Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP Fernanda Pereira Penedo ESTRATÉGIAS E MARCADORES CONVERSACIONAIS NA CONSTRUÇÃO DO DIÁLOGO EM OS NOVOS, DE LUIZ VILELA. Mestrado em Língua Portuguesa São Paulo 2013 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP Fernanda Pereira Penedo ESTRATÉGIAS E MARCADORES CONVERSACIONAIS NA CONSTRUÇÃO DO DIÁLOGO EM OS NOVOS, DE LUIZ VILELA. Dissertação a ser apresentada à Banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial da obtenção do título de mestre, sob a orientação do Prof. Dr. Dino Preti. Mestrado em Língua Portuguesa São Paulo 2013 BANCA EXAMINADORA __________________________________ __________________________________ __________________________ Aos meus pais Alberto Penedo e Angelúcia Sereni Pereira Penedo e ao meu irmão Marcelo por todo amor e apoio recebido durante minha formação. Agradecimento Agradeço, primeiramente à Deus pela força e fé que se mantiveram forte até o final deste trabalho. Com muito carinho agradeço: aos meus pais que sempre estiveram ao meu lado, acreditaram e me incentivaram; ao meu irmão, melhor amigo em todos os momentos difíceis; ao meu orientador, meu mestre, professor do qual sinto muito orgulho pela orientação: Dr. Dino Preti. Sou grata por todo conhecimento recebido; a querida professora Ana Rosa pelo incentivo e credibilidade; a professora Dr. Wilma pelas valiosas sugestões e considerações; aos colegas de curso e de trabalho pela paciência durante este período importante para mim. A literatura não é outra coisa além de um sonho dirigido. Jorge Luis Borges Literatura é a imortalidade da fala. August Schlegel Resumo Este estudo tem por finalidade identificar marcadores e estratégias conversacionais utilizadas pelas personagens no diálogo de ficção. Utilizamos trechos retirados do corpus selecionado para análise do diálogo construído, do romance Os novos, do contista mineiro Luiz Vilella. Na obra, podemos destacar os esquemas utilizados pelas personagens em diferentes situações de comunicação e observar o rico exemplário de variações típicas da linguagem oral. O corpus não representa uma transcrição, mas substitui as gravações de conversações em situações naturais. As construções das falas das personagens criadas por Vilela, muitas vezes se aproximam da realidade linguística falada do leitor. Vilela transmite informações inerentes ao processo interacional para a construção de seus diálogos, transformando seus textos em excelente fonte de estudo da conversação por meio de textos escritos. Palavras-chave: Análise da conversação, estratégias e marcadores conversacionais. Abstract This study aims to identify markers and conversational strategies used by the characters in the dialogue of fiction. We use excerpts taken from the corpus selected for analysis of dialogue built, the novel The new, the storyteller mining Luiz Vilella. In the work, we highlight the schemes used by the characters in different communicative situations and observe the rich set of examples of typical variations of oral language. The corpus is not a transcript, but replaces the recordings of conversations in natural situations. Constructions of lines of characters created by Vilela, often approaching the reality spoken language of the reader. Vilela transmits information regarding the interaction process for the construction of his dialogues, transforming its texts into excellent source of study of conversation through written texts. Keywords: Conversations Analysis, markers and conversational strategies. Sumário Considerações iniciais…………………………………………………………...............13 Capítulo I……………………………………………………………………………..…...…16 Corpus 1.1. Os novos, de Luiz Viela………………………..……………………..…...16 1.2. O autor: Luiz Vilela ………………………………………….……........….16 1.3. Contexto histórico – Ditadura militar……………………………..….....19 1.3.1. Fatores que antecederam o golpe de 64………………………....…..19 1.3.2. A República de 46 a 64 …………………………………...……….....…20 1.3.3. Governo Dutra ……………………………………………………....…....21 1.3.4. O segundo governo de Vargas ………………………………..……....22 1.3.5. Governo de Juscelino Kubitschek …………………….……….……..22 1.3.6. Jânio quadros ………………………………….…………………….…...23 1.3.7. O golpe de 1964 ………………………………………….…………..…...25 1.3.8. Cronologia do período da Ditadura …………………………….….…28 1.4. Sobre a obra ………………………………………………….….……..…35 Capítulo II ………………………………………………………………..…………..…39 2.1. A Fala e a escrita …………………………………………………….………....39 2.2. Análise da conversação ………………………………………………….......50 2.3. Características organizacionais da conversação: turnos conversacionais…………………………………………………………….................…..52 2.4. Reparações e correções na conversação ................................................57 2.5. Organização de sequências: Pergunta e resposta ……….…………..….58 2.6. Estratégias conversacionais………………………….……………….….…..61 2.6.1. As gírias e a linguagem obscena ……………………………………..…...62 2.6.2. Ironia na fala ………………………………………………………………….66 2.6.3. Preservação da face.................................................................................67 2.7. Marcadores conversacionais interativos ……………………..…….….…..68 2.7.1. Formas de tratamento na conversação ……………..……………….…..73 2.7.2. O contexto ou situação de comunicação ………….…….…………...….75 2.8. Tratamento dos dados orais …………………………………………..…….76 2.9. A conversação literária …………………………………………….......…..…79 Capítulo III ………………………………………………………………………...…..…83 A oralidade em Os novos, de Luiz Vilela.............................................................83 3.1 Estratégias conversacionais observada no corpus ………….…………..….84 3.1.1. Discurso irônico……………………………………….………………….……...85 3.1.2. Gírias e linguagem obscena...………………….……….……..……….…..….89 3.2. Marcadores conversacionais como estratégia de interação observados no corpus..........................................................................................................................93 3.2.1. Sinais conversacionais verbais …………………….……………….....….…..93 3.2.2. Duplicação na fala ………………………………………………………..…….96 3.2.3. Formas de tratamento a gente ……………………………………………..….97 3.2.4 Registro oral culto observado no corpus ……………………………………98 3.3. Organização conversacional ……………………….…………….………….....101 Considerações Finais……………………………………………………………..…….103 Referências bibliográficas………………………………………………………..….....105 Anexos………………………………………………………………………………..……108 Considerações iniciais Temos, hoje, muito mais conhecimento sobre a oralidade e a escrita. Porém esse conhecimento não se apresenta satisfatoriamente em nossas práticas. Pretendemos com este trabalho divulgar e ampliar discussões acerca da oralidade para melhor compreensão dos usos da língua. Partiremos do princípio de que o uso da língua depende da intenção de comunicação, ou seja, não se produz um diálogo ou um texto, pensando somente na forma, na gramática e na morfologia a ser utilizada. A produção de sentidos depende, e muito, da intenção comunicativa, para dessa forma chegar a um discurso significativo adequado às práticas e às situações sociais. Não faremos uma distinção rígida entre a fala e a escrita, mas trataremos das duas modalidades da língua conforme suas características relativas ao uso, à situação de comunicação, conforme propõe Marcuschi: Em certos casos, as proximidades entre fala e escrita são tão estreitas que parece haver uma mescla, quase uma fusão de ambas, numa sobreposição bastante grande tanto nas estratégias textuais como nos contextos de realização. Em outros, a distância é mais marcada, mas não a ponto de se ter dois sistemas linguísticos ou duas línguas, como se disse por muito tempo. Uma vez concebidas dentro de um quadro de inter-relações, sobreposições, gradações e mesclas, as relações entre fala e escrita recebem um tratamento mais adequado, permitindo aos usuários da língua maior conforto em suas atividades discursivas (2007:9). Este trabalho, desenvolvido e orientado pelo professor Dino Preti, tenta mostrar caminhos para que seja possível descobrirmos, no diálogo construído, marcadores conversacionais que se revelam na produção de textos ficcionais, levando em consideração o contexto histórico-cultural, ou seja, o retrato de uma sociedade conforme sua época e seus costumes. Contudo admitir que as variantes da oralidade sejam inclusas na escrita literária. 13 O interesse pela escolha do tema proposto justifica-se pela escassez de pesquisas realizadas sobre a questão da oralidade e o processo (organização) de interação por meio de sua utilização. De acordo com (Tannen apud Siqueira, 2006): “o diálogo artificial pode representar um modelo ou esquema internalizado para produção da conversação, um modelo de competência que os falantes têm acesso”. Por isso não trataremos o diálogo literário como representação de uma conversação natural, mas como um recurso de substituição das gravações. Optamos por um diálogo construído, isto é, um diálogo elaborado e criado por um autor, por mostrar na língua literária marcadores da oralidade, marcadores esses que tanto na fala quanto na escrita servem para melhorar a comunicação, a interação e a relação afetiva ou não, entre interlocutores. Diante do exposto até aqui, definimos que para tal estudo seria oportuna a seleção do romance Os novos, de Vilela, obra publicada na dácada de 80 do século passado. A selecionamos porque apresenta um diálogo construído por meio de estratégias e marcadores conversacionais muito semelhantes e próximos da fala. Ao longo do romance o autor nos apresenta por meio de diferentes situações comunicativas, fatos históricos referentes ao povo brasileiro durante o período da ditadura militar. É possível percebermos na obra, situações que parecem ser relatos do período em que as pessoas eram proibidas de manifestarem suas opiniões contra o governo durante a ditadura por causa da pressão sofrida, e para que nenhum comentário de oposição ao governo fosse proferido. Vilela (1984) seleciona como palco o período de mais censura e repreensão da sociedade brasileira, a ditadura militar, ou seja, um regime comandado por militares. Todo o poder político centrava-se nesse regime autoritário que começou em 1º de abril de 1964 até 15 de março de 1985. De origem mineira, Luiz Vilela retrata as consequências do golpe de 1964. Fatos que também ocorreram em seu Estado de origem. Outra razão pela escolha está no comportamento linguístico e no emprego de variantes na linguagem das personagens. Visando facilitar a compreensão do leitor, optou-se por dividir este estudo em três capítulos. 14 No primeiro capítulo a análise centra-se no contexto da obra, informando ao leitor as situações de produção do corpus selecionado. Após breve apresentação de dados do contexto histórico da obra selecionada, no segundo capítulo, seguimos com uma questão crucial para a pesquisa: a relação existente entre a fala e a escrita dentro de um continnum tipológico que defende a importância da fala e suas características. Analisaremos, portanto, cada uma das modalidades de usos da língua dentro da situação de comunicação, seja ela falada ou escrita, sem que haja rígidas distinções, e observando as relações entre elas para sustentar nossa análise. Servimo-nos das duas modalidades da língua para que haja comunicação. Por isso consideramos a fala e a escrita duas práticas sociais. Com a intenção de analisarmos as marcas da oralidade no diálogo construído, faremos menção à teoria da Análise da Conversação, ciência responsável pela análise das ocorrências de interação em situações cotidianas que procura descrever aa formas de interações formais e informais. Por fim, no terceiro e último capítulo deste trabalho, apresentaremos a análise das estratégias e marcadores conversacionais utilizadas por Luiz Vilela (1984) na construção do diálogo das personagens do romance, mas também mostrar ao leitor como as pessoas interagem e sustentam uma interação por meio do diálogo. As personagens são jovens estudantes e professores universitários. A linguagem apresentada no diálogo contruído mostra uma linguagem obscena, com palavrões e gírias, com repetições, com o intuito de representar no texto literário o modo como as pessoas interagem por meio da conversação natural, aquela aprendida por meio da inserção social do indivíduo em uma comunidade. Nas considerações finais, verificaremos se os objetivos em relação à proposta foram atingidos. Assim como garantir que este estudo contribua para outras pesquisas linguísticas centradas na oralidade. 15 Capítulo I Corpus 1.1. Os novos, de Luiz Viela. Para que o objetivo desta pesquisa seja atingido, faz-se necessária a escolha cuidadosa do corpus. Com o intuito de exemplificarmos como a oralidade é representada em textos literários, selecionamos dentre as muitas opções, aquela apresentada pelo escritor Luiz Vilela (1984). Trata-se de um autor que representa um papel fundamental para a literatura brasileira, utilizando como recurso na produção de suas obras, determinados diálogos cujas principais características se aproximam da realidade linguística. De modo que, ao fazermos a leitura, torna-se possível identificar as muitas semelhanças existentes. Analisaremos nesse corpus, conforme a situação de comunicação, algumas estratégias e alguns marcadores conversacionais comuns na fala. A análise ocorrerá sob o enfoque da teoria da Análise da Conversação. Por haver diversas situações de comunicação nesse romance, torna-se fácil as exemplificações que faremos no decorrer da pesquisa, de acordo com as estratégias e os marcadores conversacionais escolhidos por Vilela. 1.2. O autor: Luiz Vilela Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba, Minas Gerais, aos trinta e um dias de dezembro de 1942. Iniciou sua carreira como escritor ainda adolescente, aos treze anos, influenciado por leituras de diversos tipos de textos, como conta o próprio autor. 16 Cresceu numa família que lia muito, sendo que na casa onde morava havia livros por toda parte. Pode-se inferir que seja este o motivo de tanto interesse pelos livros manifestado pelo autor, desde pequeno. Ainda adolescente, já com 15 anos de idade, em Belo Horizonte, fez o curso clássico. Dando continuidade aos estudos, entrou para faculdade e formou-se em Filosofia. Não deixou de escrever durante sua formação e tornou-se conhecido por suas participações em concursos de contos na imprensa mineira. Com 21 anos apenas, já teve outra importante participação: criou uma revista só de contos. Foi auxiliado, para a criação da revista, por outros jovens escritores. Foram os próprios autores que pagaram para que a revista fosse publicada, porque não conseguiram apoio financeiro. Marcaram época devido a grande repercussão da revista. Em 1967, aos vinte e quatro anos, Vilela publicou seu livro de contos Tremor de terra, obra recusada por vários editores. Com este livro participou de um concurso em Brasília. Dentre os 250 escritores, Vilela ganhou o Prêmio Nacional de Ficção. Devido ao prêmio, Tremor de terra foi reeditado por uma grande editora do Rio, tornando Vilela conhecido por todo o Brasil e reconhecido como a revelação literária do ano. Foi elogiado por Nelson Werneck, um historiador, pelo biógrafo Raimundo Magalhães Junior e pelo humorista Stanislaw Ponte Preta. Foi escolhido como o escritor representativo de sua geração e logo inserido na galeria dos grandes prosadores brasileiros. Vilela mudou-se para São Paulo, em 1968, para trabalhar como repórter e redator no Jornal da Tarde. Publicou, mais tarde, em 1979, o livro O inferno é aqui mesmo, uma obra baseada em suas experiências e na realidade que conhecia, nesse caso, o Jornal da tarde. Em 1968, ainda, recebeu convite para participar de um programa internacional de escritores, o International Writing Program, permanecendo por nove meses nos Estados Unidos. Lá conclui mais um romance, Os novos. Nesse romance, retrata o período após a Revolução de 64. O país ainda vivia sob a pressão da ditadura e muitos editores temiam represálias. Por esta razão Vilela teve dificuldades para publicar Os novos, que mais tarde foi chamado por 17 um crítico mineiro de “fogos de artifício”. Prova disso foi a opinião de Temístocles Linhares, em O Estado de S. Paulo: “ se não todos, quase todos os problemas das gerações, não só em relação à arte e à cultura, como também em relação à conduta e à vida, estão postos neste livro”. Fausto Cunha, em Jornal do Brasil, também teceu comentários sobre a obra: “sua geração não produziu ainda nenhuma obra como essa, na ficção.” (Vilela, 1989:222) Luiz Viela percorreu vários países, mas fixou sua residência em sua cidade natal. Inspirado pelas grandes transformações da cidade escreveu seu terceiro romance, Entre amigos. Obteve mais um sucesso. Edilberto Coutinho, em O Globo também comentou: “uma literatura, realmente, de valor universal, na medida que retrata uma realidade bem nossa, dos nossos dias e de sempre”. Recebeu prêmios nacionais de ficção, porém foi em 1968, no I e II Concurso Nacional de Contos do Paraná que recebeu importante observação de Antonio Candido, que fazia parte da comissão julgadora, afirmando o que para nós neste trabalho é fundamental: “a sua força está no diálogo e, também, na absoluta pureza de sua linguagem.” Em 1973, com o livro O fim de tudo, ganhou o Prêmio Jabuti. O livro foi publicado pela editora que Vilela, em companhia de um amigo, fundou em Belo Horizonte, a Editora Liberdade (Cf. Vilela, 1989). Em um depoimento num encontro nacional de escritores, em Brasília, disse: Escrevo ficção por uma necessidade de contar histórias, não importa a quem nem para quê. Uma necessidade que surgiu na adolescência e que com o tempo se tornou tão vital quanto comer e dormir, e, em certas circunstâncias, até mais. Hoje, não consigo me imaginar vivendo sem escrever. Parar de escrever seria uma espécie de morte – seria realmente morrer. (Vilela, 1989:224) 18 Algumas estratégias utilizadas por Vilela na elaboração de seus diálogos, criam no leitor a expectativa de uma conversação natural. 1.3. Contexto histórico – Ditadura militar 1.3.1. Fatores que antecederam o golpe de 64 Por meio de registros históricos elaborados pelo homem, podemos tomar ciência de fatos ou eventos que não presenciamos ou vivenciamos. Com esses registros passamos a conhecer a trajetória humana, ou seja, o caminho trilhado pelo homem até os dias atuais, bem como seus feitos, seu desenvolvimento ao longo do tempo. Entendemos os registros históricos como documentos que descrevem por meio da escrita, da música, da arte, o passado da humanidade, que por diversas vezes substituem a memória humana. Muitos consideram uma arte escrever história. Uma arte em contar fatos reais ocorridos em diferentes contextos históricos e socioculturais. Em alguns períodos da nossa história tivemos que enfrentar a falta de liberdade de expressão e um regime político militar influenciado pelo autoritarismo comandado por ditadores. Principalmente os que comandaram no período de 1964 a 1985. A opressão teve seu início no período de 1937 a 1945, no governo de Getúlio Vargas, que permaneceu no poder por 15 anos, transformando-se num ditador durante seu mandato. Desde então, a população brasileira passou a reivindicar do governo melhorias e até mesmo cobrar os próprios direitos. Essas pessoas passaram a ser consideradas da oposição e restritas a qualquer tentativa de reivindicação devido às ameaças recebidas pelo governo. Após a Revolução Constitucionalista de 1932, intensificou-se o clima de tensão. Vargas, querendo manter-se no poder, aumentou a perseguição policial aos comunistas. Sentindo-se ameaçado por eles, Getúlio, com o apoio de Góis Monteiro (chefe do Estado Maior do Exército) e de Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra), preparou um golpe de Estado, ou seja, criou um novo 19 regime conhecido como Estado Novo, para que pudesse governar com poder absoluto. Em 10 de novembro de 1937, mesmo ano em que a União Nacional dos Estudantes (UNE) foi criada, assinou uma nova Constituição, a Carta de 1937, com características bem parecidas com a Constituição da Alemanha, no governo de Hitler, da Itália, do governo de Mussolini e de Portugal, no comando de Salazar. Quando ocorrido o golpe de Estado, não houve resistência nenhuma do povo ou de grupos da oposição. Porém Vargas não cumpriu com algumas promessas, como a de criar um único partido político no país. Em consequência disso, até mesmo seus aliados voltaram-se contra o governante. Após uma tentativa da tomada de poder, o governo reagiu com medidas muito severas como a instituição da pena de morte, a prisão e o exílio de seus adversários políticos. Foi nesse período que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) passou a controlar a publicação artística de revistas, livros e jornais. Em 1945 aconteceu o 1º Congresso Brasileiro de Escritores em que autores como Jorge Amado, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, pediam liberdade de expressão e demonstravam repúdio ao regime criado por Getúlio Vargas. Em seguida a esse acontecimento, um antigo colaborador de Vargas, em uma entrevista para o jornal Correio da manhã criticou o Estado Novo. Ná época, conhecidos escritores faziam pedidos e se manifestavam publicamente. Dessa forma, era praticamente impossível impedir e controlar as manifestações públicas contrárias ao regime. Um novo golpe foi preparado pela força política conservadora e militar (Pedro, 2005:490-498). 