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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
EUNICE SALGADO SOARES
A CONSTRUÇÃO DO TEXTO ESCRITO NA ESCOLA:
ACERTOS E ERROS
Salvador
2011
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
EUNICE SALGADO SOARES
A CONSTRUÇÃO DO TEXTO ESCRITO NA ESCOLA:
ACERTOS E ERROS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), Campus I, em cumprimento aos
requisitos para obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profª Drª Rosa Helena Blanco Machado
Salvador
2011
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FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Soares, Eunice Salgado
A construção do texto escrito na escola : acertos e erros / Eunice Salgado Soares. –
Salvador, 2011.
183 f.
Orientadora: Profª. Drª. Rosa Helena Blanco Machado
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas. Campus I. 2011.
Contém referências.
1. Redação. 2. Língua portuguesa - Estudo e ensino. 3. Composição e exercícios. 4.
Prosa escolar. I. Machado, Rosa Helena Blanco. II.Universidade do Estado da Bahia,
Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 469.8
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
TERMO DE APROVAÇÃO
EUNICE SALGADO SOARES
A CONSTRUÇÃO DO TEXTO ESCRITO NA ESCOLA:
ACERTOS E ERROS
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Prof. Drº Elmo José dos Santos
Universidade Federal da Bahia/ UFBA
__________________________________________________________
Profa. Drª Lígia Pellon de Lima Bulhões
Universidade do Estado da Bahia/ UNEB
____________________________________________________________
Profa. Drª Rosa Helena Blanco Machado - Orientadora
Universidade do Estado da Bahia/ UNEB
Salvador, 21 de dezembro de 2011.
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Dedico este trabalho aos meus pais Ivaldo Ribeiro Soares e
Hilma Salgado Soares (in memoriam), que souberam, através
de seus discursos, transmitir ensinamentos eternos.
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AGRADECIMENTOS
À professora Rosa Helena Blanco Machado, pela orientação cuidadosa e
paciente e por demonstrar respeito ao meu trabalho e boa vontade em me orientar.
À professora Lígia Pellon de Lima Bulhões (UNEB) e ao professor Elmo José
dos Santos (UFBA) pela gentileza em fazerem parte da banca examinadora e pelas
orientações, no exame de qualificação, que foram essenciais para a construção dessa
dissertação.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens,
(PPGEL), pelas contribuições valiosas através das aulas.
Aos funcionários do PPGEL, Camila, Danilo, Geraldo e Geysa que sempre
atenderam nossas necessidades com muito carinho.
Ao professor João Antônio Santana Neto, por me encorajar e sempre dizer que
valia a pena tentar.
Às professoras das escolas públicas que contribuíram com seus discursos para a
concretização do meu corpus.
Ao Ivandson por me acompanhar sempre nessa pesquisa e por cuidar de mim.
Aos meus queridos e amados filhos Gabriel, Mariana e Laura que sentiram na
pele esse meu processo. Muito obrigada por me ajudarem.
Ao meu querido pai Ivaldo pelas constantes orações e palavras divinas que me
acalmaram nos momentos de aflição. Eu te amo pai!
Aos meus queridos irmãos Moisés, Maria Leopoldina, Ebenézer, Lídia, Noemi,
Ester, Samuel e Isaías que me apoiaram nessa jornada com suas orações e dizendo que
logo tudo terminaria e terminou.
Aos meus irmãos da Igreja Batista Sinai (Classe Débora) que sempre me
acompanharam com suas orações.
Aos colegas do mestrado pelos bons momentos.
À CAPES, por ter financiado essa pesquisa e ter permitido a sua realização.
Agradeço especialmente ao Deus Pai, Criador de todas as coisas, ao meu Salvador
Jesus Cristo e ao Espírito Santo que me deu sabedoria ao longo dessa jornada, pela
oportunidade de vivenciar momentos que somente Eles poderiam me ajudar e, também,
por colocarem pessoas tão especiais nessa caminhada.
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RESUMO
Essa dissertação parte do questionamento da conhecida dificuldade dos alunos do
Ensino Fundamental II em escrever textos. Para fazer a investigação a que se propõe,
vai à sala de aula de escolas públicas. A pesquisa foi realizada em cinco escolas da Rede
Pública de Ensino da cidade de Salvador com o objetivo de observar como acontecem
as práticas de escrita nas turmas do 6º ao 9º ano e se essas práticas proporcionam aos
alunos a construção de significados na elaboração de textos bem escritos e se essas
práticas o ajudam em sua capacidade de transitar de maneira natural em torno da língua,
colaborando para a construção de significados que propiciem ao sujeito/escritor/aluno,
uma visão ampla sobre o ato de escrever. Para os objetivos que traçamos, foram
analisados dois questionários respondidos pelos docentes sobre o que seja escrever um
bom texto e sobre como levar o aluno a escrever bem e sobre a relação que elas
estabelecem entre oralidade, escrita e interação verbal. Além disso, foram realizados os
registros das atividades e falas observadas em sala de aula: propôs-se assim fazer um
confronto entre suas respostas ao questionário e suas práticas efetivas de aula com o
intuito de perceber se essas práticas refletem ou não, e como, suas posições discursivas.
A fundamentação teórica que permeia a pesquisa se faz, principalmente, com a
contribuição da Análise do Discurso da linha pechêtiana com a finalidade de, a partir de
seus dispositivos, identificar de que lugares os professores falam quando abordam a
linguagem em sala de aula e fora dela, buscando essas posições através do dito e do
não-dito nos dizeres dos sujeitos da pesquisa. Também recorremos aos estudos de
Bakhtin, sobretudo em relação ao entendimento dos conceitos de língua(gem) enquanto
interação verbal e dialogismo, muito presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais,
documento portador do discurso oficial sobre o ensino básico no Brasil, os quais serão
também trazidos com intuito de verificar se seus discursos são assimilados pelas
professoras e se suas práticas estão alicerçadas nesse discurso governamental.
Palavras-chave:
análise do discurso.
Produção de texto; produção de sentidos; ensino; prática de escrita,
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RÉSUMÉ
Cette partie thèse de l'interrogatoire de la difficulté connue des élèves de l’enseignement
fundamental II pour écrire des textes. Pour rendre l'enquête comme l'a proposé, sera la
salle de classe des écoles publiques. L'enquête a été menée dans cinq écoles publiques
dans la ville de Salvador, afin d'observer comment ça se passe à la pratique d'écriture
dans les classes de la 6e à 9e année et que ces pratiques donnent aux étudiants la
construction du sens dans la conception des textes et des écrite et une aide pratique à
ceux qui dans leur capacité à se déplacer naturellement autour de la langue, contribuant
à la construction de significations qui constituent le sujet / écrivain / étudiants une
vision large de l'acte d'écrire. Pour les objectifs que nous nous sommes fixés, nous
avons analysé deux questionnaires remplis par les enseignants sur ce qui est d'écrire un
bon texte et la façon d'amener les élèves à bien écrire et la relation qu'ils établissent
entre la langue oral, écrite et l’interaction verbale. En outre, les registres des activités
effectuées et observées lignes dans la classe: il a proposé de le faire une confrontation
entre leurs réponses au questionnaire et leurs pratiques de classe réelle afin de voir si
oui ou non ces pratiques reflètent, et comment leurs positions discursives. Le cadre
théorique qui imprègne la recherche est principalement avec la contribution de l'analyse
du discours de la ligne afin d'pechêtiana partir de leurs appareils, d'identifier les endroits
qui parlent lorsque les enseignants l'adresse de la langue en classe et en dehors sa
recherche de ces postes par le non-dit dit et dans les paroles des sujets de recherche.
Nous comptons aussi sur des études de Bakhtine, en particulier par rapport à la
compréhension des concepts de langue, langage tandis que l'interaction verbale et de
dialogisme, très présente dans les Paramètres des Programmes Nationaux, titulaire d'un
document du discours officiel sur l'éducation de base au Brésil, qui sera également
apporté, afin de assurez-vous que vos discours sont assimilés par les enseignants et leurs
pratiques sont ancrées dans le discours du gouvernement.
Mots-clés: La production du texte, la production de sens, l'enseignement, la pratique de
l'écriture.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
1 LÍNGUA, LINGUAGEM, ESCRITA E FALA....................................................15
1.1 LÍNGUA E LINGUAGEM................................................................................15
1.2 LÍNGUA ESCRITA...........................................................................................27
1.2.1 Concepções de escrita e relações entre fala e escrita............................27
1.3 CONCEITO DE TEXTO...................................................................................34
1.3.1 Gêneros e tipos textuais.........................................................................37
1.4 A ESCOLA E A PRÁTICA DA ESCRITA......................................................45
2 A ANÁLISE DO DISCURSO ...............................................................................54
2.1 ANÁLISE DO DISCURSO: ORIGEM E TRAJETÓRIA................................. 54
2.1.1 Foucault, Pêcheux e alguns conceitos em AD.........................................59
2.2 A ANÁLISE DO DISCURSO E A INSTITUIÇÃO ESCOLAR: OUTROS
CONCEITOS EM JOGO...................................................................................64
2.2.1 Memória e sua relação com a discursividade na escola ........................73
3 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS...........................................................83
3.1 CONHECENDO OS SUJEITOS E SEUS ESPAÇOS.......................................83
3.2 OS QUESTIONÁRIOS: ANÁLISE DAS RESPOSTAS DOS SUJEITOS.......85
3.2.1 O primeiro questionário .......................................................... ..............86
3.2.2 O segundo questionário: outras questões ...........................................101
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................120
REFERÊNCIAS.........................................................................................................128
ANEXO........................................................................................................................133
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INTRODUÇÃO
O nosso interesse em centrar a dissertação no tema A escrita escolar: o porquê
da não produção de texto no Ensino Fundamental do 6º ao 9º Ano surgiu
principalmente pelo que ouvíamos de professores de Português ao comentarem que os
alunos não queriam nada com a disciplina e que não sabiam escrever. Além disso,
através da mídia, por meio de jornais, revistas, televisão e internet, que revela a triste
situação dos alunos brasileiros que não sabem escrever.
Em nossas observações em sala de aula, enquanto professora eventual,
constatávamos, de fato, o quanto era difícil para o aluno escrever seu texto.
Normalmente o aluno dizia que não sabia escrever e, por isso, não gostava de escrever.
Então nosso interesse aumentou e transformamos este interesse em objetivo desta
pesquisa.
Aqui apresentamos o percurso que fizemos, guiados por nossos objetivos, e aos
resultados a que chegamos. Sem dúvida, o estudo nos possibilitou entendermos um
pouco dessa questão que não é de hoje e tem sido objeto de estudo de muitos teóricos da
área de linguagem e tem preocupado o governo.
No final da década de 1970, a discussão acerca do ensino de Língua Portuguesa
de concepção tradicionalista começa a romper gradativamente a partir de divulgações de
pesquisas na área da Linguística e de disciplinas geradas a partir dela como a
Sociolinguística e, posteriormente, a Linguística Textual e a Análise do Discurso. No
Brasil, alguns teóricos como Geraldi, Marcuschi, Possenti, Soares, Koch, Faraco,
Travaglia e muitos outros, procuraram se aprofundar na questão da linguagem verbal e
sua prática em sala de aula, preocupados com uma prática escolar em que o ensino da
língua estava, ainda, atrelado, sobretudo, aos estudos da gramática normativa, e às
abordagens puramente estruturalistas que aconteceram nas décadas de 1970 e 1980 em
torno do ensino da língua e que começam a ser criticadas. O acontecimento da língua
passa a ser pensado na interação verbal, pois os sujeitos se constituem na linguagem e é
na interação verbal que se percebe o quanto a língua é um produto vivo realizado na
enunciação.
Na perspectiva de Bakhtin (2006), o modo de dizer de cada indivíduo está
vinculado a uma prática a partir de sua interação num determinado contexto social. Isso
significa olhar a linguagem como interação verbal em que a língua seja reconhecida
como sistema de signos histórico e social que dê condições ao indivíduo de representar
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a realidade física e social, e expressar suas ideias, pensamentos e intenções de maneira
que influencie o outro a criar relações interpessoais antes inexistentes.
E é justamente baseado nessa ideia que surgirão algumas iniciativas que
culminarão na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em meados
da década de 1990, que estabelecerão diretrizes de como os conteúdos programáticos
devem ser trabalhados em sala de aula com o objetivo de desenvolver um sujeito
consciente de seu papel social e da construção de seu conhecimento. E, em se tratando
de Língua Portuguesa, os PCNs enfatizarão a importância de se trabalhar a língua na
perspectiva interacional.
O domínio da língua tem estreita relação com a possibilidade de plena participação social, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem
acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento. Assim, um projeto educativo
comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a
função e a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos
saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável de todos. (BRASIL,2000, p.23)
É preciso que entendamos a língua nas suas modalidades oral e escrita como
constituinte da realidade social. Elas apresentam diferenças que as tornam modalidades
específicas da língua com suas particularidades que serão desenvolvidas a partir do
contexto, da intenção do sujeito e da temática abordada.
Aqui nessa pesquisa, procuramos desenvolver um estudo apenas na modalidade
escrita e, especificamente, a escrita escolar. Para isso levantamos algumas questões que
direcionarão nosso estudo:
1 – Como se desenvolve o ensino de língua escrita em sala de aula?
2 – Quais as atividades de produção de escrita praticadas em sala de aula?
3 – Que conceitos de língua e de linguagem são trabalhados em sala de aula,
quer em exercícios propostos quer nas práticas linguístico-discursivas?
4 – Que representatividade espaço-temporal tem essas atividades de escrita no
conjunto das atividades de língua portuguesa?
Essas perguntas tornaram-se os objetivos do nosso estudo e são eles:
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1 – Observar como se desenvolve o ensino de língua escrita em sala de aula.
2 – Verificar quais são as atividades de produção de escrita praticadas em sala de
aula.
3 – Analisar que conceitos de língua e de linguagem são trabalhados em sala de
aula, quer em exercícios propostos quer nas práticas linguístico-discursivas.
4 – Dimensionar a representatividade espaço-temporal que essas atividades de
escrita tem no conjunto das atividades de língua portuguesa.
Essa pesquisa está baseada no entendimento de que a língua é um produto social
e que os sujeitos e suas falas/escritas fazem parte de uma realidade sócio-histórica. Ela
será conduzida pela Análise do Discurso, doravante AD, da linha pêcheutiana, pois na
Análise do Discurso a língua e os sentidos são entendidos como acontecimento entre os
sujeitos.
A AD é uma disciplina que trabalha a relação língua-discurso-ideologia e ao
desenvolver uma teoria que mostra a relação entre os processos ideológicos e os
processos linguísticos para a constituição dos sentidos, Pêcheux (1997) demonstra que o
discurso não é o mesmo que transmissão de informação, nem um simples ato de dizer.
Sua natureza é muito mais complexa e, segundo Orlandi (2007, p. 21), “as relações de
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados.
Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos entre locutores”. Em nossa
pesquisa, alguns conceitos da AD, a exemplo de memória discursiva, interdiscurso e outros,
serão mais trabalhados no capítulo 2.
A pesquisa foi realizada em cinco escolas públicas e antes de iniciá-la foi
necessário pedirmos autorização à coordenação geral para a visita às escolas de Ensino
Fundamental, as quais constituem um Complexo Escolar, que funciona em um bairro
popular da Cidade de Salvador. A partir daí, foram contactadas as diretoras de cada uma
dessas escolas. As diretoras indicaram as professoras que elas queriam que
participassem da pesquisa, caso fosse de seus interesses. Das cinco indicadas, uma
docente não foi localizada por nós e, por esse motivo, outra professora foi escolhida.
Foram pensadas duas estratégias de coletas de dados que serviriam de análise
para a pesquisa:
1)
a aplicação de um questionário, às professoras sujeitos da pesquisa,
no início do período de visita às escolas pela pesquisadora, contendo
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algumas questões; e aplicação de outro questionário, com outras
questões, no final deste período;
2)
A visita às escolas para registro das atividades em sala de aula, se
possível, com o auxílio de um gravador, onde se fariam gravar os
movimentos da aula proferida, registrando as atividades propostas e
seu desenvolvimento e as formas de abordagem às temáticas
propostas, isto é, o estudo da língua em qualquer de suas modalidades,
mas, atentando especificamente para o ensino/aprendizagem da língua
escrita. Associada a esta visita, ficariam também previstas a
observação do espaço escolar, infraestrutura, organização dos espaços
e do acesso dos alunos etc.
Após os contatos iniciais com a Direção e professoras indicadas, deu-se início às
observações das aulas para que se pudessem conhecer melhor os sujeitos-professoras do
ambiente escolar. No ambiente escolar, procurou-se observar se a escola dispunha de
biblioteca, acervos literários, laboratório de informática e se os alunos tinham acesso a
eles. Em sala de aula, a atenção ficou voltada para os procedimentos metodológicos e
didáticos e os discursos utilizados pelas professoras no momento da aula e na
elaboração de atividades relacionadas à produção de textos escritos em sala de aula.
Nas visitas às escolas, para atender aos objetivos referidos acima, utilizamos
dois procedimentos: a gravação das aulas através de um MP5 e a elaboração de um
diário de bordo. O que chamamos de diário de bordo é o relato de todas as nossas
observações feitas desde a nossa entrada na escola até a nossa saída, portanto em todo o
espaço escolar. Os registros feitos no MP5 se restringiram às atividades desenvolvidas
em sala de aula.
Fazem parte do corpus as respostas dadas por escrito, pelas professoras, aos
questionários; e as transcrições de suas aulas, nas atividades que disserem respeito aos
objetivos da pesquisa, quais sejam, a construção do texto escrito. Esses últimos dados
serão vistos/abordados, mais frequentemente, nas passagens deste estudo em que
estivermos nos detendo nas elaborações das fundamentações teóricas. A intenção é
fazer uma relação maior entre a teoria e a prática e conseguirmos resultados mais
eficazes. As respostas aos questionários são analisadas num outro capítulo, este
dedicado especialmente às Análises. Assim, o corpo da Dissertação é composto desta
Introdução, três (3) Capítulos de desenvolvimento e a Conclusão.
14
Para identificar as professoras, sujeitos da pesquisa, foram usadas a letra P
seguida de E e seu respectivo número (correspondendo à escola em que trabalham),
seguidos da série em que a professora ensina:

PE1 – Professora da Escola 1 - 6º ano

PE2 – Professora da Escola 2 - 7º ano

PE3 – Professora da Escola 3 – 7º. ano

PE4 – Professora da Escola 4 – 8º. ano

PE5 – Professora da Escola 5 – 8º e 9º. anos
A coleta do material foi realizada entre outubro a dezembro de 2009, perfazendo
um total de oito semanas de observação, 120 horas. Como foi colocado acima, foram
seis (6) turmas, a saber:

Uma turma do 6º ano

Duas turmas do 7º ano

Duas turmas do 8º ano

Uma turma do 9º ano
É preciso destacar que as visitas às escolas nem sempre foram proveitosas, pois
muitas vezes as escolas estavam fechadas por conta de greve, reforma, falta de água no
bairro, chuvas torrenciais; outras vezes não havia aula por causa da ausência das
professoras. Por esses motivos, houve certo prejuízo em relação às sequências das aulas,
já que os conteúdos deixaram de seguir seu cronograma, mas vale ressaltar que isso não
prejudicou o andamento da pesquisa.
A partir desses procedimentos, procuramos trazer para o texto um pouco do que
vivenciamos em sala de aula e, em especial, a prática de produção de texto escrito.
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1 LÍNGUA, LINGUAGEM, ESCRITA E FALA
1.1 LÍNGUA E LINGUAGEM
Como se sabe, o estruturalismo concedeu cientificidade aos estudos da
linguagem. Saussure ao criar sua Linguística propôs uma abordagem descritiva e
sistemática da língua e reconheceu apenas a língua como objeto linguístico, pois, para
ele, a linguagem por ser um objeto “multiforme e heteróclito e pertencer ao domínio
individual e ao domínio social” (SAUSSURE, 1995, p. 25), não poderia fazer parte da
Linguística. Por esse motivo, Saussure afirma que:
Não há, no nosso entender, senão uma solução para todas essas dificuldades [trata-se das contradições internas da “linguagem” como ponto de
partida de sua análise]: é preciso, antes de tudo, instalar-se no terreno da
língua e torná-la como norma de todas as demais manifestações da linguagem. (SAUSSURE, 1995, p.24)
Além dessa distinção entre língua e linguagem, Saussure distingue também “a
língua dos atos individuais de enunciação, isto é, da fala” conforme nos ensina Bakhtin
(2006, p.89). Segundo este autor, para Saussure a língua não é função de sujeito falante,
ela é um produto que o indivíduo registra passivamente. E em relação à fala:
A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e de inteligência no
interior do qual convém distinguir: primeiramente, as combinações pelas
quais o sujeito falante utiliza o código da língua para exprimir seu pensamento pessoal; em segundo lugar, o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar estas combinações. (SAUSSURE,1922,apud BAKHTIN
2006, p.89)
A oposição langue e parole significou a primeira “bifurcação” na construção
teórica de Saussure. Em seu livro Curso de Linguística Geral, ele afirma que há dois
caminhos impossíveis de se trilhar: a fala e a língua, e que ele cuidaria unicamente da
língua.
Partindo
dessa
ideia,
Saussure
constrói
as
dicotomias
langue/parole,
sincronia/diacronia e centra seu estudo na língua e na sincronia. Para ele, a fala, por ser
um ato individual – para o qual não concorrem outros membros da comunidade
linguística – é uma manifestação limitada pelas regras de um sistema maior, o qual
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determina parâmetros a serem seguidos e que o comportamento linguístico da
comunidade possui relevância para a compreensão de sua visão do social.
A noção de comunidade linguística para Saussure é aquela em que a língua é um
código preestabelecido entre os membros de uma comunidade a qual não pode alterá-lo.
Ainda, segundo Saussure:
A língua existe na coletividade sob a forma duma soma de
sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como
um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos. Trata-se, pois, de algo que está
em cada um deles, embora seja comum a todos e independente da vontade dos depositários. (SAUSSURE, 1995, p.27)
Ao dizer que a língua se manifesta de forma “independente da vontade dos
depositários”, Saussure a considera como algo já intuído socialmente e reconhece o
fenômeno social (a língua) e o fenômeno individual (a fala) polos opostos. Sua visão de
língua e de comunidade linguística é abstrata, pois pressupõe que a língua seja um
sistema de elementos linguísticos preexistentes à fala, a qual apenas os reproduz. Essa
concepção que Saussure tem da língua é o alicerce de sua teoria.
Antes de Saussure apresentar a ideia de que o estudo linguístico possui duas
dimensões – uma sincrônica e outra diacrônica – o estudo das línguas detinha-se apenas
ao comparativismo e a uma descrição do comportamento histórico das mesmas.
Segundo Saussure (1995), a dimensão sincrônica considera o momento exato, um
intervalo de tempo, compreendendo períodos curtos ou longos. Nessa dimensão, a
língua é vista como um sistema estável e, também, complexo, no qual os termos não se
definem por si, mas através das relações que se estabelecem entre eles.
A dimensão diacrônica, para Saussure, é a relação histórica que se estabelece
entre os fenômenos da língua. Por ser temporal, a diacronia relaciona-se com a pesquisa
histórica que se dedica a descrever as línguas, as alterações ocorridas tanto no campo
semântico quanto no lexical.
Saussure não se preocupou em definir o que ele entendia como “sistema”, mas
explicou que “a língua é um sistema do qual as partes podem e devem ser consideradas
em sua solidariedade sincrônica” (SAUSSURE,1995, p.12). Ele comparou o sistema da
língua a um jogo de xadrez em que cada peça está tão ajustada à outra que ao se mexer
numa delas, todas as outras sofrem com essa ação. Não há peça isolada, todas estão em
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relações recíprocas. E, nessa sua ideia de sistema, não podem existir fatores externos,
pois ele é fechado em si mesmo.
Ao contrário de Saussure, para Bakhtin (2006, p.128) “a língua vive e evolui
historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das
formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”. Bakhtin entende a língua
como manifestação múltipla e heterogênea e seu acontecimento na relação que o
indivíduo tem com a língua e seu uso. Ele demonstra essa relação, ao criticar a tradição
formalista/estruturalista que afirma que a língua existe realmente para a consciência
subjetiva do locutor unicamente “como sistema objetivo de formas normativas e
intocáveis” (BAKHTIN, 2006, p. 95). Então, ao rebater essa opinião, Bakhtin afirma
que o locutor serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas, ou seja,
a língua apenas enquanto código não abarca condições significativas que só são
adquiridas num dado contexto, pois “todas as esferas da atividade humana, por mais
variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua” (BAKHTIN,
1997, p. 279) que se materializa por meio de enunciado.
E é nesse sentido que as pessoas se posicionam em suas mais variadas atividades
discursivas como na religião, nas relações familiares, na política, na escola, no trabalho,
enfim, no contexto social em que estão inseridas. Não há como desvincular os
enunciados das esferas da ação, pois a linguagem está ‘conectada’ com a vida social,
por isso, ela é interação. Baseado nessa ideia, Bakhtin (ibidem) vai dizer que “o
enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,
não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, mas, sobretudo, por sua
construção composicional”. Logo, estes três elementos – conteúdo temático, estilo e
construção composicional – “fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado e
todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação” (ibidem).
Para Geraldi (1993), a questão da linguagem é fundamental no desenvolvimento
de todo e qualquer homem. Ele ainda afirma que, através da linguagem, se apreendem
conceitos que permitem aos sujeitos compreender o mundo e nele agir. Para ele:
A linguagem é ainda a mais usual forma de encontros, desencontros e
confrontos de posições, porque é por ela que estas posições se tornam
públicas, é crucial dar à linguagem o relevo que de fato tem: não se trata evidentemente de confinar a questão do ensino de língua portuguesa
à linguagem, mas trata-se da necessidade de pensá-lo à luz da línguagem. Escolha-se, por inevitabilidade, o posto. Escolhido, o posto é movediço. É preciso desenhá-lo. (GERALDI, 1993, p.5)
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Geraldi (ibidem) afirma que “o lugar privilegiado deste desenho é a
interlocução” que permite focalizar a linguagem a partir da interação verbal e, nesse
processo, ainda segundo Geraldi (1993, p.6), é possível admitir que:
a)A língua (no sentido sociolinguístico do termo) não está de antemão
pronta, mas que o próprio processo interlocutivo, na atividade de
linguagem, a cada vez a (re) constrói;
b)Os sujeitos se constituem como tais à medida que interagem com os
outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam como
“produto” deste mesmo processo.
c)As interações não se dão fora de um contexto social e histórico mais
amplo; na verdade, elas se tornam possíveis enquanto acontecimentos
singulares, no interior e nos limites de uma determinada formação
social, sofrendo as interferências, os controles e as seleções impostas
por esta.
Portanto, linguagem e sujeito se constituem a partir do acontecimento
discursivo, pois o sujeito ao significar-se dá existência à própria língua. E é nesse
sentido que Geraldi (2010) afirma que escrever não é uma atividade que segue regras
previstas, com resultados de antemão antecipados, ou seja, não é algo mecânico de
aplicação de regras, mas o conhecimento da própria língua como objeto vivo, históricosocial-discursivo em que a comunicação se transforma em relações de sentido entre os
interlocutores e onde se dá o funcionamento real da linguagem, através do que Bakhtin
(1997) chama de “enunciado concreto”.
Geraldi, ao tratar da linguagem em sala de aula, afirma que é fundamental se
fazer uma reflexão sobre ela a partir de um deslocamento. Ele diz o seguinte:
[...] não se trata de linguagem vista como repertório, pronto e acabado, de
palavras conhecidas ou a conhecer e de um conjunto de regras a
automatizar; nem da linguagem como tradução de pensamentos que lhe
seriam prévios; menos ainda da linguagem como um conjunto de figuras de enfeite retórico; e muito menos ainda da linguagem vista como
forma correta, ortográfica, de palavra ou sentenças. Não se creia, no entanto, que este deslocamento pretende apenas esvaziar o ponto de partida, substituindo com nada concepções correntes. Trata-se de um deslocamento para. É eleição de um outro lugar. (GERALDI, 2010, p.34)
E esse outro lugar, como já foi colocado acima, é a interlocução. Em seu texto
Concepções de Linguagem, Geraldi (2002, p. 41) apresenta três concepções de
linguagem:
19

