UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAPARAÍBA
CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Caline Genise de Oliveira Lima
A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:
uma abordagem léxico-semântica.
JOÃO PESSOA, PB
MAIO DE 2006
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Caline Genise de Oliveira Lima
A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:
uma abordagem léxico-semântica.
JOÃO PESSOA, PB
MAIO DE 2006
CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA
A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:
uma abordagem léxico-semântica
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras, área de concentração
Lingüística e Língua Portuguesa, da Universidade
Federal da Paraíba como requisito para obtenção
do título de Mestre, sob a orientação da Prof.a
Dr.a Maria das Neves Alcântara de Pontes.
JOÃO PESSOA
2006
CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA
A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL:
uma abordagem léxico-semântica.
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras, área de concentração
Lingüística e Língua Portuguesa, da Universidade
Federal da Paraíba como requisito para obtenção
do título de Mestre, sob a orientação da Prof.a
Dr.a Maria das Neves Alcântara de Pontes.
Aprovada em: ____/____/_____
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Profa Dra Maria das Neves Alcântara de Pontes
Orientadora (UFPB)
__________________________________________________________________
Profa Dra Ivone Tavares de Lucena
Titular (UFPB)
__________________________________________________________________
Profa Dra Ana Cristina Sousa Aldrigue
Titular (UFPB)
__________________________________________________________________
Profa Dra Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca
Suplente (UFPB)
À minha avó e à minha mãe,
exemplos de força feminina.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar a Deus, conforto para as longas noites de solidão.
À minha orientadora pela cumplicidade, paciência e zelo, em todos os momentos da
pesquisa.
Às professoras Marianne Cavalcante, Mônica Nóbrega, Fátima Batista e Maria
Cristina de Assis pelas inestimáveis contribuições durante o curso.
Ao meu pai, pelo incentivo em todos os dias de minha vida.
À minha família, em especial aos meus irmãos Carlos e Arlindo, sem o apoio e auxílio
de vocês, seria tudo mais difícil.
Ao amigo Fábio, que fez brotar em mim o estímulo para a realização do mestrado.
Ao precioso amigo Romair, que me acolheu em sua casa, pelo carinho, apoio e
estímulo incansáveis nas horas em que pensava em desistir.
Ao saudoso amigo Flávio, pela bondade, paciência e amizade mais sincera.
À amiga Clécia, pelo eterno companheirismo e ajuda nos momentos mais difíceis.
Ao amigo Moisés pela simplicidade e disponibilidade à leitura de meu projeto.
A Hermano, pelos diálogos, o incentivo e ajuda.
A Erick, pela amizade e pelas visões no campo da Semiótica e da Cultura Popular.
Aos amigos Linduarte, André, Rachel, Fernanda pelos momentos memoráveis, nas
pequenas reuniões, festas e almoços durante o curso. Vocês estarão na minha memória para
sempre.
À querida Adriene, pela amizade sincera de todas as horas, que sempre esteve presente
e a quem pude recorrer nas horas mais angustiantes. Você, com sua bondade e suas
brincadeiras, mostrou-me que o sonho era possível.
A meu amor Joaquim, ninguém como você para me confortar nas horas de maior
desespero e solidão.
À minha querida sogra, a quem devo expressar a mais sincera gratidão, pelo apoio em
todas as circunstâncias.
À companheira de longa data Ana Lígia, por não me ter faltado nos momentos de mais
sufoco.
À Gerlane, Maria Luíza, Linélia, Lurdinha, Lúcia e Janka, a vocês devo a eterna
gratidão pela sensibilidade e compreensão às minhas ausências em sala de aula, e a todos os
amigos de profissão, que nunca me faltaram.
À equipe técnica da escola Alberto Torres, em especial à Madalena, à Teresinha e
Nininha, pelo constante apoio e por terem acreditado que meu esforço valeria à pena.
“a significação de um signo verbal não é
autônoma, isto é, não pode nem se formar nem
aparecer fora dessa unidade, que é linguagem – e
– pensar, palavra – idéia.”
Schaff
RESUMO
A presente pesquisa visa a uma abordagem sobre os aspectos léxico-semânticos em
torno da representação do papel feminino na Literatura de Cordel. O referencial teórico desta
análise está assentado, fundamentalmente, na Lexicologia, destacando-se a Teoria dos
Campos Lexicais, da Cultura Regional, da Semântica e os aspectos antropossociais da
Literatura de Cordel. A aplicação das teorias possibilitou a organização dos dados
selecionados em campos, num corpus constituído por vinte folhetos de Cordel versando sobre
a mulher, que permitiu, desse modo, a chegar-se à interpretação das estruturas léxicas, neles
existentes. A partir daí, foi possível organizar-se cinco “macrocampos”, em que a mulher
aparece retratada nos mais diversos níveis, tais quais emocionais; sociais; culturais etc.
Palavras-chave: mulher, Literatura de Cordel, léxico, sociocultural.
ABSTRACT
The present research aims an approach to the lexical-semantic aspects on the
represention of the female role in Cordel Literature. The theoritical referencial to this analysis
is mainly based on Lexicology, very specially the Theory of the Lexical Fields, of the
Regional Culture, of Semantics as well as the socio-antropological aspects of Cordel
Literature. The employment of this theories allowed an organization of the in field selected
data in a corpus compounded of twenty Cordel booklets, what allowed, this way, to reach the
interpretation of the lexical structures which exist in them. From this point on, it was possible
to organize five main fields where the woman is portrayted in several levels, such as
emotional, social, cultural, etc.
Key-words: woman, Cordel Literature, lexicon, socio-cultural.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 12
2 LEXICOLOGIA .................................................................................................................... 15
2.1 LÉXICO E CULTURA ...................................................................................................... 16
2.2 A TEORIA DO RELATIVISMO LINGÜÍSTICO OU HIPÓTESE SAPIR-WHORF...... 19
2.3 CAMPOS LÉXICOS.......................................................................................................... 24
3 CULTURA: UM CONCEITO CONTROVERSO ................................................................ 29
3.1 NORMAS E PADRÕES SÓCIOCULTURAIS ................................................................. 33
4 A LITERATURA DE CORDEL........................................................................................... 39
5 A MULHER NO CONTEXTO SOCIOCULTURAL........................................................... 45
5.1 AS MULHERES NO SERTÃO NORDESTINO............................................................... 47
5.2 CONCEPÇÃO CRISTÃ SOBRE A NATUREZA FEMININA........................................ 49
5.3 A FAMÍLIA NO SISTEMA PATRIARCAL BRASILEIRO E A MORAL SEXUAL .... 52
6 METODOLOGIA, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS ............................................ 57
6.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE ...................................................................................... 57
6.2 ANÁLISE DO CORPUS.................................................................................................... 60
6.2.1 A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa ..................................................................... 60
6.2.2 A língua da mulher faladeira ...................................................................................... 65
6.2.3 A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia .................................................. 68
6.2.4 A mulher e o cangaço .................................................................................................. 77
6.2.5 A mulher no lugar do homem...................................................................................... 84
6.2.6 As duras lamentações de uma coroa............................................................................ 88
6.2.7 As modas escandalosas de hoje em dia ....................................................................... 93
6.2.8 Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia......................................................... 96
6.2.9 História da mulher da língua grande ......................................................................... 101
6.2.10 Maria Bonita – mulher macho, sim, senhor ............................................................ 104
6.2.11 Nascimento, vida e morte de uma coroa.................................................................. 109
6.2.12 O abc das mulheres.................................................................................................. 111
6.2.13 O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia ................................................. 117
6.2.14 O mundo pegando fogo por causa da corrução ....................................................... 123
6.2.15 O mundo vai estourar do jeito em que se vive ........................................................ 126
6.2.16 O poder oculto da mulher bonita ............................................................................. 128
6.2.17 O que uma coroa deve fazer para se casar............................................................... 134
6.2.18 Os amores de José e a traição de Maria................................................................... 138
6.2.19 Sofrimento das solteiras para arranjar marido......................................................... 141
6.2.20 Uma mulher traiçoeira ............................................................................................. 144
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 153
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 156
ANEXOS – Folhetos de Cordéis ............................................................................................ 164
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Campo léxico-semântico em A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa.............. 65
FIGURA 2 – Campo léxico-semântico em A língua da mulher faladeira................................ 68
FIGURA 3 – Campo léxico-semântico em A mulher de antigamente e a mulher de hoje em
dia. .................................................................................................................................... 77
FIGURA 4 – Campo léxico-semântico em A mulher e o cangaço. ......................................... 84
FIGURA 5 – Campo léxico-semântico em A mulher no lugar do homem. ............................. 88
FIGURA 6 – Campo léxico-semântico em As duras lamentações de uma coroa. ................... 93
FIGURA 7 – Campo léxico-semântico em As modas escandalosas de hoje em dia................ 96
FIGURA 8 – Campo léxico-semântico em Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia.
........................................................................................................................................ 100
FIGURA 9 – Campo léxico-semântico em História da mulher da língua grande.................. 104
FIGURA 10 – Campo léxico-semântico em Maria Bonita, mulher macho, sim, senhor....... 109
FIGURA 11 – Campo léxico-semântico em Nascimento, vida e morte de uma coroa. ......... 111
FIGURA 12 – Campo léxico-semântico em O abc das mulheres. ......................................... 117
FIGURA 13 – Campo léxico-semântico em O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da
orgia. ............................................................................................................................... 123
FIGURA 14 – Campo léxico-semântico em O mundo pecando fogo por causa da corrução.
........................................................................................................................................ 126
FIGURA 15 – Campo léxico-semântico em O mundo vai estourar do jeito em que se vive. 128
FIGURA 16 – Campo léxico-semântico em O poder oculto da mulher bonita. .................... 134
FIGURA 17 – Campo léxico-semântico em O que uma coroa dever fazer para casar. ......... 137
FIGURA 18 – Campo léxico-semântico em Os amores de José e a traição de Maria. .......... 141
FIGURA 19 – Campo léxico-semântico em Sofrimento das solteiras para arranjar marido. 144
FIGURA 20 – Campo léxico-semântico em Uma mulher traiçoeira. .................................... 148
FIGURA 21 – Esquema básico dos principais campos léxico-semânticos dos Cordéis
analisados. ...................................................................................................................... 150
12
1 INTRODUÇÃO
A Literatura de Cordel tem sido alvo de representações culturais da sociedade
nordestina e é uma das mais autênticas formas de manifestação da Cultura Popular da região.
Nos últimos anos, testemunha-se o crescente interesse que a Literatura Popular tem
despertado no meio acadêmico, tamanho é o acervo de artigos, teses e dissertações que a
elegeram como objeto de estudo, nos mais variados campos.
O estudo sobre essa literatura possibilita uma maior compreensão da experiência de
um povo, de sua identidade cultural, a partir dos dados fornecidos pelo inventário lexical, que
organiza, ou recorta seu sistema de valores, “um mundo lingüística e semioticamente
construído”, no dizer de Barbosa (2001, p.34).
Sobre a Cultura Popular, vejamos o que assinalam Cariry e Barroso (1982, p.19):
Como manifestação estreitamente vinculada à vida de imensas camadas de
nossa população, a Literatura Popular guarda a qualidade de refletir a
consciência e os sentimentos do povo (...). Aí está o seu grande valor. Quem
quiser perquirir a alma do povo, deve observar as manifestações de sua
literatura.
O caráter espontâneo da linguagem, desprendido dos padrões e normas técnicas, além
de comunicar de forma bastante simples, faz da Literatura de Cordel, em nosso entendimento,
a forma mais autêntica de expressão da mentalidade do povo nordestino.
A opção pelo estudo da mulher, no nível lexical, dá-se em virtude de ser a figura
feminina uma constante nesse tipo de literatura, objeto de descrição nas mais diferentes
feições que delineiam o destino imposto à mulher nordestina, sobretudo, na sociedade
patriarcal.
Ao longo dos anos, as mulheres nordestinas foram obrigadas a ocultar-se diante da
figura masculina, desaparecendo dos locais públicos, à medida que alimentavam a idéia da
13
superioridade do homem. Cresciam, dessa forma, acreditando que o sexo masculino era
potencialmente superior, conseqüentemente, o feminino, inferiorizado.
Apesar da relevância do material teórico à realização de uma análise léxico-semântica,
os estudos femininos interessados na linguagem ainda foram pouco explorados,
principalmente quanto à perspectiva deste objeto estudo.
O objetivo central desta pesquisa é investigar no léxico da Literatura de Cordel os
aspectos relativos à mulher, inserida na realidade nordestina. Considerando-se a realidade
lingüística da região nordestina e com vistas à consecução dos objetivos específicos, pretendese proceder a uma análise léxico-semântica de um número representativo de vocábulos,
apresentar um universo de significações pejorativas com relação à mulher e identificar o
inventário lexical que explicita a condição feminina, no contexto da sociedade nordestina.
O trabalho se estrutura em cinco capítulos, ancorados nos pressupostos teóricos que
poderão servir à elucidação das questões tomadas como hipóteses deste trabalho, assim
delineadas: a Literatura de Cordel revela, por meio das expressões e marcas próprias da
oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina; por meio de uma análise
léxico-semântica dos folhetos é possível identificar aspectos da realidade nordestina, face ao
contexto sociocultural; o vocabulário, interagindo com a cultura, revela, mais do que os
aspectos formais da língua, o modo como a mulher é percebida e tratada na sociedade.
Essa investigação é construída com base num trabalho de segmentação, orientada de
acordo com a natureza do objeto de estudo e no sentido de possibilitar uma visão
concatenada de idéias em relação aos postulados teóricos ancorados para análise do corpus.
Os quatro primeiros capítulos serão pautados no enfoque das questões em torno da língua,
cultura e sociedade, que competem para a perspectiva do trabalho. Embora a perspectiva
dessa pesquisa não seja sociológica, tomar-se-á esse estudo com vistas a aprofundar a
análise lingüística. No sexto capítulo, os folhetos de Cordel que compõem o corpus da
14
pesquisa, passarão a ser analisados, conforme os dados distribuídos em campos léxicosemânticos.
15
2 LEXICOLOGIA
A língua pode muito bem ser uma pátria,
como escreveu Fernando Pessoa, porque
como pátria se ganha, se perde, se adota ou
repudia. Mas, antes de pátria, a Língua é
sempre algo de mais íntimo: padrão e medida
da nossa alma; referência da nossa arte[...]
João de Melo
Nos últimos anos, tem-se assistido a um avanço significativo nos estudos
lexicológicos. Entretanto, a atenção dada às unidades do universo lexical, durante muito
tempo, esteve à mercê da velha tradição gramatical. Ainda na primeira metade do século vinte
não se tinha definido um método mais efetivo no tratamento dado ao assunto. Foi preciso
então esperar a segunda metade do século para que surgisse um estudo mais criterioso,
respaldado em teorias lexicais científicas, visando à descrição ou análise do léxico das
línguas.
É importante considerar que tanto a análise da palavra, a categorização lexical e
estruturação do léxico foram e ainda o são, de fato, matéria complexa para os pesquisadores
da língua. O léxico, apresentando um sistema que está em contínuo processo de expansão,
constitui para o estudioso da língua, uma rede imprecisa de elementos de difícil
sistematização, contrariamente, por exemplo, ao nível fonológico, que é normalmente mais
transparente ou homogêneo.
A parte da Lingüística que vai dar conta do estudo do léxico, interessando-se pela
análise da palavra, pela categorização e a estruturação lexical é a então denominada
Lexicologia, de acordo com Pontes (2002a, p.43).
Mantendo o intercâmbio com outras áreas do saber lingüístico, tais como a Semântica,
a Dialetologia e a Etnolingüística, a Lexicologia volta-se, sobretudo, ao interesse dos aspectos
16
socioculturais relacionados aos fenômenos da língua.
Pretende-se, nesta seção, desenvolver, numa perspectiva etno-sociolingüística, uma
abordagem sobre o léxico e a sua eminente relação com a unidade sociocultural. A propósito
desse assunto, enfatizar-se-á a relação que existe entre língua, cultura e sociedade. Atenção
especial será concedida à Hipótese Sapir-Whorf, numa tentativa em explicitar as bases mais
sólidas em que se encontram as posições desses teóricos a respeito da relação língua e cultura.
2.1 LÉXICO E CULTURA
A língua comporta um sistema de signos estreitamente vinculados ao processo das
relações sociais, “exatamente porque os homens sempre se comunicam uns com os outros por
meio de signos”, as palavras. (SCHAFF, 1968, p.160).
A vida social é assim permeada por um sistema de signos lingüísticos, e, por
intermédio deles, é resguardada a transmissão de uma cultura de uma geração à outra, o
patrimônio de uma comunidade, a aprendizagem de seus valores, concebidos e aceitos pelos
seus membros.
Embora apresente em suas faces uma parte intangível, uma estrutura (formal) que
independe dos indivíduos, há um lado da língua suscetível de variações, seja em virtude do
conjunto social, do contexto de uma época, de uma dada história e cultura. A língua varia
principalmente de acordo com as necessidades dos próprios falantes, captando o universo
cultural em que estes vivem. O mundo do falante é assim um mundo lingüístico – à medida
que a língua serve de interpretante desse mundo biossocial. Nas palavras de Câmara (1979, p.
16):
17
A língua é assim, antes de tudo, no seu esquema, uma representação do
universo cultural em que o homem se acha, e, como representa esse
universo, as suas manifestações criam a comunicação entre os homens que
vivem num mesmo ambiente cultural e estrutural, a sistematização da língua.
A partir dessas reflexões e reconhecendo que o estudo da língua envolve a relação do
homem com a sociedade, esse estudo não pode deixar de envolver o elemento cultural que
permeia tal relação. O domínio em torno do léxico poderia sustentar reflexões mais apuradas
da interação do indivíduo com sua cultura, e revelar mais sensivelmente a relação entre práxis
social e linguagem.
As palavras geradas no sistema de uma língua, segundo Biderman (1978),
correspondem a um processo cognoscitivo e são, na verdade, modos de organização dos dados
sensoriais da experiência de um grupo. Os signos lexicais têm a função de transmitir uma
representação coletiva. São eles que fazem existir o que se enuncia. Nesse sentido, o universo
conceptual de uma língua apresenta-se como um sistema ordenado e estruturado de categorias
léxico-gramaticais. Tais categorias seriam nada menos que um sistema de percepção e
apreciação da realidade.
Acresce-se, ainda, segundo a visão da professora, que embora todas as línguas estejam
embasadas num processo de sistematização, cada língua será moldada de acordo com a
conceituação de mundo dos membros de uma sociedade particular. Por isso, não é difícil
perceber que a norma lingüística condiz normalmente com a freqüência de uso dos signos
lingüísticos, normalmente aceitos pelos membros de um grupo. (Ibid, p.179-180).
Com efeito, o léxico, cujas formas contemplam as experiências sociais, reflete todo
um conjunto de aquisições culturais em torno das vivências de uma comunidade. O léxico,
assim, está correlacionado a tudo aquilo que os indivíduos inventam, constroem ou
consideram relevante, ou seja, às suas crenças, aos seus interesses e às suas atividades.
No estudo das línguas, o que permanece em toda a discussão referente ao léxico diz
respeito, principalmente, à capacidade que tem o inventário lexical de englobar os aspectos
18
vinculados à realidade social e cultural, motivado pelas mudanças contínuas. Desse modo, a
palavra só pode ser vista enquanto imersa num dado contexto. O significado é extremamente
elástico, o que elimina da língua a chance de qualquer lance de arbitrário ou acidental, nas
situações plausíveis de comunicação.
Fato é que, com a evolução dos tempos, o repertório de signos lexicais variou
consideravelmente e novos termos foram incorporados às línguas humanas. O processo de
expansão da língua foi o próprio homem quem empreendeu - realizando novos projetos,
assinalando novos rumos, juntamente com outros membros de sua comunidade, motivando,
dessa maneira o grande número de criações lexicais.
A causa primeira da expansão do léxico parece ter sido o contato mais freqüente entre
os povos; a expansão das relações entre as nações nos mais variados contextos socioculturais;
as novas demandas de trabalho e de profissões; o avanço de tecnologias e das ciências etc.
No âmbito da fala, as alterações do léxico também podem ser evidenciadas com mais
nitidez. Os indivíduos, em situações espontâneas e em condições reais de uso, seja pela busca
de sentido, ou para ocasionar maior expressividade no âmbito da comunicação, estão sempre
incorporando novas palavras no universo das línguas. Muitas dessas criações léxicas
produzidas perduram e se estabelecem no vocabulário das línguas, outras simplesmente têm
vida passageira, servindo única e tão simplesmente para a obtenção de uma força expressiva
em um momento e contexto específicos. (BIDERMAN, 1978, p. 166).
Um outro dado relevante sobre as formas neológicas, dá-se, o mais das vezes, pelo fato
de uma competência lexical insuficiente, ocasionada no falante, em determinados contextos:
as criações lexicais normalmente surgem com fins de superar essa deficiência. A rigor, é no
nível da fala, onde o léxico parece adquirir maior fluidez, que normalmente se instala toda
uma ordem de criações léxicas.
Finalmente, a permanência de uma criação léxica numa comunidade lingüística
19
depende da necessidade sentida pelos falantes em preservá-la. Nesse sentido, é preciso
concluir com Biderman que:
O processo de dicionarização de um neologismo reflete a continuidade do
seu uso no vocabulário geral. Ou seja: o vocábulo novo só é dicionarizado
quando ele já foi aceito por toda a comunidade que fala aquela língua.
(BIDERMAN,1978, p. 166).
2.2 A TEORIA DO RELATIVISMO LINGÜÍSTICO OU HIPÓTESE SAPIR-WHORF
A Hipótese do Relativismo Lingüístico que brotou dos trabalhos em campo dos
antropólogos Boas e Sapir, tornou-se notável na Lingüística Americana dos anos 50. Foi a
partir das idéias célebres de Franz Boas, impressas no Handbook of American Indian
Languages, que Sapir formulou sua problemática. (BOAS apud MARCELLESI e GARDIN,
1975, p. 29).
Acreditando na coexistência entre linguagem e cultura, Boas interessou-se em
descrever a gramática das línguas, definindo as categorias lingüísticas de acordo com os
fenômenos observados pelos falantes das línguas tomadas como objeto de análise.
Como se vê, apesar da doutrina dos etnólogos americanos ser comumente associada à
doutrina dos filósofos da linguagem, ou mais especificamente à tradição humboldtiana, suas
concepções, ou mesmo, a sua essência, brota do pensamento americano. Faz-se necessário,
pois, sublinhar as posições em que divergem uma e outra doutrina. Nessa perspectiva,
apropriamo-nos das idéias esboçadas por Marcellesi e Gardin (1975, p. 30-32):
a) Os argumentos dos filósofos da linguagem são especulativos, enquanto que, toda a teoria,
formulada pelos lingüistas americanos, parte de observações puramente empíricas. Tem-se
aí a primeira distinção quanto ao procedimento utilizado pelos estudos na análise das
línguas;
20
b) Outro aspecto que vale salientar a respeito dessas teorias é que, enquanto os filósofos
exercem observação sobre as línguas européias já conhecidas por eles, os lingüistas
americanos baseiam-se em dados coletados por modelos definidos por eles próprios, face
ao sistema de idiomas recém descobertos. Por meio da realização desse trabalho empírico,
os antropólogos puderam confrontar os dados apreendidos em função dos idiomas
desconhecidos àqueles notados em línguas européias. Isto permitiu que eles chegassem à
conclusão de que há diferença radical entre as línguas e as visões do mundo ameríndias e
as dos europeus.
É importante considerar ainda que, embora tenham sido Boas e Sapir quem
primeiramente definiu o conceito-base da Relatividade Lingüística, foi Whorf quem
desenvolveu a investigação; mais que isso, foi ele quem formulou o conjunto mais radical da
tese. Há então pontos em que divergem os dois estudiosos.
A linguagem, para Sapir (1980, p. 32), funciona como poderoso instrumento de
socialização. O isomorfismo entre a língua e cultura não pode ser concebido numa visão
simplista, não existe correspondência simples entre a forma de uma língua e a forma geral de
uma cultura daqueles que a falam. Entende esse estudioso que o efeito organizador da
experiência de mundo possui relação restrita com o léxico de uma língua. Este, por sua vez,
“constitui um indicador extremamente sensível da cultura de um povo”, mas não existe, além
do vocabulário, nenhum dado lingüístico que exerça um efeito modelador sob a percepção de
mundo.
Sapir sugere, desse modo, que há limite para a incorporação dos dados lingüísticos à
cultura de um povo. Não se pode afirmar, segundo ele, que à mesma proporção que a cultura
de um povo evolui, evolui também a língua. Desse modo, enquanto a cultura insere-se nos
condicionamentos físicos, psíquicos coletivos e constitui uma herança da vida passada e o
conjunto de reflexos e anseios de vida em sociedade, a língua evolui de modo mais lento.
21
Contrariamente, Whorf, na esteira de Humboldt, defende que é a gramática das línguas
que exerce a função de moldar as idéias, que as imagens mentais são definidas, estruturadas
pela língua. Assim assevera Whorf apud CARROL (1973, p. 105):
A formulação de idéias não é um processo independente, estritamente
racional na velha acepção [...] Dissecamos a natureza segundo diretrizes
baixadas por nossas línguas nativas. As categorias e os tipos que isolamos
do mundo de fenômenos, não os encontramos aí porque estão evidentes a
cada observador; pelo contrário, o mundo se apresenta num fluxo
caleidoscópico de impressões que têm de ser organizadas por nossas mentes
– e isso quer dizer principalmente pelos sistemas lingüísticos em nossas
mentes [...].
A respeito da Hipótese do Relativismo Lingüístico, Lyons (1987, p. 276) assinala:
A hipótese Sapir-Whorf, como normalmente é apresentada, combina
determinismo lingüístico [“a linguagem determina o pensamento”] com
relatividade lingüística [“Não há limites para a diversidade estrutural das
línguas”].
A teoria Sapir-Whorf, em essência, combate a impressão ilegítima de que as línguas
comportam modelos universais de significação. Além disso, desfaz a concepção de que a
linguagem é um “decalque do pensamento” - noção inclusive muito recorrente em vários
manuais didáticos para o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. É lícito então afirmar,
segundo as premissas dessa teoria, que as línguas delimitam a experiência vivida pelos
falantes de uma determinada sociedade.
Os impasses, as investidas maiores no campo da Lingüística, da Antropolingüística e
da Psicolingüística nas décadas de 50 e 60, parecem ter sido motivados pelo problema exposto
na Hipótese do Relativismo Lingüístico de que “seriam as estruturas gramatical e lexical de
uma língua o resultado do pensamento, do domínio cultural de um povo”, ou, de forma
diferente, se seria “o pensamento de um grupo, as delineações socioculturais, responsáveis por
determinar as estruturas de uma língua”. Corroborando ou divergindo dos princípios em que
22
se baseia tal doutrina, muitos trabalhos foram realizados na época com o intuito de combater
essas noções ou mesmo de reformulá-las.
Embora sejam múltiplas as dimensões tomadas em torno das proposições que
envolvem o conceito de cultura, envolvendo a sua relação com a língua, é válido assinalar que
o levantamento de vários estudos a esse respeito revela um ponto em que convergem as
distintas concepções, o aspecto de equilíbrio circunscrito entre as posições está na referência à
questão da significação. Antropólogos, lingüistas e psicolingüistas têm concordado com a
noção de que há, em toda e qualquer cultura, um índice de códigos, lingüística e
semioticamente falando, que asseguram a relação comunicativa entre os membros de um
grupo social. Tais códigos são fabricados, estabelecidos na própria estrutura social. Nesse
sentido, os indivíduos devem interpretá-los e segui-los para que assim sejam aceitos em
sociedade.
Não é motivo de controvérsias também considerar, nesse sentido, o fato de que a
linguagem constitui a expressão da realidade cultural e social de um grupo. Toda a vida dos
signos está imbuída numa semiose que envolve o estatuto de estrutura gramatical e semântico
de uma língua.
É por essa razão que ao estudarmos a cultura de um grupo, o exercício de
simbolização presente entre uma e outra sociedade, conseguimos chegar mais perto da
compreensão do modo de vida de um povo, de seus hábitos de vida, seu conjunto de crenças,
construídas ao longo do tempo.
Difícil é precisar o momento em que se contrai língua e cultura, o elemento em que
uma ou outra grandeza age primeiro - se é a língua que influencia o modo de pensar dos
indivíduos ou se é a cultura que atua diretamente na língua. Ou, mais precisamente, qual o
limite da intervenção das categorias lingüísticas no pensamento das pessoas, dos falantes de
uma língua, ou vice-versa.
23
Importa observar que, uma e outra, língua e cultura são realidades que se
complementam. Diante dessas posições, é possível admitir que a colisão entre essas duas
grandezas ocorre quando o indivíduo falante exterioriza um conceito, antes formado nas
estruturas psíquicas para, posteriormente, exteriorizá-lo, torná-lo público por meio de um
recorte lingüístico daquilo que observa do mundo objetivo.
A posição proposta é a de que língua e cultura constituem realidades distintas, mas que
coexistem em determinado momento. No que diz respeito à Hipótese Sapir-Whorf, destaquese a versão mais fraca da hipótese, que considera o léxico como o elemento lingüístico, o qual
constitui um indicador sensível à cultura de um povo, diferente do nível sintático e fonológico
das línguas.
A versão forte da Hipótese do Relavismo Lingüístico foi desenvolvida por Whorf, que
desenvolveu as idéias do seu mestre, postulando que a língua era um instrumento de
organização para a atividade mental dos indivíduos de organização.
A relação entre língua e pensamento de um povo revelar-se-ia presente em modelos de
codificação lingüística, verbal ou não, que fazem parte dos jogos comunicativos. A língua
tece a organização do conteúdo informacional contido nas mentes do indivíduo e traz, em seus
contornos formais, os traços culturais particulares da sociedade.
Compreendendo a inter-relação entre língua e cultura na construção de uma realidade,
pode-se compreender melhor, também, a visão que o indivíduo constrói de si mesmo. Em
outras palavras, o modo como o indivíduo se percebe está relacionado diretamente ao modo
como ele estabelece e mantém relação com outros indivíduos e com o mundo.
