Grupo de Trabalho 27: Religiões de matriz Africana no Brasil: memórias,
narrativas e símbolos de religiosidade.
Coordenadores: Luís Tomás Domingos e Renilda Aparecida Costa.
TÍTULO:
TOBÓSSIS, MENINAS, MOÇAS OU SINHAZINHAS: representações e
significados do culto dessas entidades no Ilê Ashé Ogum Sogbô
Gerson Carlos P. Lindoso, e-mail: [email protected], Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão-IFMA, Campus São LuísCentro Histórico.
1.
INTRODUÇÃO
As análises reflexivas em torno de entidades espirituais infantis femininas,
especialmente um ritual de preparação para ‘receber’ ou ‘entrar em transe com
elas’ é aqui a nossa preocupação principal dentro da ótica antropológica. Esse
tema faz parte de nossas pesquisas na cidade de São Luís no Estado do
Maranhão tendo como foco uma comunidade-terreiro contemporânea intitulada
‘Casa de Força de Ogum e Sogbô ou Ilê Ashé Ogum Sogbô (nome africano)
desse terreiro de Tambor de Mina, chefiada pelo pai-de-santo ou babalorixá
Airton Gouveia no bairro da Liberdade.
Tomamos como base de estudos esse terreiro, que culminou na elaboração de
nossa dissertação de mestrado, onde direcionamos olhares para a questão dos
pluralismos e diversidade afrorreligiosa presente nos terreiros de religião afromaranhense, especificamente nas casas de Mina. Os barcos de iniciação para
as tobóssis no Ilê Ashé Ogum Sogbô mobilizaram esse grupo religioso
representando um momento de vital importância e transição dos iniciados e do
próprio terreiro.
Consideramos
que
a
observação-participante
foi
essencial
para
acompanharmos esse ritual de iniciação das tobóssis, onde presenciamos toda
a parte final ou pública dele (festa propriamente dita) e tivemos acesso
rapidamente na condição de ‘padrinho’ de um dos iniciados do primeiro barco
de tobóssis ao local em que eles estavam recolhidos. O método comparativo
proporcionou observar possíveis semelhanças, diferenças entre essas
entidades no Brasil e no continente africano (África Ocidental-Benin), tomando
como base a centenária Casa das Minas e um terreiro mais contemporâneo.
Nossa trajetória nos estudos afro-brasileiros vem desde nossa graduação em
Comunicação Social (Jornalismo, 2005) e em Letras (licenciatura, 2007) na
Universidade Federal do Maranhão-UFMA, quando desenvolvemos pesquisa
de iniciação científica no campo Antropológico, especificamente no contexto da
Antropologia das Religiões Afro-Brasileiras. Essas experiências tiveram ainda
continuidade no mestrado em Ciências Sociais (2007) desenvolvido pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma universidade.
1.
O CULTO DAS TOBÓSSIS NO CONTINENTE AFRICANO E NO
BRASIL: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS.
É importante destacar ou pontuar algumas considerações de Parés (2001, p.
179) sobre a filiação dessas entidades espirituais ao próprio continente africano
(leia-se antigo Daomé, atual Benin ou particularmente o culto dos Nesuhue).
Segundo esse autor
o culto dos Nesuhue é praticado por coletividades
familiares de origem fon, que também pode ser identificado como tòvodun com
referência as entidades espirituais incluindo reis, príncipes e princesas da
família real, assim como ministros e dignatários da corte daomeana que foram
ritualmente deificados e convertidos em vodum. Ex: categorias de vodun
Tohosu (príncipe das águas).
Chamamos à atenção em relação a essa contextualização africana para o
processo de iniciação das vodúnsis no culto Nesuhue, constituído em dois
estágios como atesta Parés (Id, p. 181): o Asi sò do te (a consagração a um
determinado vodun), sendo chamada depois de hundotè (a divindade em pé),
recebendo um nome, onde ela passa a dançar e participar das cerimônias
públicas. No outro estágio ou segundo propriamente dito, a vodúnsi é
submetida a um novo estágio de iniciação (uma série de rituais, chamado de
Yivodo- ir ao Vodo) no qual a vodúnsi atinge o grau máximo na hierarquia
Nesuhue.
São várias as provas as quais as vodúnsis são submetidas passando por
vários estados (primeiro: morte ritual, vodun hu asi- o vodun matou a sua
mulher, ficando vários dias prostrada no chão, hun ci ò, o cadáver do vodun,
seguido de uma ressurreição ritual ‘hun finfòn, acordar do vodun, sendo agora
conhecida pela categoria vodunsí Hunjayi, a vodunsí que o vodun jogou por
terra.
Nesse estágio de iniciação ela ainda passa por vários treinamentos e
aprendizagens (vários processos rituais, adquirindo uma nova personalidade
sagrada), segundo Verger um estado de embotamento1 (VERGER, 2000,
p.105).
Na última parte da iniciação algumas mulheres são preparadas numa outra
série de rituais e cerimônias para atuar ou virar como tobosi. O estado de
tobóssi é o mais alto grau ou status no culto Nesuhue, onde a vodúnsi será
conhecida como ‘Mahisi ou Mahinu’ ou ‘vodúnsi hunjayi’, após ser preparada
para o ‘estado’ de tobóssi.
Nicolau Parés (Id, p. 182) aponta um detalhe importante sobre as tobóssis no
culto Nesuhue quanto a questão de gênero no que diz respeito aos ‘vodúnsis
homens’ ou vodunsos2. Os vodunsos que participaram do Yvodo geralmente
não recebem tobóssi, vindo a ser oficializados como ‘vodunons’ (grandes
sacerdotes do culto), organizando e supervisionando as cerimônias e rituais.
No Tambor de Mina do Maranhão, particularmente no templo afrorreligioso
denominado de Casa das Minas, terreiro fundado em meados do séc. XIX de
culto aos voduns (entidades espirituais africanas) e que simboliza muitas
marcas culturais dos povos jeje daomeanos (nação jeje daomeana) expressa
as heranças do culto das tobóssis no Brasil. Com as devidas ressalvas,
algumas diferenças e variadas semelhanças entre o culto no continente
africano e em terras brasileiras (Tambor de Mina no Maranhão e outras
localidades).
Podemos apontar entre as semelhanças do culto Nesuhue no continente
africano (o estado de tobóssi ou de bobo) e no Tambor de Mina no Maranhão
(a feitura de tobóssi, onde a vodúnsi se torna ‘Hunjayi’, o mais alto grau de
iniciação no Tambor de Mina) os seguintes pontos: os nomes rituais dessas
entidades (identificação específica); a língua ou linguagem simbólica utilizada
por essas entidades para se comunicar (segunda língua ritual, bobo gbe, a
linguagem dos bobo, PARES, Id, p. 183); as tobóssis comiam e bebiam (exceto
bebidas
alcoólicas);
apresentavam
comportamentos
mais
humanizados
(tomavam banho, se arrumavam, se vestiam, enfeitavam-se; se comportavam
como crianças, meninas, puras, brincavam com bonecas, etc.);
______________________________
1-De acordo com Verger (2000, p.83) o papel do estado de embotamento tem o objetivo de
tornar o espírito do noviço ou iniciado virgem de toda impressão anterior, criando de certa
forma uma segunda personalidade, um desdobramento mítico inconsciente. No período de
iniciação a vodúnsi depois da morte e ressureição ritual passa por um estágio de treinamento,
mediante vários processos rituais de aprendizagem para adquirir uma nova personalidade
sagrada e é nesse espaço de tempo que o indivíduo experimenta esse estado de
embotamento, amorfo.
2-Expressão utilizada para designar no Tambor de Mina no Maranhão os homens filhos de
voduns, os vodunsos. O finado Jorge Babalaô (Casa de Iemanjá) utilizava muito essa
denominação para se referir aos seus filhos-de-santo do sexo masculino, que tinham voduns
como entidades espirituais mais importantes (primeiro ou segundo santo de cabeça, por
exemplo).
os ritos de iniciação no Brasil das vodúnsis eram também divididos em duas
etapas (iniciação mais simples-vodúnsi-he e vodúnsi hunjayi dos cultos
Nesuhue do continente africano).
É importante destacar que no continente africano ou no culto dos Nesuhue as
tobóssis desempenhavam a função de ‘mendicantes’ e que no Brasil isso foi
‘ressignificado’ ou invertido como atesta Pares (Id, p. 201) e como contrapõe
Sérgio Ferretti (2009, p. 144) ao postular que além das tobóssis distribuírem
frutas, bebidas, doces, acarajés, etc., elas acordavam bem cedo, tomavam
banho, café, dançavam na varanda e pediam ‘presentes’ e ‘guê’, que
chamavam de ‘dinheiro’.
Com relação aos aspectos diferenciados entre o continente africano e o Brasil,
citamos a questão da possessão das tobóssis, pois no culto Nesuhue há uma
continuidade entre o transe do vodum e da tobóssi e no Tambor de Mina (Casa
das Minas) isso era algo descontínuo, ou seja, no primeiro (África) a
incorporação com essas entidades espirituais se dá após a manifestação do
vodum e no Brasil isso acabou mudando ou não obedecendo tal ordem.
