95 A CONSTRUÇÃO DO ENUNCIADOR E DO ENUNCIATÁRIO NA VOZ INSTITUCIONAL Beatriz Gaydeczka USP/Capes 1 RESUMO. Neste artigo trataremos das imagens do enunciador e do enunciatário projetadas no discurso. A partir do exame de categorias enunciativas, princípio da enunciação em semiótica, será analisado o texto de “Apresentação” do Caderno do Professor – Orientação para a Produção de Textos, material didático produzido e veiculado com a finalidade da realização da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (ano 2008), com o objetivo de compreender o que cria o efeito de unidade no enunciado uma vez que representa a proeminência de diferentes instâncias discursivas. Em síntese, as principais contribuições decorrem da identificação das vozes enunciadas no discurso e dos efeitos de sentido por elas projetados a fim de pensar que a captação desses efeitos reverbera no trabalho de sala de aula, e por conseqüência, na produção dos estudantes. Palavras-chave: Enunciador. Enunciatário. Discurso. 1. Introdução A partir do lugar teórico oferecido pela semiótica de base greimasiana, nossa proposta é investigar a noção de estilo com vistas a obter a plena integração dela às teorias do discurso e com vistas a ganhar nelas um significativo estatuto operacional. Pensamos então na noção de estilo do gênero, noção esta por sua vez acoplada aos fundamentos da filosofia da linguagem, tal como proposta por Mikhail Bakhtin. O estilo do gênero será pensado em conexão com o estilo do autor. Por isso o interesse de firmar aberturas de diálogo entre a Semiótica de linha francesa com a Análise do Discurso, também com base no pensamento de origem francesa e a filosofia bakhtinana da linguagem. Certamente essa conexão teórica trazida à luz favorecerá a descrição do objeto de análise selecionado. 1 Cursa doutorado no Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), tendo o seu projeto de pesquisa “Discurso Memorialista: questões de estilo e de gênero” orientado pela Profa. Dra. Norma Discini, é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: [email protected]. ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 96 O corpus selecionado para estudo no projeto de pesquisa é muito curioso porque é dado na intersecção entre a voz institucional e a produção de alunos, que respondem ao convite de escrever textos segundo um discurso memorialista, ou seja, Se bem me lembro – o tema sobre o qual se radica a linha isotópica da totalidade de enunciados postos sob exame. Estes enunciados foram tomados do evento “Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, que possui para sua operacionalização um material de orientação teórico-metodológica, sendo o primeiro corpus chamado “Caderno do Professor – Orientação para a Produção de Textos”, ano 2008, cujo título é “Se bem me lembro...”, e o segundo corpus, o “Livro Memórias”, produto da realização da Olimpíada, uma seleção de 49 textos, escritos por estudantesparticipantes, selecionados como finalistas e semifinalistas do ano 2008. Do primeiro corpus recortamos o texto que será analisado neste artigo a fim de compreender o que cria o efeito de unidade no enunciado analisado, uma vez que representa a projeção de diferentes instâncias discursivas. Procuramos entender como essas instâncias se mostram, quais são as imagens que o enunciador projeta de si, qual a imagem que ele faz do enunciatário e quais são os valores e crenças partilhados entre os participantes desta cena enunciativa. Neste artigo o leitor encontrará uma síntese da discursivização da pessoa em enunciados e uma análise decorrente dessa fundamentação. Centramos a análise na caracterização dos enunciadores no discurso, pois em alguns gêneros eles estão mais evidentes que em outros. Sabemos que apesar de tratarmos de princípios linguísticos fundamentais para a constituição do dialogismo, na maioria das vezes o processo enunciativo não é facilmente compreendido, antes confundido, por isso necessidade de estudá-lo não se esgota. 