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REVISTA DISCENTE EXPRESSÕES GEOGRÁFICAS
ENTREVISTA COM O PROFESSOR
CARLOS AUGUSTO FIGUEIREDO MONTEIRO
Entrevista realizada em 08 de Agosto de 2009 na cidade de Florianópolis1
1 - Revista Discente Expressões Geográficas (EG): Para começar, o senhor
poderia comentar um pouco sobre a evolução do pensamento geográfico
brasileiro ressaltando a forma como sua obra nesta se insere?
Carlos Augusto Figueiredo Monteiro (CM): Eu me considero um geógrafo
brasileiro da segunda metade do século XX, atualmente procurando encerrar uma
carreira que, ultrapassando os 80 anos de idade e 60 de militância na Geografia que
se faz no Brasil, há que recorrer a uma visão sumariada e sintética.
Quando ingressei no Curso de Geografia e História na antiga Faculdade Nacional de
Filosofia da então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, graças a Fundação das
Faculdades de Filosofia no Rio de Janeiro e em São Paulo, já estávamos na
vigência de uma “geografia científica” há um decênio. Além da Geografia praticada
na Sociedade Brasileira de Geografia e nos Institutos Históricos e Geográficos, da
Nação e dos Estados vigorava, naquele então, uma “geografia científica”, tutelada
pela Escola Francesa podendo ser rotulada pelos superiores mestres Vidal de la
Blache e Emmanuel de Martonne.
Estudando Geografia e História (1947-1950) e trabalhando como auxiliar de
Geógrafo (1948) no Conselho Nacional de Geografia do então Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE (obra da Ditadura Vargas, de 1937), desfrutando de
uma Bolsa de Estudos do Governo Francês em Paris e Rennes (1951-1953) iniciei
minhas atividades num período de expansão dessa “nova” Geografia que progredia
no Brasil graças à ação tríplice das Faculdades de Filosofia, do Conselho Nacional
de Geografia do IBGE e da Associação dos Geógrafos Brasileiros. A primeira
“formadora” de Geógrafos; o segundo acolhendo profissionalmente aqueles que
praticavam uma ciência cuja pesquisa era considerada como básica para a ação
governamental e ligada diretamente à Presidência da República; e a terceira
promovendo encontros anuais em diferentes cidades brasileiras durante os quais se
incorporavam tanto praticantes das ciências afins como da Geografia Tradicional,
incorporando-se, como “agebianos”, à nova geografia.
De volta da França tive a oportunidade de, como filiado ao IBGE, ser colocado à
disposição do Departamento Estadual de Geografia e Cartografia do Estado de
Santa Catarina ao mesmo tempo colaborando como “catedrático interino” de
Geografia Física, na recém criada Faculdade Catarinense de Filosofia, obra do
educador Henrique da Silva Fontes na capital “barriga verde”, com vistas
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Entrevista realizada por: Elisa Dassoler, Harideva Égas, Ricardo Freire e Ewerton Machado.
Transcrição realizada por: Catarina Karam, Fabíula da Silva, Marcos Espíndola, Ricardo Freire e
Rodrigo Jaeger.
Revista Discente Expressões Geográficas, nº 06, ano VI, p. 01 – 18. Florianópolis, junho de 2010.
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diretamente dirigidas à implantação de uma universidade federal na capital
catarinense.
Ali atuei de outubro de 1955 até março de 1960, trabalhando proveitosamente tanto
no D.E.G.C. (Organização do Atlas Geográfico de Santa Catarina – 1958) quanto na
formação das três primeiras turmas de geógrafos e professores de Geografia. Os
anos 50 assistiam a três eventos importantes, tanto para mim quanto para a
Geografia. Minha atuação em Santa Catarina (1955-59); a separação dos cursos de
Geografia e História nas Faculdades de Filosofia (1957) e a realização do
Congresso Internacional de Geografia promovido pela União Geográfica
Internacional, no Rio de Janeiro. Este evento realizado pela primeira vez no
hemisfério sul, pela sua organização como pelo desempenho dos geógrafos
brasileiros, representou um verdadeiro marco demonstrativo de uma afirmação da
Geografia feita no Brasil.
Para o meu histórico, minha transferência de Florianópolis para Rio Claro, onde
atuei de 1960 a 1964, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, um dos Institutos
Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo, coloca o ano de 1960 como a
fase inicial de minha carreira de Geógrafo (1947-1960) para a qual marca, talvez, a
adjetivação de fase de Iniciação.
Ao longo dela produziu-se o grande esforço na passagem da formação teórica à
aplicação da pesquisa. Além da vinculação à Geografia Física, deu-se, em Santa
Catarina, a “eleição” de minha área de pesquisa para a Climatologia de vez que,
como docente da Física, eu me certifiquei que aquela era a área mais carente e para
onde dirigi meu esforço de pesquisa imprescindível ao professor universitário.
Uma carência individual não pode ser avaliada pela obra produzida, alienada da
situação mundial. E neste sentido o Congresso do Rio de Janeiro é extremamente
importante, sobretudo pelas profundas mudanças ocorridas após a 2ª Guerra
Mundial (1939-1945).
Foi um congresso muito bem organizado, com excursões, com livros guias, que
constituíram a verdadeira geografia regional do Brasil. Foi um grande sucesso e o
delegado brasileiro junto à União Geográfica Internacional (UGI) era o professor
Victor A. Peluso Júnior. Este Congresso foi uma espécie de lançamento, uma
certidão de batismo de uma geografia nascente, como era aquela que estava se
fazendo no Brasil e que em 1956 já deu uma prova de substância, ainda mais depois
da realização do Congresso, o qual juntou figuras importantes dos principais países:
franceses, ingleses e russos, os quais vieram com uma grande equipe de geógrafos.
Houve cursos promovidos pelo IBGE no qual foram convidadas figuras das mais
destacadas do exterior: Orlando Ribeiro, de Portugal; Pierre George de Franca, I.
Sekigute (climatologista), do Japão, além de outros.
Não deixaram de transparecer problemas político-ideológicos. Assim o geógrafo
Jean Tricart, de esquerda, não foi convidado pelo IBGE ou Faculdade de Filosofia, o
que ensejou o convite que lhe foi feito pela Universidade Federal da Bahia, por obra
de Milton Santos, o que resultou na fundação do Laboratório de Geomorfologia, que
tanta importância teve na Geografia daquele Estado.
Foi extremante importante a troca de idéias no encontro de vários geógrafos. Nesta
época o professor Aziz Nacib Ab'Saber já se destacava como geomorfólogo e os
próprios geógrafos que fizeram as excursões para as cinco grandes regiões do
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Brasil - nessa época eu estava em Santa Catarina e acompanhei um trecho da
excursão para a Região Sul, dirigida pelo professor Orlando Valverde e Dora
Romariz, que me pediram para acompanhá-los durante um trecho. Fui encontrá-los
na cidade de Pomerode (SC), depois eu os acompanhei até mais um pouco.
Nos anos de 1960 começam a aparecer os prenúncios das chamadas “revoluções”.
Como tudo na vida muda, mudam as perspectivas e os paradigmas.
