UM NOVO EDUCADOR PARA UMA NOVA RELAÇÃO PROFESSORALUNOS NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA João Luiz Gasparin, UEM, [email protected]. Robson Borges Maia, CESUMAR, [email protected] Introdução Este trabalho foi elaborado com base nos resultados da pesquisa sobre os fundamentos da relação professor-alunos na escola contemporânea 1 . Um dos objetivos desta pesquisa foi compreender a nova ordem social como determinante/condicionante das novas configurações familiares. O trabalho consistiu em pesquisar e analisar os desafios que essa realidade social impõe aos educadores, exigindo deles uma prática docente que as agências formadoras não estão mais preparadas para oferecer. Para conhecermos esse fenômeno formulamos o seguinte problema de investigação: como as relações estabelecidas na atualidade entre a família e a escola influenciam ou determinam a relação professor-alunos exigindo dos educadores o desempenho de novos papéis? O presente trabalho, de caráter teórico, foi realizado numa perspectiva sóciohistórica, a partir da teoria de Vygotsky. Para esse autor, uma pesquisa deve explicar a concretude do fenômeno estudado, sem perder a riqueza da descrição. Significa dizer que, na análise das fontes, levou-se em consideração a dialogicidade e a historicidade das transformações sociais (Freitas, 2002). A opção por este método respalda-se também no fato dele oferecer a possibilidade de compreender os fenômenos da realidade em uma atmosfera abrangente, mutável e, conseqüentemente, passível de transformação (Japiassu, 1981; Saviani, 2005). Por esta abordagem, os fenômenos são compreendidos a partir de seu acontecer histórico, onde o particular é considerado uma parte da totalidade social. Assim, a pesquisa é vista como uma relação entre os sujeitos considerados em sua historicidade, seres marcados por uma cultura como criadores de idéias e consciência e que, ao 1 Trata-se da Dissertação de Mestrado “Os fundamentos da relação professor-alunos na educação escolar contemporânea”, defendida pelo primeiro autor sob a orientação do segundo, no Programa de PósGraduação em Educação da UEM, Universidade Estadual de Maringá-PR, em 23 de março de 2007. 2 produzirem e reproduzirem a realidade social são, ao mesmo tempo, produzidos e reproduzidos por ela (Freitas, 2002). A partir deste estudo, identificamos algumas conseqüências da atual relação família-escola no processo de socialização secundária das novas gerações. Essas conseqüências serão discutidas ao longo do trabalho. Antes, porém, julgamos indispensável analisar e discutir alguns conceitos e fenômenos imprescindíveis para a compreensão do nosso objeto de pesquisa. A relação Família e Escola ontem e hoje Vivemos tempos delicados e complexos quando tratamos de relações sociais. Mais do que nunca, na atualidade, os relacionamentos se constituem no aspecto mais decisivo para o êxito ou o fracasso de qualquer atividade humana. O acelerado desenvolvimento tecnológico e científico das últimas décadas trouxe vários benefícios e facilidades para a vida em sociedade. No entanto, esse avanço provocou profundas transformações nas relações que estabelecemos com os nossos semelhantes. Se adotarmos como parâmetro de análise a vida na sociedade agrária, na qual cada família se constituía em um núcleo básico de subsistência, podemos afirmar que na atualidade o individualismo cresce na mesma proporção da dependência entre as pessoas. Somos, paradoxalmente, individualistas e, ao mesmo tempo, dependentes uns dos outros. Interagimos com mais freqüência e intensidade; estamos mais expostos a diferentes referenciais e modos de vida; sentimos muito mais dificuldades para realizar nossas escolhas, e os parâmetros de felicidade impostos pela sociedade tornam-se cada vez mais inatingíveis. Paralelamente, surgem as novas formas de relacionamentos virtuais, onde o sujeito pode ser o que a sua imaginação permitir e manter relações com aquilo que conseguir imaginar. Segundo Ackerman (1986, p. 17), o momento histórico em que nos encontramos, tem alterado a configuração da vida familiar e tem abalado os padrões estabelecidos de Indivíduo, Família e Sociedade. [...] Seres humanos e relações humanas foram lançados em um estado de turbulência, enquanto a máquina cresce muito, à frente da sabedoria do homem sobre si