PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
CÉSAR AUGUSTO DI NATALE NOBRE
O REGIME JURÍDICO DA “LEI DE COTAS”
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2012
CÉSAR AUGUSTO DI NATALE NOBRE
O REGIME JURÍDICO DA “LEI DE COTAS”
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP), como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Direito Administrativo no
ano letivo de 2012, sob a orientação do Prof. Dr.
Clovis Beznos.
SÃO PAULO
2012
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Clovis Beznos______________________________________________
Prof. Márcio Cammarosano ______________________________________________
Prof. Toshio Mukai______________________________________________
RESUMO
Esta dissertação busca identificar o papel do Estado no fomento e na indução a
determinadas práticas consideradas como de interesse social. Mais especificamente, aborda a
inserção social dos portadores de deficiência por meio do seu trabalho, bem como analisa a
natureza jurídica da “Lei de Cotas”, se de obrigação trabalhista ou de restrição administrativa à
propriedade.
A política pública acerca do tema em questão trata da imposição às empresas de
contratar percentual de seu quadro fixo de empregados considerando pessoas portadoras de
deficiência e reabilitadas pela Previdência Social e foi instituída pela Lei n° 8.213/91, cunhada
como “Lei de Cotas” conforme acima referido.
Pretende-se discutir aqui o papel da Administração Pública neste cenário, pois se
sugere que, para a efetiva concretização do direito constitucional à inclusão social que deveria ser
assegurado a estas pessoas, hoje seria mais eficiente a instituição de política pública de incentivo
às empresas em combinação com a Lei de Cotas, ou seja, o exercício da função pública pela
Administração Fomentadora, como nomima a doutrina, e não meramente o exercício do poder de
polícia clássico de fiscalização da atividade empresarial ou, ainda, exclusivamente por meio da
Administração Ordenadora.
Ademais, intenciona-se discutir a Política Nacional de Inserção Social dos Portadores
de Deficiência, instituída pela Lei n° 7.853/89, a fim de se compreender os papeis do Terceiro
Setor e o da Administração Pública no âmbito da inclusão social desta parcela da população, com
a finalidade de se propor novos rumos à concretização de tais direitos.
Palavras-chave: Lei de Cotas; natureza jurídica; política pública; inclusão social; portadores de
deficiência; interesse público; Administração Fomentadora; fomento.
ABSTRACT
This study aims to identify the role of Government in promoting and inducing certain
practices considered as social interest. More specifically, it addresses the social integration of
people with disabilities through their work as well as analyses the legal nature of the "Lei de
Cotas", whether as labour obligation or administrative restriction to the property.
The public policy concerning the issue at hand deals with the imposition on
companies to hire fixed percentage of its staff of employees considering disabled people and
rehabilitated peopleby Social Security and was instituted by Law 8.213/91, titled "Lei de Cotas"
as described above.
This study is intended to discussthe role of Public Administration within this context,
as it suggests that for the effective implementation of the constitutional right to social inclusion,
which should be provided to these people,the institution of public policy would be more efficient
in encouraging this kind of hiring if in combination with the “Lei de Cotas”, which means, the
exercise of public function by Induction Administration, as it is called by the doctrine, and not
merely the exercise of the traditional policepower to supervising the entrepreneurial activity, or
exclusively by Orderly Administration.
Moreover, it is intended to discuss the National Policy on Social Inclusion of Persons
with Disabilities, established by Law 7.853/89, in order to understand the role of the Third Sector
and Public Administration considering the social inclusion of this group, objectifying to propose
new directions for implementation of these rights.
Keywords: Lei de Cotas; legal nature; public policy; social inclusion; people with disabilities;
public interest; AdministraçãoFomentadora; foment.
SUMÁRIO
PARTE 1 – PRIMEIRAS LINHAS SOBRE O TEMA:
PRINCÍPIOS E A LEI DE COTAS
1. ASPECTOS INICIAIS
1.1 A Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência da
Organização das Nações Unidas (ONU)
1.2 A Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência
1.3. Direito comparado e o cenário internacional: o que os outros paísesfizeram
até hoje em matéria de inserção social de pessoas portadoras de
deficiência por meio do trabalho?
08
08
11
12
13
2. OBJETODE ESTUDO
3. DA PERTINÊNCIA TEMÁTICA
4. O INTERESSE PÚBLICO COMO FUNDAMENTO DA
POLÍTICAPÚBLICA DAS COTAS
5. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBREO PAPEL DO ESTADO
26
39
PARTE 2 – DA NATUREZA JURÍDICA DA LEI DE COTAS
43
1. A PREOCUPAÇÃO
2. A RAZÃO DESTA PREOCUPAÇÃO E O CAMINHO A PERCORRER
3. DA NATUREZA JURÍDICA DAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS
4. A LEI DE COTAS IMPÕE, PORTANTO, UMA OBRIGAÇÃO TRABALHISTA?
5. DAS RESTRIÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE PROPRIEDADE
6. PROPRIEDADE DA EMPRESA E LIBERDADE DE CONTRATAR: UMA
RELAÇÃO HIERÁRQUICA
7. A LEI DE COTAS IMPÕE, AFINAL, UMA LIMITAÇÃO
ADMINISTRATIVA AO DIREITO DE PROPRIEDADE?
8. APROFUNDANDO AS LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS: OS DIVERSOS
MODOS DE INTERVENÇÃO NA VIDA PRIVADA DECORRENTES
DA ADMINISTRAÇÃO ORDENADORA
9. AFINAL, POR QUE ORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA E NÃO
PODER DE POLÍCIA?
10. LIMITES, ENCARGOS E SUJEIÇÕES ADMINISTRATIVAS
11. A OBRIGAÇÃO DECORRENTE DA LEI DE COTAS VIOLA O
PRINCÍPIO DA MÍNIMA INTERVENÇÃO ESTATAL NA VIDA PRIVADA?
43
45
47
61
63
17
23
71
82
86
96
97
103
PARTE 3 – O AMBIENTE NORMATIVO ATUAL E NOSSAS CRÍTICAS
106
1. O ESFORÇO DE ENGENHARIA NORMATIVA PARA COMPREENDER
O MODELO ATUAL
106
2. O CONFLITO DE INTERESSES ENTRE A INSERÇÃO NO MERCADO DE
TRABALHO DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA E O DIREITO AO
RECEBIMENTO DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA – BPC
OU LOAS – UM ESTUDO DENTRO DE UM ESTUDO
2.1
A gênese do benefício
2.2
A mudança trazida pela Constituição Federal de 1988
2.3
A sistemática assistencial do benefício
2.4
Os ajustes no novo benefício assistencial
2.5
A reforma do assistencialismo
2.6
Notas à reforma do BPC de 2011
2.7
Os períodos históricos da evolução do benefício
2.8
Tabulando os dados
2.9
Conclusões sobre o BPC (ou LOAS) de hoje e possíveis novos horizontes
112
113
116
117
119
124
128
129
132
134
3. CONTINUANDO O TRABALHO DE ENGENHARIA NORMATIVA
139
4. ORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA, FOMENTO OU AMBOS?
149
PARTE 4 – AS CONSEQUÊNCIAS DA NATUREZA JURÍDICA
DA OBRIGAÇÃO DECORRENTE DA LEI DE COTAS
152
1. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A COMPETÊNCIA DOMINISTÉRIO PÚBLICO
2. UM NOVO DESENHO INSTITUCIONAL DE ATUAÇÃO DO ESTADO
152
160
PARTE 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
164
REFERÊNCIAS
165
a. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
b. REFERÊNCIAS JURISPRUDENCIAIS
c. REFERÊNCIAS DE SÍTIOS DE INTERNET
165
170
170
APÊNDICE A – ENTREVISTAS NA ÍNTEGRA
172
APÊNDICE B - A INCLUSÃO DE PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE TRABALHO. MINISTÉRIO
DO TRABALHO E EMPREGO (trechos dos capítulos 1.3 e 1.4)
178
PARTE 1 – PRIMEIRAS LINHAS SOBRE O TEMA: PRINCÍPIOS E A LEI DE COTAS
1. ASPECTOS INICIAIS
A Lei Ordinária Federal n° 8.213, de 24 de julho de 1991, mais especificamente em
seu artigo 93, impôs às empresas que possuam a partir de 100 (cem) empregados a obrigação de
preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários da
Previdência Social reabilitados ou com pessoas portadoras de deficiência devidamente
habilitadas.
Dessa forma, empresas que possuam de 100 (cem) até 200 (duzentos) empregados
devem ter 2% (dois por cento) de sua força laboral oriunda de vínculo de emprego sob estas
condições e a proporção cresce de acordo com o número de empregados.
Para empresas que tenham de 201 (duzentos e um) até 500 (quinhentos) empregados,
este percentual é de 3% (três por cento); se a empresa possui de 501 (quinhentos e um) até 1.000
(um mil) empregados, o percentual vai para 4% (quatro por cento) e para empresas com mais de
1.000 (um mil) empregados, o percentual se fixa em 5% (cinco por cento).
Além disso, a lei estabelece que a dispensa de trabalhador reabilitado ou
portador de deficiência habilitado só pode ocorrer após a contratação de
substituto em situação semelhante.
Segundo a legislação, consideram-se beneficiários reabilitados todos os
segurados vinculados ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS),
submetidos ao processo de reabilitação profissional desenvolvido ou
homologado pelo INSS. Já as pessoas portadoras de deficiência habilitadas são
aquelas não vinculadas ao RGPS que tenham se submetido ao processo de
habilitação profissional desenvolvido pelo INSS ou por entidades reconhecidas
para esse fim.
Essa foi a primeira lei brasileira a efetivamente tornar obrigatória a inserção de
pessoas portadoras de deficiência no mercado de trabalho. Toda legislação
anterior sobre empregabilidade e pessoas portadoras de deficiência é mais
centrada nas questões de discriminação no ambiente de trabalho e no incentivo à
promoção de ações para a geração de empregos a essa parcela da população.
8
A Lei n° 7.853, de 1989, por exemplo, já tratava sobre o tema, mas no âmbito de
detalhar os direitos das pessoas portadoras de deficiência. No artigo 2°, ela
atribui ao poder público a tarefa de: “[...] assegurar às pessoas portadoras de
deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive direitos à
educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à
infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis,
propiciem seu bem estar pessoal, social e econômico”.
Já o inciso II, do mesmo artigo, foi uma espécie de “embrião” da Lei de Cotas,
prevendo a promulgação de outra lei com o objetivo de criar e assegurar reserva
de mercado em toda a economia brasileira “[...] em favor das pessoas portadoras
de deficiência, nas entidades de administração pública e do setor privado”. 1
Assim, a Lei 8.213/91 tornou-se conhecida como “Lei de Cotas”, pois foi o primeiro
diploma normativo posterior à publicação do texto constitucional em 1988 a regular o assunto
acerca do tratamento inclusivo que deveria ser garantido aos portadores de deficiência.
Para facilitar o entendimento, visualizemos os dados em forma de tabela:
Número de Empregados da Empresa
Percentual de Empregados Reabilitados
ou Portadores de Deficiência
(art. 93, Lei 8.213/91)
Até 200
2%
De 201 a 500
3%
De 501 a 1.000
4%
De 1.001 em diante
5%
A inclusão social destas pessoas é um dos problemas contemporâneos mais
complexos e de difícil concretização, razão motivadora para que o legislador ordinário se
preocupasse com o cenário e impusesse tal obrigação às empresas.
Na visão do legislador ordinário pátrio, seria por meio do trabalho que essas pessoas
conseguiriam ser inseridas, ou reinseridas, no contexto social.
1
CLEMENTE, Carlos Aparício. Trabalho e inclusão social de portadores de deficiência. 1. ed. Osasco: Peres,
2003, pp. 29 – 31.
9
Vale dizer que existe também a previsão normativa de inclusão social dos portadores
de deficiência por meio da reserva de vagas em concursos públicos, no entanto, o escopo do
presente estudo não abarca esse aspecto.
Este estudo concentra-se na obrigação imposta às empresas do setor privado. Não
obstante, cremos que a destinação de vagas aos portadores de deficiência nos concursos públicos
para o ingresso no serviço público também é importante forma de inserção social.
A Lei de Cotas foi, de fato, um divisor de águas para o tema da inclusão social,
significando importante passo no caminho da isonomia material entre as pessoas portadoras de
deficiência e os demais integrantes da sociedade, pois reservou oportunidades de trabalho para
uma parcela da população nacional que, injustificadamente, não consegue encaixe profissional
adequado.
Portanto, referida Lei pode ser vista como de extrema valia e teve enorme
repercussão no cenário nacional, pois a fiscalização das autoridades laborais, promovida pelo
Ministério do Trabalho e Emprego por meio de seus Auditores Fiscais do Trabalho (AFTs), tem
sido atuante na promoção de estatísticas e repreensão das empresas que não cumprem com a
obrigação que lhes foi imposta, chegando-se até mesmo à lavratura de autos de infração por
descumprimento desta obrigação. Ainda assim, conforme veremos, a atuação dos AFTs restringese por questões eminentemente práticas.
Como se vê, por meio deste diploma normativo, a Lei de Cotas, o marco regulatório
do setor, engatinhava seus primeiros passos. O Estado impôs à iniciativa privada a obrigação de
contratar pessoas reabilitadas pelos programas da Previdência Social ou pessoas portadoras de
deficiência, para que se promovesse a inclusão social desta parcela da população brasileira por
via do trabalho.
10
1.1
A Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações
Unidas (ONU)
O conceito de pessoa com deficiência é, hoje, internacional. O Brasil é país signatário
da Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência e referida norma tornou-se parte
integrante do direito pátrio por meio do Decreto Legislativo 186/08 e do Decreto 6.949/09.
Nos termos do parágrafo terceiro do artigo quinto da Constituição Federal, a
referida Convenção foi integrada ao sistema interno como equivalente à emenda
constitucional. Como norma posterior, revogou a lei, o decreto regulamentar, ou
seja, todo e qualquer dispositivo que definia pessoa com deficiência.
Permanece, é verdade, o conceito de carência2, de pobreza, definido pela lei.
Mas é o artigo primeiro da Convenção que define quem é pessoa com
deficiência. Assim, para se enquadrar na norma do inciso V do artigo 203, devese primeiro verificar se o caso concreto se encontra abarcado pelo artigo
primeiro da Convenção, que, combinado com o artigo 20 da Lei 8.742/93, dirá
se a pessoa definida na Convenção – pessoa com deficiência – é carente, um
critério econômico e social. Assim disciplina a Convenção, em seu artigo
primeiro:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com
diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas.3
Portanto, apesar de a legislação interna brasileira ainda não estar completamente
alterada de forma a incorporar o conceito acima explorado para pessoa com deficiência, já se
visualiza o esforço do legislador e do regulador para fazer tal adaptação. Por exemplo, a Lei
Orgânica da Assistência Social, para fins da concessão do Benefício de Prestação Continuada,
teve sua redação alterada em 2011, para acompanhar a evolução conceitual internacional4.
2
Exploraremos esse conceito e os conflitos gerados por essa legislação posteriormente, quando tratarmos do
Benefício de Prestação Continuada.
3
ARAÚJO, Luiz Alberto David. Barrados. 1. ed. Petrópolis: KBR, 2011, p. 23.
4
Ver tópico específico sobre o assunto adiante.
11
1.2
A Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência
Este diploma normativo passou a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro por
meio do Decreto 3.956, de 8 de outubro de 2001.
A definição interamericana de discriminação contra as pessoas portadoras de
deficiência é expressa nos seguintes termos:
[...] toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência,
antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de
deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou
anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de
deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais5.
Apesar desse conceito bem delimitado, a própria Convenção faz uma ressalva para
conseguir afirmar o princípio da igualdade material, pois se reconhece que as pessoas com
deficiência devem ser tuteladas por seus respectivos Estados, para que sua condição não se torne
empecilho para a efetiva tutela de direitos fundamentais. Nestes termos, continua a referida
Convenção, para esclarecer que “diferenciação” não é “discriminação”:
[...]
b) não constitui discriminação a diferenciação ou preferência adotada pelo
Estado-Parte para promover a integração social ou o desenvolvimentopessoal
dos portadores de deficiência, desde que a diferenciação ou preferência não
limite em si mesma o direito à igualdade dessas pessoas e que elas não sejam
obrigadas a aceitar tal diferenciação ou preferência.6
Assim, analisando a obrigação decorrente da Lei de Cotas brasileira e o dispositivo
internacional supra citado, podemos concluir que a obrigação decorrente da Lei de Cotas é forma
5
OAS. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as
Pessoas Portadoras de Deficiência. Artigo 1°, parágrafo 2°, alínea “a”.
6
OAS. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as
Pessoas Portadoras de Deficiência. 1999. Artigo 1°, parágrafo 2°, alínea “b”.
12
clara de diferenciação entre trabalhadores (portadores de deficiência e não portadores de
deficiência) a serem contratados pelas empresas.
A reserva de mercado de trabalho privado aos portadores de deficiência é a forma que
o Estado brasileiro encontrou para inseri-los socialmente, ou seja, criou-se diferenciação em
função da condição de pessoa com deficiência visando o fim público – a inserção social.
1.3
Direito Comparado e o Cenário Internacional: o que os outros países fizeram até hoje em
matéria de inserção social de pessoas portadoras de deficiência por meio do trabalho?
Agora que já abordamos o teor da Lei de Cotas brasileira e temos uma posição sobre
o cenário internacional, vale a pena, ainda que brevemente, entender como os outros países
empregam essa política pública. Por meio deste pontual estudo de Direito Comparado,
conseguiremos estabelecer uma analogia entre o modelo brasileiro e os modelos utilizados
globalmente7.
1. PORTUGAL: o artigo 28 da Lei nº 38/04 estabelece a cota de até 2% de trabalhadores com
deficiência para a iniciativa privada e de, no mínimo, 5% para a Administração Pública.
2. ESPANHA: a Lei nº 66/97 ratificou o art. 4º do Decreto Real nº 1.451/83, o qual assegura o
percentual mínimo de 2% para as empresas com mais de 50 trabalhadores fixos. Já a Lei nº 63/97
concede uma gama de incentivos fiscais, com a redução de 50% das cotas patronais da
seguridade social.
3. FRANÇA: o Código do Trabalho Francês, em seu artigo L323-1, reserva postos de trabalho no
percentual de 6% dos trabalhadores em empresas com mais de 20 empregados.
7
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. 2.
ed. Brasília: MTE, SIT, 2007.
13
4. ITÁLIA: a Lei nº 68/99, no seu artigo 3º, estabelece que os empregadores públicos e privados
devam contratar pessoas com deficiência na proporção de 7% de seus trabalhadores, no caso de
empresas com mais de 50 empregados; duas pessoas com deficiência, em empresas com 36 a 50
trabalhadores; e uma pessoa com deficiência, se a empresa possuir entre 15 e 35 trabalhadores.
5. ALEMANHA: a lei alemã (Seção 71, SGB IX) estabelece para as empresas com mais de 16
empregados uma cota de 6%, incentivando uma contribuição empresarial para um fundo de
formação profissional de pessoas com deficiência.
6. ÁUSTRIA: a lei federal (Disabled Employment Act - Behinderteneinstellungsgesetz), reserva
4% das vagas para trabalhadores com deficiência nas empresas que tenham mais de 25
funcionários e alternativamentea dmite a contribuição para um fundo de formação profissional.
7. BÉLGICA: há previsão de um sistema de cotas, porém não há um percentual legal para a
iniciativa privada. Este é negociado por sindicatos e representantes patronais para cada ramo da
economia (The 1963 Social Rehabilitation Act - “Loi de Réhabilitation Sociale”).
8. HOLANDA: o percentual varia de 3% a 7%, sendo este firmado por negociação coletiva,
dependendo do ramo de atuação e do tamanho da empresa (Sickness Benefits Act, 1993).
9. IRLANDA: a cota é de 3%, sendo aplicável somente para o setor público (Seção 47, Emprego
no Serviço Público; Disability Act: 2005).
10. REINO UNIDO: o Disability Dicrimination Act (DDA), de 1995, trata da questão do
trabalho, vedando a discriminação de pessoas com deficiência em relação ao acesso, conservação
e progresso no emprego. Estabelece, também, medidas organizacionais e físicas para possibilitar
o acesso de pessoas com deficiência. O Poder Judiciário pode fixar cotas, desde que provocado e
uma vez constatada falta de correspondência entre o percentual de empregados com deficiência
existente na empresa e no local onde a mesma se situa.
11. ARGENTINA: a Lei nº 25.687/98 estabelece um percentual mínimo de 4% para a contratação
de servidores públicos. Estendem-se, ademais, alguns incentivos para que as empresas privadas
também contratem pessoas com deficiência.
14
12. COLÔMBIA: a Lei nº 361/97 concede benefícios de isenções de tributos nacionais e taxas de
importação para as empresas que tenham, no mínimo, 10% de seus trabalhadores com
deficiência.
13. EL SALVADOR: a Lei de Equiparação de Oportunidades, o Decreto Legislativo nº 888, em
seu artigo 24, estabelece que as empresas com mais de 25 empregados devam contratar uma
pessoa com deficiência.
14. HONDURAS: a Lei de Promoção de Emprego de Pessoas com Deficiência, o Decreto nº
17/91, em seu artigo 2º, fixa cotas obrigatórias para contratação de pessoas com deficiência por
empresas públicas e privadas na seguinte proporção: uma pessoa com deficiência, nas empresas
com 20 a 40 trabalhadores; duas, nas que tenham de 50 a 74 funcionários; três, nas empresas com
75 a 99 trabalhadores; e quatro, nas empresas que tenham mais de 100 empregados.
15. NICARÁGUA: a Lei nº 185 estabelece que as empresas contratem uma pessoa com
deficiência a cada 50 trabalhadores empregados.
16. PANAMÁ: a Lei nº 42/99 obriga os empregadores que possuam em seus quadros mais de 50
trabalhadores a contratar, no mínimo, 2% de trabalhadores com deficiência. O Decreto Executivo
nº 88/93 estabelece incentivos em favor de empregadores que contratem pessoas com deficiência.
O governo também está obrigado a empregar pessoas com deficiência em todas as suas
instituições.
17. PERU: a Lei Geral da Pessoa com Deficiência (i.e. Lei nº 27.050, de 18 de dezembro de
1998), em seu capítulo VI, estabelece a concessão de benefícios tanto para as pessoas com
deficiência quanto para as empresas que as contratem, como, por exemplo, a obtenção de créditos
preferenciais e financiamentos de organismos financeiros nacionais e internacionais; preferência
nos processos de licitação; dedução da renda bruta de uma percentagem das remunerações pagas
às pessoas com deficiência.
18. URUGUAI: a Lei nº 16.095 estabelece, em seu artigo 42, que 4% dos cargos vagos na esfera
pública deverão ser preenchidos por pessoas com deficiência e, no artigo 43, exige, para a
concessão de bens ou serviços públicos a particulares, que estes contratem pessoas com
deficiência, mas não estabelece qualquer percentual.
15
19. VENEZUELA: a Lei Orgânica do Trabalho, de 1997, fixa uma cota de uma pessoa com
deficiência a cada 50 empregados.
20. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA: inexistem cotas legalmente fixadas, uma vez que as
medidas afirmativas dessa natureza decorrem de decisões judiciais, desde que provada, mesmo
estatisticamente, a falta de correspondência entre o número de empregados com deficiência em
determinada empresa e o total dessas pessoas na respectiva comunidade. De qualquer modo, o
The Americans with Disabilities Act (ADA), de 1990, trata do trabalho de pessoas com
deficiência, detalhando as características físicas e organizacionais que devem ser adotadas
obrigatoriamente por todas as empresas para receber pessoas com deficiência como empregadas.
21. JAPÃO: a Lei de Promoção do Emprego para Portadores de Deficiência, de 1998, fixa o
percentual de 1,8% para as empresas com mais de 56 empregados, havendo um fundo mantido
por contribuições das empresas que não cumprem a cota, fundo este que também custeia as
empresas que a preenchem.
22. CHINA: a cota oscila de 1,5% a 2%, dependendo da regulamentação de cada município (Law
on the Protection of Disabled Persons; 1998).
Dessa forma, podemos verificar que o Brasil encontra-se atualmente em posição de
destaque no que diz respeito à legislação atinente ao tema em questão, prevendo em âmbito
nacional cotas tanto no setor público como no privado.
No entanto, cremos que para a real inserção social dos portadores de deficiência, a
legislação precisa abranger um número maior de empresas, sem onerá-las, e em acréscimo
incentivar a prática de inserção dos portadores de deficiência no ambiente laboral.
16
2. OBJETO DE ESTUDO
Neste cenário, após vinte anos da promulgação da Lei de Cotas, é possível fazer uma
espécie de “balanço” dos avanços concretizados, para possibilitar a discussão visando ao
aperfeiçoamento da legislação pátria.
Considerando os dados concretos coletados a partir de entrevistas com os os
Auditores-Fiscais do Trabalho (AFTs), servidores concursados do Governo Federal vinculados ao
Ministério do Trabalho e Emprego, responsáveis pela fiscalização das empresas quanto ao
cumprimento da obrigação de contratar o percentual específico de trabalhadores nas condições
em apreço, verifica-se uma tensão que muitos pensam não existir, mas que suscita algumas
questões acerca da matéria.
Vale destacar que o sigilo das fontes entrevistadas para este estudo será mantido a
pedido das mesmas. Nestas entrevistas conversamos com alguns AFTs que já se encontram no
serviço público de fiscalização há muitos anos, sendo que alguns deles ocuparam cargos de chefia
no Município de São Paulo e região8.
A informação unânime obtida é que, hoje, pouquíssimas empresas respeitam a Lei de
Cotas:
Quando se está fiscalizando uma grande empresa, muitas vezes multinacional ou
de capital aberto, tudo está nos conformes da Lei. Não existe nada fora do lugar
e o departamento de recursos humanos mantém um controle de fazer inveja a
muitas repartições militares. Agora não é este tipo de empresa que gera a
maioria dos empregos para o Brasil. As empresas de menor porte são as
responsáveis por grande parte dos empregos. E é aí que a Lei é desobedecida9.
8
Dentre estas entrevistas, realizadas no início de 2010, escolhemos a mais rica de detalhes, realizada
simultaneamente com dois Auditores Fiscais do Trabalho, transcrita em sua integralidade ao final do presente
trabalho (cf. Apêndice A).
9
Cf. Entrevistado no 01, Apêndice A.
17
A declaração acima é de um AFT, engenheiro especializado em segurança do
trabalho, com vinte e cinco anos de experiência em fiscalização no Município de São Paulo.
A multa para o descumprimento é muito baixa e o custo para manter estes
empregados é muito mais elevado10.
Assim diz outra AFT, lotada na mesma região do entrevistado anterior, formada em
Direito pela Universidade de São Paulo e especialista em Direito do Trabalho também pela USP.
Ela continua:
A reclamação é sempre a mesma. Os proprietários de empresa dizem que o gasto
para adaptar as instalações físicas da empresa, treinar os profissionais do local
para lidar com a diferença e encontrar profissionais reabilitados ou portadores de
deficiência qualificados para o emprego é muito maior do que a multa pela
infração à legislação cometida11.
Verifica-se, portanto, que o grau de eficácia social da Lei de Cotas é ainda muito
baixo. Diversos fatores podem ser mencionados para fundamentar as afirmações acima como, por
exemplo, o baixo grau de instrução e de consciência social dos empresários, na média, ou, ainda,
o baixo rigor da legislação trabalhista infracional.
Enfim, o ponto principal é que diante de empresas ou outra entidades legais
empregadoras que não têm contas a prestar para a sociedade, para um grupo de acionistas ou
ainda para investidores da Bolsa de Valores, são poucas aquelas que obedecem por livre e
espontânea vontade à Lei de Cotas atualmente.
O argumento recorrente é o custo. Possuir empregados no Brasil é algo extremamente
oneroso. Não é por acaso que fraudes trabalhistas são freqüentes, praticadas não só por pequenos
prestadores de serviços, mas por grandes executivos também.
10
11
Cf. Entrevistado no 02, Apêndice A.
Idem.
18
É praxe de mercado o Diretor ou integrante da Presidência de uma empresa, ou até
mesmo o fotógrafo do jornal, o colunista de revista, ou seja, muitos dos profissionais liberais de
hoje não possuírem contratos formais de trabalho com vínculo empregatício de pesosa física sob
a égide das leis trabalhistas e, ao invés disso, constituirem pessoas jurídicas prestadoras de
serviços, desvirtuando-se assim as relações formais de emprego.
Isso é feito para se evitar custos como FGTS, INSS - Empregador, direito a férias,
estabilidade, licença maternidade, décimo terceiro salário e, além desses custos diretos, as
contribuições sociais sobre a folha de salários (SESI, SECS, SENAT, SENAI, Salário-Educação,
INCRA etc.), ou seja, fraudes para evitar os encargos trabalhistas e benefícios que a nossa
legislação do trabalho impõe e atribui quando se possui empregados devidamente registrados e
com anotação em carteira de trabalho.
Além de todas estas preocupações e custos, são pouquíssimos os empresários ou
empresas que possuem o grau de consciência social necessário para obedecer à Lei de Cotas e
proporcionar uma nova forma de inclusão social para os que necessitam.
É neste panorama que se encaixa a ideia que se pretende explorar neste trabalho, de
modo a se validar a seguinte reflexão: quando o Estado transferiu a responsabilidade da inclusão
social em grande parte à iniciativa privada por meio das relações de trabalho o fez de maneira
adequada? E, mais importante, será que hoje, dado o tempo de vigência da legislação atinente ao
tema, não poderíamos pensar o Direito de forma a aprimorar este sistema?
É importante frisar que não se está negando a importância da Lei de Cotas na História
do Brasil. Este diploma normativo foi realmente um marco para o setor. Contudo, após vinte anos
de sua publicação, pensamos ser imprescindível dar um passo além, visando aumentar a eficácia
social da norma em questão.
De nada adianta uma legislação impecável e incompatível com a realidade. Não
cremos que a solução esteja em aumentar as penalidades por descumprimento da Lei ora
discutida. Criminalizar a conduta ou aumentar o valor da multa não são alternativas adequadas
para os dias de hoje.
19
Ronald Coase, em 196012, já ensinava que, caso os custos de transação sejam
inexistentes ou irrelevantes, o direcionamento dos direitos a priori inseridos pela lei não terá
influência sobre o resultado da situação em que se encontra a externalidade, pois os agentes
afetados a resolverão por si mesmos, por meio de uma negociação que atingirá a distribuição
mais eficiente dos recursos. Em outras palavras, caso não houvesse custos de transação, as partes
negociariam até chegar a uma solução eficiente, independentemente do direito.
Custos de transação, para Coase, neste seu artigo de 1960, podem ser especificados
como os custos da coleta de informações, custos de negociação e custos de elaboração de um
contrato.
De acordo com Farina, existe uma corrente de autores, como Furubotn & Richter, que
define custos de transação como “[...] custos que são necessários para se colocar o mecanismo
econômico e social em funcionamento[...]”13, surgidos na medida em que os agentes se
relacionam entre si e em meio aos problemas que surgem frente ao caráter freqüentemente
heterogêneo dessa relação.
Assim, cremos que a discussão atual deve se dar em torno das seguintes questões:
qual é o papel do Estado na regulação do mercado de trabalho dos portadores de deficiência?
Seria suficiente que o Estado, em suas várias esferas, oferecesse vagas específicas a estas pessoas
em concursos públicos e, paralelamente, obrigasse as empresas a contratá-las num percentual de
seus empregados, ainda que se constatasse a ineficácia social desta última medida?
No Estado Social de Direito basta que determinado ente federativo emane legislação
a respeito de um assunto e o não cumprimento desta legislação passe a ser “questão de polícia”
(sic), ou o Estado que queremos é aquele que promova o bem estar? Seria função do Estado, além
de emanar esta legislação, agremiar esforços para que ela seja cumprida?
Promover o cumprimento da legislação emanada com incentivos e desincentivos seria
mais inteligente para implementar uma política pública do que aumentar a penalidade pelo
descumprimento ou aumentar a fiscalização?
12
COASE, R. The Problem of Social Cost. In:The Journal of Law and Economics, Chicago, n. 3, 1960.
FURUBOTN & RICHTER. Apud FARINA, E., AZEVEDO, P. & SAES, M. Competitividade: mercado, estado
e organizações. São Paulo: Singular, 1997, p. 56.
13
20
No presente trabalho não se busca esgotar o tema nem tampouco apresentar solução
“mágica” e “rápida” para o debate. Busca-se, outrossim, analisar se haveria espaço para
incrementar a regulação sobre este tema, para que se chegue em um ponto de equilíbrio no qual
Estado e iniciativa privada dividam os custos da inclusão social de maneira equânime, respeitadas
as diferenças e consideradas as similitudes entre serviço público e empresas particulares.
Em nossa visão, não basta o Estado obrigar empresas a contratarem um percentual de
seus empregados dentre portadores de deficiência ou reabilitados e fiscalizá-las quanto ao
cumprimento da obrigação imposta. O Estado deve ir além.
O Estado possui o que Celso Antônio Bandeira de Mello denomina como “deverpoder” (invertendo o tradicional “poder-dever”), pois na visão do autor, o “dever” fundamenta o
“poder” que a Administração detém, e não o contrário. A função administrativa é o exercício de
“dever” e, para exercê-lo, o Estado necessita de “poder”, daí a nomenclatura “dever-poder”.14
Celso Antônio ressente-se ao discorrer sobre boa parte da doutrina que explora o tema
“poderes da Administração” dando uma ênfase tida por ele como não salutar, pois se ressalta o
caráter impositivo e absolutista da relação vertical entre Estado e jurisdicionado, quando na
verdade deveria se ressaltar o caráter de “poder-dever” do Estado em perseguir o interesse
público por meio dos instrumentos próprios.
Sugere, por fim, que sequer se chame este tema de “poder-dever” da Administração,
em função de ainda possuir um viés inapropriado, mas sim de “deveres-poderes” da
Administração.
Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade
instituída no interesse de todos – e não da pessoa exercente do poder -, as
prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas como
“poderes” ou como “poderes-deveres”. Antes se qualificam e melhor se
designam como “deveres-poderes”, pois nisto se ressalta sua índole própria e
se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever,
sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão
suas inerentes limitações.15
14
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
pp. 45-46.
15
Ibidem, p. 72.
21
Portanto, o Estado deve incentivar e facilitar a prática da inclusão social, e não
meramente alocar os custos decorrentes de tal política em boa medida na iniciativa privada. O
Estado deve trabalhar em conjunto com a iniciativa privada na promoção da inclusão social.
O legislador ordinário pátrio idealizou uma política pública de extrema coerência
sistêmica, consistente em utilizar o trabalho, o possível vínculo de emprego das pessoas
reabilitadas ou portadoras de deficiência, como forma de incluí-las no tecido social do qual todos
fazemos parte. O próprio Ministério do Trabalho e Emprego assume a importância da inserção
social da pessoa com deficiência por meio de tal política pública como ação afirmativa16.
Impõe-se aprimorar esta política pública. Torná-la algo do cotidiano. Aumentar sua
eficácia social. Deve haver mecanismo para facilitar a inclusão social dos reabilitados e
portadores de deficiência pelo seu trabalho, mecanismo que estimule estas contratações
otimizando o custo que implicam.
16
Cf. no Apêndice B deste estudo os Capítulos ‘1.3 Ação Afirmativa – Igualdade de Oportunidades’ e ‘1.4 Diretrizes
Institucionais Referentes ao Trabalho da Pessoa com Deficiência’ da Cartilha do MTE. In: BRASIL, Ministério do
Trabalho e Emprego. A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. 2. ed. Brasília: MTE, SIT,
2007. pp. 16 – 19.
22
3. DA PERTINÊNCIA TEMÁTICA
O primeiro passo deste trabalho será delimitar o foco. Entendemos que a análise a que
nos propomos a fazer poderia ser realizada sob a perspectiva do Direito do Trabalho, do Direito
Previdenciário, do Direito Constitucional, enfim, diversos segmentos do mundo jurídico
poderiam ser ressaltados como fundamento do que se propõe. Contudo, nossa opção por
adentrarmos nesta discussão por meio do Direito Administrativo se deu por motivos específicos
que devem ser, ainda que brevemente, explorados.
Um dos principais desafios deste trabalho é demonstrar que o Estado deve ter um
papel mais atuante na regulação em pauta. Nossa preocupação é refletir sobre como deve ser a
relação Estado-Particular para, da melhor forma possível, promover a inclusão social.
O Direito Administrativo brasileiro é intrinsecamente vinculado ao Direito
Constitucional. A opção brasileira por uma Constituição extensa, até exaustiva em certos pontos,
torna o Estado Social demasiadamente patente ao intérprete, trazendo à baila princípios muito
relevantes a serem promovidos pelo Estado em conjunto com a sociedade, cada um arcando com
o que é de sua competência suportar.
A Constituição Federal de 1988, logo em seu artigo 1°, elenca como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil “[...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa [...]”. Pois bem. A partir da leitura dos objetivos fundamentais da República listados no
artigo 3° da Carta Constitucional, e tendo em vista o dispositivo acima mencionado, é possível
verificar que o legislador pátrio, na elaboração da Lei de Cotas, foi muito coerente quando
realizou a previsão da utilização do trabalho destas pessoas como forma de inclusão social.
Vejamos:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
23
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O Direito Constitucional preocupa-se com a organização jurídica do Estado,
estrutura-o e delimita quando deve agir para criar e promover a utilidade pública. É por isso que
nossa análise escapa do âmbito de atuação do Direito Constitucional e se alinha mais com a seara
do Direito Administrativo. Nossa ideia é a concretização dos princípios constitucionalmente
tutelados por meio de política pública, ou seja, o desenho institucional realizado pela Carta
Cidadã demonstra o Norte da política pública que o legislador elege como necessária à
concretização do fim público que o Estado deve ter. Entretanto, nossa preocupação neste trabalho
é justamente o ambiente essencialmente micro, o desta política pública.
O papel do Estado nesta política de inclusão social não deve se restringir a obrigar
empresas a contratar aqueles tidos como socialmente excluídos, o Estado tem o dever de ir além,
e isso será explorado no decorrer do trabalho.
Neste ponto inicial ainda queremos demonstrar que o foco do Direito Constitucional é
outro; é justamente a imposição deste desenho institucional e dos princípios que o regerão e que,
posteriormente, o Direito Administrativo regulará.
Na mesma linha de raciocínio, o Direito do Trabalho também não nos serve para
esgotar o tema. O Direito do Trabalho é importante para fundamentar e explicar a relação de
emprego existente entre o reabilitado ou portador de deficiência e a empresa contratante; ou
ainda, será substancialmente aplicado na fiscalização trabalhista que verificará o cumprimento da
lei e, eventualmente, imporá alguma sanção à empresa que a descumprir.
Contudo, a fiscalização propriamente dita exercida pelo Ministério do Trabalho e
Emprego por meio dos Auditores Fiscais do Trabalho nada mais é do que uma forma de polícia
administrativa, que verifica se a regulamentação estatal dos temas trabalhistas e de Segurança e
Saúde do Trabalho estão sendo cumpridos no âmbito das relações laborais.
Se o Direito do Trabalho regula parcialmente a fiscalização trabalhista, a outra parte é
regulada por normas de Direito Administrativo.
24
O foco do presente trabalho é outro. A preocupação aqui é a análise da relação
jurídica existente entre Estado-poder e administrados, mas não só administrados portadores de
deficiência ou reabilitados, nosso foco é examinar a função administrativa na concretização dos
princípios constitucionais. Vale a pena breve citação do clássico, porém expoente de
entendimento muito atual, livro de Héctor Jorge Escola sobre interesse público:
Por eso se ha dicho, con toda razón, que si al jurista le cabe, de alguna manera,
modelar la sociedad del futuro, es al derecho administrativo al que le
corresponde la mayor parte del desafío que implica hacer posible el proceso de
las transformaciones pacíficas que son necesarias a ese fin (Caio Tácito).17
A política pública para a inclusão social aludida deve ser mais atuante do que o
Estado delegar à iniciativa privada a contratação de percentual de seus trabalhadores dentre esta
classe excluída socialmente. A responsabilidade do Estado não se limita a isso, sendo justamente
nosso trabalho utilizar o pensamento administrativista para fundamentar esta responsabilidade do
Estado em promover a inclusão social destas pessoas, ou seja, o Estado deve fazer mais do que a
mera fiscalização do cumprimento da lei, impondo sanção contra eventual descumprimento. O
Estado deve incentivar o comportamento dos agentes do setor para promover o fim público a que
se destina.
17
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, p. 22.
25
4. O INTERESSE PÚBLICO COMO FUNDAMENTO DA POLÍTICA PÚBLICA DAS COTAS
A política pública da inclusão social dos reabilitados e portadores de deficiência por
meio da Lei de Cotas é típico exemplo de atuação intervencionista do Estado. A empresa possui a
prerrogativa da livre iniciativa e o direito de propriedade sobre seus bens de produção (lembrando
que o princípio da livre iniciativa é expressamente citado como fundamento da República no
artigo 1°, inciso IV, do texto constitucional, bem como garantia fundamental expressa no artigo
5° da Carta Magna de 1988. Logo, numa concepção liberal de Estado como a que prevalecia até o
século XIX, seria inaceitável uma imposição do Estado tal qual ocorre com a Lei de Cotas.
Assim, no Estado do laissez-faire, laissez-passer era totalmente inconcebível que o
Estado obrigasse as empresas a contratarem uma determinada classe de pessoas como política
pública para inclusão social destas. De acordo com Escola:
El Estado de derecho, el Estado liberal de los siglos XVIII y XIX, es así
reemplazado por el Estado social de derecho, que admite y preconiza una amplia
gama de actividades administrativas y de servicios, produciéndose paralelamente
un paulatino desplazamiento del derecho constitucional, en sus clásicas
formulaciones, por el surgimiento de un derecho administrativo que acompaña y
regula ese nuevo concepto de un Estado-intervencionista, que tomo al hombre,
no ya como individuo aislado, sino como un ser que vive en comunidad, en
sociedad, y que busca, por medio del reconocimiento y afirmación de sus
derechos sociales, convalidar y hacer realmente posibles su libertad y sus
derechos personales.
El Estado que en el pasado se concentraba en garantizar al hombre su derecho de
existir, mediante las libertades civiles y políticas, y su derecho a poseer,
mediante la formulación de su derecho a la propiedad, debe ahora garantizarle la
afirmación de su personalidad, mediante el reconocimiento y goce de su derecho
a ser feliz, su derecho a ser, en su condición plena de hombre, con todo lo que
ello significa (Caio Tácito).
El futuro se avizora a través de una verdadera transformación política, social,
económica y jurídica, que haga que todos los hombres, sin exclusión alguna,
puedan gozar los beneficios que les promete el preámbulo de nuestra
26
Constitución nacional, es decir, ese bienestar general que es suma y resumen del
bienestar de cada uno de ellos.18
Conforme se pode perceber, o autor é enfático em afirmar que o Estado deve garantir
a “afirmação de sua personalidade”, ou seja, não basta fornecer ao homem liberdades civis,
políticas e o direito de propriedade, deve fazer com que o homem chegue a seu máximo expoente
em sua própria humanidade intrínseca, numa afirmação com forte viés filosófico. E prossegue:
Los grandes fines declarados en el preámbulo de nuestra Constitución nacional –
la unión nacional, el afianzamiento de la justicia, la paz interior, la defensa
común, la promoción del bienestar general, y la garantía de los beneficios de la
libertad – son metas deseables de las que nunca queremos abdicar, y a las que si
el derecho constitucional procura preservar por múltiples mecanismos arbitrados
para ello, el derecho administrativo quiere arribar por medios inmediatos y
directos, prácticos y materiales, efectivos y reales, confirmándose de este modo
aquello de que el derecho administrativo es el derecho procesal del derecho
constitucional.