1.3.2. A República de 46 a 64 Com a deposição de Getúlio Vargas presenciamos outro período da República brasileira que durou até 1964, ano em que os militares tomaram o poder. Tivemos como presidentes nesse período, conforme Santos (1992:158): 20 Eurico Gaspar Dutra 1946 a 1951 Getúlio Vargas 1951 a 1954 João Café Filho (vice-presidente exercendo a presidência) 1954 a 1955 Carlos Luz (presidente da Câmara dos Deputados, exercendo a 1955 presidência de 9 a 11 de novembro por motivo de doença do presidente) Nereu Ramos (exercendo a presidência por deposição de Carlos Luz) 1955 a 1956 Juscelino kubitschek 1956 a 1961 Jânio Quadros (de 31 de janeiro a 25 de agosto) 1961 Ranieri Mazzili (presidente da Câmara dos Deputados, exercendo a 1961 presidência por alguns dias) João Goulart 1961 a 1964 1.3.3. Governo Dutra Eurico Gaspar Dutra foi presidente, e assinou uma nova Constituição em 1946. Nela o Brasil se mantinha como República Federativa e respeitava os direitos adquiridos pelos trabalhadores após a Revolução de 1930. Embora quisesse manter uma constituição democrática, o governo Dutra se distanciava de seus princípios e novamente os sindicatos, além dos jovens que o criticavam, foram perseguidos. Por esta razão o governo de Eurico Gaspar Dutra tornou-se repressivo e antipopular. Com o fim do Estado Novo, cresceu o movimento operário que reivindicava liberdade sindical e o direito de greve. A repressão aos 21 movimentos foi mais dura que no período do Estado Novo. Mesmo assim, Dutra permaneceu no comando até 1951 com a eleição de Getúlio Vargas novamente na presidência. 1.3.4. O segundo governo de Vargas No segundo governo de Vargas tivemos a nacionalização das fontes de energia e combustíveis, além da exploração do petróleo com a criação da Petrobrás. A política de melhoria das condições de vida do trabalhador, levou as classes conservadoras, contra essa política, a se oporem ao governo de Getúlio. Muitos militares também demonstraram descontentamento com o governo. Em agosto de 1954 a situação política piorou muito. Militares consideravam a política desse período perigosa por atender e priorizar reivindicações de trabalhadores, operários e dar oportunidade de ação para o Partido Comunista. Só aumentava a revolta da oposição(Pedro, 2005). O suicídio de Getúlio foi decorrência dessa disputa política. Devido aos fatos ocorridos, para terminar o mandato de Vargas, assumiram a presidência: Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos. 1.3.5 Governo de Juscelino Kubitschek Uma nova eleição colocou no poder Juscelino Kubitschek, que só pode ser empossado com a intervenção do ministro da Guerra. Conservadores e militares tentaram anular o resultado da eleição que deu a vitória a Kubitschek. Juscelino elaborou um plano de metas contendo pelo menos trinta objetivos a serem alcançados em seu governo. Por isso criou o lema “Cinquenta anos de 22 desenvolvimento em cinco de governo”. Para que seus planos fossem atingidos, o mais importante era investir no desenvolvimento de dois setores: das indústrias de base e as de bem de consumo duráveis. Apesar dos investimentos, a política econômica vigente trouxe problemas como o aumento das diferenças econômicas entre a população do campo e a da cidade, em paralelo com a concentração do desenvolvimento na região sudeste maior que em outras áreas do país. 1.3.6. Jânio quadros Jânio foi eleito presidente do Brasil para o período de 1961 a 1965 com uma grande vitória justificada pela sua popularidade. Teve o apoio dos trabalhadores, de grupos mais conservadores da sociedade juntamente com a União Democrática Nacional (UDN), liderada por Carlos Lacerda. Janio Quadros prometeu acabar com a corrupção e por esta razão usou em sua campanha uma vassoura como símbolo com o intuito de “limpar” o Brasil da desonestidade. Após sua posse não tivemos o que foi prometido por Janio, que não apresentou o mesmo dinamismo da época de campanha e dessa forma perdia a simpatia popular (Santos, 1992:163). Assim, o historiador Pedro (2005:486) nos confirma: Sem um programa claro, Jânio confundia governar com punir, e administrar com proibir. Pautado por questões menores, não voltou a sua atenção para os grandes problemas nacionais. Estava mais preocupado em proibir corridas de cavalos nos dias de semana, biquínis nas praias e o uso do tradicional lança-perfume. Por outro lado, tomou medidas de caráter punitivo e vingativo contra getulistas e partidários de Juscelino, provavelmente atendendo à vontade dos políticos conservadores e reacionários da UDN. 23 O descontentamento contra o governo aumenta a cada dia. Mesmo assim, Janio apostava em sua política antipopular, que mais tarde resultou em uma crise política. A situação piorou muito, quando Janio fez do Brasil uma nação líder entre os países subdesenvolvidos e estabeleceu relações comerciais e diplomáticas com países socialistas. Até mesmo a UDN passou a criticar essas relações diplomáticas, e a comando de Carlos Lacerda iniciou uma intensa e forte campanha contra o governo. Em consequência Janio perdeu o apoio do congresso sentindo-se obrigado a renunciar seu cargo, de residente da República, após sete meses de mandato em 25 de agosto de 1961. Sem que houvesse qualquer movimento popular pedindo sua volta, o presidente da câmara, Ranieri Mazilli, assumiu a presidência da República até que João Goulart, vice-presidente de Janio assumisse o governo. Goulart já foi ministro do trabalho no governo de Getúlio Vargas e também vice-presidente de Juscelino Kubitschek. Em seu governo defendia uma política favorável à classe trabalhadora. Mais uma vez militares e conservadores também tentaram impedir sua posse, porém a tentativa foi em vão, nada conseguiram e Goulart tomou posse do governo, dando prosseguimento aos principais objetivos de diminuir a inflação, impedir que empresas estrangeiras enviassem para o exterior o lucro que ganhavam no Brasil, nacionalizar algumas empresas estrangeiras e por fim fazer uma reforma agrária. Intencionou por em prática as Reformas de Base, ou seja, um plano de desenvolvimento nacionalista. Embora houvesse intenção de aplicar seu plano, não foi possível sua realização. O governo não conseguiu controlar a desvalorização do dinheiro, alta inflação e as reivindicações dos operários para o aumento do salário. Descontentes com a situação, empresários, proprietários de terra, setores da classe média em parceria com militares, organizaram-se para a derrubada do presidente. Goulart podia contar com o apoio dos sindicatos dos trabalhadores, da União dos Estudantes (UNE), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do 24 Partido Socialista Brasileiro (PSB) e de comunistas, desde que executasse as reformas de base. A intensidade da agitação social e política nesse período era muito forte. Greves e manifestações nas ruas, tanto para apoiar, quanto para protestar contras as medidas do governo, tornavam-se frequentes. O Brasil tornou-se um país dividido em grupos de interesses opostos. Por causa dessa rivalidade houve a queda de João Goulart em 1964. 1.3.7. O golpe de 1964 No início de 1964, em 13 de março, Goulart anunciou algumas medidas importantes, como a nacionalização de algumas refinarias e a reforma agrária, em um comício no Rio de Janeiro. Dias depois, em São Paulo, seus opositores realizaram uma manifestação, a “Marcha da família com Deus pela Liberdade”. Esse evento aumentou o clima para uma intervenção militar. (Santos, 1992:165) A manifestação aconteceu no dia 31 de março de 1964, dando início a um novo período da história do Brasil. Militares assumiram o comando político do país (Santos, 1992:169); Humberto de Alencar Castelo Branco 1964 a 1967 Artur da Costa e Silva 1967 a 1969 Junta militar (exercendo a presidência de 31 de agosto 1969 a 30 de novembro por doença do presidente) Emílio Garrastazu Médici 1969 a 1974 25 Ernesto Geisel 1974 a 1979 João Baptista Figueiredo 1979 a 1985 As indicações justificavam-se pela necessidade de se combater o comunismo e a corrupção. Uma das características mais importante, valendo-se do ponto de vista político, foi o fortalecimento do governo federal. No novo regime os presidentes militares governavam por meio de Atos Institucionais (AI), ou seja, leis elaboradas pelo poder Executivo. Outra característica, tão importante, quanto marcante, foi o uso da força, da tortura e da repressão, marcadas pelas perseguições às pessoas que se opunham ao novo regime e aos que apoiaram as Reformas de Base e o governo de João Goulart, como aqueles que faziam parte da UNE, da Central Geral dos trabalhadores e outras organizações que tiveram seus líderes presos ou exilados pela ditadura. Marechal Castelo Branco, como primeiro governante adotou medidas como o AI-1. Foi eleito, em 1967, para substituir Castelo Branco, o Marechal Artur da Costa e Silva apresentando um governo com amplos poderes para: cassar mandatos, suspender direitos políticos, interferir na política dos Estados e municípios, além de suspender o direito de habeas corpus. Uma junta militar formada em 1969 por ministros do exército da Marinha e da Aeronáutica, assumiu o mandato de Costa e Silva que havia adoecido gravemente. Foi nessa época que ocorreram muitos protestos, manifestações estudantis e greves operárias contra toda ação do governo. Preocupados com essas manifestações da oposição, militares criaram uma nova constituição, instituindo o fim das imunidades parlamentares, prisão perpétua e pena de morte para os crimes políticos praticados pelos opositores do regime militar. Quem assumiu o governo após a junta militar foi o General Emílio Garrastazu Médici no período de 1969 a 1974. Durante esse período o 26 progresso extraordinário do governo ficou conhecido como “milagre econômico”. No entanto, esse milagre favoreceu apenas os industriais e parte da classe média. No governo Médici, a censura aos meios de comunicação impedia que se publicassem livros, jornais e revistas. Era uma forma de inibir as pessoas que tinham intenção de expressar suas opiniões contra o governo. Para dar continuidade ao trabalho de Médici, o General Ernesto Geisel assume em 1974 a presidência e não demorou para enfrentar dificuldades para dar continuidade no plano econômico, ou seja, o “milagre econômico”. Concomitantemente a esse fato, houve um forte movimento pela volta das liberdades democráticas, com a participação do Movimento Democrático Brasileiro, da igreja, dos sindicatos, dos estudantes, intelectuais, da imprensa e até mesmo políticos que apoiaram o movimento pondo em risco o governo Médici. Geisel assumiu o cargo da presidência até 1979, quando o General João Baptista Figueiredo foi empossado como novo presidente da República, enfrentando graves problemas econômicos e grande aumento da inflação. Em oposição a esses fatores negativos ao seu governo, o retorno gradativo à vida democrática foi um dos aspectos positivos de Figueiredo. Logo o país começou a viver uma nova república, uma nova constituição elaborada mais tarde em 1988 para garantir ao Brasil que se mantivesse num regime presidencialista e que o governante fosse eleito pelo povo. As reivindicações muitas vezes negadas pelos governos, nesta nova fase, foram atendidas, para o contentamento da população brasileira. Como relembra Mesquita a respeito desse período: O certo é que naquela noite calorenta de 04 de setembro de 1961, em Porto Alegre, a decisão de Goulart de aceitar tomar posse sob o parlamentarismo envolveu muito mais que seu futuro político, envolveu o destino do Brasil por muitas décadas. A construção do seu caminho à presidência, ainda que com poderes mutilados, exigiu muita habilidade. Mas, para chegar a essa conclusão conciliatória, Goulart estava levando as sementes da conspiração e do golpe para dentro de seu governo. Disse na ocasião: “Viajo para capital sem marcar 27 com o sangue generoso das famílias brasileiras as escadas que conduzem à Brasília (Mesquita, 2009:19). De acordo com Mesquita (2009:22): É certo que a maioria da oficialidade preferira, ao longo dos anos, não quebrar a ordem constitucional, mas havia outros princípios mais importantes para a instituição militar: a manutenção da ordem social, o respeito à hierarquia, o controle do comunismo. Quebrados esses princípios, a ordem se transformava em desordem, e a desordem justificava a intervenção. Para manter a ordem social e garantir melhorias para o país, houve a necessidade de um golpe de estado comandado por militares, dando início ao regime militar como forma de governo. 1.3.8. Cronologia do período da Ditadura Diante do contexto histórico exposto até aqui, é possível fazermos inúmeras analogias entre a realidade e a ficção. Podemos resumir os fatos históricos que tiveram destaque em “Os novos”, no seguinte cronograma: 1961 25/08 Renúncia de Jânio Quadros 30/08 Ministros militares declaram-se contrários à posse de João Goulart 02/09 Instituído o sistema parlamentar de governo como resultado do acordo que possibilitaria a posse do vice-presidente João Goulart 07/09 Posse de João Goulart 28 1964 17/01 Regulamentação da lei de remessa de lucros. 13/03 Comício da Central do Brasil ou “das reformas”. 19/03 Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade em São Paulo (SP), espécie de resposta ao Comício da central. 20/03 O chefe do Estado-Maior do Exército, general Castelo Branco, divulga circular reservada entre seus subordinados contra João Goulart. 21 a 29/03 9 “Marchas” da família, com Deus, pela Liberdade, em diversas cidades de São Paulo. 31/03 Inicia-se o movimento militar em Minas Gerais com deslocamento de tropas comandadas pelo general Mourão filho. 01/04 a 08/06 42 “Marchas” da Família, com Deus, pela Liberdade em São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Piauí , Paraná e Goiás. 02/04 João Goulart segue de Brasília pra Porto Alegre. De lá, sairia do Brasil. 02/04 General Costa e Silva autonomeia-se comandante-em-chefe do Exército nacional e organiza o “Comando Supremo da Revolução”. 04/04 O nome do general Castelo Branco é indicado para a Presidência da república pelos líderes do Golpe. 09/04 Decretado o Ato Institucional que confere ao presidente da República poderes para cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos até 15 de junho de 1964, entre outros poderes discricionários. 10/04 A sede da UNE é incendiada por participantes do movimento político militar. 13/04 O Diário Oficial publica decreto que extingue o mandato de todos os membros do conselho diretor da Universidade de Brasília. Ocorre uma invasão policial e a intervenção na UnB. Abril GPMI – Grupo Permanente de Mobilização Industrial – foi o primeiro de uma série de instrumentos gerados para adptar o poderio bélico das Forças Armadas à nova doutrina de segurança. 13/06 Criado o Serviço Nacional de Investigações (SNI). 27/10 Declarada a extinção da União nacional dos Estudantes (UNE). 09/11 Sancionada a Lei n. 4.464 (Lei Suplicy) proibindo atividades políticas estudantis. A Lei Suplicy de Lacerda coloca na ilegalidade a UNE e as UEEs, que passam a atuar na clandestinidade. Todas as instâncias da representação estudantil ficam submetidas ao MEC. 29 1965 Ato Institucional N.2 extingue os partidos existentes, atribui à Justiça Militar o julgamento de civis acusados de crimes contra a segurança nacional e confere ao presidente da república poderes para cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos até 15 de março de 1967, entre outros dispositivos. Início A UNE convoca um conselho para eleger, com mandato-tampão, o presidente que a chefiará até o 27o Congresso, em julho. Alberto Abissâmara, de tendências progressistas, é escolhido. 05/02 Ato Institucional N.3 estabelece eleição indireta para governadores. 01/04 No dia 1o, o Conselho Universitário, presidido pelo reitor Pedro Calmon, dissolve a diretoria do CACO – Centro Acadêmico de Direito UFRJ. 12/04 No dia 12, agentes do Dops e a Polícia Militar impedem com violência uma reunião do CACO – Centro Acadêmico de Direito UFRJ. As aulas são suspensas.Agosto Surgem os Diretórios Acadêmicos Livres. 23/09 São feitas manifestações contra a Lei Suplicy, no Rio de Janeiro. 03/10 O general Costa e Silva é eleito presidente da república pelo Congresso Nacional. 20/10 O general Castelo Branco decreta o recesso do Congresso Nacional até 22 de novembro em função da não aceitação de cassações. 1966 1966 a 1973 É o período da ilegalidade da UNE. Março Uma passeata em Belo Horizonte contra o regime militar é brutalmente reprimida. A violência desencadeia passeatas estudantis em outros estados. 28/07 a 02/08 Mesmo na ilegalidade, é realizado o XXVIII Congresso da UNE, em Belo Horizonte, que marca a oposição da entidade ao Acordo MEC-Usaid. O congresso acontece no porão da Igreja de São Francisco de Assis. O mineiro José Luís Moreira Guedes é eleito presidente da UNE. Setembro As aulas na Faculdade Nacional de Direito são suspensas e 178 estudantes paulistas são presos durante um congresso realizado pela UNE-UEE, em São Bernardo do Campo. O General Castelo Branco cria o Movimento Universitário para o 30 Desenvolvimento Econômico e Social (Mudes). 14/09 Alunos da Faculdade Nacional de Odontologia entram em greve de protesto e colocam cartazes nas imediações da faculdade. Há choque entre os estudantes e policiais do Dops. 18/09 A UNE decreta greve geral. 22/09 A UNE elege o dia 22 como o Dia Nacional de Luta contra a Ditadura. 23/09 A polícia invade a Faculdade de Medicina da UFRJ e expulsa estudantes com violência. O episódio ficou conhecido como o Massacre da Praia Vermelha. 1967 24/01 Promulgada a nova Constituição do Brasil. 11/03 O general Castelo Branco edita nova Lei de Segurança Nacional. 15/03 O general Costa e Silva é empossado na Presidência da República. Agosto É realizado o XXIX Congresso da UNE, em Valinhos (SP), na clandestinidade. Luís Travassos é eleito presidente da entidade. 1968 28/03 O estudante Edson Luís de Lima Souto é morto durante conflito com a PM no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro (RJ). 29/03 Marcha de 50 mil pessoas repudia o assassinato de Edson Luis de Lima Souto. 29/03 A UNE decreta greve geral dos estudantes. 30/03 O ministro da Justiça, Gama e Silva, determina a repressão das passeatas estudantis. 01/04 Inúmeras passeatas estudantis irrompem em várias capitais brasileiras. 22/05 Lei N. 5.439 estabelece responsabilidade criminal para menores de 18 anos envolvidos em ações contra a segurança nacional. 04/06 Sessenta e oito cidades são declaradas áreas de segurança nacional e, por isso, seus eleitores ficam impedidos de escolher pelo voto direto, os respectivos prefeitos. 21/06 Prisão de trezentas pessoas na Universidade federal do Rio de Janeiro. As aulas são suspensas. 25/06 O ministro da Justiça, Gama e Silva, proíbe passeatas e comícios - relâmpago. 31 26/06 Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro. 16/07 Greve de Osasco (SP) inicia-se com a ocupação da Cobrasma. 29/08 Invasão do campus da Universidade Federal de Minas Gerais por tropas federais. 