Qualidade de vida: entre o Ser e o Ter*
Paulo César Antonini de Souza (Professor Mestre SEESP/SP – Doutorando no
PPGE/UFSCar); Clayton da Silva Carmo (Professor Especialista. SEESP/SP – Aluno
Especial no Mestrado do PPGE/UFSCar); Luiz Gonçalves Junior (Orientador - Prof. Dr.
DEFMH – PPGE/UFSCar)
Palavras-chave: processos educativos; qualidade de vida; arte-educação.
Introdução:
Atuando como professores da rede pública de ensino, temos a oportunidade
de acompanhar pela maneira como as crianças e adolescentes falam e agem, uma
crescente mudança nos critérios do que, pessoalmente, acreditamos ser uma vida de
qualidade.
Diferente da lógica do mundo do mercado (BRANDÃO, 2005), que a cada
dia procura determinar que valores, saberes e bens o ser humano deve possuir para obter
uma suposta felicidade construída a partir do consumo e da reprodução daquilo que a
propaganda alardeia, nossa perspectiva e formação orienta a qualidade da vida em
princípios de uma comunhão, com os homens, mulheres, e o mundo, sendo-uns-com-osoutros (GONÇALVES JUNIOR; SANTOS, 2006).
Nessa perspectiva, e no alcance das discussões que integram meio ambiente
e ser humano em uma totalidade, porque somos natureza (RODRIGUES;
GONÇALVES JUNIOR, 2010), destacando também os princípios éticos (DUSSEL,
2003) desta afirmação, cuja assunção nos permitiria, se não a libertação, dos modelos
instituídos que transformam – principalmente o latino-americano – em não-ser
(DUSSEL, s/d; DUSSEL, 1996), no mínimo os primeiros passos para o encontro desta
liberdade (FREIRE, 2008), objetivamos, por meio de uma intervenção pedagógica nas
aulas de Arte junto a discentes do 2º ano do ensino médio, no período noturno de uma
escola central da cidade de São Carlos, SP, identificar os processos educativos
desenvolvidos na construção da compreensão do tema qualidade de vida.
Uma perspectiva da qualidade de vida
*
SOUZA, Paulo C. A. de; CARMO, Clayton da S.; GONÇALVES JUNIOR, Luiz. Qualidade de vida:
entre o ser e o ter. In: VII Colóquio Internacional Paulo Freire – Paulo Freire: contribuição para a
educação e cultura popular. 2010, Recife. Anais... Recife: Centro Paulo Freire/ UFPE, 2010. p.1-9. (CDROM – ISBN 9788563977007).
Qualidade de vida é comumente associada à saúde, e entendida do ponto de
vista biológico, principalmente quando a discussão se relaciona com a realização de
atividades físicas. Entretanto, compartilhando a compreensão de Rodrigues e Gonçalves
Junior (2009) de que “O corpo é movimento, e pelo movimento o ser humano se
comunica, se expressa, cria, aprende, interage com o meio físico e social (p.992)”, e na
perspectiva de superar, ou ampliar, o entendimento do termo qualidade de vida,
direcionamos nossas reflexões para o fenômeno do cicloturismo, pois este nos permitiu
pensar qualidade de vida priorizando as seguintes características: lazer, educação
ambiental, responsabilidade, autonomia, ética, humanização e liberdade.
Em acordo com as reflexões dos autores, compreendemos o ser humano
como natureza em si, e não apenas “na natureza”, assim a educação ambiental, uma das
características importantes em termos de qualidade de vida, acontece nas relações de
motricidade nas quais o ser humano deve superar o simples viver, que é um estar no
mundo, e alcançar um existir que significa estar com o mundo em um diálogo eterno.
Para Rodrigues e Gonçalves Junior (2009):
Mesmo reconhecendo a importância das atividades de sensibilização e de
identificação com o meio para o processo de educação ambiental, a grande
crítica em relação a essa abordagem está relacionada à visão fragmentária
resultante de um discurso que urge pela conservação/preservação de uma
natureza distante, que desconsidera o meio urbano, assim como o próprio
corpo, como parte não menos importante dessa natureza, contribuindo para o
distanciamento das relações ser humano-meio ambiente (p.989).
De acordo com Dussel (2003) a tecnologia, destrutiva da vida, da terra e
consequentemente da humanidade, vem sendo escolhida e utilizada a serviço do capital
e não com base na permanência e desenvolvimento da vida, da terra, da sobrevivência,
esse uso tecnológico esta incluído em um processo e a um estilo de vida fetichista e
destruidor.
