o homem tinha que ganhar o salário que trazia para casa e a mulher
era a cuidadora. Que feliz sou, que pude fazer a minha vida profissional, pude ganhar o meu ordenado fazendo de cuidadora a mais pessoas que não só as do meu agregado familiar.
Cuida da vida e trata da morte é outra passagem da obra…
ACR – Acredito que a vida é uma passagem e que a nossa morte
vai ser muito idêntica à nossa vivência. Quando trato alguém a pensar
que um dia irá morrer mas que existe uma diferença entre morrer com
medo e angústia ou sereno, acredito que isto se interliga muito. Para
mim, a morte é o tudo ou o nada. Depende de como a sinto. Para
mim, ainda é o tudo. É o culminar de algo, uma passagem para uma
paz diferente que, se eu preparar em vida, será mais fácil.
Ana Campos Reis
Recentemente, publicou uma obra literária que traduz uma
história de vida… Trata-se de história de vida ou das várias
da Ana Campos Reis?
Ana Campos Reis (ACR) – A Vida na Sua Simplicidade é, de alguma forma, uma estrutura complexa, em que estamos constantemente a desatar nós e a fazer laços do que se interliga. Ainda não publiquei as histórias de vida da população que tratei. Tenho mais de 20
histórias que me foram oferecidas pelos próprios, que constituirão objecto da minha investigação, a publicar. Aqui, quis confrontar a Ana
pessoa, a Ana profissional, a Ana que se quer meter pela investigação
e a Ana que quis essencialmente perceber, com a maior das simplicidades, que efeito teve a presença deles na minha vida, como fizeram
mudar o rumo da minha actividade profissional e até do meu sentir.
Isto estuda-se, nalguns manuais. No início, quando estive na primeira
aula da relação de ajuda, não pensei havia esse viver tão intensamente neste sentido: conhecer-me e ajudar os outros a darem o seu passo. Ninguém ensina nada a ninguém. Cada um de nós tira da vida
aquilo que consegue. E se houve tanta mudança na minha vida foi
exactamente porque fui atrás das necessidades das pessoas que me
abordavam e com elas quis construir outras formas de estar. E ao fazê-lo para a população que servi reconstruí o meu próprio interior,
dando-lhe outro sentido. Embora, no meu tempo de formação em enfermagem, já se falasse muito nesse sentido de deixar tudo à porta…
entrávamos, vestíamos a bata e éramos outra pessoa. Hoje, direi que
ninguém muda outra pessoa apenas com uma entrada num portão.
Sou assim e seria diferente se a minha vivência pessoal fosse outra.
O indivíduo é um todo e, se der atenção a um ser humano, fá-lo-ei em
todas as suas dimensões, seja qual for o grau de parentesco ou a relação que tem comigo.
Pelo que se percebe na narrativa, a opção pela enfermagem
deve-se às pessoas? Serão estas a sua causa principal
ACR – Sim… Aliás, não me lembro efectivamente de ter escolhido enfermagem. Lembro-me que as circunstâncias da minha vida me
levaram a desenvolver competências na área da relação humana. Era
tão menina quando dei a primeira injecção, era tão menina quando levei o primeiro prato de açorda à cama de um doente… As circunstâncias da minha vida e a minha vivência desde pequena ditaram uma
relação de cuidadora com os outros. Ainda era cuidada e já estava a
fazer o trajecto de cuidar de alguém. No fundo, trata-se de um papel
ancestral que cabia às mulheres em sociedades mais antigas, em que
Sei que tem um carinho muito especial pelos seus “meninos”, utentes portadores de VIH e Sida que serve… Em que
ponto situaria hoje esta problemática em Portugal?
ACR – O problema da Sida é o mesmo da tuberculose há muitos
anos, é o mesmo problema que afectará a saúde mental no futuro, é o
problema do fim de linha para alguém quando parece que tudo falhou
e, agora, mais esta tragédia… Há 30 anos foi essa patologia… Provavelmente, irá deixar de assustar tanto e outra virá… Não tive coragem,
confesso, porque ainda era muito nova, de ter experimentado trabalhar com doentes com cancro; também não me dediquei à saúde
mental quando tirei o curso mas, depois, pela síndrome da imunodeficiência humana, acabei por contactar com pessoas com todas essas
patologias e o que senti nelas foi uma solidão, um sofrimento para o
qual não estaria habituada nem desperta e a necessidade de desenvolvermos em conjunto esta criatividade para retomar a vida, fazendo
com que aquele não fosse o maior problema. Provavelmente, o maior
problema será, no futuro, a doença mental e não vi, em mais de 40
anos de serviço, serem criadas estruturas para a saúde mental. Há
dois anos assisti a um maior investimento no atendimento dos sem
-abrigo mas, se não criarem respostas, ficaremos com o problema
dos sem-abrigo como uma porta giratória. Entram, sem, voltam a entrar… Ou se criam respostas para uma nova vivência ou a situação
fica redonda…
Sente, ao fim de todos estes anos, algum sentimento de cansaço, frustração ou revolta?
ACR – Estou triste… Tenho semanas em que o dia se revela pouco para tantos sentimentos… Estou muito serena porque sei que fiz
tudo para ajudar a mudar algumas situações; estou triste por verificar
que alguns estão a fazer um trajecto como se a vida começasse agora. Vamos ver no que dará esta tendência que existiu de cortar sempre com o passado e construir o futuro do nada… Veremos se não seria melhor pensar no que já existe, completando e melhorando. Também não sei se esta forma de pensar é fruto dos anos que por cá passei mas é verdade que tinha alguma pressa e ansiedade de ver
algumas coisas resolvidas e, cada vez que alguém chega a algum
cargo, começa tudo do início. Naturalmente, isso pode originar algum
cansaço e frustração a quem já está em funções há muito tempo. Mas
ainda não estou nessa… Estou nalguma tristeza por ver tantos recursos desperdiçados e tantas desigualdades.
Qual será o futuro da Ana Campos Reis?
ACR – Irei viver cada momento que me chegue com a mesma intensidade que vivi até aqui. E veremos o que teremos para dizer daqui
a dois anos…
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Ana Campos Reis