Antes mesmo de finalizada a Guerra Mundial (1939-45), o Tratado de Bretton Woods
(1944), do ponto de vista econômico e do poder mundial, foi a passagem do bastão
da Inglaterra para os EUA, já vislumbrando a rivalidade com a experiência socialista
da URSS e dos chamados países do leste europeu. Então ali nasceu a idéia do
Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) que impulsionou o
capitalismo. Depois da Segunda Guerra, com a Guerra Fria, começa também a
pesquisa espacial, iniciada pelos russos (1957) e com a rivalidade com os EUA que
lançam a Apolo 11 (1969). Isso é importante, pois já desde o Congresso organizado
pela UGI que precedeu o do Rio de Janeiro, que foi em 1956 (em 1952 foi em
Washington). Nesse congresso já se viu que havia nitidamente uma reviravolta. A
preocupação com a natureza, com o meio ambiente tendia a amainar e dar ênfase
mais à parte humana, social e, sobretudo, à parte econômica. Havia uma corrente
nos EUA chamada Regional Science, que era ligada ao planejamento e que começa
toda aquela preocupação com a “matematização”. Daí, surgem as chamadas
“revoluções” que vão afetar a geografia.
Embora na reunião do Rio de Janeiro tenha havido uma preocupação com a
natureza ligada ao trópico; às linhas de pedra; aos processos tropicais úmidos;
processos de regiões secas; o que não faz com que se apague a preocupação com
a natureza. Mas o importante é que o peso do econômico passa a adquirir uma
relevância maior. Então, nós atravessamos esse período, digamos “revolucionário”,
que aparece com dois canais que são concomitantes, chamados de “Revolução
Teorética e Revolução Quantitativa”. Teorética – termo que era criticado, pois diziam
que era uma tradução literal do termo em inglês theoretical, mas que não deveria ser
assim – tem a preocupação matemática que é a linguagem da ciência. Então a
Geografia além de não teorizar, o que não é verdade, pois temos, por exemplo, na
climatologia, associada com a meteorologia, a “teoria da frente polar”; o Wiliam
Morris Davis fez a Teoria do Ciclo de Erosão: juventude, maturidade, senilidade. São
abstrações com finalidade didática para explicar os fenômenos. Tanto é que depois
o professor Jean Tricart vai criticar muito, dizendo que é uma série de abstrações.
Claro, para entender a complexidade de um relevo atual, Davis propõe que sejam
abstraídos os fatores “reais” para facilitar a compreensão dos processos.
Na evolução das ciências, segundo o físico Thomas Khun há “períodos normais” e
“períodos revolucionários”. Eu acho que isso é bem válido do ponto de vista da
“sociologia da ciência”, mas há filósofos, por exemplo, Paul Feyerabend (que já
faleceu e era um austríaco radicado nos EUA). Como físico, igualmente ao Khun, ele
o contesta, mostrando que na própria Física não é bem assim, quer dizer, não é tão
simples: “período normal”, “período revolucionário”.
Tomam vulto as idéias de que a Geografia – ao focalizar a “personalidade” das
regiões – preocupa-se com o que é excepcional; que a Geografia não tem lastro
teórico; que não estiliza a linguagem matemática, que é o legítimo veículo da
ciência.
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Esse novo momento da Geografia pode ser balizado entre nós por haver sido
deflagrado entre nós no ano de 1968, quando o IBGE patrocina cursos de Geografia
Quantitativa. Rio Claro, agora unidade da UNESP, encampa o teorético com
produção de dissertações e teses além de revista especializada. Aliás, ainda hoje
uma boa revista geográfica.
Já que 1968 é o ano da minha entrada no Departamento de Geografia da Faculdade
de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, além de ser um marco na evolução
da Geografia entre nós, ela assinala uma outra fase em minha carreira acadêmica.
Entre 1960 e 1968 houve a etapa muito benéfica de Rio Claro onde, entre outras
coisas, produzi uma pesquisa de vulto, calcada no paradigma do ritmo climático,
embora concentrado no fenômeno das chuvas. Graças às especiais condições de
trabalho asseguradas pelo seu dedicado diretor Dr. João Dias da Silveira foi que
pude adiantar meus estudos e escrever artigos dentre os quais aqueles que
enfatizavam a importância da climatologia dinâmica e a eleição do ritmo como o
mais conveniente paradigma para a climatologia geográfica.
Ali – trabalhando com uma dedicada equipe de alunos – elaborei a obra “A Dinâmica
Climática e as Chuvas no Estado de São Paulo”, concluída em 1964, e que só viria a
ser publicada graças ao interesse do Professor Dr. Aziz Ab’Saber, em 1973, quando
diretor do extinto Instituto de Geografia da USP.
Em 1962 participei da Assembléia Geral da AGB, realizada na cidade alagoana de
Penedo, onde, a convite do então Presidente Manoel Corrêa de Andrade, coordenei
e produzi o relatório sobre o Baixo São Francisco, um acontecimento decisivo em
minha evolução como geógrafo. Entre agosto de 1966 e janeiro de 1968 prestei uma
pequena colaboração na instalação do Curso de Ciências da Terra, ministrando a
disciplina de Geomorfologia. Durante minha estada em Brasília tive o ensejo de
redigir minha tese de Doutorado defendida na USP no dia 23 de outubro de 1967.
Creio que este lapso de 1960 a 1967 pode ser considerado aquele de AFIRMAÇÃO.
O período vivido na USP (1968-1987) foi aquele mais longo (20 anos) e o mais
decisivo, motivo pelo qual me aventuro a rotulá-lo de Produção.
Tendo sido grande parte dele vivido na querela das “revoluções”, devo sintetizar aqui
a minha atitude em face destas/das “revoluções”. Na Geografia Física, pelo menos,
a ausência de teoria não era verdadeira. Lembramos W. Morris Davis com o seu
“Ciclo de Erosão” em artifício teórico muito claro e lógico, encarando um processo de
alta complexidade, mobilizando as necessárias abstrações para levar-nos a
entender o processo da elaboração dos relevos terrestres. Em Climatologia, a Teoria
Frente Polar lançada pela escola escandinava de Meteorologia é outro magno
exemplo.
Aliás, a propósito de minha posição pessoal frente às ditas “revoluções”, tive ocasião
de produzir um texto especial para a XXV Reunião da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência - SBPC, realizado no Rio de Janeiro, na Cidade Universitária
da UFRJ (10.07.1973), no Simpósio “A Renovação da Geografia”, sob a presidência
da geógrafa Lysia Cavalcanti Bernardes e publicado no nº 6 da série “Métodos em
Questão” do IGEOG-USP.
Na atividade docente, ministrei quase todas as disciplinas na área de graduação,
exceção àquelas de Pedologia e Biogeografia. Na área de Pós-Graduação – ao lado
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dos professores Ab’Saber e André Libauld – iniciamos a área de Geografia Física,
tendo eu sido, por um longo período, coordenador da área, participando das
reuniões da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas - FFLCH. Durante os 20 anos de atuação na USP tive
oportunidade de concluir projetos de 13 mestrados e de 8 doutorados.
Na Pós-Graduação tive ocasião de iniciar (1972) a disciplina de Introdução aos
Estudos de Climatologia Urbana, uma linha de pesquisa que atraiu não só alunos
regulares de Geografia, mas também colegas de Arquitetura e Urbanismo, Saúde
Pública, Educação Física, etc.
Na USP galguei todos os patamares da carreira acadêmica: Livre Docência (1975);
Adjunção (1982); Titulação (1985). Para a Livre Docência a minha Tese “Teoria e
Clima Urbano”, aprovada pela comissão examinadora e publicada pelo IGEOG-USP
(1976), chamou a atenção de arquitetos urbanistas (não só de São Paulo e Minas
Gerais, mas até da Bahia e do Ceará). Somente após 17 anos apareceram as
primeiras teses de doutorado de geógrafos utilizando a minha proposta. Este fato
ensejou a elaboração da coletânea organizada pelo colega da Universidade Federal
do Paraná - UFPR, Dr. Francisco de Assis Mendonça e editada pela editora
“Contexto” de São Paulo, rotulada “Clima Urbano” (2003).
