Os movimentos de sem-teto e a luta pelo direito à moradia
na área central da cidade de São Paulo
Roberta dos Reis Neuhold *
Resumo: O crescente processo de vacância imobiliária e de alteração no dinamismo econômico
da área central da cidade de São Paulo intensificou, na década de 1990, os debates sobre a sua
“requalificação”. Foi nesta época que movimentos de sem-teto passaram a ocupar prédios
abandonados naquela região, reivindicando sua transformação em habitação popular. O presente
artigo toma como ponto de partida matérias publicadas na imprensa, entre 1997 e 2007, sobre as
ações dos movimentos de sem-teto, para discutir como eles apareceram publicamente para a
cidade, indagando-se em que medida seus integrantes constituíram-se como sujeitos de
interesses válidos, o que inclui a legitimidade de habitarem uma região consolidada da cidade.
Palavras-chave: movimentos de sem-teto; área central de São Paulo; habitação popular;
ocupação de imóveis ociosos.
Abstract: The central area of São Paulo city has turned into space of debates on his
"requalification" in the decade of 1990, with the changes that have occured there: the growing
process of lost of population, the financial sector and the commercial activities going to other
areas. It was at this time that popular movements of homeless began to occupy abandoned
buildings in the central area of the São Paulo city, claiming its transformation into popular
housing. This article uses material published in the press, between 1997 and 2007, on the
actions of popular movements of homeless, to discuss how they appeared for the city. The
question is: the demands of popular movements of homeless have become legitimate for the
city?
Key words: popular movements of homeless; central area of São Paulo city; popular housing;
squatting.
A área central da cidade de São Paulo e as disputas em torno dos seus rumos e
significados
Núcleo originário da maior cidade brasileira, a área central de São Paulo1 é
dotada de infra-estrutura, acessibilidade, serviços urbanos, empregos e oportunidades de
geração de renda. Por outro lado, vem sendo diagnosticado um crescente processo de
esvaziamento populacional, de vacância e desvalorização imobiliária, de deterioração
dos espaços e de mudança no dinamismo econômico desta localidade, desde quando, em
meados da década de 1970, o centro econômico e financeiro da capital paulista e as
camadas de média e alta renda deslocaram-se para a região da avenida Paulista e, nos
dois decênios seguintes, para o quadrante sudoeste da cidade, formando os chamados
“novos centros” (FRÚGOLI JR., 2006).
*
Mestranda em Sociologia pela USP, bolsista da FAPESP. End. eletrônico: [email protected]
Do ponto de vista geográfico, tem-se considerado como centro o núcleo histórico da cidade (Sé e
República), e mais oito distritos (Bela Vista, Bom Retiro, Cambuci, Consolação, Liberdade, Santa
Cecília, Brás e Pari).
1
No que diz respeito especificamente à questão habitacional, a área central
abrigou não apenas as elites como também foi o berço da “mais antiga modalidade de
habitação proletária da cidade”, ou seja, dos cortiços, os quais, no início do século XX,
já correspondiam a um terço das moradias da capital (ANT; KOWARICK, 1988, pp.
49-50). Não demorou muito para que estas habitações coletivas de aluguel fossem
concebidas como fontes de pestes e de desordem, entraves para o desenvolvimento de
famílias saudáveis e equilibradas (ROLNIK, 1997, p. 59), especialmente após episódios
como a epidemia de febre amarela de 1893 e as greves gerais de 1917. E, se os cortiços
eram um problema urbano, a gênese do delito e da perversão, logo seus moradores
transformaram-se em um perigo social, sempre suspeitos e, conseqüentemente, inúteis
para opinarem sobre a cidade (DUARTE; PAOLI, 2004, pp. 55 e 70). Como não era
possível deslocá-los para outras regiões, restou a alternativa de criar instrumentos
econômicos, ideológicos e políticos para controlá-los e reprimi-los (ROLNIK, 1988, p.