2. Bases teóricas Sabemos que a enunciação, categoria de toda língua e de toda e qualquer linguagem, é o ato de dizer, de produzir o dito, desta forma o ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 97 enunciado é o dito, a realização do ato de dizer. Esse princípio foi formulado por Benveniste em resposta ao questionamento saussuriano que buscava compreender como se processa a passagem da língua para a fala, como é transferido o conhecimento do sistema para a fala individual. Por isso a enunciação é a instância que estabelece a mediação entre a língua e a fala, sendo a instância do ego, hic et nunc, correspondem respectivamente ao eu, aqui e agora, o uso dessas expressões em latim deve-se justamente ao fato de que essas três instâncias são universais, ou seja, são comuns a todas as línguas. Assim temos o “eu”, categoria de pessoa – alguém que toma a palavra se dirigindo a um “tu”, outro alguém do processo enunciativo – estas pessoas do discurso estão concomitantemente situadas em um lugar, o “aqui” que é categoria de espaço e em um tempo, o “agora”, conforme Fiorin (2008). A existência de um enunciado pressupõe uma enunciação e o discurso é compreendido como atividade linguística social. Portanto, quando “eu” digo – “eu me digo”, isso significa que o “eu” projeta uma imagem de si a partir do que foi dito. E é desta maneira que a semiótica como teoria discursiva compreende o sujeito da enunciação. Não interessa saber a vida, a história do sujeito para compreender o que diz, mas sim compreender como o sujeito elaborou o seu dizer no enunciado. Em concordância a esse fundamento o analista do discurso Dominique Maingueneau (2008) diz que esse “eu” possui um caráter, noção discursiva, que se constrói através do discurso, não é uma imagem do locutor exterior a sua fala, sendo assim ele é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro, ele não pode ocorrer fora de uma situação de comunicação precisa, integrada numa determinada conjuntura sócio-histórica. Para detalhar a discursivização da pessoa nos enunciados observe a caracterização dada a seguir: • Eu – aquele que fala, em uma narração em 1ª pessoa cria um efeito de sentido de subjetividade. • Tu – aquele com quem se fala, é o parceiro do “eu” na enunciação e, portanto, pode ser depreendido nos enunciados, ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 98 mesmo que o enunciado não seja dialogal, pode-se perceber o outro pelo tom usado pelo enunciador. • Ele – aquilo de que se fala, é a não-pessoa, abarca a totalidade do mundo, mesmo quando não se fala de nada ou se fala do nada. Em um enunciado em 3ª pessoa, não é o “ele” que fala e sim um “eu” que não se apresenta no enunciado para criar um efeito de sentido de objetividade. • Nós – não é plural de eu, porque não existe “eus”, o “nós” se constitui de um enunciador ampliado – eu + outra(s) pessoa(s) do discurso. • Vós – pode ser plural do “tu” ou uma pessoa ampliada, no caso “vocês” – tu + eles. • Eles – só “eles” pode ser plural de “ele”, instância em que não há pessoa ampliada. A importância dos processos enunciativos que constituem diferentes gêneros nos auxilia a compreender os efeitos de sentido criados como, por exemplo, o efeito de sentido de objetividade, de subjetividade, de credibilidade, de mentira, de passado, enfim, neste artigo focaremos a análise do enunciador coletivo representado pelo “nós” em correlação ao tu – enunciatário a quem esse “nós” se dirige. Essa fundamentação enunciativa incorporou uma base consistente ao relacionar na retórica de Aristóteles a gênese do conceito de ethos, que é a imagem que o orador pretende dar de si mesmo, não pelo que ele afirma acerca de suas qualidades supostamente “positivas”, mas pelo modo e pelo tom de voz expresso e depreendido pelo ouvinte na totalidade daquilo que é enunciado. Assim o ethos não está no enunciado, mas sim na enunciação. O ethos encontra-se no sujeito construído no discurso, é uma imagem do autor, não o autor real (de carne e osso), mas um autor discursivo (construído pela tessitura e pela textura do texto), de acordo com Discini (2008). Essa relação de ethos como estilo na enunciação marca o jeito individual de ser social. Para Aristóteles há alguns conceitos éticos que inspiram confiança em um autor: ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 99 (Phorónesis) o bom senso, a prudência, a sabedoria prática de uma pessoa ponderada que tem vivência, (Areté) a virtude – do latim lat. vírtus, útis 'força corpórea' vinculada à coragem, àquele que não tem medo, e (Eúnoia) a benevolência aquele que passa uma imagem agradável de si mesmo, o “boa praça”. A contribuição de Maingueneau (2008), diferentemente das demais teorias que tratam de ethos, é que o ethos pode ser depreendido de textos de qualquer natureza enunciativa, ou seja, o ethos não se depreende apenas de uma pessoa em situação de enunciação, de um discurso, no sentido lato do termo, mas que o ethos pode ser depreendido de enunciados orais, escritos, na modalidade verbal, visual, ou verbo-visual, representando uma pessoa ou até mesmo uma ou várias instituições. Analisa-se o ethos pela obra, pelo discurso enuncivo, pelo enunciador implícito no texto, já que há diferentes níveis