Finalmente, a Hipótese Sapir-Whorf fornece uma base sólida à investigação da relação
entre língua e cultura, enquanto construção de uma realidade.
24
De acordo com as questões acima levantadas, e considerando-se os pressupostos que
se assentam na interpretação dos aspectos antropossociais da análise, segue-se à discussão da
Teoria dos Campos Lexicais.
2.3 CAMPOS LÉXICOS
Um termo dado é como o centro de uma
constelação, o ponto para onde convergem
outros termos coordenados cuja soma é
indefinida.
Saussure
A Teoria dos Campos Lexicais tem uma longa tradição na Lingüística Românica. Na
Antiguidade Clássica, encontra-se esparsa bibliografia de dicionários onomásticos. O
Thesauru of English Words and Phrases, publicado em 1852 por P. M. Roget, constitui o
primeiro importante dicionário ordenado por grupos conceituais, seguindo a lógica da
Onomasiologia. (ROGET apud GECKELER, 1976, p. 113).
No final do séc. XX, com o florescimento dos estudos na área da Geografia
Lingüística e aumento de interesse pelos problemas em torno do léxico, produziram-se
grandes avanços na área da Semântica, indo em direção à Lexicografia e respectivamente da
própria Lexicologia.
A Teoria dos Campos adquiriu grande êxito com as pesquisas na área de Lexicologia a
partir dos trabalhos de J. Trier e J. L. Weisgeber. Partidários da doutrina de Humboldt, esses
lingüistas reafirmaram a tese da “língua, espelho do povo que a fala”. Para eles, tanto a
experiência de mundo exterior, vale dizer da cultura, como a própria estruturação do
pensamento, são motivadas pela linguagem. Pensavam, pois, que os “campos semânticos”
seriam organizados de modo particular, segundo cada língua. Daí, essa teoria passou a ser
descrita como neo-humboltiana, como afirma Ullmann (1964).
25
Assim seguiriam, na esteira de Humboldt, outros lingüistas, preocupados com as
estruturas psíquicas e socioculturais dos “campos semânticos”. Para eles, os campos
semânticos reproduzem essas estruturas, sistematicamente, variando em função das
características particulares de cada língua.
O semanticista S. Ullmann (1964, p. 522-523) enfatiza o papel que a Teoria dos
Campos teve para o desenvolvimento da Semântica Moderna, o qual se chegaria a partir das
realizações de Trier. A Teoria dos Campos teve importância, no entender de Ullmann, pelas
razões seguintes: a) “conseguiu introduzir um método verdadeiramente estrutural, num ramo
da lingüística”; b) estabeleceu o conceito dos campos associativos, essencial para a resolução
de problemas antes ignorados ou desapercebidos, tais como a questão da estrutura
significativa global e o contexto, imediatamente relacionado a ela; c) revelou-se como
mecanismo de investigação poderoso para a complexa questão da relação entre língua e
pensamento.
E do ponto de vista da terceira questão, continua o lingüista:
Um campo semântico não reflete apenas as idéias, os valores e as
perspectivas da sociedade contemporânea; cristaliza-as e perpetua-as
também, transmite às gerações vindouras uma análise já elaborada da
experiência através da qual será visto o mundo, até que a análise se torne tão
palpavelmente inadequada e antiquada que todo o campo tenha que ser
refeito. (ULLMANN, 1964, p. 523).
Embora tenha sido Trier o grande cultor da Teoria dos Campos, as referências
bibliográficas do período anterior aos de seus trabalhos, traziam formulações que já atentavam
para a existência dos “campos lingüísticos”.
E. Tegnér, por exemplo, em trabalho de 1874, antecipa a noção de campo lingüístico,
usando o termo “campo”.
Em 1910, Meyer também fala do assunto. Define os campos como “sistemas
semânticos” que, segundo ele, são como “la agrupación de um número limitado de
26
expresiones desde um punto de vista individual”. O autor distingue ainda três tipos de
sistemas semânticos: “naturais”, “artificiais” e “semiartificiais”. (MEYER apud GECKELER,
1976, p. 100).
A definição elaborada por Ipsen, em 1924, foi de fato a que mais claramente tratava da
questão dos campos, anteriormente a Trier. Na fórmula de Ipsen, as palavras de uma língua
estariam todas reunidas em “campos semânticos”, “como en un mosaico, una palabra se une
aqui a la outra, cada una limitada de diferente manera, pero de modo que los contornos
queden acoplados y todas juntas queden englobadas en una unidad semántica de orden
superior, sin caer en una oscura abstracción”. (IPSEN apud GECKELER, 1976, p. 103).
Posteriormente, alguns dos princípios estruturais presentes na doutrina de Ipsen e
algumas linhas do pensamento de Saussure serão ajustados à nova doutrina de J. Trier. É o
próprio Trier quem confessa a influência dos estudos anteriores em sua teoria:
No sabría ya decir si la teoria Del campo la he desarrolado sólo con ayuda de
SAUSSURE o si me han influido también líneas de Ipsen...En el conjunto de
mis ideas me siento especialmente influenciado por FERDINAND DE
SAUSSURE y especialmente ligado a LEO WEISGERBER. (TRIER apud
GECKELER, 1976, p. 103)
De Saussure, Trier se baseia mais particularmente na idéia de que os signos
lingüísticos delimitam-se uns aos outros, ou seja, é na confluência dos elementos que se
obtém a significação. Todos os signos apresentam-se concatenados por uma rede de relações
significativas que os ligam sempre a outros termos do sistema. Consiste, na verdade, numa
teia formada de infinitas relações paradigmáticas. (PONTES, 2002b, p.56).
A idéia basilar que fundamenta todo o pensamento trieriano é a “articulação”. Para
Trier, as palavras formam, a partir de um campo conceitual, uma mútua dependência. Além
disso, por trás de toda a estrutura, do conjunto lexical, há sempre uma significação. A essência
significativa é, aliás, o resultado do conteúdo total, globalizado. (TRIER apud GECKELER,
1976, p. 119).
27
A concepção de campo de Trier e L. Weisgesber continuaria influenciando mais tarde
na produção de importantes investigações lingüísticas. A primeira delas seria a de Bally, que
introduziria o conceito de campo associativo, aprofundando o estudo referente às séries
associativas ou paradigmáticas saussureanas, que apontavam às noções de campo.
O semanticista Ullman (1964, p. 500-501), sintetizando as idéias de campo associativo
formuladas por Bally, argumenta:
O campo associativo de uma palavra é formado por uma intrincada rede de
associações, baseadas algumas na semelhança, outras na contigüidade,
surgindo umas entre sentidos, outras entre nomes, outras ainda entre ambos.
O campo é por definição aberto, e algumas das associações estão
condenadas a ser subjetivas, embora as mais centrais sejam em larga medida
as mesmas para a maioria dos locutores.
A teoria dos campos impressionou vivamente alguns dos discípulos de Trier e fez
florescer diferentes definições rivais dos campos semânticos, diante dos conceitos
preconizados pelo fundador.
Uma das críticas mais recorrentes, com relação à doutrina trieriana, é com relação às
terminologias por ele utilizadas. Critica-se, fundamentalmente, que em suas investigações
Trier utiliza os termos “campo léxico”, “esfera conceitual” e “campo lingüístico”, sem
estabelecer distinções dos limites de uso de cada um dos termos em específico, causando,
pois, uma grande imprecisão terminológica.
Nos anos 50, a teoria de campo, nas linhas de Trier, seria reavivada pela experiência
teórica e prática de L. Weisgerber. Não foi sem razão, pois, que a doutrina passou a ser
considerada na Lingüística como Trier-Weisgerber (GECKELER, 1976, p. 125).
Propondo uma definição de campo semelhante à dos “campos léxicos” de Trier,
Weisgerber, no círculo lingüístico “Lenguaje y Comunidad”, realizado em 1956, introduz o
conceito de “esfera conceitual”. Definindo com mais precisão o método de análise lingüística,
28
o autor fornece classificações, de acordo com a essência da “articulação” instituída para o
campo léxico.
Na vanguarda da Lexicologia francesa, o lingüista G. Matoré apud Ullmann (1964, p.
526), também conduz uma abordagem sobre os campos, pondo em enfoque a questão da interrelação entre língua e sociedade. Em 1953, Matoré publica La métode em lexicologie um ano
após ter publicado a tese de doutorado Le vocabulaire et la société sous Louis Philippe.
Dando uma roupagem sociológica ao método, Matoré previa uma Lexicologia concebida sob
as diretrizes da Sociologia. Introduziu, assim, o conceito de “palavras-chave e palavrastestemunhas” para descrever a estrutura social.
Para o lingüista francês, a partir do vocabulário de uma língua, poder-se-ia conhecer as
características específicas de uma comunidade. Embora tenha ido longe demais no problema
da classificação da Lexicologia, as suas considerações são pertinentes no que tange à
dimensão social da língua, fato é que o léxico consiste no patrimônio social de uma sociedade.
Diante das diferentes abordagens consideradas, pode-se entender que a análise da
estrutura vocabular de uma sociedade depreende o universo conceitual, a visão de mundo que
se reflete nos contornos formais da língua. Um campo lingüístico é, na verdade, um sistema
de idéias, de conceitos os quais se formam em função de uma cultura e de uma sociedade.
Os diferentes conceitos levantados pelos lingüistas em torno da Teoria dos Campos,
referendam a inter-relação entre língua, cultura e sociedade e fornecem uma valiosa
contribuição aos estudos lexicais, uma vez que se inserem numa abordagem sócioetnolingüística.
Nessa perspectiva, apresentar-se-á, no capítulo seguinte, uma revisão sobre o conceito
de cultura, que converge com a natureza desse trabalho.
29
3 CULTURA: UM CONCEITO CONTROVERSO
A cultura ultrapassa a natureza, mas está
profundamente enraizada nela.
Kaj birket-Smith
A preocupação e o interesse do homem pelo homem não é privilégio das sociedades
mais recentes. “O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo” – observa Laplatine
(1988). A verificação de que as sociedades divergem entre si quanto ao modo de vida eclodiu
nos primórdios da humanidade, suscitando a busca pelo entendimento e compreensão da
história e dos perfis humanos, ou mais especificamente, das culturas humanas.
Pode-se dizer, então, que a elaboração do pensamento do homem sobre ele mesmo é
tão antiga quanto a existência da humanidade, mas só modernamente o estudo voltado à
descrição e comparação dos povos, passou a constituir um saber científico, tomando como
objeto de conhecimento o “próprio homem”. É no final do séc. XVIII que se tem, pela
primeira vez, um estudo sobre as “culturas humanas”, com métodos até então utilizados
apenas na área da Física ou da Biologia.
Desde a primeira concepção de cultura, formulada por E. B. Tylor (1871), o conceito
de cultura tem sofrido ampliações ou reformulações por parte de pensadores e investigadores
interessados em construir uma nova idéia do que seja cultura. Fato é que, tendo passado mais
de dois séculos da primeira definição do conceito, quando já poderia existir um certo
consenso entre a comunidade científica sobre o problema, percebe-se, na realidade, que as
polêmicas sobre a questão da cultura têm se tornado cada vez maiores entre os historiadores,
antropólogos e sociólogos e demais cientistas das ciências humanas. Isso atesta que o
problema está longe de se extinguir.
As discussões mais atuais sobre cultura envolvem tanto aspectos intimamente
relacionados às instituições sociais, remetendo a preocupações classicamente associadas ao
30
assunto, tais como artes plásticas, arquitetura, literatura, manifestações lúdicas e religião, mas
também se voltam a questões relacionadas à identidade, ou seja, aos sistemas de crenças e
valores, presentes nas relações sociais institucionalizadas.
A interpretação e aplicação do conceito tem variado de acordo com o método e da
orientação teórica assumida pelo pesquisador. De fato, todo discurso científico deve
demonstrar uma determinada posição a respeito do tema problematizado – “não porque haja
somente uma direção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: é necessário escolher”.
(GEERTZ, 1976, p. 15).
Em geral, a primeira preocupação dos cientistas em definir o que é cultura, diz respeito
à questão de sua origem. Essa remete a outras duas que estão sempre presentes nas
formulações dos analistas, quais sejam: “o que faz do homem um ser cultural?” e “o que é
permitido através da cultura?”.
Embora muitos autores atribuam peso distinto ao conceito de cultura, parece haver
consenso pelo menos no tocante a duas noções: primeiro, que “não existe sociedade sem
cultura” e segundo, um dos aspectos mais importantes e que está na base desse conceito, é a
“significação”.
Um dos mais célebres antropólogos franceses, Claude Levi Strauss (1976, p. 45),
assinalou que a cultura teria seu surgimento a partir do momento em que o homem
convencionou a primeira norma, ou seja, a “proibição do incesto”, característica mais ou
menos comum em todas as sociedades humanas. Nas sociedades consideradas “civilizadas”, o
grau de proibição das relações sexuais entre o homem e as categorias de mulheres da mesma
família estendem-se à mãe, à filha e à irmã, como se é sabido..
Com efeito, a capacidade de criar, de estabelecer designações, elaborações culturais é
um processo inerente à capacidade que o homem tem de estruturar em seu pensamento, a
partir de um conjunto de doutrinas, de unidades simbólicas, as manifestações empíricas de
31
uma determinada sociedade. Essas seriam mantidas de forma muitas vezes “inconsciente” na
mente dos indivíduos.
Poder-se-ia, de maneira simplificada, dizer com Adamson Hoebel (1952, p. 212): “A
capacidade cultural do homem é conseqüência da complexidade e plasticidade do seu sistema
nervoso”. Somente o homem atingiu tal nível de complexidade e adaptabilidade que permitiu
o desenvolvimento de uma elaboração cultural que se não é a principal, é uma das fontes mais
extraordinárias da inteligência humana, qual seja a capacidade de comunicar-se com outros
indivíduos a partir da linguagem.
A tese central de Hoebel é mostrar que é a capacidade psíquica e orgânica presente no
homem o fator que o difere de outros animais. É, pois, com essa capacidade que o indivíduo
pode controlar coisas tão simples como a hora, a caça e mesmo produzir determinados
artefatos materiais e simbólicos. Aquilo que é considerado arte: pintura, escultura, etc, enfim,
pode realizar determinadas intervenções na natureza, de diferentes proporções.
Pelo exposto, dá para ter uma idéia da dimensão do problema que é definir cultura. A
noção de cultura se estende a vários domínios da existência humana. Envolve tanto a
dimensão psíquica ou racional do homem, como também o aspecto social e,
conseqüentemente, os valores materiais e espirituais que dizem respeito às qualidades
inerentes ao homem. (PONTES, 2002a, p. 72).
Essa pesquisa não busca trazer respostas definitivas, nem muito menos julgar ou
analisar criticamente uma ou outra definição de cultura, tentando justificar lacunas ou
desacertos. Contudo, acredita-se que as diferentes posições a respeito do tema podem servir
ao embasamento teórico frente à questão da inter-relação existente entre cultura, língua e
sociedade.
A abordagem baseia-se na concepção de cultura formulada por Clifford Geertz (1978,
p. 15), que caracteriza a cultura como “sistema simbólico”. O autor defende um conceito de
32
cultura essencialmente semiótico, através do qual os símbolos e significados são partilhados
pelas pessoas que convivem num determinado sistema cultural. Esses devem ser vistos, na
concepção de Geertz, não através de uma descrição densa, mas “semanticamente densa”.
E na trilha de Marx Weber, Geertz declara:
o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto
não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 1978, p.
15).
Essa procura de significado, na concepção do autor, está em extrair de um evento ou
práxis social o sentido, até que se possa compreender o valor que está por trás de um
acontecimento, de uma estrutura simbólico-significativa, presente em qualquer cultura, em
qualquer sociedade. E concebendo a cultura numa estrutura que se opera através de “signos
interpretáveis”, Geertz continua:
a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os
acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma
inteligível – isto é, descritos com densidade. (Ibid, p. 24).
Deve-se atentar, pois, para o fato de que os símbolos se constituem num universo
particular de cada cultura. A interpretação de cada fenômeno cultural, um gesto, um
comportamento, por mais simples que aparente ser, deverá ser visto ou interpretado em
função do que a cultura estabeleceu para si, em termos de implicação e sentido. Assim, cada
cultura, cada grupo social em específico ou “comunidade cultural” estabelece as maneiras de
agir, de interpretar ou conceber uma realidade e a forma de comunicação que se deve
estabelecer entre os seus atores, usuários.
Vê-se, assim, que a cultura consiste em estruturas de significado socialmente
estabelecidas e que “os atos são marcos determinados”. Um exemplo disso é que, ao
33
encontrar-se em terras alheias, o indivíduo logo se depara com tradições diferentes da qual
não está acostumado e sente-se, de certa forma, “perdido” no novo ambiente. Em outras
palavras, sem entender a sociedade e a cultura com suas próprias relações sociais e valores, é
impossível interpretar e entender uma realidade divergente e também muito difícil conviver
com ela. (DA MATTA, 1991, p. 34).
3.1 NORMAS E PADRÕES SÓCIOCULTURAIS
A participação dos indivíduos na cultura de uma sociedade não pode ser encarada
como um evento fortuito e fora de contexto. Como considera Hoebel (1952, p. 212), os
padrões integrados de comportamento são fundamentados a partir dos “hábitos de massa”.
Qualquer evento criativo e manifesto não pode, em hipótese alguma, ser classificado como
parte da cultura da sociedade, se fosse conhecido apenas por um indivíduo. É o aspecto de
coletividade um dado primordial que caracteriza a existência de todas as culturas.
Na vida em sociedade, os indivíduos estão sujeitos a submeter-se a certos padrões de
comportamentos que se configuram em “hábitos de comportamento”. É o que afirma
categoricamente Hoebel (op. cit., p. 212), embasando-se nas idéias de William Graham
Sumner:
Cada nôvo indivíduo, quando nasce ou entra no grupo, é submetido ao
processo de treinamento ou doutrinação, hoje denominado
enculturação [...] Os indivíduos são modelados mais ou menos de
maneira uniforme segundo o molde comum. Um mínimo de
padronização é o destino de todos. (sic).
Contudo, é preciso salientar que as normas não se aplicam uniformemente por toda
uma sociedade. Existem determinados modelos de conduta que valem sem distinção para
todos os membros de uma sociedade, são as chamadas normas universais. Essas, como a
34
própria denominação indica, dizem respeito às convenções que se aplicam de maneira global
aos membros da sociedade, e impossibilitam desvios de conduta. É oportuno dizer que a
proibição do incesto, de que já falamos aqui, é um caso de norma universal.
Observe-se ainda que nenhuma sociedade é homogênea. Existem padrões culturais que
variam de acordo com cada sociedade em específico. Determinadas distinções sociais são
fundamentadas em função das variáveis como sexo e idade.
Assim, as distinções presentes nas relações baseadas nessas duas categorias podem ser
consideradas como norma universal. Contudo, é a dinâmica social interna que define os traços
específicos de comportamento para as relações que se estabelecem entre os sexos e entre os
grupos de idades e mesmo de gerações diferentes. “Isto significa que existem subgrupos
internos em toda sociedade. Cada um deles tem suas próprias características de
comportamento, as quais se aplicam apenas aos seus membros. Essas normas são conhecidas
como específicas”. (HOEBEL, 1952, p. 213).
Assim, embora algumas delas possam ser partilhadas por todos os adultos é bem
possível que as mesmas não sejam compartilhadas por crianças, do mesmo modo que muitas
idéias e atividades adultas são partilhadas apenas pelos membros de certos agrupamentos em
sociedade, como homens, mulheres ou artífices especializados. (LINTON, 1945, p. 48).
Uma outra questão importante a ser considerada é que os elementos partilhados
socialmente não obedecem a uma estrutura permanente e estática, alheia a inovações no eixo
do tempo. Muito pelo contrário, as culturas estão sujeitas a mudanças e elas se alteraram com
o passar do tempo pura e simplesmente porque a humanidade, no ensejo de empreender novos
inventos, angariar novas conquistas, está sempre redefinindo e reformulando seus conceitos,
suas visões face ao mundo.
Não é preciso dizer que a realidade da sociedade brasileira no séc. XIX é
profundamente diferente da que temos hoje em dia, seja no seu aspecto econômico e político e
35
geográfico, seja quanto ao desenvolvimento nas relações de classe. Enfim, toda a conjuntura
sociocultural da sociedade brasileira mudou e muito de lá para cá.
Como ressalta Tomasello (2003, p. 5), “as tradições e os artefatos culturais dos seres
humanos acumulam modificações ao longo do tempo”. Para ele, muito das mudanças
culturais significativas nas sociedades, tais como as que são operadas no sistema religioso,
político e econômico num grupo social, são resultantes de cooperação, “tanto simultânea
como sucessiva ao longo de gerações e de muitas pessoas e de uma maneira que nenhuma
pessoa ou grupo de pessoas pretendia ou teria previsto”.
O axioma de Leibniz “a natureza não dá saltos” parece ser inteiramente aplicável à
questão das mudanças culturais de que trata Tomasello. O fato é que as mudanças são
fundamentais do ponto de vista histórico-cultural de uma sociedade. É evidente que a
sociedade sofre transformações e com elas também os indivíduos incorporam mudanças, mas
é correto afirmar que as transformações não ocorrem abruptamente. Com efeito, as mudanças
não são fortuitas; haverá sempre uma ligação entre um evento cultural novo e um mais
recente; ademais, elas são organizadas paulatinamente a partir de um processo coletivo, como
já foi dito antes.
A capacidade de criar tradições e artefatos materiais e acumular suas experiências
exigiram do homem não só a capacidade de invenção criativa, mas também um modo de
transmissão social que garantisse a sofisticação de seu aparelho cultural e impossibilitasse o
retrocesso desse processo. Segundo Tomasello (Ibid., p. 6), a evolução e acumulação das
experiências culturais só foi possível graças ao chamado “efeito catraca” - através do qual um
produto ou prática recém-inventada preserva-se e aperfeiçoa-se até que surja uma outra forma,
mais aperfeiçoada, que possa substituí-la.
Desse modo, a catraca cultural consiste na atividade de atualizar o “gen cultural”, ou
seja, promover a transposição da aprendizagem cognitiva de uma geração à outra. É o que diz
36
Tomasello (2003, p. 9): “O mais importante é que a evolução cultural cumulativa garante que
a ontogênese cognitiva humana ocorra num meio de artefatos e práticas sociais sempre novos
que, em qualquer tempo, representam algo que reúne toda a sabedoria coletiva de todo o
grupo social ao longo de toda a sua história cultural”. Simplificando, a evolução cultural
cumulativa é a chave para as impressionantes realizações cognitivas humanas.
Todos os seres humanos estão destinados a viver num certo tipo de ambiente social
para se desenvolver cognitiva e socialmente. Tal ambiente social, a cultura, é, como ressalta
Tomasello (Ibid, p. 109), nada mais do que o “nicho ontogenético típico e exclusivo da
espécie para o desenvolvimento humano”. Traduzindo, a organização e o pensar de uma
sociedade dependem, intrinsecamente, do modo como é configurada a cultura.
Idéia bastante semelhante a essa é a que é apresentada por Kroeber apud Laraia (1975,
p. 70), ainda que numa perspectiva diferente. Este define a cultura como sendo “um meio de
adaptação aos diferentes ambientes”. Para ele, os comportamentos seguem um curso
determinado pela cultura e o homem é um ser modulado pela cultura, ou seja, age de acordo
com o modelo de cultura que lhe foi transmitido. Ele necessita, pois, de construir seu
“habitat” social. E a cultura permite ao homem não somente adaptar-se em seu meio, mas
também este meio adaptar-se ao próprio homem, as suas necessidades e projetos, passando
por um processo de aprendizagem social.
A Teoria de Tomasello parte do princípio de que a cognição humana apresenta
qualidades inerentes e distintas das de outras espécies primatas porque é 1) filogética (tem
raízes no processo evolutivo do homem); é ontogenética (a aprendizagem cultural não cessa,
acompanha o homem do nascimento até a morte) e 3) é histórica (o homem constrói artefatos
ao longo do tempo, acumula-os e insere sempre algo de novo em sua cultura).
O ponto central que norteia toda essa teoria é que a cognição é um processo que se dá
socialmente. O conhecimento é partilhado e construído a partir da interação. A cognição não
37
está na mente, ela é produto do reconhecimento do outro, estabelece-se através de um vínculo
que se forma historicamente. É por meio de uma cultura que o indivíduo constrói sua
identidade, enquanto se reconhece através do outro. Estar inserido numa coletividade é o que
faz dele, ao mesmo tempo, um ser individual.
Nesse contexto, o sistema cognitivo humano é extremamente eficaz no sentido de
promover uma aprendizagem colaborativa. A humanidade desenvolveu um sistema de
transmissão cultural e cumulativa que pode ser entendida, nesse caso, como “uma forma
particularmente poderosa de inventividade colaborativa ou sociogênese”. (TOMASELLO,
2003, p. 56).
A primeira forma de sociogênese consiste no resultado que se obtém através do “efeito
catraca” que, como já foi dito, consiste na herança e reformulação de uma prática ou de
artefato simbólico e lingüístico. A segunda diz respeito à colaboração mútua existente entre os
indivíduos, na tentativa de solucionar um problema.
O processo de sociogênese humana ocorre toda vez que é criada alguma coisa, através
da interação social cooperativa. Nesse sentido, a aprendizagem cultural humana apresenta-se
em três níveis: “imitação”, “instrução” e “colaboração”.
Os tipos básicos de aprendizagem cultural, sobre os quais referiu-se acima, “são
particularmente poderosos porque se baseiam na adaptação cognitiva exclusivamente humana
para compreender os outros como seres intencionais iguais a si mesmo [...]”. (Ibid., p. 54).
Conclui-se que a capacidade exclusiva, existente apenas no homem e que o torna
capaz de realizar conjuntamente atividades e novas aprendizagens e de tirar proveito de suas
experiências sociocognitivas, é a presença da linguagem. Assim, o desenvolvimento cognitivo
é resultado das relações possibilitadas pelo uso da linguagem, da mesma forma que o
desenvolvimento lingüístico só é permitido a partir da interação entre os indivíduos, através
das experiências comunicativas. A língua, em função dos princípios que acabamos de afirmar,
38
viabiliza as chances de perspectiva e elaboração de conhecimento e compreensão do mundo
objetivo.
Tendo-se delineado os postulados teóricos fundamentais dos lingüistas e antropólogos,
os quais procuraram estabelecer a relação entre língua, cultura e sociedade, far-se-á uma
revisão sucinta da Literatura de Cordel, a fim de situar o corpus dessa pesquisa.
39
4 A LITERATURA DE CORDEL
Chamem um cantador, sertanejo, um desses
caboclos distorcidos, de alpecartas de couro e
peçam-lhe uma cantiga. Então sim. Poesia é
no povo (...)
Celso de Magalhães
A Literatura Popular, chamada pelos franceses de “colportage”, tem o seu marco
inicial pela divulgação de histórias tradicionais, as ditas novelas de cavalaria. Ao lado dessas
novelas, narrativas de amor, de guerras, de viagens, verdadeiras epopéias, passaram a surgir,
no mesmo tipo de poesia e feito popular, a difusão de fatos recentes, de acontecimentos
sociais que iam adquirindo cada vez mais a fisionomia do povo e “caindo em seu gosto”. O
Cordel traduzia-se assim como fonte de informação, bem antes do jornal existir.
A origem do nome Cordel está relacionada à forma como eram vistos os folhetos dependurados num cordel (corda) ou barbante quando expostos nas casas ou feiras livres onde
eram vendidos. Também em mercados, romarias e praças públicas, portas de engraxataria, os
folhetos eram encarreirados e presos a uma corda para serem vendidos, como hoje ainda o
são.
É comum encontrar nesses locais o próprio vendedor, poeta ou cantador, que canta ou
recita versos e seduz o seu público que se aproxima do artista querendo ouvir as suas
histórias. Para tornar a narrativa ainda mais atraente, o cantador muitas vezes a interrompe,
causando expectativa por parte do ouvinte que, para conhecer o final da história, deverá
“comprar o folheto”.
A Literatura de Cordel tem seu surgimento no quadro das literaturas ibéricas. No
Nordeste, tem raízes lusitanas, expande-se e mantém-se entre nós, assim, como declara
Cascudo (1978, p. 170): “Esses livros vêm do século XV, do XVI, XVII e continuam sendo
reimpressos em Portugal e Brasil, com um mercado consumidor como nenhuma glória
40
intelectual letrada ousou possuir”.
Marcada pelo conjunto de características que traduzem o seu aspecto volante, além da
temática que desenvolve, é por meio da linguagem que a Literatura de Cordel mais evidencia
o universo vocabular e típico do homem nordestino.
Segundo Batista (1977, p. 4), fatores de formação social contribuíram para que a
literatura oral “tomasse pé” no nordeste - a organização da sociedade patriarcal; o surgimento
de manifestações messiânicas; o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos; as
secas periódicas, provocando desequilíbrios econômicos e sociais; as lutas de família, entre
outros, para que se verificasse o surgimento de grupos cantadores como manifestação do
pensamento coletivo, ou seja, da Cultura Popular.
Além do Nordeste, podemos encontrar tipografias divulgadoras dos folhetos em outros
estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, de maneira esparsa. Em Belém
do Pará também se pode encontrar uma produção bastante considerável.
A Literatura de Cordel passa a ser modelo de identificação de massa popular, usando
linguagem tipicamente do povo e mantendo distância de toda literatura que siga os moldes de
composição e de métrica, afastando-se totalmente da literatura tradicional.
Cascudo (1978, p. 168), sobre o sentido verdadeiro da Literatura Popular, assim
considera: “A literatura oral é a própria mentalidade da massa coletiva, foliona, religiosa,
crédula, inimiga do parasitismo fradesco e aristocrático, da ignorância bestial, da luxúria e
simonia vulgares”.
