UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAPARAÍBA CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Caline Genise de Oliveira Lima A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL: uma abordagem léxico-semântica. JOÃO PESSOA, PB MAIO DE 2006 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Caline Genise de Oliveira Lima A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL: uma abordagem léxico-semântica. JOÃO PESSOA, PB MAIO DE 2006 CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL: uma abordagem léxico-semântica Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras, área de concentração Lingüística e Língua Portuguesa, da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Prof.a Dr.a Maria das Neves Alcântara de Pontes. JOÃO PESSOA 2006 CALINE GENISE DE OLIVEIRA LIMA A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL: uma abordagem léxico-semântica. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras, área de concentração Lingüística e Língua Portuguesa, da Universidade Federal da Paraíba como requisito para obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Prof.a Dr.a Maria das Neves Alcântara de Pontes. Aprovada em: ____/____/_____ BANCA EXAMINADORA __________________________________________________________________ Profa Dra Maria das Neves Alcântara de Pontes Orientadora (UFPB) __________________________________________________________________ Profa Dra Ivone Tavares de Lucena Titular (UFPB) __________________________________________________________________ Profa Dra Ana Cristina Sousa Aldrigue Titular (UFPB) __________________________________________________________________ Profa Dra Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca Suplente (UFPB) À minha avó e à minha mãe, exemplos de força feminina. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar a Deus, conforto para as longas noites de solidão. À minha orientadora pela cumplicidade, paciência e zelo, em todos os momentos da pesquisa. Às professoras Marianne Cavalcante, Mônica Nóbrega, Fátima Batista e Maria Cristina de Assis pelas inestimáveis contribuições durante o curso. Ao meu pai, pelo incentivo em todos os dias de minha vida. À minha família, em especial aos meus irmãos Carlos e Arlindo, sem o apoio e auxílio de vocês, seria tudo mais difícil. Ao amigo Fábio, que fez brotar em mim o estímulo para a realização do mestrado. Ao precioso amigo Romair, que me acolheu em sua casa, pelo carinho, apoio e estímulo incansáveis nas horas em que pensava em desistir. Ao saudoso amigo Flávio, pela bondade, paciência e amizade mais sincera. À amiga Clécia, pelo eterno companheirismo e ajuda nos momentos mais difíceis. Ao amigo Moisés pela simplicidade e disponibilidade à leitura de meu projeto. A Hermano, pelos diálogos, o incentivo e ajuda. A Erick, pela amizade e pelas visões no campo da Semiótica e da Cultura Popular. Aos amigos Linduarte, André, Rachel, Fernanda pelos momentos memoráveis, nas pequenas reuniões, festas e almoços durante o curso. Vocês estarão na minha memória para sempre. À querida Adriene, pela amizade sincera de todas as horas, que sempre esteve presente e a quem pude recorrer nas horas mais angustiantes. Você, com sua bondade e suas brincadeiras, mostrou-me que o sonho era possível. A meu amor Joaquim, ninguém como você para me confortar nas horas de maior desespero e solidão. À minha querida sogra, a quem devo expressar a mais sincera gratidão, pelo apoio em todas as circunstâncias. À companheira de longa data Ana Lígia, por não me ter faltado nos momentos de mais sufoco. À Gerlane, Maria Luíza, Linélia, Lurdinha, Lúcia e Janka, a vocês devo a eterna gratidão pela sensibilidade e compreensão às minhas ausências em sala de aula, e a todos os amigos de profissão, que nunca me faltaram. À equipe técnica da escola Alberto Torres, em especial à Madalena, à Teresinha e Nininha, pelo constante apoio e por terem acreditado que meu esforço valeria à pena. “a significação de um signo verbal não é autônoma, isto é, não pode nem se formar nem aparecer fora dessa unidade, que é linguagem – e – pensar, palavra – idéia.” Schaff RESUMO A presente pesquisa visa a uma abordagem sobre os aspectos léxico-semânticos em torno da representação do papel feminino na Literatura de Cordel. O referencial teórico desta análise está assentado, fundamentalmente, na Lexicologia, destacando-se a Teoria dos Campos Lexicais, da Cultura Regional, da Semântica e os aspectos antropossociais da Literatura de Cordel. A aplicação das teorias possibilitou a organização dos dados selecionados em campos, num corpus constituído por vinte folhetos de Cordel versando sobre a mulher, que permitiu, desse modo, a chegar-se à interpretação das estruturas léxicas, neles existentes. A partir daí, foi possível organizar-se cinco “macrocampos”, em que a mulher aparece retratada nos mais diversos níveis, tais quais emocionais; sociais; culturais etc. Palavras-chave: mulher, Literatura de Cordel, léxico, sociocultural. ABSTRACT The present research aims an approach to the lexical-semantic aspects on the represention of the female role in Cordel Literature. The theoritical referencial to this analysis is mainly based on Lexicology, very specially the Theory of the Lexical Fields, of the Regional Culture, of Semantics as well as the socio-antropological aspects of Cordel Literature. The employment of this theories allowed an organization of the in field selected data in a corpus compounded of twenty Cordel booklets, what allowed, this way, to reach the interpretation of the lexical structures which exist in them. From this point on, it was possible to organize five main fields where the woman is portrayted in several levels, such as emotional, social, cultural, etc. Key-words: woman, Cordel Literature, lexicon, socio-cultural. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 12 2 LEXICOLOGIA .................................................................................................................... 15 2.1 LÉXICO E CULTURA ...................................................................................................... 16 2.2 A TEORIA DO RELATIVISMO LINGÜÍSTICO OU HIPÓTESE SAPIR-WHORF...... 19 2.3 CAMPOS LÉXICOS.......................................................................................................... 24 3 CULTURA: UM CONCEITO CONTROVERSO ................................................................ 29 3.1 NORMAS E PADRÕES SÓCIOCULTURAIS ................................................................. 33 4 A LITERATURA DE CORDEL........................................................................................... 39 5 A MULHER NO CONTEXTO SOCIOCULTURAL........................................................... 45 5.1 AS MULHERES NO SERTÃO NORDESTINO............................................................... 47 5.2 CONCEPÇÃO CRISTÃ SOBRE A NATUREZA FEMININA........................................ 49 5.3 A FAMÍLIA NO SISTEMA PATRIARCAL BRASILEIRO E A MORAL SEXUAL .... 52 6 METODOLOGIA, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS ............................................ 57 6.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE ...................................................................................... 57 6.2 ANÁLISE DO CORPUS.................................................................................................... 60 6.2.1 A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa ..................................................................... 60 6.2.2 A língua da mulher faladeira ...................................................................................... 65 6.2.3 A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia .................................................. 68 6.2.4 A mulher e o cangaço .................................................................................................. 77 6.2.5 A mulher no lugar do homem...................................................................................... 84 6.2.6 As duras lamentações de uma coroa............................................................................ 88 6.2.7 As modas escandalosas de hoje em dia ....................................................................... 93 6.2.8 Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia......................................................... 96 6.2.9 História da mulher da língua grande ......................................................................... 101 6.2.10 Maria Bonita – mulher macho, sim, senhor ............................................................ 104 6.2.11 Nascimento, vida e morte de uma coroa.................................................................. 109 6.2.12 O abc das mulheres.................................................................................................. 111 6.2.13 O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia ................................................. 117 6.2.14 O mundo pegando fogo por causa da corrução ....................................................... 123 6.2.15 O mundo vai estourar do jeito em que se vive ........................................................ 126 6.2.16 O poder oculto da mulher bonita ............................................................................. 128 6.2.17 O que uma coroa deve fazer para se casar............................................................... 134 6.2.18 Os amores de José e a traição de Maria................................................................... 138 6.2.19 Sofrimento das solteiras para arranjar marido......................................................... 141 6.2.20 Uma mulher traiçoeira ............................................................................................. 144 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 153 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 156 ANEXOS – Folhetos de Cordéis ............................................................................................ 164 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Campo léxico-semântico em A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa.............. 65 FIGURA 2 – Campo léxico-semântico em A língua da mulher faladeira................................ 68 FIGURA 3 – Campo léxico-semântico em A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia. .................................................................................................................................... 77 FIGURA 4 – Campo léxico-semântico em A mulher e o cangaço. ......................................... 84 FIGURA 5 – Campo léxico-semântico em A mulher no lugar do homem. ............................. 88 FIGURA 6 – Campo léxico-semântico em As duras lamentações de uma coroa. ................... 93 FIGURA 7 – Campo léxico-semântico em As modas escandalosas de hoje em dia................ 96 FIGURA 8 – Campo léxico-semântico em Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. ........................................................................................................................................ 100 FIGURA 9 – Campo léxico-semântico em História da mulher da língua grande.................. 104 FIGURA 10 – Campo léxico-semântico em Maria Bonita, mulher macho, sim, senhor....... 109 FIGURA 11 – Campo léxico-semântico em Nascimento, vida e morte de uma coroa. ......... 111 FIGURA 12 – Campo léxico-semântico em O abc das mulheres. ......................................... 117 FIGURA 13 – Campo léxico-semântico em O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia. ............................................................................................................................... 123 FIGURA 14 – Campo léxico-semântico em O mundo pecando fogo por causa da corrução. ........................................................................................................................................ 126 FIGURA 15 – Campo léxico-semântico em O mundo vai estourar do jeito em que se vive. 128 FIGURA 16 – Campo léxico-semântico em O poder oculto da mulher bonita. .................... 134 FIGURA 17 – Campo léxico-semântico em O que uma coroa dever fazer para casar. ......... 137 FIGURA 18 – Campo léxico-semântico em Os amores de José e a traição de Maria. .......... 141 FIGURA 19 – Campo léxico-semântico em Sofrimento das solteiras para arranjar marido. 144 FIGURA 20 – Campo léxico-semântico em Uma mulher traiçoeira. .................................... 148 FIGURA 21 – Esquema básico dos principais campos léxico-semânticos dos Cordéis analisados. ...................................................................................................................... 150 12 1 INTRODUÇÃO A Literatura de Cordel tem sido alvo de representações culturais da sociedade nordestina e é uma das mais autênticas formas de manifestação da Cultura Popular da região. Nos últimos anos, testemunha-se o crescente interesse que a Literatura Popular tem despertado no meio acadêmico, tamanho é o acervo de artigos, teses e dissertações que a elegeram como objeto de estudo, nos mais variados campos. O estudo sobre essa literatura possibilita uma maior compreensão da experiência de um povo, de sua identidade cultural, a partir dos dados fornecidos pelo inventário lexical, que organiza, ou recorta seu sistema de valores, “um mundo lingüística e semioticamente construído”, no dizer de Barbosa (2001, p.34). Sobre a Cultura Popular, vejamos o que assinalam Cariry e Barroso (1982, p.19): Como manifestação estreitamente vinculada à vida de imensas camadas de nossa população, a Literatura Popular guarda a qualidade de refletir a consciência e os sentimentos do povo (...). Aí está o seu grande valor. Quem quiser perquirir a alma do povo, deve observar as manifestações de sua literatura. O caráter espontâneo da linguagem, desprendido dos padrões e normas técnicas, além de comunicar de forma bastante simples, faz da Literatura de Cordel, em nosso entendimento, a forma mais autêntica de expressão da mentalidade do povo nordestino. A opção pelo estudo da mulher, no nível lexical, dá-se em virtude de ser a figura feminina uma constante nesse tipo de literatura, objeto de descrição nas mais diferentes feições que delineiam o destino imposto à mulher nordestina, sobretudo, na sociedade patriarcal. Ao longo dos anos, as mulheres nordestinas foram obrigadas a ocultar-se diante da figura masculina, desaparecendo dos locais públicos, à medida que alimentavam a idéia da 13 superioridade do homem. Cresciam, dessa forma, acreditando que o sexo masculino era potencialmente superior, conseqüentemente, o feminino, inferiorizado. Apesar da relevância do material teórico à realização de uma análise léxico-semântica, os estudos femininos interessados na linguagem ainda foram pouco explorados, principalmente quanto à perspectiva deste objeto estudo. O objetivo central desta pesquisa é investigar no léxico da Literatura de Cordel os aspectos relativos à mulher, inserida na realidade nordestina. Considerando-se a realidade lingüística da região nordestina e com vistas à consecução dos objetivos específicos, pretendese proceder a uma análise léxico-semântica de um número representativo de vocábulos, apresentar um universo de significações pejorativas com relação à mulher e identificar o inventário lexical que explicita a condição feminina, no contexto da sociedade nordestina. O trabalho se estrutura em cinco capítulos, ancorados nos pressupostos teóricos que poderão servir à elucidação das questões tomadas como hipóteses deste trabalho, assim delineadas: a Literatura de Cordel revela, por meio das expressões e marcas próprias da oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina; por meio de uma análise léxico-semântica dos folhetos é possível identificar aspectos da realidade nordestina, face ao contexto sociocultural; o vocabulário, interagindo com a cultura, revela, mais do que os aspectos formais da língua, o modo como a mulher é percebida e tratada na sociedade. Essa investigação é construída com base num trabalho de segmentação, orientada de acordo com a natureza do objeto de estudo e no sentido de possibilitar uma visão concatenada de idéias em relação aos postulados teóricos ancorados para análise do corpus. Os quatro primeiros capítulos serão pautados no enfoque das questões em torno da língua, cultura e sociedade, que competem para a perspectiva do trabalho. Embora a perspectiva dessa pesquisa não seja sociológica, tomar-se-á esse estudo com vistas a aprofundar a análise lingüística. No sexto capítulo, os folhetos de Cordel que compõem o corpus da 14 pesquisa, passarão a ser analisados, conforme os dados distribuídos em campos léxicosemânticos. 15 2 LEXICOLOGIA A língua pode muito bem ser uma pátria, como escreveu Fernando Pessoa, porque como pátria se ganha, se perde, se adota ou repudia. Mas, antes de pátria, a Língua é sempre algo de mais íntimo: padrão e medida da nossa alma; referência da nossa arte[...] João de Melo Nos últimos anos, tem-se assistido a um avanço significativo nos estudos lexicológicos. Entretanto, a atenção dada às unidades do universo lexical, durante muito tempo, esteve à mercê da velha tradição gramatical. Ainda na primeira metade do século vinte não se tinha definido um método mais efetivo no tratamento dado ao assunto. Foi preciso então esperar a segunda metade do século para que surgisse um estudo mais criterioso, respaldado em teorias lexicais científicas, visando à descrição ou análise do léxico das línguas. É importante considerar que tanto a análise da palavra, a categorização lexical e estruturação do léxico foram e ainda o são, de fato, matéria complexa para os pesquisadores da língua. O léxico, apresentando um sistema que está em contínuo processo de expansão, constitui para o estudioso da língua, uma rede imprecisa de elementos de difícil sistematização, contrariamente, por exemplo, ao nível fonológico, que é normalmente mais transparente ou homogêneo. A parte da Lingüística que vai dar conta do estudo do léxico, interessando-se pela análise da palavra, pela categorização e a estruturação lexical é a então denominada Lexicologia, de acordo com Pontes (2002a, p.43). Mantendo o intercâmbio com outras áreas do saber lingüístico, tais como a Semântica, a Dialetologia e a Etnolingüística, a Lexicologia volta-se, sobretudo, ao interesse dos aspectos 16 socioculturais relacionados aos fenômenos da língua. Pretende-se, nesta seção, desenvolver, numa perspectiva etno-sociolingüística, uma abordagem sobre o léxico e a sua eminente relação com a unidade sociocultural. A propósito desse assunto, enfatizar-se-á a relação que existe entre língua, cultura e sociedade. Atenção especial será concedida à Hipótese Sapir-Whorf, numa tentativa em explicitar as bases mais sólidas em que se encontram as posições desses teóricos a respeito da relação língua e cultura. 2.1 LÉXICO E CULTURA A língua comporta um sistema de signos estreitamente vinculados ao processo das relações sociais, “exatamente porque os homens sempre se comunicam uns com os outros por meio de signos”, as palavras. (SCHAFF, 1968, p.160). A vida social é assim permeada por um sistema de signos lingüísticos, e, por intermédio deles, é resguardada a transmissão de uma cultura de uma geração à outra, o patrimônio de uma comunidade, a aprendizagem de seus valores, concebidos e aceitos pelos seus membros. Embora apresente em suas faces uma parte intangível, uma estrutura (formal) que independe dos indivíduos, há um lado da língua suscetível de variações, seja em virtude do conjunto social, do contexto de uma época, de uma dada história e cultura. A língua varia principalmente de acordo com as necessidades dos próprios falantes, captando o universo cultural em que estes vivem. O mundo do falante é assim um mundo lingüístico – à medida que a língua serve de interpretante desse mundo biossocial. Nas palavras de Câmara (1979, p. 16): 17 A língua é assim, antes de tudo, no seu esquema, uma representação do universo cultural em que o homem se acha, e, como representa esse universo, as suas manifestações criam a comunicação entre os homens que vivem num mesmo ambiente cultural e estrutural, a sistematização da língua. A partir dessas reflexões e reconhecendo que o estudo da língua envolve a relação do homem com a sociedade, esse estudo não pode deixar de envolver o elemento cultural que permeia tal relação. O domínio em torno do léxico poderia sustentar reflexões mais apuradas da interação do indivíduo com sua cultura, e revelar mais sensivelmente a relação entre práxis social e linguagem. As palavras geradas no sistema de uma língua, segundo Biderman (1978), correspondem a um processo cognoscitivo e são, na verdade, modos de organização dos dados sensoriais da experiência de um grupo. Os signos lexicais têm a função de transmitir uma representação coletiva. São eles que fazem existir o que se enuncia. Nesse sentido, o universo conceptual de uma língua apresenta-se como um sistema ordenado e estruturado de categorias léxico-gramaticais. Tais categorias seriam nada menos que um sistema de percepção e apreciação da realidade. Acresce-se, ainda, segundo a visão da professora, que embora todas as línguas estejam embasadas num processo de sistematização, cada língua será moldada de acordo com a conceituação de mundo dos membros de uma sociedade particular. Por isso, não é difícil perceber que a norma lingüística condiz normalmente com a freqüência de uso dos signos lingüísticos, normalmente aceitos pelos membros de um grupo. (Ibid, p.179-180). Com efeito, o léxico, cujas formas contemplam as experiências sociais, reflete todo um conjunto de aquisições culturais em torno das vivências de uma comunidade. O léxico, assim, está correlacionado a tudo aquilo que os indivíduos inventam, constroem ou consideram relevante, ou seja, às suas crenças, aos seus interesses e às suas atividades. No estudo das línguas, o que permanece em toda a discussão referente ao léxico diz respeito, principalmente, à capacidade que tem o inventário lexical de englobar os aspectos 18 vinculados à realidade social e cultural, motivado pelas mudanças contínuas. Desse modo, a palavra só pode ser vista enquanto imersa num dado contexto. O significado é extremamente elástico, o que elimina da língua a chance de qualquer lance de arbitrário ou acidental, nas situações plausíveis de comunicação. Fato é que, com a evolução dos tempos, o repertório de signos lexicais variou consideravelmente e novos termos foram incorporados às línguas humanas. O processo de expansão da língua foi o próprio homem quem empreendeu - realizando novos projetos, assinalando novos rumos, juntamente com outros membros de sua comunidade, motivando, dessa maneira o grande número de criações lexicais. A causa primeira da expansão do léxico parece ter sido o contato mais freqüente entre os povos; a expansão das relações entre as nações nos mais variados contextos socioculturais; as novas demandas de trabalho e de profissões; o avanço de tecnologias e das ciências etc. No âmbito da fala, as alterações do léxico também podem ser evidenciadas com mais nitidez. Os indivíduos, em situações espontâneas e em condições reais de uso, seja pela busca de sentido, ou para ocasionar maior expressividade no âmbito da comunicação, estão sempre incorporando novas palavras no universo das línguas. Muitas dessas criações léxicas produzidas perduram e se estabelecem no vocabulário das línguas, outras simplesmente têm vida passageira, servindo única e tão simplesmente para a obtenção de uma força expressiva em um momento e contexto específicos. (BIDERMAN, 1978, p. 166). Um outro dado relevante sobre as formas neológicas, dá-se, o mais das vezes, pelo fato de uma competência lexical insuficiente, ocasionada no falante, em determinados contextos: as criações lexicais normalmente surgem com fins de superar essa deficiência. A rigor, é no nível da fala, onde o léxico parece adquirir maior fluidez, que normalmente se instala toda uma ordem de criações léxicas. Finalmente, a permanência de uma criação léxica numa comunidade lingüística 19 depende da necessidade sentida pelos falantes em preservá-la. Nesse sentido, é preciso concluir com Biderman que: O processo de dicionarização de um neologismo reflete a continuidade do seu uso no vocabulário geral. Ou seja: o vocábulo novo só é dicionarizado quando ele já foi aceito por toda a comunidade que fala aquela língua. (BIDERMAN,1978, p. 166). 2.2 A TEORIA DO RELATIVISMO LINGÜÍSTICO OU HIPÓTESE SAPIR-WHORF A Hipótese do Relativismo Lingüístico que brotou dos trabalhos em campo dos antropólogos Boas e Sapir, tornou-se notável na Lingüística Americana dos anos 50. Foi a partir das idéias célebres de Franz Boas, impressas no Handbook of American Indian Languages, que Sapir formulou sua problemática. (BOAS apud MARCELLESI e GARDIN, 1975, p. 29). Acreditando na coexistência entre linguagem e cultura, Boas interessou-se em descrever a gramática das línguas, definindo as categorias lingüísticas de acordo com os fenômenos observados pelos falantes das línguas tomadas como objeto de análise. Como se vê, apesar da doutrina dos etnólogos americanos ser comumente associada à doutrina dos filósofos da linguagem, ou mais especificamente à tradição humboldtiana, suas concepções, ou mesmo, a sua essência, brota do pensamento americano. Faz-se necessário, pois, sublinhar as posições em que divergem uma e outra doutrina. Nessa perspectiva, apropriamo-nos das idéias esboçadas por Marcellesi e Gardin (1975, p. 30-32): a) Os argumentos dos filósofos da linguagem são especulativos, enquanto que, toda a teoria, formulada pelos lingüistas americanos, parte de observações puramente empíricas. Tem-se aí a primeira distinção quanto ao procedimento utilizado pelos estudos na análise das línguas; 20 b) Outro aspecto que vale salientar a respeito dessas teorias é que, enquanto os filósofos exercem observação sobre as línguas européias já conhecidas por eles, os lingüistas americanos baseiam-se em dados coletados por modelos definidos por eles próprios, face ao sistema de idiomas recém descobertos. Por meio da realização desse trabalho empírico, os antropólogos puderam confrontar os dados apreendidos em função dos idiomas desconhecidos àqueles notados em línguas européias. Isto permitiu que eles chegassem à conclusão de que há diferença radical entre as línguas e as visões do mundo ameríndias e as dos europeus. É importante considerar ainda que, embora tenham sido Boas e Sapir quem primeiramente definiu o conceito-base da Relatividade Lingüística, foi Whorf quem desenvolveu a investigação; mais que isso, foi ele quem formulou o conjunto mais radical da tese. Há então pontos em que divergem os dois estudiosos. A linguagem, para Sapir (1980, p. 32), funciona como poderoso instrumento de socialização. O isomorfismo entre a língua e cultura não pode ser concebido numa visão simplista, não existe correspondência simples entre a forma de uma língua e a forma geral de uma cultura daqueles que a falam. Entende esse estudioso que o efeito organizador da experiência de mundo possui relação restrita com o léxico de uma língua. Este, por sua vez, “constitui um indicador extremamente sensível da cultura de um povo”, mas não existe, além do vocabulário, nenhum dado lingüístico que exerça um efeito modelador sob a percepção de mundo. Sapir sugere, desse modo, que há limite para a incorporação dos dados lingüísticos à cultura de um povo. Não se pode afirmar, segundo ele, que à mesma proporção que a cultura de um povo evolui, evolui também a língua. Desse modo, enquanto a cultura insere-se nos condicionamentos físicos, psíquicos coletivos e constitui uma herança da vida passada e o conjunto de reflexos e anseios de vida em sociedade, a língua evolui de modo mais lento. 21 Contrariamente, Whorf, na esteira de Humboldt, defende que é a gramática das línguas que exerce a função de moldar as idéias, que as imagens mentais são definidas, estruturadas pela língua. Assim assevera Whorf apud CARROL (1973, p. 105): A formulação de idéias não é um processo independente, estritamente racional na velha acepção [...] Dissecamos a natureza segundo diretrizes baixadas por nossas línguas nativas. As categorias e os tipos que isolamos do mundo de fenômenos, não os encontramos aí porque estão evidentes a cada observador; pelo contrário, o mundo se apresenta num fluxo caleidoscópico de impressões que têm de ser organizadas por nossas mentes – e isso quer dizer principalmente pelos sistemas lingüísticos em nossas mentes [...]