O GOLPE MILITAR DE 64: DA DITADURA À ABERTURA.
Uma análise sob a ótica dos partidos políticos no Brasil1,
João Rego2
Não se pode compreender o Sistema Partidário Brasileiro (SPB) no período de 1982 a 1990, que
funda a atual democracia no Brasil, sem situá-lo no contexto da fase final do regime autoritário de
1964. O atual Sistema partidário Brasileiro, principal suporte – para o bem e para o mal – do
processo de consolidação da democracia no Brasil, foi fundado como resultado de uma estratégia
de distensão do próprio regime autoritário.
O golpe militar de 1964 teve sua articulação coordenada por três forças políticas que já haviam
marcado sua posição no processo político na década de 1950: o capital multinacional associado ao
nacional, o capital de Estado e os militares3.
A crise política que levou o país à ruptura de sua primeira experiência democrática, iniciada com o
fim do Estado Novo, em 1945, possibilitou que, em 1964, as forças golpistas, após as prisões,
expurgos e IPM's4, viessem, com o Ato Institucional Nº 2, extinguir todos os partidos que haviam
florescido durante o período de 19455.
Encerrava-se assim o primeiro ciclo de uma experiência multipartidária efetiva onde a marca
principal foi o surgimento de partidos com abrangência nacional e perfis ideológicos distintos,
acompanhando o desenvolvimento urbano-industrial ocorrido na década de 1950.
Entretanto, as forças golpistas que haviam articulado a derrubada do governo João Goulart não
eram fruto de uma ação política extemporânea, puramente movida pela emoção do momento.
Pelo contrário, eram resultado de uma competente articulação político-ideológica movida pela
1
Este ensaio é um resumo do CAP.I -O SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO - 1979(82)/1990 da minha tese
de Mestrado em Ciência Política AS BASES SOCIOECONÔMICAS DOS PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL:
1982-1990. Revisado em Março de 2014.
2
João Rego é engenheiro, cientista político e consultor em estratégia. (www.joaorego.com )
3
Para maior aprofundamento de como se deu a articulação das forças políticas e econômicas que
deflagaram o Golpe Militar de 1964 ver DREYFUSS;1980.
4
O IPM - Inquérito Policial Militar foi um poderoso mecanismo de poder, criado através de decreto-lei, em
27 de abril de 1964, destinado a operacionalizar a Grande Estratégia da Doutrina de Segurança Nacional.
Comissões especiais de inquérito foram criadas em todos os níveis de governo, em todos os ministérios,
empresas estatais, universidades federais e em entidades ligadas ao governo federal, com o objetivo de
identificar e expurgar da estrutura governamental as pessoas identificadas como "subversivas".
5
Durante o período de 1945 a 1964 apenas o PCB -Partido Comunista Brasileiro- não atuou legalmente.
Foi cassado em 1947, após dois anos de existência legal. O SPB de 1945 a 1964 é atingido pelo colapso do
regime democrático, com 13 partidos políticos em plena atividade no cenário político nacional.
1
Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, cujo principal polo irradiador era
a ESG -Escola Superior de Guerra-, que, com o apoio do capital multinacional, do capital nacional,
associado ao estrangeiro, e com a participação do governo norte-americano, através da CIA,
conseguiram construir oportunidades sobre o aparente clima de caos político-social, favorecendo
a queda do governo João Goulart6.
A Ideologia de Segurança Nacional foi transplantada para o Brasil após a 2ª Guerra Mundial,
quando vários oficiais superiores foram treinados no National War College (centro de treinamento
do alto escalão do exército norte-americano). O objetivo principal desta ideologia era garantir
metas de segurança para implantar uma geopolítica para todo o Cone Sul do Continente
Americano, capaz de bloquear o perigo expansionista do comunismo internacional.
A Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento representava uma completa
weltanschauung7 que tinha como meta criar condições para, através do fortalecimento do
Estado, construir um modelo de desenvolvimento econômico extremamente favorável à entrada
do capital estrangeiro, pretendendo implantar uma infraestrutura capaz de transformar o país em
uma potência econômica. Para que isto pudesse ocorrer, era necessário manter sob controle o
crescimento dos movimentos sociais organizados que, cada vez mais, ocupavam espaços no
cenário político8, criando um clima político-social de grande instabilidade, ameaçando os
interesses da classe dominante nacional.