Esse escritor norte-riograndense da Cultura Popular expressou, em termos gerais, que
o que torna a Literatura de Cordel viva ainda nos dias de hoje, apesar de todas as dificuldades
de mantê-la viva, é a tradição:
41
É uma força obscura e poderosa, fazendo a transmissão, pela oralidade, de
geração a geração. Ninguém defende essa virtude mnemônica. Nem há um
exercício para a sua perpetuação. Antes todos negam possuir o patrimônio da
história e anedotas, mitos e fábula. (CASCUDO, 1978. p. 168).
Considere-se o Cordel, uma literatura que une o artesanato ao fenômeno social,
porque, na verdade, resgata os aspectos vivos do mundo. Não obstante, por meio de uma
linguagem bastante simples, comunica-se com o povo, numa maneira particular dos
contadores de história permitindo a informação. O vocabulário típico, cujo conteúdo
semântico é bastante peculiar, reflete o repertório vocabular presente nas feiras livres do
nordeste.
O período de maior culminância da Literatura de Cordel no Brasil foi entre as
décadas de quarenta e cinqüenta, época que coincide com o predomínio do governo de
Getúlio Vargas. Naturalmente, há uma significativa produção de folhetos, versando fatos
importantes, ligados a grandes personalidades políticas da época, entre as quais o próprio
Vargas. (COSTA et al., 1978, p. 19).
Mas, por volta de 1958 o Cordel nordestino atravessa um período de queda na
produção, é a chamada “crise do Cordel”. O número de tiragens e, conseqüentemente, o de
gráficas especializadas e de autores e/ou ilustradores, bem como todos os processos ligados à
circulação da poesia popular, ficariam prejudicados. Entre as causas possíveis dessa crise,
urge apontar a disseminação dos meios de comunicação de massa, tais como o rádio e a
televisão e a incorporação de valores advindos de uma cultura urbana, pelas populações
rurais, público de excelência.
Estando quase suprimida ou esquecida durante décadas, a literatura de folheto passa
por uma reviravolta, em inícios da década de 70, garantindo novamente sucesso junto ao
público. Nesse período, a crescente indústria da comunicação passa a se valer desse tipo de
manifestação literária e grupos artísticos tentam recriá-la; fazem-se inclusive filmes, novelas,
42
explorando a sua temática e linguagem. Desse modo, a publicação de Cordéis aumentava
gradativamente.
Apesar de a Literatura de Cordel expressar a cosmovisão das massas de origem
nordestina e raízes do povo e em linguagem do povo, podendo ser vista como um modelo de
identificação dessas massas, ela não constitui objeto apenas de interesse ao público popular.
Os relatos históricos em versos, passaram a despertar a atenção de jornalistas e professores,
por volta das décadas de 60 e 70, inclusive de teóricos de outras nacionalidades que não a
brasileira, como Mark J. Curran, Candance Slater, Raymond Cantel ou Joseph M. Luyten
(SARAIVA, 2004, p.127).
O fato é que o Cordel passaria a ser visto como um instrumento de informação ou
jornalismo popular, nos qual se versava os assuntos do cotidiano das massas. Desde então os
estudiosos tratariam a Literatura de Cordel como crônica poética e histórica do século XX.
Um dos pontos que mais chamou a atenção desses cientistas é o estilo particular do
cordelista, que consegue reunir na composição poética uma mistura de fato e ficção. O poeta
popular, ao mesmo tempo em que relata fatos transcorridos no dia-a-dia, vale-se do poder de
criação e de certa liberdade para expressar os dados históricos. Na crônica de Cordel o poeta
não emite a notícia de maneira imparcial, como ocorre no jornalismo típico. A transmissão de
qualquer acontecimento é sempre projetada sob o olhar crítico do poeta, que compartilha com
os valores místicos ou religiosos de seu público.
Significativas são as afirmações de Mark J. Curran (2004, p. 562), ao comentar sobre
os processos históricos que movem o discurso no Cordel. Esse cientista da Cultura Popular
atenta para o processo de inventividade literária na crônica histórica e popular, referindo-se ao
modo como o poeta consegue mesclar “verdade histórica” e “ficção”:
43
[...]o poeta cordeliano nem pode nem poderá tratar o grande acontecido
como um fenômeno jornalístico isolado. Ele vê o evento sob a perspectiva
de sua própria cosmovisão, e igualmente importante, da sua tradição literária
popular, isso é, da tradição cordeliana total. Por isso, escreverá utilizando
uma linguagem popular, às vezes emprestada do romance, aquela narração
cordeliana de amor, sofrimento e aventura de discurso heróico e de ficção.
[...].
Desde o início do Cordel foram os pesquisadores, folcloristas e poetas populares que
ajudaram a preservar a memória de pelo menos um século da história do povo nordestino.
Entre eles estão os “imortais” Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista,
Manoel Tomas de Assiz, Zé Vicente, João Martins de Ataíde, Cuíca de Santo Amaro,
Rodolfo Coelho Cavalcante, José Soares Franklim Maxado, Manoel d’Almeida, Severino
Borges da Silva; os pesquisadores e folcloristas brasileiros, Théo Brandão, Átila Almeida,
Sebastião Nunes Batista, Orígenes Lessa, Veríssimo Melo e Mário Souto Maior, os maiores
expoentes da cultura popular.
De modo efetivo, o folheto de época tem testemunhado os fatos relevantes que
atravessam a História do Brasil e passa a servir como documento vivo de cem anos de
realidade do país.
Atualmente, ainda que com uma produção literária mais esparsa, os poetas cordelistas
têm conseguido superar as dificuldades e a falta de apoio por parte das instituições sociais. O
fato de que a Literatura de Cordel consegue, ainda nos dias de hoje, atrair um público leitor
considerável, independente do objeto de interesse, é prova fundamental de que ela representa
uma necessidade a esse público, enquanto instrumento autêntico de expressão e comunicação
da realidade.
As observações feitas ao longo do trabalho orientaram-se no sentido de esboçar as
informações fundamentais a todos àqueles que se ocupam em pesquisar a poesia popular, nos
quais se incluem os dados sobre origem, função e evolução do Cordel nordestino; a variedade
temática dos folhetos, o uso da linguagem na Literatura Popular. Finalmente é preciso
44
observar que a multifacetada Literatura de Cordel nordestina merece um estudo mais
cuidadoso por parte daqueles que pretendem pronunciar-se a respeito.
Dando procedimento à fundamentação teórica desse estudo e considerando que a
mulher destaca-se com relevância nos assuntos mais versados na Literatura de Cordel,
proceder-se-á a uma abordagem sobre os aspectos antropossociais dessa literatura, cujos
conceitos servirão de base à análise prevista.
45
5 A MULHER NO CONTEXTO SOCIOCULTURAL
Não se nasce homem ou mulher,
vem-se a sê-lo.
Simone de Beauvoir
Discutir sobre a questão feminina no contexto da formação da sociedade brasileira,
inapelavelmente nos remeterá ao tema família. Esse parece ser o eixo central, através do qual
se desvelam os conflitos socioculturais, os antagonismos existentes entre os sexos, entre as
classes e mesmo entre as raças, as construções ideológicas (convenções culturais).
A discussão sobre a condição da mulher, nesse trabalho, reporta-se, sobretudo, ao
perfil patriarcal que, na visão de um Gilberto Freire, configurou-se nas relações sociais, nos
limites do engenho ou fazenda, a partir da conquista e divisão de terras brasileiras ainda no
início da colonização, mas também com relação às mudanças e incorporação dos novos
padrões de vida, assimilados com o intenso movimento migratório das populações rurais para
as cidades no início do desenvolvimento e urbanização em nosso país.
Educadas estritamente para saberem lidar com o ambiente doméstico, de modo a
desenvolver um perfil próprio de esposa, as moças da classe alta e média na sociedade
brasileira dos séc. XVIII e XIX viviam, desde cedo, à espera de um marido. Chegava à
puberdade e já era tempo das meninas deixarem os lares, de infância tão pouco vivida, para
dedicarem-se à nova vida de casadas.
Alicerçado pelo ideal romântico de uma união feliz, marcada pela paixão e pela moral
cristã religiosa, o casamento era para as jovens da alta e média classe de nossa sociedade, do
séc. XIX, o “sonho” de realização.
Para Saffiotti (1979, p. 168), foi a falta de perspectiva de um sistema educacional de
qualidade, de um lado, que tornou a mulher burguesa, durante a fase de colônia e de império
no Brasil, e, de outro, a falta de expectativa da sociedade para com o sexo feminino, o que a
46
tornou vulnerável à figura do homem – pai ou marido. Nas palavras da autora: “Tudo indica
que a mulher branca da casa-grande, abafada pela rigidez da educação que recebia, pela falta
de instrução e pelas sucessivas maternidades, submetia-se à autoridade do pai ou do marido”.
Não raras vezes, essas moças eram obrigadas a casar contra a vontade, mesmo não se
conformando com a escolha do esposo, feita pelo pai. Em geral, o casamento, mesmo na
segunda metade do séc. XIX, dava-se com o objetivo último de usufruir vantagens
econômicas e políticas, poder e prestígio social.
O outro destino que se podia cumprir na vida das moças, com exceção do matrimônio,
era a vida celibatária. Restava, pois, tomar para si ou a vida de solteira, junto aos pais, ou a
vida religiosa num convento.
Ter uma “vida de solteira” era para a mulher da época, nessas instâncias, bastante
desvantajoso, uma vez que teria de continuar a mercê de seu pai e dependente financeiramente
deste, impossibilitada de ter vida pública, a não ser em companhia da mãe, além disso, não
usufruiria seu papel sagrado de mulher (esposa e mãe), tendo apenas o consolo de poder
cuidar dos sobrinhos. (STEIN, 1984, p. 30).
Como é sabido, a maternidade era estimulada e verdadeiramente glorificada pela
Igreja, mas apenas para a mulher casada. A mãe solteira (note-se que não há uma
correspondência do termo no masculino - pai solteiro) carregaria o peso da culpa e estaria
exposta à censura, em geral acompanhada de obstáculos que sucedia a todas as mulheres
nessas condições.
Enclausurar as filhas desobedientes em conventos foi, para os pais da classe
dominante, a solução ideal para que essas se conservassem ainda donzelas. “Não eram raros
os casos de internamento de moças solteironas em conventos, quando o pai suspeitava de sua
má conduta e, embora menos freqüentes, maridos havia que para aquelas instituições
mandavam as esposas inconvenientes”. (SAFFIOTI, 1979, p. 169).
47
Vê-se, por conseguinte, que o único destino satisfatório para a mulher perante a
sociedade é o de entregar-se à vida de casada, de total obediência ao marido.
5.1 AS MULHERES NO SERTÃO NORDESTINO
No Sertão nordestino, foi hábito costumeiro as nubentes mostrarem seus lençóis
íntimos aos parentes, como prova de que tinham sido desfloradas pelo esposo nas núpcias. Se
não exibisse os panos, aparecia logo o prognóstico, - “Aquela que não mostra os panos”, como que pondo em dúvida a condição casta da nubente. A exibição da prova de virgindade
ocorreu do Rio Grande do Norte a Alagoas, e muito provavelmente, para o norte e para o sul
dessa região. (CASCUDO, 1963).
Nessa região, onde as diferenças entre os papéis feminino e masculino foram ainda
mais cristalizadas pelo tipo de organização patriarcal que se estabeleceu na região, cuja
idealidade repousava na vontade masculina, não era de se estranhar a aceitação resignada por
parte da mulher, “o par que lhe era mais do que sugerido – praticamente imposto - pela
família”. (FALCI, 1997, p. 258).
O casamento da elite sertaneja significava um compromisso entre as famílias dos
noivos. Conta-nos Faria (1996, p. 59) que a escolha dos noivos foi, muitas vezes, motivo de
surpresas para os jovens, postos diante do outro, pela primeira vez, no dia da cerimônia.
Sob a providência de saraus nas fazendas, transcritos em livros de memória e diários
de família, as cerimônias das filhas dos ricos fazendeiros da região nunca eram realizadas na
igreja da redondeza. Nas festas de casamento, esbanjavam-se comida. Nas vésperas,
mandavam-se matar uma novilha gorda, carneiros, porcos, perus e galinhas. Na sala, exibiamse um altar enfeitado cuidadosamente pelas mãos das mulheres mais prendadas. (FARIA,
1996, p. 60).
48
Não foram raras as ocasiões em que a moça, descontente com a escolha do pretendente
e enamorada de outro rapaz, deixava-se raptar. A moça raptada era deixada em casa de algum
amigo da família importante, que mandava, no amanhecer do dia seguinte, comunicar o fato
aos pais. 1
Caso a moça raptada não se casasse, ficaria mal vista por toda sociedade. Nessas
condições, seria preciso “lavar a honra” do pai com a morte ou castração do malfeitor. “A
vingança era mandada fazer pelo pai ou irmão para limpar a honra da família, numa sociedade
em que a vindita era muito usual e os matadores profissionais nunca faltavam”. (FALCI,
1997, p. 247).
O casamento das moças fugidias contava com cerimônias bem mais modestas. Com
número de pessoas restrito, as mais próximas da família e os padrinhos dos noivos. Após a
cerimônia, os noivos se dirigiam, acompanhados do dono da casa em que fora depositada a
moça, à residência dessa, implorando a benção e perdão ao pai da moça. (FARIA, 1996, p.
61).
No Sertão nordestino, a formação concedida às mulheres era no sentido de
desenvolver a sua especialização nas prendas domésticas. Enquanto que os homens de elite
tinham o privilégio de estudar fora, as mulheres quando muito aprendiam a ler e a escrever,
com auxílio de professores contratados pelos pais, em aulas ministradas na própria casa.
Mantinham-se cada vez mais longe das ruas as moças, à medida que se mantinha a “boa
educação feminina”.
Nesse Sertão de hierarquias rígidas, tal como advertiu Falci (1996, p.60), distinguiamse, pelas divisões de classe sociais e econômicas, os homens das mulheres, os ricos dos
pobres, os escravos dos senhores e os brancos dos caboclos.
1
Na casa-grande nordestina, foi comum que os quartos das filhas-moças ficassem sempre no centro do edifício
justamente para evitar os perigos de rapto (FONSECA, 1997, p. 531).
49
Entre as mulheres, as diferenças de condição social puseram de um lado a senhora,
dama, as “donas fulanas”, estas eram as categorias de prestígio e, de outro, as mulheres
pobres, as chamadas “cunhãs”, “téudas” e “manteúdas”, dependentes financeiras dos homens,
em geral, senhores de engenho, fazendeiros, homens de prestígio na escala social.
Quanto à categoria de pior prestígio social, assinale-se a categoria da mulher escrava,
esta vivendo totalmente a mercê de seus senhores, exercendo os mais variados serviços, na
figura da mucama, ama-de-leite, cozinheira, bordadeira, lavadeira, engomadeira, costureira ou
doceira, funções que foram incorporadas ao espaço das senhoras de elite, ou mais
especificamente, à esfera doméstica.
É importante observar que as mulheres pobres, não gozando de status ou de privilégio
como as mulheres de elite, desde cedo, tiveram que encarar os mesmos afazeres domésticos e
sujos, realizados pelas mãos de mulheres escravas.
5.2 CONCEPÇÃO CRISTÃ SOBRE A NATUREZA FEMININA
Concebendo a família como a “célula mãe da sociedade” e uma vez afirmando nela
haver os princípios mais sagrados, a igreja católica exerceu durante o período colonial
influência preponderante, quase mesmo exclusiva, na formação cultural brasileira”. (STEIN,
1984, p. 38).
Levando às últimas conseqüências a divulgação da promessa de uma vida feliz,
assegurada pela benção do amor divino, assim proclamava o texto de Leão XIII, no Arcanum
Divinas Sapientiae (sobre a constituição da família), com data de fevereiro de 1880 (Ibid., p.
39):
50
O homem é o chefe da família e a cabeça da mulher: esta, todavia, por isso
que é a carne da sua carne e osso dos seus ossos, deve submeter-se a
obedecer a seu marido, não à maneira de uma escrava, mas na qualidade de
companheira, para que não falte nem a honestidade, nem a dignidade na
obediência que ela lhe prestar.
Mesmo na segunda metade do séc. XIX, a forma exclusiva de relacionamento sexual
admissível era aquela erigida pelos dogmas cristãos. À igreja coube o papel de influenciar na
vida mais íntima dos casais. Impôs, primeiro, que a atividade sexual ocorresse somente após o
casamento. Segundo, restringiu o ato sexual com fim único de propagação da espécie humana.
Qualquer comportamento sexual que excedesse tal limite seria, certamente, para a igreja e,
conseqüentemente, à sociedade, considerado pecaminoso e sujo.
Preocupados com as transgressões provocadas pela devassidão e o pecado das
mulheres, os padres combatiam, até mesmo nos confessionários, através de pregações e
castigos, “a natureza nociva da mulher pecadora”. Os manuais de confissão seriam
obcecadamente preparados no combate à “má conduta das brasileiras afeitas à prostituição”.
Para reverter a situação e conter o perfil destruidor da natureza feminina, os manuais
estabeleciam as regras para as relações matrimoniais: a mulher deveria manter-se pura e fiel
ao marido e voltada à criação dos filhos; o marido, por outro lado, retribuiria a dedicação da
esposa através do respeito mais absoluto, ou seja, contendo-se durante o coito, de modo que a
entrega completa à relação sexual nunca deveria ameaçar a qualidade de vida cristã do casal.
A abstinência e a castidade eram as únicas maneiras de precaver-se das “imundícies” do
mundo.
Fica desde já entendido que a preservação da integridade física da mulher, regra
necessária para a preservação da “honra feminina” e, conseqüentemente, da “honra masculina”
(do marido), depende em grande escala do enclausuramento da esposa, via necessária à
seguridade da sua imagem modelar, sempre na retidão de seu comportamento sexual. É o que
observa LOPES (1989, p. 25):
51
Como ser perigoso e frágil que era, a mulher tinha de manter-se fechada: em
casa do marido, em casa dos filhos, se viúva, ou no convento quando freira
ou como recolhida se lhe faltasse a guarda masculina de um marido que se
ausentou ou morreu. Sempre um espaço restrito e controlado. E aquela que
se aventurava a maiores espaços perdia irremediavelmente a estima social.
Foi com esse clima de interdições nas relações familiares que se erigiu a sociedade
moderna burguesa. A família passou a desencadear uma série de princípios fundados na
preservação da essência do lar e restrições à ligação conjugal, controlada pelos princípios de
boa conduta, fundamentada, além de tudo, nos moldes românticos.
Contudo, o rigoroso controle de abstinência e fidelidade, na prática, ao que tudo
indica, funcionou apenas para o sexo feminino. Ancorando-se num hipotético destino
anatômico que limitava o papel sexual da mulher, a sociedade manteve um duplo padrão de
moralidade para com os dois sexos. De um lado, privou a liberdade dos maridos para com as
esposas legítimas, de outro não impediu que esses cedessem “às tentações da carne” e
extravasassem os impulsos sexuais, fora do casamento.
Relacionando os fatores que motivaram o desregramento dos homens, observa
Saffiotti (1979, p. 167): “Dada a socialização da mulher branca para o desempenho dos papéis
de dona-de-casa e mãe de família legalmente constituída, necessária se fazia a existência de
uma classe de mulheres, com as quais os jovens brancos pudessem praticar as artes do amor
anteriormente ao casamento”.
Para poupar a castidade das moças até o casamento, ao mesmo tempo em que era
preciso extravasar os “instintos masculinos”, contidos em respeito à figura da esposa e da
moça pura, a Igreja e mesmo toda a sociedade não só foi condescendente, como de certa
forma incitou as experiências sexuais extraconjugais por parte do homem, fazendo “vistas
grossas” à prática de desregramento sexual masculino. 2
2
“Elevada à categoria de pecado venial, e devendo pois ser confessada, a fornicação simples permanecia na
mentalidade dos primeiros colonos como algo que fazia bem, e que não era pecado dormir com mulheres
52
Nesse sentido, a prostituição, por mais que fosse uma atividade transgressora aos olhos
da igreja e da sociedade, segundo observa Priore (2003, p. 34):
Constituía-se a serviço da ordem socioespiritual no mundo moderno. No
Brasil, no entanto, as características que a tornavam um mal necessário vão
misturar-se com outras práticas consideradas pelas autoridades como
transgressoras, fazendo com que a Igreja enxergasse, em cada mulher que
infringisse as normas, uma prostituta em potencial [...] os comportamentos
tidos por desviantes e a prostituição eram tênues.
5.3 A FAMÍLIA NO SISTEMA PATRIARCAL BRASILEIRO E A MORAL SEXUAL
Somente com o cultivo da terra, do qual obteve apoio da coroa portuguesa, a família
começa a se estabelecer. Organiza-se a família numa dupla estrutura: a nuclear, resultado do
laço entre marido, esposa e prole legítima (família branca formal), e outro grupo marginal,
resultante dos laços entre o senhor de terra com seus escravos e agregados, índios, negros,
mestiços e a prole resultante da mestiçagem do branco com suas escravas.
Como se sabe, no início da colonização do Brasil, não havia aqui no Brasil o exercício
legal do matrimônio. A vinda dos portugueses para o Brasil-colônia visava proveitos
econômicos. Normalmente, os portugueses instalavam-se na terra provisoriamente, deixando
suas esposas legítimas em Portugal, muito embora mantivessem relações extraconjugais com
as mulheres que estavam em condição submissa, índias e negras na maioria das vezes.
As discrepâncias havidas entre o sistema normativo, que pretendia implantar um
modelo ideal de família, o burguês, e o contexto familiar, presente pela maioria das mulheres
das classes mais subalternas de nossa sociedade, atravessavam os séculos de nossa história e
mais uma vez trariam prejuízos somente ao sexo feminino.
públicas”. A primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia, em fins do século XVI, revela a espontaneidade de
afirmações consideradas heréticas, mas que deviam ser de prática corrente na colônia. Diogo Nunes, por
exemplo, dizia que bem podia ele dormir carnalmente ali com qualquer negra d’aldeia e que não pecava nisso
com lhe dar sua camisa ou qualquer coisa [... ] “. (PRIORE, 2003, p. 40).
53
Sobre as contradições havidas entre a norma oficial dominante, que ditava um modelo
único exemplar de mulher, com a realidade vivida pela maioria das mulheres das classes
subalternas de nossa sociedade, durante o Brasil-colônia, Priore (2003, p. 30) ressalta:
Ao discurso monocórdio sobre seus comportamentos, ou os que deveriam
adotar, elas respondiam com práticas tidas por desabusadas, mas apenas
resultantes de suas condições materiais de vida. Ao público escândalo de
tantos concubinatos e mancebias somavam-se filhos tidos por fragilidade da
carne humana, fora de qualquer laço conjugal. A maternidade, era um laço
que unia mães e filhas num mesmo ofício:o da prostituição.
O concubinato foi um sistema típico de organização familiar das camadas subalternas,
ora reproduzindo o modelo de casamento burguês, unindo mulheres e homens solteiros, ora
caracterizado pelo par formado por mulheres viúvas ou solteiras e homens casados.
Não se pode dizer, pois, que a moral burguesa ficou alheia às camadas mais populares.
Os fatos mostram que, desde o período colonial, as uniões ilegais se davam, sobretudo, devido
às dificuldades de ordem financeira – não fossem os custos da cerimônia e a existência de
dotes, como nos matrimônios das classes mais abastadas, decerto a fórmula de casamento
seria respeitada.
De fato, a moral sexual teve características muito peculiares no âmbito das classes
subalternas. Em geral, preservava-se a virgindade da moça na espera de garantir um “bom
casamento”, do qual toda a família pudesse tirar proveito. A preservação da virgindade, nas
classes mais pobres, tem mais a ver com a esperança depositada no livramento da miséria, do
que a mera absorção dos ideais conservadores da burguesia dominante.
Não foram raros os casos em que mulheres, vítimas do preconceito e da marginalidade
da sociedade por não serem mais virgens, não contando com o apoio e aceitação da família,
tiveram que se pegar com a prostituição. Note-se que não existia outra alternativa de
sobrevivência, dadas as expectativas definidas para o sexo feminino, senão o casamento.
(FONSECA, 1997, p. 532).
54
Novamente o peso do não cumprimento ao padrão familiar rígido, moralizante,
recairia sobre as mulheres. Listas infindas de processos por parte de maridos que, pleiteando a
guarda de filhos acusavam suas ex-mulheres de falta de moral e de boa conduta. Estava,
portanto, seguindo a ótica do sistema dominante e conservador, em xeque o comportamento
sexual da mulher e não qualquer falta de zelo com as crianças.
A preservação da integridade da mulher e da sua capacidade em administrar um lar e
cuidar dos filhos, era mais ou menos proporcional à capacidade em zelar pelo próprio corpo.
(LOPES, 1989, p. 22).
Para a mãe viúva, o artesão desempregado, o operário, o imigrante, a prostituição
esteve muitas vezes indispensável à sobrevivência e manutenção da família. Por isso mesmo,
poderia significar muito menos um desvio da retidão moral e muito mais a única alternativa
aberta às mulheres de origem pobre e com nível de escolaridade precário.
Para melhor definir a imagem das antepassadas mulheres pobres, mães e solteiras,
prostituídas, na visão da sociedade, vejamos a descrição de Fonseca (1997, p. 534):
[...] A figura da prostituta se localizava na encruzilhada entre o estereótipo
aterrorizante da mulher decaída e a realidade vivida por um sem-número de
amásias, mães solteiras e crianças ilegítimas; em outras palavras, entre a
condenação pela moral burguesa e a tolerância tácita para com um modo de
vida que se desviava radicalmente da norma oficial.
Como se pode ver, foi a moral social, sustentada pelo discurso misógino do Estado e
pela Igreja, a responsável por definir o confinamento da mulher na esfera privada. Mas a
moral social, que cristalizou por meio de discursos a crença nas mulheres como seres
submissos e inferiores aos homens, com o desenvolvimento da industrialização e urbanização
de nosso país, passava a sofrer declínios e a preocupar os diversos setores sociais de nosso
país.
A participação feminina no mercado de trabalho, antes restrito ao homem, era a
primeira causa da instabilidade do sistema dominante masculino.
55
Não demoraria, pois, para que as mulheres ficassem estigmatizadas e as trabalhadoras
pobres, acusadas de abandonarem suas crianças. Eram, pois os maridos descontentes com a
situação, que reclamavam sobre a desordem nos lares, alegando a culpa feminina.
No Brasil, o Positivismo foi, desde então, a doutrina filosófica que mais radicalmente
perseverou entre os ideais iluministas importados da Europa. As teses positivistas reprovavam
severamente a participação mais ativa da mulher na sociedade. Segregando os sexos e
instaurando no terreno da natureza a divisão dos papéis masculinos e femininos, o positivismo
propagou por todos os lados a sua mensagem misógina – sobre a qual ao homem cabia a
participação da cultura objetiva e espiritual; à mulher, a missão exclusiva de educadora e
mantenedora do lar. (SAFFIOTI, 1979, p. 22).
Foram com essas teses que os jornalistas, teólogos, juristas e médicos argumentavam a
fraqueza e a nocividade do sexo feminino, dificultando a sua inserção no mundo do trabalho.
Na defesa da “honra feminina”, da educação das crianças e da dedicação aos maridos,
as investidas do público masculino funcionara desde então no intuito de coibir a sua
participação efetiva feminina no trabalho. A mão-de-obra feminina ameaçava, de fato, a
norma oficial, como salienta Fonseca (1997, p. 517): “ditava que a mulher devia ser
resguardada em casa se ocupando dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam
o sustento da família trabalhando no espaço da rua”.
Impedidas de ocupar cargos administrativos de maior reconhecimento social, as
operárias das fábricas, contratadas no início do desenvolvimento industrial do país, estavam
jurídica e politicamente subordinadas aos homens de melhor posição, que tinham acesso aos
cargos diretores das empresas, tais como os de mestre, contramestre e assistentes.
Tal como ocorria na Europa, após o surgimento da industrialização, a mão-de-obra
feminina era mais barata do que a do homem e a opressão era bem maior para aquelas que
tinham filhos e precisavam sustentá-los. Nessa época, os salários eram extremamente baixos,
56
incompatíveis com as altas jornadas de trabalho. Além de tudo, as funcionárias não gozavam
de direitos trabalhistas, como os que prevêem as leis trabalhistas hoje em dia, quais sejam:
férias, décimo terceiro salário, licença gestante e auxílio maternidade.
Conclui-se, assim, que apesar da inserção feminina no mercado de trabalho, a mão-deobra feminina era vista como secundária e a mulher continuaria sem poder competir de igual
para igual com o homem no mercado de trabalho.
A ocupação de cargos de baixo prestígio social estava ligada, pois, ao descrédito no
trabalho feminino. Em virtude das mais variadas repercussões simbólicas e representativas em
torno da imagem feminina, essas ocupações de baixo prestígio trariam toda ordem de
discriminação com relação à mulher.
O panorama sociocultural da sociedade brasileira reflete clara e imediatamente as
desigualdades decorrentes do sistema patriarcal que engendrou as relações sociais, ainda no
período de formação da nação.
Os estudos mostraram que a opressão sobre o sexo feminino deu-se com o sustento de
um discurso misógino, fundamentado para coibir qualquer oportunidade de alcance do
privilégio, prestígio e poder social à mulher, impossibilitando a sua participação na vida
pública.
Considerando-se essas reflexões, no capítulo seguinte, proceder-se-á, finalmente, à
análise dos Cordéis, cerne dessa pesquisa. Antes disso, a fim de situar os postulados teóricos
que embasam a pesquisa, far-se-á o detalhamento da metodologia utilizada.
57
6 METODOLOGIA, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS
6.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE
Tendo em vista as hipóteses levantadas e os objetivos definidos neste trabalho, as
atividades foram sistematizadas em coleta, seleção e revisão dos dados bibliográficos.
O corpus deste trabalho é composto de 20 Cordéis, versando sobre a mulher nos mais
diversos aspectos da realidade nordestina. São eles:
1. A deuza do cabaré: A meritriz orgulhosa. João Severo da Silva. João Pessoa, 1985.
2. A língua da mulher faladeira. Rodolfo Coelho Cavalcante. 3. ed. Salvador:
Tipografia Ansival, 1977.
