A conquista do espaço Deriva sobre as caligrafias urbanas e as cidades contidas nos espaços públicos Arq. e Urb. Guilhermo Dexheimer Gil Núcleo de Estudos da Cidade – FAU PUCRS / email: [email protected] Resumo: O artigo ‘A Conquista do Espaço’ trata especificamente da relação (ou não-relação) entre os usuários e moradores das grandes cidades e os espaços públicos que existem nelas. Através do texto, mesmo que esse fuja da métrica tradicional, são tratados dos assuntos como apropriação do espaço, cerceamentos de parques, imaginários urbanos e a cidade informal. O questionamento entre a cidade que temos como ‘ideal’ e a cidade que construímos no dia a dia também se torna um dos principais pontos do artigo. As conclusões, mesmo que parciais, moram num misto de reflexão e deriva sobre a relação entre a população de uma cidade e seus espaços comuns. Palavras-chave: Urbanismo; Espaços Públicos; Imaginário Urbano; Construção do Lugar Abstract: The article “The Conquest of Space” its about the relationship (or non-relationship) between residents of big cities and the public spaces that exist in them. Through the text, even if it tend to escape the traditional metrics, the following subjects is treated: appropriation of space, fenced on parks, urban imaginary and the informal city. The question “what is the city we have as 'ideal'?” and the “what city we built on a daily acts?” also becomes one of the main points of the article. The conclusions, even if partial, live in a mix of reflection and textual drift on the relationship between the population of the cities and its public spaces. Key-words: Urbanism; Public Spaces; Urban Imaginary; Building Places Área temática/Perspective: Construção do Lugar / Building Places “(...) de frase ou terra, havia pouco. O asfalto se dava aos passos destilados de uma outra fronteira, de uma outra cidade que um dia já estivera ali. Como um coveiro, que viveu de morte e morreu de vida, encerrei o dia pensando no tempo e talhando a pressa... compassos lentos no banco da Redenção. Não pude evitar, o pensamento fugiu da necessidade urgente do dia e concluí: Porto Alegre já não é mais a mesma..."* Os caminhos desse artigo têm como objetivo uma deriva textual sobre a o imaginário espacial, sobre a arquitetura e o urbanismo do dia a dia, construções efêmeras inusitadas e espaços colaterais de uma complexa tessitura social chamada cidade. Tal como uma caminhada sem rumo pelo centro de uma cidade, o fluxo de pensamento e absorção das ideias 1|7 não tendem a seguir uma métrica tradicional científica, bem como torna os pontos de chegada uma consequência secundária do caminho, este sim, valorizado. Falo de ‘Uma outra fronteira’, porque tenho observado que na maior parte das vezes, os nomes mudam mais que as paisagens. Atravesso bairros que de uma rua para outra trocaram de nome, limites criados numa paisagem também criada. ‘Uma outra cidade’, porque uma só não iria comportar todos os imaginários que se alimentam dela. São milhares de pseudônimos urbanos desfilando pelas ruas, milhares de cidades contidas em uma só. Aparecem quando é conveniente pra olhos distraídos. Os espaços na cidade são campos de batalhas contidos e delimitados. Frações capitais de poeira assentada. E quantas cidades podem estar contidas dentro de uma mesma delimitação? A pergunta filosófica é amplamente discutida, por vezes inconscientemente, quando se observa as mais variadas teses sobre os espaços que compõe tais limites. A própria ‘funcionalidade’, por assim dizer, da cidade já mora em uma nublada compreensão de motivos. Citando alguns estudos, a cidade moderna é construída para controlar todo tipo de fluxo, e esta característica irá configurar sua forma e as múltiplas imagens que dela são feitas. (Andrade, 2008), porém, a própria inadequação da vida socioeconômica humana atualmente, faz com que os tais fluxos aconteçam sem qualquer previsão, desmoronando os planos modernistas de controle e planejamento. As próprias imagens criadas sobre a cidade, atingem um estágio insuspeitado. Dentro desse misto de formalidade e informalidade contida pelas construções na cidade, os espaços públicos ganham o papel de junta, ou liga, que deveria unir tais momentos construídos. Atualmente o surgimento de micro-universos urbanos vem se intensificando, e dentro da esfera acadêmica já é praticamente uma um pleonasmo afirmar que os condomínios