Independentemente da manifestação do vodum ou não, as tobóssis podiam ou
se manifestavam nas suas filhas na Casa das Minas (precedendo ou não),
onde afirmamos que a manifestação delas na Mina não estava ligada
diretamente a um estado de transição entre a possessão e o estado normal
como no continente africano (PARES, 2001, p. 198). Apontamos mais um
aspecto diferencial entre a categoria dessas entidades na África e no Brasil
relacionada com os adornos ou enfeites de suas vestimentas, particularmente a
‘manta de miçangas’, uma espécie de colar com várias fileiras em malhas de
contas de cores diversas, com uns trinta centímetros de largura, pendurada no
pescoço e abrindo em leque sobre os ombros (FERRETTI, S. 2009, p.198)
classificado por Nicolau Parés (Id, p. 201) como uma ‘inovação brasileira’ pois
esse autor não encontrou referentes parecidos a ele na vestimenta ritual
dessas entidades no Benin.
Infelizmente, na Casa das Minas o culto das tobóssis está ‘parado’, devido a
falta de iniciações desde 1914, ano do último barco de tobóssis ou de feitoria
das últimas vodúnsis gonjaís, onde elas deixaram de ‘vir’nessa casa desde os
anos ‘60’. Nicolau Parés (Id, p. 197) pontua que mesmo com o culto das
tobóssis da Casa das Minas parado, essas entidades continuam sendo
representadas em outros terreiros de Mina mais contemporâneos e
identificadas pelas categorias de ‘tobosas’, moças e princesas:
Essas
tobosas
apresentam
certas
semelhanças
comportamentais com as tobossis da Casa das Minas, mas
“incorporam” em médiuns independentemente do grau de
iniciação e nesse sentido diferenciam-se das tobóssis da Casa
das Minas que só se manifestavam nas médiuns mais
experientes. (PARES, 2001, p. 197).
O que Nicolau Parés (Id, Ibid) está afirmando é que a categoria de entidades
espirituais denominadas princesas, moças ou tobosas fora do modelo ritual da
Casa das Minas mesmo apresentando comportamento semelhante aos dessa
casa elas se manifestam nos médiuns independentemente do seu grau de
iniciação dentro da religião. Contrapomos um pouco essa ideia ou
posicionamento do autor a partir das nossas análises a respeito dessas
entidades espirituais (tobóssis) representadas ritualmente no terreiro de Mina
estudado por nós, ‘Ilê Ashé Ogum Sogbô (Casa de Força de Ogum e Sogbô),
de pai Airton no bairro da Liberdade em São Luís do Maranhão.
A representação dessas entidades espirituais infantis femininas desenvolvida
por essa casa de Mina vai de encontro com o histórico delas na Casa das
Minas jeje, onde esse terreiro contemporâneo procurou seguir uma
determinada ‘tradição’ em termos de suas origens, características, graus de
hierarquia e formação. Todo um conjunto ritualístico e simbólico de bases jeje
daomeanas da Casa das Minas relacionado ao universo das tobóssis serviu de
modelo para que as heranças culturais dessa nação pudessem ser melhor
ressignificadas ou melhor reinterpretadas pelos terreiros mais jovens ou
contemporâneos como o Ilê Ashé Ogum Sogbô, de pai Airton.
Nesse terreiro contemporâneo elas são chamadas mesmo de ‘tobóssis’ e são
apresentadas e representadas com sua ascedência ‘africana’ (jeje daomeana).
2.
TOBÓSSIS, TOBOSAS MENINAS,
SINHAZINHAS NO TAMBOR DE MINA
MOÇAS,
PRINCESAS
OU
‘Tobóssi’ de acordo com observações de Mundicarmo Ferretti (2000, p. 83) é
um termo designativo utilizado no terreiro de Mina pesquisado por ela, Casa
Fanti Ashanti de pai Euclides, e em vários outros terreiros de Tambor de Mina
para designar não apenas princesas africanas, recebidas por pessoas que têm
iniciação completa, a exemplo das vodúnsis –gonjaís (filhas-de-santo com
iniciação completa) da Casa das Minas. Essa palavra ou categoria ‘tobóssis’ é
usado também para se referir a outras entidades espirituais femininas infantis,
agrupadas em famílias nobres, recebidas por vodúnsis, filhas-de-santo que
passaram por preceitos ou rituais, mas não a iniciação completa na Mina. A
mesma autora (Id Ibid) postula que na Casa das Minas as filhas-de-santo
diziam que as tobóssis de outras casas de Mina são equivalentes as entidades
espirituais infantis (erês) de uma outra matriz afro-religiosa, o Candomblé, mas
não as tobóssis da Casa das Minas de nação jeje daomeana (República do
Benin, ex- Daomé, África Ocidental).
Hippolyte Sogbossi (2004, p. 299) aponta a etimologia do termo ‘tobóssi’ como
derivada da língua ‘fon’ falada na África Ocidental sobretudo no Benin, onde no
passado era a língua oficial do antigo reino do Daomé. Basicamente de acordo
com o autor ‘Tö’ vai corresponder a ‘água’; ‘bo’ a entidade espiritual (o vodumtöxösu, dono das águas) e ‘si’, a mulher, ou seja, a ‘esposa da divindade das
águas’. Ao analisar o segunda palavra da divindade jeje ‘Aziri Tobossi’ muito
conhecida nos candomblés jeje de Cachoeira na Bahia, Nicolau Parés (2006, p.
352) diz que o termo ‘tobo’ poderia ser um composto dos vocábulos ‘bô’
(complexo material consagrado com propriedades sobrenaturais) e tò (água ou
qualquer curso d’agua: rio, fonte, lagoa). Na verdade, Parés (Id Ibid), aponta
que ‘tobo’ seria o preparo ou sortilégio cujo poder é infundido pelos espíritos
das águas ou também uma outra significação apontada por outros como uma
contração de tògbo, o grande (gbo) curso d’agua (tò).
Esclarecemos que Aziri Tobosi e Tobossis são categorias diferentes de
divindades e que apenas tomamos uma análise de Parés sobre um dos termos
da primeira divindade para observarmos possíveis significações da palavra
tobossi. Aziri Tobosi segundo especialistas jeje pode ser tomada como duas
divindades espirituais femininas das águas (Aziri Tobosi e Aziri Kaia), onde a
primeira é associada as águas doces e profundas e a segunda às águas
salgadas (PARES, Id Ibid), veste branco e usa contas de cristal como Iemanjá
e é inegável a sua contextualização com as águas.
Percebemos que o discurso das vodúnsis da Casa das Minas apresenta essas
entidades como especiais ou diferenciadas de outras casas de Tambor de
Mina, embora sabendo que em outros terreiros também haja uma identificação
com o modelo ritual dessa casa, as ‘tobóssis’ que não são originárias de lá são
apenas espíritos infantis (erês), crianças, de acordo com uma visão mais
‘tradicionalista’ delas.
Os erês do Candomblé vão explicitar diferenças das tobóssis, a partir de alguns
aspectos, tais como a questão do gênero, eles podem ser tanto masculinos e
femininos; muitas vezes têm uma natureza desordenada e imprevisível em face
de sua condição de ‘meninos’, não distinguindo o bem e o mal, podendo mentir,
roubar, esconder objetos, etc., vindo algumas pessoas até associá-los com o
trickster Exu ou Legba (PARES, 2001, p.190). Já as tobóssis na Casa das
Minas se caracterizavam de modo oposto em alguns pontos, quando
comparadas com os erês.
Essa categoria de entidades nesse terreiro de Tambor de Mina ‘tradicional’
tinha várias características importantes, tais como: incorporação ou eram
‘recebidas’ apenas pelas filhas, vodúnsis com todos os graus de iniciação
completos; eram crianças, falavam como crianças; sua comunicação era em
língua africana e cada uma das tobóssis em suas filhas tinha um nome em
africano; não participavam dos toques de Tambor de Mina comuns na casa e
não eram confundidas com outros voduns jovens existentes nesse terreiro
(toquenos). Sérgio Ferretti (1996) evidencia que essas entidades não existem
mais na Casa das Minas, porque as últimas filhas que as recebiam morreram
na década de 70 e o último barco de tobóssis na Casa das Minas foi realizado
em 1914.
As tobóssis vinham somente três vezes por ano na Casa das Minas, ou seja,
quando tinha festa grande e que duravam vários dias. Na festa do vodum
feminino Noché Naé no mês de junho; no fim do ano (mês de dezembro) e nas
festas de carnaval. Na Casa das Minas o vodum feminino Noché Naé é a chefa
das tobóssis. O vodum Noché Naé é considerada a mãe de todos os voduns
como explicita Ferretti, S. (Id, p. 101), chamada também de ‘senhora velha’ ou
sinhá velha.
