérias, poderão simplesmente lançar mão do Judiciário para que este exerça uma censura no tocante a certo material. O interesse coletivo, a meu ver, porque vivemos em uma sociedade aberta, sobrepõe-se ao interesse individual. Não posso admitir que alguém – repito – que se coloque como candidato a um cargo de direção, como o de Presidente da República, simplesmente receie que alguma coisa venha a público e acabe prejudicando a campanha. Ao contrário, o interesse maior está na elucidação, na divulgação – eu mesmo, como cidadão-eleitor, estou curioso quanto a essas fitas, em que pese a alguns vazamentos já ocorridos pela imprensa – da gravação para que se elimine qualquer dúvida quanto ao perfil do candidato. O interesse é do próprio candidato. O interesse, no caso, é do autor da ação que, numa medida, numa tutela antecipada, acabou por obstaculizar a divulgação dessas fitas que, sob meu ponto de vista, já tarda. Estamos a três semanas das eleições e precisamos conhecer o perfil de cada candidato. Mais recentemente, ao apreciar a Medida Cautelar na ADI 4.451, relativa à possibilidade de emprego do humor na propaganda eleitoral, o Supremo Tribunal Federal voltou a dar guarida ao direito à informação em detrimento da privacidade, decidindo que: Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da Constituição Federal. A Magna Carta Republicana destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como a mais avançada sentinela das liberdades públicas, como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Os jornalistas, a seu turno, como o mais desanuviado olhar sobre o nosso cotidiano existencial e os recônditos do Poder, enquanto profissionais do comentário crítico. Pensamento crítico que é parte integrante da informação plena e fidedigna. Como é parte do estilo de fazer imprensa que se convencionou chamar de humorismo (tema central destes autos). A previsível utilidade social do labor jornalístico a compensar, de muito, eventuais excessos desse ou daquele escrito, dessa ou daquela charge ou caricatura, desse ou daquele programa. Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de “imprensa”, sinônimo perfeito de “informação jornalística” (§ 1º do art. 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa 274 liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V. (ADI 4.451 MC-REF, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, STF, j. em 02/09/10). 18.2.4 Um resumo da questão na jurisprudência brasileira Como se constata, a jurisprudência vacila no enfrentamento do tema, e nem a cúpula da justiça nacional tem posicionamento fechado sobre a prevalência do direito à privacidade ou do direito à informação, conforme noticia o Eminente Ministro Sepúlveda Pertence no seu relatório do citado caso O GLOBO X GAROTINHO: A respeito da polêmica assim vislumbrada – que reflete a viva dissensão no direito comparado, tanto na doutrina, quanto nos tribunais constitucionais – ainda não se pode divisar, no Brasil, uma orientação firme do Supremo Tribunal. 18.3 A Questão na Suprema Corte dos Estados Unidos Antes de examinarmos a tendência da jurisprudência estadunidense sobre o tema, é bom sabermos que, segundo Richard A. Posner470, os juízes deste país estão predestinados a ser pragmáticos e que, numa descrição mais esclarecedora dos magistrados da Suprema Corte dos EUA, particularmente quando eles estão decidindo questões de Direito Constitucional, são juízes políticos. Em outras palavras, para ele, os juízes políticos são pragmáticos, se o que estão levando em conta são as consequências políticas de suas decisões. 18.3.1 O caso New York Times Co. v. Sullivan Dito isso, serão trazidos para exame os julgamentos dos casos denominados New York Times Co. v. Sullivan e Curtis Publishing Co. v. Butts, julgados pela Suprema Corte do Estados Unidos, que são citados por toda a doutrina 470 POSNER, Richard A. How judges think. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 2010. p. 269. 275 estadunidense como dois dos mais simbólicos decisórios acerca da questão da aplicação da indenização punitiva quando do conflito entre o direito de privacidade e o de imprensa.471 De início, vejamos o caso New York Times Co. v. Sullivan, julgado pela Suprema Corte estadunidense no ano de 1964 (nº 39, 376 EUA 254). Trata-se de uma das principais decisões de apoio à liberdade de imprensa naquele país, exigindo que o requerente da indenização civil, num caso de difamação ou calúnia contra funcionário público, prove que o editor do artigo em questão saiba que a notícia é falsa, resultando, por conta da carga extremamente elevada de prova que se impõe ao autor, que as causas desse viés raramente prosperem. Esse caso tratou da situação de um funcionário público em Montgomery, Alabama, de nome Sullivan, um comissário de polícia eleito, que ajuizou uma ação em um tribunal estadual alegando ter sido caluniado por um anúncio publicado no jornal The New York Times. O anúncio incluiu declarações sobre a ação policial supostamente dirigida contra os estudantes que participavam de uma manifestação em defesa dos direitos civis, deixando claro que os policiais “prenderam Martin Luther King Jr. por sete vezes, com intimidação e violência, e já bombardearam sua casa, quase matando sua esposa e filho”. O autor, o comissário de polícia LB Sullivan, alegou que as declarações publicadas se referiam a ele porque seus deveres incluíam a supervisão do departamente de polícia. Sullivan processou o jornal e ganhou uma indenização de US$ 500 mil na primeira e segunda