30/08 Invasão do campus da Universidade de Brasília por tropas policiais resulta em violência. 02/10 Invasão do prédio da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) pelo Comando de Caça aos Comunistas e outros grupos. Outubro É realizado clandestinamente o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). 12/10 Prisão de estudantes em Ibiúna durante congresso da UNE. São presas mais de 700 pessoas, entre elas as principais lideranças do movimento estudantil: Luís Travassos (presidente eleito), Vladimir Palmeira, José Dirceu, Franklin Martins e Jean Marc Von Der Weid. 13/12 Ato Institucional N. 5 torna perenes os poderes discricionários que atribui ao presidente da República. O Congresso Nacional é posto em recesso. Com o decretado AI-5. Centros cívicos substituem os grêmios estudantis. 1969 Inicio A UNE tenta manter uma direção com a eleição de Jean Marc Von Der Weid através dos Congressinhos Regionais. 26/02 Decreto-Lei N.477 dispõe sobre infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino. Que penaliza professores, alunos e funcionários de estabelecimentos de ensino público (até 1973, esse decreto atingiria 263 pessoas, a maioria estudantes). 16/05 O Ato Institucional N. 10 , dentre outros efeitos, levaria centenas de professores universitários à aposentadoria. 01/07 Criação da Operação bandeirantes (Oban), embrião da polícia política conhecida como “sistema Codi-Doi” que seria implantada em todo o país nos moldes da Oban. 31/08 Junta Militar, formada pelos ministros militares, assume o poder em função da doença de Costa e Silva, impedindo a posse do vicepresidente da República, que não concordara com o Ato Institucional N.5. Setembro O presidente da UNE, Jean Marc Von Der Weid, é preso. 32 05/09 O Ato Institucional N. 14 estabele a pena de morte. 30/10 Posse do general Emílio Garrastazu Médice na presidência da República, já que fora caracterizada a incapacitação definitiva do general Costa e Silva. 1970 Inicio Com quase todas as lideranças presas ou exiladas, o movimento estudantil realiza atos isolados, dentre eles uma missa pelo segundo aniversário da morte de Edson Luís. 10/02 Estabelecimento da censura prévia de livros e revistas pelo decreto-lei N. 1.077. 20/05 Início das operações oficiais do CIE. 20/05 Decreto N.66.608 cria o centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa). 1971 30/03 Decreto N.68.447 reorganiza o Centro de Informações da Marinha (Cenimar). 07/09 Morte de Carlos Lamarca Novembro O governo passa a editar “decretos reservados”. 1972 Inicio A AP passa a denominar-se Ação Popular Marxista-Leninista (APML). O presidente da UNE, Honestino Guimarães, desaparece. 1973 30/03 Alexandre Vannucchi Leme, aluno da Universidade de São Paulo (USP), é preso e morto pelos militares. A missa em sua memória, realizada em 30 de março na Catedral da Sé, em São Paulo, é o primeiro grande movimento de massa desde 1968. 14/09 A Arena homologa o nome do general Ernesto Geisel como candidato à presidência da república. 1974 - Inicio O Colégio Eleitoral homologa o nome do general Ernesto Geisel para a presidência da República. É criado o Comitê de Defesa dos Presos Políticos na Universidade de São Paulo (USP). 1975 30/01 O ministro da justiça anuncia que continuam as atividades de 33 repressão ao comunismo e à subversão. 26/10 Anunciada a morte do Jornalista Vladimir Herzog em dependências do II Exército (SP). 1979 01/01 Extinção do AI-5. 15/03 Posse do general João Baptista de Oliveira Figueiredo como presidente. 28/08 Decretada a anistia pelo governo Figueiredo. 29/11 Fim do bipartidarismo 1980 27/08 Carta-bomba explode na sede da OAB e mata a secretária Lydia Monteiro. Desde janeiro diversas bombas explodiram ou foram encontradas no país. 1981 30/04 Integrantes do DOI do I Exército explodem acidentalmente uma bomba que planejam usar num atentado durante show de música no Rio Centro (RJ). 1983 Inicia-se uma campanha pelas eleições diretas para a Presidência da República. 1984 25/04 - A emenda constitucional restabelecendo as eleições diretas para presidente da República é derrotada no Congresso Nacional. 1985 15/01 Tancredo Neves e José Sarney vencem no Colégio Eleitoral a disputa com Paulo Maluf pela Presidência da República. 15/03 Posse do vice-presidente José Sarney na presidência da república em função de doença de Tancredo Neves. 21/04 Morte de Tancredo Neves. 1988 05/10 Promulgada nova Constituição da República definida pelo Congresso Nacional, mantendo no Título V e Capítulo I o estado de Defesa e do estado de Sítio, com restrições aos direitos de reunião, sigilo de correspondência e de comunicação, além de manter a proibição de sindicalização e greve aos militares. 34 2005 04/07 Criado pelo Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC o Memorial dos Direitos Humanos. Fonte: (http://www.sohistoria.com.br/ef2/ditadura/p3.php. Acesso em 13/08/12) 1.4. Sobre a obra A edição lida para análise é de 1984, cuja primeira edição foi publicada em 1971. A obra foi escrita em um momento em que a política do país passava por um período conturbado, influenciando muito a literatura da época. O período era de crise econômica, mas de tentativas de colocar em prática o milagre brasileiro, uma economia justa sem inflações e também de muita censura. Qualquer manifestação artística tinha de passar por órgãos responsáveis em analisar o conteúdo e informações apresentadas. Caso houvesse trechos ou mensagens que apresentassem conteúdo considerado subversivo, automaticamente eram proibidas as publicações. Luiz Vilela busca retratar temas cotidianos e de suma importância para análise e reflexão sobre o comportamento do homem em sociedade. Os novos, apresenta uma realidade sociopolítica e um período da história em que a expressão de liberdade artística necessitava de autorização para divulgação, muitas vezes proibida: “ .. . Ag u in a l do S i l va a c us o u o a u tor de “ pe rti n a z pr is ão de ve n tr e m enta l” . P ouc o d e p o is , no J or na l de Le tr as , H er al d o L is b oa obs er v a v a: “ Um s oc o em m uit a c o is a (c o nc e it os e p rec o nc e i tos ) , o l i vr o s e im põ e q u as e em f úri a. ( É p or is s o q ue o t em em ?)”... ” A lg u ns an os de p o is , Fa us t o C u nh a , n o J o rna l d o Br as i l , em um núm er o es p ec i al do s u p lem en t o Liv r o , d ed ic a do a os n o v os es c r it or es br as i le ir os , c om ent o u s o br e O s nov os : “É um rom anc e qu e , m ais di a m enos d ia , s er á d es c o b ert o e a prec i a do em to da a 35 s ua f or ç a. Su a g er aç ão ai n da nã o pr o du zi u n en h um a o br a c om o es s a , n a f ic ç ã o.” ( http://gpluizvilela.blogspot.com.br/p/noticias.html, 13/08/12) Os comentários feitos sobre Vilela, sobretudo em relação a sua ousadia, contribui para compreensão da relação entre a obra e nossa realidade. Por ser inspirado na revolução de 1964, não há como não fazer a comparação do romance com fatos históricos registrados. O Estado de Minas Gerais, onde nasceu Vilela, foi palco da revolução. Foi o estado em que muitas manifestações contra o regime militar aconteceram. Muitos estudantes foram presos pelos protestos contra o governo e pela imposição da ditadura militar. Assembleias foram realizadas pela população e por estudantes para que houvesse acordo de soltarem seus colegas universitários. Universidades ficaram fechadas ou foram invadidas por policiais para controlar as manifestações estudantis. Esta realidade é a mesma relatada por Vilela em sua ficção. Durante a leitura, não há como não nos imaginarmos no período em que ocorreu a ditadura militar. Esta obra pode ser considerada um dos registros históricos de uma triste realidade da nossa história recente. O romance apresenta o retrato de um grupo, que tem de tomar decisões sem que suas esperanças e sonhos sejam sufocados. Este grupo é composto por jovens escritores que viam na literatura a oportunidade para expressar seus anseios e sentimentos diante da situação social em que se encontravam. Porém enfrentavam com medo as represálias do governo da época. Economicamente, o grupo de jovens escritores apresentado na obra não pertence a uma classe social desfavorecida. Apresentam formação acadêmica ou ainda são universitários, além de outros cargos como o de bancário e professor universitário. É possível notarmos que o tempo da narrativa ocorre num período de doze meses, ou seja, os fatos são narrados mês a mês, destacando sempre as quatro estações. A narrativa começa com o encontro entre os amigos numa festa de Ano novo e termina novamente numa festa de Fim de ano. Muitos acontecimentos marcam o decorrer desse novo ano. Promessas são 36 cumpridas, apesar das dificuldades enfrentadas devido a um golpe militar, que parecia controlar até mesmo os pensamentos dos jovens. Cada uma das personagens apresenta sua rotina, mas todos têm algo em comum: a literatura. Essa amizade é mantida pela mesma razão, a intenção de escrever e poder publicar suas obras. O grupo de amigos já é conhecido devido a uma pequena publicação de uma revista intitulada Literatura. Por esta razão, tornaram-se conhecidos pelos contos e poesias publicados nessa revista. O intuito era tornarem-se grandes escritores. Embora houvesse essa vontade, perceberam que escrever não é uma tarefa fácil. As ideias eram muitas, mas sem dedicação. Seria praticamente impossível produzir algum texto. Cada um a sua maneira tentava dedicar-se às suas produções. Cada um com sua dificuldade em concluir sua obra. Dessa forma, Vilela retrata mês a mês como os jovens escritores encaminham e organizam-se em suas produções. Alguns insistindo na produção de contos, outros de poesia. No decorrer do novo ano, cada amigo tenta cumprir sua promessa: terminar sua obra. O choque de gerações é bem notável por meio do diálogo construído por Luiz Vilela, mas são os conselhos dos amigos mais velhos, supostamente mais experientes também, que servem de apoio aos jovens em suas caminhadas como escritor. Outro problema enfrentado pelos jovens escritores era a dificuldade encontrada para divulgar os textos escritos. Por causa da revolução de 64, muitos textos foram proibidos de serem divulgados por causa da censura. Os jovens enfrentaram muitas dificuldades até para discutir suas ideias. Publicamente temiam serem repreendidos. Encontravam-se com frequência em uma universidade Nei, Vitor, Dalva, Zé, os jovens escritores. Para que pudessem conversar livremente e pensar juntos na obra que queriam publicar, a casa de Vitor, um dos jovens, tornou-se a sede do grupo. Sempre que precisavam discutir algo que causasse medo, pela pressão da ditadura, reuniam-se nessa casa. Por horas conversavam, discutiam, mas 37 quase nada era resolvido pela dificuldade em entrar em comum acordo. Durante toda a obra são narrados os diversos encontros entre os amigos e o modo como transcorria essa interação. No diálogo construído por Vilela podemos perceber que a conversação é construída, conforme a situação de comunicação, que apresenta as características da linguagem de cada personagem. A construção do diálogo, nesse sentido, mostra-se como uma representação de nossa realidade linguística, como apresentaremos no terceiro capítulo desta pesquisa. 38 Capítulo II 2.1. A fala e a escrita A oralidade é a forma natural e também muito antiga da linguagem humana. Embora, “apesar da longevidade da língua falada diante da puerilidade da escrita, esta última tem-se constituído o principal centro de interesse dos estudos linguísticos ao longo de muitas décadas”. (Silva,2009:151) Não se sabe exatamente quando, com as contribuições a Análise da Conversação e da Sociolinguística, a oralidade passou a receber mais atenção por parte dos estudiosos. Mesmo assim, há insuficiência para uma distinção rígida entre pontos extremos que caracterizam a fala e a escrita.(Hilgert apud Silva,2009: 152) Não há como estabelecer critérios e chegar à conclusão de que a superioridade está relacionada a uma das modalidades da língua. A oralidade não é superior à escrita, tampouco a escrita superior a oralidade. Entretanto, definimos o homem como ser que fala e não um ser que escreve. Nem por isso consideramos a escrita uma representação da fala. Até mesmo porque a escrita não reproduz muitos fenômenos da fala como os gestos, os movimentos do corpo, dos olhos, etc. A fala e a escrita, como práticas sociais, possuem características próprias, mas não podem ser consideradas dois sistemas linguísticos. Diferem, por exemplo, no modo de realização: som (na fala) de um lado e grafia (na escrita) de outro, entre outras características. Considerada como uma manifestação da prática oral, a fala é aprendida naturalmente em situações informais, nas relações dialógicas e sociais do diaa-dia: “Mais do que uma decorrência de uma disposição biogenética, o aprendizado e o uso de uma língua natural é uma forma de inserção cultural e de socialização” (Marcuschi, 2007:18). Já a escrita é uma manifestação formal do letramento, ou seja, é adquirida institucionalmente em contextos formais, como por exemplo a escola. Por isso, a escrita mantém seu caráter de prestígio e um bem cultural muito desejado. O uso da escrita tornou-se tradição para 39 muitas sociedades. Por esta razão foi considerada por muito tempo superior à fala, o que não passa de um equívoco. Tanto a fala quanto a escrita são utilizadas em diferentes contextos sociais do cotidiano. São eles: o trabalho, a escola, a família, a vida burocrática e a atividade intelectual. Este fato, é enfatizado por Marcuschi: “fala e escrita são atividades comunicativas e práticas sociais situadas; em ambos os casos temos um uso real da língua” (Marcuschi, 2007:19). Oralidade e escrita são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas linguísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante (idem,17). Fávero (2005: 34-35), por seu turno tece as seguintes considerações: O texto conversacional é coerente: o problema é que como ele obedece a processos de ordem cognitiva, muitas vezes, se torna difícil detectar marcas linguísticas e discursivas dessa coerência, pois ela geralmente não se dá com base nessas marcas, mas na relação entre os referentes; daí a importância da noção de controle referencial estabelecida com base na organização tópica, e é por isso que o estudo do desenvolvimento dos tópicos vem adquirindo cada vez mais ênfase, possibilitando análises discursivas que envolvem um maior número de fatores. Muitos linguistas dedicaram-se a analisar as relações entre as duas modalidades de uso da língua sob a perspectiva da dicotomia, ou seja, a fala versus escrita: 40 De um lado, temos teóricos como Bernstein (1971), Labov (1972), Halliday (1985, uma primeira fase), Ochs (1979), representantes das dicotomias mais polarizadas e visão restrita. De outro lado temos outros autores como Chafe (1982, 1984, 1985), Tannen (1982,1985), Benveniste (1990), Halliday/Hasan (1989) que percebem as relações entre fala e escrita dentro de um continuum, seja tipológico ou da realidade cognitiva e social ( Marcuschi,2007: 27). O primeiro grupo defende basicamente o código. Tal dicotomia foi precursora das normas gramaticais ou prescritivismo de uma única norma linguística, considerada como padrão, isto é, a que originou hoje o que chamamos de norma culta. Já o segundo grupo afirma que a fala e a escrita são diferentes, embora a diferenças não sejam polares, mas graduais e contínuas. Vejamos as comparações e conclusões apresentadas por Marcuschi (2007: 45-46): as semelhanças são maiores dos que as diferenças tanto nos aspectos estritamente linguísticos quanto nos aspectos sociocomunicativos (as diferenças estão mais na ordem das preferências e condicionamentos); as relações de semelhanças e diferenças não são estanques nem dicotômicas, mas contínuas ou pelo menos graduais (considerando-se que o controle funcional do contínuo acha-se no plano discursivo); as relações podem ser mais bem compreendidas quando observadas no contínuo (ou na grade) dos gêneros textuais (que em boa medida se dão em relações de contrapartes, ocorrendo, em grau significativo, gêneros similares nas duas modalidades); muitas das características diferenciais atribuídas a uma das modalidades são propriedades da língua (por exemplo, contextualização/ descontextualização; envolvimento/ distanciamento); 41 não há qualquer diferença linguística notável que perpasse o contínuo de toda a produção falada ou de toda produção escrita, caracterizando uma das duas modalidades (pois as características não são categóricas nem exclusivas); tanto a fala como a escrita, em todas as suas formas de manifestação textual, são normatizadas (não se pode dizer que a fala não segue normas por ter enunciados incompletos ou por apresentar muitas hesitações, repetições e marcadores não lexicalizados); tanto a fala como a escrita não operam nem se constituem numa única dimensão expressiva mas são multissistêmicas (por exemplo, a fala serve-se da gestualidade, mímica, prosódia etc.; e a escrita seve-se da cor, tamanho, forma das letras e dos símbolos, como também de elementos logográficos, icônicos e pictóricos, entre outros, para fins expressivos); uma das características mais notáveis da escrita está na ordem ideológica da avaliação sociopolítica em sua relação com a fala e na maneira como nos apropriamos dela para estabelecer, manter e reproduzir relações de poder, não devendo ser tomada como intrinsecamente “libertária”. E vale destacar que a conversa se apresenta em níveis, mais formais ou menos formais, por isso presenciamos em diferentes situações linguagens diferentes, como a conversa do dia-a-dia de um lado e palestras e conferências de outro. Mas como objeto de estudo da análise da conversação temos as conversas informais, ou em outros termos, a conversação natural, sem artifícios, menos formal. Nessas condições fica fácil perceber as diferenças entre fala e escrita. Essas diferenças ocorrem dentro de um continuum tipológico, conceito de Marcuschi. É ele que nos aponta variação estrutural, lexical e sintáticas, variações essas que diferenciam a fala da escrita. Mesmo havendo correlações entre fala e escrita, o ato de escrever é muito diferente do ato de falar. E a grande diferença reside essencialmente no fato de o interlocutor estar presente na hora da fala e ausente no momento em que escrevemos. Como localizar para quem escrevemos? Quem nos lerá? De 42 que modo seremos interpretados? Será mesmo que nossa mensagem poderá ser decodificada? Essas questões representam nossas intenções no momento em que estamos redigindo um texto ou até mesmo depois de escrevê-lo. Quando falamos, qualquer problema na interpretação ou compreensão pode ser imediatamente retomado e solucionado por meio de uma interrupção de quem nos ouça; além do mais, quando conversamos ou somos ouvidos, outros componentes da "fala" formam um ambiente propício: gestos, expressões faciais, tons de voz que completam, modificam, reforçam o que dizemos. Silva (2009:153), fundamentado em Marcuschi, nos mostra com mais clareza, as relações entre a língua falada e língua escrita como um continnum. Apresenta os extremos da oralidade de um lado, e extremos da escrita de outro, embora ocorra a alternância entre as modalidades, conforme a situação de comunicação. Koch, 2006, (Cf. Negreiro, 2010:64), adota a mesma posição de Silva. Postula que fala e escrita pertencem ao mesmo sistema linguístico e constituem duas modalidades de uso da língua, cada qual com suas características específicas, sem que se possa pensar que a escrita seja mera transcrição da fala. Dessa forma acrescenta: O que se verifica, na verdade, é que existem textos escritos que se situam no contínuo, mais próximos ao polo da fala conversacional (bilhetes, cartas familiares, textos de humor, por exemplo), ao passo que existem textos falados que mais se aproximam do polo da escrita formal (conferências, entrevistas profissionais para altos cargos administrativos e outros), existindo, ainda, tipos mistos, além de muitos outros intermediários. (Cf. Negreiro, 2010:64) Em uma visão oposta à dicotomia e sob o ponto de vista sóciointeracional, Marcuschi (2007: 41) apresenta-nos: 43 Conforme o gráfico apresentado, entendemos