As suas vestimentas eram com saias coloridas, pulseiras de búzios e coral,
chamadas dalsas, pano da costa colorido e manta de miçangas coloridas presa
ao pescoço e usavam vários rosários. Diferente das entidades espirituais
africanas chamadas de voduns, orixás, etc., que não comem ou ingerem
alimentos sólidos, as tobóssis ingeriam comida em pequenas quantidades
iguais à nossa; comiam com os convidados nas festas e ofereciam doces e
comidas às pessoas (FERRETTI, S., 2009, p. 96)
Na casa de Nagô, outro terreiro de Mina fundado por africanos, tradicional
como a Casa das Minas, mas de nação ou de herança africana do grupo
‘nagô’, as tobóssis eram chefiadas pelo orixá Iemanjá, elas não comiam, só
bebiam água, não usavam mantas de miçangas, como na Casa das Minas,
mas usavam muitos colares e pulseiras. Elas costumavam ficar sentadas em
cadeiras sobre tapetes e os rituais de feitura também foram extintos no início
do séc. XX (1915) (Id, p. 98).
Em outros terreiros antigos de São Luís, Ferretti (Id, Ibid) sustenta que também
havia meninas ou princesas que se assemelhavam as tobóssis da Casa das
Minas como no terreiro da Turquia (bairro do Santa Cruz), mas que não vem
mais na atualidade; na Casa Fanti Ashanti ele afirma que diz ter ouvido
Euclides afirmar que em seu terreiro havia tobóssis, que eram provenientes de
um terreiro antigo já extinto, Terreiro do Egito; o mesmo diz também que
presenciou festas para as meninas em outros terreiros de Mina em São Luís e
tomou conhecimento dessas entidades em terreiros de religião afro em Codó.
O terreiro do Egito ( localizado em um local acidentado, no alto, por detrás do
porto do Itaqui), já extinto, foi uma casa de Mina fundada por uma africana
chamada de Basília Sofia (Massinokou Alapong) em meados do séc. XIX
(FERREIRA, 1987, p.51), vindo a originar muitos terreiros e mineiros (afroreligiosos ou filhos-de-santo) que se transformaram em chefes de terreiro,
dentre eles: Denise de Vó Missã, Teodora de Longuinho, Margarida Mota de
Dantã, Jorge Itaci, de Iemanjá, Euclides Ferreira, de Oxalá, etc. (OLIVEIRA,
1989, p. 34). O babalorixá Euclides Ferreira (Id, p.51), líder do terreiro de Mina
e Candomblé (Casa Fanti Ashanti), afirma que as festas do mês de dezembro
desse terreiro se iniciavam com a ‘dança do baião’ ou ‘Baião de Princesas’,
cerimônia dedicada as tobóssis.
Ainda de acordo com Euclides (Id, Ibid) as tobóssis eram entidades infantis
femininas que dançavam com castanholas na mão ao som de cavaquinho,
pandeiros, violino e cabaças e o ritual do Baião era uma festa muito concorrida,
animada, com salva de foguetes. Na verdade, o ‘baião de princesas’ iniciava a
festa do mês de dezembro, que resistiu ao tempo e não desapareceu depois
que Basília Sofia (Massinokou Alapong faleceu):
Contava Pia que, no tempo de Massinokou, existiam quatro
temporadas de festas: 12, 13 e 14 de dezembro; 19, 20 e 21 de
janeiro; 29, 30 e 31 de agosto; e 28, 29 e 30 de setembro,
quando era venerado o rei dos mestres (To Alapong), que fazia
a celebração do setembro, uma espécie de agradecimento.
Com o correr dos tempos, três dessas festas foram se
extinguindo, ficando apenas a festa de dezembro, popularizada
como festa de Santa Luzia, adorada pela entidade Sinhá-Bê,
mas que festejava também Santa Bárbara, adorada também
por Dantam. E a tradição fez com que o ritual sempre
começasse com a dança do baião. (FERREIRA, 1997, p. 98).
Para ser mais claro o ritual do ‘Baião de Princesas’ era um ritual que precedia a
festa do mês de dezembro para Santa Luzia no terreiro do Egito, onde as
filhas-de-santo ricamente vestidas com saias e blusas coloridas, mantas de
miçangas, laços de fitas e flores na cabeça, xales, leques, muitas jóias, colares
e fitas e outros adornos. Um ritual extremamente ‘feminino’ no qual as
mulheres recebiam suas ‘encantadas’ (entidades espirituais femininas:
princesas, moças, rainhas e mães d’aguas) e dançavam ao som dos
instrumentos típicos do baião como em um grande baile (BAIÂO DE
PRINCESAS, 2002).
Ainda nos dias atuais a Casa Fanti Ashanti de pai Euclides continua a ‘tradição’
de realizar o ritual do ‘Baião de Princesas’ no dia 13 de dezembro, dia dedicado
a Santa Luzia, santa católica e também a entidade espiritual africana o vodum
feminino ‘chefe’ do Baião de Princesas nesse terreiro de Mina, ‘nochê Dantã’,
também conhecida pelos nomes de Obarí, Bela Infância, Belinha, Menina da
Gameleira ou Menina do Caxangá (ID, Ibid). Dantã ou senhora Dantã como
também é conhecida na mitologia da ‘encantaria maranhense’ aparece nesse
contexto como uma das filhas do rei da bandeira (Seu João da Mata), uma
outra rainha e segundo as informações do finado pai Francelino Shapanan
(introdutor do Tambor de Mina em São Paulo, fundador da Casa das Minas de
Thoya Jarina) dadas ao professor Reginaldo Prandi (2001, p. 249) às vezes ela
aparece como vodum da família de Dambirá (voduns da terra), muito parecida
como uma Nanã Velha.
O babalorixá Euclides afirma que as tobóssis são entidades encarregadas das
aprendizagens na vida doméstica do culto do Tambor de Mina na ‘cabeça’ de
cada filho-de-santo. O mesmo líder afro-religioso cita uma pequena lista das
‘tobóssis’ ‘assentadas’ ou cultuadas pelos seus filhos (as)-de-santo que
passaram por preceitos (rituais específicos de preparação para receber tais
entidades:
Isabel-Demawí; Maria José-Boukuni; Maria Gomes-Laandê;
Maria Guterres-Ossandê; Lindalva-Ceveby; Emilia-Ladênin;
Joãozinho-Ibacilé; Domingos-Alêneby; Maria Teresa-Ominadê;
Maria dos Remédios-Dindandê; Laura-Samilokun; R. SoeiroIpandêin; Maria Jansen-Danilé; Anisia-Mayênin; Nazaré-Denijá;
Creuza-Lubenin; Luís-Nancilé; Alberto-Abenilá; LaurindoGuimadê; Venina-Ejakerê; Euclides-Aladêssi; AnunciaçãoNaninremim; Clarice-Esadêmi; Belinha-Sanilé; Haroldo-Idaceví;
Unais-Ineuênin; Eurimar-Sancilé; Iracy-Amãhê; VicentinaLossamim; José Gomes-Untebessi; Anilton-Ênindé; JúliaLagonijá; Ana Cleide-Macilé; Carlos-Macilé; Lucimar-Undemilá;
Madalena-Bakunomim; M. Arcângela Indasã; AlexandrinaIsanlé. Filhas falecidas e suas tobóssis: Mariana-Dêlomim;
Vitória-Azikarê; Maria Tapuia-Kauêmim; Isaura-Jactemy; M.
Checó-Adunilé; Remédios Castro-Leidiomar. (FERREIRA,
1987, p. 165-166).
Chamamos à atenção para o nome dos seguintes filhos-de-santo dessa lista
Ana Cleide e Carlos com o nome da mesma tobóssi ‘Macilé’ para um possível
erro de digitação da obra, pois o mesmo se repete com o mesmo nome da
tobóssi para esses dois filhos-de-santo, visto que essas entidades são
pessoais e íntimas, onde uma mesma tobóssi não incorpora em mais de uma
pessoa e quando a filha (o) morre a tobóssi dela (e) não retorna ou incorpora
mais em outros.
O finado babalorixá Jorge Oliveira (1989, p. 43), chefe da Casa de Iemanjá, no
bairro da Fé em Deus, também exemplifica algumas tobóssis e princesas que
‘arreiam’ (incorporam, descem) nesse terreiro de Mina: Adobê, Agomavê, Elaci,
Diana, Nisavehy, Rica Prenda, Dona Rosinha, Sereinha, Dilewá, Dantobê,
Finaflor, Anadina, Flor do Dia, Boça, Naidê, Janaína e Princesa Luzia. É
imprecindível compreender alguns aspectos quanto ao nome dessas entidades
como mesmo alerta Oliveira (Id, Ibid) ao afirmar que as princesas de origem
nagô, tapa e cambinda utilizam nomes abrasileirados, enquanto as de origem
jeje usam nomes africanos.
No terreiro de Iemanjá essas entidades espirituais femininas (Rainhas,
Princesas, Moças, Meninas, Tobosas, Tobóssis) são chefiadas pela dona da
casa, Iemanjá, Abê, que traz todas as ‘princesas’ junto com ela em uma grande
corte para a festa dela no dia 08 de dezembro e também no dia da Bancada ou
Ahambã (quarta-feira de cinzas). De acordo com depoimento de Jorge Oliveira
(2003) na Casa de Nagô (terreiro de Mina centenário fundado por africanas de
nação Nagô, próximo a Casa das Minas), Iemanjá é a chefa das tobóssis nessa
casa e era ela que trazia todas as princesas habitantes de uma espécie de
convento ou castelo no fundo mar, ‘descendo no terreiro’ todas juntas,
denominadas por esse líder afro-religioso como as ‘crias de Iemanjá’.