instâncias estaduais ordinárias. De acordo com a Suprema Corte do Alabama, sustentando a decisão do juiz de primeira instância, “onde as palavras publicadas tendem a ferir uma pessoa caluniada em sua reputação, acusá-la de um crime condenável, ou a levar o indivíduo ao desprezo público”, elas são “difamatórias de per se”, e a “prova de dano pecuniário assim é implícita”. Mas em último grau de jurisdição, quando examinada a questão pela Suprema Corte dos Estados Unidos, o pedido foi julgado improcedente por nove votos a zero, concluindo-se que as decisões proferidas nas instâncias estaduais do Alabama eram constitucionalmente deficientes por não preservarem as garantias da liberdade de expressão e de imprensa que são protegidas pela Constituição Federal 471 Informações disponíveis em: <http://www.bc.edu/bc_org/avp/cas/comm/free_speech/. Acesso em: 20 dez. 2011. 276 estadunidense, além de ponderar que um funcionário público que pretenda indenização por difamação deve provar que a declaração em questão foi feita com má-fé, que é o conhecimento da falsidade ou a falta imprudente de investigação. Afirmou-se na decisão da Suprema Corte que em muitas jurisdições, incluindo a do Alabama, a prova do dolo (o conhecimento real da falsidade ou desrespeito imprudente da verdade) é pressuposto necessário para a fixação de punitive damages. Colhe-se da decisão que a proteção constitucional da liberdade de expressão e de imprensa limitam o poder do Estado e de seus agentes em uma ação de difamação ajuizada por um funcionário público contra os críticos de sua conduta oficial. Asseverou-se que qualquer outra conclusão viria desencorajar os jornais de cumprir “publicidade editorial” desse tipo, e assim poderia fechar-se uma saída importante para a propagação de informações e ideias. Segundo a decisão final, o interesse do público aqui supera o interesse do requerente ou de qualquer outro indivíduo; conduta política e pontos de vista que algumas pessoas respeitáveis aprovam e outras condenam são constantemente imputadas aos congressistas; erros de fato, particularmente em relação aos estados mentais de um homem, são inevitáveis; tudo o que é adicionado ao campo de calúnia é retirado do campo de debate livre. Concluiu-se que a proteção do público requer não apenas a discussão, mas a informação. 18.3.2 O caso Curtis Publishing Co. v. Butts Vejamos agora o caso Curtis Publishing Co. v. Butts, julgado pela Suprema Corte estadunidense no ano de 1967 (nº 37, 388 EUA 130). Esse caso deriva de um artigo publicado no Saturday Evening Post que acusou Butts de conspirar para “consertar” um jogo de futebol entre a Universidade da Geórgia e a Universidade do Alabama, em 1962. Na ocasião do artigo, Butts era o diretor esportivo da Universidade da Geórgia e tinha a responsabilidade geral pela administração do programa atlético daquela instituição. Butts anteriormente havia sido treinador chefe de futebol da Universidade da Geórgia e era uma figura conhecida e respeitada nas fileiras esportivas. 277 O artigo foi intitulado “The Story of a College Football Fix” 472 e prefaciado por uma nota dos editores com a seguinte afirmação: Desde que o Chicago White Sox jogou a World Series em 1919, não houve uma história esportiva tão chocante quanto esta. Antes da Universidade da Georgia jogar contra a Universidade de Alabama, Butts Wally deu ao treinador adversário os padrões de defesa de seu time, além de todos os significativos segredos que a Georgia possuia. O texto revelou que uma pessoa de nome George Burnett, um vendedor de seguros em Atlanta, acidentalmente, ouviu, por causa de um erro eletrônico, uma conversa telefônica entre Butts e o treinador chefe da Universidade do Alabama, Paul Bryant, que ocorreu aproximadamente uma semana antes do jogo entre as equipes da Geórgia e do Alabama. Burnett disse que ouviu enquanto “Butts descrevia jogadas ofensivas da Georgia” e disse “como a Georgia pretendia se defender”. Segundo Burnett, “Butts mencionou os jogadores e as jogadas pelo nome”. Os leitores foram informados que Burnett tinha feito notas a respeito da conversa. O artigo passou a discutir o jogo e a reação dos jogadores, concluindo que “os jogadores da Georgia, tendo seus movimentos analisados e previsíveis, como os de ratos em um labirinto, levaram uma surra terrível”. O artigo culminou na demissão de Butts dos assuntos esportivos da Universidade da Georgia, por razões de saúde e negócios. A conclusão do artigo deixou claro o seu esperado impacto: “As chances são de que Butts Wally nunca mais venha a treinar qualquer time de futebol outra vez”. Então, Butts intentou a presente ação por difamação na justiça da Geórgia buscando cinco milhões de dólares por indenização compensatória e mais cinco milhões de indenização punitiva, afirmando que a “conduta do réu foi irresponsável e arbitrária, em vista da natureza devastadora das afirmações do artigo”. A ação teve seu julgamento concluído antes da Suprema Corte estadunidense proferir a sua decisão no caso New York Times Co. v. Sullivan, e a única defesa levantada pela ré Curtis Publishing Co. foi a da verdade substancial. A prova produzida no processo foi direcionada tanto para a verdade do artigo como para a sua preparação investigativa. As evidências mostraram que Burnett realmente tinha ouvido uma conversa entre Butts e o treinador do Alabama, mas o conteúdo da conversa era contraditório. Butts alegou que a conversa tinha sido para 472 A história de um jogo de futebol americano universitário “arrumado” (tradução livre do autor). 