o continnum como a relação estabelecida entre o prototípico da fala e o prototípico da escrita, segundo a situação de comunicação. Em consonância a essa posição, consideramos as palavras de Silva (2009:157): A “língua falada prototípica”, a língua falada propriamente dita, seria então uma atividade social verbal de produção de texto. É exercida oralmente, graças a um 44 sistema de sons articuláveis, no tempo real, em contextos naturais de produção, incluídos outros elementos de natureza corporal, que preenchem, em teoria, “todas as condições linguístico-textual-discursivas” concebidas para um texto falado. Em outras palavras, possui, do ponto de vista medial, caráter fônico, e do ponto de vista concepcional, as condições de comunicação, que vão permitir as “estratégias de formulação” e imprimir as “marcas de verbalização” ideais de um texto essencialmente falado. Por outro lado, a “língua escrita prototípica‟, a língua escrita propriamente dita, seria uma atividade social verbal de produção de texto. É executada graficamente, graças basicamente, a um sistema de letras articuláveis, chamado alfabeto, complementado por sinais de pontuação, de acentuação, numéricos, etc., que preenchem, em teoria, “todas as condições linguístico-textual-discursivas” concebidas para um texto gráfico e do ponto de vista concepcional, as condições de comunicação, que vão permitir as “estratégias de formulação” e imprimir as “marcas de verbalização” ideais de um texto essencialmente escrito. Neves (2009:21), porém, salienta que a realização das duas modalidades da língua, falada e escrita, diferenciam em quatro campos: “o campo do envolvimento interpessoal; o grau e a localização temporal do planejamento; a natureza dos procedimentos de formulação; as características da organização do texto”. Para a autora, a língua falada pode ser confundida com a conversação, já que a interação face a face é o veículo de comunicação mais usado na interação social em situações naturais. De acordo com a ideia de Neves, se considerarmos as funções da linguagem, veremos que a fala privilegia a função interpessoal, enquanto a escrita ativa privilegiadamente a ideia. A fala é motivada para orientar o ouvinte e a escrita para orientar a mensagem. Se passarmos, agora, a considerar a condição de produção, também encontraremos distinções entre a língua falada e a língua escrita. Há a presença do interlocutor para a realização de produção da fala, e a ausência de participação do ouvinte no ato de produção escrita. A produção da fala acontece em tempo real. Seu planejamento é simultâneo e conta para sua criação com recursos como os gestos, hesitações, 45 interrupções, inserções, correções, superposições, etc. Esses fenômenos são típicos da emissão oral. No entanto, a escrita pode ser elaborada e reparada com privacidade quando houver necessidade de correção do texto. Por este motivo, consideramos a escrita um produto planejado previamente com ênfase em como “dizer para bem dizer”. Para elucidar a relação entre a fala e a escrita, evitando distorções, é preciso considerar, portanto, a condição de produção, porque é ela que possibilita a realização de um evento comunicativo e distingue-se em cada uma das modalidades da língua, conforme Fávero (2005: 74), nos mostra no seguinte esquema: Fala Escrita ─ Interação face a face ─ interação à distância (espaço- temporal) ─ planejamento simultâneo ou quase à ─ planejamento anterior à produção. produção ─criação coletiva: administrada passo ─ criação individual a passo ─impossibilidade de apagamento ─possibilidade de revisar o texto ─ sem condições de consulta ─ consulta livre ─ a reformulação pode ser promovida ─ a reformulação é promovida apenas tanto pelo escritor pelo falante como pelo interlocutor ─ acesso imediato às reações do ─ sem possibilidade de acesso interlocutor imediato ─ o falante pode processar o texto, ─ o escritor pode processar o texto a redirecionando-o a partir das reações partir das possíveis reações do leitor do interlocutor 46 ─ o texto mostra todo o seu processo ─ o texto tende a esconder o seu processo de criação, mostrando apenas o resultado Fávero (2005: 72-73), apresenta-nos por meio de um esquema, os componentes necessários para que aconteça uma situação comunicativa, falada ou escrita: I – Papéis e características dos participantes A – Papéis comunicativos dos participantes 1- falante/ escritor 2- ouvinte/ leitor 3- audiência (facultativa) B – Características pessoais 1- estáveis: personalidade, interesses, crenças etc. 2- temporários: modos, emoções etc. C – Características do grupo: classe social, grupo étnico, sexo, idade, ocupação, educação etc. II – Relações entre os participantes A – No papel social: poder, status etc. B- Pessoais: preferências, respeito etc. C – Extensão do conhecimento partilhado: conhecimento de mundo e específico III - Contexto A – Físico B – Temporal C – Extensão espaço-temporal compartilhada pelos participantes IV – Propósito (finalidade do evento) A – Convencional B - Pessoal V – Tópico discursivo (assunto ou tema) 47 VI – Avaliação social A – Avaliação do evento comunicativo 1 – valores partilhados por toda a cultura 2 – valores retidos por subculturas ou indivíduos B – Atitudes do locutor em relação ao conteúdo 1- sentimentos, julgamentos, atitudes 2- tom ou modo 3- grau de comprometimento em relação ao conteúdo VII – Relação dos participantes com o texto: nível de envolvimento VII – Aspectos linguísticos e paralinguísticos A – Fala: 1- léxico-sintático 2- prosódico 3- paralinguístico B – Escrita 1- léxico-sintático Para findarmos as comparações realizadas até aqui entre as duas modalidades da língua, devemos considerar a natureza da concretização da produção. Na fala observamos marcas de não acabamento, enquanto na língua escrita, mesmo que provisoriamente, o texto apresenta-se, acabado. (Neves, 2009:77). A língua falada não é desorganizada como estamos habituados a ouvir. Ela possui uma gramática própria, utilizada pelos falantes que a aprendem por meio do uso diário. Por esta razão, essa organização textual e interacional, presente na fala costuma apresentar marcadores conversacionais. Em seu vocabulário pode ocorrer o aparecimento de algumas gírias, termos pejorativos, depreciativos, frases prontas e às vezes linguagem afetiva do falante (Preti, 2004:125). A distinção entre a fala e a escrita, como já mencionamos neste trabalho, está na “situação de comunicação”, e também, na relação estabelecida entre falante/ouvinte de um lado e escritor/ leitor de outro, 48 marcadas pela presença/ ausência dos recursos de produção face a face. Por isso, não podemos compreender a escrita como uma reprodução fidedigna da fala. Com base em estudos nas teorias de comunicação de Charaudeau (2010:72), todo ato de comunicação possui duas instâncias, a de recepção e a de produção. A instância de produção, responsável por fornecer informações, passa a assumir duas funções: a de fazer saber e de aumentar o interesse no consumo de informações. Já a instância de recepção está ligada diretamente a aceitação da informação, segundo seus consumidores. Todo ato de comunicação depende de uma situação de troca entre produção e recepção. Esta situação de comunicação compõe, assim, o quadro de referência comunicativo composto pelas restrições de espaço, de tempo, de palavras, ou seja, tudo que constitui valores simbólicos, mas de suma importância num contrato de comunicação, no qual qualquer indivíduo que queira se comunicar leve em consideração as restrições estabelecidas. Este contrato representa o acordo ou troca linguageira, perceptível nas características externas e internas dessa situação de troca, estabelecida numa espécie de “acordo prévio”. O processo de comunicação, antes considerado linear, somente emissão e recepção, passou a ser visto como um modelo circular, ou seja, o receptor não só compreende o emissor, mas também colabora na produção da mensagem. A comunicação pressupõe a interação e o saber ouvir. E por este motivo consideramos a conversação cotidiana, a conversação face a face um exemplo de interação. É o que podemos confirmar com as palavras de Bange (1983 apud Koch, 1995: 66): Se é exato que „falamos através de textos‟, isto é, se os discursos constituem de fato o objeto adequado da linguística; se, de outro lado, admitimos que a língua é um meio de resolver os problemas que se apresentam constantemente na vida social, então a conversação pode ser considerada a forma de base de organização da atividade de linguagem, já que ela é a forma da vida cotidiana, uma forma interativa, inseparável da situação. 49 Em amplo sentido, a conversação deve abranger não apenas os eventos cotidianos de comunicação, mas também as interações ocasionadas por motivos profissionais, como uma consulta médica, palestras, negócios, incluindo as que ocorrem no interior de instituições como a escola, o hospital, etc. 2.2. Análise da conversação A Análise da Conversação passou a ter destaque na década de 1960. Era baseada na linha da Etnometodologia, estudos relacionados às práticas do cotidiano e na Antropologia Cognitiva. Está centralizada no aspecto da ação e interação, pelo caráter dinâmico pelo qual a realidade é construída pelos próprios atores em diferentes interações sociais. Teve origem no interior da Sociologia Interacionista americana. Para a Etnometodologia é fundamental observar os fenômenos interacionais, bem como as conexões estruturais do processo interativo. Dessa maneira, segundo os princípios da Etnometodologia, os estudiosos da Análise da Conversação, buscam investigar a organização do texto conversacional. Hilgert (apud Mussalim, 2004:70), apresenta três níveis de estrutura conversacional: a) Macronível: estuda as fases conversacionais, que são abertura, fechamento e parte central e o tema central e subtemas da conversação; b) Nível médio: investiga o turno conversacional, a tomada de turnos, a sequência conversacional, os atos de fala e os marcadores conversacionais; 50 c) Micronível: analisa os elementos internos do ato de fala, que constituem sua estrutura sintática, lexical, fonológica e prosódica. O estudo da conversação é justificado pelas seguintes razões: a conversação é considerada a prática social mais comum do ser humano, tem papel importante na construção de identidades sociais e nas relações interpessoais, permite que se discuta sobre questões relacionadas à sistematicidade da língua em seu uso. Os primeiros a se dedicarem aos estudos ligados à Analise da Conversação foram os americanos Sachs, Schegloff, Jefferson entre outros. Dedicaram-se a explicar a estrutura da conversação em atividades sociais e o envolvimento entre os interlocutores. Por exemplo, as tomadas de turnos, o início, a manutenção e o encerramento da conversação (Koch,1995:67). Podemos entender como conversação toda e qualquer forma de interação verbal. Conversar é uma ação que realizamos desde o momento em que começamos falar e ocorre no dia-a-dia. Sempre estamos conversando com alguém. E por ser uma prática social em que o ser humano desenvolve identidades sociais, a preocupação em estudar a conversação recai sobre aspectos envolvidos na atividade conversacional, como conhecimento linguístico, paralinguístico e sociocultural. A Análise da Conversação tenta responder algumas questões relacionadas à conversa: como os falantes se entendem?, se compreendem?, como interagem utilizando seus conhecimentos linguísticos? Os estudos da Análise da Conversação somente são realizados com base em materiais empíricos, ou seja, a própria conversa como experiência. A conversação, segundo Levinson, (apud Marcuschi, 2007:7), base da aquisição da linguagem, é a qual somos expostos em nosso meio e a que não deixamos de utilizar depois de aprendida. Uma característica importante da conversação é a linguagem dialógica. Quando conversamos há momentos em que fazemos perguntas e respondemos a outras. 51 A conversação apresenta cinco características básicas em sua constituição: interação entre duas pessoas ou mais; ocorrência de pelo menos uma troca de falantes; sequência de ações coordenadas; execução em uma identidade temporal; interação centrada quando há envolvimento. Assim tece seus comentários (Dionísio apud Mussalim, 2004:70): é sugestivo, portanto, conceber a conversação como algo mais do que um simples fenômeno de uso da linguagem em que ativa o código. Ela é o exercício prático das potencialidades cognitivas do ser humano em suas relações interpessoais, tornando-se assim um dos melhores testes para organização e funcionamento da cognição da complexa atividade da comunicação humana. Neste contexto a língua é um dos tantos investimentos, mas não o único, o que permite uma análise de múltiplos fenômenos em seu entrecruzamento. (Dionísio apud Mussalim, 2004:70). A conversação pode ser observada como uma prática da evolução do homem, e por meio dela auxiliar nas relações sociais, embora apresente diferentes características de acordo com a situação em que ocorre: uma entrevista, uma conversa informal entre amigos, uma consulta, uma palestra, etc. Não é fácil explicar como aprendemos a falar, mas é curiosa a forma como aprendemos com facilidade o uso da língua na modalidade falada e a linguagem adequada à situação de comunicação. 2.3. Características organizacionais da conversação: turnos conversacionais A linguagem pode ser considerada “dialógica”, e é por este motivo que quando conversamos, frequentemente elaboramos perguntas e respostas ou então asserções e réplicas. 52 Observando atentamente a interação entre mãe e filho, vemos que desde cedo a mãe se dirige à criança atribuindo-lhe turnos, ou seja, a interação acontece dialogicamente. Aprendemos desde pequenos esse processo comunicativo em que turnos nos são atribuídos inerentes à atribuição de outros significados como o silêncio, que pode ocorrer num diálogo, mas não deixa de ser compreendido. Desde o nascer, convivemos com as regras básicas da conversação. Aprendemos com os mais velhos que devemos falar um de cada vez. Isso significa que devemos saber esperar o momento adequado para falar ou esperar por pausas, hesitações, entonações, uso de marcadores para a transição de um turno para outro. Este aprendizado é sistemático e cultural. O falante marca o fim de seu turno conversacional por meio de sinais conversacionais que indicam o término de sua fala. Somente dessa maneira o interlocutor compreende que pode dar início à sua fala (seu turno) e assume o papel de falante. Numa conversação há a alternância de papeis entre falante e ouvinte, para que não falem ao mesmo tempo e ocorra incompreensão entre as duas partes. Segundo a proposta de Marcuschi (2007:16), há dois tipos de organização de diálogo, mas apenas um deles apresenta propriamente o real sentido da conversação: o diálogo assimétrico e o simétrico. O primeiro é o diálogo pelo qual um dos participantes inicia, orienta, dirige a conversa e conclui a interação, exercendo pressão sobre o outro participante. O segundo é o diálogo simétrico, apresentando como característica o envolvimento entre interlocutores que possuem o mesmo direito de escolha e elaboração de seu turno. Para haver conversação, é importante que haja a circunstância ou contexto, e nela participantes envolvidos. A conversação também apresenta uma organização. Existe uma universalidade empírica da regra “fala um de cada vez”. Essa é a regra básica: falar um de cada vez e, assim, um espera o outro concluir e as falas são produzidas alternadamente. A produção do diálogo se dá na alternância de papeis entre falantes e ouvintes. Dessa maneira podemos caracterizar a conversação como uma série de turnos. 53 A noção de turno proposta por Sacks, Schegloff & Jefferson (apud Dionísio, 2004:79) abrange dois sentidos: de que todo locutor pode ter o direito de tomar a palavra e o sentido de unidade construcional, ou seja, no momento em que o indivíduo se torna o falante é ele quem tem de elaborar a fala. Baseando-se nesses sentidos propostos temos o turno conversacional. Marcuschi (2007:20) conceitua turno como “a produção de um falante enquanto ele está com a palavra, incluindo a possibilidade de silêncio”, e acrescenta que não considera como turno “a produção do ouvinte durante a fala de alguém, embora isto tenha repercussão sobre o que fala”. A tomada de turno é vista como um mecanismo-chave, ou seja, colabora muito na organização estrutural da conversação. Marcuschi evidencia que é comum uma conversação em que os interlocutores alternam-se em falante A e falante B. Assim temos: A-B-A-B. O falante A fala e para. B toma a palavra, fala e para. A retoma a palavra, fala e para. B volta a falar e para. Essa regra não pode ser considerada constante, pois existem outros momentos da conversação, como pausas, hesitações, lacunas e breves interrupções que alteram essa sequência. Embora sequências como A-B-A-B aconteçam com mais frequência. Por isso é comum ouvirmos pedidos para que respeitem a fala do outro, para que todos possam se entender. O turno é uma unidade central de organização conversacional. A tomada de turno não ocorre de modo caótico. A conversação é planejada localmente. Isto quer dizer que a interação é planejada e replanejada como um jogo de linguagem. É uma interação co-produtiva. A conversação inicia-se com um tópico de motivação para o encontro entre os interlocutores. No planejamento discursivo, ocorre, primeiro, o planejamento do tema, depois, a manutenção ou não da conversa. Por isso a conversa gira em torno de temas e assuntos como produtos de interação. Duas técnicas propostas por Schegloff & Jefferson (apud Marcuschi, 2007:20) evidenciam que essa organização tem caráter contextual. São elas: I- o falante corrente escolhe um falante próximo que toma a palavra e inicia um novo turno. 54 II- o falante corrente para, por isso o próximo falante, pela autoescolha, passa a obter ou não o turno. Não é demais repetir que as características de um texto conversacional diferem do texto escrito. O texto conversacional apresenta os seguintes elementos: o turno, o tópico discursivo, os marcadores conversacionais e os pares adjacentes (Siqueira, 2006:12). Compreendido por Fávero (2005:35-36), na conversação o turno é tomado como unidade básica, mas explicita que as falas dos interlocutores ocorrem por meio de mecanismos de tomada de turno, acompanhadas por propriedades provavelmente encontráveis em qualquer conversação. São elas: a) a troca de falantes recorre ou apenas ocorre; b) em qualquer turno, fala um de cada vez; c) ocorrências com mais de um falante por vez são comuns, as breves; d) transições de um turno a outro, sem intervalo e sobreposições, são comuns; longas pausas e sobreposições extensas são minoria; e) a ordem de turnos não é fixa, mas variável; f) o tamanho do turno não é fixo, mas variável; g) a extensão da conversação não é fixa nem previamente especificada; h) o que cada falante dirá não é fixo nem previamente especificado; i) a distribuição de turnos não é fixa; j) o número de participantes é variável; k) a fala pode ser contínua ou descontínua; l) são usadas técnicas de atribuição de turnos; m) são empregadas diversas unidades para construir turnos: lexema, sintagmas, sentenças, etc; n) certos mecanismos de reparação resolvem falhas ou violações nas tomadas. Na visão de Marcuschi, uma interação por meio da conversação, implica uma interação real, face a face ou não. As expectativas tendem a ser mútuas, 55 com objetivos bem definidos em relação ao tema. Por isso, todo evento de fala é criado conforme contexto situacional. É nesse evento de fala, após o início da interação, que os falantes devem agir com atenção para os fatos linguísticos (verbalizados) que se combinam com os sinais paralinguísticos: gestos, movimentos corporais, olhares. Com esses recursos, é possível manter e sustentar a conversação, conforme a participação do outro. Além da compreensão, os falantes compartilham conhecimentos comuns, aptidões cognitivas, como também o domínio da língua. Os marcadores metalinguísticos auxiliam e demonstram para os interlocutores o momento em que os falantes querem introduzir suas falas. São comuns para essas introduções frases como essas: “espera aí”, “deixa eu falar”, “é a minha vez”, “licença”, “um momento minha gente”... entre outras. A coerência conversacional é organizada por estratégias de formação e coordenação. Por isso as frases, ou seja, os turnos não são aleatórios. Os turnos representam uma sequência conversacional mantida por meio de tópicos. Citado por Galembeck (2003:67), tópico é tudo aquilo acerca de que se fala ou se discute. Os tópicos durante a conversação podem apresentar-se de forma simétrica ou assimétrica. Quando os interlocutores participam e contribuem para o desenvolvimento do tópico conversacional, a conversação ocorre seguindo uma simetria, ou seja, é como se os falantes tivessem o mesmo direito à fala e a manutenção dos tópicos. Porém, na conversação assimétrica, um dos interlocutores “ocupa a cena” e faz com que o outro participante apenas contribua com intervenções secundárias e demonstre com mais frequência que está seguindo e acompanhando as palavras do seu interlocutor. Expressões como estas: certo, uhn uhn, ahn ahn, são exemplos e demonstrações de que o ouvinte não participa do tópico, mas está atento à conversa. Tanto quanto os turnos, as pausas, os silêncios e as hesitações são importantes organizadores conversacionais, relevantes à transição de um turno a outro. Geralmente as hesitações ou pausas preenchidas ocorrem como momentos de planejamento e organização interno do turno e servem para dar tempo ao falante para se preparar. 