. A respeito da Hipótese do Relativismo Lingüístico, Lyons (1987, p. 276) assinala: A hipótese Sapir-Whorf, como normalmente é apresentada, combina determinismo lingüístico [“a linguagem determina o pensamento”] com relatividade lingüística [“Não há limites para a diversidade estrutural das línguas”]. A teoria Sapir-Whorf, em essência, combate a impressão ilegítima de que as línguas comportam modelos universais de significação. Além disso, desfaz a concepção de que a linguagem é um “decalque do pensamento” - noção inclusive muito recorrente em vários manuais didáticos para o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. É lícito então afirmar, segundo as premissas dessa teoria, que as línguas delimitam a experiência vivida pelos falantes de uma determinada sociedade. Os impasses, as investidas maiores no campo da Lingüística, da Antropolingüística e da Psicolingüística nas décadas de 50 e 60, parecem ter sido motivados pelo problema exposto na Hipótese do Relativismo Lingüístico de que “seriam as estruturas gramatical e lexical de uma língua o resultado do pensamento, do domínio cultural de um povo”, ou, de forma diferente, se seria “o pensamento de um grupo, as delineações socioculturais, responsáveis por determinar as estruturas de uma língua”. Corroborando ou divergindo dos princípios em que 22 se baseia tal doutrina, muitos trabalhos foram realizados na época com o intuito de combater essas noções ou mesmo de reformulá-las. Embora sejam múltiplas as dimensões tomadas em torno das proposições que envolvem o conceito de cultura, envolvendo a sua relação com a língua, é válido assinalar que o levantamento de vários estudos a esse respeito revela um ponto em que convergem as distintas concepções, o aspecto de equilíbrio circunscrito entre as posições está na referência à questão da significação. Antropólogos, lingüistas e psicolingüistas têm concordado com a noção de que há, em toda e qualquer cultura, um índice de códigos, lingüística e semioticamente falando, que asseguram a relação comunicativa entre os membros de um grupo social. Tais códigos são fabricados, estabelecidos na própria estrutura social. Nesse sentido, os indivíduos devem interpretá-los e segui-los para que assim sejam aceitos em sociedade. Não é motivo de controvérsias também considerar, nesse sentido, o fato de que a linguagem constitui a expressão da realidade cultural e social de um grupo. Toda a vida dos signos está imbuída numa semiose que envolve o estatuto de estrutura gramatical e semântico de uma língua. É por essa razão que ao estudarmos a cultura de um grupo, o exercício de simbolização presente entre uma e outra sociedade, conseguimos chegar mais perto da compreensão do modo de vida de um povo, de seus hábitos de vida, seu conjunto de crenças, construídas ao longo do tempo. Difícil é precisar o momento em que se contrai língua e cultura, o elemento em que uma ou outra grandeza age primeiro - se é a língua que influencia o modo de pensar dos indivíduos ou se é a cultura que atua diretamente na língua. Ou, mais precisamente, qual o limite da intervenção das categorias lingüísticas no pensamento das pessoas, dos falantes de uma língua, ou vice-versa. 23 Importa observar que, uma e outra, língua e cultura são realidades que se complementam. Diante dessas posições, é possível admitir que a colisão entre essas duas grandezas ocorre quando o indivíduo falante exterioriza um conceito, antes formado nas estruturas psíquicas para, posteriormente, exteriorizá-lo, torná-lo público por meio de um recorte lingüístico daquilo que observa do mundo objetivo. A posição proposta é a de que língua e cultura constituem realidades distintas, mas que coexistem em determinado momento. No que diz respeito à Hipótese Sapir-Whorf, destaquese a versão mais fraca da hipótese, que considera o léxico como o elemento lingüístico, o qual constitui um indicador sensível à cultura de um povo, diferente do nível sintático e fonológico das línguas. A versão forte da Hipótese do Relavismo Lingüístico foi desenvolvida por Whorf, que desenvolveu as idéias do seu mestre, postulando que a língua era um instrumento de organização para a atividade mental dos indivíduos de organização. A relação entre língua e pensamento de um povo revelar-se-ia presente em modelos de codificação lingüística, verbal ou não, que fazem parte dos jogos comunicativos. A língua tece a organização do conteúdo informacional contido nas mentes do indivíduo e traz, em seus contornos formais, os traços culturais particulares da sociedade. Compreendendo a inter-relação entre língua e cultura na construção de uma realidade, pode-se compreender melhor, também, a visão que o indivíduo constrói de si mesmo. Em outras palavras, o modo como o indivíduo se percebe está relacionado diretamente ao modo como ele estabelece e mantém relação com outros indivíduos e com o mundo. Finalmente, a Hipótese Sapir-Whorf fornece uma base sólida à investigação da relação entre língua e cultura, enquanto construção de uma realidade. 24 De acordo com as questões acima levantadas, e considerando-se os pressupostos que se assentam na interpretação dos aspectos antropossociais da análise, segue-se à discussão da Teoria dos Campos Lexicais. 2.3 CAMPOS LÉXICOS Um termo dado é como o centro de uma constelação, o ponto para onde convergem outros termos coordenados cuja soma é indefinida. Saussure A Teoria dos Campos Lexicais tem uma longa tradição na Lingüística Românica. Na Antiguidade Clássica, encontra-se esparsa bibliografia de dicionários onomásticos. O Thesauru of English Words and Phrases, publicado em 1852 por P. M. Roget, constitui o primeiro importante dicionário ordenado por grupos conceituais, seguindo a lógica da Onomasiologia. (ROGET apud GECKELER, 1976, p. 113). No final do séc. XX, com o florescimento dos estudos na área da Geografia Lingüística e aumento de interesse pelos problemas em torno do léxico, produziram-se grandes avanços na área da Semântica, indo em direção à Lexicografia e respectivamente da própria Lexicologia. A Teoria dos Campos adquiriu grande êxito com as pesquisas na área de Lexicologia a partir dos trabalhos de J. Trier e J. L. Weisgeber. Partidários da doutrina de Humboldt, esses lingüistas reafirmaram a tese da “língua, espelho do povo que a fala”. Para eles, tanto a experiência de mundo exterior, vale dizer da cultura, como a própria estruturação do pensamento, são motivadas pela linguagem. Pensavam, pois, que os “campos semânticos” seriam organizados de modo particular, segundo cada língua. Daí, essa teoria passou a ser descrita como neo-humboltiana, como afirma Ullmann (1964). 25 Assim seguiriam, na esteira de Humboldt, outros lingüistas, preocupados com as estruturas psíquicas e socioculturais dos “campos semânticos”. Para eles, os campos semânticos reproduzem essas estruturas, sistematicamente, variando em função das características particulares de cada língua. O semanticista S. Ullmann (1964, p. 522-523) enfatiza o papel que a Teoria dos Campos teve para o desenvolvimento da Semântica Moderna, o qual se chegaria a partir das realizações de Trier. A Teoria dos Campos teve importância, no entender de Ullmann, pelas razões seguintes: a) “conseguiu introduzir um método verdadeiramente estrutural, num ramo da lingüística”; b) estabeleceu o conceito dos campos associativos, essencial para a resolução de problemas antes ignorados ou desapercebidos, tais como a questão da estrutura significativa global e o contexto, imediatamente relacionado a ela; c) revelou-se como mecanismo de investigação poderoso para a complexa questão da relação entre língua e pensamento. E do ponto de vista da terceira questão, continua o lingüista: Um campo semântico não reflete apenas as idéias, os valores e as perspectivas da sociedade contemporânea; cristaliza-as e perpetua-as também, transmite às gerações vindouras uma análise já elaborada da experiência através da qual será visto o mundo, até que a análise se torne tão palpavelmente inadequada e antiquada que todo o campo tenha que ser refeito. (ULLMANN, 1964, p. 523). Embora tenha sido Trier o grande cultor da Teoria dos Campos, as referências bibliográficas do período anterior aos de seus trabalhos, traziam formulações que já atentavam para a existência dos “campos lingüísticos”. E. Tegnér, por exemplo, em trabalho de 1874, antecipa a noção de campo lingüístico, usando o termo “campo”. Em 1910, Meyer também fala do assunto. Define os campos como “sistemas semânticos” que, segundo ele, são como “la agrupación de um número limitado de 26 expresiones desde um punto de vista individual”. O autor distingue ainda três tipos de sistemas semânticos: “naturais”, “artificiais” e “semiartificiais”. (MEYER apud GECKELER, 1976, p. 100). A definição elaborada por Ipsen, em 1924, foi de fato a que mais claramente tratava da questão dos campos, anteriormente a Trier. Na fórmula de Ipsen, as palavras de uma língua estariam todas reunidas em “campos semânticos”, “como en un mosaico, una palabra se une aqui a la outra, cada una limitada de diferente manera, pero de modo que los contornos queden acoplados y todas juntas queden englobadas en una unidad semántica de orden superior, sin caer en una oscura abstracción”. (IPSEN apud GECKELER, 1976, p. 103). Posteriormente, alguns dos princípios estruturais presentes na doutrina de Ipsen e algumas linhas do pensamento de Saussure serão ajustados à nova doutrina de J. Trier. É o próprio Trier quem confessa a influência dos estudos anteriores em sua teoria: No sabría ya decir si la teoria Del campo la he desarrolado sólo con ayuda de SAUSSURE o si me han influido también líneas de Ipsen...En el conjunto de mis ideas me siento especialmente influenciado por FERDINAND DE SAUSSURE y especialmente ligado a LEO WEISGERBER. (TRIER apud GECKELER, 1976, p. 103) De Saussure, Trier se baseia mais particularmente na idéia de que os signos lingüísticos delimitam-se uns aos outros, ou seja, é na confluência dos elementos que se obtém a significação. Todos os signos apresentam-se concatenados por uma rede de relações significativas que os ligam sempre a outros termos do sistema. Consiste, na verdade, numa teia formada de infinitas relações paradigmáticas. (PONTES, 2002b, p.56). A idéia basilar que fundamenta todo o pensamento trieriano é a “articulação”. Para Trier, as palavras formam, a partir de um campo conceitual, uma mútua dependência. Além disso, por trás de toda a estrutura, do conjunto lexical, há sempre uma significação. A essência significativa é, aliás, o resultado do conteúdo total, globalizado. (TRIER apud GECKELER, 1976, p. 119). 27 A concepção de campo de Trier e L. Weisgesber continuaria influenciando mais tarde na produção de importantes investigações lingüísticas. A primeira delas seria a de Bally, que introduziria o conceito de campo associativo, aprofundando o estudo referente às séries associativas ou paradigmáticas saussureanas, que apontavam às noções de campo. O semanticista Ullman (1964, p. 500-501), sintetizando as idéias de campo associativo formuladas por Bally, argumenta: O campo associativo de uma palavra é formado por uma intrincada rede de associações, baseadas algumas na semelhança, outras na contigüidade, surgindo umas entre sentidos, outras entre nomes, outras ainda entre ambos. O campo é por definição aberto, e algumas das associações estão condenadas a ser subjetivas, embora as mais centrais sejam em larga medida as mesmas para a maioria dos locutores. A teoria dos campos impressionou vivamente alguns dos discípulos de Trier e fez florescer diferentes definições rivais dos campos semânticos, diante dos conceitos preconizados pelo fundador. Uma das críticas mais recorrentes, com relação à doutrina trieriana, é com relação às terminologias por ele utilizadas. Critica-se, fundamentalmente, que em suas investigações Trier utiliza os termos “campo léxico”, “esfera conceitual” e “campo lingüístico”, sem estabelecer distinções dos limites de uso de cada um dos termos em específico, causando, pois, uma grande imprecisão terminológica. Nos anos 50, a teoria de campo, nas linhas de Trier, seria reavivada pela experiência teórica e prática de L. Weisgerber. Não foi sem razão, pois, que a doutrina passou a ser considerada na Lingüística como Trier-Weisgerber (GECKELER, 1976, p. 125). Propondo uma definição de campo semelhante à dos “campos léxicos” de Trier, Weisgerber, no círculo lingüístico “Lenguaje y Comunidad”, realizado em 1956, introduz o conceito de “esfera conceitual”. Definindo com mais precisão o método de análise lingüística, 28 o autor fornece classificações, de acordo com a essência da “articulação” instituída para o campo léxico. Na vanguarda da Lexicologia francesa, o lingüista G. Matoré apud Ullmann (1964, p. 526), também conduz uma abordagem sobre os campos, pondo em enfoque a questão da interrelação entre língua e sociedade. Em 1953, Matoré publica La métode em lexicologie um ano após ter publicado a tese de doutorado Le vocabulaire et la société sous Louis Philippe. Dando uma roupagem sociológica ao método, Matoré previa uma Lexicologia concebida sob as diretrizes da Sociologia. Introduziu, assim, o conceito de “palavras-chave e palavrastestemunhas” para descrever a estrutura social. Para o lingüista francês, a partir do vocabulário de uma língua, poder-se-ia conhecer as características específicas de uma comunidade. Embora tenha ido longe demais no problema da classificação da Lexicologia, as suas considerações são pertinentes no que tange à dimensão social da língua, fato é que o léxico consiste no patrimônio social de uma sociedade. Diante das diferentes abordagens consideradas, pode-se entender que a análise da estrutura vocabular de uma sociedade depreende o universo conceitual, a visão de mundo que se reflete nos contornos formais da língua. Um campo lingüístico é, na verdade, um sistema de idéias, de conceitos os quais se formam em função de uma cultura e de uma sociedade. Os diferentes conceitos levantados pelos lingüistas em torno da Teoria dos Campos, referendam a inter-relação entre língua, cultura e sociedade e fornecem uma valiosa contribuição aos estudos lexicais, uma vez que se inserem numa abordagem sócioetnolingüística. Nessa perspectiva, apresentar-se-á, no capítulo seguinte, uma revisão sobre o conceito de cultura, que converge com a natureza desse trabalho. 29 3 CULTURA: UM CONCEITO CONTROVERSO A cultura ultrapassa a natureza, mas está profundamente enraizada nela. Kaj birket-Smith A preocupação e o interesse do homem pelo homem não é privilégio das sociedades mais recentes. “O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo” – observa Laplatine (1988). A verificação de que as sociedades divergem entre si quanto ao modo de vida eclodiu nos primórdios da humanidade, suscitando a busca pelo entendimento e compreensão da história e dos perfis humanos, ou mais especificamente, das culturas humanas. Pode-se dizer, então, que a elaboração do pensamento do homem sobre ele mesmo é tão antiga quanto a existência da humanidade, mas só modernamente o estudo voltado à descrição e comparação dos povos, passou a constituir um saber científico, tomando como objeto de conhecimento o “próprio homem”. É no final do séc. XVIII que se tem, pela primeira vez, um estudo sobre as “culturas humanas”, com métodos até então utilizados apenas na área da Física ou da Biologia. Desde a primeira concepção de cultura, formulada por E. B. Tylor (1871), o conceito de cultura tem sofrido ampliações ou reformulações por parte de pensadores e investigadores interessados em construir uma nova idéia do que seja cultura. Fato é que, tendo passado mais de dois séculos da primeira definição do conceito, quando já poderia existir um certo consenso entre a comunidade científica sobre o problema, percebe-se, na realidade, que as polêmicas sobre a questão da cultura têm se tornado cada vez maiores entre os historiadores, antropólogos e sociólogos e demais cientistas das ciências humanas. Isso atesta que o problema está longe de se extinguir. As discussões mais atuais sobre cultura envolvem tanto aspectos intimamente relacionados às instituições sociais, remetendo a preocupações classicamente associadas ao 30 assunto, tais como artes plásticas, arquitetura, literatura, manifestações lúdicas e religião, mas também se voltam a questões relacionadas à identidade, ou seja, aos sistemas de crenças e valores, presentes nas relações sociais institucionalizadas. A interpretação e aplicação do conceito tem variado de acordo com o método e da orientação teórica assumida pelo pesquisador. De fato, todo discurso científico deve demonstrar uma determinada posição a respeito do tema problematizado – “não porque haja somente uma direção a percorrer com proveito, mas porque há muitas: é necessário escolher”. (GEERTZ, 1976, p. 15). Em geral, a primeira preocupação dos cientistas em definir o que é cultura, diz respeito à questão de sua origem. Essa remete a outras duas que estão sempre presentes nas formulações dos analistas, quais sejam: “o que faz do homem um ser cultural?” e “o que é permitido através da cultura?”. Embora muitos autores atribuam peso distinto ao conceito de cultura, parece haver consenso pelo menos no tocante a duas noções: primeiro, que “não existe sociedade sem cultura” e segundo, um dos aspectos mais importantes e que está na base desse conceito, é a “significação”. Um dos mais célebres antropólogos franceses, Claude Levi Strauss (1976, p. 45), assinalou que a cultura teria seu surgimento a partir do momento em que o homem convencionou a primeira norma, ou seja, a “proibição do incesto”, característica mais ou menos comum em todas as sociedades humanas. Nas sociedades consideradas “civilizadas”, o grau de proibição das relações sexuais entre o homem e as categorias de mulheres da mesma família estendem-se à mãe, à filha e à irmã, como se é sabido.. Com efeito, a capacidade de criar, de estabelecer designações, elaborações culturais é um processo inerente à capacidade que o homem tem de estruturar em seu pensamento, a partir de um conjunto de doutrinas, de unidades simbólicas, as manifestações empíricas de 31 uma determinada sociedade. Essas seriam mantidas de forma muitas vezes “inconsciente” na mente dos indivíduos. Poder-se-ia, de maneira simplificada, dizer com Adamson Hoebel (1952, p. 212): “A capacidade cultural do homem é conseqüência da complexidade e plasticidade do seu sistema nervoso”. Somente o homem atingiu tal nível de complexidade e adaptabilidade que permitiu o desenvolvimento de uma elaboração cultural que se não é a principal, é uma das fontes mais extraordinárias da inteligência humana, qual seja a capacidade de comunicar-se com outros indivíduos a partir da linguagem. A tese central de Hoebel é mostrar que é a capacidade psíquica e orgânica presente no homem o fator que o difere de outros animais. É, pois, com essa capacidade que o indivíduo pode controlar coisas tão simples como a hora, a caça e mesmo produzir determinados artefatos materiais e simbólicos. Aquilo que é considerado arte: pintura, escultura, etc, enfim, pode realizar determinadas intervenções na natureza, de diferentes proporções. Pelo exposto, dá para ter uma idéia da dimensão do problema que é definir cultura. A noção de cultura se estende a vários domínios da existência humana. Envolve tanto a dimensão psíquica ou racional do homem, como também o aspecto social e, conseqüentemente, os valores materiais e espirituais que dizem respeito às qualidades inerentes ao homem. (PONTES, 2002a, p. 72). Essa pesquisa não busca trazer respostas definitivas, nem muito menos julgar ou analisar criticamente uma ou outra definição de cultura, tentando justificar lacunas ou desacertos. Contudo, acredita-se que as diferentes posições a respeito do tema podem servir ao embasamento teórico frente à questão da inter-relação existente entre cultura, língua e sociedade. A abordagem baseia-se na concepção de cultura formulada por Clifford Geertz (1978, p. 15), que caracteriza a cultura como “sistema simbólico”. O autor defende um conceito de 32 cultura essencialmente semiótico, através do qual os símbolos e significados são partilhados pelas pessoas que convivem num determinado sistema cultural. Esses devem ser vistos, na concepção de Geertz, não através de uma descrição densa, mas “semanticamente densa”. E na trilha de Marx Weber, Geertz declara: o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 1978, p. 15). Essa procura de significado, na concepção do autor, está em extrair de um evento ou práxis social o sentido, até que se possa compreender o valor que está por trás de um acontecimento, de uma estrutura simbólico-significativa, presente em qualquer cultura, em qualquer sociedade. E concebendo a cultura numa estrutura que se opera através de “signos interpretáveis”, Geertz continua: a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade. (Ibid, p. 24). Deve-se atentar, pois, para o fato de que os símbolos se constituem num universo particular de cada cultura. A interpretação de cada fenômeno cultural, um gesto, um comportamento, por mais simples que aparente ser, deverá ser visto ou interpretado em função do que a cultura estabeleceu para si, em termos de implicação e sentido. Assim, cada cultura, cada grupo social em específico ou “comunidade cultural” estabelece as maneiras de agir, de interpretar ou conceber uma realidade e a forma de comunicação que se deve estabelecer entre os seus atores, usuários. Vê-se, assim, que a cultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas e que “os atos são marcos determinados”. Um exemplo disso é que, ao 33 encontrar-se em terras alheias, o indivíduo logo se depara com tradições diferentes da qual não está acostumado e sente-se, de certa forma, “perdido” no novo ambiente. Em outras palavras, sem entender a sociedade e a cultura com suas próprias relações sociais e valores, é impossível interpretar e entender uma realidade divergente e também muito difícil conviver com ela. (DA MATTA, 1991, p. 34). 3.1 NORMAS E PADRÕES SÓCIOCULTURAIS A participação dos indivíduos na cultura de uma sociedade não pode ser encarada como um evento fortuito e fora de contexto. Como considera Hoebel (1952, p. 212), os padrões integrados de comportamento são fundamentados a partir dos “hábitos de massa”. Qualquer evento criativo e manifesto não pode, em hipótese alguma, ser classificado como parte da cultura da sociedade, se fosse conhecido apenas por um indivíduo. É o aspecto de coletividade um dado primordial que caracteriza a existência de todas as culturas. Na vida em sociedade, os indivíduos estão sujeitos a submeter-se a certos padrões de comportamentos que se configuram em “hábitos de comportamento”. É o que afirma categoricamente Hoebel (op. cit., p. 212), embasando-se nas idéias de William Graham Sumner: Cada nôvo indivíduo, quando nasce ou entra no grupo, é submetido ao processo de treinamento ou doutrinação, hoje denominado enculturação [...] Os indivíduos são modelados mais ou menos de maneira uniforme segundo o molde comum. Um mínimo de padronização é o destino de todos. (sic). Contudo, é preciso salientar que as normas não se aplicam uniformemente por toda uma sociedade. Existem determinados modelos de conduta que valem sem distinção para todos os membros de uma sociedade, são as chamadas normas universais. Essas, como a 34 própria denominação indica, dizem respeito às convenções que se aplicam de maneira global aos membros da sociedade, e impossibilitam desvios de conduta. É oportuno dizer que a proibição do incesto, de que já falamos aqui, é um caso de norma universal. Observe-se ainda que nenhuma sociedade é homogênea. Existem padrões culturais que variam de acordo com cada sociedade em específico. Determinadas distinções sociais são fundamentadas em função das variáveis como sexo e idade. Assim, as distinções presentes nas relações baseadas nessas duas categorias podem ser consideradas como norma universal. Contudo, é a dinâmica social interna que define os traços específicos de comportamento para as relações que se estabelecem entre os sexos e entre os grupos de idades e mesmo de gerações diferentes. “Isto significa que existem subgrupos internos em toda sociedade. Cada um deles tem suas próprias características de comportamento, as quais se aplicam apenas aos seus membros. Essas normas são conhecidas como específicas”. (HOEBEL, 1952, p. 213). Assim, embora algumas delas possam ser partilhadas por todos os adultos é bem possível que as mesmas não sejam compartilhadas por crianças, do mesmo modo que muitas idéias e atividades adultas são partilhadas apenas pelos membros de certos agrupamentos em sociedade, como homens, mulheres ou artífices especializados. (LINTON, 1945, p. 48). Uma outra questão importante a ser considerada é que os elementos partilhados socialmente não obedecem a uma estrutura permanente e estática, alheia a inovações no eixo do tempo. Muito pelo contrário, as culturas estão sujeitas a mudanças e elas se alteraram com o passar do tempo pura e simplesmente porque a humanidade, no ensejo de empreender novos inventos, angariar novas conquistas, está sempre redefinindo e reformulando seus conceitos, suas visões face ao mundo. Não é preciso dizer que a realidade da sociedade brasileira no séc. XIX é profundamente diferente da que temos hoje em dia, seja no seu aspecto econômico e político e 35 geográfico, seja quanto ao desenvolvimento nas relações de classe. Enfim, toda a conjuntura sociocultural da sociedade brasileira mudou e muito de lá para cá. Como ressalta Tomasello (2003, p. 5), “as tradições e os artefatos culturais dos seres humanos acumulam modificações ao longo do tempo”. Para ele, muito das mudanças culturais significativas nas sociedades, tais como as que são operadas no sistema religioso, político e econômico num grupo social, são resultantes de cooperação, “tanto simultânea como sucessiva ao longo de gerações e de muitas pessoas e de uma maneira que nenhuma pessoa ou grupo de pessoas pretendia ou teria previsto”. O axioma de Leibniz “a natureza não dá saltos” parece ser inteiramente aplicável à questão das mudanças culturais de que trata Tomasello. O fato é que as mudanças são fundamentais do ponto de vista histórico-cultural de uma sociedade. É evidente que a sociedade sofre transformações e com elas também os indivíduos incorporam mudanças, mas é correto afirmar que as transformações não ocorrem abruptamente. Com efeito, as mudanças não são fortuitas; haverá sempre uma ligação entre um evento cultural novo e um mais recente; ademais, elas são organizadas paulatinamente a partir de um processo coletivo, como já foi dito antes. A capacidade de criar tradições e artefatos materiais e acumular suas experiências exigiram do homem não só a capacidade de invenção criativa, mas também um modo de transmissão social que garantisse a sofisticação de seu aparelho cultural e impossibilitasse o retrocesso desse processo. Segundo Tomasello (Ibid., p. 6), a evolução e acumulação das experiências culturais só foi possível graças ao chamado “efeito catraca” - através do qual um produto ou prática recém-inventada preserva-se e aperfeiçoa-se até que surja uma outra forma, mais aperfeiçoada, que possa substituí-la. Desse modo, a catraca cultural consiste na atividade de atualizar o “gen cultural”, ou seja, promover a transposição da aprendizagem cognitiva de uma geração à outra. É o que diz 36 Tomasello (2003, p. 9): “O mais importante é que a evolução cultural cumulativa garante que a ontogênese cognitiva humana ocorra num meio de artefatos e práticas sociais sempre novos que, em qualquer tempo, representam algo que reúne toda a sabedoria coletiva de todo o grupo social ao longo de toda a sua história cultural”. Simplificando, a evolução cultural cumulativa é a chave para as impressionantes realizações cognitivas humanas. Todos os seres humanos estão destinados a viver num certo tipo de ambiente social para se desenvolver cognitiva e socialmente. Tal ambiente social, a cultura, é, como ressalta Tomasello (Ibid, p. 109), nada mais do que o “nicho ontogenético típico e exclusivo da espécie para o desenvolvimento humano”. Traduzindo, a organização e o pensar de uma sociedade dependem, intrinsecamente, do modo como é configurada a cultura. Idéia bastante semelhante a essa é a que é apresentada por Kroeber apud Laraia (1975, p. 70), ainda que numa perspectiva diferente. Este define a cultura como sendo “um meio de adaptação aos diferentes ambientes”. Para ele, os comportamentos seguem um curso determinado pela cultura e o homem é um ser modulado pela cultura, ou seja, age de acordo com o modelo de cultura que lhe foi transmitido. Ele necessita, pois, de construir seu “habitat” social. E a cultura permite ao homem não somente adaptar-se em seu meio, mas também este meio adaptar-se ao próprio homem, as suas necessidades e projetos, passando por um processo de aprendizagem social. A Teoria de Tomasello parte do princípio de que a cognição humana apresenta qualidades inerentes e distintas das de outras espécies primatas porque é 1) filogética (tem raízes no processo evolutivo do homem); é ontogenética (a aprendizagem cultural não cessa, acompanha o homem do nascimento até a morte) e 3) é histórica (o homem constrói artefatos ao longo do tempo, acumula-os e insere sempre algo de novo em sua cultura). O ponto central que norteia toda essa teoria é que a cognição é um processo que se dá socialmente. O conhecimento é partilhado e construído a partir da interação. A cognição não 37 está na mente, ela é produto do reconhecimento do outro, estabelece-se através de um vínculo que se forma historicamente. É por meio de uma cultura que o indivíduo constrói sua identidade, enquanto se reconhece através do outro. Estar inserido numa coletividade é o que faz dele, ao mesmo tempo, um ser individual. Nesse contexto, o sistema cognitivo humano é extremamente eficaz no sentido de promover uma aprendizagem colaborativa. A humanidade desenvolveu um sistema de transmissão cultural e cumulativa que pode ser entendida, nesse caso, como “uma forma particularmente poderosa de inventividade colaborativa ou sociogênese”. (TOMASELLO, 2003, p. 56). A primeira forma de sociogênese consiste no resultado que se obtém através do “efeito catraca” que, como já foi dito, consiste na herança e reformulação de uma prática ou de artefato simbólico e lingüístico. A segunda diz respeito à colaboração mútua existente entre os indivíduos, na tentativa de solucionar um problema. O processo de sociogênese humana ocorre toda vez que é criada alguma coisa, através da interação social cooperativa. Nesse sentido, a aprendizagem cultural humana apresenta-se em três níveis: “imitação”, “instrução” e “colaboração”. Os tipos básicos de aprendizagem cultural, sobre os quais referiu-se acima, “são particularmente poderosos porque se baseiam na adaptação cognitiva exclusivamente humana para compreender os outros como seres intencionais iguais a si mesmo [...]”