mesmo. A redução do espaço e a intimidade forçada entre as pessoas vivendo em culturas em conflito, exigem um 3 novo entendimento, uma nova visão das relações do homem com o homem e do homem com a sociedade. Sabemos que o homem só se faz em relação com um outro social, numa construção que se dá nas relações cotidianas, em um determinado tempo histórico e um delimitado espaço físico. Como diz Freitas (2003, p. 148): “é uma construção psicossocial compartilhada que vai fornecendo referências para a vida e para as relações com o mundo”. Diversos estudos (Tedesco, 2002; Teixeira, 1975; Esteve, 2004) revelam que até a primeira metade do século XX, a família e a escola desempenhavam papéis bem definidos socialmente. Essa distinção de funções facilitava o trabalho de socialização desempenhado por ambas as instituições. A família se ocupava com as relações sociais primárias, com características marcadamente coloquiais, pessoais, com um forte apelo à afetividade e à intimidade entre pais e filhos, com vistas à transmissão de valores. A escola, por seu turno, era a responsável pelas relações sociais secundárias, que se caracterizavam pela formalidade, pela racionalidade e pela impessoalidade na relação que professor e alunos estabeleciam com fins pedagógicos. Na escola, predominava o compromisso com a transmissão do legado cultural acumulado pela humanidade ao longo da história (Berger & Luckmann, 1973). O mesmo não podemos dizer da relação família-escola na atualidade. Como todas as instituições de nossa sociedade, a escola e a família estão passando por transformações tão profundas que se torna cada vez mais difícil identificarmos os papéis e as responsabilidades específicas de cada uma delas. Essas transformações tiveram seu início na segunda metade do século XX, e a partir da década de 1980, as nossas instituições passaram a experimentar uma sensação de desorientação imposta pela velocidade das mudanças na nossa organização social e nas relações sociais dela advindas. No interior de nossa própria cultura, sem sair de nossa própria cidade nem de nosso próprio bairro, um belo dia observamos nosso ambiente e nos damos conta de que tudo mudou tanto que mal somos capazes de saber como as coisas funcionam. Sentimo-nos, então, desorientados, tão desorientados como se tivéssemos viajado para uma sociedade estranha e distante, mas sem esperança de voltar a recuperar aquele ambiente conhecido no qual sabíamos nos arranjar sem problemas (Esteve, 2004, p. 24). 4 Dados estatísticos publicados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística [IBGE] (2010) confirmam as mudanças provocadas pela nova ordem social na família brasileira. Segundo o IBGE (2010, p. 99): As mudanças verificadas nos países industrializados quanto ao padrão de organização das famílias vêm se refletindo também no Brasil. Nas últimas décadas, as tendências mais proeminentes são, sem dúvida: as reduções do tamanho da família e do número de casais com filhos, e o crescimento do tipo de família formado por casais sem filhos, resultados dos processos de declínio da fecundidade e do aumento da esperança de vida ao nascer. Dentre as inúmeras mudanças na composição e no funcionamento da família, provocadas pela nova ordem social nas últimas décadas, podemos destacar também a incorporação da mulher no mercado de trabalho e as configurações familiares na qual os filhos vivem com apenas um dos pais, com parentes ou até mesmo sozinhos em novas formas de aglomerados humanos, revelados pelos dados do IBGE (2010, p. 98): Os padrões de formação, dissolução e reconstituição da família tornam-se cada vez mais heterogêneos e seus limites mais ambíguos. Segundo os estudiosos da UNECE (United Nations Economic Commission for Europe), o casamento tornou-se menos central na conformação da vida das pessoas, diferentemente do que ocorria em um passado recente, por vezes caracterizado pelo preconceito em relação às pessoas que não se casavam. As uniões consensuais aumentaram e, em alguns países, já existe o reconhecimento legal dos casais homossexuais. Os aumentos das separações conjugais e dos divórcios levaram à formação de novos arranjos familiares. Quando os indivíduos separados ou divorciados iniciam uma nova união, formam um novo arranjo denominado “famílias reconstituídas”, especialmente no