3. A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia. Manoel Monteiro. 4. ed.
Campina Grande: Gráfica Martins, 2002.
4. A mulher e o cangaço. Francisca P. dos Santos. Ceará: Xilo. Hamurabi Batista,
1997.
5. A mulher no lugar do homem. José Pacheco. s.n.t.
6. As duras lamentações de uma coroa. Abraão Batista. Juazeiro do Norte. s.d.
7. As modas escandalosas de hoje em dia. Rodolfo Coelho Cavalcante. s.n.t.
8. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. José da Costa Leite. Recife. s.d.
9. História da mulher da língua grande. Minelvino Francisco Silva. s.n.t.
10. Maria Bonita. Mulher macho, sim, senhor. Rodolfo Coelho Cavalcante. Salvador,
1983.
11. Nascimento, vida e morte de uma coroa. Abraão Batista. 2. ed. s.d.
12. O abc das mulheres. Manoel Amaro de Melo. Guarabira. s.d.
13. O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia. José Pedro Pontual. s.n.t.
14. O mundo pegando fogo por causa da corrução. José Costa Leite. Condado-PE. s.d.
58
15. O mundo vai estourar do jeito em que se vive. Franklim Maxado. Bahia. s.d.
16. O poder oculto da mulher bonita. João Martin de athayde. Juazeiro do Norte-CE.
s.d.
17. O que uma coroa deve fazer para se casar. Abraão Batista. 2. ed. s.d.
18. Os amores de José e a traição de Maria. José Camilo da Silva. Recife:
Universidade Federal de Pernambuco/ DEC. s.d.
19. Sofrimento das solteiras para arranjar marido. José Acaci. Rio G. Do Norte. s.d.
20. Uma mulher traiçoeira. José Pedro Pontual. Editor Edson P. da Silva. Recife. s.d.
A análise dos folhetos aqui citados será de cunho lingüístico. Nesse sentido, voltar-seá, primordialmente, à apreensão do léxico utilizado para designar a mulher na Literatura de
Cordel. Privilegiar-se-á o nível do léxico, visando a detectar os elementos lingüísticos e
extralingüísticos que possam estar vinculados aos efeitos de produção de sentido.
Proceder-se-á a uma análise léxico-semântica dos termos referentes à figura feminina
na Literatura de Cordel, a partir de uma perspectiva sociocultural, a fim de averiguar de que
maneira a linguagem reflete a condição da mulher no contexto da sociedade nordestina. 3
O primeiro momento do trabalho foi reservado à leitura dos folhetos, escolhidos como
corpus da pesquisa, para se detectar e selecionar os itens lexicais que remetem à figura
feminina. A princípio, o trabalho contou com uma amostra de cinqüenta folhetos de Cordel,
cujo critério definido foi a seleção dos folhetos por títulos, os quais esboçavam a temática
feminina, numa formulação caricata, como é natural nos Cordéis.
Em seguida, fez-se a leitura dos folhetos. Nesse momento, a finalidade foi observar
quais as características femininas que mais perfilavam nos Cordéis.
3
A transcrição dos fragmentados, retirados dos Cordéis em análise, estará compatível com a grafia apresentada
nos textos originais.
59
Tendo-se em vista a freqüência com que as temáticas eram tratadas nas narrativas,
seguiu-se a uma seleção mais criteriosa para o corpus. A partir de então, foi possível deduzir
trinta dos cinqüenta folhetos, ficando o corpus com um total de vinte. Para tanto, localizaramse, dentre os cinqüenta Cordéis aqueles que mais visivelmente refletiam os níveis de
depreciação feminina, segundo os ícones “da beleza”, “da moda”, “da submissão”, “da
valentia”, “da sedução” e “da astúcia”.
Para a realização desse estudo, desenvolveu-se uma revisão literária sobre o assunto,
em função da problemática e com a finalidade de instrumentá-lo.
A investigação foi desenvolvida respaldando-se, sobretudo, nos pressupostos teóricos
da Lexicologia, da Semântica, da Sociolingüística e da Etnolingüística, além de outras teorias
correspondentes aos propósitos do trabalho, entre as quais, a Teoria dos Campos Semânticos e
a que ficou conhecida como Hipótese Sapir-Whorf, cujos conceitos açambarcam a relação
entre “língua”, “cultura” e “sociedade”.
Durante o processo de evolução das atividades, buscar-se-á, sempre que houver
necessidade, outras disciplinas que possam fornecer subsídio à interpretação e compreensão
dos aspectos lingüísticos.
Em conformidade com as características de caráter qualitativo, essas etapas não se
constituem em momentos estanques de investigação. A análise, por exemplo, deve estar
presente desde o início, com vistas a possibilitar a constante reavaliação do material teórico
adotado, bem como da adequação das técnicas de coleta de dados, tornando-se uma
dificuldade encontrar o meio que separa os diversos momentos desta pesquisa.
60
6.2 ANÁLISE DO CORPUS
6.2.1 A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa
A profissão mais antiga do mundo, o meretrício, nem sucumbiu perante a pressão de
cunho moral sexual das sociedades, nem desapareceu com as mudanças no perfil das relações
amorosas e sexuais dos últimos tempos – é oportuno observar o papel sexual da prostituta em
épocas passadas, quanto à iniciação dos homens inexperientes no sexo e nos extravasamentos
dos maridos insatisfeitos sexualmente no casamento.
O fato de o meretrício estar literalmente relacionado “aos prazeres da carne” e à
promiscuidade sexual, condenada pela Igreja, fez surgir uma série de mitos e medos sobre a
conduta e o desejo sexual feminino.
Não é à toa que a imagem da prostituta bela, que seduz o homem com a beleza de seu
corpo e com a volúpia desenfreada, é esboçada freqüentemente por meio das trovas. Nos
Cordéis, as mulheres belas freqüentemente recebem o qualitativo “deusa”, usado para referirse às mais bonitas e sedutoras. Esse qualitativo envolve uma variedade de matizes de sentido,
traz à tona elementos místicos como “magia”, “natureza”, “sensualidade”, “fecundidade”,
para citar alguns.
O designativo “deusa do cabaré”, no texto em estudo, é usado para enfatizar a
capacidade de sedução da prostituta. A ênfase nos atributos físicos da personagem, que se faz
presente desde o próprio codinome “Deusa”, fica impressa nos versos “porque a sua beleza”
e “por nenhuma era igualhada”:
Por Deusa do Cabaré
Ela foi classificada
Porque a sua beleza
Por nenhuma era igualhada
Por isso entre as mulheres
Era a mais dezejada
61
Os sintagmas “corpo esbelto”, “olhos negros”, “estátua de carne”, “a mais desejada”,
“morena da pele fina”, “elegante menina”, “boniteza", “por ser linda e atraente”, “muito
cobiçada”, “mimosa fada” e “mulher formosa” formam o campo lexical da sedução feminina,
retratada na figura de Deusa, a meretriz.
O fato de a prostituta carregar o sema “morena” remete à sensualidade da mulher
negra, essa mais ardente e mais concupiscente no sexo do que a branca.
A idéia de que as prostitutas destoam com o padrão ideal de mulher na sociedade,
porque são dadas à luxúria e à lascívia e a vaidade, é impressa a seguir:
Rosalina em Salvador
Entregou-se a vaidade
Deu expansão ao seu genio
Saciou sua vontade
Fazendo vida noturna
Nas Boites da cidade
O termo “boite”, no português brasileiro boate, é originário do francês “boîte”. Esse
termo entrou no português duas vezes, com acepções distintas e diferentes adaptações
prosódicas. A acepção clássica do português é “bueta” (séc. XV), “boceta”, “caixa” e, mais
modernamente (séc. XX) “estabelecimento comercial, que funciona à noite, e em geral, consta
de pista de dança e palco de atrações artísticas”, conforme o Dicionário etimológico nova
fronteira da Língua Portuguesa (1994) e o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua
portuguesa (1999). Em pequenas cidades de interior, o correlato de boate é “cabaré”, também
de origem francesa. (Cf. significação da palavra “cabaré” na análise do folheto O malandro e
a piniqueira...).
Interessante observar o espaço em que se insere a prostituta - quando sai à rua é à
procura de um cliente, para depois voltar novamente ao espaço fechado do prostíbulo. Nesse
contexto, a rua equivale ao próprio “cabaré”, em termos de ausência de normas e de preceitos
morais.
62
Nesse contexto, a prostituta tem a oportunidade única de salvação, no amor
incondicional de seu amado, assemelhando-se a tantas personagens de contos fantásticos e
maravilhosos, que contam com a figura do “maravilhoso príncipe” para salvá-las.
Mas Deusa, diferentemente das personagens infantis, não se sente feliz nos braços do
amado e nem submissa a ele:
Eu fiz a maior ansneira
Em me casar tão moderna
Pra viver prisioneira
Prefiro viver liberta
Como em tempo de solteira
A personagem, por expor o próprio corpo, oferecendo-o como mercadoria e por querer
voltar à vida de meretriz, é castigada. A transgressão feminina é apontada, pois, enquanto
heresia espiritual, juntamente com a noção do sobrenatural maléfico que brota da impureza
feminina.
O rebaixamento da personagem é observado através do discurso em primeira pessoa,
nas expressões de súplica pelo perdão a Deus. O campo do apaziguamento espiritual assinalase na oposição fundamental: “pecado e misericórdia”. A confissão dos pecados, alternativa
posta no plano da piedade divina, aparece como possibilidade única de salvação e libertação
do espírito maligno:
Nessa hora ajoelhou-se
Pedindo perdão a Deus
Dizendo Senhor perdoa
Os grandes pecados meus
No setor substantivo, apresentam-se as virtudes que granjeiam a salvação, tais como
“compaixão”, “perdão”, “redenção”, “arrependimento”, “súplica” e “clemência”.
No campo do sofrimento, inserem-se os substantivos correlatos: “aflição”, “dor”,
“tristeza”, “pranto”, “infelicidade”, “padecimento”, “sofrimento”, “humilhação”, que refletem
63
o estado de desengano da prostituta Deusa, em relação à doença que lhe aflige. O campo
ganha mais expressividade em: “faces banhadas em pranto de dores”, “lágrimas de
amargura”, “noites tempestuosas”, “xagas tão grengrenosas”, como se pode ver a seguir:
Outrora eu me jugava
Uma rosa entre as rosas
Hoje estou vendo meu corpo
Em xagas tão grengrenosas
Que já não suporto mais
As dores tão espinhosas
A carga emotiva do desespero da prostituta Deusa eleva-se nas colocações “um ente
tão infeliz”, “a minha desgraça”, “não suporto mais pelas sargetas dormir”, “exposta ao
relento”, “sem ter o que me cobrir” e “prostrada nesse chão duro”. O campo do desespero e do
sofrimento completa-se com o campo da culpa – inserem-se os delitos, a responsabilidade da
mulher pela própria desgraça.
A minha desgraça fiz
Abandonei meu esposo
Só porque tinha inveja
Do viver de meretriz
A morte é anunciada através das expressões substantivas e verbais: “meus últimos dias
de vida”, “encerram os dias seus”, “meu fim vai ser muito triste”. Também há um número de
expressões metafóricas que sentenciam a morte: “minha matéria ta se transformando em pus”,
“ruída dos tapurus”, “no bico dos urubus”, “encerraram os dias seus”, “últimos fios de vida”.
A morte pode ser interpretada como o destino das mulheres pecadoras e infiéis, ou melhor,
como o desfecho da miséria feminina:
Vejo que a minha matéria
Ta se transformando em pus
Prostrada nesse chão duro
Ruida dos tapurus
Meu fim vai ser muito triste
No bico dos urubus.
64
Para o homem, a “mulher da vida” saudável é diferente da “mulher da vida” doente. O
estágio de putrefação da carne, que significa a culminância da doença, num sentido
metafórico, é também a culminância da ausência do desejo masculino, no momento em que a
mulher, não tendo mais um corpo pronto para servir, é repudiada.
Vale salientar que, no imaginário popular, a “mulher da vida” é aquela a que o mundo
reserva às doenças contagiosas. Em situação análoga a de uma prostituta doente, a mulher que
corresponde aos preceitos da sociedade, a mulher virtuosa, é aquela que, em seu estado de
doente, é apenas uma enferma, digna de cuidados, exatamente o inverso daquela para quem a
sociedade só devolve o desprezo.
Por fim, a morte poderia ser entendida, como um alívio, não exatamente para a
prostituta, mas para a sociedade e para o homem, que não se sente bem diante de uma mulher
doente, decaída. Quanto ao desprezo da prostituta, por parte do homem, significa, mais
especificamente, que ele não mais a quer enquanto ser feminino.
Concluída a análise de A deusa do cabaré: a meritriz orgulhosa, apresenta-se, a
seguir, sua sistematização na figura4.
4
Os termos correspondentes às obras originais consultadas, que serviram à ilustração dos campo-léxicos são, nos
esquemas, apresentados em negrito.
65
MERETRÍCIO
VIDA DE ORGIA
CONDENAÇÃO
DIVINA
DEUSA DO CABARÉ
PECADO
SOFRIMENTO
FACES BANHADAS EM
TRAIÇÃO
PRANTO
VOLÚPIA
LUXÚRIA
ORGULHO
LÁGRIMAS DE
AMARGURA
NOITES
TEMPESTUOSAS
XAGAS
GRENGRENOSAS
MORTE
FIGURA 1 – Campo léxico-semântico em A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa.
6.2.2 A língua da mulher faladeira
A imagem da mulher difamatória e caluniosa há muito tempo tem sido difundida na
cultura popular. O texto A língua da mulher faladeira apresenta uma riqueza de termos que
visam à definição da mulher de natureza difamatória e maldizente, tal como se apregoa na
sociedade.
Dentre os mais expressivos termos que remetem à figura da mulher, nessa perspectiva,
destacam-se o de “mulher da língua comprida”, “mulher faladeira”, “mulher linguaruda”,
66
“fuxiqueira” e “légua de beiço”. (Cf. análise do folheto História da mulher da língua Grande,
que também faz parte do corpus da análise).
“Arenga”, “anarquismo”, “reclamação” incluem-se no campo associado ao perfil de
“mulher difamatória”, remetendo à idéia de que a “mulher faladeira” nunca está contente com
a vida que tem e por isso só faz reclamar, blasfema contra Deus e espalha discórdia. O poeta,
assim, declara:
Fala do pobre peixeiro
Por vender peixe muito,
Mete o pau no Açougueiro
Em pesar osso graúdo,
Arenga com o verdureiro
Anarquisa com o leitero,
Reclama de Deus e tudo.
No imaginário social, a palavra que é proferida pela boca de uma mulher é carregada
de sentido. Uma praga proferida por uma mulher é diferente de outra, proferida por um
homem. A história sempre recusou dar ao feminino o direito ao discurso, porque a figura
feminina esteve durante muito tempo inserida numa tradição maligna e assim associada à
figura do Diabo. Note-se que as mulheres eram as grandes feiticeiras do passado, tinham elas
uma maior aproximação com a personificação do mal, com as pragas, regionalmente falando.
O tabu da palavra feminina é, senão, a conseqüência do desvio da natureza santa ou
sagrada da palavra que, segundo a Bíblia, foi ocasionado pela “boca” de uma mulher. Assim,
expressa o poeta:
Não há praga mais ruim
Do que mulher faladeira,
No lugar que ela reside
Falta água na torneira,
Nem a galinha produz,
Há desarranjo na luz
E a casa só tem goteira!
67
O ícone da miséria e da má sorte é, pois, um dos que mais se assinalam sobre a
imagem da mulher. A “mulher faladeira” é freqüentemente associada ao azar, pelo poder
danoso que tem de desencadear a má sorte no mundo. A associação da figura feminina a um
mau presságio, evidencia-se na expressão “azar de sexta-feira” que, no texto, está remetendo à
presença nociva de uma mulher potencialmente ameaçadora, ou seja, àquela que fala demais:
Só comparo Dona Júlia
Com azar de sexta-feira
Ou buzina disparada
No ruge-ruge da feira
A expressão “ruge-ruge” refere-se ao entra e sai da feira, típico de feira no interior. O
Dicionário da Língua Portuguesa elaborado por Antenor Nascentes (1959) registra o termo
como “ruído de pano que roça o chão”; “ruído da seda atritada”; “confusão”, “atropelo’,
“desordem”. Portanto, depreende-se o teor negativo desses termos, nas comparações feitas no
tocante à mulher.
Usando de um tom de deboche pitoresco, o poeta, faz analogia entre “mulher” e
“gagueira”, expressando a idéia da dificuldade que é conviver com o sexo feminino. A
gagueira traz o sema da “anomalia” e aqui aparece como simples pretexto para expressar a
agonia e a intranqüilidade do homem em relação à presença feminina.
Ou um gago a explicar
Um caso expetacular
Queira o ouvinte ou não queira
Em resumo, toda abundância de termos utilizados pelo poeta com relação à mulher
tem, como fim, admoestar contra o mal que pode ser causado se a ela for reservado o direito à
palavra.
Explicita-se, a seguir, o esquema constando o campo léxico-semântico em A Língua
da mulher faladeira, com vistas a uma melhor compreensão do texto.
68
MULHER FALADEIRA
MAL PARA A SOCIEDADE
RUIM
PRAGUENTA
COMPRADORA DE
DISCUSSÃO
TORMENTO PARA
O MARIDO
LINGUARUDA
BUZINA
DISPARADA
LINGUA
COMPRIDA
FIGURA 2 – Campo léxico-semântico em A língua da mulher faladeira.
6.2.3 A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia
O exame da mulher de antigamente como modelo ideal, em contraste com o
comportamento da mulher de hoje em dia, mais ativa e, por isso, ameaçadora da ordem e da
moral, tem como fim exibir uma perspectiva de valoração, do ponto de vista patriarcal e
conservador.
No que diz respeito à emancipação feminina, as modificações sempre foram sentidas
como uma corrosão dos valores, uma ofensa ao modelo dominante.
A incorporação de novos modelos de vida no comportamento das mulheres, mais
exatamente, nas três primeiras décadas do séc. XX, tais como novas formas de vestir, de
69
arrumar os cabelos, de usar a maquiagem, as alterações inclusive nas novas formas de lazer e
ocupação, todas elas causaram grande choque de valores e concepções na mentalidade de toda
a sociedade brasileira.
Os vocábulos “toca”, “espartilho”, “ampoleta”, “saia justa”, que se incorporaram à
nova realidade feminina, no contexto das mudanças de postura e de valores, foram, aos olhos
dos conservadores, ingredientes que atentavam contra o pudor e a decência feminina, além de
que faziam cair por terra o tradicional modelo de conduta a que as mulheres já estavam
acostumadas. O excesso de enfeites e os cuidados que a mulher passava a ter em função da
nova moda eram, na ótica masculina, um sinal de mau gosto e artificialismo que atingia a
beleza feminina natural.
O comportamento da mulher moderna, que cede à influência da moda, opõe-se ao da
obediente aos padrões antigos, cujas vestimentas e penteados “ocultavam-lhe a sensualidade”,
tal como evidenciam os versos seguintes:
Touca, espartilho, ampoleta,
Moda ousada era cocó
Se o rapaz pedisse um beijo
Ficava falando só
Sem casar, só via mesmo
Mão, pescoço e mocotó.
Como o perfil traçado para a mulher virtuosa era o de esposa e mãe recatada, a mulher
moderna e antecipada, “cheia de liberdades”, “de roupas apertadas”, “de braços e beijos com
os homens”, seria o exemplo mais visível da decadência dos padrões antigos e da decência
feminina, antes sedimentados a partir de comandos morais.
Exemplificando a conduta respeitosa que seguia a mulher de antigamente e afirmando
nela haver os princípios de nobreza feminina, ou seja, o de reprodutora e submissa ao marido,
tal como se pode apreender nos versos “vivia para o marido” , “e para fazer menino”, o poeta
assim se expressa:
70
Naquele tempo a mulher
Era um ser quase divino,
Vivia para o marido
E para fazer menino,
Mulher não falava grosso
Homem não falava fino!
Fora do espaço social determinado a elas, ou seja, o lar, as mulheres seriam descritas
como sensuais ou dissolutas, indiferentes aos deveres conjugais. Endossar-lhes-iam, pois, os
estereótipos de criaturas “fáceis e sem-vergonhas”.
A mulher mais emancipada e contrária aos costumes tradicionais simboliza sempre o
obscuro. O episódio da criação da “terrível Eva” e, em seguida, a queda do homem, que
sucedeu com a criação feminina, no livro de Gênesis da Bíblia, é um dos episódios mais
simbólica e lingüisticamente construídos para demonstrar a natureza maldita e submissa da
mulher. A Literatura de Cordel, que guarda as crenças e concepções míticas e religiosas do
povo nordestino, reflete essa concepção:
Deus após formar o mundo
Achou que era preciso
Povoá-lo, fez Adão,
Mas fez Eva sem juízo
E deixou os dois flertando
No pomar do Paraíso...
Segundo a narração bíblica, Deus criou o homem para viver livre do pecado e dos
dissabores que esse causaria para a espécie humana. Mas a mulher traiu a confiança de Deus,
trazendo a “perdição”. Fiel a Satanás e contrariando as normas do Criador, ela mostrou-se
fraca, deu provas que não é prudente que se lhe dê credibilidade. A mulher é, por essência,
passível de ser enganada e usada por Satanás.
Por esse prisma, os verbetes “dengosa e faceira” compõem o campo semântico da
malícia feminina. Assinala-se o gosto que a figura feminina tem em atentar contra o “pudor” e
a “vergonha”. A arma feminina consiste exatamente na habilidade de seduzir o homem com
71
malícia e encanto, obtendo dele a satisfação de entregar-se aos “prazeres carnais”. A citação a
seguir justifica essa interpretação:
Você imaginou
Eva dengosa e faceira
Tendo só por vestimenta
Uma folha de parreira?
Não precisava nem Cão
Para Adão fazer besteira.
Na concepção cristã, foi a mulher quem depositou a intranqüilidade no mundo. A
partir dela, instalaram-se todos os problemas e misérias do mundo. A referência aos tempos
antigos, isentos ainda do pecado, em contraste com o “abuso” do sexo feminino, que trouxe os
maus tempos, pode ser aqui interpretado como um dos mais pesados fardos os quais a culpa
feminina foi capaz de trazer para a humanidade, a necessidade de subsistência. Reforçando a
consideração de que os tempos antigos eram melhores, o poeta assinala:
Trabalhar não precisava,
Adão vivia contente,
Só arruinou ao juntar-se
Eva, a maçã e a serpente.
Os vocábulos “maçã”, “mulher” e “serpente”, na estrofe citada, são construções
metafóricas que simbolizam o desequilíbrio, a instabilidade e o declínio do homem. Os três
elementos denotam a maldição lançada por Deus, em conseqüência do pecado feminino.
Na estrofe seguinte, o poeta utiliza jogos polissêmicos para fornecer uma imagem
erótica da mensagem:
Porque Deus disse a Adão
Coma tudo, porém,
Não “coma” a maçã de Eva,
Adão lhe disse: Está bem!
Mas veio a peste da cobra
Para estragar o xerém.
No sentido que remete ao léxico, nesse contexto, a maçã representa o encanto e a
72
sensualidade feminina; a serpente, a camuflagem, a capacidade da mulher insinuar-se para
então “dar o bote”, quer dizer, conseguir o que quer do homem. No ideário místico e religioso
do povo nordestino, a serpente reflete uma imagem negativa porque sempre remete à “culpa”;
ela representa o “caos e a maldade”, prescinde também da associação com o próprio Satã.
Daí, a propagada natureza “lasciva e masoquista” da mulher.
Todas essas representações reforçaram o valor dado às relações convencionais, as
quais estabeleceram as diferenças de papéis entre homem e mulher e que se refletem por meio
da língua.
E como, no modelo tradicional, a mulher deveria viver econômica e moralmente
dependente do marido e do modo como a segregação dos sexos estava definida, a conquista
do trabalho feminino apenas poderia ser sentida como uma ameaça à ordem e aos costumes da
sociedade. Em decorrência da posição de esposa, a mulher passava a ser a “dona-de-casa”, o
designativo de quem é esposa e trabalhadora doméstica, que manda e que cuida do lar.
Enquanto que a mulher era, até décadas atrás, socializada para cumprir o destino de
dona-de-casa, o homem o era para trabalhar fora. Era o trabalho o que afinal conferia ao
homem o direito de expressar com pleno poder as primeiras e as últimas ordens no âmbito da
família. A frase “homem com H” é um dos termos que serve de elogio aos homens de conduta
autoritária e machista, como revela o trecho seguinte:
Onde tem homem com “H”
Uma lei s’estabelece
A mulher diz: sim, senhor!
Porque sabiá reconhece
Que manda quem tem a força
Quem tem juízo obedece.
E assinalando, de maneira elogiosa, a devoção com que a mulher de antigamente, “por
instinto nato”, exercia as obrigações domésticas, o poeta assim se expressa:
Antigamente a mulher
Pelo seu instinto nato,
73
O serviço que fazia
Era “ver” lenha no mato,
Catar pulgas no cachorro
E limpar bosta de gato.
Sob tal ponto de vista, a participação feminina no orçamento familiar ameaçava a
integridade moral do homem. Em primeiro lugar, feria o ícone de macheza ao qual sempre
esteve ligado o sexo masculino, ou seja, significava a falta de responsabilidade e fraqueza
masculina por não prover sozinho as necessidades da família.
E os malefícios da entrada da mulher no mercado de trabalho vão além das ameaças à
integridade moral masculina. A atividade feminina assustava, principalmente, porque podia
comprometer a estrutura política e econômica – com as mulheres trabalhando, poderiam os
maridos ficar sem emprego.
De fato, nos anos vinte, a larga inserção da mulher no espaço de trabalho foi devido à
preferência dos empregadores pela mão-de-obra feminina, mais barata.
Na estrofe seguinte, vê-se como a participação feminina no trabalho é sinônimo de
instabilidade do emprego do homem:
Elas estão todo dia
Tomando o nosso lugar
Se continuarem assim
Só o que vai nos sobrar
É o tanque de lavar roupa
E o ferro de engomar.
O autor considera ainda as mulheres “folgadas”, àquelas que escolhem as profissões
típicas do homem. Fica subentendido que a conquista do espaço no mercado de trabalho é,
conseqüentemente, a perda da feminilidade.
74
Hoje elas são folgadas,
Escolhem até a profissão
Querem se igualar a nós
Só falam em liberação
Umas já dirigem trem
Outras pilotam avião.
Já a profissão de “rezadeira” e de “artesã”, tradicionalmente femininas, pela
característica social difusa e marginal que possuem, são as únicas profissões, além das tarefas
da típica dona-de-casa, que não ameaçam a ordem e por isso são apreciadas pelo poeta:
Em algumas profissões
A mulher dava primeira,
Ninguém ganhava pra elas
Nas artes de rezadeira
Fazer panela de barro
Tecer balaio e esteira.
As mulheres dessas profissões baseiam-se em saberes transmitidos de mãe para filha
e entre vizinhas, mulheres analfabetas e de origem humilde.
A rezadeira ocupa-se dos mistérios relativos à religião, concorrendo ora com o
médico, ora com o padre, para afastar os males físicos e espirituais que se manifestam através
de fluidos sobrenaturais.
Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), a mulher rezadeira é uma idosa,
que resguarda poderes de cura por meio de “benzimento”. Suas rezas constituem cura para
“quebranto”, “mau-olhado”, “vento caído”, enquanto desenha cruzes sobre a testa ou cabeça
do doente com pequenos ramos de folhas verdes, que murcham quando detêm o espírito
maligno que trouxera a doença.
Já o serviço da artesã aparece como indispensável, na medida em que se esmeram os
objetos fundamentais do ambiente doméstico, mais precisamente da cozinha, espaço
feminino por excelência.
75
E a preocupação com o novo comportamento da mulher dos últimos tempos culmina
na questão da preservação da virgindade das moças.
Como se sabe, a moral sexual imposta pelo sistema patriarcal obrigava que as moças
se conservassem virgens até o casamento. Na relação conjugal, por questões da hierarquia
existente entre os sexos, o marido tinha o direito de fazer a “inspeção”, ou seja, submeter a
esposa à prova da virgindade. Caso outro homem tivesse “passado a mão na moça”, ou seja,
desvirginado-lhe, o marido tinha o direito de devolvê-la aos pais. A mulher era reduzida à
condição de um objeto, como uma mercadoria que poderia ser devolvida, caso não causasse
satisfação por parte do dono (o marido). A ilustração a seguir pode constatar a afirmação:
Se o marido descobrisse
Na hora da “inspeção”
Que antes dele outro homem
Havia passado a “mão”
Tinha o direito de
Fazer a devolução.
Nesse estudo, o artifício lingüístico utilizado para conduzir a representação da
soberania do homem sobre a mulher, é a ambigüidade. Os vocábulos “buraco” e “pedaço” são
intencionalmente utilizados pelo poeta com referências aos órgãos sexuais reprodutores
masculino e feminino.
Adão ficou perturbado
Vendo um defeito daquele,
Pois o que faltava nela
Estava sobrando nele,
Para tapar o buraco
Meteu o pedaço dele.
Os versos denunciam a posição de servidão da mulher durante o coito, tais como
evidenciam as expressões tapar o buraco” e “meteu o pedaço”. O conjunto semântico revela,
nesse contexto, o menosprezo pelo sexo feminino.
76
Finalmente, o poeta retrata a mulher decente como aquela que “leva uma vida
honesta”. Para isso, permanece o maior tempo possível reclusa em casa. Uma mulher
recatada, não sai pela vizinhança com o intuito de fazer intrigas. É o que observa o poeta por
meio dos versos “não vive de porta em porta” e “e nem gosta de cachorrada”.
Quando a mulher é honesta,
Leva a vida recatada,
Não vive de porta em porta
Nem gosta de cachorrada
Grosso modo, pode-se apreender que a mulher bendita é a mulher de antigamente, a
mulher celibatária, voltada para os papéis tradicionais femininos e que preserva a hierarquia
existente entre os sexos. A mulher maldita e devassa é toda aquela que defrauda o antigo
sistema, ou seja, aquela que assume um patamar de igualdade com o homem na vida
econômica e social.