A linguagem como expressão do pensamento

A linguagem como instrumento de comunicação

A linguagem como forma de interação
A duas primeiras concepções retratam a língua como código, signo, e seu
contexto não é pertinente. Já na terceira concepção, a linguagem é vista como interação,
atua no social e seus falantes são sujeitos discursivos. Nesse sentido, não importa só
quem fala, mas o que se fala e a quem se fala. Segundo Geraldi (2010, p.35-36), para
que isso aconteça, é preciso reconhecer:



a historicidade da linguagem - É presente que, sendo história,
faz história e por isso mesmo participa do trabalho de constituição
da língua, sempre em movimento, sempre se fazendo, inacabada e
provisoriamente acabada para oferecer os recursos para o trabalho
presente que continua a constituí-la.
a constituição contínua dos sujeitos: não há um sujeito pronto de
um lado que se apropriaria de uma língua pronta de outro lado.
Também os sujeitos se constituem à medida que interagem com os
outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam
como produtos deste processo. Neste sentido, o sujeito é social já
que a linguagem que usa (na particularidade de suas interações)
não é sua, mas também dos outros e é para os outros e com os
outros que interagem verbalmente.
o contexto das interlocuções é constitutivo dos discursos
proferidos: os acontecimentos discursivos não se dão fora de um
contexto social mais amplo; na verdade eles se tornam possíveis
enquanto acontecimentos singulares no interior e nos limites de
uma determinada formação social.
Essa concepção está relacionada a um processo fenomenológico que reconhece a
língua como manifestação dinâmica, histórica e social e, nesse sentido, essa concepção
possibilitará ao aluno refletir, argumentar, perguntar, enfim, se posicionar diante de sua
produção textual que “é a materialização linguística de um discurso, cuja materialidade
‘sustenta’ os sentidos possíveis e aparentemente impossíveis... porque no mesmo texto
se cruzam outros discursos com os quais o texto se relaciona” (GERALDI, 2006, p.15).
Para ilustrar essas considerações aqui tecidas quanto às concepções de
língua(gem) e suas repercussões nas práticas de ensino-aprendizagem, trazemos dois
exemplos de atividades de sala de aula
interpretação e língua escrita.
registrados por nós e que versam sobre
20
No primeiro dos registros, a professora PE4 (20/11/2009), do 8º ano, trouxe a
fábula “O cão e o lobo” para ser trabalhada com os alunos. Após as leituras da fábula, a
professora colocou as seguintes questões para serem debatidas e analisadas pelos
alunos:
1 – Uma das coisas que chamaram a atenção do lobo foi a aparência do
cachorro. Quais as qualidades que o lobo atribuiu ao cão?
2 – O que cão explicou para o lobo sobre a boa aparência? Qual o motivo da boa aparência?
3 – Convencido de que deveria seguir o companheiro, os dois já estavam
a caminho quando o lobo percebeu a coleira. Como o lobo reage a
essa descoberta? De que forma o cão se explica: ele se embaraça, ele
se envergonha?
4 – Construa mais duas formas de dizer a moral dessa fábula.
A partir dessas questões, a professora passa a interagir com a turma do seguinte
modo:
Professora – Vocês entenderam a moral da fábula, agora, a partir dessas
questões, vamos debater alguns temas que são bem atuais e
têm a ver com a gente. Maria, como é que você respondeu a
primeira questão?
Maria
– As qualidades que o lobo atribuiu ao cachorro é que
ele é gordo, bem tratado.
Professora – Muito bem, Maria. É isso mesmo! Mas, porque ele é bem
tratado?
Fábio
– Porque ele tem um dono que gosta dele e aí ele é bem tratado.
Professora – É isso mesmo, Fábio! Agora, alguém da turma pode me dizer se aquelas pessoas que não têm ninguém para cuidar
delas como as pessoas que vivem na rua, as crianças de
rua, têm boa aparência?
Mateus
– Não, elas não têm boa aparência porque não podem tomar
banho e não têm roupas para vestir.
João
– Elas também não têm o que comer e ficam bem magras e
doentes.
Professora – A turma entendeu o que eles disseram Alguém quer acrescentar mais alguma coisa? Fábia, você que gosta de falar.
O que você tem a dizer sobre isso?
21
Fábia
– Professora, deveria ter um lugar na cidade que deixasse
essas pessoas tomarem banho e que a gente pudesse doar as
roupas que não queremos mais.
Professora – Muito bem, Fábia. Sua ideia é maravilhosa! Mais alalguém quer falar sobre isso? Não, então vamos para a
segunda questão. Ela completa a primeira. Quem quer respondê-la?
Felipe
– O cão disse que tinha boa aparência porque seu dono cuidava dele.
Professora – Isso mesmo, Felipe! Alguém cuidava dele e vocês têm
alguém cuide de vocês? Por que vocês têm boa aparência?
O que vocês fazem para ter boa aparência?
Fábia
– Porque temos pais que cuidam de nós.
Fábio
– Porque vivemos numa casa, com nossa família.
Amanda
– Porque a gente pode se cuidar, tomar banho, escovar o dente e nos pintar.
Professora – Muito bem Amanda, você falou algo interessante. A turma
prestou atenção ao que ela falou? Ela disse que a gente tem
boa aparência porque a gente toma banho, escova o dente, as
meninas se pintam. Quer dizer que se a gente não fizer isso
não vamos ter boa aparência? O que vocês acham?
Fábia
– Eu acho que tomar banho e escovar o dente é importante para aparência, mas se pintar não. Têm muitas meninas que não
pintam têm boa aparência.
Fábio
– Eu concordo com ela, não precisa se pintar para ter boa apa-
rência.
Professora – Então, me digam! Por que o lobo não quis mais ter a mesma vida do cachorro? Quem pode responder?
Fábia
– É porque ele viu que a vida do cachorro é uma prisão.
Professora – Como assim, o cachorro não era feliz? Ele não tinha tudo
e gostava do se dono?
Fábio
– Professora, ele gostava dessa vida, mas o lobo viu que ele
tinha uma coleira e que às vezes o dono prendia ele e o lobo não quis mais essa vida.
Professora – Quer dizer que o lobo queria te r vida boa, mas não queria
fazer a vontade do dono não? E se a gente puder comparar
a vida do cachorro com a nossa, temos tudo o que queremos? Os pais de vocês dão tudo o que vocês querem? Vocês
se sentem presos em casa? Vocês têm liberdade para fazer
tudo em casa? Como é que isso acontece?
22
Tânia
– Eu não tenho, porque meu pai não deixa namorar.
Professora – E por que seu pai não deixa você namorar?
Tânia
– Meu pai disse que devo estudar e trabalhar para quando o
marido gritar comigo eu mandar ele embora.
Professora – Quer dizer que você está se sentindo presa agora, mas no
futuro isso vai ajudar você a não se sentir presa. É isso
mesmo? O que você acha disso?
Tânia
– É isso, eu acho que é isso mesmo.
Professora – Vocês são ótimos, e merecem um beijo. Mais alguém quer
falar sobre a liberdade ou a prisão em casa?
Fábia
– Professora, quando o filho está na casa da mãe é uma prisão
mas é uma boa prisão.
Fábio
– O cachorro é igual a mim, é bem alimentado, mas é preso.
Professora – Eu tenho liberdade?
Fábia
– Claro, você trabalha e é independente.
Professora – Vocês acham que eu tenho liberdade total? Eu posso fazer
tudo o quero na escola?
João
– Não pode não, porque tem a diretora que manda em tudo.
Professora – E aquelas pessoas que realmente vivem numa prisão, Foram presas pela polícia, por que estão lá?
Mateus
– Porque fizeram muita coisa errada.
Professora
– E o que eles devem sentir lá?
Carlos
– Tristeza, solidão e raiva.
Fábia
– Vingança, ódio, violência.
Maria
– Arrependimento.
Professora
– Às vezes, as prisões dos pais passam do limite. Por que
será que os pais fazem isso?
Fábia
– Por medo da violência.
Fábio
– Para não querer que o filho se envolva com traficantes.
Professora
– Sabe,eu tenho um aluno da turma da tarde que tem 13 anos
e ele diz que quando tiver 18 anos vai se envolver com traficantes para matar àqueles que mataram sua mãe. Vocês
acham que ele deve fazer isso?
Fábia
– Não, porque ele não vai trazer de volta a mãe dele. Ele deve estudar mais e pensar outras coisas.
Professora – Vocês sabem que eu passei por muitas dificuldades na minha vida? Eu fui aluna dessa escola e minha família era
23
muito pobre. Eu fiz curso normal e trabalho na escola há
28 anos. E eu continuo estudando, tem três anos que eu fiz
o curso superior e ainda quero estudar mais. Bem, agora
É o momento mais feliz da aula. Eu quero que vocês escrevam uma fábula considerando os elementos da narrativa
que já trabalhamos aqui em sala e eu vou colocar no quadro: narrador, personagem, enredo, espaço ou lugar e tempo. Se quiserem podem fazer em dupla ou em trio.
Nessa situação vivenciada em sala de aula, percebe-se a linguagem entendida e
trabalhada pela professora como interação verbal, pois os sujeitos – a professora e os
alunos – participam de um diálogo em que seus enunciados fazem parte de uma cadeia
comunicativa estabelecendo conexão com outros enunciados antes proferidos,
constituindo estes enunciados os elos da cadeia discursiva na qual atuam sujeitos
interlocutores que aí se constituem.
A professora PE4 reflete um saber que reconhece a concepção interativa da
linguagem, pois seu discurso possibilita as enunciações que são geradas em sala de aula.
Nessa concepção, a língua é reflexo das relações sociais em que o sujeito articula seu
discurso levando em conta não somente os elementos linguísticos, mas as condições em
que são produzidos os discursos.
Os interlocutores se socializam alternadamente através de suas enunciações
criticando, discordando, concordando, se calando, enfim, produzindo uma dimensão
dialógica que perpassa o processo de socialização e o de individuação e, nesse sentido,
segundo Voese (2004, p. 96), “a interação sempre se constitui como um tipo de desafio
para os indivíduos: valem-se de uma mediação generalizante para negociarem
singularidades”.
No exemplo acima, a professora PE4 demonstra um certo conhecimento em
relação à língua como interação verbal, pois, após selecionar o texto que será lido e
analisado em sala de aula, direciona um diálogo entre o texto e os enunciados dos
alunos. Esse é um exemplo bem sucedido de aprendizagem de linguagem em sala de
aula. O texto é bem explorado, deixando claras as relações com outros enunciados, a
prática do uso da linguagem perpassa o texto escrito (a leitura do texto da fábula),
depois vai para o texto oral e, a seguir, retorna ao texto escrito através das produções
escritas dos alunos, como a professora sugere ao final.
A situação a ser descrita abaixo, por outro lado, pode representar, ao contrário,
um modelo mal sucedido de ensino de aprendizagem envolvendo a língua escrita.
24
A professora PE3 (19/10/2009), do 7º ano, procura levar seus alunos a
produzirem um texto escrito – um cordel – após trabalhar com esse tema durante três
aulas, isto é, após ter apresentado a Literatura de Cordel e ter falado sobre como ela é
feita. Ela inicia a aula colocando no quadro o seguinte esboço:
Literatura de Cordel
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__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
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__________________________
__________________________
__________________________
A partir da colocação das linhas, ela passa a explicar aos alunos o que ela quer
que eles façam:
Professora – Vocês estão vendo isso aqui no quadro? Eu quero que hoje
vocês escrevam um texto em cordel dessa forma. Cada linha corresponde um verso e eu já trabalhei com vocês a
Literatura de Cordel, estão lembrados? Eu vou colocar alguns temas e vocês vão escolher um deles: saúde, futebol,
esporte, família, mulher, cidade, educação. Bem, agora
podem fazer o texto. Eu vou recolher, é melhor fazer primeiro no rascunho e depois passem a limpo a caneta.
João
– Pró, por que tem que ter Literatura de Cordel?
Professora – Porque ele vai ser escrito em versos. Já trabalhei três aulas
o tema e isso vai avaliar vocês. Vocês precisam escrever
pra eu saber como vocês estão escrevendo.
Carlos
– Pró, a senhora pode fazer um para a gente ver como é? Eu
não consigo escrever nada.
Professora – Eu já expliquei a vocês o que é Literatura de Cordel e já falei isso em três aulas. Agora chegou a vez de vocês escreverem.
Jamile
– Posso fazer outro tipo de texto, professora?
Professora – Eu já trabalhei o Cordel aqui na sala e vocês deveriam já es-
25
tar sabendo. Vocês precisam escrever um texto em cordel,
preciso saber se vocês aprenderam o cordel. Essa atividade
vale dois pontos e vai ajudar vocês na 3ª unidade.
Professora – Eu vou colocar no quadro uma estrofe do texto de um aluno
da tarde para vocês verem como ele fez o texto dele.
A professora escreve no quadro:
ESPORTE
Vou contar pra vocês
Uma verdadeira história
De um menino que se chamava
Miguel
Que já gostava de bola
A seguir, ela disse para turma:
Professora – Vocês podem escrever seu texto a partir desse aqui. Há alguma dúvida?
Cláudia – Eu não sei escrever nada do tema.
Professora – Pense em alguma coisa ligada à fantasia, à ficção.
Professora – Façam silêncio!
José
– Eu vou fazer o meu texto em casa.
André
– Eu também. Não consigo escrever nada, pró.
Mariana – Eu desisto
Jamile
– Pró, eu posso fazer o texto em casa?
Professora – É pra fazer aqui.
Luís
– Pró, pode fazer dois temas?
Professora – Você vai mudar, é? Mas não pode ser assim não.
Luís
– Ah! Não vou fazer mais não.
Professora – Gente, já são oito e vinte e eu preciso do texto arrumadinho.
Andressa, porque você está com a cabeça baixa? Já está
quase na hora de terminar a aula, vamos logo com isso!
Alex
– Pró, pode me explicar o que é pra fazer?
Professora - Atenção para a construção dos versos e das estrofes. Andressa, você não vai levantar a cabeça e fazer o texto?
Andressa – Estou com uma ‘porra’ de dor de cabeça.
Professora – ‘Poraí’, gente!
Kátia
– Pró, olha o meu texto aí.
Professora – O texto está borrado. Passe a limpo. Gente, a aula terminou.
Tragam o texto. Pelo que estou vendo, alguns textos terão
que ser refeitos. Quem não fez o texto agora, não esqueça
de trazer na próxima aula.
Como se pode observar, esse exemplo é contrário ao anterior quanto à sua
eficácia. Fica evidente que a professora PE3 possui uma concepção restrita de
linguagem: o aluno deve produzir o texto escrito a partir do entendimento do que seja
26
Cordel. A escrita aqui vai "enroupar” o entendimento do aluno sobre o que seja cordel,
isto é, sobre o próprio texto Cordel. A língua é um instrumento, não é interação sócioverbal.
Nesse contexto o que está sendo priorizado é a produção de um texto escrito
para ser corrigido e atribuído uma nota. Dessa maneira, nessa concepção de língua
algumas formas linguísticas serão privilegiadas em detrimento de outras e legitimará o
bom uso da língua e o reconhecimento da gramática como arte de escrever
corretamente.
O que se vê é uma relação de força em que a professora insiste para que os
alunos escrevam a partir dos temas dados e do esquema/modelo colocado no quadro.
Ela praticamente impõe aos alunos que escrevam para que ela possa avaliá-los em
relação ao aprendizado do conteúdo – Literatura de Cordel – que já foi dado
anteriormente. No entanto, ela não percebe, em nenhum momento, as pistas que eles
dão para dizer que não conseguem escrever o que ela está pedindo.
Essa postura reflete ainda um ensino cristalizado num modelo tradicional que
anula a interlocução e inibe os sujeitos – os alunos – a construírem suas enunciações a
partir de suas experiências com a linguagem que “é fundamental no desenvolvimento de
todo e qualquer homem; de que ela é condição sine qua non na apreensão de conceitos
que permitem aos sujeitos compreender o mundo e nele agir” (GERALDI, 1993, p.4). A
situação, criada pela professora PE3, permite visualizar o entendimento de
aprendizagem em que a língua se transforma num fim em si mesma, em que o objetivo
da tarefa é de ordem acadêmica sem permitir a exploração da língua sob o viés sóciohistórico que a caracteriza e lhe dá sentido.
É preciso reconhecer que a língua antes de ser objeto de ensino, é objeto
cultural, social e seu significado está atrelado às práticas de uso oral/escrito que se
fazem dela. Logo, a escola deve transmitir ao aluno as muitas modalidades em que a
língua é veiculada na sociedade e suas diversas funções sociais: “o trabalho linguístico é
contínuo, realizado por diferentes sujeitos, em diferentes momentos históricos, em
diferentes formações sociais, dentro das quais diferentes sistemas de referência se
cruzam (e se digladiam)” (GERALDI, 1993, p.14).
27
1.2 LÍNGUA ESCRITA
1.2.1 Concepções de escrita e relações entre fala e escrita
Kato (2002), em seu texto sobre a natureza da linguagem escrita, afirma que
quando se fala em diferenças entre linguagem oral e a escrita, pensa-se em duas
modalidades invariantes, quando, na verdade, no interior de cada uma, há múltipla
variação. Essa variação é causada por diversos fatores e Kato (2002, p. 20-30) os
enumera da seguinte maneira:

Variável social e psicológica na forma de linguagem

O grau de letramento

O estágio do desenvolvimento linguístico

A forma como uma função do gênero

O registro – linguagem coloquial e linguagem escrita

Inter-relação entre modalidade, registro e norma
Esses fatores demonstram que a relação fala/escrita não se desenvolve na
dicotomia:
incompleta/completa;
não
planejada/planejada;
fragmentária/não
fragmentária; simples/complexa. Há algo que está além dessas considerações, pois está
implícito na maneira de se conceber a língua e seus usos. Logo, o objetivo da escola não
deve estar relacionado ao ensino de mecanismos para o aluno saber desenvolver sua
competência linguística, mas no sentido de mostrar ao aluno seus usos conforme o
contexto social em que está inserido.
Como se sabe, a escrita é um fato histórico. Enquanto a fala é algo nato no ser
humano, a escrita, segundo Marcuschi (2001), surgiu há pouco mais de 3.000 anos a.C.
e no Ocidente ela entrou por volta de 600 a.C. Portanto, em comparação com a tradição
oral, ela ainda é recente. Marcuschi (2001), ao distinguir as modalidades de uso da
língua, afirma que:
A escrita seria um modo de produção textual-discursiva para fins comunicativos com certas especificidades materiais e se caracterizaria por sua
constituição gráfica, embora envolva também recursos de ordem pictória e outros (situa-se no plano dos letramentos). Pode manifestar-se, do
ponto de vista de sua tecnologia, por unidades alfabéticas (escrita alfa-
28
bética) ideogramas (escrita ideográfica) ou unidades iconográficas, sendo
que no geral não temos uma dessas escritas puras. Trata-se de uma modalidade de uso da língua complementar à fala. (MARCUSCHI,2001,
p.26)
Segundo Marcuschi, nos últimos anos aumentaram os estudos sobre a relação
entre fala e escrita e, embora os resultados ainda sejam limitados, demonstraram que a
questão é variada e complexa. Para Marcuschi (2001, p. 45-46), as descobertas mais
notáveis indicam que:







as semelhanças entre as modalidades oral e escrita são maiores
que as diferenças;
as relações de semelhanças e diferenças não são estanques nem
dicotômicas, mas contínuas ou graduais;
muitas das características diferenciais atribuídas a uma das
modalidades são propriedades da língua (por exemplo,
contextualização/descontextualização; envolvimento/distanciamento;
não há qualquer diferença linguística notável que perpasse o
contínuo de toda produção falada ou de toda produção escrita,
caracterizando uma das duas modalidades;
tanto a fala como a escrita, em todas as suas formas de
manifestação textual, são normatizadas;
tanto a fala como a escrita não operam nem se constituem numa
única dimensão expressiva mas são multissistêmicas;
uma das características mais notáveis da escrita está na ordem
ideológica da avaliação sociopolítica em sua relação com a fala e
na maneira como nos apropriamos dela para estabelecer, manter
e reproduzir relações de poder, não devendo ser tomada como
intrinsecamente “libertária”.
Pelo que se pode observar, não é possível mais existir a visão dicotômica da
relação entre fala e escrita. O que existe são modos de uso da cada uma e, sendo assim,
não tem como dizer que uma é superior à outra.
Marcuschi (ibidem), em seu texto, traça um panorama de como as ideias sobre a
relação fala/escrita têm sido abordadas por vários autores. A primeira das tendências e a
de maior tradição entre os linguistas é a que se dedica à análise das relações entre duas
modalidades de uso da língua (fala versus escrita). Essa perspectiva dicotômica oferece
um modelo muito difundido nos manuais escolares e originou a maioria das gramáticas
pedagógicas.
Uma outra visão que o autor traz, é a que observa muito mais a natureza das
práticas da oralidade versus escrita e faz análises sobretudo de cunho cognitivo,
29
antropológico ou social e desenvolve uma fenomenologia da escrita e seus efeitos na
forma de organização e produção do conhecimento. Essa visão, denominada como visão
culturalista foi desenvolvida por antropólogos, psicólogos e sociólogos, tais como
Walter Ong (1982), Jack Goody (1977), Sylvia Scribner (1977), e os primeiros
trabalhos de David Olson (1977). Esses teóricos estavam interessados em identificar as
mudanças operadas nas sociedades em que se introduziu o sistema da escrita. Para os
teóricos dessa visão a escrita representa um avanço na capacidade cognitiva dos
indivíduos.
Uma terceira perspectiva que Marcuschi traz é a variacionista e está relacionada
com o papel da escrita e da fala sob o ponto de vista dos processos educacionais. Essa
perspectiva faz propostas específicas a respeito do tratamento da variação na relação
entre padrão e não-padrão linguístico nos contextos de ensino formal.
Segundo Marcuschi, essa perspectiva ainda não resolve a questão entre fala e
escrita.
Na verdade, trata-se de um aspecto amplamente admitido hoje, já que as
línguas não são homogêneas nem uniformes sob o ponto de vista de seu
uso. E as relações fala e escrita dizem respeito a questões de uso da língua. O interessante nesta perspectiva é que a variação se daria tanto na fala como na escrita, o que evitaria o equívoco de identificar a língua escrita
com a padronização da língua, ou seja, impediria identificar a escrita como equivalente à língua padrão, como fazem os autores situados na perspectiva da dicotomia estrita. (MARCUSCHI, 2001, p.32)
A quarta e a última perspectiva é a que trata das relações entre fala e escrita
dentro
da
perspectiva
dialógica
sociointeracionista.
Perspectiva sociointeracionista
Fala e escrita apresentam
dialogicidade
usos estratégicos
funções interacionais
envolvimento
negociação
situacionalidade
coerência
dinamicidade
e
Marcuschi
a
caracteriza
como
visão
30
Segundo Marcuschi, este modelo tem a vantagem de perceber com maior clareza
a língua como fenômeno interativo e dinâmico, voltado para as atividades dialógicas
que marcam as características mais salientes da fala, tais como as estratégias de
formulação em tempo real. De acordo com Marcuschi a visão sociointeracionista:
Preocupa-se com os processos de produção de sentido tomando-os sempre
como situados em contextos sócio-historicamente marcados por atividades
de negociação ou por processos inferenciais. Não toma as categorias linguísticas como dadas a priori, mas como construídas interativamente e
sensíveis aos fatos culturais. Preocupa-se com a análise dos gêneros textuais e seus usos em sociedade. Tem muita sensibilidade para fenômenos
cognitivos e processos de textualização na oralidade e na escrita, que permitem a produção de coerência como atividade do leitor/ouvinte sobre o
texto recebido. (MARCUSCHI, 2001, p. 34)
Marcuschi demonstra que nessa visão a língua deve ser reconhecida como
atividade discursiva inserida num contexto sócio-histórico que está relacionada
diretamente aos fatos culturais. E, para que isso aconteça, é preciso inserir a prática de
se trabalhar com os gêneros discursivos em sala de aula, pois eles refletem os discursos
que circulam na vida social e cultural de uma sociedade. Nesse sentido, tanto a língua
oral quanto a língua escrita estão inseridas em contextos sociais básicos da vida
cotidiana como:

O trabalho

A escola

O dia-a-dia

A família

A vida burocrática

A atividade intelectual
Sobre essa questão de relação entre oralidade e escrita, os PCNs do terceiro e
quarto ciclos do Ensino Fundamental de Língua Portuguesa, afirmam:
Linguagem aqui se entende, no fundamental, como ação interindividual
orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que
se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma
sociedade, nos distintos momentos de sua história. Os homens e as mulheres interagem pela linguagem tanto numa conversa informal, entre
31
amigos, ou na redação de uma carta pessoal, quanto na produção de uma
crônica, uma novela, um poema, um relatório profissional. (BRASIL,
1998, p. 20 – grifos nossos)
Nesse trecho fica bem clara a ideia de linguagem, como fenômeno social e prática
cultural. Os PCNs confirmam que o professor de Língua Portuguesa precisa ter esse
entendimento de linguagem para trabalhar em sala de aula essa perspectiva. Além disso, eles
apontam para o trabalho com os gêneros textuais, por exemplo, e o seu desenvolvimento em
sala de aula como o lócus onde se dá a interlocução.
É importante que se contemplem as duas modalidades da língua fala/escrita em
sala de aula, para que se desmistifique essa ideia de inferioridade ou superioridade, e
para que o aluno entenda como se dá o uso de cada uma delas e sua adequação em sala
de aula. As diferenças entre esses dois usos da língua “não são polares e sim graduais e
contínuas. São duas alternativas de atualização da língua nas atividades sócio-interativas
diárias” (MARCUSCHI, 2001, p. 46).
E essa ideia de duas modalidades da língua e seus usos, está bem destacada nos
PCNs, pois segundo eles:
No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de fala e escrita, o que se
almeja não é levar os alunos a falar certo, mas permitir-lhes a escolha da
forma de fala a utilizar, considerando as características e condições do
contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a
variedade de língua e o estilo às diferentes situações comunicativas: saber
coordenar satisfatoriamente o que fala ou escreve e como fazê-lo; saber
que modo de expressão é pertinente em função de sua intenção enunciativa – dado o contexto e os interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de erro, mas de adequação às circunstâncias de uso, de utilização
adequada da linguagem. (PCNs, 1998, p. 31)
Então, nesse sentido, a escola deve apresentar ao aluno a língua com suas
modalidades de uso e a relevância de cada uma nas necessidades práticas de sua vida
diária, pois a língua é uma manifestação múltipla e dinâmica, derivada das práticas
sociais e históricas que estão submetidas às condições de produção.
Uma passagem, nos nossos dados de registro de sala de aula, pode dar uma ideia
de como se tem trabalhado a relação entre oralidade e escrita nas escolas. É o que se
passa a apresentar agora.
Em estudo sobre a relação entre oralidade/escrita, seus usos e relevância, a
professora PE2 (1/12/2009), do 7º ano, traz para sala de aula a Literatura de Cordel
32
como conteúdo da aula, pois trabalhará o uso da oralidade pelos repentistas e seus
registros por meio da escrita. Ao entrar na sala de aula, os alunos se depararam com os
seguintes dizeres no quadro:
Literatura Popular
Literatura popular
Como o Cordel
é divulgado?
O Cordel chegou ao Brasil trazido pelos portugueses.
Política
Guerras
Religião
Festas
Secas
Enchentes
Tudo é tema
Para a Literatura
Popular
Além da formatação de seu texto no quadro, dando ênfase à Literatura de
Cordel, a professora arrumou a sala de aula com um cordão esticado e os livros de
cordel aí pendurados com prendedor de roupa. Os livretos tinham vários formatos e
várias cores, alguns eram novos e outros bem antigos. Ela explicou que esses livrinhos
eram vendidos, normalmente, em feiras livres por preços populares e muitas vezes os
autores estavam presentes e cantavam seus textos para que todos ouvissem e eles eram
chamados de repentistas.
Os títulos de alguns livros eram:
- A história de Helena e Valdemar
- Cordel do Mensalão
- ABC da Geografia
- O homem que virou mulher
- A volta de Lampeão
- As palhaçadas de João Errado
A seguir, ela apresentou um outro livro à turma e começou o seguinte diálogo:
Professora – Eu trouxe para vocês verem este livro aqui. Como vocês
33
podem notar, ele é grande, colorido, tem capa dura e suas
páginas são coloridas e brilhantes. Este livro é vendido nas
melhores livrarias do Brasil e custa caro. O título do livro
é A PELEJA DO VIOLEIRO MAGRILIM COM A FORMOSA PRINCESA JEZEBEL, de Fábio Sombra. Eu vou
ler para vocês, mas preciso de duas pessoas para ajudar na
leitura. Sandra e Soraia vocês podem me ajudar?
Sandra
– Sim, pró.
Soraia
– Sim.
Professora – Então eu vou ser a narradora, Sandra você vai ser o violeiro
Magrilim e Soraia será a Formosa Jezebel. Venham para cá
e vamos ler.
E a professora passa a ler. A história é sobre um rei, chamado Percival que
criava peixes carnívoros em seu palácio. Como a alimentação deles terminou e o rei não
tinha mais como alimentá-los, ele teve a seguinte ideia: quem conseguisse ganhar a
princesa no duelo de violas iria se casar com ela e quem perdesse serviria de alimento
para os peixes. Todos os que já tinham ido pelejar perderam até que apareceu Magrilim
que corajosamente enfrentou a princesa e acabou ganhando o duelo e o seu coração.
Após a leitura, a professora perguntou aos alunos se tinham gostado da história e
eles disseram que sim. Ela continuou:
Vocês perceberam que o livro de Fábio Sombra é também
um cordel? No entanto, ele não tem o formato desses outros
livretos. Neste livro o autor resgata os repentistas que faziam suas histórias em lugares bem populares, como nas
feiras livres. Nem sempre os repentistas escrevem seus textos, aliás, na maioria das vezes eles apenas cantam. Todos
eles declamam seus versos acompanhados por uma viola
ou um violão. Se ele não souber tocar o instrumento, ele
tem sempre alguém que o acompanha, mas ele conta a história sempre cantando, por isso são chamados de repentistas.
Os temas que eles abordam em seus textos, na maioria das
vezes tem a ver com o povo e coloquei aqui no quadro para
vocês conhecerem: política, guerras, religião, festas, secas,
enchentes e outras coisas mais. E é isso que é Literatura de
Cordel. Vocês viram que nessa Literatura predomina a oralidade, a linguagem oral. (PE2, 1/12/2009)
Ela retirou os Cordéis que estavam pendurados e os distribuiu para a turma se
familiarizar com esse tipo de texto e informou que na aula seguinte haveria uma
avaliação: a produção de um texto de cordel.Os alunos ficaram envolvidos com os
34
livrinhos, leram os textos e, conforme terminavam, trocavam os livrinhos uns com os
outros. A aula terminou e os alunos saíram bem alegres da sala.
Pelo que se pode observar, a professora PE2 traz para sua aula as duas
modalidades do uso da língua: a oralidade através da história dos repentistas, seu modo
de fazer narrativas e o texto escrito por meio dos livros que ela apresenta aos alunos.
Aparentemente, não há nenhuma intenção da professora em mostrar essas modalidades
como práticas de uso da língua, mas mesmo não sendo intencional, ela passa para os
alunos a ideia de que existe uma Literatura que, na maioria das vezes, só pode ser
realizada por meio da oralidade e sua produção pode ser registrada através da escrita.
Logo, fica evidenciado que em sua aula a turma tomou conhecimento de que se faz
literatura com a escrita e também com a oralidade. Nesse sentido, o aluno é levado a
compreender que no caso da Literatura de Cordel a língua oral tem uma função muito
específica: o repentista canta seu texto.
Assim, o conhecimento das modalidades do uso da língua é apresentado aos
alunos de maneira muito natural a partir da apresentação do texto de Fábio Sombra.
Percebe-se que a professora PE2 traz para a sala de aula uma perspectiva nos moldes
Marcuschianos denominada sócio-interacionista que trabalha a situacionalidade, os usos
estratégicos, a dialogicidade entre outros traços, presentes nesta relação fala e escrita.
Nesse exemplo da professora PE2, fica claro como se dá o acontecimento do uso
da língua e a depender da situação, da circunstância, a oralidade ou a escrita terá uma
ênfase maior. Foi trazido para a escola o estudo da fala, da oralidade, ao lado do estudo
da escrita, já que a ideia que se tem é de que o aluno precisa aprender a escrever, mas
também conhecer os vários usos da oralidade, incluindo aí a literatura oral.
Percebe-se também na atividade proposta, além do estudo da relação entre
modalidade escrita e falada da língua, a abordagem ao gênero textual, aqui cumprido
pelo estudo do Cordel, um gênero da cultura popular no Brasil.
1.3 CONCEITO DE TEXTO
Segundo Orlandi (2005, p.10), “o texto é a manifestação material concreta do
discurso”. Essa manifestação se dá a partir de um processo em que o sujeito e o sentido
se constituem no encontro com a materialidade da língua com a materialidade da
história, pois segundo a autora, “é aí que há um confronto do simbólico com o político”
(ORLANDI, 2005, p.9).
35
E é justamente na materialidade histórica da linguagem que o texto, referindo-se
à discursividade, “é o vestígio mais importante dessa materialidade, funcionando como
unidade de análise. Unidade que se estabelece, pela historicidade, como unidade de
sentido em relação à situação” (ORLANDI, 2007, p.68).
Segundo Orlandi (ibidem), o texto não pode ser definido pela sua extensão, pois
ele pode ser desde uma só palavra até muitas frases, enunciado, páginas e até livro,
como por exemplo, um romance. No entanto, o texto existe pelo fato de se referir à
discursividade, ao discurso, definido como “efeito de sentidos entre locutores”
(ORLANDI, 2007, p.70):
Todo texto é heterogêneo (E.Orlandi, 1987) do ponto de vista de sua constituição discursiva: ele é atravessado por diferentes formações discursivas,
ele é afetado por diferentes posições do sujeito, em sua relação desigual e
contraditória com os sentidos, com o político, com a ideologia.
(ORLANDI, 2005, p.115)
Sendo assim, o texto não pode ser reconhecido apenas com suas marcas
linguísticas, mas como “fato” discursivo, processo discursivo, pois os enunciados fazem
parte de uma memória, de uma formação discursiva.
Baseado nessa abordagem, pode-se dizer que, em relação ao texto, os sentidos
não estão prontos, formatados, esperando ser incorporados num leitor passivo, mas, ao
contrário, estão sendo construídos através da interação leitor-texto-autor. Bakhtin
explica isso muito bem:
É esta a concepção sócio-cognitivo-interacional de língua que privilegia os
sujeitos e seus conhecimentos em processos de interação. O lugar mesmo de
interação é o texto, cujo sentido “não está lá”, mas é construído, considerando-se, para tanto, as “sinalizações” ou pistas textuais fornecidas pelo autor e
os conhecimentos do leitor que, durante todo o processo de leitura, deve assumir uma atitude “responsiva ativa”. Em outras palavras, espera-se que o
leitor concorde ou não com as ideias do autor, complete-as, adapte-as, etc.,
uma vez que “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de
outra, forçosamente, a produz. (BAKHTIN, 1992, p. 290)
E é justamente baseado nessa ideia de Bakhtin, na Análise do Discurso e na
Linguística Textual que houve uma “virada discursiva ou enunciativa no que diz
respeito ao enfoque dos textos e de seus usos em sala de aula” (ROJO e CORDEIRO,
2010, p. 10). Segundo as autoras, essa virada passou a ecoar com mais força nos
36
programas e propostas curriculares oficiais brasileiros a partir de 1997/1998, com a
incorporação de seus ensinamentos nos PCNs de Língua Portuguesa.
Segundo os PCNs (1998, p. 51-52), o ensino de Língua Portuguesa, em relação
ao texto, tanto oral quanto escrito, deverá levar o aluno a:
 Considerar os papeis assumidos pelos participantes, ajustando o
texto à variedade linguística adequada;
 Saber utilizar e valorizar o repertório linguístico de sua
comunidade na produção de textos;
 Redigir diferentes tipos de textos, estruturando-os de maneira a
garantir:
- a relevância das partes e dos tópicos em relação ao tema e
propósitos do texto;
- a continuidade temática;
- a explicitação de informações contextuais ou de premissas
indispensáveis à interpretação;
- a explicitação de relações entre expressões mediante recursos
linguísticos apropriados (retomadas, anáforas, conectivos), que
possibilitem a recuperação da referência por parte do
destinatário;
 Realizar escolhas de elementos lexicais, sintáticos, figurativos e
ilustrativos, ajustando-as às circunstâncias, formalidade e propósitos
na interação;
 Utilizar com propriedade e desenvoltura os padrões da escrita em
função das exigências do gênero e das condições de produção;
Assim, nesses objetivos, novas ideias foram incorporadas tomando a língua
como sistema de signos históricos e social, fazendo com que o estudo da linguagem
fosse atrelado a um trabalho reflexivo em situações de produção e de compreensão da
própria linguagem. O que se destaca nesses objetivos é o reconhecimento do texto como
objeto de reflexão e estudo da linguagem, e esta é vista como um trabalho contínuo o
qual não se pode desvincular das atividades que circunda cada indivíduo, pois o aluno
ao chegar à escola já possui toda uma prática com a linguagem que não pode ser
negado.
Geraldi (1993) considera a produção de textos (orais e escritos) como ponto de
partida (e ponto de chegada) de todo processo de ensino/aprendizagem da língua, pois é
no texto que “a língua se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas e
de seu reaparecimento, quer enquanto discurso que remete a uma relação intersubjetiva
constituída no próprio processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas
dimensões” (GERALDI, 1993, p.135). Além disso, Geraldi (ibidem) coloca que para se
37
produzir um texto deve-se ter: o que dizer; uma razão para dizer; a quem dizer. Nesse
sentido, fica claro que ao se produzir um texto em sala de aula, espera-se que o aluno se
torne sujeito de seu discurso, um agente cuja voz será ecoada em seu texto que é a
materialização de seu discurso.
No entanto, nem sempre isso acontece. Percebe-se que há professores de Língua
Portuguesa ainda preocupados com a estrutura formal e textual e com as técnicas para
escrever. Sendo assim, analisam os textos dos alunos observando apenas se eles
atendem a esses aspectos referidos. .
Ainda, segundo Geraldi (2010, p.115), “um texto não é produto de aplicação de
regras e nem mesmo das regularidades genéricas: é produto de elaboração própria que
encontra nos outros textos apenas modelos ou indicações”. Logo, quando se pede ao
aluno para produzir um texto em sala de aula, o professor precisa reconhecer que o
aluno é possuidor de uma linguagem que é social e ao usá-la ele passa a vivenciar o
processo da interação verbal e, nesse sentido, seu texto passa a ter uma função social.
Mas é preciso que o professor dê condições para o aluno produzir seu texto, pois
a produção não acontece aleatoriamente. Geraldi afirma que:
Nenhuma dúvida de que toda a produção exige o manuseio de instrumentos de produção. É necessário mobilizar recursos linguísticos para enfrentar um tema, definir um projeto de dizer no interior deste tema, selecionar um gênero discursivo e transacionar com o estilo próprio do gênero, o estilo próprio do autor e o estilo suposto adequado para os interlocutores. (GERALDI, 2010, p. 167)
Portanto, ao se trabalhar com texto em sala de aula, o professor deve levar o
aluno a reconhecer os gêneros discursivos como recursos de usos da língua, o texto como
materialização de seu discurso e a interlocução que demonstra que a linguagem é social e, por
isso, o texto também possui um papel social.
1.3.1 Gêneros e tipos textuais
Em relação à questão dos gêneros, Bakhtin (1997) ensina que são muitos os
gêneros e que eles estão atrelados às várias esferas de atividades humanas, onde
nascem:
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa
38
atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se á medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1997, p. 279)
Nesse sentido, os gêneros do discurso são tão variados quanto as atividades e
esferas de atividades dos homens em sua trajetória de civilização. Portanto, pelo fato
mesmo de serem numerosos e inerentes às atividades humanas, as atividades de sala não
podem estar restritas ao estudo tão somente de alguns poucos modelos que geralmente
são hoje contemplados em salas de aula.
Faraco e Castro (2000) afirmam que as ideias de Bakhtin sobre o gênero
discursivo devem ser levadas em consideração quando se trabalha com texto em sala de
aula. Eles criticam os livros didáticos que ainda são produzidos no país porque são
extremamente pobres em termos da variedade de textos que apresentam, pois
[...] pode-se afirmar com segurança que eles não estimulam o aprendizado
dos diferentes gêneros discursivos – texto informativo (nas suas mais
variadas formas), resenhas (sobre diferentes objetos e estilos), resumos,
textos dissertativos, propaganda, manuais de instrução, entrevistas etc.
– porque se concentram demasiadamente nos gêneros literários (poesia e
crônicas, geralmente), que não deixam de ser igualmente importantes
quando aparecem de maneira não exclusiva. Isso tudo limita a interação
do aluno com as diferentes formas de comunicação, prejudicando o seu
aprendizado. (FARACO e CASTRO, 2000, p.8)
Bakhtin (1997) afirma também que pelo fato de os gêneros discursivos serem
heterogêneos, o que importa não é definir o “caráter genérico do enunciado”, mas, sim,
a diferença essencial que existe entre eles, o gênero primário e o gênero secundário.
Fiorin (2008, p. 70) retomando Bakhtin (1997), explica a distinção primordial
entre os gêneros conforme entendimento do pensador russo:
-
Os
gêneros
primários
são
os
gêneros
da
vida
cotidiana.
São
predominantemente, mas não exclusivamente, orais. Pertencem à comunicação verbal
espontânea e têm relação direta com o contexto mais imediato. São, por exemplo, a
piada, o bate-papo, a conversa telefônica... E o e-mail, o bilhete, o chat...
- Os gêneros secundários pertencem à esfera da comunicação cultural mais
elaborada, a jornalística, a jurídica, a religiosa, a política, a filosófica, a pedagógica, a
artística, a científica. São preponderantemente, mas não unicamente, escritos: por
exemplo, o sermão, o editorial, o romance, a poesia lírica, o discurso parlamentar, a
39
comunicação científica, o artigo científico, o ensaio filosófico, a autobiografia, as
memórias.
Bakhtin (1997) ainda ressalta que durante a sua formação, os gêneros
secundários absorvem e transmutam os primários que adquirem uma característica
particular. Por exemplo, quando a réplica do diálogo cotidiano se insere num romance,
ele deixa de ser um gênero primário e passa a integrar o conteúdo do gênero secundário,
“pois perdem sua relação com o contexto imediato e sua vinculação com os enunciados
concretos dos outros” (FIORIN, 2008, 70). Para Bakhtin, é importante conhecer essa
inter-relação entre os gêneros e o processo histórico de formação dos gêneros para se
compreender a natureza do enunciado, pois:
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo linguístico
leva ao formalismo e a abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida.
(BAKHTIN, 1997, p.282)
Nessa fala, Bakhtin demonstra que o enunciado está diretamente ligado aos
gêneros e estes não podem se dissociar da língua, a qual reflete a “necessidade do
homem se expressar, se exteriorizar”.
Marcuschi (2007) afirma que os gêneros textuais são fenômenos históricos,
profundamente vinculados à vida cultural e social e, sendo assim, estão inseridos no diaa-dia e, por isso, “são entidades sócio-discursivas e formas de ação social
incontornáveis em qualquer situação comunicativa” (MARCUSCHI, 2001, p.19).
De acordo com o autor, quanto ao número de gêneros, ele explica que numa
primeira fase, quando os povos tinham uma cultura essencialmente oral, desenvolveram
um conjunto limitado de gêneros. A segunda fase aconteceu a partir da invenção da
escrita alfabética, que ocorreu por volta do século VII a.C., quando o número de gêneros
se multiplicou, pois apareceram os típicos da escrita. Já na terceira fase houve uma
ampliação considerada e ela iniciou-se a partir do século XV quando se deu o
florescimento da cultura impressa e, logo depois, no século XVIII com a
industrialização. E, em relação aos gêneros atualmente, Marcuschi diz o seguinte:
Hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o
gravador, o rádio, a TV e, particularmente o computador pessoal e sua
aplicação mais notável, a Internet, presenciamos uma explosão de novos
40
gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita.(MARCUSCHI, 2007, p.19)
No entanto, de acordo com Marcuschi (ibidem), não são propriamente as
tecnologias per se que originaram os gêneros e sim a intensidade dos usos dessas
tecnologias e suas interferências nas atividades comunicativas diárias. Ele ainda afirma
que pelo fato de o rádio, a televisão, o jornal, a revista, a internet terem uma presença
marcante e grande centralidade nas atividades comunicativas da realidade social que
ajudam a criar, “acabam propiciando e abrigando gêneros novos bastante característicos
como: editoriais, artigos de fundo, notícias, telefonemas, telegramas, telemensagens,
teleconferências, videoconferências, reportagens ao vivo, cartas eletrônicas (e-mails),
bate-papos virtuais (chats) etc.” (MARCUSCHI, 2007, p.20),
Os gêneros, por serem fenômenos sócio-históricos, não possuem um número
determinado e, segundo Marcuschi (ibidem), existem estudos feitos por linguistas
alemães que chegaram a nomear mais de 4.000 gêneros.
Marcuschi (2007, p. 22-23), critica também os livros didáticos, pois empregam
equivocadamente as terminologias tipo e gênero textual. Segundo ele:
a)
Usamos a expressão tipo textual para designar uma
espécie de sequência teoricamente definida pela
natureza linguística de sua composição {aspectos
lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}.
Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia
dúzia de categorias conhecidas como: narração,
argumentação, exposição, descrição, injunção.
b)
Usamos a expressão gênero textual como uma noção
propositalmente vaga para referir os textos
materializados que encontramos em nossa vida diária
e que apresentam características sócio-comunicativas
definidas por conteúdos, propriedades funcionais,
estilo e composição característica. Se os tipos textuais
são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros.
Portanto, de acordo com Marcuschi, a tipologia é limitada e está atrelada à
natureza linguística, sendo assim, não permite contemplar as inúmeras possibilidades
dos gêneros. A narração, a descrição e a dissertação referem-se a tipos e não a gêneros,
no entanto, se alguém escreve uma carta, que é um gênero, pode narrar um
acontecimento, descrever uma situação e argumentar uma questão. E é por isso que
41
Marcuschi afirma que no gênero textual se realiza o tipo textual e, às vezes, pode
ocorrer que o mesmo gênero realize dois ou mais tipos textuais. E, nesse caso, é a
coesão que constrói essas sequências tipológicas que faz com que o gênero sirva de
“armadura comunicativa geral preenchida por sequências tipológicas que podem ser
bastante heterogêneas, mas relacionadas entre si” (MARCUSCHI, 2007, p. 27).
Além disso, o autor também demonstra que um texto quando tem aspecto de um
gênero, mas está formatado em outro (como, por exemplo, um artigo de opinião
formatado numa estrutura de poema), “isso configura uma estrutura inter-gêneros de
natureza altamente híbrida e uma relação intertextual” (MARCUSCHI, 2007, p.31).
A questão da intertextualidade intergêneros e a heterogeneidade tipológica do
gênero, Marcuschi (2007, p. 31) resume da seguinte forma:
(1) intertextualidade intergêneros = um gênero com a função de outro;
(2) heterogeneidade tipológica
= um gênero com a presença de vários tipos
Veja-se agora a descrição de uma bem sucedida atividade de trabalho com
gênero e texto que se registramos em uma sala de aula visitada. Em relação a essa
questão, a professora PE2 (6/11/1009), do 7º ano, realizou um trabalho com seus alunos
que demonstra como se dá essa “intertextualidade intergêneros”. Ela selecionou
algumas cartas de leitores do jornal Correio da Bahia, leu-as para os seus alunos e
mostrou como esses leitores colocavam sua opinião em relação a uma determinada
matéria do jornal.
A seguir, a professora exibiu, em DVD, o desenho animado “A fábula da
cigarra” para a turma assistir e logo após fez algumas perguntas sobre ele:
Professora – Onde se passa essa história e em que tempo?
A Turma – Na floresta, no verão e no inverno.
Professora – Como se resume a fábula?
Já que a turma não quer falar, podemos dizer que a mensagem diz que a vida não é só de trabalho e não é só divertimento. Agora, eu vou ler um texto de Monteiro Lobato em que ele reescreve essa fábula. O título é A cigarra
e as formigas – a formiga má.
Após a leitura, a professora continua o diálogo:
Professora – Vocês estão percebendo que a formiga de Monteiro Lobato tem outra postura em relação à cigarra? Qual das formigas vocês gostaram mais? A do desenho ou a de Monteiro
42
Lobato?
– Gostei mais da formiga de Monteiro Lobato porque é diferente de todas as outras histórias.
Carol
– É mais interessante a de Monteiro Lobato.
Professora – Por que é mais interessante?
Carol
– Porque sim.
Professora – Vocês perceberam que a Formiga de Monteiro Lobato
mostrou inveja e raiva? Por que a Cigarra morreu? Foi por
causa dela mesma ou por causa da Formiga?
A Turma – Foi por causa dela e da Formiga.
André
Professora – Qual delas oferece um aprendizado?
A Turma – A do desenho animado.
Professora – Vocês perceberam que Monteiro Lobato chama mais atenção para a inveja e a raiva?Agora vocês terão que produzir um texto dando a sua opinião sobre as versões da fábula. Esse texto será escrito no gênero carta do leitor, vocês
podem fazer o rascunho no caderno e escrever o texto original na folha de redação.
Percebe-se que a professora PE2 procura trabalhar o texto a partir de gêneros
textuais; esse modo de trabalhar o texto de alguma maneira se relaciona ao modo como
Marcuschi trata a questão do gênero. Segundo este autor o texto é “uma entidade
concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual”
(MARCUSCHI, 2007, p.24). Nessa perspectiva, ela traz para sala de aula o modelo do
gênero carta do leitor e o texto narrativo e, analisando os dois textos, propõe à turma a
escrita de uma carta de leitor contendo sua opinião sobre as versões das fábulas.
Essa atitude demonstra que a professora trabalha com a ideia de que os gêneros
possibilitam aproximar o aluno daquilo que se produz fora da sala de aula e, nesse
sentido, coloca de lado uma prática artificial de escrita que resulta em produções
textuais descontextualizadas e que só servem para serem corrigidas e avaliadas. Além
disso, a escrita do texto não é concebida como inspiração, mas como um processo que
requer planejamento, escolhas, (re)escrituras e isso significa permitir ao aluno mais
autonomia com a língua, e nesse sentido se alinhando mais ao pensamento de Bakhtin
(1997), para quem o domínio dos gêneros leva a um uso mais autônomo da linguagem
e permite uma maior manifestação da individualidade. Este entendimento faz perceber
que neste caso o aluno estará envolvido em situações onde a língua estará sendo usada
de maneira contextualizada e, por esse motivo, ele terá maior facilidade em produzir seu
texto.
43
Além da diferenciação entre tipo e gênero, Marcuschi (2007) afirma que a
expressão domínio discursivo designa uma esfera ou instância de produção discursiva
ou de atividade humana. No entanto, ele não o considera nem texto, nem discurso,
apesar de propiciar o surgimento de discursos específicos. Para ele, o discurso jurídico,
o discurso jornalístico, o discurso religioso etc., “constituem práticas discursivas nas
quais podem encontrar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes, lhe são próprios
(em
certos
casos
exclusivos)
como
práticas
ou
rotinas
comunicativas
institucionalizadas” (MARCUSCHI, 2007, p.24). Ele exemplifica com as jaculatórias,
novenas e ladainhas que são gêneros exclusivos do domínio religioso e não aparecem
em outros domínios.
Marcuschi (ibidem), ao citar Miller (1984) que considera o gênero como “ação
social”, enfatiza que essa noção vai ser essencial na designação de muitos gêneros que
são definidos basicamente por seus propósitos – funções, intenções e interesses – e não
por suas formas; no entanto, “isto não significa eliminar o alto poder organizador das
formas composicionais dos gêneros” (MARCUSCHI, 2007, p. 32). E ele cita as três
características dos gêneros trazidas por Bakhtin (1997), são elas: composição, estilo e
conteúdo. Então, Marcuschi cria uma definição de gênero textual em que “predominam
os critérios de ação prática, circulação sócio-histórica, funcionalidade, conteúdo
temático, estilo e composicionalidade, sendo que os domínios discursivos são as
grandes esferas da atividade humana em que os textos circulam” (MARCUSCHI, 2007,
p. 25).
Os gêneros estão sempre ligados às situações sociais e é por isso que não são
estagnados, pois são produzidos nas atividades humanas que estão num processo
evolutivo enquanto atividades sócio-discursivas, numa relação sócio-histórica e que,
segundo Marcuschi (2007, p.30), “não são entidades naturais como as borboletas, as
pedras, os rios e as estrelas, mas são artefatos culturais construídos historicamente pelo
ser humano.”
Os PCNs (1998) mostram os gêneros como instrumentos que podem ajudar o
ensino de leitura e de produção de textos escritos e, também orais. A seguir, alguns
trechos que confirmam isso:

Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de
natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam
como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção
44
de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto
de ensino. (BRASIL, 1998, p. 23)

(...) nas inúmeras situações sociais de exercício da cidadania que
se colocam fora dos muros da escola – a busca de serviços, as
tarefas profissionais, os encontros institucionalizados, a defesa de
seus direitos e opiniões – os alunos serão avaliados (em outros
termos, aceitos ou discriminados) à medida que forem capazes de
responder a diferentes exigências de fala e de adequação às
características próprias de diferentes gêneros do oral (...). A
aprendizagem de procedimentos apropriados de fala e escuta, em
contextos públicos, dificilmente ocorrerá se a escola não tomar
para si a tarefa de promovê-la. (BRASIL, 1998, p.25)

Ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é necessário que se
possa dispor tanto de um a descrição dos elementos regulares e
constitutivos do gênero, quanto das particularidades do texto
selecionado. (BRASIL, 1998, p.48)
Pelo que se pode observar, a teoria de Bakhtin sobre a língua, enquanto
organismo concreto, vivo, e sobre o texto e o gênero do discurso constitui-se em um dos
fundamentos dos PCNs (BRASIL, 1998, p. 23), nos quais se pode ler que:
1. O texto possui uma organização temática, uma composição e um estilo;
2. Os enunciados circulam nas inúmeras situações sociais e a interação verbal
produz a dialogicidade;
3. O texto é constitutivo do gênero.
Os PCNs (1998) enumeram os gêneros adequados para o trabalho com a
linguagem oral e escrita nos 3º e 4º ciclos. O quadro abaixo, retirado dos PCNs (1998,
p. 57), apresenta os gêneros para o ensino nestes ciclos:
45
Quadro 1. Fonte: Brasil. Secretaria de Educação Fundamental.
Ao se trabalhar a escrita escolar, é preciso destacar o papel que os gêneros têm
nesse processo, pois suas diferentes formas possibilitam transitar com mais flexibilidade
nas situações de comunicação. Segundo Faraco e Castro (2000, p.8), “o professor deve
mostrar o papel desses gêneros no processo social de interação verbal, como forma de
garantir a competência e a adequação discursiva do aluno para as mais variadas
situações de interação socioverbal a que ele poderá ser exposto” não só nos limites
escolares, mas fora dela também.
1.4 A ESCOLA E A PRÁTICA DA ESCRITA
Segundo Passarelli, normalmente os objetivos voltados para a obtenção de um
texto “bem escrito” pelo aluno são as habilidades puramente gráficas, gramaticais, de
vocabulário, e “concebe-se que as estratégias se voltam à classificação e quantificação
46
dos erros” (PASSARELLI, 2004, p.20). E, a partir dessa ideia, a autora traz dois
aspectos que predominam na prática dos professores de Língua Portuguesa quanto à
produção de texto escrito pelo aluno e sua avaliação:

Caracterizar as dificuldades gramaticais mais evidentes do estudante;

Oferecer orientações ao estudante para que ele supere essas dificuldades.
Outra prática que predomina em sala de aula ao se produzir um texto escrito é
direcionar a tarefa para a produção dos três tipos clássicos: a descrição, a narração e a
dissertação. Além disso, há a predominância de um ou outro desses textos em
determinado nível escolar. Por exemplo, a descrição e a narração predominam no 6º e 7º
ano e a dissertação no 8º e 9º ano. Isso quer dizer que há uma “tríade básica” que
restringe o estudo e a produção do texto escrito a modelos que normalmente trazem
textos de escritores consagrados muitas vezes distanciados da realidade do aluno. Além
disso, os professores pedem para redigir textos baseados em modelos prontos que não
estão voltados às necessidades do aluno, pois não possuem conexão com a experiência
que o aluno já traz para sala de aula. Para Passarelli:
O modelo literário pode estimular, mas também provocar bloqueios se a
prática escolar se ativer à imitação dos autores consagrados: diante de
exemplos perfeitos, o estudante se sentiria intimidado; o professor duvidaria de sua experiência, pois seus alunos não estariam, reproduzindo
exatamente como ele ensinou. (Podemos nos perguntar: o objetivo do
professor de língua é formar literatos?). (PASSARELLI, 2004, p.23)
Observa-se que esse tipo de prática nem sempre dá condições ao aluno de
desenvolver uma produção de escrita que esteja ao seu alcance, ou seja, que faça parte
de sua vivência social, de sua realidade, de sua história. No entanto, para o professor, o
fato de apresentar o modelo literário traz a ideia de que se o aluno tiver uma prática de
leitura desse texto – que não é qualquer leitura – ele automaticamente conseguirá
articular e dominar bem a estrutura da linguagem escrita e, consequentemente, saberá
redigir um bom texto. Entretanto, há outros fatores aí envolvidos.
Segundo Orlandi (1988, p.9), “a leitura é uma questão de natureza, de condições,
de modos de relação, de trabalho, de produção de sentidos, em uma palavra: de
historicidade”. Logo, a historicidade é um aspecto importante que não se pode deixar de
lado quando se fala em leitura, pois “como todo leitor tem sua história de leitura, ele
47
tem uma visão determinada a respeito de um texto, protagonista que é de sua história”
(PASSARELLI, 2004, p.24).
Nesse sentido, a escrita precisa também estar conectada à historicidade do aluno
e não ser apenas uma atividade “oficial” em que o professor busca soluções
metodológicas para reduzir as dificuldades dos alunos em relação à estrutura gramatical
e estilística do texto escrito, posto que essas dificuldades são reais. Além disso
praticamente todos os alunos afirmam que não gostam de escrever. E porque eles não
gostam de escrever? Para Passarelli:
Um dos motivos dessa resistência é que, em geral, os temas propostos
para as redações são distantes da realidade dos alunos. Quer se trate de
crianças ou adultos, deve-se considerar que os indivíduos têm um passado repleto de recordações, conjeturas, amores e desamores. Ao serem
(re)iniciados no ensino do texto escrito, esses indivíduos não se descartam de suas ideias, pensamentos ou sentimentos. Assim, é desejável que
se instaure um espaço interativo em que o professor ouça seus alunos e
os ajude a aprender a ouvir, levando em conta o conhecimento prévio deles. (PASSARELLI, 2004, p. 28)
De acordo com Passarelli, todo aluno tem experiência para relatar e, sendo
assim, caberá ao professor reconhecer essa realidade e tentar fazer com que o aluno
transponha para o papel suas experiências. Então, a escrita deixará de ser algo tão
distante do aluno, como por exemplo, escrever sobre “Meu brinquedo predileto” para
crianças que nem brinquedos têm; ou “O Brasil do século XIX” para o adolescente que
está tão envolvido com a atualidade.
Como já foi dito acima, a língua é um objeto social e a escola precisa reconhecer
o “significado funcional do uso da escrita (...)” (PASSARELLI, 2004, p.35) para que o
aluno se envolva no processo de escrita e saiba que a língua escrita possui várias
funções sociais. Passarelli (2004, p.36-37) destaca duas funções predominantes: a
comunicativa e a informativa e acrescenta que elas se compõem em dois grandes
blocos:
1– Função “utilitária”, que diz respeito aos textos redigidos na escola, tais como,
resumos, relatórios, anotações da lousa, provas, exercícios etc., e aos textos que
remetem aos usos sociais da escrita;
2 – Função “desinteressada”, ou sem interesse pragmático, que se refere àquilo
que os indivíduos escrevem mais por prazer do que por contingência, e aos textos
criativos propriamente ditos (produzidos ou não na escola).
48
E a partir desses blocos a autora desenvolve um quadro com produtos escritos
da nossa cultura e os objetivos correspondentes a cada um desses objetos escritos:
Quadro II Fonte: PASSARELLI, 2004, p. 37-38
49
Como se pode observar, esse quadro deixa claro a relevância da escrita no dia-adia de cada pessoa. A escola deve levar o aluno a ver a escrita além de um mero
exercício escolar. Ou seja, o aluno precisa saber que a língua, na modalidade escrita,
está além da fronteira escolar, pois seu acontecimento é um “fenômeno social da
interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações” (BAKHTIN,
2006, p.127). O aluno deve aprender a usar a língua escrita para “comunicar, expressar
pensamentos, e, sobretudo, para realizar ações com o outro, sobre o outro”
(PASSARELLI, 2004, p.79).
Outra questão tratada por Passarelli na abordagem à produção de texto escrito
em sala de aula é a sua prática. Ou seja, qual é o tempo destinado a escrita em sala de
aula? O aluno tem uma prática constante de escrita no decorrer do ano letivo? É dada a
ele condições para revisar seu texto e refazê-lo? Afinal, como é que se aprende a
escrever? Segundo Passarelli:
Para escrever, é preciso dar-se conta de que somente com muito empenho e reflexão,elaborando texto(s) provisório(s), revisando, revisando,
e revisando, trocando ideias, buscando mais informações, conversando
com outras pessoas e, às vezes, reescrevendo tudo de novo é que os escritores conseguem escrever o que pretendiam dizer. E, nem sempre ficam satisfeitos. (PASSARELLI, 2004, p.81)
Passarelli deixa claro que só com a prática constante de escrever e revisar o
texto, ou reescrevê-lo, é possível alcançar o texto pretendido, pois o ato de escrever é
contínuo e requer que o escritor, principalmente o iniciante, que na sala de aula é o
aluno, pratique ininterruptamente para se familiarizar com essa ação. Os PCNs
(BRASIL,1998, p. 51) enfatizam que no processo de produção de textos escritos,
espera-se que o aluno:

Analise e revise o próprio texto em função dos objetivos estabelecidos, da
intenção comunicativa e do leitor a que se destina, redigindo tantas quantas
forem as versões necessárias para considerar o texto produzido bem escrito.
(BRASIL, 1998, p. 51 – grifo nosso)
Sírio Possenti (2005, p.1), afirma que uma das principais finalidades da escola é
criar condições para que os alunos aprendam a escrever adequadamente e para que isso
aconteça não há soluções mágicas, mas “práticas de escrita tais como elas se
50
desenvolvem na sociedade”. E, para que isso aconteça, há dois traços básicos que ele
caracteriza:

Um texto tem que ser correto

Um texto tem que ser bem escrito
Em relação a ser correto, o autor afirma que uma das finalidades da escola é
fazer com que o aluno aprenda a escrever corretamente segundo as regras ou normas da
época. E, quanto a serem bem escritos, ele argumenta que, atualmente, em decorrência
da grande variedade dos gêneros textuais associada à diversidade de natureza estética,
ficou mais difícil estabelecer o que é ser bem escrito. Para ele, escrever bem é escrever
segundo uma certa tradição culta, mas isso não significa que seja conservadora. Ele
explica que “não parece adequado “ensinar” a escrever tendo como modelos, por
exemplo, poemas concretos ou diálogos de chats” (POSSENTI, 2005, p.2).
Segundo Possenti (2005, p.3), a produção de escrita não está relacionada à
inventividade, inspiração, criatividade ou técnicas. Para ele, dominar a escrita está
diretamente ligado a uma prática em dois sentidos:
I. o domínio da escrita é “facilitado” se a escrita escolar levar em
conta o funcionamento da escrita na sociedade, ou seja, se forem
consideradas na prática escolar certas características que a escrita
tem na sua prática social;
II. o domínio da escrita depende de que ela seja praticada, isto é, de
que os estudantes escrevam regularmente, na escola e fora dela (não
há receitais milagrosas). Ou seja, a escrita não é uma forma de
testar conhecimentos pontuais de língua ou grafia, mas uma prática
que inclui seguir regras.
O autor destaca ainda que há dois procedimentos que normalmente o autor de
um livro vivencia:
1)
2)
Um autor escreve um texto (ou porque “quer” ou porque recebe
uma encomenda, por exemplo); esse processo é,
evidentemente, bastante complexo, como se sabe: um
escritor deve pesquisar, viajar, tomar notas, observar um
projeto, escolher um lugar adequado para seu trabalho;
Depois que o autor o entrega ao editor, o texto costuma ser
modificado: é alterado mais ou menos profundamente
conforme a época ou conforme o que o contrato prevê,
mas dificilmente – de fato, nunca – o texto entregue é
publicado na versão “original” (a última versão do autor).
(POSSENTI, 2005, P.4)
51
E é pensando nesses procedimentos que Possenti (ibidem) vai dizer que a escola
deveria levar essas práticas para sala de aula, pois elas fazem sentido. Ou seja, é preciso
dar oportunidade para o aluno reescrever seu texto, discutir, analisar, apropriar-se de
suas ideias e tentar escrever até alcançar o nível que se possa dizer que é um bom texto,
escrito segundo os parâmetros exigidos pela escola.
Segundo Possenti (2005, p.4), há numerosos fatores que interferem no processo
da escrita escolar e ele enumera dois que devem ser levados em conta seriamente:
a)
b)
Que a “primeira” escrita decorra de um projeto ou de uma
encomenda, e que seja fruto de uma pesquisa e que possa
ser levado um certo tempo para elaborá-la.
Que, depois da primeira versão (ou da versão entregue), o texto
escrito seja objeto de revisão (ões) – de reescrita, de
correção etc.
Ou seja, ao se passar um texto escrito para ser produzido em sala de aula, devese discutir bem o assunto que será abordado no texto a fim de que o aluno se aproprie
desses conhecimentos e, para que isso aconteça, ele deve pesquisar e trocar ideias com
outras pessoas sobre aquele assunto. É difícil para o aluno ou outro escritor escrever
sobre algo que desconhece e, normalmente, o professor acredita que o tema proposto
por ele é de conhecimento geral da turma. Pode até ser, mas é interessante ouvir o que a
turma tem a dizer sobre o tema e perceber os discursos a ele relacionados para depois
pôr-se a escrever sobre ele.
Essas dificuldades de escrita podem ser exemplificadas com a situação descrita
acima, quando a professora PE3 pede para os alunos escreverem um texto de cordel e os
alunos sentem muita dificuldade para fazê-lo. Naquele momento a professora pediu a
seus alunos que fizessem não um texto explicando o que é cordel, mas um produto
cultural de literatura popular a que se dá o nome de Cordel: os alunos deveriam escrever
uma história de cordel, portanto colocar-se como cordelistas. Ela insiste para que
escrevam, e dá como argumento o fato de que o assunto – a Literatura de Cordel – já
fora trabalhado em sala de aula e só por isso, imagina a professora, eles têm condições
de escrever. Mas, como já foi dito aqui, não há como trabalhar a língua se entendida
apenas como mero meio de codificação ou decodificação; é preciso que a língua seja
entendida como uma forma de ação, como lugar de interação que possibilite aos sujeitos
produzirem seus sentidos através de seus enunciados. Isso não se consegue nos moldes
praticados nessa situação descrita anteriormente.
52
Seguir as recomendações de Possenti (2005) em relação ao projeto da primeira
escrita e à revisão do texto — além de dar oportunidade de discussão e conhecimento do
tema — é um bom começo para que o aluno desenvolva a prática da escrita. Segundo
Passarelli (2004, p.86), “essa tarefa pode ser relativamente facilitada, quando o
professor oferece orientações precisas. A insegurança, decorrente de vagas suposições,
pode gerar perda de tempo”.
Segundo Geraldi (2010, p. 166), “escrever é um gesto próprio, que implica
necessariamente os sujeitos do discurso”, logo, o aluno não pode ser considerado aquele
que está sendo preparado para um dia estar apto a escrever um texto. O professor
precisa saber que é possível fazer com que todos os alunos sejam bons escritores,
enunciadores de seus discursos e ele, professor, um dos interlocutores desse processo.
A interação verbal precisa ser concretizada na sala de aula e o reconhecimento de que
todos os alunos são autores e leitores, demonstra a língua em pleno funcionamento
através de leituras, de debates, de argumentações e até de silenciamentos.
Uma outra propriedade da modalidade escrita da língua a ser considerada no
momento da aprendizagem é a imagem que o locutor faz do interlocutor – pode-se
dizer, no caso, o interlocutor-professor – que representa aquele que irá avaliar o texto e
dirá se está certo ou errado, se está coerente e coeso ou não. Enfim, se é um bom texto
ou não. Possenti (1981), ao estudar o problema de coesão textual, afirma que:
Dependendo da imagem que o locutor faz do interlocutor no momento
da produção do discurso, que ele utiliza um ou outro mecanismo coesivo [...]. Indiretamente, é a imagem do interlocutor que comanda a decisão. (POSSENTI, 1981, p.48)
Logo, faz-se necessário saber que trabalhar com a linguagem requer reconhecêla como atividade discursiva. Os PCNs colocam isso de forma muito objetiva:
Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução.Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são
aleatórias – ainda que possam ser inconscientes -, mas decorrentes das
condições em que o discurso é realizado. (BRASIL, 1998, p. 20-21)
Portanto, ao se trabalhar a escrita em sala de aula, faz-se necessário compreender
que o texto não é um acontecimento que segue apenas regras predeterminadas, mas um
53
acontecimento em que a linguagem está num processo de uso, em que o escritor, que é o
aluno, estabelece uma comunicação com o leitor, nesse caso, normalmente, o professor.
Logo, o professor passa a ser um co-enunciador e, por isso, deve criar condições para
que essa produção se desenvolva através de uma conscientização de que a língua em
funcionamento, segundo Geraldi (2010), acontece lendo textos, debatendo temas,
esquematizando intervenções, fazendo anotações, revisando conceitos e concepções,
pois tudo isso contribui para a elaboração de um texto escrito. Ainda, segundo os PCNs:
Quando um sujeito interage verbalmente com outro, o discurso se organiza a partir das finalidades e intenções do locutor, dos conhecimentos
que acredita que o interlocutor possua sobre o assunto, do que supõe serem suas opiniões e convicções, simpatia e antipatias, da relação de
afinidade e do grau de familiaridade que têm, da posição social e hierárquica que ocupam. (BRASIL, 1998, p. 20-21)
Para os PCNs, o professor de Língua Portuguesa, ao organizar sua aula, precisa
ter clareza dos objetivos a serem alcançados pelo aluno no que se refere à produção de
textos em sala de aula, já que a sua mediação, enquanto professor, é fundamental para
esse acontecimento.
54
2 A ANÁLISE DO DISCURSO
2.1 ANÁLISE DO DISCURSO: ORIGEM E TRAJETÓRIA
A Análise do Discurso, doravante AD, é uma teoria que surgiu na França, em
fins dos anos de 1960 e, segundo Maldidier (2003, p. 22), seus fundadores foram Jean
Dubois, linguista preocupado com os empreendimentos da Linguística de sua época, e
Michel Pêcheux, filósofo envolvido com questões políticas e teóricas. Vários fatores
contribuíram para o desenvolvimento da AD, mas os principais são encontrados nas
condições sócio-históricas da época (“década da contestação”, pois os danos do
capitalismo eram denunciados por todos) e nos intensos debates sobre marxismo,
psicanálise e epistemologia que ocorriam em Paris, capital dos pensadores como Sartre,
Althusser, Foucault, Pêcheux, Deleuze, Lacan, Lévi-Strauss, Barthes, Derrida,
Bourdieu, Todorov, Benveniste e muitos outros.
Entre Althusser, Pêcheux e Foucault, havia uma aproximação muito grande,
relacionada às questões teóricas e políticas que giravam em torno do estruturalismo e do
marxismo que, segundo Gregolin (2007, p.13) eram “duas grades de leitura sem as
quais é impossível entender os caminhos percorridos pela análise do discurso francesa”
e é justamente aí que nasce a AD.
As questões abordadas por Saussure de que a língua é um sistema e uma
organização social, em seu Curso de Linguística Geral, influenciarão Pêcheux na
elaboração da teoria da Análise do Discurso. A Linguística se tornará um dos tripés da
AD, pois Pêcheux estabelecerá um diálogo com Saussure no sentido de problematizar as
questões levantadas em sua obra, em relação à língua e seu funcionamento. Essas
questões nortearão Pêcheux que demonstrará que o funcionamento da língua se dá,
também, em relação ao do sentido, da significação, das ideias e da ideologia presentes
no texto.
Gregolin (2003) afirma que Pêcheux foi apaixonado pela história da ciência e,
por estar interessado em entender a história da ciência da linguagem, produziu uma série
de textos nos quais traça o percurso das ideias saussureanas e recompõe a história das
teorias linguísticas no século XX. Esses textos foram escritos entre os anos de 1970 e
1980 e eles ajudaram Pêcheux a construir sua teoria da Análise de Discurso. Entre eles
está um que, segundo Gregolin, é muito significante, o título é Sobre a (des)construção
das teorias linguística, escrito em 1982. Nesse texto, Pêcheux faz observações sobre as
55
“tendências à desconstrução das teorias, conforme a análise das alianças teóricas que se
estabeleceram “com” e “contra Saussure”. (GREGOLIN, 2003, p. 101).
Pêcheux (1982, p. 11) demonstra também nesse texto que no início dos anos 60,
na França, a unidade acadêmica da Linguística pós-saussureana ia sofrer um grande
impacto com o efeito de dois processos simultâneos que durou cerca de quinze anos:


O desenvolvimento da hegemonia teórica da Gramática
Gerativo- Transformacional (GGT), diante das posições
institucionais adquiridas no período anterior pelas diferentes
tendências funcionalistas (protegidas ou não pela etiqueta do
estruturalismo linguístico, elas continuaram a “conservar o
território”, tanto nos EUA quanto na Europa).
O aparecimento na França de uma nova corrente filosófica,
epistemológica e politicamente bastante heterogênea, mas que
constituiu seu espaço pela referência a três nomes fundadores e à
(re) leitura de suas obras: Marx, Freud e ...Saussure.
Como se pode observar, essa desconstrução das Teorias Linguísticas levou
Pêcheux e outros teóricos como Lévi-Strauss, Lacan, Althusser, Foucault, Derrida,
Barthes a procurarem respostas que os ajudassem na formulação de suas teorias. A ânsia
dessa busca vai culminar com os acontecimentos políticos que ocorreram no final dos
anos de 1960, na França, e que desestruturou o sistema de alianças que existia em torno
da Linguística. A greve de dez milhões de trabalhadores, em maio de 1968, foi a maior
greve realizada na França, até então, e a mais expressiva de toda a Europa e teve
repercussão mundial. Courtine esclarece bem isso quando diz que:
O aparecimento da problemática do discurso no interior da linguística
francesa é contemporânea à conjuntura política dos anos 1968-1970,
dominada pelos acontecimentos de maio de 68. O discurso flutuava
perdido no espaço. Maio de 68 produziu uma exasperação da circulação
dos discursos, sobre as ondas, sobre os muros e na rua. Mas, também no
silêncio das escrivaninhas universitárias. Era o tempo da multiplicação
das releituras, das grandes manobras discursivas; os conceitos se entrechocavam: a luta de classe reinava na teoria. (COURTINE, 2006,p.9)
Esse período marca o início da renovação do pensamento político e social,
quando o Materialismo Histórico influencia a forma de se pensar as ciências.
Linguistas, historiadores, filósofos, sociólogos, psicólogos e outros teóricos buscam
espaço para renovar o pensamento no interior das Ciências Sociais. Como já foi dito
antes, nesse período, constantes releituras da obra de Saussure eram feitas e isso
56
provocou uma “reviravolta” epistemológica tanto do objeto, como do método da
linguística. Tanto o sistema da língua, quanto o não sistema da fala foram postos em
discussão. A linguagem tornou-se um ramo de estudo muito complexo e não podia mais
ser vista como um sistema saussuriano. Segundo Foucault (2005, p.85), “atrás da
fachada visível do sistema, supomos a rica incerteza da desordem”.
No final dos anos de 1960, a fala, a ideologia, o social, a semântica e outras
questões são trazidas para as discussões linguísticas. Como diz Brandão (1993, p.9):
“Embora reconhecendo o valor da revolução linguística provocada por Saussure, logo se
descobriram os limites dessa dicotomia pelas consequências advindas da exclusão da
fala do campo dos estudos linguísticos”. Segundo Brandão:
Estudiosos passam a buscar uma compreensão do fenômeno da línguagem não mais centrado apenas na língua, sistema ideologicamente neutro, mas num nível situado fora desse pólo da dicotomia saussureana.
E essa instância da linguagem é o discurso. Ela possibilitará operar a
ligação necessária entre o nível propriamente linguístico e o extra linguístico. (BRANDÃO, 1993, p.11-12)
Orlandi (1994) afirma que a AD se constituiu no espaço disciplinar que põe em
relação a Linguística com as Ciências Sociais. Essa relação não significa que uma
complementa a outra, ao contrário, essa relação se dará justamente porque elas são
contraditórias, pois segundo Orlandi:
A Linguística, para se constituir, exclui o sujeito e a situação (o que chamamos exterioridade), e as Ciências Sociais não tratam da linguagem
em sua ordem própria, de autonomia, como sistema significante, mas
a atravessam em busca de sentidos de que ela seria mera portadora, seja
enquanto instrumento de comunicação ou de informação...A AD vai
trabalhar essa separação necessária, isto é, ela vai estabelecer sua prática na relação de contradição entre esses diferentes saberes. Desse modo
a AD produz realmente outra forma de conhecimento, com seu objeto
próprio, que é o discurso. (ORLANDI, 1994, p.53)
Com a publicação do livro Análise Automática do Discurso (1969), Pêcheux
coloca o discurso como objeto de análise. Esse é um momento, como diz Maldidier
(2003, p.19), em que “Pêcheux chamará de sua primeira “máquina discursiva” e que
desempenhará ao mesmo tempo o papel do momento quase mítico de sua fundação”.
Esse livro trouxe questões fundamentais sobre o texto, a leitura, o sentido. Maldidier
(2003, p.19) ainda relata que “Paul Henry e Michel Plon, seus amigos, dizem que essa
57
máquina seria uma máquina de guerra, uma espécie de ‘cavalo de Tróia’ destinado a ser
introduzido nas ciências sociais para aí produzir uma reviravolta”.
Paul Henry (1997), ao expor os fundamentos teóricos da AD proposta por
Pêcheux, revela as influências marcantes de Althusser (leitura de Marx) e de Lacan
(releitura de Freud) no trabalho de Pêcheux desde os primeiros textos publicados sob
pseudônimo de Thomas Herbert nos Cahiers pour l’analyse, em 1966, quando Pêcheux
participava do Círculo de Epistemologia.
A constituição da AD se faz em uma trajetória na qual se divisam “três épocas”,
denominadas por Pêcheux (2010a) de AD-1, AD-2 e AD-3. No decorrer dessas épocas,
houve mudanças significativas, não apenas de caráter metodológico, mas também
teórico. Grigoletto explica um pouco desse percurso:
[...] o abandono de uma posição ‘estruturalista’ que se traduzia, de um
lado numa rigidez na sequência das etapas da análise – que partia da
análise sintática de enunciados elementares para chegar à fase interpretativa de sequências do corpus e, assim, remontar à análise dos processos discursivos (...) e, de outro, numa concepção de sujeito concebido
apenas como efeito de assujeitamento à máquina estrutural. (GRIGOLETTO, 1998, P.17)
A primeira época, reconhecida por Pêcheux de AD-1, aconteceu entre 1969 e
1971, nela a análise do discurso se desenvolveu de forma “tranquila”, pois as questões
trabalhadas não eram tão polêmicas, como afirma Mussalin (2005, p.117), pois “havia
uma menor carga polissêmica, isto é, uma menor abertura para a variação do sentido
devido a um maior silenciamento do outro (outro discurso/outro sujeito).” Essa época é
caracterizada, também, pela exploração metodológica da noção de maquinaria
discursiva estrutural, concebendo o processo de produção discursiva como “uma
máquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeitoestrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos” (Pêcheux, 2010a,
p.311).
Em 1975, Pêcheux publica seu livro Les Verités de La Palice, representando
“um momento essencial de teorização das mudanças, ao propor uma teoria materialista
do discurso” (GREGOLIN, 2007, p.69). Nesse período, inicia-se a segunda época da
AD (AD-2) e, segundo Mussalin (2005, p.118), “a noção de máquina estrutural começa
a explodir”. Pêcheux toma emprestado o conceito de formação discursiva de Foucault e
“acrescenta a ele a reflexão sobre a materialidade do discurso e do sentido”
58
(GREGOLIN, 2007, p. 69). Pêcheux (1988, p.161) afirma que “os indivíduos são
interpelados em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações
discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são
correspondentes”. Isso proporcionou o deslocamento teórico em relação ao primeiro
momento da AD, passando a ser foco de estudo as relações entre as máquinas
discursivas estruturais.
A terceira época, AD-3, segundo Gregolin (2007), ocorre no período entre 19801983. Nela, Pêcheux muda os rumos de sua teoria e desconstrói a maquinaria discursiva
que tinha construído anteriormente. Gregolin (2007) afirma que:
As decepções políticas, a fragmentação das esquerdas, a crise simultânea do marxismo e do estruturalismo, a “morte” de Althusser levam
Pêcheux a operar aquilo que Maldidier (1990) entende como uma “desconstrução dirigida”, isto é, ele reordena o projeto epistemológico a
partir de uma desconstrução das bases longamente gestadas desde
1969. (GREGOLIN, 2007, p. 159)
Nessa época, a classe operária estava adquirindo uma nova identidade por conta
“das reconfigurações econômicas da globalização e das novas relações no mundo do
trabalho” (GREGOLIN, 2007, p. 160). Além disso, havia uma verdadeira revolução
áudio-visual e se estabelecia uma nova configuração de identidades através do
predomínio das imagens. Gregolin discorre melhor sobre isso:
Era chegado o tempo de incorporar às análises a “língua do vento” da
mídia, o discurso ordinário, as novas materialidades do mundo “pós-moderno” que se concretizavam no discurso. Para poder alcançar essas
mudanças será necessário desconstruir vários pontos de seu projeto teórico. (GREGOLIN, 2007, p.160)
As ideias de Althusser sobre “luta de classes” e “interpelação ideológica” não
faziam mais sentido no “novo mundo” repleto de heterogeneidades. Então, Pêcheux
percebe as transformações e inicia as “Delimitações, inversões, deslocamentos”
(GREGOLIN, 2007,p.160 ).
Em abril de 1980, acontece o Colóquio “Materialidades discursivas” em
Nanterre e, segundo Maldidier (2003, p.55), “será o sinal de uma nova partida” que
proporcionará o afastamento das posições dogmáticas anteriores e trará as mudanças
significativas nos trabalhos da AD. É importante destacar o que Gregolin diz sobre esse
acontecimento que mudará o rumo da AD francesa:
59
Fica evidente, nesse evento, que se pensa, então, em um novo objeto,
proposto como “o triplo real da língua, da história e do inconsciente”.
Da Linguística vêem as propostas de Jacqueline Authier, que, a partir
de Bakhtin, coloca em evidência as rupturas no “fio do discurso”, mostrando o aparecimento de um discurso outro no próprio discurso. No
centro dos debates impõem-se fortemente as ideias de Foucault, numa
leitura “sem filtro” (Maldidier, 1990) que leva à análise da singularidade do acontecimento discursivo. Em todos os trabalhos, o discurso é
enfaticamente colocado sob o signo da heterogeneidade, assentando sobre bases novas aquilo que havia sido buscado por meio da contradição
contradição e das falhas da interpretação ideológica. (GREGOLIN,
2007, p. 160,161)
Nesse
colóquio,
foram
discutidas
questões
da
“contradição”
e
da
“heterogeneidade”. E Maldidier (2003) afirma que nesse Colóquio Courtine critica a
noção de formação discursiva desenvolvida por Pêcheux, pois era muito fechada, e
apresenta uma nova proposta ao conceito, passando a ser entendida como “fronteiras
que se deslocam” e a partir do conceito foucaultiano de “campos associativos”, ele
desenvolve a noção de “memória discursiva”, ou seja, o interdiscurso. Jacqueline
Authier (linguista) apresenta também suas teses sobre heterogeneidade, a partir do
dialogismo de Bakhtin, e coloca em evidência as rupturas no “fio do discurso”,
mostrando o aparecimento de um discurso “outro” no próprio discurso.
2.1.1 Foucault, Pêcheux e alguns conceitos em AD
Foucault, em seu livro Arqueologia do Saber (2005), apresenta muitas definições
de discurso e, entre elas, encontra-se a seguinte: “chamaremos de discurso um conjunto
de enunciados, na medida em que se apóie na mesma formação discursiva; ele é
constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um
conjunto de condições de existência...” (FOUCAULT, 2005, p.135-136).
Como se pode observar, para Foucault o conceito de discurso está
intrinsecamente relacionado ao conceito de enunciado. Segundo ele:

Pode-se dizer, de modo geral, que uma sequência de elementos
linguísticos só é enunciado se estiver imersa em um campo enunciativo
em que apareça como elemento singular. [...] não há enunciado em geral,
enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado
60
fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um
papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo [...]
(FOUCAULT, 2005, p.43).

Em seu modo de ser singular (nem inteiramente linguístico, nem
exclusivamente material) o enunciado é indispensável para que se possa
dizer se há ou não frase, proposição, ato de linguagem (...) ele não é, em
si mesmo, uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de
estruturas e unidades possíveis e que faz com que apareçam, com
conteúdos concretos, no tempo e no espaço (FOUCAULT, 2005, p. 9899).
Essas definições demonstram que o enunciado em si não pode constituir uma
unidade já que ele está amalgamado em “estruturas e unidades possíveis” que permitem
seu aparecimento por meio de “enunciados concretos”. Segundo Gregolin, Foucault
pensa o enunciado como uma função, pois o que torna uma frase, uma proposição, um
ato de fala em um enunciado é justamente a função enunciativa: “o fato de ele ser
produzido por um sujeito em um lugar institucional, determinado por regras sóciohistóricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado” (GREGOLIN, 2007,
p.96).
O enunciado está ligado a uma função pertencente ao signo que, segundo
Foucault (2005, p.133), caracteriza-se por quatro elementos:

Um referente (um princípio de diferenciação)

Um sujeito (no sentido de posição a ser ocupada)

Um campo associativo (isto é, coexistir com outros enunciados)

Uma materialidade específica (por se tratar de coisas efetivamente ditas,
escritas, gravadas, passíveis de repetição ou reprodução, atividades
através de técnicas, práticas e relações sociais).
Portanto, ao se descrever um enunciado é preciso referir-se a essas
especificidades e demonstrar que ele acontece num determinado tempo e em certo lugar
e que pertence a uma formação discursiva.
61
E a formação discursiva determinará o que pode e o que deve ser dito. Mas, o
que é uma formação discursiva? Para Foucault é:
...um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que
esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia.
Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim,
caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade
de uma prática. (FOUCAULT, 2005, p.82)
Logo, é na formação discursiva que se dá “a dispersão e a repartição dos
enunciados” (Foucault, 2005, p. 124) e é isso que impulsionará o que pode e deve ser
dito, a partir de uma posição. Portanto, é no interior de uma formação discursiva que os
sentidos são reconhecidos pelo falante que a ela está atrelado.
Para Foucault, a prática discursiva não se confunde com ideias, pensamentos ou
formulação de frases, mas está relacionada a determinadas regras apropriadas ao
discurso. Segundo o autor, a prática discursiva está ligada a “um conjunto de regras
anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em
uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou
linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2005, p.
136).
Segundo Gregolin ( 2007, p. 66), as diversas épocas na trajetória da AD revelam
“os embates, as reconstruções, as retificações operadas na constituição do campo teórico
da análise do discurso francesa”. Pêcheux, além de filósofo, era militante político e não
separava a teoria da política e toda sua teoria reflete esse contexto. E foi justamente isso
que o levou a se debater contra Foucault, pois este começou a polemizar as propostas
althusserianas (ideologia, luta de classes etc.). Segundo Gregolin (2007, p. 126),
“Pêcheux passou a classificá-lo “como “marxista paralelo” e a apontar diferenças na
maneira de pensar as relações entre o discurso, a História, os sujeitos”
Na conclusão do seu livro Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do
óbvio, Pêcheux ressalta sua crítica às propostas de Foucault:
[..] Porque não é fácil – quem trabalha nesse front de luta teórica e ideológica sabe algo a respeito – não retroceder ao sociologismo, ao historicismo ou ao psicologismo: não se fica quite com o materialismo histórico
pela simples referência às condições de produção sócio-históricas do
discurso, é preciso, ainda, poder explicitar o conjunto das formações
62
ideológicas, tal como a luta ideológica das classes determina. Em sua
Arqueologia do saber que, por muitos aspectos, apresenta um extraordinário interesse para a teoria do discurso, M. Foucault “retrocede” sobre o
que ele mesmo avança, volta à sociologia das instituições e dos papeis,
por não reconhecer a existência da luta (ideológica) de classes.
(PÊCHEUX, 1997, p.253-254)
Como se pode notar, a polêmica com Foucault é bem acalorada, pois Pêcheux
não admite o fato de Foucault se colocar crítico das teses althusserianas sobre marxismo
e luta de classes e, segundo Gregolin (2007), a partir de 1975, Pêcheux será mais
incisivo nas suas críticas porque ele tem de lutar em dois campos: ao mesmo tempo,
defender as teses althusserianas frente à “crise do marxismo” e reelaborar os conceitos
teóricos frente às críticas recebidas do interior do próprio marxismo e, para isso ele
retoma duas ideias centrais de Althusser: a reprodução/transformação e a interpelação
ideológica. Ou seja, para se chegar a uma teoria materialista dos processos discursivos,
Pêcheux argumenta que é necessário examinar a proposta de Althusser sobre a
interpelação, pois, ainda conforme Gregolin (2007, p. 134), para Pêcheux, a constituição
do sentido e a constituição do sujeito estão imbricadas na figura althusseriana da
interpelação ideológica já que “por meio da interpelação o sujeito é chamado a existir, é
constituído como sujeito pela ideologia”.
Segundo Maldidier (2003), em novembro de 1977, num simpósio do México
intitulado “O discurso político: teoria e análises”, Pêcheux apresenta o texto
Remontemos de Foucault a Spinoza em que ele cita trechos do “Tratado Teológico
Político” de Spinoza e da “A Arqueologia do Saber” de Foucault. Nesse texto, Pêcheux
vai mais uma vez criticar Foucault demonstrando que Spinoza, com seu texto sobre a
ideologia religiosa, propõe “o esboço de uma teoria materialista das ideologias”
(GREGOLIN, 2007, p. 131).
Baseado no texto de Spinoza, Pêcheux afirma que “o sentido das palavras muda
de acordo com a posição na luta de classes daqueles que a empregam” (GREGOLIN,
2007, p.131) e que a ideologia religiosa não pode ser compreendida como “bloco
homogêneo” e, sim, “dividida”, não idêntica a si mesma. E, a partir daí, Pêcheux
redireciona a sua ideia de formação discursiva como um bloco homogêneo e coloca a
ideologia como “a contradição de dois mundos em um só, dividido, evidencia a
pluralidade no interior dos aparelhos ideológicos” (GREGOLIN, 2007, p.135). Pêcheux
passa a enxergar de outra maneira a relação entre as ideologias dominante e dominada e
63
a relação do sujeito com a língua e a ideologia. Então, ele compreende a ideia da
“heterogeneidade” e reinterpreta o conceito de formação discursiva de Foucault:
Chamaremos de formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve
ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um
panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.). (PÊCHEUX, 1997,
p. 160).
Essa reinterpretação está articulada com as ideias althusserianas sobre o
marxismo-leninismo que vai acompanhar Pêcheux até 1980 quando ele irá rever suas
críticas a Foucault. Segundo Gregolin (2007), será um momento em que ele mudará sua
visão sobre o marxismo, adotando uma perspectiva muito próxima daquela
desenvolvida por Foucault em seus estudos arquegenealógicos. Essa mudança está
ligada “às decepções políticas, as fragmentações das esquerdas, a crise simultânea do
marxismo e do estruturalismo, a “morte” de Althusser” (GREGOLIN, 2007, p. 159).
Então, Pêcheux dá uma reviravolta no seu projeto e Courtine coloca muito bem isso:
[as mudanças operadas por Pêcheux depois de 1980] estavam em completa contradição com tudo aquilo que o programa teórico-político althusseriano havia repetido incansavelmente desde o início. A empreitada só era
possível desde que se quisesse ignorar a negação de si que constituía seu
princípio. Ela trazia a questão mais geral das saídas possíveis do universo
teórico marxista, e singularmente do universo althusseriano. Esta última,
não havendo alternativa, devia ser aceita ou não. (COURTINE, 1990, p.6
apud GREGOLIN, 2007, p. 159)
Nesse período, Pêcheux realiza uma autocrítica e desloca suas posições para
construir um novo corpus teórico-metodológico e Courtine irá contribuir muito para
isso. Nesse mesmo período, o grupo de “historiadores do discurso” de que faziam parte
J. Guilhaumou, Régine Robin, Denise Maldidier entre outros, desenvolveram em seus
trabalhos a importância de Foucault para Análise do Discurso, “focalizando as interrelações entre a materialidade discursiva e a História” (GREGOLIN, 2007, p. 162).
A partir de 1980, Pêcheux remete o discurso à ordem da estrutura e do
acontecimento e segundo ele:
Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria como um aerólito
miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos
quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo dis-
64
curso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação
dessas redes e trajetos: todo discurso é um índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que
constitui, ao mesmo tempo, um efeito dessas filiações e um trabalho
(mais ou menos) consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo
modo atravessado pelas determinações inconscientes) e de deslocamento
no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra,
por uma “infelicidade” no sentido performativo do termo –isto é, no caso,
por um “erro de pessoa” isto é, sobre o outro, objeto de identificação.
(PÊCHEUX, 1983, p.56-57 apud GREGOLIN, 2007, p.166)
É importante perceber que no percurso discursivo de Pêcheux sua cumplicidade
com Althusser era muito forte e, por isso, muitas polêmicas em relação ao marxismo e
as ideias althusserianas surgiram e ele as defendeu até o último momento em que
constatou os equívocos e as contradições presentes no seu projeto da AD. E foi
justamente com Foucault, a quem ele tanto criticou, e com os historiadores, que ele se
reorganizou e formulou um outro projeto para AD.
Esse pequeno histórico sobre o surgimento da AD e seus conceitos, os principais
teóricos e sua fundamentação irão proporcionar uma melhor compreensão para essa
pesquisa.
2.2 A ANÁLISE DO DISCURSO E A INSTITUIÇÃO ESCOLAR: OUTROS
CONCEITOS EM JOGO
Para AD, as relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus
efeitos são múltiplos e variados. Essa abordagem teórica faz com que algumas
considerações acerca da instituição escolar, enquanto lugar em que os discursos do
professor e do aluno são produzidos e mantidos através de atividades, sejam aqui
abordadas, tendo em vista que essa pesquisa está alicerçada na sala de aula. Mas, o que
é a escola? Segundo Lombardi (2005), a escola é um produto da ação concreta e
objetiva do homem, inserida num contexto socioeconômico cultural e reflete, como num
espelho, as tensões sociais, políticas e históricas.
Voese (2004), ao discutir sobre o que pode ser incluído como parte do objeto de
estudo para o analista do discurso, afirma que decidir pela importância ou não da
Análise do Discurso para o ensino requer rediscutir:
65

As concepções de língua, atos de fala e acontecimento.