enunciativos em um texto no qual classificamos, conforme Barros (2002, 2007), em: enunciador, narrador e interlocutor. A seguir adaptamos estruturação dos níveis de enunciação para melhor compreender a noção de ethos discursivo: DIFERENTES NÍVEIS DO SISTEMA ENUNCIATIVO Enunciador Imagem implícita do autor do texto Eu digo EU Enunciatário Narrador Narratário EU TU destinador X destinatário interlocutor X interlocutário EU Imagem implícita do leitor do texto A quem o EU se dirige TU TU Exemplo: discurso direto entre personagens em texto em prosa O interlocutor é entendido como o personagem com suas características físicas e psíquicas dadas no texto pelo narrador que é quem estabelece a verdade do ser. A diferença entre enunciador e narrador, a partir de Greimas ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 100 apud Fiorin (2008), é que quando analisamos uma única obra, definimos os traços do narrador, mas se estudarmos a totalidade de obras de um determinado autor podemos identificar o ethos do enunciador. Enunciador e enunciatário são co-enunciadores da enunciação, assim o enunciatário é uma coerção discursiva. Se o enunciador deve ter uma percepção sagaz do “tu”, as escolhas linguísticas do enunciador determinam quem é o enunciatário. O enunciador deve saber o pensamento, a opinião, o sentimento e as esperanças do enunciatário para persuadi-lo, para convencêlo. Como encontrar um enunciatário em enunciados verbais? Na modalização, na seleção de temas, na norma linguística escolhida, na reiteração de traços semânticos, na projeção do enunciador no enunciador (se objetivamente ou subjetivamente), na mancha da página, nas fontes usadas. Todas essas marcas não estão no dito sobre o outro, mas na enunciação enunciada. 3. Análise da construção do enunciador e do enunciatário na voz institucional Apresentaremos brevemente a organização da Olimpíada para se compreender o funcionamento e a função. Inicialmente há uma voz institucional, que propõe o trabalho concernente ao concurso “Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro”, ao ator estudante, sujeito assim instituído como dialógico, examinado enquanto respondente à voz institucional. No entanto, há um ator da mediação do processo. Trata-se do sujeito-professor. Este professor é responsável por fazer a proposta acontecer e está pressuposto como modalizado pelo querer e pelo dever: dever e querer cumprir as fases das oficinas de seqüências didáticas apresentadas no “Caderno do Professor – Orientação para a produção de textos”, ano de 2008, cujo título é “Se bem me lembro...”. O professor inscrito no concurso é estimulado por meio do “Caderno do Professor” a desenvolver as seqüências didáticas com o estudante, o qual deverá produzir um texto peculiar: sobre memórias voltadas para “o lugar onde ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 101 vivo”. Para tanto, o sujeito-institucional manipula o sujeito-estudante para que este queira e deva produzir um texto em consonância com a proposta. O nome extenso e complexo do evento, Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, possui inerente muitos valores. O primeiro deles está no significado de uma Olimpíada. Na verdade, uma Olimpíada representa mais que um simples concurso ou competição, nela estão implícitos valores de excelência, de respeito e de fraternidade. Ao especificar “de Língua Portuguesa”, representa Olimpíada intelectual, que envolve conhecimentos lingüísticos, não os peculiares de um concurso gramatiqueiro que exige capacidade de memorização de regras específicas, mas que pressupõe conhecimentos de leitura e de produção de textos, dois princípios regidos pela prática de interação que exigem conhecimentos de língua, de texto, de coisas de mundo e de situação de comunicação. Escrevendo o Futuro2 em itálico se deve ao fato de ser mantido o nome do programa de incentivo a produção de textos existente desde 2002. Depreendido de uma totalidade que constitui o material didático Caderno do Professor – Orientação para a produção de textos, este texto de Apresentação é interessante porque aparece antes mesmo da página com os dados catalográficos do material, representando a oficialização da Olimpíada e porque este texto é representativo para depreendermos os sujeitos participantes da Olimpíada. Vamos ao texto: 2 Em 2002 surgiu no Brasil o “Escrevendo o Futuro”, programa idealizado e coordenado tecnicamente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) de São Paulo, que é diretamente vinculado à Fundação Itaú Social. Desde àquele ano, o principal investimento do programa é a formação continuada dos professores, a socialização de novas práticas de ensino a partir de seqüências didáticas, por meio da oferta de materiais de apoio e de orientação para a reflexão e discussão da prática pedagógica. A cada dois anos é lançado o concurso de textos nos gêneros Artigo de Opinião, Memórias e Poesia para diferentes séries da Educação Básica. Cada um dos gêneros é desenvolvido pelo professor seguindo as orientações contidas no fascículo organizado em oficinas realizadas para ensino/aprendizagem desses gêneros. Em 2008 o programa Escrevendo o Futuro foi oficialmente transformado em um projeto mais abrangente, chamado “Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro”. ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 102 APRESENTAÇÃO 1 2 3 4 5 6 7 8 Bem-vindo à Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro! Ela é resultado da parceria entre o Ministério da Educação (MEC), a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). A união de esforços do poder público com a iniciativa privada e a sociedade civil visa um objetivo comum: proporcionar ensino de qualidade para todos. O MEC encontrou no Programa Escrevendo o Futuro a metodologia adequada para realizar a Olimpíada – uma das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação, idealizado para fortalecer a educação do país. Este caderno vai ajudá-lo na preparação dos seus alunos para a Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. É uma ferramenta que poderá ser incorporada ao dia-a-dia escolar, contribuindo para que os alunos escrevam textos cada vez melhores e ampliem o domínio da leitura e da escrita. O tema proposto para o concurso é “O lugar onde vivo”. Escrever sobre a comunidade onde se vive estimula novas leituras, pesquisas e estudos, proporcionando um outro olhar sobre a realidade e uma perspectiva de transformação social. O envolvimento de todos na Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro é fundamental para ampliar e enriquecer o trabalho de nossas escolas e para que sejam produzidos melhores textos por crianças e jovens dos vários cantos do Brasil. Desejamos a você um ótimo trabalho! Cenpec Fundação Itaú Social Ministério da Educação Nesta Apresentação temos uma saudação inicial ao professor que recebeu o material. Ter o Caderno do Professor em mãos implica uma ação preliminar do professor: a de ter se inscrito no concurso. Esta ação é motivada por um querer-fazer do professor e não por um dever-fazer, imposição ou obrigação. Aderir a esse discurso significa ver-se nele constituído. ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 103 Do segundo ao quarto parágrafo fica especificado o enunciador, ou seja, responsável pela realização da olimpíada, pela produção do material e, por conseqüência, pela participação do aluno no evento. Este enunciador é formado por três instituições: ENUNCIADOR Cenpec Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária Voz responsável pela elaboração do material, pelo apoio técnico pedagógico, pela formação continuada dos professores, pela avaliação de desempenho e conhecimentos tanto do aluno como do professor. FIS Fundação Itaú Social Voz responsável pelo financiamento do projeto. MEC Ministério da Educação Voz que apoia a divulgação e a disseminação do projeto nas escolas públicas de educação básica do país inteiro. O que é interessante nesse enunciador, é que após o cumprimento de abertura ele fala do lugar de quem responsável por um evento e faz referência ao mesmo usando a 3ª pessoa do discurso, projetando o olhar do observador, do supervisor, do avaliador de todo o processo e de todos os participantes em torno do objetivo estabelecido. Somente na última frase o enunciador, assume a pessoa ampliada do “nós” em ‘Desejamos a você um ótimo trabalho!’. Essa pessoa ampliada “nós” normalmente é representada pelo “eu” + vocês quando, por exemplo, no discurso didático de sala de aula um aluno em diálogo com o professor diz: “Professor eu não entendi nada do assunto!” e o professor responde: “Então amanhã nós rediscutiremos a questão.” Esse “nós” usado pelo professor na situação de aula é uma pessoa ampliada do “eu” (professor) + “você” (aluno) + “eles” (os demais colegas de classe). Na maioria das vezes, o uso do “nós” no discurso tem a função de incluir o outro como participante e concordante do saber, do fazer, do ser e do parecer no discurso. No caso do texto de Apresentação o “nós” é o “eu” (Cenpec) + “ela” (a Fundação Itaú Social) + “ele” (o Ministério da Educação). Observe também o leitor que há uma inversão na organização hierárquica na assinatura do texto, ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 104 pois o Ministério da Educação, instituição mor, representante da educação em nosso país aparece por último na assinatura na ordem do texto. No início e no final da apresentação há dois vocativos: Bem-vindo à Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro! Desejamos a você um ótimo trabalho! O vocativo ao cumprir uma função apelativa de 2ª pessoa, coloca em evidência a pessoa à qual o enunciador se dirige seja para chamar a atenção, para saudá-lo, como atitude de respeito ao outro, ou como formalidade em relação à oficialização da abertura de um evento. Esses dois parágrafos dão uma ênfase entoacional produzindo um efeito de sentido de interação, neste caso entre o enunciador-institucional e o enunciatário-professor, o primeiro parágrafo de abertura há um procedimento imperativo implícito, o ‘seja bem-vindo’; e no último, de fechamento, está ligado a uma noção volitiva do enunciador que deseja ao professor ‘um ótimo trabalho’. Esse enunciado de fechamento estabelece o contrato de interação, pois o enunciador espera do professor como resposta, atitude e comportamento, um comprometimento em realizar de forma eficaz (ótimo) a sua ação em sala de aula. Apesar de em nenhum momento da apresentação ser referenciada a palavra “professor”, é este o destinatário da saudação, enunciatário a quem será direcionado todo o material. Sendo o enunciatário uma das instâncias do sujeito da enunciação, ressalta-se aqui o papel do professor como coenunciador do discurso, conforme Fiorin (2008, p.153) o enunciatário não é um ser passivo que recebe informação, mas que estabelece um contrato ao participar, ele age, constrói, adapta, compartilha, rejeita, ao assumir as oficinas com seus alunos, por meio do uso do material. Ou seja, é um contrato para agir de acordo com as orientações dadas. Esse enunciador mobiliza sua persuasão, escreve este texto para um professor de português da educação básica – seu enunciatário, é formado em pedagogia e/ou letras – por isso a ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 105 isotopia converge para usos de termos lexicais específicos do universo didático e escolar: seus alunos, dia-a-dia escolar, escola, etc. A imagem de enunciatário produzida pelo discurso é a daquele que quer trabalhar, que quer conhecer e desenvolver a metodologia de trabalho com gêneros textuais, um professor que não fique dependente apenas Caderno produzido, mas que amplie o uso, pesquise, realize outras leituras para aprimorar seus conhecimentos metagenéricos, históricos e regionais. O enunciador conhece seu leitor e por intermédio das escolhas lingüísticas determina as características do enunciatário, este enunciatário é: pensado como responsável pela educação por meio do seu conhecimento, por isso quanto mais o professor for especializado em seu trabalho, melhor será a qualidade da educação; sente vontade de participar, de representar sua escola e quem sabe ganhar juntamente de algum de seus alunos o prêmio subjacente ao trabalho caso um deles seja classificado; o que opina de forma reivindicativa por ajuda e por diferentes ferramentas para a melhoria do seu trabalho, que precisa de fundamentação não só teórica, mas prática; e, por fim, sabe que o professor espera ser reconhecido e valorizado pelo que faz. O enunciador é constituído de um “eu” institucional, que em sua organização objetiva interna estabelece uma relação de parceria entre si, com uma finalidade comum que é a de “proporcionar uma educação de qualidade para todos” – slogan do governo Lula constantemente veiculado em vários meios de comunicativos que promovem as ações do governo na área educacional. Este objetivo é o fundamento do Plano Nacional de Educação. O texto deixa evidente o interesse do MEC no programa, ou seja, existia a necessidade e a obrigação de ser realizada uma olimpíada de língua portuguesa, porém essa instituição achou que a metodologia do projeto Escrevendo o Futuro, devida experiência de três edições do concurso era adequada, cumpria os critérios de realização da olimpíada, pois a mesma está em consonância com os princípios desenvolvidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, que considera o foco do ensino na interação em que a ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 106 produção de textos orais, escritos e não-verbais exige do produtor a ativação de conhecimentos e a mobilização de estratégias textuais. Outro aspecto interessante é a reiteração do objetivo principal em pelo menos cinco parágrafos diferentes, observe que este texto possui apenas oito parágrafos, ocorre