Leandro de Nanã (2010), pai pequeno do Ilê Ashé Ogum Sogbô, confirma essa
assertiva de que elas costumam vir todas juntas e que ‘elas estão ligadas aos
elementos mais profundos dos nossos voduns, é como se fôsse a vida deles
em uma criança pura e meiga, estando ligadas ao nosso corpo, se alimentando
assim como nós, mas só com frutas (no processo de feitura ou de recolhida) e
por isso quando nós morremos, elas morrem também e não vem mais. De
acordo com informações de Pai Márcio de Boço Jara, pai-de-santo da Casa
das Minas de Thoya Jarina em São Paulo, a Rebelo (2011, p. 08) contando
uma história peculiar da encantada Thoya Jarina do finado Francelino
Shapanan e seu cuidado com as tobóssis nesse terreiro de Mina, confirmando
mais uma vez essa ideia de transe coletivo dessas entidades:
Ela vinha pouquíssimas vezes, falava pouco e se comportava
sempre muito altiva, ela tinha um porte de princesa e era muito
serena, bem mãe, de conversar baixo. Mas algumas vezes ela
saía do prumo, vamos dizer assim. Lembro de um acontecido
que houve durante um ritual, no qual nós temos que manter
preceito durante três dias, que geralmente era realizado
durante o carnaval, que é o ritual das Tobossis. E os filhos da
casa e até mesmo pai Francelino, chegaram a quebrar esse
preceito, saindo no carnaval. E eu vi Dona Jarina bater com
chicote, brava, nos filhos que não cumpriram essa
determinação. Isso porque se uma das tobossis não vier, as
outras também não vêm. Se um filho estiver com álcool no
corpo, ou tiver feito alguma coisa de errado, aquela entidade
não vem, e, assim não tem ritual, não tem tambor. E alguns
filhos, que Dona Jarina sabia que tinham pisado fora, ela puniu
e aquilo ficou na nossa lembrança. (REBELO, 2011, p.8).
Entendemos que o corpo deve estar ‘limpo’ para entrar em transe com tais
entidades consideradas muito ‘finas’ e delicadas e que o ‘preceito’ ao ser
quebrado nessa ocasião na Casa das Minas de Thoya Jarina pelos filhos-desanto e pelo próprio pai Francelino levou a aplicação de castigos por Dona
Jarina. Leandro de Nanã (2010) nos explicou que uma tobóssi costuma ‘puxar’
a outra e todas se manifestam em suas filhas (os).
Outro argumento interessante de Oliveira (Id) sobre as tobóssis e sua festa é a
de que ela representa a transmigração da família real de Daomé do continente
africano para o Maranhão. Uma das explicações que o finado Jorge Oliveira dá
é de que a suposta africana fundadora da Casa das Minas Nã Agotimé em
meados do séc. XIX ao vir da África para o Maranhão veio acompanhada de
sete princesas reais dando a entender que essas festividades são alusivas e
representativas à realeza daomeana.
Usualmente essas entidades espirituais femininas tobóssis, meninas, princesas
costumam vir nas festas de Arrambã ou Bancada3. No ritual de Arrambã ou
bancada em que as tobóssis, princesas, meninas, distribuem frutas, bebidas,
acarajé, etc., e que Nicolau Parés (2001, p. 201) ao comparar essas entidades
no Brasil com as do continente africano diz que parece que elas inverteram sua
função de ‘mendicantes’ e que Sérgio Ferretti (2009) contrapõe ao afirmar que
elas nas festas pediam brinquedos e guê (dinheiro), na Casa de Iemanjá, de
pai Jorge essa função de mendicantes é bem explícita nesse ritual com um
leilão de frutas e doces.
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3- De acordo com Sérgio Ferretti (2009, p. 289) o Arrambã ou Bancada é uma cerimônia ou um
ritual do Tambor de Mina, que vai demarcar o fechamento anual do terreiro antes da Quaresma
(período de quarenta dias no calendário cristão, que antecede a festa de ressureição de Nosso
Senhor Jesus Cristo, a páscoa, e que é marcado por abstinência, reflexão e penitências) sendo
realizada na quarta-feira de Cinzas. Usualmente os terreiros de Mina não fazem festa ou
toques nesse período, vindo a funcionar apenas no sábado de aleluia com a abertura das
casas, suspensão das atividades religiosas (FERRETTI, M. 2000, p. 203). A bancada ou
Arrambã também é chamada de ‘carga’ ou ‘quitanda’ sendo um ritual preparado com muita
comida, doces, frutas sendo precedida pelo ritual da ‘torração’ (preparação dos alimentos,
feijão, coco, pipoca, paçoca de milho, torrado, etc.) e que depois permanece no quarto-desanto ou peji para que depois seja distribuída para os presentes no dia do ritual pelas
entidades, tobóssis, meninas, moças, princesas, etc. Como na Casa das Minas as tobóssis não
vêm mais por falta de vodúnsis gonjaís, os alimentos da Bancada são distribuídos pelos
voduns sendo uma festa de obrigação para que haja fartura o ano inteiro, de acordo com as
vodúnsis da Casa das Minas (FERRETI, S. 2009, p. 162).
A mendicidade é uma característica importante das tobóssis e segundo
Sogbossi (2004, p. 304) o ato de ‘mendigar’ vai ter sua réplica no Brasil, a partir
das variadas representações nas religiões afro-brasileiras, particularmente no
Candomblé (filhos-as-de-santo nas ruas pedindo dinheiro para custear
iniciações, rituais de feitura, etc.). No Benin, como atesta Brice Sogbossi (Id
Ibid) o principal local para mendigar é o mercado, local de encontros e
desencontros na cosmologia africana sendo um espaço frequentado por todos
os tipos de pessoas, gente comum, loucos, mendigos, delinquentes,
malfeitores, ladrõs doentes, ricos, religiosos, intelectuais, políticos, militares,
desempregados, convergindo pessoas de todas as camadas da população.
Esse caráter de mendicantes das tobóssis no continente africano que sofreu
mudanças no Brasil, principalmente nos espaços (no Benin6, elas saem para ir
ao mercado e ‘mendigar’, elas são avaras) é reduzido aqui ao próprio terreiro,
onde elas passam a distribuir frutas, doces e demais comidas no Arrambã,
entretanto, elas não suprimem a ‘função delas de pedintes’. No Ilê Ashé Ogum
Sogbô, de pai Airton a tobóssi de Neuton, nos pediu refrigerante e bombom
para a sua festa.
Ao longo da bancada ou arrambã no terreiro de Iemanjá, depois que já se
cantou bastante para as tobóssis, princesas, meninas, moças é feito um ‘leilão’
das frutas e doces a preços simbólicos, onde os presentes costumam colocar
dinheiro (moedas ou cédulas) dentro de uma salva (bandeja), posta no centro
da mesa da bancada. Logo depois, são distribuídas as frutas pelas tobóssis,
tobosas, princesas, moças para as pessoas (OLIVEIRA, 1989, p. 43).
No terreiro de Mina Fé em Deus, localizado no bairro do Sacavém, comandado
por mãe Elzita desde a década de 60 e que representa a terceira geração
mineira de casas oriundas de uma ‘matriz’ (Terreiro do Egito> Terreiro de
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6-Uma outra característica de algumas tobóssis no Benin (África) é o transformismo. Esse é um
aspecto relacionado a questão de gênero onde os homens no passado incorporavam muito as
tobóssis, mas que na atualidade é algo que acontece menos. Na ausência das mulheres para ir
ao mercado, os homens incorporados com suas tobóssis travestem-se de mulheres com um
pano amarrado no peito, exatamente como as mulheres e mendigam. Um travestimento ritual
(SOGBOSSI, 2004, p. 303). Nesse primeiro barco do Ilê Ashé Ogum Sogbô, dois homens
foram submetidos aos rituais de feitura para tobóssis, assumindo todo um conjunto simbólico
próprio dessas entidades espirituais, inclusive as suas vestimentas femininas.
Zacarias<Terreiro de Denira<Terreiro Fé em Deus, de mãe Elzita), (SANTOS,
1989, p. 38) são também realizados rituais para as ‘senhoras’ ou tobóssis,
princesas, rainhas, moças ou meninas.
É importante destacar que no terreiro Fé em Deus o ‘tambor das senhoras’
como é classificada essa festa ritualística para as entidades espirituais
femininas nessa casa tem uma duração de quatro noites ao longo do período
carnavalesco, assumindo atribuições valiosas, simbólicas e previsivas para
‘marcar’ (determinar, definir aspectos intrínsecos rituais futuros) de outras
festas no terreiro pela entidade espiritual feminina de ‘Dona Elzita’, a princesa
Doralice. Dentre essas festas Socorro Aires (2008, p. 53) aponta a própria
Bancada na quarta-feira de Cinzas, a virada ou passagem da Princesa Doralice
para a linha de Cura, Brinquedo de Cura realizado no mês de maio e a Tribuna
do Divino Espírito Santo na Festa de Sant’Ana em julho no terreiro.
Percebemos que essas ‘atribuições’ (obrigações), marcações, elementos de
definição da princesa Doralice, guia de mãe Elzita, apresentadas no Tambor
das Senhoras são elementos previsíveis e demarcadores simbólicos através
dos quais essa entidade anuncia ou define para festas e rituais posteriores.