Com o objetivo de tornar o país um ambiente viável e atraente ao desenvolvimento do capital,
foram tomadas decisões radicais no sentido de controlar a classe trabalhadora. Foi instituído, logo
após o golpe de 1964, o FGTS9, o qual tinha como objetivo substituir a figura da estabilidade por
tempo de serviço, tornando mais flexível para o empresário a relação com a classe trabalhadora.
Foi também criado o aparelho repressivo, composto pelos SNI e órgãos de informação das Forças
Armadas como o DOI-CODI, no Exército, cujo objetivo era garantir de forma eficiente o bloqueio
e/ou a eliminação de qualquer força "contrarevolucionária" que exercesse pressão ou ameaçasse
o Estado de Segurança Nacional.
Com o recrudescimento do regime, instituiu-se a figura do "inimigo interno", passando a ser
potencialmente suspeito todo e qualquer cidadão.
6
Ver DREYFUSS;1980.
7
Weltaansshaung: f concepção f (od.visão f) do mundo; mundi-vivência; filosofia; ideologia.
8
No período pré-64 havia uma importante efervescência dos movimentos sociais urbanos e rurais em
todo o país. O clima da revolução cubana estimulava de forma evidente as expectativas dessas lideranças
no sentido de forçar transformações na estrutura social, política e econômica do país.
9
O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi criado em 1966 (entrou em vigor em 1967), como uma
opção a uma lei trabalhista mais antiga, que obrigava o empresário a pagar indenizações pesadas aos
funcionários demitidos sem justa causa.
2
Como o golpe militar conseguiu obter apoio de grande parte da população, principalmente da
classe média - esta se sentia ameaçada de perder seus privilégios diante das "reformas de base"10
- , e como não se tratava apenas de um golpe circunstancial, e sim de uma planejada estratégia de
ação com objetivos de dominação política de longo prazo, as forças que articularam o golpe
perceberam que, mantendo o congresso funcionando, uma vez que já havia sido efetuada a
"Operação Limpeza", cassando deputados, governadores e funcionários civis graduados que
serviram ao governo deposto, poderiam obter legitimidade junto à população. A legitimação era
uma preocupação dos militares, principalmente porque a destituição de João Goulart havia sido,
segundo os golpistas , para garantir a "normalidade democrática".
Com o Ato Institucional Nº 1. já ficavam evidentes os objetivos de longo prazo. Citamos trechos do
AI 1:
(...) O Ato Institucional que é hoje editado pelos comandantes em Chefe do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da
Nação em sua quase totalidade, se destina a assegurar, ao novo governo a ser instituído, os
meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do
Brasil.(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.53)11
Com um objetivo tão amplo, caracterizava-se a intenção de uma longa permanência dos militares
no poder. Diferentemente de outras experiências intervencionistas já ocorridas, nas quais os
militares sempre devolviam o poder aos civis, aquela iria se prolongar por longos 21 anos.
Garantidos pelos resultados da "Operação Limpeza", e com total controle de todo o poder
político, os militares decidem preservar a Constituição de 1946, com todas as ressalvas contidas
no AI Nº 1, decidindo manter o Congresso, já "devidamente" mutilado, funcionando:
Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário,
decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na
parte relativa aos poderes do Presidente da República (...) Para reduzir ainda mais os
plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos,
igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes
constantes do presente Ato Institucional.(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.53)
10
As "reformas de base" era o nome dado às políticas de transformação na estrutura econômica e social
propugnadas pelo governo João Goulart. Estas políticas tinham um forte apoio das forças de esquerda e
visavam a reforma educacional, uma reforma agrária e mais outras transformações em favor da classe
trabalhadora.
11
A partir deste ponto, nossa descrição segue os caminhos trilhados por Maria Helena Moreira Alves
(MOREIRA ALVES;1984), pela sua completa e importante interpretação do período autoritário.