caso da presença de crianças. Essas mudanças não se deram ao acaso e trouxeram duras conseqüências para uma sociedade habituada ao padrão convencional da família mononuclear (composta por pai, mãe e filhos). Uma das conseqüências mais prejudiciais à ordem social advindas das novas configurações familiares foi a diminuição do tempo real que os adultos passam com os filhos, tempo que atualmente é ocupado por outras instituições (creches, escolas, instituições beneficentes, clubes, ONGs) ou pela exposição prolongada aos meios de comunicação, especialmente a televisão e a internet. Os meios de comunicação, convertidos em novos e poderosos agentes de socialização, passaram a concorrer com a família na tarefa de oferecer às novas gerações modelos de identificação e quadros de referência, visto que se tornaram importantes fontes de transmissão de informação e cultura. 5 O problema é que os meios de comunicação não foram criados como instituição responsável pela formação moral e cultural das pessoas, e não obstante vem desempenhando essa função com uma força e uma penetração social nunca antes vista na história dos homens (Tedesco, 2002). Um dos efeitos imediatos desta concorrência imposta por esses novos “agentes de socialização” foi o sensível enfraquecimento da capacidade socializadora da família. Ao se reconhecer enfraquecida naquilo que tinha de mais específico, qual seja, a socialização primária de seus filhos, a família buscou amparo na escola, exigindo que esta assumisse a responsabilidade por alguns aspectos da formação humana considerados até então como de responsabilidade exclusiva da família. A escola, por seu turno, não acompanhou o ritmo das transformações sociais que deram origem às novas configurações familiares. Com isso, ela não se mostrou em condições de assumir as funções que durante os últimos séculos fora de responsabilidade exclusiva da família. Nessa nova realidade social, duas das mais importantes agências socializadoras foram profundamente transformadas, uma por acompanhar as imposições dos novos modos de produção capitalista e a outra por não ter a mesma capacidade de mudança. Quando afirmamos que a escola não teve a mesma capacidade da família para se adequar à nova ordem social, utilizamos como critério de análise as razões que fizeram da escola a instituição social com a maior responsabilidade pela socialização das novas gerações, atrás em importância apenas da família. A escola pública, segundo Alves (2001), surgiu no século XIX em resposta à construção de uma sociedade democrática. A educação escolar tinha a função de atender as demandas da sociedade que surgia. É por essa razão que a escola, instituição responsável pela socialização ao lado da família, teve importância capital na consolidação da sociedade democrática. A escola pública obrigatória foi projetada e expandiu-se como instituição que concorria e ocupava espaços que tradicionalmente pertenciam à família e à igreja. A escola pública representava os valores e os saberes universais, aspectos que se colocavam acima das normas culturais particulares dos diferentes grupos que compõem a sociedade. Tedesco (2002) sustenta que a confiança depositada pela sociedade na educação escolar foi um elemento fundamental do êxito na construção das democracias durante os dois últimos séculos. 6 Esteve (1999) assinala que a escola e as demais instituições responsáveis pela socialização das crianças coincidiam nos valores fundamentais e nos modelos que deveriam ser transmitidos, o que produzia uma socialização fortemente convergente. A escola era uma extensão da família no que dizia respeito à socialização e estilos de vida. A criança passava de uma instituição (família) à outra (escola) e era, assim, formada nos aspectos que mais fortaleciam a coesão social. A sociedade, satisfeita com o trabalho de socialização realizado pela escola, garantia o reconhecimento pessoal e o prestígio do professor, já que este, em sua prática pedagógica, mantinha-se dentro dos valores claramente definidos e aceitos socialmente. No entanto, ao longo do século XX, mais precisamente a partir da sua segunda metade, diversos conceitos relacionados à formação do cidadão foram revistos. O mercado, sem o peso e o controle da democracia e da nação, revelou-se incapaz de gerar uma nova proposta