3.
HISTÓRICO DO ILÊ ASHÉ OGUM SOGBÔ
O Ilê Ashé Ogum Sogbô (Casa de Força de Ogum e Sogbô) é um terreiro de
Tambor de Mina localizado atualmente na rua Nossa Senhora das Graças, nº
62 no bairro da Liberdade em São Luís do Maranhão comandado pelo
babalorixá Airton Assunção Gouveia. No ano de 2010 o terreiro comemorou
suas bodas de prata com vinte e cinco anos de funcionamento.
A casa foi fundada no dia 24 de junho de 1985 em um outro endereço, mas no
mesmo bairro da Liberdade, na rua Tomé de Sousa, nº 93 ao lado da igreja
católica de Santo Expedito, local onde foram iniciadas grande parte das suas
atividades afrorreligiosas (ladainhas católicas, sessões de caboclos, consultas
espirituais com entidades, jogo de búzios, etc.). Segundo Pai Airton Gouveia, a
autorização para a abertura do seu terreiro ocorreu com o aval de seu finado
pai-de-santo, Jorge Itaci de Oliveira, mais conhecido como ‘Jorge da Fé em
Deus’ ou ‘Jorge Babalaô’, fundador do Ilê Ashé Iemowá ou Casa de Iemanjá.
O nome africano da casa ‘Ilê Ashé Ogum Sogbô’ foi sugerido por pai Jorge Itaci
e faz alusão as entidades espirituais principais da casa e do seu líder espiritual
Airton Gouveia, o orixá Ogum (deus do ferro e dos metais) e o vodum Sogbô
(vodum nagô, mãe de todos os voduns da família de Quevioçô, guia-astro,
representa o raio e adora Santa Bárbara). Há ainda várias entidades espirituais
(orixás, voduns, encantados e caboclos) que regem o terreiro (as chamadas
‘colunas’) como Iemanjá, Nanã, Oxum, Badé, Xapanã, Obaluaê, Xangô, Odé,
além dos encantados como o gentil Barão de Guaré (família dos lençóis), o
turco João Guará e Cabocla Mariana (família da Turquia); Miguelzinho de
Gama (Família da Gama); Dona Taquariana (cabocla índia que vem na linha de
surrupira); seu Folha Seca (da família de Codó ou de Légua Bugi) e outros.
Esse terreiro de Tambor de Mina pertence as seguintes nações africanas ou
segue as heranças culturais dos respectivos grupos étnicos Jeje (de culto aos
voduns jeje daomeanos: Doçú, Acóssi, Abê, etc.), nagô (orixás: Ogum,
Iemanjá, Nanã, etc.); Cambinda (Boço Jara, Boço Vondereji, Meméia, etc.).
Além de cultuar as entidades espirituais africanas podemos citar a ênfase aos
encantados e caboclos distribuídos em vários agrupamentos, famílias, linhas
(tais como Lençóis, Codó, Turquia, Gama, Baía, dos Botos ou de João de
Lima, Bandeira, dos Bastos ou de Rei do Juncal, Marinheiro, de Caboclo Roxo,
de Preto-Velho, de Surrupira, das moças ou meninas).
É importante pontuar que o Ilê Ashé Ogum Sogbô realiza também
manifestações ligadas ao catolicismo e a cultura popular como a festa do
Divino Espírito Santo, no mês de setembro, em que a casa realiza seu grande
festejo, que tem sua culminância no dia dos santos católicos Cosme e Damião
(dia 27). A queimação de palhinhas do presépio com a realização de uma
grande ladainha, usualmente é realizada pelo terreiro de pai Airton no mês de
fevereiro.
Quanto a cultura popular maranhense, é organizada no mês de junho a
brincadeira do boi de encantado (batizado e pequena apresentação) para ‘Seu
Dominguinhos Légua’, um dos guias espirituais do pai pequeno Leandro de
Nanã. Já no mês de setembro ao longo do grande festejo da casa, é feita a
morte do boi de Seu Dominguinhos, concentrando um grande número de
pessoas nesse ritual.
Em maio é organizado um tambor de crioula para os Pretos-Velhos e para São
Benedito sempre no dia 13, dia da abolição da escravatura. Podemos ainda
mencionar o bloco afro, que foi organizado recentemente (ano de 2009) com a
participação de jovens dessa comunidade-terreiro promovendo ensaios e
pequenas apresentações culturais (LINDOSO, 2007).
4.RITUAL DE FEITURA E FESTA PARA AS TOBÓSSIS NO ILÊ ASHÉ
OGUM SOGBÔ (PRIMEIRO E SEGUNDO BARCO DE INICIAÇÃO)
1º BARCO: Tomamos conhecimento dessa festa que aconteceu no terreiro de
pai Airton bem antes de ser realizada e ainda no mês de dezembro de 2009.
Em uma de nossas conversas com o pai-de-santo, ele sempre nos avisava das
ladainhas e algumas obrigações rituais mais simples que estavam acontecendo
na casa nos dias de santo, pois a mesma estava com suas atividades afroreligiosas suspensas devido a reformas e construções ao longo de seis meses.
Três filhos-de-santo do Ilê Ashé Ogum Sogbô se submeteram ao ritual de
feitura de tobóssis ou participaram desse primeiro barco de iniciação dessas
entidades espirituais: Aíla de Iemanjá (contra-guia, mãe pequena), Leandro de
Nanã (guia ou pai pequeno) e Neuton de Badé (braço direito de Airton, uma
espécie de pai pequeno também). Neuton anteriormente tinha nos convidado
para ser ‘padrinho’ de sua tobóssi e participar desse ritual de feitura ou de sua
iniciação de modo mais próximo e sob uma perspectiva mais de ‘dentro’ da
religião.
Van Gennep (1978, p. 26) afirma que a vida individual da pessoa das pessoas
em qualquer sociedade é sempre marcada por transições de uma etapa a outra
ou de um estágio a outro, expressando passagens e essas mesmas passagens
são acompanhadas por ‘atos especiais’, que são representadas por cerimônias.
É o que o autor chama de ‘ritos de passagem’ (nascimento, puberdade,
casamento, paternidade, progressão de classe, especialização de ocupação,
morte, etc.) e o ritual de feitura para as tobóssis, além de expressar a
‘preparação desses filhos-de-santo’ para incorporar essas entidades vai
denotar a transformações, eles vão adquirir a condição de ‘pai e mãe-de-santo’,
dentro da hierarquia do terreiro, vodúnsi e vodunso hunjaí.
Além dos ‘padrinhos’ terem acesso a uma parte do ritual de feitura desse
terreiro de Tambor de Mina, usualmente contribuem com uma quantia em
dinheiro para ajudar nas despesas rituais dos iniciados. Demos nossa
contribuição para que Neuton pudesse amenizar os gastos e despesas com o
ritual e foram feitas várias recomendações para que aspectos internos
(segredos) não fossem divulgados ou apresentados pela pesquisa, entretanto,
fomos avisados de algumas peculiaridades que deveríamos seguir ou cumprir,
tais como: cor da vestimenta da festa (branco), dias e horários, etc.
A primeira parte de nossa participação ocorreu no dia 17 de abril de 2010, data
marcada para o ritual interno da feitura e que somente pessoas da casa
selecionadas e os padrinhos poderiam participar ou mesmo presenciar.
Tivemos conhecimento que o mesmo aconteceria no período vespertino (a
partir das 15h), mas soubemos posteriormente que teve início desde as nove
horas da manhã.
Fizemos uma confusão de horários com o tempo de início e fim. Chegamos por
volta das 15:00h no terreiro debaixo de uma chuva torrencial e o acesso de
entrada pelo salão de danças estava interrompido, logo tivemos que dar a
volta pelos fundos da casa para poder entrar. Nos fundos do terreiro há um
grande salão de festas organizado especificamente para congregar grande
número de pessoas nos eventos profanos da casa.
Observamos que muitos filhos-de-santo e pessoas da casa estavam envolvidos
nesse ritual, tocadores, filhos (as)-de-santo, cozinheiras e convidados (afroreligiosos de Belém do Pará), da Casa Grande de Mina Jeje Nagô de Toy Lissá
e Abê Manjá, de mãe Rosângela de Abekossú e de pai Huevy Babaorunfangê).
Eles são descendentes diretos do terreiro de Iemanjá, casa de Mina liderada
pelo finado Jorge Babalaô na Fé em Deus.
Havia muitos animais sacrificados (cabra, carneiro, etc.) que estavam sendo
‘tratados’ por algumas mulheres (cozinheiras) e os homens ‘retalhavam’
(cortavam) as carnes dos animais, separavam o couro e também sacrificavam.
O ambiente estava todo tomado por essa atividade ritual e quando chegamos
falamos primeiramente com pai Airton e cumprimentamos também alguns
filhos-de-santo, sendo depois conduzido até o salão de danças do terreiro, que
era utilizado naquele momento para o ritual de feitura das tobóssis.
O sacrifício de acordo com Mauss e Hubert (2005, p. 19) é um ato religioso que
mediante a consagração de uma vítima modifica o estado da pessoa moral que
o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa. São variadas as
ocasiões para sacrificar e os efeitos desejados muito diferentes, e a
multiplicidade dos fins implica a dos meios.