3
Nas eleições para governadores em 11 Estados da Federação, em 1965, previstas na Constituição
de 1946, a oposição consegue eleger os governadores de dois Estados importantes - Guanabara e
Minas Gerais -, causando grande preocupação aos militares, pelo latente potencial contestador
que poderia vir a ameaçar a estabilidade do governo Castelo Branco.12
Assim, por decreto, o governo instituiu em 26 de outubro de 1965, o Ato Institucional Nº 2, cujos
objetivos eram controlar o Congresso Nacional, através de um maior fortalecimento do poder
executivo, cercear o poder judiciário e controlar os mecanismos de representação política.
Quanto a este último objetivo, em seu Artigo Nº 18, o AI-2 extinguiu todos os partidos políticos
existentes, estabelecendo rígidas normas para a criação de novos partidos.
Assim, com o Ato Institucional Nº 2, foram criados dois partidos: a ARENA - Aliança Renovadora
Nacional e o MDB - Movimento Democrático Brasileiro. No primeiro estava todo o conjunto de
forças que haviam apoiado a ruptura do sistema democrático; e no segundo, o que havia restado
da oposição ao regime autoritário. Estava criado um simulacro de sistema partidário para dar
características de normalização ao regime militar. O MDB tinha como única estratégia de oposição
tentar utilizar os espaços, cada vez mais reduzidos, para atuar como polo de questionamento ao
estado de exceção.
Através de decretos-lei impostos pelo poder executivo, era praticamente impossível para a
oposição atuar com chances concretas de ameaçar a estabilidade dos militares. A Lei da
inelegibilidade, o decurso de prazo e outros mecanismos casuísticos e autoritários deixavam claro
que o regime autoritário conduziria o processo político com o controle milimétrico da situação.
Entretanto, a sociedade civil, através dos movimentos estudantis, organizações sindicais, Igreja
progressista, conseguia exercer, com demonstrações de rua, pressão em favor do fim do regime
de exceção e sua política econômica profundamente antissocial. Foi em março de 1968, com a
morte do estudante secundarista Edson Luís, numa demonstração estudantil no Rio de Janeiro,
que houve demonstrações de massa com proporções de rebelião social.
Em abril do mesmo ano, houve a ocupação da Fábrica Belgo-Mineira, por parte dos operários,
mantendo como reféns seus diretores. A pressão da sociedade civil começava a preocupar o
regime militar. Foi, entretanto, com a criação da Frente Ampla, abrangendo movimentos de
oposição, que contava , inclusive, com a participação de políticos que haviam dado apoio ao
golpe, como Carlos Lacerda, e dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, que os
militares decidiram "endurecer".
Foi decretado o Ato Institucional Nº 513, em 13 de dezembro de 1968, criando condições de
absoluto controle sobre todo o processo político, favorecendo a mais ampla utilização do aparato
12
Gen. Castelo Branco foi o primeiro de uma série de generais do exército que dominaram
autoritariamente a nação de 1964 a 1985.
13
Citamos trecho da obra de MOREIRA ALVES(1984)na qual apresenta sumariamente a abrangência do AI
5.:" Os poderes atribuídos ao executivo pelo Ato Institucional Nº 5, podem ser assim resumidos : 1) poder
4
repressivo do Estado de Segurança Nacional. Estava criado, assim, o Estado hobbesiano, o
superleviatã, mencionado por Golbery, ainda na década de 1950, em seu livro "Geopolítica do
Brasil"(GOLBERY;1981).
O recrudescimento do regime militar projetou uma situação onde o espaço político para a
oposição fora quase totalmente reduzido, empurrando setores da oposição para o recurso da luta
armada. Foi o período mais negro de toda a história do regime autoritário de 1964. Sucederam-se
atentados, sequestros de membros do corpo diplomático e assaltos a bancos para financiar
operações terroristas por parte de tais setores. Em contrapartida, o regime militar atuou com mão
de ferro, conseguindo estancar o processo da luta armada, porém, apenas em 1974.