O interesse de arquitetos urbanistas tem continuado. Ressalto a afinidade e
admiração pela competência da arquiteta Eleonora Sad de Assis, professora da
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, grande pesquisadora sobre o
“Conforto Térmico” e a Climatologia Urbana – graças a quem foi realizada uma
entrevista especial para a revista RUA – Revista de Urbanismo e Arquitetura da
Universidade Federal da Bahia em seu número 9 de janeiro-junho de 2006, entre as
páginas 100 e 107.
Após minha aposentadoria da USP entrei na fase final que poderia ser designada
Arremate. Até 1990, dois anos após a dita aposentadoria, colaborei com os cursos
de Pós-Graduação em Geografia nas Universidades Federais de Santa Catarina e
Minas Gerais, ministrando a disciplina de Análise Geográfica da Qualidade
Ambiental.
Dando por encerrada minha carreira docente escrevi as obras “Clima e
Excepcionalismo: conjecturas sobre o desempenho da atmosfera como fenômeno
geográfico” (Editora da UFSC, Florianópolis, 1991) e “Geossistemas: história de uma
procura” (Editora Contexto, São Paulo, 2000); obras estas contendo autocríticas e
apontando novas tendências para melhoria das investigações.
Para não abandonar a Geografia – após 60 anos de envolvimento – procurei dirigirme a uma temática que, em sendo importante no presente, me fosse possível
realizá-la desvinculado de instituições, sem auxílios de verbas, e de meu deleite
pessoal, passei a interessar-me pela Geografia Cultural, não somente naquele
revival da obra de Carl O. Sauer, mas de uma nova tendência em associar
Geografia e Literatura. Desta fase, iniciada após a aposentadoria (1987) resultou a
coletânea “O Mapa e a Trama: ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações
romanescas”, editado pela UFSC em 2002.
Desde a aposentadoria, após a minha estada no Japão colaborando no curso
Estudos Brasileiros, na Universidade de Tenri, província de Nara (1995-97), tenho
recebido convites dos mais variados centros de estudos geográficos do nosso país,
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o que me tem forçado a inteirar-me do que vem acontecendo, embora seja muito
difícil pela quantidade desses centros como do número de geógrafos e sua
produção.
Algumas dessas palestras, inclusive aquelas que sintonizam Geografia e Arte
abordando cinema e pintura, foram gentilmente coordenadas pela minha prezada
colega e amiga Maria Adélia Aparecida de Sousa na coletânea “Geografia Sempre:
o homem e seus mundos” (Edições Territorial, Campinas, 2008).
Não sei até quando terei lucidez e capacidade para produzir o Arremate Final que se
vê implicado na edição de uma vultosa obra que produzi sobre minha terra, o estado
do Piauí, uma série de seis volumes do qual o primeiro, intitulado “Tempo de Balaio”
vem de ser editado pela Editora da UFSC. Restam cinco volumes de uma série
intitulada “Rua da Glória”. Além disso, há o desafio de escrever o segundo volume
da obra “O Cristal e a Chama” cujo primeiro volume, já elaborado em minha edição
piloto, foi condensado em aula inaugural no ano letivo de 2005 na FFLCH-USP: “O
Sentimento do Mundo entre a Ciência (Geografia) e a Arte (poesia Dramática) no
Nascedouro do Brasil”.
Num momento que me estou apagando e a Geografia sofre os impactos da profunda
Crise Histórica que estamos atravessando, reconheço e louvo o dinamismo e a
atividade geográfica em nosso país, atualmente caracterizada por uma
diversificação enorme na sua temática.
O único ponto que me aflige é aquele do divórcio entre o Homem e a Natureza, com
a proclamação de que a Geografia é uma Ciência Social.
Finalmente creio ter me esforçado em condensar uma vida de 83 anos e uma
carreira de 63 anos. Uma tarefa inglória que talvez ultrapasse o interesse da revista
de vocês. Mas, a partir de agora poderemos divagar sobre questões que sejam do
interesse dos candidatos a geógrafos como vocês. Para “principiar” lanço a questão
do Social na Geografia.
“Geografia ciência social”, é uma idéia que nunca me convenceu. Certa vez disse a
um grupo de alunos que a geografia é como a escola de samba do Salgueiro, nem
melhor nem pior que as outras, apenas uma escola diferente. Isso tem quem critique
e diz: “a geografia é uma coisa excepcional”. Eu acho que ela o é. Diz-se que a
geografia é uma ciência de síntese. E o que é síntese? Síntese é resumo? Síntese é
muito mais, é uma “conjunção”. Para mim o cerne da geografia é o trabalho do
homem em relação com a natureza. Eu estava lendo, recentemente, um livro de
filosofia do francês Luc Ferry, do qual estou gostando muito, cujo título é “Aprender a
Viver”. Ele traduz de uma maneira bem didática e simples toda a evolução da
filosofia; ele mostra, por exemplo, que todas as civilizações da antiguidade são
ligadas à religião, devido ao medo que o homem tem, pois ele é o único animal que
sabe que vai morrer. Então, ele se preocupa com a “salvação”, ele é místico e assim
recorre à religião. O grande passo, o grande estopim no pensamento humano
estourou, não se sabe por que, na Grécia, que ao invés de procurar suas respostas
na “religião” procurou-as através da “razão”. Então, os gregos se preocupavam com
o homem no universo – com a astronomia, com o espaço – ao mesmo tempo em
que se preocupavam com a vida humana, com a sociedade. Heródoto, que foi pai da
Geografia e da História, analisa a Grécia como arquipélago, onde estão as cidadesestado, com fundamento comercial e que entra em conflito com a Pérsia e outros. O
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Egito é um dom do Nilo, um deserto que é atravessado por um rio. Quer dizer, ele se
preocupava com o espaço e com o homem ao mesmo tempo. Essa maldição
dicotômica – “natural versus social” – pra mim não é uma maldição, é um charme da
Geografia. É difícil, mas é algo fundamental e liga a Geografia, com parentesco bem
persistente e legítimo, com a Filosofia. Entender o homem, o mundo, e procurar ser
feliz, essa a preocupação dos filósofos, que deveria ser a nossa também.
Intervenção do Prof. Ewerton Vieira Machado* (EM): Eu penso que o Prof. Manoel
Corrêa de Andrade e o Prof. Milton Santos, os dois dizem que a Geografia é uma
ciência da sociedade, não que ela deva trabalhar somente com a questão social,
mas é a forma de como articular a idéia do trabalho, das mudanças, das
transformações. Que sem a natureza não existe o trabalho e sem a ação do homem
não existe a geografia; o que dá sentido a essas duas possibilidades de entender
essa coisa que é plural, que só ela tem esse “charme” ao qual você se refere. Então,
quando o Professor Manuel Corrêa de Andrade diz assim: “A geografia é uma
ciência social”, é no sentido de entender não apenas a sociedade pela Geografia,
mas compreender como é que o homem vai incorporando, pela ação cultural à
natureza, porque ele também é natureza, nessas mudanças que é isso que o Sr. nos
fala: “o tempo todo está realizando verdadeiras revoluções”. O prof. Manoel tem uma
visão nesse aspecto muito interessante.