Mauss e Hubert (Id Ibid) divide os sacrifícios em constantes e ocasionais,
sendo os últimos definidos como sacramentais (samskâr), que acompanham os
momentos solenes da vida, fazendo parte do ritual doméstico e são realizados
por ocasião do nascimento, da tonsura ritual, da partida do pupilo, do
casamento, etc., ou mesmo os sacrifícios votivos, cujo caráter ocasional é
ainda mais marcado, no caso esses sacrifícios para a feitura das tobóssis no
terreiro.
Os sacrifícios periódicos são teorizados por Mauss e Hubert (Id Ibid) como
periódicos e ligados a momentos fixos, independente da vontade do homem e
do acaso das circunstâncias (o sacrifício diário, da lua nova, lua cheia, das
festas sazonais e pastoris, etc.). Um sacrifício animal solene em uma ocasião
importante para essa casa.
Devido ao nosso ‘atraso’ para participar do ritual completo de feitura das
tobóssis, pai Airton ‘autorizou’ nossa entrada no salão de danças da casa, local
em que os três filhos-de-santos ficaram ‘recolhidos’ ao longo de cinco dias.
Heraldo, filho-de-santo da Casa das Minas de Thoya Jarina em São Paulo, do
finado Francelino Shapanan iniciado também na Casa de Iemanjá, de pai Jorge
e muito ligado ao terreiro de Airton nos tirou uma dúvida sobre a matança dos
animais.
Ele nos afirmou que as matanças se direcionavam tanto para o santo
(orixá/vodum, entidades espirituais africanas) dos iniciados quanto para as
tobóssis. Adentramos ao terreiro e chegamos no salão de danças, entretanto, a
porta de acesso estava fechada, mas foi logo aberta pela filha-de-santo de mãe
Rosângela, Aletéia de Abê, uma das principais responsáveis pelo ritual de
feitura, a mãe criadeira dos iniciados.
Mãe Aletéia nos cumprimentou e falamos a ela que éramos padrinho da tobóssi
de Neuton, e logo ela permitiu nossa entrada. O ambiente estava todo na
penumbra somente a luz de velas, os três filhos-de-santo dispostos um do lado
do outro em cima de esteiras de palha e somente Neuton estava acordado,
incorporado com sua tobóssi, que brincava com sua boneca e Aíla de Iemanjá
e Leandro de Nanã estavam deitados descansando/ dormindo.
A tobóssi de Neuton tomou a benção e me pediu bombom...Não demoramos
muito lá dentro do espaço de feitura das tobóssis, onde não temos autorização
para fazer descrições detalhadas e expor publicamente ‘aspectos rituais
internos da casa’ (segredos!!!) a pedido dos próprios dirigentes. Ao sairmos nos
despedimos de pai Airton e ele nos pediu que trouxéssemos refrigerante no dia
da festa pública, dia 21 de abril, feriado. Os filhos-de-santo ficaram recolhidos
por cinco dias.
O professor Octávio da Costa Eduardo (1948, p. 72) faz uma descrição
elementar das etapas do ritual de feitoria das vodúnsis gonjaís da Casa das
Minas na qual elas são preparadas para ‘receber’ suas tobóssis, afirmando que
as mesmas são submetidas primeiramente ao ‘Zandró’ (invocação ou chamada
dos voduns) e o ‘Nahunu’ (sacrifícios de animais para o voduns), sendo que
antes da possessão pelos voduns as iniciandas tem suas cabeças lavadas com
amassi para ‘limpar o corpo’ e retirar qualquer impureza. Essas iniciandas
ficam reclusas´em quartos por oito dias sendo interrompidas apenas pelas
danças que elas participam; no terceiro dia elas participam de uma cerimônia
em que um tufo de cabelo é cortado de suas cabeças e oferecido ao seu
respectivo vodum, simbolizando que a sua cabeça pertence aquela entidade.
Somente no oitavo dia é que as iniciandas vão receber suas tobóssis pela
primeira vez, apresentando-se muito tímidas e envergonhadas. A possessão
por essas entidades vai durar um período de nove dias (começando de manhã
e terminando de noite). No segundo dia é que elas anunciam seus nomes, mas
sem cerimônias especiais para isso e no fim desse período as novas noviches
podem entrar no pegí e oferecer elas mesmas os sacrifícios aos seus voduns,
que foram preparados antes pelas gonjaís que as orientaram na sua iniciação.
Depois de um ano de feitura das novas noviches há a ‘cerimônia de
pagamento da cabeça’, onde as mais novas organizam a cerimônia e o
sacrifício para todos os voduns da casa em agradecimento pela ‘feitura’
(orientações e ensinamentos) as mais velhas. Durante a cerimônia há a
possessão pelos voduns e depois que eles se vão vem as tobóssis
(BARRETO, 1977, p. 76)
No dia da festa da ‘saída pública das tobóssis’ ou do ‘barco de tobóssis’
chegamos ao terreiro de pai Airton por volta das 16:30h da tarde e estávamos
acompanhado de alguns amigos de um outro terreiro de São Luís, que levamos
como convidados para prestigiar essa cerimônia. O toque ainda não havia
iniciado e percebemos uma grande movimentação de pessoas fora do terreiro
e na parte interna.
Adentramos rapidamente no salão de danças, e várias pessoas ocupavam as
cadeiras e todos os assentos. O calor era intenso e muitas outras pessoas se
encontravam presentes embora em pé por falta de lugar. Por volta das 17h, o
toque de Mina foi iniciado com o ‘imbarabô’, cântico em africano de louvação a
Exu orixá da comunicação entre os deuses e os homens, por pai Airton.
Do quarto-de-santo, ele cantou e uma das filhas-de-santo do terreiro saiu das
dependências internas acompanhada por duas mocinhas devidamente vestidas
de branco para ajudá-la no despacho de Exu ou pedido de proteção para a
festa e ritual. Elas se dirigiram até a rua e caminharam até um certo ponto, uma
delas tinha uma garrafa de cachaça na mão e a filha-de-santo, um fogareiro
com defumador.
Elas pararam e a filha-de-santo jogou um pouco de cachaça na rua e fez
movimentos
circulares
com
o
defumador,
depois
voltando
para
as
dependências internas do terreiro sem dar as costas para a rua. Ao adentrarem
no salão de danças, elas se dirigiram para as dependências internas do terreiro
se juntando aos demais filhos (as)-de-santo, ao pai e demais afro-religiosos,
que participaram do toque e para que a dança ou a festa propriamente dita
pudesse ter continuidade.
Todos os filhos (as)-de-santo, foram entrando no salão de danças ainda ao
som do cântico do Imbarabô seguido por outros cânticos em africano em louvor
as entidades espirituais e por último pai Airton Gouveia entrou completando a
grande roda de Tambor de Mina. È importante pontuar que foi colocada uma
cadeira junto aos tambores ou abatas na parte central do salão de danças ou
altar católico para mãe Rosângela de Abecossú, líder afro-religiosa da Casa
Grande de Mina Jeje Nagô de Toy Lissá e Abe Manjá, localizada em Belém do
Pará e que foi uma das principais pessoas responsáveis pelo desenvolvimento
e execução do ritual de feitura do primeiro barco de tobóssis do Ilê Ashé Ogum
Sogbô.
Mãe Rosângela trouxe um grupo de pessoas do seu terreiro de Mina para
ajudar nesse ritual e particularmente o próprio pai Airton nessa tarefa afroreligiosa. Ela ficou sentada do lado de Pai Airton na parte central do salão de
danças, ricamente vestida de azul claro e com um torço na cabeça nessa
mesma cor, o azul representava a cor do seu orixá Iemanjá, a rainha das
águas.
Ao entrarem no salão de danças cada filho ou filha tocava no chão, junto aos
tambores ou abatás, uma espécie de cumprimento aos instrumentos rituais e
começaram a dançar. Os três filhos-de-santo submetidos ao ritual de feitura
não se apresentaram no salão nesse momento, ficando fora dessa primeira
parte da festa. Aíla de Iemanjá, Neuton de Badé e Leandro de Nana ainda
continuavam recolhidos esperando o momento certo para que suas tobóssis
pudessem ser apresentadas ao público na festa.
Pai Airton dançou somente nos primeiros cânticos louvativos as entidades
espirituais africanas (voduns e orixás), vindo logo em seguida a ficar sentado
do lado de mãe Rosângela de Abê. Esses dois líderes afro-religiosos
presidiram a cerimônia, ajudados por seus respectivos filhos (as)-de-santo.
Com o passar do tempo os filhos (as) iam incorporando suas entidades
espirituais (voduns e orixás) sendo ajudados pelas duas mocinhas de branco,
as vodúnsis poncilês da casa4 . Elas iam passando as toalhas em volta do
corpo dos filhos (as)-de-santo e também enxugando o suor de seus rostos,
devido o intenso calor.
