UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM SHIRLEI NEVES DOS SANTOS A DISCURSIVIDADE NO CADERNO “PONTOS DE VISTA” DA OLIMPÍADA DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCREVENDO O FUTURO CUIABÁ-MT 2011 SHIRLEI NEVES DOS SANTOS A DISCURSIVIDADE NO CADERNO “PONTOS DE VISTA” DA OLIMPÍADA DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCREVENDO O FUTURO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para a obtenção do título de mestre em Estudos da Linguagem, sob orientação da professora Dra. Simone de Jesus Padilha. CUIABÁ-MT 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Fonte S237d Santos, Shirlei Neves dos. A discursividade no caderno ―Ponto de Vista‖, da olimpíada da língua portuguesa escrevendo o futuro, 2011. ix, 206f. ; il. 30 cm (Incluem tabelas). Orientadora: Simone de Jesus Padilha. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagem. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2010. Bibliografia: f. 197-206 Catalogação na1. fonte: Maurício2. S. de Oliveirade- gêneros. Bibliotecário CRB/1 1860 Discursividade. Escolarização 3. Material didático Catalogação: Maurício Silva de Oliveira – Bibliotecário CRB/1 1860 I. Título. CDU 811.134.3‘42 Dedico à minha família, pelo apoio, pela confiança e pela torcida. Especialmente aos meus pais, dona Cida e seu Beto, pelas orações, ao meu esposo Ernesto e aos meus filhos Felipe e Pedro, por compreenderem as ausências e os pedidos de silêncios. Que Deus nos mantenha unidos sempre. AGRADECIMENTOS Primeiro agradeço a Deus por não ter cessado o diálogo comigo e por, nos momentos mais difíceis, sentir sempre Sua presença; À professora Dra. Simone de Jesus Padilha, pela orientação cuidadosa, pela confiança e respeito por meu trabalho; À professora Dra. Roxane Helena Rojo (Unicamp) pelas contribuições teóricas e aplicadas valiosas no exame de qualificação e por me fazer acreditar na validade do meu trabalho; À professora Dra. Maria Rosa Petroni (UFMT) pela leitura atenciosa e minuciosa que muito contribuiu para tornar o texto deste trabalho mais acessível; Aos professores do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem pelas contribuições teóricas — Ana Antonia, Sérgio Flores, Solange Papa, Simone, Maria Rosa, Maria Inês, Cláudia, Elias, Danie; Aos colegas do Grupo de Estudo Rebak — Lezinete, Jucelina, Alba, Rute, Elizangela, Eliana, Diego, Viviane, Leila, Anderson, Tiana, por aprendermos juntos; Aos amigos da Pós-Graduação: Ely, Carmen Toniazzo, Terezinha, Marcilene, Margareth, Ariadne, Carmen Zirr, Sandra, Itamar, Mônica, Andreia, Gleice pelas amizades que ficaram; Aos meus colegas de trabalho da Escola Professor Fernando Leite de Campos, pela compreensão, pela força e incentivo, especialmente a diretora Maria Alice, a secretária Vanilze e a professora Vania; Às minhas amigas Rute, Lezinete e Jucelina pelas angústias, mas também pelos risos compartilhados. Aos aqui não nomeados, mas que contribuíram, de alguma maneira, para a construção deste trabalho, muito obrigada! RESUMO Nesta pesquisa, refletimos sobre a escolarização do gênero artigo de opinião contida no projeto de ensino do Caderno Pontos de Vista (doravante PV) do Programa Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF), uma parceria público-privada entre o MEC e a Fundação Itaú Social, sob coordenação técnica da ONG paulista Cenpec. Esse material possui dupla destinação: propõe o ensino de produção textual do artigo de opinião para alunos de escolas públicas brasileiras, nas 2ª e 3ª séries do Ensino Médio, e formação do professor em serviço na perspectiva dos gêneros textuais. Trata-se de um material didático que adquire cada vez mais espaço nas práticas escolares e que estão pouco analisados pela academia e não são avaliados institucionalmente. Disso decorre a pertinência deste trabalho. Para a realização da pesquisa, selecionamos os Cadernos PV das edições do ano de 2008 e de 2010 a fim de analisarmos qualitativamente a base teóricometodológica assumida na modelização didática do gênero artigo de opinião e como essa modelização trata a discursividade. Isso porque, nossa preocupação era investigar as possibilidades de letramento em favor da formação cidadã dos alunos das escolas públicas brasileiras, fomentada por materiais que sustentam o discurso da inovação teórico-metodológica e didática. Ancoramos nossas reflexões e análises na teoria enunciativo-discursiva de abordagem sócio-histórico de Bakhtin (19521953) e na teoria de ensino-aprendizagem de Vygotsky (1934). No levantamento teórico-metodológico, verificamos que, apesar do emprego de algumas noções da abordagem discursiva dos gêneros, o