81). Nesse sentido, o poder público desempenhou um papel crucial na tentativa, quando
não de proibir, de disciplinar aspectos higiênicos relacionados ao arranjo físico e à
localização espacial dos cortiços, por meio de mecanismos de regulação do mercado e
do incentivo à oferta de outras modalidades de moradia, da subdivisão territorial do
município e da proibição da instalação de cortiços na zona central, e, dentre outros, das
propostas de “modernização” da região e das reformas urbanas que implicaram na
desapropriação de áreas encortiçadas (SIMÕES JR., 1991, pp. 10-12).
Com o padrão de crescimento periférico, impulsionado a partir de 1938 pelo
Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia, pela reconfiguração viária e pela expansão
do sistema de transporte, o cortiço deixou de ser a modalidade predominante de
habitação popular e coube aos trabalhadores a alternativa das favelas e das casas
autoconstruídas em loteamentos sem infra-estrutura nas distantes regiões periféricas.
Ainda assim, as habitações coletivas de aluguel nunca deixaram de existir e de abrigar,
ainda hoje, uma parcela considerável da população da cidade2.
A questão dos cortiços voltou a ser discutida em período mais recente,
notadamente durante a década de 1990, quando o tema da “requalificação” do centro de
São Paulo intensificou-se, conferindo grande visibilidade para as políticas, intervenções
e ações ali realizadas. Foi nesta época que grupos formados predominantemente por
moradores de habitações coletivas de aluguel e reunidos nos chamados “movimentos de
2
Não há dados atualizados e precisos sobre a quantidade de pessoas que, na cidade de São Paulo, habitam
cortiços, mas, em 1997, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas estimava que eram 600 mil
(FÓRUM CENTRO VIVO, 2006).
sem-teto” passaram a ocupar imóveis abandonados na área central, reivindicando que
fossem reformados ou reciclados para servirem como moradia popular.
As ações dos movimentos de sem-teto não passaram incólumes. Isso porque,
apesar do centro de São Paulo ter perdido para outras regiões o posto de eixo mais
dinâmico da cidade, ele continua intensamente ocupado, além de ser importante ponto
de compras, de lazer e de passagem de milhões de pessoas diariamente. Mais do que
isso, é fato que a elite deixou de habitar aquela região; contudo o “abandono” nunca foi
total, especialmente pelo valor simbólico e histórico que o centro possui, impossível de
se forjar em outras localidades da cidade.
Exemplo disso pode ser visto na fundação, em 1991, da Associação Viva o
Centro, que reúne o capital financeiro, grandes empresas e escritórios de advocacia,
lojas comerciais, proprietários de imóveis, etc., além de uma série de técnicos que
formalizam em pesquisas, documentos e projetos de intervenção na área central as
ideologias das entidades reunidas nesta Associação. A Viva o Centro passou a ocupar
um papel de destaque como interlocutora entre as entidades privadas e o poder público
em discussões sobre os rumos das intervenções naquela região, com o forte discurso de
disciplinar os seus usos, assegurar sua limpeza, segurança, iluminação e acessibilidade,
combater o comércio informal, assim como de trabalhar pela requalificação e zeladoria
dos espaços públicos.
Por outro lado, em 2000, surgiu o Fórum Centro Vivo, reunindo movimentos
sociais, vendedores ambulantes, organizações não-governamentais, entidades estudantis,
de direitos humanos, de cultura e de arte, coletivos de mídia independente, dentre
outros. Em declarada oposição à Associação Viva o Centro, o Fórum Centro Vivo
passou a denunciar as políticas que, segundo seus integrantes, fazem daquela região o
local “da repressão, da expulsão, da exclusão e da limpeza social” (FÓRUM CENTRO
VIVO, 2004, p. 2).
O fato é que o tema da “requalificação” urbana da área central intensificou-se,
conferindo grande visibilidade para as ações ali realizadas e explicitando o caráter do
centro de São Paulo como um lugar de conflito entre diferentes classes (FRÚGOLI,
2006, p. 68) que disputam seus significados e rumos. Os moradores de cortiços que,
juntamente com outros agentes, passaram a se organizar em torno dos conhecidos
movimentos de sem-teto fazem parte dessa disputa.