___________________________
4-Vodúnsi Poncilê ou vodúnsiponcilê segundo Sérgio Ferretti (2009, p. 240) são mulheres que
não recebem voduns e não dançam, mas são serventes e ajudantes, que cozinham, lavam e
servem aos voduns. No Ilê Ashé ogum Sogbô as vodúnsis poncilês são bem jovens, dentre
elas temos a filha da mãe pequena da casa Ylanajara Gouveia, que ajuda os filhos (as)-desanto quando incorporados com suas entidades espirituais, dando assistência. Se
compararmos com a matriz afro-religiosa do Candomblé podemos associar a função de Ekedi,
que cuidam também das divindades.
Houve um determinado momento em que o toque parou e todos os filhos e
filhas foram retirados do salão de danças para que as entidades já
incorporadas pudessem ter suas roupas ajeitadas e descansar um pouco. Após
certo tempo, todos retornaram ao salão e o toque foi reiniciado, a saída não
aconteceu logo e mais cânticos e danças se desenvolveram até um
determinado instante, em que a saída foi anunciada por pai Airton Gouveia.
Na parte interna do terreiro, que concentra alguns compartimentos especiais
(sala de altar católico, quarto de segredos, sala dos orixás, voduns e
encantados nobres, cozinha, salão de festas profanas, etc.), especificamente
na sala do altar católico e ante-sala havia uma grande movimentação com a
presença de Leandro, Aíla e Neuton, os filhos-de-santo recolhidos para a
feitura das tobóssis. Todos eles já estavam vestidos ou paramentados
(adornados, enfeitados) com as vestimentas das suas entidades (as tobóssis),
entretanto, ainda não estavam incorporados com elas, ou seja, eles apenas
estavam se organizando para serem apresentados ao público.
As suas vestimentas eram especiais para aquela ocasião, específicas daquelas
entidades espirituais e, que no Tambor de Mina, apresentam elementos
específicos, tais como a ‘manta de miçangas’ ou ‘manta de tobóssis’, uma
espécie de malha de contas coloridas e que cobre os ombros das filhas-desanto quando incorporadas, além do pano da costa envolto no corpo dos filhos,
os colares, as bonecas, pulseiras, etc., vários objetos que compõem o visual
estético dessas entidades.
As cores das roupas das tobóssis dos iniciados era o branco, azul, rosa e
amarelo. Todos estavam devidamente bem vestidos e apresentáveis, mas é
necessário destacar que Aíla era a única que vestia saia por ser mulher e os
homens de calça com suas cabeças envoltas por um torço. Mãe Aletéia
ajudada por duas filhas-de-santo do terreiro de Mãe Rosângela e das vodúnsis
poncilê da casa de pai Airton organizaram todas as pessoas envolvidas no
ritual para que o barco pudesse adentrar ao salão de danças, ou seja,
formaram uma fila, onde os iniciados com as tobóssis já incorporadas ladeadas
por seus padrinhos ficaram na frente.
Antes do momento de entrada do barco das tobóssis ao salão de danças,
houve alguns momentos importantes como a incorporação dessas entidades,
provocada por mãe Aletéia, a organização da fila dos participantes desse ritual,
a leitura da ata ou do caderno de registro descritivo das festas e rituais da casa
de pai Airton. Mãe Aletéia de Abê, filha da Casa Grande de Mina de Toy Lissá
e Abe Manjá, foi a mãe criadeira dos iniciados, ou seja, foi a pessoa que os
auxiliou no período de reclusão do ritual de feitura.
O termo ‘bebe5’ que está presente nos nomes das tobóssis dos três iniciados
Ananbebê (nome da tobóssi de Leandro de Nanã), Yaminbebêlodô (nome da
tobóssi de Neuton de Badé) e Abêaminbebê (nome da tobóssi de Aíla Maria)
será uma categoria de identificação do próprio barco, marcando os nomes
rituais dessas entidades como se fôsse uma espécie de sobrenome delas,
segundo Leandro de Nanã (2011).
Essas três tobóssis como são do mesmo barco, ‘elas nascem juntas e não
podem descer separadas’ vindo a descer juntas (incorporar nos seus filhos,
filhas) e a subir juntas (desincorporar), onde ‘Ananbebe’ (tobóssi de Leandro)
como é a mais velha das três em termos de feitura vem puxando as outras.
Após a parada do toque em que as entidades espirituais (africanas e
encantados) dos filhos-de-santo foram retiradas do salão para ‘descansar’ e se
‘ajeitar’, todos retornaram e enfim o toque foi reiniciado mas não demorou
muito devido pai Airton ter interrompido para iniciar um breve discurso. Ele
falou sobre a importância daquele ritual para a casa, ‘o 1º barco de tobóssis do
Ilê Ashé Ogum Sogbô’, como parte das comemorações dos 25 anos do terreiro,
as responsabilidades, tradições, fez agradecimentos, mencionando bastante o
valor de descendência da casa matriz, a casa de Iemanjá, do finado Jorge Itaci,
________________________________
5-O significado do nome delas como atestou Leandro de Nanã (2010) é segredo da religião,
embora ele tenha me falado o significado do nome de sua tobóssi por questões de confiança e
de apreço pelo trabalho de pesquisa, solicitou que não colocássemos no trabalho. Um dos
elementos importantes sobre o nome dessas entidades é que ele está muito ligado ao vodum
ou entidade espiritual africana da pessoa. Uma recomendação que ele deu é que se alguém
precisar de ajuda ou estiver em dificuldades, é só chamar pelo nome da tobóssi que ela ajuda
ou soluciona problemas. Hipollyte Brice (2004, p. 297) cita algumas tobóssis e suas ligações
com Heviosô (chama-se Ahwansi); Lissá (chama-se Agama) e Sakpata (chama-se Kuvi).
agradecendo também os préstimos de mãe Rosângela, de seus irmãos-desanto e convidou também todos os presentes para os cinco dias de festas,
etc.:
É o nosso período que nós estamos completando 25 anos de Tambor de
Mina e, então é uma grande honra de começar os nossos 25 anos de
terreiro, primeiro pedindo a Deus, que nos botou no mundo, depois a
senhora Iemanjá, Dom Luís, Senhor Ogum e a Dona Sogbô, que é a mãe
dessa casa e Pai, que nos botaram aqui. Hoje nós estamos tocando os 25
anos do Ilê Ashé Ogum Sogbô, por quê? Nós saímos do ventre de senhora
Iemanjá, então eu queria uma grande salva para minha mãe Iemanjá
[PALMAS] por ela estar nos abençoando hoje com as nossas primeiras
tobóssis da casa. A primeira tobóssi, a primeira vodúnsi poncilê na casa
para Iemanjá e festa para Lissá... E então, queria convidar todos para a
festa, que está começando hoje. São cinco dias de tambores... É hoje,
amanhã, depois, depois...até domingo! Todos estão convidados. E agora
vamos agradecer também a presença de mãe Rosângela, que é minha
irmã-de-santo, que veio de Belém para me ajudar a ‘dar’ as minhas
primeiras tobóssis, a Dona Bidoca, ao Sebastião, aos meus irmãos-de-santo
que estão aqui! Eu queria um grande ashé, um grande PAÔ e VODUM PAÔ
ADEJI A TODOS! ASHÉ! (Discurso de Pai Airton Gouveia, 21/05/2010).
Após isso, pai Airton chamou uma moça da casa para fazer a leitura da ata,
que descreveu todos os envolvidos nesse ritual, inclusive mencionando o
nosso nome enquanto antropólogo/pesquisador e padrinho da tobóssi de
Neuton:
Aos 17 dias do mês de abril de 2010 na sala solene de cerimônias do Ilê Ashé Ogum Sogbô,
localizado na Rua Nossa Senhora das Graças, nº 72, Liberdade foi realizada a cerimônia
solene de feitura para tobóssis, regida pelo Toy Vodunnon Airton Gouveia (Gumabatahê) e a
Nochê Rosângela Correia da Rocha (Abêkossú) da Casa Grande de Mina Jeje Nagô de Toy
Lissá e Abê Manjá-Huevy, Belém, auxiliada pela Vodúnsi Gonjaí Conceição de Maria da Silva
(Iagumecí) e Elizabeth Nascimento dos Santos (Ialonan), Vodúnsi Poncilê, onde foram dados
os cargos de Vodunso e Vodúnsi Gonjaí a Leandro Ferreira da Silva com a Tobóssi
ANANBEBE, a Aíla Maria Gouveia com a Tobóssi ABÊAMINBEBE e Neuton Magno Oliveira
Muniz com a TOBÓSSI IAMINBEBELODÔ sendo-lhes conferido o título de pai e mãe na
hierarquia Mina do Ilê Ashé Ogum Sogbô. Após a cerimônia os vodunsos foram entregues aos
cuidados da mãe criadeira Aletéia Cabral (Olôbebecí), Vodúnsi Gonjaí da Casa Grande de
Mina Jeje Nagô de Toy Lissá e Abê Manjá-Huevy, Belém. Serviram de padrinhos Rosilda,
Oton, Amélia, Lucimara de Toy Averequete, Vitória Cunha de Caboclo da Ilha, Aletéia Cabral
(Olôbebecí), Rosângela de Abêkossú, Elizabeth (Ialonan), Sebastião de Xangô, Jefferson,
Antropólogo e Fabrício de Obaluaê. Serviram de Agaipí Josenildo de Obaluaiê, Obaluaê (ô
gente, eu tô nervosa, é a emoção!), Fabrício de Obaluaê da Casa Grande de Mina Jeje Nagô
de Toy Lissá e Abê Manjá-Huevy, Junior de Ogum. Serviram de Alabê Alex de Ogum, Neuton
de Ogum, Felipe de Ogum, Tiago de Toy Lissá, Ilanajara também de Toy Lissá. Participaram
ainda da cerimônia solene Genilson de Boço Jara (Sojaokê?), Rosileide (Iamodojodê), Heloísa
de Nanã (Yakerin), Andrelina de Toy Dan (Danbeoyá), Fernando de Toy Lissá (Uiêgongê),
Fátima de Iemanjá (Abecinauê), Augusta de Xangô e Concita de Iemanjá e ressaltamos
também que no dia 20 de abril de 2010, foi suspensa ao cargo de Vodúnsi Poncilê, Michele de
Carvalho Maia de Toy Aguê, tendo como padrinhos Henrique de Béssem e a Nochê Rosângela
Correia da Rocha, Abekossú da Casa Grande de Mina Jeje Nagô de Toy Lissá e Manjá-Huevy.
