1 CONGRESSO AJB - 6 a 9 novembro A psique da cidade: uma leitura analítico-simbólica do grafite em São Paulo Liliana Liviano Wahba Vislumbra-se nas imagens pintadas do grafite o imaginário da cidade, a sua expressão psíquica. Revelam-se símbolos, ações, fantasias, encontros e desencontros, solidões e compartilhamentos, aspirações e angústias. Surgem personagens que nos atraem ou repelem, dificilmente deixando-nos indiferentes. Surgem cenas imbricadas, seja na natureza, na agitação de um ritmo metropolitano, na parada momentânea ou em estagnação. Uma dramaturgia se insinua, vai traçando narrativas em fios de meadas que, longe de serem lineares, circunvolucionam percursos que se entrelaçam, se sobrepõem, correm paralelos, se confundem, se escondem e aparecem, convidam, surpreendem. Basta parar e olhar para ser envolvido. Palavra essa que denota tanto ser rodeado, abraçado, como ser afetado. Somos afetados pelo abraço dessas imagens e, por instantes, as frias paredes se preenchem de emoções distintas, cada uma delas despertada e evocada individualmente e, ao mesmo tempo, compartihada; vozes em uníssono murmuram ou gritam, proclamam o que todos queremos dizer, sentimentos comuns são realçados, desejos e medos, sonhos e pesadelos. E, quiçá, um horizonte comum de realização, de viver comunitário seja esboçado, um antídoto contra a desesperança, um apoio para o abandono e o descaso. A proposta de leitura a seguir e os temas apresentados são tão mutáveis quanto as imagens pintadas. Não se procurou identificar a intenção do autor delas, nem garantir um consenso. Trata-se de uma resposta subjetiva, uma permissão para devanear, para penetrar em suas metáforas, uma maneira de oferecer um elo ao psiquismo que, habitando o espaço comum, nos habita. As pessoas que circulam A maioria dos homens é transeunte na cidade grande; eles andam ou correm de lá para cá, sem objetivo aparente. Ficam vagando, complacentes e desocupados ou em agitação, correndo por não ter onde e para que parar; a questão evocada diz respeito a essa insensata aceleração, sem propósito, ainda que intensa a ponto de absorver 2 totalmente. A predominância de grandes cabeças ou cabeças sem corpo revela a dissociação entre a ação e seu significado. Transparece ainda uma desvitalização e vazio como se a vitalidade lhes fosse exaurida. O hedonismo se mostra como mera sensação, sem contato profundo. A maioria revela tristeza, espanto, agressividade ou raiva. Parecem também apelar para um poder mágico com tom ameaçador. O lema é: cada um por si. O contato também é precário, braços finos, corpos escondidos para não revelar fragilidade, e para compensá-la, há brigas e figuras guerreiras ou lutadoras, assim como figuras abrutalhadas de homens posando força. Alguns são convincentes e se aproximam de modelos heroicos, a maioria faz pose, está inflada para intimidar. O gracejo diante a belicosidade se faz presente na luta entre um ninja mascarado com foices nas mãos e o ganso ninja com fita na cabeça. Bocas são marcadas com dentes expostos, uma oralidade agressiva pautada pelo grito e pela raiva, além da voracidade. As bocas, que aparecem em expressões trancadas muitas vezes, calam, não dialogam, e quando se expressam, gritam ou mordem. Essas representações sugerem dissociação e profunda regressão, mecanismos de defesa primitivos decorrentes de traumas. As mulheres, quando encaram, o fazem de modo frio, sofrido; por vezes - menos evidente -, com raiva. Parecem um tanto indiferentes, seja por estarem aprisionadas em sofrimento sem esperança ou em devaneios solitários, prazerosos ou escapistas. Transmitem em sua maioria um apelo, de fato, mudo, já que quase não falam. Olham para o espectador de modo suplicante, sofrido, muitas vezes duro, lançando um enigma para o qual, no entanto, pouco se dispõem a ajudar em sua revelação. Aquelas em movimento parecem fechadas em suas ações, não aparentam interesse em compartilhar. Desejam, no entanto, ser olhadas: para acusar ou para seduzir. Em poucas, transparece uma alegria aparentemente fugaz, uma ação lúdica em fantasias, sexualidade, ou atividades de trabalho. Muitas parecem desiludidas. Mostram-se mais voltadas para si mesmas, quiçá uma negação do que ocorre lá