56 As formas de manifestações das hesitações variam muito, mas é comum manifestarem-se como reduplicações de sons lexicalizados como os artigos e conjunções ou de sons não lexicalizados: ah,ah, eh, eh... 2.4. Reparaçoes e correções na conversação Em uma produção escrita, dispomos de mais tempo que na conversação. Ao ocorrer um equívoco é possível voltar atrás e fazer as correções necessárias, exluir os excessos e melhorar a qualidade do texto. Essas correções não são mostradas ao leitor no texto final. Na conversação, casos de reparações e correções são comuns. Por ser uma característica da fala, ocorrem em tempo real. O falante faz a autocorreção no mesmo turno em que ocorre a falha. Assim, evita que o erro não seja corrigido. Corrigimos a nós mesmos ou aos outros falantes com reparos sintáticos, lexicais, fonéticos, semânticos ou pragmáticos. Na escrita, isso não ocorre, pois o produto final tende a ser o resultado de revisões e correções. A esse processo damos o nome de mecanismo de correção (Marcuschi, 2007:29). Conforme Marcuschi (2007:29) há a seguinte tipologia para o mecanismo de correção: (a) autocorreção auto-iniciada: é a correção feita pelo próprio falante lofo após a falha; (b) autocorreção iniciada pelo outro: é a correção feita pelo falante, mas estimulada pelo seu parceiro ou por outro; (c) correção pelo outro e auto-iniciada: o falante inicia a correção, mas quem a faz é o parceiro; (d) correção pelo outro e iniciada pelo outro: o falante comete a falha e quem as corrige é o parceiro. As autocorreções auto-iniciadas são comuns ocorrem no mesmo turno em que surgem as falhas. As que são iniciadas pelo outro costumam aparecer 57 geralmente no terceiro turno quando o falante retoma a palavra para fazer a correção. Já nas correções pelo outro e iniciadas pelo outro costumam realizarse no turno subsequente ao turno em que ocorreu a falha. 2.5. Organização de sequências: pergunta e resposta Quando pensamos na conversação, logo imaginamos seus interlocutores alternando-se em turnos de fala em uma sequência para que fale um de cada vez e não haja sobreposições de vozes. Há na conversação uma organização dessas sequências que apresentam-se na maioria das vezes na interações entre os interlocutores como pergunta e resposta. Para falar da sequência pergunta-resposta, citaremos Silva( 2006: 261): É muito difícil imaginar uma conversação que não comece ou termine nem contenha perguntas e respostas. Em nosso dia-a-dia, utilizamos, ainda que inconscientemente, desse recurso conversacional inúmeras vezes. É tal a importância desse par dialógico que, quando utilizado à exaustão, leva o locutor a dizer (muitas vezes, com certo tom de aborrecimento) que está sendo alvo de algum inquérito e, quando não utilizado, leva o locutor a dizer que seu interlocutor não se interessa por ele ou pelo tópico desenvolvido. Diante das palavras de Silva, não causa estranheza afirmarmos que a conversação consiste numa série de turnos alternados que compõem sequências em movimentos coordenados e cooperativos. (Marcuschi, 2003:34) Algumas sequências apresentam estruturação padronizada, chamadas por Schegloff (1972 apud Marcuschi, 2007:35) de par adjacente ou par conversacional. Segundo o autor, há as seguintes combinações: pergunta- resposta; 58 ordem- execução; convite- aceitação/ recusa; cumprimento- cumprimento; xingamento- defesa/ revide; acusação- defesa/ justificativa; pedido de desculpa- perdão. O par pergunta- resposta (P- R) é uma das sequências conversacionais mais comum. É o que podemos confirmar com as palavras de Silva (2006:263): A sequência P- R não tem somente a função de coordenar os turnos, mas também apresenta propósitos e funções específicos. Quando uma pessoa faz uma indagação referencial, por exemplo, busca uma informação e pede ao interlocutor que coopere; este ao responder, mesmo que não saiba a informação pedida, demonstra seu desejo de cooperar e estabelecer a interação. Dessa forma, o par P-R ajuda a coordenar a fala por meio de uma série de obrigações recíprocas e pode apresentar variados propósitos na conversação: servir como abertura de uma conversação; iniciar, manter ou mudar o tópico; fechar a conversação. Uma pergunta pode ocorrer na forma comum: interrogativa direta, ou alternar-se para a forma indireta (Marcuschi, 2007:37): ─ quem sabe você me diz onde ele está. A resposta pode ser apresentada na forma interrogativa (Marcuschi, 2007:37): A: ficou satisfeita? B: que acha? (( num largo sorriso)) 59 Nem sempre uma pergunta tem intenção interrogativa (Marcuschi, 2007:37): ─ não comeu que chega hoje? ((equivalendo a uma ordem: pare de comer)) ─ vamos almoçar juntos? ((equivalendo a um convite)) ─ ainda não percebeu a cara dele? ((equivalendo a uma exortação)) Geralmente o par pergunta- resposta apresenta-se em dois tipos de perguntas: a) tipo sim- não b) sobre algo Referimo-nos a elas como perguntas abertas (sobre algo) versus perguntas fechadas (sim-não). As perguntas abertas ou informativas realizam-se com o uso de algum marcador: quem?, qual?,como?, onde?,quando?, etc. Já as perguntas do tipo sim-não restringem-se as essas alternativas como respostas. Embora percebamos notáveis variações, a preferência não é pelo sim como resposta, mas pela repetição do verbo ou algum elemento central da pergunta (Marcuschi, 2007:38): A: vai ao cinema? B: vou Em respostas afirmativas, é muito comum a preferência pela forma ecoica, principalmente com o uso do verbo (Marcuschi, 2003:37). Observe que além do uso do verbo para resposta, a forma elíptica, isto é, a supressão de sílabas ou letra, é frequente na oralidade. Também é muito comum na conversação os convites e propostas seguidos de aceitações. Porém em alguns casos os convites são realizados objetivando a negação. Nesse caso uma aceitação, por questões culturais, pode ser visto como falta de polidez. 60 A: você não quer mais um pedaço? A formulação de perguntas com negação, pode representar na conversação traços de polidez (Marcuschi, 2007:38): A: você não teria uma nota menor/ talvez cinco mil? B: não Casos de ofertas e convites em que a expectativa seja a resposta negativa, é comum a utilização da negação (Marcuschi, 2007:38): A: você não quer mais um pedaço? 2.6. Estratégias conversacionais Um corpus literário pode ser estudado de dois modos distintos: no plano estético, analisando as relações das personagens, tempo, espaço, narrador, período literário e por meio de uma análise linguística em que verificamos quais recursos foram utilizados pelo escritor na construção dos diálogos. Mesmo sendo um diálogo construído, ou para usar um termo proposto por Preti (2004:166), uma conversação literária, podemos verificar um modelo de um esquema conversacional natural, já internalizado por seu autor. Deste modo, podemos encontrar exemplos significativos de estratégias conversacionais, sendo que há, por parte do autor, um planejamento prévio para aproximar o texto escrito de um diálogo natural (Marinho, 2006:58). 61 Sendo assim, o texto literário pode nos servir como corpus para análise linguística e substituir as gravações feitas de interações face a face. Embora: não raro, recorremos à nossa memória para reproduzir estratégias discursivas ou a documentos escritos da mídia ou da literatura, para exemplificar nossas teorias. Assim, se fizermos um levantamento dos textos lingüísticos que tratam de problemas interacionais na língua falada, vamos encontrar um grande número de diálogos escritos publicados pela imprensa, transcrições de entrevistas, crônicas etc., bem como muitos textos literários, notadamente da prosa de ficção. (...) Quer dizer, podemos entender cada uma dessas fontes como repositórios de modelos falados, de esquemas de diálogos reais, guardados na memória de quem escreve com indicação, não raro, do que podemos chamar de estratégias conversacionais. (Marinho,2006:59). Com intenção de analisarmos as estratégias selecionadas por Luiz Vilela (1989), apresentaremos brevemente o levantamento teórico de algumas estratégias para justificar nossa análise no capítulo 3. Dessa forma, de modo claro, mostrar ao leitor como as estratégias conversacionais constituem táticas que os falantes desenvolvem para atingir determinadas necessidades na interação. 2.6.1. As gírias e a linguagem obscena Por meio do léxico é possível observarmos o dinamismo da língua, sua renovação e o modo como atende as necessidades da comunicação (Preti, 2010:79). Constituído por um conjunto de vocábulos memorizados por uma comunidade, o léxico passa a expressar a história dessa comunidade, sua estrutura e normas sociais que a regem. Por este motivo os vocábulos adquirem novos sentidos ao longo do tempo. 62 As palavras sofrem a influência das pressões sociais que ora mantém a tradição de uma “boa linguagem”, ora se rendem a aceitação de novos vocábulos. Conforme Preti (2010:81): Sob a perspectiva moral,por exemplo, as frágeis linhas que marcam os limites dos “bons costumes”, cujos conceitos continuamente se renovam dentro de uma comunidade, são transportadas para o campo do léxico. Formas vulgares se incorporam à fala culta ou vice-versa. A vida das palavras torna-se um reflexo da vida social e, em nome de uma ética vigente, proibemse ou liberam-se palavras, processam-se julgamentos de “bons” ou “maus” termos, apropriados ou inadequados aos amis variados contextos. E tabus linguísticos aparecem como decorrência de tabus sociais. A respeito disso, podemos analisar os vocábulos sob enfoques diversificados: oobsceno e o gírio. Os termos obcenos não são exclusividade de uma classe social menos culta como estávamos acostumados a imaginar, nobres e cultos também os utilizam quando querem acreditam necessário para ofender ou agredir verbalmente o interlocutor em determinada situação. É a situação (condições extraverbais que cercam o ato de fala) que nos permitirá distinguir o que vulgarmente costuma chamar-se de “palavrão”, utilizado como blasfêmea ou injúria. E, nesse caso, podemos falar de uma linguagem obscena propriamente dita, com um rol de vocábulos mais ou menos fixos através dos tempos e que, por constituírem tabus linguísticos, se vêm mantendo quase sem alteração. Boa parte deles já não evoca no falante ou no ouvinte o sentido original e primitivo dos termos, permanecendo apenas a consciência do valor injurioso ou blasfematório, a função depreciativa do significado (Preti, 2010:86). 63 Em nosso cotidiano, na linguagem falada, a gíria tornou-se um recurso de aproximação entre os interlocutores como uma forma de quebrar a formalidade e forçar uma interação mais próxima das pessoas que dialogam. As gírias, características frequentes na conversação, podem ser encontradas com facilidade em diferentes meios comunicativos, até mesmo na imprensa falada ou escrita. Seu uso estendeu-se à várias camadas da população, mas acreditava-se que a linguagem gíria era específica de deternimadas comunidades, porém tornou-se comum em diferentes grupos sociais e utilizada conforme o estilo do falante. Classificamos as gírias como um “fenômeno tipicamente sociolinguístico”, ou seja, é possível compreendermos os usos gírios como um acontecimento relacionado as situações sociais presentes na vida dos falantes. As gírias podem ser estudadas sob duas perspectivas: a primeira como gíria de grupo, isto é, que pertencem a um vocabulário de grupos sociais restritos cujos usos se afastam ou causam estranheza da maioria pelo “conflito que estabelecem com a sociedade” (Preti, 2004: 66). A segunda perspectiva é a da gíria comum, que se preocupa em estudar a “vulgarização do fenômeno”. A gíria torna-se conhecida e passa a fazer parte do vocabulário popular, perdendo sua identificação inicial, pois deixa de ser restrita e é usada por toda a sociedade. Quando considerada como linguagem de grupo, as gírias podem representar características da personalidade dos falantes, e acabam demonstrando pelo vocabulário usado, a que grupo pertence. Para muitos, a forma como usam a linguagem gíria, é tão importante quanto a roupa que vestem, representam seu estilo. Não seria adequado proibir a linguagem gíria, mas seu uso pode ser restrito ao contexto, à situação de interação. Não é em qualquer interação, com qualquer interlocutor que podemos usar o vocabulário gírio. Há momentos que essa linguagem poderá ser substituída por outra menos popular, mais informal, conforme estipulado pelo contexto interacional. Com o objetivo de compreensão por meio da comunicação, faz-se necessário que a linguagem seja acessível a todos. Por esta razão, a gíria de 64 grupo faz com que haja mais dificuldade de entendimento entre os falantes, o que aconteceria com menor frequência com a gíria comum. O uso de gírias não está relacionado à escolaridade do falante. Em todos os níveis sociais, há a presença de vocábulos gírios. Eles estão presentes nas interações entre interlocutores, independente classe da social, mas nas muitas situações em que se envolvem. (Preti, 2004: 66). Frequentemente nos perguntamos sobre as razões do uso das gírias, mais presentes na fala do que na escrita. Em Preti encontramos em uma citação a resposta para a seguinte questão: “Por que se usa gíria, hoje, na conversação?” (Preti, 2004: 70): A maior abertura democrática da sociedade moderna, particularmente na América (e portanto, no Brasil), fortaleceu os meios de expressão populares, como a gíria. O choque que ela nos provocava algumas décadas atrás foi substituído por uma convivência pacífica com a linguagem culta (porque, também, os falantes cultos usam gíria na sua conversação natural). Vocabulário ágil, não raro agressivo, a gíria passou a refletir, na sua efemeridade, na alteração constante de seus significados, a própria instabilidade e dinâmica do mundo contemporâneo, marcado pela mudança veloz de seus valores, pela competição e agressividade. O vocabulário gírio, com seu humor, sua ironia, seu poder agressivo (quando não injurioso), cumpre, também, o papel de um verdadeiro processo de catarse, de purgação para o homem moderno, que nele encontra uma das formas de defender-se das injustiças sociais, atacando-as no conservadorismo de sua linguagem, para compensar sua revolta e frustração. Hoje, simplesmente não é possível ignorar a gíria e sua ligação direta com a vida, particularmente na cidade grande. Muito menos atribuir, inocentemente, sua presença na conversação a deficiências de leitura e escolarização, porque a gíria passou a constituir uma opção a mais em nosso repertório linguístico, um recurso muito expressivo para a representação de nossos sentimentos e de uma visão crítica do mundo em que vivemos. 65 Podemos entender as gírias como uma opção de uso para tornar a relação entre os interlocutores mais agradável. A conversação se torna mais íntima, mais próxima e menos tensa, garantindo a compreensão e a interação entre eles. 2.6.2. Ironia na fala É impossível confirmarmos a existência de uma regra ou definição de ironia que explique todos os fenômenos irônicos. São diversas as situações observadas em que a ironia se faz presente. Por exemplo, é o que ocorre em situações em que o destinatário tem a necessidade de distinguir no discurso do enunciador o que é explicitamente dito e o que é entendido por detrás do discurso. Não existe apenas uma única definição de ironia que explique todos os fenômenos irônicos, embora seja comum situações em que se coloca o destinatário numa posição em que precisa distinguir o que é explicitamente dito e qual era a real intenção por detrás do discurso. Alguns estudiosos apresentam algumas características básicas para explicar a enunciação irônica. Uma delas consiste na dissociação entre o que é dito e o que é entendido, podendo ocorrer às vezes uma certa contradição. Outra característica, apesar da contradição, consiste na relação entre o que é dito e o que se pensa. O interlocutor intérprete busca entender o que o locutor realmente pensa, mas dito de forma contrária. Por fim, a última característica encontrada sobre este tema expressa geralmente uma apreciação positiva, mascarando uma apreciação negativa (Silva,2009:91). “Decidir o que é ironia implica, na realidade uma certa concepção de sentido, da atividade de fala ou da subjetividade” (Viana, 2011:69-70). 66 2.6.3. Presevação da face Em uma interação, cada um dos interlocutores buscam manter sua autoimagem pública e cooperam um com o outro para que a interação ocorra de modo eficaz. Como tece Marinho (2006:66): Em uma conversação, é comum os interactantes cooperarem para a manutenção da face do outro, havendo uma espécie de acordo tácito entre eles. Assim, normalmente, a face de uma pessoa é mantida quando a face da outra que interage é mantida. Cada participante, em uma interação, pode ameaçar ou não a face um do outro na tentativa de preservar cada um a sua imagem social, na perspectiva da existência de um “eu” e de um “tu”. O modo como cada interlocutor se apresenta é o que Goffman define como face. O conceito proposto por ele consiste na visão que o falante tem de si no momento do “embate comunicativo” (Santos, 2007:50). Tal conceito pode ser definido como o valor que o falante cobra de si. “ A face é algo em que há investimento emocional e que pode ser perdida, mantida ou intensificada e tem que ser constantemente cuidada numa interação (Reis, 2011:99) Para Goffman (apud Marinho, 2006:66-67) “a face é definida por meio de atributos sociais aprovados, podendo ser compartilhada por outras pessoas, como por exemplo, quando uma pessoa enaltece sua profissão, religião ou seus próprios méritos. A esse respeito Goffman (apud Santos, 2007:50) criou o conceito de face positiva, representada pela imagem que o “eu” pretende passar aos outros, e a face negativa, representada pela intimidade, aquela face que se deseja ter preservada. Brown & Levinson (1978:6, apud Marinho, 2006:69) assim elucidam as faces negativa e positiva: 67 1. face negativa: a reivindicação básica a territórios, proteções pessoais, direitos a não-distração, isto é, liberdade de ação e liberdade para imposição; 2. face positiva: a auto-imagem positiva consistente ou “personalidade” (crucialmente incluindo o desejo de que essa auto-imagem seja apreciada e aprovada) reivindicada pelos interactantes. Por meio do uso de algumas estratégias conversacionais os falantes mantém a preservação da face, seja ela positiva ou negativa. Diante do exposto até aqui, é que observaremos no corpus selecionado “Os novos”, no capítulo III o conceito de face apresentado na intenção de comunicação criada por Luiz Vilela. 