. (Ibid., p. 54). Conclui-se que a capacidade exclusiva, existente apenas no homem e que o torna capaz de realizar conjuntamente atividades e novas aprendizagens e de tirar proveito de suas experiências sociocognitivas, é a presença da linguagem. Assim, o desenvolvimento cognitivo é resultado das relações possibilitadas pelo uso da linguagem, da mesma forma que o desenvolvimento lingüístico só é permitido a partir da interação entre os indivíduos, através das experiências comunicativas. A língua, em função dos princípios que acabamos de afirmar, 38 viabiliza as chances de perspectiva e elaboração de conhecimento e compreensão do mundo objetivo. Tendo-se delineado os postulados teóricos fundamentais dos lingüistas e antropólogos, os quais procuraram estabelecer a relação entre língua, cultura e sociedade, far-se-á uma revisão sucinta da Literatura de Cordel, a fim de situar o corpus dessa pesquisa. 39 4 A LITERATURA DE CORDEL Chamem um cantador, sertanejo, um desses caboclos distorcidos, de alpecartas de couro e peçam-lhe uma cantiga. Então sim. Poesia é no povo (...) Celso de Magalhães A Literatura Popular, chamada pelos franceses de “colportage”, tem o seu marco inicial pela divulgação de histórias tradicionais, as ditas novelas de cavalaria. Ao lado dessas novelas, narrativas de amor, de guerras, de viagens, verdadeiras epopéias, passaram a surgir, no mesmo tipo de poesia e feito popular, a difusão de fatos recentes, de acontecimentos sociais que iam adquirindo cada vez mais a fisionomia do povo e “caindo em seu gosto”. O Cordel traduzia-se assim como fonte de informação, bem antes do jornal existir. A origem do nome Cordel está relacionada à forma como eram vistos os folhetos dependurados num cordel (corda) ou barbante quando expostos nas casas ou feiras livres onde eram vendidos. Também em mercados, romarias e praças públicas, portas de engraxataria, os folhetos eram encarreirados e presos a uma corda para serem vendidos, como hoje ainda o são. É comum encontrar nesses locais o próprio vendedor, poeta ou cantador, que canta ou recita versos e seduz o seu público que se aproxima do artista querendo ouvir as suas histórias. Para tornar a narrativa ainda mais atraente, o cantador muitas vezes a interrompe, causando expectativa por parte do ouvinte que, para conhecer o final da história, deverá “comprar o folheto”. A Literatura de Cordel tem seu surgimento no quadro das literaturas ibéricas. No Nordeste, tem raízes lusitanas, expande-se e mantém-se entre nós, assim, como declara Cascudo (1978, p. 170): “Esses livros vêm do século XV, do XVI, XVII e continuam sendo reimpressos em Portugal e Brasil, com um mercado consumidor como nenhuma glória 40 intelectual letrada ousou possuir”. Marcada pelo conjunto de características que traduzem o seu aspecto volante, além da temática que desenvolve, é por meio da linguagem que a Literatura de Cordel mais evidencia o universo vocabular e típico do homem nordestino. Segundo Batista (1977, p. 4), fatores de formação social contribuíram para que a literatura oral “tomasse pé” no nordeste - a organização da sociedade patriarcal; o surgimento de manifestações messiânicas; o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos; as secas periódicas, provocando desequilíbrios econômicos e sociais; as lutas de família, entre outros, para que se verificasse o surgimento de grupos cantadores como manifestação do pensamento coletivo, ou seja, da Cultura Popular. Além do Nordeste, podemos encontrar tipografias divulgadoras dos folhetos em outros estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, de maneira esparsa. Em Belém do Pará também se pode encontrar uma produção bastante considerável. A Literatura de Cordel passa a ser modelo de identificação de massa popular, usando linguagem tipicamente do povo e mantendo distância de toda literatura que siga os moldes de composição e de métrica, afastando-se totalmente da literatura tradicional. Cascudo (1978, p. 168), sobre o sentido verdadeiro da Literatura Popular, assim considera: “A literatura oral é a própria mentalidade da massa coletiva, foliona, religiosa, crédula, inimiga do parasitismo fradesco e aristocrático, da ignorância bestial, da luxúria e simonia vulgares”. Esse escritor norte-riograndense da Cultura Popular expressou, em termos gerais, que o que torna a Literatura de Cordel viva ainda nos dias de hoje, apesar de todas as dificuldades de mantê-la viva, é a tradição: 41 É uma força obscura e poderosa, fazendo a transmissão, pela oralidade, de geração a geração. Ninguém defende essa virtude mnemônica. Nem há um exercício para a sua perpetuação. Antes todos negam possuir o patrimônio da história e anedotas, mitos e fábula. (CASCUDO, 1978. p. 168). Considere-se o Cordel, uma literatura que une o artesanato ao fenômeno social, porque, na verdade, resgata os aspectos vivos do mundo. Não obstante, por meio de uma linguagem bastante simples, comunica-se com o povo, numa maneira particular dos contadores de história permitindo a informação. O vocabulário típico, cujo conteúdo semântico é bastante peculiar, reflete o repertório vocabular presente nas feiras livres do nordeste. O período de maior culminância da Literatura de Cordel no Brasil foi entre as décadas de quarenta e cinqüenta, época que coincide com o predomínio do governo de Getúlio Vargas. Naturalmente, há uma significativa produção de folhetos, versando fatos importantes, ligados a grandes personalidades políticas da época, entre as quais o próprio Vargas. (COSTA et al., 1978, p. 19). Mas, por volta de 1958 o Cordel nordestino atravessa um período de queda na produção, é a chamada “crise do Cordel”. O número de tiragens e, conseqüentemente, o de gráficas especializadas e de autores e/ou ilustradores, bem como todos os processos ligados à circulação da poesia popular, ficariam prejudicados. Entre as causas possíveis dessa crise, urge apontar a disseminação dos meios de comunicação de massa, tais como o rádio e a televisão e a incorporação de valores advindos de uma cultura urbana, pelas populações rurais, público de excelência. Estando quase suprimida ou esquecida durante décadas, a literatura de folheto passa por uma reviravolta, em inícios da década de 70, garantindo novamente sucesso junto ao público. Nesse período, a crescente indústria da comunicação passa a se valer desse tipo de manifestação literária e grupos artísticos tentam recriá-la; fazem-se inclusive filmes, novelas, 42 explorando a sua temática e linguagem. Desse modo, a publicação de Cordéis aumentava gradativamente. Apesar de a Literatura de Cordel expressar a cosmovisão das massas de origem nordestina e raízes do povo e em linguagem do povo, podendo ser vista como um modelo de identificação dessas massas, ela não constitui objeto apenas de interesse ao público popular. Os relatos históricos em versos, passaram a despertar a atenção de jornalistas e professores, por volta das décadas de 60 e 70, inclusive de teóricos de outras nacionalidades que não a brasileira, como Mark J. Curran, Candance Slater, Raymond Cantel ou Joseph M. Luyten (SARAIVA, 2004, p.127). O fato é que o Cordel passaria a ser visto como um instrumento de informação ou jornalismo popular, nos qual se versava os assuntos do cotidiano das massas. Desde então os estudiosos tratariam a Literatura de Cordel como crônica poética e histórica do século XX. Um dos pontos que mais chamou a atenção desses cientistas é o estilo particular do cordelista, que consegue reunir na composição poética uma mistura de fato e ficção. O poeta popular, ao mesmo tempo em que relata fatos transcorridos no dia-a-dia, vale-se do poder de criação e de certa liberdade para expressar os dados históricos. Na crônica de Cordel o poeta não emite a notícia de maneira imparcial, como ocorre no jornalismo típico. A transmissão de qualquer acontecimento é sempre projetada sob o olhar crítico do poeta, que compartilha com os valores místicos ou religiosos de seu público. Significativas são as afirmações de Mark J. Curran (2004, p. 562), ao comentar sobre os processos históricos que movem o discurso no Cordel. Esse cientista da Cultura Popular atenta para o processo de inventividade literária na crônica histórica e popular, referindo-se ao modo como o poeta consegue mesclar “verdade histórica” e “ficção”: 43 [...]o poeta cordeliano nem pode nem poderá tratar o grande acontecido como um fenômeno jornalístico isolado. Ele vê o evento sob a perspectiva de sua própria cosmovisão, e igualmente importante, da sua tradição literária popular, isso é, da tradição cordeliana total. Por isso, escreverá utilizando uma linguagem popular, às vezes emprestada do romance, aquela narração cordeliana de amor, sofrimento e aventura de discurso heróico e de ficção. [...]. Desde o início do Cordel foram os pesquisadores, folcloristas e poetas populares que ajudaram a preservar a memória de pelo menos um século da história do povo nordestino. Entre eles estão os “imortais” Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista, Manoel Tomas de Assiz, Zé Vicente, João Martins de Ataíde, Cuíca de Santo Amaro, Rodolfo Coelho Cavalcante, José Soares Franklim Maxado, Manoel d’Almeida, Severino Borges da Silva; os pesquisadores e folcloristas brasileiros, Théo Brandão, Átila Almeida, Sebastião Nunes Batista, Orígenes Lessa, Veríssimo Melo e Mário Souto Maior, os maiores expoentes da cultura popular. De modo efetivo, o folheto de época tem testemunhado os fatos relevantes que atravessam a História do Brasil e passa a servir como documento vivo de cem anos de realidade do país. Atualmente, ainda que com uma produção literária mais esparsa, os poetas cordelistas têm conseguido superar as dificuldades e a falta de apoio por parte das instituições sociais. O fato de que a Literatura de Cordel consegue, ainda nos dias de hoje, atrair um público leitor considerável, independente do objeto de interesse, é prova fundamental de que ela representa uma necessidade a esse público, enquanto instrumento autêntico de expressão e comunicação da realidade. As observações feitas ao longo do trabalho orientaram-se no sentido de esboçar as informações fundamentais a todos àqueles que se ocupam em pesquisar a poesia popular, nos quais se incluem os dados sobre origem, função e evolução do Cordel nordestino; a variedade temática dos folhetos, o uso da linguagem na Literatura Popular. Finalmente é preciso 44 observar que a multifacetada Literatura de Cordel nordestina merece um estudo mais cuidadoso por parte daqueles que pretendem pronunciar-se a respeito. Dando procedimento à fundamentação teórica desse estudo e considerando que a mulher destaca-se com relevância nos assuntos mais versados na Literatura de Cordel, proceder-se-á a uma abordagem sobre os aspectos antropossociais dessa literatura, cujos conceitos servirão de base à análise prevista. 45 5 A MULHER NO CONTEXTO SOCIOCULTURAL Não se nasce homem ou mulher, vem-se a sê-lo. Simone de Beauvoir Discutir sobre a questão feminina no contexto da formação da sociedade brasileira, inapelavelmente nos remeterá ao tema família. Esse parece ser o eixo central, através do qual se desvelam os conflitos socioculturais, os antagonismos existentes entre os sexos, entre as classes e mesmo entre as raças, as construções ideológicas (convenções culturais). A discussão sobre a condição da mulher, nesse trabalho, reporta-se, sobretudo, ao perfil patriarcal que, na visão de um Gilberto Freire, configurou-se nas relações sociais, nos limites do engenho ou fazenda, a partir da conquista e divisão de terras brasileiras ainda no início da colonização, mas também com relação às mudanças e incorporação dos novos padrões de vida, assimilados com o intenso movimento migratório das populações rurais para as cidades no início do desenvolvimento e urbanização em nosso país. Educadas estritamente para saberem lidar com o ambiente doméstico, de modo a desenvolver um perfil próprio de esposa, as moças da classe alta e média na sociedade brasileira dos séc. XVIII e XIX viviam, desde cedo, à espera de um marido. Chegava à puberdade e já era tempo das meninas deixarem os lares, de infância tão pouco vivida, para dedicarem-se à nova vida de casadas. Alicerçado pelo ideal romântico de uma união feliz, marcada pela paixão e pela moral cristã religiosa, o casamento era para as jovens da alta e média classe de nossa sociedade, do séc. XIX, o “sonho” de realização. Para Saffiotti (1979, p. 168), foi a falta de perspectiva de um sistema educacional de qualidade, de um lado, que tornou a mulher burguesa, durante a fase de colônia e de império no Brasil, e, de outro, a falta de expectativa da sociedade para com o sexo feminino, o que a 46 tornou vulnerável à figura do homem – pai ou marido. Nas palavras da autora: “Tudo indica que a mulher branca da casa-grande, abafada pela rigidez da educação que recebia, pela falta de instrução e pelas sucessivas maternidades, submetia-se à autoridade do pai ou do marido”. Não raras vezes, essas moças eram obrigadas a casar contra a vontade, mesmo não se conformando com a escolha do esposo, feita pelo pai. Em geral, o casamento, mesmo na segunda metade do séc. XIX, dava-se com o objetivo último de usufruir vantagens econômicas e políticas, poder e prestígio social. O outro destino que se podia cumprir na vida das moças, com exceção do matrimônio, era a vida celibatária. Restava, pois, tomar para si ou a vida de solteira, junto aos pais, ou a vida religiosa num convento. Ter uma “vida de solteira” era para a mulher da época, nessas instâncias, bastante desvantajoso, uma vez que teria de continuar a mercê de seu pai e dependente financeiramente deste, impossibilitada de ter vida pública, a não ser em companhia da mãe, além disso, não usufruiria seu papel sagrado de mulher (esposa e mãe), tendo apenas o consolo de poder cuidar dos sobrinhos. (STEIN, 1984, p. 30). Como é sabido, a maternidade era estimulada e verdadeiramente glorificada pela Igreja, mas apenas para a mulher casada. A mãe solteira (note-se que não há uma correspondência do termo no masculino - pai solteiro) carregaria o peso da culpa e estaria exposta à censura, em geral acompanhada de obstáculos que sucedia a todas as mulheres nessas condições. Enclausurar as filhas desobedientes em conventos foi, para os pais da classe dominante, a solução ideal para que essas se conservassem ainda donzelas. “Não eram raros os casos de internamento de moças solteironas em conventos, quando o pai suspeitava de sua má conduta e, embora menos freqüentes, maridos havia que para aquelas instituições mandavam as esposas inconvenientes”. (SAFFIOTI, 1979, p. 169). 47 Vê-se, por conseguinte, que o único destino satisfatório para a mulher perante a sociedade é o de entregar-se à vida de casada, de total obediência ao marido. 5.1 AS MULHERES NO SERTÃO NORDESTINO No Sertão nordestino, foi hábito costumeiro as nubentes mostrarem seus lençóis íntimos aos parentes, como prova de que tinham sido desfloradas pelo esposo nas núpcias. Se não exibisse os panos, aparecia logo o prognóstico, - “Aquela que não mostra os panos”, como que pondo em dúvida a condição casta da nubente. A exibição da prova de virgindade ocorreu do Rio Grande do Norte a Alagoas, e muito provavelmente, para o norte e para o sul dessa região. (CASCUDO, 1963). Nessa região, onde as diferenças entre os papéis feminino e masculino foram ainda mais cristalizadas pelo tipo de organização patriarcal que se estabeleceu na região, cuja idealidade repousava na vontade masculina, não era de se estranhar a aceitação resignada por parte da mulher, “o par que lhe era mais do que sugerido – praticamente imposto - pela família”. (FALCI, 1997, p. 258). O casamento da elite sertaneja significava um compromisso entre as famílias dos noivos. Conta-nos Faria (1996, p. 59) que a escolha dos noivos foi, muitas vezes, motivo de surpresas para os jovens, postos diante do outro, pela primeira vez, no dia da cerimônia. Sob a providência de saraus nas fazendas, transcritos em livros de memória e diários de família, as cerimônias das filhas dos ricos fazendeiros da região nunca eram realizadas na igreja da redondeza. Nas festas de casamento, esbanjavam-se comida. Nas vésperas, mandavam-se matar uma novilha gorda, carneiros, porcos, perus e galinhas. Na sala, exibiamse um altar enfeitado cuidadosamente pelas mãos das mulheres mais prendadas. (FARIA, 1996, p. 60). 48 Não foram raras as ocasiões em que a moça, descontente com a escolha do pretendente e enamorada de outro rapaz, deixava-se raptar. A moça raptada era deixada em casa de algum amigo da família importante, que mandava, no amanhecer do dia seguinte, comunicar o fato aos pais. 1 Caso a moça raptada não se casasse, ficaria mal vista por toda sociedade. Nessas condições, seria preciso “lavar a honra” do pai com a morte ou castração do malfeitor. “A vingança era mandada fazer pelo pai ou irmão para limpar a honra da família, numa sociedade em que a vindita era muito usual e os matadores profissionais nunca faltavam”. (FALCI, 1997, p. 247). O casamento das moças fugidias contava com cerimônias bem mais modestas. Com número de pessoas restrito, as mais próximas da família e os padrinhos dos noivos. Após a cerimônia, os noivos se dirigiam, acompanhados do dono da casa em que fora depositada a moça, à residência dessa, implorando a benção e perdão ao pai da moça. (FARIA, 1996, p. 61). No Sertão nordestino, a formação concedida às mulheres era no sentido de desenvolver a sua especialização nas prendas domésticas. Enquanto que os homens de elite tinham o privilégio de estudar fora, as mulheres quando muito aprendiam a ler e a escrever, com auxílio de professores contratados pelos pais, em aulas ministradas na própria casa. Mantinham-se cada vez mais longe das ruas as moças, à medida que se mantinha a “boa educação feminina”. Nesse Sertão de hierarquias rígidas, tal como advertiu Falci (1996, p.60), distinguiamse, pelas divisões de classe sociais e econômicas, os homens das mulheres, os ricos dos pobres, os escravos dos senhores e os brancos dos caboclos. 1 Na casa-grande nordestina, foi comum que os quartos das filhas-moças ficassem sempre no centro do edifício justamente para evitar os perigos de rapto (FONSECA, 1997, p. 531). 49 Entre as mulheres, as diferenças de condição social puseram de um lado a senhora, dama, as “donas fulanas”, estas eram as categorias de prestígio e, de outro, as mulheres pobres, as chamadas “cunhãs”, “téudas” e “manteúdas”, dependentes financeiras dos homens, em geral, senhores de engenho, fazendeiros, homens de prestígio na escala social. Quanto à categoria de pior prestígio social, assinale-se a categoria da mulher escrava, esta vivendo totalmente a mercê de seus senhores, exercendo os mais variados serviços, na figura da mucama, ama-de-leite, cozinheira, bordadeira, lavadeira, engomadeira, costureira ou doceira, funções que foram incorporadas ao espaço das senhoras de elite, ou mais especificamente, à esfera doméstica. É importante observar que as mulheres pobres, não gozando de status ou de privilégio como as mulheres de elite, desde cedo, tiveram que encarar os mesmos afazeres domésticos e sujos, realizados pelas mãos de mulheres escravas. 5.2 CONCEPÇÃO CRISTÃ SOBRE A NATUREZA FEMININA Concebendo a família como a “célula mãe da sociedade” e uma vez afirmando nela haver os princípios mais sagrados, a igreja católica exerceu durante o período colonial influência preponderante, quase mesmo exclusiva, na formação cultural brasileira”. (STEIN, 1984, p. 38). Levando às últimas conseqüências a divulgação da promessa de uma vida feliz, assegurada pela benção do amor divino, assim proclamava o texto de Leão XIII, no Arcanum Divinas Sapientiae (sobre a constituição da família), com data de fevereiro de 1880 (Ibid., p. 39): 50 O homem é o chefe da família e a cabeça da mulher: esta, todavia, por isso que é a carne da sua carne e osso dos seus ossos, deve submeter-se a obedecer a seu marido, não à maneira de uma escrava, mas na qualidade de companheira, para que não falte nem a honestidade, nem a dignidade na obediência que ela lhe prestar. Mesmo na segunda metade do séc. XIX, a forma exclusiva de relacionamento sexual admissível era aquela erigida pelos dogmas cristãos. À igreja coube o papel de influenciar na vida mais íntima dos casais. Impôs, primeiro, que a atividade sexual ocorresse somente após o casamento. Segundo, restringiu o ato sexual com fim único de propagação da espécie humana. Qualquer comportamento sexual que excedesse tal limite seria, certamente, para a igreja e, conseqüentemente, à sociedade, considerado pecaminoso e sujo. Preocupados com as transgressões provocadas pela devassidão e o pecado das mulheres, os padres combatiam, até mesmo nos confessionários, através de pregações e castigos, “a natureza nociva da mulher pecadora”. Os manuais de confissão seriam obcecadamente preparados no combate à “má conduta das brasileiras afeitas à prostituição”. Para reverter a situação e conter o perfil destruidor da natureza feminina, os manuais estabeleciam as regras para as relações matrimoniais: a mulher deveria manter-se pura e fiel ao marido e voltada à criação dos filhos; o marido, por outro lado, retribuiria a dedicação da esposa através do respeito mais absoluto, ou seja, contendo-se durante o coito, de modo que a entrega completa à relação sexual nunca deveria ameaçar a qualidade de vida cristã do casal. A abstinência e a castidade eram as únicas maneiras de precaver-se das “imundícies” do mundo. Fica desde já entendido que a preservação da integridade física da mulher, regra necessária para a preservação da “honra feminina” e, conseqüentemente, da “honra masculina” (do marido), depende em grande escala do enclausuramento da esposa, via necessária à seguridade da sua imagem modelar, sempre na retidão de seu comportamento sexual. É o que observa LOPES (1989, p. 25): 51 Como ser perigoso e frágil que era, a mulher tinha de manter-se fechada: em casa do marido, em casa dos filhos, se viúva, ou no convento quando freira ou como recolhida se lhe faltasse a guarda masculina de um marido que se ausentou ou morreu. Sempre um espaço restrito e controlado. E aquela que se aventurava a maiores espaços perdia irremediavelmente a estima social. Foi com esse clima de interdições nas relações familiares que se erigiu a sociedade moderna burguesa. A família passou a desencadear uma série de princípios fundados na preservação da essência do lar e restrições à ligação conjugal, controlada pelos princípios de boa conduta, fundamentada, além de tudo, nos moldes românticos. Contudo, o rigoroso controle de abstinência e fidelidade, na prática, ao que tudo indica, funcionou apenas para o sexo feminino. Ancorando-se num hipotético destino anatômico que limitava o papel sexual da mulher, a sociedade manteve um duplo padrão de moralidade para com os dois sexos. De um lado, privou a liberdade dos maridos para com as esposas legítimas, de outro não impediu que esses cedessem “às tentações da carne” e extravasassem os impulsos sexuais, fora do casamento. Relacionando os fatores que motivaram o desregramento dos homens, observa Saffiotti (1979, p. 167): “Dada a socialização da mulher branca para o desempenho dos papéis de dona-de-casa e mãe de família legalmente constituída, necessária se fazia a existência de uma classe de mulheres, com as quais os jovens brancos pudessem praticar as artes do amor anteriormente ao casamento”. Para poupar a castidade das moças até o casamento, ao mesmo tempo em que era preciso extravasar os “instintos masculinos”, contidos em respeito à figura da esposa e da moça pura, a Igreja e mesmo toda a sociedade não só foi condescendente, como de certa forma incitou as experiências sexuais extraconjugais por parte do homem, fazendo “vistas grossas” à prática de desregramento sexual masculino. 2 2 “Elevada à categoria de pecado venial, e devendo pois ser confessada, a fornicação simples permanecia na mentalidade dos primeiros colonos como algo que fazia bem, e que não era pecado dormir com mulheres 52 Nesse sentido, a prostituição, por mais que fosse uma atividade transgressora aos olhos da igreja e da sociedade, segundo observa Priore (2003, p. 34): Constituía-se a serviço da ordem socioespiritual no mundo moderno. No Brasil, no entanto, as características que a tornavam um mal necessário vão misturar-se com outras práticas consideradas pelas autoridades como transgressoras, fazendo com que a Igreja enxergasse, em cada mulher que infringisse as normas, uma prostituta em potencial [...] os comportamentos tidos por desviantes e a prostituição eram tênues. 5.3 A FAMÍLIA NO SISTEMA PATRIARCAL BRASILEIRO E A MORAL SEXUAL Somente com o cultivo da terra, do qual obteve apoio da coroa portuguesa, a família começa a se estabelecer. Organiza-se a família numa dupla estrutura: a nuclear, resultado do laço entre marido, esposa e prole legítima (família branca formal), e outro grupo marginal, resultante dos laços entre o senhor de terra com seus escravos e agregados, índios, negros, mestiços e a prole resultante da mestiçagem do branco com suas escravas. Como se sabe, no início da colonização do Brasil, não havia aqui no Brasil o exercício legal do matrimônio. A vinda dos portugueses para o Brasil-colônia visava proveitos econômicos. Normalmente, os portugueses instalavam-se na terra provisoriamente, deixando suas esposas legítimas em Portugal, muito embora mantivessem relações extraconjugais com as mulheres que estavam em condição submissa, índias e negras na maioria das vezes. As discrepâncias havidas entre o sistema normativo, que pretendia implantar um modelo ideal de família, o burguês, e o contexto familiar, presente pela maioria das mulheres das classes mais subalternas de nossa sociedade, atravessavam os séculos de nossa história e mais uma vez trariam prejuízos somente ao sexo feminino. públicas”. A primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia, em fins do século XVI, revela a espontaneidade de afirmações consideradas heréticas, mas que deviam ser de prática corrente na colônia. Diogo Nunes, por exemplo, dizia que bem podia ele dormir carnalmente ali com qualquer negra d’aldeia e que não pecava nisso com lhe dar sua camisa ou qualquer coisa [... ] “. (PRIORE, 2003, p. 40). 53 Sobre as contradições havidas entre a norma oficial dominante, que ditava um modelo único exemplar de mulher, com a realidade vivida pela maioria das mulheres das classes subalternas de nossa sociedade, durante o Brasil-colônia, Priore (2003, p. 30) ressalta: Ao discurso monocórdio sobre seus comportamentos, ou os que deveriam adotar, elas respondiam com práticas tidas por desabusadas, mas apenas resultantes de suas condições materiais de vida. Ao público escândalo de tantos concubinatos e mancebias somavam-se filhos tidos por fragilidade da carne humana, fora de qualquer laço conjugal. A maternidade, era um laço que unia mães e filhas num mesmo ofício:o da prostituição. O concubinato foi um sistema típico de organização familiar das camadas subalternas, ora reproduzindo o modelo de casamento burguês, unindo mulheres e homens solteiros, ora caracterizado pelo par formado por mulheres viúvas ou solteiras e homens casados. Não se pode dizer, pois, que a moral burguesa ficou alheia às camadas mais populares. Os fatos mostram que, desde o período colonial, as uniões ilegais se davam, sobretudo, devido às dificuldades de ordem financeira – não fossem os custos da cerimônia e a existência de dotes, como nos matrimônios das classes mais abastadas, decerto a fórmula de casamento seria respeitada. De fato, a moral sexual teve características muito peculiares no âmbito das classes subalternas. Em geral, preservava-se a virgindade da moça na espera de garantir um “bom casamento”, do qual toda a família pudesse tirar proveito. A preservação da virgindade, nas classes mais pobres, tem mais a ver com a esperança depositada no livramento da miséria, do que a mera absorção dos ideais conservadores da burguesia dominante. Não foram raros os casos em que mulheres, vítimas do preconceito e da marginalidade da sociedade por não serem mais virgens, não contando com o apoio e aceitação da família, tiveram que se pegar com a prostituição. Note-se que não existia outra alternativa de sobrevivência, dadas as expectativas definidas para o sexo feminino, senão o casamento. (FONSECA, 1997, p. 532). 