fora, onde a cidade se movimenta e transita. Muitas pairam, seja na sensualidade que se tinge de ilusão, de efemeridade e do intangível, ou quase que distraídas sem se entregar apesar do erotismo envolvente. Sexualidade existe em alguma figura de fácil 3 consumo, também efêmera e infantilizada apesar de se oferecer abertamente. Ou ainda, sexualidade misteriosa e vingativa, de espada na mão, e a fantasia sadomasoquista ou de erotismo felino, sensual. Oferecem, talvez, um convite a que nele nos adentremos, as que aguardam a redenção do destino são amargas e sofridas, e há as ensimesmadas. Cenas de fracasso são devastadoras: transparece agonia e dor, impossibilidade de salvação e até mesmo a morte junto a crianças. As relações sociais e a intimidade As relações de partilha são escassas. O estereotipo de papéis sociais aparece com frequência, por exemplo, em um homem que agita à sua frente uma máscara e desnuda detrás um rosto escuro e vazio. Há representações de máscaras e de chapéus que reforçam as aparências e o esconder. Uma mulher de óculos escuros é literalmente consumida e espremida, os sorrisos se perdem no meio de ameaças e há palhaços sinistros e maléficos. Parecem representar o oposto de convenções com escárnio e deboche, contrário ao humor descontraído e livre. Num retrato de festa com música e bebidas cada um olha para um lado, de óculos escuros, sem troca, só um prazer isolado e momentâneo, hedonista. Situações aprazíveis são solitárias, por exemplo, músicos ou poetas. Há anonimato em grupo massificado e, somente em alguma atividade tribal, como a pesca, surge a cooperação. A relação dos homens com mulheres é ambígua: um homem aponta o dedo acusatório para um rosto de mulher aparentando uma esfinge materna, severa. Um casal de cangaceiros mostra o homem sofrido com esparadrapo no ventre que chora abraçado pela mulher, que também parece aprisioná-lo. Os papéis tradicionais se inverteram, o homem másculo fragilizado e o poder na figura feminina, materna. Sinaliza a regressão fixada em sentimentos de dependência. Outro homem abraça um coração fora do corpo no braço esquerdo e uma silhueta de mulher dançarina no braço direito, rígido, como se a afetividade fosse cindida e talvez a ilusão de posse com uma parceira fugidia e anônima, desconhecida. 4 O poder do pai parece ter ruído. Simbolizando tal perda de poder tem as figuras dos reis: ridicularizadas, apequenadas, apesar de poderem ser maldosas na expressão: perderam o poder, mas continuam maquinando. Um dos reis é de fato um reizinho infantilizado com um misto de animal-robô humanoide e, por detrás dele, a coroa caída da cabeça. A mecanização estaria representada por um monstro robotizado que é sombra do rei. Poucas famílias aparecem, uma dela revela desesperança. Um patriarca triste e alienado detrás da mater dolorosa inclinada para o lado, para o passado, com a criança isolada e assustada, todos eles infelizes e desamparados. Outra provável figura paterna retrata um homem chorando sem rumo, fragilizado, que segura pela mão uma criança somente esboçada com traçado tênue. Há mais mulheres com crianças do que homens, indicando uma realidade da composição familiar sem homens. Figuras familiares são poucas e, quando aparecem, pouco sustentadoras. A dramaticidade do colapso da figura materna é retratada por mulher deformada com uma criança nas costas, ambas com máscaras liquefazendo: estão apoiadas em uma árvore, se desfazendo ao relento. Outra cena pungente mostra uma mulher supostamente jogada de um prédio, amarrada com três crianças atadas a ela que despencam no fogo, a última criança calcinada. Essa cena, infelizmente, retrata tragédias às vezes realmente ocorridas, seja por assassinato ou suicídio. Há uma mãe que sorri com seus filhos fotografados, mas parecem objetos sem vida própria, que atendem a necessidade narcísica dessa mãe. Somente duas pinturas mostram crianças de fato cuidadas pela figura materna; uma mulher alimenta a criança e outra oferece um fone de ouvido que sai de seu plexo oferecendo uma escuta afetiva, orgânica, contraposta ao utilitarismo que prevalece. As crianças solitárias Simbolizando a criança real em nossa sociedade, ou a criança interior traumatizada, essas imagens transmitem sentimento de solidão e de exposição. As crianças que olham para o espectador sorriem de olhos fechados, ou se mostram tristes. Há sinais de abandono e de solidão. A maior parte está encolhida ou agachada, também apoiada ou montada, em algo ou alguém. Sugere uma procura de apoio, de alicerce. 