Concluindo essas considerações, o esquema a seguir dá uma visão precisa da relação
entre a mulher de antigamente e a de hoje em dia.
77
MULHER
OBRA DA
NATUREZA
ANTIGAMENTE
DESTRUIÇÃO DA MORAL
HOJE
E DO PUDOR
DEMONÍACA
(EVA)
BENDITA
(VIRGEM MARIA)
TRAIÇOEIRA
CIUMENTA
SUBMISSA
DEVASSA, OUSADA
(CASADA)
LIBERTA
VALENTE,
DESTEMIDA
MÃE PRENDADA
INDEFESA
TRABALHA FORA
REZADEIRA
COZINHEIRA
RECATADA
VIROU O JUIZO
MANDONA,
FOLGADA,
ESCOLHE A
PROFISSÃO
USA TOUCA,
ESPARTILHO,
AMPOLETA,
ROUGE,
BATOM
ALHEIA ÀS CONVENÇÕES
FIEL ÀS CONVENÇÕES
FIGURA 3 – Campo léxico-semântico em A mulher de antigamente e a mulher de hoje em
dia.
6.2.4 A mulher e o cangaço
Um dos assuntos mais curiosos, o qual aparece como indissociável da figura de
Lampião, é o da entrada da mulher no cangaço, instituída por Lampião. Antes da entrada de
Maria Bonita no cangaço, a presença de mulheres nos acampamentos visava tão somente à
78
satisfação das necessidades viris dos homens, normalmente prostitutas, com quem deviam ter
contatos passageiros e de total desprendimento amoroso.
A mulher só ingressou
A partir de Lampião
Muita coisa mudou
Com a sua opinião
Pois Maria interfiria
Da maneira que podia
Em cada situação.
Desse modo, a permanência das mulheres no grupo e a configuração das relações
amorosas num plano mais estável, como se deu a partir de Lampião, consistiu na primeira
transgressão ao código de honra do cangaço. Os vocábulos “ingressou” e “interfiria” remetem
à quebra de paradigma instituída pela entrada da mulher.
O cangaço caracteriza-se como o período em que o Sertão nordestino tornou-se palco
de lutas, mantidas entre os coronéis, adversários políticos que formavam suas próprias tropas
para garantir a preservação de suas propriedades, grandes extensões de terra. O cangaceiro,
inicialmente chamado de “jagunço”, mais tarde “capanga”, configurou-se como um tipo em
defesa dos coronéis, chefes políticos, ricos fazendeiros e senhores de engenho. A esses,
ligava-se por questões hierárquicas garantidas pelo sistema patriarcal. Esse tipo formava o
grupo de cangaceiros dependentes.
Porém, há a existência de um segundo tipo de cangaceiro, - que seguiu de modo
independente da figura do coronel e propagou as façanhas e sangrentas lutas travadas pelo
grupo de cangaceiros que mais assolaram o Sertão nordestino. As verdadeiras gestas que
relatam o ciclo do cangaço, nas cidades nordestinas, aludem aos feitos de bravura e destemor
dos cangaceiros Antônio Silvino e Lampião.
Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), o designativo “cangaço” é
derivado de “canga” e é usado no Nordeste desde 1834. A primeira acepção da palavra remete
ao modo como o bandido ou bandoleiro era obrigado a carregar consigo os bens conseguidos
79
nos arroubos contra os ricos fazendeiros; reporta-se, mais especificamente, à tarefa árdua de
conduzir o peso das armas, das munições, incorporando verdadeiros feitos relativos aos
animais de carga, nas longas travessias do Sertão.
No tocante à origem do cangaço, é importante assinalar que, embora Lampião tenha
conquistado grande fama e a ele ser atribuído o maior movimento de lutas, os registros
mostram, antes dele, a existência de combates de cangaceiros, sob a liderança do Mestre
Cabeleira, cujas ações também constituíam um manifesto político-social contra a opressão da
população pobre no meio rural do Nordeste, como mostra o folheto em estudo:
0 Cangaço começou
Com o mestre Cabeleira
Foi dele que iniciou
Toda aquela pasmaceira,
Pela falta de justiça
E também pela cobiça
Começou a bagaceira
A situação de violência reporta-se ao bando de Cabeleira, como é mostrada através dos
vocábulos: “pasmaceira” e “bagaceira”. A palavra “pasmaceira” remete à “contemplação de
um fato sem interesse justificado”, ou à “uma admiração tola”, “idiota”, “imbecil”. O
Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) abona
essas acepções. Quanto à acepção do vocábulo “bagaceira”, este destaca, em sentido figurado,
o clima hostil que se travara no sertão, desde as lutas do cangaço.
A quebra do paradigma do cangaço tem a ver com o modo pelo qual a mulher
conseguiu se adaptar ao mundo masculino do cangaço, sem abandonar os preceitos femininos.
Determinados ideais, que eram defendidos pelos cangaceiros, foram tomados com a mesma
intensidade ou mais pelas mulheres. Os atos de violência contra o estupro, por exemplo, eram
repelidos, cruelmente e com a mesma intensidade com que faziam os cangaceiros, ao
exterminar o criminoso ou algoz que violasse a honra das donzelas.
80
Cabe observar que a entrada da mulher nos bandos só foi possível porque ela deixou a
submissão, o trabalho doméstico e passou a ocupar as frentes de batalha.
Essas mudanças são referendadas no vernáculo do Cordel analisado, A mulher e o
cangaço, sobretudo através dos termos convergentes “amenização” e “mudando essa visão”,
que giram em torno da questão da violência. A importância da mulher, nesse quadro, fica
mais latente através das expressões “força feminina” e “ingressando de menina”:
Violência era o lema
Desse bando no sertão,
Porém, para este tema,
Houve uma amenização
Com força feminina
Ingressando, de menina,
Mudando essa visão.
O fato de que alguns crimes foram poupados pelas mulheres, contrariamente ao clima
hostil existente na figura do cangaceiro, mostra que a mulher, apesar de seu ingresso no
bando e da incorporação de atribuições masculinas, ainda resguardava valores relativos à
feminilidade: + bondade, + compaixão, + meiguice, + intuição, + beleza.
Em todo o texto, há pólos significativos que retratam a ambivalência da personalidade
da cangaceira. Entre as oposições mais expressivas podem-se destacar: “mais bonita”/ “bola
prateada”; “batom e fita”/ “andava bem armada”; “enfeite”/ “bala de aço”. Cada conjunto de
oposição encontra-se definido, separadamente, nas estrofes.
Quanto à prática de estupros, é pertinente observar que essas eram exercidas
especificamente no bando de Lampião. Essa prática poderia servir de constatação da real
preocupação do cangaceiro em auto-afirmar-se diante dos outros homens, dando verdadeiras
provas de virilidade e potência, estas, orientadas no sentido de reforçar a virilidade em grupo,
uma vez estabelecidas a partir da violência sexual coletiva. Tal fato encerra uma contradição
- ao mesmo tempo em que o cangaceiro defendia a todo custo a honra das moças donzelas de
81
condição mais humilde, ou das daquelas que consistiam seu objeto de veneração, não evitava
a prática de estupro com outras mulheres, as de elite.
Nesse ponto, cabe ressaltar a preocupação com a virilidade, que é, segundo Bordieu
(2003, p. 64):
(...) entendida como capacidade reprodutora, sexual e social. Mas também
como aptidão ao combate e ao exercício da violência, sobretudo em caso de
vingança, é, acima de tudo, uma carga. Em oposição à mulher, cuja honra,
essencialmente negativa, só pode ser defendida ou perdida, sua virtude
sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem verdadeiramente
homem é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que
lhe é oferecida, de fazer crescer, sua honra buscando a glória e a distinção na
esfera pública.
O paradigma fundamental da honra, enquanto poder do homem, situa-se na fronteira
entre a “virilidade e a violência”, manifestando-se, paradoxalmente, na temeridade do homem
em deixar transparecer que falhou, o que significa não ter sabido lidar com a companheira.
É, sobretudo, o medo de ser tachado de “corno”, de ser tomado como “mole” ou
“fraco”, perder o status de “homem macho”, conseqüentemente, o respeito e a admiração dos
companheiros, que o cangaceiro traído se sente preso a uma armadilha: para livrar-se da
humilhação de ser enganado, deve tirar a vida da companheira.
A história da repressão ao adultério feminino obteve a mais alta repercussão com o
caso da cangaceira Lídia, companheira de Baiano.
A seqüência dos sintagmas “Baiano amava lídia”, “que amava Bem-te-vi” deixa
entrever a existência de um triângulo amoroso na relação entre Baiano, Lídia e Bem-te-vi.
Fica evidente também a paixão não correspondida de Baiano pela cangaceira. Verifique-se
melhor por meio da estrofe:
Baiano amava lídia
Que amava Bem-te-vi
No entanto, nesse dia,
Uma lei se fez agir:
Sua lei foi de pulada
Para ter honra lavada,
Como chamam por aqui.
82
Morrer a “golpes de Faca”, “pau ou de bala crivada”, “duma rajada”, “lei de paulada”
são expressões utilizadas no texto para denominar o nível cruel e brutal em que eram
conduzidas as penas para o adultério feminino. A morte de Lídia, colocada num plano
simbólico, representa, nessas circunstâncias, a defesa da honra. Assim, para ter honra lavada,
como diz o sertanejo, é que5ele prossegue com a “prova da macheza”, como consta no verso,
que significa retirar a vida da companheira.
Quanto à combinação dos elementos, como “audácia”, “coragem” e “valentia”,
qualidades tomadas como inerentes ao universo masculino, manifestas agora na figura da
cangaceira, denota uma inversão das práticas e valores do cangaço. Os vocábulos que se
destacam no campo da valentia são “briga”, “montaria” e “pontaria”, e aludem às novas
atribuições femininas instituídas no bando:
Na briga e na montaria,
Vou citar aqui Otília,
Com destaque para Sila
que merece honraria.
A realização de alguns serviços domésticos tidos como femininos, quando passam a
ser exercidos pelos cangaceiros, também reflete uma quebra do perfil machista dos homens do
cangaço. As oposições “cabra/ comida” e “mulher/ servida” denunciam essa inversão de
papéis.
No cangaço a comida
Pelo cabra era feita,
A mulher era servida
5
Além das cangaceiras Maria Bonita, Dadá e Lídia, podemos citar como uma das personalidades mais
importantes, no que se refere à redefinição dos papéis do cangaço, a cangaceira Sila, companheira de Zé Sereno.
Dentre as cangaceiras de menor repercussão, mas que não puderam passar despercebidas na História e na
Literatura, encontram-se Enedina, Inacina, Maria de Pancada, Neném, Otília, elas são citadas no folheto desta
análise.
83
A presença feminina no cangaço fragilizava a noção machista de homem viril e
guerreiro e a de sexo frágil para a mulher. Melhor dizendo, tornava inegável o fato de que a
mulher podia se portar como guerreira e de enfrentar as mesmas batalhas ao lado dos homens.
No campo das relações amorosas, tornou frágil a noção de virilidade masculina e a
compreensão de que, para ser macho, era preciso manter contato sexual com várias mulheres,
sem apego ou compromisso com nenhuma das parceiras, sempre com contatos efêmeros.
Em suma, a idéia fundamental do texto é que a mulher consegue, a partir de sua
entrada no cangaço contribuir para a reconstrução de alguns papéis e valores existentes no
cangaço, rompendo com determinados estigmas sociais. Todavia, não consegue avançar no
que diz respeito à desigualdade relativa ao código de honra, que prevê a monogamia apenas
para o sexo feminino.
Bastante complexa é a entrada da mulher no cangaço, considerando-se a concepção até
então existente sobre sua fragilidade e dependência. Contudo, em sendo assim, o momento é
mostrado no esquema a seguir.
84
MULHER NO CANGAÇO
ROMPIMENTO COM A
TRADIÇÃO
AMBIENTES,
MODAS E
COMPORTAMENTOS
INTERFERÊNCIA NO
COMPORTAMENTO
MASCULINO
AMENIZAÇÃO DA
VIOLÊNCIA CONTRA
A MULHER
CRISTALIZAÇÃO DA
TRADIÇÃO
PUNIÇÃO E
ADULTÉRIO
MONOGAMIA
FEMININA
MORTE
SERVILISMO
E SUBMISSÃO
VIDA DE
CANGACEIRO
GUERREIRA
SEMELHANTE
AO HOMEM
FACA, PAU,
BALA
CRIVADA
VALENTE
FIGURA 4 – Campo léxico-semântico em A mulher e o cangaço.
6.2.5 A mulher no lugar do homem
A identificação das mulheres trabalhadoras com o mundo privado e doméstico é o
reflexo da estrutura cultural patriarcal e paternalista, que perpetuou a crença na incapacidade
feminina e a noção da natural dependência da mulher em relação ao homem. No caso da
sociedade nordestina, essa operou com mais nitidez os valores culturais do patriarcado,
recrudescendo a relação da mão-de-obra feminina com o setor doméstico.
A mulher nordestina durante muito tempo foi identificada com o mundo social privado
e doméstico, independente da classe social a que pertencia. O modo de viver da gente do
Sertão e as formas de subsistência e sobrevivência da maior parte da população foram todas
fundamentadas ainda nos tempos de escravidão.
85
A vida de mulher branca, de dependência e submissão ao marido e a da mulher
escrava, a de mucama, ama-de-leite, cozinheira, bordadeira, lavadeira, engomadeira,
costureira, doceira, entre outras atribuições, foram incorporadas ao espaço das senhoras de
elite ou, mais especificamente, à esfera doméstica, conforme foi falado anteriormente. A
mulher pobre e livre, não gozando de status ou do privilégio de casar-se com marido rico,
desde cedo, teve que encarar os serviços domésticos, sendo obrigada, pois, a exercer os
mesmos afazeres domésticos que eram realizados pelas mãos das negras.
Os trabalhos
caseiros ficaram, desde então, associados exclusivamente ao sexo feminino.
O trabalho da mulher
Para que não fale o povo
É amarrar uma cabra
Dar leite a um gato novo
Tratar duma bacorinha
Botar milho pra galinha
E reparar se tem ovo
A abertura de possibilidade de trabalho significava um comprometimento nas bases da
organização paternalista dominante, fazendo-se sentida pelos conservadores como o mais
completo caos da sociedade. O primeiro agravo era “a mulher tomar o lugar do homem”,
como mostra a idéia a seguir:
Hoje se torna difícil
Emprego para rapaz
Nos estabelecimento
Dos homens industriaes
Porque a moça sabida
É muito mais preferida
Nas casas comerciais
O campo da domesticidade se organiza pelas expressões: “amarrar uma cabra”, “dar
leite a um gato novo”, “tratar duma bacorinha”, “reparar se tem ovo”, “varrer casa e fiar”,
“deitar galinha e piruá”, “lavar prato”, “catar pulga no vestido”, “catar pulga no gato”, “botar
milho pra galinha”.
86
As expressões pitorescas “e tratar dos seus filhinhos” e “também catar bichinhos nas
barbas de seu marido” designam a desvalorização social feminina.
A noção antiga de que o trabalho era compatível somente com a figura masculina, está
por trás das expressões a “mulher passou na frente”, “tomando o lugar do homem” e “tomou
as calças da gente”.
A idéia de que o homem está perdendo espaço e o emprego e a mulher ocupando o seu
lugar, é reiterada na seguinte estrofe:
Meu primo pediu emprego
Na loja de seu Bernardo
Ele lhe disse eu não tenho
Emprego para barbado
Todo o meu negócio agora
Quem faz è moça e senhora
Que me dar mais resultado
O êxito em se colocar uma mulher bonita no trabalho se dá em decorrência de ela
atrair fregueses do sexo masculino. Fica subtendido que a mulher só é útil em funções nas
quais ela permaneça com suas qualidades femininas, docilidade, meiguice, paciência. Daí,
sua natural vocação para telefonista, recepcionista, secretária, professora (principalmente de
crianças), entre outras que para a sociedade são profissões quase sempre consideradas
secundárias. O termo “barbado”, no Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua
Portuguesa (1999), é definido como “adulto”, “marmanjo”, “homem”. Esse termo, na fala
comum do povo, é usado para remeter, em tom de ironia ou deboche, a incompetência,
desvio ou incapacidade do homem de se portar como tal, em um dado momento.
A combinação das circunstâncias de negação, a partícula “não” com a de espaço
“agora”, impõe uma maior ênfase na idéia de que nos tempos atuais o homem não tem mais
serventia nos cargos empregatícios, uma vez que esses passam a ser ocupados pelas
mulheres.
87
No campo das mudanças comportamentais femininas, assinala-se uma reconstrução de
valores, visualizadas em forma de novas atitudes, pensamentos e práticas sociais:
Escanchar-se em bicicleta
Isto pertence a rapaz
Como também futebol
Que coizas tristes falaes
Esses lugares não tomem
Porque so pertence a homem
Mulher que pensa não faz
Está no imaginário popular que se a mulher andar de bicicleta pode perder a
virgindade. Assim, a posição de sentar na bicicleta não é adequada “às moças de família”, que
devem sempre estar de pernas fechadas e a bicicleta impossibilita isso.
O texto aponta, pois, as mudanças havidas entre os padrões de comportamento antigos
e novos, tratando, sob um prisma negativo, a incorporação de novos modelos, principalmente
quanto à inserção feminina no mercado de trabalho, refletida numa postura aterrorizante ao
homem. Daí, concluímos com a apresentação do esquema a seguir, para melhor compreensão.
88
MUDANÇA DE PAPÉIS
FEMININOS
PERDA DO
STATUS
MASCULINO
IGUALDADE COM O HOMEM
VOTA
FOI VOTANTE
NO TEMPO DA
ELEIÇÃO
BICICLETA
MEDO
FRUSTRAÇÃO
ENCANCHARSE EM
BICICLETA
JOGA
FUTEBOL
TRABALHA FORA
VESTE CULOTE E
PERNEIRA
TOMA O LUGAR
DO HOMEM
FIGURA 5 – Campo léxico-semântico em A mulher no lugar do homem.
6.2.6 As duras lamentações de uma coroa
No dizer popular, uma coroa é uma pessoa que está passando da maturidade à velhice;
é, na concepção da pessoa que fala, alguém idosa ou de idade ultrapassada6.
Costuma-se dizer que quando uma pessoa chega aos trinta anos de idade, passa a ser
coroa, porém, o mesmo designativo recebe uma apreciação diferenciada, conforme a
aplicação para os sexos feminino ou masculino. Ambos os empregos possuem o sema da
idade, embora esse designativo seja normalmente empregado com relação à mulher, num
sentido pejorativo. Já com relação ao homem, o fato de ser “coroa” significa, na maior parte
das vezes, tornar-se mais maduro e mais autoconfiante, mais envolvente ou mais viril.
6
O autor deste folheto de Cordel aborda o mesmo tema em Vida e morte de uma coroa, descrevendo em
pormenores “o que é ser uma coroa”. Em outro folheto ainda, intitulado O que uma coroa deve fazer para se
casar”, o poeta apresenta uma receita de oito páginas para o alcance desse objetivo. Esses folhetos estão inclusos
no corpus da análise.
89
Quase via de regra, a idade de trinta anos no homem representa o momento propício
da decolada na carreira. É, desse modo, o momento propenso às chances de êxito no âmbito
profissional e na vida pessoal, quando acumula o maior número de conquistas femininas. Para
a mulher, de modo adverso, essa idade significa a ruptura com a felicidade. Esse período pode
ser mais desvantajoso se, nessa idade, a mulher não tiver conseguido arranjar um homem, um
marido. É quando se atesta, nesse sentido, a ineficiência no poder de conquista feminino e,
portanto, a eliminação de todas as possibilidades de sucesso na vida.
As duras lamentações de uma coroa transmitem o sentimento de desespero e angústia
feminina, quando é chegada a velhice. A fase da adolescência, mencionada como sendo os
tempos gloriosos, onde a mulher tira proveito da vida, é lembrada nas expressões de lamento,
“quem me dera que eu tivesse 17 anos de idade”:
Se eu tivesse esses anos
Com toda sinceridade
Eu namorava todo homem
Que vivesse na cidade!
Quando o objetivo único da mulher deveria ser conquistar um companheiro, a
característica feminina que mais contava era a beleza. Mas ao lado dela, a mulher precisava
apresentar outros: ser “sabida”, “fácil” e “ligeira”, vocábulos que condizem com o perfil
feminino estabelecido pela sociedade.
A recordação da personalidade “Cleópatra”, na fala da mulher, representada pela
“coroa”, expressa a inveja da habilidade da princesa egípcia, que pôde usar dos seus artifícios
naturais para atrair os homens e conseguir deles o que queria.
Quem me dera que eu fosse
Jovem, bonita e faceira
Eu só vivia entre os homens
Como uma dama primeira
Eu era como Cleópatra
Sabida, fácil e ligeira
90
A falta de um corpo jovem, a perda da beleza, reflete a falta de qualquer perspectiva
para a mulher, quando se tem uma idade mais avançada. A velhice significa, pois, a perda do
vigor feminino, o padecimento e abandono:
Mas agora eu estou só
Triste e desiludida
Já passei dos 33
A velhice não é encarada como sinal de maturidade e experiência, um decurso normal
da vida, mas como uma desgraça, insucesso na vida de uma mulher, em função da perda da
aparência anterior – “a pele está frangida”, “já passei dos 33”, “como perdi a sacudida”, que
demonstram o sofrimento provocado pela depreciação das qualidades no tempo de juventude:
Como perdi a sacudida
Se eu subo a minha sáia
A minha pele está frangida!
Existe uma variedade de termos na fala do povo para designar a mulher idosa ou que
já tenha passado da idade de se casar: “bofe”, “sucata”, “courão”, “bucho”, “fúfia”, “surrão”,
“tia”, “bagulho”, “fulustreca”, “traste”, “maroca”, “caritó”. Todos eles estão carregados
semanticamente de significados para categorizar a mulher velha como um ser imprestável uma “mulher velha” e “cheia de pelancas”, que como diz o dito popular, “já deu o que tinha
que dar”. (Cf. em Calepino potiguar: gíria norte-riograndense).
A associação da idade avançada com a desgraça feminina, é apresentada nos versos a
seguir:
Agora estou desgraçada
Não há quem queira mais...
91
A expressão da condição desgraçada da mulher em virtude da idade, conseqüência da
falta de interesse dos homens com relação a ela, é posta em ênfase na construção da estrofe
apresentada:
Quantas vezes eu rezei
A trezena de Santo Antônio
Parece até ser armada
Do horroroso demônio...
Vou rezar a cabra preta
Mas garanto meu patrimônio.
“A trezena de Santo Antônio”, mencionada no discurso em 1a pessoa, manifesta o
apelo da personagem pelas rezas, quando o objetivo único é arranjar casamento. As trezenas
de Santo Antônio são rezas tomadas pelo católico em devoção ao santo, nos treze dias
anteriores à festa em devoção e homenagem a ele. O número de dias é uma reminiscência ao
dia de seu falecimento, no dia 13 de junho de 1231.
As rezas a Santo Antônio representam o mais alto sentido de desespero da personagem
em relação às chances de casamento, sentidas como nulas.
Santo Antônio é, na imaginação que o povo nordestino concebeu, uma figura
milagrosa e protetora, cujo poder por excelência é conceder a realização de casamentos, não
frustrando as esperanças das moças casadoiras. Daí por que, vulgarmente, é chamado santo
casamenteiro, Santo Antônio é o santo da lenda e das tradições populares, aquele cujo poder
alcança a ressurreição dos mortos, a cura de doenças, o alívio no bolso dos ricos em defesa
dos pobres, o livramento das misérias e das causas mais difíceis. Fica na mente do povo o seu
mais alto exemplo de honestidade, humildade e prodigalidade para com os mais necessitados.
A investida na reza da cabra preta, como substituição à trezena, configura uma
mudança na crença religiosa. A cabra preta significa, na expressão popular, o ritual de
feitiçaria em que se evoca a figura do Diabo. Nesse contexto, o pacto com o diabo constitui a
última chance de casamento da personagem.
92
De diversas maneiras, a mulher procura superar suas diferenças, principalmente, a
beleza, que está relacionada, normalmente, ao olhar masculino, pois a beleza só lhe é
prazerosa quando, através dela, a mulher consegue seduzir um homem. Os contos infantis
incorporam esse estereótipo: a madrasta da Branca de Neve é um exemplo clássico disso.
Ademais, as designações que competem para a depreciação da mulher, no folheto,
relacionam juízos referentes à imagem feminina em função da idade. Fica entendido, pois,
que não há espaço para a velhice no campo da beleza, ou vice-versa.
A sistematização das “lamentações de uma coroa” permite uma melhor compreensão
do que a mulher tem que enfrentar quando não casa cedo, conforme se vê na página seguinte.
93
LAMENTAÇÕES
PLANO MORAL E
ESPIRITUAL
PLANO MATERIAL
MALES
VELHICE
BEATICE
REJEIÇÃO
DÓI O PANARIÇO
MASCULINA
REZA PARA
CONSEGUIR
CASAMENTO
EU SÓ POSSO
ENDURECE O MEU
TOITIÇO
ACREDITAR QUE
NEM DIABO ME
TREZENA
E AS PERNAS
QUEIRA
DE SANTO
NÃO
AGUENTAM...
ANTONIO
FIGURA 6 – Campo léxico-semântico em As duras lamentações de uma coroa.
6.2.7 As modas escandalosas de hoje em dia
A preocupação com os valores e o temor da degradação dos costumes é a causa mais
eminente do saudosismo dos tempos passados, sobre os quais os cantadores sertanejos
reservam as maiores lembranças. Esses recordam, como lembra Cascudo (1973, p. 152),
“como se tivessem vivido há cem anos, cenas de simplicidade longínqua, o respeito dos
filhos, a veneração da esposa, a candidez dos filhos”.
É nesse sentido que o poeta, revoltoso com a falta de decência feminina, como que
sentindo falta da tranqüilidade dos antigos tempos, esbraveja:
94
A decência atualmente,
Pra muitos não vale nada!...
Uma mulher de respeito
Seja solteira ou casada
Se ela não andar nua
Se requebrando na rua..,
Dizem que ela ê uma errada!
A ação de requebrar (de re+quebrar), conforme o Novo Aurélio século XXI: o
dicionário da Língua Portuguesa (1999), significa “saracotear”, “rebolar”, “remexer”. Usa-se
normalmente a expressão “requebrar os quadris”, ou a substituição dela por alguns de seus
correlatos, no intento de referir-se ao andar insinuante ou provocante de uma mulher.
O campo do escândalo organiza-se, pois, com os termos “andar nua” e “requebrando
na rua”. Esses, numa relação disfórica, estão relacionados moralmente, com o aviltamento do
corpo feminino.
Os versos “com doze anos começa” e “com o cabelo feito moça” referem-se à
mudança da fase de meninice à de puberdade. O vocábulo “moça” está intrinsecamente ligado
ao momento em que a menina é ”batizada” com o fluxo menstrual, um momento expressivo e
simbólico do ponto de vista das crendices e superstições nordestinas acerca desse fenômeno.
O Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999) também
apresenta a acepção de “moça” como “jovem”, “rapariga”, “mulher púbere”, “mulher madura
que não é velha”. Percebe-se, assim, que o sentido do termo tem relação específica com a
questão da honra feminina. Por isso, toda a preocupação dos pais, com o fato de que é nesse
momento que a moça pode perder a virgindade, adquirir uma gravidez indesejada, e tudo isso
tem relação com a primeira menstruação.
A reprovação do poeta sobre o comportamento da moça incide no fato desta tornar-se
independente e, portanto, suscetível e desejosa de perder a própria honra (antes tão
resguardada pelas mulheres), na concepção de que se a mulher se iguala ao homem passa a ter
atitudes que não condizem com sua feminilidade:
95
Infelizmente hoje em dia
Se o rapaz é moleirão
Não beija a moça com força
Quando está na escuridão
E se com ela não bole...
Diz ela que ele é mole
Não serve pra ela, não!
A expressão “ele é mole”, que converge para outras acepções populares como “negar
fogo e não dar conta do recado”, deixa entrever que, mesmo incorporando novos modelos de
conduta, a mulher moderna ainda conserva preceitos antigos, como o de considerar que o
homem só é viril quando toma a iniciativa, que esse tem por natureza um instinto sexual
incontrolável. Deduz-se que o rapaz é “moleirão” quando não a deflora, ou não aproveita o
fato de que ela está vulnerável a ele.
O texto em tela tem como objetivo mostrar que as mudanças verificadas na
humanidade são decorrentes da depravação e da corrupção dos antigos valores, apontando a
mulher como a mais responsável pela decadência dos costumes remotos, tidos como ideais,
numa visão machista para os dias atuais, e que essas mudanças se apresentam como modas
escandalosas, o que leva a uma visão da “moça ajuizada” e da “moça sem juízo”. É o que
mostra o esquema a seguir.
96
MODAS
MOÇA AJUIZADA
MANUTENÇÃO DO ESTILO
CONSERVADOR
ADESÃO AOS COSTUMES
MASCULINOS
MOÇA SEM JUÍZO
SEMELHANTE
AO HOMEM
COMPORTAMENTO
INVASÃO DOS
ESPAÇOS
PÚBLICOS
PULANDO EM PRAÇA PÚBLICA
BEBE
SE REQUEBRANDO NA RUA
FUMA
VESTE CALÇA
DE HOMEM
FIGURA 7 – Campo léxico-semântico em As modas escandalosas de hoje em dia.
6.2.8 Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia
No texto em estudo, há o destaque para o campo da beleza e sedução feminina. Nesse,
foram listados os termos que caracterizam o modelo de mulher ideal, segundo a visão
masculina. No campo da beleza e sedução, enumeram-se os atributos femininos, tais como a
beleza, a doçura, o calor e a ternura; esses constituem os principais pré-requisitos para que
uma mulher seja aceita do ponto de vista do poeta.