54 Novamente o peso do não cumprimento ao padrão familiar rígido, moralizante, recairia sobre as mulheres. Listas infindas de processos por parte de maridos que, pleiteando a guarda de filhos acusavam suas ex-mulheres de falta de moral e de boa conduta. Estava, portanto, seguindo a ótica do sistema dominante e conservador, em xeque o comportamento sexual da mulher e não qualquer falta de zelo com as crianças. A preservação da integridade da mulher e da sua capacidade em administrar um lar e cuidar dos filhos, era mais ou menos proporcional à capacidade em zelar pelo próprio corpo. (LOPES, 1989, p. 22). Para a mãe viúva, o artesão desempregado, o operário, o imigrante, a prostituição esteve muitas vezes indispensável à sobrevivência e manutenção da família. Por isso mesmo, poderia significar muito menos um desvio da retidão moral e muito mais a única alternativa aberta às mulheres de origem pobre e com nível de escolaridade precário. Para melhor definir a imagem das antepassadas mulheres pobres, mães e solteiras, prostituídas, na visão da sociedade, vejamos a descrição de Fonseca (1997, p. 534): [...] A figura da prostituta se localizava na encruzilhada entre o estereótipo aterrorizante da mulher decaída e a realidade vivida por um sem-número de amásias, mães solteiras e crianças ilegítimas; em outras palavras, entre a condenação pela moral burguesa e a tolerância tácita para com um modo de vida que se desviava radicalmente da norma oficial. Como se pode ver, foi a moral social, sustentada pelo discurso misógino do Estado e pela Igreja, a responsável por definir o confinamento da mulher na esfera privada. Mas a moral social, que cristalizou por meio de discursos a crença nas mulheres como seres submissos e inferiores aos homens, com o desenvolvimento da industrialização e urbanização de nosso país, passava a sofrer declínios e a preocupar os diversos setores sociais de nosso país. A participação feminina no mercado de trabalho, antes restrito ao homem, era a primeira causa da instabilidade do sistema dominante masculino. 55 Não demoraria, pois, para que as mulheres ficassem estigmatizadas e as trabalhadoras pobres, acusadas de abandonarem suas crianças. Eram, pois os maridos descontentes com a situação, que reclamavam sobre a desordem nos lares, alegando a culpa feminina. No Brasil, o Positivismo foi, desde então, a doutrina filosófica que mais radicalmente perseverou entre os ideais iluministas importados da Europa. As teses positivistas reprovavam severamente a participação mais ativa da mulher na sociedade. Segregando os sexos e instaurando no terreno da natureza a divisão dos papéis masculinos e femininos, o positivismo propagou por todos os lados a sua mensagem misógina – sobre a qual ao homem cabia a participação da cultura objetiva e espiritual; à mulher, a missão exclusiva de educadora e mantenedora do lar. (SAFFIOTI, 1979, p. 22). Foram com essas teses que os jornalistas, teólogos, juristas e médicos argumentavam a fraqueza e a nocividade do sexo feminino, dificultando a sua inserção no mundo do trabalho. Na defesa da “honra feminina”, da educação das crianças e da dedicação aos maridos, as investidas do público masculino funcionara desde então no intuito de coibir a sua participação efetiva feminina no trabalho. A mão-de-obra feminina ameaçava, de fato, a norma oficial, como salienta Fonseca (1997, p. 517): “ditava que a mulher devia ser resguardada em casa se ocupando dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua”. Impedidas de ocupar cargos administrativos de maior reconhecimento social, as operárias das fábricas, contratadas no início do desenvolvimento industrial do país, estavam jurídica e politicamente subordinadas aos homens de melhor posição, que tinham acesso aos cargos diretores das empresas, tais como os de mestre, contramestre e assistentes. Tal como ocorria na Europa, após o surgimento da industrialização, a mão-de-obra feminina era mais barata do que a do homem e a opressão era bem maior para aquelas que tinham filhos e precisavam sustentá-los. Nessa época, os salários eram extremamente baixos, 56 incompatíveis com as altas jornadas de trabalho. Além de tudo, as funcionárias não gozavam de direitos trabalhistas, como os que prevêem as leis trabalhistas hoje em dia, quais sejam: férias, décimo terceiro salário, licença gestante e auxílio maternidade. Conclui-se, assim, que apesar da inserção feminina no mercado de trabalho, a mão-deobra feminina era vista como secundária e a mulher continuaria sem poder competir de igual para igual com o homem no mercado de trabalho. A ocupação de cargos de baixo prestígio social estava ligada, pois, ao descrédito no trabalho feminino. Em virtude das mais variadas repercussões simbólicas e representativas em torno da imagem feminina, essas ocupações de baixo prestígio trariam toda ordem de discriminação com relação à mulher. O panorama sociocultural da sociedade brasileira reflete clara e imediatamente as desigualdades decorrentes do sistema patriarcal que engendrou as relações sociais, ainda no período de formação da nação. Os estudos mostraram que a opressão sobre o sexo feminino deu-se com o sustento de um discurso misógino, fundamentado para coibir qualquer oportunidade de alcance do privilégio, prestígio e poder social à mulher, impossibilitando a sua participação na vida pública. Considerando-se essas reflexões, no capítulo seguinte, proceder-se-á, finalmente, à análise dos Cordéis, cerne dessa pesquisa. Antes disso, a fim de situar os postulados teóricos que embasam a pesquisa, far-se-á o detalhamento da metodologia utilizada. 57 6 METODOLOGIA, DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS 6.1 METODOLOGIA DE ANÁLISE Tendo em vista as hipóteses levantadas e os objetivos definidos neste trabalho, as atividades foram sistematizadas em coleta, seleção e revisão dos dados bibliográficos. O corpus deste trabalho é composto de 20 Cordéis, versando sobre a mulher nos mais diversos aspectos da realidade nordestina. São eles: 1. A deuza do cabaré: A meritriz orgulhosa. João Severo da Silva. João Pessoa, 1985. 2. A língua da mulher faladeira. Rodolfo Coelho Cavalcante. 3. ed. Salvador: Tipografia Ansival, 1977. 3. A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia. Manoel Monteiro. 4. ed. Campina Grande: Gráfica Martins, 2002. 4. A mulher e o cangaço. Francisca P. dos Santos. Ceará: Xilo. Hamurabi Batista, 1997. 5. A mulher no lugar do homem. José Pacheco. s.n.t. 6. As duras lamentações de uma coroa. Abraão Batista. Juazeiro do Norte. s.d. 7. As modas escandalosas de hoje em dia. Rodolfo Coelho Cavalcante. s.n.t. 8. Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. José da Costa Leite. Recife. s.d. 9. História da mulher da língua grande. Minelvino Francisco Silva. s.n.t. 10. Maria Bonita. Mulher macho, sim, senhor. Rodolfo Coelho Cavalcante. Salvador, 1983. 11. Nascimento, vida e morte de uma coroa. Abraão Batista. 2. ed. s.d. 12. O abc das mulheres. Manoel Amaro de Melo. Guarabira. s.d. 13. O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia. José Pedro Pontual. s.n.t. 14. O mundo pegando fogo por causa da corrução. José Costa Leite. Condado-PE. s.d. 58 15. O mundo vai estourar do jeito em que se vive. Franklim Maxado. Bahia. s.d. 16. O poder oculto da mulher bonita. João Martin de athayde. Juazeiro do Norte-CE. s.d. 17. O que uma coroa deve fazer para se casar. Abraão Batista. 2. ed. s.d. 18. Os amores de José e a traição de Maria. José Camilo da Silva. Recife: Universidade Federal de Pernambuco/ DEC. s.d. 19. Sofrimento das solteiras para arranjar marido. José Acaci. Rio G. Do Norte. s.d. 20. Uma mulher traiçoeira. José Pedro Pontual. Editor Edson P. da Silva. Recife. s.d. A análise dos folhetos aqui citados será de cunho lingüístico. Nesse sentido, voltar-seá, primordialmente, à apreensão do léxico utilizado para designar a mulher na Literatura de Cordel. Privilegiar-se-á o nível do léxico, visando a detectar os elementos lingüísticos e extralingüísticos que possam estar vinculados aos efeitos de produção de sentido. Proceder-se-á a uma análise léxico-semântica dos termos referentes à figura feminina na Literatura de Cordel, a partir de uma perspectiva sociocultural, a fim de averiguar de que maneira a linguagem reflete a condição da mulher no contexto da sociedade nordestina. 3 O primeiro momento do trabalho foi reservado à leitura dos folhetos, escolhidos como corpus da pesquisa, para se detectar e selecionar os itens lexicais que remetem à figura feminina. A princípio, o trabalho contou com uma amostra de cinqüenta folhetos de Cordel, cujo critério definido foi a seleção dos folhetos por títulos, os quais esboçavam a temática feminina, numa formulação caricata, como é natural nos Cordéis. Em seguida, fez-se a leitura dos folhetos. Nesse momento, a finalidade foi observar quais as características femininas que mais perfilavam nos Cordéis. 3 A transcrição dos fragmentados, retirados dos Cordéis em análise, estará compatível com a grafia apresentada nos textos originais. 59 Tendo-se em vista a freqüência com que as temáticas eram tratadas nas narrativas, seguiu-se a uma seleção mais criteriosa para o corpus. A partir de então, foi possível deduzir trinta dos cinqüenta folhetos, ficando o corpus com um total de vinte. Para tanto, localizaramse, dentre os cinqüenta Cordéis aqueles que mais visivelmente refletiam os níveis de depreciação feminina, segundo os ícones “da beleza”, “da moda”, “da submissão”, “da valentia”, “da sedução” e “da astúcia”. Para a realização desse estudo, desenvolveu-se uma revisão literária sobre o assunto, em função da problemática e com a finalidade de instrumentá-lo. A investigação foi desenvolvida respaldando-se, sobretudo, nos pressupostos teóricos da Lexicologia, da Semântica, da Sociolingüística e da Etnolingüística, além de outras teorias correspondentes aos propósitos do trabalho, entre as quais, a Teoria dos Campos Semânticos e a que ficou conhecida como Hipótese Sapir-Whorf, cujos conceitos açambarcam a relação entre “língua”, “cultura” e “sociedade”. Durante o processo de evolução das atividades, buscar-se-á, sempre que houver necessidade, outras disciplinas que possam fornecer subsídio à interpretação e compreensão dos aspectos lingüísticos. Em conformidade com as características de caráter qualitativo, essas etapas não se constituem em momentos estanques de investigação. A análise, por exemplo, deve estar presente desde o início, com vistas a possibilitar a constante reavaliação do material teórico adotado, bem como da adequação das técnicas de coleta de dados, tornando-se uma dificuldade encontrar o meio que separa os diversos momentos desta pesquisa. 60 6.2 ANÁLISE DO CORPUS 6.2.1 A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa A profissão mais antiga do mundo, o meretrício, nem sucumbiu perante a pressão de cunho moral sexual das sociedades, nem desapareceu com as mudanças no perfil das relações amorosas e sexuais dos últimos tempos – é oportuno observar o papel sexual da prostituta em épocas passadas, quanto à iniciação dos homens inexperientes no sexo e nos extravasamentos dos maridos insatisfeitos sexualmente no casamento. O fato de o meretrício estar literalmente relacionado “aos prazeres da carne” e à promiscuidade sexual, condenada pela Igreja, fez surgir uma série de mitos e medos sobre a conduta e o desejo sexual feminino. Não é à toa que a imagem da prostituta bela, que seduz o homem com a beleza de seu corpo e com a volúpia desenfreada, é esboçada freqüentemente por meio das trovas. Nos Cordéis, as mulheres belas freqüentemente recebem o qualitativo “deusa”, usado para referirse às mais bonitas e sedutoras. Esse qualitativo envolve uma variedade de matizes de sentido, traz à tona elementos místicos como “magia”, “natureza”, “sensualidade”, “fecundidade”, para citar alguns. O designativo “deusa do cabaré”, no texto em estudo, é usado para enfatizar a capacidade de sedução da prostituta. A ênfase nos atributos físicos da personagem, que se faz presente desde o próprio codinome “Deusa”, fica impressa nos versos “porque a sua beleza” e “por nenhuma era igualhada”: Por Deusa do Cabaré Ela foi classificada Porque a sua beleza Por nenhuma era igualhada Por isso entre as mulheres Era a mais dezejada 61 Os sintagmas “corpo esbelto”, “olhos negros”, “estátua de carne”, “a mais desejada”, “morena da pele fina”, “elegante menina”, “boniteza", “por ser linda e atraente”, “muito cobiçada”, “mimosa fada” e “mulher formosa” formam o campo lexical da sedução feminina, retratada na figura de Deusa, a meretriz. O fato de a prostituta carregar o sema “morena” remete à sensualidade da mulher negra, essa mais ardente e mais concupiscente no sexo do que a branca. A idéia de que as prostitutas destoam com o padrão ideal de mulher na sociedade, porque são dadas à luxúria e à lascívia e a vaidade, é impressa a seguir: Rosalina em Salvador Entregou-se a vaidade Deu expansão ao seu genio Saciou sua vontade Fazendo vida noturna Nas Boites da cidade O termo “boite”, no português brasileiro boate, é originário do francês “boîte”. Esse termo entrou no português duas vezes, com acepções distintas e diferentes adaptações prosódicas. A acepção clássica do português é “bueta” (séc. XV), “boceta”, “caixa” e, mais modernamente (séc. XX) “estabelecimento comercial, que funciona à noite, e em geral, consta de pista de dança e palco de atrações artísticas”, conforme o Dicionário etimológico nova fronteira da Língua Portuguesa (1994) e o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa (1999). Em pequenas cidades de interior, o correlato de boate é “cabaré”, também de origem francesa. (Cf. significação da palavra “cabaré” na análise do folheto O malandro e a piniqueira...). Interessante observar o espaço em que se insere a prostituta - quando sai à rua é à procura de um cliente, para depois voltar novamente ao espaço fechado do prostíbulo. Nesse contexto, a rua equivale ao próprio “cabaré”, em termos de ausência de normas e de preceitos morais. 62 Nesse contexto, a prostituta tem a oportunidade única de salvação, no amor incondicional de seu amado, assemelhando-se a tantas personagens de contos fantásticos e maravilhosos, que contam com a figura do “maravilhoso príncipe” para salvá-las. Mas Deusa, diferentemente das personagens infantis, não se sente feliz nos braços do amado e nem submissa a ele: Eu fiz a maior ansneira Em me casar tão moderna Pra viver prisioneira Prefiro viver liberta Como em tempo de solteira A personagem, por expor o próprio corpo, oferecendo-o como mercadoria e por querer voltar à vida de meretriz, é castigada. A transgressão feminina é apontada, pois, enquanto heresia espiritual, juntamente com a noção do sobrenatural maléfico que brota da impureza feminina. O rebaixamento da personagem é observado através do discurso em primeira pessoa, nas expressões de súplica pelo perdão a Deus. O campo do apaziguamento espiritual assinalase na oposição fundamental: “pecado e misericórdia”. A confissão dos pecados, alternativa posta no plano da piedade divina, aparece como possibilidade única de salvação e libertação do espírito maligno: Nessa hora ajoelhou-se Pedindo perdão a Deus Dizendo Senhor perdoa Os grandes pecados meus No setor substantivo, apresentam-se as virtudes que granjeiam a salvação, tais como “compaixão”, “perdão”, “redenção”, “arrependimento”, “súplica” e “clemência”. No campo do sofrimento, inserem-se os substantivos correlatos: “aflição”, “dor”, “tristeza”, “pranto”, “infelicidade”, “padecimento”, “sofrimento”, “humilhação”, que refletem 63 o estado de desengano da prostituta Deusa, em relação à doença que lhe aflige. O campo ganha mais expressividade em: “faces banhadas em pranto de dores”, “lágrimas de amargura”, “noites tempestuosas”, “xagas tão grengrenosas”, como se pode ver a seguir: Outrora eu me jugava Uma rosa entre as rosas Hoje estou vendo meu corpo Em xagas tão grengrenosas Que já não suporto mais As dores tão espinhosas A carga emotiva do desespero da prostituta Deusa eleva-se nas colocações “um ente tão infeliz”, “a minha desgraça”, “não suporto mais pelas sargetas dormir”, “exposta ao relento”, “sem ter o que me cobrir” e “prostrada nesse chão duro”. O campo do desespero e do sofrimento completa-se com o campo da culpa – inserem-se os delitos, a responsabilidade da mulher pela própria desgraça. A minha desgraça fiz Abandonei meu esposo Só porque tinha inveja Do viver de meretriz A morte é anunciada através das expressões substantivas e verbais: “meus últimos dias de vida”, “encerram os dias seus”, “meu fim vai ser muito triste”. Também há um número de expressões metafóricas que sentenciam a morte: “minha matéria ta se transformando em pus”, “ruída dos tapurus”, “no bico dos urubus”, “encerraram os dias seus”, “últimos fios de vida”. A morte pode ser interpretada como o destino das mulheres pecadoras e infiéis, ou melhor, como o desfecho da miséria feminina: Vejo que a minha matéria Ta se transformando em pus Prostrada nesse chão duro Ruida dos tapurus Meu fim vai ser muito triste No bico dos urubus. 64 Para o homem, a “mulher da vida” saudável é diferente da “mulher da vida” doente. O estágio de putrefação da carne, que significa a culminância da doença, num sentido metafórico, é também a culminância da ausência do desejo masculino, no momento em que a mulher, não tendo mais um corpo pronto para servir, é repudiada. Vale salientar que, no imaginário popular, a “mulher da vida” é aquela a que o mundo reserva às doenças contagiosas. Em situação análoga a de uma prostituta doente, a mulher que corresponde aos preceitos da sociedade, a mulher virtuosa, é aquela que, em seu estado de doente, é apenas uma enferma, digna de cuidados, exatamente o inverso daquela para quem a sociedade só devolve o desprezo. Por fim, a morte poderia ser entendida, como um alívio, não exatamente para a prostituta, mas para a sociedade e para o homem, que não se sente bem diante de uma mulher doente, decaída. Quanto ao desprezo da prostituta, por parte do homem, significa, mais especificamente, que ele não mais a quer enquanto ser feminino. Concluída a análise de A deusa do cabaré: a meritriz orgulhosa, apresenta-se, a seguir, sua sistematização na figura4. 4 Os termos correspondentes às obras originais consultadas, que serviram à ilustração dos campo-léxicos são, nos esquemas, apresentados em negrito. 65 MERETRÍCIO VIDA DE ORGIA CONDENAÇÃO DIVINA DEUSA DO CABARÉ PECADO SOFRIMENTO FACES BANHADAS EM TRAIÇÃO PRANTO VOLÚPIA LUXÚRIA ORGULHO LÁGRIMAS DE AMARGURA NOITES TEMPESTUOSAS XAGAS GRENGRENOSAS MORTE FIGURA 1 – Campo léxico-semântico em A deuza do cabaré: a meritriz orgulhosa. 6.2.2 A língua da mulher faladeira A imagem da mulher difamatória e caluniosa há muito tempo tem sido difundida na cultura popular. O texto A língua da mulher faladeira apresenta uma riqueza de termos que visam à definição da mulher de natureza difamatória e maldizente, tal como se apregoa na sociedade. Dentre os mais expressivos termos que remetem à figura da mulher, nessa perspectiva, destacam-se o de “mulher da língua comprida”, “mulher faladeira”, “mulher linguaruda”, 66 “fuxiqueira” e “légua de beiço”. (Cf. análise do folheto História da mulher da língua Grande, que também faz parte do corpus da análise). “Arenga”, “anarquismo”, “reclamação” incluem-se no campo associado ao perfil de “mulher difamatória”, remetendo à idéia de que a “mulher faladeira” nunca está contente com a vida que tem e por isso só faz reclamar, blasfema contra Deus e espalha discórdia. O poeta, assim, declara: Fala do pobre peixeiro Por vender peixe muito, Mete o pau no Açougueiro Em pesar osso graúdo, Arenga com o verdureiro Anarquisa com o leitero, Reclama de Deus e tudo. No imaginário social, a palavra que é proferida pela boca de uma mulher é carregada de sentido. Uma praga proferida por uma mulher é diferente de outra, proferida por um homem. A história sempre recusou dar ao feminino o direito ao discurso, porque a figura feminina esteve durante muito tempo inserida numa tradição maligna e assim associada à figura do Diabo. Note-se que as mulheres eram as grandes feiticeiras do passado, tinham elas uma maior aproximação com a personificação do mal, com as pragas, regionalmente falando. O tabu da palavra feminina é, senão, a conseqüência do desvio da natureza santa ou sagrada da palavra que, segundo a Bíblia, foi ocasionado pela “boca” de uma mulher. Assim, expressa o poeta: Não há praga mais ruim Do que mulher faladeira, No lugar que ela reside Falta água na torneira, Nem a galinha produz, Há desarranjo na luz E a casa só tem goteira! 67 O ícone da miséria e da má sorte é, pois, um dos que mais se assinalam sobre a imagem da mulher. A “mulher faladeira” é freqüentemente associada ao azar, pelo poder danoso que tem de desencadear a má sorte no mundo. A associação da figura feminina a um mau presságio, evidencia-se na expressão “azar de sexta-feira” que, no texto, está remetendo à presença nociva de uma mulher potencialmente ameaçadora, ou seja, àquela que fala demais: Só comparo Dona Júlia Com azar de sexta-feira Ou buzina disparada No ruge-ruge da feira A expressão “ruge-ruge” refere-se ao entra e sai da feira, típico de feira no interior. O Dicionário da Língua Portuguesa elaborado por Antenor Nascentes (1959) registra o termo como “ruído de pano que roça o chão”; “ruído da seda atritada”; “confusão”, “atropelo’, “desordem”. Portanto, depreende-se o teor negativo desses termos, nas comparações feitas no tocante à mulher. Usando de um tom de deboche pitoresco, o poeta, faz analogia entre “mulher” e “gagueira”, expressando a idéia da dificuldade que é conviver com o sexo feminino. A gagueira traz o sema da “anomalia” e aqui aparece como simples pretexto para expressar a agonia e a intranqüilidade do homem em relação à presença feminina. Ou um gago a explicar Um caso expetacular Queira o ouvinte ou não queira Em resumo, toda abundância de termos utilizados pelo poeta com relação à mulher tem, como fim, admoestar contra o mal que pode ser causado se a ela for reservado o direito à palavra. Explicita-se, a seguir, o esquema constando o campo léxico-semântico em A Língua da mulher faladeira, com vistas a uma melhor compreensão do texto. 68 MULHER FALADEIRA MAL PARA A SOCIEDADE RUIM PRAGUENTA COMPRADORA DE DISCUSSÃO TORMENTO PARA O MARIDO LINGUARUDA BUZINA DISPARADA LINGUA COMPRIDA FIGURA 2 – Campo léxico-semântico em A língua da mulher faladeira. 6.2.3 A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia O exame da mulher de antigamente como modelo ideal, em contraste com o comportamento da mulher de hoje em dia, mais ativa e, por isso, ameaçadora da ordem e da moral, tem como fim exibir uma perspectiva de valoração, do ponto de vista patriarcal e conservador. No que diz respeito à emancipação feminina, as modificações sempre foram sentidas como uma corrosão dos valores, uma ofensa ao modelo dominante. A incorporação de novos modelos de vida no comportamento das mulheres, mais exatamente, nas três primeiras décadas do séc. XX, tais como novas formas de vestir, de 69 arrumar os cabelos, de usar a maquiagem, as alterações inclusive nas novas formas de lazer e ocupação, todas elas causaram grande choque de valores e concepções na mentalidade de toda a sociedade brasileira. Os vocábulos “toca”, “espartilho”, “ampoleta”, “saia justa”, que se incorporaram à nova realidade feminina, no contexto das mudanças de postura e de valores, foram, aos olhos dos conservadores, ingredientes que atentavam contra o pudor e a decência feminina, além de que faziam cair por terra o tradicional modelo de conduta a que as mulheres já estavam acostumadas. O excesso de enfeites e os cuidados que a mulher passava a ter em função da nova moda eram, na ótica masculina, um sinal de mau gosto e artificialismo que atingia a beleza feminina natural. O comportamento da mulher moderna, que cede à influência da moda, opõe-se ao da obediente aos padrões antigos, cujas vestimentas e penteados “ocultavam-lhe a sensualidade”, tal como evidenciam os versos seguintes: Touca, espartilho, ampoleta, Moda ousada era cocó Se o rapaz pedisse um beijo Ficava falando só Sem casar, só via mesmo Mão, pescoço e mocotó. Como o perfil traçado para a mulher virtuosa era o de esposa e mãe recatada, a mulher moderna e antecipada, “cheia de liberdades”, “de roupas apertadas”, “de braços e beijos com os homens”, seria o exemplo mais visível da decadência dos padrões antigos e da decência feminina, antes sedimentados a partir de comandos morais. Exemplificando a conduta respeitosa que seguia a mulher de antigamente e afirmando nela haver os princípios de nobreza feminina, ou seja, o de reprodutora e submissa ao marido, tal como se pode apreender nos versos “vivia para o marido” , “e para fazer menino”, o poeta assim se expressa: 70 Naquele tempo a mulher Era um ser quase divino, Vivia para o marido E para fazer menino, Mulher não falava grosso Homem não falava fino! Fora do espaço social determinado a elas, ou seja, o lar, as mulheres seriam descritas como sensuais ou dissolutas, indiferentes aos deveres conjugais. Endossar-lhes-iam, pois, os estereótipos de criaturas “fáceis e sem-vergonhas”. A mulher mais emancipada e contrária aos costumes tradicionais simboliza sempre o obscuro. O episódio da criação da “terrível Eva” e, em seguida, a queda do homem, que sucedeu com a criação feminina, no livro de Gênesis da Bíblia, é um dos episódios mais simbólica e lingüisticamente construídos para demonstrar a natureza maldita e submissa da mulher. A Literatura de Cordel, que guarda as crenças e concepções míticas e religiosas do povo nordestino, reflete essa concepção: Deus após formar o mundo Achou que era preciso Povoá-lo, fez Adão, Mas fez Eva sem juízo E deixou os dois flertando No pomar do Paraíso... Segundo a narração bíblica, Deus criou o homem para viver livre do pecado e dos dissabores que esse causaria para a espécie humana. Mas a mulher traiu a confiança de Deus, trazendo a “perdição”. Fiel a Satanás e contrariando as normas do Criador, ela mostrou-se fraca, deu provas que não é prudente que se lhe dê credibilidade. A mulher é, por essência, passível de ser enganada e usada por Satanás. Por esse prisma, os verbetes “dengosa e faceira” compõem o campo semântico da malícia feminina. Assinala-se o gosto que a figura feminina tem em atentar contra o “pudor” e a “vergonha”. A arma feminina consiste exatamente na habilidade de seduzir o homem com 71 malícia e encanto, obtendo dele a satisfação de entregar-se aos “prazeres carnais”. A citação a seguir justifica essa interpretação: Você imaginou Eva dengosa e faceira Tendo só por vestimenta Uma folha de parreira? Não precisava nem Cão Para Adão fazer besteira. Na concepção cristã, foi a mulher quem depositou a intranqüilidade no mundo. A partir dela, instalaram-se todos os problemas e misérias do mundo. A referência aos tempos antigos, isentos ainda do pecado, em contraste com o “abuso” do sexo feminino, que trouxe os maus tempos, pode ser aqui interpretado como um dos mais pesados fardos os quais a culpa feminina foi capaz de trazer para a humanidade, a necessidade de subsistência. Reforçando a consideração de que os tempos antigos eram melhores, o poeta assinala: Trabalhar não precisava, Adão vivia contente, Só arruinou ao juntar-se Eva, a maçã e a serpente. Os vocábulos “maçã”, “mulher” e “serpente”, na estrofe citada, são construções metafóricas que simbolizam o desequilíbrio, a instabilidade e o declínio do homem. Os três elementos denotam a maldição lançada por Deus, em conseqüência do pecado feminino. Na estrofe seguinte, o poeta utiliza jogos polissêmicos para fornecer uma imagem erótica da mensagem: Porque Deus disse a Adão Coma tudo, porém, Não “coma” a maçã de Eva, Adão lhe disse: Está bem! Mas veio a peste da cobra Para estragar o xerém. No sentido que remete ao léxico, nesse contexto, a maçã representa o encanto e a 72 sensualidade feminina; a serpente, a camuflagem, a capacidade da mulher insinuar-se para então “dar o bote”, quer dizer, conseguir o que quer do homem. No ideário místico e religioso do povo nordestino, a serpente reflete uma imagem negativa porque sempre remete à “culpa”; ela representa o “caos e a maldade”, prescinde também da associação com o próprio Satã. Daí, a propagada natureza “lasciva e masoquista” da mulher. Todas essas representações reforçaram o valor dado às relações convencionais, as quais estabeleceram as diferenças de papéis entre homem e mulher e que se refletem por meio da língua. E como, no modelo tradicional, a mulher deveria viver econômica e moralmente dependente do marido e do modo como a segregação dos sexos estava definida, a conquista do trabalho feminino apenas poderia ser sentida como uma ameaça à ordem e aos costumes da sociedade. Em decorrência da posição de esposa, a mulher passava a ser a “dona-de-casa”, o designativo de quem é esposa e trabalhadora doméstica, que manda e que cuida do lar. Enquanto que a mulher era, até décadas atrás, socializada para cumprir o destino de dona-de-casa, o homem o era para trabalhar fora. Era o trabalho o que afinal conferia ao homem o direito de expressar com pleno poder as primeiras e as últimas ordens no âmbito da família. A frase “homem com H” é um dos termos que serve de elogio aos homens de conduta autoritária e machista, como revela o trecho seguinte: Onde tem homem com “H” Uma lei s’estabelece A mulher diz: sim, senhor! Porque sabiá reconhece Que manda quem tem a força Quem tem juízo obedece. E assinalando, de maneira elogiosa, a devoção com que a mulher de antigamente, “por instinto nato”, exercia as obrigações domésticas, o poeta assim se expressa: Antigamente a mulher Pelo seu instinto nato, 73 O serviço que fazia Era “ver” lenha no mato, Catar pulgas no cachorro E limpar bosta de gato. Sob tal ponto de vista, a participação feminina no orçamento familiar ameaçava a integridade moral do homem. Em primeiro lugar, feria o ícone de macheza ao qual sempre esteve ligado o sexo masculino, ou seja, significava a falta de responsabilidade e fraqueza masculina por não prover sozinho as necessidades da família. E os malefícios da entrada da mulher no mercado de trabalho vão além das ameaças à integridade moral masculina. A atividade feminina assustava, principalmente, porque podia comprometer a estrutura política e econômica – com as mulheres trabalhando, poderiam os maridos ficar sem emprego. De fato, nos anos vinte, a larga inserção da mulher no espaço de trabalho foi devido à preferência dos empregadores pela mão-de-obra feminina, mais barata. Na estrofe seguinte, vê-se como a participação feminina no trabalho é sinônimo de instabilidade do emprego do homem: Elas estão todo dia Tomando o nosso lugar Se continuarem assim Só o que vai nos sobrar É o tanque de lavar roupa E o ferro de engomar. O autor considera ainda as mulheres “folgadas”, àquelas que escolhem as profissões típicas do homem. Fica subentendido que a conquista do espaço no mercado de trabalho é, conseqüentemente, a perda da feminilidade. 