A relação de discurso e subjetividade.
Segundo Voese (2004, p. 18-19):
1.
2.
Uma análise do discurso deve operar sobre a dualidade sujeitodiscurso, focando em especial as ações de apropriação e de
objetivação.
Uma proposta de utilização da Análise do Discurso no ensino,
por sua vez, remete obrigatoriamente à questão que discute
a instituição escolar e o discurso que orienta as relações e
as condutas de professor e aluno, entendidas como ações
de diferentes subjetividades que têm diferentes motivações
e propósitos.
Logo, o que se diz ou se deixa de dizer na sala de aula, é importante para que o
analista do discurso construa sentidos e “em seu trabalho, o analista de discurso deve
mostrar os mecanismos dos processos de significação que presidem a textualização da
discursividade” (ORLANDI, 2005, p.23). E é nesse sentido que a AD irá procurar os
sentidos produzidos nos discursos por meio do estudo das condições de produção
histórico-sociais constitutivas dos sentidos e dos sujeitos.
Nossa pesquisa irá procurar estabelecer as relações de sentidos nas aulas de
Língua Portuguesa, principalmente no que diz respeito à produção de texto escrito em
sala de aula. Portanto, buscam-se compreender o contexto histórico social de
formulação de texto, os interlocutores, os lugares (posições) em que os interlocutores se
situam e as imagens que fazem de si mesmos, dos outros e dos objetos de que tratam.
Segundo Orlandi (2007), os dizeres não são apenas mensagens a serem
decodificadas, são efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas.
Assim, no processo discursivo o sujeito passa da situação empírica para a posição
discursiva. O que Orlandi quer dizer, de modo muito simples, é que o discurso é a
língua em funcionamento por sujeitos que produzem sentidos numa dada sociedade e
sua produção acontece na história, através da linguagem.
Para compreender melhor como acontecem os efeitos de sentidos no processo
discursivo, mais uma vez será trazido aqui um momento registrado em nosso Diário de
bordo, já mencionado anteriormente, e que retrata bem o que Orlandi (2007) fala acerca
dos efeitos de sentidos que são produzidos em determinada circunstância. Será
retomado apenas um instante da situação descrita, aquele momento em que a professora
66
PE 3 — do 7º ano — registra no quadro o que ela quer que os alunos façam em relação
à produção de texto escrito em sala de aula.
A passagem trazida pode ajudar a entender um pouco da discussão dos autores
acima colocada e que diz respeito a língua(gem), sentidos e efeitos de sentido .
A professora pede aos alunos que escrevam uma narrativa de Cordel. Para tanto,
desenha no quadro de giz as linhas:
Literatura de Cordel
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
__________________________
Essa passagem ilustra bem um fato: a professora elabora um desenho com linhas
horizontais para exemplificar como os alunos terão que produzir seus textos,
reproduzindo os versos do Cordel. Quando questionada pelos alunos, ela responde que
eles devem produzir seus textos escritos já que o assunto Literatura de Cordel foi
trabalhado em sala de aula e, por esse motivo, estão prontos para escrever. Esse seu
discurso abre brechas para muitos sentidos como:

O comentário que ela faz de que esse assunto — Cordel — já foi
trabalhado anteriormente e os temas propostos por ela para que seus
alunos escrevam um cordel, bem como o dizer final: “Bem, agora podem
fazer o texto”, indicam, para a professora, o sentido de que as tarefas
mencionadas e já realizadas bastam para que eles escrevam. Se,
conforme ensina Orlandi (2006, p.99) para que o discurso produza
sentido é necessário que os sujeitos, os interlocutores, se construam no
espaço da interação, pergunta-se como e se isso ocorreu nesta sala de
aula, posto que, “a língua não é só um instrumento, nem um ser dado,
mas um trabalho humano, um produto histórico-social”?
67
Ter apresentado os folhetos, ter lido uma ou duas histórias e ter discorrido sobre
a literatura de cordel, segundo esse entendimento, é suficiente para que os alunos se
habilitem na escrita. Mas não é o que acontece naquela sala de aula: os alunos não
conseguem escrever o texto pedido.
A língua(gem) é materialização do discurso e este é entendido como “ [...]
palavra em movimento, prática de linguagem... a língua fazendo sentido, enquanto
trabalho simbólico, parte do trabalho geral, constitutivo do homem e da sua história”
(ORLANDI, 2007, p.15). A língua, para a AD, não é vista tão só como instrumento de
informação em que os elementos da comunicação podem definir a mensagem:
Na realidade, a língua não é só um código entre outros, não há essa separação entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa sequência
em que primeiro um fala e depois o outro decodifica etc. Eles estão realizando ao mesmo tempo o processo de significação e não estão separados
de forma estanque. Além disso, ao invés de mensagem, o que propomos é
justamente pensar aí o discurso. Desse modo, diremos que não se trata da
transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem,
que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história,
temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação.
(ORLANDI, 2007, p.21)
Não há discurso sem sujeito e sujeito sem ideologia e é no discurso que se pode
observar a relação entre linguagem e ideologia. Segundo Orlandi (2007, p. 46), “a
ideologia é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é
interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer”, logo, fica evidente a
relação intrínseca entre sujeito e sentido. Ou seja, para a AD o sujeito não é físico e nem
o lugar em que ele está, mas as imagens que ele representa permitem que ele passe de
lugares para posições. Sendo assim, o sujeito do discurso constrói seu enunciado
partindo de sua posição social e discursiva
O discurso não se resume àquilo que é dito em dado momento, mas se estende
em suas relações com o que já foi dito antes, com o que não foi dito, com a posição
social e histórica dos sujeitos. Na AD, não há a transparência da linguagem, pois não há
um sentido único, mas as várias interpretações. E é justamente essa concepção de
linguagem que está ligada à constituição do sujeito. Henry, ao analisar os fundamentos
da “análise automática do discurso” de Pêcheux, afirma que:
68
A linguagem (ou o jogo, ou a ordem do signo, ou o discurso) não é entendida como uma origem, ou como algo que encobre uma verdade existente independentemente dela própria, mas sim como exterior a qualquer falante, o
que define precisamente a posição do sujeito, de todo sujeito possível. Mas
isto define o sujeito como posição, e não como uma coisa em si mesma, como uma substância. (HENRY, [1969] 2010, p.30)
Nesta pesquisa, entende-se que os sujeitos ocupam posições, são professores do
Ensino Fundamental que possuem um discurso acadêmico e o aluno é o interlocutor,
sujeito para quem se diz o que se tem a dizer a partir, também, de sua posição sóciohistórica. Dessa maneira, não fazem parte apenas da situação empírica da interação
verbal, mas, também, do imaginário histórico-social de si mesmo, enquanto sujeito, do
interlocutor e do objeto do discurso. Orlandi discorre sobre isso quando diz que:
As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a
equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em
sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens
dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura
sócio-histórica. Temos assim a imagem da posição sujeito locutor (quem
sou eu para lhe falar assim?) mas também da posição sujeito interlocutor
(quem sou eu para lhe falar assim?), e também a do objeto do discurso (do
que estou lhe falando, do que ele me fala?). É pois todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. (ORLANDI, 2007. p.40)
E, nesse jogo, não se pode excluir o contexto situacional em que os enunciados
são produzidos: a família, a escola, a igreja, a política, a rua etc. No caso da escola, já
que essa pesquisa se realiza na sala de aula, não se pode esquecer que o discurso
pedagógico é aquele que sempre predomina, pois é legitimado e o professor encontra-se
numa posição hierarquicamente privilegiada.
Para se falar em discurso pedagógico, doravante DP, é importante destacar as
considerações de Pêcheux ([1975] 1997, p.218) em torno à Pedagogia. Para este autor
não existe uma pedagogia pura, ou seja, aquela que expõe e transmite conhecimento,
livre de qualquer pressuposto, e, também, não existe uma prática pedagógica de um
sujeito que reflete acerca do processo educativo nas suas dimensões sociais, filosóficas
e instrumentais, pois o que existe são sujeitos de diferentes práticas.
Para Pêcheux ([1975] 1997, p.219), no DP não existe na fala do sujeito-professor
algo original, que surge naquele momento, embora ele se coloque como origem do seu
dizer e, segundo Pêcheux (idem), isso compreende o “efeito Munchhausen” no domínio
69
da “apropriação subjetiva dos conhecimentos”1. Essa ilusão subjetiva se dá pelo fato de
a ideologia “mascarar” o “caráter material do sentido das palavras”. Sendo assim, o
sentido dependerá constitutivamente do “todo complexo das formações ideológicas” e
das posições de classes ocupadas pelos sujeitos discursivos. Pêcheux (([1975] 1997,
p.160-161) especifica essa dependência por meio de duas teses:
1)
Consiste em colocar que o sentido de uma palavra, de uma
expressão, de uma preposição, etc., não existe “em si
mesmo”, mas, ao contrário, é determinado pelas posições
ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico
no qual as palavras, expressões e proposições são
produzidas (isto é, reproduzidas).
2)
Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do
sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito
ao “todo complexo com dominante” das formações
discursivas, intricado no complexo das formações
ideológicas.
Logo, os sujeitos ocupam posições determinadas nos espaços históricos
ideológicos que permitem o movimento dos sentidos, os gestos de interpretação. Sendo
assim, a AD visa fazer compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos,
analisando assim os próprios gestos de interpretação que ela considera como atos no
domínio simbólico, pois eles intervêm no real do sentido. A AD não estaciona na
interpretação, trabalha sem limites seus mecanismos, como parte do processo de
significação, pois “há gestos de interpretação que o constituem e que o analista, com seu
dispositivo, deve ser capaz de compreender” (ORLANDI, 2007, p. 26). Como se vê, “os
sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas nas relações com a exterioridade...Os
dizeres são efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que
estão de alguma forma presentes no modo como se diz” (ORLANDI, 2007, p.30).
Sendo assim, na AD os sentidos são produzidos na relação eu/tu através da
língua que remete a uma ideologia e, segundo Orlandi (2007, p.42), “o sentido não
existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no
processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas”. Isso quer dizer que não há
sentido estabelecido, mas, sim, construído quando há interação entre sujeitos. Assim,
1
Segundo Maldidier (2003, p.49), Pêcheux dá essa denominação pelo fato de ter lido “História e aventura
do barão de Munchhausen que se levantava no ar puxando-se a si mesmo pelos cabelos” e é por isso que
o “efeito Munchhausen” é o efeito-sujeito, a ilusão subjetiva.
70
quando se fala em DP, se fala na relação sujeito-professor e sujeito-aluno que são
sujeitos ideológicos.
A ideia de formação discursiva está interligada com a de formação ideológica
que de acordo com Pêcheux (1997, p.166), “constitui um conjunto complexo de atitudes
e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam
mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com as outras”. Ou
seja, as formações discursivas determinarão o que pode e deve ser dito de acordo com as
formações ideológicas numa dada conjuntura.
Orlandi (2007, p.43, 44, 45), baseando-se nessa definição, propõe dois pontos
para sua melhor compreensão:
1)
O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que
o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não
outra para ter um sentido. Logo, as palavras não têm um
sentido nelas mesmas, pois derivam seus sentidos das
formações discursivas em que se inscrevem. As formações
discursivas, por sua vez, representam no discurso as
formações ideológicas. Tudo que dizemos tem um traço
ideológico em relação a outros traços ideológicos. E isto
não está na essência das palavras, mas na discursividade,
isto é, na maneira comono discurso, a ideologia produz
seus efeitos, materializando-se nele.
2)
É pela referência à formação discursiva que podemos
compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes
sentidos. Palavras iguais podem significar diferentemente
porque se inscrevem em formações discursivas diferentes...
Todos esses usos se dão em condições de produção
diferentes e podem ser referidos a diferentes formações
discursivas.
E é através desse mecanismo que se encontram no imaginário da sociedade –
valores, crenças, hábitos e rituais que são compartilhados em todas as sociedades e em
todos os tempos através de suas formações discursivas.
Orlandi (2007) afirma que o discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo
que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um
71
sentido.O DP só pode ser dito pelo professor pois ele está inscrito numa formação
discursiva que o autoriza a assumi-lo.
Mas, como se dá o DP e como é classificado? Segundo Orlandi (2006, pp. 1516), há três tipos de discurso em funcionamento:
1 – Discurso Lúdico – é aquele em que o seu objeto se
mantém presente enquanto tal, ou seja, enquanto objeto, coisa e o
interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso de
polissemia aberta.
2 – Discurso Polêmico – mantém a presença do seu objeto,
sendo que os participantes não se expõem, mas ao contrário procuram
dominar o seu referente, dando-lhe uma direção, indicando
perspectivas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que
resulta na polissemia controlada (o exagero é a injúria).
3 – Discurso Autoritário – o referente está “ausente”, oculto
pelo dizer; não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo,
o que resulta na polissemia contida (o exagero é a ordem no sentido
em que se diz “isso é uma ordem”, em que o sujeito passa a
instrumento de comando).Esse discurso recusa outra forma de ser que
não a linguagem.
Orlandi (2007, p. 87) chama atenção para o fato de que essa proposta obedece ao
princípio discursivo de categorização interna do próprio discurso: “a relação entre os
sujeitos, a relação com os sentidos, a relação com o referente discursivo”. Ela ainda
destaca que:
É importante dizer que as denominações lúdico, autoritário, polêmico não devem levar a pensar que se está julgando os sujeitos desses discursos; não é um juízo de valor, é uma descrição do funcionamento discursivo em relação a suas determinações histórico-sociais
e ideológicas. Não se deve assim tomar, por exemplo, o lúdico no
sentido do brinquedo mas do jogo de linguagem (polissemia) e não
se deve tampouco tomar pejorativamente o autoritário como um traço
de caráter do locutor, uma questão moralista, mas uma questão do fato simbólico (a injunção à paráfrase). (ORLANDI, 2007, p.87)
A partir das caracterizações acima, Orlandi (2006) vai demonstrar como o DP
está inserido no discurso autoritário, o qual se caracteriza por, praticamente, não
apresentar a polissemia. Logo, o funcionamento desse discurso conduz a um discurso
alheio a questionamentos, pois há apenas um agente exclusivo.
Orlandi (2006, p. 16-17) mostra como acontece o funcionamento do DP através
do seguinte esquema:
QUEM
imagem do professor (A)
72
ENSINA
O QUÊ
inculca
imagem do referente - Metalinguagem
(Ciência/Fato) (R)
PARA QUEM
imagem do aluno (B)
ONDE
escola – Aparelho ideológico (X)
Servindo-se das formações imaginárias de Pêcheux, Orlandi afirma que no DP
“A ensina R a B em X”, pois existe um jogo interlocutivo, em que há um emissor,
agente exclusivo do dizer, que é o professor. Este ensina (inculca) a Ciência/Fato
(objeto/referente) para o ouvinte, que é o aluno. A imagem do aluno, neste jogo, é
aquela de quem não sabe e, por isso, deve apenas ouvir por meio da escola (aparelho
ideológico). Não há uma inter-relação entre locutores, pois existe apenas um emissor
que “sabe” e, portanto, é autorizado a ensinar. Nesse funcionamento, tudo o que é dito
pelo professor se converte em conhecimento legítimo, pois ele é o único que está
autorizado, institucionalmente, a transmitir o conhecimento ao aluno.
O professor é institucional e idealmente aquele que possui o saber e está
na escola para ensinar, o aluno é aquele que não sabe e está na escola
para aprender. O que o professor diz se converte em conhecimento, o
que autoriza o aluno, a partir de seu contato com o professor, no espaço
escolar, na aquisição da metalinguagem, a dizer que sabe: a isso se chama escolarização. (ORLANDI, 2006, p.31)
Os sujeitos, ao ocuparem as posições de professor e de aluno, são determinados
por essas representações que fixam dois papeis distintos que são a autoridade e a tutela:
“Desenvolvem-se aí tipos de comportamentos que podem variar desde o autoritarismo
mais exarcebado ao paternalismo mais doce” (ORLANDI, 2006, p. 31).
E, conforme Orlandi (2006), entre a imagem ideal do aluno (o que não sabe) e a
imagem ideal do professor (o que tem a posse do saber que é legitimado pela esfera do
sistema de ensino) há uma distância preenchida pela ideologia. Logo, os sentidos são
produzidos na relação professor/aluno, mediada pela língua que é marcada
ideologicamente e que demonstra as posições hierarquicamente diferentes e a relação de
forças que há entre elas.
O exemplo da professora PE3 — a escrita de uma história de Cordel — que já
foi colocado anteriormente, mais uma vez é aqui evocado, posto que retrata bem essa
73
situação. Ao impor aos alunos a produção/escrita de um cordel levando em
consideração que ela já havia dado esse assunto e, por esse motivo, eles deveriam
escrever, impõe um saber e uma condição que de fato vão gerar um silenciamento dos
alunos, significando a não produção do texto, o silenciamento dos sentidos.
Orlandi (2007) afirma que no discurso autoritário há a contenção da polissemia e
apenas o locutor é o agente do dizer. Logo, quando há o discurso autoritário na sala de
aula, os sujeitos/alunos deixam de se manifestar e participar do processo de formação
crítica e reflexiva e foi isso que aconteceu no exemplo da professora PE3 quando impôs
aos alunos a escrita de um cordel.
Quando há o predomínio do DP, não há a aprendizagem por interação. Mas,
como acontece a aprendizagem por interação na perspectiva da Análise do Discurso?
Segundo Almeida (2004), ela acontece da necessidade de interpretação intrínseca à
linguagem e da possibilidade de transformação do sentido e do sujeito e, segundo ela,
citando Orlandi, isso se dá a partir da criação de “condições para que o aluno trabalhe
sua relação com suas filiações de sentido, com a memória do dizer” (ORLANDI,1998,
apud ALMEIDA, 2004, p. 51). Então, faz-se necessário entender que interagir com o
outro requer compreender que “[...] as coisas a saber são sempre tomadas em redes de
memória nas quais os sujeitos se inscrevem filiando-se ao que os identifica”
(ORLANDI, 1998, apud ALMEIDA, 2004, p.50). Isso não acontece na situação de sala
de EP3, referida anteriormente. As imagens de que se serve a professora, em relação ao
seu aluno e sobre o objeto de que tratam, a elaboração de um texto escrito, em sua
solicitação de feitura de um texto de cordel, certamente não são aquelas que podem ser
pensadas a partir de um entendimento de língua(gem) tal como se tem na Análise do
discurso: a língua como materialização de discursos,
produzidos na prática social,
envolvendo interlocutores sujeitos desses discursos, sujeitos que “tiram” seus dizeres
das formações discursivas onde se ancoram: que dizeres podem ter esses alunos para
escreverem uma narrativa de Cordel? Que condições foram oferecidas para que o aluno
trabalhe a relação com suas filiações de sentido, com a memória do dizer?
2.2.1 Memória e sua relação com a discursividade na escola
A questão da memória e a ideia de seu funcionamento no discurso estão
presentes na teoria da AD. Observa-se que segundo Pêcheux e Fuchs ([1975], 2010b),
as relações parafrásticas se estabelecem entre diferentes expressões que se retomam
74
uma às outras, que se repetem. Portanto, tem-se a ideia de memória como repetição. Em
AD a ‘repetição’ vai conduzir à “matriz de sentido”:
Queremos dizer que, para nós, a produção do sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase entre sequências tais que a família parafrástica destas sequências constitui o que se poderia chamar a “matriz do
sentido”. Isto equivale a dizer que é a partir da relação no interior desta
família que se constitui o efeito de sentido, assim como a relação a um referente que implique este efeito. (PÊCHEUX e e FUCHS ([1975], 2010b
p. 169)
E, ao situar como se dá o mecanismo de tal matriz, pode-se levar à questão de
“repetibilidade” de certos sentidos e, consequentemente, ao que pode e deve ser dito no
interior de uma Formação Discursiva (FD). No entanto, essa repetição não é apenas a
repetição de palavra, por palavra, embora isso também ocorra, mas uma repetição que
proporcione uma “re-significação”, ou seja, por meio de um outro sentido que não está
aparente, mas que se encontra armazenado na memória.
Normalmente, no espaço da sala de aula, o discurso é homogeneizado pelo fato
de não se permitir abarcar outros discursos e, dessa maneira, a repetição dos mesmos
sentidos acaba impedindo a circulação de outros dizeres, que poderiam trazer outros
sentidos capazes de envolver os sujeitos numa outra visão do processo
ensino/aprendizagem.
Não se pode buscar o sentido em uma única matriz de sentido no interior de uma
FD, pois, conforme Orlandi (2007, p.42), “as palavras mudam de sentido segundo as
posições daqueles que as empregam. Elas “tiram” seu sentido dessas posições, isto é,
em relação às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem”. Sendo
assim, pode-se concluir que as FDs não são rígidas, pois permitem que sentidos de
outras FDs transitem livremente entre elas.
Retornando a questão da repetição, Almeida (2004), ao falar sobre autoria ou
instância de formulação do discurso, afirma que o autor não pode evitar a repetição, pois
sem ela o seu enunciado não faria sentido. Orlandi (2007, p.54) propõe três
possibilidades de repetição:


A repetição empírica – (mnemônico) que é a do efeito papagaio,
só repete;
A repetição formal – (técnica) que é um outro modo de dizer o
mesmo;
75

A repetição histórica – que é a que desloca, a que permite o
movimento porque historiciza o dizer e o sujeito, fazendo fluir o
discurso, nos seus percursos, trabalhando o equívoco, a falha,
atravessando as evidências do imaginário e fazendo o irrealizado
irromper no já estabelecido.
É justamente no movimento entre esses três tipos de repetição que, segundo
Orlandi (1998), se dariam as possibilidades de sentidos na escola. Segundo a autora:
[...] na repetição histórica teríamos um aluno com um real trabalho da memória: ele inscreveria assim o dizer em seu saber discursivo o que lhe permitiria não só repetir, mas ao fazê-lo, produzir deslizamentos, efeitos de
deriva no que diz. Por isso haveria aí sempre a possibilidade de serem
produzidos outros dizeres a partir daqueles. Esse seria o “ideal” da aprendizagem: levar o aluno a passar da repetição empírica à histórica, com
passagem obrigatória pela formal já que para que haja sentido é preciso
que a língua se inscreva na história. (ORLANDI, 1998, apud ALMEI-
DA, 2004, p.51)
Há um episódio ocorrido na aula (26/10/2009) da professora PE1, do 6º ano, que
retrata essa questão. A professora colocou no quadro as seguintes orações:
1 – Os negros foram escravizados
2 – Os negros viviam nas senzalas
3 – Os negros se revoltaram com a escravidão e planejaram fugir das
senzalas
4 – Os negros trabalhavam nas lavouras de cana de açúcar
5 – Sofriam com os castigos
6 – Foram libertados pela princesa Isabel, pressionada pelos países
que já tinham libertado os escravos
7 – Vieram ‘forçados’ da África e eram transportados em navios
negreiros
8 – que conseguiram fugir e formavam os quilombos
9 – sofrem preconceitos até hoje
10 – o maior quilombo do Brasil foi o de Palmares, organizado por
Zumbi
11 – Os negros ficavam acorrentados e eram chicoteados.
A seguir, a professora fala para turma:
“Hoje nós vamos escrever um texto que será colocado no mural da escola na Semana da Consciência Negra. Nessa semana haverá um dia em
que acontecerá a Feira do Conhecimento aqui na escola. Essa turma trabalhará com a história dos negros quando chegaram ao Brasil e como
aconteceu a sua libertação. Vocês já fizeram a pesquisa sobre isso no
laboratório de informática e isso vai ajudar no texto. Escrevi essas frases
no quadro para que a gente escreva o nosso texto.O valor do trabalho é
76
de três pontos para todas as matérias. Gostaria também que vocês, em
casa, fizessem frases sobre a princesa Isabel, o que ela fez para libertar
os escravos. Vocês sabem que não foi só a princesa Isabel que ajudou os
negros a se libertarem. Havia um movimento liderado por Zumbi, um
negro fugitivo, que criou o Quilombo dos Palmares. Todos os negros
que fugiam iam para lá. Zumbi se tornou um grande líder e o Quilombo
se tornou uma comunidade muito grande. Zumbi ganhou muitas batalhas, pois os portugueses queriam destruir o Quilombo. Mas no dia 20
de novembro de 1695, Zumbi foi morto e o Quilombo destruído. Zumbi
pagou com a sua própria vida a libertação dos escravos. Depois de sua
morte os movimentos contra a escravidão cresceu até que a princesa Isabel assinou a lei contra a escravidão. Vocês sabiam que os negros lá na
África eram livres? Alguns eram reis, rainhas, príncipes e princesas e viviam muito bem lá. Mas o homem europeu resolveu apanhá-los e transformá-los em escravos aqui no Brasil.” (PE1, 26/10/2009)
Em seguida, a professora PE1 pede para que a turma sugira quais são os
números de ordem das frases que farão parte dos parágrafos e os alunos respondem e a
professora coloca no quadro:
1 – Antes de chegar ao Brasil
2 – Durante a escravidão no Brasil
3 – Incômodo com a escravidão
4 – Liberdade
- 1,2 e 3
- 4,5,e 6
- 7,8 e 9
- 10 e 11
A seguir, a professora inicia um jogo de perguntas e respostas:
Professora – Como era o Brasil antes da chegada
dos colonizadores?
Artur
– Era a coisa mais linda do mundo.
Carlos
– Era como uma floresta.
Jamile
– Tinha muita coisa que não tem mais hoje;
Professora – E quando os portugueses chegaram, o Brasil mudou?
Maria
– Os portugueses levaram o nosso ouro e mataram
muitos índios.
Professora – E o que mais?
Natália
– Eles trouxeram muitos escravos da África.
Camila
– Os portugueses maltrataram os escravos e os escravos eram fortes.
Professora – E como foi que os escravos se libertaram?
Maria
– Foi por causa da princesa Isabel.
Professora – E por que a princesa Isabel resolveu libertar os
escravos?
Mateus
– Porque ela queria fama.
Jamile
– Porque ela não gostava da escravidão.
Antonio
– Porque ela podia libertar eles.
77
No diálogo acima, as respostas dos alunos estão inseridas em FDs que trazem a
Memória Discursiva alicerçada nos três tipos de repetições. Podem-se classificar as
respostas dos alunos, seus discursos, da seguinte maneira:
1.– Repetição empírica e formal

Eles trouxeram muitos escravos da África.

Os portugueses maltrataram os escravos e os escravos eram fortes.

Foi por causa da princesa Isabel.

Era a coisa mais linda do mundo.

Era como uma floresta.

Tinha muita coisa que não tem mais hoje.

Os portugueses levaram o nosso ouro e mataram muitos índios.
Nessas respostas, os discursos construídos repetem os discursos dos
historiadores que estão nos livros didáticos e nas aulas de História. Os primeiros dizeres
se explicam como pura repetição; os últimos apresentam algum dizer um tanto
diferenciado, mas ainda presos ao mesmo. Portanto, não há nada além daquilo que já
se conhece, daquilo que já foi dito pelo discurso histórico.
2 – Repetição histórica – a que desloca e permite o movimento

Porque ela queria fama.

Porque ela não gostava da escravidão.

Porque ela podia libertar eles.
Nessas respostas constata-se que os sujeitos/alunos rompem com o que já foi
estabelecido e deslocam suas respostas num movimento constante entre a ideologia e a
memória, aparecendo assim o deslize, o equívoco.
Essas colocações são perfeitas para demonstrar como acontecem os equívocos.
Percebe-se que o diálogo transcorria de maneira muito natural e as respostas que eram
trazidas confirmavam o que está na memória discursiva – é encontrado nos registros
históricos – até que isso é quebrado quando alguns alunos respondem o que não está na
história, mas o que a princesa Isabel representa para eles.
78
Essa reflexão também permite ao analista entender o porquê de o aluno, em sala
de aula, normalmente ser levado a fazer o que o professor pede para ele fazer
(paráfrase), sem deixar espaço para o inusitado, o diferente, o equívoco (a polissemia) e,
assim, acaba produzindo/repetindo o que é determinado pelo professor.
Ainda sobre a situação descrita nessa sala de aula, é interessante trazer o que
Orlandi (2007) fala sobre processos parafrásticos e processos polissêmicos. Segundo
ela, todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre esses dois processos.
E ela explica isso da seguinte maneira:
Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há
sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia,
o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação.
Ela joga com o equívoco. (ORLANDI, 2007, p.36)
Segundo Brandão (2004), a FD é composta por paráfrases que retomam os
enunciados num esforço constante de fechamento de fronteiras, de delimitação
discursiva e, por outro lado, a polissemia rompe com as fronteiras, embaralha os limites
entre as diferentes formações discursivas e instaura a pluralidade, a multiplicidade de
sentidos.
Os conceitos de “produtividade” e “criatividade”, dados por Orlandi (2007),
ajudam a entender como se dá a construção de uma FD. Para ela, a produtividade
mantém o homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível: produz a variedade
do mesmo, reiteração de processos já cristalizados. A criatividade, por sua vez, implica
na ruptura do processo de produção da linguagem, pelo deslocamento das regras,
fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e
os
sentidos na sua relação com a história e com a língua.
Em relação à sala de aula, quando o professor determina o que os alunos irão
escrever, o que se vê com mais frequência é a noção da produtividade e não da
criatividade, pois os textos, normalmente, seguem um determinado padrão e o aluno não
pode redirecionar a outro.
Essas reflexões ajudam o analista a compreender que o aluno em sala de aula é
subordinado a fazer sempre o mesmo, não lhe sendo permitido trabalhar com a
“criatividade”, no sentido já colocado, e isso interfere na sua formação de sujeito.
79
Segundo Orlandi (2007), a linguagem é uma prática, não no sentido de efetuar
atos, mas porque pratica sentido, intervém no real. Para Análise do Discurso, o texto
não pode estar relacionado apenas a uma forma, um padrão determinado, mas, a sua
produção deve levar em consideração os aspectos histórico, social e ideológico.
Segundo Geraldi (1993), construir sentidos no processo interlocutivo demanda o uso de
recursos expressivos, pois isso leva o outro a um processo de compreensão. Logo,
dependerá do professor definir o modo como o aluno produzirá seu texto, pois produzir
texto é mais do que produzir um conjunto de palavras, de frases escritas seguindo regras
predeterminadas. E, em relação a isso, Beth Brait (2008) coloca muito bem o que vem a
ser um texto na perspectiva da noção de criatividade. Segundo ela:
O texto não é um objeto autônomo, nem como texto e nem como gênero
textual . É um objeto múltiplo, um objeto que envolve sujeitos múltiplos e
que, para a produção de sentidos e efeitos de sentido, exige que esses sujeitos assumam determinados lugares discursivos e façam circular diferentes
discursos a partir desses lugares. O sujeito da recepção – o leitor, o destinatário – tanto quanto o sujeito da produção é necessariamente um participante ativo da esfera discursiva em que o texto acontece. Quer ele se dê conta
disso ou não.(BRAIT, 2008, p.18)
Sendo assim, deve-se considerar que o texto não é uma produção automática em
que formando algumas sentenças e parágrafos e aplicando algumas regras ele se realiza.
Há muito mais que isso, pois é preciso integrar múltiplos elementos a ele como coletar,
selecionar, avaliar, analisar, sintetizar e tirar conclusões para depois ordenar e relacionar
os vários elementos que entram na construção do texto e que geram enunciados
concretos e relações de sentido.
Ele, o texto, não é também um produto unívoco, original, pois outras vozes
podem ser encontradas nele com filiações diferentes, por isso é um processo dialógico
que acontece numa esfera discursiva.
Pêcheux (1997), ao falar sobre a tese de Spinoza sobre a ideologia religiosa,
reconhece a heterogeneidade da ideologia e reformula o conceito de FD. E traz uma
nova visão sobre o relacionamento entre o discurso e a ideologia:
A partir desse texto de 1977, Pêcheux abandona a ideia de formação discursiva como um bloco homogêneo relacionado a uma ideologia dominante e
passa a trabalhar com a ideia de que uma ideologia é não idêntica a
si mesma, em referência à categoria spinosista de contradição. Tratase, a partir de então, de colocar a questão da presença da heteroge-
80
neidade no próprio interior da ideologia dominada. (GREGOLIN,
2007, p.135-136)
Então, ele irá trabalhar a questão da FD e a sua dependência ao “todo complexo
com dominante”:
Uma FD não é um espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente
“invadida” por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outra FD)
que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo sob a forma de “preconstruídos” e de “discursos
transversos”). (PÊCHEUX, [1983] 2010a, p. 310)
Portanto, o pré-construído, segundo Pêcheux ([1975] 1997, p.164), “é o semprejá-lá” da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a
forma da universalidade. Segundo Possenti (2003), o que está em questão aí é a posição
segundo a qual os sujeitos falam a partir do já dito – e isso é exatamente o que o
interdiscurso lhes põe à disposição e/ou lhe impõe.
Pêcheux (2010b, p. 162) vai chamar de interdiscurso “todo complexo com
dominante” das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei
de desigualdade-contradição-subordinação que caracteriza o complexo das Formações
ideológicas:
Diremos que o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal,
objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle)
sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas.(PÊCHEUX,[1975] 1997,
p, 162)
Logo, pode-se dizer que no interdiscurso todos os dizeres estão acoplados e,
consequentemente, todos os sentidos também, pois não há apenas um, já que o
interdiscurso é “aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente, é a memória
discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do
pré-construído, o já-dito que está na base do dizível” (ORLANDI, 2007, p.31).
Segundo Pêcheux ([1975]1997), a objetividade material do interdiscurso reside
no fato de que algo fala sempre antes sob a dominação do complexo de formações
ideológicas. Sendo assim, o dizível já está no exterior do sujeito, ele já existe, é o já-dito
e isso significa que “essa relação existe entre o interdiscurso e o intradiscurso. Ou, em
81
outras palavras, entre a constituição do sentido e sua formulação” conforme Orlandi,
(2007, p.32). Para esta autora:
A constituição – o que estamos chamando de interdiscurso – representada
como um eixo vertical onde teríamos todos os dizeres já ditos – e esquecidos – em uma estratificação de enunciados que, em seu conjunto,
representa o dizível. E teríamos o eixo horizontal – o intradiscurso – que
seria o eixo da formulação, isto é, aquilo que estamos dizendo naquele
momento dado, em condições dadas. (ORLANDI, 2007, p. 32-33)
Pode-se trazer aqui um outro exemplo de atividade em sala de aula que
consideramos como mal sucedido, em função talvez dessas questões que aqui estamos
abordando. Nestas atividades procedia-se ao estudo da linguagem no que diz respeito à
interpretação e à produção de textos, em uma sala de 7º ano, da professora PE3 (em
24/11/2009). Ela escreveu no quadro o seguinte texto:
PÁSSAROS LIBERTOS
PALAVRAS SÃO PÁSSAROS,
VOARAM!
NÃO NOS PERTENCEM MAIS.
Helena Kolody
Em seguida, a professora pediu para que os alunos lessem silenciosamente o
texto; logo depois, ela perguntou se alguém queria falar sobre ele. Todos ficaram
calados e ela colocou no quadro as seguintes perguntas:
1) Helena Kolody diz que as palavras são como pássaros.
Explique o que pode haver de semelhante entre ambos.
2) As palavras”não nos pertencem mais”.
a) Quando as palavras deixam de nos pertencer?
3) Segundo o poema, cada palavra dita ou escrita cria asas e
voa para longe daquele que a libertou (disse/escreveu). Por
isso, precisamos ter cuidado com as palavras.
a) Que palavras você gostaria de libertar para que voasse no
mundo?
b) Que palavras você não liberaria para que o mundo não as
conhecesse?
c) Qual a mensagem do texto de Helena Kolody?
82
A seguir, ela falou:
Eu quero que vocês façam pelo menos duas questões na aula. Vou dar
quinze minutos e logo depois a gente corrige. (PE3, 24/11/2009)
Após os quinze minutos, a professora perguntou:
Vocês já responderam as questões? Então, digam lá, o que vocês responderam? (PE3, 24/11/2009)
A turma permaneceu calada e ela insistiu mais uma vez e como não conseguiu a
resposta, ela mesma respondeu:
Assim como os pássaros ficam presos e se libertam, as palavras ficam
presas e também se libertam. (PE3, 24/11/2009)
Como se pode observar, a professora, ao trazer o texto para os alunos, direciona
analisá-lo apenas como instrumento de informação, de decodificação. Quer dizer, sua
concepção de língua está ancorada numa FD que reconhece a língua apenas como
código e, por isso, precisa ser decodificado por um receptor. Apesar de as questões
estarem relacionadas com o texto, a professora não conseguiu levar a turma a pensar nas
metáforas que são trazidas nele. Embora a professora tenha aberto espaço para que os
alunos respondessem às questões que ela colocou sobre o texto, mais uma vez os alunos
silenciaram-se. O que os alunos poderiam dizer sobre o assunto que é abordado no
texto? Por que eles não conseguiram interpretar o texto? Como se pode observar, a
professora deixa de lado a especificidade do poema que implicaria nas imagens que são
trazidas nele, e espera que as questões sejam suficientes para fazer o aluno se posicionar
de maneira eficaz diante no texto.
No entanto, segundo Orlandi (2005, p.89), “o texto é lugar de sentidos, de
trabalho da linguagem, de funcionamento da discursividade. Sendo assim, ele é trabalho
de interpretação”. Logo, se o aluno não teve condição de se colocar diante do texto, de
ouvir outras leituras, de construir um espaço de interação que lhe possibilitasse construir
sentidos, como responder as questões sobre o texto? Para AD, o texto “é um objeto
linguístico-histórico” (ORLANDI, 2005, p.86) e por esse motivo se dá o acontecimento
entre os sujeitos e os sentidos. E como isso não aconteceu, os alunos relutaram em
responder e se sentiram bloqueados já que não sabiam o que dizer.
83
Observa-se, nesse capítulo, que através da AD é possível reconhecer nos
discursos dos professores os sentidos que dão aos conceitos de língua, linguagem oral,
linguagem escrita e como suas FDs irão influenciar no processo de ensinoaprendizagem da Língua Portuguesa.
3 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
3.1 CONHECENDO OS SUJEITOS E SEUS ESPAÇOS
Essa pesquisa foi realizada em cinco escolas da Rede pública de Ensino, que
fazem parte de um Complexo Escolar da cidade de Salvador. A escolha das escolas se
deu, primeiramente, por apresentar características que se pretendia, pois estavam
situadas em bairros populosos, eram representativas do ensino público de Salvador e
ficavam perto da residência da pesquisadora, o que tornou mais fácil o
acompanhamento das aulas. Em relação à escolha das turmas, o objetivo era trabalhar
com o 6º até o 9º ano para fazer um estudo mais detalhado sobre a produção escrita em
sala de aula. Num total foram escolhidas seis turmas que ficaram distribuídas da
seguinte maneira:

Escola número 1 – E1 . 1 turma do 6º ano

Escola número 2 – E2 . 1 turma do 7º ano

Escola número 3 – E3 . 1 turma do 7º ano

Escola número 4 – E4 . 1 turma do 8º ano

Escola número 5 – E5 . 2 turmas: 1 do 8º ano e 1 do 9º ano
Na escola 5 foram visitadas uma turma do 8º ano e uma turma do 9º ano do
fundamental e havia uma só professora; para as demais escolas, a relação é 1 turma X 1
professora. No conjunto, foram consultadas 5 (cinco) professoras em 6 (seis) turmas do
ensino fundamental.
O contato com os sujeitos — professores e diretores — durante a pesquisa
aconteceu de forma harmoniosa e respeitosa, já que eles em momento algum se negaram
84
a receber a pesquisadora em suas salas de aula e a responder os questionários aplicados,
de modo geral. Apenas uma das professoras não se submeteu a responder o segundo
questionário, embora a pesquisadora tenha procurado, de várias maneiras, fazer o
questionário chegar até ela. Por essa razão temos dados de quatro questionários e não
cinco, como esperávamos. Uma outra professora não permitiu que suas aulas fossem
gravadas e, por esse motivo, foram analisadas as transcrições das aulas de apenas
quatro professoras.
Houve o cuidado de proteger a identidade das professoras, para uma melhor
isenção e neutralidade na análise e, também, a identidade dos alunos no momento dos
diálogos em sala de aula.
O perfil das professoras é diversificado e o que as aproxima é o fato de serem
professoras da mesma disciplina e pertencerem à Rede Pública de Ensino. Apresentam
características diversas:

A professora PE1 tem 31 anos, graduação e mestrado em Letras e
trabalha na Rede Pública de Ensino há 8 anos. Ela dá aula para o 6º ano.

A professora PE2 tem 43 anos, graduação em Letras Vernáculas e
trabalha na Rede Pública de Ensino há 16 anos. Sua turma é a do 7º ano.

A professora PE3 tem 44 anos, graduação em Pedagogia, especialização
em Planejamento Educacional e está fazendo o curso de Letras na
modalidade EAD. Trabalha na Rede Pública de Ensino há 18 anos. Ela
também dá aula para o 7º ano.

A professora PE4 tem 60 anos, graduação em Letras Vernáculas e
especialização em Psicopedagogia Escolar e Clínica. Trabalha na Rede
Pública de Ensino há 28 anos. Atualmente ensina para a turma do 8º ano.

A professora PE5 tem 51 anos, curso superior com especialização e
trabalha na Rede Pública de Ensino há 22 anos. Ela dá aula para duas
turmas: uma do 8º ano e outra do 9º ano.
Como já foi dito na introdução, nessa etapa da pesquisa buscou-se, a partir da
Análise do Discurso, levantar nos dizeres dos sujeitos a constituição dos sentidos e dos
efeitos de sentidos por meio das significações materializadas nas respostas dadas aos
questionários aplicados às professoras.
85
3.2 OS QUESTIONÁRIOS: ANÁLISE DASRESPOSTAS DOS SUJEITOS
O primeiro questionário foi aplicado no início da pesquisa, correspondendo mais
ou menos à terceira unidade escolar e contém a questão abaixo:
Como se pode levar o aluno a escrever bem e o que significa escrever
bem?
O segundo questionário foi aplicado no final do ano letivo e possui três questões:
1) Qual a sua avaliação sobre o desempenho de seus alunos (os que
participaram da pesquisa) em relação à escrita em sala de aula no ano
de 2009?
2) Em algum momento, durante o ano de 2009, ao corrigir um texto
produzido pelo seu aluno, foi permitido que ele reescrevesse o seu
texto? Se isso aconteceu, o que você percebeu com a reescritura do
texto? Caso isso não tenha ocorrido, quais foram os motivos que não
permitiram essa reescritura?
3) Em relação ao resultado final da disciplina, todos os alunos foram
aprovados? Caso tenha tido alguma reprovação, a escrita desse aluno
teve influência nesse processo? Justifique.
Esses questionários foram respondidos por escrito e devolvidos num prazo de
mais ou menos quinze dias. Para orientar a análise, no tratamento aos dados, isto é, as
respostas dadas nos questionários, procurou-se observar como se davam as
compreensões das seguintes categorias lingüísticas e culturais:

As concepções de língua e linguagem que se apresentam nesses dizeres.

As concepções de língua escrita e língua oral que daí se podem extrair.

A compreensão do que seja um bom texto escrito para o sujeitoprofessor.

Os critérios considerados no ensino/aprendizagem do texto escrito.
Além disso, foram trazidos também a este capítulo os discursos dos PCNs
relacionados a essas questões para serem confrontados com as respostas dos
questionários, de modo a se apreender melhor de que posições falam essas professoras.
86
3.2.1 O primeiro questionário

Como se pode levar o aluno a escrever bem e o que significa escrever bem?
As respostas foram variadas e, ao responderem, as professoras dividiram a
questão em duas partes. A primeira parte aborda a questão de como levar o aluno a
escrever bem. Para três professoras, escrever bem está relacionado diretamente à
leitura. Segundo elas:
A habilidade de escrever pressupõe a de ler. Não há receita, mas essas habilidades andam juntas o tempo todo. [...] os jovens estão deixando de ler
e escrever, simplesmente porque não sabem ler e escrever. (PE1, 6ª.
SÉRIE- 2009)
O caminho que o professor pode indicar, ou melhor, iniciar para que o
escreva bem, penso que seja através da leitura associada à produção textual. (PE2, 7ª. SÉRIE - 2009)
Fazendo com que ele leia muito vários tipos de textos (TIPOLOGIA), para que ele possa ter uma leitura crítica do mundo. Fazendo uma discussão
dos assuntos lidos, possibilitando a escrita, para que ele possa ter uma visão crítica do assunto discutido e possa escrever com embasamento.
(PE5, 8ª e 9ª SÉRIES 2009)
Nesses dizeres fica evidenciado que, se o aluno lê, automaticamente sabe
escrever. Logo, é a leitura que o capacitará a escrever bem, pois é o instrumento que o
direcionará a essa atividade. Nas três respostas que obtivemos encontramos a leitura
como condição essencial para escrever bem.
Quando as professoras dizem que a leitura é essencial para a escrita do aluno,
elas repercutem um discurso que já está ecoando em muitos lugares e seus efeitos de
sentido reforçam que quem lê, naturalmente, escreve melhor. De certo modo há a
cristalização do sentido de leitura como prática que possibilitará o aluno a ter um
desempenho desejado na escrita e, assim, o que se ouve são discursos que reforçam essa
questão. E, nesse sentido, os enunciados das professoras estão inseridos numa memória
discursiva que, segundo Orlandi pode ser tomada como interdiscurso, “aquilo que fala
antes em outro lugar independentemente”. Há um saber discursivo — no caso, a leitura
é fundamental para a escrita — que retorna aí “sob a forma do pré-construído”
87
(ORLANDI, 2007, p.31). Nesse caso, um dizer que vem, também, dos PCNs,
possivelmente.
Outras duas professoras responderam focalizando outros aspectos, além da
leitura. A professora PE3, do 7º ano, respondeu da seguinte forma:
Acredito que o incentivo por parte de nós professores seja de vital importância para esse processo, pois um dos primeiros passos é mostrá-los que
são capazes. Claro que isso não ocorre de maneira rápida, porque tratase de um processo no qual os alunos vão desenvolvendo habilidades
até atingir tal momento. Percebo que a leitura é um desses caminhos para
que o aluno adquira habilidade de escrever bem. Quando o aluno lê este
encontra mais facilidade de escrever...Produzir um texto não é algo tão
simples, pois ele precisa ter algo de significativo para quem escreve. Escrever por escrever não funciona, pois o aluno precisa perceber porque
está escrevendo. (PE3, 7ª. série 2009) (Grifos nossos)
Nesses dizeres, percebe-se que outras questões relacionadas ao objetivo de
“como levar o aluno a escrever bem” aí foram incluídas. Logo no início de sua fala, a
professora reconhece que a leitura está relacionada à pratica de escrita, a qual é “a um
processo e que não ocorre de maneira rápida”. A professora PE3, do 7º ano, admite que
a leitura faz parte desse processo (de produção escrita). E, nesse sentido, sua postura é a
mesma das professoras anteriores que revelam que é a leitura que conduzirá o aluno a
escrever bem. A FD na qual se ancora este sujeito discursivo é atravessada por uma
memória discursiva que repete um já-dito — a leitura ajudando na escrita. Mas deve-se
observar também, na formulação lingüístico-discursiva deste sujeito, o aparecimento de
um outro entendimento: a escrita como processo. E neste caso este sujeito já rompe com
alguns dizeres anteriores, que afiançam a escrita pelo tão só hábito de ler e neste ato, se
apossar também das estruturas da língua escrita. Para esta professora aparece a escrita
como resultante de um processo, de uma prática que se faz e se refaz, a todo momento.
Em seguida, a professora afirma que “escrever não é tão simples, pois precisa ter
algo de significativo para quem escreve e escrever por escrever não funciona”. A
professora fala a partir de uma FD que compreende a interlocução, a interação verbal
como constitutiva da linguagem e esse discurso repete, com outras palavras, o que
alguns teóricos como Bakhtin ([1929] 2006) e Geraldi (1993) há muito vêm falando
sobre o processo de produção de texto.
Para AD, a interação verbal é própria da língua. Esta não pode ser concebida
fora de sua situação de uso, pois é na prática linguística que a língua faz sentido
88
“enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e
da sua história” (ORLANDI, 2007, p. 15).
A última fala sobre esta questão é da professora PE4, do 8º ano, que diz o
seguinte:
Oportunizar o acesso a material escrito, estimulando a prática da leitura,
porque quem lê tem mais facilidade para escrever bem. Incentivar o hábito de conhecer as estruturas de textos diversos, de manter-se atualizado
com os acontecimentos do mundo e reconhecer a função social da leitura
e escrita.
Trabalhar sempre com textos que circulem na mídia e que despertem a
atenção dos alunos.
É dever do mediador auxiliar o aluno a desenvolver competências para o
uso da língua nas mais diversas situações sociais. Desenvolver habilidades necessárias para ouvir e respeitar a fala do outro nos debates e discussões, favorecendo de forma sistemática tanto a retroação das atividades como a discussão e antecipação das mesmas. É importante promover interesse pelas próprias produções e pelas dos outros colegas, desenvolvendo o gosto, o cuidado e o respeito pela escrita e leitura.
(PE4, 8ª. série 2009)
A professora PE4 compactua com as outras professoras a mesma ideia da
importância da leitura para a escrita, mas sua fala se diferencia das demais pelo fato de
afirmar que [se deve] “Oportunizar o material escrito [...] trabalhar sempre com textos
que circulem na mídia e que despertem a atenção dos alunos [...].” Ela se aprofunda na
questão da leitura, sugere o acesso a textos diversos, gêneros os mais variados e atenta
para a função social da língua(gem).
A PE4 diz que se deve “incentivar o hábito de conhecer as estruturas de textos
diversos”, e essa questão está diretamente ligada aos gêneros discursivos que, segundo
Bakhtin (1997), constituem os quadros obrigatórios de qualquer produção verbal, pois
são “(re)configurações das práticas de linguagem” (NASCIMENTO, 2009, p. 9). Ao
trazer essa questão, a professora fala a partir de uma FD que reconhece as bases teóricas
acerca dos gêneros discursivos e sua importância ao se trabalhar em sala de aula, no
sentido de levar o aluno a reconhecer os textos como uma prática social em que os
discursos circulam e geram sentidos em seus leitores. E a professora complementa esse
entendimento quando diz que “é preciso desenvolver competência para o uso da língua
nas mais diversas situações sociais.”
89
Dando continuidade à resposta, a professora PE4 finaliza a questão de “levar o
aluno a escrever bem” tocando diretamente na prática da própria escrita, no sentido de
levar o aluno a se apropriar dessa prática. Para ela, “é importante promover interesse
pelas próprias produções e pelas dos outros colegas, desenvolvendo o gosto, o cuidado e
o respeito pela escrita e pela leitura”. Esse interesse tanto pelo texto próprio como pelo
do colega está contido numa perspectiva que vê o texto inserido num processo de
construção de sentidos que permite aos interlocutores compartilhar suas produções e a
desenvolver o gosto pela escrita e pela leitura numa prática social contínua.
O discurso da professora permite entender que ao produzir um texto, o aluno
deve reconhecer a língua como interação verbal que possibilitará a ele um aprendizado
que não se baseia em gestos mecânicos e artificiais de manuseio da língua, mas em
reflexão que gera:
[...] a construção criativa de situações interlocutivas no interior das quais
necessariamente emergem a leitura de mundo, as diferentes formas linguísticas de, aproximando-se do mundo, expressar sobre ele uma compreensão materializada num texto oral e escrito. (GERALDI,1996, p.66).
É importante destacar que a professora PE4 desenvolve em seu discurso uma
concepção de linguagem como forma de interação e reconhece o espaço da interlocução
como sendo constitutivo do sujeito e dos sentidos.
Em todos esses dizeres aqui trazidos é possível reconhecer-se a presença do
texto oficial sobre o ensino da escola fundamental no Brasil, os PCNs. São várias as
passagens que se podem extrair deste Documento que vão ecoar as palavras das
professoras entrevistadas, quanto aos aspectos de aprendizado da língua materna e da
língua materna escrita. Veja-se o que dizem os PCNs sobre a leitura e sua importância
para a escrita:
Segundo os PCNs: P. 28/29
O trabalho com a leitura tem como finalidade a
formação de leitores competentes e, consequentemente, a
formação de escritores, pois a possibilidade de produzir textos
eficazes tem sua origem na prática de leitura,
es
paço de construção de intertextualidade e fonte de referências
modelizadoras. A leitura, por um lado, nos fornece a matériaprima para a escrita: o que escrever. Por outro, contribui para
a constituição de modelos:como escrever. (BRASIL, 2000,
p.53).
90
Segundo este texto dos PCNs a leitura vai colaborar para a escrita tanto no
aspecto do conteúdo (o que escrever), como no aspecto da forma (como escrever).
Ainda que não se perceba, nos dizeres das professoras, o modo como exatamente a
leitura viabiliza a escrita, são estes aspectos que elas trazem em suas falas: a leitura
ajuda na construção do texto escrito. Também se podem encontrar no referido
Documento, passagens como as que se seguem, que traduzem a necessidade de maior
leitura nas escolas para o manuseio, a prática e a familiaridade do aluno com o material
escrito e da existência de bibliotecas:
A escola deve dispor de uma biblioteca em que sejam colocados à disposição dos alunos, inclusive para empréstimo,textos
de gêneros variados, materiais de consulta nas diversas áreas
do conhecimento, almanaques, revistas, entre outros...É desejável que as salas de aula disponham de um acervo de livros e
de outros materiais de leitura. (BRASIL, 1998, p. 71-72)
Também o entendimento da língua enquanto espaço de interlocução entre
sujeitos, de interação verbal; ou de uma prática social, estão contidos nesses
ensinamentos dos PCNs, Documento que, por sua vez, se baseia em estudos dos
mesmos estudiosos que aqui trazemos e que lidam com esses novos entendimentos de
língua e linguagem, trazidos não só pela linguística tradicional mas, sobretudo,
disciplinas a ela relacionadas e outros campos de estudo da linguagem mais recentes e
que buscam seus respaldos em abordagens que consideram a enunciação, o uso, o
social e a história na consideração do fato linguístico-discursivo:
Um dos aspectos da competência discursiva é o sujeito ser
capaz de utilizar a língua de modo variado, para produzir diferentes
efeitos de sentido e adequar o texto a diferentes situações de
interlocução oral e escrita. (BRASIL, 1998, p.23)..
O domínio da linguagem, como atividade discursiva e
cognitiva, e o domínio da língua, como sistema simbólico utilizado
por uma comunidade linguística, são condições de possibilidade de
plena participação social. (BRASIL, 1998, p.19).
Percebe-se claramente nas formulações linguístico-discursivas das professoras,
nas respostas dadas, que estes entendimentos sobre a língua(gem), a língua escrita e
conceitos a ela relacionados são presentes, o que nos autoriza a dizer que essas
professoras falam, umas mais outras menos, a partir de FDs que compreendem o estudo
91
da linguagem sob estes viéses que ora se apresentam e que são preconizados e
recomendados pelos PCNs.
Entretanto, se fazemos o confronto entre estes dizeres e os sentidos apreendidos,
em nosso gesto de interpretação, das próprias práticas das professoras em sala de aula,
de que podemos falar um pouco a partir dos registros feitos (como já abordado no
capítulo anterior), vamos perceber que não são bem as mesmas as significações ali
percebidas, através das práticas rotineiras de sala de aula no trato com a linguagem, das
atividades oferecidas e realizadas (e das não realizadas, que neste caso têm valor
positivo) no ensino aprendizagem do texto escrito, dos discursos proferidos ao tempo
dos momentos expositivos nessas aulas. Para ilustrar um pouco deste confronto,
traremos aqui a descrição de algumas atividades e as trataremos observando as
temáticas que foram desenvolvidas nas questões feitas às professoras e por elas
respondidas, por exemplo, a importância da leitura para a construção do texto escrito.
Apesar da ênfase dada, pelas professoras, à leitura como sério coadjuvante na
construção do texto escrito, não houve, em nossos registros de acompanhamento, uma
regularidade da atividade de leitura nas diferentes salas visitadas: algumas professoras,
com efeito, propõem, sim, atividades mais rotineiras de leitura; isso porém não
acontece, do mesmo modo, em todas as salas.
De modo geral, pode-se dizer que apenas as professoras PE2 e PE4 abriram
maior espaço, em suas aulas, para essa atividade. As professoras PE1 e PE3
restringiram-se apenas à leitura de textos que seriam trabalhados em sala de aula; e a
professora PE5 em nenhum momento apresentou qualquer texto para ser lido em sala de
aula ou para ser trabalhado em casa; e em suas aulas não demonstrava qualquer afeição
à leitura.
A professora PE2, do 7º ano, nos dá um exemplo que consideramos bem
sucedido de atividade de escrita. E esse trabalho se iniciou, efetivamente, com o
trabalho de leitura de Literatura de Cordel, numa atividade já referida em capitulo
anterior. De fato, PE2 trouxe para a sala de aula muitos exemplares de textos em cordel,
e os alunos puderam estar diante do texto, lê-lo e desse modo conhecer e entender
melhor essa Literatura e o gênero textual a que pertence. Após essa atividade em torno
da Literatura de Cordel, a professora solicitou a seus alunos a redação de um texto de
Cordel, e sugeriu a temática de Natal.
O que temos em seguida são textos produzidos por esses alunos, todos com
temática natalina, escritos em forma de versos, com rimas como a literatura de cordel.
92
1 Feliz Natal
O Natal está chegando
É a Época dos presente
De enfeitar árvores e casas
Com estrelas cadentes
Que quando passam no céu
Deixa muita gente contende
Crianças esperam Papai Noel
Anciosas, fizeram cartinhas
Querendo ganhar um presente legal
E pra todas eu desejo um Beijo e um
Feliz Natal
2
Ano Novo
O Ano Novo ta chegando
Chegando para arrasar
Com muitos fogos se estourando
Muito presente vou ganhar
E no meu final de semana
Vou me divertir e me alegrar
Ano novo se passando na ilha
É muita diversão,
Que esteja todos em paz.
E fora de confusão,
Pois no meu Natal e Ano Novo
Tem muita diversão
Feliz Ano Novo!
3
O Natal
Quando o natal chega, eu logo fico
contente com minha família e amigos eu
logo abro os dentes, fico sorrindo sem
parar pós a minha alegria não acaba e
nunca acabará.
O Natal é muito legal ganho presentes,
familia reunida, com pisca-pisca e árvore
de Natal é por isso que o Natal é especial
FIM
93
4
Natal
O natal já vem chegando rapidinho
se aproximando papai Noel traz presentes
e come biscoito com leite quente.
A noite família reunida passa
estrela cadente mas um pedido pra vida
o sino toca e tem a ceia mas um natal
acabando e os anjos nos abençoando.
Esses textos seguem bem a atividade proposta pela professora. Pelo que se
observou, os alunos não tiveram maiores dificuldade em escrevê-los e isso está
possivelmente relacionado ao modo como a professora conduziu essa atividade. Em
primeiro lugar, ela colocou no quadro uma lista de várias palavras relacionadas ao natal
e ao ano novo. Em seguida, apresentou um cordel, retirado da internet, com a temática
do natal e selecionou alguns alunos para lê-lo e essa situação permitiu ao aluno
relembrar as aulas anteriores em que a professora já tinha trabalhado esse assunto. Mais
adiante, ao passar a atividade, a professora relembrou que o cordel é uma narrativa
escrita em versos e que possui rimas e que elas são muito importantes na construção
desse texto. Além disso, a formatação da atividade na folha sugere o gênero que foi
pedido, pois há uma linha não cortada, em que deverá ser colocado o título e mais
abaixo as linhas cortadas onde deverão ser colocados os versos.
Nos textos, vê-se a preocupação do aluno em construir rima e em redigir um
texto com o ritmo do Cordel, dentro da temática do Natal. São, em sua maioria , textos
descritivos e narrativos, com porções de reflexão sobre a festa natalina. Como se pode
constatar, esses textos seguem perfeitamente o modelo de gênero que está sendo
pedido, o Cordel.
Com esta mesma temática do estudo do Cordel, podemos abordar agora um
exemplo que consideramos como um exemplo mal sucedido de ensino-aprendizagem de
texto escrito valendo-se da leitura, ou, melhor dizendo, valendo-se de uma pouca leitura
realizada.
Vamos expor aqui algumas das razões do mal sucedido. Após o pedido da professora,
PE3 – também 7º ano, para redigir o texto de Cordel, a turma demonstra não saber como
fazê-lo e diz que não consegue escrever. A professora insiste para que os alunos escrevam,
alegando que esse assunto foi dado anteriormente. Pelo que se observou em suas aulas
94
anteriores, quando o assunto dado foi o estudo da literatura de Cordel, a professora trouxe
algumas definições de Literatura de Cordel retiradas do livro didático e do dicionário,
apresentou um texto em cordel e analisou algumas palavras do texto que, segundo ela, estavam
relacionadas com a linguagem popular. Essa foi a aula a partir da qual a professora pediu a
tarefa de escrever um texto de Cordel.
Tampouco discutiu nem mostrou como se dá o processo da escrita, objetivo de sua
próxima atividade/tarefa. A professora age como se o conhecimento da construção do texto
escrito estive pressuposto, e os alunos já tivessem o seu domínio, como um produto uno e
acabado. Como colocado anteriormente, a professora tão somente desenhou no quadro algumas
linhas a sugerir os versos e apresentou os temas: saúde, futebol, esporte, família, mulher,
cidade, educação.
Trouxemos aqui alguns textos produzidos por estes alunos nesta aula:
1
Esporte
vou contar para voces uma verdadeira historia de uma moça chamada Ana que pegou gripe suina
Se recuperou e hoje ela joga muita
bola.
O sonho de Ana era ser jogadora
mas por causa de um descuido
dela pegou uma gripe nada
boa.
O problema era que ela não ligou
a coisa foi piorando, é rapidamente
ela desmaiou
A sorte de Ana foi que os familiares
rapidamente correrão para o pronto
socorro. é chegando la cuidarão muito
bem dela é em alguns meses ela se
recuperou
é na realidade O sonho dela se
realizou ela Hoje é uma grande
Jogadora de bola, é nunca mas ela
se descuidou
95
2
Museu
Eu vou te contar uma história
Que com Dany aconteceu
Era ela e a irmã que foram
Assaltadas no museu.
Depois elas foram ver uma amiga
Seu nome era Larissa
E elas contaram tudo que aconteceu
Larissa falou: vocês nos
Vão mais naquele museu
E nem lá elas apareceram.
3
Amor
Vou te contar um historia
De uma menina que já
Gostava de amar.
Ela amava muito suas
Amigas, seus familiares e
Não penssava em namorar...
Mas em um certo dia
Quando ela fo a praia
Ela viu um menino e
O disse Você é Lindo
O menino falou você qué é.
Eles trocaram MSN, ORKUT e telefone
No dia seguinte ele ligou para
Ela para eles saírem e começaram a Namorar
A mãe dela deu o maior apoio
4
Os olhares de Maria
Não sei se é amor
mas queima no peito,
arde na alma
e esquenta o coração
Amor a primeira vista?
Não!
Vivo sonhando em me casar
será que esse dia há de cegar
96
Sonho dia e noite
Com o meu príncipe encantado
Maria! Maria! Maria!
minha mãe volta a chamar
Um dia sonhei que me casaria
acordei alucinada!
tenho que da um
“basta”!
O Pedro da padaria
já me olha diferente
acho que me ama
ou é coisa da minha mente?
Ele tem um olhar
que me faz sonhar
e muitos e muitos
dias á susoirar
há Pedro, há Pedro
seus lábios...
Me faz te...
desejar!
Eu te amo por inteiro
seus olhos, teus labios
seu rosto, teu corpo
simplesmente me
fascina teu olhar
Depois de olhares
catas, bilhetes
mensagens até
em fim ficamos a namorar
uns oito anos de namoro
fomos a casar, nasceu
Julía e Paulo que
hoje não para de brincar
Se compararmos estas produções com a produção dos alunos apresentada
anteriormente, ou seja, os alunos da professora PE2, também do 7º ano, observaremos
mais imediatamente que, principalmente, do ponto de vista da forma, da estrutura do
texto poético, no caso, o Cordel, eles se distanciam: nestes últimos não há muita
preocupação com a escrita ordenada em versos, não há a busca da escrita com rimas,
97
como se observa nos textos anteriores. E pelo fato de não seguirem os temas propostos
pela professora, a liberdade na escolha do tema faz também haver uma variação maior
nesses textos últimos: há aí narrativas em forma de poesia com versificação livre; há
textos poéticos em que predomina a função expressiva da linguagem; há comentários
etc.
Não se vê uma maior aderência ao texto do Cordel solicitado. Isso nos faz
pender para o entendimento de que esta atividade, de fato, foi mal-sucedida, posto que
não conseguiu o seu objetivo, nem mesmo naquilo que é o mais fixo, a estrutura formal
do texto de cordel. O que se obteve desta atividade, em verdade, vem de aprendizados já
adquiridos na trajetória desses alunos. São seus aprendizados anteriores. Não houve um
ganho efetivo que aí se somou.
Esses textos revelam que esses alunos quase nada entenderam sobre Literatura
de Cordel, o que não aconteceu com os alunos da professora PE2 que demonstraram em
seus textos um melhor entendimento da estrutura do Cordel e de sua especificidade.
Vamos ficar somente com estes exemplos de escrita dos alunos, por enquanto.
Deveremos voltar a outras após fazermos a análise das respostas das professoras à
segunda parte da questão.