Foi nas eleições de 1973, onde seria escolhido pelo voto indireto o presidente da República, que o
MDB, apresentando uma anticandidatura, - isto porque o Congresso Nacional totalmente
manietado, apenas iria referendar o nome do novo general para o exercício da Presidência -,
começa a exercer o papel de efetivo partido de oposição, servindo como elemento aglutinador de
todos os segmentos da sociedade civil interessados em pressionar o governo pelo fim do regime
autoritário. Assim, entidades da sociedade civil, tais como a Igreja, a OAB -Ordem dos Advogados
do Brasil - e a ABI - Associação Brasileira de Imprensa- passaram a, articuladamente, exercerem
pressão contra o governo dentro do reduzido espaço da política formal permitido.
Esta atuação do único partido de oposição ao regime militar se repetiria de forma cada vez mais
aprofundada nas eleições de 1974, 1976, 1978 e 1982 (este ano, já como PMDB). Com as eleições
para senadores, deputados federais e deputados estaduais, em 1974, o MDB, pela primeira vez,
obtém mais votos que a ARENA, tomando de surpresa os setores governistas, que imaginavam
que, com a política do "milagre econômico", a população estaria menos inquieta. Foi um erro de
avaliação, pois as eleições de 197414 foram consideradas como um plebiscito: as pessoas votaram
mais "contra" o governo do que na oposição.
O governo reagiria implantando mecanismos de cerceamento à ação política, como a Lei Falcão,
que proibia que durante os períodos pré-eleitorais, os candidatos se utilizassem dos meios de
de fechar o Congresso Nacional e as assembleias estaduais e municipais; 2) direito de cassar os mandatos
eleitorais de membros dos Legislativo e Executivo nos níveis federal/estadual e municipal; 3) direito de
suspender por dez anos os direitos políticos dos cidadãos; 4) direito de demitir, remover, aposentar ou
pôr em disponibilidade funcionários da burocracia federal/estadual e municipal; 5) direito de demitir ou
remover juízes, e suspensão das garantias ao judiciário de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade; 6)
poder de decretar estado de sítio sem qualquer dos impedimentos fixados na Constituição de 1967; 7)
direito de confiscar bens como punição por corrupção; 8) suspensão da garantia de habeas corpus em
todos os casos de crimes contra a segurança nacional; 9) julgamentos de crimes políticos por tribunais
militares; 10) direito de legislar por decreto e baixar outros atos institucionais ou complementares; e
finalmente 11) proibição de apreciação pelo judiciário de recursos impetrados por pessoas acusadas em
nome do Ato Institucional Nº 5.( citado in MOREIRA ALVES;1984:p.131)
14
Sobre o impacto que as eleições de 1974 exerceram sobre o regime autoritário ver LAMOUNIER &
CARDOSO coord.;1978 e LAMOUNIER, org.;1980.
5
comunicação. Era apenas permitida a exposição da fotografia e a breve leitura do currículo dos
mesmos.
Entretanto, apesar de todos os controles, o MDB continuava crescendo eleitoralmente. Nas
eleições municipais de 1976, a ARENA obteve 35% dos votos, enquanto o MDB teve 30%.
Considerando que toda a máquina administrativa federal e estadual havia sido colocada à
disposição da ARENA para a compra de votos e utilização de velhas práticas clientelistas, tais
conquistas da oposição democrática se tornavam ainda mais valorizadas.
O SNI15 indicava ao governo do General Geisel que, caso não fosse tomada nenhuma providência,
a oposição poderia, em curto espaço de tempo, obter a maioria no Congresso, transformando-se
em um sério fator de desestabilização dos interesses do regime autoritário. Assim, após fechar o
Congresso Nacional, em abril de 1977, o presidente Geisel decreta a Emenda Constitucional Nº 8,
que altera os critérios das eleições, com o objetivo explícito de bloquear o avanço eleitoral do
MDB. Essa emenda ficou conhecida como o "Pacote de Abril".
Apresentamos abaixo o resumo das principais medidas desse mecanismo autoritário, cujo
objetivo era garantir, de forma escusa, a maioria no congresso:
1.)O Artigo 13 tornava permanente as eleições indiretas dos governadores de Estados.