Por ello, el derecho administrativo tiene que procurar los medios y las
estructuras que aseguren un intervencionismo estatal de esa forma aceptable,
porque sirve y hace a nuestras libertades y derechos; y facilitar sistemas para
evitar el intervencionismo injustificado – y por ello mismo peligroso para esas
libertades y derechos – brindándonos, asimismo, las defensas indispensables
para preservarnos de tal riesgo.
De tal modo, el derecho administrativo, al que muchos llaman el derecho de la
restricción y de la limitación, no dejará por esa condición de ser, al mismo
tiempo, el derecho de la libertad verdaderamente lograda.19
A citação contribui para entendermos o papel do Direito Administrativo no
intervencionismo estatal. O Direito Administrativo será o responsável pelas estruturas jurídicas e,
logo, pelos meios para que o intervencionismo seja justificável, portanto, aceitável pela
comunidade.
18
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, pp. 24-25.
19
Ibidem, pp. 27-28.
27
É neste cenário que Jorge Escola, no mencionado estudo, começa a delinear a ideia de
que a Administração deve buscar atender aos objetivos que lhe foram impostos pelo texto
constitucional para atingir o interesse público. Vejamos:
Planteadas así las cosas, se comprende de inmediato que si el derecho
administrativo está concebido para posibilitar y asegurar que la administración
pública logre de manera concreta los objetivos que le han sido fijados,
satisfaciendo las necesidades de la comunidad y de los individuos que la
integran, alcanzando el bienestar general que es sustento de nuestras libertades y
derechos, oponiendo vallas eficaces a un intervencionismo estatal que si
reconoce necesario, sólo resulta admisible cuando concurre al logro de ese
bienestar general, toda su estructuración está presidida, orientada e iluminada
por la existencia de esas finalidades que deben lograrse, las cuales tienen que ser
reducidas a una idea que, como tal, careciendo de un contenido concreto propio
o necesario, pueda admitir cualquiera que se desee insertar, desde fuera del
campo jurídico, a esa noción que así aparecerá como jurídica.
La noción del bienestar general, no sólo declarada en el preámbulo, sino
efectivizada a través de todo lo largo de nuestra Constitución nacional, encuentra
su correlato jurídico en la idea de “interés público”, la cual puede ser concretada,
por ahora, sobre la base de que existe el interés público cuando en él, una
mayoría de individuos y en definitiva cada uno, puede reconocer y escindir del
mismo su interés individual (Gordillo), personal, directo y actual o potencial.
El interés público, así entendido, es no sólo la suma de una mayoría de intereses
individuales coincidentes, personales, directos, actuales o eventuales, sino
también el resultado de un interés emergente de la existencia de la vida en
comunidad, en el cual la mayoría de los individuos reconocen, también, un
interés propio y directo.20
Assim nascem as primeiras linhas em que Jorge Escola ensina seu conceito de
“interesse público”. Para este autor, o interesse público não é somente a finalidade dos atos
administrativos e, logo, da Administração; para ele o interesse público seria o próprio
fundamento do Direito Administrativo.
Sendo assim, é dever do Estado prezar pela inserção social daqueles que a Lei de
Cotas tutela, mas este dever não se limita a isso. O Estado, além de instituir a obrigação às
20
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, p. 31.
28
empresas ora discutida e fiscalizar seu cumprimento, deve fomentar esta conduta para que a
inserção social desta classe de pessoas por meio do trabalho seja de fato concretizada. O interesse
público é de que o trabalho tenha seu valor social, e isto está expresso na Carta Cidadã de 1988
no próprio artigo 1°, inciso IV, como fundamento da República, e diga-se, ao lado do princípio da
livre iniciativa. É trabalho da Administração, portanto, promover por meio de políticas públicas a
efetiva conciliação destes princípios, visando ao interesse público.
Pensamos que hoje nos encontramos em situação em que a mera imposição das cotas
não é suficiente e, logo, para a efetiva concretização desta inserção social que se pleiteia, o
Estado deve chamar para si parte desta responsabilidade, trabalhando em conjunto com a
iniciativa privada, e não simplesmente aumentando a pena pelo descumprimento da norma em
questão. A responsabilidade pela inserção social é de interesse público e deve ser assim tratada,
buscando-se a eficácia social da norma, e não a mera fuga das obrigações e deveres que o Estado
Social de Direito impõe à Administração que acabou, de certo modo e em alguma medida,
delegando sua função administrativa e, logo, pública.
Longe de se sustentar que tão-somente à Administração incumbiria o dever da
contratação de pessoas portadoras de deficiência ou reabilitadas, e, seguindo este raciocínio
simplista, defender que o remanescente deste grupo deveria ser realocado por programas
assistencialistas. Defendemos que o Estado, hoje, deve dar um passo além da Lei de Cotas,datada
de 1991, frise-se, para a concretização desta bela ideia que é a inclusão social por meio do
trabalho.
Além da obrigação de oferecer percentual das vagas oriundas de concursos públicos a
estas pessoas, cabe ao Estado incentivar as empresas privadas no cumprimento da Lei de Cotas,
tornando a obrigação de contratar imposta pelo referido diploma normativo uma efetiva política
pública, algo que não ocorre no cotidiano.
Celso Antônio Bandeira de Mello afirmou diversas vezes que “política pública” nada
mais é do que uma série de atos administrativos visando um fim público.21 Ora, a imposição legal
de contratar um percentual de pessoas dentro de uma determinada classe não consubstancia
política pública; somente mais uma obrigação legal.
21
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Princípio da moralidade. In Revista de Direito Tributário, São Paulo,
v. 69, Malheiros, 1997, p. 180-207.
29
O interesse público foi conceituado por diversos doutrinadores e cada um deles
explorou uma faceta deste princípio fundamental do Direito Público. Celso Antônio Bandeira de
Mello considera-o uma das “pedras de toque” do Direito Administrativo.22
Vale a pena citar o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando
inaugura sua discussão sobre os princípios no Direito Administrativo, e sua importância basilar
no sistema jurídico-administrativo e no próprio regime administrativo:
Cumpre, pois, inicialmente, indicar em que sentido estamos a tomar o termo
princípio, tal como vimos fazendo desde 1971, quando pela primeira vez
enunciamos a acepção que lhe estávamos a atribuir. À época dissemos:
“Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro
alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas,
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a exata compreensão e
inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico”. Eis
porque: “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A
desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado,
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua
estrutura mestra.23
Para o autor, dois são os princípios mais importantes no Direito Administrativo
pátrio, ou suas “pedras de toque”, quais sejam: (i) a supremacia do interesse público sobre o
privado e (ii) a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos.24
Celso Antônio ainda expõe o seu conceito de interesse público como o de interesse do
todo, do conjunto social, mas ao mesmo tempo como também o somatório dos interesses
individuais. Entretanto, sua concepção não se limita a isso.
Sob seu entendimento, não pode haver interesse público conflituoso com os interesses
de cada membro da sociedade. Pode haver choque entre o interesse público e o interesse de um
indivíduo, por óbvio, prevalecendo aquele, mas a partir do momento em que se confunde o
22
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 55.
23
Ibidem, p. 53.
24
Ibidem, p. 55.
30
interesse público com o interesse do Estado, entra-se em um Estado absolutista, que não se
confunde com Estado de Direito.25
É que, na verdade, o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social,
nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos
interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada
juridicamente no Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal
destes mesmos interesses, vale dizer, já agora, encarados eles em sua
continuidade histórica, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus
nacionais.26
Deve-se lembrar que, para Celso Antônio Bandeira de Mello, não é em toda e
qualquer situação que o interesse privado será preterido ao público, pois: “[...] De outro lado, é
evidente, e de evidência solar, que a proteção do interesse privado nos termos do que estiver
disposto na Constituição, é, também ela, um interesse público, tal como qualquer outro, a ser
fielmente resguardado [...].”27
É importante esta lição porque o intérprete afoito poderia se equivocar e concluir que
o interesse privado nunca deveria ser resguardado, o que poderia trazer, inexoravelmente, uma
espécie de socialismo utópico à tona.
Celso Antônio Bandeira de Mello trabalha o conceito de interesse público de maneira
interessante, afirmando consistir na “dimensão pública dos interesses individuais”, ou seja, devese analisar o caso concreto para que seja aferido qual interesse deve preponderar na situação
fática específica.
Exemplificando, o direito de determinada pessoa à propriedade deve prevalecer se a
propriedade cumpre com sua função social, contudo, se esta mesma propriedade não a cumpre,
poderá ser objeto de desapropriação em certos casos previstos por lei.
Ademais, a própria Constituição Federal de 1988 prevê, em seu artigo 243, que
mesmo respeitada a função social da propriedade, se esta é utilizada para a cultura ilegal de
plantas psicotrópicas, o Estado deverá expropriá-la.
25
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
pp. 58-59.
26
Ibidem, p. 60.
27
Ibidem, pp. 68-69.
31
Em todos estes casos é o interesse público o que se tutela, mas ora se ressalta o direito
à propriedade do indivíduo e ora se ressalta o caráter sócio-funcional do mesmo direito em nossa
ordem jurídica.
A denominada “função administrativa” é justamente este dever já mencionado do
Estado de satisfazer o interesse público. O titular do poder é o povo e o Estado o exerce em nome
dele; não o contrário.
Quem exerce “função administrativa” está adstrito a satisfazer interesses
públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das
prerrogativas da Administração é legítimo se quando e na medida indispensável
ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos
Estados Democráticos o poder emana no povo e em seu proveito terá de ser
exercido.28
Com estas considerações sobre princípios, supremacia do interesse público sobre o
privado e função administrativa, afirmamos que faz parte desta função, logo, é “dever-poder”, do
Estado fornecer plenas condições para o exercício profissional pelos reabilitados e portadores de
deficiência e, com isso, promover sua inserção social pelo trabalho.
O Estado não deve, somente, obrigar empresas a contratação, deve promover a
qualificação profissional dessas pessoas, deve incentivar a prática de sua contratação para além
das cotas; algo que motivado apenas pela obrigação legal não se verifica suficiente.
Se a grande maioria das empresas médias sequer obedece à Lei de Cotas, conforme
constatamos em pesquisa empírica, quem dirá ultrapassar este limite. É então que deve atuar o
Estado.
No cenário atual, não basta a imposição de contratar o percentual estipulado em Lei
referente às pessoas reabilitadas ou portadoras de deficiência, o Estado deve se preocupar
efetivamente em melhorar a qualidade de vida destas pessoas, almejando a isonomia material.
Voltando ao pensamento do espanhol Héctor Jorge Escola:
28
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 72.
32
Lo expuesto significa reconocer que el hombre de nuestra época no se conforma
ya con la existencia de una administración pública que no oponga trabas ni
barreras al libre ejercicio de los derechos de cada uno, sino que postula una
actividad administrativa que de manera positiva asegure el goce de tales
libertades. Además de que la administración pública no estorbe ni restrinja o
coarte los derechos individuales, es menester que, por medio de hechos y actos
positivos, coadyuve al mejor logro de ellos.
[...]
Es innegable que este problema existe, y que debe ser afrontado sobre una base
realista, que sin dejar de reconocer la necesidad irreductible de los derechos y
libertades legalmente protegidos, admita la necesidad de una mayor y ya
inexcusable intervención de la administración pública y del Estado en general,
pero precisamente para que esos derechos y libertades no sean algo puramente
declamado, sino efectiva y plenamente gozado.
La fundamentación de las naciones de actividad administrativa, y de
administración pública, a partir de la idea de la existencia de un interés público,
en el cual cada uno de nosotros puede escindir su propio interés personal y
directo, actual o eventual, sirve a ese propósito, y habrá de servir a ese objeto,
haciendo que cada individuo conserve en plenitud su pretensión de gozar
efectivamente de derechos y libertades reconocidos por el orden normativo,
solicitando para ello una intervención de la administración pública que sólo será
viable y admisible, cuando adopte los modos y procedimientos que la hagan
concurrir, en definitiva, al logro de esos mismos derechos y libertades. Bajo el
viejo principio de “dar para recibir”, cada uno consentirá en una merma de
ciertos derechos y de parte de sus libertades, sólo en tanto y en cuanto esa
merma sirva para el mejor goce de todas ellas.29
Fica claro que, para o autor, uma Administração que imponha barreiras ou travas para
o livre exercício de direitos já não se comporta em conformidade com o conceito de interesse
público.
A atividade administrativa deve necessariamente ser positiva, prestacional, ou seja,
não pode a Administração limitar-se a destinar poucas vagas para reabilitados e portadores de
deficiência em concursos públicos e obrigar empresas que contratem outros poucos oriundos
desta classe. A Adminitração deve promover a inserção social sem este limite, sem esta trava.
É dever do Estado aperfeiçoar a atual Lei de Cotas, passados hoje vinte anos de sua
edição, de forma a de fato incentivar as empresas a contratarem estas pessoas, oferecendo mais
oportunidades do que a obrigação legal atual determina. A isonomia seria algo muito mais
29
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, pp. 46-47.
33
próximo da realidade social do que é na atualidade, implicando, consequentemente, o próximo
passo rumo à igualdade.
Não estamos discutindo de quem seria a competência para a iniciativa da lei, até
porque o tipo de incentivo que se sugere ainda não está em discussão neste ponto do trabalho. O
que ora se discute é a responsabilidade social do Estado frente à pouca eficácia social desta
legislação e frente à necessidade de se retirar esta efetiva “barreira legal” às empresas, ou seja,
fomentar a contratação destas pessoas socialmente excluídas para promover a devida inclusão por
meio do labor, como já discutido.
Diz-se “barreira legal” porque as empresas que efetivamente obedecem à Lei de
Cotas na grande maioria das vezes são empresas de grande porte, empresas que prestam contas a
acionistas, ou seja, empresas que já possuem o nível necessário de responsabilidade social e
governança corporativa que lhes permitam adequar seu quadro de funcionários à sustentabilidade
social e aos valores sociais do trabalho, nos termos da Constituição de 198830.
Para estas empresas, a Lei de Cotas funciona hoje como um entrave, pois existe a
consciência social na empresa que a contratação destes trabalhadores exige, mas não há incentivo
para a contratação além do número exigido por lei. Explica-se.
É fato que a adaptação das instalações físicas para a inclusão de portadores de
deficiências físicas no quadro de funcionários custa caro. Acessos exclusivos por escadas devem
ser adaptados com rampas ou elevadores; mesas e locais de trabalho devem ser adaptados às
cadeiras de rodas, enfim, as inúmeras adaptações para receber pessoas com deficiência fazem
com que a empresa tenha custos adicionais ao seu ativo imobilizado.
E não é só isso. A boa convivência entre trabalhadores contratados pelo regime de
cotas e trabalhadores não contratados por este regime deve ser objeto de treinamento específico,
para que as diferenças sejam bem aceitas no ambiente organizacional. Portanto, deve haver
treinamento das pessoas envolvidas, o que gera mais custos à empresa.
Acrescente-se os centros de qualificação profissional que muitas empresas possuem
para tão somente atender à oferta de trabalho de pessoas que seriam potenciais beneficiárias da
Lei de Cotas, mas que, na prática, não possuem experiência profissional e nem tampouco
30
Conforme pode se verificar a partir das entrevistas no APÊNDICE A.
34
qualificação técnica para o exercício da função específica. As empresas arcam com os custos
envolvidos para tanto sem incentivo governamental algum. Esses centros derivam da demanda de
contratação imposta pela Lei de Cotas ou do elevado nível de consciência social das organizações
em pauta.
Para todos os efeitos, se o Estado de fato promovesse a inclusão social incentivando
as empresas contratantes neste caso, a Lei de Cotas não seria mais um entrave, seria tão somente
um começo.
Se o Estado fomentasse a criação de centros educacionais e de qualificação técnica
para estas pessoas, financiados pelas corporações ou não, a inclusão tomaria proporções mais
condizentes com aquilo que a Constituição deseja, diferente da realidade presenciada31.
Haveria, portanto, o gozo efetivo da parcela dos cidadãos sob enfoque de seu direito à
personalidade e inclusão via trabalho, e não o gozo em potencial que a Lei de Cotas hoje garante.
Atender-se-ia, assim, ao interesse público.
El interés público, de tal modo, es la verdadera razón de ser y la verdadera
explicación del derecho administrativo, su real fundamento, lo que permite
superar la afirmación de que el derecho administrativo es el derecho de la
administración pública, para remplazarla por la más exacta y general, a nuestro
juicio, de que el derecho administrativo es el derecho del interés público,
pretendido a través de la actividad administrativa.
[...]
Tal interés, entendido de este modo, pasa a ser público cuando no es exclusivo o
propio de una o pocas personas, sino cuando participan o coinciden en el mismo
un número tal de personas, componentes de una comunidad determinada, que
puede llegar a identificárselo como de todo el grupo, inclusive respecto de
aquellos que, individualmente, puedan o no compartirlo.
Para que exista un interés debe darse, imprescindiblemente, una valoración
consciente y libre, que haga aparecer como importante la cosa o el bien sobre el
cual recaiga, y una volición razonada que haga deseable o pretendible esa cosa
importante.32
31
Trataremos deste ponto tangencialmente mais adiante, ainda que ligeiramente, por transbordar do escopo do
presente estudo.
32
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, pp. 236-238.
35
Desta passagem de Jorge Escola, pode-se aferir que o interesse público, em sua
concepção, deve decorrer da valoração consciente e livre sobre bem jurídico reputado importante
pela coletividade daquela sociedade.
Ora, que melhor maneira uma determinada comunidade pode valorar um bem jurídico
do que colocá-lo sob a tutela do texto constitucional que rege suas relações jurídicas?
Assim, a Constituição Federal de 1988 torna-se de extrema valia ao intérprete, posto
que abarca diversas normas garantidoras de direitos e impositivas de princípios a que devem se
submeter tanto os administrados como a Administração33.
Visando concretizar alguns destes dispositivos constitucionais referentes à inclusão
social, a responsabilidade do Estado terminaria quando este ente delega à iniciativa privada a
contratação de 2%, 3%, 4% ou até 5% de pessoas reabilitadas ou portadoras de deficiência?
Pensamos que não.
El interés público no es un concepto carente de contenido concreto; por el
contrario, tal contenido debe ser reconocible y determinable, consistiendo en una
cosa o un bien que es perceptible para cualquier componente de la sociedad.34
Esta preocupação do autor acima citado, em demonstrar que o interesse público deve
possuir conteúdo concreto é de suma relevância, pois interesse público que se verifica
demasiadamente abstrato pode ensejar ditaduras e governos autoritários, que mentem para o povo
sustentando seus atos arbitrários em palavras desprovidas de sentido delimitado, ou seja, termos
genéricos e abstratos como “segurança nacional” ou ainda “espírito do povo”, para exemplificar
com um caso brasileiro e outro alemão.
Outra exigência para a averiguação da consistência do interesse público vigente é a
atualidade do mesmo. Sobre o tema, Héctor Jorge Escola também se manifesta, mas no seguinte
sentido:
33
Cf. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, artigos: 1º; 3º; 5º; 7º, XXXI; 23, II; 24, XIV; 37, VIII;
40, §4º, I; 203, IV e V; 208, III; 227, § 1º e 2º e 244.
34
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, p. 245.
36
Otra importante condición de todo interés público es la de que su contenido
concreto debe ser, al mismo tiempo, actual.
Esto significa que el contenido de cualquier interés público debe consistir en un
valor, espiritual o material, que es querido realmente por la mayoría de los
componentes de la comunidad en el momento en que se manifiesta, quedando
así reconocido, pudiendo escindir del mismo cada individuo su interés individual
componente.
Esa exigencia de actualidad es la que da verdadera vigencia al interés público,
que es algo querido ahora por la mayoría del conjunto social, y no algo querido
en el pasado, pero que ya puede no serlo, o algo que se supone que habrá de ser
querido en el futuro.35
Ainda que seja uma definição controvertida, vale a pena citar o autor em referência
quanto ao seu conceito de interesse público:
El interés público – de tal modo – es el resultado de un conjunto de intereses
individuales compartidos y coincidentes de un grupo mayoritario de individuos,
que se asigna a toda la comunidad como consecuencia de esa mayoría, y que
encuentra su origen en el querer axiológico de esos individuos, apareciendo con
un contenido concreto e determinado, actual, eventual o potencial, personal y
directo respecto de ellos, que pueden reconocer en él su propio querer y su
propia valoración, prevaleciendo sobre los intereses individuales que se le
opongan o lo afecten, a los que desplaza o sustituye, sin aniquilarlos.36
O direito positivo é a forma que dispomos para alterar as regras de convívio social,
visando melhorar a sociedade, para que cada vez mais seja voltada à igualdade entre as pessoas.
Jorge Escola vai além e disserta sobre um “direito a ser feliz” que o homem possuiria. Ainda que
utópico e com forte viés filosófico, não teria o intrépido autor certa razão em sua colocação?
Buscamos a transformação social via elaboração legislativa e o conceito de justiça é
um axioma que nunca seria passível de ponderação, posto que não poderia ser afastado em caso
algum. Pois bem, se o Estado por meio de incentivos à iniciativa privada tornasse a existência dos
35
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, p. 247.
36
Ibidem. pp. 249-250.
37
reabilitados e portadores de deficiência mais “feliz”, nos termos de Escola, não estaria cumprindo
com seu papel social, vis-à-vis, com o interesse público? Pensamos que sim.
El derecho, como ya ha sido reconocido, no constituye una finalidad en sí
mismo, sino que, por el contrario, aparece como un medio instrumental, a través
o por medio del cual se alcanzan determinadas finalidades, que no son
elaboradas ni precisadas por el derecho, sino que son gestadas en forma externa
al mundo jurídico, pero que constituyen su materia y su contenido, dentro de una
unidad de concepción, fundada en un complejo de ideas, criterios y valores que
nosotros aceptamos, pero que otros, en otras partes, pueden negar y reemplazar
por algunos diferentes que habrán de impregnar el derecho vigente entre ellos.
[...]
El derecho, y específicamente el derecho positivo, consagra, establece, regula y
garantiza esos valores, reconocidos en una sociedad dada, en un lugar y en un
tiempo dados, conforme con su graduación. Esa aparente circunstancialidad de
los valores admitidos por el derecho, no niega ni excluye la verdadera existencia
de valores ideales, que permitan enjuiciar cualquier derecho histórico, sobre la
base de un criterio de justicia, el cual permitirá, además, mejorar todo derecho
vigente, acercándolo a tal ideal, o desmejorarlo, alejándolo del mismo.37
É por meio de maior interferência estatal que alcançaremos o objetivo tão
resguardado na Carta Cidadã de inclusão social deste grupo.
Pode-se listar uma série sem fim de incentivos que o Estado poderia atribuir às
empresas que, seja por opção seja por obrigação legal, tenham em seu quadro de funcionários
pessoas portadoras de deficiência ou reabilitadas, ou destinem recursos para treinamento
profissional destas pessoas ou ainda, de alguma forma, aproximem estas pessoas da felicidade, do
direito social ao trabalho e, logo, de sua dignidade como pessoa humana.
37
ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires:
Depalma, 1989, pp. 252-253.
38
5. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO ESTADO
A primeira preocupação neste tópico final da Parte 1 deste estudo é ressaltar a
importância que a Lei de Cotas teve na história da inserção social de portadores de deficiência e
pessoas reabilitadas. Como marco regulatório do setor, impôs obrigação ao setor privado de
contratar percentual de seus empregados dentre este grupo de pessoas, ressaltando o valor social
do trabalho, fundamento da República previsto na Constituição.
Entretanto, atualmente a efetividade deste direito à inclusão se encontra em situação
abaixo do esperado. Nas entrevistas concedidas por pessoas responsáveis pela fiscalização do
cumprimento da aludida Lei, vemos que não basta legislação de ponta se falta consciência social.
Não compartilhamos do raciocínio de que aumentar a severidade da punição ou tornar
a fiscalização mais efetiva possibilitará alterar a situação atual espontaneamente. O ser humano
age por meio de incentivos e desincentivos; as empresas não são diferentes, posto que são
controladas e dirigidas por pessoas.
Demonstramos que os destinatários da obrigação decorrente da Lei de Cotas podem
ser agrupados em dois tipos. O primeiro consiste nas médias empresas, que consoante o
testemunho dos Auditores Fiscais do Trabalho, devido ao alto custo da contratação de portadores
de deficiência e reabilitados frente às sanções impostas pela Lei, preferem optar pelo risco de
autuação e discussão posterior, administrativa e judicial, do auto de infração. Em outras palavras,
considerando-se este tipo de empresas a Lei possui baixa eficácia social e o direito não é efetivo.
O segundo grupo é o das grandes empresas, para as quais a Lei é verdadeiro entrave
burocrático, pois dispõem do interesse e dos meios para contratação em amplitude maior, mas a
magnitude dos custos envolvidos para tanto faz com que optem por restringirem-se aos limites
legais de contratação do percentual mínimo legalmente previsto.
Delongamo-nos sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado,
constatando por análise de alguns autores que a inclusão social preconizada em diversos
momentos na Constituição Federal de 1988 consiste em nobre interesse público.
39
Atribuímos como função do Estado, ou melhor, “dever-poder” do Estado, fomentar a
inclusão por meio de políticas públicas que tragam efetividade ao direito deste grupo social de se
ver isonomicamente inserido na teia social contemporânea brasileira.
No cenário de hoje não basta a Lei de Cotas. A intervenção estatal deve ser mais
contundente e se deve, de fato, promover a inclusão social por meio de ação, e não simplesmente
fiscalização.
Importante se torna a elaboração de política pública consistente, forte, que de fato
traga incentivos para que as empresas possam contratar, habilitar e profissionalizar cada vez mais
esta parcela significativa de nossa população.
Além da obrigação legal da Lei de Cotas, acreditamos que diversas formas de
incentivos, entre os quais incentivos tributários e de ordem financeira, podem motivar as
empresas que demonstrem consciência social rumo à inclusão dos portadores de deficiência.
Podem-se criar benefícios em âmbito municipal, estadual e federal, posto que a
competência para regulação da matéria encontra-se prevista na Constituição Federal tanto no
artigo 23, inciso II (i.e. competência comum, logo, competência material, da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios), como no artigo 24, inciso XIV (i.e. competência
concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal). De modo que as empresas incrementem
as contratações aqui defendidas sua capacitação e ainda possam despender mais recursos com
adaptações físicas de acessibilidade, treinamentos específicos do pessoal efetivo, e até beneficiar
a população local.
A autonomia dos entes federados pressupõe a repartição de competências, que
são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades
estatais para realizar suas funções38, elemento característico do Estado Federal.
Nossa Constituição estruturou um sistema complexo de distribuição de
competências, buscando compatibilizar a autonomia de cada um dos entes com a
reserva de áreas exclusivas, privativas (mas com possibilidade de delegação) e
comuns. O equilíbrio federativo na repartição das competências teve como base
a técnica da enumeração dos poderes da União (arts. 21 e 22), com poderes
remanescentes para os Estados (art. 25, § 1°) e poderes definidos
38
SILVA, José Afonso de. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 419. Apud
RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Manual dos direitos da pessoa com deficiência. 1. ed. São Paulo: Verbatim, 2010,
pp. 50-51.
40
indicativamente para os Municípios (art. 30), combinando com essa reserva de
áreas específicas a possibilidade de delegação, de atuação paralela e concorrente.
A primeira parte dos artigos em comento trata da competência “material” ou
“não legislativa”, relacionada a atos da alçada tanto do Legislativo como do
Executivo. O dispositivo atribui tarefas específicas, impõe ônus consistente na
prestação de serviços ou atividades. Desta forma, a atenção à saúde, assistência
pública, proteção e garantias das pessoas com deficiência são de atribuição
comum tanto da União, como dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
A segunda da competência legislativa, ou seja, das matérias sobre os quais os
entes federativos podem legislar definindo-a, quanto à sua extensão, como
concorrente.
Este qualificativo, consagrador do importante e pouco estudado princípio da
subsidiariedade39, pressupõe: a) possibilidade de disposição sobre o mesmo
assunto ou matéria por mais de um ente federado e; b) primazia da União quanto
à fixação de normas gerais.”40
Neste diapasão, torna-se importante citar este julgado do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo:
“[...] quer na competência comum, quer na competência concorrente, se já existe
lei federal dispondo sobre a matéria, deve ela preponderar sobre as normas
estaduais, e isso pelo fato de que as normas constitucionais têm por finalidade
resguardar a dignidade da pessoa humana e da inclusão social desta minoria, que
é obrigada a conviver em mundo em que as coisas são realizadas levando-se em
conta apenas a maioria, que não necessita de obras específicas para se
movimentarem nos imóveis existentes e, finalmente, por ser ela – lei federal –
mais benéfica aos deficientes, por ter prazo menor para que se proceda à
adequação das construções, dando oportunidade a todos, principalmente aos
deficientes, de acesso aos edifícios onde estão instalados os associados da
autora.
[...]
Daí que, como já decidido em caso análogo, em se tratando de norma que
disciplinou a proteção aos deficientes, vigora aquela que a eles for mais
benéfica. E assim é pelo simples fato de que uma norma que garanta uma
proteção especial (mais rápida, mais eficaz, mais ampla) atende melhor ao
princípio da igualdade que, como se sabe, é um dos fundamentos do Estado
Democrático.41
39
A este respeito, consultar: BARACHO, José Alfredo Oliveira Baracho. O princípio de subsidiariedade: conceito e
evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2000. Apud RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Manual dos direitos da pessoa com
deficiência. 1. ed. São Paulo: Verbatim, 2010, pp. 50-51.
40
RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Manual dos direitos da pessoa com deficiência. 1. ed. São Paulo: Verbatim,
2010, pp. 50-51.
41
Ap. Civ. 423.313-5/1-00-TJSP, Décima Primeira Turma de Direito Público. Rel. Desemb. Pires de Araújo, j.
07/05/07.
41
O objetivo deste trabalho, entretanto, limita-se a debater qual é o grau de
responsabilidade do Estado frente à situação atual da Lei de Cotas no Brasil. As questões sobre o
tipo de incentivo e de qual ente federativo seria a competência para sua instituição são questões
de extrema relevância, mas inapropriadas para o momento do trabalho.
Poderíamos ainda discorrer sobre o tipo de benefício fiscal de que os entes
federativos podem se valer, ou ainda outros tipos de benefícios, como financiamentos com juros
menores ou outros incentivos financeiros; e ainda, desenvolver como o Estado poderia priorizar
as empresas contratantes na situação em comento em alguns tipos de licitações ou outros
contratos públicos. Enfim, existem diversos exemplos de conduta do Estado que podem ser
citados neste caso, mas toda esta discussão sobre o que exatamente o Estado pode fazer para
fomentar a contratação destas pessoas em número cada vez mais crescente deve ser objeto de
aprofundamento posterior.
O argumento central que se deseja disseminar é que o Estado deveria se preocupar
mais na promoção do bem estar destas pessoas. A função administrativa impõe o dever ao Estado
de ir além de obrigar a contratação e fiscalizar o cumprimento da Lei de Cotas pelas empresas,
este Estado Providência de nossa contemporaneidade deve incentivar empresas a esta conduta,
consubstanciando esta a nossa preocupação.
A presente discussão sobre o papel do Estado no cenário atual e as implicações que a
função administrativa por meio do foco na tutela do interesse público sobre o caso já são aspectos
suficientemente controvertidos sobre o tema e merecem o esclarecimento que nos sujeitamos a,
humildemente, tentar demonstrar.
42
PARTE 2 – DA NATUREZA JURÍDICA DA LEI DE COTAS
1.
A PREOCUPAÇÃO
Na primeira parte de nosso estudo preocupamo-nos em sublinhar o papel do Estado
em dividir o custo social da inserção dos portadores de deficiência por meio do trabalho, pois
cremos que a mera transferência deste ônus para a iniciativa privada acarreta excessivo peso que
não gera a necessária efetividade da ação como política pública.
Como reiteramos, o papel histórico da Lei de Cotas é inquestionável e, em seu tempo,
constituiu tremendo avanço nesta seara das políticas públicas. A problematização em apreço vem
à tona com a necessidade de, hodiernamente, darmos “o próximo passo” em direção à real
inserção social dos portadores de deficiência e reabilitados da Previdência Social.
Foi neste cenário que defendemos na parte introdutória ao tema que o Estado deveria
criar incentivos para a iniciativa privada realizar mais investimentos no setor.
A obrigação de reservar determinado percentual do número de funcionários a este
grupo específico deve continuar vigente, mas à medida que o ordenamento jurídico for dotado
com a prevsião de incentivos (fiscais, financeiros, etc.) para motivar que o empresariado
implementar tal política, a efetividade da inserção social em análise passa a desdobrar-se como
um avanço da política pública estatal nesta questão.
Assim, no presente momento de nosso estudo, nossa preocupação volta-se à
discussão se a Lei de Cotas possui natureza jurídica de obrigação trabalhista (como, por exemplo,
o intervalo intrajornada, o descanso semanal remunerado ou a obrigação de depósito junto ao
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS), ou se tal Lei possui a natureza jurídica de
restrição administrativa à propriedade (como, por exemplo, as servidões administrativas, a
43
reserva legal e os recuos urbanísticos para exercício do direito de construir42), e, como tal,
restringe quem seja o proprietário das quotas (ou ações) da empresa (ou de quem faz suas vezes
na administração empresarial) no exercício da liberdade de contratar quem desejar para os
afazeres diários empresariais, direito este que decorre diretamente da titularidade jurídica da
empresa.
42
Nestes exemplos, desconsideramos as discussões doutrinárias (as quais, em certa medida, aceitamos) acerca de se
estes institutos jurídicos citados constituem, de fato, limitações administrativas ou verdadeiros sacrifícios da
propriedade privada. Neste ponto de nosso trabalho, realizamos apenas uma breve citação do que a doutrina corrente
considera como limitações administrativas à propriedade.
44
2.
A RAZÃO DESTA PREOCUPAÇÃO E O CAMINHO A PERCORRER
Neste esforço para entendermos melhor a natureza jurídica da obrigação decorrente
da Lei de Cotas optamos por desenvolver linha de raciocínio que se inicia com o aprofundamento
acerca da natureza jurídica das obrigações trabalhistas, para, posteriormente, adentrarmos no
assunto das restrições administrativas à propriedade.
A partir de então, aproveitaremos para traçar as diferenças fundamentais entre os
tipos de restrições administrativas existentes no ordenamento jurídico brasileiro, ou seja: (i) as
limitações administrativas, logo, não passíveis de indenização, posto que o proprietário não se vê
separado do núcleo essencial do seu direito de propriedade; (ii) os sacrifícios de direito, logo,
indenizáveis, pois o proprietário efetivamente se vê tolhido de seu direito de propriedade.
Neste cotejo, para tornar nossa análise mais interessante, adentraremos algumas
pormenorizações que delineiam o Direito Empresarial e o Direito Administrativo, a fim de
entendermos a relação do direito de livremente contratar empregados e sua relação com o direito
de propriedade da empresa, devido ao fato de haver no Direito positivo brasileiro a opção por
separar as personalidades jurídicas dos sócios da empresa da personalidade jurídica da empresa
em si, classificando-os como centros de imputação de deveres, responsabilidades e obrigações
autônomos.
Vale a pena entender esta relação entre estes direitos envolvidos para sabermos as
razões que nos levam a compreender a Lei de Cotas como possivelmente restritiva do direito de
propriedade da empresa, ou, ainda, possivelmente restritiva de forma direta do direito de livre
contratação; apesar de, na prática, crermos estarem ambos os direitos diretamente imiscuídos.
Após estas considerações, daremos nossa opção sistematizadora que classificará a
obrigação decorrente da Lei de Cotas como de natureza jurídica de obrigação trabalhista ou como
de natureza jurídica de restrição ao direito de propriedade, ou, ainda, de outro gênero, a depender
de nossa análise sobre a matéria.
Nestes termos, caminharemos para a conclusão trazendo outra importante questão à
colação, qual seja: o papel da Administração Ordenadora, assim denominada pela doutrina, e as
diferenças entre este conceito e o instituto do poder de polícia administrativa clássico. Isto
45
porque, para nós, esta questão é de fundamental relevância se optarmos por sustentar, assim como
o fizemos na parte inicial deste estudo, que hoje a inserção social dos portadores de deficiência
não se deve restringir à atuação da Administração Ordenadora, mas depender sim do trabalho
conjunto entre a fiscalização exercida por ela e os incentivos da Administração Fomentadora.43
Vale dizer que independentemente de nossas conclusões acerca da primeira questão
abordada, sobre a natureza jurídica da obrigação decorrente da Lei de Cotas, esta segunda
questão trazida a conhecimento, acerca do papel do Estado na efetiva implementação da inserção
social destas pessoas, ainda deve ser enfrentada.
Se chegarmos à conclusão de que a resposta à primeira questão é de que a natureza
jurídica discutida se trata de obrigação trabalhista, ou se chegarmos à conclusão de que se trata de
restrição administrativa à propriedade, a segunda questão ainda é relevante.
Isso se dá devido ao fato de que em qualquer destes casos, o princípio da legalidade
deverá ser respeitado para que a Administração Pública regule a matéria, fomentando a prática da
inclusão social e, até mesmo, ampliando os efeitos da racionalidade da norma, pois à medida que
a Administração Fomentadora entra em campo, poderíamos pensar em implementar estes
incentivos para outras relações de trabalho que não necessariamente constituam vínculo
empregatício.
Em nossa conclusão, dessa forma, responderemos a questão inicialmente trazida à
tona acerca de como se deve encarar a natureza jurídica da obrigação prevista pela Lei de Cotas,
mas, principalmente, as consequências jurídicas de tal natureza. Com isso, buscaremos
fundamentar nossa posição de que não adianta restringir a efetividade da inserção social dos
portadores de deficiência e reabilitados da Previdência Social por meio do trabalho à ação
fiscalizadora da Administração Ordenadora, mas que para efetivamente tutelar o direito destas
pessoas, o Estado deve invocar a qualidade de Administração Fomentadora para que haja
concretização desta previsão constitucional, inserindo na discussão a segunda questão acima
referida.
43
Estes conceitos de Administração Ordenadora e Administração Fomentadora estão presentes em SUNDFELD,
Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. Abordaremos mais adiante tais
conceitos.
46
3.
DA NATUREZA JURÍDICA DAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS
Após as considerações iniciais anteriormente discutidas, necessitamos do devido
aprofundamento na teoria jurídica que engloba o Direito do Trabalho para conseguirmos
depreender, a partir deste estudo científico, qual seria a natureza jurídica das obrigações
trabalhistas. Após este esforço, somente então, conseguiremos analisar se a imposição legal da
Lei de Cotas é norma de teor típico do Direito do Trabalho
Neste momento torna-se importante esclarecermos os porquês de nossa opção
sistematizadora em delimitar sob qual ramo da teoria jurídica encontra-se a obrigação imposta
pela Lei de Cotas.
A depender em qual ramo do Direito esta obrigação estiver classificada,
conseguiremos descobrir quais os princípios envolvidos para sua melhor aplicação. Por exemplo,
um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro, conforme o ponto de vista da
análise, pode ser interpretado de maneira diametralmente oposta. Vejamos o conteúdo do
princípio da legalidade.
Caso se esteja diante do princípio da legalidade sob o ponto de vista do Direito Civil,
tipicamente classificado na seara do Direito Privado, a grosso modo, chegaremos à conclusão de
que os particulares tudo podem, salvo se estipulado em contrário por lei. É um princípio que
valoriza e enaltece a liberdade de agir dos particulares de acordo com sua vontade individual, a
não ser que haja lei que os obrigue a determinado comportamento.
Contudo, se estivermos diante do mesmo princípio da legalidade sob o ponto de vista
do Direito Administrativo, a operatividade deste princípio é outra. Prega tal princípio que a
Administração Pública tão somente pode fazer aquilo que a lei determinar. A vontade da
Administração deve sempre estar jungida à lei, pois não se permite comportamento diverso
daquele previsto nos diplomas legislativos vigentes.
Com isto podemos visualizar a aplicação prática de uma boa classificação. O mesmo
princípio, de acordo com o ramo do Direito a pautar sua interpretação, pode nos levar a
47
conclusões totalmente opostas. Qual deve ser a interpretação correta? Depende do caso concreto,
se estamos diante de caso típico de Direito Privado ou de Direito Público.
Dessa forma, quando compreendemos o regime jurídico de determinado campo do
conhecimento jurídico, é possível facilitar a interpretação de seus institutos, pois já sabemos
quais os princípios norteadores dessa interpretação.
Para explicar a importância desta sistematização para fins de melhor compreensão
dos institutos jurídicos que permeiam determinado ramo do conhecimento, vejamos a posição de
Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do regime jurídico que baseia o Direito Administrativo.
Este autor, inicialmente, discorre sobre o seu conceito de “função administrativa”
para, posteriormente, ensinar o conteúdo do Direito Administrativo e, somente depois, explicar
por que é importante delimitar a autonomia de certo campo do conhecimento e o papel do regime
jurídico nesta delimitação.
Função administrativa é a função que o estado, ou quem lhe faça as vezes,
exerce44 na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos e que no sistema
constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante
comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais,
submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário.
[...]
Feitas estes considerações fica esclarecido o conteúdo da afirmação inicial de
que o direito administrativo é o ramo do direito público que disciplina a função
administrativa, bem como pessoas e órgãos que a exercem.
Se na conformidade do exposto, o Direito Administrativo coincide com o
conjunto de normas (princípios e regras) que têm o sobredito objeto, ter-se-ia de
concluir, logicamente, que a “Ciência do Direito Administrativo” consideraria
como pertinente à sua esfera temática a integralidade de tudo o que estivesse
compreendido na função administrativa. Sem embargo, não é isto que ocorre.
Certas parcelas do campo recoberto pela função administrativa, isto é, certos
capítulos do Direito Administrativo são excluídos de sua órbita de estudos e
tratados em apartado, como ramos do Direito – caso do “Direito Tributário, do
“Direito Financeiro”, do “Direito Previdenciário” – conquanto se constituam em
unidades temáticas tão sujeitas ao regime jurídico administrativo como
quaisquer outras.45 Consequentemente, os cursos, os manuais, os tratados de
44
Normalmente pelo Poder Executivo e seus sujeitos auxiliares e, atipicamente, por órgãos de outros Poderes.
Não se imagine que esta ausência de superposição entre o que foi apontado como sendo o Direito Administrativo e
aquilo que efetivamente é tomado como objeto de seu estudo ocorre por haver-se elegido como referencial de sua
45
48
Direito Administrativo, não consideram como matéria enquadrável em seu
âmbito de cogitações estes capítulos que serão objeto, isto sim, da “Ciência” do
Direito Tributário, do Direito Financeiro, do Direito Previdenciário e dos
respectivos cursos, manuais etc.
Isto significa que, em termos práticos, o Direito Administrativo sofre uma
amputação em seu âmbito real.
[...]
Diz-se que há uma disciplina jurídica autônoma quando corresponde a um
conjunto sistematizado de princípios e regras que lhe dão identidade,
diferenciando-a das demais ramificações do Direito.
Só se pode, portanto, falar em Direito Administrativo, no pressuposto de
que existam princípios que lhe são peculiares e que guardam entre si uma
relação lógica de coerência e unidade compondo um sistema ou regime: o
regime jurídico – administrativo.
[...]