E é ao estudo empírico destes grupos que o presente trabalho reporta-se para
refletir sobre experiências contemporâneas de mobilização social e suas formas
específicas de expressão na cidade. Inicialmente, localiza-se brevemente a reivindicação
do direito à habitação digna na área central da capital paulista por movimentos
populares. Em seguida, são discutidos alguns aspectos do registro das ações dos
movimentos de sem-teto pela imprensa; aqui, retoma-se o conceito de política do
filósofo Jacques Rancière, para questionar discursos em voga que associam os conflitos
e manifestações de dissenso à desordem social.
Os movimentos de sem-teto e a luta pelo direito à moradia no centro da cidade de
São Paulo
Antes de prosseguir, cabem algumas considerações sobre a reivindicação do
direito à moradia na área central da cidade de São Paulo.
Em 1987, a União dos Movimentos de Moradia foi fundada com o objetivo de
organizar os diversos e dispersos movimentos que reivindicavam moradia nas periferias
da capital paulista e que vinham, havia alguns anos, mobilizando milhares de pessoas
em ocupações de terras (AMARAL, 2002, p. 108). Contudo, se se falava tanto nos
movimentos de moradia e nos mutirões da periferia, até o início da década de 1990 a
mobilização dos habitantes de cortiços tinha pouca visibilidade e era considerada
incipiente e desarticulada.
Esta forma de luta [dos moradores de cortiços] é uma das mais desorganizadas,
apesar de ser um dos lados mais espoliativos da questão da moradia popular.
Parcela mínima deste contingente está organizada junto com os moradores das
favelas, no Movimento Unificado [de Favelas]. Outra parcela, expressiva,
engrossa as ocupações de terra. A organização autônoma quase não existe, com
algumas exceções, de cortiços em áreas centrais, assistidos por comunidades
religiosas, um tanto quanto tradicionais em suas práticas. O exemplo recente do
despejo dos moradores dos cortiços da rua da Assembléia, na Bela Vista, região
central de São Paulo, demonstra a inexistência de organização, pela facilidade
com que o poder público expulsou os moradores da região (GOHN, 1991: 66).
Esse cenário descrito por Maria da Glória Gohn no livro Movimentos sociais e a
luta pela moradia, publicado em 1991, não se assemelha em nada com o que a cidade
presenciaria apenas alguns anos depois, quando os movimentos que reivindicam
moradia digna na área central, compostos, sobretudo, por moradores de cortiços,
chegaram a reunir mais de seis mil pessoas em uma única noite na ocupação de vários
imóveis ociosos (cf. OLIVEIRA, 26 out. 1999).
Até existem registros anteriores sobre pequenas mobilizações de moradores de
cortiços organizados que contestavam as taxas de água e luz e reivindicavam o fim dos
intermediários (entre os proprietários de imóveis e os locatários) e melhores condições
de habitabilidade, mas ainda eram muito dispersas e pouco visíveis (SIMÕES JR., 1991,
pp. 33-35). Mas, em 1991, foi fundada a Unificação das Lutas de Cortiços, primeiro
movimento popular da cidade de São Paulo em torno da questão dos cortiços.
É possível que date deste período um deslocamento nas reivindicações dos
moradores de cortiços, que passaram a reclamar o direito de acesso à propriedade de
terra na área central. Isso não é irrelevante se se levar em conta que São Paulo
caracteriza-se pela concentração sócio-espacial de investimentos, infra-estrutura, capital
social e simbólico em determinadas regiões, confirmando uma ordem urbana que
estabelece possibilidades (díspares) de acesso aos bens, serviços e espaços da cidade, e,
no limite, define quem é e quem não é cidadão. Além disso, a questão habitacional
configura-se como um problema social histórico no Brasil e as políticas habitacionais
direcionadas para a população de baixa renda, além de não incluírem a problemática dos
cortiços (PICCINI, 1997), basearam-se prioritariamente na produção de moradias novas
em grandes conjuntos localizados em glebas periféricas desprovidas de infra-estrutura e
empregos. Pode-se, nesse sentido, questionar o próprio acesso à ordem urbana
possibilitado pela produção habitacional nesses limites da cidade e sugerir um
deslocamento operado pelos movimentos de sem-teto ao reivindicarem o direito à
moradia em uma área consolidada.