2.)O Artigo 39 da Constituição foi alterado, de modo a determinar o número de cadeiras
de cada Estado na Câmara dos Deputados não (como anteriormente) em proporção ao
número de eleitores registrados no Estado, mas em proporção à sua população
total.(...) A nova lei aumentava a representação dos Estados pobres do Norte e do
Nordeste, onde os índices de analfabetismo eram muito altos e onde a ARENA era mais
forte devido à prática clientelista.
3.)O Pacote de Abril alterou as disposições de renovação do Senado. Nas eleições para
substituição de dois terços dos membros, no entanto, somente uma de cada duas
cadeiras disponíveis seria preenchida por voto popular direto; a outra seria ocupada por
senador eleito indiretamente, segundo os mesmos procedimentos e pelo mesmo
colégio eleitoral encarregado de escolher os governadores de Estados.(...) Os senadores
eleitos pela via indireta passaram a ser conhecidos popularmente como "senadores
biônicos".
4.)Outra modificação foi a redução do colégio eleitoral que escolheria o Presidente da
República, diminuindo o número de delegados das Assembleias Estaduais.
15
SNI- Serviço Nacional de Informação.
6
5.)Redução da exigência da maioria de dois terços do Congresso Nacional para a maioria
absoluta, facilitando a aprovação de emendas constitucionais, sem correr o risco da
oposição bloquear sua aprovação.
6)Finalmente, uma importante cláusula do Pacote de Abril estendia as restrições da Lei
Falcão sobre o uso da televisão e do rádio das eleições municipais às estaduais e
federais. O silêncio seria imposto em todas as eleições, negando-se à oposição a
oportunidade de debater e criticar as políticas do Estado.(citado in MOREIRA
ALVES;1984:p.195,195)
Apesar de todos os casuísmos do "Pacote de Abril" para deter o avanço do MDB nas eleições de
1978, o partido de oposição tornava-se cada vez mais estruturado, aglutinando em seu meio, de
forças conservadoras a socialistas e comunistas. Com o cerceamento imposto pelo governo,
impedindo o acesso aos meios de comunicação, o partido viu-se forçado a fortalecer seus vínculos
com os movimentos de base16. Estas organizações se destacavam pela luta em defesa dos direitos
humanos, liberdade política, organização sindical e pela mobilização dos setores marginalizados
da estrutura socioeconômica.
Foi a grande contrapartida, inesperada pelo governo, em decorrência do "Pacote de Abril". O
MDB tornava-se um partido que perpassava os mais diversos segmentos da sociedade, das mais
distintas posições ideológicas aos movimentos sociais de base. Tendo obtido maior quantidade de
votos para o Senado, graças ao dispositivo de senador eleito pela via indireta, a ARENA garantiu
maioria naquela casa legislativa. Com relação à Câmara dos Deputados, mesmo o MDB tendo
obtido um crescimento significativo, não conseguiu suplantar o partido do governo.
Apesar da ocorrência de diversas eleições - excluindo sempre eleições para o cargo de governador
-, o aparato repressivo continuava atuando firmemente, sobretudo contra a classe trabalhadora,
que começava a dar sinais de reorganização com o surgimento de novas lideranças.
Em decorrência da ação repressiva por parte da facção da "linha dura" do governo, são
assassinados, sob tortura, o jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975; e o metalúrgico
Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976, ambos nas dependências do DOI-CODI do II -Exército. Uma
onda de indignação varre o país e o governo Geisel passa por grande crise interna, que foi
solucionada com a destituição do cargo de Comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila de
Mello.
Em 1978, o poder judiciário dava sinais de independência com o ganho da causa impetrada pela
viúva de Vladimir Herzog, responsabilizando o governo federal pelo assassinato do seu marido.
Esta ação viria a surtir efeito multiplicador dentro da estrutura do Poder Judiciário, favorecendo a
16
Um dos movimentos mais fortes e organizados foi o das Comunidades Eclesiais de Base. Oriundo da
nova prática política da Igreja Católica na América Latina, teve como base teórica a Teologia da
Libertação, chegando a formar uma gigantesca malha articulada na base social do país.