278 falar de futebol em geral e que nada tinha falado a respeito de alguma informação especial ao técnico adversário. Os peritos que testemunharam apoiaram a versão de Butts. Através da análise que foi feita entre as notas de Burnett sobre a conversa que ouviu e o filme do jogo em si, os peritos constataram severa divergência. Assim, concluiu-se que havia sérias dúvidas sobre a adequação da investigação subjacente ao artigo difamatório. O júri foi instruído de que, diante da tese de defesa sobre a verdade do artigo, era “necessário que a verdade fosse substancialmente retratada no artigo”. O júri também foi instruído de que poderia atribuir indenização punitiva “para deter o ofensor de repetir a transgressão”, em uma quantidade dentro de seu exclusivo critério, se decidisse que a má-fé realmente tinha sido provada. Por fim, o júri chegou a um veredicto de US$ 60 mil (sessenta mil dólares) em indenização compensatória e de US$ 3 milhões (três milhões de dólares) em indenização punitiva, mas o tribunal de segunda instância reduziu o total para US$ 460 mil (quatrocentos e sessenta mil dólares). Logo depois da decisão em segunda instância no caso do jogo de futebol americano, foi proferida a decisão no caso New York Times Co. v. Sullivan, mencionda no item anterior, no qual se deu guarida ao direito de imprensa, e a ré Curtis Publishing Co. imediatamente trouxe o fato à atenção, pedindo um novo julgamento. O juiz rejeitou o requerimento, justificando que o caso The New York Times v. Sullivan era inaplicável, porque Butts, apesar de ter sido encarregado com a importante responsabilidade de gerir os assuntos atléticos de uma universidade estadual, não era tecnicamente um funcionário do Estado, e, assim, ao contrário do outro processo, neste, a publicidade não havia sido dirigida a funcionário do governo. As decisões das instâncias ordinárias nesse caso foram confirmadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, fundamentando-se que: [...] os jornais, revistas e emissoras são negócios conduzidos pelo lucro e muitas vezes se tornam muito grandes como outras empresas que infligem danos no curso da realização de um serviço de grande utilidade para o público; e pessoas feridas não devem ser relegadas a fazer coleção de suas reivindicações difíceis ou impossíveis; a liberdade de discussão deve abraçar todas as questões sobre as quais as informações são necessárias ou apropriadas para permitir aos membros da sociedade lidar com as exigências do seu período; é significativo que a garantia da liberdade de expressão e de imprensa seja uma necessidade social para a manutenção do nosso sistema político e uma sociedade aberta, e é por causa da natureza pessoal deste direito que se tem rejeitado todo o tipo de censura 279 prévia à publicação; a divulgação de opiniões do indivíduo sobre assuntos de interesse público é, nas palavras históricas da Declaração de Independência, um direito inalienável; mas o fato de a disseminação de informação e opinião sobre questões de interesse público ser normalmente uma atividade legítima e protegida não significa que alguém possa em todos os aspectos exercer essa atividade isento de sanções destinadas a salvaguardar os legítimos interesses dos outros; um negócio não está imune a regulamentação, porque é uma agência de imprensa; o editor de um jornal não tem imunidade especial a partir da aplicação de leis gerais; ele não tem nenhum privilégio especial para invadir os direitos e liberdades dos outros; o direito de comunicar informações de interesse público não é incondicional; o instituto da calúnia, é claro, mudou substancialmente desde os primeiros dias da República, e essa mudança é a consequência direta do atrito entre ele e o direito a muito acalentado de liberdade de expressão; a verdade tornou-se uma defesa absoluta em quase todos os casos, e privilégios destinados a promover a livre comunicação são quase universalmente reconhecidos; mas a teoria básica de calúnia não mudou; assim, alguma colidência entre a liberdade de expressão e de imprensa e as ações de difamação persistem, porque a difamação permanece como premissa do conteúdo do discurso e limita a liberdade do editor para expressar certos sentimentos, pelo menos sem a garantia de prova legal da sua precisão substancial. Negando a pretensa extensão da solução do caso New York Times Co. v. Sullivan ao caso do treinador de futebol Butts, ponderou a Suprema Corte que naquele processo o demandante era um funcionário cujo cargo no governo era tal “que o público tinha um interesse independente na qualificação e desempenho da pessoa”, concluindo que os funcionários do governo estão autorizados a ser indenizados por difamação apenas quando eles puderem provar que a publicação envolvida foi deliberadamente falsificada, ou publicada de forma imprudente, apesar da consciência da editora de falsidade provável. Sobre as provas do processo, ponderou a decisão da Suprema Corte que: [...] o júri do caso Butts foi instruído, ao considerar os danos punitivos, a avaliar a confiabilidade, a natureza das fontes de informação do réu, sua aceitação ou rejeição das fontes, e seu cuidado em verificar as afirmações; estas considerações foram mencionadas como relevantes para a determinação se o réu tinha procedido com “indiferença”; consideramos que o júri deve ter decidido que a investigação realizada pelo Saturday Evening Post era totalmente inadequada para as circunstâncias; as evidências mostraram que a história sobre a conduta de