que esta reiteração a cada vez que é feita está relacionada a cada uma das instâncias institucionais que constituem o enunciador: Instância governamental (MEC) Proporcionar educação de qualidade a todos Instância governamental (MEC) Idealizado [o PNE] para fortalecer a educação no país. Instância da instituição pedagógica [É uma ferramenta que poderá ser incorporada ao dia-a-dia escolar,] contribuindo para que os alunos escrevam textos cada vez melhores e ampliem o domínio da leitura e da escrita. (Cenpec) Instância da instituição pedagógica Escrever sobre a comunidade onde se vive estimula novas leituras, pesquisas e estudos, proporcionando um outro olhar sobre a realidade e uma perspectiva de transformação social. (Cenpec) Instância governamental e pedagógica (FIS) (MEC) (Cenpec) [O envolvimento de todos... é fundamental] para ampliar e enriquecer o trabalho nas escolas e para que sejam produzidos melhores textos por crianças e jovens dos vários cantos do Brasil. A conexão do objetivo reiterado no decorrer do texto cria o efeito de intensificação, pois é preciso fazer-crer que a educação é compromisso de todos, desta forma é preciso reprimir a atitude paternalista e não esperar apenas do enunciador a motivação e o compromisso com a educação. Ou seja, motiva a fazer arregaçar as mangas e trabalhar. No tocante à sintaxe discursiva, o momento de referência no enunciado é o presente, a partir do qual são desenvolvidas as demais projeções temporais do discurso. Na totalidade do texto há uma predominância do tempo presente e do futuro do presente na 3ª pessoa do discurso. Em relação a esses tempos ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 107 busca-se um meio de apresentar qualidade objetivas, concretas, se referindo às instituições e aos documentos, estratégia argumentativa que demonstra o estado, a condição do evento produzindo o efeito de objetividade e de realidade, apesar do apagamento do sujeito enunciador do segundo ao sétimo parágrafo ele procura dar ciência aproximando o enunciatário da realidade do evento, priorizando informações relevantes sobre o mesmo. Considerações Neste artigo, ao tratarmos das projeções que constituem os enunciadores em um discurso, ressalta-se o papel das coerções discursivas, ou seja, regras que respondem a especificidade de cada discurso e de cada enunciado em sua produção e em sua recepção. Pertencer ao domínio didático escolar faz um texto resignificar elementos orientados de maneira própria, como, por exemplo, a instrutividade de uma aula, de uma reunião de pais; com tom de advertência em uma bronca, são elementos que demarcam as relações sociais estabelecidas entre os sujeitos nos processos enunciativos. No caso específico do objeto analisado, importa que temos uma cena discursiva montada com vistas a despertar o interesse dos estudantes e melhorar os textos que eles escrevem. Essa partilha de valores proposta na manipulação subjacente supõe desdobramentos fiduciários. Antes é preciso ganhar o professor, integrá-lo ao projeto tornando-o corresponsável pela ação de ensinar ler, conhecer as características típicas do discurso e a escrever textos. O enunciatário-estudante, revestido do papel de enunciador do texto responsivo à proposta, precisa crer que a escrita de textos do discurso memorialista é relevante, seja para o concurso no sentido da sanção positiva que o aguarda como a avaliação do professor, dos colegas, da escola, do município, bem como a premiação iminente, seja para a manifestação de seus sonhos e angústias sob o filtro da memória – eis a linha de pensamento da voz institucional, subjacente a “Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro”. ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom. 108 Referências BARROS, Diana L. P. de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2007. _______. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo: Humanitas, 2002. CLARA, Regina de Andrade; ALTERFELDER, A. H. Se bem me lembro... São Paulo: CENPEC: Fundação Itaú Social; Brasília, DF: MEC, 2008. DISCINI, N. Ethos e estilo In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. S. (Orgs.) Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. p. 33-54. FIORIN, J. L. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008. MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. S. (Orgs.) Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto, 2008. p. 11-29. ___________________________________________________________________________________ o Anais do 6 Seminário de Pesquisas em Lingüística Aplicada (SePLA), Taubaté, 2010. ISSN: 1982-8071, CD-Rom.