Assim segundo este autor é necessário despertar um estilo de vida contrário
ao baseando no conforto desmedido ao da atual sociedade de consumo. A este novo
estilo de vida Dussel (2003) atribui o nome de vida boa, que para esta pesquisa
atribuímos o mesmo sentido que temos para qualidade de vida.
[...] A “vida boa” não é principalmente o fim (...) de uma razão instrumental
ou estratégica, mas é um modo de vida “comunitária” (ideal ou real), que
deveria ser o cumprimento do reconhecimento ético-originário intersubjetivo
do Outro como outro, de onde se abre a possibilidade da comunicação e o
exercício da própria razão discursiva (p.27).
Segundo Dussel (2003) é latente a necessidade de reconstruir a ética
material considerando a destruição da terra e a pobreza enquanto problemas éticos em si
mesmos, e nos conscientizarmos das novas exigências ecológicas, econômicas e
políticas envolvidas no processo de desenvolvimento e permanência da humanidade
presente e futura. Contribuindo com esta reflexão, Brandão (2005) diz que:
Bem antes de ser um direito de alguns sobre a privação de outros, como uma
espécie de contra-direito fundado em princípios de desigualdade, a qualidade
de vida é um dever de pessoas nascidas ou tornadas diferentes por opção, por
origem étnica, religiosa ou o que seja, mas socialmente iguais e igualadas em
seus direitos essenciais (p. 37-38).
Para este autor, atualmente a economia desvairada, adotada pelo mundo do
capital, impõe a tudo e a todos os seus termos incluindo também o mundo do lazer, do
turismo e do esporte, que são reduzidos aos padrões de compra e venda que são
determinados pelos interesses dos que ocupam posições sociais que permitem manipular
pessoas e desejos como mais um produto controlável.
Quase toda a propaganda do mundo do mercado de bens e de serviços insiste
em nos sugerir grandes vôos “de mentira”, ao mesmo tempo em que nos puxa
sempre para baixo, incentivando o desejo de qualificarmos a vida pela
conquista do que pode ser comprado, em vez da ousadia de criarmos por
conta própria o que deve ser vivido (BRANDÃO, 2005, p. 38).
De acordo com Freire (2006) referenciado por Rodrigues e Gonçalves
Junior (2009) o ser humano tem capacidade de “intervir, de transformar, de fazer, de
sonhar, de constatar, de comparar, de avaliar, de valorizar, de decidir, de romper”
(p.990), porém não se pode garantir que em todas estas ações o ser humano será
decente, justo e sempre respeitará. Deste modo o prazer de ser humano está em não
poder se eximir das responsabilidades de trilhar seu próprio destino, de construir sua
história com os outros vivendo as possibilidades e não de determinismo.
Diante do exposto e com intuito de exemplificar as possibilidades de
atividades de lazer e de vida boa, criadas com base em nossa compreensão e na dos
autores citados, e que considerasse uma perspectiva distante do determinismo
mercadológico do capital, elegemos um grupo praticante de cicloturismo que através de
relatos de experiência fomentaram reflexões acerca qualidade de vida a partir de
discussões que tiveram como tema central o cicloturismo, e suas relações e implicações
nos campos: Lazer, Educação Ambiental, Responsabilidade, Autonomia, Ética,
Humanização e Liberdade.
O espaço escolar e a intervenção pedagógica
A intervenção pedagógica que ofereceu os dados coletados na pesquisa foi
realizada na Escola Estadual Dr. Álvaro Guião, localizada no centro da cidade de São
Carlos, interior do estado de São Paulo. Atendendo atualmente cerca de dois mil
estudantes nos três turnos, no período da manhã e noite concentra-se o ensino médio e
no período da tarde, o ensino fundamental ciclo II.
Participaram do desenvolvimento do trabalho, cento e vinte discentes do
segundo ano do ensino médio noturno. A intervenção ocorreu em três etapas que se
desvelaram no processo da intervenção, nomeadas posteriormente como: Qualidade em
diálogos; Marketing de Referência; PEDAL e vida de qualidade.
Na primeira etapa, Qualidade em Diálogos, os/as discentes dialogaram
sobre o tema qualidade de vida a partir de excertos do texto de Carlos Rodrigues
Brandão (2005) “Qualidade de vida, vida de qualidade e qualidade da vida”,
organizando-se em seminários a fim de explicitar suas idéias. Segundo Brandão (2005):
Não nascemos, pessoas humanas que somos, seres do espírito aberto
ao infinito e à imaginação infinda, para acreditarmos na ilusão que nos
engana ao dizer que a conquista individual de fama, fortuna e poder é
o maior propósito de uma vida realizada. Uma vida medida cada dia
mais por tabelas de ranking. Por medidas classificatórias em que para
cada mínimo gesto de realização da experiência humana há uma
escala que desiguala e classifica. [...] Não nos destinamos a vender o
corpo e o espírito a um mercado que compra quem quer e deixa quem
quer à margem. [...] Se somos seres da consciência reflexiva, do
símbolo, do significado e da cultura, o saber através do qual tudo isso
se transforma em gestos humanos é a matriz geradora da própria
realização de nossas vidas (p. 42-45).