Cumpre, pois, inicialmente, indicar em que sentido estamos a tomar o termo
princípio, tal como vimos fazendo desde 1971, quando pela primeira vez
enunciamos a acepção que lhe estávamos a atribuir. À época dissemos:
“Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro
alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas,
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a exata compreensão e
inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico”. Eis
porque: “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A
desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado,
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua
estrutura mestra”.46
Assentados, pois, na firme convicção sobre a importância dos princípios,
pretende-se que é instrumento útil para evolução metodológica do trato do
Direito Administrativo considerar o regime administrativo enquanto categoria
jurídica básica, isto é, tomado em si mesmo, ao invés de considerá-lo apenas
implicitamente, como de hábito se faz, ao tratá-lo em suas expressões
específicas consubstanciadas e traduzidas nos diferentes institutos. Acredita-se
que o progresso do Direito Administrativo e a própria análise global de suas
futuras tendências dependem, em grande parte, da identificação das ideias
centrais que o norteiam na atualidade, assim como da metódica dedução de
todos os princípios subordinados e subprincípios que descansam,
originariamente, nas noções categoriais que presidem sua organicidade.
conceituação a ideia de função administrativa, que seria excessivamente ampla em relação ao objeto perquirido. Não.
Idêntico fenômeno se dá com quaisquer das definições que se apoiam sobre outros critérios.
46
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Criação de secretarias municipais. Revista de Direito Público, 1971,
vol. 15, pp. 284-286. Apud Idem. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 36-54.
49
O que importa sobretudo é conhecer o Direito Administrativo como um sistema
coerente e lógico, investigando liminarmente as noções que instrumentam sua
compreensão sob uma perspectiva unitária.
É oportuno aqui recordar as palavras de Geraldo Ataliba:
O caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos cerca e o
caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as
realidades que pretende estudar, sob critérios unitários, de alta utilidade
científica e conveniência pedagógica, em tentativa de reconhecimento coerente e
harmônico da composição de diversos elementos em um todo unitário,
integrado em uma
realidade maior.
A esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina
sistema.”47
A este sistema, reportado ao direito administrativo, designamos regime jurídico
administrativo.48
Assim, torna-se de essencial relevância determinar se a obrigação imposta pela Lei de
Cotas se insere no sistema49 do Direito do Trabalho e, logo, se esta obrigação possui natureza
jurídica de obrigação trabalhista.
Se assim for, no momento da interpretação dos casos concretos em que tal norma se
aplica, os princípios norteadores da interpretação serão aqueles do Direito do Trabalho, tão
peculiares a ponto de firmarem este próprio ramo do Direito como autônomo dos demais,
caracterizando doutrina própria com raciocínios internos para explicar seus institutos jurídicos.
É com este objetivo que adentraremos na seara do Direito do Trabalho. Nosso escopo
é claro e definido. Iremos aprofundar-nos na natureza jurídica das obrigações do Direito do
Trabalho para verificarmos se a obrigação imposta pela Lei de Cotas possui características
próprias de obrigação trabalhista e deve, portanto, submeter-se aos princípios norteadores deste
ramo especializado do Direito, e não de qualquer outro.
Para iniciarmos nossa delimitada incursão no Direito do Trabalho cumpre verificar,
inicialmente, qual é a definição de Direito do Trabalho como fenômeno científico. Para tanto,
socorremo-nos do trabalho de Mauricio Godinho Delgado.
47
ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 4. Apud BANDEIRA
DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 36-54.
48
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
pp. 36-54, (grifos nossos).
49
Aqui “sistema” nos termos referidos por Celso Antônio e por Geraldo Ataliba.
50
Definir um fenômeno consiste na atividade intelectual de apreender e desvelar
seus elementos componentes e o nexo lógico que os mantém integrados.
Definição é, pois, a declaração da estrutura essencial de determinado fenômeno,
com seus integrantes e o vínculo que os preserva unidos.
Na busca da essência e elementos componentes do Direito do Trabalho, os
juristas tendem a adotar posturas distintas. Ora enfatizam os sujeitos
componentes das relações jurídicas reguladas por esse ramo jurídico
especializado – trata-se das definições subjetivistas, com enfoque nos sujeitos
das relações justrabalhistas. Por vezes enfatizam o conteúdo objetivo das
relações jurídicas reguladas por esse mesmo ramo do direito: são as definições
objetivistas, que firmam enfoque na matéria de conteúdo das relações
justrabalhistas. Há, finalmente, a elaboração de concepções mistas, que
procuram combinar, na mesma definição, os dois enfoques acima especificados.
A mesma variedade de perspectivas já se verificou, a propósito, no Direito
Comercial (hoje, Direito Empresarial), definido quer como “direito dos
comerciantes” (subjetivismo), quer como “direito regulador dos atos de
comércio” (objetivismo).
É subjetivista a definição exposta por Hueck e Nipperdey: “... o Direito do
Trabalho é o direito especial de um determinado grupo de pessoas, que se
caracteriza pela classe de sua atividade lucrativa (...) é o direito especial dos
trabalhadores. (...) O Direito do Trabalho se determina pelo círculo de pessoas
que fazem parte do mesmo”50
É objetivista a definição exposta por Messias Pereira Donato: “corpo de
princípios e de normas jurídicas que ordenam a prestação do trabalho
subordinado ou a este equivalente, bem como as relações e os riscos que dela se
originam”51.
É definição mista, por sua vez, esta construída por Octavio Bueno Magano.
Expõe o autor que Direito do Trabalho é o “conjunto de princípios, normas e
instituições, aplicáveis à relação de trabalho e situações equiparáveis, tendo em
vista a melhoria da condição social do trabalhador, através de medidas protetoras
e da modificação das estruturas sociais”52.
Dos três enfoques utilizados para a construção de definições, o menos
consistente, do ponto de vista científico, é, sem dúvida, o subjetivista. É que,
considerada a relação de emprego como a categoria fundamental sobre que se
constrói o Direito do Trabalho, obviamente que o ramo jurídico especializado
não irá definir-se, sob o ponto de vista técnico, a partir de qualquer de seus
sujeitos, mas a partir de sua categoria fundamental. Por outro lado, o caráter
50
HUECK, Alfred; NIPPERDEY, H.C. Compêndio de derecho del trabajo. Madrid: Revista de Derecho Privado,
1963, pp 21-22(tradução nossa). Apud DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São
Paulo: LTr, 2011, pp. 49-50
51
DONATO, Messias Pereira. Curso de direito do trabalho. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 6. Apud DELGADO,
Mauricio Godinho. Op. Cit., pp. 49-50.
52
MAGANO, Octavio Bueno. Manual de direito do trabalho. Parte Geral. 4 ed. São Paulo: LTr, 1991, p. 59. Apud
DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., pp. 49-50
51
expansionista desse ramo jurídico tem-no feito regular, mesmo que
excepcionalmente, relações jurídicas de trabalho que não envolvem exatamente
o empregado53 - o que torna o enfoque subjetivista inábil a apreender todas as
relações regidas pelo ramo jurídico em análise.
Não obstante suas deficiências, o enfoque subjetivista não é de todo inválido. De
fato, ao destacar a figura obreira, tem a virtude de enfatizar o caráter teleológico
do Direito do Trabalho, sua qualidade de ramo jurídico dirigido a garantir um
aperfeiçoamento constante nas condições de pactuação da força de trabalho na
sociedade contemporânea.54
Cumpre ressaltar que este autor, ao final do trecho supra citado, enaltece uma
característica essencial do Direito do Trabalho que contribui para iniciarmos nossa tarefa
científica de delimitar a natureza jurídica das obrigações trabalhistas, qual seja, o caráter
fortemente teleológico deste ramo do Direito.
O Direito do Trabalho possui viés teleológico à medida em que se dirige a aperfeiçoar
as condições dos trabalhadores na sociedade contemporânea, conforme cita o autor. As normas
trabalhistas e, logo, as obrigações decorrentes de tais normas, visam melhorar a qualidade de vida
e, para tanto, minimizar a condição hipossuficiente do trabalhador nos contratos de trabalho. Esta
é a razão de ser de tais normas. Vale a pena entender mais do pensamento deste autor trabalhista
para nosso propósito:
O enfoque objetivista de feitura da definição do Direito do Trabalho é mais
satisfatório do que o anterior, em face da circunstância de se construir desde a
categoria jurídica essencial do Direito em questão: a relação empregatícia. A
ênfase no objeto, no conteúdo das relações jurídicas de prestação
empregatícia do trabalho, confere a tal concepção visão mais precisa sobre
a substância e elementos componentes desse ramo jurídico especializado.
Não obstante, o acentuado direcionamento teleológico do Direito do Trabalho –
e que consiste em seu qualificativo diferenciador perante outros ramos jurídicos
– pode descolorir-se nas definições objetivistas, com prejuízo ao desvelamento
da essência desse ramo jurídico especializado.
As concepções mistas, desse modo, têm melhor aptidão para o atendimento da
meta científica estabelecida para uma definição – apreender e desvelar os
elementos componentes de determinado fenômeno, com o nexo lógico que os
mantém integrados.
53
Por exemplo, o trabalhador avulso. (...).
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, pp. 49-50 (grifos
nossos).
54
52
[...]
O Direito Material do Trabalho, compreendendo o Direito Individual e o Direito
Coletivo – e que tende a ser chamado, simplesmente, de Direito do Trabalho,
no sentido lato -, pode, finalmente, ser definido como: complexo de
princípios, regras e institutos jurídicos que regulam a relação empregatícia
de trabalho e outras relações normativamente especificadas, englobando,
também, os institutos, regras e princípios jurídicos concernentes às relações
coletivas entre trabalhadores e tomadores de serviços, em especial através de
suas associações coletivas.55
É possível verificar a partir desta definição de Direito do Trabalho, bem como do
âmbito de sua atuação oriunda dos estudos de Godinho Delgado e, também, a partir da exposição
de Celso Antônio Bandeira de Mello acerca do que significa o regime jurídico administrativo,
alguns pontos de similitude.
Ambos os autores acentuam a característica de sua disciplina de especialização como
ramos autônomos do Direito devido ao fato de existirem princípios próprios de cada uma delas
que norteiam sua interpretação jurídica, regulando, assim, de forma própria, as relações jurídicas
inseridas no âmbito de estudo das mesmas.
Cumpre destacar que, no entanto, existe diferença fulcral entre as sistematizações
propostas por estes autores. Enquanto para Godinho Delgado é a relação empregatícia de trabalho
(e outras relações normativamente especificadas), com algumas particularidades, que define e
estabelece o âmbito de regulamentação do Direito do Trabalho, para Celso Antônio, é a função
administrativa e seus desdobramentos que fazem as vezes para o Direito Administrativo.
Com isto, já iniciamos a desvendar a natureza jurídica das obrigações trabalhistas,
delimitando que a definição do Direito de Trabalho advém, basicamente, da relação
empregatícia56, conseguindo-se, assim, estabelecer um marco para o corte metodológico de nossa
análise.
55
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 51 (grifos
nossos).
56
E de “outras relações normativamente especificadas” de que trataremos a seguir. No entanto, cumpre salientar
desde já que estas “outras relações” citadas pelo jurista são as relações de trabalho que não necessariamente
caracterizam relação de emprego, conforme veremos a seguir.
53
Ainda que para o leitor afoito seja somente lógica a afirmação a seguir, conforme
demonstramos até aqui, não o é para o cientista do Direito, que deve entender os pressupostos
materiais de sua análise científica antes de chegar às conclusões que julga pertinentes.
Deste modo, é possível afirmar que as obrigações trabalhistas decorrem,
necessariamente, ou de relação empregatícia (i.e. relação de emprego como categoria jurídica
stricto sensu da relação de trabalho), ou, ainda, de outra relação de trabalho normativamente
especificada.
Pois bem, após apreendermos a definição da esfera de atuação do Direito do
Trabalho, devemos agora entender o conteúdo jurídico desta especialização da ciência jurídica e
descobrir qual é a categoria básica que junge este ramo do Direito, atribuindo-lhe autonomia
perante os demais. Socorremo-nos, mais uma vez, dos ensinamentos de Godinho Delgado:
Todo sistema consiste em um conjunto de partes coordenadas, que se articulam
organicamente, formando um todo unitário57. Não obstante formado por um
complexo de partes componentes, qualifica-se todo sistema por ter uma
categoria básica, que lança sua marca específica e distintiva ao conjunto do
sistema correspondente.
O Direito do Trabalho, como sistema jurídico coordenado, tem na relação
empregatícia sua categoria básica, a partir da qual se constroem os princípios,
regras e institutos essenciais desse ramo jurídico especializado, demarcando sua
característica própria e distintiva perante os ramos jurídicos correlatos.58
Novamente, quando Godinho Delgado delimita o conteúdo jurídico do Direito do
Trabalho como sistema e, portanto, qual é a categoria básica a partir da qual se constrói a própria
ciência do Direito do Trabalho, a conclusão que se chega é pela relação empregatícia.
Após todas estas considerações temáticas, cabe analisarmos especificamente a efetiva
natureza jurídica do Direito do Trabalho.
57
Caldas Aulete conceitua sistema como um “conjunto de partes coordenadas entre si”. In: Dicionário
contemporâneo da língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Delta, 1986, p. 1793. Apud DELGADO, Mauricio
Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 51
58
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 51 (grifos
nossos).
54
Encontrar a natureza jurídica do Direito do Trabalho consiste em se fixarem seus
elementos componentes essenciais, contrapondo-os ao conjunto mais próximo
de segmentos jurídicos sistematizados, de modo a classificar aquele ramo
jurídico no conjunto do universo do Direito. À medida que esse universo do
Direito tem sido subdividido em dois grandes grupos (Direito Público versus
Direito Privado), a pesquisa da natureza jurídica do Direito do Trabalho importa
em classificar tal ramo especializado em algum dos grandes grupos clássicos
componentes do Direito.
[...]
Roberto de Ruggiero encontra a melhor fórmula de concretização da
mencionada tipologia, ao combinar, em um todo coerente, os dois critérios
acima enfocados. Para o autor, público será o Direito que tenha por finalidade
regular as relações do Estado com outro Estado ou as do Estado com seus
súditos (ideia de titularidade), procedendo em razão do poder soberano e
atuando na tutela de bem coletivo (ideia de interesse). Privado, por sua vez, será
o Direito que discipline as relações entre pessoas singulares (titularidade), nas
quais predomine imediatamente o interesse de ordem particular (interesse)59.
Não há dúvida de que o critério combinado acima exposto está ainda
excessivamente influenciado pela visão individualista tão cara ao velho Direito
Civil e que hoje, cada vez mais, mostra-se inadequada aos avanços
democratizantes da sociedade ocidental contemporânea. De todo modo, o
critério combinado pode ainda ser válido e útil, desde que se substituindo a
noção de pessoas singulares por pessoas privadas, singulares ou coletivas; desde
que se substitua, ainda, a noção de interesse de ordem particular por interesse de
ordem particular, setorial ou comunitária.
Neste debate teórico, o Direito do Trabalho já foi classificado como componente
do Direito Público, por autores de distinta especialização jurídica60. Prepondera,
hoje, entretanto, a classificação do ramo justrabalhista no segmento do Direito
Privado61.
[...]
O posicionamento no grupo do Direito Público estriba-se, fundamentalmente, no
caráter imperativo marcante das regras trabalhistas e na tutela próxima à típica
de matriz pública que confere aos interesses laborais acobertados por suas
regras. Nos modelos justrabalhistas mais autoritários, esse posicionamento
classificatório socorre-se ainda na tendência publicizante (ou estatizante) que
tais modelos conferem a instituições e práticas trabalhistas: por exemplo, a
natureza paraestatal normalmente atribuída a certas instituições essenciais do
novo ramo jurídico (principalmente os sindicatos) ou o papel interventivo
59
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Vol. I. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1971, pp. 46-47. Apud
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 72-75.
60
Ilustrativamente, cf. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Vol. I. 15. ed. São Paulo:
Saraiva, 1977, pp. 8-9 e MAYNES, Eduardo Garcia. Introducción al estúdio del derecho. 7 ed. México: Porrúa,
1956, p. 156. Apud DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., p. 72-75.
61
Ilustrativamente, cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. I. 5. ed. 2ª tiragem. Rio de
Janeiro: Forense, 1978, p. 8. A posição privatística é a preponderante, hoje, entre os modernos autores
justrabalhistas. DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., p. 72-75.
55
explícito do Estado nos procedimentos privados de negociação coletiva (como
através dos dissídios coletivos, por exemplo).
Não obstante os aspectos mencionados, tal procedimento classificatório é
claramente equivocado.
É que a natureza jurídica de qualquer ramo do Direito não se mede em função da
imperatividade ou dispositividade de suas regras componentes. Se tal critério
fosse decisivo, o Direito de Família, formado notadamente por regras
imperativas, jamais seria ramo componente do Direito Civil e Privado.
[...]
[...] o núcleo do Direito do Trabalho (relação empregatícia) não corresponde a
uma categoria jurídica incomunicável com outras categorias correlatas de ramos
jurídicos próximos (por exemplo, relação de trabalho autônomo, relação de
sociedade, de mandato, etc.), o que afasta a necessidade teórica de se formular,
para esse ramo especializado, um gênero próprio, distinto do gênero a que se
filia, ilustrativamente, o Direito Obrigacional Civil.62
De par com isso, a particularidade maior do Direito do Trabalho perante o
Direito Obrigacional Civil – a relevância da noção do ser coletivo em seu
interior, em contraposição ao individualismo prevalecente no Direito Civil – não
é, como visto, característica isolada do ramo justrabalhista, estando hoje
presente em outros ramos do Direito Privado, como o Direito do Consumidor.
De todo o modo, o caráter social do fenômeno jurídico está presente em
qualquer ramo do Direito (mesmo no mais individualista existente), não sendo
apanágio do ramo justrabalhista. Finalmente, a dubiedade teórica (e mesmo
histórica) desse suposto segmento (como já ressaltado) compromete sua própria
funcionalidade para o estudo da natureza jurídica do Direito do Trabalho.
Enfocada a substância nuclear do Direito do Trabalho (relação de emprego) e
seu cotejo comparativo com a substância dos demais ramos jurídicos existentes,
não há como escapar-se da conclusão de que o ramo justrabalhista situa-se no
quadro componente do Direito Privado. À medida que a categoria nuclear do
Direito do Trabalho é essencialmente uma relação entre particulares (a relação
empregatícia), esse ramo jurídico, por sua essência, situa-se no grupo dos ramos
do Direito Privado – em que preponderam relações próprias à sociedade civil,
pactuadas entre particulares63. A justeza dessa conclusão teórica mais se
evidencia pela circunstância de ter essa classificação aptidão de abranger desde
os modelos mais democráticos e descentralizados de normatização trabalhista
até os modelos mais autoritários de normatização juslaboral. É que se sabe,
afinal, que a tutela do Estado do Estado sobre relações privadas não é
incompatível com a natureza de Direito Privado do ramo jurídico em exame –
como se percebe, por exemplo, pelo caso do Direito de Família. 64
62
Aqui o Ministro Godinho Delgado explica porque não caberia uma terceira divisão da ciência jurídica, sustentada
por alguns autores, para se classificar o Direito do Trabalho como integrante de um “Direito Social”, e não do Direito
Privado ou do Direito Público.
63
É o que aponta, por exemplo, GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971,
pp. 29-30, que enxerga no Direito do Trabalho uma “especialização” do Direito Civil (loc. cit.). Apud DELGADO,
Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 72-75.
64
DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., p. 72-75 (grifos nossos).
56
Cumpre destacar que, na seara trabalhista, Renato Saraiva65 também concorda com o
posicionamento de Godinho Delgado.
Concordamos em absoluto com o referido autor, e por isto fizemos constar de nosso
trabalho sua posição na íntegra, pela riqueza de seus argumentos. Não cremos restar qualquer
dúvida que é a relação de trabalho (e, vale dizer, na maioria esmagadora das vezes, relação
empregatícia), o objeto de estudo primordial do Direito do Trabalho e responsável, portanto, pelo
enquadramento de sua natureza jurídica como de Direito Privado.
Portanto, podemos concluir que as obrigações trabalhistas são normas cogentes, ou
seja, indisponíveis, imperativas, mas decorrentes de uma relação de Direito Privado, qual seja, a
relação de trabalho.
Antes de nos aventurarmos em nosso próximo tema de análise, cumpre determo-nos a
esclarecer os conceitos de relação empregatícia e de relação de trabalho para esclarecermos em
definitivo o âmbito de aplicação das obrigações trabalhistas.
A relação jurídica, englobando os sujeitos, o objeto e o negócio jurídico
vinculante das partes, é, como visto, a categoria básica do fenômeno do Direito.
Efetivamente, ela se qualifica como o vértice em torno do qual se constroem
todos os princípios, institutos e regras que caracterizam o universo jurídico.
Ao lado desse caráter geral magnetizador, a relação jurídica ocupa posição de
destaque em cada um dos ramos jurídicos especializados. Na verdade, a
especialização desses ramos surge exatamente à medida que lhes desponta uma
relação jurídica específica, hábil a deflagrar a necessidade de formulação e
desenvolvimento de princípios, regras e institutos jurídicos que sejam
compatíveis e referenciados a essa relação surgida. A particularidade das
relações jurídicas próprias ao Direito Tributário, Direito Comercial, Direito
Penal, Direito Civil (e a particularidade das relações jurídicas nucleares de cada
um dos ramos deste último segmento jurídico: Direito das Coisas, Direito
Obrigacional, Direito de Família etc.) é que irá justificar a construção de
características teóricas e normativas tão distintas para cada um dos clássicos
ramos que compõem o universo jurídico hoje.
No segmento justrabalhista, esse núcleo básico centra-se na relação de trabalho,
mais propriamente na relação de emprego.
65
SARAIVA, Renato. Direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: Método, 2009, pp. 22-23.
57
Relação de Trabalho versus Relação de Emprego – A Ciência do Direito
enxerga clara distinção entre relação de trabalho e relação de emprego.
A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas
caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de
fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de
contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação
de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho
autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras
modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio etc.).
Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de
prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual.
Evidentemente que a palavra trabalho, embora ampla, tem uma inquestionável
delimitação: refere-se a dispêndio de energia pelo ser humano, objetivando
resultado útil (e não dispêndio de energia por serem irracionais ou pessoa
jurídica). Trabalho é atividade inerente à pessoa humana, compondo o conteúdo
físico e psíquico dos integrantes da humanidade. É, em síntese, o conjunto de
atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir a
determinado fim.66
A relação de emprego, do ponto de vista técnico – jurídico, é apenas uma das
modalidades específicas de relação de trabalho juridicamente configuradas.
Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as demais
modalidades de relação de trabalho ora vigorantes.
Não obstante esse caráter de mera espécie do gênero a que se filia, a relação de
emprego tem a particularidade de também constituir-se, do ponto de vista
econômico – social, na modalidade mais relevante de pactuação de prestação de
trabalho existente nos últimos duzentos anos, desde a instauração do sistema
econômico contemporâneo, o capitalismo. Essa relevância socioeconômica e a
singularidade de sua dinâmica jurídica conduziram a que se estruturasse em
torno da relação de emprego um dos segmentos mais significativos do universo
jurídico atual – o Direito do Trabalho.67
Após estas linhas iniciais, Godinho Delgado segue detalhando os critérios de
caracterização da relação empregatícia, que serão importantes para nossas conclusões posteriores.
A proposição de método oriunda das Ciências Sociais, informadora de que “todo
fenômeno sócio – histórico resulta da síntese de múltiplas determinações” 68,
socorre, uma vez mais, o estudioso do Direito na pesquisa acerca da formação e
caracterização da figura jurídica da relação de emprego.
66
Instituto Antônio HOUAISS. Dicionário de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2743. Apud
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 275-276.
67
DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., pp. 275-276.
68
A proposição, como se sabe, é de Karl Marx, embora no século XX tenha também permeado construções teóricas
de outra direção, como o funcionalismo norte-americano.
58
De fato, a relação empregatícia, enquanto fenômeno sociojurídico, resulta da
síntese de um diversificado conjunto de fatores (ou elementos) reunidos em um
dado contexto social ou interpessoal. Desse modo, o fenômeno sociojurídico da
relação de emprego deriva da conjugação de certos elementos inarredáveis
(elementos fático – jurídicos), sem os quais não se configura a mencionada
relação.
Os elementos fático – jurídicos componentes da relação de emprego são cinco:
a) prestação de trabalho por pessoa física a um tomador qualquer; b) prestação
efetuada com pessoalidade pelo trabalhador; c) também efetuado com não
eventualidade; d) efetuada ainda sob subordinação ao tomador dos serviços; e)
prestação de trabalho efetuada com onerosidade.
A CLT aponta esses elementos em dois preceitos combinados. No caput de seu
art. 3°: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de
natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante
salário”. Por fim, no caput do art. 2° da mesma Consolidação: “Considera-se
empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da
atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”.
Tais elementos são, portanto: trabalho não eventual, prestado “intuitu personae”
(pessoalidade) por pessoa física, em situação de subordinação, com onerosidade.
Esses elementos ocorrem no mundo dos fatos, existindo independentemente do
Direito (devendo, por isso, ser tidos como elementos fáticos). Em face de sua
relevância sociojurídica, são eles porém captados pelo Direito, que lhes confere
efeitos compatíveis (por isso devendo, em consequência, ser chamados de
elementos fático – jurídicos).
Não são, portanto, criação jurídica, mas simples reconhecimento pelo Direito de
realidades fáticas relevantes. Também denominados pela mais arguta doutrina de
jurídica de pressupostos69, esses elementos fático – jurídicos alojam-se “... na
raiz do fenômeno a ser demonstrado”70, antecedendo o fenômeno e dele
independendo, embora venham a ser indispensáveis à composição desse
fenômeno71. Conjugados esses elementos fático – jurídicos (ou pressupostos) em
uma determinada relação socioeconômica, surge a relação de emprego,
juridicamente caracterizada.72
Dessa forma, resta evidente: a relação de emprego nada mais é do que uma relação
jurídica do mundo dos fatos (mundo fenomênico), a qual, presentes certos requisitos, o Direito
lhe atribui consequências jurídicas, ou seja, presentes os acima denominados elementos fático-
69
Trata-se da clássica conceituação construída pelo Professor Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, na obra Relação de
Emprego: estrutura legal e supostos. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 163. Apud DELGADO, Mauricio Godinho. Curso
de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 279-280.
70
RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Op. Cit., p. 163. Apud DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., p. 279280.
71
Ibidem. p. 163. Apud DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., p. 279-280.
72
DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., pp. 279-280.
59
jurídicos (ou pressupostos, segundo a doutrina clássica), há relação de emprego e todas as
obrigações trabalhistas dela decorrentes são tidas como legalmente incidentes.
Já a relação de trabalho possui como característica básica a falta de um ou mais dos
elementos fático-jurídicos, acima demonstrados, mas com a presença de outros. Ou ainda, a
presença de todos os elementos fático-jurídicos, mas com alguma excludente legal, absoluta ou
relativa, como é o caso dos servidores públicos, que possuem excludente legal absoluta devido ao
vínculo estatutário e não celetista, ou dos estagiários, com excludente legal relativa, cabendo
prova em contrário para que se prove a existência de verdadeira relação de emprego.73
Podemos concluir este tópico, portanto, afirmando que a natureza jurídica das
obrigações trabalhistas é tipicamente de Direito Privado, pois decorre da existência da relação de
emprego (ou da relação de trabalho, a depender do caso), instituto do Direito Obrigacional Civil e
figura nuclear do Direito do Trabalho; consistindo tal figura na existência da conjunção dos
denominados elementos fático-jurídicos. Estes elementos, por sua vez, consistem em verdadeiros
componentes fáticos de uma relação jurídica que, existentes no mundo fenomênico, qualificam
tal relação como empregatícia ou de trabalho.
73
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, pp. 310-311.
60
4.
A LEI DE COTAS IMPÕE, PORTANTO, UMA OBRIGAÇÃO TRABALHISTA?
Aproveitamos o ensejo do término desta análise acerca da natureza jurídica das
obrigações trabalhistas para verificarmos se, de fato, as imposições legais oriundas da
denominada Lei de Cotas possuem tal natureza trabalhista.
Nossa conclusão não poderia ser outra que não a negativa, ou seja, a obrigação
imposta pela Lei de Cotas à empresa em contratar certo percentual de seus empregados dentre
pessoas portadoras de deficiência ou reabilitadas da Previdência Social não possui natureza
jurídica de obrigação trabalhista e, logo, não pode ser regulada como instituto do Direito do
Trabalho. Explicamos.
Após toda esta análise, desvendamos que o objeto nuclear do Direito do Trabalho
que, inclusive, atribui-lhe natureza jurídica de Direito Privado (conforme a doutrina justrabalhista
analisada), é a relação de emprego ou relação de trabalho.
Pois bem, a relação de emprego (ou relação de trabalho) somente é constituída,
necessariamente, com a existência dos elementos fático-jurídicos. A obrigação de contratar
empregados dentre determinados grupos sociais, no entanto, é regra incidente em momento
pretérito a este.
A regra opera no momento da decisão empresarial de contratar pessoas, ou seja, ainda
não existe relação de emprego nem tampouco de trabalho, ainda não existem os elementos fáticojurídicos, mas em decorrência da regra da Lei de Cotas, o empregador encontra-se obrigado a
tolher seu direito de livre escolha na contratação e, obrigatoriamente, contratar pessoas dentre
aquelas determinadas pela Lei referida.
Lembramos que não criticamos a operatividade desta Lei ou sequer sua
constitucionalidade, pois acreditamos que ela se insere teleologicamente nos fundamentos da
República com a inserção social via trabalho destas pessoas, contudo, não podemos fechar os
olhos para esta nítida contradição.
61
A obrigação da Lei de Cotas nunca poderia ser interpretada como obrigação
trabalhista porque incide nas relações jurídicas que objetiva regular em momento prévio à
instalação de relação jurídico-trabalhista.
Após a efetiva contratação do empregado deficiente ou reabilitado, daí sim,
concordamos que tal relação passa a ser objeto do Direito do Trabalho, aliás, como as outras
relações de emprego ou de trabalho.
Entretanto, quando tal empregado sai da empresa (por vontade própria ou demitido) e
surge novamente a obrigação de se contratar novo empregado dentre aqueles especificados na Lei
de Cotas, outra vez encontramo-nos em situação não objeto do Direito do Trabalho, não
decorrente de obrigação trabalhista, mas sim de outra natureza.
Isso decorre do fato de que a referida Lei impõe que a empresa somente efetue o
desligamento de um empregado contratado em decorrência da Lei de Cotas quando já houver
sido enquadrado novo empregado na mesma situação. Ou seja, uma vez determinado o número
de empregados deficientes ou reabilitados que a empresa deve ter em função do número total de
empregados que possui, permanecendo a variável “número total de empregados” constante,
somente se pode demitir empregado deficiente ou reabilitado quando já tiver sido contratado
novo empregado deficiente ou reabilitado, ou então se estará cometendo infração administrativa.
Note-se: infração administrativa, e não trabalhista.
Após concluirmos que não se trata de obrigação trabalhista, cumpre-nos, agora,
verificar se a natureza jurídica da obrigação imposta pela Lei de Cotas poderia ser interpretada
como limitação administrativa à propriedade.
62
5.
DAS RESTRIÇÕES ADMINISTRATIVAS AO DIREITO DE PROPRIEDADE
O direito de propriedade, assim como todos os direitos de determinado ordenamento
jurídico, sofreu pronunciada evolução desde quando foi inicialmente concebido.
Aquele direito de propriedade absoluto do Código Napoleônico não mais sobrexiste,
pois hoje há outro preceito jurídico nivelado ao status de direito constitucional, que é a função
social da propriedade.
O direito de propriedade não pode mais ser exercido ao bel prazer de seu titular,
como o era na época clássica, mas sim deve ser exercido sempre em consonância com a
denominada função social da propriedade.
Na atualidade, a função social da propriedade é entendida como passível de impor
deveres não somente negativos ao proprietário (i.e. obrigações de não fazer), mas também de
impor deveres positivos ao titular jurídico do direito de propriedade.
Por exemplo, é perfeitamente cabível que, para o devido exercício da função social da
propriedade, determinado Município imponha o dever de construir ao proprietário que, visando a
valorização de sua propriedade, exerce a especulação imobiliária anos a fio enquanto a cidade
cresce em ritmo desenfreado.
Entende-se que a não edificação de área em conjunto com o seu não aproveitamento
em benefício tão somente do proprietário, que vê sua propriedade ganhar valor com o decorrer do
tempo, não se enquadra entre os atos tidos como legítimos. O Poder Público pode obrigar o
proprietário a edificar, obedecido o devido processo legal.
É importante conhecer sobre este tema a posição do civilista Arruda Alvim, no que
tange o o direito de propriedade hodiernamente.
Como se constata, o direito de propriedade, tal como concebido atualmente, não
pode mais ser exercido (nem a coisa utilizada) de forma “absoluta ou,
praticamente, sem limites”, significando-se por absoluto o uso e o exercício com
inteira desconsideração dos outros, o que não desdiz que o direito de
63
propriedade possa, dogmaticamente, no âmbito do direito civil, ainda ser um
direito absoluto, mas com um perfil diferente. Sem embargo disso, deve-se ter
presente que já se vulnerou ou em certa escala se desconheceu atributo do direito
de propriedade (ação reivindicatória), mercê da aplicação direta a caso concreto
do inc. XXIII, do art. 5º, da CF (v. o que está tratado no item 5.11.2 – A
Expropriação do art. 1.228, § 4º, do novo Código Civil (manifestação da função
social da posse) – Hipótese que a transcende), em que se analisa decisão do
TJSP e do STJ, referentes à mesma ação reivindicatória.
[...]
Mas, em vigor, visualizando o direito de propriedade dentro da integralidade do
sistema, particularmente à luz da Constituição Federal, o significado de direito
absoluto perde (ou perdeu) muito. O direito de propriedade – salvo os seus
elementos essenciais, desumíveis do próprio texto da Constituição Federal,
sendo que, se uma faculdade vier a ser afetada, deverá ocorrer a sua
transformação em valor, para o proprietário – poderá sofrer vulneração, em
nome de sua função social, havida como legítima. É com esta ressalva
significativa que a expressão direito absoluto, utilizada entre os civilistas, em
especial os mais antigos, é empregada nesse trabalho. Aliás, a expressão pode
ser utilizada dentro do direito civil com vistas a explicar a operatividade dos
direitos reais.
[...]
Em síntese, essas regras – permissivas ou proibitivas – estão relacionadas com a
edificabilidade, âmbito e volume da edificabilidade ou inedificabilidade,
divisibilidade ou indivisibilidade (como a hipótese da indivisibilidade ex lege,
referente ao módulo rural), modificabilidade ou imodificabilidade,
disponibilidade ou indisponibilidade da propriedade imóvel, convergindo em
uma real gradação de intervenções em nome do interesse público, atingindo
aspectos variados do direito de propriedade ou dele decorrentes.
[...]
Parece que a melhor expressão é a de que no direito contemporâneo verificam-se
delimitações ao direito de propriedade – em função do que se argumentará a
seguir – porquanto não há outros perfis do direito de propriedade, senão aqueles
que se encontram cunhados no direito positivo. As expressões restrições ou
limitações – como se verá da exposição que seguirá – não são rigorosamente
próprias, ainda que seja possível verificarem-se restrições ou limitações
propriamente ditas, mas com esse real significado. Essas chamadas restrições ou
limitações, na realidade, decorrem fundamentalmente do reconhecimento de
outros bens jurídicos, por isso que, vindo a ser protegidos pelo legislador,
acabou-se com isso “restringindo” ou “delimitando” o direito de propriedade.74
74
ARRUDA ALVIM. Comentários ao código civil brasileiro. Livro introdutório ao direito das coisas e o direito
civil. Vol. XI. Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 2009, Cap. 1, Noções Introdutórias, pp. 10-15.
64
Com o pano de fundo teórico fundamentado em León Duguit75, que já defendia ideias
muito além de seu tempo, afirmando que a função social da propriedade havia de ser entendida
como a publicização do Direito Privado de propriedade, vale a pena verificar o entendimento de
Celso Antônio Bandeira de Mello:
Não se trata, propriamente, de restrições ou limitações ao, “direito de
propriedade”, mas de restrições ou limitações à propriedade. Deveras – bem
disse Renato Alessi – não são de confundir propriedade (ou liberdade) com
direito de propriedade (ou direito de liberdade).
[...]
O direito de propriedade é a expressão juridicamente reconhecida à propriedade.
É o perfil jurídico da propriedade. É a propriedade, tal como configurada em
dada ordenação normativa. É, em suma, a dimensão ou o âmbito de expressão
legítima da propriedade: aquilo que o direito considera como tal. Donde, as
limitações ou sujeições de poderes do proprietário impostas por um sistema
normativo não se constituem em limitações de direitos pois não comprimem
nem deprimem o direito de propriedade, mas pelo contrário, consistem na
própria definição deste direito, compõem seu delineamento e, deste modo, lhe
desenham os contornos. Na Constituição – e nas leis que lhe estejam
conformadas- reside o traçado da compostura daquilo que chamamos de direito
de propriedade em tal ou qual país, na época tal ou qual.
[...]
É memorável a série de conferencias proferidas, por Leon Duguit, em 1911, na
cidade de Buenos Aires e que foram convertidas em livro, publicado na França
em 1912, nas quais este jurista expunha a concepção de que o proprietário, ao
invés de titular de um direito subjetivo, era apenas o detentor da riqueza, de
certo modo na condição de gestor de um bem socialmente útil, pois a
propriedade deveria ser concebida, em si mesma, como uma função social – e
não como um direito ajustável a uma função social.
[...]
Surge aqui o primeiro dentre os quatro tópicos que, nesta exposição, nos
propomos a aflorar com base no direito posto, a saber;
[...]
De toda sorte – mesmo prescindido da arbitrariedade interpretativa praticada
pela Suprema Corte – é inegável que o art. 161 impede a intelecção de que a
propriedade utilizada em descompasso com a função social carece de proteção
jurídica. Donde, não ser acolhível o entendimento de que, em nosso direito, a
propriedade é uma função social. Antes, será forçoso concluir que, não o sendo,
75
DUGUIT, León. Las transformaciones generales Del derecho privado desde El Código de Napoleón. 2. ed.
trad. Carlos Posada. Madrid: Francisco Beltran, 1920.
65
deve, contudo, cumprir uma função social, à falta do que assujeita-se, nos termos
das leis existentes ou que se editem, às medidas conformadoras ou a eventual
desapropriação.
[...]
Logo, o direito de usar do bem e dele edificar, assim como o direito de dispor,
são expressões do direito de propriedade, dele inseparáveis, pois é o plexo destes
poderes de uso, gozo e disposição que, em sua unidade, recebe o nome de direito
de propriedade. Elididos estes poderes, nada mais restaria. Daí a impossibilidade
de considerar direitos autônomos, distinguíveis, o direito de propriedade e o
direito de construir, de usar, de gozar ou de dispor do bem.
[...]
Do quanto se disse até aqui já é possível inferir que consideramos exeqüível –
revendo nisto anterior posicionamento sobre a matéria – também esta imposição
legal de sujeições da propriedade a um compromisso positivo com a função
social. Então, parece-nos cabível, por exemplo, a previsão de obrigações de
construir, impostas aos proprietários de terrenos ociosos, ou a de colocá-los no
mercado em prazo fixo, ou mesmo a de sujeitar-se a empreendimentos de
remodelação urbana, à moda do que se estabelece no direito espanhol.76
Neste mesmo sentido é o entendimento de Clovis Beznos:
À luz de nosso ordenamento jurídico, não há incompatibilidade entre o direito de
propriedade e a função social da propriedade, desde que compreendidos o direito
subjetivo em um momento estático, que legitima o proprietário a manter o que
lhe pertence, imune a pretensões alheias, e a função de um momento dinâmico,
que impõe ao proprietário o dever de destinar o objeto de seu direito aos fins
sociais determinados pelo ordenamento jurídico.
(...)
Emerge, todavia, a noção de que, não cumprida pelo proprietário a função social
estabelecida pelo ordenamento positivo, deve o direito de propriedade extinguirse, passando, das mãos de seu titular, ou para o Estado ou para quem lhe de a
função almejada.
Disso se segue que, diante das leis definidoras da função social da propriedade,
encontra-se o Poder Público no dever de impor uma atuação positiva ao
proprietário, sob penalidades inscritas no ordenamento, que, logicamente, devem
conduzir à extinção do uso nocivo ou do não uso e, se preciso for, com a
conseqüente expropriação.77
76
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público.
Revista de Direito Público, São Paulo, n. 84, ano XX, p. 39-45, out-dez 1987.
77
BEZNOS, Clovis. Desapropriação em nome da política urbana. In: DALLARI, Dalmo de Abreu; FERRAZ,
Sérgio. Estatuto da cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 122-123.
66
Assim, verificamos que houve evolução significativa no conceito do direito de
propriedade. É possível afirmar hoje que o perfil do direito de propriedade evolui e é um conceito
fluido, ou seja, a essência do direito de propriedade, o seu núcleo intangível, flui com as
alterações históricas de nossa sociedade.
Quando vivíamos em uma sociedade clássica, este núcleo intangível do direito de
propriedade era muito extenso, a propriedade possuía forte viés individualista.
À medida em que a história progrediu e o conceito de função social da propriedade
foi tomando espaço, este perfil do direito de propriedade alterou-se, seu núcleo intangível
diminuiu, mas é de suma importância ressaltar que ainda é existente.
A discussão atual é acerca de quando determinada imposição à propriedade viola este
núcleo intangível do direito de propriedade e quando não viola, pois se a imposição legal violar o
núcleo essencial do direito de propriedade, haverá sacrifício de direito passível de indenização.
No entanto, se o núcleo do direito de propriedade não foi efetivamente tolhido pela
disposição legal, não há que se falar em indenização, mas sim em mera conformação do direito
de propriedade com as normas e deveres oriundos da função social com a qual esse direito deve
ser exercido em consonância.
Nestes termos, optamos por sistematizar o assunto dizendo que a limitação do direito
de propriedade e o sacrifício do direito de propriedade tratam, na verdade, de dois subtipos do
conceito mais geral de restrições ao direito de propriedade, sendo que o primeiro subtipo não é
passível de indenização, enquanto o segundo sim.
Poderíamos exemplificar a matéria explorando o exemplo de Maria Sylvia Zanella Di
Pietro acerca da servidão administrativa78. Nesse exemplo, o proprietário de determinada fazenda
se vê diante de servidão administrativa quando pelo meio de sua propriedade o Poder Público
decide instalar uma série de torres de alta tensão para levar eletricidade de um Município a outro.
Ainda que não desejemos entrar no mérito da discussão quanto a hipótese caracterizar
algum tipo de desapropriação, parte da doutrina79 enxerga a questão como servidão, mas ainda
78
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 153.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit., p. 153. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador.
São Paulo: Malheiros, 1997, p. 113.
79
67
assim, passível de indenização, pois este proprietário da fazenda viu o núcleo do seu direito de
propriedade tolhido, uma vez que não mais poderá utilizar a propriedade como antes.
Para que possamos entender as diferentes posições doutrinárias hodiernas quanto a
caracterizar um determinado instituto jurídico sacrifício de direito ou mera limitação ao mesmo,
pensamos ser de suma relevância adentrarmos na diferenciação entre teoria interna e teoria
externa da conformação dos direitos fundamentais, conforme preconizado por Robert Alexy80.