projeto de ensino, em análise, estando ancorado no modelo de sequência didática da Escola de Genebra, que emprega a noção de gênero textual, privilegia também essa abordagem. Pudemos verificar ainda a mobilização de teorias de perspectiva retórica e tipologias textuais para dar conta da estrutura e composição da argumentação. A análise da modelização didática demonstrou que a base teórico-metodológica assumida permitiu privilegiar os aspectos de funcionalidade, de organização ou composição retórica textual do artigo de opinião, apresentando tratamento limitado para os aspectos da discursividade e dos elementos ideológico-valorativos. Interpretamos tal limitação como decorrente, em parte, de o projeto de ensino estar sustentado em uma proposta didática que privilegia a formação do produtor proficiente em detrimento do leitor crítico. Tal privilégio, no contexto de ensino brasileiro, pode acarretar certa restrição de enfoque tendo em vista o baixo grau de letramento, não só da população adulta, mas também dos alunos egressos do Ensino Fundamental e Médio. A nosso ver, trata-se de um aspecto a ser pensado num projeto de ensino de língua materna que objetiva favorecer a formação cidadã dos alunos. Palavras-chave: Discursividade, escolarização de gêneros, material didático. ABSTRACT This study it is a reflexive work on the use of ‗opinion article‘ as a teaching gender. The corpus of the current analysis was taken from a brochure named Caderno Pontos de Vista (it will be referred in this paper as ‗PV‘), which is part of the teaching material of an educational programme called Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro – OLPEF (a national project which encourages students to develop their writing skills in their mother tongue as well as to express their ideas of how the future should be). This educational programme is a private-public initiative between the Brazilian Ministry of Education (MEC) and Itáu Foundation (a foundation supported by a private bank) which is under the coordination of Cenpec - a NGO located in São Paulo. The material analysed has two main goals. Firstly, it has the purpose of enhancing both the teaching and the production of opinion articles among the students from year 2 and 3 of Brazilian State Secondary schools. Secondly, it aims to contribute to the ongoing education of teachers in service, concerning the teaching of text genders. The pedagogical material in question has been increasingly used in State schools, however, it has not been much analysed by scholars or assessed by educational institutions and that is the main contribution of the present study. For this study, we selected the ‗PV‘ brochures issued in 2008 and 2010 in order to do a qualitative analysis of the theoretical and methodological assumptions used as a rationale for the teaching of opinion article as a gender as well as to better understand how it deals with discursive aspects of the gender. One of our main concerns regarding the current analysis has to do with the possibilities of literacy which enable students‘ critical development as citizens in the Brazilian state schools – a discourse which is largely disseminated nowadays regarding the promotion of materials which claim to be theoretically and methodologically innovative. This study was done under the lights of the social-historical discursive approach by Bakhtin (1952-1953) and the theories of teaching-learning by Vygotsky (1934). In the theoretical and methodological part of the study, it was verified that although some uses of discursive approach for genders were applied to build the material, the syllabus and the teaching sequences, which are based on the School of Geneva model, also privileged such approach. We could also identify the presence of theories with rhetorical and text typological perspectives regarding structural and argumentative aspects. The study of the pedagogical model revealed that the theoretical and methodological assumptions privileged some functional, structural and rhetorical composition of the gender ‗opinion article‘. However, some features related to discursive and ideological aspects were thought to be limited. Such limitation was seen partly as a consequence of the Project being based on a teaching approach which aims at the formation of a proficient text producer rather than a critical reader. An approach like this, in a Brazilian educational context, may cause some restraints if we take into account the low level of literacy, not only of the adult population but also of the students who have just left the Secondary school. In our point of view, that is an aspect that should be considered in an educational project which aims to promote student‘s critical citizenship through the proficiency of the mother tongue. Key words: Discursive approach, teaching of genders, teaching material. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 1 CAPÍTULO 1 .......................................................................................................................... 10 A teoria da linguagem do Círculo de Mikhail Bakhtin: uma perspectiva sóciohistórica e ideológica ..................................................................................................................... 10 1.1 Gêneros textuais e gêneros discursivos ............................................................. 12 1.2 Gêneros textuais: uma apropriação textualizante ............................................. 15 1.3 O Círculo de Bakhtin: concepção de linguagem ................................................ 22 1.3.1 Linguagem e ideologia: os signos ideológicos ................................................ 24 1.3.2 O dialogismo: princípio constitutivo da linguagem ......................................... 28 1.3.3 Os gêneros discursivos na perspectiva do Círculo de Bakhtin .................. 33 1.3.4 O conceito de enunciado concreto ................................................................... 39 1.3.5 As esferas de atividade humana ....................................................................... 42 1.3.6 Gêneros discursivos e a constituição arquitetônica ....................................... 45 CAPÍTULO 2 .......................................................................................................................... 49 Mudanças pedagógicas e didáticas no ensino-aprendizagem de língua materna: Vygotsky e a Escola de Genebra................................................................................................. 49 2.1 Vygotsky e o ensino-aprendizagem de língua materna: a ZPD ...................... 49 2.2 Gênero: mega-instrumento de ensino-aprendizagem de Língua Materna .... 55 2.3 A transposição didática dos gêneros ................................................................... 57 2.4 Agrupamento de gêneros: a proposta curricular da Equipe de Genebra ...... 60 2.5 Gênero: letramento e capacidades de produção escrita .................................. 70 2.6 Sequências didáticas: novos modos de fazer .................................................... 74 CAPÍTULO 3 .......................................................................................................................... 79 Metodologia de pesquisa: em busca dos dados........................................................... 79 3.1 Perspectivas sócio-históricas nas Ciências Humanas: a teoria enunciativodiscursiva de Bakhtin ................................................................................................................. 79 3.2 Metodologia de coleta de dados ........................................................................... 85 3.2.1 Critérios de escolha do Programa OLPEF e do Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖ ....................................................................................................................... 86 3.2.2 O primeiro conjunto de dados: os Cadernos do Professor ........................... 90 3.2.3 O segundo conjunto de dados: os cursos de formação online e presencial ....................................................................................................................................................... 91 3.2.3.1 Formação online e presencial: a coleta e a mudança de percursos ........ 91 3.2.4 O terceiro conjunto de dados: a aplicação do Caderno ................................ 94 3.2.5 Recortes dos três conjuntos de dados coletados ........................................... 96 3.3 Os corpora de nossa pesquisa ............................................................................. 97 3.4 Metodologia de análise de dados ......................................................................... 98 CAPÍTULO 4 ........................................................................................................................ 101 Análise de dados 1: O quadro teórico organizador dos Cadernos ―Pontos de Vista‖ da OLPEF ...................................................................................................................................... 101 4.1 A base teórico-metodológica do Programa OLPEF ........................................ 102 4.2 Cadernos ―Pontos de Vista‖ 2008-2010: comparando a organização geral 104 4.3 Caderno PV: comparando as propostas teóricas nas 1ª e 2ª edições ......... 