A supervalorização do conceito de + beleza feminina está relacionada ao de +
saciedade do homem. Daí, uma forte conotação entre os prazeres do corpo e o prazer dos
alimentos. No item beleza, o perfil feminino, que objetiva o agrado do homem, corresponde a
três ingredientes fundamentais: não basta ser bela, a mulher tem que ser “carinhosa”, “fogosa”
e “gostosa”. A estrofe abaixo serve de exemplo:
97
Beijo de mulher bonita
Tem gosto de mascatel
É farinha de castanha
Quando é traçada com mel
A impressão de saciedade sexual do homem fica subentendida nos vocábulos “paz”,
“amor”, “honra” e “amizade”. As metáforas “fome de amor” e “preenche a necessidade”
deixam entrever a idéia de semelhança do corpo feminino com o alimento propriamente dito,
capaz de saciar a fome de carinho, prazer, desejo, etc. Esse conjunto de sensações insere-se no
campo do desejo, o qual pode ser exemplificado através da estrofe a seguir:
Beijo de mulher bonita
Preenche a necessidade
E a fome de amor
Com toda sinceridade
E o homem com ela sente
Paz, amor, honra e amizade
Os vocábulos “fome” e “necessidade” enfatizam o lado instintivo sexual masculino e
machista, colocando a mulher como alimento capaz de saciar esse instinto, conforme foi dito.
A palavra “beijo” inclui-se tanto no campo da sexualidade, enquanto carícia trocada
entre os namorados ou amantes, quanto no campo da amizade, significando um ato comum de
afeição ou cumprimento travado entre pessoas da mesma família ou com parentesco próximo.
A ação de beijar é amplamente inserida num contexto simbólico, significando, num contexto
de malícia e de suspeita, o sentido de traição - o beijo de Judas Iscariotes em Jesus, está
inserido num contexto da traição e prenúncio de morte – logo após ter traído a seu Mestre, o
apóstolo se suicida. Com efeito, a relação beijo/ traição parece provir daí.
No Nordeste, ainda é muito comum entre o povo dizer-se “cheiro”, no lugar de beijo,
como observa Cascudo, em sua obra Superstição no Brasil (2002). Essa palavra é revestida de
afetividade, principalmente na fala das mães nordestinas, na troca de carícias dirigidas aos
filhos menores, as quais abusam da expressão “Dá um cheirinho na mamãe!”.
98
Mas, na verdade, o cheiro insere-se num contexto ambivalente, - é usado, ou para
registrar um maior teor de afetividade, imprimindo uma atmosfera de pureza, de carícia
angelical, ou pode apresentar um fundo de malícia e refletir uma essência voluptuosa. Nesse
caso, é importante escrever que dificilmente a frase “dar um cheiro no cangote”, poderia ser
inserida no primeiro contexto.
Verifica-se uma dupla idéia na expressão “mulher boa”, presente no texto, dado que
essa expressão tanto serve para designar, literalmente, uma mulher bondosa ou virtuosa,
quanto imprime, maliciosamente, a conotação de mulher “gostosa”, “boazuda”, “de físico
provocante”, acepções de acordo com o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua
Portuguesa (1999) e o Dicionário de palavrão e termos afins (1998).
Não existe nada melhor
Do que uma mulher boa
Bonita e bem carinhosa
Agrada a qualquer pessoa
Quem beija ela sente
Amor, carinho e quentura
A combinação sinestésica entre a beleza feminina e os sentidos, - visão, olfato e
paladar, tem como efeito, reiterar a idéia do tesão, do prazer masculino. Assim, a seqüência de
vocábulos “amor”, “carinho” e “quentura” insere- se no campo da volúpia feminina.
De modo inverso, a “mulher feia” é negativamente posta no plano da recusa e da
insatisfação masculina. Portanto, as comparações pejorativas, que remetem a esse tipo de
mulher traduzem sensações desagradáveis, tais como “dor”, “incômodo”, “medo” e “choro”,
de forma preconceituosa. Essas sensações estão expressas nos trechos a seguir:
Carinho de mulher feia
É murro, coice e patada
Empurrão, pota-pé
Beliscão, soco e dentada
99
Carinho de mulher feia
Eu nem quero nem de graça
Até de longe faz medo
Os versos apresentados refletem uma analogia entre mulher feia e alguns animais. Os
vocábulos “coice” e “patada”, “baleia” e “macaco” são os designativos mais depreciativos,
usados para reforçar as semelhanças existentes entre os humanos e os outros seres. O
designativo “macaco”, quando usado para referir-se ao sexo feminino, é quase sempre com o
objetivo de insultar a mulher negra.
Carinho de mulher feia
Além de singelo fraco
Se parece uma baleia
Cada olho é um buraco
E o bafo da boca dela
Tem catinga de macaco
Beijo de mulher feia
Tem catinga de monturo
Tem gosto de café frio
No Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense (1980), o verbete “macaca” é
registrado como “mulher que está sempre a reclamar de tudo”. O sentido do verbete traduz
claramente o comportamento agressivo do homem sertanejo com relação à mulher.
As expressões “catinga de macaco”, “catinga de monturo” e “bafo” são usadas,
pejorativamente, com a finalidade de atingir o negro. A alusão aos termos em relação ao beijo
da “mulher feia” aparece como simples pretexto para depreciar a negra, tecendo um paralelo
entre ela e o macaco, tanto do ponto de vista da aparência física, quanto do odor. Essa
produção de sentido fica mais evidente pela organização do campo da raça, cujos semas mais
evidentes são “monturo” e “café”. 7
Enfim, o texto pretende mostrar que a mulher é aprazível na concepção do homem,
enquanto dotada de atributos físicos, quando sua única função é utilizar o corpo para agradá7
Essas mesmas idéias aparecem novamente no folheto “O malandro e a peniqueira...”.
100
lo. Por isso, a constante vaidade da mulher com o corpo, com o cheiro e com todos os
artifícios necessários para instrumentá-lo a essa função, são, nesse contexto, vistos como
positivos.
O esquema a seguir, esboça, resumidamente, a análise do texto em estudo:
ESSÊNCIA FEMININA
MULHER BONITA
SENSUALIDADE
NOJO E
REPUGNAÇÃO
MULHER FEIA
PRAZER AO HOMEM
NÃO SENSUALIDADE
DESAGRADO AO
PATROA
HOMEM
PROVOCA
ESTIMULANTE DOS SENTIDOS
BEIJO
CHEIRO
DOCE COMO
MANGABA
AMOR,
CARINHO,
BEIJO
SINGELO E
FRACO
RAIVA
ENJÔO
FADIGA
AMARGO
QUENTURA
DE COISA
BOA
BAFO TEM CATINGA DE
MACACO
TEM CATINGA
DE MONTURO
FIGURA 8 – Campo léxico-semântico em Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia.
101
6.2.9 História da mulher da língua grande
Na Cultura Popular, a imagem que se espraiou sobre a mulher foi a de que ela é
naturalmente difamatória e caluniadora, como dissemos na análise do folheto A Língua da
Mulher Faladeira.
O termo corrente “mulher tem a língua grande” ou “mulher de língua comprida”,
remete à mulher “fofoqueira”, ou seja, a que vive reparando e comentando sobre a vida dos
outros, conforme registra a obra Calepino potiguar: gíria norte rio-grandense (1980). Há
todo um conjunto de estrofes que fornecem significações humorísticas e irônicas acerca da
imagem feminina, no sentido de reforçar a associação entre a fala da mulher e a destruição:
A mulher da lingua grande
Quero aqui aconselhar
Corte a metade da língua
Para não te condenar
Porque do jeito vai
Ela vai te devorar.
Os verbos “condenar” e “devorar” são os núcleos da informação sobre o perfil
maligno da mulher, construído em função de uma postura preconceituosa e machista em
relação ao sexo feminino. Essas idéias são impressas novamente na estrofe a seguir:
Mete o pau
Ela se dana a falar
Fazendo a maior zuada
Pois a língua dela ataca
Na linguagem popular, “meter o pau” em alguém significa difamar. O vocábulo “pau”,
associado ao termo “ataca” insere-se no campo da agressão e é semanticamente usado para
referir-se ao comportamento difamatório da mulher, passando a considerar o uso da palavra
pelo sexo feminino, potencialmente destruidor e maléfico.
102
Encontra-se, no folheto analisado, uma abundância de vocábulos e expressões para
definir a mulher desse perfil: “linguaruda”, “mulher da língua grande” e “fuxiqueira” são
alguns dos designativos mais freqüentes na linguagem popular.
A categorização de “mulher da língua grande”, presente no próprio título do Cordel, é
correlata do designativo “linguaruda”, podendo significar “alguém que não consegue guardar
segredo”; ela é cognata da expressão “bate com a língua no dente”, como revelam os versos a
seguir:
Mulher da lingua grande
Não se confia um segredo
Porque ela põe na rua
No outro dia bem cedo
A mulher que desagrada, ou seja, a “mulher da língua grande”, é aquela que toma
partido da vida dos outros. Essa, na visão do poeta, é, pois, passível de receber punição física,
é quem merece “cair na peia”, isto é, “castigo com açoite”, “surra”, acepções registradas no
Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003). O
Cordel referenda as expressões presentes na linguagem popular:
Porque leva a sua vida
Só falar da vida alheia,
Pra deixar o mau costume
Merece cair na peia.
A mulher faladeira é também aquela que não cansa no seu discurso repetitivo:
A mulher da língua grande
Fala que o filho é seboso
Que a nora é fuxiqueira
Que o genro é preguiçoso,
Que a filha è sapatão,
Que o marido è vaidoso.
103
A essência pejorativa dos termos utilizados com referência à mulher é um reflexo do
conceito machista, discriminatório e depreciativo sobre a figura feminina, nos moldes
patriarcais de nossa sociedade.
Agora sou uma desgraçada
Com meus dentes amarelos
Estou de bucho quebrado
Que não vejo os meus chinelos
Muitos são os termos usados para referir-se à mulher, seja em relação a atitudes que
desagradam: “faladeira”, “assanhada”, “atrevida”, ou, mesmo, por seu aspecto físico; se não é
bonita, nem jovem, crescem os adjetivos que lhes são dirigidos, sempre de forma depreciativa.
Conclui-se que a mulher tem valor na sociedade enquanto goza de boa aparência física
e quanto menor for sua idade. As designações, que competem para a depreciação da mulher,
relacionam juízos referentes à imagem feminina relativa a seu tempo de vida. Não há espaço
para a velhice no campo da beleza, ou vice-versa.
A síntese da análise de História da mulher da língua grande encontra-se no esquema a
seguir.
104
MULHER DA LÍNGUA GRANDE
NATUREZA DIFAMATÓRIA
MERECE
PUNIÇÃO
PECADO DE EVA
LÍNGUA
GRANDE
BATE COM
A LÍNGUA
NO DENTE
ELA SÓ VIVE
A FALAR
SUA LÍNGUA
SE DANA A
COÇAR
DESRESPEITA AS
AUTORIDADES E AOS
REPRESENTANTES
DA IGREJA
PADRE E
FREIRA
DELEGADO,
JUIZ,
PROMOTOR,
ESCRIVÃO,
SOLDADO E
PREFEITO
FIGURA 9 – Campo léxico-semântico em História da mulher da língua grande.
6.2.10 Maria Bonita – mulher macho, sim, senhor
Maria Bonita é o símbolo de força, de valentia e coragem da mulher sertaneja, pela
coragem em entrar para o cangaço e lutar em pé de igualdade com o homem cangaceiro e
destemido.
A cangaceira Maria Bonita é uma figura antagônica, tanto do ponto de vista da
estética, quanto da moralidade. Era chamada de princesa, pelo seu companheiro Lampião, por
despertar no sertanejo o sentimento de admiração em torno de sua beleza. Ao mesmo tempo
Maria Bonita significou, aos olhos das sertanejas, um exemplo de coragem e heroísmo ao
105
conseguir penetrar no bando e por ter conseguido o respeito e a admiração dos cangaceiros,
para quem a valentia e a coragem eram, por excelência, qualidades masculinas.
A entrada do cangaço só pode ser vista como positiva, no momento em que a mulher
deixa o papel estipulado socialmente para uma mulher nordestina, o de mulher pobre e
submissa e adentra-se num universo essencialmente masculino, que é o cangaço.
Desse modo, Maria Bonita não só vai ser respeitada, como também admirada, porque
consegue agregar os semas masculinos “valentia”, “coragem”, “intrepidez”, “ferocidade”.
Mas, principalmente, porque não precisara utilizar-se do carma da beleza como arma de
sedução para entrar no cangaço. Ou seja, apesar de ser bela, não obteve em nenhuma instância
a aceitação ou o reconhecimento por parte do grupo, em função dessa qualidade.
Além do mais, Maria Bonita impôs-se, não por ser a mulher de um líder, mas através
de seu caráter, conseguindo ser respeitada e temida até mesmo pelos próprios homens do
cangaço.
O cabra que faltasse
Respeito se arrependia
Macaco na unha dela
Se descuidasse perdia
Porque ela em sua mira
Por detrás na macambira
Quem a enfrentasse morria
Os termos “o cabra”, “cangaceiro”, “valentão” ou “capanga”, e também “o criminoso”,
ou
“pistoleiro”,
como
consta
no
Dicionário
lingüístico-literário
de
termos
regionais/populares - Norte/Nordeste (2003), do modo como são utilizados na estrofe, põem
em enlevo a postura invencível e viril da cangaceira Maria Bonita, ou melhor, destaca a
autoridade da cangaceira em relação à figura masculina, colocando-a como um ícone maior
entre as outras figuras do cangaço, sejam essas masculinas ou femininas.
No que diz respeito às outras mulheres que entraram no bando vale salientar que,
nenhuma outra conseguiu atingir o mesmo nível de ascensão que Maria Bonita, ainda que
106
tenham abandonado suas famílias e provocado um desequilíbrio na própria estrutura familiar
para entrar no bando.
Mesmo após a entrada no bando, Maria Bonita conserva os preceitos femininos
normalmente esperados de uma mulher, tais como “beleza”, “vaidade”, “lealdade”,
“monogamia” e “apego à religião”, apesar do ambiente hostil no qual se encontra, até pelas
condições climáticas e a convivência com homens rudes. Nesse sentido, a visão que
estabelece com relação ao seu perfil de mulher é eufórica, pois é essa incorporação de
atributos tanto femininos, quanto masculinos que a torna um ser superior, “uma heroína”, do
ponto de vista do cordelista:
Maria Bonita era,
Mulher macho, sim, senhor,
Porque na hora da luta,
Era a fera do terror,
Era a cobra cainana
Ou a tigre sussuarana
Que todos tinham pavor.
O apego às normas convencionais propostas à imagem da mulher nordestina, tais
como a fidelidade ao marido e a tradição religiosa, mais uma vez pode ser demonstrado
através da estrofe seguinte, notadamente nas expressões “mulher valoroza”, “nunca traiu seu
amante” e “fiel à religião”, como se vê no trecho a seguir:
Nunca traiu seu amante
O amava de coração
Matava, sim, é verdade,
Quando havia precisão
Mas era conscienciosa
Como mulher valoroza
Fiel à religião
Engajada na rebelião social política, a cangaceira Maria Bonita vai assumir o posto
masculino, sem deixar perder as suas qualidades femininas. À medida que a cangaceira
assume determinados papéis e responsabilidades tipicamente masculinas, como a liderança no
107
bando de homens, papel inerente ao homem, transgride os padrões de conduta sexual
previstos. A expressão “mulher macho”, que lhe é reservada, é um reflexo disso.
A palavra “macho” remete a acepções tomadas tipicamente ao sexo masculino, tais
como “amante”, “amásio”, “tipo forte”, “viril”, “valentão”, sobre a definição do Calepino
potiguar: gíria norte-riograndense (1980, p. 288) e deu origem a toada original nordestina
“Paraíba masculina, mulher macho sim senhor”.8
É interessante observar que, antes da entrada no cangaço, Maria Bonita atendia ao
modelo de mulher vigente na sociedade nordestina. No tempo em que o casamento no Sertão
era a única alternativa de livramento da miséria e da fome, para as moças e da própria família,
Maria Bonita casa-se para atender às exigências por parte da tradição rígida de obediência ao
pai. Nesse ponto, ela corresponde ao modelo de submissão imposto ao sexo.
Maria Bonita era
Mulher pobre do Sertão,
Casada com um sapateiro,
Sem ter uma profissão;
Sem freqüentar a escola
Casou-se com um lambe-Sola
Quase por Obrigação.
Percebe-se claramente a condição social e a falta de expectativa da mulher nordestina,
que responde quase sempre pelo estigma da mulher pobre, cuja única esperança é depositada
num casamento. Também se desvela o estigma de classe sobre o qual convive esse tipo de
mulher, que é o de relacionar-se apenas com homens de situação econômica desfavorável. As
expressões “casou-se com um lambe-sola” e “mulher pobre do Sertão” compõem
semanticamente essa idéia. “Lambe-sola”, quer dizer sapateiro, tal como registra a obra
Geringonça do Nordeste: a fala proibida do povo (1989). A profissão do sapateiro é, desse
modo, condizente, com a mulher pobre sertaneja.
8
Dái as insígnias em relação à sertaneja, como mulher valente, brava, rude, guerreira, muitas vezes contribuindo
para uma imagem depreciativa ou debochada sobre a mulher nordestina.
108
Ainda sobre a questão do casamento, o cordelista evidencia que, ante a circunstância
de miséria, essa opção significa a única salvação e o livramento de ser “mulher-perdida”, ou
seja, tornar-se “meretriz” ou “prostituta”, como registra o Novo Aurélio século XXI: o
dicionário da Língua Portuguesa (1999). Observe-se por meio do trecho:
A mulher nova, cheia de vida,
Pra não ser mulher-perdida
O casamento aceitou.
A presença da mulher no cangaço, novamente mencionada nas passagens a seguir,
desmantela o arquétipo de mulher frágil e totalmente dependente do homem:
Maria Bonita
Não suportava a moleza
Do seu infeliz marido
E a pobreza dos pais
Naquele Sertão sofrido,
Vivendo por comida
Dizia que a melhor vida
Era a do homem bandido
O vocábulo “moleza”, remetendo a característica inerente a Neném, marido de Maria
Bonita, objetiva mostrar o contraste existente entre o perfil desse homem, - covarde, passivo e
acomodado, em relação ao perfil masculino existente na figura de sua esposa. Tem-se, pois,
uma inversão no modelo estabelecido de homem e de mulher sertaneja: tanto Neném carrega
semas femininos, quanto Maria Bonita detém os semas da “força”, da “coragem”, do
“dinamismo”, previsto apenas para um homem.
Em poucas linhas, o Cordel expressa a idéia de que a mulher pode até tomar um outro
rumo para a sua vida, incorporar ideais masculinos, mas não pode sair do seu universo
feminino. Por isso, a cangaceira não aceita desvencilhar-se de determinados preceitos antigos,
como o da fidelidade ao companheiro e da crença religiosa.
109
O esquema exposto ilustra melhor as relações semânticas básicas entre os vocábulos
coletados no folheto:
MARIA BONITA
DEPOIS DO
CANGAÇO
ANTES
QUEBRA DA TRADIÇÃO
MODELO CONSERVADOR
SUBMISSÃO
CASOU-SE COM
LAMBE-SOLA
QUASE POR
OBRIGAÇÃO
LIBERDADE
AO PAI E MARIDO
SEPARA-SE E
ABANDONA
AO MARIDO
ENTRADA FEMININA NO
CANGAÇO
VIDA DE CANGACEIRA
FIDELIDADE/
CRENÇA
FIGURA 10 – Campo léxico-semântico em Maria Bonita, mulher macho, sim, senhor.
6.2.11 Nascimento, vida e morte de uma coroa
Segundo o Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), o termo
“coroa” indica uma pessoa que está passando da maturidade à velhice.
Nas culturas primitivas, o homem velho, ou “ancião” era uma pessoa respeitável e
venerada, alguém admirado pelas gerações mais jovens por ter o poder de acumular as
experiências, as tradições de seu povo e, por conseguinte, o poder de transmiti-las às novas
gerações. Já as mulheres de idade não aparecem ligadas à tradição, pelo que produziram ou
transmitiram, ao saber que edificaram ou comunicaram. Vítimas de uma topografia andrógina,
110
parece que elas ficaram relegadas apenas à feitiçaria, que passou a ser encarada como
essencialmente feminina, um saber transmissível das mães às filhas.
Acredita-se, pois, que de algum modo essas concepções foram assimiladas nas
culturas ocidentais e mais particularmente na nordestina, uma vez que a mulher foi posta,
quase sempre, em segundo plano.
Existe um juízo de valor relativo ao tempo para cada um dos sexos em especifico – a
mulher é chamada de “coroa” logo quando chega aos trinta. O homem recebe esse designativo
normalmente por volta dos quarenta anos, quando se detecta alguma marca de idade, através
dos cabelos ou barba grisalha. Assim, a velhice do homem é detectada do ponto de vista
material, físico, enquanto que a feminina é apenas determinada por um critério virtual, de base
cultural.
Os estigmas femininos normalmente são tratados sob o ponto de vista da natureza:
Estudando a Natureza
Pude eu classificar
O comportamento delas
E assim vou relatar
Vários tipos de coroas
A maior parte das vezes, uma mulher é chamada de “coroa” quando não chega a casar.
O sentido pejorativo, do qual normalmente é dotado o termo, tem a ver com o pânico das
mulheres ao perder a juventude.
A implicação maior, relativa à questão da idade, tem relação imediata com a questão
do casamento. Assim, se aos trinta anos a mulher ainda não está casada, significa que o seu
projeto de vida se consumou, e que não há mais alternativa de realização pessoal.
O esquema a seguir demonstra as informações principais contidas no folheto
analisado:
111
IDADES
NASCIMENTO E
VIDA
VELHICE
MORTE
MOCIDADE
18 AOS 25
DOS 26 AOS 33
DOS NOVE AOS
TREZE ANOS
IDADE LIMITE
DOS 33 AOS 40
DOS 13
AOS 17
ANOS
OPORTUNIDA
DE DE
ENCONTRAR
O PALETÓ
DEPOIS DOS 37
AOS 50
AOS 60
FIGURA 11 – Campo léxico-semântico em Nascimento, vida e morte de uma coroa.
6.2.12 O abc das mulheres
No universo típico e tradicional da cultura nordestina, o “amor” é um elemento central
que fundamenta as relações pessoais e sociais.
Situando o amor nos limites da sexualidade, definindo-o num plano metafísico
(propondo a sublimação dos impulsos sexuais), isto é, domesticando as paixões e os desejos
libidinosos que podem atrapalhar a relação de um casal, a nossa cultura estabeleceu um amor,
baseado na amizade e no companheirismo.
No campo do amor, prescrevem-se os valores cerceados por comandos morais, típicos
de uma cultura pautada nos moldes patriarcais.
E É assim que a mulher
Ama ao homem e quer bem
E o homem de caráter
Amar a ela convém
Êle tendo amor a ela
Ela amor a êle tem.
112
Os vocábulos, usados com referência à mulher e ao homem, revelam assimetrias de
sentido, em função do valor que normalmente se atribui a cada sexo. De maneira geral, são
consideradas qualidades típicas do homem as que trazem o sema da virilidade, tais como: a
“coragem”, o “caráter firme”, a “inteligência”, o “discernimento” e a “força”. De modo
inverso, as qualidades que se ligam ao sexo feminino são “passividade”, “fragilidade” e
“recato”.
Na cultura nordestina, a crença de que a natureza feminina fez da mulher um ser
dotado biologicamente para constituir um lar e estar ao lado do esposo, pode ser sentida nos
versos a seguir, notadamente, nos vocábulos “bondade”, “carinho”, “vergonha”:
A A mulher é carinhosa
Por obra da Natureza
Pode ser feia ou bonita
Ela tem toda grandeza
E ela tendo vergonha
Pra mim é uma beleza
Na região Nordeste, pelo menos em áreas mais afastadas do contexto da urbanização,
onde as transformações sociais são incorporadas mais lentamente do que nas grandes cidades,
ainda hoje se percebe que o modelo de mulher ideal é aquele que atende aos pré-requisitos de
esposa, mãe e dona-de-casa, papéis que exigem dedicação ao esposo e abnegação quase que
totalmente da vontade própria. Os “caros” valores femininos condizem, pois, com a tríade: lar,
casamento e família.
A imagem positiva das mulheres solteiras faz parte do campo semântico do “respeito”,
da “pudícia”, da “vergonha”. A lexia “vergonha”, aliás, é um valor necessário para a pureza
feminina, condiz com a + pureza, + castidade.
As mulheres que não seguem os preceitos morais impostos pela sociedade são
mulheres que não merecem crédito na sociedade. A elas normalmente são atribuídos
113
designativos como “sem-vergonha”, “mulher fácil”, “prostitutas”, “putas”, entre muitos
outros.
Dado que a idéia do “amor” sublime, conjugal, deveria projetar-se na mulher por meio
de uma “alegria serena”, sentimentos comedidos e uma vez esperando-se da mulher
“paciência e bondade”, para superar as fraquezas do sexo masculino, não convinha que a boa
mulher excedesse aos ímpetos da paixão, tendo acessos de “roedeira”, ou seja ciúme, tal como
apresenta o Dicionário de palavrão e termos afins (1998), a obra Calepino potiguar: gíria
norte-riograndense (1980) e o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa
(1999).
A mulher ciumenta, na ótica masculina, sempre traz estragos para a vida do casal,
atrapalha a prosperidade porque interfere na autoridade masculina. O ciúme desperta a
“maldade” da mulher, que em função de malícia (e desorientamento), em geral, desobedece
ao homem, passa a “ser bruta”, ou seja, indelicada e a “falar asneiras”. Enfim, é o ciúme que
traz à tona toda a natureza subversiva do sexo feminino:
C Caçoada com mulher
Não quero por brincadeira
Quando ela está brincando
Começa a dizer asneira
Se ela for ciumenta
Vai morrer de roedeira
Conclui-se, assim, que o antípoda de mulher “boa”, “bondosa”, no contexto da relação
matrimonial, é a mulher ciumenta.
A imagem feminina condiz, no contexto da sociedade nordestina, com o arquétipo de
mulher “faladeira”, “tagarela” e que “adora fazer mexerico”. Em geral, é essa visão que é
representada através de uma “sogra” ou de uma “madrasta”, todas “megeras”. Também é uma
constante o ícone de esposas irresponsáveis, “alcoviteiras”, atreitas ao esquecimento dos
114
deveres conjugais. Essas mulheres não cansam de sair de vizinha em vizinha, igualmente
mulheres de más línguas, que estão sempre ocupadas em reparar a vida dos outros.
Juro que mulher não tem
Coragem de enfrentar luta
Só tem coragem na língua
Fala e depois escuta
Tôdas não são malcriadas
Mas tem ciumenta e bruta.
O poeta popular encontra, cada vez mais, inspiração para destratar a mulher, visando a
agradar o público masculino, que se diverte com isso. Assim, ataca a moral, os bons costumes
e até mesmo, sua aparência física.
A preocupação com a beleza feminina é outro traço típico de nossa cultura. Em
decorrência de preceitos antigos de feminilidade e masculinidade, a beleza feminina foi muito
cedo posta em elevo, em detrimento de sua capacidade intelectual.
A partir do completo menosprezo e descrença na inteligência feminina, criou-se o
estigma de que mulher sendo bonita, não pode ser inteligente. Ou que se é bonita, não precisa
trabalhar.
Conseqüentemente, sempre houve o menosprezo pelas mulheres feias, como revela o
dito popular “mulher feia não dá palpite”, ou “mulher feia é como sucata”, “não tem lugar no
mercado”, referendando-se de forma acentuada, no Cordel, objeto científico do presente
estudo, valores que se perpetuam ainda hoje, com relação ao culto à beleza feminina.
G Gosto de toda mulher
Sim da que é carinhosa
Sendo pobre é muito mansa
Sendo rica é bondosa
A feia não me agrada
Sendo bonita é gostosa.
Como se viu, no campo das relações amorosas conjugais, inserem-se variados valores
paradoxais, tais como: “ciúme”, “casamento”, “traição”, “honestidade”, “bondade”, “afeição’,
“mentira”, “falsidade”.
115
B Boa mulher aquela
Que sabe fazer carinho
Ela gostando do homem
Nunca deixa êle sòzinho
Levando-se em conta que o princípio da serventia doméstica feminina é a perfeição e o
agrado ao homem, a arte de agradar compõe o rol dos caprichos femininos. A mulher
“perfeita” é aquela que tem o cuidado de preservar suas “graças naturais” e despertar o
interesse e a admiração por parte do marido:
F Fica a mulher satisfeita
Quando o homem lhe adora
Se ele lhe abandonar
Ela de tristeza chora
Incorporando virtudes contraditórias, a mulher deveria ora exibir-se para o marido, ora
comportar-se no modelo tradicional de recato e submissão, respondendo às expectativas
sociais impostas ao modelo de perfeição: eficiente no lar, - mãe cuidadosa e esposa fiel e
submissa.
Entre duas figuras antitéticas, eis que se insinuam duas imagens distintas da mulher:
uma que possui um corpo, uma aparência e uma sexualidade, e uma outra, uma mulher
voltada quase completamente ao trabalho doméstico, ao casamento, à família e à religião.
Como que prevenindo os homens do poder de sedução das mulheres, o poeta diz:
I Inocente vive o homem
Pensando que mulher presta
Ela enganando a êle
Nada de bondade resta
A mulher é como música
Só tem beleza na festa.
É nesse elenco de imagens, que se mistura ao conflito das diferenças entre os sexos,
que aparecerão descrições da imagem da mulher “maliciosa”, imperfeita e cheia de
“maquinações”.
116
O atributo de interesseira e usurpadora é uma das mais freqüentes características
negativas aludidas ao sexo feminino. A indecência feminina é aqui frisada a partir da projeção
de sua natureza torpe e insaciável.
Pode-se comprovar lingüisticamente essa visão principalmente a partir das frases do
tipo, “êle dá e ela aceita” e “ela não se endireita”:
U Uma me disse outro dia
O homem nunca me enjeita
E o que ela pedir
Êle dá e ela aceita
E assim de tôda forma
Ela não se endireita.