Butts se tratava de “notícias quentes” e os editores da revista reconheciam a necessidade de uma investigação minuciosa das acusações graves, mas precauções elementares foram ignoradas; The Saturday Evening Post sabia que Burnett tinha sido colocado em liberdade condicional recentemente, mas começou a publicar a história com base em seu depoimento sem apoio substancial independente; as anotações de Burnett não foram sequer vistas por qualquer um dos funcionários da revista antes da publicação; John Carmichael, que era quem supostamente teria conversado com Butts quando o telefonema foi ouvido por Burnett, tampouco foi entrevistado; nenhuma tentativa foi feita, por meio dos filmes do jogo, para ver se a informação de Burnett era precisa, e nenhuma tentativa foi feita para saber se o time do Alabama tinha ajustado seus planos após a divulgação da 280 informação alegada; o escritor do artigo sobre a história não era um especialista em futebol e nenhuma tentativa foi feita para verificar a história com alguém experiente no esporte; The Saturday Evening Post estava ansioso para mudar sua imagem, instituindo uma política de “sensacionalista sofisticada”, e a pressão para produzir uma exposição bem sucedida pode ter induzido na publicação; editoras como a Curtis Publishing se envolvem em uma grande variedade de atividades que podem levar delitos a termo, onde danos punitivos são uma possibilidade. E, ao finalizar pela confirmação da indenização punitiva no caso Curtis Publishing Co. v. Butts, a Suprema Corte afirmou que os punitive damages exigem um veredicto de “má-vontade” do ofensor, e servem a um propósito inteiramente legítimo na proteção da reputação individual. 18.3.3 Um resumo da questão na jurisprudência da Suprema Corte Postos os dois divergentes julgados para análise, pode-se dizer que duas foram as grandes e cabais afirmações na conclusão de cada um deles, segundo a Suprema Corte dos Estados Unidos. No caso New York Times Co. v. Sullivan, a negativa de indenização ao comissário de polícia eleito veio calcada na afirmação de que “homens públicos, são, por assim dizer, a propriedade pública”. Já no caso Curtis Publishing Co. v. Butts, arrematou-se a questão conferindo-se o direito indenizatório ao treinador de futebol contra o órgão de imprensa sob o fundamento de que “a liberdade de expressão não inclui a liberdade de transgressão”. 281 CONCLUSÕES 1) O dinamismo e a eficiência da Justiça americana resultam de determinados fatores que deveriam ser observados para que a Justiça brasileira pudesse gozar do mesmo prestígio, como se quis demonstrar ao longo do trabalho. Realmente, posturas sérias e eficazes precisam ser tomadas com urgência, caso contrário o Poder Judiciário brasileiro, em espaço de tempo muito curto, entrará em verdadeiro colapso. Quanto ao cerne deste estudo, como uma das posturas a serem assumidas para a tentativa de dar celeridade e eficiência ao Poder Judiciário nacional, no que se refere às grandes questões de Direito Privado, já se faz momento de rigorosa observância dos precedentes sumulados constituídos pelo Superior Tribunal de Justiça por parte da magistratura brasileira de primeira e segunda instâncias, evitando-se demandas decididas de diversas formas em um único grau de jurisdição e mesmo a desnecessária proliferação de recursos aos níveis superiores. De rigor, também, nesse quadro, que o próprio Superior Tribunal de Justiça adote soluções uniformes para as questões ainda não sumuladas que lhe são submetidas a julgamento, de sorte a contribuir para a formação de precedentes portadores de força e legitimidade, resolvendo, por exemplo, de forma definitiva, a celeuma que se instalou no ano de 2012 acerca da possibilidade ou não de se impor dever indenizatório em prol do filho em virtude do abandono afetivo praticado pelo genitor, já que, como explanado, cada uma de suas Turmas de Direito Privado tem diverso posicionamento a respeito da questão. Outrossim, é essencial a aprovação, no bojo do projeto do novo Código de Processo Civil, do incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, este sim um instrumento ainda inexistente no ordenamento jurídico brasileiro e que trará de uma vez por todas a obrigatoriedade da observância de precedentes formulados até mesmo nos tribunais estaduais e regionais federais, com possibilidade de nacionalização da decisão vinculante. Outro grande exemplo americano a ser seguido são as preliminares formas de tentativa de composição dos litígios, de maneira que deságuem no Judiciário tãosomente as demandas absolutamente carentes de decisão estatal sobre a lide, enxugando a tarefa judicial, visando melhor qualidade e eficiência na prestação jurisdicional. 282 Veja-se que a proposta em comento não se trata de mera previsão legal de institutos tendentes à obtenção da conciliação, o que já se faz presente na legislação brasileira, como, por exemplo, a Lei 9.099/95. Pugna-se por uma postura mais pró-ativa dos atores do sistema judiciário (juízes, advogados privados e públicos e promotores de justiça) e das pessoas físicas e jurídicas envolvidas nas lides forenses, buscando de maneira efetiva a solução do litígio antes mesmo do ajuizamento das ações, sobretudo quando se tem em mira as demandas dirigidas contra grandes empresas na área do consumidor, a fim de enxugar e conferir qualidade aos Juizados Especiais do país, hoje atolados de serviço. 