2.7. Marcadores conversacionais interativos Convém lembrarmos que não podemos utilizar as mesmas unidades sintáticas da conversação para a língua escrita. Na conversação obedecemos a princípios comunicativos, não somente a princípios sintáticos. Observando a conversação transcrita abaixo, é possível perceber a ocorrência de alguns recursos característicos da fala (Dionísio, 2004:88) 10 Inf.M 11 eu acho que tem ...não apenas a a mulher normalmente é mais: mais delicada [tem sentimento 12 Doc. [uhrum 13 Inf.M essa coisa...não é? 14 Doc. é exato 15 Inf.M no todo...não é? 16 Doc. sim de forma genérica 17 Inf.M a a a mulher tem mais sensibilidade ...não é? 18 Doc. uhrum 68 19 Inf.M tem mais: a educação mais apurada... não é? 20 Doc. certo 21 Inf.M e: tem mais sensibilidade pra coisas be:las en en entendeu? O emprego de não é? , entendeu?, no final dos turnos da informante, é uma forma do falante interagir com sua interlocutora, que por sua vez, demonstra participar da conversação utilizando expressões não-lexicalizadas “uhrum” , ou expressões estereotipadas, sinalizando convergência, “é exato”, “sim”, “certo”. Esses recursos são conhecidos como marcadores conversacionais. São esses elementos, muito típicos da fala, que não integram conteúdo cognitivo, mas exercem significação discursivo- interacional. (Dionísio, 2004: 88) Marcador conversacional é uma expressão que serve para nomear não só os elementos verbais, mas também os prosódicos e não-linguísticos. Todos estes elementos exercem função interacional. Por isso podem ser produzidos ora pelo falante, ora pelo ouvinte. Said Ali, em 1930, deu início a uma visão pioneira desses elementos, antes denominados de “expressões de situação”, afirmando sobre os marcadores (Urbano, 2003: 99): ─ se trata de palavras, expressões ou frases, típicas da língua falada, e em particular da conversação espontânea; ─ parecem, mas não são, descartáveis, discursivamente falando; ─ são alheias, talvez, à parte informativa; ─ entretanto funcionam como expressões das intenções conversacionais do falante; ─ são determinadas pela situação faca a face dos interlocutores. Os marcadores do texto conversacional apresentam funções conversacionais e sintáticas, conforme Urbano nos apresenta: 69 São, na realidade, elementos que ajudam a construir e a dar coesão e coerência ao texto falado, especialmente dentro do enfoque conversacional. Nesse sentido, funcionam como articuladores não só das unidades cognitivoinformativas do texto como também dos seus interlocutores, revelando e marcando, de uma forma ou de outra, as condições de produção do texto, naquilo que ela, a produção, representa de interacional e pragmático. Em outras palavras, são elementos que amarram o texto não só como estrutura verbal cognitiva, mas também como estrutura de interação interpessoal. Por marcarem sempre alguma função interacional na conversação, são denominados marcadores conversacionais (2003: 98). As classes dos marcadores podem ser subdivididas em três tipos: verbais, não-verbais (ou paralinguísticos) e supra -segmentais (ou prosódicos). Todos exercem a função de “elo de ligação entre unidades comunicativas e de orientadores dos falantes entre si” (Marcuschi, 2007: 61). Os marcadores conversacionais verbais constituem uma classe de palavras ou expressões estereotipadas apresentando grande ocorrência e recorrência. Porém não acrescentam novas informações para o desenvolvimento do tópico. Temos uma subdivisão em quatro grupos. Fávero (2005:45) é quem nos apresenta essa sistematização de marcadores verbais elaborada por Marcuschi: marcador simples: Ex. agora, então, aí, entende, claro, exatamente. São realizados com uma só palavra. Pode ser interjeição, advérbio, verbo, adjetivo, conjunção, pronome etc. marcador composto: Ex. então daí, aí depois, quer dizer, sim mas ,bom mas aí, tudo bem mas, digamos assim. Apresenta tendência a cristalização e caráter sintagmático. Marcador oracional: são aquelas pequenas orações que aparecem em diferentes tempos e formas verbais (assertivo, indagativo, exclamativo). Como exemplo citamos: eu acho que, quer dizer, então eu acho, não mais sabe, porque eu acho que. 70 Marcador prosódico: são aqueles realizados por meio de recursos prosódicos: a entonação, pausa, hesitação, o tom de voz etc. Dando sequência à classe dos marcadores, temos os recursos nãoverbais. São essenciais em uma interação face a face para manter ou regular o contato entre os falantes e ocorrem por meio da gesticulação, de risos, olhares etc. São os movimentos realizados no momento da interação. Por fim, finalizamos a classe dos marcadores, os recursos suprasegmentais. São de natureza linguística, porém não apresentam caráter verbal, mas abrangem contornos entonacionais ascendentes, descendentes, constantes ou por meio de ritmos, da velocidade, de alongamento de vogais, de pausas e tom de voz. Geralmente podem surgir no início das unidades comunicativas, mas são frequentes as ocorrências no final das unidades. Na oralidade, os textos são planejados e verbalizados ao mesmo tempo, isto significar dizer, que sua produção é local e coproduzida no momento da interação. Deste modo, é comum por parte dos interlocutores, usarem marcadores conversacionais em qualquer momento da interação, marcadores empregados, “desempenhando funções conversacionais e sintáticas”, podendo aparecer em diferentes posições: no começo, no meio ou no fim de um turno ou uma unidade comunicativa (Mussalim, 2004: 88). Entende-se aqui a unidade comunicativa “como substituto conversacional para frase, ou seja, é a expressão de um conteúdo que pode dar-se, mas não necessariamente, numa unidade sintática tipo frase” (Marcuschi, 2007:62). Sintaticamente os marcadores são responsáveis pela sintaxe da interação, pela segmentação e encadeamento de estruturas linguísticas. O poder comunicativo desses sinais é tão grande, que um ouvinte, mesmo que entenda mal uma língua ou o assunto, consegue sustentar a conversação emitindo adequadamente os sinais do ouvinte. Os sinais verbais podem ser divididos, em relação às funções conversacionais, em dois grupos: sinais do falante e sinais do ouvinte: a) Sinais produzidos pelo falante, que servem para sustentar o turno, preencher pausas, dar tempo à organização do pensamento, monitorar o ouvinte, explicitar intenções, nomear e referir ações, marcar comunicativamente 71 unidades temáticas, indicar o início e o final de uma asserção, dúvida ou indagação, avisar, antecipar ou anunciar o que será dito, eliminar posições anteriores, corrigir-se, auto-interpretar-se, reorganizar e reorientar o discurso etc; b) Sinais produzidos pelo ouvinte durante o turno do interlocutor e geralmente em sobreposição, que servem para orientar o falante e monitorá-lo quanto à recepção. Aos sinais de concordância como ahã, sim, claro, o falante pode animar-se; aos sinais de discordância como não, impossível, o falante pode reformular-se ou acrescentar algo mais; sinais como diga, diga promovem uma exploração adicional do tópico, e assim por diante. Marcam a posição pessoal do ouvinte localmente, encorajam, desencorajam, solicitam esclarecimento e não têm apenas uma função fática ou algo semelhante (Dionísio,2004:89). Como sabemos, os sinais conversacionais verbais orientam numa interação o falante e o ouvinte, conforme podem ser observados no quadro apresentado por Marcuschi (2007:68) a seguir: 72 Com base nas informações apresentadas no quadro dos sinais conversacionais verbais, podemos compreender mais facilmente formas, funções e posições dos marcadores conversacionais. Deste modo, temos os sinais de tomada de turno, representados pelas expressões típicas, para cada situação, como iniciar uma resposta: olhe, certo, entendi,boa ideia, indicar uma disjunção ou desalinhamento: bem; introduzir uma opinião ou marcar um endosso: é isso, boa Idea, retomar um tópico: em relação a isso, voltando ao tema, marcar uma digressão: a propósito, adiar um tópico:depois a gente volta a isso e por fim os marcadores de deslocamento: antes que me esqueça. Temos sinais de sustentação de turno. Geralmente aparecem em final de unidades comunicativas na forma indagativa, como viu? entende? sabe? correto?, para que o falante possa manter a palavra. Comumente em finais de turno, temos os sinais de saída ou entrega de turno, marcadas preferencialmente expressões indagativas como né? viu? Entendeu?, é isso aí, o que você acha? 2.7.1. Formas de tratamento na conversação Segundo Cunha e Lindley Cintra (1985: 282) os pronomes de tratamento podem ser definidos como “certas palavras e locuções que valem por verdadeiros pronomes pessoais, como: você, o senhor, Vossa Excelência”. Em consonância com os autores, Silva (2003:169) acrescenta mais: “trata-se de pronomes com os quais se estabelece uma relação direta entre falantes e ouvintes expressando distanciamento ou não entre eles”. Entendemos que as formas de tratamento englobam expressões disponíveis aos usuários da língua para referir-se ao seu interlocutor. Fazem parte dessas formas de tratamento os pronomes pessoais e as formas nominais, que aparecem como sintagmas nominais empregados em função de vocativo. 73 Temos uma divisão em três níveis do sistema de tratamento: Em português, o sistema de tratamento pode ser representado: 1) por formas pronominais, ou seja, pelos pronomes pessoais (tu, vós); 2) por formas pronominalizadas, isto é, com valor de pronomes pessoais (você, o senhor, Vossa Excelência e suas variações); 3) por formas nominais, constituídas por nomes próprios, prenomes, nomes de parentesco ou equivalentes, antecedidos de artigo, uso praticamente restrito ao português de Portugal ou, ainda, por uma grande variedade de nomes empregados como vocativos ou formas de chamamento (Silva, 2003:170). Nesta pesquisa, pretendemos fazer o levantamento de formas de tratamento que o usuário da língua emprega para se dirigir ou se referir à outra pessoa. Neste trabalho, portanto, nosso foco será para a forma de tratamento utilizada com frequência pelas personagens da obra, de acordo com o grau de intimidade demonstrado na relação entre os jovens amigos. Dessa forma estabelecemos em quatro níveis as formas de tratamento (Silva, 2003:171): 1. Formas pronominalizadas no sentido que Cunha e Lindley Cintra (1985) dão aos pronomes de tratamento, isto é, palavras e expressões que equivalem a verdadeiros pronomes de tratamento. Neves (2000: 449) não se refere propriamente a pronomes de tratamento, mas a pronomes pessoais e enfatiza suas funções básicas (expressões referenciais que representam, na estrutura formal dos enunciados, os interlocutores que se alternam na enunciação): a) primeira pessoa: aquela de quem parte o discurso, e que só aparece no enunciado quando o locutor faz referência a si mesmo (auto-referência);, b) segunda pessoa: aquela a quem se dirige o discurso, e que só aparece no enunciado quando o locutor se dirige a ela; c) terceira pessoa: aquela sobre a qual é o discurso. Isso implica que há dois eixos envolvidos: 74 um eixo subjetivo, que abriga as pessoas implicadas na interação verbal, isto é, as pessoas que têm papel discursivo, e que são locutor (a primeira pessoa) e o alocutário, ou receptor (a segunda pessoa). Incluímos as formas você, o senhor, a senhora no âmbito subjetivo; um eixo não-subjetivo, que abriga as pessoas ou coisas não implicadas na interação verbal, que são as entidades a que se faz referência na fala ( a terceira pessoa, também chamada de nãopessoa). 2. Formas nominais, constituídas por nomes próprios, nomes de parentesco, nomes de funções sempre empregados no eixo subjetivo, indicando a pessoa com quem se fala. Nesses casos, a forma nominal pode ser substituída por você/ o senhor. 3. Formas vocativas, isto é, palavras desligadas da estrutura argumental do enunciado e usadas para designar ou chamar a pessoa com quem se fala. Normalmente, essas formas são acompanhadas por pronomes pessoais explícitos ou implícitos. 4. Outras formas referenciais, isto é, palavras usadas como referência à pessoa de quem se fala, portanto engloba o eixo não-subjetivo. 2.7.2. Situação de comunicação De acordo com teorias interacionistas, os enunciados não podem ser analisados independentes do contexto, pois estão relacionados à interação ligada a situação de comunicação dos falantes. Conforme o contexto, em que se interage por meio do diálogo, os interlocutores reagem de modo diferente e utilizam diversas estratégias conversacionais para o momento. Para que a situação comunicativa seja realizada com sucesso, faz-se necessária a compreensão de alguns elementos: o lugar, o objetivo e os participantes. O local, conhecido também como o quadro espacial, pode ser considerado o espaço físico onde ocorrem as interações. 75 Os objetivos para que haja uma interação são diversificados, embora tenhamos objetivos mais globais, uma consulta por exemplo. São comuns encontros casuais com interações gratuitas, nas quais as interações são de natureza mais relacional, em que se fala por falar (Orecchioni, 2006:25-26). 2.8. Tratamento dos dados orais O corpus da Análise da Conversação é constituído pelas conversações produzidas em situações naturais. Para que sejam analisadas fazem-se necessárias gravações ou filmagens para que uma transcrição possa ser realizada com maior proximidade da realidade linguística. “Não existe a melhor transcrição. Todas são mais ou menos boas. O essencial é que o analista saiba quais os seus objetivos e não deixe de assinalar o que lhe convém. De modo geral, a transcrição deve ser limpa e legível.” (Marcuschi,2007:9) Nestes textos, seguem as normas e orientações do Projeto de Estudos Coordenados da Norma Urbana Linguística Culta (Projeto NURC): Quadro de normas para transcrição (Preti, 2003:13-14) Ocorrências Incompreensão de palavras Sinais Exemplificações ( ) ou segmentos Hipóteses do que se ouviu do nível de renda...( ) nível de renda nominal... (hipótese) (estou) meio preocupado (com o gravador) Truncamento (havendo homografia, usa-se acento / e comé/ e reinicia indicativo da tônica e/ou timbre) Entonação enfática porque as pessoas reTÊM Maiúscula Prolongamento de vogal e moeda ao emprestarem os... éh ::: ...o 76 consoante (como s,r) :: podendo aumentar para dinheiro :::: ou para mais Silabação por motivo tran-sa-ção _ Interrogação e o Banco...Central...certo? ? Qualquer pausa são três os motivos...ou três ... razões ...que fazem com que se retenha moeda...existe uma...retenção Comentários descritivos do transcritor ((minúscula)) Comentários que quebram a sequência temática da ((tossiu)) ...a demanda de moeda - - vamos -- -- dar essa notação - - demanda de exposição; desvio temático moeda por motivo Superposição e A. na [ casa da sua irmã simultaneidade de vozes [ ligando as linhas B. sexta-feira? A. fizeram [ lá... B. cozinharam lá? Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em (...) (...) nós vimos que existem... determinado ponto. Não no seu início, por exemplo. Citações literais ou leituras de textos, durante a gravação Pedro Lima ...ah escreve na “ ” ocasião... “O cinema falado em língua estrangeira não precisa de nenhuma barreira entre nós”... Na conversação, alguns fenômenos como os gestos, expressões faciais, entonações, risos e olhares, colaboram com a construção do sentido do enunciado linguístico durante o processo de interação face a face. Uma gravação em vídeo seria interessante para observação e análise desses fenômenos muito comuns na fala. As conversações espontâneas, aquelas cotidianas, são constituídas dessa mistura de material verbal e não-verbal. Os materiais não-verbais são empregados por falantes em uma conversa pelas seguintes formas apresentadas por Dionísio (2004:77) 77 a) paralinguagem: sons emitidos pelo aparelho fonador, mas que não fazem parte do sistema sonoro da língua usada; b) cinésica: movimentos do corpo como gestos, postura, expressão facial, olhar e riso; c) proxêmica: a distância mantida entre os interlocutores; d) tacêsica: o uso de toques durante a interação; e) silêncio: a ausência de construções linguísticas e de recursos da paralinguagem. A paralinguagem é “uma espécie de modificação do aparelho fonador, ou mesmo a ausência de atividades desse aparelho”. Incluem-se nessas características todos os sons e ruídos que não são linguísticos, como os assobios, as onomatopeias, altura exagerada, etc. Quanto à cinésica, alguns gestos, os audíveis, encontram-se no campo da paralinguagem. Já os visuais podem ser observados no próprio campo da cinésica (2004:77). Dito por Dionísio (apud Mussalim, 2004:77), a paralinguagem e a cinésica alteram suas funções e desempenham variados papéis durante uma interação. Com essas alterações de funções e papéis, alguns atos paralinguísticos e cinésicos podem ser classificados como atos lexicais, ou seja, atos não-verbais, mas que adquirem um significado próprio, como o exemplo citado pelo próprio autor: “hhh”, utilizado para remeter à ideia de silêncio. Quando ouvido, é porque há uma pedido para ficar quieto. Diante dessas informações, podemos concluir que falamos com a voz e com o corpo. Nesse caso uma boa transcrição para ser realizada e analisada, pode abranger informações que garantam o registro de todos esses aspectos da linguagem, a paralinguagem e a cinésica. Por meio de uma transcrição, obtemos uma noção de um diálogo real. Todavia, na construção do diálogo literário, há a possibilidade do texto ser elaborado a partir de estratégias conversacionais, e dessa forma representar a conversação natural face a face. 78 2.9. A conversação literária “Quando pretendemos analisar diálogos construídos, devemos ter sempre em mente que não se trata de diálogos naturais, mas sim de textos que, criados no campo da ficção, têm objetivos estéticos e buscam recriar a realidade oral (Negreiro, 2010: 42). Muitos autores registraram, e ainda registram, por meio da linguagem, as variações sociais ou psicológicas de suas personagens, por representarem características de determinadas épocas e grupos sociais. Por isso a oralidade começou a ser usada em textos literários como recurso de caracterização de personagem. A opção em utilizar a língua oral para caracterizar personagens atribui à obra um tom mais realista, mais verossímil, por lembrar muito a interação espontânea face a face entre os interlocutores. A manifestação escrita de um texto literário, sem julgarmos neste momento o que qualifica ou não um texto como literário, constitui um processo de elaboração, reflexão e planejamento com cuidado especial a estética da obra. Em suma, [...], adotamos a posição segundo a qual a língua literária possui, antes de tudo, um caráter estético. Isso não impede, contudo, que se considere que a língua literária – ou, nas palavras de Granger, o uso literário – seja composta por “outras línguas”. É possível afirmar, assim, que a artificialidade estética da língua literária pode ser composta pela naturalidade da língua comum. (Negreiros, 2010:43) Muitas pesquisas linguísticas foram realizadas em corpus literários. Eles suprem a falta de documentações gravadas que servem como registro de variantes da modalidade oral da língua nas mais diversificadas situações de interação. 