fechados são negativos para a cidade. As consequências de tais construções, não são apenas físicas mas também humanas, visto que o espaço compartilhado nesses ambientes, é um espaço controlado e murado. Essa configuração faz com que o limite do olhar no espaço ‘possível’ de ser trafegado, tenha um limite muito próximo e uma estética esperada. Em contraponto ao excessivo planejamento dos condomínios fechados, as favelas nas metrópoles crescem cinco vezes mais rápido que a cidade formal em que estão inseridas (conforme o relatório do IFHP de 2012) sem qualquer planejamento, resultando em um limite inexistente do olhar sobre o espaço em permanente mutação. No meio desses opostos existe um dia corrente, comum a todos. Uma quantidade de capital, que, embora mal distribuído, é possível de ser mensurado dentro da esfera capitalista. A primeira resposta (ou questão) óbvia que esse texto poderia trazer, é que os espaços públicos poderiam ser alvo de investimentos afim de conectar as diferentes imagens construídas da cidade. Tal pensamento não é original, tampouco recém pensado. Porém utilizo como ambiente de análise um cenário latino-americano, em que os exemplos de 2|7 urbanidade são tão escassos que nas esferas acadêmicas é possível lista-los de sem esforço, de tão repetidamente estudados. Através de uma pesquisa verbal, identifiquei que, dentre a amostra de 55 pessoas que residem na cidade de Porto Alegre, 15 delas citaram o ‘Mercado Público e entorno’ quando perguntadas sobre os lugares na cidade que lhes remetia ao conceito de ‘Espaço Público’ na cidade. Não por acaso, tais resposta vieram de pessoas com idade entre 50 e 70 anos. As mais jovens da pesquisa (na média entre 10 e 18 anos) responderam com citações genéricas ‘Uma praça’ ou até lugares que nem seriam classificados como espaços públicos, como shoppings e estádios de futebol. A reflexão parcial é que o conhecimento empírico de um lugar de convivência pública gera a associação imediata e comum a uma mesma resposta. Tais pessoas de 50 e 70 anos, ao responderem à pergunta normalmente traziam à conversa alguma lembrança de infância ou de adolescência associada ao lugar público. A pesquisa foi realizada de forma aberta através de perguntas orais. O planejamento de governança e as políticas públicas segmentam a utilização desses lugares, ditos “Espaços Públicos”’ através da falta de pensamento no encontro de usos e pessoas. Uma das questões de maior importância é justamente como evitar que um espaço seja utilizado por um único grupo social e passe a ganhar papel de catalizador de convivência e apropriação do solo. E mais, como fazer com que as práticas que incidem nesse local estejam atreladas ao planejamento urbano. No subtítulo do livro ‘Culturas Híbridas’, Nestor Canclini expressa justamente esta sugestão: Estratégias para entrar e sair da modernidade. ‘(...) uma classificação rigorosa das coisas, e das linguagens que falam delas, sustém a organização sistemática dos espaços sociais em que devem ser consumidos. (...) Requer viver o sistema social de forma compartimentada. (...) Contudo, a vida urbana transgride a cada momento essa ordem. No movimento da cidade, os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e comunicacionais.’ (Canclini, 2003) A cidade de Porto Alegre sofre hoje o dilema que muitas capitais já sofreram (e provavelmente ainda sofrerão) na luta contra a violência e o tráfico de drogas: O fechamento, ou não, de praças com grades. As opiniões são fortes e raramente moram num meio termo de argumentação. O personagem do início do artigo, situado atemporalmente num banco desse parque, chamado Redenção, já não identifica mais a cidade atual com o seu próprio imaginário dela construído. Busca no espaço público uma conexão passada como se aquele banco fosse uma máquina do tempo. Não pretendo estender o texto nesse aspecto, mas o 3|7 utilizo para compor e reforçar a seguinte conclusão: O empirismo do espaço público é o único vetor de sua própria conceituação. Ou seja, é claro que fará todo o sentido gradear um parque se este não é utilizado a noite em razão da violência que ocorre quando escurece. Porém isso não caracteriza um planejamento urbano, apenas uma solução espacial que aquelas práticas não ocorrerão naquele lugar. Nem qualquer outra. Porém, em uma esfera antropológica, cercar e segmentar o espaço público pode significar o assassinato