Organizados em grupos, os/as discentes debateram entre si os excertos e as
concepções de cada um/a a respeito do que seria qualidade de vida, compartilhando na
aula seguinte, ao restante da turma, suas reflexões sobre o debate. Entre as quatro
turmas de 2º Ano, o discurso prioritário foi aquele que relacionou a qualidade de vida ao
acúmulo de bens e ao conforto comprado pelo dinheiro, resultado que encontra
referência também na discussão desenvolvida por Brandão (2005): “A realização
individual, assim como a de coletividades, aparece na lógica do mundo do mercado
como uma sequência infindável de conquistas e de acumulações de postos, de
privilégios, de poderes e de bens materiais” (p. 35).
A fim de compreender a construção desenvolvida pelos/pelas discentes,
iniciamos a segunda etapa da intervenção pedagógica, trazendo o debate sobre
qualidade de vida para o campo da publicidade e propaganda. Nesta etapa, os/as
discentes foram convidados a criar logomarcas que identificassem seus grupos de
seminário e avatares (fig. 1), que trouxessem na escolha de seus elementos, a essência
das compreensões apresentadas anteriormente sobre o tema.
Avatar foi o nome dado à composição circular desenvolvida na forma de
uma mandala, que em sua constituição, deveria ser formada por elementos selecionados
pelos/as discentes, intencionalmente voltados à representação das idéias discutidas e
defendidas pelos grupos.
Fig 1 – Reprodução de avatares criados por discentes das turmas 2G, 2H, 2I, 2J.
Após discutirmos e realizarmos as análises e interpretações dos avatares,
onde cada grupo apresentou suas criações aos colegas de turma, surgiu no debate com
os/as discentes da turma 2G, a discussão sobre o cicloturismo1 e sua relação com a
temática em discussão. O interesse desta turma foi levado às demais e, após os contatos
necessários, organizamos uma palestra com dois dos integrantes do grupo PEDAL
(Projeto de Educação Ambiental e Lazer), apresentando novas compreensões das
relações entre qualidade de vida, meio ambiente e cicloturismo.
Esta etapa, nomeada Pedal e qualidade na vida, teve como resultado a
criação de slogans pelos grupos discentes das quatro turmas. A fim de organizar e
estruturar a criação dos slogans, e de maneira a relacionar esta fase do estudo com o
início da intervenção, foi proposto que o slogan respondesse à questão: Como tratar a
qualidade de vida por meio da propaganda?
Mantendo a dinâmica assumida desde a primeira aula, na qual os/as
discentes deveriam compartilhar com os colegas suas criações e discuti-las, o que para
Freire (2006) torna as aulas desafiadoras e epistemologicamente constitutivas do
movimento de pensamento de todos os/as envolvidos/as neste trabalho, os slogans
foram apresentados e interpretados coletivamente. Segundo Brandão:
Estamos destinados a aprender a saber, como uma atividade perene ao longo
da vida, dentro e fora das estruturas e dos cenários de educação formal. Ao
longo dos gestos com que criamos com e entre outras pessoas o
conhecimento, como um saber que não serve ao próprio conhecimento, a não
ser quando ele mesmo se transforma em compreensão. Ou seja: aprender e
apreender com; viver através do com-saber experiências cada vez mais
densas e mais fecundas de diálogo consigo mesmo, como o outro e com a
vida. Pois assim como a informação serve ao conhecimento e o conhecimento
serve à compreensão, a compreensão deve servir à comunicação e, através
dela, à comunhão. A frase bem conhecida: “só se aprende o que se ama” pode
ser completada assim: “...e com quem se ama”. E, ainda: “e para conviver
com o que e com quem se ama” (p. 45-46).
As percepções obtidas a partir desta discussão e ao longo das ações da
intervenção revelaram seu potencial conscientizador, que destacamos na análise a
seguir.