educacional. A idéia de cidadania associada à nação começou a perder significado. Desta feita, a função de homogeneização cultural da nação, que durante o último século foi aclamada como a função que melhor identificava a instituição escolar, entrou num processo de redefinição (Tedesco, 2002). Uma das conseqüências dessa revisão de significados foi a perda da capacidade socializadora das instituições historicamente responsáveis por essa função, quais sejam, a escola e a família. Para Tedesco (2002), um dos problemas mais sérios enfrentados pela sociedade atual é o que podemos definir como déficit de socialização. Vivemos um momento em que a família e a escola estão perdendo a capacidade de transmitir com eficácia valores e normas culturais de coesão social. Esteve (1999) sustenta que a família renunciou às responsabilidades que anteriormente desempenhava no âmbito educativo e passou a exigir da escola que ajudasse a ocupar o vazio que nem sempre tinha capacidade de preencher. Deste modo, na atualidade, as crianças chegam à escola e desenvolvem sua escolaridade sem o apoio familiar tradicional. Essa erosão do apoio familiar não se expressa só na falta de tempo para ajudar as crianças nos trabalhos escolares ou para acompanhar sua trajetória escolar. Num sentido mais geral e mais profundo, produziu-se uma nova dissolução entre família e escola, pela qual as crianças chegam à escola com um núcleo básico de desenvolvimento da personalidade caracterizado seja pela debilidade dos quadros de referência, seja por quadros de referência que diferem dos que a escola supõe e para os quais se preparou (Tedesco, 2002, p.36). 7 Seguindo o raciocínio do autor, podemos afirmar que as crianças chegam à escola com um núcleo básico de socialização insuficiente para encarar com êxito a tarefa de aprender. Mesmo nos casos em que a família consegue desenvolver satisfatoriamente o seu papel no processo de socialização primária, cria quadros de referências diferentes daqueles que a escola supõe como ideal ou que se encontra preparada para desenvolver. Como bem diz Tedesco (2002, p. 37), “entre a família de hoje e a do final do século passado há uma distância enorme, enquanto entre a escola de hoje e a escola do final do século passado as mudanças são muito menos significativas.” Essa realidade nos autoriza a afirmar que, quando a família socializava, a escola se ocupava em ensinar. O problema é que, na atualidade, a escola insiste em ensinar a quem não desenvolveu a capacidade social para a aprendizagem. Assim, nem a família educa e nem a escola ensina, deixando ambas de cumprir satisfatoriamente as suas funções primordiais. Estudos realizados por Tedesco (2002), Cunha (1999), Esteve (1999, 2004), Castro (2003), Libâneo (2004), dentre outros, destacam os principais fatores considerados responsáveis pela relativa perda da capacidade socializadora da família e da escola, a saber: 1. a massificação do modelo escolar; 2. A perda de prestígio dos docentes; 3. A rigidez dos sistemas educacionais; 4. O advento dos meios de comunicação de massa; 5. o avanço do conhecimento científico. Vale frisar que os fatores mencionados, no nosso entendimento, refletem as transformações ocorridas nos modos de produção na última metade do século XX. A cada época corresponde uma forma de organização e funcionamento. Disso resulta que as instituições que representam o conjunto de idéias de uma determinada sociedade são compatíveis com a fase do desenvolvimento atingido por essa sociedade. Igreja, justiça, família, escola, dentre outras instituições, existem para atender os indivíduos que compõem uma determinada sociedade num determinado momento histórico. À medida que essa sociedade se transforma, todas essas instituições se esforçam para acompanhar essas transformações que, invariavelmente, se originam na superação dos modos de produção vigentes. No caso em tela, a revolução provocada pelos modos de produção flexível foi decisiva para o processo de desmantelamento da família nuclear tradicional, composta por pai, mãe e filhos, dificultando a tarefa de colocar em compartimentos estanques os papéis sociais da família e os papéis sociais da escola. 