CM: Eu nunca encontrei dificuldade. Eu fui professor de Geografia Física, a minha
climatologia era dirigida para a humanidade, para sociedade. Quando eu vou
procurar o paradigma do ritmo climático não é para prever o tempo, é para ver a
relação que o homem tem em face do comportamento da atmosfera.
EM: Eis aí o papel inovador da climatologia e das pessoas que trabalham com essa
perspectiva de climatologia e do seu papel. Porque o senhor introduziu uma visão,
que pouca gente ainda não trabalha na climatologia, somente os seus discípulos
aprenderam e estão exercitando e querem incluir a idéia do ritmo, da dinâmica, para
fazer uma “Outra Geografia”.
CM: Sobre a idéia de ritmo, as pessoas dizem que o Carlos Augusto segue o Max
Sorre. Eu sigo uma crítica que o Maximilien Sorre fez da climatologia. Ele diz que
para o homem essa climatologia de média, de estado médio da atmosfera sobre um
lugar não tem muita significação, porque o comportamento do homem, da sociedade
é um comportamento rítmico, ele trabalha, ele planta, ele colhe, ele navega, ele
pesca; há todo esse entrosamento. Eu realmente segui essa crítica do Sorre, como
também segui a crítica do professor Jean Tricart que disse que essa climatologia de
estado médio não serve para entendermos os processos geomorfológicos. Tem que
ser uma coisa mais dinâmica, assim como existe a Geomorfologia dinâmica tem que
haver uma Climatologia dinâmica. Então a minha contribuição não foi inédita, tudo
que eu mobilizei já tinha um “pé” aqui, um “pé” na Escandinávia e em outros lugares.
O primeiro gráfico de ritmo climático aparece no manual de Arthur Strahler, só que é
no nível mensal. Nos escandinavos eu vi que eles chegavam ao nível diário, mas
quando eu vou eleger um ano padrão para explicar uma correlação rítmica, eu vou
escolher o recorte mais miúdo possível que é o horário.
Por fim, claro que a Geografia Humana sempre “dá mais ibope” que a Geografia
Física, todo mundo sabe que se em uma turma for contado o pessoal da Física e da
*
Professor do Departamento de Geociências – CFH/USFC.
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Humana, o pessoal da humana ganha longe. “Dá mais ibope”. Nem sobre a questão
ambiental os geógrafos tomaram tento de que era importante e acabaram perdendo
espaço para muitas outras coisas de hoje em dia: Geologia Ambiental, Engenharia
Ambiental. Não é que o geógrafo fosse o dono da questão ambiental, mas ele tinha
o direito, tinha a obrigação, por ser uma ciência conjuntiva, integrada, de se
preocupar com a questão ambiental, coisa que ele não fez. Pode ser que agora tal
situação esteja melhorando, mas eu não vejo geógrafos “na crista” desta discussão.
Eu vejo meteorologista falar, etc., mas não geógrafos. Eu ainda devo insistir em um
ponto. Eu penso que na geomorfologia tem pessoas que são, de certa forma,
colocadas de lado. Na tese do Professor Ewerton V. Machado (outubro 2000), foi a
última vez que eu encontrei Milton Santos, e em certa ocasião ele me perguntou:
“Você acha que Geomorfologia tem alguma coisa a ver com Turismo?” Eu disse:
“Não Milton, foram os açorianos que fizeram as 42 praias da Ilha de Santa Catarina
‘no porrete’, ‘na marretada’. Foi o homem que fez essas praias.”
2 - EG: Como o Sr. avalia, principalmente na perspectiva da “Geografia Física”,
com suas áreas cada vez mais autônomas (como a Geormorfologia,
Climatologia e Sensoriamento Remoto - como observamos nos mais variados
eventos científicos), essa segmentação? E como fica o entendimento
de questões, como por exemplo: a degradação ambiental, os desastres
naturais (riscos climáticos)?
CM: É exatamente isto que eu acho importante. Para amarrar com a questão
anterior eu diria o seguinte, eu insisti e talvez minha contribuição tenha sido esta de
mostrar a importância do ritmo. Por quê? Por causa do homem, por causa da
atividade humana. Não vou prever o tempo. Eu quero saber o que a atmosfera está
fazendo no âmbito do trabalho do homem e esta é uma preocupação que não deixa
de ser social – tem um dado de base física, mas desemboca em um problema do
homem. Isto eu falo desde os anos de 1960. Agora, o Henri Lefebvre fala da
importância do ritmo e diz até que deveria haver uma ciência chamada “ritmologia”.
Aí então, eu estava dando aula na Geografia Humana da Universidade de São Paulo
(USP) e uma menina me vem e diz: “Ah, o Lefebvre falou na importância do ritmo”; e
eu lhe disse: “Pois é, enquanto o Carlos Augusto falou não teve a mínima
importância”. Agora veja, tem que vir um sociólogo francês pra dizer que o ritmo é
importante. É assim em todas as coisas e no Brasil isto é marcante. Foi em 1984,
quando o Antonio Christofoletti, em Rio Claro – SP, propôs a criação dos seminários
de Geografia Física Aplicada (este nome, “Aplicada”, foi colocado diplomaticamente
pra não fazer um circo completo). Agora, por quê? Porque a AGB, desde a
assembléia de 1978, passou a colocar como temário cada vez mais o “humano” e
cada vez menos o “físico”. Assim, as pessoas já não mais faziam o que o Antonio
Christofoletti fez com esta proposta que começou com o seminário de 1984 em Rio
Claro e que continua até hoje. Depois o que é que acontece? O pessoal de
Climatologia também fez um seminário. O pessoal da vegetação – a gente nunca foi
muito forte em Biogeografia, mas tem gente que passa até a seguir os eventos dos
botânicos, por causa da ponte entre os temas. Então, esse cisma que é uma coisa
extremamente desagradável. Agora, tem pessoas como a minha colega, que estimo
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muito, a Tereza Cardoso da Silva, da Bahia, que diz: “eu não me incomodo com
essa briga. Eu faço Geomorfologia e vou continuar fazendo e quem quiser que
brigue, entre física ou humana, eu tenho uma área definida de pesquisa que é a
Geomorfologia”. Eu não vou me preocupar em dizer: “Eu faço Climatologia e não
quero relação. Não, eu fiz Climatologia porque é uma coisa fundamental para o
comportamento humano. Não sou meteorologista, tenho um objetivo completamente
diferente. Acontece que o pessoal da Geografia Humana também e com certa razão,
critica que o geomorfólogo está chegando a um alto nível de detalhamento (por
exemplo, nos estudos sobre o quaternário; as mudanças climáticas; os
paleopavimentos; a sedimentologia).