Metodologia:
Tendo como objetivo identificar e compreender de que maneira os/as
discentes interpretaram o desenvolvimento da intervenção pedagógica, utilizamos para a
1
Segundo Roldan (2000), cicloturismo é o nome dado às viagens com duração mínima de um dia,
realizadas com bicicleta e que tenham como objetivo conhecer lugares e praticar turismo, sem intenção de
competição.
análise dos dados, procedimentos com inspiração na Fenomenologia (MERLEAUPONTY, 2006).
Para a análise foram utilizados os slogans criados pelos/as discentes na
terceira e última etapa da intervenção pedagógica em Arte. O processo de análise
contemplou leituras atentas dos textos discentes e a identificação das categorias, que,
agrupadas nos permitiram a compreensão do fenômeno.
A análise dos dados considerou os vinte e oito slogans criados pelos/as
discentes do 2º ano do ensino médio, participantes do projeto, desenvolvidos como
resposta à uma questão orientadora: Como tratar a qualidade de vida por meio da
propaganda?
Apresentação dos resultados
No contexto das propostas iniciais deste trabalho e, em respeito à reflexão
discente, apresentamos a seguir as categorias desveladas no desenvolvimento da análise
realizada.
Corpo e natureza intrínsecas – esta categoria traz as reflexões discentes que
contemplam sem dicotomias, as experiências do corpo em seu contato com o meio
ambiente (o mundo). Além de atividades no contexto do lazer, como o ciclismo,
também são trazidas à discussão: o cuidado com o ambiente; a atenção à poluição; a
contemplação; o lúdico das vivências e o reconhecimento do corpo próprio.
“Qualidade de vida consiste em simplesmente observar” (GRUPO 1, 2H).
“Qualidade de vida também é diversão” (GRUPO 2, 2G).
“O melhor da vida é viver bem” (GRUPO 3, 2H).
“Pratique esportes cuidando da natureza e da sua família” (GRUPO 2, 2H).
A categoria Percepções e potencialidades para a liberdade, apresenta
reflexões que minimizam o poder financeiro como determinante de identidades ou como
elemento necessário para alcançar a felicidade, tais como:
“Viva com qualidade, esqueça a desigualdade” (GRUPO 3, 2I).
“Transparência é essencial, qualidade de vida, o caminho” (GRUPO 4, 2J).
Nesta categoria encontramos duas compreensões divergentes, que
apresentam a necessidade de ganhos financeiros ao mesmo tempo que a negam:
“Dinheiro não traz felicidade, mas traz conforto” (GRUPO 4, 2Id).
“Dinheiro, saúde. Tenha e seja muito feliz” (GRUPO 8, 2Hd).
A terceira e última categoria formada foi Negação da vida mercantilizada e
possui asserções que denotam atenção essencialmente voltada para a mídia e seu papel
como formadora de opiniões, influenciando desejos e tentando formalizar ideais:
“Temos que ser sociedade e não mídia” (GRUPO 3, 2J).
“Menos marketing, mais qualidade de vida” (GRUPO 5, 2J).
“Querer não é necessidade” (GRUPO 2, 2J).
“Nem tudo que a mídia apresenta é necessário” (GRUPO 6, 2J).
“Vida boa não é o que a tv dita” (Grupo 7, 2J).
Considerações:
Nas experiências compartilhas durante o desenvolvimento da intervenção
pedagógica nas aulas de Arte, que resultaram nesta pesquisa, a participação discente
para a seleção dos caminhos seguidos foi de fundamental significado. Neste processo,
pudemos percebemos o envolvimento dos e das estudantes intensificando-se ao
vivenciar cada nova prática, desde as discussões, leituras e seminários, até e,
principalmente, durante a troca de conhecimentos nas apresentações à turma.
A relevância desta pesquisa e sua significação, desvela-se tanto na
contemplação de seu desenvolvimento quanto na análise dos slogans criados no final da
intervenção, como podemos contemplar a partir dos dados apresentados ao longo do
texto.
O novo, ou o outro olhar, que estes adolescentes lançaram para a vida, cuja
qualidade independe de suportes financeiros como elemento imprescindível, indica que
as possibilidades para uma ética ecológica e uma vivência plena ser humano natureza, é
viável, mesmo e principalmente, considerando aqueles e aquelas que ainda mantém sua
determinação na força do capital, como identificado também neste estudo.
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ROLDAN, Thierry Roland. Cicloturismo: planejamento e treinamento. 43 f. Trabalho
de conclusão de curso (Bacharelado em Educação Física) - Faculdade de Educação
Física, Unicamp, Campinas, 2000.
Instituição de fomento/apoio: não houve.
E-mail dos autores: [email protected]; [email protected];
E-mail do orientador: [email protected]
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GONÇALVES JUNIOR, Luiz. Qualidade de vida