das imagens urbanas construídas por ele. Utilizo a cidade de Porto Alegre em virtude da situação referente ao Parque Redenção, para o qual vem aparecendo inúmeras notícias sobre projetos para cercá-lo. Retornando ao subtítulo do artigo (Deriva sobre as caligrafias urbanas e as cidades contidas nos espaços públicos) as cidades contidas no imaginário urbano, e no que se referem aos espaços de convivência pública, muitas pessoas já não consideram mais o parque como trajeto ou como espaço de utilização cotidiana. Um sincronismo negativo do desuso do local com a falta de urbanidade (derivada do escasso investimento pelo poder público) faz com que as atividades informais negativas se proliferem, pois é o ambiente propício para a prostituição de menores, tráfico de drogas, violência e assaltos. A retórica ganha força com outros estudos de caso onde essa estratégia pode ter funcionado e constrói-se, no inconsciente coletivo, a ideia de que esta seria a solução mais adequada. Na mesma pesquisa empírica que realizei anteriormente sobre espaços públicos com uma pequena amostra de pessoas, obtive respostas contraditórias entre a ‘Ideia de um lugar urbano agradável’ e as práticas e pensamentos que são alimentadas. A pergunta foi a seguinte: ‘Quais lugares ou cidades, na sua experiência, você pode dizer que se sentiu à vontade e bem caminhando e utilizando o espaço público?’ A respostas variaram entre muitos lugares, tendo como maior expressão o ‘Calçadão de Copacabana’, ‘As ruas de Paris’, ‘O mercado público’ (novamente em Porto Alegre), ‘A praça da cidade que eu nasci (interior do estado)’. Falo em contradição, pois normalmente esses espaços, que habitam a ideia de um ‘espaço público agradável’ não são gradeados e segmentados. Sugestão de um espaço público de qualidade, desperta no imaginário coletivo, normalmente, lugares plurais, oriundos de culturas e construções híbridas. Utilização mista e coletiva. Viajamos horas, cruzamos continentes para visitar os países da Europa e alimentamos sonhos de ‘viver em cidades assim’, mas em geral, somos incapazes de incentivar a construção desses bonitos acordes urbanos nas nossas próprias cidades. “Grafites, cartazes comerciais, manifestações sociais e políticas, monumentos: Linguagens que representam as principais forças que atuam na cidade. (...)” (Canclini, 2003) 4|7 As duas referências que são trazidas, uma em citação outra em imagem, trazem expressões urbanas que moram numa estética ‘suja’ da composição de cidade. Uso a expressão ‘suja’ para sinalizar a contraposição às desgastadas imagens modernistas em que o branco e o descolamento entre paisagem e construção eram predominantes para construção de uma composição ‘clara e limpa’. A transitoriedade entre os espaços formais e informais, contidos na cidade, não são situados com limites claros, na maior parte das vezes. A apropriação dos espaços públicos e privados pelo metabolismo humano e social da cidade é um efeito de difícil mensurabilidade. Na mesma semana que muros são erguidos, são também pichados. Comércios constroem pequenos ‘puxadinhos’ além do alinhamento permitido. Cartazes são colados e uma luz neon é pendurada na empena cega de um prédio. Manifestações acontecem, conflitos, artistas de rua tomam a avenida, feiras, eventos, acidentes, transito... O conceito de viver em uma cidade, implica em escrevemos as ruas dia a dia, e curiosamente, acabamos impondo regras de utilização que andam no sentido contrário da maneira como nos apropriamos dos espaços. Temos andando há tempo num mesmo caminho. Olhamos pra frente, pra longe... quando a resposta pode muito bem estar em cima, na vertical. Cidades medievais e vilas cartesianas, somos o meio termo pálido de uma repetição gratuita. Atingimos a métrica, por vezes, e perdemos a lógica. Admiramos as cores, mas construímos em branco. Nossas memórias urbanas podem estar fortemente ligadas ao espaço que tocamos e modificamos, não apenas o lugar que estamos, enquanto existência. Aquele quintal na casa da avó ou a rua riscada de giz. Lugares que tomamos conta, e que se situam no inconsciente e na biblioteca mental cenários. A construção da memória urbana não é exclusivo a um determinado tipo de vida ou condição financeira. Na maioria das vezes o campinho da favela ou a quadra do condomínio luxuoso se transformam no mesmo Maracanã lotado na imaginação de quem está dando seus primeiros