Assim, se está mergulhando cada vez mais na análise e esquecendo-se daquela
relação entre meio físico e componente humano. A meu ver, de certa maneira,
apesar do “cisma”, tem havido alguma aproximação. Na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, há a geomorfóloga Ana Luíza Coelho Netto que
faz uma geomorfologia bem detalhada e que se alia com a Lia Osório Machado e
outros, fazendo esse conjunto, unindo a geomorfologia com os problemas urbanos e
agrários, etc. Quer dizer, há uma esperança nisso. Agora, a parte da Geografia
Humana a gente não sabe e hoje em dia é difícil dar conta do que acontece, porque
existe uma grande quantidade de revistas – e vocês são a prova disso, além das
revistas tradicionais existem ainda as revistas virtuais -, assim fica impossível de se
dar conta de tudo que está acontecendo para fazer um levantamento, hoje em dia é
impossível. Teria de ser uma equipe enorme para fazer isso, pois, por exemplo, só a
USP tem quatro revistas (dos alunos de pós-graduação; dos alunos de graduação
também, que é uma revistinha mais simples, mas tem). Então, dar conta de todos
esses departamentos de Geografia que felizmente estão publicando, pois, inclusive,
é necessário, se exige que se publique. Mas, a gente vai nesses eventos, nessas
reuniões e encontra coisas desse tipo, por exemplo: lá na Reunião do Espaço e
Cultura que o Roberto Lobato Corrêa e a Zeny Rosendahl estão promovendo de
dois em dois anos, a gente testemunha coisas assim do tipo: uma moça vai
apresentar um trabalho sobre “gênero” – a primeira vez que eu vi uma apresentação
sobre a questão de “gênero” foi de uma antropóloga americana que eu assisti em
Curitiba. Então, um antropólogo faz estudo de gênero, um geógrafo faz estudo de
gênero e você não percebe diferença entre os dois. É a mesma coisa, pois claro,
qual o problema de gênero? Nesse trabalho que eu vi da americana, estudando os
Andes, ela no trabalho de gênero chega aos pormenores sobre o comportamento
das sogras com as noras. O movimento social valoriza o trabalho da mulher que é
muito submissa em relação ao homem, mas a sogra não admite que a nora faça tais
tarefas. Quer dizer, a meu ver isso é uma coisa absolutamente social onde você não
encontra uma diferença entre um trabalho e o outro. A Geografia e a Sociologia
estudam gênero e você lê um trabalho de cada uma dessas disciplinas e não sabe
qual é a diferença entre eles. E houve um episódio interessante, em que uma colega
do Paraná apresentou seu trabalho, até que bem interessante - eu não acho que se
deva pensar como: “isso é geográfico e a partir daqui não é mais”, é difícil
estabelecer esse limite. É que a gente constata certos problemas, certas
semelhanças, não estou condenando isso. Posso não aprovar porque não entendi
ainda, mas tampouco estou reprovando, pode ser que se tenha razão. Um colega,
depois que a colega falou sobre “gênero”, chegou e fez uma grosseria dizendo
assim: “Agora vai ser conversa de macho”. Todo mundo ficou estarrecido e a moça
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ficou corada com ele dizendo que agora era conversa de macho e não conversa de
mulher, conversa de gênero. Foi muito mal, sendo grosseiro dessa forma.
Então, você vê dos dois lados, tanto da Geografia física como da humana, as
pessoas vão se esquecendo do cerne da Geografia e caindo uma na área
pormenorizada de análise de sedimentos, dos minerais e a outra na briga da sogra
com a nora. Isso é uma coisa que eu acho ser própria desse momento. Agora, veja
bem, no momento em que, como eu disse, a partir daquele qüinqüênio (1968-73),
entramos em uma grande crise, é normal que haja essa efervescência toda. E eu
sempre digo aos meus alunos: “Não se espantem”, quando eles dizem: “Logo agora
que chegou nossa vez o mundo virou de pernas para o ar”. O que se vai fazer? A
Geografia vive a procurar saber qual é o seu objeto. Há sessenta anos eu ouço esse
problema e eu digo: “Minha gente, como é que vocês querem que o geógrafo seja
respeitado se os praticantes da Geografia ainda discutem qual é o seu objeto?”
Então, esse problema agora está agravado, fruto dessa grande crise a qual a gente
atravessa. Não vai ser resolvido agora, vai depender da produção de vocês.
Agora, da Inglaterra, que foi um dos viveiros da Geografia Quantitativa e Teorética,
apareceu um trabalho (que eu encontrei em Londres em 2005) intitulado “Unifying
Geography – Common Heritege, Shared Future”, uma coletânea organizada pelos
geógrafos John Matheus e Davyd Herbert, Londres, editora Routledge, 2004. Eu o
adquiri na minha última passagem por Londres em 2005, em companhia do colega
Francisco Mendonça, da UFPR.
Trata-se de uma primorosa análise da Geografia atual, demonstrando o
esfacelamento atual de nossa ciência e preconizando a importância de um “retorno”
ao “core” da Geografia, ou seja, a visão “unificada”, integrada, conjuntiva da
Geografia.
Os organizadores editoriais (“readers”) fizeram um trabalho original, considerando
especialistas de diversas áreas, dispondo-os em conjuntos, apresentando e
comentando os diferentes blocos. Consideram que há uma herança passada muito
preciosa para ser abandonada e que essa visão conjuntiva, unificante representa um
“core” a ser revalorizado.
Bom, eu devo dizer que fui um geógrafo do século XX, minha carreira está
encerrada, eu deixei de fazer pesquisa – Climatologia!? Não quero nem mais ouvir
falar, quer dizer, já dei o recado e disse o que tinha que dizer, já o fiz. Os que foram
meus alunos ou por mim orientados, se aproveitaram alguma coisa, continuem. Eu
não quero mais, eu vou fazer outra coisa que esteja ao meu alcance. Não vou parar.
Minha Geografia é um seio de Abraão, ela é muito rica. No momento em que eu
abandonei a Climatologia – sou uma pessoa aposentada, não tenho apoio de
instituição, não tenho um funcionário ou um ajudante, não tenho um aluno pra me
ajudar (na universidade e na pesquisa deve haver um entrosamento muito grande
entre professor e aluno, trabalhando em laboratório onde os alunos podem dar
trabalho para a gente, mas ajudam muito. Na pesquisa a gente distribui assuntos
para mestrado e doutorado, mas dentro de certa linha de pesquisa). Mas quando
você se vê sozinho em casa e não quer parar, o que você faz? Você escolhe algo
que possa ser feito com as suas próprias forças. Outra solução que se pode ter, e
que é legítima, é recorrer a essas agências de financiamento como a FAPESP, o
CNPQ, a CAPES, mas eu odeio todas elas. Sou independente, faço aquilo que eu
posso fazer com os meus recursos. Então, eu disse que “pendurei a chuteira”, mas
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não vou parar e vou continuar com a Geografia. Assim eu vou pendendo para o lado
da necessidade do “novo humanismo”, e para o lado da Geografia Cultural e vou
fazer relacionamento da Geografia com a Literatura e com as artes. Esse é um
caminho que eu posso trilhar sem ajuda de financiamentos, sem apoio institucional e
por minha conta.
A comunidade geográfica brasileira é muito gentil e me convida – agora mesmo eu
tenho que ir à Curitiba, onde eu vou receber um prêmio, uma homenagem, que me
satisfaz muito, pois tem o nome do Manuel Correia. Para não ser “científico” (e eu
abomino o cientificismo, mas gosto muito de símbolos, o que, por vezes, choca
alguns colegas).
Um dos textos mais “enigmáticos” que já produzi, apareceu na edição comemorativa
do cinqüentenário da Revista Brasileira de Geografia, criada pelo IBGE em 1938, um
ano após sua fundação pelo Estado Novo de Vargas. Ao lado de contribuições de
Aziz Nacib Ab’Saber, Speridião Faissol, Pedro Pinchas Geiger, Berta Bercker. O
meu é o último. Para mim o tema seria “As Tendências atuais da Geografia”, produzi
um trabalho que chamei “Travessia da Crise”.