Por fim, a organização de movimentos de sem-teto que passaram a reivindicar
políticas habitacionais no centro da cidade coincide com o desenvolvimento de
inúmeras propostas e de intervenções do poder público e de entidades privadas na
tentativa de “requalificar” aquela região. Note-se que a idéia de realizar intervenções
nos centros históricos, após a constatação do agravamento de processos de
esvaziamento populacional e de degradação, não é exclusiva do cenário paulistano, mas
vem sendo identificada, já há algumas décadas, em várias cidades do mundo. Segundo
Otília Arantes (2000, pp. 14-15), não raro estas intervenções, nomeadas por eufemismos
variados – “revitalização”, “requalificação”, “revalorização” – designam nada mais do
que os tão conhecidos processos de gentrification, desencadeados pela tentativa de
“reconquista” do coração das cidades pelas camadas dominantes. “Requalificados”,
revalorizados imobiliarmente, geralmente estes centros tornam-se inabitáveis para os
seus antigos moradores e para a vida urbana que lhes atribuía sentido.
E, se os projetos de intervenção urbana nos centros históricos de grandes cidades
não são uma novidade específica de São Paulo, também as “ocupações” ou “invasões”
de imóveis ociosos acontecem em outras regiões metropolitanas, guardadas as devidas
especificidades de cada contexto (cf. ABBOTT, 27 jul. 2003). Em São Paulo, estas
ocupações tornaram-se comuns a partir de 1997. Realizadas, sobretudo, por grupos
organizados de “sem-teto” e envolvendo centenas e, às vezes, milhares de pessoas, tais
ações deram visibilidade para um novo ator que passou a reivindicar o direito de opinar
e interferir nos rumos das políticas para aquela região: mulheres e homens, a maioria
moradora dos cortiços espalhados pelo centro da cidade que pagava altos aluguéis para
viver em lugares insalubres.
As ocupações de imóveis ociosos pelos movimentos de sem-teto: notas sobre o
registro da imprensa
Em 1997, quando a Unificação das Lutas de Cortiços já dividia com outro
movimento, o Fórum de Cortiços e Sem-Teto, as disputas em torno da habitação na área
central, grupos organizados de sem-teto começaram a ocupar imóveis ociosos no centro
da capital paulista. Reivindicavam a abertura de canais de diálogo com o poder público,
políticas públicas habitacionais, o cumprimento da função social da cidade e da
propriedade urbana e o direito à moradia digna na região central, com todos os atributos
que esta localidade oferece.
Estas ocupações, se não conseguiram conquistar o apoio da “opinião pública”
para as bandeiras dos sem-teto, colocaram em pauta temas como as políticas de
habitação popular, as condições de vida dos habitantes de cortiços, a reabilitação da área
central e os altos índices de vacância imobiliária naquela região.
De certo modo, pode-se medir a visibilidade alcançada pelos movimentos de
sem-teto por meio da repercussão de suas ações na imprensa. A investigação, ora em
andamento (NEUHOLD, 2008), que deu origem a este artigo, levantou em um jornal de
grande circulação de São Paulo – a Folha de S.Paulo – e na sua versão eletrônica – a
Folha Online – cerca de duzentas e trinta matérias que citavam diretamente os
movimentos de sem-teto do centro, no período entre 1997 e 2007. A maioria referia-se
às manifestações realizadas por eles, com destaque para as passeatas e as ocupações de
imóveis ociosos, e aos processos de reintegração de posse. Com base nestas matérias,
foram identificadas mais de setenta ocupações de imóveis abandonados no período
delimitado, sendo que algumas delas chegaram a perdurar por vários anos. Organizaram
estas ações movimentos de sem-teto como o já citado Fórum de Cortiços e a Unificação
das Lutas de Cortiços, além do Movimento de Moradia do Centro, o Movimento de
Moradia Região Centro, o Movimento Sem-Teto do Centro, o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Teto da Região Central e o Movimento de Moradia Novo Centro,
isso sem falar na União dos Movimentos de Moradia e na Frente de Luta por Moradia,
“entidades” que reúnem diversos movimentos de moradia do Estado e da cidade de São
Paulo, respectivamente.