chutes numa bola. Porém a construção do pensamento urbano não se dá apenas no imaginário, enquanto material de construção, ela acontece num plano da necessidade e da lógica natural. Fazer parte de um grupo envolve o 5|7 toque no meio de convivência. Seja uma foto de um grupo de boliche na parede do bar ou o nome gravado a faca na madeira da cancha de bocha. Não seria surpresa nem novidade falar sobre a condição precária dos projetos urbanos populares no Brasil. Um problema que vem sendo estudado, visto e revisto há pelo menos 50 anos por um grande número de autores. Ao mesmo tempo em que vemos um amontoado de casas, praticamente entrepostas, vemos uma diversidade de cores e formas que criam uma estranha unidade... um organismo vivo. João Romão, personagem do livro “O Cortiço 1” compartilhava o sentimento da autoconstrução existente em tantas comunidades espalhadas pelo país, em que a construção do lugar e da moradia se funde com a vida. Cada ruga no rosto deriva de uma telha encontrada e a duras penas adaptada onde couber pra guardar o chão da chuva e do tempo. O trecho do livro citado, Aluízio de Azevedo retrata a maneira como a cidade vira cidade... como ela é construída a partir de seus próprios restos. “(...) arrematava madeiramentos já servidos; comprava telha em segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo depositado no seu extenso chão vazio, cujo aspecto tomava em breve o caráter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade dos objetos que ali se apinhavam acumulados: tábuas e sarrafos, troncos de árvore, mastros de navio, caibros, restos de carroças, chaminés de barro e de ferro, fogões desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de areia e terra vermelha, aglomerações de telhas velhas, escadas partidas, depósitos de cal, o diabo enfim; ao que ele, que sabia perfeitamente como essas coisas se furtavam, (...)” A cidade, o cortiço e, por fim, a vida urbana se constituí da manipulação do espaço, tanto físico como psicológico. O fator da interação faz com que tracemos uma existência a mais, além das meras necessidades biológicas. Aos poucos criamos e recriamos nossos habitats, e consequentemente resignificamos a palavra necessidade, adicionando temperos culturais e imateriais na nossa consistência orgânica. “(...) Me ponho em pé. Algo relacionado com geometria ou evolução humana... algo a ver com estar acordado e perpendicular ao chão. Talvez a expressão ‘estar em pé’ venha sendo alimentada dia a dia com a ideia de que algo não existe apenas em duas dimensões. Acabamos sendo forçamos a construir cada centímetro do tempo, cada vez mais alto. Qual o nível de metalinguagem que se pode atingir? Qual seria necessário? Ando por aí olhando, filmando... mas percebo a distância paradoxal entre a realidade e a imagem. 1 AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço. 3.ed. São Paulo: Martin Claret, 2009. 6|7 Como se eu pisasse sempre em dois solos diferentes, porém cada um natural de um lado meu, de modo que, se eu ficasse inteiro em uma só metade, acabaria sendo sempre parte estrangeiro. Por isso ando às meias, por vezes vou a pé e por vezes em imagem. A rua, a placa, a seringueira... são apenas maquinas do tempo. Projeções sintéticas. Necessidades humanas. Agora a avenida ferve o último chá do dia, dissipa a fumaça e compõe a luz. A cidade me tira a escala, como alguém puxando uma cadeira antes de outra pessoa sentar. Refrato o dia e destilo o entardecer. Caminho por bastante tempo por Porto Alegre, e fico em dúvida do quanto me distanciei e percebo: Andar é leitura mas também caligrafia.”* *Textos ficcionais/literários, autoria: Guilhermo Dexheimer Gil, 2015 Bibliografia: Fórum Nacional de Reforma Urbana. (2012). Fórum Nacional de Reforma Urbana. São Paulo. Bauman, Z. (2005). Confiança e Medo na Cidade. Turim: Zahar. Baumann, Z. (2001). Comunidade. Rio de Janeiro: Zahar. BOURDIEU, P. (1996). Razões Práticas: Sobre Teoria e Ação. Campinas: Papirus. CANCLINI, N. G. (2003). Culturas Híbridas. São Paulo: edUSP. CASTELLS, M. (1978). La Custión Urbana. México: Siglo XXI Editores. Jacobs, J. (2000). Morte e Vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes. LEITE, C. (2012). Cidades sustentáveis,Cidades inteligentes. Porto Alegre: bookman. ROLNIK, R. (1994). O que é Cidade. São Paulo: Brasiliense. AZEVEDO, Aluísio de. O Cortiço. 3.ed. São Paulo: Martin Claret, 2009. 7|7