5 A brincadeira ativa não aparece, e há pouca agressividade aberta. Se há brincadeira, é menos ativa que fantasiosa, uma atitude de introversão é mais marcante: falta correr, pular, movimentos expansivos que se espera em crianças. Os sorrisos parecem mais acanhados. Vários sorriem para si, na fantasia, mas poucos mostram uma atividade lúdica ativa. Aquelas que se mostram felizes, na maioria, estão sozinhas. Um menininho, sem mãos e encapuzado, que tem uma tomada nele e menininhas, sem braços nem pernas e soltas no ar como um balão preso por um fio – uma com coroa de princesinha - , parecem retratar crianças que se tornam objetivadas, sem reconhecimento de sua identidade, ou seja, existiriam em função do consumo amoroso das projeções de necessidade do outro. O diamante no peito das meninas indica um valor precioso a ser resgatado. A tomada sugere a tecnologia sem contato, a solidão diante da TV ou do computador, e a excitabilidade artificial, desprovida de energia natural. Uma criança rodopia e parece se esvair, sem afetividade, perdida. Algumas oposições retratam a realidade de nossa metrópole. Assim, dois meninos de expressão inocente e tranquila encontram-se comprimidos entre as letras grafitadas, e dois meninos, um de costas para o outro, têm semblantes carregados e retratam, talvez, os meninos de rua. A ameaça, ainda que distinta, perpassa em ambas as imagens. Simbolizando crianças míticas, de contos de fada e de sonho, tem pequenos heróis ou figuras da natureza: são personagens que se contrapõem à dor, à insegurança, à falta de continência, à exposição. A vida na cidade A tecnologia se faz presente: um homem-robô medita debaixo de uma engrenagem; o endeusamento da tecnologia traz uma ordem à confusão reinante, à custa, no entanto, de uma alienação espiritual. Uma metáfora da cidade apareceu em um tema simbolizando o ato de grafitar. O grafiteiro vestido de modo a se camuflar, representando ilegalidade do ato: do jato de spray surgem letras e uma cara com o cérebro exposto, e atrás dele – no inconsciente cultural e coletivo – uma cena terrível se desenrola: um homem com traços indígenas corre angustiado e uma figura (cara) vermelha de demônio morde seu braço; ele mal carrega na perna umas pedras com olhos, animadas. À frente da cena, como alheias a 6 esse horror apesar de outra cara demoníaca estar atrás delas, duas meninas brincam inocentemente com as pedras animadas. Representaria a inocência que mantém uma animação, uma possibilidade potencial de edificar com as pedras de modo singelo e lúdico, mas há muita ingenuidade que se contrapõe ao desespero do personagem masculino que não protege as meninas. A psique infantil aqui é imatura face ao mal demoníaco que destrói. Os opostos: criança- pureza e grotesco/horrível – violência convivem nessas imagens como uma forma de materializar talvez os monstros psíquicos que assolam a vida da cidade. De um lado a destruição demoníaca, cega, de outro, uma inocência alheia ao perigo que parece assustadoramente irreal. Há medo e angústia em outras cenas: no meio e por detrás de prédios um rosto de homem com máscara preta com expressão ao mesmo tempo assustada e ameaçadora, representa o estado de risco que irrompe inesperadamente. Uma cena mostra um homem desesperado gritando aos berros para um ser como um extraterrestre com quatro olhos e ligado a fios de umas máquinas elétricas com faróis de semáforo - com um coração solto que pula no meio deles -: parece o choque, um estado de choque. Reconhecemos essa cena no cotidiano de uma cidade que estressa, onde surgem ameaças, brigas, conflitos, as pessoas enlouquecem por muito ou por nada, o coração bate forte e agitado, sem caber no peito. Fazem também parte dessa cidade experiências aprazíveis do cotidiano, evocativas de expansão e leveza, da noite com seus influxos matriarcais mediante figuras africanas em atividade nutriente e regeneradora. Transtornos psíquicos O sofrimento e a desumanização transparecem em corpos fragmentados, mutilados e dilacerados liquefazendo ou seres robotizados. Há prevalência de rostos em vez de corpos inteiros, às vezes distorcidos; em figuras femininas, olhos inexpressivos, cílios e bocas carnudas: manifestação da oralidade em figura fragmentada; em figuras masculinas, bocas marcadas com dentes expostos, uma oralidade agressiva pautada pelo grito e pela raiva, além da voracidade. Essas representações sugerem dissociação e profunda regressão, mecanismos de defesa primitivos decorrentes de traumas. 