114 CAPÍTULO 5 ........................................................................................................................ 136 Análise de dados 2: a didatização do gênero artigo de opinião na proposta do Caderno ―Pontos de Vista‖ da OLPEF ...................................................................................... 136 5.1 Cadernos PV: os tipos de atividades com o artigo de opinião ...................... 137 5.2 Cadernos PV: as atividades com o artigo de opinião ............................................... 144 5.3 As atividades da base de produção do artigo de opinião ............................... 144 5.4 As atividades de elaboração temática do artigo de opinião ........................... 157 5.5 As atividades com as características principais do artigo de opinião ........... 172 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 188 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 197 1 INTRODUÇÃO A língua portuguesa como disciplina curricular tem sido, desde o final do século XX, foco de reflexões e de propostas de mudanças em seus eixos de ensinoaprendizagem. Primeiro por parte da Academia, especialmente pelos estudos em Linguística Aplicada e áreas afins, que foram, em um segundo momento, considerados, em termos, por algumas ações governamentais, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante, PCN) (BRASIL, 1997, 1998, 1999, 2002). Tais reflexões e propostas, denominadas como discursos da mudança, constituem-se na negação e na ruptura de teorias, metodologias e práticas de um modelo anterior fundado em toda uma tradição de estudos linguísticos, sustentada no método estrutural e na eleição do código linguístico como objeto de estudos na área de Linguística, inaugurado por Saussure1. Os estudos linguísticos avançam no sentido de deslocamento do foco da estrutura da língua em si para a consideração das condições de produção dos discursos, que implicam outros elementos não estritamente linguísticos, como os aspectos sócio-históricos, culturais e ideológicos, cujas perspectivas na linguagem e no ensino-aprendizagem passam a fundamentar, pelo menos em parte, os PCN de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental e Médio. No bojo desses discursos da mudança, as ideias acerca da linguagem do Círculo de Bakhtin passam a influenciar profundamente os estudos nessa área e, posteriormente, a fundamentar, em parte, o ensino-aprendizagem de linguagem no Brasil e em outros lugares no mundo, tomando, principalmente, como base sua teoria dos gêneros discursivos. A Academia retoma, mais ou menos na mesma Saussure, com sua divisão da linguagem em língua/fala, constitui um marco inaugural importante nos estudos linguísticos, pois foi a partir dele que se estabeleceu um objeto de estudo para a Linguística e possibilitou descrições e análises em níveis linguísticos variados, permitindo às gerações posteriores de estudiosos da linguagem preencher e, de certa forma, superar a proposta teórico-metodológica inaugural do linguista genebrino. No Brasil, a ruptura com esse pensamento já se inicia a partir dos anos 1970, porque alguns linguistas começam a perceber as limitações de análise de teorias que se serviam do método dicotômico saussureano nos estudos da linguagem em uso (BARBOSA, 2001, p. 09). 1 2 época, a teoria de ensino-aprendizagem de Vygotsky, a qual passa a embasar também as orientações metodológicas de ensino-aprendizagem de linguagem. Nessa perspectiva, ao se tomar como base para o ensino-aprendizagem de linguagem teorias que têm como pedra angular explicações que se fundam na consideração das condições de produção no seu sentido sociológico, histórico e ideológico, verifica-se uma mudança de paradigma, de objeto e de método. Nessa mudança de paradigma, o ensino de língua materna desloca-se do domínio do código para o domínio do uso (de preferência público); da unidade da língua como objeto para a unidade do discurso (gêneros); da abordagem prescritivo-transmissiva para a abordagem construtivo-interacional. Tais mudanças teórico-metodológicas e suas respectivas entradas nos currículos de ensino não são resultados aleatórios da evolução da área de conhecimento na qual se inserem. Soares (1983, p. 73), partindo de uma análise de perspectiva histórico-social no tratamento das questões entre linguagem e escola, especificamente aquela voltada para as classes populares, para elas ou contra elas, aponta como a relação entre educação e sociedade influencia por dentro as concepções teóricas e pedagógicas que embasam as práticas de ensinoaprendizagem, especialmente de língua portuguesa2. Soares (1983) defende que a educação escolar não se posiciona, nessa trama social, apenas com a função redentora ou reprodutora das relações estabelecidas pelas classes privilegiadas, mas ―os antagonismos e contradições levam-na a ser, apesar de determinada pela estrutura social em que se insere, um espaço de atuação de forças progressistas‖, que forjam movimentos de transformação social pela superação das desigualdades sociais. A instituição escolar, como parte inerente da sociedade, ―reflete, mas também refrata essa dinâmica do corpo social3‖. Seriam essas as razões pelas quais as camadas populares reivindicaram o direito de acesso à escola, no contexto brasileiro a partir de meados do século XX, e reivindicam no presente o direito de nela permanecer e usufruir de educação com A autora afirma que, na relação entre educação escolar e sociedade, a linguagem constitui-se a pedra angular, uma vez que é ela ―o principal instrumento de ensino e aprendizagem, na escola, em todas as matérias e em todas as atividades‖ e, por isso, ―a compreensão dessas relações e de suas implicações para a comunicação pedagógica é imprescindível‖ (SOARES, 1983, p. 76). 2 Tomamos como base para essa afirmação e empréstimo para a construção dessa expressão o olhar que Bakhtin/Volochinov (2009[1929], 1926) e Bakhtin (2003[1952-1953] têm sobre as relações sociais. 3 3 qualidade. Isso porque as classes sociais populares ―reconhecem que os conhecimentos e habilidades de que as classes privilegiadas mantêm o monopólio são indispensáveis como instrumentos de luta contra as desigualdades econômicas e sociais‖ (SOARES, 1983, p. 73). Tomando tais considerações, percebemos que o papel da educação escolar e seus objetivos não são resultados apenas de uma escolha técnica dos conhecimentos e habilidades culturalmente construídos pela humanidade, mas também uma opção política. Por isso, a escola precisa estar consciente de seu papel político na luta contra as desigualdades sociais e econômicas, a fim de ―proporcionar às camadas populares, através de um ensino eficiente, os instrumentos que lhes permitam conquistar mais amplas condições de participação cultural e política e de reivindicação social‖ (idem, ibidem). Concordamos com Soares que a função da educação escolar e, decorrente dela, sua proposta pedagógica deve ser de transformação das relações sociais assimétricas estabelecidas no interior de um corpo social e não de adaptação às ou reprodução dessas relações. Além disso, os projetos educacionais — discursos institucionais que objetivam o fomento e a promoção dos saberes historicamente construídos pelos grupos sociais — devem ser analisados à luz de perspectivas socioculturais, políticas e ideológicas uma vez que estes aspectos podem desvelar apreciações de valor sobre o que se define como objeto de ensino e o porquê de sua escolha. Sendo assim, cada época elege seus objetos privilegiados de ensinoaprendizagem escolar. O português, por exemplo, não foi considerado objeto de ensino-aprendizagem do currículo da escola brasileira até o século XVIII. Isso porque as apreciações valorativas estavam voltadas para o latim (objeto culturalmente valorizado pelas classes privilegiadas) e para a língua geral (objeto efetivo de uso nas relações cotidianas)4. Houaiss (apud SOARES, 2004) afirma que a língua portuguesa, apesar de oficial, não era, enquanto língua falada, a mais importante, restringindo seu uso aos centros urbanos emergentes. Esse seria um dos motivos por que ela funcionava no ensino apenas como instrumento de alfabetização nas chamadas escolas menores. A língua geral, condensação de várias línguas indígenas faladas no território brasileiro, provenientes, na maior parte, do tupi, era a que prevalecia nas trocas sociais cotidianas entre indígenas e portugueses; entre os indígenas entre si, falantes de diferentes línguas; entre indígenas e religiosos, na evangelização e na catequese; já o latim era a língua em que se fundamentavam o ensino secundário e superior no período em que o ensino no Brasil era dominado pelos padres jesuítas, que compreende o séc. XVI e metade do séc. XVIII (PESSANHA et al. 2003). 