8 Na atualidade, portanto, nos encontramos diante desse déficit de socialização vivenciado por duas das mais importantes agências socializadoras. Tal fato histórico é apontado como um dos responsáveis pelas profundas mudanças observadas nas relações educacionais nas últimas décadas. É o que Freitas (2003, p. 144) sustenta no seguinte excerto: Na prática concreta, expressada nas relações educacionais, verificouse que, [...] a escola passou a ter [...] a função de se constituir em uma espécie de prolongamento dos cuidados da família, de proteger os mais fracos e desvalidos, de ocupar o tempo ocioso das ruas, de atender as necessidades básicas (através da alimentação, das merendas, bolsa-família), e, eventualmente, a de provedora de conhecimentos e formação profissional. Com isto pode-se dizer que alguns aspectos cruciais na relação educacional e docente mudaram. A escola passou a atender com maior intensidade o cuidado das dimensões afetivas, emotivas e ideológicas do indivíduo em formação, enquanto a família, pela influência dos meios audiovisuais, tornou-se plataforma de aprendizagem de informações instrumentais, científicas e culturais, fato que, de certo modo, vem dificultando o processo de transmissão dos saberes escolares. Diante dessa questão, destacamos duas correntes de pensamento que discutem as finalidades da educação escolar e os rumos que ela deve seguir. Uma entende a escola como uma instituição total (Araújo, 2002; Tedesco, 2002; Alves, 2001; Carvalho, 1999; Rodrigues, 2001), responsável pela instrução e pela formação da personalidade. A outra, no entanto, insiste na especificidade do ensino (Saviani, 2005; Kuenzer, 2002; Rego, 1996; Aquino, 2002) e alerta para o risco de transformarmos a escola em agência de assistência social, destinada tão somente a atenuar as contradições da sociedade capitalista em que vivemos. As citações a seguir aparecem como contraponto dessas duas vertentes. Rego (1996, p. 99) argumenta que o papel da escola: não é o de compensar carências (culturais, afetivas, sociais etc.) do aluno e sim o de oferecer a oportunidade de ele ter acesso a informações e experiências novas e desafiadoras (que incidem na sua zona de desenvolvimento proximal), capazes de provocar transformações e de desencadear novos processos de desenvolvimento e comportamento. Alves (2001, p. 279), no entanto, contesta: Alimentação escolar, tratamento médico-odontológico, atividades desportivas e culturais fora do currículo, o lazer, o cuidado exercido sobre a criança enquanto os pais trabalham, são concebidos como 9 funções que descaracterizam a escola e, até mesmo, como uma injustificada concessão da instituição ao assistencialismo. Esse julgamento é incorreto. Essas novas funções não são expressão da sem-razão. Elas são novas, simplesmente, e não há qualquer outra instituição que possa exercê-las melhor do que escola. O novo tempo e as suas demandas têm atribuído ao estabelecimento de ensino essas novas funções. Mesmo não as tendo exercido no passado, a escola deve exercê-las no presente, pois a sociedade em movimento as impõe. Não tem sentido contrapô-las à função especificamente pedagógica, pois não são excludentes ou inconciliáveis. A escola deve exercê-las todas e bem, na medida das possibilidades colocadas pelos seus recursos. Esse debate, por certo, não terminará tão cedo. É necessário que nas próximas décadas os estudiosos da educação continuem a refletir sobre o processo de institucionalização do modelo escolar e o legítimo papel da escola na sociedade. É função das ciências sociais buscarem respostas para os fenômenos que surgem nas relações sociais. No entanto, entendemos que uma instituição só existe em função das demandas sociais e, como vimos no decorrer deste trabalho, a família exige da escola não somente a transmissão do conhecimento historicamente acumulado, mas a formação da personalidade das futuras gerações, a construção de valores universais, a moldura do caráter, a aquisição dos hábitos de higiene, dentre outras exigências. A relação professor-alunos na escola contemporânea No meio desse fogo cruzado entre as demandas das famílias e a preocupação da escola com a transmissão do conhecimento encontra-se o educador, cada vez mais exigido e cada vez menos reconhecido, a não ser em campanhas publicitárias que enaltecem o seu papel social, mas que não mudam em nada a sua dura realidade de trabalho. De fato, quando a família começou a transferir suas responsabilidades primordiais à escola, a relação professor-alunos passou a ocorrer sob outras bases, exigindo dos professores um envolvimento com os alunos que não mais se restringe à transmissão do conhecimento. Acreditamos que essa seja a principal razão para o fato da relação professor-alunos ter-se transformado numa das relações mais complexas e desafiadoras do processo pedagógico, uma vez que se espera do professor uma prática docente compensatória. 