A segunda parte da questão: o que significa escrever bem?
Essa questão não foi respondida pela professora PE5, mas as outras professoras
responderam. A professora PE1 colocou a resposta da seguinte maneira:
A organização das ideias e a correção gramatical contribuem para o escrever bem. E isso a escola pode e deve ensinar. Mas antes precisa alfabetizar, formar leitores e despertar o gosto pela escrita. (PE1 6ª. série,
2009)
Esses dizeres remetem a uma FD que reconhece o valor do texto a partir de sua
adequação às normas da Gramática Tradicional a qual se fundamenta numa prática
ideológica que reconhece uma cultura letrada baseada no padrão culto da língua. No
ensino tradicional da língua, a escrita alcança um certo grau de importância e se torna
“superior” em relação à fala e, por esse motivo, qualquer desvio na produção do texto
escrito é rejeitado.
98
O discurso da professora reconhece a língua como código, como mero
instrumento de comunicação que atende a objetivos acadêmicos e não mostra nenhuma
aproximação com o sentido sócio-histórico que abarca o entendimento da língua em seu
uso concreto. A professora PE1 coloca também que “a escola pode e deve ensinar” “a
organização das ideias e a correção gramatical”. Sua FD está voltada a uma visão
restrita da língua que a considera um sistema de regras linguísticas de que o sujeito se
apropria conforme suas necessidades comunicativas. Portanto, nesse sentido, a
professora PE1 não leva em conta a perspectiva discursiva da língua que pressupõe seus
aspectos histórico, social e ideológico. Segundo Orlandi (2005), para AD a língua não
se reduz ao jogo significante abstrato, pois para a língua se significar precisa estar
inscrita na história. Nesse sentido, a língua além de ser meio de comunicação é,
principalmente, produto do trabalho de homens que estão envolvidos num processo de
interação social. Na leitura devem ser estudados os diferentes gestos de interpretação
possíveis na materialidade do texto e que só acontecem no momento em que as palavras
produzem efeitos na relação entre os sujeitos e os sentidos.
Para a professora PE2:
Escrever bem é escrever de maneira clara, coesa e coerente, empregando
argumentos que sustentem as ideias que o autor do texto defende, e sabendo utilizar o gênero textual de acordo com a situação social que o
contexto pede. (PE2, 7ª. série 2009).
A resposta da professora PE2 sustenta a ideia da necessidade do estudo do
gênero em sala de aula, além da obediência às propriedades de um texto bem feito
segundo a Linguística Textual, entre outras abordagens: a coerência, a coesão, a
argumentação para dar sustentação ao dito. São conteúdos coerentes também com os
ensinamentos de Bakhtin (1997, p. 303) que afirma que “os gêneros do discurso
organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais
(sintáticas)”
Segundo a professora PE3:
Escrever bem é saber transmitir com clareza sua mensagem, uma ideia
precisa e que principalmente o outro entenda o que está sendo transmitido. Um texto que apresenta coerência a mensagem fica clara e não apresenta dúvida, ou até mesmo interrogações. (PE3,2009).
99
A resposta da professora PE3 enfatiza, de modo semelhante à sua colega PE2, os
aspectos textuais de coerência, clareza e precisão. Seu entendimento permite
compreender a interação verbal também como a transmissão de uma mensagem ao
interlocutor que, de posse do mesmo sistema ou código lingüístico, apreende o que lhe é
dito. Neste sentido, PE3 sintoniza mais com um entendimento de língua como código,
como comunicação, em que os interlocutores tomam parte de modo muito passivo
naquela interação que ali acontece. Não há aí a remissão ao uso ou à situação em que
ocorre o evento linguístico, isto é, a consideração da enunciação.
Nesse sentido, a língua não é vista como interação verbal, como espaço de
interlocução, de constituição de sentidos e sujeitos. A escrita parece ser um simples
exercício escolar a ser implementado (embora não se diga como).
Para professora PE4, tem-se:
Pesquisas mostram que os alunos que têm a liberdade de escrever, confrontar seus erros e acertos, expressar suas opiniões, sem ser criticados, podendo usar a escrita como meio de comunicação entre os interlocutores, de forma clara, com ideias adequadas, reescrevendo sempre
que for necessário os seus textos, possivelmente terão coerência, coesão,
clareza, objetividade, mínimo de erros e estarão escrevendo bem.
(PE4, 2009)
O discurso da professora está ancorado numa FD que reconhece a língua(gem)
realizada e
inscrita num contexto histórico-social e é concebida por meio de um
processo interacional entre sujeitos que usam a língua nas suas mais variadas maneiras
de se comunicar, com o objetivo de expressar seus pensamentos, dar informações,
praticar alguma ação com/sobre o outro. Esse discurso enfatiza que a linguagem se
realiza por sujeitos que interagem a partir de seus lugares sociais os quais são
estabelecidos pela sociedade e, por isso, o discurso da professora PE4 direciona para
uma produção textual escrita que deve ser realizada como uma atividade de reflexão
individual e coletiva.
A professora demonstra que seu objetivo primeiro, em relação à produção escrita
de seus alunos se dá, inicialmente, na consideração do acontecimento da construção do
texto. A seguir, a professora afirma que por meio da reescrita, o quanto for necessário, o
texto alcançará “coerência, coesão, clareza, objetividade, mínimo de erros e estarão
escrevendo bem.” Nestes dizeres fica evidenciado que para escrever e, escrever bem, é
necessário uma prática, quer dizer, escrever até alcançar o objetivo de um texto “ideal”.
100
A prática aqui mencionada inclui o expediente de retorno á escrita ou a reescritura do
texto até atingir um texto “ideal”. Isto é, pensado como ideal. Surge aqui algo de novo
em relação aos outros dizeres estudados. Voltaremos à questão mais adiante.
Revendo o quadro das respostas obtidas, dos quatro dizeres que aqui foram
trazidos como resposta à segunda parte da pergunta feita, podemos já estabelecer
algumas diferenças entre essas professoras no que diz respeito a seus entendimentos
sobre o que seja língua, linguagem e língua escrita, por um lado; e por outro, o que seja
o ensino de língua materna e como ele deve acontecer.
Como anteriormente, a alusão aos PCNs é prevista também aqui e, do mesmo
modo, são várias as passagens daquele Documento que podem fundamentar os dizeres
dessas professoras, ou de quase todos. Senão vejamos:
Pode-se dizer que, apesar de ainda imperar no tecido social uma atitude
“corretiva” e preconceituosa em relação às formas não canônicas de expressão linguística, as propostas de transformação do ensino de Língua
Portuguesa consolidaram-se em práticas de ensino em que tanto o ponto
de partida quanto o ponto de chegada é o uso da linguagem. Pode-se dizer que hoje é praticamente consensual que as práticas devem partir do
uso possível aos alunos para permitir a conquista de novas habilidades
linguísticas, particularmente daquelas associadas aos padrões da escrita.
(BRASIL, 1998, p. 18).
De fato, até o momento ainda não foi flagrado nos nossos dizeres estudados, remissões
a este tipo de comportamento e de ensino-aprendizagem tão difundido entre nós, qual seja o de
corrigir as formas da língua não compatíveis com o seu padrão culto por acaso proferidas por
nossos alunos em sala de aula; ou constituindo seus textos escritos. Até o momento o que se vê,
nestas formulações discursivas, são recursos às práticas do aluno, as quais devem partir do “[...]
uso
possível
aos
alunos
para
permitir
a
conquista
de
novas
habilidades
linguísticas, particularmente daquelas associadas aos padrões da escrita”.
De um modo geral, há uma certa sintonia entre estes vários dizeres aqui
abordados. Os discursos que aí se podem depreender apontam todos eles, mais ou
menos, para os mesmos sentidos. Mas, não totalmente; ou seja, há elementos iguais e há
elementos diferentes nesses discursos. Não acontece, então, aqui uma identidade total,
oriunda de uma FD fechada, una; há alguns distanciamentos entre essas posições, o que
nos autoriza a dizer que as professoras buscam no interdiscurso de suas formações
discursivas aquilo que podem e devem dizer sobre a questão da língua escrita e de seu
aprendizado.
101
Em relação ao último ponto comentado (a última parte da questão do primeiro
questionário), por exemplo, pode-se já estabelecer um ponto de ruptura. Este é o ponto
de distanciamento entre PE4 e as outras professoras. Em seus dizeres, rompendo com os
dizeres anteriores, a professora PE4 introduz a noção de reescritura do texto, como
importante na produção do texto escrito. Dir-se-ia que aqui há uma ruptura na fala mais
usual encontrada entre os professores de Língua Materna, especialmente relativa ao
ensino-aprendizagem de construção de textos em língua escrita: a possibilidade de fazer
e refazer o texto, considerando que “reescrevendo sempre que for necessário os seus
textos, possivelmente terão coerência, coesão, clareza, objetividade, mínimo de erros e
estarão escrevendo bem” (PE4, 2009). Admitir este olhar sobre o processo de ensinoaprendizagem do texto escrito significa compartilhar conhecimentos presentes não só
nos PCNs mas em tantos outros autores aqui trazidos, como por exemplo, Possenti
(2005) que afirma que a escola precisa trabalhar alguns pontos básicos em relação a
levar o aluno a escrever bem e, dentre tantos, está a “prática de escrita constante, várias
vezes ao dia, todos os dias: narrativas, comentários, resumos, paródias, paráfrase, diário,
cartas, bilhetes etc” (POSSENTI, 2005, p. 23).
Passemos agora às respostas das professoras ao segundo questionário e suas três
questões.
3.2.2
O segundo questionário: outras questões
Este questionário foi aplicado no final do ano letivo e a professora PE2 não o
respondeu. Ele visa reconhecer, pelas materialidades discursivas aí colocadas, quais os
sentidos que são levantados em relação:

À prática de reescritura em sala de aula.

À avaliação do desempenho do aluno em relação à escrita durante o ano.