4 4 Outro motivo estava ligado a questões teóricas. Soares afirma que, até o séc. XVIII, a língua portuguesa ainda não tinha se constituído em ―área de conhecimento em condições de gerar uma disciplina curricular‖ 5 (SOARES, 2004, p. 159). Essa situação começa a mudar com a imposição da língua portuguesa como língua de uso no Brasil e sua inclusão e valorização na escola através da Reforma de Estudos implantada em Portugal e suas colônias pelo Marquês de Pombal, nos anos 50, do séc. XVIII. No sistema de ensino jesuítico, os objetos de ensino na área de linguagem constituíam-se no estudo da gramática latina e da retórica, incluídos nesta, os estudos da poética, baseados em autores latinos. A presença desses conteúdos tinha por fim desenvolver no educando a arte da oratória através do domínio do código linguístico para as necessidades eclesiásticas e outras práticas sociais. No sistema pombalino, além da alfabetização, a gramática da língua portuguesa foi introduzida como objeto curricular de ensino da língua, sendo seu estudo, já baseado, em parte, em autores de língua portuguesa. A gramática da língua portuguesa passa a funcionar como instrumento de apoio para a aprendizagem da gramática da língua latina, de forma comparada. Sendo assim, gramática da língua portuguesa, gramática da língua latina, retórica e poética (literatura) prevaleceram como componentes curriculares do ensino de língua do século XVIII ao século XIX, podendo os três últimos fazer um retrocesso de mais dois séculos. A partir de meados do século XVIII, a gramática do latim foi perdendo paulatinamente espaço para a gramática da língua portuguesa no currículo brasileiro até o século XX, quando então é excluída do sistema de ensino, passando esta última a constituir-se de forma autônoma. Estão ligadas a essa mudança valorativa a instalação da Imprensa Régia, no Brasil, em 1808, e a progressiva constituição da língua como sistema em área de conhecimento, culminando no surgimento de várias gramáticas do português, geralmente escritas por professores e direcionadas a alunos. Pelo percurso traçado até o momento, vimos que as reformas pelas quais passou o sistema educacional brasileiro do século XVI ao XIX não trouxeram Não obstante, Fernão de Oliveira já teria publicado sua Gramática no ano de 1536 e existiam várias outras gramáticas e ortografias produzidas ao longo do séc. XVII. 5 5 grandes mudanças para o ensino. Permaneceu a gramática para os estudos sobre o sistema da língua, a retórica e a poética, ligadas agora às novas exigências sociais também voltadas para bem escrever. Houaiss (1985) corroborado por Soares (2004) assinalam que, não havendo mudança de destinatários — os filhos de famílias privilegiadas, únicos a ter acesso à escola — a tradição da retórica, poética e gramática se manteve até os anos 40 do século XX sem nenhuma crise ou conturbação. A partir dos anos 1950, as reivindicações pela democratização, ainda que falsa, do ensino como afirmam Soares (1983) e Geraldi (1984), começam a mudar tal cenário. Novos e múltiplos destinatários, provenientes das classes sociais populares, levam a uma pequena mudança nos objetos de ensino, que passam a considerar, além dos estudos da língua (gramática), estudos também sobre a língua (textos), com predominância da gramática sobre o texto (SOARES, 2004, p. 167). Essa nova forma de organizar o conteúdo de ensino de língua portuguesa não representou mudanças em seus objetivos. O foco continua a ser a forma em si da língua. A partir dos anos 1970, sob a ideologia do regime militar, o ensino de língua portuguesa (denominado Comunicação e Expressão), colocado a serviço do desenvolvimento e sustentado pelas teorias de comunicação, passa a privilegiar seu uso pragmático (o expressar-se bem), a fim de atender a necessidades tecnicistas (formação de mão-de-obra técnica). Assim, o enfoque recai sobre a capacidade de emitir e recepcionar mensagens, através da utilização e compreensão de códigos diversos, verbais e não-verbais. Subjacente a esses objetivos está uma nova concepção de linguagem como instrumento de comunicação, substituindo a concepção de linguagem como sistema e expressão do pensamento veiculada através do ensino da gramática e da retórica. Esse ensino procedimental não representou, no entanto, mudanças no que diz respeito às dimensões sociais e culturais inerentes à língua, que continua a ser tratada como um código estável e único, sem fricções e interferências, do qual o usuário deveria se apropriar e reproduzi-lo. Podemos afirmar que, no transcurso histórico de dois séculos (XVIII ao XIX), o ensino da língua portuguesa, apesar da presença de diferentes práticas e encaminhamentos diversos, esteve sempre fincado no chamado ―ensino tradicional‖, centrado na aquisição do código e da gramática. Esse estado de coisas começa a 6 mudar com o advento da chamada ―virada pragmática‖ no ensino da língua materna, a partir da década de 1980. Vimos na ―virada pragmática‖ o ensino de língua materna mudar radicalmente em termos de concepção tanto do que seja uma língua quanto de como se deve ensiná-la. Nesse processo lento, podemos afirmar que o marco