Maria Lucia Maciel
Confiança, capital social e desenvolvimento
Maria Lucia Maciel *
Em seu artigo “Building Trust” Locke constata e discute a recente
explosão do interesse no tema da confiança e sobretudo nas formas de
promovê-la, particularmente naquelas situações em que a cooperação é
um ingrediente vital.
Este interesse parece advir de:
· necessidade de desenvolver conceitos que reflitam a complexidade
e o inter-relacionamento das várias esferas de intervenção humana,
servindo como um termo guarda-chuva, que pode ser compreendido e utilizado transversalmente por diferentes disciplinas;
· reconhecimento dos recursos embutidos em estruturas e redes sociais não contabilizados por outras formas de capital e valorização
de sua importância para o desempenho econômico;
· busca por instrumentos para o incremento da competitividade e
do crescimento econômico para fazer face aos desafios da
globalização da economia.
O maior mérito da primeira parte do artigo de Locke é justamente
o de tentar organizar e sintetizar as tendências dessa literatura que tem
proliferado nos últimos anos, multiplicando (e confundindo) definições e
concepções do que venham a ser “confiança” e “capital social”. O sucesso
do best-seller Fukuyama contribuiu apenas para confundir ainda mais a
questão. Com o objetivo de mapear a questão, Locke distingue e discute
duas grandes tendências principais: a primeira, de natureza mais sociológica, argumentando que a confiança é produto de padrões históricos de longo
prazo de associativismo, engajamento cívico e interações extrafamiliares; a
segunda, de natureza mais econômica, enfatizando o interesse próprio de
* Professora do Departamento de Sociologia da UnB, Pesquisadora Visitante no Instituto
de Economia da UFRJ, Professora Associada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRJ. A autora agradece as discussões anteriores com Sarita Albagli e
Fernanda Wanderley que contribuíram para a reflexão sobre essa temática. E-mail:
[email protected].
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longo prazo e o cálculo de custos e benefícios por atores maximizadores
de ganhos na promoção de comportamentos de confiança.
Enquanto, na versão associativa, confiança é sinônimo de amizade,
na perspectiva econômica stricto sensu as relações estáveis de confiança,
reciprocidade e cooperação são vistas como instrumentos para azeitar as
relações entre agentes econômicos e melhorar a eficiência de arranjos
organizacionais entre e no interior das firmas. Argumenta-se que, mesmo
nos países de economia avançada, o mercado, para funcionar mais eficientemente, precisa ser complementado por relações não mercantis. A
confiança constitui, desse ponto de vista, ingrediente chave para reduzir
“falhas de mercado”, aumentando a previsibilidade do entorno e diminuindo riscos. Por outro lado, o próprio mercado (incluindo as relações de
trabalho) pode ser erosivo desses vínculos sociais relevantes ao seu desempenho.
Ambas as linhas da literatura sobre confiança são importantes para
elucidar o papel que os vários fatores – interesse próprio, instituições e
organização da sociedade civil – desempenham em promover e/ou sustentar a confiança. Locke chama a atenção, no entanto, para o fato de que
ambas sofrem de sérios problemas conceituais e empíricos que limitam sua
utilidade para compreender como a confiança pode ser criada, especialmente em condições adversas.
Como alternativa ao pessimismo das visões dicotômicas que ele
critica, o autor propõe ser possível criar ou construir confiança em comunidades locais, visando ao desenvolvimento econômico. De maneira geral,
os trabalhos que procuram estabelecer mecanismos para medir ou para
criar confiança/capital social partem do princípio de que este componente
das relações sociais é algo que se traduz em quanta, objetivamente, e que
pode, portanto, ser cientificamente (re)produzido. Esta concepção associa-se, por sua vez, a uma abordagem instrumentalista que preconiza a
criação de características de relações sociais como meios para atingir determinados fins, estes últimos associados em geral ao desempenho econômico.
Este tipo de pragmatismo instrumentalista é mais presente na literatura econômica do que na sociológica e, nesta, aparece mais nas
abordagens norte-americanas que nas européias. Quando a preocupação
centra-se mais na análise dos processos sociais reais do que na preocupaEconômica, v. 3, n. 2, p. 283-288, dezembro 2001 - Impressa em setembro 2003
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ção em receitar soluções, incorre-se menos no equívoco de tentar definir
uma relação social pelos seus efeitos. Por isso, Locke não menciona a
vertente européia (como os trabalhos de Bourdieu – e.g., 1980 e 2000 –
sobre capital social), mais crítica sociologicamente e sem qualquer preocupação quanto à intervenção social.
Ao procurar oferecer uma versão alternativa às linhas que ele critica, o autor propõe uma abordagem também instrumentalista, embutindo
no conceito o resultado da ação além da definição do comportamento.
Se entendermos, como Locke, o capital social como fator de confiança e ambos, conseqüentemente, como fatores de sucesso econômico,
podemos cair em pelo menos duas armadilhas conceituais perigosas. Em
primeiro lugar, essa discussão parece obscurecer a diferença entre os dois
conceitos e, de fato, trata-os como praticamente intercambiáveis. Desse
modo, não teríamos como entender capital social sem a constatação da
confiança nem a confiança na aparente ausência de um capital social. Neste erro incorreu Banfield há muitos anos atrás, quando condenou o
“familismo amoral” italiano como obstáculo à ação coletiva em prol da
comunidade, sem perceber suas contradições inerentes. O que nos leva à
segunda armadilha. O perigo de uma conceituação que incorpora apenas
as dinâmicas que geram resultados positivos em termos de cooperação e
sucesso econômico é terminar numa explicação circular em que os resultados que se busca explicar são parte da “variável independente”.