Esse meu trabalho é meio louco, ele é todo ligado com coisas de arte que é a minha
tendência – aproximar ciência a arte. Começo com “A Torre”, sobre um poema de
Willian Butler Yeats, poeta irlandês: “do alto da torre para observar”. Essa imagem
da torre é para ter-se exatamente um panorama amplo onde se pode ver o que está
acontecendo. Depois uma epígrafe de Jorge Luis Borges sobre “o labirinto”, que são
os diferentes caminhos em que a Geografia está aparecendo. “Os espelhos” são as
visões filosóficas de várias procedências. E por último “os sinos”. Essa é a parte
sobre a qual as pessoas mais me perguntam. Intui os sinos como sendo, depois da
confusão, o sinal de uma luz, uma alvorada, uma esperança. Agora preciso escrever
outro artigo (eu me sinto na obrigação de fazê-lo), explicando essa última idéia que
foi intuída por mim e que só agora pode ser compreendida melhor, pois tem uma
série de coisas importantes que eu não tinha feito porque, como eu digo, eu não me
fecho só na Geografia, há uma coisa muito importante para explicar essa coisa dos
“sinos”, que é a coisa mística. Quer dizer, tem o lado da razão, mas tem o lado do
misticismo também. E o que acontece no mundo de hoje? Há uma revolução
religiosa.
A Igreja Católica debate-se em sérios problemas. Os evangélicos se multiplicam
posto que cada um que lê a Bíblia cria uma nova visão protestante. Os islâmicos
estão em guerra contra o mundo. Há muito fundamentalismo. Tal preocupação
religiosa é uma função das calamidades do presente que ressaltam a idéia de
“salvação”.
Luc Ferry, filósofo francês (ex-ministro da Cultura) e o crítico literário norte
americano Harold Bloom (o grande especialista em Shakespeare) estão produzindo
obras extremamente benéficas à nossa compreensão do mundo atual.
EM: Mas o senhor faz tal alegoria em seu texto, pela sua capacidade, primeiro, pelo
conhecimento que o senhor dispõe – mesmo o senhor dizendo que só está
aprendendo filosofia agora, mas o senhor já tinha toda uma discussão filosófica pela
carga de leitura que tem – e depois pela autoridade que o senhor tem para fazer
aquilo, porque qualquer um que está começando hoje não pode fazê-lo, pelo menos
tem que seguir alguns parâmetros até o ponto em que dominam. Alguns já querem
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começar já discutindo a Geografia como Arte. Não, eu acho que tem que se ter uma
carga boa de aprendizagem, um acúmulo de experiências para poder em cima disto
poder desenvolver tal relação.
CM: Tem um trabalho meu que eu gosto muito, que eu acho que é a “minha cara”,
que é aquele que eu fiz no Japão, sobre a desertificação no Nordeste e foi publicado
lá. Eu entreguei em abril de 1982 e foi publicado em 1988. Este trabalho é
completamente fora de todo o padrão. Nele eu analiso o nordestino como um
“fazedor de desertos”. É uma espécie de julgamento dele. Toda a parte analítica foi
sintetizada em ilustrações (Bloco diagrama geomorfológico, gráficos do ritmo pluvial
anual, distribuição demográfica, etc. etc.) enquanto o texto foi dirigido para o
“julgamento” do sertanejo, cujos entrevistados que eu designei de Severino nº1, nº 2,
etc. ressaltam a importância das variáveis sociais. Essas “liberdades”, para muitos,
desqualificam o “científico” da abordagem. Mas, além de infringir esses cânones,
nunca forcei meus orientandos a acompanhar-me. Eles próprios tinham perfeita
consciência de que seriam “reprovados”.
3 - EG: O Sr. recentemente realizou estudos aliando Geografia e Literatura.
Poderia traçar um panorama desse nicho de investigação dentro da
Epistemologia da Geografia?
CM: Três anos antes de minha aposentadoria da USP (1984), ao comparecer ao
Congresso Internacional de Geógrafos da UGI, em Paris, como uma reação às
diretrizes que estavam sendo dadas ao “espaço”, tanto na Literatura (o “nouveau
roman” na França) e Geografia e Literatura na Inglaterra, adquiri bibliografia tratando
desse problema.
Vislumbrei ali um tema de investigação que bem poderia servir-me após minha
aposentadoria que jamais seria uma “paralisação”, mas uma continuação
direcionada a novos rumos. Sempre gostei de literatura e creio que, pelo menos em
boa parte, meu interesse pela Geografia advém dessa curiosidade sobre “os
mundos”. Assim, a partir do ano seguinte de minha aposentadoria da USP (1988)
comecei a analisar obras de alguns ícones de nossa literatura. Algumas análises
foram se acumulando e se viram acrescidas durante o tempo que estive no Japão
(1995-97). Assim, acumulou-se um número de análises que passaram a compor a
coletânea rotulada “O Mapa e a Trama – Ensaios sobre o conteúdo geográfico em
criações romanescas”, editada pela UFSC.
A vinculação epistemológica entre Geografia e Literatura encontra-se no plano da
“descrição”. Desde a designação inicial a Geo-grafia principia pela “descrição”
passando, obrigatoriamente, pelas etapas cientifizantes de interpretação, explicação,
etc. Com o progresso da preocupação científica da Geografia, a descrição foi
decaindo. A evolução da preocupação “espacial” projetada para o social e o
econômico, e abominação da noção de “paisagem”, a descrição geográfica decaiu
muito. Não há a menor pretensão de que a Literatura venha a sanar os pecados da
Geografia, muito menos, “substituí-la”. Trata-se, simplesmente, de enriquecê-la,
iluminá-la esteticamente.
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Esta preocupação aliada àquela da linguagem “cultural”, tanto no “revivel” da
abordagem de Carl O. Sauer, como do direcionamento para a elaboração de um
Novo Humanismo, vem impulsionando esta linha de pesquisa que se amplia para o
campo das Artes. É o meu caso atual que pretendi ilustrar com a elaboração da
coletânea “Geografia Sempre”.
4 - EG: Em seu livro “Geografia Sempre” (2008), em especial no ensaio
dedicado ao artista plástico Miguel Dutra, o senhor apresenta não somente
reflexões sobre os conteúdos geográficos contidos na pintura deste artista,
mas também aponta para reflexões acerca do uso das novas tecnologias no
campo imagético da ciência geográfica. Se antes do surgimento da fotografia
os pintores iam à natureza para, in lócus, retratá-la; no período subseqüente
ao advento da referida técnica a maioria dos artistas passaram a reproduzir
suas pinturas a partir de fotografias e cartões postais, ou seja, a fotografia
conferia o grau de mediadora entre o olhar do pintor e a natureza. Já na
atualidade, na chamada “Era Digital”, se fazem cada vez mais comuns
processos artísticos através da manipulação de imagens que dispensam
qualquer preocupação com o real. Visto que a fotografia, desde sua
popularização, se apresenta como importante ferramenta de trabalho para o
geógrafo, principalmente em seus trabalhos de campo, o que o senhor pensa a
respeito da manipulação de imagens e como as novas tecnologias podem
potencializar as investigações nos estudos geográficos?