Esse Cordel, como os demais, vem reforçar a discriminação da mulher quando ela se
mostra capaz para funções ditas masculinas e, principalmente, tornando-a mal vista, alvo de
pilhérias e deboche por parte de tantos quantos compartilham desse preconceito exagerado.
O esquema, apresentado na página seguinte, apresenta uma visão geral do Abc das
mulheres.
117
AMOR
(CASAL)
AFIRMAÇÃO
NEGAÇÃO
CASAMENTO
FAMÍLIA/
DO LAR
GERAL
POSIÇÃO
SOCIAL
SERVIÇOS
ESPECÍFICA
MALÍCIA
FEMININA
BRUTA
PRAGUENTA
ESPOSA
ATENÇÃO
AO MARIDO
CHIFREIRA
FALSA
FILHOS
DEDICAÇÃO
ALCOVITEIRA
CIUMENTA
ROEDEIRA
(
GASTADEIRA
BONDADEVERGONHA
SUBORDINAÇÃO
DOMINAÇÃO/PROTEÇÃO
PERDIÇÃO
DO HOMEMRUÍNA DA
FAMÍLIA
FIGURA 12 – Campo léxico-semântico em O abc das mulheres.
6.2.13 O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia
A empregada doméstica faz parte do grande contingente de mulheres que precisa
trabalhar fora de casa a fim de suprir as suas necessidades de sobrevivência. Devido às
imposições do mercado de trabalho e à falta de qualificação profissional para a ocupação de
outras funções empregatícias, muitas moças pobres vêem, como única alternativa para livrarse da miséria, o trabalho nas “casas de família”.
A participação da figura feminina em diversas profissões só tem aumentado nos
últimos anos e sendo o trabalho doméstico destinado culturalmente ao sexo feminino, esse
papel “acaba sobrando” às mulheres de condição sócio-econômica menos favorecida. É
118
importante observar, ainda, que é a mulher de cor quem mais predomina nessa categoria
empregatícia.9
A preservação do emprego doméstico estratifica as relações estabelecidas pelo sistema
dominante - primeiro, opõe-se à quebra do paradigma do espaço doméstico uma vez que
continua reservando as atividades “do lar”, quase exclusivamente, ao sexo feminino. É,
portanto, sexista; segundo, mantém e estimula, cada vez mais, a exploração das mulheres
pelas próprias mulheres, poupando das responsabilidades domésticas apenas as da elite. É,
portanto, classista; terceiro, porque elege como funções superiores àquelas antes reservadas
apenas ao sexo masculino e como inferiores as que se enquadram ainda no sistema
conservador.
A empregada doméstica, numa visão estereotipada, é vista como “a peniqueira”, - a
empregada doméstica quase nunca é chamada pelo nome. Essa expressão coisifica a mulher, a
partir de sua ocupação profissional. Confere, pois, invisibilidade a essa categoria,
desvalorizada e marginalizada, perante a sociedade.
Depreende-se que, o vocábulo “peniqueira”, é o termo mais pejorativo para designar o
serviço doméstico feminino. O sentido depreciativo provém da relação entre a profissão e o
penico, “vaso apropriado para nele se urinar e defecar”, conforme registra o Dicionário
lingüístico-literário de termos regionais /populares - Norte/Nordeste (2003).
Embora o termo “peniqueira” tenha caído em desuso, o termo ainda vive e anda
impresso em livros, ou mesmo “nas bocas” das pessoas das classes menos favorecidas, que
não recorrem à outra palavra com significação análoga, ao que faz parecer, porque qualquer
outra não terá o poder de suprir o raciocínio.
9
“Estruturalmente essa relação social de dominação-subordinação torna ao mesmo tempo muito próximos
patrões e empregadas de condição muito desigual, caracterizando-se por isso, politicamente, como uma relação
injusta e intrinsecamente violenta. A violência implícita nessa relação ordinariamente é mantida sob controle,
por mecanismos de dominação e cooptação, características da ordem autoritária (paternalista inclusive) que
permeia as relações familiares, assim como as relações patronais”. (FARIAS, 1983, p.11).
119
A alcunha da empregada doméstica deve ter relação imediata com o papel da negra
nos tempos de escravidão. Sabe-se que nesses tempos não existiam banheiros e que era tão
somente a escrava quem ficava responsável pelo “serviço sujo”, ou seja, limpar os dejetos dos
penicos dos seus senhores. Essa é uma associação relevante do ponto de vista do racismo, a
associação dos serviços inferiores, porquanto exercidos pela camada negra, marginal e
dominada.
O fato de a empregada doméstica pertencer à classe subalterna reserva a ela o
relacionamento com pessoas de condição social semelhante ou mesmo inferior a dela. Daí
vem à relação com o malandro, personagem do texto, que é um sujeito pobre, sem caráter.
“O malandro”, representado numa visão caricaturada, exótica, é uma figura que vive
de esperteza, não no sentido da inteligência, mas no de saber fazer falcatruas, praticar roubos
e manipular as pessoas. O “malandro” carrega os semas do ócio: ele é um “gigolô”, ou seja,
aquele que manipula “a peniqueira” para tirar proveitos econômicos, e é a falta de instrução o
elemento que mais colabora para que ela seja explorada facilmente por ele, sexual e
economicamente, embora não tenha intenções em manter um relacionamento estável e ético
com aquela. Essa é a visão que corresponde, no imaginário coletivo, à figura do “malandro”.
Outra visão que brota do imaginário coletivo é da empregada doméstica como objeto
sexual do patrão. O distanciamento do seu próprio ambiente familiar e, conseqüentemente, a
ausência do resguardo dos pais, a torna suscetível às investidas de exploração sexual por parte
do patrão. A relação entre a entrada no emprego e a condição de virgem fica subentendida nos
versos “tenho visto peniqueira” e “que se emprega donzela”.
A situação da empregada doméstica, nesse contexto, por conseguinte, é disfórica: há
um temor tanto da parte das donas-de-casa que temem as investidas extraconjugais de seus
maridos e há o temor da empregada em ser abusada sexualmente pelo patrão.
120
No texto, a relação da empregada doméstica com a prostituição fica evidente nos
contextos de espacialização. Essa é percebida nas expressões “na praça”, “na esquina”, “na
casa”, “na cadeia” e “no cabaré”. O vocábulo “cabaré” designa, conforme o Novo Aurélio
século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), a “casa de diversões onde se bebe e
dança e, em geral, se assiste a espetáculos de variedades”. A palavra “cabaré” no texto tem
como intenção remeter ao modo de vida dissoluta da doméstica, de acordo com os ambientes
de marginalização, tais como a rua, praças, esquinas, lugares estratégicos de prostituição
feminina.
No Recife eu tenho visto
O mercado São José
Tanta da nega nogenta
Que eu não sei como é
Com os Malandros em folia
E lá na rua da Guia
Ai sim! é cabaré.
A visão preconceituosa do poeta é reforçada pela inclusão de espaços considerados
socialmente como indignos para uma mulher de respeito freqüentar. A praça conota um certo
valor pejorativo, exatamente por se tratar de um lugar onde as prostitutas ou “garotas de
programa” (para citar um termo mais moderno), expõem-se e oferecerem seus serviços
sexuais à clientela masculina.
A “casa” poderia ser interpretada como o lugar onde a empregada doméstica, a
“peniqueira”, desempenha as tarefas predominantemente femininas, quais sejam lavar, passar,
limpar, cuidar das crianças, entre outras. É, pois, um tipo de ocupação em que essas mulheres
executam o trabalho doméstico no lugar de outras mulheres, as chamadas “donas-de-casa”,
nos serviços que lhes são culturalmente atribuídos. Representa, pois, o modelo da ordem, do
equilíbrio, da estabilidade e da normalidade.
O lado de fora, ou seja, a “rua”, é o espaço de realização das manobras perigosas que
somente as mulheres de conduta duvidosa, a mulher prostituída, ou melhor, “a peniqueira”,
121
normalmente insiste em ocupar. Por esse prisma, ela representa a desordem e a vergonha.
Delinea-se, nesse sentido, uma visão preconceituosa com relação à empregada doméstica. No
olhar do poeta, as empregadas domésticas, “as peniqueiras” são dadas à prostituição. É o que
confirma o trecho a seguir:
Na praça Sérgio Lorêto
Hoje não mais de primeiro
Era tanta piniqueira
Com malandro maloqueiro
Que uma moça honrada
Só passava enjuriada
Dos seus daquelas fuleiras
A temporalização está marcada pelas palavras “noite”, “até mais tarde”, “agora, de 10
horas por diante”. Esses termos, na narrativa, referem-se ao momento em que geralmente
ocorre a prostituição feminina, é nesse horário que podem acontecer as investidas e aventuras
sexuais dos homens, na busca por amantes ou prostitutas.
Os temas passam a ser materializados lingüisticamente através de muitas figuras. O
tema da prostituição se desvela nas figuras da sedução, como por exemplo: “sobrancelha
raspada”, “metro e meio de pano” e “saia ligada”:
Metro e meio de pano
Prá fazer saia e casaco
Outra anda quase nua
Com o tal vestido saco
Muita com saia ligada
E sobrancelha raspada
Dizendo agora emburaco
O tema sócio-econômico da inferioridade da empregada doméstica remete aos termos
“piniqueira”, “motorista de fogão e da chinica”, “de comprar no armazém”. No texto, esses
termos traduzem o estigma de inferioridade que carrega a empregada doméstica na sociedade:
E em Nazaré da Mata
Tem piniqueira também
Pensa que é alguma coisa
Coitada não é ninguém
122
E motorista de cangica
Do fogão e da chinica
E comprar no armazém
O tema do racismo transparece através dos termos “nega nogenta” e “cabelo
pichauim”; este último adjetivo remete à “carapinha”, isto é o “cabelo crespo”, “lanoso”,
“encaracolado dos negros”, segundo a reserva do Dicionário lingüístico-literário de termos
regionais/populares - Norte/Nordeste (2003).
A adjetivação “nogenta” remete a todo um desprezo sobre a figura da negra, conforme
assinalado na estrofe abaixo:
Uma nega de Paudalho
Foi empregar-se em Recife...
Um diadema encarnado
Pra prender o pichauim...
Os temas do “machismo e da sexualidade” entrecruzam-se, na verdade, em todos os
momentos da narrativa. A idéia da negra, como símbolo e objeto de prazer masculino, é
expressa a partir da alusão aos encontros e investidas sexuais da “peniqueira com o
malandro”:
A piniqueira a noite
Bota aceia do patrão
Lava os pratos enxuga a pia
Tira as cinzas do fogão
Depois ageita tudo
Vai esperar o sambudo
As 10 horas no portão
Num sentido lato, o texto reflete a visão estereotipada da raça negra enquanto inferior
e malfazeja, ideal apenas para o trabalho e para “levar peia”, ou seja, receber castigos. Num
sentido restrito, assinala o preconceito e marginalização sobre a figura da negra, no protótipo
123
de objeto sexual, ora do patrão, ora do malandro. Note-se que o instinto sexual latente, a
feitiçaria e a disposição para a transgressão foram insígnias que mais pesaram sob essa mulher.
Dadas essas considerações, a análise é feita no gráfico a seguir:
EMPREGO DOMÉSTICO
RELAÇÕES PATRONAIS
NOJO E
REPUGNAÇÃO
CONTROLE DA
DOMESTICIDADE
DOMINAÇÃO
PATROA
PRECONCEITO E
MARGINALIZAÇÃO
COM A DOMÉSTICA
SUBORDINAÇÃO
EMPREGADA DOMÉSTICA
ELITE
(PATROA)
VIVÊNCIA DE SUBORDINAÇÃO
PROSTITUTA
EXPLORAÇÃO
FULEIRAS E VADIAS
CHAUFFER DE FOGÃO
SERVIÇO
EM TEMPO
INTEGRAL
LADRA/
ROUBA O PATRÃO
SERVIÇO
EM CASA
ALHEIA
SUSTENTO
FAMILIAR
NÊGA NOGENTA
STATUS INFERIOR
BAIXO NÍVEL
DE
ESCOLARIDADE
FIGURA 13 – Campo léxico-semântico em O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da
orgia.
6.2.14 O mundo pegando fogo por causa da corrução
A palavra “mundo”, no seu sentido mais freqüente, expressa a designação da
humanidade. Numa acepção religiosa, é muito usada como designativo de profano, impuro,
contrastando com o de céu, no sentido de “purgatório”, espaço divino, destinado “à
purificação das almas” sob o pecado.
124
Daí provém a idéia de “maldade”, “vaidade” e “perdição”, que subjaz a idéia da culpa
feminina e que se perfaz no ideário cristão, como se pode constatar nos versos seguintes:
Do jeito que o mundo vai
Não tem jeito que dê jeito
Moça namora casada
E tem casado sem respeito
Mocinha nova e bacana
Abraça a vida mundana
E no caberé vai de eito
Verifica-se que o repertório é vasto para a expressão da profecia dos maus tempos. A
fé religiosa, presente no homem sertanejo, fê-lo pensar que os desequilíbrios naturais e a
miséria que oprime seu povo são conseqüentes do castigo mandado por Deus, contra a
maldade humana. O campo lexical da perdição, nesse sentido, é dominado pela palavra “fim”:
Só se ver é carestia
Em toda face da terra
Nosso tempo está chegando
E a profecia não erra
Do brejo até o sertão
Só se vê lamentação
Peste, fome, sêca e guerra
A riqueza do campo se acentua na expressão do comportamento feminino. São
predominantes as expressões que mencionam a responsabilidade feminina sobre a destruição
do mundo.
Casada deixa o marido
Abraça outro e venera
Moça na praia se deita
E diz ao noivo: aproveita
Que estamos no fim da era
A nudez e o adultério aparecem como os mais predominantes fatores de destruição da
mulher e do mundo. A formulação de base verbal é que é mais rica, contendo: “casada deixa
125
outro”, “abraça outro e venera”, “tomando banho sem saia”, “mostrando as côxas de fora”,
“só não dança cabaré”, “está levando de eito”, etc.
...Mocinha de hoje
Está levando de eito
Mocinha com 13 anos
Namora qualquer sujeito
E beija êle na praça
Só falta vê-se a fumaça
Dêste mundo sem respeito
O tempo piorou mais
Depois que a saia encurtou
Acabou-se a produção
Até o inverno faltou
Só se ver é amargura
Nunca mais se viu fartura
Somente a fome aumentou
A expressão adverbial de tempo “daqui pro fim de 80”, remetendo ao caos, instalado
em função da indecência e inversão dos papéis sexuais femininos e masculinos, retrata todo o
inconformismo do poeta, que prevê a inclinação dos tempos mais recentes para o caos, ou
mesmo o fim, e para essa previsão coloca a figura feminina como culpada.
Por todas as partes da narrativa, fica posto o modo como o nordestino, mais
particularmente o sertanejo, reage ao mundo moderno, metropolitano com dificuldade.
O esquema em campos léxico-semânticos, a partir dos vocábulos retirados da obra,
pode ser visualizado a seguir.
126
CORRUÇÃO DO MUNDO
CRISE
ORGIA E PECADO
PROFECIA
ESTAMOS NO FIM
DO MUNDO
CONSEQUÊNCIAS
DESGRAÇAS
NO MUNDO
FOME
CARESTIA
PESTE
SECA
O MUNDO VAI
PEGAR FOGO
GUERRA
O FIM DA ERA
FALADA
NADA DE BOM
SE ESPERA
FIGURA 14 – Campo léxico-semântico em O mundo pecando fogo por causa da corrução.
6.2.15 O mundo vai estourar do jeito em que se vive
Neste campo foram listados os termos que caracterizam as “irregularidades” do mundo
moderno, essas são contempladas no plano da “imprudência”, aludindo-se, mais uma vez, a
questão da indisciplina ou abuso do comportamento feminino.
O campo da “indisciplina” é formado com os vocábulos “fumo”, “drogas”, “álcool”,
“folia”. Esses vocábulos carregam o sema do êxtase e do prazer que, na ótica conservadora,
significa a diminuição da imagem do homem, decorrente da omissão na entrega aos prazeres,
e da falta de domínio do corpo e do uso da razão como forma de evitar a queda.
Ninguém suporta a dor
E logo se anestesia
Em fumo, drogas e álcool
E cai logo na folia
Gozar todos os prazeres
É o que lhe sentencia
127
A violação dos valores morais sexuais é manifesta a partir da mulher, quando ela
abandona os antigos valores e costumes e entrega-se à devassidão. A deficiência da
preservação da virgindade é a depreciação das virtudes, como demonstram os versos “não se
tem mais virgindade” e “como virtude moral”.
O aparecimento da “pílula” elimina a função eminente da mulher enquanto
progenitora. Subtende-se a idéia de que a decadência é projetada a partir do momento em que
a mulher passa a exercer o seu direito à sexualidade, com o uso do anti-concepcional, tanto do
ponto de vista da relação sexual propriamente dita, como quanto pela negação à procriação.
A censura sexual feminina permeia todos os aspectos que se ligam à ruptura da
personalidade feminina nos moldes tradicionais antigos, pautados na satisfação alheia,
porquanto através do prazer sexual do marido, da aprovação da sogra, das amigas, aprovação
dos familiares, - quando as mulheres eram vistas e reduzidas ao agrado, ou a atração de
outrem.
O uso da “pílula” é o primeiro índice de libertação da mulher burguesa e esse
favorecia a eliminação de sua condição de procriadora, à medida que favorecia o
desaparecimento de outros signos de opressão feminina, como por exemplo, o poder de
decidir o momento e a freqüência da relação sexual, antes privilégio único do homem.
Por fim, o conjunto de expressões: “não se toma mais pé”, “ninguém distingue quem
é”, “ninguém bota mais a mão no fogo”, imprime todo o tom de desconfiança e descrédito
com relação às pessoas de hoje em dia e isso em função da incorporação da parte delas às
novas formas de vida.
A partir dessas considerações a análise do campo léxico-semântico deixa bem clara a
postura da época, bem representada como a “Era da hipocrisia”.
128
ERA DA HIPOCRISIA
DEGENERAÇÃO
DA MORAL
VALORES
LIBERAÇÃO
SEXUAL FEMININA
NÃO SE TEM
DIGNIDADE
PODER DE
DECISÃO
O CASAMENTO
NÃO SE TEM JÁ
ERA
MAIS
VIRGINDADE
MULHER SE VESTE
DE HOMEM
CONTROLE
DE FILHOS
PÍLULA
ANTICONCEPCIONAL
FIGURA 15 – Campo léxico-semântico em O mundo vai estourar do jeito em que se vive.
6.2.16 O poder oculto da mulher bonita
A mulher ocupou um espaço expressivo no imaginário masculino. Oscilando entre a
bondade e a maldade, entre a fraqueza e a insensatez, natureza dócil e angelical e lasciva. De
um modo geral, a situação frágil da mulher contrasta-se, essencialmente, com a intensidade de
sua natureza astuciosa, maliciosa, feiticeira ou diabólica. É essa imagem que vagueia no
campo da Literatura.
Na base dessas contradições, a beleza é situada como a arma mais diabólica e eficaz
feminina para exercer total domínio sobre a figura do homem. É a partir dessas noções que o
Cordel em análise se centra. Verifique-se o trecho a seguir:
Falo com todo irracional ou gente
Todo vivente que no mundo habita
Tudo se curva e rende homenagem
A querida imagem da mulher bonita
129
O verso “se curva e rende homenagem” pressupõe a inversão de comportamento no
homem, quando esse é posto numa situação de reverência e submissão à personalidade
feminina, em função de seu estado de encanto pela beleza feminina.
A beleza, nesse contexto, funciona como uma espécie de feitiço, um carma feminino: é
capaz de fazer desequilibrar vários perfis e condutas esperadas de um homem: “faz até o
homem corajoso, bruto como uma fera, tornar-se mais manso”, como diz o texto. A mansidão
é atribuída em virtude da ausência ou neutralidade do temperamento masculino, uma oposição
ao comportamento agressivo esperado. A dialética “transmuta” o objeto erótico e passivo, ou
seja, a mulher, numa figura insaciável, traidora, inimiga.
Fraco rapaz que gosta da moça
Não tem a força que tem uma catita
Suspende um peso tão demasiado
Por ser namorado da mulher bonita
Num sentido ambíguo, a mesma mulher que vence o homem com seus ardis, é também
aquela que favorece na reconquista das potencialidades masculinas, quando essas encontramse esmorecidas, por algum motivo. A mulher bonita, nessa situação, é o “elixir da juventude”,
da força, o “estimulante sexual” natural.
Configura-se o perfil da mulher objeto, que num contexto erotizado e submisso, segue
com a busca em promover a satisfação libidinosa do homem. A construção desse perfil
depende do grau de astúcia feminina, - a mulher perfeita para o homem sabe ousar na
intimidade com ele, ao mesmo tempo transparecendo para a sociedade uma imagem de
mulher discreta e passiva. Isso remete ao que nos diz Bevoir (1980, p. 233):
(...) De dia, ela desempenha perfidamente seu papel de escrava dócil, mas, à
noite, transforma-se em gata, em corça; introduz-se novamente em pele de
sereia ou, cavalgando uma vassoura, participa de rondas satânicas. Por vezes
é sobre o marido que exerce sua magia noturna; porém, é mais prudente
dissimular essa metamorfose a seu senhor; são estranhos que ela escolhe
como presas; eles não têm direitos sobre ela e ela continua planta, fonte,
estrela, feiticeira para eles...
130
Assim, os predicados femininos devem ser fundidos em dois modelos: o que envolve
recato, passividade e dependência masculina; por outro lado, não pode faltar à mulher a
ousadia, - ela deve ser fogosa, quando o assunto é a satisfação sexual do homem.
No Cordel, o perfil dinâmico e combativo do homem, características suscitadas pela
atitude feminina, forma o campo lexical a partir das expressões “velho se torna vaidoso”;
“fica um homem corajoso”; “briga atê com seu amigo”; “cria o nome de reimoso”.
Onde tem mulher bonita
Velho se torna vaidoso
Qualquer sujeito mofino
Fica um homem corajoso
Briga atê com seu amigo
Cria o nome de reimoso
Vale salientar que a vaidade masculina é normalmente diferente da feminina. No
homem, a vaidade está relacionada ao ego, à noção de virilidade. Um homem se sente vaidoso
normalmente quando consegue seduzir e acumular conquistas femininas. O objetivo da
estrofe é demonstrar que a mulher bonita tem o poder de restituir ou revitalizar as qualidades
viris masculinas. Por isso, os vocábulos “corajoso”, “briga”, “reimoso”, este no sentido de
ressaltar o “gênio turbulento”; alguém “que vive com zanga atrevessada na garganta”, como
explica o Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense (1980).
A mulher é um corpo e deve ser o mais cobiçado por todos os homens, um troféu que
tem um único dono, ou seja, o marido. Ao mesmo tempo ela é o alimento, o ânimo masculino,
o constante motivo de renovação masculina.
A idéia da perda da força do homem, como oposição às idéias já mencionadas,
também se estabelece na estrofe a seguir:
131
Fraco rapaz que gosta de moça
Não tem a força que tem uma catita
Suspende um peso tão demasiado
Por ser namorado de mulher bonita
Interessante observar que “catita”, na linguagem popular também significa “mulher
provocante e cheia de dengues”, conforme o Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense
(1980).
Vêem-se os ardis femininos, triunfando sobre o comportamento austero e materialista
do homem. A essência de Eva10 é mais uma vez evocada, como essência sedutora e
irresistível:
Até o homem avarento
Mesquinho de coração
Porém a mulher bonita
Basta apertar-lhe a mão
Dizendo: eu te quero bem;
Ele dá tudo que tem
Fica sem nenhum tostão
O campo léxico da malícia e maldade feminina é enriquecido com a comparação da
mulher de hoje com as figuras míticas que tiveram repercussão na História, tais como
“Dalila”, “Judith”, “Cleópatra” e “Lucrécia Bórgia”.
Dalila, conforme a narrativa bíblica (Jz 16, 4-20), é amante de Sansão, a quem trai, em
troca da recompensa de mil e cem moedas de prata. Compactuando com os filisteus, a mulher
persuade Sansão a revelar o segredo de sua grande força, a fim de destruí-lo. Após algumas
tentativas frustradas, Dalila finalmente consegue desvendar o enigma e corta os cabelos de
Sansão, razão da força, enquanto ele dorme e entrega-o aos filisteus. (Cf. Dicionário bíblico,
1984, p. 209).
10
Mitos e estereótipos são de tempos em tempos evocados e cristalizados através da tv e dos meios de
comunicação de massa em geral, fornecendo uma imagem da mulher brasileira como símbolo sexual. Em
algumas das mais representativas quais sejam as campanhas publicitárias de cerveja no país, evocam a
sensualidade da brasileira através de antigos emblemas de identificação masculina: futebol e mulher, estes,
metaforizados que o são na expressão paixão nacional.
132
A menção à “Judite” no texto tem como sentido ressaltar a importância que essa
mulher teve, no sentido em que se tornou uma heroína para o seu povo. Jovem e viúva, ela
intervém no projeto de destruição da cidade de Betúlia, porque consegue conquistar a
confiança do general do rei, Holofernes, fazendo-o pensar que sua vitória estava garantida.
Judite, quando convidada à tenda de Holofernes para uma ceia, mata-o cortando-lhe a cabeça,
encontrando-se, a essas alturas, o general embriagado. Num ato típico de herói, essa mulher
leva a cabeça do homem assassinado como troféu, à cidade de Betúlia:
Na cidade de Betúlia
No reino da Palestina
Judith matou Holofernes
Mas não fez como Agripina
Judith alcançou vitória
Está nas paginas da história
Com o nome de heroína
Cleópatra foi a primeira mulher de Alexandre Balas, mas, em virtude da conspiração
de seu pai, divorcia-se dele, casando em seguida com Demétrio II Nicator. Cleópatra teve dois
filhos de Demétrio. Matou o primeiro e conspirou para que o segundo subisse ao trono.
Depois, tentou envenená-lo, quando foi descoberta e forçada a beber do próprio veneno que
mataria o filho.
É raro vê-se mulher
Que tenha gênio assassino
Cleópatra fez tudo aquilo
Levada pelo destino
No mundo antigo ou moderno
Deixou um exemplo eterno
Lucrécia Bórgia foi dita a mais bela e cobiçada mulher de toda a Roma no Séc. XV.
Os muitos relatos, que ficaram famosos na história sobre a sua personalidade, ressaltam o
desenho de uma criatura frívola, incestuosa, envenenadora de homens (seus maridos),
133
corrupta e interesseira. A menção a essa personalidade é um recurso utilizado no discurso para
imprimir uma “ilusão de verdade” sobre a maldade como essência feminina.
Como esta existiu muitas
De rara biografia
De encantadora beleza
Como Lucrecia Borgia
Tão mimosa criatura
Que por sua formosura
Fez tudo quanto queria
As quatro personagens gozam de qualidades em comum, tais como beleza, astúcia,
esperteza. No campo da sedução amorosa, o ponto em comum é o fato de que todas elas só se
relacionaram com homens de poder e apenas conseguiram obter status e privilégios em
virtude da beleza. Note-se que em nenhuma instância essas mulheres despertaram a admiração
e a paixão em função da inteligência e do caráter.
Assim, é importante perceber que a analogia do poeta, considerando essas figuras
femininas que tiveram repercussão na História, tem como objetivo atentar para a semelhança
das mulheres em diferentes épocas, aclamando, mais uma vez, a idéia de que a melhor “arma”
que a mulher possui para tirar proveito do homem é a “sedução”.
A figura mostrada, a seguir, expõe as principais relações semânticas existentes no
Cordel em estudo.
134
PODER OCULTO
DALILA
A VIRTUDE
TEM PARTE
COM A BELEZA
FORÇA FEMININA
JUDITH
MULHER BONITA
CLEÓPATRA
LUCRÉCIA
BORGIA
FEITIÇO
SEDUÇÃO
TRANSFORMAÇÕES
NO HOMEM
EFEITO DE
HIPNOSE
EMBRIAGUEZ
FICA UM HOMEM
VALENTÃO
VELHO SE TORNA
VAIDOSO
SUJEITO MOFINO
FICA UM HOMEM
CORAJOSO
ESTÍMULO
SEXUAL
FIGURA 16 – Campo léxico-semântico em O poder oculto da mulher bonita.
6.2.17 O que uma coroa deve fazer para se casar
O projeto de “persuasão e dissimulação” constitui o critério necessário ao êxito na
obtenção do casamento imediato. No campo das dissimulações, encontram-se “não mostre
que sabe a ele”, “e faça o que lhe dispunha”, “nem dê corda demais a ele”, “não demonstre
muito”, entre muitas outras expressões.
Há, na verdade, uma espécie de manipulação real ou simbólica que faz com que a
relação da mulher com seu próprio corpo seja mediatizada por sentimentos de culpa e medo
pelos excessos, pela vergonha, pelo complexo de castidade e da honra. A feminilidade é
cheia de contrapontos no ser próprio da mulher: submissa, carente, amorosa, servil, mas livre
para pensar, mudar, agir, indo de encontro às informações que crivam o discurso sobre as
mulheres e estigmatizam as posturas, que, por sua vez, estão sempre carregadas de
significação moral.
Mas cuidado com o rapaz!
Nunca tanto e nem tão pouco...
135
Dê amor somente em doses
Para o cabra ficar mais louco,
Mas tenha cuidado em voce
Para não ficar no rouco.
A expressão “para o cabra ficar mais louco” entra no campo da malícia sexual, a qual
caracteriza a conquista feminina. O vocábulo “louco”, abandonando a acepção freqüente de
desequilíbrio mental, passa, no sentido figurado, a remeter a um caráter de obscenidade ou
erotismo.
Todo um conjunto de regras, que se definem para que a mulher consiga o projeto de
arranjar um bom partido, está, segundo o poeta, amarrado ao seguimento de certas orientações
ou receitas, de que ela, sendo perspicaz e astuta, não deve descuidar:
Se a moça quer um rapaz
E ele tem mais de uma
Se cuide; faça carinho
Não fique roendo a unha
Não mostre que sabe a ele
E faça o que lhe dispunha.