10 Essa expectativa social que recai sobre o educador traz uma série de conseqüências indesejáveis à relação professor-alunos na escola contemporânea, dentre a quais destacamos: a perda do significado do conteúdo escolar, o desinteresse dos alunos pela escola, o declínio da autoridade docente e o conseqüente esgotamento emocional desses profissionais, revelado por índices alarmantes de licença médica por transtornos mentais. Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo (2010), um levantamento realizado pelo Departamento de Saúde do Servidor (DSS) da Secretaria Municipal de Gestão e Desburocratização do Município de São Paulo, revelou que os transtornos mentais e comportamentais foram as principais causas de afastamento por doença dos professores da rede municipal de São Paulo no ano de 2009. Foram quase cinco mil afastamentos para uma categoria com 55 mil profissionais, o que equivale a quase 10% dos trabalhadores. A referida matéria apontou também o crescimento de problemas psiquiátricos entre os professores. Em 1999, esses transtornos eram responsáveis por cerca de 16% dos afastamentos. Dez anos depois, a porcentagem subiu para 30% de um universo aproximado de 16 mil afastados. Comentando essa reportagem, o psicólogo Roberto Heloani, professor titular da Unicamp e da Fundação Getúlio Vargas, especialista em saúde nas relações de trabalho, fez as seguintes observações: As famílias, que deveriam fazer o papel de educar suas crianças, cobram isso do professor. Por outro lado, os alunos querem um professor que também seja um animador em sala de aula e, quando se sentem frustrados, passam a agredi-lo. (...) Com todos esses afastamentos, quem substituiu esses profissionais? O ensino fica comprometido. Heloani ainda cita alguns estudos que apontam que um professor de ensino fundamental fica, em média, seis anos na profissão até encontrar outra ocupação. Tais estudos revelam uma triste realidade: a carreira docente, que durante muito tempo foi um objetivo de vida para muitos profissionais, transformou-se em um “bico”, um trampolim para outras profissões mais rentáveis e menos exigentes. Não faltam notícias para ilustrar o drama vivido pelos profissionais da educação. O jornal Folha de São Paulo (2010) indica que, do dia 01 de janeiro até o dia 21 de maio de 2010, 194 docentes (mais de um por dia) da rede paulista foram readaptados. 11 Significa que, a cada dia, pelo menos um professor se afasta dos trabalhos em sala de aula por dois anos. As razões para tanto adoecimento são conhecidas por todos os estudiosos do tema e estão intimamente ligadas à relação professor-alunos. Não por acaso, essa relação é facilmente associada à indisciplina, violência, desrespeito, desinteresse, desobediência, desconfiança, desmotivação, dentre tantas outras características depreciativas. Rudá Ricci, sociólogo que faz pesquisas com educadores de redes públicas de todo o país, fez os seguintes comentários à referida matéria (Folha de São Paulo, 2010), destacando as razões para esse fenômeno: A primeira razão é a concepção da escola, que requer para as aulas estudantes quietos e enfileirados. Isso não existe mais. Esta geração é muito ativa. O professor se vê frustrado dia a dia por não conseguir a atenção deles. A outra razão são as condições de trabalho. Em geral, os professores dão aulas em classes com mais de 35 alunos, possuem muitas turmas e poucos recursos (não há, por exemplo, microfone). Notícia publicada no site Portal Educação (2008) revela que, de acordo com levantamento feito pelo Núcleo Regional de Educação de Campo Mourão-PR, onde trabalham cerca de 1.600 professores, só no mês de setembro de 2008, cerca de 60 professores da rede pública estadual de Campo Mourão se licenciaram para tratamento de saúde. De janeiro a julho de 2008, 266 professores se afastaram das salas de aula, a maioria vítimas de