Algumas matérias da Folha de S.Paulo chegaram a atribuir aos movimentos o
protagonismo na própria reabilitação da área central. Em 2000, no caderno “Imóveis”,
por exemplo, uma matéria sobre o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), da
Caixa Econômica Federal, no centro de São Paulo, anunciava que, em outubro daquele
mesmo ano, a região ganharia o primeiro prédio reformado pelo programa, o qual
serviria de moradia para cinqüenta e quatro famílias de moradores de cortiços e de semteto, integrantes do Movimento de Moradia do Centro (Folha de S.Paulo, 02 jul. 2000).
Outros dois projetos teriam obras iniciadas ainda em 2000. Segundo a Folha de S.Paulo
(02 jul. 2000), “com o PAR e outras iniciativas, a região central pode ter o seu perfil
completamente mudado, tornando-se mais residencial”. A Caixa Econômica Federal
teria decidido investir na região depois de um imóvel seu ser ocupado pelo Movimento
de Moradia do Centro. Uma outra matéria afirmava que “os sem-teto que antes
enfrentavam a polícia em tumultuadas invasões de prédios no centro de São Paulo são
hoje os que promovem a valorização da região, ao liderar o movimento de reocupação
de prédios abandonados” (COTES; DURAN, 10 abril 2002).
Entretanto, este não foi o tom da maioria das reportagens tampouco as reações
do poder público seguiram sempre nesta chave de abertura de canais de diálogo e de
negociação. Do contrário, a utilização de violento aparato policial para conter as
manifestações dos movimentos de sem-teto tornou-se corrente, principalmente a partir
de 2000, muitas vezes desqualificando as demandas que vinham sendo construídas e
destituindo suas garantias de expressão pública e política. Para recordar Hannah Arendt
(1991 e 1999), pode-se dizer que a violência não fala e, por meio dela, manifestam-se as
formas de destruição dos indivíduos, do mundo e da constituição de comunidades
políticas livres no espaço público. Em outras palavras, reitera-se a negação aberta da
reivindicação de direitos, retirando a qualidade política dos contextos sociais de
conflito. Desse modo, quando os acordos não foram possíveis, não foram raros
violentos confrontos com a polícia, principalmente quando os sem-teto resistiram às
reintegrações de posse (cf. BRITO, 17 ago. 2005).
Mas não só a violência destitui a capacidade de organização autônoma dos
indivíduos. Também as tentativas de substituição da participação na condução dos
negócios da cidade pelo saber especializado de técnicos impedem a liberdade de ação e
de pensamento. Veja-se o caso das reivindicações dos movimentos de sem-teto. Pode-se
sugerir que eles começaram a questionar a localização das políticas habitacionais para a
população de baixa renda na periferia, a disputar publicamente a legitimidade de
morarem no centro e, em um contexto mais amplo, a exigir a possibilidade de
participação na discussão sobre os projetos de intervenção naquela região. E daí emerge
um dos motivos da escolha destes movimentos que atuam no centro como objeto de
pesquisa: essa possibilidade de se pensar a política, naqueles termos de Rancière (2000),
como estabelecimento do conflito, de colocar em discussão o que não era discutível de
antemão. Os movimentos de sem-teto passaram, pois, a duvidar do argumento,
qualificado como “técnico”, fruto da decisão dos especialistas e, portanto, não-passível
de questionamento, que justificava a localização da habitação popular na periferia,
remetendo-se ao alto custo dos terrenos na região central3.
Rancière (2000, p. 367) contribui também para pensar a atualidade política e
teórica na qual vêm predominando discursos que identificam a racionalidade política ao
consenso e o consenso ao princípio da democracia. Observe que, em 2003, as ocupações
de terra no campo e de prédios nas principais regiões metropolitanas engendradas por
movimentos populares – incluindo aí os da cidade de São Paulo –, somadas às greves do
funcionalismo público, além de diversos atos e outras manifestações por todo o país,
passaram a ser interpretadas como causas de uma instabilidade e desordem social, como
parte de uma crise generalizada pelo Brasil, de “quebra da ordem pública”4, de
“exacerbação de ânimos”5, de uma onda de “descumprimento reiterado de decisões
judiciais em flagrante afronta aos poderes constituídos”6. A Folha de S.Paulo (03 ago.