2) Mesmo admitindo-se que se consiga no Brasil, um dia, a observância dos precedentes, a uniformização da jurisprudência brasileira constitui um objetivo de difícil alcance, dada, sobretudo, a inútil e equivocada proliferação da legislação nacional em temas desnecessários. Nesse sentido, apenas para não ficar na informação vaga, propugna-se hoje por reformas em praticamente todos os grandes diplomas nacionais, como o Código Comercial, inclusive em temas que acabaram de ingressar na disciplina do Código Civil de 2002, e o Código de Defesa do Consumidor, que recentemente completou duas décadas de vida e ainda nem foi suficientemente interpretado pelos tribunais. Além disso, é clara a carência de disposições legais em pontos cruciais à completude do sistema jurídico nacional, como se viu, exaustivamente, com relação à indenização por danos morais. Como visto, passou sem a atenção do legislador uma questão que, no campo doutrinário, desde o início do século passado, por interpretação do “pai” do Código Civil de 1916, Clóvis Beviláqua, e, no campo jurisprudencial, desde a metade do mesmo século XX, por meio da orientação do Supremo Tribunal Federal, tinha posicionamento tranquilizado e apenas aguardava sua inserção no âmbito legal com alguma minúcia, o que acabou frustrado. Em outras palavras, parece não ter bastado ao legislador do Código Civil de 2002 que o intérprete mais autorizado do diploma civil revogado e a jurisprudência da mais alta corte nacional de justiça tenham afirmado categoricamente a possibilidade de indenização pelos danos morais. Com efeito, repita-se, tendo o diploma civil feito apenas uma breve menção à possibilidade de indenização por danos morais (artigo 186), acabou praticamente por desconsiderar a questão por completo, porquanto tal autorização indenitária já 283 era constante de disposição de eficácia imediata da Constituição Federal (inciso X do artigo 5º). Em outros termos, a indenização por danos morais já era de tranquilo deferimento por entendimento da mais eminente doutrina centenária, por orientação da mais elevada jurisprudência nacional há 50 anos e nada menos que por disposição expressa e de aplicação imediata da Constituição da República do país. Dessa sorte, a eficácia prática do artigo 186 do Código Civil, na parte em que ressalvou expressamente a possibilidade de indenização por danos morais, foi rigorosamente nenhuma. Ainda, paralelas ao problema da omissão, encontram-se a incorreção e a imprecisão legislativas, resultando na produção de diplomas legais portadores de dispositivos contraditórios entre si e alguns absolutamente incompreensíveis, como se exemplificou, respectivamente, com a problemática da responsabilidade civil do incapaz e do instituto jurídico por alguns classificado como desapropriação e por outros como usucapião de imóvel, pela realização de “relevantes obras e serviços”, por “considerável número de pessoas”, “a critério do juiz”, sem qualquer indicação do que isso se trate. Ressalte-se também o péssimo trabalho legislativo decorrente da revogação, na surdina, do § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, que previa a limitação dos juros remuneratórios bancários em 12% ao ano. Este nos pareceu o exemplo mais escancarado de contradição entre a vontade do povo e a de seu representante no Congresso Nacional, visando, naturalmente, ao atendimento dos interesses das instituições financeiras. Tal nos leva a dar razão aos que admitem, com tristeza, a existência de leis nascidas de valores aparentes que só o legislador reconhece. Ora, já é momento de se exigir do legislador nacional uma postura de mais atenção com relação ao seu trabalho-fim, fornecendo à sociedade boas leis para a disciplina das relações intersubjetivas, e principalmente que atendam aos anseios do povo brasileiro. 3) Infelizmente, a sinceridade nos obriga a admitir que uma das questões que causavam mais curiosidade acabou não respondida, apesar do esforço. Destarte, a cada livro que se pesquisava, se encontrava uma resposta num e noutro sentido a respeito da atual ocorrência ou não do descontrolado número de decisões judiciais impondo altas quantias a título de indenização punitiva nos EUA. 284 Por um lado, diz-se que a tendência é a queda no número de decisões nesse sentido. A própria Suprema Corte americana, como visto, traçou os pressupostos para aplicação dos punitive damages e os limites para sua valoração, e os Estados da federação, por meio da denominada tort reform, fazem o mesmo usando a lei. Todavia, também como já mencionado, numa das obras mais recentes e específicas sobre a matéria, elaborada a partir de um estudo mais que jurídico, de caráter também sociológico, a conclusão foi que os punitive damages estão em plena efervescência nos dias de hoje naquele país, não nos valores versados há tempos atrás, mas aplicados em hipóteses as mais variadas e fixados em valores ainda bastante excessivos. 