7
luta de todas as entidades civis engajadas na redemocratização e pela defesa dos direitos
humanos. Entidades como a OAB, ABI e CNBB aumentam seu poder de pressão, reivindicando a
extinção dos mecanismos de exceção e a volta do habeas corpus e da liberdade de imprensa.
É ainda em 1978 que o governo Geisel, através de negociações com as lideranças da oposição,
envia ao congresso um pacote de reformas contidos na Emenda Constitucional Nº 11. Isto
significava, na prática, o fim do AI 5, que foi substituído por outros mecanismos mais brandos de
controle político e social.
Com o fim do governo Geisel, estava concluído o primeiro ciclo da "distensão" política, tendo sido
preparado o terreno para dar continuidade ao distencionamento político, com o governo do seu
sucessor, o General João Figueiredo. Este, que seria o último dos generais a governar o país,
estabeleceu como meta uma maior liberalização do regime autoritário, com vistas à transição
para a democracia. Este objetivo foi chamado de política de "abertura".
Importante destacar que, por mais negociações que o governo estabelecesse com setores da elite
da oposição, em nenhum momento se viu ameaçado. Pelo contrário, muito bem apoiado em seu
aparato repressivo, o governo não hesitava em agir com firmeza, reprimindo principalmente os
movimentos reinvidicatórios da classe trabalhadora. Citamos texto de Maria Helena Moreira Alves
(MOREIRA ALVES;1984) que resume bem este período político:
Como a política de "distensão", a de "abertura" compreendia uma série de fases de
liberalização, planejadas e cuidadosamente controladas pelos estrategistas políticos do
Estado, seria aberto um espaço político suficiente para conter a oposição de elite, na
esperança de obter para o Estado de Segurança Nacional maior estabilidade e apoio. Por
outro lado, os parâmetros da "democracia forte" eram definidos de modo a limitar a
participação de setores da população até então excluídos e permitir que o Estado
determinasse qual a oposição aceitável, e qual a intolerável. Grupos ligados aos movimentos
sociais de trabalhadores e camponeses, fossem seculares ou vinculados à Igreja, enfrentaram
repressão contínua e sistemática. Outros setores, que não eram considerados
suficientemente organizados para configurar "antagonismo" ou "pressão" - tal como são
definidos na Doutrina de Segurança Nacional -, puderam reorganizar-se e participar das
decisões governamentais.(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.225)
Nesse período, além de um grande reflorescimento dos movimentos sociais de bases, tais como
movimentos de bairros e Comunidade Eclesiais de Base, renovou-se, principalmente, o
movimento sindical na cidade e no campo.
Foi este movimento sindical, sobretudo o localizado no maior centro industrial do país - São Paulo
- que iria detonar o mais importante impacto questionador ao regime militar. Com as greves de
8
1978, 197917 e 1980, o movimento sindical paralisa a nação e mostra que o Estado de Segurança
Nacional tinha também seus limites. Articulados em uma eficiente e descentralizada estrutura
organizacional, o movimento sindical foi capaz de continuar deflagrando as greves até mesmo
quando se encontravam presos os seus principais líderes.
Ressalte-se que as reinvindicações da classe trabalhadora ultrapassavam as questões meramente
de interesses de classe. Na pauta de reinvindicações, havia desde conquistas salariais e direito de
maior autonomia e organização dos sindicatos, até o fim do regime de exceção, exigindo eleições
diretas para todos os níveis, liberdade de imprensa, anistia política e defesa dos direitos humanos.
A relação entre a sociedade civil e o Estado autoritário estava caminhando para uma situação de
perigoso descontrole social. O General Golbery, principal ideólogo da Doutrina de Segurança
Nacional, passa a defender uma estratégia de descompressão, decentralizando o poder executivo
e aumentando a liberalização política. Uma das principais preocupações dos estrategistas políticos
do regime autoritário era a natureza bipolar - do ponto de vista partidário - do conflito entre
governo e oposição, esta materializada pelo MDB, que cada vez mais contava com expressivo
apoio da população, como vinham demonstrando as sucessivas eleições.