2003) chegou a promover uma enquete com personalidades para saber se o país vivia ou
não o “caos social”. E, em meio a esta “crise social”, cobrava-se do governo federal a
imposição de limites aos movimentos e “invasões” que “se alastravam” pelo país
(CATANHÊDE; CRUZ, 28 jul. 2003).
Vale a pena aqui recuperar as palavras de Marilena Chauí (03 ago. 2003) quando
convidada a responder àquela enquete sobre a suposta crise social que o Brasil vinha
enfrentando. A filósofa respondeu: “Que crise social? Quem vê crise social é a Folha de
S.Paulo”. O jornalista retrucou: “A sra. acha que não cabe falar em desordem social no
país?” Chauí: “O que existe é democracia em pleno funcionamento. É uma coisa
espantosa e certamente deixa as pessoas desorientadas porque é uma experiência inédita
3
Em entrevista à Folha de S.Paulo (10 ago. 2003), o então Secretário Estadual de Habitação, Barjas
Negri, afirmou que aquele órgão tinha uma política voltada para famílias que ganham até três salários
mínimos e que, se fizesse uma política habitacional na área central, teria que excluí-las, visto que os
preços dos terrenos nesta região são “proibitivos”, ao contrário das terras na periferia.
4
Palavras de Jarbas Vasconcelos, governador de Pernambuco (GUIBU; NORONHA, 11 ago. 2003).
5
Palavras de Geraldo Alckmin, governador de São Paulo (CATANHÊDE; CRUZ, 28 jul. 2003).
6
Manifesto Público em Defesa da Sociedade Brasileira, assinado pela Ordem dos Advogados do Brasil
de Mato Grosso do Sul e outras dezenove entidades (FOLHA ONLINE, 01 ago. 2003).
no país. Mas é a mais profunda experiência de democracia que esse país já teve”. E
completou, mais adiante: “A tragédia da história política brasileira tem sido o fato de
que toda vez que os conflitos procuram se exprimir legitimamente, imediatamente eles
recebem o nome de crise. E a palavra crise para a direita brasileira significa perigo e
desordem. É por isso que a democracia nunca vai para frente”.
É o que Rancière (2000, p. 372) chamaria de “ordem consensual”, do
esquecimento do modo de racionalidade próprio à política e que seria melhor entendido
se denominado como “polícia”, ou seja, como “o conjunto dos processos pelos quais se
operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a
gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de
legitimação dessa distribuição”. Isso lembra a própria estigmatização da palavra
política, a negação do seu sentido original: não apenas o governador de São Paulo
“acusava” os movimentos de sem-teto de serem “políticos” (CATANHÊDE; CRUZ, 28
jul. 2003), como os próprios movimentos insistentemente passaram a afirmar que a sua
luta não era política.
Considerações finais
Como se vê, os movimentos de sem-teto, por meio das ocupações organizadas
de imóveis ociosos na área central, conseguiram, em certa medida, conquistar
visibilidade, abrir canais de diálogo com o poder público, viabilizar o atendimento de
uma parcela de seus membros em modalidades de programas habitacionais e, inclusive,
participar de projetos de reabilitação e reciclagem de imóveis e de intervenções no
centro de São Paulo. Entretanto, a desqualificação do dissenso, a valorização da técnica
em detrimento do exercício de construção do julgamento público compartilhado, o uso
da violência, apoiados na degradação dos espaços públicos e na destituição da
capacidade do agir espontâneo e da participação nos negócios da cidade são aspectos
que permearam os conflitos engendrados pelos sem-teto em suas formas específicas de
expressão na cidade. O resultado vem residindo na elaboração de algumas políticas
pontuais e fragmentadas que não resistem às mudanças de governos e, pela sua própria
lógica, são incapazes de se tornarem universais.
Nesse contexto, as experiências dos movimentos de sem-teto talvez possam
contribuir para a discussão sobre a cidade como lugar da civilidade, da política e do
mundo comum, ou dos seus contrários – as cidades como a impossibilidade da
realização da modernidade, como lugar da incivilidade, das dimensões privatizantes.
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Os movimentos de sem-teto e a luta pelo direito à moradia na área