Sem mais nada a relatar encerro ata assinada e lavrada pelo Toy Vodunnon Airton Assunção
Gouveia e os vodunsos.
São Luís, 21 de abril de 2010.
Finalizada a leitura da ata, pai Airton proferiu um cântico em português em
homenagem as ‘meninas’ e logo o barco das tobóssis entrou no salão de
danças, os iniciados, os padrinhos, a mãe criadeira e suas auxiliares, etc.
Todos dançavam em um ritmo cadenciado e a maioria dos cânticos em
português, reverenciando várias dessas entidades: Boça, Princesa Laura,
Linda, Ana de Côrte, Iemanjá, entre outras. O momento da dança ritual não
deixa de inferir um contexto performático simbólico específico, onde
entendemos a performance como atuação, ação espetáculo, feito acrobático,
realização, desempenho, um ritual ou cerimônia, capacidade ou habilidade
(GOLDENBERG, 2006, p. 35)
Os iniciandos e seus corpos representam o próprio canal de comunicação,
dispensando os contextos narrativos, evidenciando todos os modos perceptivos
do corpo se utilizando dos gestos que remetem aos códigos culturais
estabelecidos e enraizados repetidos pela tradição (MAUSS, 1974). O bailado
das entidades vai representar todo um conjunto simbólico presentes no
contexto dessas entidades espirituais femininas infantis, o seu comportamento,
gestos, hábitos, etc., apresentados ao público espectador.
Mãe Rosângela nesse momento levantou e se juntou a todos, dançando e
cantando para as tobóssis. Muitas pessoas se espremiam no salão de danças
e tiravam fotos tentando registrar esse momento tão importante.
As tobóssis dançaram bastante e muitos cânticos foram proferidos, mas após
certo tempo elas saíram do salão de danças e foram para as dependências
internas da casa (salão dos voduns/orixás e encantados) para descansar,
conversar, tirar fotos, etc. A festa ainda apresentou algumas etapas
importantes, dentre elas uma saída-de-santo para o orixá Oxaguiã do filho-desanto Fernando, que foi devidamente paramentado para essa ocasião e a
elevação ao cargo de ‘vodúnsi poncilê’ de uma jovem no terreiro.
Como o calor era intenso nós fomos para os fundos da casa, acompanhados
de nossos convidados para jantar e conversar um pouco. O toque de Mina foi
finalizado por volta das 20:00h e ficamos até um pouco mais depois desse
horário.
2º BARCO: O intervalo de tempo entre o primeiro e segundo barco de feitura
de tobóssis no Ilê Ashé Ogum Sogbô foi de três anos, contando esse segundo
barco com mais três filho-de-santo com todos os graus de feitura completos
(Angélica Moraes da Silva-HUMAILÁ; Heloisa Sousa Mendes-YAKERIN e
Genilson dos Santos Brito-JANDOJAN). Diferente do primeiro barco, nessa
segunda feitura não houve participação externa (pessoas de outros terreiros,
como de Belém, por exemplo!) e os rituais ficaram na responsabilidade do paide-santo Airton e seus auxiliares.
A saída pública das tobóssis ocorreu no dia 23 de junho de 2013, dia festivo na
casa e que antecede o aniversário do terreiro. Ponderamos que nesse segundo
barco, o líder afrorreligioso Airton Gouveia apresentou algumas características
intrínsecas no comando do ritual, como independência, segurança e fidelização
à tradição mineira repassada pelo seu finado pai-de-santo, Jorge Itaci Oliveira.
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cerimônia do primeiro e segundo barco de tobóssis (ritual de feitura e festa
para essas entidades espirituais) no terreiro de Mina de Ogum e Sogbô de pai
Airton Gouveia foi um acontecimento de vital importância para esta
comunidade afrorreligiosa, pois além de expressar uma das últimas etapas de
preparação da pessoa (iniciado na Mina) no contexto ritual dessa casa de
santo ele propiciou diálogos e ‘conexões’ com outras comunidades-de-santo
(descendentes diretos também da casa de Iemanjá, matriz) fora do Maranhão
(Casa Grande de Mina Jeje Nagô de Toy Lissá e Abê Manjá em Belém do
Pará, de Mãe Rosângela e Pai Huevy). Na verdade, observamos que houve um
momento de ‘encontro’, ‘trocas’ de informações e conhecimentos sagrados
(rituais) onde a comunidade afro-religiosa de Belém esteve presente no Ilê
Ashé Ogum Sogbô para ‘ajudar’ e ‘auxiliar’ nesse processo de ‘feitoria’ para
essas entidades espirituais (1º Barco).
Outro
aspecto
relevante
propiciado
pelas
análises
em
torno
desse
acontecimento no terreiro de Mina pesquisado, foi o de lançar olhares
reflexivos em torno da figura ritual da ‘tobóssi’ ou das ‘tobóssis’, categoria que
serve em grande parte das vezes no contexto maranhense e fora dele (São
Paulo, Belém, etc.) para nomear entidades espirituais tanto africanas (a
exemplo dessas entidades da Casa das Minas Jeje, o modelo ritual jeje
daomeano) quanto não-africanas (Encantados/Encantadas: rainhas, princesas,
princesinhas, meninas, moças) nos terreiros de Mina. Já a denominação
‘tobossas’, uma possível variação de ‘tobóssis’ usado ou falado também nos
terreiros de Mina maranhenses faz alusão tanto as entidades espirituais infantis
femininas (meninas, moças, princesas) quanto as já adultas chamadas de
‘senhoras’ (a exemplo de Rainha Madalena, Dina, Iemanjá entre outras) e está
muito relacionado ao ritual da Bancada ou ao Ahambã.
Observamos que há similitudes e algumas diferenças entre as tobóssis no
continente africano (culto Nesuhue) e no Brasil (Maranhão, modelo ritual jeje da
Casa das Minas e nagô da Casa de Nagô) havendo do lado de cá
determinadas
ressignificações
e
peculiaridades
importantes
como
a
continuidade reorganizada da sua característica de ‘mendicantes’ e o
aparecimento de uma peça de sua vestimenta brasileira ‘ a manta de
miçangas’. No ritual de feitoria dessas entidades no Ilê Ashé Ogum Sogbô,
terreiro por nós analisado, a casa se espelhou no modelo ritual jeje da Casa
das
Minas,
onde
essas
entidades
assumem
um
nome
‘africano’
,
comportamentos e determinadas características próximas desse terreiro de
Mina, no entanto, mantendo ‘conexões’ e paralelismos com o modelo Nagô, a
exemplo de Iemanjá como chefa delas no Ilê Ashé Ogum Sogbô.
Reiteramos que as entidades tobóssis quando pensadas no culto do Tambor
de Mina podem nos remeter tanto a uma ascendência africana (tobóssis jeje e
de procedência nagô, cambinda, como atesta Oliveira, 1989) quanto nãoafricanas (‘encantadas’, princesas, rainhas, moças, meninas de variadas
nacionalidades fora da Àfrica) e que a própria categoria passa a ser algo ‘plural’
em face das reinterpretações, ressignificações e reorganizações delas em
terras
brasileiras.
As
tobóssis
da
Casa
das
Minas
(características,
comportamentos, funções, etc.) foram absorvidas por terreiros de Mina mais
contemporâneos com suas devidas peculiaridades e especificidades como o
próprio terreiro de pai Airton (Casa de Ogum e Sogbô).
6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FILMOGRAFIA
JORGE BABALAÔ-TAMBOR DE MINA DO MARANHÃO. São Luís: Stúdio V,
2003.
7.
ANEXOS
Figura 1: Tobóssis do 1º Barco de Iniciação do Ilê Ashé Ogum Sogbô, abril de 2010.
Figura 2: Tobóssi incorporada em filho-de-santo, 1º Barco de iniciação.
Figura 3: Tobóssis do 2º Barco de iniciação do Ilê Ashé Ogum Sogbô, 23 de junho de 2013.
Figura 4: Tobóssi incorporada em filho-de-santo, 2º Barco.
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Grupo de Trabalho 27: Religiões de matriz Africana no Brasil