As eleições ocorridas no período assumiam, cada vez mais, o aspecto de eleições plebiscitárias
sobre o posicionamento do eleitorado em relação ao governo. Com apenas dois partidos, essa
bipolarização criava um ambiente favorável para se ampliarem as tensões político-sociais,
desgastando ainda mais o governo. O MDB , apesar de nele conviverem as mais diferentes
correntes ideológicas, para o eleitorado era sempre o partido símbolo da oposição. A solução
identificada pelo General Golbery, cujo objetivo era enfraquecer os oposicionistas, protegendo o
Estado e sua estratégia de liberalização, foi instituir o multipartidarismo, causando um
estilhaçamento no sistema de oposições.
Assim foi que, em 1979, duas importantes leis foram decretadas por parte do governo. A primeira
foi a Lei de Anistia Política18, bandeira das oposições desde o AI-1, e que vinha sendo motivo de
fortes pressões por parte de todos os setores da sociedade. O governo Figueiredo conseguiu, após
intensas negociações com a elite da oposição e com os setores da linha-dura das forças armadas,
chegar a uma proposta de anistia parcial, mas que representava um grande passo para a
redemocratização. A anistia possibilitou o retorno ao cenário político de importantes líderes que
haviam sido cassados e exilados a partir de 1964. A segunda foi a "Nova Lei Orgânica dos Partidos
Políticos” 19. Com ela extinguiam-se a ARENA e o MDB, sob forte protesto dos militantes da
oposição, e se estabeleciam novas regras para a criação de outros partidos.
17
A greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo em 1979 deflagrou a maior onda de greves da
história do país, paralisando cerca de 3.000.000 (três milhões) de trabalhadores em 15 estados da
federação.
18
19
Lei de Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.
Lei Nº 6.767, de 20 de dezembro de 1979
9
Vale ressaltar que a base jurídica que deu suporte ao sistema partidário surgido em 1979 não foi
resultado de pressão política da oposição. Talvez, com o processo de liberalização política, isto até
viesse a acontecer , mas o que se seguiu foi uma estratégia de fragmentação da oposição por
parte do governo autoritário, que, pelas informações que o SNI detinha, sabia que o MDB obteria
a maioria no Congresso Nacional nas próximas eleições.
Veja-se abaixo esclarecedor texto sobre a estratégia do governo nesta fase da vida política
nacional:
Tornava-se, portanto, necessário, como admitiu o próprio General Golbery do Couto e Silva,
tentar dividir e fragmentar a oposição e controlar cuidadosamente a organização dos
partidos políticos. Impunha-se, além disso, agir com rapidez na remodelação do sistema
partidário, enquanto o governo ainda detinha maioria no Congresso (garantida pelos
senadores "biônicos"). A Nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos, de 1979, aprovada no
Congresso sob intensos protestos do MDB, deve ser vista, assim, como parte do "planomestre" a que se referiu Golbery em sua conferência na ESG. Os dispositivos da lei redefiniam
o cenário da política formal e deixavam bem claro o principal objetivo do Estado: garantir o
controle governamental sobre a oposição sem sacrificar as vantagens legimitadoras de
"eleições livres".(MOREIRA ALVES;1984:p.269,270)
Assim, o Sistema Partidário Brasileiro de 1979 surge efetivamente para ser a principal instituição
responsável pela materialização do processo de transição para a democracia. Entretanto, as
condições que permitiriam sua criação foram concebidas pelo Estado de Segurança Nacional
dentro de uma estratégia prevista e absolutamente controlada pelas forças governistas, cujo
objetivo era dividir as oposições e adiar ainda mais a saída do poder.
A ARENA havia seguido sua trajetória apoiando e dando suporte aos atos do regime autoritário.
Quanto ao MDB, que logo de início não detinha a confiança das forças democráticas (estas
deflagraram campanhas do voto nulo até antes das eleições de 1974, numa demonstração de
desconfiança sobre o sistema bipartidário artificialmente criado pelo AI-2), foi se transformando, à
medida que interagia contra os diversos governos militares que ocuparam o poder de 1964 a
1984 , em único espaço disponível legal para a oposição atuar contra o regime autoritário. Assim,
na medida em que o Estado de Segurança Nacional foi agredindo a sociedade brasileira com a
brutalidade do seu aparato repressivo, setores como a Igreja Católica, a ABI e a OAB, entre outros,
foram se aglutinando em torno do MDB, convergindo todos os esforços contra o Estado de
exceção.