Sobre o tema, vale consultar os delineamentos realizados por Ricardo Marcondes
Martins:
Efetuadas essas breves considerações sobre as regras e os princípios jurídicos,
torna-se possível examinar as teorias interna e externa das restrições aos direitos
fundamentais. Pela teoria interna o direito e suas restrições não são passíveis de
dissociação: traduzem-se na mesma realidade - o direito com um determinado
conteúdo. O conceito de restrição é substituído pelo conceito de limite, as
restrições são consideradas imanentes. Essa teoria parte do pressuposto de que as
normas jurídicas são sempre razões definitivas e não prima facie. Ocorre que
nenhuma norma abstrata é absoluta, toda norma abstrata é relativa, vale dizer,
toda prescrição normativa abstrata pode ser afastada diante do peso, nas
circunstâncias, dos princípios opostos.
Daí o acerto da teoria externa. Os valores liberdade e propriedade foram
positivados: consagraram-se na Constituição os princípios da liberdade e da
propriedade. Os direitos fundamentais são tomados, contemporaneamente, como
princípios jurídicos (Martins, R., A Norma Iusfundamental, -2004). Em apenas
um aspecto os valores se diferenciam dos princípios: enquanto os valores têm
caráter axiológico, referem-se ao que é bom; os princípios têm caráter deôntico,
referem-se ao que é devido (Alexy, Teoria, 2002, p. 147). Em tudo o mais há
total correspondência entre os conceitos. Primeiro, portanto, existem os direitos
prima facie à liberdade e à propriedade, decorrentes da positivação dos
princípios da liberdade e da propriedade, depois há a restrição desses direitos.
Insiste-se: no plano abstrato, os direitos não são definitivos, mas prima facie. A
Constituição, por exemplo, impõe ao Estado o dever de respeitar na maior
medida possível — daí a expressão "mandado de optimização" — a autonomia
dos indivíduos, a prerrogativa de auto-administrarem sua esfera jurídica. Esses
direitos prima facie são restringidos por força da ponderação com os demais
princípios positivados.
Os administrativistas, quando afirmam que o poder de polícia não diz respeito a
limitações dos direitos à propriedade e à liberdade, mas a conformações desses
direitos, adotam a teoria interna das restrições aos direitos fundamentais.
80
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008,
capítulos 6 e 9.
68
Pressupõem um sistema formado apenas por razões definitivas. Sem
desprestigiá-los, discorda-se: o sistema no plano abstrato é formado por razões
prima facie, as razões definitivas só surgem como resultado da ponderação
realizada diante do caso concreto. Por isso, adota-se a teoria externa das
restrições aos direitos fundamentais. Não há mera limitação, mas efetiva
restrição das razões prima facie consagradas constitucionalmente. As restrições
não são imanentes, não se encontram desde o início no sistema.81
Posiciona-se, portanto, Ricardo Marcondes Martins afirmando dever prevalecer a
teoria externa das restrições dos direitos fundamentais, pois adepto é da teoria da ponderação de
valores para fins de se verificar no caso concreto qual princípio deve prevalecer. Concordamos
com essa posição.
Apesar de nos filiarmos à corrente teórica fundada por Alexy (e seguida por Ricardo
Marcondes Martins), sentimos a necessidade de fazer constar, ainda que com brevidade, a
interpretação de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre o tema, que parece adotar a teoria
interna consoante a classificação sugerida por Ricardo Marcondes Martins acima explorada.
De todo modo, entretanto, descaberia falar em limitação a direitos, pois os atos
restritivos, legais ou administrativos, nada mais significam senão a formulação
jurídica do âmbito do Direito. Exatamente por isso, é ilegal a ação da
Administração que, a pretexto de exercer o poder de polícia, se interna na esfera
juridicamente protegida da liberdade e da propriedade. Eis por que, se não há
tumulto, descabe dissolver comício sob tal fundamento; se não há ocorrência de
obscenidade, improcede a interrupção de espetáculo público obstado sob tal
justificativa.
Portanto, as limitações ao exercício da liberdade e da propriedade correspondem
à configuração de sua área de manifestação legítima, isto é, da esfera jurídica da
liberdade e da propriedade tuteladas pelo sistema. É precisamente esta a razão
pela qual as chamadas limitações administrativas à propriedade não são
indenizáveis. Posto que através de tais medidas de polícia não há interferência
onerosa a um direito, mas tão-só definição que giza suas fronteiras, inexiste o
gravame que abriria ensanchas a uma obrigação pública de reparar82.
81
MARTINS, Ricardo Marcondes. Poder de polícia. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; ZOCKUN, Maurício (org.).
Intervenções do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 76-77.
82
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
pp. 820-821.
69
Vale destacar que seguimos integralmente o posicionamento, previamente citado,
adotado por Robert Alexy e Ricardo Marcondes Martins. Nesse sentido, destacamos a
importância da diferenciação entre as teorias interna e externa de Alexy para nortear a
compreensão de quando um instituto jurídico trata de sacrifício de direito ou mera limitação e
assim, frente a um caso concreto, podermos elaborar raciocínio jurídico capaz de conduzir à
melhor conclusão.
Entretanto, ainda assim, será a definição conceitual individual de cada operador do
Direito sobre o conteúdo jurídico do núcleo essencial do direito de propriedade que ditará se
houve, no caso concreto, sacrifício ou mera limitação.
70
6.
PROPRIEDADE DA EMPRESA E LIBERDADE DE CONTRATAR: UMA RELAÇÃO
HIERÁRQUICA
Sob este enfoque, são cabíveis algumas considerações sobre a relação entre o
princípio da liberdade de contratar e o princípio da segregação patrimonial.
O ordenamento jurídico brasileiro optou por adotar o princípio da segregação
patrimonial como forma de incentivar a atividade econômica. Isso significa que os sócios ou
acionistas da empresa, no momento em que decidem constituir uma empresa dotada de
personalidade jurídica autônoma, destinam ao empreendimento parcela de seu patrimônio
pessoal, formando, assim, o capital social da pessoa jurídica nascitura.
Quando o ato jurídico de constituição da pessoa jurídica acontece, a parcela do
patrimônio pessoal dos sócios ou acionistas é transferida para o patrimônio desta, ou seja, a
pessoa jurídica passa a ser um núcleo de imputação autônomo de seus sócios ou acionistas, com
patrimônio próprio para responder por suas dívidas e obrigações sociais.
Este processo é de suma importância para que consigamos visualizar mais facilmente
que a personalidade dos sócios ou acionistas não se confunde com a personalidade da empresa,
perfilhando-se autônomas e independentes entre si. Claro, vale dizer que em alguns casos poderá
havera responsabilização dos sócios ou acionistas por atos jurídicos praticados pela empresa, o
que geralmente decorre de algum ato ilícito cometido por sua administração exercida pelos sócios
ou acionistas ou em nome destes. Logo, como a desconsideração da personalidade jurídica não é
a regra em nosso ordenamento, não a aceitaremos.
Dada a existência da segregação patrimonial na atividade empresarial brasileira,
como referimos anteriormente, conclui-se, apenas por lógica, que a contratação de empregados é
realizada, no mundo dos fatos, pela própria empresa, pouco importando se o ato de contratar será
praticado por pessoa natural, seja um administrador nomeado pelos sócios ou acionistas no
contrato social da empresa, seja administrador contratado pelo regime da CLT83, ou sejam os
83
Consolidação das Leis Trabalhistas.
71
próprios sócios ou acionistas da empresa. O ato de contratação, assim como todos os atos da vida
empresarial da pessoa jurídica, serão exercidos em nome desta, e não em nome de seus sócios.
Diante desta premissa, entendemos, portanto, que não seria correto afirmar que,
quando a Lei 8.213/91 prescreveu à empresa a obrigação de contratar um determinado número de
empregados de seu quadro de funcionários dentre portadores de deficiência ou reabilitados da
Previdência Social, estaria tão somente impondo-lhe mais uma obrigação trabalhista, equiparável
ao pagamento de adicional de férias ou do adicional de insalubridade em atividade
comprovadamente insalubre.
Por que a preocupação desta parte de nosso estudo em discutir a natureza jurídica da
obrigação imposta pela Lei de Cotas?
Tentando não nos antecipar às conclusões que traçaremos a seguir sobre este tema,
por ora devemos ressaltar que as obrigações trabalhistas possuem a racionalidade de proteção à
parte hipossuficiente de um contrato, qual seja, o contrato de trabalho na modalidade emprego.
Assim, presentes os requisitos fáticos84, as consequências jurídicas já estão presentes na lei.
Todas as obrigações trabalhistas decorrentes de normas de Direito do Trabalho
existem com a finalidade de que o empregado, em sua posição jurídica frente ao empregador, seja
equiparado em consonância com o princípio da “paridade de armas”.
A própria racionalidade por trás da CLT é a tal proteção; e até mesmo as normas de
saúde e segurança do trabalho, dispostas nas normas regulamentadoras (NRs) emitidas pelo
Ministério do Trabalho e do Emprego para regulação dos artigos da CLT que tratam do tema,
possuem este forte viés de impor obrigações aos empregadores, de modo que as relações jurídicas
beneficiem a ambos, empregador e trabalhador, respeitando a boa segurança e a melhor técnica
médica para preservar a saúde do trabalhador.
Na acepção restrita, o Direito do Trabalho, como conjunto de princípios, regras e
institutos jurídicos dirigidos à regulação das relações empregatícias e outras
84
E aqui vale destacar que o Direito do Trabalho é ramo da ciência jurídica eminentemente fático. Com isso,
queremos dizer que não há a necessidade de formalismos legais excessivos, pois uma vez configurados determinados
requisitos, é comum na doutrina trabalhista os efeitos já estarem dispostos na lei, como por exemplo, a configuração
da relação de emprego.
72
relações de trabalho expressamente especificadas, não abrange, obviamente,
ramos jurídicos em que a categoria básica não seja a relação empregado –
empregador, mas relações nucleares próprias. Por essa razão, não abrange,
ilustrativamente, o Direito Previdenciário, que trata de relações tanto de
empregado como empregador, enquanto sujeitos específicos, com o
Estado/Previdência. Também não abrange o Direito Processual do Trabalho, que
se estrutura em torno da relação processual trilateral e angular, autor – réu –
Estado/juiz.
[...]
Também comparecem ao Direito Material do Trabalho princípios, institutos e
regras do Direito Administrativo do Trabalho, uma vez que a ação
administrativa do Estado no âmbito da gestão empresarial cria direitos e deveres
às partes contratuais trabalhistas, influindo no estuário de condutas jurídicas
próprias ao Direito do Trabalho. É o que ocorre, por exemplo, na
fundamental área de saúde e segurança do trabalho, em que a ação
administrativa e fiscalizadora do Estado tende a ser intensa. 85
Se o empregado detivesse posição jurídica de paridade de poderes negociais com o
seu empregador, tais normas não encontrariam razão de existência.
Neste sentido é o pensamento do já citado Godinho Delgado, quando disserta sobre as
funções do Direito do Trabalho:
Todo Direito, como instrumento de regulação de instituições e relações
humanas, atende a fins preestabelecidos em determinado contexto histórico.
Sendo as regras e diplomas jurídicos resultado de processos políticos bemsucedidos em determinado quadro sociopolítico, sempre tenderão a corresponder
a um estuário cultural tido como importante ou até hegemônico no desenrolar de
seu processo criador. Todo Direito é, por isso, teleológico, finalístico, na
proporção em que incorpora e realiza um conjunto de valores socialmente
considerados relevantes86.
O Direito do Trabalho não escapa a essa configuração a que se submete todo
fenômeno jurídico. Na verdade, o ramo juslaboral destaca-se exatamente por
levar a certo clímax esse caráter teleológico que caracteriza o fenômeno do
Direito. De fato, o ramo justrabalhista incorpora, no conjunto de seus princípios,
regras e institutos, um valor finalístico essencial, que marca a direção de todo o
85
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 63 (grifos
nossos).
86
As relações direito/política são tratadas em dois ensaios do próprio Mauricio Godinho Delgado: (i) Direito e
política: Integração e ruptura na história do pensamento. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte,
Universidade Federal de Minas Gerais, v. 72 jan. 1991, pp. 83-100; e (ii) Política – Introdução à conceituação do
fenômeno. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte,Universidade Federal de Minas Gerais, v. 76,
jan. 1993, pp. 55-93.
73
sistema jurídico que o compõe. Este valor – e a consequente direção
teleológica imprimida a este ramo jurídico especializado - consiste na
melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem
socioeconômica. Sem tal valor e direção finalística, o Direito do Trabalho
sequer se compreenderia, historicamente, e sequer justificar-se-ia, socialmente,
deixando, pois, de cumprir sua função principal na sociedade contemporânea.
A força desse valor e direção finalísticos está clara no núcleo basilar de
princípios específicos do Direito do Trabalho, tornando excetivas normas
justrabalhistas vocacionadas a imprimir padrão restritivo de pactuação das
relações empregatícias87.
Tal função decisiva do ramo justrabalhista realiza, na verdade, o fundamental
intento democrático e inclusivo de desmercantilização da força de trabalho no
sistema socioeconômico capitalista, restringindo o livre império das forçar de
mercado na regência da oferta e da administração do labor humano.
Essa função central do Direito do Trabalho (melhoria das condições de
pactuação da força de trabalho na ordem socioeconômica) não pode ser
apreendida sob uma ótica meramente individualista, enfocando o trabalhador
isolado. Como é próprio ao Direito – e fundamentalmente ao Direito do
Trabalho, em que o ser coletivo prepondera sobre o ser individual -, a lógica
básica do sistema jurídico deve ser captada tomando-se o conjunto de situações
envolvidas, jamais sua fração isolada. Assim, deve-se considerar, no exame do
cumprimento da função justrabalhista, o ser coletivo obreiro, a categoria, o
universo mais global de trabalhadores, independentemente dos estritos efeitos
sobre o ser individual destacado.88
O próprio Direito do Trabalho, como ramo da ciência jurídica, muito se alterou desde
os primórdios do Capitalismo. A exploração excessiva do trabalhador tornara-se a regra após a
Revolução Industrial, já que na ausência de normas cogentes sobre o tema a liberdade de
contratar e de livre negociação operavam somente em nome dos empregadores, que pela alta
oferta de mão de obra barata podiam contratar empregados sob negociação extremamente
onerosa para estes. Foram celebrados contratos sem deveres e com muitos direitos para a classe
empresária em detrimento do bem estar e até, muitas vezes, da saúde dos empregados.89
Foi para combater estes vícios contratuais que surgiu o Direito do Trabalho como é
conhecido hoje no Brasil. Toda a regulação laboral é construída para que os dias de pura
exploração capitalista não se repitam. Daí as normas excessivas, os detalhamentos sanitários, as
87
DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2001
(2 ed. 2004; 3 ed. 2010). Apud DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo:
LTr, 2011, pp. 57-58.
88
DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., 2011, pp. 57-58 (grifos nossos).
89
Ibidem. Capítulo III: Origem e evolução do direito do trabalho, pp. 83-103.
74
pormenorizações regulamentadores, as regras de saúde, higiene e segurança do trabalho, as
onerosas contribuições sociais sobre folha de salários, o alto custo do INSS e, finalmente, todas
as obrigações trabalhistas (como depósito em conta vinculada para o FGTS, o adicional de férias,
o décimo terceiro salário, os adicionais de periculosidade e insalubridade, adicional noturno, vale
transporte, alimentação etc.).90
Sob outro enfoque completamente diferente, a Lei 8.213/91 trouxe uma limitação à
liberdade de contratar. Ora, seria mais uma obrigação trabalhista? Parece-nos que a obrigação em
questão, referida na Lei, não está classificada no mesmo campo das obrigações citadas nos
parágrafos supracitados.
Preocupamo-nos, neste ponto do presente estudo, em não entrar no mérito de nosso
posicionamento acerca da matéria (ainda que as primeiras linhas acima já indiquem para o bom
leitor o início de nosso argumento), enfocando sim nosso entendimento sobre o princípio da
liberdade de contratar.
Este princípio, importantíssimo no Direito Empresarial, consiste em afirmar que o
Estado não pode se imiscuir na iniciativa privada para impor ao particular quem deverá contratar
em sua esfera de exercício de atividade privada.
Enquanto a Constituição Federal determina o concurso público como critério de
seleção e regra para o ingresso do servidor que desempenhará função pública, a iniciativa privada
possui a liberdade de contratar como regra.
Nestes termos, quando a empresa decide contratar um determinado empregado, está
livre para realizar a contratação de quem bem entender91, pautando-se tão somente pelos critérios
que estabelecer como aplicáveis ao caso concreto. No entanto, há liberdade total para contratar?
Cremos que não. Em razão mesmo do que dispõe o próprio Código Civil de 2002,
que regula a atividade empresarial desde a revogação desta parte especial do Código Comercial
de 1850 pela referida Lei 10.406, de 2002, que instituiu o Código Civil.
90
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011, Cap. IV: Origem e
evolução do direito do trabalho no Brasil, pp. 105-132.
91
Partindo do pressuposto de que não se comete nenhuma ilegalidade, como, por exemplo, crime de discriminação,
racismo etc.
75
Corolário direto do princípio constitucional da função social da propriedade é o
princípio contido em seu artigo 421, o princípio da função social do contrato. Vejamos: “Art.
421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”.
O dispositivo em questão condiciona o exercício da liberdade de contratar livremente
a duas limitações: (i) em razão da função social do contrato; (ii) nos limites da função social do
contrato. Dessa forma, a função social do contrato deve tanto fundamentar a constituição do
contrato em questão, como também limitar as relações jurídicas oriundas desse instrumento.
Se no Brasil o direito de propriedade deve ser exercido de acordo com a função social
da propriedade, nada mais coerente de que o direito de contratar livremente também o seja. Ora,
parece-nos lógico que o fundamento constitucional do princípio da função social dos contratos
seja, diretamente, o princípio da função social da propriedade.
Giselda Maria F. Novaes Hironaka preleciona sobre o tema, fundamentando-se em
Orlando Gomes. Ela ensina, no trecho a seguir, a diferença entre “liberdade contratual” e
“liberdade de contratar”. Vejamos:
O conceito de função social, difícil de ser enunciado com precisão, dada a sua
abrangência abstrata, instalou-se no âmago do conceito de direito de
propriedade, vinculando-o ao destino previsto por aquela funcionalidade.
A profunda repercussão social que alcançou o fenômeno da funcionalidade
condicionadora do uso da propriedade mereceu a atenção dos juristas e
legisladores contemporâneos, levando-os a compreender – como o próprio
Duguit já havia previsto – que a qualidade de função social, não a possui apenas
a propriedade, senão, também, projeta-se ela sobre outros institutos do Direito
Privado. Tal projeção tem o condão de fazer com que sobressaiam de sua
essência este atributo condicionador, como se, desde sempre, estivesse ali
presente, ou como se, depois de conferido, impregnasse, indissoluvelmente, a
sua essência.
Desta forma, verificamos, com certa surpresa, que o próprio Direito das
Obrigações, tão refratário às alterações, tão pouco sujeito às mutações de
qualquer ordem, tão pouco permeável às transformações ditadas pela constante
evolução social, até ele se viu sujeito aos efeitos derivados da nova preocupação
de ordem social. É o fenômeno da socialização do Direito das Obrigações.
76
Orlando Gomes, com absoluta lucidez, mostra o novo encaminhamento deste
Direito, ao ponderar, em sua obra Transformações gerais do direito das
obrigações92:
“Orienta-se modernamente o Direito das Obrigações no sentido de realizar
melhor equilíbrio social, imbuídos seus preceitos, não somente da preocupação
moral de impedir a exploração do fraco pelo forte, senão, também, de sobrepor o
interesse coletivo, em que se inclui a harmonia social.”.
O mesmo grande mestre baiano, em outra de suas arrojadas e inovadoras
obras,93vem mostrar a falta de suporte sobre o qual, hoje em dia, equilibra-se
precariamente, por exemplo, o contrato, tal como foi concebido pelo Código
Napoleônico, que conferiu absoluto poder à vontade individual e à liberdade
contratual. Tal poder fazia surgir todos os direitos competentes ao sujeito de
vontade, independentemente de se indagar estar ou não referindo os interesses
dos demais...
E relembra Orlando Gomes, citando as lições de Duguit, quando este examinou
a teoria da autonomia da vontade, tal como vinha sendo encarada pelo sistema
civilista de então, que “todo homem, manifestando licitamente sua vontade,
pode praticar atos que a ordem jurídica sanciona, atribuindo-lhes eficácia”.94
Adiante, rechaçando a intangibilidade do princípio da autonomia da vontade,
entendido como tese fundamental do liberalismo jurídico, Orlando Gomes, ao
tratar das diretrizes da reforma do Direito das Obrigações, demonstrou ser
essencial se lhe comutar as normas supletórias por normas imperativas, de modo
a se restringir a liberdade contratual, pela adição de dispositivos de ordem
pública.
Explica o insigne professor, textualmente, os motivos: “Esta desnaturação de
normas, elidindo a fictícia liberdade de obrigar-se, impedirá a opressão do fraco
pelo forte, do tolo pelo esperto, do pobre pelo rico”. E adiante: “Delimitará,
tanto quanto possível, o conteúdo das convenções, predeterminando direitos e
obrigações.”95
Trata-se de submeter as formas contratuais a “um regime no qual a autonomia da
vontade esteja severamente restringida”, então “as possibilidades da injúria
contratual serão consideravelmente menores, senão nulas”.96
A intervenção do Estado, assim levada a cabo, fez florescer um tempo novo, no
qual os malefícios do liberalismo jurídico foram mitigados pela proteção social
que se estendeu ao mais fraco. As formas contratuais nas quais os direitos
competiam todos a uma só das partes e as obrigações só à outra parte foram
repelidas severamente pelo que se convencionou chamar dirigismo contratual.
Fruto das ideias de Josserand, nos anos 30, o dirigismo contratual foi retomado
por Savatier, duas décadas depois, revelando seus contornos específicos com
92
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo: Max Lemonad, 1955, p. 1. Apud
HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp. 108-110.
93
Idem. A crise do direito. São Paulo: Max Lemonad, 1955, p. 118. Apud HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes.
Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp. 108-110.
94
Ibidem, p. 110.Apud HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Op. Cit., pp. 108-110.
95
GOMES, Orlando. Op. cit., p. 129. Apud HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Op. Cit., pp. 108-110.
96
Ibidem, p. 130.Apud HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Op. Cit., pp. 108-110.
77
sendo uma técnica destinada a traduzir melhor a proteção dos interesses do
contratante economicamente fraco, restringindo a liberdade contratual do
contratante economicamente forte, especialmente no que se refere à discussão do
conteúdo do negócio. Trata-se da sujeição da vontade dos contratantes ao
interesse público, como se por atuação de um verdadeiro freio que moderasse a
liberdade contratual.
Na verdade, haveríamos que nos referir, para bem esclarecer as posições, à
diferença existente entre estes dois aspectos da liberdade individual nos
contratos, que se mostram, a um só tempo, tão distantes, mas ainda tão
confundidos. São dois lados da mesma moeda, mas cada qual deles deve ser
analisado de per si, sob pena de não se entender com clareza toda esta nova e
interessantíssima dimensão de contrato. Falamos da liberdade de contratar e da
liberdade contratual.
A liberdade de contratar ainda é aquela mesma liberdade facultada a todos os
indivíduos de realizarem, materialmente, suas avenças, sem a indagação a
respeito de conteúdo mais ou menos restritivo, imposto pela ingerência estatal.
Em outras palavras, revela a plena liberdade que cada um tem de realizar
contratos, ou não os realizar, de acordo com a sua exclusiva vontade.
Mas, diferentemente, apresenta-se a liberdade contratual que, no dizer de Álvaro
Villaça Azevedo, é “considerada como a possibilidade de livre disposição de
interesses, pelas partes, no negócio”.97
Enfoca o momento em que as partes cuidam de discutir e acomodar o conteúdo
do contrato e definem suas cláusulas.
Este é o momento crítico da formação do contrato, porque, aqui, se esta
liberdade não resultar similar para ambas as partes da avença, ocorrerá a
injustiça social, com a repetição do fenômeno opressivo realizado pelo mais
poderoso contra o mais desfavorecido.
Mas é neste passo que é possível se falar em limitações, em condicionamentos,
em restrições. Este é o instante suscetível de uma maior interferência dos
mecanismos próprios, no sentido de se obter, como resultado, uma minimização
da desigualdade e da opressão.
Ainda Álvaro Villaça Azevedo é quem oferece a lição, ao demonstrar que a lei,
fixando os moldes para que a liberdade privada não ultrapasse os limites da
normalidade , comenta: “A liberdade há que condicionar-se, emoldurando-se na
lei, para ser liberdade condicionada, não ser liberdade escravidão, instrumento
dos que atuam de má-fé, em detrimento da própria sociedade”.98
A ideia dos limites impostos à liberdade contratual resulta do próprio fenômeno
da publicização do Direito Privado, através da interferência do Estado nas
relações havidas entre particulares, em atenção às exigências do bem comum, do
interesse coletivo, num último passo.
97
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Liberdade contratual. Enciclopédia Saraiva do Direito, n. 49. São Paulo: Saraiva,
1977, pp. 370-371.Apud HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey,
2000, pp. 108-110.
98
Idem. Contratos inominados ou atípicos. São Paulo: Bushatsky, 1975, passim. Apud HIRONAKA, Giselda Maria
F. Novaes. Op. Cit., pp. 108-110.
78
Não é difícil, por fim, inferir-se a concepção de que também o contrato, assim
como a propriedade, possui uma função social, que lhe é inerente e que não
pode, absolutamente, deixar de ser observada.99
Vale frisar que a Lei de Cotas limita a própria liberdade de contratar, e não a
liberdade contratual. Este é um aspecto de suma importância, pois em razão disso defendemos
que a restrição administrativa, neste caso, não pode ser de natureza trabalhista, pois se o fosse,
necessariamente, teria que limitar a liberdade contratual.
A liberdade contratual no Direito do Trabalho é frequentemente limitada, até pelo
fenômeno da publicização do Direito Privado, pois há limites para o número de horas trabalhadas
diariamente, para o intervalo interjornada de trabalho, para o horário das refeições, acerca das
normas de segurança e saúde do trabalho, enfim, o Direito do Trabalho, efetivamente, limita a
denominada liberdade contratual porque o exercício da liberdade contratual já pressupõe a
existência do vínculo jurídico entre as partes, ou seja, a parte exerce sua liberdade de contratar e,
para dar substância a tal direito, exerce a outra garantia, a de liberdade contratual. Esta última sim
frequentemente limitada pelo Direito do Trabalho, mas não a primeira.
A nosso ver, a liberdade de contratar é a liberdade de escolha das partes de quanto a
entrar ou não em determinada relação jurídico- contratual, enquanto a liberdade contratual é a
liberdade das partes de delimitar como tal relação jurídica operará materialmente.
Reiteramos, portanto, que a Lei de Cotas incide em momento anterior ao do exercício
da liberdade contratual, pois impõe limitação à própria garantia da liberdade de contratar da
empresa, ao determinar a contratação de um percentual de empregados a partir de um grupo
específico de pessoas.
Por isso, neste momento de nosso trabalho, houve a necessidade de aprofundamento
na doutrina civilista e empresarial, para que pudéssemos argumentar com propriedade acerca de
temas que o Direito Administrativo e o Direito do Trabalho por si só não esgotam.
O princípio da função social da propriedade possui âmbito de aplicação mais amplo
do que o princípio da função social do contrato. A função social de um direito fundamental como
99
HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, pp. 108-110.
79
o de propriedade engloba e obriga que diversos outros institutos jurídicos devam obedecer à
mesma imposição constitucional.
É o caso dos contratos. Como a propriedade deve cumprir sua função social, nada
mais coerente e justo que o mesmo ocorra com os contratos, haja visto que a maior parte das
propriedades, tangíveis ou intangíveis, circulam dentre as esferas patrimoniais das pessoas de
uma determinada sociedade por meio de contratos.
A riqueza se transfere entre as pessoas e a economia de uma sociedade se movimenta,
na sua maior parte, através de contratos; logo, este importante instituto jurídico também deve
subordinar-se à cláusula constitucional que limita o exercício do direito de propriedade à sua
função social.
Todo este raciocínio presta-se a demonstrar que se o princípio da função social dos
contratos é corolário do princípio da função social da propriedade, é somente lógico e coerente
concluirmos que a liberdade de contratar seja corolária do próprio direito de propriedade, como
garantia individual constitucionalmente tutelada.
Se a empresa possui o direito de propriedade sobre os seus bens e meios de produção,
logicamente, ela deverá ser hábil para contratar pessoal que entenda adequado e competente a
atingir os objetivos sociais que se encontram previstos em seu respectivo estatuto ou contrato
social.
É nestes termos que afirmamos ser a liberdade de contratar, neste caso, corolária da
propriedade empresarial, pois se a empresa é proprietária e titular de seus meios de produção, e o
pessoal por ela contratado para atingir os objetivos sociais faz parte dos meios de produção da
empresa, a empresa deve ser livre para contratar quem entender melhor capacitado para que ela,
como empresa, atinja o seu objetivo social.
É importante frisar que não estamos tentando precarizar a força de trabalho da
sociedade ou tampouco considerar o ser humano objeto, dizendo que nada mais é do que
propriedade da empresa em que trabalha. Aliás, ao contrário.
Nossa ideia é simplesmente afirmar que, como a empresa possui a titularidade da
universalidade de fato e da universalidade de direito, que constituem os meios de produção para a
80
consecução de seus objetivos sociais, todos os seus ativos passam a ser contabilmente registrados
como de sua titularidade.
Portanto, a empresa possui ampla liberdade para, dentro dos limites legais,
administrar estes ativos da melhor forma possível na consecução de seus objetivos.
Para cumprir sua função social como empresa, e, assim, dentro do âmbito do direito
de livremente dispor de seus ativos como melhor entender para atingir seus objetivos sociais, está
a liberdade de contratar aqueles que julgar mais aptos para o desenvolvimento das funções
empresariais.
É neste sentido que a força de trabalho de determinada empresa se insere no contexto
interpretativo que circunda o princípio da liberdade de contratar e de seu instituidor, o direito
fundamental à propriedade, lembrando que ambos devem ser exercidos em razão e nos limites da
função social.
Com estas considerações, estabelecemos a relação existente entre os dois institutos
ora cotejados, o princípio da liberdade de contratar e a garantia fundamental do direito de
propriedade, com suas respectivas limitações jurídicas, a função social do contrato e a função
social da propriedade.
Partindo do pressuposto de que rejeitamos a natureza jurídica da obrigação decorrente
da Lei de Cotas como de obrigação trabalhista e, portanto, não regulável pelos princípios
inerentes ao Direito do Trabalho como ramo do Direito Privado, cumpre-nos esboçar uma
resposta para a indagação inicial.
Afinal, a obrigação decorrente da Lei de Cotas, na verdade, possuiria natureza
jurídica de limitação administrativa ao direito de propriedade?
81
7.
A LEI DE COTAS IMPÕE, AFINAL, UMA LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA AO
DIREITO DE PROPRIEDADE?
Ante o exposto, até para não nos repetirmos nos argumentos colacionados, cremos
que a imposição da Lei de Cotas às empresas quanto a contratar sempre um determinado número
de seus funcionários dentre pessoas portadoras de deficiências ou pessoas reabilitadas da
Previdência Social possui natureza jurídica de limitação administrativa a direito, mas não ao
direito de propriedade diretamente e sim à garantia da liberdade de contratar.
Cumpre salientar, no entanto, que esta nossa conclusão é válida tão somente se
nossos pressupostos forem tidos como aceitos. Explicamos.
Para nós, e tomamos o devido cuidado de explicar detalhadamente nossa posição, o
direito à liberdade de contratar da empresa é corolário do direito de propriedade da empresa.
Ademais, a garantia da liberdade de contratar da empresa é distinta da garantia à liberdade
contratual da empresa. Esta última é frequentemente limitada pelo direito do trabalho, enquanto a
primeira não o pode ser.
Consequentemente, se o direito de propriedade deve obedecer e cumprir a função
social da propriedade, também deve o direito à livre contratação obedecer e cumprir a função
social dos contratos.
Para detalhar melhor como exercer a função social neste caso, cumprindo com o
objetivo constitucional que já antecipamos acima, adveio a Lei de Cotas. Tal norma prescreveu
que um dos limites ao exercício do direito de livremente contratar empregados100 é a compulsória
contratação de um determinado número de pessoas, socialmente eleitas e validadas pelo corpo
legislativo dessa sociedade, como indivíduos que carecem de inserção social, sendo o trabalho o
meio eleito legislativamente para efetivar a inserção social.
100
Em razão da função social que o contrato de trabalho deve cumprir e que, por sua vez, somente se aplica porque o
próprio direito de propriedade da empresa possui limites na sua própria função social também.
82
Partindo de nosso pressuposto de que o princípio da liberdade de contratar decorre
diretamente da garantia fundamental do direito de propriedade (lembrando, sempre, que ambos
devem cumprir sua função social), podemos concluir, passando por todo o raciocínio jurídico
acima explorado, que a obrigação decorrente da Lei de Cotas possui natureza jurídica de
limitação administrativa à liberdade de contratar, e, portanto, indiretamente, trata-se de limitação
administrativa ao direito de propriedade.
Ressaltamos, contudo, que caso o intérprete do Direito não assuma as mesmas
premissas, a conclusão pode ser outra. Não cremos ser possível no presente estudo esgotar
totalmente o tema, mas simplesmente introduzi-lo para que o debate seja instaurado.
Pensamos, neste momento, ser cabível tecer algumas breves considerações acerca do
motivo pelo qual acreditamos estar diante de uma limitação administrativa a direito e não diante
de sacrifício de direito.
A diferença fundamental entre a limitação e o sacrifício de direito é que o segundo
expropria o titular do direito de seu núcleo essencial, ou de parcela deste, esvaziando o direito e,
portanto, acarretando o dever do Estado de indenizar o expropriado.
Por essa razão, a obrigação decorrente da Lei de Cotas é aqui tratada como limitação
administrativa a direito e não como sacrifício de direito. Trata-se de uma conformação do direito
à regulação legislativa de seu exercício, ou seja, o núcleo essencial do direito não está sendo
tolhido por meio de Lei ou qualquer outro ato.
Conforme já tivemos a oportunidade de mencionar, adotamos a teoria externa de
Alexy sobre a restrição aos direitos fundamentais, assim como também a adota Ricardo
Marcondes Martins101.
Diante deste caso concreto, o perfil do direito de propriedade (ou direito de liberdade
de contratar) foi delimitado após a ponderação entre os valores da igualdade - que obrigariam a
que, por meio desta ação afirmativa que a Lei de Cotas trouxe à baila, se assegurasseo direito à
inserção social das pessoas tuteladas pelo referido diploma legal -, frente ao direito de
propriedade da empresa (ou direito de liberdade de contratar), que faria com que esta pudesse
101
MARTINS, Ricardo Marcondes. Poder de polícia. In: PIRES, Luis Manuel Fonseca; ZOCKUN, Maurício (org.).
Intervenções do Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pp. 76-77.
83
livremente dispor sobre seus meios de produção, inerentes à atividade empresarial, o que a leva,
inexoravelmente, ao seu direito de livremente contratar empregados dentro dos padrões que julga
pertinentes, não cabendo ao Estado, a priori, imiscuir-se no âmbito de liberdade intrínseco à
pessoa jurídica e obrigá-la a contratar este ou aquele indivíduo.
Neste cenário, a Lei de Cotas optou por fazer prevalecer o direito à inserção social, o
direito à igualdade, o princípio da isonomia material; e, por meio desta ação afirmativa, afastou,
ainda que parcialmente (pois somente empresas consideradas médias ou grandes estão obrigadas
pela referida Lei e somente um pequeno percentual de seus empregados é abarcado pelo regime
das Cotas), o direito de propriedade pleno da empresa, conformando tal direito ao exercício de
sua função social, quando impôs a obrigação de que trata.
Quando a Lei de Cotas impôs que o direito de propriedade e, logo, o direito à
liberdade de contratar, somente seriam exercidos conformados aos princípios abrangidos pelo
ordenamento jurídico, ainda que isso represente uma limitação administrativa, como o regime de
contratação previsto por essa lei, somente delimitou o perfil do núcleo essencial de tais direitos,
não estando, portanto, sujeita a quaisquer vícios de constitucionalidade, ao contrário, afirma a
ordem jurídica como baseada em valores maiores do que a propriedade clássica, ilimitável.
Diferente seria se a Lei de Cotas, ao invés de impor um percentual máximo de 5%,
para empresas com mais de mil empregados, determinasse um percentual de 50% (ou algum
outro número exorbitante) dos empregados contratados em todos os casos, independentemente do
número total de trabalhadores da empresa.
Neste caso estaríamos claramente atingindo o núcleo do direito de propriedade da
empresa em si, ainda que indiretamente, pois se estaria impedindo a livre contratação em níveis
inaceitáveis, sacrificando tal direito da empresa em favor de outrem, logo, seria necessário que se
a indenizasse para que nenhuma inconstitucionalidade se firmasse. Caso não houvesse tal
indenização, estaríamos diante de lei patentemente inconstitucional, violadora do núcleo
essencial da garantia fundamental ao direito de propriedade, mesmo que estejamos falando de um
direito de propriedade mobiliário, diferente do tradicional direito de propriedade imobiliário.
Todavia, vale destacar que, ainda que estejamos lidando com bens móveis, muitas
vezes até intangíveis, quais sejam, os meios de produção empresariais, mesmo assim estamos
84
diante do direito de propriedade, cujo núcleo essencial é assegurado pela própria Carta Magna de
1988, no caput de seu artigo 5° e inciso LIV.
Neste momento do presente trabalho, passa a ser de fundamental valia entrarmos em
outro tema que é somente lógico a partir de nossos esforços até aqui: quais são as consequências
de tratarmos a obrigação decorrente da Lei de Cotas como limitação administrativa a direito e não
como obrigação trabalhista?
Para respondermos tal questionamento, optamos por aprofundar a doutrina brasileira
sobre as categorias jurídicas tratadas pelas limitações administrativas a direitos e, posteriormente,
identificarmos dentre aquelas categorias qual entendemos ser a mais adequada para caracterizar a
obrigação decorrente da Lei de Cotas.
Com isso, estaremos aptos a estabelecer as consequências a que esta nova
classificação pode nos levar.
85
8.
APROFUNDANDO AS LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS: OS DIVERSOS
MODOS
DE
INTERVENÇÃO
NA
VIDA
PRIVADA
DECORRENTES
DA
ADMINISTRAÇÃO ORDENADORA
Quando tratamos inicialmente sobre este tema, não nos preocupamos em fazer estudo
minucioso porque nosso objetivo era, somente, classificar a essência da obrigação decorrente da
Lei de Cotas, se de natureza trabalhista ou de natureza tipicamente administrativa.
Por isso, acabamos adotando a teoria genericamente aceita acerca das limitações
administrativas para podermos fazer nossa análise, a qual acabou por tomar o viés de classificar a
Lei de Cotas sob a gama de princípios, institutos, direitos e obrigações do Direito Administrativo
e não do Direito do Trabalho.
Cumpre-nos,
neste
momento,
aprofundarmos
esta
matéria,
pois
é
deste
aprofundamento que extrairemos as consequências jurídicas desta nossa nova classificação.
Cientes do conceito de ordenação administrativa, retomaremos a doutrina de Carlos
Ari Sundfeld para compreendermos sua teoria acerca das técnicas empregadas pela
Administração Ordenadora.
Estabelecido e aclarado o conceito de administração ordenadora, cumpre traçar
rápido painel dos diversos modos de intervenção na vida privada por ela
adotados.
[...]
O segundo volta-se à regulação administrativa do exercício dos direitos
titularizados pelos particulares, de modo a definir-lhes o perfil. Aqui, o exame
da atividade administrativa deve ter duplo enfoque. De um lado, cuida-se de
identificar as espécies de situações passivas a que podem ser submetidos os
titulares de direitos, as quais denominaremos globalmente de condicionamentos
administrativos de direitos, com três espécies: limites do direito (deveres de não
fazer), encargos do direito (deveres de fazer) e sujeições do direito (deveres de
suportar). De outro, será preciso conhecer as correlatas competências da
Administração. Essa categoria corresponde em parte à noção atual de limitações
administrativas, ampliada com a teoria dos encargos e sujeições que, conquanto
traduzam medidas diversas de imposição do dever de abstenção, cumpre
idêntico objetivo: definir o âmbito do exercício lícito dos direitos.102
102
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.
26-27 (grifos nossos).
86
Para determinar o âmbito de atuação da doutrina citada no presente trabalho,
interessa-nos, primordialmente, a parte denominada acima como o “segundo” modo de
intervenção na vida privada que a Administração Ordenadora realiza, comumente chamado de
limitações administrativas ao exercício de direitos.
Pois bem. Tratemos do direito que já estudamos previamente, a liberdade de contratar
das empresas. Como será realizado o seu exercício? Resta esclarecido que pode ser exercido livre
de limitações legais (obedecidos os requisitos mais amplos do ordenamento jurídico, como, por
exemplo, não discriminação, entre outros) até que a empresa atinja o número de 99 empregados,
pois a partir do centésimo, tal direito começa a sofrer limitações, quando então necessariamente a
empresa deverá destinar uma parcela de suas vagas à população específica tratada pela Lei de
Cotas.
A Lei de Cotas nada mais fez do que impor condicionamento administrativo para o
regular exercício do direito de livremente contratar empregados das empresas, pois a partir de
determinado momento, de acordo com o porte da empresa, deverá arcar com uma típica
obrigação de fazer, qual seja, contratar determinadas pessoas.
Com isso, visualizamos a classificação da obrigação decorrente da Lei de Cotas nesta
categoria que Carlos Ari Sundfeld define como condicionamentos administrativos de direitos,
mais especificamente na modalidade de encargos de direitos. Isso decorre do fato de que há
imposta uma típica obrigação de fazer às empresas para que o direito da liberdade de contratar
seja exercido dentro do perfil que a Lei traçou.
Partiremos então da análise dos próprios condicionamentos administrativos de
direitos, para melhor compreendermos porque a Lei de Cotas é típico exemplo desta forma de
intervenção estatal na vida privada. Para tanto, devemos traçar considerações sobre cada um dos
três tipos de condicionamentos que Carlos Ari elucida e, ao final, averiguar se, de fato, estamos
diante de condicionamento administrativo de direito do tipo encargo de direito, quando se analisa
minuciosamente a obrigação decorrente da Lei de Cotas.
Após esse esforço classificatório, entraremos na parte fulcral do trabalho que é
delimitar as competências da Administração neste cenário que nos permitam desenhar o modelo
87
institucional que julgamos ser o próximo passo para a concretização da inserção social ora
pleiteada, obedecendo, claro, o princípio da legalidade.
As pessoas são titulares de direitos, reconhecidos e garantidos pelo Estado, por
força da Constituição e das leis, ou mesmo atribuídos por ato administrativo
específico. Os direitos não são, porém, ilimitados, no sentido de estarem livres
da incidência de atos estatais. Essa incidência existe, e corresponde ao exercício
normal e necessário da autoridade pública.
Como já expusemos anteriormente, os direitos são atingidos por duas espécies
de atos estatais, cuja distinção é radical e importante: de um lado, os que
condicionam o direito, de outro, os que sacrificam-no.
Os direitos dos particulares são produto do Ordenamento; não o precedem nem
existem fora dele. Por isso, é normal que os atos estatais definam seu conteúdo,
ditando as condições de seu regular exercício. Os condicionamentos são a
definição do campo legítimo de expressão do direito.
De outra parte, os direitos podem, em certas situações, ser sacrificados, total ou
parcialmente. Tratando-se da diminuição de algo atribuído pela ordem jurídica
aos indivíduos, é compreensível que o sacrifício seja cercado de garantias
especiais e propicie uma compensação.