As receitas de sucesso, nas investidas em conquistar um rapaz, entram no campo da
dissimulação, no contexto em que a mulher, sabendo da infidelidade do amado, deve fingir
não sabê-lo. Deve, nesse sentido, trabalhar sorrateiramente para conseguir que ele fique
apenas com ela. Para isso, não deve exceder em seu temperamento, pelo contrário, “a moça
deve ter paciência”, “ser prevenida”, “nunca ficar aborrecida”. É o que dizem os versos:
Para a mulher dizer não
Deve ter o seu jeitinho
Não diz não mas não entrega,
Isso é o segredinho
A expressão “deve ter o seu jeitinho” é o núcleo da malícia e da dissimulação
feminina. Essa expressão é popularmente usada para se referir a uma forma especial, ou
personalizada, de alguém realizar algo. De acordo com o contexto da estrofe, o vocábulo
136
“jeitinho” remete à coquete, ou seja, à astúcia feminina para conseguir despertar a atenção do
homem.
E as receitas de casamento também se estendem à “coroa”, àquela que já está passada
da idade mas que, frustrada na esperança de um casamento, não pode esquecer que:
A coroa se quer casar
Não abra a boca do mundo
Porque quem é oferecida
Só arranja o vagabundo
Se você faz as trezenas
Não espalhe que está fazendo
Pois o rapaz sabendo disso
Se espanta e sai correndo
O campo lexical da prudência feminina organiza-se pelas expressões “não abra a boca
no mundo” e “não espalhe o que está fazendo”.
A “trezena”, oração de súplica a Santo Antônio, santo casamenteiro, só deve ser
realizada em segredo, caso contrário, o então pretendente pode livrar-se do compromisso.
(Sobre a trezena, conferir análise de As duras lamentações...). “Rezar pra ser casada”, “botar
cartas”, “ser otimista” são expressões que compõem o campo lexical das crendices e
tradições.
A expressão “botar carta” está remetendo à prática de advinhação através das cartas de
jogar. Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), a advinhação pelas cartas é muito
popular desde o séc. XVI. De acordo com a combinação das cartas, a pessoa poderá saber o
que lhe espera no futuro. “As copas e os paus são geralmente felizes. Copas e ouros anunciam
pessoas louras. Paus e espadas, morenas. Espadas e ouro dizem dos perversos, infelizes, malaventurados”. Fica entendido, pois, que a mulher pode misturar todas as fórmulas populares,
contanto que consiga obter o casamento tão esperado.
Finalmente, como se tivesse esgotado todas as possibilidades de a mulher arranjar um
marido, o cordelista aconselha, em tom de consolo:
137
Coroa, não fique triste
Não desespere o coração
- É melhor ficar sozinha
Do que casar sem a razão,
Apanhar, viver intranqüila
E o marido deixar na mão
Fica entendido, portanto, que a mulher tem que casar a qualquer custo e que, para
conseguir o seu projeto de casamento, é só usar de jogos de dissimulação e ignorar os deslizes
masculinos, já que esses são produtos da natureza instintiva do homem.
As relações semânticas contidas no folheto em estudo, podem ser melhor
compreendidas a partir do esquema a seguir:
DOIS TIPOS DE MULHER
MULHER QUE CASA
É DISSIMULADA
NÃO ABRA A
BOCA NO
MUNDO
MULHER QUE NÃO CASA
TOLA, VAIDOSA E
MESQUINHA
QUANDO NAMORA SÓ
SABE DIZER O “NÃO”
NAMORA MAIS DE UM
NÃO DIZ NÃO MAS
NÃO SE ENTREGA
QUANDO BROTO FOI
NEGAÇÃO
NÃO DEVE SER
MUITO FÁCIL OU
ATOA
SÓ ANDAVA NA
CONTRAMÃO
FIGURA 17 – Campo léxico-semântico em O que uma coroa dever fazer para casar.
138
6.2.18 Os amores de José e a traição de Maria
Na tradição religiosa do sertanejo, reminiscência da tradição das grandes religiões do
tronco judaico (judaísmo, cristianismo e islamismo), o adultério representa o agravo maior
porque fere, principalmente, os direitos sagrados do marido. Homem casado, que praticasse
adultério, que copulasse com prostituta, com mulher divorciada ou mulher não judia, a rigor,
não estava cometendo adultério, mas “fornicação”. A fornicação também era reprovada, não
porque significasse a violação do direito feminino, mas porque atentava à virtude social,
diretamente ligada à virtude sexual, que convinha aos interesses masculinos em conseguir
uma prole numerosa.
Mas a fornicação não ameaçava a estabilidade familiar quanto ao adultério feminino.
Do contrário, parece uma maneira de o homem mostrar que era tanto mais capaz que os
outros, ao conciliar suas aventuras extraconjugais, ao passo que aumentava gradativamente a
prole. Por essas razões, o adultério foi encarado como um pecado e proibida enquanto prática
feminina. 11
A questão do adultério, quase sempre presente nos folhetos de Cordel, coloca-se como
o tema principal do texto em estudo Os amores de José e a traição de Maria.
Nesse folheto, é o homem quem corresponde aos ideais femininos, é ele quem ama e
quem é traído. O adultério da esposa corrobora para a depreciação do sexo masculino, no
olhar do cordelista.
O valor da traição masculina nunca foi semelhante ao do adultério feminino. Desde
muito cedo à mulher foi transmitida a idéia de que o homem deve ter um comportamento mais
liberto, que basta a ela fazer vistas grossas às “escapulidas” extraconjugais, se ela deseja
11
A esposa adúltera e o cúmplice tinham, tal como registra o Velho Testamento, como punição, a morte. Os
acusados de adultério eram perseguidos pelas testemunhas que lhes atiravam as primeiras pedras. Se as primeiras
pedras não conseguissem eliminar os acusados, então todos os presentes podiam colaborar com as pedradas que
quisessem.
139
preservar seu casamento. Isso está há muito tempo presente na tradição da sociedade, que vê a
traição masculina, de certo modo, como uma condição inerente à natureza do homem.
Na linguagem do povo nordestino, o homem que trai é chamado de “cachorro”, “semvergonha” ou “safado” - dificilmente vai ser chamado de traiçoeiro ou enganador, uma vez
sendo um acontecimento natural e esperado pela mulher. Já a mulher adúltera, normalmente,
não escapa aos designativos “traiçoeira”, “fingida”, “enrolona”, “rapariga”, “puta”.
A expressão “se axistir catimbó”, nesse contexto, remete aos poderes mágicos
presididos pelos rituais que podem destituir uma relação amorosa, de acordo com o
imaginário coletivo.
Se axistir catimbó
Fizeram para ele e ela
Que ele era o cravo
E ela era o capela
Ela era o carinho dele
E ele era o carinho dela
A palavra “catimbó”, registrada no Dicionário Pernambucano (1976), como
“mandinga”, “feitiçaria”, “sortilégio”, “sessão ou prática de feitiçaria”; no Dicionário do
folclore brasileiro (2000), apresenta-se na acepção de “feitiços para afastar forças inimigas”,
ou para “provocar a correspondência amorosa” ou simplesmente sexual, etc. Vale considerar
que, quem recorre a essas vias, a esses meios ilícitos a fim de conseguir êxito nas relações
amorosas, no imaginário popular, é, por excelência, a mulher.
Na acepção em que é tomada, a palavra “catimbó” parece convergir para o campo do
adultério, que se reflete nos vocábulos “tramanha”, “pilhéria”, “tapeação”, “corrução”,
versadas no texto.
A inconstância do amor e a deslealdade feminina constituem, portanto, a
desestruturação do casamento, da família. A palavra “questão” sugere divórcio ou separação,
140
implica, no contexto da quebra da relação, um conjunto de práticas e sentimentos negativos,
tais como “pranto”, “desunião”, “ódio”, “inveja”, “intriga”.
E terminou em tristeza
Em prato e desunião
Em ódio, inveja e intriga
Soberba, orgulho e questão
Enrasque, rosse e charada
Malvadeza e ingratidão
As palavras “rosse”, “charada”, “malvadeza” e “ingratidão” traduzem o desacato da
mulher para com o marido.
E o poeta referenda uma personalidade dupla da mulher traiçoeira, que se traduz pela
inconstância de suas atitudes para com o homem. As expressões “tanto tu me faz carinho”/
“como faz ingratidão” passam essa idéia:
Ele acarinha ela
Com uma ardente paixão
Tu é minha santinha
Não use de tapiação
Tanto tu me faz carinho
Como faz ingratidão
“Tapeação” é a qualidade, efeito ou ato de tapear. O Dicionário lingüístico de termos
regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra “tapear” como “enganar”, “iludir”,
“burlar”, “lograr”, “embaçar”.
Os designativos “minha filha”, “beleza”, “bonitinha”, “jovem loura”, “meu consolo”,
entre outros, na voz do personagem, recordando o tratamento que reservava à esposa, impõem
uma maior significação no campo da indignação masculina diante do adultério.
As expressões “santinha”, “virgem Santa”, “santa Leonora”, tratamentos usados pelo
marido remetendo à esposa, assinala um contraste em relação às designações também a ela
dirigidas tais como “olhar de Madalena”/ “pedaço de traidora”, “meu cravo”/ “minha
verbena”, “minha vida”/ “pedaço de ambição”.
141
Para finalizar, o texto tenta mostrar que a destruição de uma relação amorosa, que
culmina com o adultério da mulher, é conseqüência de sua insensatez e de seu caráter
inconstante, frívolo e supérfluo.
Para uma melhor compreensão do texto, convém expor o gráfico em campos léxicosemântico, enfatizando a relação entre “amor e traição”:
NATUREZA SEDUTORA
AMOR
TRAIÇÃO
GOLPE
SEDUÇÃO
FINGIMENTO
OLHAR
ATRAENTE
LÍNGUA
GRANDE
FALSIDADE
SORRISO
SEDUTOR
CARINHO
PEDAÇO
DE
VAIDADE
FIGURA 18 – Campo léxico-semântico em Os amores de José e a traição de Maria.
6.2.19 Sofrimento das solteiras para arranjar marido
Na mentalidade do povo nordestino, durante muito tempo, foi praticamente
inconcebível uma mulher ficar solteira por opção. Dada a limitação do espaço social
feminino, no transcorrer da sociedade nordestina e mesmo da sociedade brasileira como um
142
todo, pela concepção do casamento como destino único das moças púberes, e, enfim, de todo
o contexto da sociedade patriarcal, a solteirice só pode ser percebida como um “sofrimento”.
No campo do sofrimento, cabem algumas expressões que sugerem a falta de interesse
do homem em assumir o compromisso do casamento: “enrabichar”, “fazer furdunço”, “dizer
tchau e se mandar”, “dispensar”, “ir embora”, “dar no pé e arribar”. Todas elas usadas no
sentido de expressar o engodo aplicado na mulher:
Os homens de hoje em dia
Só querem se enrabichar
Fazer furdunço em motel
Dizer tchau e se mandar
O livro A língua e o folclore da Bacia do São Francisco (1977) apresenta o termo
“furdunço” como “desordem”, enquanto o Dicionário lingüístico-literário de termos
regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra, além da acepção citada, a significação
de “bagunça”, “baderna” etc. Essas acepções deixam entender que a vontade do homem é
somente usufruir de liberdades sexuais para com a mulher.
São parcos, mas bastante expressivos, os verbos que exprimem a culpa feminina pelo
desinteresse do homem, qual seja a falta de cuidado em manter a sua honra, ou melhor, a
virgindade. Esse campo é formado pelos verbos: “se abestalhou”, “se entregou”, “se
descuidou”, “lascou-se”.
Gracinha de Tonho Dito
Se abestalhou com um vaqueiro
E disse vê se desgruda
Gracinha ficou buchuda
Na linguagem do povo sertanejo, “ficar buchuda” significa “estar grávida”, acepção
apresentada no Dicionário de palavrões e termos afins.
Outro obstáculo, que faz com que a mulher perca a oportunidade de casar, tal como é
apontado no folheto, é o homossexualismo masculino. O restrito campo lexical é absorvido
143
pelos termos “gay” e “desmunheca”, “o felá da mãe é gay”. A escolha do termo assinala o
desdém e o desagrado frente ao comportamento afeminado de um homossexual.
Desse modo, todo o engodo masculino e vulnerabilidade da mulher encontram-se no
plano sexual. Fica entendido, portanto, o contexto desfavorável da mulher em relação ao
homem. A mulher perde a chance de casar, fica marginalizada diante da sociedade, enquanto
o homem enaltece o seu ego, dando intensas provas de virilidade -, a gravidez na mulher e o
acúmulo de conquistas masculinas, por exemplo. O esquema a seguir ilustra a análise aqui
vista.
144
SOLTEIRICE
FEMININA
DIFICULDADE DE
ARRANJAR
MARIDO
SOFRIMENTO DAS
MULHERES
HOMEM
EM FALTA
SE QUISER
MESMO CASAR É
MELHOR
BAIXAR O NÍVEL
POLIGAMIA
HOMOSSEXUALIDADE
MASCULINA
DESCOMPROMISSO
E LIBERDADE
CONQUISTA
MULHERES E
ENGANA
O FELA DA
MÃE É GAY
DESMUNHECA
TEM MULHER DEMAIS
DESAPAIXONA-SE
VIVE PELO MEI
DO MUNDO
VAI EMBORA
DEIXA A MULHER BUCHUDA
FIGURA 19 – Campo léxico-semântico em Sofrimento das solteiras para arranjar marido.
6.2.20 Uma mulher traiçoeira
Na Literatura de Cordel, a mulher adúltera é sempre considerada “maldita”. O
simbolismo da serpente, que permeia as narrativas, de modo geral, envolve a mística do
instinto feminino, segundo o princípio da capacidade feminina em seduzir e depois causar
destruição.
145
Em Uma mulher traiçoeira, um dos textos de que dispomos para a realização de nosso
estudo, há em torno da narrativa um movimento dicotômico que, por um lado, exalta a
mulher, definindo-a enquanto ser nobre e divino e, por outro, apresenta-lhe como perigosa.
As vicissitudes da personagem aparecem nas expressões “na mais tenra idade”, “doze
ou quatrorze anos”, nomeando a mulher como um ser frágil, delicado, no período em que
vivencia a menoridade. No campo da inocência, discorrem-se “a ingenuidade”, “a santidade”
ou “divindade”, que convergem para o campo da idade.
Nesse tempo ela contava
Com 12 anos de idade
Um anjo da divindade
Nem mesmo ela sabia
De sua infelicidade
Existe, entretanto, uma linha tênue que separa as duas faces de Helena, as quais o
tempo se encarrega de definir. É ele que faz a deposição da figura casta que se faz na
substituição pelo lado da mulher ameaçadora ou perigosa, afeita aos prazeres passageiros,
carnais e materiais.
Os versos “confiada na beleza”, “julgando que a beleza”/ “de seu corpo não saia”
remetem ao orgulho narcisístico da personagem Helena:
E assim continuava
O seu viver de orgia
Confiada na beleza
Nada em casa fazia
Julgando que a beleza
De seu corpo não saia
O sentimento da parte da sociedade é sempre reprovação. A estrofe a seguir aponta
claramente a indignação coletiva frente ao adultério da mulher:
Todos diziam igual
A infeliz desgraçada
Fazer uma coisa desta
Sendo tão bem casada
146
A expressão “bem casada” é empregada para enfatizar a posição financeira e estável
da mulher, em função do matrimônio.
12
A ênfase da reprovação do adultério feminino está
relacionada ao ponto de vista material, que, em última instância, recai sobre os princípios
morais.
Na sociedade patriarcal nordestina, muito se tem legitimado por meio de discurso a
imagem de que o homem, para ser macho, deve ser forte, enérgico, grosseiro. A imagem de
homem sentimental é banida quase por completo do perfil do nordestino. Toda vez que o
homem foge ao perfil assinalado, tratando de modo amável a sua companheira, recebe
sanções negativas da parte da sociedade, que o vê como alguém fraco e sem autoridade.
No imaginário social, o homem que é fiel à esposa, quando “ele não lhe põe as
rédeas”, fica na condição de vítima de uma mulher “aproveitadora e sádica”. Desse modo, a
relação ideal entre um casal apenas ocorre quando é o homem quem exerce a autoridade,
sendo quem tem poderes únicos e exclusivos em virtude de seu sexo.
Nesse contexto, a traição de Helena ao marido é a prova certa de que “ela virou o
juízo”, ou seja, que ela enlouqueceu. E vale dizer que o desequilíbrio mental de Helena
representa o fracasso do marido:
Com mais de 6 memes
Ela virou o juízo
Arrumou outro amante
Sem pensar em prejuízo
Sem o marido saber
Desse grande escandalizo
12
A moralidade nordestina acerca do adultério baseia-se na questão de que a honra do marido, dependente da
fidelidade conjugal da esposa, uma vez que dela depende a manutenção do vínculo matrimonial, segundo os
princípios cristãos ou jurisdições. Essa moral baseia-se na concepção primitiva da mulher como propriedade do
homem, e o adultério feminino, portanto, uma violação dos direitos masculinos.
147
O termo “corno”, no aumentativo “cornão”13, ressalta a característica desfavorável do
marido traído. A intenção do cordelista é demonstrar, em tom satírico e pitoresco, o descaso
que possui a mulher ao trair e furtar o próprio marido e também a desmoralização do esposo
diante da situação:
Ela mais o tal Vadinho
Na maior devassidão
Dizendo a ele eu deixei
Dormindo só o cornão
O verso “dormindo só o cornão” confere o tom de passividade do homem frente ao
adultério da esposa. É a forma verbal “dormindo” quem projeta a idéia de inércia do homem.
A estrofe a seguir expressa essa idéia claramente.
O velho pai dela deulhe
Uma surra de tabica
E disse desapareça
Você comigo não fica
Deram uma surra em Vadinho
Que quase o malandro estica
O verbo “esticar” está na acepção de falecer, perder a vida. O Dicionário lingüísticoliterário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra a acepção de “esticar
a canela”, entre outras correlatas, usadas no sentido de “falecer”.
O vocábulo “tabica” é apresentado no mesmo dicionário como brasileirismo “chibata
feita com a haste do vegetal de hastes delgadas e flexíveis”, ou “vara de cipó de que se servem
os almocraves para tanger as bestas”. É importante ressaltar que a surra representa, no
contexto da sociedade patriarcal, a máxima expressão de poder e o absoluto controle dos pais
sobre os filhos, muitas vezes do marido para com a própria esposa.
13
O substantivo é usado para designar o bode, ou animal chifrudo. No uso popular, o termo é empregado, num
tom burlesco, designa o marido que é enganado pela mulher. É também àquele que finge não saber do
procedimento da mulher, nesse sentido, refere-se ao marido conformado, cabrão. (Cf. Calepino Potiguar: gíria
rio-grandense, 1980, p. 129)
148
É pertinente lembrar, também, que no contexto da sociedade patriarcal nordestina, a
educação dos filhos, filhas, dos escravos, enfim, de grupo subordinado ao membro da classe
maior de poder, o patriarca, foi eminentemente exercida à base de castigos.
O esquema, que apresenta as idéias aqui expostas, é assim mostrado:
MULHER
TRAIÇOEIRA
CAIXA DE
DEVACIDÃO
PUNIÇÃO DO
PAI
DEBOCHE DO
MARIDO
SURRA DE
TABICA
TRAIÇÃO
VIVER DE
ORGIA
CONFIADA NA
BELEZA
FIGURA 20 – Campo léxico-semântico em Uma mulher traiçoeira.
Toda essa análise léxico-semântica dos vocábulos, realizada, partiu da verificação dos
itens lexicais mais relevantes na tessitura dos Cordéis estudados. Desse modo, os campos
foram estruturados, em função da observância de uma relativa freqüência de palavras em cada
folheto de Cordel, tomados separadamente, ou em função de uma correspondência de sentido
entre os mesmos. Em seguida, destacaram-se as palavras-chave, a partir das semelhanças
entre os classemas e os semas específicos que puderam ser destacados nos folhetos, tomados
em conjunto, nesse momento.
Os macrocampos formaram-se a partir de classes de sentido mais gerais, enquanto que
os subcampos constituíram subdivisões das categorias semânticas ou temáticas presentes nos
folhetos que descreviam a mulher nordestina.
149
Assim, por exemplo, o “macrocampo” idade corresponde a uma categoria de sentido
mais geral, porque nele se incluem lexias que se deixam interpretar como um campo mais
restrito, o qual chamamos “subcampos”.
Para tanto, a disposição das unidades lexicais revelou a existência de cinco
macrocampos: idade, constituído a partir dos subcampos “velhice” e “juventude”; imagem,
abrangendo os subcampos “aparência física” e “vestimenta”; comportamento, no qual
detectaram-se os subcampos “virtudes”, “recato”, “austeridade”; “depravação” ou
“prostituição”; “valentia e coragem”; “sedução e sexualidade”; raça, tendo como subcampos,
a “raça branca” e a “negra” e, finalmente, cultura, considerando-se como subcampos
“religiosidade”, “mitos ou superstições”, “tradições e costumes”.
Apresentar-se-á, na página seguinte, um esquema relacionando os macrocampos e os
subcampos encontrados na análise.
150
VELHICE
IDADE
JUVENTUDE
SEDUÇÃO,
FÍSICA
BELEZA
IMAGEM
PADRÃO
VESTIMENTA
ROUPA COMO
CONSERVADOR
CONSTRUÇÃO
SOCIAL
MARGINAL
VIRTUDE, RECATO, AUSTERIDADE
DEPRAVAÇÃO, PROSTITUIÇÃO
VALENTIA E CORAGEM
INTRIGA
BRANCA
RAÇA
NEGRA
RELIGIOSIDADE
CULTURA
MITOS
TRADIÇÕES E COSTUMES
FIGURA 21 – Esquema básico dos principais campos léxico-semânticos dos Cordéis
analisados.
De acordo com a figura 21, o campo da idade compreende uma grande variedade de
vocabulários depreciativos em relação aos estágios de maturidade e velhice femininas. Dado
o contexto da sociedade nordestina, uma mulher de idade mais avançada será fadada à eterna
solidão e solteirice, acalentada nos únicos momentos de devoção a todos os santos, quando ela
assume a função de beata. “Santo Antônio”, “São José”, “Virgem Maria” são exemplos dos
nomes de santos mais invocados.
151
O campo imagem comprova a relevância na questão da aparência, beleza estereotipada
pelos padrões ideo-socioculturais. Nesse ponto, ressaltam-se valores em função da moda, que
atendem às perspectivas de ordem moral e econômica, que integram o conjunto de
vestimentas e adereços: “califon de meio corpo”, “calçola até o joelho”, “saia comprida e
cabeção”, “jóias”, “enfeites”, que fazem parte dos ideais dessa moda.
O campo comportamentos apresenta uma grande variedade de vocábulos que
caracterizam os perfis femininos, segundo os moldes da “mulher bendita ou santa”, ou,
inversamente, da “mulher prostituta e maldita”. Ainda nesse campo, insere-se o modelo de
mulher valente, guerreira e corajosa, ícone reservado à figura das cangaceiras, símbolo de
bravura e destemor, por excelência, da mulher nordestina.
No campo raça, a mulher negra aparece associada a uma série de estereótipos,
relacionados aos preconceitos de cor, de classe e de posição sócio-econômica. Nesse ponto,
ressalta-se o valor social atribuído ao trabalho da mulher doméstica, enquanto mulher pobre,
negra e sem instrução. Os nomes “peniqueira”, “choufer de fogão”, “nêga nojenta” constituem
algumas formas de expressão que caracterizam o contexto de exploração e estigma da mulher
doméstica. A mulher branca e burguesa, em seu perfil de “mãe” reprodutora, ou de filha
“donzela”, figura como protagonista que opera num sistema de poder, dominação e
exploração da outra raça.
O campo cultura revela as crenças de natureza mitológica associadas ao protótipo de
“Eva” e da “Virgem Maria”, desenvolvidos na herança e tradição religiosa católica do povo
nordestino. Esse campo reflete-se praticamente em todos os Cordéis que foram objeto de
estudo para o presente trabalho.
De um modo geral, os macrocampos e os campos específicos se perpassam, em
virtude da reunião de sememas, sendo muito difícil precisar o ponto onde eles se delimitam.
152
Apesar da dificuldade de delimitação temática, até devido à confluência das temáticas
esboçadas nos Cordéis, alguns campos foram detectados com mais freqüência que outros.
Finalmente, a estruturação do léxico na designação da mulher revelou um número
representativo de termos e expressões pejorativas, que refletem um quadro de preconceito em
relação ao sexo feminino.
Durante a análise, pudemos comprovar que o repertório vocabular presente no Cordel
corresponde à fala popular, confirmando a idéia de que a Literatura Popular retrata ou
caracteriza a vivência e visão de mundo do povo nordestino.
153
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho investigou de que maneira a Literatura de Cordel deixa entrever,
por meio do léxico, os aspectos relativos à mulher, inserida na realidade nordestina. De
acordo com os pressupostos teóricos, os quais sedimentaram as análises e que serviram de
base à constatação das hipóteses dessa pesquisa, pôde-se comprovar, a partir do corpus
selecionado para a análise, que Literatura de Cordel, retrata, por meio das expressões e
marcas próprias da oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina. Por meio de
uma análise léxico-semântica dos folhetos, foi possível identificar aspectos da realidade
nordestina, em face ao contexto sociocultural e, por fim, o vocabulário, interagindo com a
cultura, revela, mais do que os aspectos formais da língua, o modo como a mulher é percebida
e tratada na sociedade.
Tais hipóteses foram contempladas durante a análise e ao longo da pesquisa, quando
se procedeu a uma análise léxico-semântica de um número representativo de vocábulos,
visando apresentar um universo de significações com relação à mulher e identificando o
inventário lexical que explicitava a sua condição na sociedade nordestina.
No desenvolvimento da análise, buscou-se perfilar os aspectos da linguagem
regional/popular, na Literatura de Cordel, que reflete a visão do povo nordestino. Em geral,
observaram-se questões relativas a crenças, tradições, religiosidade, sentimentos e costumes
desse povo, que tomadas em conjunto, serviram de apoio à análise léxico-semântica dos
vocábulos utilizados na descrição da mulher nordestina, dentro do universo sociolingüístico.
A investigação esteve centrada no conjunto vocabular que designa a mulher, então
organizado em campos léxico-semânticos, o que permitiu observar uma intensa
transversalidade dos temas presentes nos folhetos de Cordel, no sentido em que eles se
perpassam nos campos específicos.
154
De acordo com os objetivos propostos, o vocabulário temático dos folhetos foi
organizado em campos léxicos, os quais foram distribuídos em cinco macrocampos: idade,
constituída a partir dos subcampos “velhice” e “juventude”; imagem, abrangendo os
subcampos “aparência física” e “vestimenta”; comportamento, no qual detectaram-se os
subcampos “virtudes”, “recato”, “austeridade”, “depravação” ou “prostituição”, “valentia e
coragem”, “sedução e sexualidade”; raça, tendo como subcampos, a “raça branca” e a
“negra”; e, finalmente, cultura, considerando-se como subcampos “religiosidade”, “mitos ou
superstições”, “tradições e costumes”.
É importante dizer que a Teoria dos Campos Lexicais funcionou como método
realmente válido para a depreensão das estruturas significativas globais presentes nos
Cordéis, objeto da realização do presente estudo. Com base em abordagens de lingüistas,
chegou-se a verificação de que a apreensão do significado, nos campos léxico-semânticos, é
inseparável do contexto.
A linguagem espontânea, atravessada por construções pitorescas, característica que
condiz com a própria maneira risonha do povo nordestino de encarar situações cotidianas,
constituiu uma questão relevante no estudo do Cordel dentro da perspectiva sociocultural a
que esteve assentada a análise.
Para tanto, foi possível perceber as características próprias do universo lingüístico da
gente nordestina e, particularmente, o modo como o poeta sertanejo serve-se do vocabulário
regional, muitas vezes aproveitando construções eruditas e clássicas, incorporadas à fala
cotidiana dessa gente.
A propósito da escolha das unidades léxicas, pôde-se comprovar que os cordelistas
expressam, por meio do léxico popular, as novas direções que são incorporadas pela
sociedade, não obstante encare, muitas vezes, com um certo grau de negativismo,
desconfiança e até mesmo intranqüilidade, as inovações projetadas no plano sociocultural. A
155
descrição depreciativa, quando faz menção à ascensão profissional e social da mulher, é um
dado relevante nessa questão.
Pode-se afirmar que há a presença de traços de subjetividade do autor, os quais
expressam sentimentos contraditórios em relação à visão sobre o sexo feminino. Um dos
pontos mais evidentes quanto a isso é que a descrição dos Cordéis apresenta, de um lado, uma
visão encantada e idealizadora de mulher, de outro, uma visão desencantada, ultrajada e
pessimista.
A observância dos fatos relevantes transcorridos em diferentes épocas e a sua
capacidade de retratar os acontecimentos mais recentes é o faz com que o Cordel estabeleça a
ligação com o mundo atual. Essa é, no nosso entendimento, uma das razões pela qual, ele
continua sendo uma fonte inesgotável de comunicação e interpretação da realidade e como
veículo de manifestação cultural popular da região nordestina.
Percebe-se a participação restrita que têm as cordelistas na Literatura de Cordel e que
as mulheres são, em decorrência disso, olhadas, quase tão somente sob a perspectiva
masculina. Esse é um dado relevante que poderia levar a uma nova investigação, a partir da
qual se conduziria uma abordagem lingüística sobre a representação feminina nos Cordéis
produzidos por mulheres.
Resta dizer que este estudo consiste em uma pequena contribuição aos estudos da
linguagem popular e pode ser ampliado, pelo sentido profícuo da problemática, numa possível
tese de doutorado. Enseja-se, pois, que essa pesquisa possa abrir novas possibilidades a
outras, com o interesse na área da linguagem, particularmente sob o nível do léxico, para que,
juntamente com outras que surjam, fornecer subsídios à compreensão da realidade lingüística
do país.
156
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ANEXOS – Folhetos de Cordéis
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