74 Hoje elas são folgadas, Escolhem até a profissão Querem se igualar a nós Só falam em liberação Umas já dirigem trem Outras pilotam avião. Já a profissão de “rezadeira” e de “artesã”, tradicionalmente femininas, pela característica social difusa e marginal que possuem, são as únicas profissões, além das tarefas da típica dona-de-casa, que não ameaçam a ordem e por isso são apreciadas pelo poeta: Em algumas profissões A mulher dava primeira, Ninguém ganhava pra elas Nas artes de rezadeira Fazer panela de barro Tecer balaio e esteira. As mulheres dessas profissões baseiam-se em saberes transmitidos de mãe para filha e entre vizinhas, mulheres analfabetas e de origem humilde. A rezadeira ocupa-se dos mistérios relativos à religião, concorrendo ora com o médico, ora com o padre, para afastar os males físicos e espirituais que se manifestam através de fluidos sobrenaturais. Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), a mulher rezadeira é uma idosa, que resguarda poderes de cura por meio de “benzimento”. Suas rezas constituem cura para “quebranto”, “mau-olhado”, “vento caído”, enquanto desenha cruzes sobre a testa ou cabeça do doente com pequenos ramos de folhas verdes, que murcham quando detêm o espírito maligno que trouxera a doença. Já o serviço da artesã aparece como indispensável, na medida em que se esmeram os objetos fundamentais do ambiente doméstico, mais precisamente da cozinha, espaço feminino por excelência. 75 E a preocupação com o novo comportamento da mulher dos últimos tempos culmina na questão da preservação da virgindade das moças. Como se sabe, a moral sexual imposta pelo sistema patriarcal obrigava que as moças se conservassem virgens até o casamento. Na relação conjugal, por questões da hierarquia existente entre os sexos, o marido tinha o direito de fazer a “inspeção”, ou seja, submeter a esposa à prova da virgindade. Caso outro homem tivesse “passado a mão na moça”, ou seja, desvirginado-lhe, o marido tinha o direito de devolvê-la aos pais. A mulher era reduzida à condição de um objeto, como uma mercadoria que poderia ser devolvida, caso não causasse satisfação por parte do dono (o marido). A ilustração a seguir pode constatar a afirmação: Se o marido descobrisse Na hora da “inspeção” Que antes dele outro homem Havia passado a “mão” Tinha o direito de Fazer a devolução. Nesse estudo, o artifício lingüístico utilizado para conduzir a representação da soberania do homem sobre a mulher, é a ambigüidade. Os vocábulos “buraco” e “pedaço” são intencionalmente utilizados pelo poeta com referências aos órgãos sexuais reprodutores masculino e feminino. Adão ficou perturbado Vendo um defeito daquele, Pois o que faltava nela Estava sobrando nele, Para tapar o buraco Meteu o pedaço dele. Os versos denunciam a posição de servidão da mulher durante o coito, tais como evidenciam as expressões tapar o buraco” e “meteu o pedaço”. O conjunto semântico revela, nesse contexto, o menosprezo pelo sexo feminino. 76 Finalmente, o poeta retrata a mulher decente como aquela que “leva uma vida honesta”. Para isso, permanece o maior tempo possível reclusa em casa. Uma mulher recatada, não sai pela vizinhança com o intuito de fazer intrigas. É o que observa o poeta por meio dos versos “não vive de porta em porta” e “e nem gosta de cachorrada”. Quando a mulher é honesta, Leva a vida recatada, Não vive de porta em porta Nem gosta de cachorrada Grosso modo, pode-se apreender que a mulher bendita é a mulher de antigamente, a mulher celibatária, voltada para os papéis tradicionais femininos e que preserva a hierarquia existente entre os sexos. A mulher maldita e devassa é toda aquela que defrauda o antigo sistema, ou seja, aquela que assume um patamar de igualdade com o homem na vida econômica e social. Concluindo essas considerações, o esquema a seguir dá uma visão precisa da relação entre a mulher de antigamente e a de hoje em dia. 77 MULHER OBRA DA NATUREZA ANTIGAMENTE DESTRUIÇÃO DA MORAL HOJE E DO PUDOR DEMONÍACA (EVA) BENDITA (VIRGEM MARIA) TRAIÇOEIRA CIUMENTA SUBMISSA DEVASSA, OUSADA (CASADA) LIBERTA VALENTE, DESTEMIDA MÃE PRENDADA INDEFESA TRABALHA FORA REZADEIRA COZINHEIRA RECATADA VIROU O JUIZO MANDONA, FOLGADA, ESCOLHE A PROFISSÃO USA TOUCA, ESPARTILHO, AMPOLETA, ROUGE, BATOM ALHEIA ÀS CONVENÇÕES FIEL ÀS CONVENÇÕES FIGURA 3 – Campo léxico-semântico em A mulher de antigamente e a mulher de hoje em dia. 6.2.4 A mulher e o cangaço Um dos assuntos mais curiosos, o qual aparece como indissociável da figura de Lampião, é o da entrada da mulher no cangaço, instituída por Lampião. Antes da entrada de Maria Bonita no cangaço, a presença de mulheres nos acampamentos visava tão somente à 78 satisfação das necessidades viris dos homens, normalmente prostitutas, com quem deviam ter contatos passageiros e de total desprendimento amoroso. A mulher só ingressou A partir de Lampião Muita coisa mudou Com a sua opinião Pois Maria interfiria Da maneira que podia Em cada situação. Desse modo, a permanência das mulheres no grupo e a configuração das relações amorosas num plano mais estável, como se deu a partir de Lampião, consistiu na primeira transgressão ao código de honra do cangaço. Os vocábulos “ingressou” e “interfiria” remetem à quebra de paradigma instituída pela entrada da mulher. O cangaço caracteriza-se como o período em que o Sertão nordestino tornou-se palco de lutas, mantidas entre os coronéis, adversários políticos que formavam suas próprias tropas para garantir a preservação de suas propriedades, grandes extensões de terra. O cangaceiro, inicialmente chamado de “jagunço”, mais tarde “capanga”, configurou-se como um tipo em defesa dos coronéis, chefes políticos, ricos fazendeiros e senhores de engenho. A esses, ligava-se por questões hierárquicas garantidas pelo sistema patriarcal. Esse tipo formava o grupo de cangaceiros dependentes. Porém, há a existência de um segundo tipo de cangaceiro, - que seguiu de modo independente da figura do coronel e propagou as façanhas e sangrentas lutas travadas pelo grupo de cangaceiros que mais assolaram o Sertão nordestino. As verdadeiras gestas que relatam o ciclo do cangaço, nas cidades nordestinas, aludem aos feitos de bravura e destemor dos cangaceiros Antônio Silvino e Lampião. Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), o designativo “cangaço” é derivado de “canga” e é usado no Nordeste desde 1834. A primeira acepção da palavra remete ao modo como o bandido ou bandoleiro era obrigado a carregar consigo os bens conseguidos 79 nos arroubos contra os ricos fazendeiros; reporta-se, mais especificamente, à tarefa árdua de conduzir o peso das armas, das munições, incorporando verdadeiros feitos relativos aos animais de carga, nas longas travessias do Sertão. No tocante à origem do cangaço, é importante assinalar que, embora Lampião tenha conquistado grande fama e a ele ser atribuído o maior movimento de lutas, os registros mostram, antes dele, a existência de combates de cangaceiros, sob a liderança do Mestre Cabeleira, cujas ações também constituíam um manifesto político-social contra a opressão da população pobre no meio rural do Nordeste, como mostra o folheto em estudo: 0 Cangaço começou Com o mestre Cabeleira Foi dele que iniciou Toda aquela pasmaceira, Pela falta de justiça E também pela cobiça Começou a bagaceira A situação de violência reporta-se ao bando de Cabeleira, como é mostrada através dos vocábulos: “pasmaceira” e “bagaceira”. A palavra “pasmaceira” remete à “contemplação de um fato sem interesse justificado”, ou à “uma admiração tola”, “idiota”, “imbecil”. O Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) abona essas acepções. Quanto à acepção do vocábulo “bagaceira”, este destaca, em sentido figurado, o clima hostil que se travara no sertão, desde as lutas do cangaço. A quebra do paradigma do cangaço tem a ver com o modo pelo qual a mulher conseguiu se adaptar ao mundo masculino do cangaço, sem abandonar os preceitos femininos. Determinados ideais, que eram defendidos pelos cangaceiros, foram tomados com a mesma intensidade ou mais pelas mulheres. Os atos de violência contra o estupro, por exemplo, eram repelidos, cruelmente e com a mesma intensidade com que faziam os cangaceiros, ao exterminar o criminoso ou algoz que violasse a honra das donzelas. 80 Cabe observar que a entrada da mulher nos bandos só foi possível porque ela deixou a submissão, o trabalho doméstico e passou a ocupar as frentes de batalha. Essas mudanças são referendadas no vernáculo do Cordel analisado, A mulher e o cangaço, sobretudo através dos termos convergentes “amenização” e “mudando essa visão”, que giram em torno da questão da violência. A importância da mulher, nesse quadro, fica mais latente através das expressões “força feminina” e “ingressando de menina”: Violência era o lema Desse bando no sertão, Porém, para este tema, Houve uma amenização Com força feminina Ingressando, de menina, Mudando essa visão. O fato de que alguns crimes foram poupados pelas mulheres, contrariamente ao clima hostil existente na figura do cangaceiro, mostra que a mulher, apesar de seu ingresso no bando e da incorporação de atribuições masculinas, ainda resguardava valores relativos à feminilidade: + bondade, + compaixão, + meiguice, + intuição, + beleza. Em todo o texto, há pólos significativos que retratam a ambivalência da personalidade da cangaceira. Entre as oposições mais expressivas podem-se destacar: “mais bonita”/ “bola prateada”; “batom e fita”/ “andava bem armada”; “enfeite”/ “bala de aço”. Cada conjunto de oposição encontra-se definido, separadamente, nas estrofes. Quanto à prática de estupros, é pertinente observar que essas eram exercidas especificamente no bando de Lampião. Essa prática poderia servir de constatação da real preocupação do cangaceiro em auto-afirmar-se diante dos outros homens, dando verdadeiras provas de virilidade e potência, estas, orientadas no sentido de reforçar a virilidade em grupo, uma vez estabelecidas a partir da violência sexual coletiva. Tal fato encerra uma contradição - ao mesmo tempo em que o cangaceiro defendia a todo custo a honra das moças donzelas de 81 condição mais humilde, ou das daquelas que consistiam seu objeto de veneração, não evitava a prática de estupro com outras mulheres, as de elite. Nesse ponto, cabe ressaltar a preocupação com a virilidade, que é, segundo Bordieu (2003, p. 64): (...) entendida como capacidade reprodutora, sexual e social. Mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência, sobretudo em caso de vingança, é, acima de tudo, uma carga. Em oposição à mulher, cuja honra, essencialmente negativa, só pode ser defendida ou perdida, sua virtude sendo sucessivamente a virgindade e a fidelidade, o homem verdadeiramente homem é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida, de fazer crescer, sua honra buscando a glória e a distinção na esfera pública. O paradigma fundamental da honra, enquanto poder do homem, situa-se na fronteira entre a “virilidade e a violência”, manifestando-se, paradoxalmente, na temeridade do homem em deixar transparecer que falhou, o que significa não ter sabido lidar com a companheira. É, sobretudo, o medo de ser tachado de “corno”, de ser tomado como “mole” ou “fraco”, perder o status de “homem macho”, conseqüentemente, o respeito e a admiração dos companheiros, que o cangaceiro traído se sente preso a uma armadilha: para livrar-se da humilhação de ser enganado, deve tirar a vida da companheira. A história da repressão ao adultério feminino obteve a mais alta repercussão com o caso da cangaceira Lídia, companheira de Baiano. A seqüência dos sintagmas “Baiano amava lídia”, “que amava Bem-te-vi” deixa entrever a existência de um triângulo amoroso na relação entre Baiano, Lídia e Bem-te-vi. Fica evidente também a paixão não correspondida de Baiano pela cangaceira. Verifique-se melhor por meio da estrofe: Baiano amava lídia Que amava Bem-te-vi No entanto, nesse dia, Uma lei se fez agir: Sua lei foi de pulada Para ter honra lavada, Como chamam por aqui. 82 Morrer a “golpes de Faca”, “pau ou de bala crivada”, “duma rajada”, “lei de paulada” são expressões utilizadas no texto para denominar o nível cruel e brutal em que eram conduzidas as penas para o adultério feminino. A morte de Lídia, colocada num plano simbólico, representa, nessas circunstâncias, a defesa da honra. Assim, para ter honra lavada, como diz o sertanejo, é que5ele prossegue com a “prova da macheza”, como consta no verso, que significa retirar a vida da companheira. Quanto à combinação dos elementos, como “audácia”, “coragem” e “valentia”, qualidades tomadas como inerentes ao universo masculino, manifestas agora na figura da cangaceira, denota uma inversão das práticas e valores do cangaço. Os vocábulos que se destacam no campo da valentia são “briga”, “montaria” e “pontaria”, e aludem às novas atribuições femininas instituídas no bando: Na briga e na montaria, Vou citar aqui Otília, Com destaque para Sila que merece honraria. A realização de alguns serviços domésticos tidos como femininos, quando passam a ser exercidos pelos cangaceiros, também reflete uma quebra do perfil machista dos homens do cangaço. As oposições “cabra/ comida” e “mulher/ servida” denunciam essa inversão de papéis. No cangaço a comida Pelo cabra era feita, A mulher era servida 5 Além das cangaceiras Maria Bonita, Dadá e Lídia, podemos citar como uma das personalidades mais importantes, no que se refere à redefinição dos papéis do cangaço, a cangaceira Sila, companheira de Zé Sereno. Dentre as cangaceiras de menor repercussão, mas que não puderam passar despercebidas na História e na Literatura, encontram-se Enedina, Inacina, Maria de Pancada, Neném, Otília, elas são citadas no folheto desta análise. 83 A presença feminina no cangaço fragilizava a noção machista de homem viril e guerreiro e a de sexo frágil para a mulher. Melhor dizendo, tornava inegável o fato de que a mulher podia se portar como guerreira e de enfrentar as mesmas batalhas ao lado dos homens. No campo das relações amorosas, tornou frágil a noção de virilidade masculina e a compreensão de que, para ser macho, era preciso manter contato sexual com várias mulheres, sem apego ou compromisso com nenhuma das parceiras, sempre com contatos efêmeros. Em suma, a idéia fundamental do texto é que a mulher consegue, a partir de sua entrada no cangaço contribuir para a reconstrução de alguns papéis e valores existentes no cangaço, rompendo com determinados estigmas sociais. Todavia, não consegue avançar no que diz respeito à desigualdade relativa ao código de honra, que prevê a monogamia apenas para o sexo feminino. Bastante complexa é a entrada da mulher no cangaço, considerando-se a concepção até então existente sobre sua fragilidade e dependência. Contudo, em sendo assim, o momento é mostrado no esquema a seguir. 84 MULHER NO CANGAÇO ROMPIMENTO COM A TRADIÇÃO AMBIENTES, MODAS E COMPORTAMENTOS INTERFERÊNCIA NO COMPORTAMENTO MASCULINO AMENIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER CRISTALIZAÇÃO DA TRADIÇÃO PUNIÇÃO E ADULTÉRIO MONOGAMIA FEMININA MORTE SERVILISMO E SUBMISSÃO VIDA DE CANGACEIRO GUERREIRA SEMELHANTE AO HOMEM FACA, PAU, BALA CRIVADA VALENTE FIGURA 4 – Campo léxico-semântico em A mulher e o cangaço. 6.2.5 A mulher no lugar do homem A identificação das mulheres trabalhadoras com o mundo privado e doméstico é o reflexo da estrutura cultural patriarcal e paternalista, que perpetuou a crença na incapacidade feminina e a noção da natural dependência da mulher em relação ao homem. No caso da sociedade nordestina, essa operou com mais nitidez os valores culturais do patriarcado, recrudescendo a relação da mão-de-obra feminina com o setor doméstico. A mulher nordestina durante muito tempo foi identificada com o mundo social privado e doméstico, independente da classe social a que pertencia. O modo de viver da gente do Sertão e as formas de subsistência e sobrevivência da maior parte da população foram todas fundamentadas ainda nos tempos de escravidão. 85 A vida de mulher branca, de dependência e submissão ao marido e a da mulher escrava, a de mucama, ama-de-leite, cozinheira, bordadeira, lavadeira, engomadeira, costureira, doceira, entre outras atribuições, foram incorporadas ao espaço das senhoras de elite ou, mais especificamente, à esfera doméstica, conforme foi falado anteriormente. A mulher pobre e livre, não gozando de status ou do privilégio de casar-se com marido rico, desde cedo, teve que encarar os serviços domésticos, sendo obrigada, pois, a exercer os mesmos afazeres domésticos que eram realizados pelas mãos das negras. Os trabalhos caseiros ficaram, desde então, associados exclusivamente ao sexo feminino. O trabalho da mulher Para que não fale o povo É amarrar uma cabra Dar leite a um gato novo Tratar duma bacorinha Botar milho pra galinha E reparar se tem ovo A abertura de possibilidade de trabalho significava um comprometimento nas bases da organização paternalista dominante, fazendo-se sentida pelos conservadores como o mais completo caos da sociedade. O primeiro agravo era “a mulher tomar o lugar do homem”, como mostra a idéia a seguir: Hoje se torna difícil Emprego para rapaz Nos estabelecimento Dos homens industriaes Porque a moça sabida É muito mais preferida Nas casas comerciais O campo da domesticidade se organiza pelas expressões: “amarrar uma cabra”, “dar leite a um gato novo”, “tratar duma bacorinha”, “reparar se tem ovo”, “varrer casa e fiar”, “deitar galinha e piruá”, “lavar prato”, “catar pulga no vestido”, “catar pulga no gato”, “botar milho pra galinha”. 86 As expressões pitorescas “e tratar dos seus filhinhos” e “também catar bichinhos nas barbas de seu marido” designam a desvalorização social feminina. A noção antiga de que o trabalho era compatível somente com a figura masculina, está por trás das expressões a “mulher passou na frente”, “tomando o lugar do homem” e “tomou as calças da gente”. A idéia de que o homem está perdendo espaço e o emprego e a mulher ocupando o seu lugar, é reiterada na seguinte estrofe: Meu primo pediu emprego Na loja de seu Bernardo Ele lhe disse eu não tenho Emprego para barbado Todo o meu negócio agora Quem faz è moça e senhora Que me dar mais resultado O êxito em se colocar uma mulher bonita no trabalho se dá em decorrência de ela atrair fregueses do sexo masculino. Fica subtendido que a mulher só é útil em funções nas quais ela permaneça com suas qualidades femininas, docilidade, meiguice, paciência. Daí, sua natural vocação para telefonista, recepcionista, secretária, professora (principalmente de crianças), entre outras que para a sociedade são profissões quase sempre consideradas secundárias. O termo “barbado”, no Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), é definido como “adulto”, “marmanjo”, “homem”. Esse termo, na fala comum do povo, é usado para remeter, em tom de ironia ou deboche, a incompetência, desvio ou incapacidade do homem de se portar como tal, em um dado momento. A combinação das circunstâncias de negação, a partícula “não” com a de espaço “agora”, impõe uma maior ênfase na idéia de que nos tempos atuais o homem não tem mais serventia nos cargos empregatícios, uma vez que esses passam a ser ocupados pelas mulheres. 87 No campo das mudanças comportamentais femininas, assinala-se uma reconstrução de valores, visualizadas em forma de novas atitudes, pensamentos e práticas sociais: Escanchar-se em bicicleta Isto pertence a rapaz Como também futebol Que coizas tristes falaes Esses lugares não tomem Porque so pertence a homem Mulher que pensa não faz Está no imaginário popular que se a mulher andar de bicicleta pode perder a virgindade. Assim, a posição de sentar na bicicleta não é adequada “às moças de família”, que devem sempre estar de pernas fechadas e a bicicleta impossibilita isso. O texto aponta, pois, as mudanças havidas entre os padrões de comportamento antigos e novos, tratando, sob um prisma negativo, a incorporação de novos modelos, principalmente quanto à inserção feminina no mercado de trabalho, refletida numa postura aterrorizante ao homem. Daí, concluímos com a apresentação do esquema a seguir, para melhor compreensão. 88 MUDANÇA DE PAPÉIS FEMININOS PERDA DO STATUS MASCULINO IGUALDADE COM O HOMEM VOTA FOI VOTANTE NO TEMPO DA ELEIÇÃO BICICLETA MEDO FRUSTRAÇÃO ENCANCHARSE EM BICICLETA JOGA FUTEBOL TRABALHA FORA VESTE CULOTE E PERNEIRA TOMA O LUGAR DO HOMEM FIGURA 5 – Campo léxico-semântico em A mulher no lugar do homem. 6.2.6 As duras lamentações de uma coroa No dizer popular, uma coroa é uma pessoa que está passando da maturidade à velhice; é, na concepção da pessoa que fala, alguém idosa ou de idade ultrapassada6. Costuma-se dizer que quando uma pessoa chega aos trinta anos de idade, passa a ser coroa, porém, o mesmo designativo recebe uma apreciação diferenciada, conforme a aplicação para os sexos feminino ou masculino. Ambos os empregos possuem o sema da idade, embora esse designativo seja normalmente empregado com relação à mulher, num sentido pejorativo. Já com relação ao homem, o fato de ser “coroa” significa, na maior parte das vezes, tornar-se mais maduro e mais autoconfiante, mais envolvente ou mais viril. 6 O autor deste folheto de Cordel aborda o mesmo tema em Vida e morte de uma coroa, descrevendo em pormenores “o que é ser uma coroa”. Em outro folheto ainda, intitulado O que uma coroa deve fazer para se casar”, o poeta apresenta uma receita de oito páginas para o alcance desse objetivo. Esses folhetos estão inclusos no corpus da análise. 89 Quase via de regra, a idade de trinta anos no homem representa o momento propício da decolada na carreira. É, desse modo, o momento propenso às chances de êxito no âmbito profissional e na vida pessoal, quando acumula o maior número de conquistas femininas. Para a mulher, de modo adverso, essa idade significa a ruptura com a felicidade. Esse período pode ser mais desvantajoso se, nessa idade, a mulher não tiver conseguido arranjar um homem, um marido. É quando se atesta, nesse sentido, a ineficiência no poder de conquista feminino e, portanto, a eliminação de todas as possibilidades de sucesso na vida. As duras lamentações de uma coroa transmitem o sentimento de desespero e angústia feminina, quando é chegada a velhice. A fase da adolescência, mencionada como sendo os tempos gloriosos, onde a mulher tira proveito da vida, é lembrada nas expressões de lamento, “quem me dera que eu tivesse 17 anos de idade”: Se eu tivesse esses anos Com toda sinceridade Eu namorava todo homem Que vivesse na cidade! Quando o objetivo único da mulher deveria ser conquistar um companheiro, a característica feminina que mais contava era a beleza. Mas ao lado dela, a mulher precisava apresentar outros: ser “sabida”, “fácil” e “ligeira”, vocábulos que condizem com o perfil feminino estabelecido pela sociedade. A recordação da personalidade “Cleópatra”, na fala da mulher, representada pela “coroa”, expressa a inveja da habilidade da princesa egípcia, que pôde usar dos seus artifícios naturais para atrair os homens e conseguir deles o que queria. Quem me dera que eu fosse Jovem, bonita e faceira Eu só vivia entre os homens Como uma dama primeira Eu era como Cleópatra Sabida, fácil e ligeira 90 A falta de um corpo jovem, a perda da beleza, reflete a falta de qualquer perspectiva para a mulher, quando se tem uma idade mais avançada. A velhice significa, pois, a perda do vigor feminino, o padecimento e abandono: Mas agora eu estou só Triste e desiludida Já passei dos 33 A velhice não é encarada como sinal de maturidade e experiência, um decurso normal da vida, mas como uma desgraça, insucesso na vida de uma mulher, em função da perda da aparência anterior – “a pele está frangida”, “já passei dos 33”, “como perdi a sacudida”, que demonstram o sofrimento provocado pela depreciação das qualidades no tempo de juventude: Como perdi a sacudida Se eu subo a minha sáia A minha pele está frangida! Existe uma variedade de termos na fala do povo para designar a mulher idosa ou que já tenha passado da idade de se casar: “bofe”, “sucata”, “courão”, “bucho”, “fúfia”, “surrão”, “tia”, “bagulho”, “fulustreca”, “traste”, “maroca”, “caritó”. Todos eles estão carregados semanticamente de significados para categorizar a mulher velha como um ser imprestável uma “mulher velha” e “cheia de pelancas”, que como diz o dito popular, “já deu o que tinha que dar”. (Cf. em Calepino potiguar: gíria norte-riograndense). A associação da idade avançada com a desgraça feminina, é apresentada nos versos a seguir: Agora estou desgraçada Não há quem queira mais... 91 A expressão da condição desgraçada da mulher em virtude da idade, conseqüência da falta de interesse dos homens com relação a ela, é posta em ênfase na construção da estrofe apresentada: Quantas vezes eu rezei A trezena de Santo Antônio Parece até ser armada Do horroroso demônio... Vou rezar a cabra preta Mas garanto meu patrimônio. “A trezena de Santo Antônio”, mencionada no discurso em 1a pessoa, manifesta o apelo da personagem pelas rezas, quando o objetivo único é arranjar casamento. As trezenas de Santo Antônio são rezas tomadas pelo católico em devoção ao santo, nos treze dias anteriores à festa em devoção e homenagem a ele. O número de dias é uma reminiscência ao dia de seu falecimento, no dia 13 de junho de 1231. As rezas a Santo Antônio representam o mais alto sentido de desespero da personagem em relação às chances de casamento, sentidas como nulas. Santo Antônio é, na imaginação que o povo nordestino concebeu, uma figura milagrosa e protetora, cujo poder por excelência é conceder a realização de casamentos, não frustrando as esperanças das moças casadoiras. Daí por que, vulgarmente, é chamado santo casamenteiro, Santo Antônio é o santo da lenda e das tradições populares, aquele cujo poder alcança a ressurreição dos mortos, a cura de doenças, o alívio no bolso dos ricos em defesa dos pobres, o livramento das misérias e das causas mais difíceis. Fica na mente do povo o seu mais alto exemplo de honestidade, humildade e prodigalidade para com os mais necessitados. A investida na reza da cabra preta, como substituição à trezena, configura uma mudança na crença religiosa. A cabra preta significa, na expressão popular, o ritual de feitiçaria em que se evoca a figura do Diabo. Nesse contexto, o pacto com o diabo constitui a última chance de casamento da personagem. 92 De diversas maneiras, a mulher procura superar suas diferenças, principalmente, a beleza, que está relacionada, normalmente, ao olhar masculino, pois a beleza só lhe é prazerosa quando, através dela, a mulher consegue seduzir um homem. Os contos infantis incorporam esse estereótipo: a madrasta da Branca de Neve é um exemplo clássico disso. Ademais, as designações que competem para a depreciação da mulher, no folheto, relacionam juízos referentes à imagem feminina em função da idade. Fica entendido, pois, que não há espaço para a velhice no campo da beleza, ou vice-versa. A sistematização das “lamentações de uma coroa” permite uma melhor compreensão do que a mulher tem que enfrentar quando não casa cedo, conforme se vê na página seguinte. 93 LAMENTAÇÕES PLANO MORAL E ESPIRITUAL PLANO MATERIAL MALES VELHICE BEATICE REJEIÇÃO DÓI O PANARIÇO MASCULINA REZA PARA CONSEGUIR CASAMENTO EU SÓ POSSO ENDURECE O MEU TOITIÇO ACREDITAR QUE NEM DIABO ME TREZENA E AS PERNAS QUEIRA DE SANTO NÃO AGUENTAM... ANTONIO FIGURA 6 – Campo léxico-semântico em As duras lamentações de uma coroa. 