O estudo disso, a que denominamos condicionamentos de digitos, é realizado
pela doutrina do direito administrativo sob a rubrica “poder de polícia” ou
“polícia administrativa''. Trata-se de noção insuficiente, perigosa e confusa, cuja
utilidade cremos totalmente superada. Por isso, propomos seu completo
abandono, em favor de nova categoria.
O exame da interferência administrativa voltada a definir o campo legítimo de
atuação dos particulares deve adotar dois prismas diversos, embora conexos. De
um lado, necessário analisar as espécies de situações subjetivas passivas a que
podem ser submetidos os titulares de direitos.103 De outro, as competências de
que dispõe a Administração, por conta dessas situações subjetivas. Em outras
palavras, é mister conhecer ambos os lados da relação jurídica que essa especifica atividade administrativa enseja. E o que intentamos fazer neste e no capítulo
seguinte, o primeiro dedicado a conhecer o ângulo do administrado, o segundo
o da Administração.
Infelizmente, a doutrina administrativista não tem procedido com clareza a essa
singela decodificação da relação jurídica, e por isso trabalha sobre aspectos
parciais, mal organizados e, em consequência, mal estudados.104
103
A doutrina normalmente analisa o tema sob o título limitações administrativas. Cf. Manuel Maria Diez, Derecho
administrativo, vol. IV, p. 173 e ss.; José Roberto Dromi, Derecho administrativo econômico, vol. II, p. 289 e ss.;
Fernando Andrade Oliveira, Limitações administrativas à propriedade imobiliária privada; Hely Lopes Meirelles,
Direito de construir, p. 85 e ss. Apud SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3.
tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 53-54.
104
SUNDFELD, Carlos Ari. Op. Cit., pp. 53-54.
88
É importante pontuarmos que concordamos e adotamos a posição do autor: o termo
mais correto a ser adotado, cientificamente, não é “poder de polícia”, mas sim o conceito de
“ordenação administrativa”.
O poder de polícia restaria superado pela ordenação pelo fato de não conseguir
explicar, sem “malabarismos interpretativos”, principalmente, os encargos de direitos. A
obrigação de fazer imposta a particular em decorrência de outras normas do ordenamento
jurídico, possivelmente e muitas vezes fundamentada na própria função social (eg. do contrato ou
da propriedade), não é explicada pelo poder de polícia, que se limita a abranger as obrigações de
abstenção, ou seja, as obrigações de não fazer.
Por isso adotamos a teoria dos condicionamentos administrativos proposta pelo autor
citado. Devemos, no entanto, salientar que limitamo-nos a abordar a teoria administrativista
tradicional sobre limitações administrativas simplesmente porque nosso propósito não era
aprofundar o tema, mas sim apresentá-lo para poder classificar, de maneira geral, a obrigação
decorrente da Lei de Cotas como de natureza administrativa ou trabalhista.
Vencida esta etapa, adentramos na minúcia da teoria do Direito Administrativo
contemporâneo para fixarmos nosso entendimento e traçarmos conclusões de acordo com esta
posição doutrinária, mais arrojada do que a clássica concepção sobre limitações administrativas.
Por isso trouxemos a teoria dos condicionamentos administrativos a direitos. Cremos
que a obrigação decorrente da Lei de Cotas encaixa-se perfeitamente sob esta rubrica, pois suas
características são exatamente as mesmas: (i) situação subjetiva passiva; (ii) imposta pela
Administração ou apenas controlada por ela; (iii) ao titular do direito; (iv) para definir as
condições de seu exercício regular105.
Trataremos agora de detalhar nossa análise, para que não reste dúvida sobre a
assertiva de que a obrigação decorrente da Lei de Cotas é uma espécie de condicionamento a
direito do tipo encargo, ou seja, uma obrigação de fazer imposta aos particulares para fins da
105
Os condicionamentos administrativos são as situações subjetivas passivas, impostas pela lei e controladas pela
Administração (ou impostas pela Administração Pública, com base em lei, e por ela controladas), aos titulares de
direitos, para definir seu campo de legítimo exercício, traduzidas em deveres de não fazer (limites do direito), fazer
(encargos do direito) ou suportar (sujeições). São, portanto, suas características: a) situação subjetiva passiva; b)
imposta pela Administração ou apenas controlada por ela; c) ao titular do direito; d) para definir as condições de seu
exercício regular. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1 ed. 3. tiragem. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 54.
89
delimitação do regular exercício do direito em questão, qual seja, a liberdade de contratar das
empresas.
[...]
a) A ordenação administrativa da vida privada é feita com o emprego de várias
técnicas. A instituição de condicionamentos serve à regulação do exercício dos
direitos de que o sujeito disponha (por outorga da Constituição, da lei ou de ato
administrativo). Desse modo, a atuação administrativa estará envolvida com a
criação ou controle de situações passivas.106
A empresa possui liberdade de contratar como direito prima facie, no entanto, o
ordenamento jurídico positivo brasileiro, por meio da Lei de Cotas, impôs regulação deste direito
através da implementação de obrigação de fazer às empresas (obrigação de contratar as pessoas
que descreve, na quantidade prevista), logo, as empresas encontram-se em situação passiva desta
obrigação criada e controlada pela Administração, conforme qualificado por Carlos Ari Sundfeld.
Nosso argumento sobre a natureza jurídica da Lei de Cotas, portanto, encontra-se em consonância
com esta primeira característica descrita.
[...]
b) Os condicionamentos de direitos são administrativos quando a lei, ao prevêlos, atribui à Administração poderes explícitos para atuar (impondo-os
concretamente, fiscalizando seu exercício, sancionando, etc.). Nesse caso,
instaura-se relação jurídica entre o titular do direito e a Administração: aquele
será sujeito passivo do dever de atender aos condicionamentos e esta o sujeito
ativo.107
Nossa opção teórica por encaixar a Lei de Cotas sob a rubrica de condicionamento
administrativo de direito é adequada a esta característica exposta por Carlos Ari Sundfeld; em
momento prévio tomamos o cuidado de explicar como é hoje o regramento desta matéria.
É de competência da fiscalização federal do Ministério do Trabalho e Emprego MTE verificar o cumprimento da norma decorrente da Lei de Cotas e, possivelmente, autuar os
106
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1 ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
54.
107
Ibidem, pp. 54-55 (grifos nossos).
90
infratores, quando for o caso. A Administração Ordenadora é sujeito ativo da fiscalização do
cumprimento da lei e a empresa, sujeito passivo do dever de atender à obrigação dela decorrente.
[...]
c) A imposição aos particulares dos condicionamentos de direitos é técnica da
administração ordenadora destinada a compatibilizar o usufruto das liberdades
públicas com interesses coletivos. Não se confunde com a imposição de deveres,
feita pela Administração aos indivíduos, independentemente da titularidade ou
exercício de algum direito. Dois exemplos aclaram essas noções. O exercício do
direito de reunião é condicionado ao prévio aviso à autoridade competente (CF,
art. 5°, XVI). O aviso é condicionamento, visto traduzir situação subjetiva
passiva a que se submetem os indivíduos que pretendam exercer seu direito de
reunião. A prestação de serviço militar é dever administrativo, imposto a
determinados sujeitos, sem vínculo direto com o exercício de qualquer direito.108
A análise desta característica dos condicionamentos explorada por Carlos Ari
Sundfeld é muito interessante do ponto de vista da Lei de Cotas. Voltando ao nosso caso, a
empresa possui ampla liberdade, como entidade autônoma, de contratar quem acredita ser a
melhor pessoa para um certo cargo. No entanto, é de interesse coletivo que as pessoas portadoras
de deficiência e as reabilitadas da Previdência Social possuam emprego para se inserirem
socialmente por meio de seu próprio trabalho. Foi criada, então, por meio de Lei uma obrigação
às empresas de destinar pequena parcela do seu quadro de empregados necessariamente para tais
pessoas.
Assim, para a empresa exercer a liberdade pública em questão (i.e. liberdade de
contratar) de maneira compatível com o interesse coletivo (i.e. inserção social destas pessoas), foi
criado o mecanismo da Lei de Cotas.
Da mesma forma que o direito de reunião é condicionado ao aviso prévio à
autoridade competente, a liberdade de contratar da empresa é condicionada à contratação de
determinadas pessoas, em quantidade fixa, a partir de um dado número de empregados
registrados na empresa.
108
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
56 (grifos nossos).
91
Parece-nos que este raciocínio é muito mais coerente do que dizer, simplesmente, que
a Lei de Cotas impôs um dever administrativo às empresas, como ocorre no caso do serviço
militar obrigatório.
No caso do serviço militar obrigatório, conforme tratado por Carlos Ari Sundfeld,
estamos diante de dever administrativo, logo, é imposição de dever a determinados sujeitos, sem
o vínculo direto com o exercício de qualquer direito.
Não nos parece ser o caso da obrigação decorrente da Lei de Cotas. Esta nos parece
diretamente vinculada ao exercício regular de uma liberdade pública, a liberdade de contratar da
empresa, conforme já explicado.
[...]
d) Os condicionamentos administrativos definem as condições de exercício
regular dos direitos. Não diminuem sua extensão, apenas a delimitam. Nisso
reside sua diferença em relação aos sacrifícios.
Não se deve confundir a criação de situação desfavorável ao interesse individual
com o sacrifício de direito. Todo condicionamento, por implicar ou na
circunscrição do universo de atuação do indivíduo (limites do direito), ou na
imposição de comportamentos positivos (encargos) ou no dever de suportar a
interferência de outrem (sujeição), cria situação desfavorável ao interesse
pessoal do titular do direito. Importa, porém, no sacrifício de situação de mero
interesse (desprovida de proteção jurídica), não no sacrifício do direito.109
O sacrifício de situação de mero interesse é visível no instante em que se
edita regulamentação nova, interditando comportamentos outrora
admitidos, impondo novos encargos ou submetendo a novas sujeições.
Aparentemente, restringiu-se o direito; em verdade, este apenas foi
regulado de maneira distinta.
A ordenação do exercício de direitos, para se caracterizar como imposição de
condicionamentos (e não como sacrifício) deve observar algumas pautas
fundamentais, a serem estudadas com detalhe no capítulo VII. Porém, aqui vão
antecipadas algumas noções. Inicialmente, há de respeitar o conteúdo mínimo do
direito. No caso do direito de propriedade de imóvel, são condicionamentos
apenas as medidas que não inviabilizem a utilização funcional do bem. Assim, a
proibição de construção de prédio com mais de dez andares na zona urbana é
condicionamento, visto não comprometer a utilização funcional do terreno, mas
a interdição de qualquer construção é sacrifício, visto subtrair toda possibilidade
de utilização economicamente viável. Em segundo lugar, condicionamentos são,
em regra, medidas que atingem genericamente os titulares de direitos em
109
García de Enterría e Fernández, Curso de derecho administrativo, vol. II, p. 98. Apud SUNDFELD, Carlos Ari.
Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 56-57.
92
situação semelhante, como o dever, imposto a todos os proprietários de
automóveis, de utilizar cinto de segurança. Contudo, os condicionamentos
podem ser impostos por medidas específicas e concretas, que não alcançam
todos os sujeitos classificados na mesma situação, desde que o constrangimento
causado possa ser considerado normal. É exemplo a requisição de imóvel pela
Justiça Eleitoral, para instalação de junta de recepção de votos em dia de pleito,
ou o tombamento de obra de arte.
Os condicionamentos, conquanto representem situação desfavorável para o
particular, justamente por delimitarem o campo de atuação legítima do titular do
direito (é dizer: por apenas traçarem seu perfil) não conferem direito à
indenização.110
A obrigação decorrente da Lei de Cotas, portanto, não sacrificou direitos. Ela foi o
marco regulatório do setor, dando nova feição ao direito de propriedade da empresa, ou, como
sustentamos, ao exercício da garantia da liberdade de contratar.
Simplesmente delineou o direito que regula, como condicionamento que é, afirmando
que a empresa possui, a partir dos efeitos da nova legislação, certa obrigação de fazer, ou seja,
impondo comportamento positivo ao particular: contrate determinados empregados a partir de
determinado porte de empresa.
Carlos Ari Sundfeld cita que o condicionamento não pode extinguir o conteúdo
mínimo do direito. A Lei de Cotas, a nosso ver, obedece a tal regramento, pois conforme já
sustentamos acima, não traz ônus excessivo à empresa.
Diferentemente seria se, como no nosso exemplo já tratado, a legislação obrigasse a
empresa a contratar percentual elevado de trabalhadores para todas as empresas,
independentemente do porte. Seria uma ofensa à garantia da liberdade de contratar, logo
inconstitucional, a lei que trouxesse regulação neste sentido, posto que esvaziaria o conteúdo
jurídico do direito em questão.
Concordamos com Carlos Ari Sundfeld quando sustenta que os condicionamentos
não são restrições (e agora, restrições no sentido técnico da palavra), mas sim meras novas
regulações sobre o tema, sacrificando interesses particulares, o que é muito diferente do que o
sacrifício de direitos.
110
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.
56-57 (grifos nossos).
93
Direito é interesse juridicamente tutelado e interesse é o mero “querer” individual.
A Lei de Cotas sacrificou mero interesse das empresas de não precisar ter a obrigação
que passaram a ter a partir da Lei de Cotas, mas nunca se pode dizer que a Lei de Cotas sacrificou
direito das empresas, pois, conforme já se explicou, o conteúdo mínimo do direito permaneceu
intocado.
Sobre este conceito de condicionamentos como limitações ao direito dos particulares
e, também, sobre a questão da natureza jurídica do condicionamento em questão, se de direito
público ou de direito privado, vale a pena recorrer a Carlos Ari Sundfeld. Vejamos:
Os condicionamentos são disseminados em todo o Ordenamento; de fato, a
ausência de limites é incompatível com a ideia de direito subjetivo. Por isso,
compreensível que nem todos os condicionamentos de direitos sejam
administrativos.
A lei civil, ao regular o direito de propriedade, fixando seus contornos, também
submete o proprietário a condicionamentos. O artigo 554 do Código Civil
estabelece limite ao uso da propriedade, dispondo não poder ele perturbar o
sossego dos vizinhos (dever de não fazer). O artigo 555 impõe o encargo de o
proprietário reparar o prédio que ameace ruína (dever de fazer). O artigo 563
impõe sujeição, determinando ser o dono do prédio inferior obrigado a receber
as águas que correm naturalmente do superior (dever de suportar). Tais
condicionamentos são de direito privado, porquanto à Administração Pública
não foi, pela lei, permitida qualquer interferência na imposição deles em
concreto ou na fiscalização de seu cumprimento. Portanto, não instauram relação
jurídica entre o propritário e a Administração, mas apenas entre aquele e seus
vizinhos. Em coerência com o caráter privado desses condicionamentos, a
situação de vantagem que propiciam é disponível. Assim, os vizinhos podem
prescindir da faculdade de exigir o respeito ao seu sossego, conformando-se com
os incômodos provocados, ou da possibilidade de escoar suas águas pelo terreno
alheio, optando pela construção de fossas para captá-las.
Não cabe pretender distinguir os condicionamentos administrativos dos
condicionamentos de Direito Privado por alguma característica íntima do
interesse que visam realizar. Os condicionamentos administrativos protegem
interesses públicos – daí caber à Administração atuar – e os condicionamentos
de Direito Privado tutelam interesses privados – razão porque só os particulares
beneficiados estão autorizados a exigir seu cumprimento. Mas o que
caracteriza um condicionamento como vinculado ao interesse público não é
qualquer característica própria dele, sacada de fora do Direito, e sim o fato
de à Administração ter sido prevista atuação a ele vinculada, instrumentada
com poderes de autoridade pública. Isso explica como um condicionamento
de Direito Privado é suscetível de, sem se alterar em substância (isto é, quanto à
asituação de desvantagem a que submete o titular do direito), ser transformado
94
por lei nova em condicionamento administrativo. Tome-se como exemplo o
mencionado limite do direito de propriedade disposto pelo art. 554 do Código
Civil. Caso lei municipal venha a conferir à Administração competência para
fiscalizar o respeito ao sossego dos vizinhos, o condicionamento se tornará
administrativo.111
Conforme exposto, após a instituição da Lei de Cotas foi atribuído legalmente ao
Ministério do Trabalho e Emprego poderes para fiscalizar o cumprimento da Lei pelas empresas
e impor sanção administrativa àqueles que não a cumprirem, o que torna patente o conteúdo
jurídico de interesse público do referido diploma normativo e, consequentemente, caracteriza o
condicionamento aludido como administrativo, e não de natureza privada.
111
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
55 (grifos nossos).
95
9.
AFINAL, POR QUE ORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA E NÃO PODER DE
POLÍCIA?
A evolução da ciência social trouxe a função social como fundamento e limite do
direito de contratar, conforme já vimos. A ideia de poder de polícia administrativa, no seu
conceito clássico, traz embrionariamente a noção de que o particular deve não causar dano a
outrem. A obrigação imposta ao particular é sempre no sentido de “não faça”, pois caberia à
Administração a função de manter a paz social, aos particulares cumpriria não perturbar.
A doutrina mais contemporânea visa a abandonar o conceito de poder de polícia.
Hoje, a simples obrigação de não fazer não é suficiente para que o particular exerça a sua função
como partícipe da sociedade.
É esta a noção de função social. O exercício de direitos deve ser realizado não
somente no interesse do particular que os exerce, mas também no interesse da coletividade na
qual o particular está inserido socialmente.
É por isso que classificamos a obrigação decorrente da Lei de Cotas como
condicionamento administrativo ao exercício do direito da liberdade de contratar da empresa, no
âmbito da ordenação administrativa, ou ainda, indiretamente, condicionamento ao livre exercício
do direito de propriedade da empresa sobre seus meios de produção, dentre os quais, o capital
humano.
96
10.
LIMITES, ENCARGOS E SUJEIÇÕES ADMINISTRATIVAS
Inicialmente, abordaremos a definição de limite, de encargo e, finalmente, de sujeição
para verificarmos se, de fato, nossa opção por sistematizar a Lei de Cotas como encargo
administrativo ao exercício de direito encontra-se em consonância com a teoria da ordenação
administrativa exposta por Carlos Ari Sundfeld.
O poder de agir, que a titularidade de um direito outorga ao indivíduo, é
circunscrito pela interdição de certos atos. O poder de conduzir veículos é
limitado pela proibição de superar os 100 kms horários, o poder de o proprietário
construir em seu imóvel é circunscrito pela vedação de exceder 10 pavimentos, o
poder de desenvolver atividade econômica é limitado pela proibição de fazer
concorrência desleal, o poder de explorar a pesca é circunscrito pela interdição
de captura de baleias.
A proibição de certos atos – que, de outro modo, o indivíduo poderia praticar,
com base na liberdade genericamente garantida pela Constituição – indica os
limites dos direitos. Portanto, estes traduzem deveres de não fazer.112
Nesta passagem, Carlos Ari Sundfeld ensina que os limites aos direitos são sempre
deveres de não fazer. Faz todo sentido a afirmativa, pois se determinado direito encontra-se
limitado por outro direito igual e juridicamente tutelado, a existência deste segundo direito limita
o exercício do primeiro, por consequência, gerando ao titular uma obrigação de não fazer, sob
pena de violar o outro direito igualmente protegido pelo ordenamento jurídico.
Dessa forma, fica nítido que a Lei de Cotas não poderia ser enquadrada nesta
definição, uma vez que a obrigação dela decorrente é claramente uma obrigação de fazer dirigida
à empresa: contrate um percentual X de seus empregados, a partir de um número Y de
empregados registrados, dentre uma parcela da população brasileira. Claramente uma
obrigação de fazer. Todavia teria a Lei de Cotas posicionadoo sujeito passivo da obrigação a um
condicionamento ou a uma sujeição a direito?
112
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.
57-58 (grifos nossos).
97
O poder de produzir determinados atos, decorrentes da titularidade de um
direito, gera para o indivíduo o dever de realizar certas prestações positivas. Os
encargos podem ser definidos, portanto, como deveres positivos (de fazer)
vinculados ao exercício de direitos.
O encargo só obriga o titular do direito a que vinculado. Em outras palavras, não
representa um dever positivo que possa ser imposto a qualquer indivíduo. Nisso
reside sua distinção da requisição de serviços. Para se furtar aos encargos
vinculados a certo direito, basta o indivíduo não titularizar ou exercer o direito;
da requisição de serviços – que não é ligada especificamente ao exercício de
qualquer direito, mas a uma condição pessoal – não há como o administrado
furtar-se.113
Carlos Ari Sundfeld define os encargos administrativos como as obrigações de fazer
vinculadas ao exercício de certos direitos. Dessa forma, delimita o âmbito de atuação dos
encargos tão somente àqueles que estejam a exercer determinado direito, ou seja, não se trata de
imposição a todos os indivíduos genericamente, mas sim somente àqueles que se encontram em
posição jurídica prevista na legislação.
No caso da Lei de Cotas, somente as empresas que tenham a partir de 100
empregados situam-se no âmbito de atuação do encargo de contratar, a partir do centésimo
empregado, um percentual determinado de pessoas deficientes ou reabilitadas.
A titularidade do direito à liberdade de contratar empregados é exercida regularmente
somente quando a empresa obedece à imposição da Lei de Cotas, praticando o dever de fazer nela
previsto, ou seja, contratando os empregados específicos que determina.
É importante notar que outras empresas ou outras pessoas não estão obrigadas a tal
imposição, como por exemplo uma empresa com 99 empregados.
Claro, a liberdade de contratar da empresa possui limites (na acepção acima já
visitada) desde o primeiro empregado contratado, como o respeito aos encargos trabalhistas, a
não discriminação, enfim, aplicam-se todas as limitações trazidas pelo ordenamento jurídico
como um todo, mas o encargo da Lei de Cotas somente se torna aplicável a partir da contratação
do centésimo empregado.
113
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
59 (grifos nossos).
98
Torna-se relevante, neste momento do trabalho, especificar a diferença entre as
figuras jurídicas do encargo administrativo e do ônus, para aprofundarmos nossa posição.
Vejamos.
Em certa medida, os encargos se assemelham àquilo que a doutrina vem
denominando como ônus.Esta última figura é explicada pelo eminente Eros
Roberto Grau: “define-se ônus, assim, como o instrumento através do qual o
ordenamento jurídico impõe ao sujeito um determinado comportamento, que
deverá ser adotado se não pretender arcar com consequências que lhe serão
prejudiciais. Ou como o comportamento que o sujeito deve adotar para alcançar
uma determinada vantagem, que consiste na aquisição ou na conservação de um
direito”.114 Os encargos administrativos ligados aos direitos subjetivos
também são comportamentos cuja adoção não é, em princípio, obrigatória
para ninguém, mas surgem como condição da fruição de certa vantagem (a
possibilidade de exercício ou conservação de um direito). No entanto,
reserva-se a expressão ônus para os comportamentos que o indivíduo deva
realizar antes de usufruir uma vantagem e cuja inobservância não gera sanção,
mas apenas impede o acesso ao benefício. É exemplo a necessidade de requerer
a expedição de licença e de apresentar o correspondente projeto para o
proprietário adquirir o direito de edificar em seu terreno. Quando falamos de
encargos, estamos nos referindo a comportamentos positivos cuja
observância se torna necessária no curso do exercício de um direito, a fim
de torná-lo lícito. Decerto que, não pretendendo o sujeito exercê-lo, não se
sujeitará aos encargos. Porém, iniciando tal exercício, a partir de então estará
juridicamente obrigado a cumprir os encargos, sob pena de incidir em ilicitude e,
portanto, de se submeter à correspondente sanção. 115
Notemos como a explicação de Carlos Ari Sundfeld no trecho citado acima encaixase perfeitamente no enquadramento que defendemos, decorrente da Lei de Cotas:“[...] Os
encargos administrativos ligados aos direitos subjetivos também são comportamentos cuja
adoção não é, em princípio, obrigatória para ninguém, mas surgem como condição da fruição de
certa vantagem (a possibilidade de exercício ou conservação de um direito) [...].”
Ora, o surgimento da obrigação de contratar determinado percentual dos empregados
dentre pessoas deficientes ou reabilitadas nasce com o crescimento da empresa, demonstrado pelo
número de empregados contratados.
114
GRAU, Eros Roberto. Direito, conceito e normas jurídicas, pp. 118/9. Apud SUNDFELD, Carlos Ari. Direito
administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 60.
115
SUNDFELD, Carlos Ari. Op. Cit., p. 60 (grifos nossos).
99
Esta obrigação de fazer (contratar estas pessoas) surge como condição para que a
empresa continue a fruir de certa vantagem, conservando seu direito de contratar empregados, e,
portanto, exercendo sua atividade econômica específica.
A contratação de empregados não é obrigatória a nenhuma empresa, mas a partir do
momento em que a empresa decide expandir suas atividades e contratar novos empregados,
quando este número chega a 100, ela passa a ter um encargo administrativo imposto por Lei de
contratar as pessoas que a Lei de Cotas prescreve, como condição para o exercício regular da
liberdade de contratar.
Nestes termos, a obrigação decorrente da Lei de Cotas nada mais é do que a
imposição de “[...] comportamentos positivos cuja observância se torna necessária no curso do
exercício de um direito (i.e. liberdade de contratar), a fim de torná-lo lícito [...]”, conforme citado
logo acima da obra de Carlos Ari Sundfeld.
Para finalizar o entendimento sobre a diferença entre encargo e limite, transcrevemos:
Os encargos diferem dos limites do direito pela circunstância de representarem
obrigações positivas. Os limites são proibições, os encargos atos positivos
exigidos como condição de regularidade na produção dos atos permitidos. Não
basta ao indivíduo, para exercer de forma regular seu direito, circunscrever-se
aos atos permitidos (isto é, aos não proibidos): necessário que produza outros
atos, impostos pela lei ou pela Administração. Assim, não é suficiente que o
comerciante, ao vender mercadorias, respeite o preço tabelado (limite do
direito), deve afixar a tabela de preços no estabelecimento (encargo). Não basta
à empresa observar a margem de lucro admitida (limite), é necessário fornecer à
Administração informações sobre os preços praticados (encargo).
[...]
Pelo exposto, é possível definir os encargos administrativos de direitos como
condicionamentos consistentes em deveres positivos (de fazer).116
Carlos Ari desdobra a classificação de encargo em duas subclassificações: “[...] a)
dever de produzir ação complementar como condição da regularidade do direito; ou b) dever de
exercício do próprio direito. [...]”117
116
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.
60-61 (grifos nossos).
100
A obrigação decorrente da Lei de Cotas subsume-se à espécie ‘a’ acima tratada
porque, conforme já vimos, a contratação de um percentual do total de empregados dentre
pessoas especificadas pela Lei a partir de certo porte da empresa é uma ação complementar
condicionante do exercício regular do direito de contratar empregados de que a empresa é
detentora.
Dessa forma, para que a empresa exerça regularmente seu direito de contratar mais
empregados e, com isso, expandir-se, deverá exercer a condição de regularidade de tal direito, ou
seja, contratar X% de pessoas portadoras de deficiência ou reabilitadas da Previdência Social.
Ante o exposto, cumpre agora definirmos o que exatamente Carlos Ari Sundfeld
entende por sujeições, para termos a certeza de que a obrigação decorrente da Lei de Cotas tratase, conforme sustentamos, de encargo. Vejamos:
Possuir um direito (como o de propriedade, de associação, de exploração de
atividade econômica) significa ter a faculdade de desenvolver certas atividades
sem a intromissão de terceiros. Tal regra não é, contudo, absoluta. As normas,
por vezes, facultam a terceiros uma interferência no âmbito de interesses do
titular do direito, que este é obrigado a suportar. A mais frequente delas é a
praticada pela Administração Pública, ao impor sujeições administrativas.
A diferença entre a sujeição e os limites e encargos de direito reside no gênero
de situação passiva que gera: o dever de suportar. Há dever de suportar quando o
titular do direito fica jungido a admitir que terceiro ingresse em sua esfera de
interesses e passe a manejar poderes que, de outro modo, lhe pertenceriam com
exclusividade. Através dela, não se impõe ao sujeito prestações positivas, apenas
se lhe exige abstenção, somada à submissão à interferência do Poder Público. O
proprietário é obrigado a suportar o uso de seu imóvel pela Justiça Eleitoral, em
dia de pleito; o comerciante deve suportar o exame de seus livros contábeis pelo
fiscal de rendas; o dono de prédio situado na confluência de duas ruas suporta a
instalação, em seu muro, de placas indicativas do nome do logradouro; o
possuidor de imóvel declarado de utilidade pública para fins de desapropriação
está constrangido a suportar o ingresso nele de autoridades administrativas; o
titular de bem tombado suporta a execução de reparo ou conservação da coisa,
feita pelo Poder Público, em caso de urgência, o viajante suporta a revista nos
aeroportos.118
117
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, p.
61 (grifos nossos).
118
Ibidem, pp. 65-66 (grifos nossos).
101
Resta esclarecido, portanto, que a obrigação decorrente da Lei de Cotas não se trata
de sujeição porque gera obrigações positivas ao titular do direito, e não o dever de suportar
condutas.
O que poderia, sim, ser considerado como sujeição de direito é o titular da empresa
suportar que o agente fiscal adentre em seu estabelecimento e verifique seus livros trabalhistas
para averiguar se a Lei de Cotas está sendo cumprida. Mas esta ação não se confunde com a
obrigação decorrente da Lei de Cotas em si.
Antes de adentrarmos na terceira parte de nosso trabalho, em que exploraremos as
consequências das conclusões extraídas da segunda parte e suas implicações práticas,
gostaríamos de tecer breves considerações sobre o princípio da mínima intervenção estatal na
vida privada, pois o intérprete afoito poderia concluir que a obrigação decorrente da Lei de Cotas
seria uma violação a tal princípio devido ao encargo de direito que esta legislação trouxe à baila.
102
11.
A LEI DE COTAS VIOLA O PRINCÍPIO DA MÍNIMA INTERVENÇÃO ESTATAL
NA VIDA PRIVADA?
O Estado de Direito é uma contraposição de valores individuais e coletivos nem
sempre alinhados, o que resulta, muitas vezes, em conflito a ser resolvido pelo próprio Estado, ou
por meio do Poder Judiciário, ou, ainda, por meio de regulação legal. Sobre o princípio da
mínima intervenção estatal na vida privada, disserta Carlos Ari Sundfeld:
O princípio da mínima intervenção estatal na vida privada
O Estado de Direito é governado por uma fundamental finalidade: fazer com que
o exercício do poder político não elimine o necessário espaço de liberdade
individual. A sociedade que o Estado de Direito quer construir é aquela onde os
indivíduos disponham do máximo possível de liberdade e onde, não obstante, se
possam realizar os interesses públicos.
Ao Estado de Direito não basta a submissão das autoridades públicas à lei –
senão, é evidente, a superioridade da lei seria um fim em si. Fundamental que o
sistema sirva à preservação da liberdade.
Por isso, a lei não pode tudo. A própria Constituição lhe prescreve limites: os
direitos individuais e coletivos que protege, de modo implícito ou explícito, os
quais hão de ser preservados, ainda quando o legislador preferisse suprimi-los,
em nome de um entendimento pessoal do sentido do interesse público.
Decerto que a garantia de direitos em favor dos indivíduos - preocupação central
do sistema do Estado de Direito - não impede o Estado de regulá-los por via
legislativa. Porém, os condicionamentos que da lei resultem para os direitos só
serão legítimos quando vinculados à realização de interesse público real,
importante e claramente identificado.
Todo condicionamento é constrangimento sobre a liberdade. Esta, sendo valor
protegido pelo Direito, só pode ser comprimida quando inevitável para a
realização de interesses públicos. Daí a enunciação do princípio da mínima
intervenção estatal na vida privada. Por força dele, todo constrangimento
imposto aos indivíduos pelo Estado deve justificar-se pela necessidade de
realização do interesse público. O legislador não pode cultivar o prazer do poder
pelo poder, isto é, constranger os indivíduos sem que tal constrangimento seja
teleologicamente orientado.
O princípio da mínima intervenção estatal na vida privada exige, portanto, que:
a) todo condicionamento esteja ligado a uma finalidade pública, ficando vetados
os constrangimentos que a ela não se vinculem; b) a finalidade ensejadora da
limitação seja real, concreta e poderosa; c) a interferência estatal guarde relação
103
de equilíbrio com a inalienabilidade dos direitos individuais; e d) não seja
atingido o conteúdo essencial de algum direito fundamental.119
Carlos Ari Sundfeld estabelece requisitos à regulação legal de direitos para que o
princípio da mínima intervenção estatal na vida privada seja respeitado. Vejamos se a Lei de
Cotas os obedece.
O primeiro requisito é que o condicionamento (e vimos anteriormente que a
obrigação decorrente da Lei de Cotas se trata de condicionamento a direito) deve estar ligado a
uma finalidade pública. A finalidade pública, no caso, é hialina e foi demonstrada
pormenorizadamente na Parte 1 de nosso trabalho, quando estudamos a relação entre a obrigação
da Lei de Cotas e os princípios administrativos.
O segundo requisito dita que a finalidade que enseja a limitação seja real, concreta e
poderosa. A inserção social das pessoas portadoras de deficiência e reabilitadas da Previdência
Social por meio de seu trabalho é objetivo da Assistência Social previsto constitucionalmente no
artigo 203 e a reserva de mercado que a Lei de Cotas estabeleceu está prevista na Lei 7.853/89,
que instituiu a Política Nacional de Inserção dos Portadores de Deficiência tratada anteriormente.
O terceiro requisito impõe que “[...] a interferência estatal guarde relação de
equilíbrio com a inalienabilidade dos direitos individuais [...]”, conforme o texto de Carlos Ari
Sundfeld em comento.
O direito individual que se encontra condicionado é o direito de liberdade de contratar
da empresa, conforme acima já devidamente explorado, logo, a interferência estatal neste direito,
criando um encargo para o seu exercício regular, guarda tal relação de equilíbrio com o direito
restringido e mais, ressalta a preponderância do direito individual à inserção social promovida
pelo Estado das pessoas beneficiárias desta legislação.
O quarto (e último) requisito preconiza que não seja atingido o conteúdo essencial de
algum direito fundamental. Neste ponto, cremos que o núcleo do direito de contratar da empresa
não é atingido, pois as circunstâncias sob as quais a norma incide perfazem desenho que não é
abusivo para que a empresa cumpra sua obrigação.
119
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.
67-68 (grifos nossos).
104
Colocada à parte a discussão se estamos diante de direito fundamental ou não, o
ponto central é que o núcleo essencial do direito que a Lei de Cotas veio a condicionar não é
atingido pela obrigação dela decorrente, devido às circunstâncias de incidência da norma de
restrição.
A conclusão que se tira desta breve exposição acerca do princípio da mínima
intervenção estatal na vida privada é que a política pública veiculada pela Lei de Cotas não o
viola, consoante o exposto.
105
PARTE 3 – O AMBIENTE NORMATIVO ATUAL E NOSSAS CRÍTICAS
1. O ESFORÇO DE ENGENHARIA NORMATIVA PARA COMPREENDER O MODELO
ATUAL
Conforme abordado no início deste trabalho, após as considerações acerca da
natureza jurídica da obrigação decorrente da Lei de Cotas, analisaremos se a inserção social dos
portadores de deficiência deve restringir-se à atuação da Administração Ordenadora, como o é
hoje, ou ao trabalho conjunto entre fiscalização e regulação do exercício de direitos que a teoria
da ordenação administrativa implica, mas também aos incentivos da Administração
Fomentadora.120
Para entendermos melhor estes conceitos que passaremos a explorar, vale a pena
recorrermos aos ensinamentos de Carlos Ari Sundfeld.
A reconstrução da teoria da ação administrativa passa, a nosso ver, pela
identificação de pelo menos três grandes setores: a administração de gestão, a
administração fomentadora e a administração ordenadora121.
O uso da expressão administração ordenadora não é novo no Direito
Administrativo. A doutrina alemã, superando o arcaísmo e acanhamento do
poder de polícia, fala de uma Ordnungsverwaltung ou ordnenden Verwaltung –
administração ordenadora – contraposta à administração prestacional
(Leistungsverwaltung ou leistenden Verwaltung), que presta serviços aos
administrados.122
À administração de gestão corresponde a função de gerir – como agente, como
sujeito ativo – determinadas atividades. Engloba inicialmente o “oferecimento
120
Estes conceitos de Administração Ordenadora e Administração Fomentadora estão presentes em SUNDFELD,
Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. Abordaremos mais adiante tais
conceitos.
121
Não há grande novidade nesta tripartição, que já vem defendida — embora com função mais restrita e
terminologia diversa — por Eros Grau, em seu Elementos de Direito Econômico, p. 65. Apud SUNDFELD, Carlos
Ari. Op. Cit., pp. 16-17.
122
García de Enterría e Fernandéz, Curso de Derecho Administrativo, vol. II, p. 97. Apud SUNDFELD, Carlos Ari.
Op. Cit., pp. 16-17.
106
de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados”.123
Em sua dupla modalidade: prestação de serviços públicos (isto é, os reservados
ao Estado) e de serviços sociais (atribuídos a ele sem caráter de exclusividade, o
que elimina a técnica concessional; são os casos de educação e saúde). Ao lado
dessas, incluem-se o estabelecimento e manutenção de relações com os Estados
estrangeiros (CF, art. 21, I a V), a emissão de moeda e administração cambial
(CF, art. 21, VII e VIII), a exploração de setores monopolizados (CF, art. 177), e
de atividades econômicas, em regime de concorrência com os particulares (CF,
art. 173). Percebe-se a multiplicidade de regimes jurídicos aqui envolvidos.
À administração fomentadora corresponde a função de induzir, mediante
estímulos e incentivos — prescindindo, portanto, de instrumentos imperativos,
cogentes — os particulares a adotarem certos comportamentos124. Ex.: concessão
de financiamentos, bolsas de estudos, incentivos fiscais.
Por fim, a administração ordenadora congrega as operações estatais de regulação
do setor privado (e, portanto, ligadas à aquisição, exercício e sacrifício de
direitos privados), com o emprego do poder de autoridade.125
Diante destes ensinamentos iniciais, apreende-se que o regime atual da Lei de Cotas
poderia ser muito bem delimitado como plena atuação da Administração Ordenadora. Carlos Ari
explica que este setor da atividade administrativa, o da Administração Ordenadora, é o
responsável pela regulação estatal do setor privado, e, neste sentido, é a parcela da função
administrativa que regula o exercício de direitos privados, com o emprego de autoridade.
Um dos direitos regulados pela Administração Púbica por meio da ordenação
administrativa é a garantia de liberdade de contratar da empresa, e, consequentemente, ante a
obrigação imposta pela Lei de Cotas de que a empresa não o pode exercer absolutamente,
devendo, portanto, destinar pequena parcela de suas contratações para público específico da
população. Assim, logicamente, pode-se concluir que há a regulação do exercício deste direito
pela Administração Ordenadora.
Nestes termos, atualmente, se a empresa não obedece às imposições da Lei de Cotas,
como vimos, ela poderá ser autuada pela fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. A
123
A expressão é de Celso Antônio Bandeira de Mello, Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta, p.
20. Apud SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros,
2003, pp. 16-17.
124
Fernando Garrido Falia, Tratado de Derecho Administrativo, vol. II, p. 303 e ss.; Manuel Maria Diez, Derecho
Administrativo, vol. IV, p. 139 e ss.; Pedro Guilhermo Altamira, Curso de Derecho Administrativo, p. 487 e ss.; José
Roberto Dromi, Derecho Administrativo Económico, vol. II, p. 138 e ss.; Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso
de Direito Administrativo, p. 401 e ss. Apud SUNDFELD, Carlos Ari. Op. Cit., pp. 16-17.
125
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. Op. Cit., pp. 16-17 (grifos nossos).
107
delimitação desta competência do MTE é prevista no Decreto Federal n° 3.298, de 20 de
dezembro de 1999, que regulamenta a Lei Federal n° 7.853, de 24 de outubro de 1989, que
dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.
O parágrafo quinto do Artigo 36 do referido decreto regulamentador merece especial
atenção, pois efetivamente atribuiu competência ao MTE para a fiscalização do cumprimento da
obrigação decorrente da Lei de Cotas126.
Foram os dispositivos da Lei 7.853/89 que fundamentaram a expedição do aludido
Decreto Regulamentador, ou seja, a delimitação de competência do MTE para a fiscalização do
cumprimento de tal imposição legal pelas empresas127.
126
BRASIL. Decreto Federal n° 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Art. 36. A empresa com cem ou mais
empregados está obrigada a preencher de dois a cinco por cento de seus cargos com beneficiários da Previdência
Social reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência habilitada, na seguinte proporção:
I - até duzentos empregados, dois por cento;
II - de duzentos e um a quinhentos empregados, três por cento;
III - de quinhentos e um a mil empregados, quatro por cento; ou
IV - mais de mil empregados, cinco por cento.
§ 1° A dispensa de empregado na condição estabelecida neste artigo, quando se tratar de contrato por prazo
determinado, superior a noventa dias, e a dispensa imotivada, no contrato por prazo indeterminado, somente poderá
ocorrer após a contratação de substituto em condições semelhantes.
§ 2° Considera-se pessoa portadora de deficiência habilitada aquela que concluiu curso de educação profissional de
nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição
pública ou privada, legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão equivalente, ou aquela com
certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do
Seguro Social - INSS.
§ 3° Considera-se, também, pessoa portadora de deficiência habilitada aquela que, não tendo se submetido a processo
de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função.
§ 4° A pessoa portadora de deficiência habilitada nos termos dos §§ 2° e 3° deste artigo poderá recorrer à
intermediação de órgão integrante do sistema público de emprego, para fins de inclusão laboral na forma deste
artigo.
§ 5° Compete ao Ministério do Trabalho e Emprego estabelecer sistemática de fiscalização, avaliação e
controle das empresas, bem como instituir procedimentos e formulários que propiciem estatísticas sobre o
número de empregados portadores de deficiência e de vagas preenchidas, para fins de acompanhamento do
disposto no caput deste artigo. (grifos nossos).
127
BRASIL. Lei Federal 7.853/89. Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de
deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao
lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das
leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e
indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento
prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:(...)
III - na área da formação profissional e do trabalho:
a) o apoio governamental à formação profissional, e a garantia de acesso aos serviços concernentes, inclusive aos
cursos regulares voltados à formação profissional;
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial,
destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
108
Assim, temos que a Lei 7.853/89 instituiu a Política Nacional para a Integração da
Pessoa Portadora de Deficiência e previu que Lei posterior disciplinaria a reserva de mercado de
trabalho, no setor público e no setor privado, para as pessoas portadoras de deficiência. A mesma
Lei atribuiu competência ao MTE para a coordenação setorial dos assuntos concernentes às pessoas
portadoras de deficiência, matéria da qual a fiscalização do cumprimento desta política pública,
posteriormente a ser implementada, também faria parte.
Nestes termos, a Lei Ordinária Federal 8.213/91 impôs às empresas contratar
determinado percentual de seus empregados dentre os portadores de deficiência, para cumprir
com o disposto no artigo 2°, parágrafo único, inciso III, alínea ‘d’, da Lei 7.853/89 e,
posteriormente, o Decreto 3.298/99 delimitou a competência do MTE para fiscalizar
especificamente o cumprimento desta exigência.
Mas o que acontece em caso de descumprimento da obrigação em apreço? O
Ministério do Trabalho e Emprego assim dispõe:
Quais os valores das multas, na vigência da Portaria MPS nº 142, de 11 de abril
de 2007?