4) Por aqui, no Direito brasileiro, foram postas para exame as duas formas doutrinárias de se pensar a indenização punitiva. Por uma primeira, à vista da ausência de expressa autorização legislativa, e mais, por conta de dois vetos a duas tentativas de enunciá-la no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, dáse pela impossibilidade de fixação da denominada indenização punitiva. Por outra orientação, à luz dos valores humanos constantes do ordenamento jurídico nacional e, especialmente, tendo-se em conta o princípio da irrestrita indenizabilidade ao lesado, encontra-se lastro jurídico à sanção civil na forma de indenização. Nada obstante entender-se como relevante o argumento exarado pela primeira corrente doutrinária, admite-se como legítima a fixação pelo Poder Judiciário de indenizações punitivas sob determinadas condições, como nos casos de ilícitos dolosos, praticados por meio de culpa grave, ou mesmo em reiteradas práticas prejudiciais, levando-se em consideração o anseio da sociedade quanto à proteção de seus direitos civis, fundamentalmente na qualidade de consumidores de produtos e serviços. Pode-se afirmar, assim, ser cada vez mais vigorosa a jurisprudência nacional no sentido da fixação reiterada de indenizações punitivas em valores que só fazem aumentar, calcada em posição doutrinária que tem em mira o princípio da irrestrita indenizabilidade da vítima, numa tendência absolutamente contraditória com a orientação emitida por expresso pelo Poder Legislativo, que, como se disse, obstou duas tentativas de positivação dos punitive damages. Trata-se, isso pode ser dito, de uma postura legislativa omissiva que dá pujança ao denominado ativismo judicial no que toca ao tema da indenização punitiva, mesmo se tendo em consideração que a decisão judicial nesse caso, além 285 de não encontrar respaldo em disposição legal expressa, se depara, como dito, com uma lacuna intencional por parte do legislador. Isso poderia levar a crer que, dessa forma, tal decisório impositivo da indenização punitiva estaria eivado de uma nulidade absoluta, por ferimento da cláusula de harmonia e independência entre os Poderes da República. Sim, tal raciocínio é plenamente razoável. Mas o fato é que, seja justificada pelo princípio da irrestrita indenizabilidade à vítima, seja por qualquer outro elemento que se insira como fundamentação do decisório, como, por exemplo, o dolo ou culpa grave por parte do agente danoso, e até mesmo a situação financeira das partes, não há como frear a tendência do Poder Judiciário brasileiro à fixação da indenização punitiva, desde o primeiro grau de jurisdição dos juizados especiais, passando pelos Colégios Recursais, na primeira e segunda instâncias da Justiça Comum, além de, é claro, como se viu, chegar ao Superior Tribunal de Justiça e até mesmo ao Supremo Tribunal Federal. Nesse panorama, pensa-se, já é momento das poderosas empresas fornecedoras de serviços e produtos, e também o Poder Público, em última análise os grandes alvos das indenizações punitivas, assumirem posições mais pragmáticas no trato do tema, já que parece não mais encontrar guarida judicial a alegação de ausência de disposição legal expressa para a imposição de punitive damages ou indenizações punitivas, que estão sendo fixadas em situações e quantias as mais variadas e crescentes, devidamente confirmadas nas instâncias superiores e especiais, e posteriormente executadas. 5) E não há como negar a correção desta postura judicial, certo do fato de que nem sempre o direito criminal, sobretudo em tempos de adoção de sua noção como última ratio, consegue fazer frente às aspirações da sociedade por uma proteção mais efetiva de seus direitos civis fundamentais. Assim, a fixação de indenização punitiva é muito bem vinda, e não há necessidade alguma de se promover qualquer mudança relativa à sua nomenclatura ou posicionamento no âmbito da responsabilidade civil. Em outras palavras, a utilização de critérios como grau de culpabilidade, dolo, reiteração da conduta lesiva, elevado potencial econômico do ofensor e extensão do prejuízo para a vítima, são o bastante para se introduzir na própria indenização por danos morais o conteúdo punitivo ao agente danoso. 286 O fato é que a importação de institutos jurídicos de outros países nem sempre se dá de forma natural, em virtude das peculiaridades de cada país, de sorte que não há necessidade de se falar em pena privada europeia ou mesmo punitive damages americanos no Brasil, bastando que a indenização por danos morais seja praticada com mais intensidade no dia a dia pelos juízes e tribunais para que vá ganhando seus contornos definitivos com o tempo, de forma natural e à moda brasileira. 6) Com todas estas considerações e sem que isso se constitua numa contradição quanto ao que foi dito a respeito da inútil proliferação da legislação nacional – já que, nesse ponto, repita-se, há um vácuo enorme e injustificado no ordenamento jurídico pátrio – se mostra necessária a edição daquilo que poderia ser denominado de “Estatuto do Dano Moral”, evidentemente por meio de lei federal, que traçaria uma disciplina um tanto detalhada – mas sem a pretensão de exaurimento – das questões envolvendo o tema. Como exemplo, a indenização punitiva teria oportunidade para ser discutida em termos de normatização genérica e abstrata, disciplinando sua aplicação em determinadas situações de fato, como em condutas ilícitas dolosas ou impulsionadas por culpa grave, além de se estabelecer quais seriam seus limites mínimo e máximo. Tal legislação deveria ter como base, sobretudo, os pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça e a mais cristalizada jurisprudência dos Tribunais Estaduais acerca da indenização por danos morais, permitindo-se que, a partir deste sonhado estatuto, as cortes de justiça possam, ao interpretá-lo e aplicá-lo, criar os necessários precedentes judiciais, agora sim verdadeiramente legitimados, porque resultantes de pronunciamento judicial acerca de conteúdo legal. Nesse sentido, no Congresso Nacional brasileiro tramita perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 523/11, que, segundo sua ementa, dispõe sobre o dano moral e sua reparação. Veja-se que, nesse momento, o que se propugna nada