6.2.7 As modas escandalosas de hoje em dia A preocupação com os valores e o temor da degradação dos costumes é a causa mais eminente do saudosismo dos tempos passados, sobre os quais os cantadores sertanejos reservam as maiores lembranças. Esses recordam, como lembra Cascudo (1973, p. 152), “como se tivessem vivido há cem anos, cenas de simplicidade longínqua, o respeito dos filhos, a veneração da esposa, a candidez dos filhos”. É nesse sentido que o poeta, revoltoso com a falta de decência feminina, como que sentindo falta da tranqüilidade dos antigos tempos, esbraveja: 94 A decência atualmente, Pra muitos não vale nada!... Uma mulher de respeito Seja solteira ou casada Se ela não andar nua Se requebrando na rua.., Dizem que ela ê uma errada! A ação de requebrar (de re+quebrar), conforme o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), significa “saracotear”, “rebolar”, “remexer”. Usa-se normalmente a expressão “requebrar os quadris”, ou a substituição dela por alguns de seus correlatos, no intento de referir-se ao andar insinuante ou provocante de uma mulher. O campo do escândalo organiza-se, pois, com os termos “andar nua” e “requebrando na rua”. Esses, numa relação disfórica, estão relacionados moralmente, com o aviltamento do corpo feminino. Os versos “com doze anos começa” e “com o cabelo feito moça” referem-se à mudança da fase de meninice à de puberdade. O vocábulo “moça” está intrinsecamente ligado ao momento em que a menina é ”batizada” com o fluxo menstrual, um momento expressivo e simbólico do ponto de vista das crendices e superstições nordestinas acerca desse fenômeno. O Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999) também apresenta a acepção de “moça” como “jovem”, “rapariga”, “mulher púbere”, “mulher madura que não é velha”. Percebe-se, assim, que o sentido do termo tem relação específica com a questão da honra feminina. Por isso, toda a preocupação dos pais, com o fato de que é nesse momento que a moça pode perder a virgindade, adquirir uma gravidez indesejada, e tudo isso tem relação com a primeira menstruação. A reprovação do poeta sobre o comportamento da moça incide no fato desta tornar-se independente e, portanto, suscetível e desejosa de perder a própria honra (antes tão resguardada pelas mulheres), na concepção de que se a mulher se iguala ao homem passa a ter atitudes que não condizem com sua feminilidade: 95 Infelizmente hoje em dia Se o rapaz é moleirão Não beija a moça com força Quando está na escuridão E se com ela não bole... Diz ela que ele é mole Não serve pra ela, não! A expressão “ele é mole”, que converge para outras acepções populares como “negar fogo e não dar conta do recado”, deixa entrever que, mesmo incorporando novos modelos de conduta, a mulher moderna ainda conserva preceitos antigos, como o de considerar que o homem só é viril quando toma a iniciativa, que esse tem por natureza um instinto sexual incontrolável. Deduz-se que o rapaz é “moleirão” quando não a deflora, ou não aproveita o fato de que ela está vulnerável a ele. O texto em tela tem como objetivo mostrar que as mudanças verificadas na humanidade são decorrentes da depravação e da corrupção dos antigos valores, apontando a mulher como a mais responsável pela decadência dos costumes remotos, tidos como ideais, numa visão machista para os dias atuais, e que essas mudanças se apresentam como modas escandalosas, o que leva a uma visão da “moça ajuizada” e da “moça sem juízo”. É o que mostra o esquema a seguir. 96 MODAS MOÇA AJUIZADA MANUTENÇÃO DO ESTILO CONSERVADOR ADESÃO AOS COSTUMES MASCULINOS MOÇA SEM JUÍZO SEMELHANTE AO HOMEM COMPORTAMENTO INVASÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS PULANDO EM PRAÇA PÚBLICA BEBE SE REQUEBRANDO NA RUA FUMA VESTE CALÇA DE HOMEM FIGURA 7 – Campo léxico-semântico em As modas escandalosas de hoje em dia. 6.2.8 Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia No texto em estudo, há o destaque para o campo da beleza e sedução feminina. Nesse, foram listados os termos que caracterizam o modelo de mulher ideal, segundo a visão masculina. No campo da beleza e sedução, enumeram-se os atributos femininos, tais como a beleza, a doçura, o calor e a ternura; esses constituem os principais pré-requisitos para que uma mulher seja aceita do ponto de vista do poeta. A supervalorização do conceito de + beleza feminina está relacionada ao de + saciedade do homem. Daí, uma forte conotação entre os prazeres do corpo e o prazer dos alimentos. No item beleza, o perfil feminino, que objetiva o agrado do homem, corresponde a três ingredientes fundamentais: não basta ser bela, a mulher tem que ser “carinhosa”, “fogosa” e “gostosa”. A estrofe abaixo serve de exemplo: 97 Beijo de mulher bonita Tem gosto de mascatel É farinha de castanha Quando é traçada com mel A impressão de saciedade sexual do homem fica subentendida nos vocábulos “paz”, “amor”, “honra” e “amizade”. As metáforas “fome de amor” e “preenche a necessidade” deixam entrever a idéia de semelhança do corpo feminino com o alimento propriamente dito, capaz de saciar a fome de carinho, prazer, desejo, etc. Esse conjunto de sensações insere-se no campo do desejo, o qual pode ser exemplificado através da estrofe a seguir: Beijo de mulher bonita Preenche a necessidade E a fome de amor Com toda sinceridade E o homem com ela sente Paz, amor, honra e amizade Os vocábulos “fome” e “necessidade” enfatizam o lado instintivo sexual masculino e machista, colocando a mulher como alimento capaz de saciar esse instinto, conforme foi dito. A palavra “beijo” inclui-se tanto no campo da sexualidade, enquanto carícia trocada entre os namorados ou amantes, quanto no campo da amizade, significando um ato comum de afeição ou cumprimento travado entre pessoas da mesma família ou com parentesco próximo. A ação de beijar é amplamente inserida num contexto simbólico, significando, num contexto de malícia e de suspeita, o sentido de traição - o beijo de Judas Iscariotes em Jesus, está inserido num contexto da traição e prenúncio de morte – logo após ter traído a seu Mestre, o apóstolo se suicida. Com efeito, a relação beijo/ traição parece provir daí. No Nordeste, ainda é muito comum entre o povo dizer-se “cheiro”, no lugar de beijo, como observa Cascudo, em sua obra Superstição no Brasil (2002). Essa palavra é revestida de afetividade, principalmente na fala das mães nordestinas, na troca de carícias dirigidas aos filhos menores, as quais abusam da expressão “Dá um cheirinho na mamãe!”. 98 Mas, na verdade, o cheiro insere-se num contexto ambivalente, - é usado, ou para registrar um maior teor de afetividade, imprimindo uma atmosfera de pureza, de carícia angelical, ou pode apresentar um fundo de malícia e refletir uma essência voluptuosa. Nesse caso, é importante escrever que dificilmente a frase “dar um cheiro no cangote”, poderia ser inserida no primeiro contexto. Verifica-se uma dupla idéia na expressão “mulher boa”, presente no texto, dado que essa expressão tanto serve para designar, literalmente, uma mulher bondosa ou virtuosa, quanto imprime, maliciosamente, a conotação de mulher “gostosa”, “boazuda”, “de físico provocante”, acepções de acordo com o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999) e o Dicionário de palavrão e termos afins (1998). Não existe nada melhor Do que uma mulher boa Bonita e bem carinhosa Agrada a qualquer pessoa Quem beija ela sente Amor, carinho e quentura A combinação sinestésica entre a beleza feminina e os sentidos, - visão, olfato e paladar, tem como efeito, reiterar a idéia do tesão, do prazer masculino. Assim, a seqüência de vocábulos “amor”, “carinho” e “quentura” insere- se no campo da volúpia feminina. De modo inverso, a “mulher feia” é negativamente posta no plano da recusa e da insatisfação masculina. Portanto, as comparações pejorativas, que remetem a esse tipo de mulher traduzem sensações desagradáveis, tais como “dor”, “incômodo”, “medo” e “choro”, de forma preconceituosa. Essas sensações estão expressas nos trechos a seguir: Carinho de mulher feia É murro, coice e patada Empurrão, pota-pé Beliscão, soco e dentada 99 Carinho de mulher feia Eu nem quero nem de graça Até de longe faz medo Os versos apresentados refletem uma analogia entre mulher feia e alguns animais. Os vocábulos “coice” e “patada”, “baleia” e “macaco” são os designativos mais depreciativos, usados para reforçar as semelhanças existentes entre os humanos e os outros seres. O designativo “macaco”, quando usado para referir-se ao sexo feminino, é quase sempre com o objetivo de insultar a mulher negra. Carinho de mulher feia Além de singelo fraco Se parece uma baleia Cada olho é um buraco E o bafo da boca dela Tem catinga de macaco Beijo de mulher feia Tem catinga de monturo Tem gosto de café frio No Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense (1980), o verbete “macaca” é registrado como “mulher que está sempre a reclamar de tudo”. O sentido do verbete traduz claramente o comportamento agressivo do homem sertanejo com relação à mulher. As expressões “catinga de macaco”, “catinga de monturo” e “bafo” são usadas, pejorativamente, com a finalidade de atingir o negro. A alusão aos termos em relação ao beijo da “mulher feia” aparece como simples pretexto para depreciar a negra, tecendo um paralelo entre ela e o macaco, tanto do ponto de vista da aparência física, quanto do odor. Essa produção de sentido fica mais evidente pela organização do campo da raça, cujos semas mais evidentes são “monturo” e “café”. 7 Enfim, o texto pretende mostrar que a mulher é aprazível na concepção do homem, enquanto dotada de atributos físicos, quando sua única função é utilizar o corpo para agradá7 Essas mesmas idéias aparecem novamente no folheto “O malandro e a peniqueira...”. 100 lo. Por isso, a constante vaidade da mulher com o corpo, com o cheiro e com todos os artifícios necessários para instrumentá-lo a essa função, são, nesse contexto, vistos como positivos. O esquema a seguir, esboça, resumidamente, a análise do texto em estudo: ESSÊNCIA FEMININA MULHER BONITA SENSUALIDADE NOJO E REPUGNAÇÃO MULHER FEIA PRAZER AO HOMEM NÃO SENSUALIDADE DESAGRADO AO PATROA HOMEM PROVOCA ESTIMULANTE DOS SENTIDOS BEIJO CHEIRO DOCE COMO MANGABA AMOR, CARINHO, BEIJO SINGELO E FRACO RAIVA ENJÔO FADIGA AMARGO QUENTURA DE COISA BOA BAFO TEM CATINGA DE MACACO TEM CATINGA DE MONTURO FIGURA 8 – Campo léxico-semântico em Beijo de mulher bonita e carinho de mulher feia. 101 6.2.9 História da mulher da língua grande Na Cultura Popular, a imagem que se espraiou sobre a mulher foi a de que ela é naturalmente difamatória e caluniadora, como dissemos na análise do folheto A Língua da Mulher Faladeira. O termo corrente “mulher tem a língua grande” ou “mulher de língua comprida”, remete à mulher “fofoqueira”, ou seja, a que vive reparando e comentando sobre a vida dos outros, conforme registra a obra Calepino potiguar: gíria norte rio-grandense (1980). Há todo um conjunto de estrofes que fornecem significações humorísticas e irônicas acerca da imagem feminina, no sentido de reforçar a associação entre a fala da mulher e a destruição: A mulher da lingua grande Quero aqui aconselhar Corte a metade da língua Para não te condenar Porque do jeito vai Ela vai te devorar. Os verbos “condenar” e “devorar” são os núcleos da informação sobre o perfil maligno da mulher, construído em função de uma postura preconceituosa e machista em relação ao sexo feminino. Essas idéias são impressas novamente na estrofe a seguir: Mete o pau Ela se dana a falar Fazendo a maior zuada Pois a língua dela ataca Na linguagem popular, “meter o pau” em alguém significa difamar. O vocábulo “pau”, associado ao termo “ataca” insere-se no campo da agressão e é semanticamente usado para referir-se ao comportamento difamatório da mulher, passando a considerar o uso da palavra pelo sexo feminino, potencialmente destruidor e maléfico. 102 Encontra-se, no folheto analisado, uma abundância de vocábulos e expressões para definir a mulher desse perfil: “linguaruda”, “mulher da língua grande” e “fuxiqueira” são alguns dos designativos mais freqüentes na linguagem popular. A categorização de “mulher da língua grande”, presente no próprio título do Cordel, é correlata do designativo “linguaruda”, podendo significar “alguém que não consegue guardar segredo”; ela é cognata da expressão “bate com a língua no dente”, como revelam os versos a seguir: Mulher da lingua grande Não se confia um segredo Porque ela põe na rua No outro dia bem cedo A mulher que desagrada, ou seja, a “mulher da língua grande”, é aquela que toma partido da vida dos outros. Essa, na visão do poeta, é, pois, passível de receber punição física, é quem merece “cair na peia”, isto é, “castigo com açoite”, “surra”, acepções registradas no Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003). O Cordel referenda as expressões presentes na linguagem popular: Porque leva a sua vida Só falar da vida alheia, Pra deixar o mau costume Merece cair na peia. A mulher faladeira é também aquela que não cansa no seu discurso repetitivo: A mulher da língua grande Fala que o filho é seboso Que a nora é fuxiqueira Que o genro é preguiçoso, Que a filha è sapatão, Que o marido è vaidoso. 103 A essência pejorativa dos termos utilizados com referência à mulher é um reflexo do conceito machista, discriminatório e depreciativo sobre a figura feminina, nos moldes patriarcais de nossa sociedade. Agora sou uma desgraçada Com meus dentes amarelos Estou de bucho quebrado Que não vejo os meus chinelos Muitos são os termos usados para referir-se à mulher, seja em relação a atitudes que desagradam: “faladeira”, “assanhada”, “atrevida”, ou, mesmo, por seu aspecto físico; se não é bonita, nem jovem, crescem os adjetivos que lhes são dirigidos, sempre de forma depreciativa. Conclui-se que a mulher tem valor na sociedade enquanto goza de boa aparência física e quanto menor for sua idade. As designações, que competem para a depreciação da mulher, relacionam juízos referentes à imagem feminina relativa a seu tempo de vida. Não há espaço para a velhice no campo da beleza, ou vice-versa. A síntese da análise de História da mulher da língua grande encontra-se no esquema a seguir. 104 MULHER DA LÍNGUA GRANDE NATUREZA DIFAMATÓRIA MERECE PUNIÇÃO PECADO DE EVA LÍNGUA GRANDE BATE COM A LÍNGUA NO DENTE ELA SÓ VIVE A FALAR SUA LÍNGUA SE DANA A COÇAR DESRESPEITA AS AUTORIDADES E AOS REPRESENTANTES DA IGREJA PADRE E FREIRA DELEGADO, JUIZ, PROMOTOR, ESCRIVÃO, SOLDADO E PREFEITO FIGURA 9 – Campo léxico-semântico em História da mulher da língua grande. 6.2.10 Maria Bonita – mulher macho, sim, senhor Maria Bonita é o símbolo de força, de valentia e coragem da mulher sertaneja, pela coragem em entrar para o cangaço e lutar em pé de igualdade com o homem cangaceiro e destemido. A cangaceira Maria Bonita é uma figura antagônica, tanto do ponto de vista da estética, quanto da moralidade. Era chamada de princesa, pelo seu companheiro Lampião, por despertar no sertanejo o sentimento de admiração em torno de sua beleza. Ao mesmo tempo Maria Bonita significou, aos olhos das sertanejas, um exemplo de coragem e heroísmo ao 105 conseguir penetrar no bando e por ter conseguido o respeito e a admiração dos cangaceiros, para quem a valentia e a coragem eram, por excelência, qualidades masculinas. A entrada do cangaço só pode ser vista como positiva, no momento em que a mulher deixa o papel estipulado socialmente para uma mulher nordestina, o de mulher pobre e submissa e adentra-se num universo essencialmente masculino, que é o cangaço. Desse modo, Maria Bonita não só vai ser respeitada, como também admirada, porque consegue agregar os semas masculinos “valentia”, “coragem”, “intrepidez”, “ferocidade”. Mas, principalmente, porque não precisara utilizar-se do carma da beleza como arma de sedução para entrar no cangaço. Ou seja, apesar de ser bela, não obteve em nenhuma instância a aceitação ou o reconhecimento por parte do grupo, em função dessa qualidade. Além do mais, Maria Bonita impôs-se, não por ser a mulher de um líder, mas através de seu caráter, conseguindo ser respeitada e temida até mesmo pelos próprios homens do cangaço. O cabra que faltasse Respeito se arrependia Macaco na unha dela Se descuidasse perdia Porque ela em sua mira Por detrás na macambira Quem a enfrentasse morria Os termos “o cabra”, “cangaceiro”, “valentão” ou “capanga”, e também “o criminoso”, ou “pistoleiro”, como consta no Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003), do modo como são utilizados na estrofe, põem em enlevo a postura invencível e viril da cangaceira Maria Bonita, ou melhor, destaca a autoridade da cangaceira em relação à figura masculina, colocando-a como um ícone maior entre as outras figuras do cangaço, sejam essas masculinas ou femininas. No que diz respeito às outras mulheres que entraram no bando vale salientar que, nenhuma outra conseguiu atingir o mesmo nível de ascensão que Maria Bonita, ainda que 106 tenham abandonado suas famílias e provocado um desequilíbrio na própria estrutura familiar para entrar no bando. Mesmo após a entrada no bando, Maria Bonita conserva os preceitos femininos normalmente esperados de uma mulher, tais como “beleza”, “vaidade”, “lealdade”, “monogamia” e “apego à religião”, apesar do ambiente hostil no qual se encontra, até pelas condições climáticas e a convivência com homens rudes. Nesse sentido, a visão que estabelece com relação ao seu perfil de mulher é eufórica, pois é essa incorporação de atributos tanto femininos, quanto masculinos que a torna um ser superior, “uma heroína”, do ponto de vista do cordelista: Maria Bonita era, Mulher macho, sim, senhor, Porque na hora da luta, Era a fera do terror, Era a cobra cainana Ou a tigre sussuarana Que todos tinham pavor. O apego às normas convencionais propostas à imagem da mulher nordestina, tais como a fidelidade ao marido e a tradição religiosa, mais uma vez pode ser demonstrado através da estrofe seguinte, notadamente nas expressões “mulher valoroza”, “nunca traiu seu amante” e “fiel à religião”, como se vê no trecho a seguir: Nunca traiu seu amante O amava de coração Matava, sim, é verdade, Quando havia precisão Mas era conscienciosa Como mulher valoroza Fiel à religião Engajada na rebelião social política, a cangaceira Maria Bonita vai assumir o posto masculino, sem deixar perder as suas qualidades femininas. À medida que a cangaceira assume determinados papéis e responsabilidades tipicamente masculinas, como a liderança no 107 bando de homens, papel inerente ao homem, transgride os padrões de conduta sexual previstos. A expressão “mulher macho”, que lhe é reservada, é um reflexo disso. A palavra “macho” remete a acepções tomadas tipicamente ao sexo masculino, tais como “amante”, “amásio”, “tipo forte”, “viril”, “valentão”, sobre a definição do Calepino potiguar: gíria norte-riograndense (1980, p. 288) e deu origem a toada original nordestina “Paraíba masculina, mulher macho sim senhor”.8 É interessante observar que, antes da entrada no cangaço, Maria Bonita atendia ao modelo de mulher vigente na sociedade nordestina. No tempo em que o casamento no Sertão era a única alternativa de livramento da miséria e da fome, para as moças e da própria família, Maria Bonita casa-se para atender às exigências por parte da tradição rígida de obediência ao pai. Nesse ponto, ela corresponde ao modelo de submissão imposto ao sexo. Maria Bonita era Mulher pobre do Sertão, Casada com um sapateiro, Sem ter uma profissão; Sem freqüentar a escola Casou-se com um lambe-Sola Quase por Obrigação. Percebe-se claramente a condição social e a falta de expectativa da mulher nordestina, que responde quase sempre pelo estigma da mulher pobre, cuja única esperança é depositada num casamento. Também se desvela o estigma de classe sobre o qual convive esse tipo de mulher, que é o de relacionar-se apenas com homens de situação econômica desfavorável. As expressões “casou-se com um lambe-sola” e “mulher pobre do Sertão” compõem semanticamente essa idéia. “Lambe-sola”, quer dizer sapateiro, tal como registra a obra Geringonça do Nordeste: a fala proibida do povo (1989). A profissão do sapateiro é, desse modo, condizente, com a mulher pobre sertaneja. 8 Dái as insígnias em relação à sertaneja, como mulher valente, brava, rude, guerreira, muitas vezes contribuindo para uma imagem depreciativa ou debochada sobre a mulher nordestina. 108 Ainda sobre a questão do casamento, o cordelista evidencia que, ante a circunstância de miséria, essa opção significa a única salvação e o livramento de ser “mulher-perdida”, ou seja, tornar-se “meretriz” ou “prostituta”, como registra o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999). Observe-se por meio do trecho: A mulher nova, cheia de vida, Pra não ser mulher-perdida O casamento aceitou. A presença da mulher no cangaço, novamente mencionada nas passagens a seguir, desmantela o arquétipo de mulher frágil e totalmente dependente do homem: Maria Bonita Não suportava a moleza Do seu infeliz marido E a pobreza dos pais Naquele Sertão sofrido, Vivendo por comida Dizia que a melhor vida Era a do homem bandido O vocábulo “moleza”, remetendo a característica inerente a Neném, marido de Maria Bonita, objetiva mostrar o contraste existente entre o perfil desse homem, - covarde, passivo e acomodado, em relação ao perfil masculino existente na figura de sua esposa. Tem-se, pois, uma inversão no modelo estabelecido de homem e de mulher sertaneja: tanto Neném carrega semas femininos, quanto Maria Bonita detém os semas da “força”, da “coragem”, do “dinamismo”, previsto apenas para um homem. Em poucas linhas, o Cordel expressa a idéia de que a mulher pode até tomar um outro rumo para a sua vida, incorporar ideais masculinos, mas não pode sair do seu universo feminino. Por isso, a cangaceira não aceita desvencilhar-se de determinados preceitos antigos, como o da fidelidade ao companheiro e da crença religiosa. 109 O esquema exposto ilustra melhor as relações semânticas básicas entre os vocábulos coletados no folheto: MARIA BONITA DEPOIS DO CANGAÇO ANTES QUEBRA DA TRADIÇÃO MODELO CONSERVADOR SUBMISSÃO CASOU-SE COM LAMBE-SOLA QUASE POR OBRIGAÇÃO LIBERDADE AO PAI E MARIDO SEPARA-SE E ABANDONA AO MARIDO ENTRADA FEMININA NO CANGAÇO VIDA DE CANGACEIRA FIDELIDADE/ CRENÇA FIGURA 10 – Campo léxico-semântico em Maria Bonita, mulher macho, sim, senhor. 6.2.11 Nascimento, vida e morte de uma coroa Segundo o Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), o termo “coroa” indica uma pessoa que está passando da maturidade à velhice. Nas culturas primitivas, o homem velho, ou “ancião” era uma pessoa respeitável e venerada, alguém admirado pelas gerações mais jovens por ter o poder de acumular as experiências, as tradições de seu povo e, por conseguinte, o poder de transmiti-las às novas gerações. Já as mulheres de idade não aparecem ligadas à tradição, pelo que produziram ou transmitiram, ao saber que edificaram ou comunicaram. Vítimas de uma topografia andrógina, 110 parece que elas ficaram relegadas apenas à feitiçaria, que passou a ser encarada como essencialmente feminina, um saber transmissível das mães às filhas. Acredita-se, pois, que de algum modo essas concepções foram assimiladas nas culturas ocidentais e mais particularmente na nordestina, uma vez que a mulher foi posta, quase sempre, em segundo plano. Existe um juízo de valor relativo ao tempo para cada um dos sexos em especifico – a mulher é chamada de “coroa” logo quando chega aos trinta. O homem recebe esse designativo normalmente por volta dos quarenta anos, quando se detecta alguma marca de idade, através dos cabelos ou barba grisalha. Assim, a velhice do homem é detectada do ponto de vista material, físico, enquanto que a feminina é apenas determinada por um critério virtual, de base cultural. Os estigmas femininos normalmente são tratados sob o ponto de vista da natureza: Estudando a Natureza Pude eu classificar O comportamento delas E assim vou relatar Vários tipos de coroas A maior parte das vezes, uma mulher é chamada de “coroa” quando não chega a casar. O sentido pejorativo, do qual normalmente é dotado o termo, tem a ver com o pânico das mulheres ao perder a juventude. A implicação maior, relativa à questão da idade, tem relação imediata com a questão do casamento. Assim, se aos trinta anos a mulher ainda não está casada, significa que o seu projeto de vida se consumou, e que não há mais alternativa de realização pessoal. O esquema a seguir demonstra as informações principais contidas no folheto analisado: 111 IDADES NASCIMENTO E VIDA VELHICE MORTE MOCIDADE 18 AOS 25 DOS 26 AOS 33 DOS NOVE AOS TREZE ANOS IDADE LIMITE DOS 33 AOS 40 DOS 13 AOS 17 ANOS OPORTUNIDA DE DE ENCONTRAR O PALETÓ DEPOIS DOS 37 AOS 50 AOS 60 FIGURA 11 – Campo léxico-semântico em Nascimento, vida e morte de uma coroa. 6.2.12 O abc das mulheres No universo típico e tradicional da cultura nordestina, o “amor” é um elemento central que fundamenta as relações pessoais e sociais. Situando o amor nos limites da sexualidade, definindo-o num plano metafísico (propondo a sublimação dos impulsos sexuais), isto é, domesticando as paixões e os desejos libidinosos que podem atrapalhar a relação de um casal, a nossa cultura estabeleceu um amor, baseado na amizade e no companheirismo. No campo do amor, prescrevem-se os valores cerceados por comandos morais, típicos de uma cultura pautada nos moldes patriarcais. E É assim que a mulher Ama ao homem e quer bem E o homem de caráter Amar a ela convém Êle tendo amor a ela Ela amor a êle tem. 112 Os vocábulos, usados com referência à mulher e ao homem, revelam assimetrias de sentido, em função do valor que normalmente se atribui a cada sexo. De maneira geral, são consideradas qualidades típicas do homem as que trazem o sema da virilidade, tais como: a “coragem”, o “caráter firme”, a “inteligência”, o “discernimento” e a “força”. De modo inverso, as qualidades que se ligam ao sexo feminino são “passividade”, “fragilidade” e “recato”. Na cultura nordestina, a crença de que a natureza feminina fez da mulher um ser dotado biologicamente para constituir um lar e estar ao lado do esposo, pode ser sentida nos versos a seguir, notadamente, nos vocábulos “bondade”, “carinho”, “vergonha”: A A mulher é carinhosa Por obra da Natureza Pode ser feia ou bonita Ela tem toda grandeza E ela tendo vergonha Pra mim é uma beleza Na região Nordeste, pelo menos em áreas mais afastadas do contexto da urbanização, onde as transformações sociais são incorporadas mais lentamente do que nas grandes cidades, ainda hoje se percebe que o modelo de mulher ideal é aquele que atende aos pré-requisitos de esposa, mãe e dona-de-casa, papéis que exigem dedicação ao esposo e abnegação quase que totalmente da vontade própria. Os “caros” valores femininos condizem, pois, com a tríade: lar, casamento e família. A imagem positiva das mulheres solteiras faz parte do campo semântico do “respeito”, da “pudícia”, da “vergonha”. A lexia “vergonha”, aliás, é um valor necessário para a pureza feminina, condiz com a + pureza, + castidade. As mulheres que não seguem os preceitos morais impostos pela sociedade são mulheres que não merecem crédito na sociedade. A elas normalmente são atribuídos 113 designativos como “sem-vergonha”, “mulher fácil”, “prostitutas”, “putas”, entre muitos outros. Dado que a idéia do “amor” sublime, conjugal, deveria projetar-se na mulher por meio de uma “alegria serena”, sentimentos comedidos e uma vez esperando-se da mulher “paciência e bondade”, para superar as fraquezas do sexo masculino, não convinha que a boa mulher excedesse aos ímpetos da paixão, tendo acessos de “roedeira”, ou seja ciúme, tal como apresenta o Dicionário de palavrão e termos afins (1998), a obra Calepino potiguar: gíria norte-riograndense (1980) e o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999). A mulher ciumenta, na ótica masculina, sempre traz estragos para a vida do casal, atrapalha a prosperidade porque interfere na autoridade masculina. O ciúme desperta a “maldade” da mulher, que em função de malícia (e desorientamento), em geral, desobedece ao homem, passa a “ser bruta”, ou seja, indelicada e a “falar asneiras”. Enfim, é o ciúme que traz à tona toda a natureza subversiva do sexo feminino: C Caçoada com mulher Não quero por brincadeira Quando ela está brincando Começa a dizer asneira Se ela for ciumenta Vai morrer de roedeira Conclui-se, assim, que o antípoda de mulher “boa”, “bondosa”, no contexto da relação matrimonial, é a mulher ciumenta. A imagem feminina condiz, no contexto da sociedade nordestina, com o arquétipo de mulher “faladeira”, “tagarela” e que “adora fazer mexerico”. Em geral, é essa visão que é representada através de uma “sogra” ou de uma “madrasta”, todas “megeras”. Também é uma constante o ícone de esposas irresponsáveis, “alcoviteiras”, atreitas ao esquecimento dos 114 deveres conjugais. Essas mulheres não cansam de sair de vizinha em vizinha, igualmente mulheres de más línguas, que estão sempre ocupadas em reparar a vida dos outros. Juro que mulher não tem Coragem de enfrentar luta Só tem coragem na língua Fala e depois escuta Tôdas não são malcriadas Mas tem ciumenta e bruta. O poeta popular encontra, cada vez mais, inspiração para destratar a mulher, visando a agradar o público masculino, que se diverte com isso. Assim, ataca a moral, os bons costumes e até mesmo, sua aparência física. A preocupação com a beleza feminina é outro traço típico de nossa cultura. Em decorrência de preceitos antigos de feminilidade e masculinidade, a beleza feminina foi muito cedo posta em elevo, em detrimento de sua capacidade intelectual. A partir do completo menosprezo e descrença na inteligência feminina, criou-se o estigma de que mulher sendo bonita, não pode ser inteligente. Ou que se é bonita, não precisa trabalhar. Conseqüentemente, sempre houve o menosprezo pelas mulheres feias, como revela o dito popular “mulher feia não dá palpite”, ou “mulher feia é como sucata”, “não tem lugar no mercado”, referendando-se de forma acentuada, no Cordel, objeto científico do presente estudo, valores que se perpetuam ainda hoje, com relação ao culto à beleza feminina. G Gosto de toda mulher Sim da que é carinhosa Sendo pobre é muito mansa Sendo rica é bondosa A feia não me agrada Sendo bonita é gostosa. Como se viu, no campo das relações amorosas conjugais, inserem-se variados valores paradoxais, tais como: “ciúme”, “casamento”, “traição”, “honestidade”, “bondade”, “afeição’, “mentira”, “falsidade”. 