79 Por meio de narradores e personagens que tomam o lugar de falantes reais, podemos ver reproduzidas as intenções, e até mesmo a naturalidade de uma realidade linguística. Entretanto, seria temerário afirmar que em toda produção literária, em diferentes momentos da literatura, temos a visão real do que foi a língua falada em determinado período, embora em todos os momentos facilmente encontramos autores que se influenciaram pela língua falada e levaram para a escrita variantes que poderiam ter sido comuns em sua época. “Se pensarmos nos diálogos literários, a reprodução da fala, em muitos escritores, certamente, aproxima-se do uso linguístico de sua época, não só na literatura atual, mas também em outros tempos” (Preti,2004:126). Houve aceitação da contribuição da língua falada na escrita por ter como característica atribuir mais naturalidade às falas das personagens, incluindo-se o narrador de primeira pessoa. Em alguns textos literários,a linguagem popular faz com que possamos lembrar de uma situação de interação natural face a face. Esta é uma das possibilidades almejadas pelo autor. Pensamos em um texto literário como num processo de reflexão e planejamento,o que afastaria qualquer hipótese da presença da língua oral. Mas quando um escritor tem por objetivo a estética, há livre escolha das variantes linguísticas para que suas expectativas sejam alcançadas. Por esta razão entendemos que o emprego de recursos da língua falada, provavelmente seja uma estratégia intencional do autor para atribuir um tom mais realista, por se fazer valer das características da linguagem espontânea da fala do dia a dia. Como Preti (2004:126) mesmo diz, há a possibilidade de fazer chegar ao leitor a ilusão de uma situação natural (real) de fala, porque o texto literário decorre do processo reflexão, planejamento e elaboração. É nesse sentido que muitos escritores empregam na escrita “marcas da oralidade”, conhecidas pelo leitor que se reconhece no texto por meio do diálogo criado a partir de uma realidade linguística que se habituou a ouvir. Na ótica de Preti, 80 ...os objetivos do escritor são de natureza estética e não há limites na escolha das variantes linguísticas para atingi-los. Por isso, o emprego de recursos da oralidade pode ser uma estratégia intencional do escritor para dar a seu diálogo de ficção uma proximidade maior com a realidade. Dificilmente se poderia aceitar a ideia de uma “língua literária”, no sentido de uma “língua exemplar”, isto é, um modelo padrão de língua culta. O que há são estilos literários diversificados, que se valem das características da linguagem culta ou, às vezes, da espontaneidade da fala do dia a dia, para melhor atingir seus objetivos (2004:120). Para realizarmos o estudo de um diálogo de ficção, é importante observarmos dois aspectos: a análise do contexto histórico em que é realizado o diálogo e a análise da situação de interação. Sobre isso, afirma Marinho (2006:55): Da mesma forma que, quando analisamos uma conversação natural, devemos estar de posse certas informações a propósito do tema, do contexto, do local, da natureza dos falantes, da situação de comunicação em que estão envolvidos, assim também na análise de um diálogo de ficção é preciso que tenhamos essas informações, que nos são fornecidas pelo narrador (no caso do diálogo literário) ou pela imagem (no caso do teatro, do cinema e da TV) ou menos comumente na mídia, por um narrador “off” em certos tipos de peças, de filmes ou de textos narrativos de TV. Mas principalmente pelas próprias falas das personagens, que aludem a fotos, características das personagens, que nos ajudam a entender o diálogo que está ocorrendo, por constituírem elementos pragmáticos importantes para o significado. Quando informamos dados referentes ao contexto histórico, geográfico, fatores extralinguísticos, e dados relevantes como idade, sexo do falante, grau de escolaridade, profissão, realizamos o que Preti (2004:139), intitula de 81 macroanálise da “conversação literária”. Quando analisamos a situação interacional juntamente com os elementos que acompanham as falas, por exemplo, as estratégias conversacionais, colocamos em prática a microanálise da “conversação literária”, também nomeada por Preti (2004:139). Não discutiremos sobre movimentos literários ou determinado momento histórico, mas o plano estético, principalmente a relação entre arte e realidade, tratando apenas da verossimilhança entre os fatos reais e o texto criado. É inviável afirmarmos que os diálogos de ficção representam fielmente uma conversação natural. Marcas como hesitações, frases incompletas, repetições, sobreposições de vozes, nem sempre aparecem nos textos escritos. Uma transcrição da fala poderia inclusive romper com as expectativas do leitor, que espera que as personagens literárias, em seu diálogo, revelem estratégias comunicativas ideais pela forma como se expressam, demonstram ou escondem intenções, além de mostrar como marcam uma aproximação ou distanciamento entre os interlocutores, como fingem camaradagem ou hostilidade e como se tornam claros ou obscuros no que querem comunicar. Os diálogos construídos podem muitas vezes esclarecer-nos com mais precisão estados psicológicos das personagens e suas expressões verbais, comparadas às gravações de uma conversação natural, que às vezes podem apresentar uma aparente falta de naturalidade do falante durante a gravação. O conhecimento interiorizado pelos escritores e expressos por meio da linguagem de suas personagens, nos conduz ao modo como as estratégias conversacionais podem aproximar-se ou, até mesmo, figurar como modelos de uma interação real. 82 Capítulo III 3. A oralidade em Os novos, de Luiz Vilela. Ao analisar uma conversação natural, podemos notar algumas características relacionadas aos interlocutores durante a interação: Pode-se fazer a análise das variações de comportamento linguístico dos falantes, tomando-se como base as variáveis sociais, considerando-se, nos falantes, a sua faixa etária, sexo, (gênero), profissão, escolaridade,origem geográfica, bem como suas variáveis psicológicas, seu tipo de pessoa que explicaria muitos aspectos de sua linguagem, como, por exemplo, seu ritmo de voz. Essas variações associadas à situação de comunicação, isto é, às condições em que se desenvolve a conversação (local, grau de intimidade entre os falantes, tema etc.) poderiam fornecer pistas para uma análise próxima da realidade do comportamento linguístico de um falante, permitindo classificar sua linguagem como culta, comum, vulgar etc. (Preti,2004:154) Em nossa pesquisa, para examinar um diálogo construído, observamos os seguintes aspectos: a) contexto histórico em que acontece o diálogo; b) fatores extralinguísticos, que podem revelar variações da linguagem; c) situação de comunicação; d) estratégias conversacionais utilizadas pelos interlocutores. Os novos apresenta a história de alguns jovens que cursavam a faculdade no período da ditadura militar. A rotina apresentada é a de jovens que estudam e revezam seu tempo com diferentes formas de lazer. Mas em meio a essa rotina, um grupo ao qual Vilela dá maior destaque, frequenta uma universidade e encontra-se com frequência para discutir diversos assuntos, porém, o mais discutido é sobre literatura. Podemos destacar quatro personagens desse grupo: Nei, Vitor, Dalva e Zé. Todos residentes no Estado de Minas. 83 Esses jovens tinham muito em comum: são escritores. Alguns com obras já publicadas, outros em fase de produção enfrentando obstáculos para escrever. O período em que ocorre a história também não era favorável à literatura. Os jovens escritores tiveram de enfrentar a censura da ditadura militar. Muitos textos foram proibidos de serem publicados. Isso causava mais revolta nos jovens amigos. Não podiam encontrar-se publicamente, por este motivo, encontravam-se na casa de Vitor. Lá não temiam represálias e não corriam o risco de serem interrompidos. No corpus analisado, observamos as interações entre os amigos e a maneira como mantinham uma relação de amizade por meio do diálogo. Demos destaque às estratégias conversacionais utilizadas pelas personagens criadas por Vilela. 3.1. Estratégias conversacionais observadas no corpus. Podemos observar no romance de Vilela certos exemplos que evidenciam o uso de marcas de uma linguagem falada, tema central desta pesquisa. Os diálogos, aqui apresentados, substituirão as gravações de uma conversação. Analisaremos, portanto, a oralidade no diálogo construído por Vilela. As estratégias presentes no corpus são exemplos de uma linguagem coloquial. Temos o uso de expressões gírias, obscenas, até mesmo de baixo calão. Observamos também em certos momentos um discurso irônico apresentadas em turnos de fala de alguns personagens. Esses exemplos, utilizados por Luiz Vilela, recriam no texto escrito a aproximação, a liberdade de fala e certa intimidade entre os interlocutores. Situações muito comuns em interações face a face. 84 3.1.1. Discurso irônico. As estratégias conversacionais, face a face ou na escrita correspondem à forma como os interlocutores interagem entre si. De acordo com Preti (2004:151), “elas podem resultar das intenções que precedem o ato conversacional ou de alterações ocorridas durante o seu andamento”. A propósito do uso das estratégias no romance Os novos, de Luiz Vilela, percebemos, pelo contexto da conversação, que o diálogo é sustentado pela intenção coletiva de criar e concretizar mais uma publicação da revista Literatura. Selecionamos do romance uma situação de interação entre os amigos escritores, no apartamento de Ricardo, reunidos para discussão da nova produção da revista Literatura (Vilela,1984:19-25): Texto 1 ─ Eu escrevo umas merdinhas aí e vou dizer que sou escritor? ─ Escritor é um sujeito como Balzac, como Dostoievski, como Faulkner; eles escrevem uma obra. ─ Bom, mas nós ainda estamos no começo (lembrou Ricardo) ─ No começo eles também não eram nada. Ainda escreveremos uma obra. Ainda seremos futuros Balzacs, Dostoievskis, Faulkners. ─ O dia em que formos, eu direi que somos escritores. ─ Você é louco, Zé. ─ Louco por quê? ─ Gente, e a Dalva, será que ela vai dar o cano hoje? Ela sempre chega atrasada, aquela mulher. ─ Falando mal de mim, né? Peguei no flagra. ─ Olha ela aí. Sua irresponsável; isso são horas? Oito e meia já, senhorita Dalva. ─ Tudo certinho, gente? E o Vitor, não chegou ainda não? 85 ─ O Vitor deve estar por aí, em algum bar, bebendo. Vamos esperar mais um pouco. Puxa uma cadeira e senta. Estamos em altas discussões; uma tertúlia literária. ─ Que bicho é esse? ─ O nosso nobre colega Ricardo estava fazendo de público uma declaração sobre a grandeza e a miséria das cortesãs, digo dos escritores... ─ Não há muita diferença. ─ ... a cuja insigne grei pertencemos, quando o nobre colega Zé, aqui presente, solicitou um aparte para dizer com certa ironia, como sói acontecer nesses ilustres debates, que tal apodo de “escritor” soa um tanto quanto excessivo para nossa humilde condição de meros aprendizes da grande arte dos Homeros e Dantes e Balzacs e Dostoievskis. ─ Agora traduza, que não entendi nada. ─ Escritor ─ insistiu Zé, ─ a gente escreve umas coisinhas aí e vai dizer que é escritor? ─ E quê que nós somos então? (perguntou Ricardo) ─ Nós escrevemos simplesmente. ─ E quem escreve, quê que é? ─ Essas é que são as altas discussões literárias em que vocês estavam? ...(gozou Dalva). ─ Pensei que vocês estivessem discutindo sobre o “nouveau roman”, ou sobre Beckett, ou sobre... ─ O Vitor está chegando... ─ Senhores membros do conselho de sentença (parando na porta) ─ por acaso é aqui uma reunião de gênios para tratar de assuntos referentes a uma genial revista chamada Literatura? ─ Pinguço não entra. ─ Ainda bem que eu não bebo... Já conversaram alguma coisa? ─ Tem uma cadeira lá no quarto ─ disse Ricardo, ─ vai lá pegar. Vitor foi; voltou com a cadeira. ─ Bom, vamos começar ─ disse Ricardo; ─ declaro aberta a sessão; a palavra está franca, podem começar a falar besteira. 86 ─ Primeiro de tudo que nós temos que ver ─ disse Nei: ─ quem vai entrar nesse número? Quem, quais os trabalhos, quanto ficaria para cada um ─ bom, isso só poderiam saber depois de levar o material na gráfica. ─ Então fica assim: até terça todo mundo com o material pronto; quarta nós levamos na gráfica para fazer o orçamento, e sexta que vem nós tornamos a nos reunir aqui para decidir o resto. Mais alguma coisa? Alguém tem alguma sugestão a dar? ─ Eu tenho ─ disse Vitor: ─ a gente tomar um chope. Ricardo não podia ir, tinha de acabar um trabalho para entregar no dia seguinte na Faculdade. Foram os quatro. Nota-se na fala de algumas personagens o discurso irônico. Não há na interação nenhuma disputa de poder da palavra ou da razão, mas a demonstração de dúvidas e incertezas relacionadas às intenções de cada jovem como escritor. Notamos que Zé, dando início à interação, faz uma autocrítica e quer convencer seus amigos de que ainda não podem receber o título de escritor: “Eu escrevo umas merdinhas aí e vou dizer que sou escritor? ─ Escritor é um sujeito como Balzac, como Dostoievski, como Faulkner; eles escrevem uma obra”. Nesse exemplo percebemos que Zé critica os amigos que se consideram escritores. Ele não aceita a ideia de se compararem com autores renomados e insiste em afirmar que todos presentes são apenas amadores co campo literário. Durante a discussão Marta chega atrasada para a reunião: “Olha ela aí. Sua irresponsável; isso são horas? Oito e meia já, senhorita Dalva”. Fala um dos jovens. Nesse exemplo, a ironia relacionada ao atraso de Dalva, foi apresentada de modo que o interlocutor compreendesse o pensamento do locutor. A fala irônica começa quando Dalva é apresentada ao grupo da seguinte forma: “Olha ela aí”. Percebemos que a situação antes de sua chegada era de espera, uma possível longa espera. Outra fala que comprova que Dalva 87 chegou atrasada, é quando dizem exatamente o horário em que chegou: “…isso são horas? Oito e meia já”. Por fim, a ironia com Dalva termina com o uso do tratamento “senhorita”. Dalva percebe que não é a única do grupo que estava atrasada, e logo questiona aos colegas sobre o atraso de Vitor. Pergunta sobre ele e recebe como resposta outra ironia: “O Vitor deve estar por aí, em algum bar, bebendo Vamos esperar mais um pouco. Puxa uma cadeira e senta. Estamos em altas discussões; uma tertúlia literária”. Vitor possui o hábito de beber demasiadamante. Esta pode ser a razão da desconfiança de que ele estaria certamente em algum bar e tenha se esquecido do encontro, motivo da fala irônica. Na mesma fala, observamos, outro exemplo de ironia: “Estamos em altas discussões; uma tertúlia literária”. A ironia retoma a dúvida do início do diálogo sobre o papel de todos que ali estavam reunidos. A pergunta de Dalva, querendo saber do amigo, nos serve como mais um exemplo de ironia. Para ela a discussão realizada até o momento em que chegou, não havia sido nada produtiva e insinua até perda de tempo, como observamos nesse exemplo: “Essas é que são as altas discussões literárias em que vocês estavam? ...(gozou Dalva). ─ Pensei que vocês estivessem discutindo sobre o “nouveau roman”, ou sobre Beckett, ou sobre...”. A interrogação nos serve como mais um exemplo de ironia presente nesse ato de fala. Em seguida, um colega tenta explicar para Dalva o que seria exatamente a expressão tertúlia literária não compreendida por ela: “O nosso nobre colega Ricardo estava fazendo de público uma declaração sobre a grandeza e a miséria das cortesãs, digo dos escritores...”. A ironia tem destaque com o tratamento nobre atribuído a Ricardo. Neste outro exemplo: “... a cuja insigne grei pertencemos, quando o nobre colega Zé, aqui presente, solicitou um aparte para dizer com certa ironia, como sói acontecer nesses ilustres debates, que tal apodo de “escritor” soa um tanto quanto excessivo para nossa humilde condição de meros aprendizes da grande arte dos Homeros e Dantes e Balzacs e Dostoievskis” apenas confirmamos ironia que põem em dúvida o ser ou não escritor. 88 Mais atrasado que Dalva, sem saber de nada, Vitor chega e também faz uso da ironia: “por acaso é aqui uma reunião de gênios para tratar de assuntos referentes a uma genial revista chamada Literatura?”. Vitor também se considera um escritor, mas ao chegar atrasado também, utiliza o termo genial ironicamente porque sabe que na realidade essa afirmação está distante de ser verdadeira, embora não critique a intenção e a capacidade de cada dos seus amigos. Faz apenas uma brincadeira, já que é o brincalhão do grupo. Embora, haja variações de exemplos de um discurso irônico, este não é o único recurso utilizado no romance como estratégia conversacional no romance. Lendo atentamente percebemos que algumas palavras aparecem no diminutivo: “Merdinhas e coisinhas” como uma forma de demonstrar uma depreciação ao que os jovens autores escrevem. Nas duas situações Merdinhas e coisinhas são comuns na oralidade e no diálogo face a face. As duas formas depreciam os escritores, mas na forma como foram expostas, amenizaram o impacto da crítica realizada. 3.1.2. Gírias e linguagem obscena A linguagem gíria e obscena são características de uma linguagem popular, coloquial. O uso dessa linguagem não é proibido, mas apresenta em algumas situações constrangimentos e rejeição, e em outras uma intimidade, liberdade e aproximação entre os interlocutores. Analisando Os novos observamos a presença da gíria e de palavras obscenas. Não nos causou estranheza tais usos pelo fato de estarmos diante de um romance com a presença do diálogo construído representando uma situação de interação e uma conversação natural. Vilela nos mostra a presença de estratégias discursivas da oralidade em um texto que representa a linguagem literária. No texto 2, abaixo, temos uma interação entre três personagens: Nei, Zé e Vitor. Após saírem de uma reunião em que discutiam sobre literatura e a publicação de um novo volume de uma revista foram a um bar. 89 Texto 2 ─ A gente tem que resistir ─ disse Nei; ─ há um desalento aqui que vai roendo a gente por dentro como um câncer; quando menos esperar, estamos aí mortos como uma porção de gente. Essas montanhas são os muros de um cemitério. ─ Ou então de um hospício ─ disse Zé. ─ A quantidade de loucos que existe em Minas é uma coisa incrível. ─ O famoso equilíbrio mineiro... ─ É, mas também quando desequilibra... é cada neurose... ─ Esborracha no chão... ─ Minas dos tarados e das beatas... ─ E das bichas: segundo me disse um psiquiatra meu amigo, está provado que Belo Horizonte é atualmente, em proporção, a capital do país com o maior índice de homossexuais. ─ A cidade que mais bebe no Brasil: provado também estatisticamente. ─ Que se pode fazer aqui senão beber, encher a cara até arrebentar? Ou a gente faz isso ou então some daqui; não há outra alternativa. ─ É... ─ disse Zé; e apesar de tudo, eu gosto daqui. Parece incrível, mas gosto. Gosto da montanhas, gosto das noites tranquilas e frescas de Belo Horizonte. Acho que tenho vocação para monge. Para monge e para vagabundo, as duas coisas. Pode ser que eu também vá embora daqui um dia; mas atualmente não penso nisso. Meu problema concreto hoje é sair do banco. É isso o que eu preciso fazer. O resto pensarei depois, dependerá disso. Zé pegou o copo de chope e tomou um gole demorado. Nei fez o mesmo. Ficaram observando as outras mesas ao ar livre, sob barracas, na penumbra da noite. ─ O Manjolo está virando puteiro... ─ disse Nei. ─ E daí? Você tem alguma coisa contra as putas? ─ De modo algum, antes pelo contrário. Tem duas boas ali naquela mesa; estão dando uma bola... Zé olhou. 90 ─ Não posso nem pensar nisso. Tou mais duro que não sei o quê. Só dá pra tomar mais uns chopes. ─ Putas do mundo inteiro, uni-vos. ─ Como dizia Marx. Nei pegou o cigarro, ofereceu a Zé. Acendeu os dois. Jogou o fósforo no cinzeiro de louça, com propaganda da Cinzano. ─ O Vitor disse que ia dar um pulo aqui, será que ele vem? Ele ficou de ir lá na gráfica hoje pegar as provas da revista. ─ Faz muitos dias que não encontro com ele ─ disse Zé. ─ Não tenho ido à Faculdade. Quê que ele tem feito? Além de beber, evidentemente. ─ Não sei. Ele está esperando a resposta da editora; disse que, enquanto não tiver a resposta, não poderá escrever mais nada. ─ Quê que o cu tem a ver com a calça? (Vilela, 1984:38-39) As expressões: “...encher a cara até arrebentar...”, “esborracha no chão…”, bichas, vagabundo, puteiro, putas, estão dando uma bola, ─ Quê que o cu tem a ver com a calça? exemplificam uma típica linguagem gíria. Nos exemplos “...encher a cara até arrebentar...” e esborracha no chão… nota-se que a intenção é beber demasiadamente e correr o risco de cair e se machucar todo. Essa ideia foi transmita de modo diferente do qual estamos habituados a ouvir em situações formais, que exigem do falante o uso da linguagem formal, embora o uso gírio não seja considerado inaceitável, é apenas outra forma de expressão que se adequa ao contexto. Assim como outros exemplos apresentados, também aparecem com frequência: “bichas, para referir-se ao homossexual; vagabundo ao invés de não trabalha; putas, termo gírio usado para se referir às garotas que fazem programas; boas, com a intenção de elogiar a beleza da mulher; “Tem duas boas ali naquela mesa; estão dando uma bola...”, dar bola, é o mesmo que estar te paquerando - Quê que o cu tem a ver com a calça?”