7 Não se pode inferir com certeza, mas há indicação dos seguintes transtornos: ansiedade, depressão, estresse pós traumático, transtorno psicossomático, transtorno alimentar, adição, transtorno narcisista, transtorno borderline e despersonalização. Nossos mitos fundadores Em psicanálise a fantasia da cena primal, a relação sexual entre os pais, constitui uma fantasia de origem que modula o senso de si, de pertencimento. Algumas composições do grafite evocam, em uma dimensão profunda, inconsciente, a fantasia de origem da cidade, o seu mito fundador. Há o aspecto sombrio: um homem liquefeito está montado em uma gigantesca mulherogro, deformada; das pernas dela parece sair um misto de porco e rinoceronte monstruoso. Na sequência, um enorme rosto petrificado com fumaça saindo da orelha, como se fosse o resultado dessa relação aberrante, incitando a pergunta do que estaríamos fazendo de nossa capacidade de união e de amor. A brutalidade é parida e origina o homem endurecido, sem escuta e em erupção vulcânica. O enrijecimento, a brutalidade, o egoísmo, a ausência de empatia e de generosidade, assinalam um primitivismo cego e surdo, desprovido de reflexão. Um ser mítico fálico fecundador brinca com duas mulheres no mar; há por detrás uma criança sozinha no meio de ondas, despercebida pelas mulheres que se divertem aparentemente. Assinala talvez o prazer hedonista que caracteriza nossa cultura, que se pauta pelo presente usufruído e consumido a cada momento, sem atinar com o futuro, com o desenvolvimento da criança - promessa, renovação - que necessita ser atendida. Surge, no entanto, a compensação: o mito vivifica e espiritualiza, há uma concepção de seres alados, o homem águia e a mulher alada, grávida e inserida em um botão de flor. A fecundação espiritual estaria aqui simbolizada no mito de humanização, contraposto ao primitivismo anterior e ao prazer imediatista. Um dos grafites representa um mito moderno de criação: uma projeção de um futuro promissor de regeneração, a abertura de uma fechadura, convite à penetração de um espírito pujante e fertilizador, em coniunção com o feminino continente, oferecendo-se, trompas animadas com asas, flores ou pássaros nelas, poesia e sexualidade, o corpo 8 e a alma, a psique vitalizada e fecundada, que dará nascimento à geração vindoura e renovará a atual. Ambas as imagens - devastadora e regeneradora - convivem no inconsciente, ambas as possibilidades de afetar o ego e suas escolhas. Restauração via imaginação O sofrimento e a tensão psíquicas desaparecem em algumas imagens, como se outras histórias fossem contadas no imaginário coletivo. Assim, um homem oferece um poema e uma mulher se ergue do meio de uma flor como que acenando para a liberdade e expansão ligada à natureza: são imagens que se desprendem da opressão reinante. A natureza é retratada de modo preservado. A maioria de criaturas da água são peixes; há baleais, tartarugas. Simbolizam o vínculo com o inconsciente profundo e denotam um estado fundamental de saúde e de vigor. Alguns animais são míticos, como um peixe cindido no meio, costurado, que carrega uma casa nas costas. Seria o símbolo do animal que carrega o mundo, e que foi ferido; talvez um curador ferido que cumpre sua missão de sustentação. Aponta para a capacidade resiliente necessária para superar conflitos traumáticos. Há pássaros e borboletas soltos e coloridos, as águas, rios, céu são límpidos, e a vegetação aparece de modo vitalizado, mais como folhagem e menos em exuberância de árvores, ainda que estas tenham folhagem. Os símbolos indicariam que o estado da natureza interior é saudável, menos frondosa