115 B Boa mulher aquela Que sabe fazer carinho Ela gostando do homem Nunca deixa êle sòzinho Levando-se em conta que o princípio da serventia doméstica feminina é a perfeição e o agrado ao homem, a arte de agradar compõe o rol dos caprichos femininos. A mulher “perfeita” é aquela que tem o cuidado de preservar suas “graças naturais” e despertar o interesse e a admiração por parte do marido: F Fica a mulher satisfeita Quando o homem lhe adora Se ele lhe abandonar Ela de tristeza chora Incorporando virtudes contraditórias, a mulher deveria ora exibir-se para o marido, ora comportar-se no modelo tradicional de recato e submissão, respondendo às expectativas sociais impostas ao modelo de perfeição: eficiente no lar, - mãe cuidadosa e esposa fiel e submissa. Entre duas figuras antitéticas, eis que se insinuam duas imagens distintas da mulher: uma que possui um corpo, uma aparência e uma sexualidade, e uma outra, uma mulher voltada quase completamente ao trabalho doméstico, ao casamento, à família e à religião. Como que prevenindo os homens do poder de sedução das mulheres, o poeta diz: I Inocente vive o homem Pensando que mulher presta Ela enganando a êle Nada de bondade resta A mulher é como música Só tem beleza na festa. É nesse elenco de imagens, que se mistura ao conflito das diferenças entre os sexos, que aparecerão descrições da imagem da mulher “maliciosa”, imperfeita e cheia de “maquinações”. 116 O atributo de interesseira e usurpadora é uma das mais freqüentes características negativas aludidas ao sexo feminino. A indecência feminina é aqui frisada a partir da projeção de sua natureza torpe e insaciável. Pode-se comprovar lingüisticamente essa visão principalmente a partir das frases do tipo, “êle dá e ela aceita” e “ela não se endireita”: U Uma me disse outro dia O homem nunca me enjeita E o que ela pedir Êle dá e ela aceita E assim de tôda forma Ela não se endireita. Esse Cordel, como os demais, vem reforçar a discriminação da mulher quando ela se mostra capaz para funções ditas masculinas e, principalmente, tornando-a mal vista, alvo de pilhérias e deboche por parte de tantos quantos compartilham desse preconceito exagerado. O esquema, apresentado na página seguinte, apresenta uma visão geral do Abc das mulheres. 117 AMOR (CASAL) AFIRMAÇÃO NEGAÇÃO CASAMENTO FAMÍLIA/ DO LAR GERAL POSIÇÃO SOCIAL SERVIÇOS ESPECÍFICA MALÍCIA FEMININA BRUTA PRAGUENTA ESPOSA ATENÇÃO AO MARIDO CHIFREIRA FALSA FILHOS DEDICAÇÃO ALCOVITEIRA CIUMENTA ROEDEIRA ( GASTADEIRA BONDADEVERGONHA SUBORDINAÇÃO DOMINAÇÃO/PROTEÇÃO PERDIÇÃO DO HOMEMRUÍNA DA FAMÍLIA FIGURA 12 – Campo léxico-semântico em O abc das mulheres. 6.2.13 O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia A empregada doméstica faz parte do grande contingente de mulheres que precisa trabalhar fora de casa a fim de suprir as suas necessidades de sobrevivência. Devido às imposições do mercado de trabalho e à falta de qualificação profissional para a ocupação de outras funções empregatícias, muitas moças pobres vêem, como única alternativa para livrarse da miséria, o trabalho nas “casas de família”. A participação da figura feminina em diversas profissões só tem aumentado nos últimos anos e sendo o trabalho doméstico destinado culturalmente ao sexo feminino, esse papel “acaba sobrando” às mulheres de condição sócio-econômica menos favorecida. É 118 importante observar, ainda, que é a mulher de cor quem mais predomina nessa categoria empregatícia.9 A preservação do emprego doméstico estratifica as relações estabelecidas pelo sistema dominante - primeiro, opõe-se à quebra do paradigma do espaço doméstico uma vez que continua reservando as atividades “do lar”, quase exclusivamente, ao sexo feminino. É, portanto, sexista; segundo, mantém e estimula, cada vez mais, a exploração das mulheres pelas próprias mulheres, poupando das responsabilidades domésticas apenas as da elite. É, portanto, classista; terceiro, porque elege como funções superiores àquelas antes reservadas apenas ao sexo masculino e como inferiores as que se enquadram ainda no sistema conservador. A empregada doméstica, numa visão estereotipada, é vista como “a peniqueira”, - a empregada doméstica quase nunca é chamada pelo nome. Essa expressão coisifica a mulher, a partir de sua ocupação profissional. Confere, pois, invisibilidade a essa categoria, desvalorizada e marginalizada, perante a sociedade. Depreende-se que, o vocábulo “peniqueira”, é o termo mais pejorativo para designar o serviço doméstico feminino. O sentido depreciativo provém da relação entre a profissão e o penico, “vaso apropriado para nele se urinar e defecar”, conforme registra o Dicionário lingüístico-literário de termos regionais /populares - Norte/Nordeste (2003). Embora o termo “peniqueira” tenha caído em desuso, o termo ainda vive e anda impresso em livros, ou mesmo “nas bocas” das pessoas das classes menos favorecidas, que não recorrem à outra palavra com significação análoga, ao que faz parecer, porque qualquer outra não terá o poder de suprir o raciocínio. 9 “Estruturalmente essa relação social de dominação-subordinação torna ao mesmo tempo muito próximos patrões e empregadas de condição muito desigual, caracterizando-se por isso, politicamente, como uma relação injusta e intrinsecamente violenta. A violência implícita nessa relação ordinariamente é mantida sob controle, por mecanismos de dominação e cooptação, características da ordem autoritária (paternalista inclusive) que permeia as relações familiares, assim como as relações patronais”. (FARIAS, 1983, p.11). 119 A alcunha da empregada doméstica deve ter relação imediata com o papel da negra nos tempos de escravidão. Sabe-se que nesses tempos não existiam banheiros e que era tão somente a escrava quem ficava responsável pelo “serviço sujo”, ou seja, limpar os dejetos dos penicos dos seus senhores. Essa é uma associação relevante do ponto de vista do racismo, a associação dos serviços inferiores, porquanto exercidos pela camada negra, marginal e dominada. O fato de a empregada doméstica pertencer à classe subalterna reserva a ela o relacionamento com pessoas de condição social semelhante ou mesmo inferior a dela. Daí vem à relação com o malandro, personagem do texto, que é um sujeito pobre, sem caráter. “O malandro”, representado numa visão caricaturada, exótica, é uma figura que vive de esperteza, não no sentido da inteligência, mas no de saber fazer falcatruas, praticar roubos e manipular as pessoas. O “malandro” carrega os semas do ócio: ele é um “gigolô”, ou seja, aquele que manipula “a peniqueira” para tirar proveitos econômicos, e é a falta de instrução o elemento que mais colabora para que ela seja explorada facilmente por ele, sexual e economicamente, embora não tenha intenções em manter um relacionamento estável e ético com aquela. Essa é a visão que corresponde, no imaginário coletivo, à figura do “malandro”. Outra visão que brota do imaginário coletivo é da empregada doméstica como objeto sexual do patrão. O distanciamento do seu próprio ambiente familiar e, conseqüentemente, a ausência do resguardo dos pais, a torna suscetível às investidas de exploração sexual por parte do patrão. A relação entre a entrada no emprego e a condição de virgem fica subentendida nos versos “tenho visto peniqueira” e “que se emprega donzela”. A situação da empregada doméstica, nesse contexto, por conseguinte, é disfórica: há um temor tanto da parte das donas-de-casa que temem as investidas extraconjugais de seus maridos e há o temor da empregada em ser abusada sexualmente pelo patrão. 120 No texto, a relação da empregada doméstica com a prostituição fica evidente nos contextos de espacialização. Essa é percebida nas expressões “na praça”, “na esquina”, “na casa”, “na cadeia” e “no cabaré”. O vocábulo “cabaré” designa, conforme o Novo Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa (1999), a “casa de diversões onde se bebe e dança e, em geral, se assiste a espetáculos de variedades”. A palavra “cabaré” no texto tem como intenção remeter ao modo de vida dissoluta da doméstica, de acordo com os ambientes de marginalização, tais como a rua, praças, esquinas, lugares estratégicos de prostituição feminina. No Recife eu tenho visto O mercado São José Tanta da nega nogenta Que eu não sei como é Com os Malandros em folia E lá na rua da Guia Ai sim! é cabaré. A visão preconceituosa do poeta é reforçada pela inclusão de espaços considerados socialmente como indignos para uma mulher de respeito freqüentar. A praça conota um certo valor pejorativo, exatamente por se tratar de um lugar onde as prostitutas ou “garotas de programa” (para citar um termo mais moderno), expõem-se e oferecerem seus serviços sexuais à clientela masculina. A “casa” poderia ser interpretada como o lugar onde a empregada doméstica, a “peniqueira”, desempenha as tarefas predominantemente femininas, quais sejam lavar, passar, limpar, cuidar das crianças, entre outras. É, pois, um tipo de ocupação em que essas mulheres executam o trabalho doméstico no lugar de outras mulheres, as chamadas “donas-de-casa”, nos serviços que lhes são culturalmente atribuídos. Representa, pois, o modelo da ordem, do equilíbrio, da estabilidade e da normalidade. O lado de fora, ou seja, a “rua”, é o espaço de realização das manobras perigosas que somente as mulheres de conduta duvidosa, a mulher prostituída, ou melhor, “a peniqueira”, 121 normalmente insiste em ocupar. Por esse prisma, ela representa a desordem e a vergonha. Delinea-se, nesse sentido, uma visão preconceituosa com relação à empregada doméstica. No olhar do poeta, as empregadas domésticas, “as peniqueiras” são dadas à prostituição. É o que confirma o trecho a seguir: Na praça Sérgio Lorêto Hoje não mais de primeiro Era tanta piniqueira Com malandro maloqueiro Que uma moça honrada Só passava enjuriada Dos seus daquelas fuleiras A temporalização está marcada pelas palavras “noite”, “até mais tarde”, “agora, de 10 horas por diante”. Esses termos, na narrativa, referem-se ao momento em que geralmente ocorre a prostituição feminina, é nesse horário que podem acontecer as investidas e aventuras sexuais dos homens, na busca por amantes ou prostitutas. Os temas passam a ser materializados lingüisticamente através de muitas figuras. O tema da prostituição se desvela nas figuras da sedução, como por exemplo: “sobrancelha raspada”, “metro e meio de pano” e “saia ligada”: Metro e meio de pano Prá fazer saia e casaco Outra anda quase nua Com o tal vestido saco Muita com saia ligada E sobrancelha raspada Dizendo agora emburaco O tema sócio-econômico da inferioridade da empregada doméstica remete aos termos “piniqueira”, “motorista de fogão e da chinica”, “de comprar no armazém”. No texto, esses termos traduzem o estigma de inferioridade que carrega a empregada doméstica na sociedade: E em Nazaré da Mata Tem piniqueira também Pensa que é alguma coisa Coitada não é ninguém 122 E motorista de cangica Do fogão e da chinica E comprar no armazém O tema do racismo transparece através dos termos “nega nogenta” e “cabelo pichauim”; este último adjetivo remete à “carapinha”, isto é o “cabelo crespo”, “lanoso”, “encaracolado dos negros”, segundo a reserva do Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003). A adjetivação “nogenta” remete a todo um desprezo sobre a figura da negra, conforme assinalado na estrofe abaixo: Uma nega de Paudalho Foi empregar-se em Recife... Um diadema encarnado Pra prender o pichauim... Os temas do “machismo e da sexualidade” entrecruzam-se, na verdade, em todos os momentos da narrativa. A idéia da negra, como símbolo e objeto de prazer masculino, é expressa a partir da alusão aos encontros e investidas sexuais da “peniqueira com o malandro”: A piniqueira a noite Bota aceia do patrão Lava os pratos enxuga a pia Tira as cinzas do fogão Depois ageita tudo Vai esperar o sambudo As 10 horas no portão Num sentido lato, o texto reflete a visão estereotipada da raça negra enquanto inferior e malfazeja, ideal apenas para o trabalho e para “levar peia”, ou seja, receber castigos. Num sentido restrito, assinala o preconceito e marginalização sobre a figura da negra, no protótipo 123 de objeto sexual, ora do patrão, ora do malandro. Note-se que o instinto sexual latente, a feitiçaria e a disposição para a transgressão foram insígnias que mais pesaram sob essa mulher. Dadas essas considerações, a análise é feita no gráfico a seguir: EMPREGO DOMÉSTICO RELAÇÕES PATRONAIS NOJO E REPUGNAÇÃO CONTROLE DA DOMESTICIDADE DOMINAÇÃO PATROA PRECONCEITO E MARGINALIZAÇÃO COM A DOMÉSTICA SUBORDINAÇÃO EMPREGADA DOMÉSTICA ELITE (PATROA) VIVÊNCIA DE SUBORDINAÇÃO PROSTITUTA EXPLORAÇÃO FULEIRAS E VADIAS CHAUFFER DE FOGÃO SERVIÇO EM TEMPO INTEGRAL LADRA/ ROUBA O PATRÃO SERVIÇO EM CASA ALHEIA SUSTENTO FAMILIAR NÊGA NOGENTA STATUS INFERIOR BAIXO NÍVEL DE ESCOLARIDADE FIGURA 13 – Campo léxico-semântico em O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia. 6.2.14 O mundo pegando fogo por causa da corrução A palavra “mundo”, no seu sentido mais freqüente, expressa a designação da humanidade. Numa acepção religiosa, é muito usada como designativo de profano, impuro, contrastando com o de céu, no sentido de “purgatório”, espaço divino, destinado “à purificação das almas” sob o pecado. 124 Daí provém a idéia de “maldade”, “vaidade” e “perdição”, que subjaz a idéia da culpa feminina e que se perfaz no ideário cristão, como se pode constatar nos versos seguintes: Do jeito que o mundo vai Não tem jeito que dê jeito Moça namora casada E tem casado sem respeito Mocinha nova e bacana Abraça a vida mundana E no caberé vai de eito Verifica-se que o repertório é vasto para a expressão da profecia dos maus tempos. A fé religiosa, presente no homem sertanejo, fê-lo pensar que os desequilíbrios naturais e a miséria que oprime seu povo são conseqüentes do castigo mandado por Deus, contra a maldade humana. O campo lexical da perdição, nesse sentido, é dominado pela palavra “fim”: Só se ver é carestia Em toda face da terra Nosso tempo está chegando E a profecia não erra Do brejo até o sertão Só se vê lamentação Peste, fome, sêca e guerra A riqueza do campo se acentua na expressão do comportamento feminino. São predominantes as expressões que mencionam a responsabilidade feminina sobre a destruição do mundo. Casada deixa o marido Abraça outro e venera Moça na praia se deita E diz ao noivo: aproveita Que estamos no fim da era A nudez e o adultério aparecem como os mais predominantes fatores de destruição da mulher e do mundo. A formulação de base verbal é que é mais rica, contendo: “casada deixa 125 outro”, “abraça outro e venera”, “tomando banho sem saia”, “mostrando as côxas de fora”, “só não dança cabaré”, “está levando de eito”, etc. ...Mocinha de hoje Está levando de eito Mocinha com 13 anos Namora qualquer sujeito E beija êle na praça Só falta vê-se a fumaça Dêste mundo sem respeito O tempo piorou mais Depois que a saia encurtou Acabou-se a produção Até o inverno faltou Só se ver é amargura Nunca mais se viu fartura Somente a fome aumentou A expressão adverbial de tempo “daqui pro fim de 80”, remetendo ao caos, instalado em função da indecência e inversão dos papéis sexuais femininos e masculinos, retrata todo o inconformismo do poeta, que prevê a inclinação dos tempos mais recentes para o caos, ou mesmo o fim, e para essa previsão coloca a figura feminina como culpada. Por todas as partes da narrativa, fica posto o modo como o nordestino, mais particularmente o sertanejo, reage ao mundo moderno, metropolitano com dificuldade. O esquema em campos léxico-semânticos, a partir dos vocábulos retirados da obra, pode ser visualizado a seguir. 126 CORRUÇÃO DO MUNDO CRISE ORGIA E PECADO PROFECIA ESTAMOS NO FIM DO MUNDO CONSEQUÊNCIAS DESGRAÇAS NO MUNDO FOME CARESTIA PESTE SECA O MUNDO VAI PEGAR FOGO GUERRA O FIM DA ERA FALADA NADA DE BOM SE ESPERA FIGURA 14 – Campo léxico-semântico em O mundo pecando fogo por causa da corrução. 6.2.15 O mundo vai estourar do jeito em que se vive Neste campo foram listados os termos que caracterizam as “irregularidades” do mundo moderno, essas são contempladas no plano da “imprudência”, aludindo-se, mais uma vez, a questão da indisciplina ou abuso do comportamento feminino. O campo da “indisciplina” é formado com os vocábulos “fumo”, “drogas”, “álcool”, “folia”. Esses vocábulos carregam o sema do êxtase e do prazer que, na ótica conservadora, significa a diminuição da imagem do homem, decorrente da omissão na entrega aos prazeres, e da falta de domínio do corpo e do uso da razão como forma de evitar a queda. Ninguém suporta a dor E logo se anestesia Em fumo, drogas e álcool E cai logo na folia Gozar todos os prazeres É o que lhe sentencia 127 A violação dos valores morais sexuais é manifesta a partir da mulher, quando ela abandona os antigos valores e costumes e entrega-se à devassidão. A deficiência da preservação da virgindade é a depreciação das virtudes, como demonstram os versos “não se tem mais virgindade” e “como virtude moral”. O aparecimento da “pílula” elimina a função eminente da mulher enquanto progenitora. Subtende-se a idéia de que a decadência é projetada a partir do momento em que a mulher passa a exercer o seu direito à sexualidade, com o uso do anti-concepcional, tanto do ponto de vista da relação sexual propriamente dita, como quanto pela negação à procriação. A censura sexual feminina permeia todos os aspectos que se ligam à ruptura da personalidade feminina nos moldes tradicionais antigos, pautados na satisfação alheia, porquanto através do prazer sexual do marido, da aprovação da sogra, das amigas, aprovação dos familiares, - quando as mulheres eram vistas e reduzidas ao agrado, ou a atração de outrem. O uso da “pílula” é o primeiro índice de libertação da mulher burguesa e esse favorecia a eliminação de sua condição de procriadora, à medida que favorecia o desaparecimento de outros signos de opressão feminina, como por exemplo, o poder de decidir o momento e a freqüência da relação sexual, antes privilégio único do homem. Por fim, o conjunto de expressões: “não se toma mais pé”, “ninguém distingue quem é”, “ninguém bota mais a mão no fogo”, imprime todo o tom de desconfiança e descrédito com relação às pessoas de hoje em dia e isso em função da incorporação da parte delas às novas formas de vida. A partir dessas considerações a análise do campo léxico-semântico deixa bem clara a postura da época, bem representada como a “Era da hipocrisia”. 128 ERA DA HIPOCRISIA DEGENERAÇÃO DA MORAL VALORES LIBERAÇÃO SEXUAL FEMININA NÃO SE TEM DIGNIDADE PODER DE DECISÃO O CASAMENTO NÃO SE TEM JÁ ERA MAIS VIRGINDADE MULHER SE VESTE DE HOMEM CONTROLE DE FILHOS PÍLULA ANTICONCEPCIONAL FIGURA 15 – Campo léxico-semântico em O mundo vai estourar do jeito em que se vive. 6.2.16 O poder oculto da mulher bonita A mulher ocupou um espaço expressivo no imaginário masculino. Oscilando entre a bondade e a maldade, entre a fraqueza e a insensatez, natureza dócil e angelical e lasciva. De um modo geral, a situação frágil da mulher contrasta-se, essencialmente, com a intensidade de sua natureza astuciosa, maliciosa, feiticeira ou diabólica. É essa imagem que vagueia no campo da Literatura. Na base dessas contradições, a beleza é situada como a arma mais diabólica e eficaz feminina para exercer total domínio sobre a figura do homem. É a partir dessas noções que o Cordel em análise se centra. Verifique-se o trecho a seguir: Falo com todo irracional ou gente Todo vivente que no mundo habita Tudo se curva e rende homenagem A querida imagem da mulher bonita 129 O verso “se curva e rende homenagem” pressupõe a inversão de comportamento no homem, quando esse é posto numa situação de reverência e submissão à personalidade feminina, em função de seu estado de encanto pela beleza feminina. A beleza, nesse contexto, funciona como uma espécie de feitiço, um carma feminino: é capaz de fazer desequilibrar vários perfis e condutas esperadas de um homem: “faz até o homem corajoso, bruto como uma fera, tornar-se mais manso”, como diz o texto. A mansidão é atribuída em virtude da ausência ou neutralidade do temperamento masculino, uma oposição ao comportamento agressivo esperado. A dialética “transmuta” o objeto erótico e passivo, ou seja, a mulher, numa figura insaciável, traidora, inimiga. Fraco rapaz que gosta da moça Não tem a força que tem uma catita Suspende um peso tão demasiado Por ser namorado da mulher bonita Num sentido ambíguo, a mesma mulher que vence o homem com seus ardis, é também aquela que favorece na reconquista das potencialidades masculinas, quando essas encontramse esmorecidas, por algum motivo. A mulher bonita, nessa situação, é o “elixir da juventude”, da força, o “estimulante sexual” natural. Configura-se o perfil da mulher objeto, que num contexto erotizado e submisso, segue com a busca em promover a satisfação libidinosa do homem. A construção desse perfil depende do grau de astúcia feminina, - a mulher perfeita para o homem sabe ousar na intimidade com ele, ao mesmo tempo transparecendo para a sociedade uma imagem de mulher discreta e passiva. Isso remete ao que nos diz Bevoir (1980, p. 233): (...) De dia, ela desempenha perfidamente seu papel de escrava dócil, mas, à noite, transforma-se em gata, em corça; introduz-se novamente em pele de sereia ou, cavalgando uma vassoura, participa de rondas satânicas. Por vezes é sobre o marido que exerce sua magia noturna; porém, é mais prudente dissimular essa metamorfose a seu senhor; são estranhos que ela escolhe como presas; eles não têm direitos sobre ela e ela continua planta, fonte, estrela, feiticeira para eles... 130 Assim, os predicados femininos devem ser fundidos em dois modelos: o que envolve recato, passividade e dependência masculina; por outro lado, não pode faltar à mulher a ousadia, - ela deve ser fogosa, quando o assunto é a satisfação sexual do homem. No Cordel, o perfil dinâmico e combativo do homem, características suscitadas pela atitude feminina, forma o campo lexical a partir das expressões “velho se torna vaidoso”; “fica um homem corajoso”; “briga atê com seu amigo”; “cria o nome de reimoso”. Onde tem mulher bonita Velho se torna vaidoso Qualquer sujeito mofino Fica um homem corajoso Briga atê com seu amigo Cria o nome de reimoso Vale salientar que a vaidade masculina é normalmente diferente da feminina. No homem, a vaidade está relacionada ao ego, à noção de virilidade. Um homem se sente vaidoso normalmente quando consegue seduzir e acumular conquistas femininas. O objetivo da estrofe é demonstrar que a mulher bonita tem o poder de restituir ou revitalizar as qualidades viris masculinas. Por isso, os vocábulos “corajoso”, “briga”, “reimoso”, este no sentido de ressaltar o “gênio turbulento”; alguém “que vive com zanga atrevessada na garganta”, como explica o Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense (1980). A mulher é um corpo e deve ser o mais cobiçado por todos os homens, um troféu que tem um único dono, ou seja, o marido. Ao mesmo tempo ela é o alimento, o ânimo masculino, o constante motivo de renovação masculina. A idéia da perda da força do homem, como oposição às idéias já mencionadas, também se estabelece na estrofe a seguir: 131 Fraco rapaz que gosta de moça Não tem a força que tem uma catita Suspende um peso tão demasiado Por ser namorado de mulher bonita Interessante observar que “catita”, na linguagem popular também significa “mulher provocante e cheia de dengues”, conforme o Calepino Potiguar: gíria norte-riograndense (1980). Vêem-se os ardis femininos, triunfando sobre o comportamento austero e materialista do homem. A essência de Eva10 é mais uma vez evocada, como essência sedutora e irresistível: Até o homem avarento Mesquinho de coração Porém a mulher bonita Basta apertar-lhe a mão Dizendo: eu te quero bem; Ele dá tudo que tem Fica sem nenhum tostão O campo léxico da malícia e maldade feminina é enriquecido com a comparação da mulher de hoje com as figuras míticas que tiveram repercussão na História, tais como “Dalila”, “Judith”, “Cleópatra” e “Lucrécia Bórgia”. Dalila, conforme a narrativa bíblica (Jz 16, 4-20), é amante de Sansão, a quem trai, em troca da recompensa de mil e cem moedas de prata. Compactuando com os filisteus, a mulher persuade Sansão a revelar o segredo de sua grande força, a fim de destruí-lo. Após algumas tentativas frustradas, Dalila finalmente consegue desvendar o enigma e corta os cabelos de Sansão, razão da força, enquanto ele dorme e entrega-o aos filisteus. (Cf. Dicionário bíblico, 1984, p. 209). 10 Mitos e estereótipos são de tempos em tempos evocados e cristalizados através da tv e dos meios de comunicação de massa em geral, fornecendo uma imagem da mulher brasileira como símbolo sexual. Em algumas das mais representativas quais sejam as campanhas publicitárias de cerveja no país, evocam a sensualidade da brasileira através de antigos emblemas de identificação masculina: futebol e mulher, estes, metaforizados que o são na expressão paixão nacional. 132 A menção à “Judite” no texto tem como sentido ressaltar a importância que essa mulher teve, no sentido em que se tornou uma heroína para o seu povo. Jovem e viúva, ela intervém no projeto de destruição da cidade de Betúlia, porque consegue conquistar a confiança do general do rei, Holofernes, fazendo-o pensar que sua vitória estava garantida. Judite, quando convidada à tenda de Holofernes para uma ceia, mata-o cortando-lhe a cabeça, encontrando-se, a essas alturas, o general embriagado. Num ato típico de herói, essa mulher leva a cabeça do homem assassinado como troféu, à cidade de Betúlia: Na cidade de Betúlia No reino da Palestina Judith matou Holofernes Mas não fez como Agripina Judith alcançou vitória Está nas paginas da história Com o nome de heroína Cleópatra foi a primeira mulher de Alexandre Balas, mas, em virtude da conspiração de seu pai, divorcia-se dele, casando em seguida com Demétrio II Nicator. Cleópatra teve dois filhos de Demétrio. Matou o primeiro e conspirou para que o segundo subisse ao trono. Depois, tentou envenená-lo, quando foi descoberta e forçada a beber do próprio veneno que mataria o filho. É raro vê-se mulher Que tenha gênio assassino Cleópatra fez tudo aquilo Levada pelo destino No mundo antigo ou moderno Deixou um exemplo eterno Lucrécia Bórgia foi dita a mais bela e cobiçada mulher de toda a Roma no Séc. XV. Os muitos relatos, que ficaram famosos na história sobre a sua personalidade, ressaltam o desenho de uma criatura frívola, incestuosa, envenenadora de homens (seus maridos), 133 corrupta e interesseira. A menção a essa personalidade é um recurso utilizado no discurso para imprimir uma “ilusão de verdade” sobre a maldade como essência feminina. Como esta existiu muitas De rara biografia De encantadora beleza Como Lucrecia Borgia Tão mimosa criatura Que por sua formosura Fez tudo quanto queria As quatro personagens gozam de qualidades em comum, tais como beleza, astúcia, esperteza. No campo da sedução amorosa, o ponto em comum é o fato de que todas elas só se relacionaram com homens de poder e apenas conseguiram obter status e privilégios em virtude da beleza. Note-se que em nenhuma instância essas mulheres despertaram a admiração e a paixão em função da inteligência e do caráter. Assim, é importante perceber que a analogia do poeta, considerando essas figuras femininas que tiveram repercussão na História, tem como objetivo atentar para a semelhança das mulheres em diferentes épocas, aclamando, mais uma vez, a idéia de que a melhor “arma” que a mulher possui para tirar proveito do homem é a “sedução”. A figura mostrada, a seguir, expõe as principais relações semânticas existentes no Cordel em estudo. 134 PODER OCULTO DALILA A VIRTUDE TEM PARTE COM A BELEZA FORÇA FEMININA JUDITH MULHER BONITA CLEÓPATRA LUCRÉCIA BORGIA FEITIÇO SEDUÇÃO TRANSFORMAÇÕES NO HOMEM EFEITO DE HIPNOSE EMBRIAGUEZ FICA UM HOMEM VALENTÃO VELHO SE TORNA VAIDOSO SUJEITO MOFINO FICA UM HOMEM CORAJOSO ESTÍMULO SEXUAL FIGURA 16 – Campo léxico-semântico em O poder oculto da mulher bonita. 6.2.17 O que uma coroa deve fazer para se casar O projeto de “persuasão e dissimulação” constitui o critério necessário ao êxito na obtenção do casamento imediato. No campo das dissimulações, encontram-se “não mostre que sabe a ele”, “e faça o que lhe dispunha”, “nem dê corda demais a ele”, “não demonstre muito”, entre muitas outras expressões. Há, na verdade, uma espécie de manipulação real ou simbólica que faz com que a relação da mulher com seu próprio corpo seja mediatizada por sentimentos de culpa e medo pelos excessos, pela vergonha, pelo complexo de castidade e da honra. A feminilidade é cheia de contrapontos no ser próprio da mulher: submissa, carente, amorosa, servil, mas livre para pensar, mudar, agir, indo de encontro às informações que crivam o discurso sobre as mulheres e estigmatizam as posturas, que, por sua vez, estão sempre carregadas de significação moral. Mas cuidado com o rapaz! Nunca tanto e nem tão pouco... 