. Por fim este exemplo, uma interrogação que tem como sentido real querer saber o que uma coisa tem a ver com a outra, apenas substituído pelas expressões obscenas. 91 Retiramos outro exemplo do romance, o texto 3. Nele a situação que motivou a interação era para Nei contar com detalhes como foi a conferência em que se apresentou: Texto 3 ─ Sábado fui lá no Colégio Estadual fazer aquela conferência sobre a poesia brasileira contemporânea. ─ Hum. ─ Rapaz ─ vitor segurou-lhe o braço: ─ eu saquei tanto que até eu mesmo depois fiquei com vergonha de mim. Puta merda, acho que nunca saquei tanto assim na minha vida; foi um troço… Esses dias te contei que folheei a Obra Aberta, do Umberto Eco, né? Ler mesmo, acho que só li umas dez páginas. ─ o que não é nehuma novidade com você… ─ Pois sabe que eu falei o tempo todo lá em Obra Aberta? Já pensou?... Nei ria. ─ Imagina agora se eu tivesse lido o livro todo, se só com algumas páginas já deu pra sacar tanto… foi um negócio a conferência, você precisava ver. Falei uma porrada de coisa lá; falei em mecânica combinatória baseada na lei das permutações, porra, nem sei quê que é isso, mas lembrei que tinha lido nalgum lugar; falei no poema como um campo de possibilidades: bacana, hem? Campo de possibilidades, isso fica bonito pra burro… (Vilela, 1984:7778) A linguagem gíria deste texto aparece com estas palavras: saquei, puta merda, troço, porrada, porra, bacana. Nei utiliza o termo sacar para explicar ao colega que entendeu mais do que esperava sobre o assunto apresentado. Quando diz: puta merda, demonstra uma admiração, surpresa com a capacidade dele mesmo. Troço é uma gíria muito usada para passar a ideia de algo, alguma coisa. No caso do nosso exemplo é como se Nei quisesse dizer que foi muito importante para ele o fato ocorrido na tal conferência. Porra, aparece com sentido de entusiasmo de Nei, já em porrada, observamos esta palavra com o sentido de uma porção de coisas. 92 Bacana é uma palavra bem conhecida no vocabulário gírio, muito utilizada popularmente na fala. O efeito de humor causado pelo uso das gírias demonstra uma descontração durante uma interação entre amigos. Aparentam ter certa liberdade para falar o que querem e como querem, sem se importar com constrangimento. Parece que tais usos representam até certa intimidade entre os interlocutores que não se queixam dos termos utilizados pelos amigos. 3.2. Marcadores conversacionais como estratégia de interação observados no corpus. 3.2.1. Sinais conversacionais verbais No próximo exemplo, temos a apresentação de Nei como novo professor da Faculdade. Em seguida temos o encontro entre os amigos no início de um período letivo e aos poucos chegam novos colegas para contar as novidades. Destacam-se alguns marcadores em exemplos de falas (turnos): Texto 4 ─ Bom, apenas como apresentação: formei-me há pouco tempo, e, sem demagogia, é mais como colega de curso do que como professor que aceitei de dar essas aulas. Não vou dar aulas: vamos estudar juntos. Dizia kierkegaard que ninguém pode ensinar nada a ninguém; é assim que... Pronto, tinha começado. Mais fácil do que pensara. Criara o clima, abrira o diálogo, agora .era só entrar com a matéria que a coisa iria correndo por si mesma. Ao sair do elevador, deu de cara com Vitor no saguão cheio de gente: 93 ─ Mestre Nei, agora a gente tem de tirar o chapéu... Os dois se abraçaram ─ Arranjou essa boca, hem?... ─ Pois é...Mas e você, como foi lá a praia? Muita mulher boa? Você disse que me escreveria, seu sacana... ─ Disse mesmo, mas sou muito preguiçoso, eu ...olha aí quem vem chegando... Ricardo abriu os braços: ─ Ê lá em casa, hem! ... Tudo bom, gente?... ─ Você engordou, bicha... ─ Sabia que o Nei agora é um dos ilustres e digníssimos mestres dessa ilustre e digníssima casa de saber? ─ Você, Nei? Não sabia não, a última vez que encontramos você estava querendo ir pro Rio. ─ Ó! ─ exclamou Vitor: ─ Cesse tudo o que a antiga musa canta! Era Martinha. Pouco a pouco a turma toda ia aparecendo. O saguão estava movimentado e barulhento. ─ Todo mundo tomar cafezinho! ─ gritou Vitor. No pátio o mesmo movimento, grupinhos de alunos conversando, gente indo para a cantina ou voltando, brincadeiras, correrias, gritos. ─ Ê vida boa... Essa vida é muito boa; é ou não é, hem Joyce? ─ Fala Maiakovski. ─ Quantas obras –primas você escreveu nessas férias? ─ Nenhuma, prima. Estou agora é me preparando para começar meu romance. ─ E seu livro, Vitor? ─ Só falta embrulhar e mandar pra editora. ─ Ouvi dizer que você ia publicar por conta própria. ─ Eu? Quem disse isso? Só tenho dinheiro para tratar da minha mulher, meus filhos e meus chopes. ─ Principalmente meus chopes, mas não espalha. ─ Mas então pessoal ─ disse Queiroz ─ quê que vocês contam, quais são as novidades... 94 ─ Uai, Queiroz ─ Vitor chegou perto dele: ─ parece que tem mais dois fios de cabelo branco aqui em cima... ─ Esses já tinha ano passado... ─ e Queiroz riu, com a complacência dos seus quarenta anos: ─ Pensei que vocês fossem consertar um pouco nessas férias, mas pelo que vejo... ─ E o Zé, hem? ─ estranhou Martinha. (Vilela, 1984:13-15) No corpus em análise, Os novos, marcadores conversacionais desempenham papéis tanto textuais quanto interacionais. “No diálogo construído o emprego dos marcadores conversacionais é um recurso apropriado na busca da aproximação com o oral. Esses marcadores, além de serem marcas de atenção dos falantes, demonstram que há interesses partilhados entre os dois falantes” (Negreiros, 2010:54). Os marcadores, observados, que se destacam pela frequência e recorrência no texto: 1. Marcadores de participação ou de busca de apoio, exemplos: bom,aí, é, olha aí, Uai, hem? 2. Repetições negativas e interrogativas: Quê que ele tem feito?,...não chegou ainda não?, E quê que nós somos então?, Não sabia não. 3. Formas de tratamento (a gente): Gente... (vocativo), Tudo certinho, gente?, A gente tem que resistir...(nós), Diante dos exemplos apresentados podemos assim definir os marcadores: Os marcadores conversacionais são elementos linguísticos que estruturam o texto, considerado não só como uma construção verbal cognitiva, mas também como uma organização interacional interpessoal. Ou seja, são recursos que sinalizam orientação ou alinhamento recíproco dos interlocutores ou destes em relação ao discurso (Urbano,2003: 114). 95 Vilela ao fazer uso dos marcadores bom,aí, é, olha aí, Uai, hem, mostra para o leitor que há motivação e interação na conversação entre as personagens e a interação acontece com certa intimidade, liberdade para a escolha do léxico e aproximação entre os interlocutores como aconteceria numa conversação natural. São termos que na oralidade representam a atenção do interlocutor. Servem muitas vezes para emitir ao ouvinte sinais que indiquem a transição de fala. São sinais que ora atrem o ouvinte, ora pedem para que ele continue a conversação numa sequência de turnos. No texto, para dar início a interação e criar um elo comunicativo, Nei utiliza o marcador bom, que serviu para ele se descontrair no começo da conversação. No exemplo olha aí, temos uma expressão que aparece como uma maneira de chamar a atenção do ouvinte ao que está sendo dito. “Uai” , também utilizada para atrair o interlocutor, representa uma expressão típica regional mineira. No caso do hem, podemos dizer que é o modo que o falante tem para passar seu turno e deixar que o interlocutor continue a conversação. Em síntese, os marcadores apresentados no trecho acima podem ser apresentados conforme orienta Marcuschi (2007:68) da seguinte forma: Sinais do falante (orientam o ouvinte): Bom, olha aí, Uai (apresentados no início do turno); Sinais do ouvinte (orientam o falante): é, hem (sinais indagativos) 3.2.2. Duplicação na fala Casos de repetições ocorreram e ilustram essa característica da oralidade, ou seja, é uma construção que se aproxima da conversação natural do dia-adia. Observadas em estudos recentes a importância da repetição na língua oral no processo de produção e compreensão dos interlocutores, notamos que a 96 repetição auxilia o ouvinte no entendimento e dessa forma contribui para que haja envolvimento entre interlocutores: Estudando-se diálogos espontâneos, já se chegou à conclusão de que a repetição pode ser um dos fatores responsáveis pelo ritmo que os interlocutores imprimem à sua participação conversacional, característica que aproximaria a fala do texto literário escrito (Preti, 2004:128) Uma ocorrência comum no diálogo analisado, é a repetição, exposta aqui nas formas interrogativa e negativa. Essas duplicações justificam-se por serem falas produzidas no local e serem momentânea, isto é, a produção da fala acontece no momento da interação. Dessa forma dão margem ao falante para que repetições apareçam com frequência na conversação, servindo também como uma maneira de aproximar-se do interlocutor ao fazer uso dessa linguagem mais popular. Como vimos no texto que nos serviu de apoio, nos exemplos: “─ Você, Nei? Não sabia não, a última vez que encontramos você estava querendo ir pro Rio”, “─ quê que vocês contam, quais são as novidades...”, repetições comuns na fala e apresentadas no texto literário. Estes são apenas alguns exemplos retirados do corpus, mas geralmente quando aparecem, seguem a mesma estrutura: repetição nas interrogações ou nas frases negativas como vimos nos exemplos citados. 3.2.3. Forma de tratamento a gente Observamos que em certos exemplos “a gente” apresenta diferentes significados, mas todos indicam uma forma de tratamento em relação aos interlocutores. Ora a gente aparece com sentido utilizado pelo pronome “nós”, ora indicando um chamamento que poderia ser substituído por pessoal (outra expressão comum na oralidade). 97 Alguns exemplos podem ser observados nos textos apresentados anteriormente, mas daremos destaque a outros no texto 5 a seguir: Texto 5 ─ É por isso que as coisas não saem: um esquece, outro dá o cano, outro enrola. ─ Poxa, também um dia a mais um dia a menos que diferença faz? Não é por causa disso que o mundo vai vir abaixo. ─ Se a gente pensa assim, a gente acaba não fazendo nada. (Vilela, 1989: 42) Texto 6 ─ Fico pensando ─ disse Nei ─ quê que tem esse pessoal todo aí a ver com o que a gente escreveu... ─ São o nosso público ─ disse Zé. ─ “Nosso público”... Até que é bacana dizer assim. A gente se sente importante, necessário. Nosso público... (Vilela, 1989:66) 3.2.4. Registro oral culto observado no corpus Embora Vilela tenha utilizado na construção do diálogo formas representativas de uma conversação distensa, mais natural e popular, encontramos em algumas situações expressões construídas de acordo com o padrão da escrita, percebidas nos exemplos dos usos dos verbos no futuro do 98 presente do indicativo: “Ainda escreveremos uma obra”, “Ainda seremos futuros Balzacs, Dostoievskis, Faulkne”. Mas em outros trechos do romance há outros exemplos: gritarei, escreverei, direi, desintegrarei e moverão. No exemplo abaixo temos o diálogo entre os jovens amigos que estavam em mais uma reunião para discussão literária. Além do tema relacionado à literatura, discutiram sobre o que estavam vivenciando: a falta de liberdade de expressão, problema esse, que resultou na prisão de um de seus amigos por ter declarado algumas opiniões em uma situação em que era proibida. Texto 7 ─ Não podem me impedir de falar, ninguém pode; se me prenderem, eu falarei no cárcere, se me torturarem, eu gritarei para as paredes, se cortarem minha voz, eu escreverei nem que seja com meu sangue! ─ Se você continuar assim, você vai ter esse sangue agora mesmo ─ disse Zé. ─ Porra, me larguem, será que não posso falar? Não sou livre? Quem pode tirar minha liberdade? ─ Vamos lá pra fora ─ sussurrou Nei. ─ Deixa esse pessoal, você acha que adianta falar pra eles? Olhe pra cara deles... Vitor olhou: seu corpo oscilava. De repente virou-se e começou a andar. ─ Tem razão, não adianta mesmo não. Vou pregar para as pedras. Se os homens não escutam, as pedras hão de escutar. Eu direi palavras tão fortes que as pedras moverão! Parou no meio da rua e ergueu os braços para o céu estrelado: ─ Meu Deus! Eu desintegrarei esse mundo podre com a bomba atômica do meu verso, nem que eu tenha de explodir com ele! ... (Vilela, 1984:49-50) 99 . A linguagem utilizada com mais frequência na obra é a popular, e a mais utilizada no cotidiano das pessoas, embora haja situações comunicaticas em que o contexto exige que a linguagem popular seja substituída por uma linguagem formal. A escolha da linguagem a ser utilizada depende do contexto pelo qual o falante está inserido. Um ambiente entre amigos, rodas de batepapo, etc, são situações em que a descontração tem predominância, dessa forma a linguagem deixa de ser a preocupação. O falante fica mais a vontade. É o que não ocorre quando o falante percebe-se num ambiente como consultas médicas, reuniões de trabalho, entrevistas, palestras. A preocupação com o uso da linguagem recai sobre o uso mais adequado para o momento, nesse caso a linguagem formal. Por isso, casos como o uso do futuro podem ser justificados de acordo com o estudo de Leite (2005: 102): Os futuros, embora poucos, são outra característica conservadora do discurso oral culto, já que, segundo dizem os gramáticos e filólogos, são relativamente raros na língua falada. Com base no diálogo apresentado acima, observarmos que Vilela conduz sua narrativa com características nítidas da oralidade na fala das personagens. Mas é possível concluirmos os usos dos verbos no futuro do indicativo, casos pouco comuns na fala, podem ser justificados de acordo com o conceito de face apresentado nesta pesquisa. Tais usos podem representar a imagem social das personagens na tentativa da preservação da face positiva, dando pistas ao leitor e indicando traços da personalidade, a profissão, seus próprios méritos e até mesmo se enaltecer por meio da linguagem formal utilizada conforme padrões sociais já aprovados. 100 3.3. Organização conversacional Analisando as estratégias apresentadas no diálogo construído por Vilela, conforme abordado anteriormente, os turnos seguem, segundo Marcuschi (2007), a sequência “fala um de cada vez”, por ser uma das características da oralidade, mas não necessariamente uma regra. Conforme expusemos no primeiro capítulo desta pesquisa, a conversação geralmente organiza-se em turnos e sem sobreposições de vozes que dificultam o entendimento entre os interlocutores. Vilela, tomando por base a conversação espontânea, ou seja, interações que costumam ser face a face, constrói em sua ficção diálogos que se aproximem dessa realidade linguística. Há alternância quanto ao número de participantes (falantes) durante a interação. Por tratar-se de um romance, temos a presença de inúmeras personagens. A forma mais utilizada na construção dos diálogos é a simetria entre turnos, ou seja, a alternância de falantes, com respeito às trocas e ao direito de fala. Tomemos novamente como exemplo trechos já analisados acima, mas com foco na simetria das falas (turnos). No romance predomina a sequência simétrica para que cada falante tenha a possibilidade de tomar a palavra quando for solicitado ou se fizer necessário. Podemos notar que os turnos organizam-se em pares adjacentes numa sequência de pergunta-resposta: Texto 8 ─ Tudo certinho, gente? E o Vitor, não chegou ainda não? ─ O Vitor deve estar por aí, em algum bar, bebendo. Vamos esperar mais um pouco. Puxa uma cadeira e senta. Estamos em altas discussões; uma tertúlia literária. ─ Que bicho é esse? 101 ─ O nosso nobre colega Ricardo estava fazendo de público uma declaração sobre a grandeza e a miséria das cortesãs, digo dos escritores... ─ Não há muita diferença... (Vilela, 1989:20) A simetria na construção do diálogo é comum em interações do dia-adia. O exemplo acima é um diálogo construído, mas não deixa de apresentar essa característica da oralidade de “falar um de cada vez”. Essa estratégia é comum na conversação. É com essa organização que compreendemos e somos compreendidos, sem que a interação seja prejudicada pela simultaneidade de turnos elaborados ao mesmo tempo. Vilela em seu romance faz uso dessa característica da oralidade e mantém com frequência a simetria das falas das personagens. Não percebemos durante a leitura nenhuma indicação por meio da construção do diálogo, trechos em que o diálogo não seguisse essa regra “fala um de cada vez”, da conversação, ou seja, não houve a representação de sobreposição de vozes na tentativa de tomada ou disputa pelo turno conversacional. Pudemos observar outra ocorrência da oralidade no diálogo construído: as correções de falhas na fala. Exemplo: ─ O nosso nobre colega Ricardo estava fazendo de público uma declaração sobre a grandeza e a miséria das cortesãs, digo dos escritores... As correções ocorrem porque a fala é produzida no momento em que ocorre a interação, e se houver falhas, a correção costuma ser momentânea. No caso exposto a correção é feita pelo próprio falante que logo percebe a falha. Vejamos outro exemplo retirado do corpus: ─ ... Afinal tenho cinquenta anos e posso ensinar alguma coisa a quem tem vinte e cinco. ─ Vinte e três ─ ele corrigiu. No último exemplo a correção é feita pelo interlocutor logo que percebe a falha na fala do falante. (Vilela, 1989:127) 102 Considerações finais Durante nossas pesquisas apresentamos o estudo das duas modalidades de uso da língua: a língua falada e a escrita, ambas com o mesmo objetivo: comunicação e compreensão entre texto/leitor e falante/ouvinte. Vimos que, para haver boa comunicação, entre interlocutores, precisamos de falantes motivados, comprometidos com a conversação. Por esta razão essa pesquisa nos possibilitou entender como é possível, na literatura, um diálogo construído nos servir de modelo de competência comunicativa numa situação de interação. Diante do que foi exposto nos três capítulos, pudemos compreender e afirmar com mais profundidade que a oralidade pode ser utilizada como recurso na construção do diálogo literário, quando o autor tem por objetivo tornar a obra mais próxima do leitor. O diálogo construído, utilizando-se da oralidade no texto escrito, diminui a distância entre texto e leitor, criando dessa maneira uma verossimilhança entre realidade e ficção quando apresenta personagens com características de fala idênticas às de nossa realidade linguística. As personagens retratadas por Luiz Vilela estão diretamente ligadas à nossa realidade. São jovens universitários que uitlizam suas variantes características da juventude da década de 80, no meio universitário. Vilela nos apresenta um diálogo marcado pelo discurso irônico, gírio, às vezes tornandose até mesmo ofensivo pelo aparecimento de termos obcenos. Mas em momento algum a conversação literária deixa de mostrar que há entre as personagens falta de envolvimento nos assuntos discutidos. Pelo contrário, Vilela ao utilizar em sua obra a linguagem coloquial na fala das personagens, mostra no texto literário o uso dos marcadores orais e das estratégias típicas da fala, utlizadas para demonstrar que tais recursos são comuns na oralidade porque aproximam, criam intimidade, melhoram a comunicação e principalmente a interação entre os interlocutores. É por meio das marcas da oralidade que podemos então perceber alguns sinais apresentados, tanto pelo falante, quanto pelo ouvinte, de que há interação entre eles durante uma conversação. 103 Com base nos estudos realizados sobre marcas da oralidade e estratégias discursivas, foi possível compreender a força, o domínio de Vilela de captar o cotidiano e reproduzir em seus textos os efeitos de sentido característicos da oralidade em textos literários na construção do diálogo. 104 Referências bibliográficas CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2010. DIONÍSIO, Ângela Paiva. In: MUSSALIM, Fernanda. Introdução à linguística: domínios e fronteiras, v.2. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2004. FÁVERO, Leonor Lopes. Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua, materna. Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira Andrade, Zilda Gaspar de Oliveira de Aquino. 5.ed. São Paulo: Cortez , 2005. GALEMBECK, Paulo de Tarso. In: PRETI, Dino (org.). 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