do que se poderia desejar, mas com possibilidade de crescimento e regeneração, ou seja, denota uma boa resiliência. A arte, o artista poeta, o grafiteiro, uma oferenda espiritual apontam a restauração via imaginação, o potencial de renovação. A expressividade da arte em geral mediante os poetas (Neruda), a música – instrumentos musicais – e os músicos (Adoniran Barbosa), cineastas, artistas gráficos e grafiteiros, enriquecem o coletivo por meio da espiritualização e da animação da linguagem simbólica que nos habita e habita nosso mundo. A arte é veículo de inspiração e de liberdade: duas figuras são emblemáticas e foram denominadas aqui de espírito mercurial: o primeiro personagem voa invocado pela 9 flauta de um indígena debaixo de totens, em prazerosa expansão espiritual; o segundo, como um trickster/ saci, de cartola, sorri apoiado em um cogumelo e a natureza abre sua semente psicodélica atrás dele. A capacidade vital parece acenar com possibilidades renovadas de regeneração. O ato de grafitar é certamente, como apontado por tantos, uma denúncia e um apelo, e mais, traça os percursos da imaginação, da renovada capacidade de propulsão do espírito que se expande e projeta, vai delineando representações da psique, voláteis e sedimentadas, duradouras em sua essência e transitórias em sua efemeridade; o tempo é mensuração de um momento ou de uma eternidade. O jato de spray é animado pela mão do artista e, assim, o volátil gás se associa à cor e se fixa em uma imagem, em uma representação, cuja autoria, assinada ou não, congrega todos os artistas em um: o grafiteiro. Ele mostra, para todos que quiserem ver, o que se passa em todos, e desenha na cidade o que nela ocorre, espelha como somos vistos e como nos vemos; quem somos, no caos e na organização. Sua arte expressa dores e alegrias. Mostra o trauma do crescimento desorganizado, do uso do espaço especulativo, da degradação, da alienação e da tristeza, da violência e do desamparo, da paranoia, da desconfiança, da falta de conforto e de apoio: a criança abandonada, os homens maquinalizados, as mulheres ensimesmadas; a maioria fechada em si, a dilaceração, o escapismo, a dissociação e a fragmentação. Dores e gritos, raiva mordida ou escancarada, medo e angústia, depressão e apatia. Eis que também surge o gesto de atenção, de cuidado, tímido; eis que surge a brincadeira e o humor, a fantasia pela música, pela poesia, pela arte. Tudo isso sobreposto e entremeado - não há ensinamento moral -, há uma realidade presencial, uma realidade psicológica contada em metáforas. Não se sabe quem vencerá: se o mito alado ou o mito monstruoso, se o homem que medita fundido à máquina ou a mão que oferenda. Há também imagens que assinalam a capacidade de resiliência, a manutenção de valores com tradição humanista e a criação de atos que os confirmem. Imagens do inconsciente profundo, da natureza humana mais fundamental mostram um ar puro, águas límpidas e vegetação viçosa. Um deslocamento é assinalado nos “peixes fora da água”, como um alerta da necessidade de respeitar o inconsciente, 10 para encontrarmos nosso lugar no mundo. Animais deformados são poucos, a maioria é perfeita. A mensagem compensatória de nosso inconsciente revela, assim, sua força: há saúde na natureza essencial do ser, ela precisa ser ativada no cotidiano, está no aguardo, latente e, até certo ponto, paciente. Forças poderosas instintivas são ativadas nessa mesma natureza na via de destruição. O homem não as cria, as dirige e canaliza. Foi possível perceber imagens que simbolizam o poder integrativo da psique, impulsionado para a restauração dos complexos cindidos e dolorosos. Provavelmente, uma das mensagens mais prementes é que, assim como esse tipo de arte subverteu as galerias e se fez na rua, transgressora e pública, a atitude requerida de cada um de nós na atualidade seja também anti-institucional e se exerça com a vitalidade de uma transgressão comunitária. REFERÊNCIAS AÇÃO educativa. Disponível em <www.acaoeducativa.org>. Acesso em: 20 de outubro de 2009. COLI, J. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006. CONNOR, S. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. 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