À influência da escrita na aprovação ou reprovação do aluno.
A primeira questão constante deste questionário é a seguinte:
Qual a sua avaliação sobre o desempenho de seus alunos (os que
participaram da pesquisa) em relação à escrita em sala de aula no ano de 2009?
As respostas foram as seguintes:
102
A avaliação é um processo. No início do ano detectei que os alunos escreviam de forma ilegível, trocavam letras (f por v, b por p) e continuei diagnosticando e buscando estratégias para melhorar as aulas. Após ver dicas
de colegas alfabetizadores, fiz uma reunião com a turma para uma autoavaliação. Planejamos as atividades de leitura e escrita para cada unidade
e o resultado final foi muito bom. (PE1, 6ª. série 2009)
A princípio acredito que todos tenham condições de se desenvolverem,
claro que respeitando suas particularidades. A turma em análise trata-se de
estudantes que na sua maioria são repetentes por duas ou três vezes na série e apresentam muita dificuldades na leitura e consequentemente na escrita. Em relação à escrita estão avançando, pois no início do trabalho tinham resistência em escrever e no decorrer do ano letivo não percebia
mais esse aspecto. Já os outros continuam avançando e acredito que seja
fundamental para eles mais leituras e mais incentivo para que continuem produzindo texto. (PE3, 7ª.série 2009)
Foi satisfatório. A escrita fluiu bastante e o aluno adquiriu um poder de argumentação na reestruturação dos seus textos. (PE4, 8ª. série 2009)
Os alunos apresentaram um baixo nível em relação à escrita. Tinham dificuldade em se expressar, porém com o passar das aulas e o treinamento
constante eles melhoraram muito. Se não saíram excelentes produtores,
pelo menos conseguiram expor suas ideias com clareza. (PE5, 8 e 9ª
séries 2009)
Como no questionário anterior, as respostas também foram variadas e, neste
sentido, outras questões são trazidas. Em primeiro lugar, pode-se perceber que para as
professoras PE1, PE3 e PE5, no início do ano letivo, seus alunos apresentaram
dificuldades em produzir textos em sala de aula e, segundo elas, essas dificuldades
estavam diretamente relacionadas a:
PE1 – Erros ortográficos
PE3 – Dificuldades na leitura
PE5 – Dificuldades em se expressar
A professora PE1 afirma ter detectado, no início do ano letivo, que seus alunos
escreviam de forma ilegível e trocavam letras. A partir daí, ela buscou resolver essa
questão pedindo orientação aos seus amigos alfabetizadores. O discurso da professora
reflete um saber da língua que preconiza que para alguém escrever bem é preciso
dominar bem a questão ortográfica, escrever corretamente – e isso significa que domina
103
a ortografia, que domina o idioma e, consequentemente, a norma de prestígio. Quando
se diz que o aluno sabe escrever, a ideia é de que ele domina bem a ortografia. Segundo
Possenti:
Na linha de valorização de certos índices, a ortografia funciona como um
distintivo: quem conhece passa por sabido, quem não a conhece, por incapaz (não apenas ignorante, mas incapaz). Por isso, nas escolas, insiste-se
tanto na ortografia, especialmente nos primeiros anos de escola. Parece
que pouco importa que se leia ou se escreva relativamente pouco. O importante é que um aluno não tenha problemas ortográficos. Alunos são reprovados aos milhares com base na ortografia que praticam. (POSSENTI,
2005, p.7-8)
A formulação discursiva da professora PE1 se enquadra perfeitamente nessas
reflexões de Possenti. O saber da ortografia é prioritário. No entanto, o entendimento
que circula no meio educacional, principalmente após a elaboração dos PCNs, revela
que esse discurso foi redirecionado. Ou seja, houve uma transformação que possibilitou
uma reinterpretação na forma institucionalizada de alfabetizar. Os PCNs (2000) dizem
que em relação à área de Língua Portuguesa, no ensino tradicional, havia dois estágios:
o primeiro seria o que já se chamou de “primeiras letras”, hoje alfabetização, e o
segundo, aí sim, o estudo da língua propriamente dita (BRASIL, 2000, p.33).
Após a reinterpretação, o que os PCNs chamam de “revisão metodológica”
(BRASIL, 2000, p.33), foi dito que esses dois estágios “podem e devem ocorrer de
forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza
notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à aprendizagem da linguagem que se
usa para escrever” (Brasil, 2000, p.33).
Apesar de reconhecer o processo da escrita alfabética, os PCNs (2000) afirmam
que isso não garante ao aluno a possibilidade de compreender e produzir textos em
linguagem escrita. Segundo os PCNs:
Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos verdadeiros, com leitores e escritores verdadeiros e com
situações de comunicação em que os tornem necessários. Fora da escola
escrevem-se textos dirigidos a interlocutores de fato. Todo texto pertence
a um determinado gênero, com uma forma própria, que se pode apreender. (BRASIL, 2000, p.34)
Então, pelo que se pode observar, os PCNs destacam que ensinar a escrever não
se reduz ao processo da escrita alfabética, mas está diretamente relacionado ao fato de
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levar para sala de aula textos verdadeiros, quer dizer, textos que fazem parte da prática
de uso da linguagem da cada sujeito e para isso os PCNs enfatizam a importância do
gênero discursivo.
Retornando à resposta da professora PE1, verifica-se que sua posição em relação
ao desempenho de seus alunos na escrita destaca apenas o fato de escreverem
corretamente, do ponto de vista ortográfico e, mais uma vez, ela destaca a importância
da leitura. Como se pode observar, seu discurso está atrelado a uma FD que se baseia no
ensino tradicional e não reconhece as novas formas que os PCNs trazem para
redirecionar esse ensino. Sua fala traz à tona uma questão antiga, mas que ainda
predomina nas aulas de Língua Portuguesa em nossas escolas, que são as dicotomias de
avaliação e correção da língua: língua “correta” e “errada”, “oficial” e “não-oficial”,
“autorizada” e “não-autorizada”. Essas dicotomias estão ajustadas a uma escola que por
sua vez está ancorada numa ideologia de prestígio da norma culta da língua. Esse
entendimento contribui para que o aluno não se aproprie da linguagem enquanto
possibilidade de todas as suas variações quer sejam culturais, históricas e regionais.
Para Possenti (2005), há razões de natureza variada e mais complexa a se impor
no enfrentamento a esses “erros” dos alunos2. Segundo Possenti (2005, p.6), “quase
nunca os erros são sintomas de burrice, desinteresse ou problemas de ordem médica,
mas efeitos da variedade da representação escrita”. Logo, parte desses problemas advém
das variedades linguísticas faladas e que se “refletem de alguma forma na escrita”
(POSSENTI, 2005, p.6).
Essa questão é muito relevante, pois, normalmente, quando um texto é corrigido,
a primeira coisa que o professor faz questão de ressaltar (com caneta vermelha) é a
grafia errada. É como se o aluno fosse proibido de ter esse tipo de erro já que ele está
em determinada série, o que demonstra que tal erro é inadmissível. No entanto, não é
bem assim que acontece, pois, como já foi abordado acima, o aluno tem uma vivência
linguística em que predomina a oralidade, e ele precisa se aproximar mais da estrutura
do texto escrito.
Retornando à questão sobre o desempenho de seus alunos em relação à escrita, a
professora PE3 diz que apesar de seus alunos serem repetentes duas ou três vezes, ainda
2
São os seguintes: 1º A falta de uniformidade na correspondência entre som e letra (j ou g;; ss ou ç etc.);
2º A diferença de pronúncia de certos segmentos (troca de e por i; o por u; l por u; u por l; l por r; r por
l); 3º Variação mais ou menos significativa entre forma dicionarizada e a regional (eucaliptal e calipal ou
calipar; choupo ou chope); 4º A questão da separação ou não de certas partículas (porventura/de
repente; em cima/embaixo; a partir/apesar etc.). (POSSENTI, 2005, p. 16)
105
apresentam muitas dificuldades na leitura e, consequentemente, na escrita. Segundo
este saber, a leitura é que pode levar a uma boa escrita, ficando implícito que um texto
para ser considerado perfeito deve seguir modelos de textos “clássicos”, de autores
consagrados e que seguem a um determinado gênero.
A professora PE5, por sua vez, admite que seus alunos “apresentam um baixo
nível em relação à escrita” e isso acontece porque eles “tinham dificuldades em se
expressar”.
Acontece aqui, mais uma vez, como já acontecera anteriormente, nas aulas das
professoras PE1 e PE3, uma contradição entre o discurso praticado também pela
professora PE5 e sua prática pedagógica cotidiana nas escolas: as professoras estão
munidas de um conhecimento teórico mais sintonizado com as últimas reflexões e
pesquisas em torno de linguagem, modalidades de língua e ensino/aprendizagem de
língua materna; entretanto esse saber ainda se encontra configurado como conhecimento
não efetivamente incorporado. As práticas em torno ao ensino e aprendizagem da língua
materna não se fazem efetivamente tendo tais conceitos como fundamento. É o que se
pode perceber pela constatação de um distanciamento entre os posicionamentos
discursivos nestes dizeres trazidos nos questionários e a interpretação das práticas
cotidianas aqui registradas.
Voltando ao segundo questionário, a segunda questão é a seguinte:
Em algum momento, durante o ano de 2009, ao corrigir um texto produzido
pelo seu aluno, foi permitido que ele reescrevesse o seu texto? Se isso aconteceu, o
que você percebeu com a reescritura do texto? Caso isso não tenha ocorrido, quais
foram os motivos que não permitiram essa reescritura?
Abaixo, seguem as respostas das professoras:
Toda atividade de produção textual sempre foi seguida pela reescritura.
Antes de pedir que reescrevessem o texto, cada aluno era convidado individualmente para a correção do seu texto e em seguida o aluno reescrevia o texto. A primeira impressão dos alunos era de choque, porque nunca tinham tido oportunidade de corrigir o texto inteiro com o professor.
Os alunos tinham mais prazer em reescrever o texto, após entender a necessidade da tarefa. (PE1, 2009)
Em relação à reescrita do texto alguns alunos fizeram a reescrita na íntegra, principalmente os alunos que apresentam um nível melhor de apren-
106
dizagem. Na sua grande maioria os alunos reescreveram o texto como foi
corrigido, porém vale ressaltar que apresentaram ainda sim, alguns erros.
Nesse mesmo grupo estão aqueles que em outro momento de produção
textual cometeram os mesmos erros e que pareciam totalmente alheios as
suas produções que foram corrigidas anteriormente. (PE3, 2009)
Sim, porque é dessa forma que a escrita flui. A reescritura é importante
porque permite que o aluno reveja o seu discurso, a organização do seu
pensamento, a empregabilidade das regras gramaticais e ortográfica.
(PE4, 2009)
Sim, eles fizeram reescrita. Quando ocorreu a reescrita percebi que melhoraram o texto, pois podiam perceber os erros destacados. No próximo
trabalho já evoluíam mais e tinham mais cuidado com a ortografia.
(PE5, 2009)
Todas as respostas apontam para a realização da atividade de reescritura como
importante para a produção escrita e informam que os alunos realizaram as atividades de
reescritura. De modo geral, os discursos flagrados nestas materialidades linguístico-
discursivas apontam para a importância da reescritura na confecção do texto escrito e
indicam a realização das atividades de reescritura em suas salas de aula. Para a
professora PE4 a reescritura é vista, nas formulações, como o momento de reorganizar o
pensamento, rever o discurso, e fazer a correção das formas gramaticais. Para as demais
professoras, a reescritura é vista como a correção dos erros ortográficos; ou então se
menciona reescritura sem precisar exatamente o que isso significa.
Excetuando-se, em certa medida, a fala de PE4, não há nessas passagens uma
abertura para a compreensão de reescritura como o fazer do texto escrito repetidamente
para que se tenha maior naturalidade no processo de construção da escrita, no domínio
de suas estruturas, não tão iguais às estruturas da linguagem coloquial/oral que o aluno
pratica normalmente.
O discurso da professora PE1 se apóia numa formação discursiva que legitima
uma prática que contribui para o desenvolvimento individual do aluno em relação à
escrita. Pelo que se pode perceber, antes de o aluno reescrever seu texto, é convidado
para estar diante da professora e, com ela, averiguar seus erros e corrigi-los. O fato de a
professora “convidar” o aluno leva a um entendimento de ser a docente avessa a uma
visão estereotipada de simplesmente corrigir o texto e devolvê-lo para que o aluno possa
copiar o que foi corrigido. Segundo esses dizeres, espera-se uma prática pedagógica
interativa, em que o sujeito/aluno não é visto como mais um na sala de aula; ao
107
contrário, ele é único e, por essa razão, precisa ser chamado individualmente. E que
este contacto mais próximo junto ao aluno permitirá uma recuperação mais atenta e
detalhada do texto escrito pelo estudante.
Entretanto, nas análises das práticas por nós vivenciadas nas salas de aula destas
professoras, vamos constatar pouca compatibilidade entre os dizeres produzidos nos
questionários, que estamos analisando, e a forma como as aulas eram conduzidas por
elas, na realização dos seus ensinamentos e das atividades. Cabe dizer que essa relação
de pouca compatibilidade se apresenta mais forte em algumas professoras, menos
expressiva em outras docentes visitadas.
Há uma aula da professora PE1, a qual mostraremos a título de ilustração, na
qual ela explica que a turma participará de um amigo secreto e que haverá um cartão a
ser feito com a professora de arte. O texto para ser colocado no cartão será redigido
então naquele momento. Ela ainda explica que a mensagem do cartão será direcionada
aos colegas da turma e às professoras presentes. Ela define algumas regras para a
produção do texto e coloca no quadro:
1 – Só vamos falar de coisas boas
2 – Não escrever o nome da pessoa. Colocar sempre MEU AMIGO SECRETO
3 – Fazer uma retrospectiva do ano.
A professora PE1 estabelece o número de linhas (5 a 10 linhas no máximo) e
pede para os alunos escreverem num rascunho. Mais tarde ela avisa que quem for
terminando o texto, é para levá-lo para ser corrigido. Os alunos escrevem e levam até a
professora para que ela faça a correção e então eles possam fazer a reescritura. E a
correção se faz pela colocação da palavra escrita nas laterais do texto, aqui transcritas
entre parênteses após a palavra:
Texto 1
Amiga secreta
Oi amiga (Amiga), eu gosto muito de
você mais (mas) você não liga
para mim sabe, mes (para mim. Eu ) gosto
de você, por você (porque você) é uma Amiga
de verdade, fala coisa (coisas) que eu
gosto e muito de você (gosto. Gosto) muito de você.
108
Texto 2
Meu Amigo secreto
você é uma pessoa muito
alegre, extrovertida e brincalhona
pelo que eu vejo nos teus
olhos. continui cendo a pessoa
doce e amavel que você é.
Que (que) você teha (tenha) um
bom natal(,) junto com
a sua familia (família) (,) que você
para (pare) para refleti (refletir) (,) pensa (pensar)
em você para voutar (voltar) uma
pessoa renovada (.)
O que se percebe nos textos acima, é que sua reescritura está voltada
principalmente para a correção ortográfica do texto, e ainda assim, no segundo texto, a
professora não fez a correção total. Mais uma vez fica nítido que PE1 desenvolve uma
prática de ensino-aprendizagem da língua materna muito orientada, ainda, pela força do
sistema formal da norma culta da língua e da ortografia. Este não é absolutamente o
sentido de reescritura pensado por Possenti (2005), por exemplo, ou o que dizem os
PCNs, em inúmeras passagens aqui já abordadas.
A professora PE3 enfatiza que “na sua grande maioria os alunos reescreveram o
texto como foi corrigido, porém vale ressaltar que apresentaram ainda sim, alguns
erros” (PE3, 2009). Verifica-se nesse discurso que a professora considera a reescritura
como meio apenas para o aluno perceber seus erros relacionados às unidades básicas da
língua – as letras, as sílabas ou as palavras – e quase nada difere dos rascunhos.
Que reescritura é essa pensada, então por nossas professoras? Ou, pelo menos,
por algumas das professoras? A atividade de PE1 acima é uma atividade não de
reescritura mas de correção do texto do aluno, no que diz respeito às suas falhas
ortográficas. E um ou outro aspecto de pontuação. Na reescritura, segundo Passareli
(2004, p.94) “o aluno examina os aspectos voltados a: adequação ao que a língua escrita
convenciona, exatidão quanto ao significado, e, tendo em pauta o leitor, acessibilidade e
aceitabilidade”. Portanto, reescrever não é apenas corrigir os erros ortográficos, mas
possibilitar ao aluno outras oportunidades de escrever seu texto: modificando algumas
partes; inserindo novas ideias; retirando alguns parágrafos; revendo o conteúdo quanto à
sua coerência; examinando a capacidade de aceitação pelo leitor etc.
A professora PE4, ao responder sobre o processo de reescritura de seus alunos,
afirma que “a reescritura é importante porque permite que o aluno reveja o seu discurso,
109
a organização do seu pensamento, a empregabilidade das regras gramaticais e
ortográficas” (PE4, 2009). A reescritura, aí, permite um diálogo entre o sujeito/aluno e o
próprio texto para uma maior visibilidade dos equívocos em relação aos aspectos
linguísticos e discursivos do texto. Além disso, a reescritura leva o aluno a compreender
a escrita como conjunto de práticas que está inserido nas mais variadas ordens através
de seus gêneros. O entendimento de PE4, por suas respostas no questionário, aproximase ao que Possenti (2005) e Passarelli (2004) dizem quanto ao processo de reescritura.
Para esses autores, a reescritura do texto, quantas vezes forem necessárias, possibilita ao
aluno condições de se deparar com o texto, avaliá-lo e proceder aos ajustes necessários
para o seu processo final.
É importante ressaltar que no período das aulas assistidas da professora PE4,
seus alunos (8º Ano) não efetuaram o processo de reescritura; entretanto, não se pode
afirmar que não tenham feito em um outro momento. Pois, como ela mesma afirmou
anteriormente, “essa turma está comigo desde o 6º ano e, se Deus quiser, continuará
comigo no 9º ano” (PE4, 2009). Pelo que se observa, seus alunos conseguem elaborar
bem um texto escrito e isso, presume-se, não acontece de um dia para o outro. Em
algum momento de sua vida escolar, eles tiveram uma prática que permitiu a eles, hoje,
produzirem textos tais como:
Texto 1
Lugar de criança
É nos parques
Não na colheita
Lugar de criança
É na grama
A rolar
A olhar as estrelas
Da navalha da colheita
Traz o pranto
Do amor de uma mãe
Traz candura
No sol quente da plantação
Esperança que perdura
Coração pequeno mal amado
que flores e buquês de esperança
Já 100 vezes
ás colocou ao teu lado
Oh pai que salva esse mundo
Salva as crianças
Desse mundo
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Dessa tristesa
Dai a beleza
Limpa a alma
Limpa o mundo
Texto 2
Trabalho infantil – proibido
e ignorado
No país em que vivemos as crianças
estão expostas ao trabalho infantil,
porque muitos pais não podem pagar uma
creche e a renda familiar é pouca ou
inesistente. Elas são obrigadas a
trabalhar muito e ganhar pouco, mas
lutam para conseguirem algum
dinheiro para que seus pais possam
comprar o almoço pouco, mais que
vai ajudar a matar a fome deles. Como
exemplo, estão aqui na cidade, os
moradores das ruas de Salvador, que
reciclam materiais para ganharem
um trocado, para alimentarem a si
e a seus familiares, para conseguirem
sobreviver.
Texto 3
O ECA tem uma lei proibindo que as crianças
trabalhem, mas na minha opinião tem que proibir
mesmo porque lugar de criança e adolescente é na escola.
Aonde moro tem meninos trabalhando nas oficinas
mais as vezes tem necessidades em casa e tem que
trabalhar para se alimentar, e alimentar os demais.
Criança tem que estar na escola tem o direito de ter um
Ensino, uma aprendizagem melhor.
E espero que isso mude.
Esses textos foram escritos num momento de prova e não havia espaço para
rascunho. Os alunos do 8º ano produziram seus textos numa única vez e o resultado foi
muito bom, pelo que podemos observar. Apenas o texto 1 foge do tipo de texto que a
professora pediu, mas não deixa de trazer em seu conteúdo a opinião do eu poético. Não
podemos afirmar o quanto a prática da reescritura tem influência na produção desses
textos, mas pode-se dizer, sim, que esta turma tem uma relação melhor fundamentada
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com a língua escrita, e que seus alunos produzem textos escritos de melhor qualidade,
sobretudo quando comparados com outros textos de outros alunos aqui trazidos, mesmo
os que estão no mesmo nível serial.
A professora PE5 diz que seus alunos “fizeram reescrita. Quando ocorreu a
reescrita percebi que melhoraram o texto, pois podiam perceber os erros destacados. No
próximo trabalho já evoluíam mais e tinham mais cuidado com a ortografia” (PE5,
2005).
Os alunos do 8º ano, da professora PE5, em nenhum momento produziram
sequer um texto em sala de aula. Em relação à sua outra turma, a do 9º ano, o que se viu
no período em que foram assistidas as aulas, foi a solicitação de redação de um texto
como tarefa de casa. Os alunos deveriam fazer uma pesquisa, na internet, sobre o
Samba, e fazer um texto. A aula aconteceu no dia 18/11/2009 e logo no início a
professora avisa que a turma irá escrever um texto sobre a origem do samba. Ela coloca
no quadro:
PRODUÇÃO DE TEXTO
A ORIGEM DO SAMBA. Mínimo 15 linhas
Ela lembra a turma que eles já fizeram a pesquisa na internet e que ela também
já falou sobre esse assunto nas aulas anteriores e que agora eles vão escrever um texto
sobre esse assunto. Alguns alunos afirmam que ainda não fizeram a pesquisa e a
professora avisa que quem não fez a pesquisa irá ficar sem nota. Os alunos ficam
chateados e começam a desarrumar a sala, passam a brincar e param de escrever. De
repente, inicia-se um “diálogo”:
Carla
– A minha casa não tem samba, só tem rock.
Professora – Vocês não vão fazer não?
Carla
– Ninguém se interessa aqui não, professora.
Bruna
– Eu entendo sobre Sepultura, Pitty, Michel Jackson.
Eu não sei samba.
Os alunos ficam inseguros para fazer o texto e dizem que não sabem nada de
samba. A professora lembra que na aula passada ela falou sobre esse assunto e que
agora eles precisam escrever porque vale nota para a 4ª unidade. Uma aluna diz que já
está passada e que não vai escrever. Os alunos passam a conversar entre si para saber se
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alguém tem anotado alguma coisa da aula passada e a professora senta e começa a
preencher o diário, faz a chamada, mesmo com a turma conversando. Alguns alunos
iniciam o texto e depois de um tempo:
Manoela – Pró, eu já fiz! O que é MPB?
Professora – Música Popular Brasileira.
A seguir há um contratempo na sala de aula e a vice-diretora aparece e tenta
resolver a questão. A aula termina e os alunos avisam que irão fazer o texto em casa e
que entregarão na próxima aula.
Não houve mais aula, mas a pesquisadora encontrou-se com a professora e
conseguiu tirar cópias dos textos dos alunos. Na semana seguinte, dois alunos
encontraram a pesquisadora e ela lhes perguntou se tinham feito a prova da IV Unidade.
Os alunos informaram que não houve prova e que a professora aproveitou os textos que
eles fizeram sobre o samba para dar a nota da prova. Eles disseram que estavam com os
textos e perguntaram se ela os queria, ela disse que sim e perguntou se poderia tirar uma
cópia. Na mesma hora cada um entregou seu texto e disseram que ela poderia ficar com
eles. Abaixo estão alguns textos dos alunos e algumas cópias tiradas das redações dos
alunos fornecidas pela professora:
Texto I
“Produção de texto”
MPB surgiu ainda no período colonial brasileiro, apartir da mistura de vários estilos. Entre
os séculos XVI e XVIII, misturou-se em nossa
terra, as cantigas populares, os sons de origem
africanas, fanfarras militares, músicas religiossas e músicas eruditas européias.
O lundu e a modinha. O lundu, de origem
africana, possuía um forte caráter sensual e
uma batida rítmica dançante. Já a modinha, de
origem portuguesa, trazia a melancolia e falava de
amor numa batida calma e erudita.
Nesta época, no cenário rap destacam-se: Gabriel o Pensador, O Rappa, Planet Hemp, Racionais
Mcs e Pavilhão 9.
O século XXI começa com o sucesso de grupos
de rock com temáticas voltadas para o público adolescente. São exemplos: Clarlie Brown Jr.
Skank, Detonautas e CPM22.
113
Texto II
“Produção de texto”
O samba começou a tomar forma com
a participação, principalmente de mulatos
e negros ex-escravos.
Com o crescimento e popularização do
rádio nas décadas de 1920 e 1930 a música
popular brasileira cresce ainda mais. Nesta
época inicial da brasileira, destacam-se
os seguintes cantores e compositores:
Ary Barroso, Lamartine Babo (criador de O
teu cabelo não nega), Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues e Noel Rosa. Surgem também
os grandes intérpretes da música popular
brasileira: Carmem Miranda, Mauro Reis e
Francisco Alves.
A música popular brasileira (MPB) é um
gênero musical brasileira
Texto III
“A origem do “Samba”
O samba teria surgio por inspiração de um ritimo africanocom a diversidadcultural mesmo dentro da raça negra
no Brazil. era bastante notavel porque os senhores de
escravos escolhiam aletoriamente seus indivíduos, e isso tamto
fez separarem tipos africanos afins, pertencentes a uma mesma
tribo.
O samba de roda também é muito semelhante como
o jongo. Samba de roda é uma variante musical
mais primitiva do samba, originário do estado brasileiro da Bahia, provavelmente no seculo XIX.
O samba de roda é um estilo musical Tradicional
afro-brasileiro, associado a uma dança que por sua
vez está associado à capoeira. É tocado por um conjunto
de pandeiro, atabaque, birimbau, viola e chocalho, acompanhado
principalmente por canto e palmas.
Texto IV
O Samba
Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O mrro foi feito de samba
De samba pra a gente sambar.
Antes de medespedir
Deixo ao sambista
114
Mais novo o meu pedido
Final: Não deixe o Samba Morrer...
A música “Não Deixe o Samba Morrer”.
é muito linda, pois fala do nosso
Brasil de como o samba é importante
para todos.
A letra é uma maravilha
e quem a escuta gosta de cara.
Isso é o que O Brasil gosta:
O SAMBA!
Texto V
Produção de texto
O samba teria surgido por inspiração
de um ritimo africano, teria sido formado
a partir de referências de diversos ritmos
tribais africanos.
Exemplo:
samba-reggae = é um gênero musical nascido
no estado nordestino da Bahia, que em alguns anos
atrás as pessoas considerava MPB ou Pagode Baiano.
Nasceu da difusão do Samba Comum ou do
Partido Alto que é o estilo dos grandes mêstres do samba.
O samba-reggae apresenta dois tambores,
um pandeiro, um atabaque, uma guitarra ou
viola eletrônica no lugar do cavaquinho, com
forte influências di Merengue e do Olodum.
Para a professora PE5 seus alunos têm condições de escrever um texto sobre o
“Samba” porque esse assunto foi falado por ela nas aulas anteriores e os alunos fizeram
uma pesquisa sobre esse assunto na internet. Ou seja, eles possuem informações
suficientes sobre o samba para colocarem em seus textos. Nesse sentido, a FD
discursiva da professora se baseia numa ideia de que a língua, por ser um código
linguístico, propicia aos seus usuários condições para elaborarem qualquer texto a partir
do conhecimento e do domínio que têm de sua estrutura linguística aplicado ao assunto
que eles conhecem.
No entanto, não é bem assim que acontece e isso é constatado no momento em
que os alunos vão escrever seus textos e não conseguem. Os alunos pedem para escrever
115
outro estilo musical, como o rock, pois eles conhecem muito bem, mas não podem fazer
isso, pois o texto pedido é sobre o samba. Segundo Marcuschi (2001, p. 43), “os
sentidos e as respectivas formas de organização linguística dos textos se dão no uso da
língua como atividade situada. Isto se dá na mesma medida, tanto no caso da fala como
da escrita”. Nesse sentido, a língua não é um produto unilateral e passivo que
proporciona ao seu usuário práticas descontextualizadas, pois seu trabalho envolve um
processo interativo que permite ao sujeito enxergar a língua como objeto social e que
seu significado se dá a partir de seu uso concreto. Então, quando a escrita não possui
relevância para o sujeito, nesse caso, os alunos, sua prática não considera a linguagem
como prática social.
Assim, nas aulas da professora PE5, mesmo tendo ela dito que a reescritura
aconteceu e que seus alunos evoluíram mais na escrita por causa desse processo, na
verdade não pudemos comprovar essas atividades.
A terceira questão é:
Em relação ao resultado final da disciplina, todos os alunos foram aprovados?
Caso tenha tido alguma reprovação, a escrita desse aluno teve influência nesse
processo? Justifique.
Nem todos os alunos foram aprovados,justamente por conta desse processo. Esses alunos não conseguiram melhorar o seu desempenho em relação
as habilidades de leitura e escrita. (PE1, 2009)
Alguns alunos foram aprovados por mérito e um outro grupo foi aprovado pelo Conselho de Classe. Enquanto professora conheço as dificuldades desses alunos em relação à escrita, mas acredito que a reprovação não
seria o caminho, pois já são alunos fora da faixa etária e totalmente desmotivados para cursar mais uma vez a 6ª série. (PE3, 2009)
Não. Alguns ficaram retidos porque eram alunos faltosos. A falta influenciou bastante no desempenho e no processo de ensino aprendizagem.
(PE4, 2009)
Sim. Todos foram aprovados, muito embora a dificuldade fosse grande
na escrita, eles conseguiram superar. (PE5, 2009)
Em todas as respostas observa-se o valor e a importância dados à competência
da escrita e o seu peso na avaliação e na promoção destes alunos em sua trajetória
escolar. Segundo as professoras os “... alunos não conseguiram melhorar o seu
116
desempenho em relação ás habilidades de leitura e escrita”; “... conheço as dificuldades
desses alunos em relação á escrita...” ou “Todos foram aprovados, muito embora a
dificuldade fosse grande na escrita eles conseguiram superar”. Se não houve reprovação
atribuída a essa dificuldade, como parece ser o caso nos dizeres das professoras PE3 e
PE5, as professoras apontam essa dificuldade e a colocam sim, como um elemento
possível de inibição e de proibição efetiva de promoção de uma série para outra. Ou
seja, a escrita é um objetivo a cumprir no processo de ensino-aprendizagem da língua
materna e o insucesso no domínio desta modalidade de língua pode levar o aluno a ficar
retido em uma série escolar.
Entretanto, vale observar que ainda que as professoras apontem para as
dificuldades de seus alunos no que diz respeito à escrita, eles são promovidos, em sua
maioria, tendo somente a PE1 declarado que alguns de seus alunos foram reprovados
por esta razão. Há algo então que precisa ficar mais claro neste quadro que aqui se
desenha. De um lado, estamos com professores que se posicionam de modo geral
apontando para o insucesso de seus alunos no desempenho da língua escrita; apesar
disso, esses alunos logram promoção escolar; de outro, a consideração de que o domínio
da modalidade de língua escrita, a construção do texto escrito, é um dos objetivos da
escola, sem o qual não se pode considerar uma boa escolaridade (nesse sentido, a
promoção desses alunos é certamente uma forma enganadora de se encarar o problema e
que só pode levar ao prejuízo da escola, de modo geral, do aluno e da sociedade); por
fim, ainda, temos as produções escritas dos alunos que aqui foram mostradas,
apresentando, certamente, muitos exemplares com problemas em sua construção, mas
também textos com acertos e até com criatividade.
Em nosso entender, há, em um primeiro olhar, um entendimento pouco claro
sobre o que seja efetivamente um bom texto: alguns dos exemplos aqui trazidos
mostraram pouco domínio de ortografia, sem dúvida, assim como pouco conhecimento
do uso da pontuação e outros aspectos normativos; mas são textos com domínio de
fluência da língua, claro, considerando-se o nível de aprendizado em que se encontram
esses alunos. Este domínio do que estamos chamando aqui de fluência, aparece, às
nossas professoras sujeitos desta pesquisa, completamente opaco, sem visibilidade. As
professoras não vêem e não consideram estes produtos.Vejam-se aqui alguns desses
textos e o que nos causa, de início, estranheza
117
Texto 1
Sara de Almeida Fiais, tenho 16 anos nome da minha Gildete de
Almeida Novais minha infância foi muito alegre e divertida
super legal minha família e normal de vez emquando tem suas
discusões gosto de sair pra shoes e festas não gosto de arrumar a
casa a minha maior alegria é ser quem eu sou hoje minha vida
de adolescente bastante alegre meu maior sonho é ser alguém na
vida e ser indepedente.
Se fizermos tão somente o ajuste em torno a questões ortográficas e de
pontuação neste texto, veremos que ele já vai apresentar um outro visual, este
denotando, ao contrário do que acontece inicialmente, um certo ar de aceitabilidade do
texto. Vejamos:
Texto I
Sara de Almeida fiais, tenho 16 anos, o nome de minha
mãe é Gildete de Almeida Novais. Minha infância foi muito
alegre e divertida, super legal. Minha família é normal, de vez
em quando tem suas discussões. Gosto de sair para shows e
festas; não gosto de arrumar a casa. A minha maior alegria é ser
quem eu sou, hoje minha vida de adolescente é bastante alegre;
meu maior sonho é ser alguém na vida e ser independente.
Texto II
Segunda chance
Eu acho que a formiga má, teve uma atitude muito ruim, mas
que a cigarra tem que aprender que a vida não é só descanso
nem só trabalho porque tem hora para tudo na vida. Já a formiga
boa, deu uma segunda chance para a cigarra. E as duas a
formiga e a cigarra aprenderam uma com a outra.
Texto III
Temos que ser solidários
Não temos que ser egoístas pois todos merecem uma segunda
chance a formiga foi má com a cigarra isso não foi legal.
Texto IV
“Eu acho que se todo mundo pensasse em tratar as pessoas como
a formiga tratou a cigarra quando ela mas precisava o mundo
tava melhor, porque todo mundo merece uma segunda chance,
agora a pessoa tem que saber retribuir depois”
118
Em todos esses textos acima aparece claro o pouco ajuste à questão da
pontuação, basicamente. Outros aspectos não são tão numerosos, a exemplo de escrever
MAS quando se tem na verdade um advérbio de intensidade MAIS: “...como a formiga
tratou a cigarra quando ela mas precisava...”. Por outro lado, apresentam excelentes
comentários sobre uma fábula, aliás sobre a conhecida fábula A Cigarra e a Formiga,
nos quais se podem notar os enfáticos posicionamentos éticos dos sujeitos do discurso.
Texto V
Os Negros
Os negros eram ascravos (escravos) do zumbi
mas os negros Arão (erão) alentes (valentes) Eles (eles) aram
(eram)
Trabalhadores (trabalhadores) nas (mas) oles (eles) gostava e
(de) rabahar (trabahar)
Para (para) u (o) zumbi.
Os negros &oram (foram) zalvos (salvos) pela princesa
(princêsa)
isabel mas os negros Erão (erão) ciolentos (violentados)
tentavam escahar o (do) zumbi Mas
o (a) Priseca isabel souta e tirou
ales (eles) ee (de) pa (la) e os negros foram
salvos pela prinsesa isabel
C= 0,0
G= 0,2
O= 0,2
Não entendeu nada da História. Zumbi foi um grande líder negro
e não um coronel.
Este é, talvez, dos textos aqui apresentados, o que mais estranheza pode causar:
são muitas as questões de desvios de ortografia ai presentes. Mas não há apenas isso.
Infelizmente a professora, embora leia o que o aluno escreveu, a ponto de fazer
comentário sobre o equívoco do garoto em relação á verdadeira história de Zumbi e dos
negros escravos, não pôde dar ao aluno a oportunidade de fazer os ajustes necessários
para que o texto fosse considerado como aceitável, corrigindo a ortografia,a pontuação.
Mas, mais do que isso, o que se observa nesta produção é a sua textualidade: há
aí uma história contada dos negros, que não coincide com a história de Zumbi, mas essa
história tem início, meio e final. Há um texto narrativo. Claro que quando se faz esse
comentário não se está afirmando que isso é o suficiente e o que basta. Mas certamente
119
pode-se ver aí o início de um texto e este gesto do aluno merece ser revisto e
trabalhado. Isso porém se torna completamente obliterado ao olhar da professora, que só
consegue enxergar os destacáveis problemas de ortografia, os quais, rigorosamente
falando, não são questões de linguagem. Esse texto foi avaliado e recebeu, a julgar das
anotações feitas pela professora na prova, 0,4 de nota.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa pesquisa, buscou-se apreender como se dá o acontecimento da produção
de texto escrito em sala de aula. Para tanto, foram analisados os discursos de cinco
professoras que lecionam no Ensino Fundamental II, do 6° ao 9° ano, através das
respostas de dois questionários e das transcrições de algumas de suas aulas. As escolas
em que as professoras lecionam pertencem à rede pública de ensino da cidade de
Salvador.
A fundamentação teórica que conduziu essa pesquisa foi a Análise do Discurso
de linha pêcheutiana na qual a língua e os sentidos são entendidos como acontecimento
entre os sujeitos, pois ela trabalha a relação língua-discurso-ideologia. Nesse sentido,
essa teoria possibilitou estabelecer uma análise dos discursos das professoras em relação
ao que elas entendem por língua(gem), língua oral, língua escrita, texto, mediante o
exame de dois tipos de dados: o primeiro se constitui das respostas às questões
propostas nos dois questionários aplicados, um ao início da coleta de material (que
corresponde mais ou menos a outubro, do ano 2009) e outro ao final daquele ano letivo
e corrente de 2009, em novembro/dezembro. O outro trabalho com a linguagem se deu a
partir da análise das atividades, práticas desenvolvidas em sala de aula, a respeito
especificamente do estudo da língua materna, sobretudo nas atividades de escrita; e das
falas das professoras na exposição dos conteúdos, no desenvolvimento das atividades,
em sua abordagem de modo geral ao ensino/aprendizagem da língua materna, em coleta
de material a que demos o nome de Diário de Bordo.
Como expusemos, no capítulo anterior, os dados analisados permitem
reconhecer uma certa contradição entre o conhecimento teórico em torno à língua(gem),
incorporado por esses sujeitos, as professoras, quando se põem a discorrer sobre o
assunto, de um lado; e suas posturas, suas falas sobre a língua(gem) e os processos de
construção da língua, quando estão em sala de aula. Os PCNs, parece, têm ajudado na
reformulação deste entendimento do que sejam a língua(gem), língua escrita, língua
oral, texto e também na reformulação de uma metodologia de ensino mais ajustada a
esses entendimentos em torno ao comportamento linguístico dos falantes, na escola.
Porém, a julgar do que a pesquisa conseguiu apurar, essa compreensão ainda não
favorece uma boa articulação entre a teoria e a prática, de modo harmonioso e rico, que
leve decisivamente o aluno a crescer em termos de produção linguística na escola,
mediante suas atividades, posturas, senso crítico em torno á questão.
121
De modo geral, as posições de onde falam as professoras sobre os conceitos de
língua(gem), língua escrita, produção do texto escrito, metodologia do ensinoaprendizagem das questões de língua materna se remetem a formações discursivas
muito parecidas, nas quais a compreensão desses temas se dá de forma muito próxima
ao que preconizam os PCNs, os quais, por sua vez, se fundamentam em reflexões mais
modernas em torno à língua, deixando-a mais aproximada das condições de enunciação,
que leva em conta seus interlocutores usuários, um tempo e um local, e também as
funções; tudo isso sem apagar o papel da língua enquanto um sistema de sinais
linguísticos, dotado de redes de conexões sintagmáticas e paradigmáticas.
Na análise desses dizeres, observou-se a manutenção do mesmo, que grosso
modo se refere à questão da importância da língua entendida como interação verbal,
como interlocução entre sujeitos falantes. E também da função da linguagem e da
necessidade de se estudar os gêneros textuais em sala de aula. Um outro aspecto sobre o
qual houve entendimento quase unânime foi quanto a necessidade da leitura para a
atividade de escrever textos: as cinco professoras se puseram a favor desta prática,
sendo que uma delas falou expressamente que a exposição do aluno ao texto escrito, nos
seus variados gêneros, vai capacitá-lo melhor a escrever.
Neste sentido, pode-se dizer que o discurso das professoras, compreendido nas
formulações linguístico-discursivas das respostas aos questionários, é muito próximo;
entretanto, ocorrem poucas rupturas quanto à explicitação mesmo desta compreensão,
como falamos oportunamente.
Por outro lado, na prática de sala, ainda que não seja de modo muito marcado,
pode-se reconhecer duas posturas de ensino, em relação ao conjunto das professoras
cujas aulas foram registradas. A primeira dessas posições, aventamos que seja
constituída pelas professoras PE1, PE3 e PE5, que atuam em turmas de 6º. 7º. 8º. e 9º.
anos, do Ensino Fundamental.
São docentes que, por suas posturas em sala de aula na oferta de atividades, na
compreensão dessas atividades parecem se encontrar ancoradas em uma FD que ainda
se atêm a uma concepção de língua entendida como um sistema código, do qual
participam seus usuários, a língua sendo vista muito mais como um instrumento a partir
do qual os nossos pensamentos vão ser apresentados. As atividades propostas se
acomodam mais em um ensino tradicional baseado numa concepção de linguagem
como expressão do pensamento que, segundo Geraldi (2002), segue as regras que são
colocadas pela Gramática Normativa. Suas práticas são afetadas por um juízo de valor e
122
seus objetivos estão voltados para uma “expressão correta” da língua, que depende da
competência do aluno em relação ao uso correto da gramática normativa.
Os interesses dessas professoras estão relacionados principalmente aos aspectos
notacionais e não aos discursivos, pois não reconhecem o texto como discurso que é
“efeito de sentidos entre locutores – é ideologicamente marcado, logo regulável,
submetido à história, não brotando magicamente de uma essência de um sujeito”
(ORLANDI, 2003, p.16).
O que se observou nos discursos dessas professoras, principalmente, é que a
língua tem um fim em si mesmo, se apresenta desvinculada do seu uso e seu ensino não
se preocupa com a inserção dos elementos da situação na consideração do evento
linguístico. Nesse sentido, em seus discursos há predomínio de uma concepção de
língua que sugere o prestígio da língua escrita baseada nas normas da Gramática
Normativa.
Segundo Geraldi (2010, p. 98), “o texto é produto de um trabalho de escrita que
não se faz seguindo regras predeterminadas”; ao contrário, é produto de uma atividade
desenvolvida por um sujeito que se coloca a partir de seu discurso materializado em seu
texto. No caso das aulas dessas professoras, o que se percebe é um trabalho com o texto
entendido como um produto em si, desvinculado de suas condições de produção; as
professoras PE1, PE3 e PE5 não reconhecem a constituição do sujeito na linguagem, os
alunos como sujeitos de um discurso, o texto como materialização de um discurso e a
escrita como objeto social que leva em conta um significado funcional trazido pelo seu
uso.
Embora as professoras PE1, PE3 e PE5 afirmem que “A organização das ideias e
a correção gramatical contribuem para o escrever bem. E isso a escola pode e deve
ensinar”; “Toda atividade de produção textual sempre foi seguida pela reescritura..”
“Em relação à reescrita do texto alguns alunos fizeram a reescrita na íntegra”. “Sim, eles
fizeram reescrita. Quando ocorreu a reescrita percebi que melhoraram o texto, pois
podiam perceber os erros destacados. No próximo trabalho já evoluíam mais e tinham
mais cuidado com a ortografia”, os textos que vamos apresentar abaixo parecem
contradizer essas palavras, tal é a quantidade de desvios de ortografia e gramaticais
nele encontrados, atestando que mesmo nestes aspectos que são mais visados pelas
professoras não há um crescimento esperado:
123
Texto 1 (PE1, 6º ano)
é bom agente ver porque agente para de
Ter Preconceito e comessa a dá valor aquilo que
agente despresamos que zombamos os negros
São Apenas Pobres coitados que Foram
escravizados Pelos brancos e Pelos próprios negros
e quando eles obedecia os brancos eles
eram chicoteados até saí sangue
e ele comia pão com água e eles numca conceguia
bota sopa na coher.
Texto 2 (7º ano)
Joaquim dormiu e sonhou que tinha
ganhado um carro Bem Bonito e ele ficou muito
contente com este carro, e com este carro ele saiu
para um Shopp de Salvador e no Estacionou o seu
carro novo e não saia de perto dele, qualque pessoa
que passase e olha-se ficava com a cara feia
mas ele toda hora que estava perto do carro
ele tocava para ver se e verdade sentia uma
coisa muito dura era porque ele estava no chão.
A í apareceu o primo dele e ele falou: primo
o o meu caro novo que que eu ti de carona
a claro que eu quero que sim o seu carro
novo e Boonito. Meso um dia eu quero tem
um carro dessi como foi que você ganhou
eu não sei estava uma carta na mesa dezendo
que o carro com a placa JTL 1390 era meu
e a chave estava na caventa domeu
quarto e ai eu foi lá e pegei e vi passea depois
que ele contou ele acordou e foi no logar
e lá não esta a chave e nem a carta e ele
foi dormir de novo.
Texto 3 (9° ano)
“A origem do “Samba”
O samba teria surgio por inspiração de um ritimo africanocom a diversidadcultural mesmo dentro da raça negra
no Brazil. era bastante notavel porque os senhores de
escravos escolhiam aletoriamente seus indivíduos, e isso tamto
fez separarem tipos africanos afins, pertencentes a uma mesma
tribo.
O samba de roda também é muito semelhante como
o jongo. Samba de roda é uma variante musical
mais primitiva do samba, originário do estado brasileiro da Bahia, provavelmente no seculo XIX.
O samba de roda é um estilo musical Tradicional
afro-brasileiro, associado a uma dança que por sua
vez está associado à capoeira. É tocado por um conjunto
de pandeiro, atabaque, birimbau, viola e chocalho, acompanhado
124
principalmente por canto e palmas.
Texto 4 (9ºano)
O Samba
Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O mrro foi feito de samba
De samba pra a gente sambar.
Antes de medespedir
Deixo ao sambista
Mais novo o meu pedido
Final: Não deixe o Samba Morrer...
A música “Não Deixe o Samba Morrer”.
é muito linda, pois fala do nosso
Brasil de como o samba é importante
para todos.
A letra é uma maravilha
e quem a escuta gosta de cara.
Esses textos permitem efetivamente pensar que os ensinamentos propostos pelas
professoras (PE1, PE3 e PE5) não são condizentes com o que elas propõem como tarefa
da escola. Como fato, temos a dizer que a leitura, um elemento invocado muitas vezes
como impulsionador da escrita, aparece pouco em suas práticas: não houve momento de
leitura nas aulas registradas de PE1, PE3 e PE5; não houve atividades de reescritura nas
aulas de PE3 e PE5; não houve registro de produção de escritura nas aulas de PE5. Os
textos do 9º ano aqui trazidos foram realizados após pesquisa sobre o samba, na internet
e foram redigidos em casa.
Em uma de suas respostas aos questionários, a professora PE1 afirma que “[...]
os jovens estão sendo empurrados série acima sem terem sido adequadamente
alfabetizados” (PE1, 2009). No entanto, o que se constatou, nesta pesquisa pela
observação das aulas, no final do ano, é que o aluno não conseguiu superar essas
dificuldades trazidas pela “alfabetização” e isso é confirmado nesses textos que foram
escritos na prova da IV Unidade.
Fica claro que os alunos não possuem uma prática do uso da língua escrita e que
seus textos apresentam erros nas estruturas sintáticas, adequação no uso do conectivo,
desestruturação nos parágrafos. No entanto, os textos possuem textualidade e isso se dá
justamente porque a língua é uma prática e seu uso constante se dá na sociedade. Logo,
125
os alunos colocaram de maneira compreensível a ideia que tinham, por exemplo, da
história do povo africano quando vieram para o Brasil.
A avaliação centra-se apenas em procedimentos que têm como base a gramática
normativa e não considera que a escrita tem uma função social e por isso é importante
aproximá-la das atividades humanas dentro e fora da escola. Passarelli (2004) citando
Spinillo e Roazzi afirma que “a escola precisa considerar a escrita como um objeto
cultural que cumpre funções sociais, resgatando para dentro do contexto escolar a
funcionalidade que a escrita tem historicamente e no cotidiano de nossa sociedade”
(SPINILLO e ROAZZI apud PASSARELLI, 2004, p. 36).
A segunda postura reconhecida nessa pesquisa, considerando-se o desempenho
das professoras PE2 e PE4 em sala de aula, se marca por um modo menos tradicional de
abordar o ensino da língua, sim, e também por um maior comprometimento com as
concepções de linguagem, escrita e oralidade descritas pela lingüística e seus derivados
campos de estudo. Em suas aulas, os alunos puderam debater e dialogar um assunto ou
uma ideia; estiveram diante dos mais variados textos; escreveram a partir de seus
registros e de suas memórias. Suas práticas revelaram discursos e uma prática mais
modernos da língua e que só trouxeram benefícios para os seus alunos. Isso pode ser
refletido nos textos abaixo (alunos da professora PE2 e PE4):
Texto 1 (7º ano)
Segunda Chance
Eu acho que a formiga má, teve
uma atitude muito ruim, mas que a
cigarra tem que aprender que a vida
não é só descanso nem só trabalho
porque tem hora pra tudo na vida.
Já a formiga boa, deu uma segunda,
chance para a cigarra.
E as duas a formiga e a cigarra
aprenderam uma com a outra.
Texto 2 (7º ano)
“Eu acho que se todo mundo penssasse em tratar as pessoas como a formiga tratou a cigarra quando ela
mas precisava o mundo tava melhor,
porque todo mundo merece uma
segunda chanse, agora a pessoa
tem que saber retribuir depois”
126
Texto 3 (7º ano)
Natal
Natal é uma festa,
Muita gente gosta
pão e vinho
Nunca fica de fora,
Alegria e esperança
Nunca faltará,
Natal é alegre e uma
estrela cadente,
Sino, árvore e papai Noel
Sempre é a tradição da gente.
Texto 4 (8º ano)
Trabalho infantil – proibido
e ignorado
No país em que vivemos as crianças
estão expostas ao trabalho infantil,
porque muitos pais não podem pagar uma
creche e a renda familiar é pouca ou
inesistente. Elas são obrigadas a
trabalhar muito e ganhar pouco, mas
lutam para conseguirem algum
dinheiro para que seus pais possam
comprar o almoço pouco, mais que
vai ajudar a matar a fome deles. Como
exemplo, estão aqui na cidade, os
moradores das ruas de Salvador, que
reciclam materiais para ganharem
um trocado, para alimentarem a si
e a seus familiares, para conseguirem
sobreviver.
Texto 5 (8º ano)
Infância perdida
Existem pessoas que tem que colocar seus
filhos para trabalhar por não ter condições de colocar seus filhos em creches
e escolas e elas tem que trabalhar.
O estatuto da criança e do adolescente
proíbe o trabalho infantil, mas são
poucas as escolas publicas de qualidade
talvez se o governo investisse mais na
educação não haveria trabalho infantil.
É importante dizer que esses textos foram escritos no período da IV Unidade,
portanto, culminância de um período escolar. Os textos dos alunos estão bem escritos e
127
compatíveis com o 7º ano e o 8º ano. Verifica-se que realmente esses alunos têm uma
prática de escrita, pois seus textos têm um propósito definido, dirigem-se a um leitor
(que não precisa ser a professora especificamente), tem uma finalidade e por tudo isso
exercem uma função social.
Essa pesquisa possibilitou entender um pouco a respeito das dificuldades de
escrita por alunos do ensino fundamental II da escola oficial brasileira, baiana,
propaladas pela mídia, pela sociedade e pelos próprios professores, agentes do processo
de ensino e aprendizado. Dentre o que pudemos aprender, se confirma, sem dúvida, a
compreensão da força que se impõe, neste cenário, das questões referentes às
concepções de língua e linguagem introjetadas por nossos docentes e que estão na base
das atividades propostas, dos discursos produzidos em sala de aula, da relação
estabelecida com a língua e seu fazer, tanto por parte do professor como do aluno, em
decorrência.
Parece haver, na escola, uma mudança nos paradigmas do ensino e
aprendizagem, mas essa mudança é lenta, vagarosa. Mas é uma mudança que necessita
ser implementada, diante inclusive do quadro do alunado que temos, hoje, em salas de
aulas de escolas brasileiras, agora visitadas por alunos cujos pais, em sua maioria, não
tiveram também a oportunidade de conhecer a escola. Portanto, que têm um saber e uma
prática sobre a língua e a linguagem que não são aquelas que a escola reconhece.
A escola, por outro lado, de certo modo modificada com práticas mais
diferenciadas de ensino e aprendizagem, tais como a necessidade da leitura para
subsidiar a escrita; o papel da reescritura como um elemento a ser levado em
consideração nos processos de escritura; a incorporação de novos olhares sobre o que
seja a língua e como ela se processa no seio da sociedade, tudo isso certamente vem se
impondo e, é possível pensar-se que, pode levar a caminhos mais promissores para o
ensino aprendizagem da língua materna, quer em sua modalidade escrita quer oral.
Entretanto, há uma outra face que perdura com vigor, aquela de um ensino mais
tradicional, menos atento às modificações e s novas formas de se pensar a linguagem;
um ensino mais pautado na língua pensada tão somente enquanto instrumento para
expressão do pensamento, como uma ferramenta de que se dispõe para o revestimento
do pensamento tão somente; e distante de concepções mais modernas que vêm a
língua(gem) a partir da sua função na sociedade, da sua natureza enquanto constitutiva
do sujeito e ao mesmo tempo dos sentidos com os quais nos movimentamos em nossas
sociedades. E essa diferença, certamente, conduz também a produtos diferenciados.
128
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133
ANEXO
134
Anexo 1 – Questionários I e II e as Respostas
135
136
137
138
139
140
141
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157
ANEXO 2 – PRODUÇÕES DOS ALUNOS DA PROFESSORA PE1
158
159
ANEXO 3 – PRODUÇÕES DOS ALUNOS DA PROFESSORA PE2
160
161
162
163
164
165
ANEXO 4 – PRODUÇÕES DOS ALUNOS DA PROFESSORA PE3
166
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168
169
170
171
ANEXO 5 – PRODUÇÕES DOS ALUNOS DA PROFESSORA PE4
172
173
ANEXO 6 – PRODUÇÕES DOS ALUNOS DA PROFESSORA PE5
174
175
176
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