Por infração ao art. 93 da Lei nº 8.213/91, conforme estabelece seu art. 10, V:
(i) de R$ 1.195, 13 a 1.434,16 para empresas de 100 a 200 empregados;
(ii) de R$ 1.434,16 a R$ 1.553,67 para empresas de 201 a 500 empregados;
(iii) de R$ 1.553,67 a R$ 1.673,18 para empresas de 501 a 1.000 empregados;
(iv) de R$ 1.673,18 a R$ 1.792,70 para empresas com mais 1.000 empregados.
O valor máximo não poderá ultrapassar R$ 119.512,33.
Exemplificando o cálculo do valor da multa por não preenchimento da cota:
Supondo-se uma empresa com 1.010 empregados, que deveria ter 51
empregados com deficiência e tem apenas oito nessa condição. Nesse caso,
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de
deficiência;
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras
de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de
oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de
deficiência;(...)
Art. 15. Para atendimento e fiel cumprimento do que dispõe esta Lei, será reestruturada a Secretaria de Educação
Especial do Ministério da Educação, e serão instituídos, no Ministério do Trabalho, no Ministério da Saúde e no
Ministério da Previdência e Assistência Social, órgão encarregados da coordenação setorial dos assuntos
concernentes às pessoas portadoras de deficiência.
109
multiplicam-se 43 (o número de empregados com deficiência que deixou de ser
contratado) pelo valor previsto para as empresas com mais de 1.000
empregados. Na vigência da Portaria MPS nº 142, de 11 de abril de 2007,
multiplicar-se-iam 43 por um valor entre R$ 1.673,18 a R$ 1.792,70. 128.
Após a autuação da fiscalização federal, a empresa poderá apresentar defesa
administrativa encaminhada à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego competente
(primeira instância administrativa). Se for indeferida a defesa, cabe recurso ao órgão
administrativo de segunda instância, em Brasília. Caso o recurso seja indeferido, o respectivo
processo será encaminhado à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, para inscrição em dívida
ativa e devida cobrança via Execução Fiscal129. Vale ressaltar que a empresa pode se socorrer do
Poder Judiciário a qualquer tempo.
A este ponto, é relevante delimitar em que âmbito da regulação estatal aos portadores
de deficiência o presente estudo tem o seu foco.
As normas que regulam este setor podem ser classificadas como: (i) assistencialistas,
as ações de redistribuição de renda; (ii) profissionalizantes, ações que incluem a capacitação
profissional e qualificação técnica para o mercado de trabalho; (iii) social – integradoras, ações
destinadas à inserção social propriamente dita por meio do trabalho.
As ações assistencialistas possuem como objetivo a redistribuição de renda agregada
ao incentivo ao consumo facilitado das pessoas portadoras de deficiência.
O maior exemplo de distribuição de renda propriamente dita é o benefício da
assistência social previsto no artigo 2°, inciso I, alínea ‘e’, da Lei Orgânica da Previdência Social,
Lei n° 8.742/93, com as alterações da Lei 12.435/11, conhecido como “benefício de prestação
continuada” (comumente atribuído até então com o nome de LOAS).
Este benefício consiste no pagamento de “um salário-mínimo mensal à pessoa com
deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios
de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família” (artigo 20, Lei n° 8.742/93,
alterada pela Lei n° 12.435/11).
128
MTE. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/fisca_trab/inclusao/lei_cotas_13.asp>. Acesso em: 17.12.2011.
Informações
obtidasno
site
oficial
do
MTE.
Disponível
em:
<http://www.mte.gov.br/fisca_trab/inclusao/lei_cotas_13.asp>. Acesso em: 17.12.2011.
129
110
O outro viés das ações assistencialistas é o incentivo ao consumo por meio de
subsídios tributários. Os vários entes da federação concedem isenções de tributos para que as
pessoas portadoras de deficiência possam adquirir bens essenciais à sua boa qualidade de vida130.
A política assistencialista é muito importante e defendemos sua manutenção, no
entanto, desde que sua escala seja parecida com a que se tem hoje, com benefícios tributários
pontuais que incentivam o consumo adequado de produtos, bens e serviços essenciais à boa
qualidade de vida, conjugados com a transferência direta de recursos por meio do benefício da
assistência social que ficou conhecido como LOAS.
130
Como exemplo, existe a isenção de IPI, IOF e ICMS nas aquisições de veículos (Lei 10.690/03; Lei 10.754/03;
RIPI; IN SRFB 988/09 e ADI SRFB de 18/05/04; Lei 8.383/91; Lei 8.989/95; RIOF; Convênio CONFAZ n° 3/07), a
isenção de IPVA em alguns casos (Portaria do Estado de São Paulo CAT 56/96), a isenção de IPTU em outros (no
Município de São Paulo, o ainda não aprovado Projeto de Lei 01-0039/2010); ainda há a isenção de ICMS nas
aquisições de cadeiras de rodas, próteses e acessórios (Convênios CONFAZ n° 94/03 e 38/05); enfim, as unidades da
federação abrem mão de receitas tributárias para incentivar a boa qualidade de vida das pessoas portadoras de
deficiência.
111
2. O CONFLITO DE INTERESSES ENTRE A INSERÇÃO NO MERCADO DE TRABALHO
DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA E O DIREITO AO RECEBIMENTO DO BENEFÍCIO DE
PRESTAÇÃO CONTINUADA – BPC OU LOAS
Esta seção do presente estudo131 se cumpre a analisar descritivamente a regulação
normativa da transferência de recursos do Estado para os portadores de deficiência como forma
de incentivo à inserção social.
Para tanto, nossa pesquisa identificou os benefícios sociais que o Estado criou para
transferir recursos aos portadores de deficiência sem meios pecuniários próprios, ou no âmbito de
suas famílias, para arcarem com as dificuldades e barreiras eventualmente impostas pela sua
condição.
Nossa hipótese de pesquisa, dessa forma, consiste em descobrir se a evolução da
legislação referente à transferência de recursos aos portadores de deficiência demonstra, através
dos anos, a ampliação da acessibilidade a benefícios ou não; entender como se verificou esta
evolução e averiguar, no caso de ter havido a ampliação do acesso, se de fato estas normas
servem aos objetivos a que se destinam legalmente.
O caminho desta pesquisa,cujo resultado encontra-se sistematizado nesta seção, pode
ser dividido conforme descrevemos abaixo.
(i) Analisar a legislação pura para possibilitar o trabalho denominado de engenharia normativa
acerca da regulação das transferências estatais de recursos aos portadores de deficiência.
Percorrer todo o caminho feito por esta legislação, que atribui renda fixa aos portadores de
deficiência,desde sua gênese até o momento atual.
131
Devemos registrar desde já que comumente o nome “LOAS” se destina a nomear o benefício de prestação continuada
(“BPC”), que é o atual benefício da assistência social, consistente na garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família. Tecnicamente a sigla “LOAS” significa “Lei Orgânica da Assistência Social”, trata-se da Lei Ordinária Federal n° 8.742,
de 7 de dezembro de 1993. No entanto, como foi o artigo 20 desta Lei que trouxe a previsão normativa deste benefício, o BPC, na
prática o BPC é muitas vezes denominado como LOAS, o que justifica atribuirmos aqui a nominação do benefício também como
LOAS.
112
(ii) Perceber se há um padrão geral nessa legislação.
(iii) Listar as mudanças mais significativas, as inovações e as consolidações trazidas em cada
alteração normativa. Classificar esta regulação em períodos e apresentar tal classificação visando
sistematizar e melhor apresentar os dados coletados.
(iv) Tabular os dados, atribuindo pontos pela ampliação ou restrição de direitos para melhor
identificar,por meios gráficos, o caminho percorrido pela legislação, visando facilitar a
visualização das conclusões.
(v) Identificar as tendências da legislação para, a partir do trabalho de engenharia normativa
realizado, poder tentar verificar para onde a regulação sobre o assunto caminha hoje.
(vi) Construir argumento crítico, positivo ou negativo, para esta tendência e, finalmente, discutir
as últimas inovações legislativas, colocando-as em cheque para identificar as próximas possíveis
tendências.
2.1 A gênese do benefício
A Lei 6.179/74 inaugurou o tema em estudo, instituindo o benefício previdenciário
denominado de Renda Mensal Vitalícia (RMV). Este benefício poderia ser concedido ao idoso ou
ao inválido que cumprisse cumulativamente os seguintes requisitos: (i) apresentar-se
definitivamente incapacitado ao trabalho; (ii) não exercer atividade remunerada sob qualquer
forma; (iii) não perceber rendimento de qualquer fonte superior ao valor da RMV; (iv) comprovar
não possuir meios de prover a própria manutenção e nem tê-la provida por sua família.
Ademais, deveria se verificar, alternativamente, o cumprimento de uma das três
hipóteses a seguir: (a) ter sido filiado ao regime do Instituto Nacional de Previdência Social
(“INPS”), em qualquer época, no mínimo por doze meses, consecutivos ou não, vindo a perder a
qualidade de segurado; ou (b) ter exercido atividade remunerada atualmente incluída no regime
113
do INPS ou do FUNRURAL, mesmo sem filiação à Previdência Social, no mínimo por cinco
anos, consecutivos ou não; ou, ainda, (c) ter ingressado no regime do INPS após completar 60
anos de idade, sem direito aos benefícios regulamentares.
Portanto, os beneficiários da Lei 6.179/74 faziam jus, basicamente, a dois benefícios:
(i) a RMV, que consistia na transferência estatal de valor correspondente a metade do maior
salário mínimo vigente no país, sem ultrapassar 60% do salário mínimo vigente na localidade do
pagamento; (ii) a assistência médica nos mesmos moldes daquela prestada aos demais
beneficiários da Previdência Social urbana ou rural, conforme o caso.
Os beneficiários pertenciam, portanto, a uma das duas categorias de pessoas a seguir:
(i) idosos; com idade superior a 70 anos e enquadrados nos requisitos listados anteriormente; (ii)
inválidos; assim declarados por comprovação em exame médico-pericial a cargo da Previdência
Social urbana ou rural.
Os portadores de deficiência eram classificados à época como “inválidos” e, logo,
eram comumente beneficiários da RMV.
Cumpre destacar que havia a proibição de acumulação da RMV com quaisquer outros
benefícios da previdência social, salvo nos casos de: (i) a pessoa que tenha ingressado após os 60
anos no regime do INPS sem direito a quaisquer benefícios, que podia acumular com o pecúlio
(outro benefício da previdência social); (ii) assistência médica, já prevista acima.
Destacamos aqui aspecto interessante, relevante e peculiar que acompanha a
transferência de recursos estatais aos portadores de deficiência por toda a evolução dos benefícios
ora estudados.
Sempre que a lei previu algum benefício deste tipo, ou seja, transferências
pecuniárias para auxiliar o portador de deficiência a manter-se de forma considerada
minimamente digna, situa no mesmo patamar o idoso que não tenha meios financeiros para se
sustentar, ou ter seu sustento provido pela família.
É o que se observa desde a edição da Lei 6.179/74, com a manutenção, desde então,
dessa sistemática de sempre regular a situação do idoso em necessidade conjuntamente com a
situação do portador de deficiência na mesma condição.
114
Isso se dá em razão da proximidade das necessidades destes dois grupos de pessoas,
que podem facilmente tornar-se socialmente excluídos e muitas vezes necessitam do apoio da
família para conseguirem manter certo padrão de vida mínimo.
A própria legislação reconheceu isso em 1974, com o início da concessão deste tipo
de benefício a partir da RMV, fazendo perdurar a sistemática até hoje.
A importância da família é tanta que, posteriormente, para fins de se determinar se o
benefício é devido ou não, a nova legislação delimita que a renda familiar deve ser inferior ao
patamar estabelecido, como se verá adiante.
Salienta-se que neste momento inicial, em 1974, o benefício era incluído dentro da
categoria de benefícios da previdência social, ou seja, para que o beneficiário fizesse jus ao
mesmo, deveria ter contribuído com o sistema previdenciário.
Esta é a grande diferença entre o sistema previdenciário e o sistema assistencial,
lembrando que ambos pertencem ao sistema geral de Seguridade Social.
Para que determinado indivíduo faça jus aos benefícios oriundos do sistema
assistencial, basta necessitar dos benefícios, ou seja, cumprir os requisitos previstos em lei ou, de
forma regulamentar, o direito ao benefício existe sem prévia contribuição ao sistema.
Já o sistema previdenciário funciona de forma distinta. Para fazer jus aos benefícios
sob sua alçada, o indivíduo deve contribuir por meio da Previdência Social, considerada hoje no
Brasil espécie tributária e, logo, contribuição compulsória dentro das hipóteses previstas em lei.
115
2.2 A mudança trazida pela Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal alterou significativamente a sistemática de auxílio estatal aos
idosos e “inválidos”.
Antes da Constituição Federal de 1988, a RMV era benefício previdenciário, ou seja,
exigia a contribuição ao sistema previdenciário, ainda que mínima.
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a regulação foi alterada e o
artigo 203, inciso V da Carta Magna deslocou para a competência da Assistência Social tal
benefício, ou seja, não haveria mais a necessidade de contribuir para se fazer jus ao mesmo; uma
vez cumpridas as condições estabelecidas em disposição regulamentar, a pessoa se tornaria
beneficiária.
SeçãoIV
DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. (grifos
nossos)
Devido à necessidade de regulamentação infraconstitucional para a plena eficácia do
disposto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988, a própria Lei Geral da
Previdência Social, Lei 8.213/91, atribuiu uma “sobrevida” à RMV, para minimizar os efeitos
desta transição:
116
Art. 139 - A renda mensal vitalícia continuará integrando o elenco de benefícios
da Previdência Social, até que seja regulamentado o inciso V do artigo 203 da
Constituição Federal.
Somente em 7 de dezembro de 1993, com a entrada em vigor da Lei Orgânica da
Assistência Social, Lei 8.742/93, o benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V, da
Constituição Federal de 1988 ganhou regulamentação.
O artigo 40 da Lei 8.742/93 extinguiu expressamente a RMV, mas previu a não
solução de continuidade entre um benefício e outro, ou seja, não deveria haver interrupção que
prejudicasse os beneficiários de um ou outro benefício.
A consequência prática desta regulação foi a criação de um período de transição em
que co-existiram os dois benefícios: o assistencial, previsto na novel Constituição, e o
previdenciário,previsto na Lei 6.179/74. A transição duraria até que o novo benefício da
Assistência Social fosse totalmente regulamentado e a RMV pudesse então cessar
definitivamente132.
2.3 A sistemática assistencial do benefício
A redação original da LOAS (Lei 8.742/93) pode ser dividida conforme os seguintes
tópicos listando os principais direitos e definições:
(i) Inaugura o sistema assistencial do benefício com a introdução de nomenclatura nova ao
benefício: o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
132
Cumpre destacar que a MP 1.663-10, de 28 de maio de 1998, seguida pelas seguintes reedições: MP 1.663-11, de 26 de junho
de 1998; MP 1.663-12, de 27 de julho de 1998; MP 1.663-13, de 26 de agosto de 1998; MP 1.663-14, de 24 de setembro de 1998;
e MP 1.663-15, de 22 de outubro de 1998, foi finalmente convertida na Lei 9.711, de 20 de novembro de 1998, que consolidou a
norma trazida pela MP 754/94 quanto à “sobrevida” da RMV até 31/12/1995, pois o BPC (tratado logo a seguir) teria o início de
sua aplicação prática em 1/1/1996.
117
(ii) O enquandramento dos beneficiários como: (a) idosos com 70 anos ou mais; (b) pessoas
portadoras de deficiência; que comprovem não possuir meios de prover a própria
manutenção, nem de tê-la provida por sua família.
(iii) A quantificação do BPC como a garantia de um salário mínimo e a previsão de que
será revisto a cada dois anos.
(iv) A definição de “família” como “unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja
economia é mantida pela contribuição de seus integrantes”.
(v) A definição de “pessoa portadora de deficiência” como “aquela incapacitada para a vida
independente e para o trabalho”.
(vi) A definição de “família de baixa renda” para fins da concessão do BPC: “considera-se
incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja
renda mensal per capita seja inferior a 1/4 do salário mínimo”.
(vii) A proibição do acúmulo do BPC com qualquer outro benefício no âmbito da
seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência médica.
(viii) A obrigação de comprovação da deficiência através de avaliação e laudo expedido por
serviço que conte com equipe multiprofissional do Sistema Único de Saúde (SUS) ou do
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), credenciados para esse fim pelo Conselho
Municipal de Assistência Social.
(ix) A previsão de que o BPC seria concedido, a partir da publicação da LOAS,
gradualmente e no máximo em até: (a) 12 meses aos portadores de deficiência; e (b) 18
meses aos idosos.
(x) A previsão de que a partir do início da concessão do BPC, após 24 meses, a idade do
idoso seria reduzida para 67 anos e após 48 meses para 65 anos.
Para melhor compreensão da evolução do benefício e as mudanças ocasionadas pela
inclusão do mesmo na Assistência Social, observemos o quadro comparativo entre o BPC
previsto na Lei 8.742/93 e a RMV trazida pela Lei 6.179/74, ilustrado pela Tabela 1 a seguir.
118
Tabela 1 - Renda Mensal Vitalícia (RMV) e Benefício de Prestação Continuada (BPC):
análise comparativa.
CRITÉRIO
Beneficiários
RMV
Idosos com mais de 70
anos
Inválidos
BPC
Idosos com 70 anos ou
mais
Pessoas portadoras de
deficiência.
Benefício
½ do maior salário
1 salário mínimo
mínimo do país, limitado a
60% do salário mínimo da
localidade do pagamento
Comprovação de
ausência de meios
Somente para o
beneficiário
Extensível à família do
beneficiário
Revisão periódica do
benefício
Não
Sim, a cada 2 anos.
Proibição de
acumulação de
benefícios
Sim, salvo o direito à
assistência médica do
INPS (e pecúlio, em um
caso especial)
Sim, salvo o direito à
assistência médica
Necessidade de
comprovação da
invalidez/deficiência
Sim
Sim
119
2.4 Os ajustes no novo benefício assistencial
A redação original da LOAS (Lei 8.742/93) foi submetida a diversas Medidas
Provisórias.
A LOAS original foi publicada em 7 de dezembro de 1993. Em 8 de dezembro de
1994 foi publicada a primeira Medida Provisória para alterá-la, a Medida Provisória 754, de 8 de
dezembro de 1994. Esta MP levantou quatro pontos relevantes para nosso estudo:
(i) A autorização para que “entidades ou organizações credenciadas para este fim específico,
na forma do regulamento” também estivessem autorizadas a comprovar a deficiência por meio
de laudo técnico.
Na redação original, somente a equipe multiprofissional do SUS ou a equipe técnica
do INSS estavam autorizadas a tanto. Foi uma tentativa de introduzir competência a organizações
e entidades não estatais na qualificação como “portadora de deficiência” para o indivíduo que
estivesse pleiteando o BPC.
(ii) A manutenção da possibilidade do indivíduo com mais de setenta anos requerer a renda
mensal vitalícia (RMV) junto ao INSS até 7 de junho de 1995, desde que atendesse aos
requisitos legais fixados nos incisos I, II ou III do § 1° do art. 139 da Lei n° 8.213, de 1991.
Neste ponto, o problema atacado foi a solução de continuidade. Não se poderia
limitar a assistência social enquanto o BPC, recém introduzido no ordenamento pela LOAS, não
estivesse operando totalmente, ou seja desde que sua regulamentação fosse publicada e as
entidades públicas competentes à sua execução estivessem devidamente preparadas. Assim, a MP
deu a sobrevida à RMV, anteriormente mencionada.
(iii) O estabelecimento de prazo para adequação dos órgãos responsáveis por atestar a
existência da deficiência e por realizar o pagamento do BPC. Vale dizer, prazo até 31/12/1995,
para que estivessem devidamente preparados a operar, pois houve a previsão também de que
os requerimentos do BPC somente poderiam ser formalizados a partir de 1/1/1996, para que só
a partir dessa mesma data começasse a correr o prazo previsto de concessão do BPC.
120
Neste ponto foram enfrentadas questões de natureza prática, pois como houve
reforma em toda a sistemática do pagamento do benefício após a Constituição Federal e posterior
publicação da LOAS, percebeu-se a necessidade de adaptação interna dos órgãos envolvidos.
(iv) A redução do prazo para a concessão do BPC para 90 dias a partir do requerimento, no
máximo, independentemente de ser o beneficiário portador de deficiência ou idoso (alterando
a antiga disposição de prazo de 12 meses para portador de deficiência e 18 meses para idoso),
pois entendeu-se inexistir motivação para a diferenciação entre os beneficiários, reduzindo-se
e igualando-se então o prazo para ambos.
Houve a publicação de uma nova Medida Provisória, a MP 819, de 5 de janeiro de
1995, que possuía o exato teor da MP 754/94, acima analisada. Tratou-se de mera republicação
preventiva contra eventuais entraves quanto à sua vigência, pois o texto anteriormente publicado
não fora votado pelo Congresso, como era muito comum à época133.
Já na publicação da MP 1.473-34, de 11 de agosto de 1997, houve importantes ajustes
na sistemática do BPC que valem a pena ser abordados nesta discussão. Foram basicamente
quatro alterações importantes, listadas a seguir:
(i) A alteração da definição134 de “família”135.
133
A Medida Provisória 880, de 30 de janeiro de 1995, teve a mesma função. Assim como a MP 927, de 1 de março de 1995; a
MP 960, de 30 de março de 1995; a MP 985, de 28 de abril de 1995; a MP 1.010, de 26 de maio de 1995; a MP 1.033, de 27 de
junho de 1995; a MP 1.058, de 27 de julho de 1995; a MP 1.085, de 25 de agosto de 1995; a MP 1.117, de 22 de setembro de
1995; a MP 1.150, de 24 de outubro de 1995; a MP 1.186, de 23 de novembro de 1995; a MP 1.222, de 14 de dezembro de 1995;
a MP 1.259, de 12 de janeiro de 1996; a MP 1.298, de 9 de fevereiro de 1996; a MP 1.338, de 12 de março de 1996; a MP 1.380,
de 11 de abril de 1996; a MP 1.425, de 9 de maio de 1996; a MP 1.473, de 9 de junho de 1996; a MP 1.473-20, de 4 de julho de
1996; a MP 1.473-21, de 1 de agosto de 1996; a MP 1.473-22, de 29 de agosto de 1996; a MP 1.473-23, de 26 de setembro de
1996; a MP 1.473-24, de 24 de outubro de 1996; a MP 1.473-25, de 22 de novembro de 1996; a MP 1.473-26, de 19 de dezembro
de 1996; a MP 1.473-27, de 17 de janeiro de 1997; a MP 1.473-28, de 14 de fevereiro de 1997; a MP 1.473-29, de 14 de março de
1997; a MP 1.473-30, de 15 de abril de 1997; a MP 1.473-31, de 15 de maio de 1997; a MP 1.473-32, de 12 de junho de 1997; e a
MP 1.473-33, de 11 de julho de 1997.
134
O conceito foi alterado de: “unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela
contribuição de seus integrantes” (Redação Original da Lei 8.742/93) para “ o conjunto de pessoas elencadas no art.
16 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto”. Uma tentativa de se especificar o
que fora previsto inicialmente de forma mais genérica.
135
BRASIL. MP 1.473-34, de 11 de agosto de 1997. Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência
Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e
um) anos ou inválido; (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)
II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; (Redação dada pela
Lei nº 9.032, de 1995)
IV - a pessoa designada, menor de 21 (vinte e um) anos ou maior de 60(sessenta) anos ou inválida. (Revogada pela
Lei nº 9.032, de 1995); (...)
121
A vinculação do conceito de “família” para fins da concessão do BPC pela legislação
assistencial à legislação previdenciária foi uma opção legislativa que permaneceu vigente por
algum tempo.
Dessa forma, à medida que o conceito se alterava para fins previdenciários de se
estabelecer quem eram os dependentes do segurado (art. 16, da Lei 8.213/91), a legislação
assistencial também se utilizava desta alteração para atualizar o conceito de família para fins da
concessão do BPC.
(ii) A restrição da competência na verificação da existência de deficiência para fins da
concessão do BPC exclusivamente para o INSS136.
Também houve a previsão de que se no município de residência do requerente do
BPC não houvesse tal serviço especializado no INSS, a pessoa requerente deveria ser
encaminhada ao município mais próximo dotado da estrutura para tanto.
Neste ponto houve uma clara restrição sobre o órgão competente para realizar a
perícia médica que resultaria no laudo de avaliação acerca da condição da pessoa que pleiteava o
BPC; se esta era considerada deficiente ou não.
É importante notar que neste momento não há alteração do conceito assistencial de
“pessoa portadora de deficiência”, somente existe a preocupação em fixar esta competência de
emanar o laudo que fundamenta a concessão do benefício na perícia médica oficial do INSS.
(iii) A diminuição do prazo de 90 para 45 dias para concessão do BPC a partir do
requerimento; mantendo-se uniforme para todo o tipo de beneficiário, portador de deficiência
ou idoso.
§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por
determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes
para o próprio sustento e educação.
§ 3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado
ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal. (...). (Redação na data de publicação da
MP 1.473-34, de 11 de agosto de 1997).
136
A redação anterior era: “A deficiência será comprovada mediante avaliação e laudo expedido por equipe
multiprofissional do Sistema Único de Saúde - SUS, do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, ou de entidades
ou organizações credenciadas para este fim específico, na forma estabelecida em regulamento”; a nova redação
trazida é: “A habilitação e concessão do benefício ficarão sujeitas a exame médico pericial e laudo realizados pelos
serviços de perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.”
122
Esta diminuição do prazo de concessão do BPC pela metade permanece vigente até
hoje. Vale dizer que a manutenção da alteração da redação original sem se diferenciar mais o
prazo conforme o tipo de beneficiário também foi um importante marco para a concretização do
BPC.
(iv) A previsão de que a revisão do BPC, quando cabível, teria início em 1/9/1997. Esta
previsão foi inovadora, pois alterou o mecanismo de revisão do BPC a cada 2 anos previsto
pela LOAS. Isso se deu porque se contados os prazos de concessão iniciais, algumas revisões
estariam próximas de acontecer, sendo então postergadas com a estipulação de um termo de
contagem inicial fixo, válido para todas as situações.
Após a MP 1.473-34, de 11 de agosto de 1997, houve sua reedição com a MP 1.47335, de 9 de setembro de 1997, que simplesmente veiculou novamente a mesma redação da MP
anterior.137
A consolidação destas diversas Medidas Provisórias que vieram ajustando o BPC no
decorrer do tempo ocorreu com a Lei 9.720/98. Este diploma legal pode ser dividido conforme os
seguintes tópicos listando os principais direitos e definições:
(i) A manutenção na alteração da definição de “família”, proporcionada pela MP 1.473-34, de
11 de agosto de 1997138. À época, portanto, o conceito assistencial de família vigente já era
diverso do previsto na lei até então em vigor139;
137
Isso continua com a MP 1.473-36, de 9 de outubro de 1997; com a MP 1.473-37, de 6 de novembro de 1997; com a MP 1.59938, de 11 de novembro de 1997 (com a alteração do prazo de 45 dias para, novamente, 90 dias na concessão do BPC e com a
previsão de que a idade mínima para a concessão ao idoso do BPC seria reduzida para 67 anos em 1/1/2000 e para 65 anos em
1/1/2002); com a MP 1.599-39, de 11 de dezembro de 1997 (com o retorno do prazo de 45 dias e com a previsão de que a idade
mínima para a concessão ao idoso do BPC seria reduzida para 67 anos em 1/1/1998, sem previsão de redução para 65 anos); com
a MP 1.599-40, de 8 de janeiro de 1998; com a MP 1.599-41, de 5 de fevereiro de 1998; com a MP 1.599-42, de 5 de março de
1998; com a MP 1.599-43, de 2 de abril de 1998; com a MP 1.599-44, de 29 de abril de 1998; com a MP 1.599-45, de 28 de maio
de 1998; com a MP 1.599-46, de 26 de junho de 1998; com a MP 1.599-47, de 27 de julho de 1998; com a MP 1.599-48, de 25 de
agosto de 1998; com a MP 1.599-49, de 24 de setembro de 1998; com a MP 1.599-50, de 22 de outubro de 1998; e com a MP
1.599-51, de 18 de novembro de 1998, que finalmente foi convertida na Lei Ordinária Federal 9.720, de 30 de novembro de 1998.
138
Por oportuno, remetemos à nota de rodapé 136 deste estudo.
BRASIL. Lei Federal 9.720/1998. Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição
de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e
um) anos ou inválido; (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)
II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; (Redação dada pela
Lei nº 9.032, de 1995)
IV - a pessoa designada, menor de 21 (vinte e um) anos ou maior de 60(sessenta) anos ou inválida. (Revogada pela
Lei nº 9.032, de 1995) (...)
139
123
(ii) A manutenção da restrição prevista na MP 1.473-34 quanto à competência exclusiva do
INSS para elaboração do laudo de avaliação comprobatório da deficiência por meio de seu
corpo de perícia médica.
(iii) A manutenção do prazo de 45 dias para a concessão do BPC, sem diferenciação do tipo de
beneficiário (consoante a redação da MP 1.599-39, de 11 de dezembro de 1997).
(iv) A manutenção da redução da idade para a concessão do BPC ao idoso para 67 anos a
partir de 1/1/1998, sem previsão da redução da idade para 65 anos (algo que também foi
consolidado definitivamente pela MP 1.599-39, de 11 de dezembro de 1997).
(v) A consolidação do entendimento de que os órgãos e pessoas responsáveis pela verificação
da deficiência (i.e. perícia médica do INSS) e pelo pagamento do BPC (i.e. INSS) deveriam
estar totalmente adaptados até 31/12/1995; que o requerimento do BPC seria iniciado em
1/1/1996; e que a revisão do BPC seria iniciada em 1/9/1997.
2.5 A reforma do assistencialismo
A Lei 12.435, de 6 de julho de 2011, trouxe diversas alterações à Lei 8.742/93. Para
fins deste estudo, focaremos nas manutenções e alterações de dispositivos concernentes
especificamente ao BPC e sua regulação.
(i) A alteração da idade mínima do idoso que faz jus ao BPC de 67 para 65 anos.
(ii) O novo conceito de “família”, qual seja: “a família é composta pelo requerente, o cônjuge
ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos
§ 2º. O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a
dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)
§ 3º. Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado
ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal.
124
solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo
teto”.
(iii) A alteração do conceito de pessoa deficiente140.
(iv) A manutenção do conceito original da Lei 8.742/93 de que seria incapaz de prover a
manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita fosse
inferior a 1/4 do salário mínimo e, logo, nestes casos, faria o beneficiário jus ao BPC.
(v) A ampliação do rol de benefícios passíveis de acumulação com o BPC, basicamente os
provenientes de pensão de natureza indenizatória141.
(vi) A manutenção da competência exclusiva do INSS para a comprovação da deficiência,
entretanto incluindo a avaliação dos asssistentes sociais do INSS, além da realizada pelos
peritos médicos do órgão.
(vii) A manutenção da revisão do BPC a cada dois anos.
(viii) A disposição expressa de que “o desenvolvimento das capacidades cognitivas, motoras
ou educacionais e a realização de atividades não remuneradas de habilitação e reabilitação,
entre outras, não constituem motivo de suspensão ou cessação do benefício da pessoa com
deficiência” e que “a cessação do benefício de prestação continuada concedido à pessoa com
deficiência, inclusive em razão do seu ingresso no mercado de trabalho, não impede nova
concessão do benefício”.
Assim, sobre a reforma da LOAS trazida pela Lei 12.435/11, pode-se dizer que houve
melhoria na concessão do BPC, pois ampliou-se a gama de beneficiários a todos os idosos que
possuíssem 65 anos ou mais.
Além disso, finaliza-se o período de vinculação do conceito de “dependente” para
fins da legislação previdenciária com o conceito de “família” da legislação assistencial. Agora
140
O conceito foi alterado de “pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para
o trabalho” (redação original da Lei 8.742/93), para “I - pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de
longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas;” Sendo impedimentos de longo prazo “aqueles
que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 anos”.
141
O conceito foi alterado de: “não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da
seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência médica” (redação original da Lei 8.742/93); para: “não
pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo
os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória”.
125
existe conceito bem delimitado do que é “família” para fins do cálculo da renda per capita e,
logo, da concessão do BPC.
Aperfeiçoou-se também o conceito de “deficiência”, visando tornar o ambiente
normativo mais concreto e eliminar entendimentos mais abstratos passíveis de interpretações
distintas, incorporando-se o conceito internacional, já introduzido com força de emenda
constitucional ao direito pátrio.
E, por fim, regulou-se a acumulação de BPC com outros benefícios. Anteriormente
permitia-se acumular o BPC com a assistência médica, após a reforma possibilitou-se, além desta
hipótese, que se acumulasse o BPC também com qualquer “pensão especial de natureza
indenizatória”.
No entanto, um dos principais incrementos legislativos nesta reforma foi a
possibilidade de melhoria da avaliação do INSS na comprovação da deficiência, pois agora deve
se levar em conta características aferidas por assistentes sociais em conjunto com aquelas
atestadas pelos médicos peritos.
Ponto polêmico é que se tornou evidente nesta reforma que o fator considerado
divisor de águas para a concessão ou não do BPC é o fator renda auferida pelo beneficiário, pois
caso ele venha a trabalhar, contanto que não aufira renda, continuará a receber o benefício.
Mantemos este tópico em destaque, posto que será desenvolvido adiante.
Recentemente consubstanciou-se mais uma alteração da LOAS, implementada pela
Lei 12.470, de 31 de agosto de 2011142, que possui como os principais pontos para fins do nosso
trabalho os listados a seguir.
(i) A alteração do conceito de pessoa portadora de deficiência143 e disposição expressa de que
impedimento de longo prazo é aquele que produza efeitos em prazo mínimo de dois anos.
142
Conversão da Medida Provisória 529, de 7 de abril de 2011. A parte que altera a LOAS foi inteiramente inserida na conversão
da MP em Lei, posto que no texto originário da MP não havia nenhuma previsão sobre o assunto .
143
O conceito foi alterado de “pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza
física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade com as demais pessoas” Sendo: “II - impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a
pessoa com deficiência para a vida independente e para o trabalho pelo prazo mínimo de 2 anos” (redação da Lei
12.435/11), para “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”
126
A alteração do conceito de pessoa com deficiência trata-se de clara introdução do
conceito explorado no início de nosso trabalho, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro
por meio da introdução da Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência da ONU ao
direito pátrio, com status de emenda constitucional por força do parágrafo 3º do artigo 5º da
Constituição Federal de 1988.
(ii) A prescrição e a importância do trabalho conjunto entre médicos e assistentes sociais,
posto que estabeleceu que a concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e
do grau de impedimento. A avaliação será composta por: (a) avaliação médica; e (b) avaliação
social; realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do INSS.
(iii) A exclusão expressa da remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz
para fins do cálculo que determina a renda per capita da família para averiguar se a pessoa faz
jus ao BPC. No entanto, limita a 2 anos o prazo em que a pessoa é autorizada a perceber
cumulativamente o BPC e a remuneração pelo trabalho de aprendiz.
Cumpre ressaltar o regramento do portador de deficiência aprendiz, que é
disciplinado pelo artigo 428, parágrafo 5º , da CLT (incluído pela Lei 11.180/05). Nesta hipótese,
diz-se que o limite de idade que é aplicável ao aprendiz (i.e. de 14 anos a 24 anos) não se aplica
ao aprendiz que seja portador de deficiência. Assim, não há limitação de idade para o portador de
deficiência a ser enquadrado como aprendiz em determinada empresa.
(iv) Ademais, dispõe que o BPC “será suspenso pelo órgão concedente quando a pessoa com
deficiência exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor
individual”.
127
2.6 Notas à reforma do BPC de 2011
No parágrafo 3º do artigo 20 da LOAS fica claro que para que a pessoa portadora de
deficiência qualifique-se para receber o benefício de prestação continuada (BPC), a renda per
capita de sua família não pode ultrapassar ¼ do salário mínimo.
Quando a pessoa portadora de deficiência é contratada e começa a trabalhar,
automaticamente a renda per capita de seu núcleo familiar aumenta, devido ao fato de que a essa
pessoa começar a auferir renda, ensejando o fim do benefício de prestação continuada antes
devido.
Portanto, caso a pessoa portadora de deficiência não trabalhe, não aufere renda; terá
direito ao BPC. Todavia, caso trabalhe e aufira renda, seu salário passa a integrar a renda da
família e o benefício cessa.
A única exceção ocorre se a pessoa portadora de deficiência for contratada como
aprendiz, pois neste caso poderá trabalhar dois anos sob essa categoria, acumulando sua
remuneração com o BPC. Findos os dois anos, se continuar trabalhando, mesmo que como
aprendiz, perde o direito ao BPC.
Esta sistemática permite ensejar um incentivo negativo, pois com o fito de continuar a
receber o BPC, a família ou mesmo o portador de deficiência pode acabar optando por não
trabalhar.
Do ponto de vista estritamente econômico, somente valeria a pena a pessoa portadora
de deficiência ingressar no trabalho para auferir remuneração superior ao valor do BPC. Alia-se a
este aspecto um fator não monetário, que consiste na segurança de permanecer dentro de seu lar,
recebendo o benefício e sob os cuidados de seus familiares.
Este raciocínio pode desestruturar toda a política pública em pauta, operarando como
um incentivo às pessoas portadoras de deficiência não trabalharem simplesmente para que suas
famílias continuem recebendo o BPC.
128
Isso sem mencionar o fato de que muitas vezes esta opção sequer cabe ao portador de
deficiência, que pode ficar objeto da vontade de sua família, a depender do caso.
Para que esse mecanismo não seja um empecilho à concretização da política pública,
uma alternativa seria alterar a sistemática de computação da renda per capita, de forma a excluir a
renda auferida pelo portador de deficiência em função de seu trabalho, ou, pelo menos, um
percentual desta.
Nestes termos, o parágrafo 9º do mesmo artigo 20 poderia fazer esta previsão.
Quando o dispositivo estabelece que a renda do portador de deficiência aprendiz não será
computada, poderia se inserir que a renda do portador de deficiência auferida com o seu trabalho,
ou percentual desta, estaria também fora do cômputo para fins de determinação da renda per
capita da família para a concessão do BPC.
Ou, ainda, acabar com a previsão permissiva do prazo de dois anos de acumulação do
BPC com a remuneração pelo trabalho como aprendiz, de modo a tornar livre essa acumulação e
incentivar que o portador de deficiência saia de casa para trabalhar e se desenvolver
pessoalmente.
2.7 Os períodos históricos da evolução do benefício
Conforme destacamos no início de nosso trabalho, dividimos, inicialmente, em 4
períodos a evolução do assistencialismo ora estudado: (i) Fase Previdenciária; (ii) Fase
Assistencial; (iii) Ajustando o Assistencialismo; e (iv) Reforma do Assistencialismo.
Denominamos a primeira fase como “Fase Previdenciária” porque a RMV,
antecessora do BPC, era benefício do sistema previdenciário, exigia contribuição ao sistema e
tinha diversos requisitos formais.
129
Ainda assim, esta fase foi de suma importância porque pela primeira vez um
benefício deste tipo foi fornecido aos portadores de deficiência (que à época se enquadravam no
conceito de “inválidos”).
Esta fase compreendeu o período de 11/12/1974 à 31/12/1995. Optamos por estender
este período em razão da transição entre RMV e BPC, quando aquelas pessoas que preenchiam os
requisitos da RMV ainda poderiam pleiteá-la perante a seguridade social, em vista de que o BPC
ainda carecia de regulamentação para funcionar na prática.
A partir de 1/1/1996, o BPC passou a operar na prática e a RMV não mais poderia ser
concedida.
A segunda fase, que denominamos de “Fase Assistencial”, inicia-se na Constituição
Federal de 1988, quando o artigo 203, inciso V retirou o caráter previdenciário do benefício, ao
deslocá-lo para o campo da Assistência Social.
Com isso, mudaram alguns pontos essenciais, como, por exemplo, a necessidade de
contribuição ao sistema. O sistema da Assistência Social está à disposição de quem dela
necessitar, sem necessidade de contribuição, diferentemente do sistema da Previdência Social.
A Fase Assistencial finda com o primeiro ajuste da então recém publicada LOAS pela
MP 714/94. Assim, temos este período de 5/10/1988 até 8/12/1994.
À terceira fase, que vai de 9/12/1994 a 30/11/1998, atribuímos a denominação de
“Ajustando o Assistencialismo”, pois o período por ela compreendido abrange uma série de
reformas pontuais para que a legislação entrasse em vigor definitivamente com uma sistemática
passível de implementação.
Teve início com a primeira reforma da Lei 8.473/93 (Lei Orgânica da Assistência
Social – LOAS), com a Medida Provisória 714, de 8 de dezembro de 1994, e terminou com a
edição da Lei 9.720, de 30 de novembro de 1998. Esta última Lei implicou a sistematização de
todas as diversas MPs que vieram alterando pontualmente a LOAS.
Por fim, a quarta fase, a “Reforma do Assistencialismo”, tem início com as primeiras
reformas da LOAS desde a Lei 9.720/98, realizada pela Lei 12.435, de 6 de julho de 2011, e logo
depois pela Lei 12.470, de 31 de agosto de 2011, estendendo-se aos dias atuais.
130
A Lei 12.435/11 desempenhou papel importante na delimitação de alguns conceitos
para sustentar maior segurança jurídica, mas a Lei 12.470/11 foi um pouco além.
A primeira constatação de um leitor mais atento é que falta pontuar um certo período
de tempo. Entre o final do período que chamamos de “Ajustando o Assistencialismo” e o início
do período nominado “Reforma do Assistencialismo”, ou seja, a partir de 1/12/1998 até 6/7/2011
a LOAS não foi alterada e o BPC funcionou nos termos ajustados após o final do terceiro
período. Daremos a este período o nome de “Assistencialismo Ajustado”.
Deste modo, chegamos à seguinte classificação: Período 1 – Fase Previdenciária
(11/12/1974 à 31/12/1995); Período 2 – Fase Assistencial (5/10/1988 à 8/12/1994); Período 3 –
Ajustando o Assistencialismo (9/12/1994 à 30/11/1998); Período 4 – Assistencialismo Ajustado
(1/12/1998 à 6/7/2011); Período 5 – Reforma do Assistencialismo (7/7/2011 à ?); e Período 6 –
Assistencialismo Pleno (? à ?). Visualizemos estes períodos graficamente na Figura 1 abaixo,
identificando os pontos históricos principais para este nosso estudo.
Figura 1 - Os períodos históricos do assistencialismo aos portadores de deficiência no Brasil
131
2.8 Tabulando os dados
Pode-se afirmar a existência de 7 diplomas normativos legais que foram de suma
importância para estabelecer a abrangência da legislação assistencial e delimitar os direitos dos
portadores de deficiência aos benefícios assistenciais. Vejamos a Tabela 2.
Tabela 2 - Análise dos diplomas normativos a partir da acessibilidade a direitos
MP
MP
Lei 6.179/74
Lei 8.742/93
754/94
1.473-34/97
Lei 9.720/98
Lei 12.435/11
Lei 12.470/11
(+1): Criou a
RMV.
(+1):
Aumentou o
valor do
benefício
(+1): Ampliou
a competência
para atestar a
deficiência.
(+1): Definiu
melhor o
conceito de
“família”.
(+1): Previu
a redução de
idade do
beneficiário
para 67 anos.
(+1): Reduziu
a idade para
65 anos.
(+1):
Melhorou o
conceito de
“deficiente”.
(+1): Previu
o acúmulo
da RMV
com
assistência
médica.
(+1):
Aumentou a
gama de
beneficiários.
(+1): Fixou
prazos críveis
para
implementar o
BPC.