mais é do que a adoção, num determinado e específico diploma legislativo, dos caracteres benéficos de ambos os sistemas jurídicos examinados ao longo deste estudo – o civil law e o common law. Isso é perfeitamente possível e necessário. Hipóteses, por exemplo, de morte de parentes como pais e filhos, além dos cônjuges, podem, perfeitamente, por se tratar de fatos objetivos, constarem de uma lista de casos passíveis de indenização por danos morais, além de contarem com predeterminação de valores indenizatórios 287 mínimo e máximo, com fixação final à luz de cada caso concreto pelo juiz, propciando-se uma essencial coesão das decisões judiciais nestes casos, de forma que não se permita mais que um filho que perdeu um de seus pais consiga 50 salários mínimos como reparação por danos morais, enquanto outro seja compensado com 500 mil reais por ter sido vítima da mesma infelicidade. Pensando-se, então, na tramitação do Projeto de Lei nº 523/11 da Câmara dos Deputados, que poderia ser denominado eventualmente de “Estatuto do Dano Moral”, para aproximá-lo da melhor técnica legislativa possível, sugere-se que, ao lado das mencionadas hipóteses concretas de indenização, se deveria prever, subsidiariamente, uma cláusula geral de exame judicial de possíveis outras situações passíveis de compensação por danos morais, de sorte que novas ocorrências não fiquem excluídas do crivo do magistrado. Respeitosamente, esta é a ideia que, resumidamente, se entende como a mais adequada a promover uma melhora no texto do Projeto de Lei nº 523/11 da Câmara dos Deputados, que dispõe sobre o dano moral e sua reparação, propiciando que decisões judiciais sobre o tema tenham um mínimo de lastro legal. Não se desconhece a torrencial orientação jurisprudencial dando pela inconstitucionalidade da tarifação da indenização por danos morais, numa tentativa de preservação do princípio da irrestrita reparação à vítima. Mas, o que se propugna é que, por lei, sejam fixados os valores mínimo e máximo necessários e suficientes para a compensação devida por lesão a direito da personalidade em determinados casos, com preservação da apreciação judicial quanto ao valor da indenização no caso concreto, sem prejuízo da verificação pelo juiz de outras situações danosas, o que visa a garantia da preservação de interesses constitucionais de grandeza também relevantes, como o princípio da igualdade entre as vítimas de atos ilícitos. 7) E, no trato desta imaginária correlação entre a decisão judicial e a manifestação legal, no tocante aos chamados grandes sistemas de Direito examinados, civil law e common law, pode-se dizer unicamente para fins didáticos que tenham sido adotados com exclusividade, respectivamente, pelo Brasil e pelos Estados Unidos, no que se refere à existência ou não de um ordenamento jurídico traduzido em legislação positivada. Isso porque, da forma como mencionado, em temas da mais alta relevância para a sociedade moderna, tem falhado o legislador brasileiro, tanto se equivocando 288 no momento da produção da lei quanto se fazendo omisso no que toca à confecção de disposições normativas atinentes, por exemplo, à indenização por danos morais. De outro turno, como se viu, o país norte-americano, além de uma constituição escrita e já muito antiga, emendada poucas vezes, dispõe de considerável legislação federal e, mais que isso, como resultado da acentuada autonomia de cada um de seus 50 Estados Membros, possui farta normatização estadual, que, não obstante em princípio não abrangente de todo o Direito Privado, já alcança, com considerável força, os temas relativos à responsabilidade civil, especialmente com relação aos punitive damages. Evidenciada está, dessa forma, segundo se entende, uma verdadeira interface entre os sistemas do civil law e do common law, aqui no Brasil e nos Estados Unidos, guardadas as peculiaridades de cada ordenamento jurídico. 8) Já que mencionados expressamente, então, no que toca aos punitive damages, pode-se dizer que sua aplicação tem seguido caminhos opostos nos Estados Unidos e no Brasil. Lá, mitigando extraordinariamente a força dos precedentes, a legislação estadual vem reduzindo seu campo de incidência a certas e determinadas situações, além de estabelecer limites ao próprio valor atribuído a título de indenização punitiva. Aqui, como reiteradamente se abordou, e já se faz enfadonho nesse particular, a carência legislativa em pontos cruciais do ordenamento jurídico tem gerado a verdadeira substituição da disciplina legal pela prestação jurisdicional na forma de consolidada jurisprudência. Dessa sorte, repita-se, ainda que verificada alguma preponderância da lei no Brasil e, de outro lado, dos precedentes nos Estados Unidos, mesclam-se aspectos do civil law e do common law tanto no sistema de Direito brasileiro quanto no estadunidense. Gozam, então, hoje, os dois países, dos pontos positivos, ao mesmo tempo em que suportam os inconvenientes, de cada um dos sistemas de Direito mencionados. Destarte, o civil law padece da impossibilidade de a lei conseguir regular todas as situações fáticas ocorrentes na vida das pessoas, gerando o problema das lacunas, e, mesmo na parte em que pretensamente disciplina os futuros acontecimentos, dá margem a dúbias interpretações de suas disposições, de forma que cresce o anseio por uma jurisprudência consolidada em determinadas áreas da seara jurídica. O common law, de outro lado, entrega nas mãos do Poder Judiciário, e, lembre-se, em se tratando dos Estados Unidos, nas mãos do júri popular