CM: Esta questão, tão fundamental quanto longa, admite duas considerações. Uma
artística, outra técnica. Quanto ao primeiro aspecto, projetando a Geografia no
campo geral da “cultura” tenho uma preocupação mais ampla. Sempre tentei
associar ciência e arte. Uns dizem que a Ciência é elaboração e a Arte é criação,
mas eu acho que uma Ciência tem muito de criação também, assim como a arte tem
muito de elaboração. Então, o grande impulso que me levou para esta experiência
está na raiz da Geografia. Em “O Cosmos”, de Humboldt, há um capítulo inteiro
sobre a importância da literatura na descrição das paisagens, inclusive há quatro
páginas em que ele fala de Camões em “Os Lusíadas”, ressaltando que o autor tinha
um elevado conhecimento da Natureza, sobretudo da vida marítima. Ele tem outro
falando sobre a importância da pintura, do paisagismo na revelação das formações
vegetais. Percebe-se, assim, que a associação da ciência e arte está nas raízes
científicas da Geografia. Quanto ao trabalho de Miguel Dutra não importa
(esteticamente) o que dele acham os críticos especializados. Ressalto que Mário de
Andrade que lhe faz restrições estéticas, reconhece em sua obra um grande valor
iconográfico. E é realmente isso que interessa, não se o traço dele é acadêmico,
abstrato ou “naif” (ingênuo). Na verdade, a temática que ele ilustrou foi a
implantação do café naquela região. Quando mostra a queimada, os troncos de
árvores carbonizados, o surgimento da casa grande, da plantação do café e a
senzala, da evolução dos povoados que vão nascendo, é uma documentação muito
importante. Daí ocorreu-me a possibilidade de um tal documento poder subsidiar
pesquisas de geografia histórica de hipóteses e mapas conjecturais como aqueles
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das pesquisas de nosso colega Maurício Abreu da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, sobre a origem do Rio de Janeiro.
Quando Humboldt nos fala da importância das paisagens “pintadas”, ainda não
chegamos à “fotografia”, mas a importância do daguerreótipo já impressionara o
naturalista prussiano, pai da Geografia. Sempre dei muita importância – não só
ilustrativa, mas documental da Cartografia. A fotografia é tanto técnica a serviço da
ciência quanto arte nela mesma. Recordo a atuação de nosso querido colega João
José Bigarella e o uso que fazia das câmeras polaroide no trabalho de campo, para
a elaboração de perfis de solos. Quanto ao lado artístico, lembro o fotógrafo francês
Cartier-Bresson. Hoje se monta (edita) um trabalho de mestrado ou doutorado de
maneira muito mais fácil, trabalhando os dados no computador e com programação
visual. É um progresso técnico extraordinário. Com todas essas facilidades do uso
de técnicas computacionais temos de nos lembrar que são ferramentas básicas para
o desenvolvimento de trabalhos geográficos, tanto para documentar quanto para
ilustrá-los.
5 - EG: “As pancadas de chuva fizeram surgir muitas aventuras’. Diminuição
da força mágica da chuva. Capa de chuva.” (Walter Benjamin). Como o Senhor
encara a possibilidade de “reencantamento” da disciplina Climatologia pelo
destaque de seu conteúdo geográfico e sua relação com o cotidiano dos
indivíduos? Por outro lado, quais as possíveis contribuições desta disciplina
para o exercício de cidadania dos sujeitos?
CM: Esta menção de Walter Benjamin não podia faltar aqui nesta entrevista, o que
demonstra que vocês estudantes de Geografia estão sintonizados com a
“inteligentzia” brasileira.
O fato de haver abandonado a pesquisa em climatologia não tem a menor relação
com a importância do clima na vida das pessoas, no quotidiano de todos nós.
Bernard Shaw, o irreverente irlandês dizia que se não fosse a fala sobre o “tempo
que faz”, os romances ingleses seriam consideravelmente diminuídos em seu
número de páginas.
A preocupação com o “tempo” (momentâneo) que faz e as condições (anuais) do
“clima” faz parte do nosso dia a dia. Precisamos de suas informações para saber
como nos vestir, nos agasalhar no dia, bem como das tendências vigentes nas
regiões por onde pretendemos viajar. Para os agricultores, comerciantes,
desportistas, para os mais variados tipos de profissionais o comportamento da
atmosfera que nos envolve é da maior importância.
Para ilustrar a relação com a “cidadania” poderia apontar uma pequena pesquisa
feita sob minha orientação de um bolsista de iniciação científica quando estava à
frente do Laboratório de Climatologia do IGEOG-USP. Feito por uma moça
mexicana – Maria Christina Mendoza de Guadarrama – cujo marido era bolsista de
medicina; ela apareceu um dia no laboratório dizendo que era professora de
Geografia, do que seria o Colégio de Aplicação, da Universidade Autônoma do
México, e gostaria de fazer um estágio. Eu achei a moça muito simpática e
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interessada. Pedi uma bolsa de iniciação científica que ela felizmente recebeu da
FAPESP. Então dei um assunto pra ela. Nós tínhamos acabado de ler nos jornais
que um “japonês”, no interior de São Paulo, tinha se suicidado porque tinha perdido
toda a safra do arroz. A partir deste episódio fomos investigar e o trabalho resultou
num dos mais interessantes da minha série de boletins de climatologia (nº 3). O fato
do japonês ter se suicidado porque perdeu a safra, foi um fato localizado em tal
espaço do estado de São Paulo. Agora, nós vamos ver o que foi que aconteceu.
Vamos ter que ver qual foi a sucessão do tempo, o que aconteceu na safra deste
ano. Tínhamos a análise dos dados, os postos mais próximos daquela localidade.
Fizemos o gráfico rítmico e descobrimos que exatamente no momento da cacheação
(de fazer o cacho do arroz), houve uma seca. Então, a safra foi perdida. Agora, qual
foi a repercussão disto? Um fato local, o coitado do japonês se suicidou porque teve
prejuízo. Mas o que aconteceu em São Paulo, na capital? Nesse momento da
pesquisa ela foi para Bolsa de Cereais coletar dados da entrada do arroz naquele
ano, naquele período; não aconteceu nada. Por que não aconteceu nada? Porque o
Brasil é enorme e tem várias regiões arrozeiras. Então esta variedade de espaços
de cultura de arroz garante o abastecimento da grande metrópole. Há o arroz do Rio
Grande do Sul, que é de uma época; o arroz do Maranhão que é de outra; o arroz de
Goiás que é de outro momento, etc. Assim, não houve problema em relação a São
Paulo. Acredito que seja um trabalho bem interessante. Você parte de uma série de
idéias, que é um acontecimento colhido do jornal. Aí você vai destrinchar e ver sua
relação com o clima. Não é o estado médio daquele ano, mas foi explicado porque o
ritmo da evolução da chuva e da temperatura, no momento crucial da produção do
arroz, falhou. A relação percebida é projetada em relação à grande metrópole
nacional que encontra explicação por causa do espaço brasileiro; que tem um
sincronismo regional de várias regiões arrozeiras em épocas diferentes de produção,
o qual garante o abastecimento da grande metrópole. Isso é o meu entendimento de
interpretação geográfica. Concluída a bolsa do marido o casal retornou à capital do
México onde, em minhas viagens, os visitei duas vezes.
6 - EG: Partindo da compreensão de que vivemos atualmente uma grave crise
histórica, quais são os obstáculos colocados neste momento à difusão dos
chamados “espaços de solidariedade” no âmbito da produção social e qual o
papel da América Latina nesse processo?
CM: Embora tenha viajado muito, movido por uma curiosidade por novas terras e
novos povos – uma motivação legitimamente geográfica – a América Latina foi a
menos visitada. A exceção do México, onde estive quatro vezes, de uma vez na
Guatemala (1965), uma no Peru (1986) em trânsito para a então URSS, uma na
Argentina, em trânsito para Austrália, nada mais conheço.