(-1):
Restringiu ao
INSS a
competência
para atestar a
deficiência.
(-1):
Restringiu o
conceito de
“família”.
(-1): Limitou a
2 anos a
acumulação do
BPC e da
renda de
aprendiz.
(+1): Definiu
melhor os
sujeitos.
(+1): Reduziu
o prazo para
concessão do
benefício.
(+1): Reduziu
ainda mais o
prazo para
concessão do
benefício.
(+1):
Melhorou o
conceito de
“deficiente”.
(-1):
Suspendeu o
BPC quando o
beneficiário
auferir renda.
(+1):
Trouxe o
benefício
para a
Assistência
Social.
(+1):
Restringiu a
acumulação
de
benefícios.
132
(+1):
Incluiu os
assistentes
sociais no
processo de
atestar a
deficiência
em conjunto
com a perícia
médica do
INSS.
Atribuímos um ponto por inovação positiva no sistema de Assistência Social gerado
pelo diploma legal em questão e um ponto negativo para cada inovação negativa ou retrocesso na
sistemática. Como sempre ocorre a comparação com a lei anterior, sempre acrescentamos ou
diminuímos pontos do total já lançado144.
A partir da análise da evolução histórica da legislação referente ao BPC, podemos
criar um gráfico com o eixo “x” representando o tempo transcorrido e os marcos legais, e o eixo
“y” representando a delimitação mais segura dos direitos (i.e. conceitos mais fechados e
concretos) e a ampliação do acesso ao BPC.
Vejamos o resultado desta tabulação dos dados na Figura 2:
144
Ressaltamos que sabemos da discricionariedade deste “placar”, mas acreditamos seja ele interessante par
a a análise dos incrementos na legislação. Os diplomas legais e as principais alterações constam do Anexo C.
133
Figura 2 – A evolução da acessibilidade a direitos na legislação analisada
Acesso a Direitos
16
14
12
10
8
6
4
2
0
2.9 Conclusões sobre o BPC (ou LOAS) de hoje e possíveis novos horizontes
A partir das informações levantadas e das análises gráficas demonstradas
anteriormente, constatamos que a legislação assistencial veio ampliando sua gama de atuação e
melhorando o sistema de assistência aos beneficiários do BPC.
No entanto, a última alteração legislativa (parte integrante do período de “Reforma
Assistencial”), trazida à baila pela Lei 12.470/11, diminuiu o acesso ao BPC.
Pela sistemática atual, o portador de deficiência possui um incentivo forte para não
trabalhar (e, portanto, fazer jus ao BPC) quando, na realidade, a política pública deveria ser o
134
oposto, incentivando-o a trabalhar, pois o trabalho é o veículo previsto expressamente pela
Política Nacional de Inserção Social dos Portadores de Deficiência145.
Deixamos o sexto período identificado como “Assistencialismo Pleno”, sem prazo de
início e tampouco de término, porque cremos que esse deveria ser o próximo passo da legislação
assistencial no Brasil.
Nesse sentido, estaríamos incentivando o portador de deficiência a trabalhar para
inseri-lo socialmente, mas sem excluir sua família do BPC, possibilitando-lhe, assim, incrementar
a renda familiar com a renda auferida pelo seu trabalho, e, simultaneamente, não o obrigar a optar
entre trabalhar ou receber o BPC e manter-se improdutivo, como ocorre hoje na prática (com a
ressalva de que muitas vezes sequer esta escolha recai sobre o portador de deficiência, já que
muitas vezes as próprias famílias realizam-na, impondo ao portador de deficiência uma situação
já previamente determinada).
Gostaríamos de ressaltar que o trabalho ora apresentado cuidou de descrever a
evolução da regulação acerca do BPC. Dessa forma, limitamo-nos a comparar os diversos textos
de lei de forma contextualizada, e não de forma esparsa, como geralmente se faz nos comentários
de legislação.
Aprofundamos nosso estudo em toda a legislação sobre o assunto, na tentativa de
traçar o caminho que o benefício percorreu no decorrer dos anos, visando identificar as
tendências futuras deste benefício.
Pesquisa suplementar interessante seria a análise do comportamento da jurisprudência
nesse caminho percorrido pela legislação.
Teria a jurisprudência influenciado as alterações legislativas a ela subsequentes ou
estas teriam sido simples fruto do jogo político?
Sugerimos que os próximos passos para o pesquisador que deseje aprofundamento na
matéria poderiam ser neste sentido. Buscar descobrir eventuais influências externas sobre as
alterações legislativas aqui expostas e analisadas, para identificar os agentes de peso nas tomadas
de decisão nesta área do Direito.
145
Cf. o artigo 2°, inciso III, da Lei n° 7.853/93.
135
Pois bem, a partir do esforço de engenharia normativa realizado sobre o processo de
evolução regulatória do benefício de prestação continuada (BPC), identificamos a seguinte
construção e possível tendência:
1) O benefício nasceu como parte da Previdência Social e a partir da Constituição Federal de
1988 tornou-se benefício da Assistência Social. A grande diferença entre estar inserido no rol
de benefícios da Previdência Social ou no rol de benefícios da Assistência Social é que no
primeiro caso, para fazer jus ao benefício, exige-se contribuição do beneficiário, enquanto no
segundo, não há esta obrigação,basta enquadrar-se nos requisitos legais que o direito está
assegurado.
2) Após passar por um longo período de adaptações em que cada vez mais o rol de
beneficiários era majorado e tornava-se mais fácil e rápida a obtenção do benefício, a
legislação que regula o BPC parece ter tomado outro viés em meados de 2011.
3) A partir da última reforma da Lei Orgânica da Assistência Social, Lei 8.472/91146,
promovida pela Lei 12.470/11, parece que o objetivo foi o de limitar mais a atuação da
Assistência Social sobre aqueles que realmente estão em estado de necessidade, fixando
conceitos mais restritivos para a obtenção do benefício e, principalmente, não promovendo a
acumulação do BPC com a remuneração pelo trabalho do beneficiário portador de
deficiência, seja este beneficiário aprendiz ou não.
4) Resta saber se esta foi uma alteração pontual na regulação ou se é possível identificar-se
uma tendência de evolução restritiva do benefício. Parece-nos que, no atual contexto, a
alteração visa ampliar o número de beneficiários portadores de deficiência com acesso ao
BPC, mas acabará diminuindo o efetivo grau de inserção social destes, pois à medida que a
legislação limita a acumulação do BPC com a remuneração pelo trabalho do portador de
deficiência, acaba desestimulando o portador de deficiência a trabalhar, para continuar
apenas como beneficiário do BPC.
5) O benefício torna-se meramente um instrumento de redistribuição de renda e não um
instrumento de inserção social, pois resta evidente a preocupação em oferecer uma renda
146
O BPC é regulado pelos artigos 20, 21 e 21-A da referida Lei.
136
mínima a estas pessoas, mas não em interá-las no convívio social com outras pessoas, algo
que poderia ser atingido por meio do trabalho.
6) Neste momento cumpre-nos ressaltar o conflito de interesses que poderia surgir entre o
BPC ao portador de deficiência e a política pública de inserção deste beneficiário na
sociedade por meio de seu trabalho.
A regulamentação deste benefício se deu na Lei 8.742/93, recentemente alterada pela
Lei 12.435/11 e pela Lei 12.470/11.
O parágrafo 3o do artigo 20 da Lei 8.742/93 atualizada 147 prescreve que, para que a
pessoa portadora de deficiência seja passível de se tornar beneficiária do BPC, a renda per capita
de sua família não pode ultrapassar ¼ do salário mínimo.
Como já abordamos anteriormente, com a aplicação da Lei de Cotas e a contratação
de pessoa portadora de deficiência, esta passa a auferir renda computável na renda per capita
familiar, o que ocasiona a perda das condições que possbilitariam o recebimento do BPC.
147
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com
deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a
própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
§ 1° Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e,
na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores
tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
§ 2° Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com
diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições
com as demais pessoas.
§ 3° Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda
mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
§ 4° O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da
seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.
§ 5° A condição de acolhimento em instituições de longa permanência não prejudica o direito do idoso ou da pessoa
com deficiência ao benefício de prestação continuada.
§ 6° A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o § 2°,
composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto
Nacional de Seguro Social - INSS.
§ 7° Na hipótese de não existirem serviços no município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma
prevista em regulamento, o seu encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura.
§ 8° A renda familiar mensal a que se refere o § 3° deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal,
sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.
§ 9° A remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para fins do
cálculo a que se refere o § 3° deste artigo.
§ 10° Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2o deste artigo, aquele que produza efeitos pelo
prazo mínimo de 2 (dois) anos. (grifos nossos)
137
Além do incentivo negativo a sua inserção social, pois diante da situação que a lei
gera o portador de deficiência, ou mesmo e muitas vezes sua família, optam pelo não ingresso no
mercado de trabalho para dar continuidade ao recebimento do benefício.
Acumulam-se assim um fator de ordem financeira: receber o benefício pode ser mais
vantajoso do que receber remuneração pelo trabalho; bem como um fator de segurança e
conforto: permanecer no seio da família sob seus cuidados em tempo integral pode ser mais
benéfico.
Estes fatores transmutados em repetido e afirmado comportamento vão de encontro à
política pretendida pela Lei de Cotas e podem até mesmo desestruturá-la, descaracterizando-a: o
incentivo vira obstáculo à inserção social.
Nossa sugestão corretiva do contexto ora colocado será abordada adiante.
Adiantamos, no entanto, entendermos que a exclusão total ou ao menos parcial da renda
percebida pela pessoa portadora de deficiência em virtude de seu trabalho do cômputo da renda
per capita familiar afigura-se uma alternativa nessa direção, fazendo-se constar expressamente
esta previsão no parágrafo 9º do artigo 20 do diploma legal em apreço.
138
3. CONTINUANDO O TRABALHO DE ENGENHARIA NORMATIVA
As ações profissionalizantes, como já mencionado, são ações que consistem na
capacitação e qualificação profissional das pessoas portadoras de deficiência para sua posterior
inserção no mercado de trabalho.
Nesta seara, a recente alteração da Lei Orgânica da Assistência Social pela Lei
12.435/11 é fundamental, posto que autoriza entidades e organizações sociais cadastradas no
SUAS (Sistema Único de Assistência Social) a celebrarem convênios com o poder público para
atingir estes objetivos profissionalizantes. A importância da utilização do Terceiro Setor como
apoio ao Estado para atingir o objetivo último de inserção social dos portadores de deficiência,
muitas vezes até mesmo com recursos financeiros ou de servidores oriundos do Estado, é de
extrema valia e, com certeza, também deve ser incentivada.
A sistemática trazida pela Nova Lei da Organização da Assistência Social e a sua
regulamentação serão relevantes para auxiliar a atingir o objetivo máximo de facilitar o acesso do
portador de deficiência ao mercado de trabalho por meio da qualificação profissional deste grupo
de pessoas.
Já as ações denominadas “social-integradoras” são exatamente o objeto deste nosso
estudo porque se tratam das ações que trarão a inclusão social de forma definitiva, sendo o
trabalho individual o meio eleito pela própria Política Nacional de Inclusão Social do Portador de
Deficiência (veiculada pela Lei n° 7.853/93) e seu maior expoente.
A Lei de Cotas é a ação social-integradora por excelência hoje, pois é com base nela
que determinadas empresas são obrigadas a contratar pessoas portadoras de deficiência ou
reabilitadas da Previdência Social.
A ideia que pretendemos introduzir é que, passados vinte anos da instituição pela Lei
de Cotas desta restrição de contratar das empresas, para estimulá-las a contratar mais pessoas
com deficiência do que a legislação as obriga, os incentivos tributários se revelam de suma
importância.
139
Feitas estas considerações sobre a divisão entre os tipos de ações estatais que a
legislação prevê, vale a pena retornar à Política Nacional da Inserção Social do Portador de
Deficiência para melhor compreendermos a sistematização proposta e o foco deste trabalho.
Referida Lei delimita as áreas de atuação em que essa Política deve ser
implementada: (i) educação; (ii) saúde; (iii) formação profissional e do trabalho; (iv) recursos
humanos; (v) edificações148.
148
BRASIL. Lei Federal n° 7.853/93. Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras
de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao
lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das
leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e
indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento
prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
I - na área da educação:
a) a inclusão, no sistema educacional, da Educação Especial como modalidade educativa que abranja a educação
precoce, a pré-escolar, as de 1º e 2º graus, a supletiva, a habilitação e reabilitação profissionais, com currículos,
etapas e exigências de diplomação próprios;
b) a inserção, no referido sistema educacional, das escolas especiais, privadas e públicas;
c) a oferta, obrigatória e gratuita, da Educação Especial em estabelecimento público de ensino;
d) o oferecimento obrigatório de programas de Educação Especial a nível pré-escolar, em unidades hospitalares e
congêneres nas quais estejam internados, por prazo igual ou superior a 1 (um) ano, educandos portadores de
deficiência;
e) o acesso de alunos portadores de deficiência aos benefícios conferidos aos demais educandos, inclusive material
escolar, merenda escolar e bolsas de estudo;
f) a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos públicos e particulares de pessoas portadoras de
deficiência capazes de se integrarem no sistema regular de ensino;
II - na área da saúde:
a) a promoção de ações preventivas, como as referentes ao planejamento familiar, ao aconselhamento genético, ao
acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério, à nutrição da mulher e da criança, à identificação e ao
controle da gestante e do feto de alto risco, à imunização, às doenças do metabolismo e seu diagnóstico e ao
encaminhamento precoce de outras doenças causadoras de deficiência;
b) o desenvolvimento de programas especiais de prevenção de acidente do trabalho e de trânsito, e de tratamento
adequado a suas vítimas;
c) a criação de uma rede de serviços especializados em reabilitação e habilitação;
d) a garantia de acesso das pessoas portadoras de deficiência aos estabelecimentos de saúde públicos e privados, e de
seu adequado tratamento neles, sob normas técnicas e padrões de conduta apropriados;
e) a garantia de atendimento domiciliar de saúde ao deficiente grave não internado;
f) o desenvolvimento de programas de saúde voltados para as pessoas portadoras de deficiência, desenvolvidos com
a participação da sociedade e que lhes ensejem a integração social;
III - na área da formação profissional e do trabalho:
a) o apoio governamental à formação profissional, e a garantia de acesso aos serviços concernentes, inclusive aos
cursos regulares voltados à formação profissional;
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial,
destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de
deficiência;
140
A partir da leitura e aprofundamento da Nova Lei da Organização da Assistência
Social, vemos que o papel do Terceiro Setor torna-se extremamente relevante para atender à
alínea “a” do inciso III acima tratado. Vejamos o seguinte dispositivo da Lei 7.853/93:
Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de
deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à
educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à
infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis,
propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e
entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua
competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento prioritário e
adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
[…]
III - na área da formação profissional e do trabalho:
a) o apoio governamental à formação profissional, e a garantia de acesso aos
serviços concernentes, inclusive aos cursos regulares voltados à formação
profissional;
A Lei n° 12.435/11 trouxe uma série de novidades para a Lei n° 8.742/93, que
organiza a Assistência Social149.
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras
de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de
oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência;
IV - na área de recursos humanos:
a) a formação de professores de nível médio para a Educação Especial, de técnicos de nível médio especializados na
habilitação e reabilitação, e de instrutores para formação profissional;
b) a formação e qualificação de recursos humanos que, nas diversas áreas de conhecimento, inclusive de nível
superior, atendam à demanda e às necessidades reais das pessoas portadoras de deficiências;
c) o incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico em todas as áreas do conhecimento relacionadas com a
pessoa portadora de deficiência;
V - na área das edificações:
a) a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que
evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, permitam o acesso destas a edifícios, a
logradouros e a meios de transporte.
149
BRASIL. Lei Federal n° 8742/93. Art. 3° Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas
sem fins lucrativos que, isolada ou cumulativamente, prestam atendimento e assessoramento aos beneficiários
abrangidos por esta Lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de direitos. (Redação dada pela Lei nº 12.435,
de 2011)
§ 1° São de atendimento aquelas entidades que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços,
executam programas ou projetos e concedem benefícios de prestação social básica ou especial, dirigidos às famílias e
indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal, nos termos desta Lei, e respeitadas as
141
O Terceiro Setor passa a ter, por meio das entidades e organizações de Assistência
Social, importante função na estrutura da Assistência Social porque será responsável pelas
atividades de atendimento e assessoramento dos beneficiários da mesma, dentre os quais as
pessoas portadoras de deficiência se encontram.
Mas como se concretiza a concessão de recursos públicos a serem empregados pelo
Terceiro Setor nessa sua nova função? O Regulamento da Previdência Social (Decreto 3.048/93 e
posteriores alterações), por exemplo, faz a previsão da celebração de convênio com estas
entidades para a cooperação técnico-financeira entre Estado e as mesmsas(artigos 136 a 140).
Dessa forma, o Terceiro Setor poderá ser o responsável, a depender do caso, por todo
o processo de habilitação e reabilitação da pessoa portadora de deficiência, visando sua posterior
inserção no mercado de trabalho.
Isso iniciaria o procedimento para atingir-se os objetivos fundamentais da Assistência
Social que a Constituição Federal prevê, entre eles, a inserção social do portador de deficiência
por meio de seu trabalho.
Entretanto, somente com a efetiva contratação de trabalho do portador de deficiência
é que tal política seria concluída. É com o trabalho diário dessas pessoas propriamente dito que a
política se afirma e a integração à vida comunitária se completa, e não somente com o preparo
para este trabalho, por meio de qualificação técnica que pode também ser fornecida pelo Terceiro
Setor.
É o que se depreende do texto constitucional tantas vezes aqui mencionado:
deliberações do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), de que tratam os incisos I e II do art. 18. (Incluído
pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 2° São de assessoramento aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços e executam
programas ou projetos voltados prioritariamente para o fortalecimento dos movimentos sociais e das organizações de
usuários, formação e capacitação de lideranças, dirigidos ao público da política de assistência social, nos termos
desta Lei, e respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº
12.435, de 2011)
§ 3° São de defesa e garantia de direitos aquelas que, de forma continuada, permanente e planejada, prestam serviços
e executam programas e projetos voltados prioritariamente para a defesa e efetivação dos direitos socioassistenciais,
construção de novos direitos, promoção da cidadania, enfrentamento das desigualdades sociais, articulação com
órgãos públicos de defesa de direitos, dirigidos ao público da política de assistência social, nos termos desta Lei, e
respeitadas as deliberações do CNAS, de que tratam os incisos I e II do art. 18. (Incluído pela Lei nº 12.435, de
2011).
142
Seção IV
DA ASSISTÊNCIA SOCIAL
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. (grifos
nossos).
Vale lembrar, inclusive, da previsão constitucional de exoneração tributária que o
artigo 195, parágrafo 7° veicula, no que tange à contribuição para a Seguridade Social das
entidades beneficentes devidamente habilitadas, na forma de lei, de Assistência Social.
Trata-se de incentivo tributário para que estas entidades integrantes do Terceiro Setor
continuem investindo seus recursos (sejam recursos próprios ou repasses de entes
governamentais) na habilitação e reabilitação dos portadores de deficiência ou, ainda, para que
centrem seus esforços orçamentários na nova função que lhes foi atribuída pela Lei 12.435/11,
qual seja a de capacitação e qualificação profissional destas pessoas.
Assim, com esta nova sistemática normativa, as entidades de Assistência Social
integrantes do Terceiro Setor poderão: (i) atuar na habilitação e reabilitação de pessoas
portadoras de deficiência, para seu posterior ingresso no mercado de trabalho; e, ainda, (ii) atuar
na qualificação e capacitação profissional destas pessoas, ainda que não seja o caso da habilitação
ou reabilitação previstas aos beneficiários da Previdência Social.
O novo papel das entidades de Assistência Social perante a Nova Lei da Organização
da Assistência Social é significativo na atualizada sistemática do direito assistencial (Artigo 6° e
7° do referido diploma normativo)150.
150
CAPÍTULO III
Da Organização e da Gestão
143
Art. 6° A gestão das ações na área de assistência social fica organizada sob a forma de sistema descentralizado e
participativo, denominado Sistema Único de Assistência Social (Suas), com os seguintes objetivos: (Redação dada
pela Lei nº 12.435, de 2011)
I - consolidar a gestão compartilhada, o cofinanciamento e a cooperação técnica entre os entes federativos que, de
modo articulado, operam a proteção social não contributiva; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
II - integrar a rede pública e privada de serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social, na forma do
art. 6°-C; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
III - estabelecer as responsabilidades dos entes federativos na organização, regulação, manutenção e expansão das
ações de assistência social;
IV - definir os níveis de gestão, respeitadas as diversidades regionais e municipais; (Incluído pela Lei nº 12.435, de
2011)
V - implementar a gestão do trabalho e a educação permanente na assistência social; (Incluído pela Lei nº 12.435, de
2011)
VI - estabelecer a gestão integrada de serviços e benefícios; e (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
VII - afiançar a vigilância socioassistencial e a garantia de direitos. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 1° As ações ofertadas no âmbito do Suas têm por objetivo a proteção à família, à maternidade, à infância, à
adolescência e à velhice e, como base de organização, o território.(Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 2° O Suas é integrado pelos entes federativos, pelos respectivos conselhos de assistência social e pelas entidades e
organizações de assistência social abrangidas por esta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 3° A instância coordenadora da Política Nacional de Assistência Social é o Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Art. 6°-A. A assistência social organiza-se pelos seguintes tipos de proteção: (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
I - proteção social básica: conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social que visa a
prevenir situações de vulnerabilidade e risco social por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e
do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
II - proteção social especial: conjunto de serviços, programas e projetos que tem por objetivo contribuir para a
reconstrução de vínculos familiares e comunitários, a defesa de direito, o fortalecimento das potencialidades e
aquisições e a proteção de famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação de direitos. (Incluído
pela Lei nº 12.435, de 2011)
Parágrafo único. A vigilância socioassistencial é um dos instrumentos das proteções da assistência social que
identifica e previne as situações de risco e vulnerabilidade social e seus agravos no território. (Incluído pela Lei nº
12.435, de 2011)
Art. 6°-B. As proteções sociais básica e especial serão ofertadas pela rede socioassistencial, de forma integrada,
diretamente pelos entes públicos e/ou pelas entidades e organizações de assistência social vinculadas ao Suas,
respeitadas as especificidades de cada ação. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 1° A vinculação ao Suas é o reconhecimento pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome de que
a entidade de assistência social integra a rede socioassistencial. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
§ 2° Para o reconhecimento referido no § 1o, a entidade deverá cumprir os seguintes requisitos: (Incluído pela Lei nº
12.435, de 2011)
I - constituir-se em conformidade com o disposto no art. 3o; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
II - inscrever-se em Conselho Municipal ou do Distrito Federal, na forma do art. 9°; (Incluído pela Lei nº 12.435, de
2011)
III - integrar o sistema de cadastro de entidades de que trata o inciso XI do art. 19. (Incluído pela Lei nº 12.435, de
2011)
§ 3° As entidades e organizações de assistência social vinculadas ao Suas celebrarão convênios, contratos,
acordos ou ajustes com o poder público para a execução, garantido financiamento integral, pelo Estado, de
serviços, programas, projetos e ações de assistência social, nos limites da capacidade instalada, aos
beneficiários abrangidos por esta Lei, observando-se as disponibilidades orçamentárias. (Incluído pela Lei nº
12.435, de 2011)
§ 4° O cumprimento do disposto no § 3° será informado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome pelo órgão gestor local da assistência social. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Art. 6°-C. As proteções sociais, básica e especial, serão ofertadas precipuamente no Centro de Referência de
Assistência Social (Cras) e no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), respectivamente, e
144
Dessa forma, uma vez registrada e habilitada, a entidade sem fins lucrativos de
Assistência Social poderá integrar o SUAS – Sistema Único de Assistência Social – e, com
repasses de recursos governamentais, trabalhar para fornecer os serviços assistenciais previstos
acima, entre os quais a habilitação, a reabilitação, a capacitação e a qualificação profissional das
pessoas portadoras de deficiência.
Portanto, o papel do Terceiro Setor fica claro a partir da análise dos dispositivos em
enfoque. Analisemos novamente a Política Nacional de Inserção Social dos Portadores de
Deficiência nesta área específica:
III - na área da formação profissional e do trabalho:
a) o apoio governamental à formação profissional, e a garantia de acesso aos
serviços concernentes, inclusive aos cursos regulares voltados à formação
profissional;
pelas entidades sem fins lucrativos de assistência social de que trata o art. 3° desta Lei. (Incluído pela Lei nº
12.435, de 2011)
§ 1° O Cras é a unidade pública municipal, de base territorial, localizada em áreas com maiores índices de
vulnerabilidade e risco social, destinada à articulação dos serviços socioassistenciais no seu território de abrangência
e à prestação de serviços, programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica às famílias. (Incluído pela
Lei nº 12.435, de 2011)
§ 2° O Creas é a unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou regional, destinada à prestação de
serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou
contingência, que demandam intervenções especializadas da proteção social especial. (Incluído pela Lei nº 12.435,
de 2011)
§ 3° Os Cras e os Creas são unidades públicas estatais instituídas no âmbito do Suas, que possuem interface com as
demais políticas públicas e articulam, coordenam e ofertam os serviços, programas, projetos e benefícios da
assistência social. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Art. 6°-D. As instalações dos Cras e dos Creas devem ser compatíveis com os serviços neles ofertados, com espaços
para trabalhos em grupo e ambientes específicos para recepção e atendimento reservado das famílias e indivíduos,
assegurada a acessibilidade às pessoas idosas e com deficiência. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Art. 6° -E Os recursos do cofinanciamento do Suas, destinados à execução das ações continuadas de assistência
social, poderão ser aplicados no pagamento dos profissionais que integrarem as equipes de referência, responsáveis
pela organização e oferta daquelas ações, conforme percentual apresentado pelo Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome e aprovado pelo CNAS. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Parágrafo único. A formação das equipes de referência deverá considerar o número de famílias e indivíduos
referenciados, os tipos e modalidades de atendimento e as aquisições que devem ser garantidas aos usuários,
conforme deliberações do CNAS. (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Art. 7º As ações de assistência social, no âmbito das entidades e organizações de assistência social, observarão as
normas expedidas pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), de que trata o art. 17 desta lei. (grifos
nossos).
145
Ora, o papel do Terceiro Setor visa justamente a atender o disposto na alínea “a”
transcrita acima, ou seja, a capacitação, a qualificação, a habilitação e a reabilitação profissional,
que estão previstas na legislação previdenciária e assistencial, que são formas de preparar a
pessoa portadora de deficiência para o mercado de trabalho.
Inclusive, na Tabela Anexa à Resolução do Conselho Nacional de Assistência Social
n° 27/11, este objetivo atribuível às entidades do Terceiro Setor está expressamente previsto. Não
há dúvida de que o Terceiro Setor encontra-se adequadamente mais apto a exercer estes serviços
do ponto de vista institucional.
Além disso, a nova legislação permite a utilização de recursos públicos pelas
entidades beneficentes de Assistência Social devidamente qualificadas para tal objetivo, mas a
questão que se põe é: após esta etapa de preparação e qualificação das pessoas portadoras de
deficiência para o trabalho, será que há espaço no mercado para elas?
Para responder a esta questão e, simultaneamente, atender à alínea “d” acima
151
elencada , a Lei de Cotas dispõe sobre a obrigatória destinação de vagas de emprego pelas
empresas com mais de 100 empregados, na forma que determina.
Entretanto, este espaço reservado no mercado de trabalho é suficiente para atender à
oferta de trabalho por esta parcela da população brasileira?
Segundo o DIEESE: “[...] a participação de micro e pequenas empresas no conjunto
dos estabelecimentos formais brasileiros é maciça e corresponde a 99,0% do total, entre 20002008. A partir de 2003, as micro e pequenas empresas suplantaram a barreira dos 5,0 milhões de
151
BRASIL. Lei Federal n° 7.853/93. Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras
de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao
lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das
leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e
indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento
prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
(...)
III - na área da formação profissional e do trabalho:
(...)
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras
de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de
oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência;
146
estabelecimentos formais e, em 2008, empregavam 13,0 milhões de trabalhadores formais, o que
representa pouco mais da metade dos empregos formais do país. [...]”152
A Lei de Cotas atinge diretamente cerca de 1% do total das empresas brasileiras, ou
seja, empresas que possuem de 100 empregados para mais. A partir das estatísticas divulgadas,
sabe-se que, do total de empregos formais no nosso país, a micro e a pequena empresa são
responsáveis por mais da metade. E logo as micro e pequenas empresas, responsáveis pela maior
parte dos empregos formais do Brasil, não estam obrigadas à Lei de Cotas.
Para atender ao disposto nas alíneas “b” e “c” acima comentadas 153, não cremos ser a
melhor estratégia obrigar as micro e pequenas empresas a também reservarem parcela do
mercado de trabalho para as pessoas portadoras de deficiência, mas sim induzi-las a tal
comportamento, por meio de incentivos.
O que se pretende é a a flexibilização da legislação concernente a este assunto, pois
se a empresa de menor porte intuir por meio de sua administração que vale a pena se beneficiar
de incentivos governamentais e abrir mercado de trabalho para estas pessoas, ela terá esta opção.
No entanto, se a empresa não se sentir apta para se valer de tais incentivos, não será obrigada a
tanto. Poderá, assim, eleger o melhor momento para tal, valorizada sua livre iniciativa.
Com esta sistemática de incentivar a micro e pequena empresa a contratarem pessoas
portadoras de deficiência, o Estado poderia atuar de forma eficaz exatamente onde o déficit se
encontra, ou seja, no mercado de trabalho privado. As alíneas “b” e “c” do artigo 2°, parágrafo
único, inciso III, da Lei Federal n° 7.853/93 dispõem:
152
Disponível em: <http://www.dieese.org.br/anu/anuarioMicroPequena2009.pdf>. Acesso em: 27/09/2011.
BRASIL. Lei Federal n° 7.853/93. Art. 2º Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras
de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao
lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das
leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo, os órgãos e entidades da administração direta e
indireta devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento
prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas:
III - na área da formação profissional e do trabalho:
[...]
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial,
destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de
deficiência;
153
147
[...]
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de
empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas portadoras de
deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e
privado, de pessoas portadoras de deficiência;
Ora, se o Poder Público incentivar as empresas que mais geram empregos no Brasil a
contratarem pessoas portadoras de deficiência com a concessão de incentivos, estará atendendo
aos dispositivos legais da Política Nacional de Inserção do Portador de Deficiência em questão.
Conforme vimos, a alínea “a” do artigo 2°, parágrafo único, inciso III, da Lei Federal
n° 7.853/93, da regulação legal da Política em apreço, pode ser cumprida pelo esforço das
entidades do Terceiro Setor, responsáveis, em parte, neste sistema assistencial hoje vigente, pela
melhor capacitação profissional das pessoas portadoras de deficiência.
Mas, e depois? Após a efetiva habilitação, a reabilitação, a qualificação ou a
capacitação profissional que torne as pessoas portadoras de deficiência aptas ao trabalho formal,
seria tão somente a reserva de mercado realizada pela Lei de Cotas (que é, por si só, o
atendimento à alínea “d” da referida Política) suficiente para suprir a oferta de trabalho?
Pensamos que não. Por isso defendemos incentivos às empresas menores para que também
passem a integrar a Política Nacional de Inserção do Portador de Deficiência
Ademais, tais incentivos podem, sim, ser igualmente levados às grandes empresas,
para encorajá-las a não se ater apenas ao mínimo estabelecido na Lei de Cotas, voltando-se cada
vez mais ao atendimento do estabelecido nas alíneas “b” e “c” do artigo 2°, parágrafo único,
inciso III, da Lei Federal n° 7.853/93, citados acima.
148
4. ORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA, FOMENTO OU AMBOS?
O papel do Estado nesta seara, hoje, é tipicamente descrito como parcela da função
administrativa tratada por Carlos Ari Sundfeld como Administração Ordenadora.
A nossa visão é que, para propiciar mais concretude à inserção social dos portadores
de deficiência e dos reabilitados da Previdência Social, a atuação da Administração Ordenadora
não é suficiente.
Deve-se conjugar o papel da Administração Ordenadora — na delimitação do perfil
dos direitos exercidos pelos particulares, e, no caso concreto, o direito de liberdade de contratar
das empresas, e, também, na fiscalização destas imposições — e com a ação da Administração
Fomentadora, pois a teoria mais moderna do law and economics afirma categoricamente que os
agentes econômicos trabalham melhor por meio de incentivos e desincentivos do que por
obrigações.154
Ronald Coase chega a dizer que quando a legislação é ineficiente, ou ineficaz, as
partes envolvidas irão negociar uma solução alternativa ainda que seja antijurídica, o que não é o
objetivo da sistematização legal sobre o assunto.
Assim, para que se entenda melhor nossa posição, faz-se necessária a conjugação da
atuação da Administração Pública como Administração Ordenadora e Administração
Fomentadora para chegarmos ao objetivo que nossa Carta Magna previu quanto à igualdade de
condições de acesso aos mercados155.
154
COASE, Ronald. The problem of social cost. Chicago: Chicago Press University, 1960.
A interferência da Administração Pública no campo privado existe em três modalidades distintas:
a) através de estímulos à iniciativa privada, para induzi-la em certa direção;
b) quando assume atividade dos particulares, passando a atuar em substituição a eles;
c) pela ordenação de seus comportamentos, através de comandos co-gentes, derivados do poder de autoridade
(administração ordenadora).
a) O fomento estatal à vida privada consiste na concessão de benefícios aos particulares, de modo a induzir suas
ações em certo sentido. Quem não se dispõe a adotar o comportamento pretendido não é sancionado; apenas deixa de
usufruir o benefício que teria, em caso contrário.
Os atos da administração fomentadora não se destinam — e aí sua diferença com os atos constitutivos de direitos
privados produzidos pela administração ordenadora — a conferir aos particulares possibilidades de autuações que
estes já não tenham. O fomento consiste em prestações produzidas pela Administração — sejam positivas (ajuda
155
149
A Ordenação Administrativa impõe padrões de comportamento aos agentes
econômicos, enquanto a Administração Fomentadora confere aos particulares possibilidades de
atuações. Na Ordenação Administrativa, há interferência estatal na vida privada de forma direta,
muitas vezes até com a constituição de direitos por meio de atos administrativos. Quando o
Estado impõe que determinado número de empregados das empresas deverão ser tais e quais
pessoas, está interferindo diretamente na esfera privada da vida empresarial, logo, é típica
atuação da Ordenação Administrativa por meio do denominado poder de autoridade156.
financeira a cientistas, créditos subsidiados a empresas estratégicas) ou negativas (isenção de impostos) — para
tornar mais fáceis ou eficazes atividades que, não obstante, os indivíduos são livres para explorar.
b) A exploração estatal de atividade particular está autorizada pelo art. 173 do Texto Constitucional, que define as
hipóteses de seu cabimento e seu regime. Não visa dirigir comportamentos dos particulares, mas suprir a falta
daqueles entendidos como necessários ao desenvolvimento econômico e social; o Estado apenas substitui os
particulares, passando a atuar em concorrência com eles.
c) Já a administração ordenadora consiste na interferência estatal autoritária sobre a vida privada. Supõe o emprego
de instrumentos com intensidades e finalidades muito variadas, incidindo sobre a esfera jurídica dos particulares em
múltiplas variações.
O mais evidente deles é a imposição, através de comandos co-gentes, de padrões de comportamento (proibição de
certos atos, dever de realizar prestações, etc.), cuja inobservância gera a aplicação desanções (ex.: perda do direito,
multa) ou a coação (destruição de alimentos deteriorados, etc.) Porém, o uso da autoridade surge também em versão
mais sutil. É o caso dos atos ampliativos de direito que conferem situação jurídica a que os sujeitos não teriam acesso
sem a outorga administra (ex.: aquisição da cidadania brasileira por estrangeiros). O cumprimento das condições
previstas na lei não é dever, mas simples ônus a serem observados para aquisição voluntária do direito, donde
parecer, à primeira vista, que, na hipótese a Administração Pública não desempenhar autoridade. Esta, no entanto,
existe, traduzida no poder, sem equivalente no direito privado, de criar situação jurídica em benefício de alguém. O
que faz dele legítima expressão da autoridade pública é a circunstância de a situação jurídica ativa que cria não se
resumir à possibilidade de cobrar prestação da própria Administração, mas se exercer sobretudo perante terceiros
(ex.: o registro de marca, que obriga as outras empresas ao respeito da exclusividade). SUNDFELD, Carlos Ari.
Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp.25-26 (grifos nossos).
156
II. O poder de autoridade nos atos administrativos que constituem direitos privados
Conceituamos a administração ordenadora como a parcela da função administrativa, desenvolvida com o uso do
poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo
de atividades que lhes é próprio. Nesse conceito, surge a nota que a distingue da administração fomentadora: o
exercício do poder de autoridade.
Entretanto, quando se pensa nos atos administrativos voltados à constituição de direitos privados em favor dos
particulares, a primeira tentação é enquadrá-los na administração fomentadora. É que ninguém está vinculado ao
dever jurídico de solicitar a produção de ato ampliativo, tampouco de preencher as condições necessárias à obtenção
do benefício. Por isso, ninguem sofre graveme - como a sanção ou a coação - pelo fato de nada requerer à
Administração ou de não atender às especificações indispensáveis ao deferimento do pedido; apenas deixa de auferir
vantagem a que, de outro modo, teria acesso. Tudo isso também se passa com as relações jurídicas derivadas da
administração fomentadora. Mas cessam aí as semelhanças. A administração fomentadora destina-se ao
fornecimento de prestações da Administração (de caráter positivo ou negativo), para induzir os comportamentos dos
particulares em dada direção. Exemplos de prestações positivas são a bolsa de estudos e o financiamento; de
prestações negativas, as isenções dos impostos. Em suma, a administração fomentadora ou outorga ao particular
prestação a ser realizada pela Administração ou o desonera de prestação que deveria realizar em favor do Estado (daí
o caráter negativo da prestação estatal). Portanto, os atos ampliativos produzidos pela administração fomentadora
geram para estes a fruição de dada prestação estatal. Já os atos ampliativos praticados pela administração ordenadora,
típicos atos administrativos negociais, investem os particulares em situação jurídica ativa cujo conteúdo não é a
150
Cremos que a política pública para a inserção das pessoas portadoras de deficiência e
reabilitadas da Previdência Social, portanto, não deve se limitar à ação fiscalizadora com eventual
imposição de multa restrita ao máximo de R$ 119.512,33 por desrespeito à Lei de Cotas.
Este papel tipicamente ordenador da Administração é importante e não deve ser
deixado de lado, inclusive. Mas defendemos a criação de um sistema de incentivos para as
empresas efetivamente implementarem, com mais eficácia, a inserção social que se busca.
Os incentivos que tratamos aqui, pensamos, podem ser de natureza financeira,
tributária e até organizacional. E, ainda assim, não se deve retirar o papel da ordenação em
fiscalizar o devido cumprimento dos requisitos para a obtenção dos incentivos ou, ainda,
continuar na fiscalização das obrigações decorrentes da Lei de Cotas.
possibilidade de exigir prestação administrativa, mas sim de exercer certo direito sem perturbação por parte do
Estado e de terceiros. A licença para construir libera o exercício de um dos poderes inerentes à propriedade; a
autorização para explorar atividade perigosa atribui o direito de atuar em setor normalmente interditado; o registro de
marca assegura à exclusividade dela.
Desse modo, não há dificuldade quanto à diferenciação entre os direitos derivados da administração de fomento e os
decorrentes da administração ordenadora. Todavia, ainda não está perfeitamente claro porque os últimos constituem
expressão do poder de autoridade, se os administrados não estão constrangidos a requerê-los ou a preencher as
condições para sua obtenção. Dirimir a dúvida é essencial, inclusive para justificar a distinção entre administração de
fomento e ordenadora.
O fomento é atividade não autoritária, por três razões concorrentes. De um lado, porque nada impõe aos
administrados. De outro, porque implica na outorga de prestações a serem realizadas pelo próprio Poder Público,
criando assim vínculo tipicamente obrigacional; ao desenvolvê-la, o Estado atua de modo semelhante ao do direito
privado (de fato, nada há de substancialmente distinto na bolsa de estudo paga pelos cofres públicos ou por empresa
particular). Afinal, porque a atividade privada, cuja realização o tomento estatal incentiva, poderia, de Direito, ser
desenvolvida sem tal auxílio.
Já a constituição de direitos por ato administrativo é feita a partir de uma posição de autoridade porque tais direitos
atribuem ao particular o poder de realizar ações de outro modo vedadas (e que, a partir de então, não podem ser
obstadas, quer pela própria Administração, quer por terceiros). Não há, no caso, ao contrário do fomento, qualquer
vínculo obrigacional entre o Poder Público e o particular; aquele não se obriga a qualquer prestação em face deste.
Através de tais atos, a Administração confere aos particulares poderes que, no Direito Privado, ninguém pode
conceder a outrem Daí o cunho evidentemente autoritário do ato administrativo que constiui esses direitos.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 4042 (grifos nossos).
151
PARTE 4 – AS CONSEQUÊNCIAS DA NATUREZA JURÍDICA DA OBRIGAÇÃO
DECORRENTE DA LEI COTAS
1.
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nesta Parte 4, abordaremos o papel do Estado frente aos condicionamentos de
direitos, mais precisamente aos encargos administrativos, e como deve agir quando os
particulares não cumprem tais condicionamentos para o regular exercício de direitos.
A partir das conclusões extraídas da Parte 2 deste trabalho, ou seja, a partir da
afirmação de que a obrigação decorrente da Lei de Cotas não possui natureza de obrigação
trabalhista, mas sim de condicionamento administrativo a direito da espécie “encargo
administrativo”, por se tratar de obrigação positiva ao titular do direito para seu exercício regular,
podemos traçar conclusões a respeito de como o Estado deve intervir na esfera privada para fazer
valer a legalidade dos atos privados, obedecendo ao princípio da mínima intervenção estatal na
vida privada e, simultaneamente, fazer valer a finalidade pública da Lei de Cotas. Quais são estas
competências que o poder público detém?
Vejamos o que diz o artigo 129, mais precisamente o seu inciso III, da Constituição
Federal de 1988.
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
[...]
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos;
152
Este dispositivo constitucional veicula como função institucional do Ministério
Público a promoção de ação civil pública e inquérito civil, para a proteção dos interesses difusos
e coletivos. Esse é o trecho que nos interessa para os fins deste nosso estudo.
A Lei 7.347, de 24 de julho de 1885, conhecida como Lei da Ação Civil Pública, traz
logo em seu artigo 1°, inciso IV, a mesma previsão, regulando o direito constitucionalmente
tutelado pelo artigo 129 da Carta Magna.
A política pública objeto de análise neste estudo traduz-se na inserção social dos
portadores de deficiência e reabilitados da Previdência Social por meio de seu trabalho e na
reserva de mercado criada por lei para concretizar isso.
Pois bem. A partir de todo o caminho da engenharia normativa que tomamos o
cuidado de percorrer nas linhas passadas do presente estudo, podemos afirmar que essa política
pública veicula a concretização de direito coletivo de um grupo específico de pessoas, qual seja,
os portadores de deficiência e os reabilitados da Previdência Social.
Quando alguém obrigado a cumprir uma determinada normativa não a cumpre,
reiterada e deliberadamente, ressalte-se, e após notificação administrativa para que a cumpra,
assim como após decorrido o devido processo legal, inclusive, por meio de procedimento
administrativo para o ajustamento da conduta; tendo em vista que a normativa em pauta trata-se
de regulação normativa de interesse coletivo, dentro deste raciocínio, caberia, portanto, ao
Ministério Público a competência para a propositura de ação civil pública contra o particular que
se encontra em violação de tal prerrogativa.