doenças psicossomáticas, ligadas ao estresse, número que equivale a mais de 15% do total dos professores deste Núcleo. Para o chefe do Núcleo, as principais causas dessa elevada quantidade de licenças médicas são as salas de aula lotadas, o número excessivo de aulas por professor e principalmente a indisciplina dos alunos, que resulta da falta de maior comprometimento da família. “Tem pai que vai na escola matricular o filho e só volta no fim do ano para reclamar porque o filho não passou. Ou então quando o filho sofre algum tipo de punição aí ele vai na escola e sabe muito bem reclamar seus direitos” (Portal Educação, 2008). O mais intrigante disso tudo são as saídas apontadas pelo chefe do Núcleo para tentar conter o alto índice de licenças médicas: A Secretaria Estadual de Educação estuda premiar o professor por assiduidade. Outra medida mais drástica seria fazer com que o tempo de afastamento por licença seja cumprido no fim da carreira do professor. Sabemos que ele tem direito a licença médica, mas não 12 podemos esquecer o direito do aluno, que não pode ser prejudicado (Portal Educação, 2008) Diante do quadro apresentado podemos pensar em duas situações: a primeira é que uma considerável parcela dos responsáveis pela educação escolar em nosso país não sabem como enfrentar as causas das dificuldades que se manifestam na relação professor-aluno no processo de ensino e aprendizagem, tais como os elevados índices de licenças médicas. A segunda, e infelizmente a mais plausível, é que os nossos governantes não estão dispostos a resolver esse problema. De fato, professores e alunos estão entregues à própria sorte, perdidos no interior de uma instituição que vem perdendo gradativamente o brilho, que outrora tinha, de instituição salvadora, incontestável em suas práticas educacionais. Uma charge que circula na internet, de autoria do cartunista francês Chaunu (2009), veiculada pelo jornal francês Oueste-France, resume com maestria as mudanças ocorridas na relação professor-aluno nas últimas quadro décadas. No primeiro quadro, que se passa no ano de 1969, aparece uma professora sentada em sua mesa de trabalho, elegante e altiva, tendo do lado oposto um aluno acuada por seus pais que estão com o seu boletim nas mãos e que o questionam diretamente sobre o seu péssimo desempenho escolar: “Que notas são estas?”. No quadro seguinte, que se passa no ano de 2009, vemos uma professora sentada em sua mesa, apreensiva e indefesa, tendo do lado oposto um aluno sorridente e confiante ao lado de seus pais que, com o boletim do filho nas mãos, interrogam rispidamente a professora: “Que notas são estas?”. Duas imagens que escancaram o jogo de empurra que tem caracterizado a relação professor-aluno nas últimas décadas. Como se não bastasse, no dia 07 de abril de 2011, a escola brasileira sofreu o seu mais profundo golpe, quando um sujeito invadiu uma escola pública no subúrbio do Rio de Janeiro armado com dois revólveres e disparou contra os alunos presentes, matando doze deles, com idade entre 12 e 14 anos, e ferindo vários outros. O incidente deixou a nação estarrecida. A escola, até então, era a instituição mais segura para as famílias confiarem a guarda dos filhos, enquanto lutam pela sobrevivência no mercado de trabalho. A partir desse episódio passou a ser questionada até mesmo em relação a essa função social. 13 Conclusão O que vivemos em nossa atual realidade educacional é, na verdade, uma crise paradigmática, onde os diversos modelos teóricos que nos forneciam distintas visões da educação escolar se cruzam e se chocam, dificultando e até mesmo inviabilizando o trabalho docente. Exatamente na medida em que não mais podemos identificar um paradigma dominante em nosso contexto de pensamento – referência básica para nossos projetos científicos, políticos, éticos, pedagógicos e mesmo estéticos – é que nos caracterizamos como vivendo uma crise de paradigmas, e até mesmo uma crise da própria necessidade e possibilidade de um paradigma hegemônico (Marcondes, 1996, p. 28, grifo nosso). Os períodos de crise são, no entanto, extremamente férteis, eis que abrem novas possibilidades ao pensamento e novas formas de enfrentamento da realidade (Marcondes,1996). Neste sentido, eles proporcionam a invenção de alternativas aos modos de pensar anteriores, a partir