e não de 289 um juiz togado, a grande maioria das decisões, ao menos em primeira instância, de tal modo que, no tema desse estudo, não se pode prever em quais situações e em que valores serão fixadas as indenizações punitivas, dando isso margem ao movimento pela legalização da questão. Na verdade, agrada em muito a conclusão acerca da interface entre os dois sistemas jurídicos do Brasil e dos Estados Unidos, na medida em que se afasta a aplicação radical da lei ou do precedente, podendo a sociedade de cada nação valer-se dos benefícios de cada um deles, suportando, naturalmente, seus inconvenientes. Ao cabo das contas, aliás, houvesse necessidade de se posicionar sobre qual seria o melhor sistema jurídico, se é que se pode falar nisso, na comparação entre o civil law e o common law, concluir-se-ia pela adoção, como fizeram os dois países em comento, daquilo que já se tem como norte para a solução das lides judiciárias como magistrado e nos problemas rotineiros do dia a dia: o meio-termo, a solução intermediária, que, no mais das vezes, representa naturalmente a decisão mais justa e adequada. 9) Com relação ao direito de imprensa e ao controle preventivo ou repressivo de sua atividade, entende-se cabível a concessão de medida de urgência visando o controle antecipado em casos de flagrante publicidade de informação que se sabe de antemão inverídica e injuriosa, sem que isso represente de qualquer maneira exercício de censura ao trabalho informativo. Destarte, os posicionamentos exarados pelo Poder Judiciário não têm conteúdo político, ideológico e muito menos artístico, de sorte que não se subsumem à dicção de censura posta no § 2º do artigo 220 da Constituição Federal. De outro turno, dentre os direitos fundamentais positivados na mesma Constituição Federal está a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV), conferindo a cada cidadão a prerrogativa de acionar a justiça para reparar lesão ou mesmo a fim de evitá-la, quando haja ameaça a direito, dentre eles o de privacidade. E, com efeito, não se concebe como possa o magistrado, diante do caso concreto, verificar a demonstração de que haverá a divulgação de notícia, por exemplo, manifestamente inverídica e difamatória contra alguém, e deixar de tomar qualquer providência a título de preservar o direito de informação. Ora, mesmo à luz do princípio da razoabilidade, isso é impensável! 290 É evidente que esta tarefa deve ser exercida excepcionalissimamente e com muita cautela pelo juiz, responsável por constatar a verossimilhança da alegação de futura veiculação de informação, como se disse, manifestamente inverídica e injuriosa. Uma vez constatado este fato, entretanto, outra solução não lhe resta senão a concessão do provimento cautelar ou antecipatório para proibir a publicização da notícia, com fundamento nos artigos 12 e 20 do Código Civil. 10) Como se pôde notar, existe, no que toca aos entendimentos jurisprudenciais brasileiro e estadunidense, uma enorme divergência, que na verdade mais parece um abismo, acerca do tratamento da questão envolvendo o conflito entre o direito à intimidade e o direito de imprensa quando envolvida uma pessoa pública de cargo eletivo. Nesse passo, foi colhido um caso na justiça brasileira em que um político encontrou guarida em seu pedido de reserva de sua privacidade e a consequente não publicação de matéria jornalística a seu respeito, enquanto a justiça estadunidense decidiu que a figura pública de que se reveste um cidadão eleito pelo povo lhe impõe um maior grau de exposição, negando seu pedido indenizatório pela publicação de sua imagem e informações a seu respeito. Após tal constatação, por mais ilógico que isso possa parecer, autoriza-se concluir o trabalho com duas indagações, quando, na verdade, deveríamos fornecer dados afirmativos. Por que será a americana a maior democracia que já se teve notícia em toda a evolução da raça humana? E por que a nossa democracia brasileira convive com ataques diários como, por exemplo, a tentativa frustrada de criação do chamado Conselho Federal de Jornalismo, no ano de 2004, por meio de um projeto de lei do Executivo Federal que previa “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício do jornalismo? Para não terminarmos apenas com indagações, todavia, lembremos que a Constituição dos Estados Unidos foi promulgada em 1787, contando até hoje com apenas 27 emendas, enquanto a nossa, promulgada no recente ano de 1988, já foi emendada mais de 70 vezes. Assim, talvez se possa encontrar alguma resposta para as duas perguntas acima, a respeito da condição das democracias americana e brasileira, dentre outros, num fator fundamental: o respeito ao ordenamento jurídico posto no país, sem que se permita sua alteração ao gosto de interesses momentâneos, devendo esta ser uma busca incessante daquele que se dedica ao Direito como o mais importante instrumento da Democracia já desenvolvido pelo ser humano. 291 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAHAM, Kenneth S. The liability century, insurance and tort law from the progressive era to 9/11. Cambridge: Harvard University Press, 2008. AKEL, Hamilton Elliot. O poder judicial e a criação da norma individual. São Paulo: Saraiva, 1995. ALDERMAN, Ellen; KENEDDY, Caroline. The rigth to privacy. 2. ed. New York: Alfred A. Knopf, 1995. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. 2 ed. Madri: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2002. ANDRADE, André Gustavo de. 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