A partir do momento em que o particular viola a obrigação decorrente da Lei de
Cotas, apesar de, em um primeiro momento, parecer que a relação violada é eminentemente
privada, particular, em análise mais detida constatamos que não.
Pode-se concluir, a partir do exposto no presente estudo, que as atitudes de poucos
particulares (ou de apenas um deles, se for o caso) que não cumprem a obrigação decorrente da
Lei de Cotas implicam, na verdade, violação ao interesse coletivo do grupo de pessoas
beneficiado pela Lei de Cotas em se ver inserido socialmente por meio de seu trabalho e,
portanto, enseja a atuação do Ministério Público para ver a política pública em pauta de fato
153
respeitada e fazer cumprir os objetivos institucionais do órgão em si, previstos
constitucionalmente no artigo 129, III da Carta Magna.
[...] a ação civil pública, nesse domínio, só pode pretender a prestação de
atividade devida ou a cessação de atividade nociva desde que previsto em lei
lato sensu, isto é em norma constante do ordenamento jurídico.157
Transcrevemos o trecho acima de importante obra coletiva sobre a ação civil pública,
para confirmar nosso entendimento de que o interesse coletivo em pauta já foi objeto de extensa
regulação legal (inclusive, tratada neste estudo anteriormente), ou seja, estamos diante de correto
cabimento de ação civil pública porque a prática empresarial do não cumprimento da Lei de
Cotas por aqueles obrigados por ela trata-se, efetivamente, de violação direta a dispositivo legal
e, portanto, fundamentaria a propositura da ação civil pública para a cessação da prática ilegal.
José dos Santos Carvalho Filho explora com precisão a entrada em vigor no
ordenamento jurídico brasileiro do inciso IV no artigo 1° da Lei da Ação Civil Pública, que prevê
como juridicamente amparados pelo objeto da ação civil pública os interesses difusos e coletivos.
A Lei n° 7.347/85 contava originalmente com apenas os três primeiros incisos,
já comentados. O inciso IV fora vetado pelo Chefe do Executivo, e não houvera
rejeição do veto. O mesmo veto constava da ementa da lei. Na verdade, não fora
aceito que, além dos tutelados nos três primeiros incisos, fossem também objeto
de proteção jurisdicional outros interesses coletivos e difusos da coletividade.
Amedrontou-se o legislador na maior extensão da tutela, mesmo sabedor de que
as legislações modernas já de algum tempo se vinham dedicando à normatização
com vistas à proteção de todo interesse dessa categoria.
A nova Constituição, porém, acabou por mudar os rumos tímidos da lei e, ao
prever a ação civil pública, no art. 129, III, fez menção à tutela do meio
ambiente, do patrimônio público e social e de outros interesses difusos e
coletivos. A Constituição, dessa maneira, criou a amplitude desejada para a
tutela alvitrada na ação civil pública, e, em consequência, eliminou a restrição da
lei, instituída pelo veto presidencial. Como consequência, ainda, ficou cometida
ao Ministério Público a função institucional de buscar, através da ação civil
pública, todo e qualquer tipo de interesse difuso ou coletivo.
157
MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Ação civil pública, improbidade administrativa e políticas públicas. Apud
MILARÉ, Édis (coord.). A ação civil pública após 25 anos. São Paulo: RT, 2010, p. 861.
154
Em virtude do novo mandamento constitucional, faltava apenas que o legislador
se adequasse à dimensão protetiva nele contida. O momento ocorreu quando da
promulgação da Lei n° 8.078, de 11/9/1990 – o Código de Defesa do
Consumidor – que, no seu art. 110, determinou fosse introduzido, no art. 1° da
Lei n° 7.347/85, o inciso IV, com a seguinte redação: IV – a qualquer outro
interesse difuso ou coletivo. Esqueceu-se, porém, o legislador que o mesmo veto
que constara no inciso IV do art. 1° fora também aposto na ementa da lei. Por
essa razão, a novidade introduzida não foi mencionada na ementa, que continua
com a referência de vetado após o elenco dos bens que já se encontram sob
tutela. A ementa, assim, denota universo sob proteção dotado de menor
amplitude do que o realmente contemplado na lei em seus quatro incisos do art.
1°.158
Torna-se relevante o comentário do mesmo José dos Santos Carvalho Filho acerca da
diferenciação entre “interesse” e “direito”, pois ainda que a lei explicitamente prescreva que os
“interesses” difusos e coletivos serão tutelados, há de se observar que não são quaisquer meros
interesses, mas sim interesses juridicamente fundamentados, como buscamos demonstrar acima
ser justamente o caso do direito dos portadores de deficiência e reabilitados da Previdência Social
a serem inseridos socialmente por meio do seu trabalho; lembrando, apenas, direito esse que lhes
é atribuídopor lei.
A figura do interesse sempre foi distinta da noção de direito, tendo aquela
sentido mais amplo que o desta. Carnelutti associava a noção de interesse à
necessidade dos indivíduos, de modo a caracterizá-lo como uma posição do
homem favorável à satisfação de uma necessidade. Nem todo interesse, porém,
recebe a proteção jurídica, e, sendo assim, não enseja a possibilidade de
qualquer mecanismo para sua satisfação. O interesse a que a ordem jurídica
confere elementos de proteção é o interesse jurídico. Somente quando o
indivíduo for titular desse interesse é que poderá socorrer-se dos instrumentos
que a lei põe a seu alcance para que seja satisfeito.
O direito subjetivo, ao contrário, sempre merece a tutela do ordenamento
jurídico. A despeito das diversas correntes que procuram identificar o direito
subjetivo (e alguns autores até o negam, como é o caso de Duguit e Kelsen),
pode dizer-se que tem sido acolhida a noção de que resulta ele de dois fatores: o
poder da vontade e a proteção do direito objetivo. Simples e correta, portanto, a
definição de Washington de Barros Monteiro, para quem se pode conceituar o
direito subjetivo como todo poder da vontade dos particulares, reconhecido ou
outorgado pelo ordenamento jurídico.
A conclusão é, portanto, a de que o interesse jurídico se configura como o
núcleo do direito subjetivo, com o que não se pode conceber qualquer tipo de
158
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação civil pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 26.
155
proteção que não seja a voltada para os interesses jurídicos, que figuram no
centro dos direitos subjetivos.
Desse modo, em que pese a divulgação da expressão interesses difusos e
coletivos não só na doutrina, como até mesmo no texto constitucional, a idéia
que encerra há de ser a de interesses juridicamente protegidos, vale dizer,
interesses necessariamente integrantes d círculo relativo aos direitos subjetivos.
Quando se fala, pois, em interesses difusos ou coletivos, dever-se-á conceber a
noção de que se tratam de direitos difusos ou coletivos.159
Conforme exposto acima, cremos que o direito decorrente da Lei de Cotas que
exploramos nesse estudo é classificável no âmbito dos direitos coletivos e, portanto, sua
inobservância ensejaria a propositura da ação civil pública pelo Ministério Público. A respeito
desta classificação (a qual adotamos), socorremo-nos das lições de José dos Santos Carvalho
Filho novamente.
A evolução histórica do direito, que tradicionalmente teve caráter individualista,
reclamou a proteção de alguns direitos que, mesmo sem poder identificar-se
cada titular, pertencessem a grupos sociais, determinados ou não. Em notável
trabalho que, nos idos de 1978, escreveu sobre o assunto, Ada Pellegrini
Grinover deixou registrado que a sociedade burquesa não mais poderia
preocupar-se apenas com os conflitos individuais, e isso porque surgiam novos
conflitos metaindividuais que, por sua configuração coletiva e de massa são
típicos das escolhas políticas e inducam a necessidade de se adotarem novas
formas de participação.
Os estudiosos do tema passaram a considerar, como juridicamente reconhecidos,
certos interesses pertencentes a grupos de pessoas, distinguindo a natureza
desses grupos. Chegou-se à distinção dos interesses difusos e coletivos, hoje
consagrada no direito positivo. Com efeito, a Lei nº 8.078/90 define os
interesses difusos como os transindividuais, de natureza indivisível, de que
sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (art.
81, parágrafo único, I).
Os interesses coletivos foram conceituados como os transindividuais de natureza
indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre
si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (art. 81, parágrafo
único, II).
A lei adotou a distinção que já faziam os estudiosos do assunto. No caso dos
interesses coletivos, já há muito ressaltava José Carlos Barbosa Moreira que as
relações jurídicas dos integrantes do grupo podiam ser distintas, mas eram
análogas por derivarem de uma relação jurídica base. Os indivíduos, nessa
categoria, não precisam ser determinados, mas são determináveis. Como
159
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação civil pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 27.
156
exemplo, os menores internados em determinada fundação pública, ou os
moradores de certo condomínio. Os interesses difusos, por outro lado, eram
caracterizados como aqueles que, não tendo vínculos de agregação suficientes
para sua institucionalização perante outras entidades ou órgãos representativos,
estariam em estado fluido, e dispersos pela sociedade civil como um todo. Nesse
grupamento, os indivíduos são indeterminados, exatamente porque é impossível
destacar cada integrante, isoladamente, do grupo que integra. Para exemplificar,
o interesse na preservação ambiental, ou o interesse de todos os consumidores de
certo produto, ou ainda, o interesse à observância dos postulados da ordem
econômica.
Entre os interesses difusos e coletivos, merecem destaque dois pontos de
identificação existentes em seu perfil conceitual. O primeiro diz respeito aos
destinatários: em ambos os direitos presente está a natureza da
transindividualidade, de forma que hão de ser tratados em seu conjunto e não em
virtude dos integrantes do universo titular do interesse. O segundo consiste na
indivisibilidade do direito, o que está a significar que não se pode identificar o
quinhão do direito de que cada integrante do grupo possa ser titular. O direito,
como já se disse, merece a proteção legal como um todo, abstraindo-se da
situação jurídica individual de cada beneficiário.
Há um ponto, porém, que merece destaque nesse tema, Como bem anota Ada
Pellegrini Grinover, invocando lição de Villone, nem todos os interesses
metaindividuais se qualificam como interesses difusos.
[...]
Aduz a autora que a diferença está em que a ordem pública e a segurança
pública constituem interesses de que todos compartilham, sendo que o único
conflito que daí pode resultar consiste no formato entre a autoridade e o
indivíduo. O interesse difuso, ao contrário, revela-se com intensa
conflituosidade, estabelecendo-se conflitos decorrentes de interesses
contrapostos dos grupos em litígio.160
O foro competente para a propositura da ação civil pública, consoante o artigo 2° da
Lei 7.347/85, é o do local onde ocorrer o dano, logo, não pode ser somente o local da sede da
empresa, mas sim o local do estabelecimento que desrespeitar a Lei de Cotas, independentemente
da classificação de sede, filial ou outro que a legislação comercial autorizar.
Vale dizer que devido ao fato da Lei de Cotas consubstanciar lei ordinária federal e,
desse modo, tutelar típico interesse federal na matéria, a competência para a propositura da ação
civil pública contra o particular visando a obtenção jurisdicional da tutela do direito nela previsto,
é do Ministério Público Federal e, consequentemente, no âmbito da Justiça Federal. Ainda assim,
em comarcas não dotadas de Justiça Federal, o pleito pode ser feito perante a Justiça Comum
160
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação civil pública. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 28 e 29.
157
(Estadual) com recurso ao Tribunal Regional Federal competente, por força do artigo 109,
parágrafo 4°, da Constituição Federal.
Sobre o objeto da ação civil pública ora explorada, pode-se afirmar que será sempre o
cumprimento da obrigação de fazer prevista na Lei de Cotas, sob pena da aplicação de astreinte
pelo juízo, de acordo com o artigo 11 da Lei da Ação Civil Pública. Aplica-se o dispositivo
referente à astreinte porque estamos diante de obrigação de fazer infungível, ou seja, tão somente
a empresa que deixou de contratar as pessoas que a Lei de Cotas a obriga poderia praticar tal ação
que a tutela jurisdicional busca concretizar. Portanto, a aplicabilidade da astreinte como incentivo
para que a obrigação de fazer em pauta seja cumprida efetiva e rapidamente é inquestionável.
Sobre o assunto assevera José dos Santos Carvalho Filho, nos termos abaixo
reproduzidos:
Quando o devedor descumpre obrigação de fazer ou não fazer, a prestação
poderá caracterizar-se como fungível ou infungível. Se a prestação é fungível,
pode ser realizada pelo credor ou por terceiro, mas se é infungível, apenas o
devedor pode executá-la. Sendo infungível a obrigação, a regra será a sua
conversão em perdas e danos, isto é, o valor equivalente, em favor do credor, ao
prejuízo que lhe causou o inadimplemento.
Não obstante, como bem assinala Mendonça Lima, o credor pode ter interesse na
prestação em si mesma, desconsiderando, por conseguinte, qualquer equivalente
pecuniário. Ora, nesse caso o único remédio seria o de obrigar-se o credor ao
cumprimento da obrigação. Esse remédio não poderia ser o de violentar
coercitivamente a vontade do devedor, pois que consagrado é o princípio pelo
qual ninguém pode ser coagido diretamente a realizar uma prestação. Por outro
lado, seria de todo iníquo se o credor desejoso de ver satisfeita pelo devedor a
obrigação a este cometida, não dispusesse de qualquer meio idôneo para tal fim.
Para remediar a situação, o direito francês criou o sistema das astreintes, de
forma a conciliar o princípio da não violência em face do devedor com o da
obtenção de resultado concreto decorrente de obrigação. As astreintes
configuram-se como mecanismo coercitivo indireto de caráter econômico,
criado para influir psicologicamente no ânimo do devedor no sentido de que seja
cumprida a obrigação. Trata-se de verdadeira condenação pecuniária, de forma
que quanto maior a demora no cumprimento, maior será o débito pecuniário do
devedor.
As astreintes só têm cabimento quando se trata de obrigações infung[iveis. A
razão é simples. As obrigações fungíveis têm solução que satisfaz ao credor, eis
que podem ser cumpridas por ele mesmo ou por terceiros. As infungíveis, ao
contrário, não o podem; exigem a ação ou a abstenção do próprio devedor.
Assim, serve a pena pecuniária para induzi-;p ao cumprimento e satisfazer o
158
credor. Não o fazendo, vai-se acumulando débito de natureza pecuniária, que o
credor tem o direito de cobrar.
Outro aspecto de sua aplicação diz respeito à natureza da pena. A multa diária
não tem caráter sub-rogativo, vale dizer, sua cominação não substitui a
obrigação principal de fazer ou não fazer. Se assim não o fosse. O credor,
interessado apenas no cumprimento da obrigação, jamais estaria satisfeito.
Permanecem lado a lado as obrigações. A obrigação principal subsiste,
aguardando que o devedor, impelido pela pena, a satisfaça; e a obrigação de
pagar a pena nasce no momento em que o devedor se torna inadimplente e vai-se
elevando à medida em que resiste ao cumprimento. Tanto é verdadeiro que, se
resolver cumprir a obrigação pecuniária, caber-lhe-á pagar também a obrigação
decorrente da multa pecuniária.161
Ademais, consoante o disposto no artigo 13 da Lei da Ação Civil Pública, propomos
a versão dos haveres tidos com a aplicação da astreinte para Fundo de Reparação próprio
direcionado à tutela e efetivação dos direitos dos portadores de deficiência e reabilitados da
Previdência Social. Por exemplo, pode-se aplicar esses recursos em qualificação técnica dessas
pessoas ou, ainda, simplesmente repassar-se os recursos aos CREAS – Centro de Referência
Especializado de Assistência Social ou CRAS – Centros de Referência de Assistência Social, ou
outras entidades vinculadas ao SUAS – Sistema Único de Assistência Social que possuam por
competência a habilitação profissional.
161
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação civil pública. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 328 e
329.
159
2.
UM NOVO DESENHO INSTITUCIONAL DE ATUAÇÃO DO ESTADO
A Lei 12.435/11, que alterou a organização da Assistência Social, modificando
substancialmente o teor da Lei 8.742/93, previu a criação de dois órgãos administrativos
vinculados ao SUAS (Sistema Único de Assistência Social): o Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS).162
Estes órgãos são regulados pelos parágrafos do artigo 6° - C da lei 8.742/93 e sua
atuação em conjunto com as entidades do Terceiro Setor é prevista no caput desse dispositivo
legal163.
Para a prestação dos serviços de Assistência Social, portanto, pela nova sistemática
legal, são responsáveis os CRAS, os CREAS e as entidades do Terceiro Setor. Dentre estes
serviços de Assistência Social encontram-se a habilitação e a reabilitação profissional de pessoas
portadoras de deficiência ou outros beneficiários do sistema assistencial.
No entanto, conforme se verificou na Parte 2, a fiscalização do cumprimento da Lei
de Cotas é realizada pelos Auditores Fiscais do Trabalho, integrantes funcionais do Ministério do
Trabalho e Emprego, ainda que a obrigação decorrente da Lei de Cotas seja encargo
administrativo ao exercício de direitos, e não obrigação trabalhista.
162
Art. 6° - C, Lei 8.742/93, com a redação da Lei 12.435/11.
Art. 6°- C As proteções sociais, básica e especial, serão ofertadas precipuamente no Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS) e no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS),
respectivamente, e pelas entidades sem fins lucrativos de assistência social de que trata o art. 3° desta Lei. § 1° O
CRAS é a unidade pública municipal, de base territorial, localizada em áreas com maiores índices de vulnerabilidade
e risco social, destinada à articulação dos serviços socioassistenciais no seu território de abrangência e à prestação de
serviços, programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica às famílias.
§ 2° O CREAS é a unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou regional, destinada à prestação de
serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou
contingência, que demandam intervenções especializadas da proteção social especial. § 3° Os CRAS e os CREAS
são unidades públicas estatais instituídas no âmbito do Suas, que possuem interface com as demais políticas públicas
e articulam, coordenam e ofertam os serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social.
163
160
Esta opção legislativa (e regulamentar) em atribuir esta competência fiscalizadora ao
MTE decorreu de uma posição privilegiada que este órgão possui, com livre acesso às empresas
privadas.
Contudo, após a nova organização da Assistência Social, e com a crescente
sistematização das normas administrativas do trabalho (higiene, segurança e saúde do trabalho),
não é mais lógico (e tampouco eficiente) manter a fiscalização do cumprimento da Lei de Cotas
atribuída a um órgão que não faz parte da estrutura administrativa da Assistência Social e, além
disso, já se encontra assoberbado, se consideradas somente suas atribuições funcionais materiais
de fiscalização em disciplina trabalhista164.
Uma das principais deficiências do modelo institucional atual é que não ocorre a
devida comunicação entre aquele que fiscaliza e percebe o descumprimento da Lei de Cotas e
aquele que possui o trabalhador qualificado para ser empregado na posição devida.
Pensamos que a fiscalização do cumprimento da Lei de Cotas deveria ser função de
um órgão, vinculado ao SUAS e, portanto, à Assistência Social, e não à organização laboral
propriamente dita, pois é política pública de Assistência Social a inserção dos portadores de
deficiência e dos reabilitados da Previdência Social no mercado de trabalho.
Nossa sugestão é a criação de novo órgão: o Centro Assistencial de Fiscalização e
Inserção Social (CAFIS), órgão de competência regional, integrado ao SUAS e com competência
para fiscalizar o cumprimento da Lei de Cotas pelas empresas. No caso de descumprimento, teria
este órgão competência para lavrar auto de infração e, eventualmente, impor multa, a ser
revertida ao Fundo de que tratamos no item anterior.
A novidade seria que na autuação, quando se constitui a ordem administrativa em que
o Poder Público atribui prazo razoável à empresa para regularizar a situação, contratando as
pessoas necessárias à adequação à Lei de Cotas, nesta mesma ordem administrativa, a autoridade
fiscalizadora já indicaria o CRAS, o CREAS ou a entidade do Terceiro Setor devidamente
habilitada e cadastrada mais próxima que possuísse pessoal devidamente qualificado e apto para
se efetivar a contratação intencionada.
164
Conforme se verifica nas entrevistas do Anexo A.
161
O trabalho de fiscalização com esta nova estruturação administrativa seria muito mais
delimitado, pois os Auditores Fiscais do Trabalho nem sempre têm o contato diário com
empresas que são obrigadas pela Lei de Cotas.
Devemos lembrar que esta legislação obriga empresas que possuam a partir de 100
empregados, mas conforme estatísticas demonstradas acima, mais da metade dos empregos
formais no Brasil são constituídos por empresas pequenas e médias, fora, portanto, da obrigação
decorrente da Lei de Cotas.
Com esta nova proposta de estrutura administrativa da fiscalização o órgão
fiscalizador seria muito mais direcionado do que os Auditores Fiscais do Trabalho, inclusive,
devendo ser instalado em consonância com a capacidade operacional das empresas da região
obrigadas pela Lei de Cotas.
Exemplificando, não faz sentido criar uma repartição do CAFIS em uma cidade em
que não haja nenhuma empresa com mais de 100 empregados. Vale mais a pena criar um CAFIS
regional, que tenha competência sobre alguns Municípios dentre os quais existem empresas desse
porte.
Nesta sistemática proposta, os CAFIS teriam competência tão somente para fiscalizar
as empresas obrigadas pela Lei de Cotas, ou seja, com 100 ou mais empregados.
Considerando essa estrutura, quando em fiscalização do MTE o Auditor Fiscal do
Trabalho responsável verificar infração da legislação trabalhista pelo não registro de empregados
com deficiência para escapar da obrigação decorrente da Lei de Cotas ou por quaisquer outros
motivos; além de autuar a empresa e obrigar o registro dos empregados imediatamente, deverá
notificar formalmente o CAFIS competente.
Assim, seria também interessante a instituição de convênio entre a Fiscalização do
Trabalho do MTE e a Fiscalização da Lei de Cotas dos CAFIS.
O CAFIS funcionaria também como órgão de recolocação profissional das pessoas
portadoras de deficiência, podendo fazer a interface entre as entidades que preparam essas
pessoas para o mercado de trabalho com qualificação profissional ou habilitação e reabilitação e
o mercado de trabalho privado propriamente dito.
162
Com isso, aumentariam as oportunidades de trabalho as pessoas com deficiência e o
Estado estaria, de fato, atendendo aos princípios sobre formação profissional e acesso ao mercado
de trabalho da Política Nacional de Inserção Social do Portador de Deficiência165.
165
BRASIL. Lei 7.853/89. Artigo 2°, Parágrafo Único [...]
III - na área da formação profissional e do trabalho:
a) o apoio governamental à formação profissional, e a garantia de acesso aos serviços concernentes, inclusive aos
cursos regulares voltados à formação profissional;
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial,
destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de
deficiência;
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras
de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de
oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência;
163
PARTE 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente estudo, percorremos o caminho mais direto que julgamos necessário para
os fins a que nos propusemos.
O início do trabalho, de cunho mais principiológico, demonstrou o papel do Estado
frente a esta necessidade atual de inserção social de uma classe de pessoas que possuem seus
interesses jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico, mas que poderiam ser mais
concretamente efetivados do que no modelo atual de proteção estatal.
Na parte do desenvolvimento deste estudo, tentamos comprovar nosso entendimento
classificatório, não por vaidade intelectual em demonstrar sistematização perene sobre as
categorias jurídicas, mas tão somente para fazer aplicar a teoria que fundamentaria as conclusões
e consequências de nossa classificação, o que por sua vez autorizaria uma atuação mais incisiva
do Estado na implementação de uma política pública que se encontra na pauta de discussões da
atualidade na organização da Assistência Social.
Além disso, discutimos o cabimento da propositura de ação civil pública pelo
Ministério Público contra o particular que descumpre reiterada e deliberadamente a obrigação
decorrente da Lei de Cotas, com o fito de compeli-lo a se submeter a tal obrigação, sob pena de
multa diária fixada pelo juízo, a astreinte.
Cremos que a efetivação conjunta e integrada do que aqui foi sugerido com as outras
frentes de atuação do Estado, como por exemplo, as políticas assistencialistas e de
profissionalização, trarão resultados mais efetivos e, finalmente, trarão melhor qualidade de vida
para aqueles que, para desfrutá-la, necessitam de atuação mais concreta do Estado
164
REFERÊNCIAS
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171
APÊNDICE A – ENTREVISTA NA ÍNTEGRA
Foram realizadas entrevistas com diversos Auditores-Fiscais do Trabalho na
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), órgão regional do Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE), responsável pela jurisdição da Zona Oeste do Município de São
Paulo, localizada à Avenida Afonso Sardinha, 201, CEP – 05076-000, Lapa, São Paulo, SP.
Destas entrevistas, selecionamos uma que realizamos com 2 (duas) pessoas
simultaneamente, julgando-a a mais proveitosa e rica de detalhes, pois os entrevistados já
contavam com mais de 25 anos na fiscalização trabalhista, estando ambos próximo da
aposentadoria e com vasta experiência para compartilhar.
De acordo com o artigo 5°, inciso XIV, da Constituição Federal, contudo,
resguardamos o sigilo de nossas fontes a pedido destas, pois não gostariam de ter seus nomes
vinculados a este estudo científico posto que, em suas visões, isso poderia trazer conseqüências
profissionais indesejáveis.
Dessa forma, transcreveremos agora a entrevista realizada na íntegra referindo-nos
aos entrevistados como Entrevistado n° 1 e Entrevistado n° 2.
Entrevista
Entrevistador: Bom dia. Os senhores poderiam dizer suas formações e quanto tempo estão a
serviço da Fiscalização do Trabalho?
Entrevistado n° 1: Bom dia. Claro. Sou engenheiro químico e especialista em Segurança do
Trabalho. Entrei para o MTE em 1985 e, desde então, estou lotado em São Paulo.
Entrevistado n° 2: Olá. Eu sou advogada formada pela USP e especialista em Direito do Trabalho
por lá também. Eu já trabalho aqui há mais de 30 anos, então, poderia me aposentar, mas vou
esperar a aposentadoria compulsória, aos 70 anos.
172
Entrevistador: Obrigado. Nossa pesquisa é em torno da Lei de Cotas. Qual é a opinião dos
senhores sobre a imposição às empresas instituída por esta legislação?
Entrevistado n° 1: Acho que foi algo muito proveitoso para o Brasil. A ideia de trazer estas
pessoas ao trabalho é, em minha opinião, a melhor maneira de incluí-las socialmente, e não
somente pelos benefícios que uma contratação por meio da CLT pode trazer, como FGTS, INSS
e benefícios, mas sim porque trabalhando e ganhando seu salário, a pessoa de fato participa da
sociedade, ajudando no desenvolvimento econômico. Isso sem falar na satisfação pessoal que se
vê neste tipo de empregado. É realmente algo muito satisfatório.
Entrevistado n° 2: A Lei de Cotas foi um passo muito importante realmente, mas eu penso que
deveria ser atualizada. Já faz quase vinte anos que a única coisa que muda é os valores das
multas.
Entrevistador: E os senhores têm muito contato com empresas que estão obrigadas pela Lei de
Cotas?
Entrevistado n° 1: A maior parte do trabalho de fiscalização é com empresas pequenas. Posso
dizer tranquilamente que cerca de 90% do nosso trabalho é fiscalizar empresas de pequeno porte,
não obrigadas pela Lei de Cotas. Dos 10% restantes do nosso trabalho, cerca de 8% são empresas
médias e somente uns 2% são as consideradas grandes empresas, geralmente multinacionais ou
até empresas de capital aberto.
Entrevistado n° 2: Concordo. É mais ou menos isso mesmo. Nós fiscalizamos muitas empresas
por denúncias de ex-empregados ou devido a acidentes de trabalho. A proporção é esta mesmo.
Entrevistador: E muda muito a fiscalização do cumprimento da Lei de Cotas em empresas médias
e em empresas consideradas grandes?
Entrevistado n° 1: Quando se está fiscalizando uma grande empresa, muitas vezes multinacional
ou de capital aberto, tudo está nos conformes da Lei. Não existe nada fora do lugar e o
Departamento de Recursos Humanos mantém um controle de fazer inveja a muitas repartições
militares. Agora não é este tipo de empresa que gera a maioria dos empregos para o Brasil. As
empresas de pequeno e médio porte são as responsáveis por grande parte dos empregos. E é aí
que a Lei é desobedecida.
173
Entrevistado n° 2: As infrações à legislação trabalhista que as empresas cometem podem ser
agrupadas por tamanho da empresa e por atividade. Por exemplo, uma empresa de transporte de
valores que eu fiscalizei semana passada sistematicamente não cumpria a obrigação do horário de
almoço, pois eles nunca poderiam parar o carro-forte no meio do trajeto, após quatro horas de
expediente, para descansar uma hora e voltar depois. Isso é sistemático. Todas as empresas de
segurança patrimonial têm este tipo de problema. Outro exemplo, agora por tamanho da empresa.
Se a empresa é muito pequena, geralmente não registra seus empregados. Trazer o empregado
para a formalidade implica uma série de obrigações trabalhistas e previdenciárias e se o
empresário não formaliza nada, ter empregados se torna muito mais barato. Muitas vezes sequer
CNPJ ou contrato social a empresa tem. Já as empresas grandes pecam em outro sentido. Os
problemas mais comuns nestas empresas são relacionados ao pagamento de horas extras, cálculo
do descanso semanal remunerado e o chamado salário indireto dos executivos. As médias
empresas, por outro lado, sistematicamente descumprem a Lei de Cotas.
Entrevistador: Qual é a penalidade por descumprimento da Lei de Cotas?
Entrevistado n° 1: A penalidade é a lavratura de auto de infração e imposição de multa
administrativa. Funciona assim: descobre-se o número de empregados que a empresa deveria ter
pela Lei de Cotas; com este número, a autoridade administrativa faz o cálculo da multa
multiplicando o número de empregados que a empresa deveria ter e não tem pela Lei de Cotas
por um valor estipulado no artigo 10, inciso V, da mesma Lei de Cotas. Este valor varia de cerca
de R$ 1.100,00 até R$ 1.700,00 aproximadamente, dependendo do número total de funcionários
que a empresa tem. A multa não pode ultrapassar cerca de R$ 120.000,00; a Lei também estipula
isso.
[O Entrevistado n° 1 mostra ao entrevistador uma espécie de manual de fiscalização do MTE
destinado aos AFTs com a seguinte informação166:
166
Os dados podem ser obtidos também em: <http://www.mte.gov.br/fisca_trab/inclusao/lei_cotas_13.asp>. Acesso
em: 31/12/2010.
174
Quais os valores das multas, na vigência da Portaria MPS nº 142, de 11 de abril
de 2007?
Por infração ao art. 93 da Lei nº 8.213/91, conforme estabelece seu art. 10, V:
I - de R$ 1.195,13 a 1.434,16 para empresas de 100 a 200 empregados;
II - de R$ 1.434,16 a R$ 1.553,67 para empresas de 201 a 500 empregados;
III - de R$ 1.553,67 a R$ 1.673,18 para empresas de 501 a 1.000 empregados;
IV - de R$ 1.673,18 a R$ 1.792,70 para empresas com mais 1.000 empregados.
O valor máximo não poderá ultrapassar R$ 119.512,33.
Exemplificando o cálculo do valor da multa por não preenchimento da cota:
Supondo-se uma empresa com 1.010 empregados, que deveria ter 51
empregados com deficiência e tem apenas oito nessa condição. Nesse caso,
multiplicam-se 43 (o número de empregados com deficiência que deixou de ser
contratado) pelo valor previsto para as empresas com mais de 1.000
empregados. Na vigência da Portaria MPS nº 142, de 11 de abril de 2007,
multiplicar-se-iam 43 por um valor entre R$ 1.673,18 a R$ 1.792,70.]
Entrevistado n° 2: E ainda tem a margem de discricionariedade do Auditor Fiscal. Nós podemos
aumentar o valor da multa dentro dos limites.
[O Entrevistado n° 2 mostra ao Entrevistador o mesmo manual, mas em outra página, que
dispõe167:
A multa é a prevista no art. 133 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991,
calculada na seguinte proporção, conforme estabelece a Portaria nº 1.199, de
28 de outubro de 2003:
I - para empresas com 100 a 200 empregados, multiplicar-se-á o número de
trabalhadores portadores de deficiência ou beneficiários reabilitados que
deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal, acrescido de zero a
20%;
II - para empresas com 201 a 500 empregados, multiplicar-se-á o número de
trabalhadores portadores de deficiência ou beneficiários reabilitados que
deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal, acrescido de 20 a 30%;
III - para empresas com 501 a 1.000 empregados, multiplicar-se-á o número
de trabalhadores portadores de deficiência ou beneficiários reabilitados que
deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal, acrescido de 30 a 40%;
167
Os dados podem ser obtidos também em: <http://www.mte.gov.br/fisca_trab/inclusao/lei_cotas_13.asp>, Acesso
em: 31/12/2010.
175
IV - para empresas com mais de 1.000 empregados, multiplicar-se-á o
número de trabalhadores portadores de deficiência ou beneficiários
reabilitados que deixaram de ser contratados pelo valor mínimo legal,
acrescido de 40 a 50%.
§ 1º O valor mínimo legal a que se referem os incisos I a IV deste artigo é o
previsto no art. 133 da Lei nº 8.213, de 1991.
§ 2º O valor resultante da aplicação dos parâmetros previstos neste artigo não
poderá ultrapassar o máximo estabelecido no art. 133 da Lei nº 8.213, de
1991.
Entrevistador: E o que as empresas acham das multas?
Entrevistado n° 1: Honestamente, a maioria acha o valor muito baixo. O empresário faz a conta
de quanto custa para empregar estas pessoas e quanto custa a multa por não empregar. Ele ainda
coloca na conta que se ele não empregar, existe a possibilidade da fiscalização aparecer ou não e,
ainda por cima, existe a corrupção. É lastimável ver uma legislação de ponta como essa não
sendo cumprida sistematicamente. Posso contar nos dedos as vezes que fiscalizei empresas de
médio porte que cumpriam a Lei de Cotas de maneira correta.
Entrevistado n° 2: A multa para o descumprimento é muito baixa e o custo para manter estes
empregados é muito mais elevado. A reclamação é sempre a mesma. Os proprietários de empresa
dizem que o gasto para adaptar as instalações físicas da empresa, treinar os profissionais do local
para lidar com a diferença e encontrar profissionais reabilitados ou portadores de deficiência
qualificados para o emprego é muito maior do que a multa pela infração à legislação cometida.
Além desta conta que já foi mencionada, tem que se contabilizar que esta multa é administrativa,
logo, ela pode ser discutida em primeira instância na SRTE (antigas Delegacias Regionais do
Trabalho – DRTs) e, posteriormente, em segunda instância, em Brasília; isso sem mencionar que
após tudo isso, o auto de infração ainda pode ser levado ao Judiciário. E ainda tem o desconto se
a empresa paga na data estipulada.
Entrevistador: Mas e no caso das grandes empresas?
Entrevistado n° 1: O cenário é diferente. Muito diferente. Estas empresas querem mostrar para a
comunidade que estão cumprindo. Não basta nos dias de hoje a empresa manter o controle do
Departamento de Recursos Humanos e esperar a fiscalização chegar para mostrar que ela cumpre
176
a Lei de Cotas. Estas empresas fazem questão de mostrar para todos a responsabilidade social
delas em inserir estas pessoas. Eu não julgo se isto é somente boa propaganda ou se isso é, de
fato, consciência social, mas o que posso garantir é que estas empresas gostariam até de empregar
mais gente do que a Lei de Cotas impõe. O problema é que isto tem um custo muito elevado.
Tem que adaptar a empresa, colocar elevador, rampa de acesso, tem que treinar o pessoal que já
trabalha lá, enfim, são muitos custos. Estas empresas geralmente dizem que se houvesse um
incentivo do governo, elas com certeza gastariam muito mais com isso, mas os projetos acabam
encostados pelo alto valor.
Entrevistado n° 2: De fato. Já fiscalizei uma empresa com capital aberto na Bolsa de São Paulo
que tinha o mesmo problema. Parte da administração queria investir mais nisto, mas era sempre
barrada pelo alto custo. Se houvesse incentivo do governo, com certeza haveria mais postos de
trabalho para estas pessoas.
Entrevistador: Entendi. Muito obrigado pelas informações.
177
APÊNDICE B - A INCLUSÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE
TRABALHO. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO (trechos dos capítulos 1.3 e
1.4)
1.3 Ação Afirmativa – Igualdade de Oportunidades
Segundo ensina Joaquim Barbosa Gomes (GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa &
princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A
experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 35-38.), as ações afirmativas, em um
primeiro momento, instigaram e encorajaram as autoridades públicas, sem as obrigar, a tomar
decisões em prol de grupos flagrantemente excluídos, considerando a raça, cor, sexo e origem
nacional das pessoas, fatores que, até então, consideravam-se irrelevantes. A pressão organizada
desses grupos evidenciou as injustiças e impulsionou o estímulo a políticas públicas compensatórias
de acesso à educação e ao mercado de trabalho. Nas décadas de 1960 e 1970, diante da constatação da
inoperância das normas de mera instigação, e tendo em conta o aumento da pressão dos grupos
discriminados, adotaram-se cotas rígidas, obrigatórias, que vieram a compor nas escolas, no mercado
de trabalho e em outros setores da vida social um quadro mais representativo da diversidade dos
povos.
A estatística era o principal instrumento de prova da discriminação objetiva, restando superada a
preocupação com a intencionalidade na discriminação, de difícil prova, e que inviabilizava os
avanços no sentido da sociedade inclusiva.
Chega-se, assim, à conclusão de que as ações afirmativas contêm elementos concernentes à
compensação, à mobilização de grupos privados, à pró-atividade do Estado na direção dessa
compensação e à materialização da igualdade real, concreta, objetiva.
Joaquim Barbosa Gomes apresenta um conceito bastante abrangente, que define as ações afirmativas
como:
[...] as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de
caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação
racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação
praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a
bens fundamentais como a educação e o emprego (GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa &
178
princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A
experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 40).
Tratou-se, então, de superar a proibição pura e simples da discriminação, que possibilitava, tãosomente, a reparação de danos posteriori, muitas vezes impossível diante da exigência quase sempre
intransponível da prova do ânimo discriminatório. As ações afirmativas compensam danos oriundos
do passado, de condutas imemoráveis ou de raízes históricas profundas, e podem decorrer de
imposição legal, judicial ou de ações voluntárias de entidades privadas instigadas ou não por leis
abertas, de política de isenções fiscais, por exemplo, ou bolsas de ensino, e outras tantas. Há que
acrescentar à definição acima exposta outras perspectivas de proteção que abarquem outros grupos,
tais como as pessoas com deficiências, os homossexuais ou aquelas situações em que a pessoa
pertença a mais de um grupo discriminado, como as mulheres negras com deficiência.
As ações afirmativas são, assim, medidas que visam à implantação de providências obrigatórias ou
facultativas, oriundas de órgãos públicos ou privados, cuja finalidade é a de promover a inclusão de
grupos notoriamente discriminados, possibilitando-lhes o acesso aos espaços sociais e a fruição de
direitos fundamentais, com vistas à realização da efetiva igualdade constitucional. Podem, portanto,
decorrer da lei que institua cotas ou que promova incentivos fiscais, descontos de tarifas; podem advir
de decisões judiciais que também determinem a observância de cotas percentuais, mas sempre em
favor de grupos, porque o momento histórico da criação das medidas afirmativas foi o da
transcendência da individualidade e da igualdade formal de índole liberal e também da mera
observância coletiva dos direitos sociais genéricos, que implicavam uma ação estatal universal,
buscando compensação social em favor dos hipossuficientes social e econômico.
As ações afirmativas, como se constatou, representam um corte de observação da realidade que incide
na maioria desvalida, mas observa as peculiaridades das minorias que a compõem, tendo-se em vista
a insuficiência das ações genéricas em si mesmas.
Dessa forma, o art. 93 da Lei nº 8.213/91, ao fixar, para empresas com 100 (cem) ou mais
empregados, o percentual de 2% a 5% de contratação obrigatória de pessoas com deficiências
habilitadas, ou reabilitadas, está a exercer ação afirmativa decorrente de lei, e cuja implementação
depende das empresas. Trata-se de implementar uma iniciativa de combinação de esforços entre o
Estado e a sociedade civil.
179
Os valores que lastreiam a medida em questão estão contidos nos arts. 1º, 3º e 5º da Constituição
brasileira. Asseguram tais normas os princípios da dignidade e cidadania, do valor social do trabalho
e da livre iniciativa, e o da igualdade real de todos perante a lei. A ação afirmativa da qual se trata
vem impulsionada, ademais, como já se disse, pelos dispositivos da Constituição, eis que se constrói,
por meio dela, uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo-se o bem do grupo aquinhoado pela
medida, combatendo-se a discriminação e o preconceito que sempre excluem as pessoas com
deficiência do convívio social.
1.4 Diretrizes Institucionais Referentes ao Trabalho da Pessoa com Deficiência
A inclusão social é a palavra-chave a nortear todo o sistema de proteção institucional da pessoa com
deficiência no Brasil. Implica a idéia de que há um débito social secular a ser resgatado em face das
pessoas com deficiência; a remoção de barreiras arquitetônicas e atitudinais acarreta a percepção de
que os obstáculos culturais e físicos são opostos pelo conjunto da sociedade e excluem essa minoria
do acesso a direitos fundamentais básicos. Cabe, por tanto, à sociedade agir, combinando-se esforços
públicos e privados para a realização de tal mister.
Em decorrência, a Lei nº 7.853/89 traça a diretriz central a ser aplicada ao tema em estudo, ao
estabelecer que:
Art. 2º Ao Poder Público e a seus órgãos cabem assegurar às pessoas portadoras
de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à
educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à
infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis,
propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.
Parágrafo único. Para o fim estabelecido no caput deste artigo,os órgãos e
entidades da administração direta e indireta devem dispensar, no âmbito de sua
competência e finalidade, aos assuntos objetos desta Lei, tratamento prioritário e
adequado,
tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes
medidas:(...)
III – na área da formação profissional e do trabalho:
a) o apoio governamental à formação profissional e a garantia de acesso aos
serviços concernentes, inclusive aos cursos regulares voltados à formação
profissional;
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de
empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas portadoras de
deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
180
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores público e
privado, de pessoas portadoras de deficiência;
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de
trabalho, em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da
Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de
oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho e a situação, nelas, das
pessoas portadoras de deficiência.
Também a Convenção nº 159 da OIT, convertida em lei no Brasil, milita em favor de ações
combinadas entre Estado, sociedade civil e empresas para a efetiva inclusão da pessoa com
deficiência no trabalho, sendo de se ressaltar a esse respeito o que se contém no art. 5º do Decreto nº
3.298/99, que regulamenta a Lei nº 7.853/89 e a Convenção em apreço, nos seguintes termos:
Art. 5º A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência, em consonância com o Programa Nacional de Direitos Humanos,
obedecerá aos seguintes princípios:
I – desenvolvimento de ação conjunta do Estado e da sociedade civil, de modo a
assegurar a plena integração da pessoa portadora de deficiência no contexto
socioeconômico e cultural;
II – estabelecimento de mecanismos e instrumentos legais e operacionais que
assegurem às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus
direitos básicos que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciam o seu
bem- estar pessoal, social e econômico; e
III – respeito às pessoas portadoras de deficiência, que devem receber igualdade
de oportunidades na sociedade por reconhecimento dos direitos que lhes são
assegurados, sem privilégios ou paternalismos.168
168
BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
2. ed. Brasília: MTE, SIT, 2007, pp. 16-19.
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