Creio que para a Geografia Humana, na temática sócio-econômica e geopolítica, a
América Latina é um universo do maior interesse. Para a Geografia Física, no caso
brasileiro, as abordagens parecem restringir-se à América do Sul onde o quase
continente que é o Brasil vê-se circulado pelo rosário de países hispano-americanos.
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Já do ponto de vista artístico, literário ela dispensa, de minha parte, um grande
interesse. De Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Garcia Marques e outros mais
emergem os problemas que podem configurar a idéia de “espaços de solidariedade”.
EG: O caso é que nosso colega fez esta questão com base em um texto do
senhor publicado sobre a América Latina.
CM: Embora relutando em aceitar o convite da colega Amália Ignês Geraiges Lemos
para proferir a conferência de encerramento da EGAL realizada em São Paulo em
2006, acabei aceitando. Mas isto obrigou-me a analisar algumas obras de vulto, o
que resultou num gratificante resultado. As análises de obras do brasileiro Manoel
Bonfim (1868-1932); do uruguaio José Enrique Rodo (1976-1917); do americano
Richard Morse; do mexicano Octavio Paz (1914-1998), cometi o texto que rotulei de:
“América Latina: da criação passada à invenção necessária”2 abordagem que
negligencia o socioeconômico e mergulha no sentimental.
7 - EG: Como o Sr. avalia a evolução recente das condições de vida nas
cidades brasileiras e de que modo se vêm estruturando as instituições
cientificas (em especial, as Universidades) no Brasil, como forma de responder
aos atuais problemas vividos pelo povo brasileiro?
CM: Essa é uma questão muito difícil. Mas eu acho o seguinte: como tudo no Brasil
é atrapalhado, fico impressionado, às vezes, com o progresso, o crescimento das
cidades infelizmente acompanhado da miséria e da violência. De minha experiência
pessoal acho que o papel e o reforço dos intelectuais e cientistas – os produtos das
Universidades (que se multiplicam) – não são incorporados.
Esta questão do papel das Universidades é um tema fascinante para mim. Mas é
uma questão difícil. Desde que me aposentei dela, venho juntando material, dados,
informações sobre este tema. Se tiver saúde e lucidez por mais alguns anos gostaria
de utilizar minha experiência para, através de um depoimento, abordar esta questão
que não é fácil. No momento presente seria desrespeito abordar esta questão.
EM: Qual foi a contribuição do senhor na formação dos jovens para a Geografia
brasileira?
CM: Digo sempre que prefiro ser lembrado como professor a sê-lo como geógrafo e
pesquisador. Minha obra é assinada e datada. Ela vai durar algum tempo e um dia
ela vai ser ultrapassada. Não tenho a menor dúvida disso. E magistério é o lado
social. Eu, por exemplo, tenho horror à política, nunca me filiei a partido. Exerço
apenas o meu direito de voto. Minha trincheira era a sala de aula. Na Universidade
2
MONTEIRO, Carlos Augusto de F. A América Latina: da criação passada à invenção necessária. In:
DE LEMOS, Amália I. G.; ARROYO, Mônica; SILVEIRA, Maria L. America Latina: cidade campo e
turismo. São Paulo: CLACSO (Conselho Latino americano de Ciências Sociais), dezembro de 2006.
Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/edicion/lemos/02monteiro.pdf>.
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empenhei-me não apenas em formar geógrafos ou professores do ensino médio de
Geografia. Fiz o possível para interessar meus alunos nas diferentes faces da
“Cultura”. Na Pós-Graduação, além da abordagem específica dos conteúdos
geográficos, oferecia também seminários “facultativos” abordando temas literários,
filosóficos, artísticos. Creio que para entender o(s) mundo(s), o Geógrafo não pode
ficar confinado apenas no econômico e no político. Para alguns a Geografia é ou
deve ser uma guerrilha para implantar a “sociedade justa, fraterna e solidária”. Yves
Lacoste proclamou que a Geografia serve para fazer a guerra, a frase “lacaciana”
mais notável da Geografia do Século XX.
Para mim, o papel mais incisivo da Geografia é aquele de vínculo com a Educação,
partindo do individual para o coletivo. Procurei, ao máximo, desvincular-me do
ideológico e transmiti-lo aos meus alunos. Procurei demonstrar a diversidade dos
caminhos – para o cientista e para o cidadão e deixar-lhes a escolha.
Tendo elegido a Climatologia como área de pesquisa e, até certo ponto, aquela de
“orientação” parece que a maior influência que posso ter oferecido aos meus
“discípulos” esteve concentrada naquela área. Estou convencido de que, neste
setor, ofereci algo de consistente, baseado num esforço pessoal que demorou a ser
aceito, mas que hoje em dia mostra-se evidente.
O paradigma do “ritmo climático”, que vem adquirindo adeptos entre nós, é ainda
quase nulo no exterior. E o culpado sou eu, que não o divulguei no exterior. Durante
12 anos (1976-1988) viajei para o exterior participando da comissão “Environmental
Problems” da UGI. Algumas vezes apresentei comunicações sobre “questões
ambientais”. Mas, não me ocorreu (Modéstia? Timidez? Complexo de inferioridade?)
divulgar minha concepção de “análise rítmica”.
Hoje em dia alerto aos jovens geógrafos e estudantes de Geografia no Brasil para
que devam ousar. Daí os órgãos oficiais valorizarem a publicação de artigos em
revistas do exterior. Eu que tive ocasião de publicar comunicações em língua inglesa
sobre outros temas, deixei de fazê-lo naquele campo onde era mais importante.
A Geografia feita no Brasil já alcançou um estágio de afirmação que merece ser
divulgada. Nós devemos ultrapassar aquele estágio onde estamos sempre dispostos
a “receber”. Creio que, nos mais variados campos da Geografia, devemos “ousar”
exibirmo-nos. Nosso caro colega o Professor Pasquaele Petrone, titular de
Geografia Humana na FFLCH da USP, costumava dizer jocosamente que “a
Geografia Brasileira é uma míope que carece, de quando em quando, a visita de um
oculista francês para mudar-lhe a lente dos óculos”.
Ex-alunos meus, orientandos na Pós-Graduação, atualmente envolvidos na
pesquisa climatológica, ao viajarem para o exterior, dão-me conta de que a noção de
ritmo climático está completamente ausente. Recentemente, um colega que
compartilha comigo desse paradigma, estagiando um ano na Itália, encontrou uma
referência à climatologia dinâmica e ritmo climático, associada ao trabalho do
brasileiro Evandro Biase Barbiere que foi meu orientando no mestrado, cuja
dissertação foi o “Ritmo Climático em Cabo Frio e a Exploração do Sal” e o
doutorado cuja tese tratou do “Ritmo Climático em Cabo Frio e o Turismo”. Acontece
que o primeiro destes trabalhos foi publicado na Revista Brasileira de Geografia, que
tem a norma de incluir sumários em francês, inglês e alemão.
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Assim, foi e poderá sê-lo no futuro, por intermédio de um ex-aluno, que esta
contribuição brasileira à Climatologia poderá ser defendida. Barbiere – um prezado
amigo e ex-aluno – aposentado da Universidade Federal Fluminense faleceu
recentemente em Poços de Caldas onde passou a viver.
Não sei se consegui esclarecer vocês sobre minha carreira acadêmica e o meu
papel de Geógrafo. Em todo caso, um, dentre muitos exemplos e, como tal limitado
a ser um – dentre muitos – geógrafos brasileiros da segunda metade do século XX.
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Entrevista com o professor Carlos Augusto Figueiredo Monteiro