Uma interessante análise está na tese de Maria Helena Moreira Alves (MOREIRA ALVES;1984), a
qual aborda a relação entre o Estado de Segurança Nacional, gerido pelos militares, e a oposição,
sob a ótica de uma relação dialética que conseguiu, em certos aspectos, moldar a forma
repressiva de dominação política aplicada contra as lideranças da sociedade civil. A reação da
10
sociedade civil, por sua vez, retroalimentava o sistema para definir novos espaços de maneira a
conduzir à consolidação do super leviatã, que era o Estado de Segurança Nacional20.
Assim, do papel de legitimador do novo regime, o sistema partidário criado pelo Estado em 1966,
passou a garantir o funcionamento de um partido de oposição, o MDB, o qual foi evoluindo até
assumir funções de principal órgão canalizador de toda a insatisfação e questionamento da
sociedade civil contra o regime autoritário.
O MDB, devido ao fato do simulacro de sistema partidário ser bipartidário, adquiriu características
de frente partidária, abrigando militantes dos mais variados perfis ideológicos, inclusive facções
que representavam partidos como o PCB, por exemplo. Suas principais plataformas políticas
sempre foram o fim do Regime de Exceção, e a defesa dos direitos humanos, denunciando,
sempre que podia, a arbitrariedade do sistema repressivo.
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Hoje, março de 2014, cinquenta anos após o Golpe Militar, o Brasil se encontra na fase da sua
história mais rica, em termos de institucionalização democrática. Poder-se-ia dizer até mesmo que
experimentamos uma democracia solidamente consolidada, apesar dos graves problemas sociais.
Entretanto, muitos são os questionamentos sobre nossa “democracia consolidada”, dentre os
quais esta endêmica incapacidade do Estado em se modernizar e exercer suas políticas públicas
atingindo a todos de forma mais efetiva. Outro ponto a se refletir é sobre a classe política e sua
predominante mediocrização, voltada para se locupletar do Estado mais do que atuar em favor da
sociedade civil.
Há ainda, em certas regiões do país, formas arcaicas de dominação e representação política, na
base de favores e currais eleitorais. É comum, até em partidos de esquerda e progressistas, a luta
pelas bases eleitorais, como se estas fossem uma mercadoria ou patrimônio de alguém e, como
tal, podendo ser negociado ou passado como herança para um filho ou herdeiro político.
As formas arcaicas de dominação e representação política, operando sob a égide de instituições
modernas democráticas, são um traço da cultura política nacional que tem se mostrado
indestrutível ao longo de décadas.
Creio que sem mudanças radicais nas estruturas jurídica e política, esse traço, qual um animal
peçonhento, vai continuar sobrevivendo e corroendo as bases da democracia brasileira
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Ver esclarecedora Tabela 9.1- CICLOS DE REPRESSÃO E LIBERALIZAÇÃO in MOREIRA ALVES;1984:p.319.
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BIBLIOGRAFIA
GOLBERY, do Couto e Silva. Conjuntura Política Nacional, O Poder Executivo & Geopolítica do
Brasil. Rio de Janeiro:Ed.Livraria José Olympio, 1981.
MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis :Ed.
Vozes, 1984.
DREIFUSS, René Armand. State, class and the organic elite: the formation of an entrepreneurial
order in Brazil (1961 -1965).(1964: A CONQUISTA DO ESTADO, Ação Política, Poder e Golpe de
Classe). Petrópolis: Ed. Vozes, 1981.
LAMOUNIER & CARDOSO, Bolívar; Fernando Henrique. Os Partidos e as Eleições no Brasil. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
LAMOUNIER, Bolívar et alli. Voto de Desconfiança: Eleições e Mudança Política no Brasil, 19701979. Petrópolis : Ed. Vozes, 1980.
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o golpe militar de 64: da ditadura à abertura.