135 Dê amor somente em doses Para o cabra ficar mais louco, Mas tenha cuidado em voce Para não ficar no rouco. A expressão “para o cabra ficar mais louco” entra no campo da malícia sexual, a qual caracteriza a conquista feminina. O vocábulo “louco”, abandonando a acepção freqüente de desequilíbrio mental, passa, no sentido figurado, a remeter a um caráter de obscenidade ou erotismo. Todo um conjunto de regras, que se definem para que a mulher consiga o projeto de arranjar um bom partido, está, segundo o poeta, amarrado ao seguimento de certas orientações ou receitas, de que ela, sendo perspicaz e astuta, não deve descuidar: Se a moça quer um rapaz E ele tem mais de uma Se cuide; faça carinho Não fique roendo a unha Não mostre que sabe a ele E faça o que lhe dispunha. As receitas de sucesso, nas investidas em conquistar um rapaz, entram no campo da dissimulação, no contexto em que a mulher, sabendo da infidelidade do amado, deve fingir não sabê-lo. Deve, nesse sentido, trabalhar sorrateiramente para conseguir que ele fique apenas com ela. Para isso, não deve exceder em seu temperamento, pelo contrário, “a moça deve ter paciência”, “ser prevenida”, “nunca ficar aborrecida”. É o que dizem os versos: Para a mulher dizer não Deve ter o seu jeitinho Não diz não mas não entrega, Isso é o segredinho A expressão “deve ter o seu jeitinho” é o núcleo da malícia e da dissimulação feminina. Essa expressão é popularmente usada para se referir a uma forma especial, ou personalizada, de alguém realizar algo. De acordo com o contexto da estrofe, o vocábulo 136 “jeitinho” remete à coquete, ou seja, à astúcia feminina para conseguir despertar a atenção do homem. E as receitas de casamento também se estendem à “coroa”, àquela que já está passada da idade mas que, frustrada na esperança de um casamento, não pode esquecer que: A coroa se quer casar Não abra a boca do mundo Porque quem é oferecida Só arranja o vagabundo Se você faz as trezenas Não espalhe que está fazendo Pois o rapaz sabendo disso Se espanta e sai correndo O campo lexical da prudência feminina organiza-se pelas expressões “não abra a boca no mundo” e “não espalhe o que está fazendo”. A “trezena”, oração de súplica a Santo Antônio, santo casamenteiro, só deve ser realizada em segredo, caso contrário, o então pretendente pode livrar-se do compromisso. (Sobre a trezena, conferir análise de As duras lamentações...). “Rezar pra ser casada”, “botar cartas”, “ser otimista” são expressões que compõem o campo lexical das crendices e tradições. A expressão “botar carta” está remetendo à prática de advinhação através das cartas de jogar. Segundo o Dicionário do folclore brasileiro (2000), a advinhação pelas cartas é muito popular desde o séc. XVI. De acordo com a combinação das cartas, a pessoa poderá saber o que lhe espera no futuro. “As copas e os paus são geralmente felizes. Copas e ouros anunciam pessoas louras. Paus e espadas, morenas. Espadas e ouro dizem dos perversos, infelizes, malaventurados”. Fica entendido, pois, que a mulher pode misturar todas as fórmulas populares, contanto que consiga obter o casamento tão esperado. Finalmente, como se tivesse esgotado todas as possibilidades de a mulher arranjar um marido, o cordelista aconselha, em tom de consolo: 137 Coroa, não fique triste Não desespere o coração - É melhor ficar sozinha Do que casar sem a razão, Apanhar, viver intranqüila E o marido deixar na mão Fica entendido, portanto, que a mulher tem que casar a qualquer custo e que, para conseguir o seu projeto de casamento, é só usar de jogos de dissimulação e ignorar os deslizes masculinos, já que esses são produtos da natureza instintiva do homem. As relações semânticas contidas no folheto em estudo, podem ser melhor compreendidas a partir do esquema a seguir: DOIS TIPOS DE MULHER MULHER QUE CASA É DISSIMULADA NÃO ABRA A BOCA NO MUNDO MULHER QUE NÃO CASA TOLA, VAIDOSA E MESQUINHA QUANDO NAMORA SÓ SABE DIZER O “NÃO” NAMORA MAIS DE UM NÃO DIZ NÃO MAS NÃO SE ENTREGA QUANDO BROTO FOI NEGAÇÃO NÃO DEVE SER MUITO FÁCIL OU ATOA SÓ ANDAVA NA CONTRAMÃO FIGURA 17 – Campo léxico-semântico em O que uma coroa dever fazer para casar. 138 6.2.18 Os amores de José e a traição de Maria Na tradição religiosa do sertanejo, reminiscência da tradição das grandes religiões do tronco judaico (judaísmo, cristianismo e islamismo), o adultério representa o agravo maior porque fere, principalmente, os direitos sagrados do marido. Homem casado, que praticasse adultério, que copulasse com prostituta, com mulher divorciada ou mulher não judia, a rigor, não estava cometendo adultério, mas “fornicação”. A fornicação também era reprovada, não porque significasse a violação do direito feminino, mas porque atentava à virtude social, diretamente ligada à virtude sexual, que convinha aos interesses masculinos em conseguir uma prole numerosa. Mas a fornicação não ameaçava a estabilidade familiar quanto ao adultério feminino. Do contrário, parece uma maneira de o homem mostrar que era tanto mais capaz que os outros, ao conciliar suas aventuras extraconjugais, ao passo que aumentava gradativamente a prole. Por essas razões, o adultério foi encarado como um pecado e proibida enquanto prática feminina. 11 A questão do adultério, quase sempre presente nos folhetos de Cordel, coloca-se como o tema principal do texto em estudo Os amores de José e a traição de Maria. Nesse folheto, é o homem quem corresponde aos ideais femininos, é ele quem ama e quem é traído. O adultério da esposa corrobora para a depreciação do sexo masculino, no olhar do cordelista. O valor da traição masculina nunca foi semelhante ao do adultério feminino. Desde muito cedo à mulher foi transmitida a idéia de que o homem deve ter um comportamento mais liberto, que basta a ela fazer vistas grossas às “escapulidas” extraconjugais, se ela deseja 11 A esposa adúltera e o cúmplice tinham, tal como registra o Velho Testamento, como punição, a morte. Os acusados de adultério eram perseguidos pelas testemunhas que lhes atiravam as primeiras pedras. Se as primeiras pedras não conseguissem eliminar os acusados, então todos os presentes podiam colaborar com as pedradas que quisessem. 139 preservar seu casamento. Isso está há muito tempo presente na tradição da sociedade, que vê a traição masculina, de certo modo, como uma condição inerente à natureza do homem. Na linguagem do povo nordestino, o homem que trai é chamado de “cachorro”, “semvergonha” ou “safado” - dificilmente vai ser chamado de traiçoeiro ou enganador, uma vez sendo um acontecimento natural e esperado pela mulher. Já a mulher adúltera, normalmente, não escapa aos designativos “traiçoeira”, “fingida”, “enrolona”, “rapariga”, “puta”. A expressão “se axistir catimbó”, nesse contexto, remete aos poderes mágicos presididos pelos rituais que podem destituir uma relação amorosa, de acordo com o imaginário coletivo. Se axistir catimbó Fizeram para ele e ela Que ele era o cravo E ela era o capela Ela era o carinho dele E ele era o carinho dela A palavra “catimbó”, registrada no Dicionário Pernambucano (1976), como “mandinga”, “feitiçaria”, “sortilégio”, “sessão ou prática de feitiçaria”; no Dicionário do folclore brasileiro (2000), apresenta-se na acepção de “feitiços para afastar forças inimigas”, ou para “provocar a correspondência amorosa” ou simplesmente sexual, etc. Vale considerar que, quem recorre a essas vias, a esses meios ilícitos a fim de conseguir êxito nas relações amorosas, no imaginário popular, é, por excelência, a mulher. Na acepção em que é tomada, a palavra “catimbó” parece convergir para o campo do adultério, que se reflete nos vocábulos “tramanha”, “pilhéria”, “tapeação”, “corrução”, versadas no texto. A inconstância do amor e a deslealdade feminina constituem, portanto, a desestruturação do casamento, da família. A palavra “questão” sugere divórcio ou separação, 140 implica, no contexto da quebra da relação, um conjunto de práticas e sentimentos negativos, tais como “pranto”, “desunião”, “ódio”, “inveja”, “intriga”. E terminou em tristeza Em prato e desunião Em ódio, inveja e intriga Soberba, orgulho e questão Enrasque, rosse e charada Malvadeza e ingratidão As palavras “rosse”, “charada”, “malvadeza” e “ingratidão” traduzem o desacato da mulher para com o marido. E o poeta referenda uma personalidade dupla da mulher traiçoeira, que se traduz pela inconstância de suas atitudes para com o homem. As expressões “tanto tu me faz carinho”/ “como faz ingratidão” passam essa idéia: Ele acarinha ela Com uma ardente paixão Tu é minha santinha Não use de tapiação Tanto tu me faz carinho Como faz ingratidão “Tapeação” é a qualidade, efeito ou ato de tapear. O Dicionário lingüístico de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra “tapear” como “enganar”, “iludir”, “burlar”, “lograr”, “embaçar”. Os designativos “minha filha”, “beleza”, “bonitinha”, “jovem loura”, “meu consolo”, entre outros, na voz do personagem, recordando o tratamento que reservava à esposa, impõem uma maior significação no campo da indignação masculina diante do adultério. As expressões “santinha”, “virgem Santa”, “santa Leonora”, tratamentos usados pelo marido remetendo à esposa, assinala um contraste em relação às designações também a ela dirigidas tais como “olhar de Madalena”/ “pedaço de traidora”, “meu cravo”/ “minha verbena”, “minha vida”/ “pedaço de ambição”. 141 Para finalizar, o texto tenta mostrar que a destruição de uma relação amorosa, que culmina com o adultério da mulher, é conseqüência de sua insensatez e de seu caráter inconstante, frívolo e supérfluo. Para uma melhor compreensão do texto, convém expor o gráfico em campos léxicosemântico, enfatizando a relação entre “amor e traição”: NATUREZA SEDUTORA AMOR TRAIÇÃO GOLPE SEDUÇÃO FINGIMENTO OLHAR ATRAENTE LÍNGUA GRANDE FALSIDADE SORRISO SEDUTOR CARINHO PEDAÇO DE VAIDADE FIGURA 18 – Campo léxico-semântico em Os amores de José e a traição de Maria. 6.2.19 Sofrimento das solteiras para arranjar marido Na mentalidade do povo nordestino, durante muito tempo, foi praticamente inconcebível uma mulher ficar solteira por opção. Dada a limitação do espaço social feminino, no transcorrer da sociedade nordestina e mesmo da sociedade brasileira como um 142 todo, pela concepção do casamento como destino único das moças púberes, e, enfim, de todo o contexto da sociedade patriarcal, a solteirice só pode ser percebida como um “sofrimento”. No campo do sofrimento, cabem algumas expressões que sugerem a falta de interesse do homem em assumir o compromisso do casamento: “enrabichar”, “fazer furdunço”, “dizer tchau e se mandar”, “dispensar”, “ir embora”, “dar no pé e arribar”. Todas elas usadas no sentido de expressar o engodo aplicado na mulher: Os homens de hoje em dia Só querem se enrabichar Fazer furdunço em motel Dizer tchau e se mandar O livro A língua e o folclore da Bacia do São Francisco (1977) apresenta o termo “furdunço” como “desordem”, enquanto o Dicionário lingüístico-literário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra, além da acepção citada, a significação de “bagunça”, “baderna” etc. Essas acepções deixam entender que a vontade do homem é somente usufruir de liberdades sexuais para com a mulher. São parcos, mas bastante expressivos, os verbos que exprimem a culpa feminina pelo desinteresse do homem, qual seja a falta de cuidado em manter a sua honra, ou melhor, a virgindade. Esse campo é formado pelos verbos: “se abestalhou”, “se entregou”, “se descuidou”, “lascou-se”. Gracinha de Tonho Dito Se abestalhou com um vaqueiro E disse vê se desgruda Gracinha ficou buchuda Na linguagem do povo sertanejo, “ficar buchuda” significa “estar grávida”, acepção apresentada no Dicionário de palavrões e termos afins. Outro obstáculo, que faz com que a mulher perca a oportunidade de casar, tal como é apontado no folheto, é o homossexualismo masculino. O restrito campo lexical é absorvido 143 pelos termos “gay” e “desmunheca”, “o felá da mãe é gay”. A escolha do termo assinala o desdém e o desagrado frente ao comportamento afeminado de um homossexual. Desse modo, todo o engodo masculino e vulnerabilidade da mulher encontram-se no plano sexual. Fica entendido, portanto, o contexto desfavorável da mulher em relação ao homem. A mulher perde a chance de casar, fica marginalizada diante da sociedade, enquanto o homem enaltece o seu ego, dando intensas provas de virilidade -, a gravidez na mulher e o acúmulo de conquistas masculinas, por exemplo. O esquema a seguir ilustra a análise aqui vista. 144 SOLTEIRICE FEMININA DIFICULDADE DE ARRANJAR MARIDO SOFRIMENTO DAS MULHERES HOMEM EM FALTA SE QUISER MESMO CASAR É MELHOR BAIXAR O NÍVEL POLIGAMIA HOMOSSEXUALIDADE MASCULINA DESCOMPROMISSO E LIBERDADE CONQUISTA MULHERES E ENGANA O FELA DA MÃE É GAY DESMUNHECA TEM MULHER DEMAIS DESAPAIXONA-SE VIVE PELO MEI DO MUNDO VAI EMBORA DEIXA A MULHER BUCHUDA FIGURA 19 – Campo léxico-semântico em Sofrimento das solteiras para arranjar marido. 6.2.20 Uma mulher traiçoeira Na Literatura de Cordel, a mulher adúltera é sempre considerada “maldita”. O simbolismo da serpente, que permeia as narrativas, de modo geral, envolve a mística do instinto feminino, segundo o princípio da capacidade feminina em seduzir e depois causar destruição. 145 Em Uma mulher traiçoeira, um dos textos de que dispomos para a realização de nosso estudo, há em torno da narrativa um movimento dicotômico que, por um lado, exalta a mulher, definindo-a enquanto ser nobre e divino e, por outro, apresenta-lhe como perigosa. As vicissitudes da personagem aparecem nas expressões “na mais tenra idade”, “doze ou quatrorze anos”, nomeando a mulher como um ser frágil, delicado, no período em que vivencia a menoridade. No campo da inocência, discorrem-se “a ingenuidade”, “a santidade” ou “divindade”, que convergem para o campo da idade. Nesse tempo ela contava Com 12 anos de idade Um anjo da divindade Nem mesmo ela sabia De sua infelicidade Existe, entretanto, uma linha tênue que separa as duas faces de Helena, as quais o tempo se encarrega de definir. É ele que faz a deposição da figura casta que se faz na substituição pelo lado da mulher ameaçadora ou perigosa, afeita aos prazeres passageiros, carnais e materiais. Os versos “confiada na beleza”, “julgando que a beleza”/ “de seu corpo não saia” remetem ao orgulho narcisístico da personagem Helena: E assim continuava O seu viver de orgia Confiada na beleza Nada em casa fazia Julgando que a beleza De seu corpo não saia O sentimento da parte da sociedade é sempre reprovação. A estrofe a seguir aponta claramente a indignação coletiva frente ao adultério da mulher: Todos diziam igual A infeliz desgraçada Fazer uma coisa desta Sendo tão bem casada 146 A expressão “bem casada” é empregada para enfatizar a posição financeira e estável da mulher, em função do matrimônio. 12 A ênfase da reprovação do adultério feminino está relacionada ao ponto de vista material, que, em última instância, recai sobre os princípios morais. Na sociedade patriarcal nordestina, muito se tem legitimado por meio de discurso a imagem de que o homem, para ser macho, deve ser forte, enérgico, grosseiro. A imagem de homem sentimental é banida quase por completo do perfil do nordestino. Toda vez que o homem foge ao perfil assinalado, tratando de modo amável a sua companheira, recebe sanções negativas da parte da sociedade, que o vê como alguém fraco e sem autoridade. No imaginário social, o homem que é fiel à esposa, quando “ele não lhe põe as rédeas”, fica na condição de vítima de uma mulher “aproveitadora e sádica”. Desse modo, a relação ideal entre um casal apenas ocorre quando é o homem quem exerce a autoridade, sendo quem tem poderes únicos e exclusivos em virtude de seu sexo. Nesse contexto, a traição de Helena ao marido é a prova certa de que “ela virou o juízo”, ou seja, que ela enlouqueceu. E vale dizer que o desequilíbrio mental de Helena representa o fracasso do marido: Com mais de 6 memes Ela virou o juízo Arrumou outro amante Sem pensar em prejuízo Sem o marido saber Desse grande escandalizo 12 A moralidade nordestina acerca do adultério baseia-se na questão de que a honra do marido, dependente da fidelidade conjugal da esposa, uma vez que dela depende a manutenção do vínculo matrimonial, segundo os princípios cristãos ou jurisdições. Essa moral baseia-se na concepção primitiva da mulher como propriedade do homem, e o adultério feminino, portanto, uma violação dos direitos masculinos. 147 O termo “corno”, no aumentativo “cornão”13, ressalta a característica desfavorável do marido traído. A intenção do cordelista é demonstrar, em tom satírico e pitoresco, o descaso que possui a mulher ao trair e furtar o próprio marido e também a desmoralização do esposo diante da situação: Ela mais o tal Vadinho Na maior devassidão Dizendo a ele eu deixei Dormindo só o cornão O verso “dormindo só o cornão” confere o tom de passividade do homem frente ao adultério da esposa. É a forma verbal “dormindo” quem projeta a idéia de inércia do homem. A estrofe a seguir expressa essa idéia claramente. O velho pai dela deulhe Uma surra de tabica E disse desapareça Você comigo não fica Deram uma surra em Vadinho Que quase o malandro estica O verbo “esticar” está na acepção de falecer, perder a vida. O Dicionário lingüísticoliterário de termos regionais/populares - Norte/Nordeste (2003) registra a acepção de “esticar a canela”, entre outras correlatas, usadas no sentido de “falecer”. O vocábulo “tabica” é apresentado no mesmo dicionário como brasileirismo “chibata feita com a haste do vegetal de hastes delgadas e flexíveis”, ou “vara de cipó de que se servem os almocraves para tanger as bestas”. É importante ressaltar que a surra representa, no contexto da sociedade patriarcal, a máxima expressão de poder e o absoluto controle dos pais sobre os filhos, muitas vezes do marido para com a própria esposa. 13 O substantivo é usado para designar o bode, ou animal chifrudo. No uso popular, o termo é empregado, num tom burlesco, designa o marido que é enganado pela mulher. É também àquele que finge não saber do procedimento da mulher, nesse sentido, refere-se ao marido conformado, cabrão. (Cf. Calepino Potiguar: gíria rio-grandense, 1980, p. 129) 148 É pertinente lembrar, também, que no contexto da sociedade patriarcal nordestina, a educação dos filhos, filhas, dos escravos, enfim, de grupo subordinado ao membro da classe maior de poder, o patriarca, foi eminentemente exercida à base de castigos. O esquema, que apresenta as idéias aqui expostas, é assim mostrado: MULHER TRAIÇOEIRA CAIXA DE DEVACIDÃO PUNIÇÃO DO PAI DEBOCHE DO MARIDO SURRA DE TABICA TRAIÇÃO VIVER DE ORGIA CONFIADA NA BELEZA FIGURA 20 – Campo léxico-semântico em Uma mulher traiçoeira. Toda essa análise léxico-semântica dos vocábulos, realizada, partiu da verificação dos itens lexicais mais relevantes na tessitura dos Cordéis estudados. Desse modo, os campos foram estruturados, em função da observância de uma relativa freqüência de palavras em cada folheto de Cordel, tomados separadamente, ou em função de uma correspondência de sentido entre os mesmos. Em seguida, destacaram-se as palavras-chave, a partir das semelhanças entre os classemas e os semas específicos que puderam ser destacados nos folhetos, tomados em conjunto, nesse momento. Os macrocampos formaram-se a partir de classes de sentido mais gerais, enquanto que os subcampos constituíram subdivisões das categorias semânticas ou temáticas presentes nos folhetos que descreviam a mulher nordestina. 149 Assim, por exemplo, o “macrocampo” idade corresponde a uma categoria de sentido mais geral, porque nele se incluem lexias que se deixam interpretar como um campo mais restrito, o qual chamamos “subcampos”. Para tanto, a disposição das unidades lexicais revelou a existência de cinco macrocampos: idade, constituído a partir dos subcampos “velhice” e “juventude”; imagem, abrangendo os subcampos “aparência física” e “vestimenta”; comportamento, no qual detectaram-se os subcampos “virtudes”, “recato”, “austeridade”; “depravação” ou “prostituição”; “valentia e coragem”; “sedução e sexualidade”; raça, tendo como subcampos, a “raça branca” e a “negra” e, finalmente, cultura, considerando-se como subcampos “religiosidade”, “mitos ou superstições”, “tradições e costumes”. Apresentar-se-á, na página seguinte, um esquema relacionando os macrocampos e os subcampos encontrados na análise. 150 VELHICE IDADE JUVENTUDE SEDUÇÃO, FÍSICA BELEZA IMAGEM PADRÃO VESTIMENTA ROUPA COMO CONSERVADOR CONSTRUÇÃO SOCIAL MARGINAL VIRTUDE, RECATO, AUSTERIDADE DEPRAVAÇÃO, PROSTITUIÇÃO VALENTIA E CORAGEM INTRIGA BRANCA RAÇA NEGRA RELIGIOSIDADE CULTURA MITOS TRADIÇÕES E COSTUMES FIGURA 21 – Esquema básico dos principais campos léxico-semânticos dos Cordéis analisados. De acordo com a figura 21, o campo da idade compreende uma grande variedade de vocabulários depreciativos em relação aos estágios de maturidade e velhice femininas. Dado o contexto da sociedade nordestina, uma mulher de idade mais avançada será fadada à eterna solidão e solteirice, acalentada nos únicos momentos de devoção a todos os santos, quando ela assume a função de beata. “Santo Antônio”, “São José”, “Virgem Maria” são exemplos dos nomes de santos mais invocados. 151 O campo imagem comprova a relevância na questão da aparência, beleza estereotipada pelos padrões ideo-socioculturais. Nesse ponto, ressaltam-se valores em função da moda, que atendem às perspectivas de ordem moral e econômica, que integram o conjunto de vestimentas e adereços: “califon de meio corpo”, “calçola até o joelho”, “saia comprida e cabeção”, “jóias”, “enfeites”, que fazem parte dos ideais dessa moda. O campo comportamentos apresenta uma grande variedade de vocábulos que caracterizam os perfis femininos, segundo os moldes da “mulher bendita ou santa”, ou, inversamente, da “mulher prostituta e maldita”. Ainda nesse campo, insere-se o modelo de mulher valente, guerreira e corajosa, ícone reservado à figura das cangaceiras, símbolo de bravura e destemor, por excelência, da mulher nordestina. No campo raça, a mulher negra aparece associada a uma série de estereótipos, relacionados aos preconceitos de cor, de classe e de posição sócio-econômica. Nesse ponto, ressalta-se o valor social atribuído ao trabalho da mulher doméstica, enquanto mulher pobre, negra e sem instrução. Os nomes “peniqueira”, “choufer de fogão”, “nêga nojenta” constituem algumas formas de expressão que caracterizam o contexto de exploração e estigma da mulher doméstica. A mulher branca e burguesa, em seu perfil de “mãe” reprodutora, ou de filha “donzela”, figura como protagonista que opera num sistema de poder, dominação e exploração da outra raça. O campo cultura revela as crenças de natureza mitológica associadas ao protótipo de “Eva” e da “Virgem Maria”, desenvolvidos na herança e tradição religiosa católica do povo nordestino. Esse campo reflete-se praticamente em todos os Cordéis que foram objeto de estudo para o presente trabalho. De um modo geral, os macrocampos e os campos específicos se perpassam, em virtude da reunião de sememas, sendo muito difícil precisar o ponto onde eles se delimitam. 152 Apesar da dificuldade de delimitação temática, até devido à confluência das temáticas esboçadas nos Cordéis, alguns campos foram detectados com mais freqüência que outros. Finalmente, a estruturação do léxico na designação da mulher revelou um número representativo de termos e expressões pejorativas, que refletem um quadro de preconceito em relação ao sexo feminino. Durante a análise, pudemos comprovar que o repertório vocabular presente no Cordel corresponde à fala popular, confirmando a idéia de que a Literatura Popular retrata ou caracteriza a vivência e visão de mundo do povo nordestino. 153 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho investigou de que maneira a Literatura de Cordel deixa entrever, por meio do léxico, os aspectos relativos à mulher, inserida na realidade nordestina. De acordo com os pressupostos teóricos, os quais sedimentaram as análises e que serviram de base à constatação das hipóteses dessa pesquisa, pôde-se comprovar, a partir do corpus selecionado para a análise, que Literatura de Cordel, retrata, por meio das expressões e marcas próprias da oralidade, o papel que cabe à mulher na sociedade nordestina. Por meio de uma análise léxico-semântica dos folhetos, foi possível identificar aspectos da realidade nordestina, em face ao contexto sociocultural e, por fim, o vocabulário, interagindo com a cultura, revela, mais do que os aspectos formais da língua, o modo como a mulher é percebida e tratada na sociedade. Tais hipóteses foram contempladas durante a análise e ao longo da pesquisa, quando se procedeu a uma análise léxico-semântica de um número representativo de vocábulos, visando apresentar um universo de significações com relação à mulher e identificando o inventário lexical que explicitava a sua condição na sociedade nordestina. No desenvolvimento da análise, buscou-se perfilar os aspectos da linguagem regional/popular, na Literatura de Cordel, que reflete a visão do povo nordestino. Em geral, observaram-se questões relativas a crenças, tradições, religiosidade, sentimentos e costumes desse povo, que tomadas em conjunto, serviram de apoio à análise léxico-semântica dos vocábulos utilizados na descrição da mulher nordestina, dentro do universo sociolingüístico. A investigação esteve centrada no conjunto vocabular que designa a mulher, então organizado em campos léxico-semânticos, o que permitiu observar uma intensa transversalidade dos temas presentes nos folhetos de Cordel, no sentido em que eles se perpassam nos campos específicos. 154 De acordo com os objetivos propostos, o vocabulário temático dos folhetos foi organizado em campos léxicos, os quais foram distribuídos em cinco macrocampos: idade, constituída a partir dos subcampos “velhice” e “juventude”; imagem, abrangendo os subcampos “aparência física” e “vestimenta”; comportamento, no qual detectaram-se os subcampos “virtudes”, “recato”, “austeridade”, “depravação” ou “prostituição”, “valentia e coragem”, “sedução e sexualidade”; raça, tendo como subcampos, a “raça branca” e a “negra”; e, finalmente, cultura, considerando-se como subcampos “religiosidade”, “mitos ou superstições”, “tradições e costumes”. É importante dizer que a Teoria dos Campos Lexicais funcionou como método realmente válido para a depreensão das estruturas significativas globais presentes nos Cordéis, objeto da realização do presente estudo. Com base em abordagens de lingüistas, chegou-se a verificação de que a apreensão do significado, nos campos léxico-semânticos, é inseparável do contexto. A linguagem espontânea, atravessada por construções pitorescas, característica que condiz com a própria maneira risonha do povo nordestino de encarar situações cotidianas, constituiu uma questão relevante no estudo do Cordel dentro da perspectiva sociocultural a que esteve assentada a análise. Para tanto, foi possível perceber as características próprias do universo lingüístico da gente nordestina e, particularmente, o modo como o poeta sertanejo serve-se do vocabulário regional, muitas vezes aproveitando construções eruditas e clássicas, incorporadas à fala cotidiana dessa gente. A propósito da escolha das unidades léxicas, pôde-se comprovar que os cordelistas expressam, por meio do léxico popular, as novas direções que são incorporadas pela sociedade, não obstante encare, muitas vezes, com um certo grau de negativismo, desconfiança e até mesmo intranqüilidade, as inovações projetadas no plano sociocultural. A 155 descrição depreciativa, quando faz menção à ascensão profissional e social da mulher, é um dado relevante nessa questão. Pode-se afirmar que há a presença de traços de subjetividade do autor, os quais expressam sentimentos contraditórios em relação à visão sobre o sexo feminino. Um dos pontos mais evidentes quanto a isso é que a descrição dos Cordéis apresenta, de um lado, uma visão encantada e idealizadora de mulher, de outro, uma visão desencantada, ultrajada e pessimista. A observância dos fatos relevantes transcorridos em diferentes épocas e a sua capacidade de retratar os acontecimentos mais recentes é o faz com que o Cordel estabeleça a ligação com o mundo atual. Essa é, no nosso entendimento, uma das razões pela qual, ele continua sendo uma fonte inesgotável de comunicação e interpretação da realidade e como veículo de manifestação cultural popular da região nordestina. Percebe-se a participação restrita que têm as cordelistas na Literatura de Cordel e que as mulheres são, em decorrência disso, olhadas, quase tão somente sob a perspectiva masculina. Esse é um dado relevante que poderia levar a uma nova investigação, a partir da qual se conduziria uma abordagem lingüística sobre a representação feminina nos Cordéis produzidos por mulheres. Resta dizer que este estudo consiste em uma pequena contribuição aos estudos da linguagem popular e pode ser ampliado, pelo sentido profícuo da problemática, numa possível tese de doutorado. Enseja-se, pois, que essa pesquisa possa abrir novas possibilidades a outras, com o interesse na área da linguagem, particularmente sob o nível do léxico, para que, juntamente com outras que surjam, fornecer subsídios à compreensão da realidade lingüística do país. 156 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACACI, José. Sofrimento das solteiras para arranjar marido. Rio G. Do Norte. s.d. AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo: Editora Hucitec, 1982. ATHAYDE, João Martin. O poder oculto da mulher bonita. Juazeiro do Norte-CE. s.d. BALANDIER, Georges. Antropo-lógicas. São Paulo, Cultrix, 1976. BARBOSA, Maria Aparecida. Léxico, produção e criatividade: processos do neologismo. São Paulo: Global, 1981. ______. Da neologia à neologia na literatura. In: OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri. (Orgs.). As Ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. 2.ed., Campo Grande: UFMS, 2001. cap. 1, p. 33-51. BATISTA, Abraão. As duras lamentações de uma coroa. 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