É preciso lembrar que relações de confiança constituem um dos
sustentáculos da organização da Cosa Nostra e de outras organizações
mafiosas. Da mesma forma, embora em sentido inverso, é possível destacar que relações familiares coletivamente dinamizadas são um dos fatores
de sucesso dos distritos industriais do centro-nordeste da Itália, sem que se
possa falar propriamente de “confiança” (M ACIEL, 1996). Nessa região,
freqüentemente chamada de Terceira Itália, empresa e família são praticamente sinônimos; o interesse familista, ao contrário do que preconizam
Banfield e outros, resultou em processos de cooperação entre empresas e
entre estas e governos e universidades locais, com o objetivo de dinamizar
as empresas e desenvolver as microrregiões. Considerando esses exemplos
opostos (ambos no mesmo país) nota-se a relevância da idéia de que o
conceito de capital social – ou o de confiança – só terá maior capacidade
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explicativa para o surgimento e êxito das iniciativas produtivas se sua definição for independente dos resultados.
Se partirmos da idéia de que as mesmas redes sociais e seus recursos possibilitam a geração de resultados diferentes para as transações
econômicas, positivos e negativos, contraditórios ou não, estaremos em
condições de explorar melhor os mecanismos concretos através dos quais
o capital social – e o que Locke chama de “confiança” – pode facilitar ou
dificultar o surgimento de padrões de relações econômicas.
Se por um lado Locke acerta ao criticar a tendência economicista e
instrumentalista, por outro ele corre o risco de incorrer em equívocos semelhantes. A perspectiva “otimista” de Locke, ao recair no instrumentalismo
resultante do raciocínio circular, generaliza a receita como se fosse possível
aplicar um mesmo conjunto de recomendações a todos os casos, independentemente de suas especificidades histórico-culturais e políticas. Além disso
ela pressupõe a relação automática entre capital social, confiança e desenvolvimento econômico.
O que se constata na prática, como por exemplo nos estudos da
RedeSist1 sobre arranjos produtivos locais, é a necessidade de levar em
conta as características culturais, econômicas e políticas em que os atores
sociais aproveitam oportunidades surgidas da combinação da posição deles em redes sociais e da estrutura dessas redes, podendo – ou não – resultar
no que SCHMITZ (2003) chama de “eficiência coletiva”.
É exatamente nesse sentido que os dois estudos de caso apresentados são extremamente relevantes. Eles mostram como relações sociais e
fatores locais específicos foram determinantes nos empreendimentos bem
sucedidos e nos impactos de desenvolvimento local. Mas eles apontam
para dois aspectos que tendem a contradizer, em parte, a perspectiva de
Locke: i) o sucesso não foi gerado a partir de uma ação de cima para baixo,
seguindo uma receita de política pública, e sim pela iniciativa dos produtores que – num segundo momento – tiveram algum tipo de apoio de governos
e instituições públicas e privadas; e ii) não se pode aplicar uma regra geral
– ou “modelo” – de forma universal, sem levar em conta os potenciais
específicos e as características históricas locais.
Mas o que aparece como questão principal – e que remete ao problema das definições múltiplas de confiança e de capital social – é que eles
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não indicam a construção de confiança e sim de aumento de interação e
cooperação com objetivos específicos de sucesso econômico. Nada nesses
casos comprova maior confiança entre os atores do que existia antes. Cooperação e confiança não são sinônimos.
A constatação de Locke quanto à possibilidade de impulsos
socioeconômicos locais é interessante. Mas não diz respeito a confiança.
Perspectivas semelhantes já foram desenvolvidas, especialmente na linha
dos “sistemas locais de inovação” e do desenvolvimento local. Como demonstram os dois exemplos apresentados, do Sul da Itália e do Nordeste
do Brasil, a combinação de necessidade/liderança/governança tende a ativar
processos de aprendizagem coletiva por interação – ou learning by
interacting (JOHNSON e LUNDVALL, 2003) – que freqüentemente resultam
em sucesso competitivo e alimentam um “círculo virtuoso” de desenvolvimento socioeconômico local. (Ver também ALBAGLI e MACIEL, 2002)
Tais questões apontam para o debate sobre a possibilidade ou impossibilidade de redirecionar tendências – dadas às vezes como irreversíveis
– em sistemas sociais que supostamente carecem de capital social, bem
como sobre o papel das normas e estruturas sociais como elementos
impeditivos ou propulsores da mudança social.
Em síntese, formações sociais são estruturas complexas que não
podem ser vistas como meros produtos do planejamento, mas sim resultam de construção social ao longo de processos históricos de colaboração,
competição e conflito. E, nesses processos, desempenham papel fundamental as políticas e estratégias, tanto públicas como privadas. A conclusão,
portanto, é que a oposição “intencional/espontâneo” discutida na literatura sobre capital social representa uma falsa dicotomia.
Nota
1 Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais: www.ie.ufrj.br/redesist.
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