das quais podemos transformar a atual realidade da educação escolar e das relações estabelecidas no interior da escola com vistas à transmissão do conhecimento. Inegavelmente, família e escola são instituições em crise que gravitam em torno de um mesmo centro, o educando, esse ser que nasce na segurança do lar, mas que para se tornar um ser autônomo deve deixá-lo. A nosso ver, apesar de tudo, ainda não há em nossa sociedade uma relação mais apropriada para essa ruptura do que a relação presencial e ativa que professores e alunos estabelecem com fins pedagógicos e que só a escola pode oferecer. Temos consciência de que a instituição família dificilmente recuperará a capacidade de socializar que possuía até meados do século XX. A realidade social demanda novas formas de socialização, onde a família não mais possui a importância de outrora na formação dos sujeitos. Por outro lado, essa questão não será resolvida, simplesmente, transferindo mais essa responsabilidade para a escola e para o professor, sem que seja realizada uma profunda e efetiva transformação em todas as dimensões da educação escolar, do currículo ao corpo docente, passando pelas relações pedagógicas, infra-estrutura, métodos de ensino e avaliação, formação, capacitação e valorização dos docentes, dentre outras. 14 Mais que superar obstáculos para transformar a relação professor-alunos numa relação construtora de subjetividades autônomas, o desafio atual é o de quebrar paradigmas. A cultura do “facilismo”, a expansão cada vez mais acelerada das indústrias do entretenimento e do lazer, os meios de comunicação de massa, com a sua peculiar forma irresistível e acrítica de “educar”, a perda do significado do conteúdo escolar, o desinteresse dos alunos pela escola e a indisciplina daí decorrente, a perda de prestígio do professor, a sobrecarga de trabalho docente, a remuneração incompatível com as responsabilidades pedagógicas são alguns dos males que precisam ser combatidos no desafio de quebrar paradigmas. É dever de todos nós a reflexão e o posicionamento para o enfrentamento eficaz dos problemas da educação escolar contemporânea. O discurso sobre as mazelas da educação brasileira é o mesmo a mais de meio século e de concreto pouco avançamos na construção de uma escola capaz de atender as necessidades educacionais das famílias brasileiras. Como adverte Cunha (2000, p. 466), “se a escola não for o espaço de preparação das novas gerações, as crianças e os jovens serão educados nos inúmeros desvãos do mundo globalizado, que distribui a todos, igualmente, as sobras do banquete das grandes nações”. A nossa sociedade, apesar de tudo, ainda confia na escola e no professor. Há uma grande esperança social de que a escola assuma de vez o papel de uma instituição total, de modo a tornar-se um espaço apto a atender satisfatoriamente as necessidades de desenvolvimento integral das futuras gerações, pois a única instituição que ainda mantém uma presença universal na sociedade, e para a qual se dirigem todas as novas gerações, desde seu nascimento, é a escola. Dentro dessa instituição total necessitaremos de um novo educador, que por certo não surgirá das inúmeras campanhas publicitárias veiculadas na atualidade que leviana e cinicamente mostram a importância do professor para a sociedade. Um profissional da educação formado para atender essas novas demandas sociais só existirá quando a educação escolar se tornar, de fato e de direito, o centro das atenções de nossa sociedade e, principalmente, dos nossos governantes. 15 Referências Ackerman, N. W. (1986). Diagnóstico e tratamento das relações familiares. Porto Alegre: Artes Médicas. Alves, G. L. (2001). A produção da escola pública contemporânea. Campo Grande, Ed. UFMS; Campinas: Autores Associados. Aquino, J. R. G. (2002). Diálogos com educadores: o cotidiano escolar interrogado. São Paulo: Moderna. Araújo, U. F. (2002). A construção de escolas democráticas: histórias sobre complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Moderna. Berger, P., & Luckmann, R. (1973). A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes. Carvalho, M. P. de. (1999). Ensino, uma atividade relacional. Revista Brasileira de Educação [online], São Paulo, n. 11(2), 17-32. Recuperado: 11 mai. 2011. 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