mais importante é a entrada do texto na sala de aula como objeto de ensino, em fins da década de 1970, ligada ao advento de teorias de base mais textual, que vão forçando, progressivamente, a partir do início dos anos 1980, a mudanças paradigmáticas no ensino-aprendizagem de língua materna no contexto brasileiro. Rojo e Cordeiro (2004) apontam para o fato de que a história do texto na sala de aula percorre um caminho do seu uso como material empírico (não de ensino), propiciador de atos de leitura, de produção, de análise linguística, passando por sua tomada como suporte para o desenvolvimento de estratégias necessárias para seu processamento, numa abordagem cognitiva e textual, na qual o ensino de Português é tomado como uma área procedimental não conceitual, até tornar-se, por força das estratégias que precisam se estabelecer como procedimentos, objeto de ensino. Os princípios textuais foram afirmados progressivamente em várias obras, sendo O texto na sala de aula: leitura e produção (1984), organizada por Geraldi, pioneira nessa nova direção. Nesta obra, Geraldi já esboça uma proposta de ensinoaprendizagem fundada numa concepção de linguagem como lugar de interação, o que culmina na alteração do ensino de leitura, de escrita, da oralidade e, até mesmo, da gramática. É nesse sentido que Rojo e Cordeiro (2004) visualizam a assunção do texto como unidade/objeto de ensino articulada ao deslocamento dos eixos de ensinoaprendizagem: ―de um ensino normativo [análise da língua e da gramática], para um ensino procedimental [valorização dos usos da língua em leitura e redação]; e [...] uma análise gramatical ligada a esses usos textuais: as atividades epilingüísticas‖ (ROJO; CORDEIRO, 2004, p. 08). Segundo Barbosa (2001), já na década de 1990, as abordagens textuais também começam a ser questionadas pela sua limitação à textualidade em si mesma em prol da inclusão de elementos de base mais discursiva como as condições de produção e recepção dos mesmos. No que respeita a essas abordagens textuais, Rojo e Cordeiro (2004, p. 09) apresentam três críticas bastante contundentes e, em certa medida, ponto para o avanço nos estudos na área. 7 A primeira crítica consiste no questionamento do pressuposto segundo o qual o ensino das regras embasaria os procedimentos. Esse pressuposto fez com que o texto passasse a funcionar como ―pretexto‖ para o ensino não só da gramática normativa como também da gramática textual, resultando na gramaticalização dos eixos do uso. A segunda crítica está fundada nos conceitos construídos pelas teorias textuais que generalizavam as propriedades de grandes conjuntos de textos em favor de uma classificação geral, apresentando formas globais nem sempre presentes nos textos classificados. A terceira e última crítica funda-se no fato de que essa perspectiva textual, normalizadora e gramatical — fundada em textos escritos ―prototípicos‖ (modelo que contém as características de todos os outros) — abstrai as circunstâncias ou a situação das práticas ligadas ao uso, à produção e à circulação desses textos. No eixo do ensino-aprendizagem, esses textos são tomados de forma ―propedêutica‖ (modelo a partir do qual se ensina todos os outros tipos), sendo o enfoque voltado para as formas e os conteúdos dos textos em detrimento das condições de produção e recepção bem como da finalidade dos mesmos. Por outro lado, para Barbosa (2001), a postulação de que cada texto pressupõe diferentes condições de produção, formas diferenciadas de organização e envolve capacidades específicas leva à emergência de um discurso pedagógico fundado na diversidade, segundo o qual ―é preciso trabalhar com diferentes tipos de texto ao longo da escolaridade‖. Assim, os textos, sob as mais diferentes formas, passam a se fazer mais presentes na sala de aula, o que nem sempre significou um trabalho com eles de forma adequada, sendo, muitas vezes, o ensino praticado na forma da ―visitação‖. Como esperado em um percurso de desenvolvimento de uma área de conhecimento, novas concepções teóricas vão surgindo e apontando para elementos inerentes aos modelos teóricos existentes e até então ausentes nesses modelos, como os aspectos ideológicos, sociais e culturais. É em resposta a ausência desses aspectos que emerge, inicialmente em outros países do Ocidente, e depois no Brasil, a virada enunciativo-discursiva nos estudos da linguagem, em que o caráter interacional da língua, de base sócio-histórico e ideológico, passa a funcionar como pedra angular. É nesse contexto das últimas décadas do século XX que as ideias do Círculo de Bakhtin acerca da linguagem e, especialmente, acerca dos gêneros discursivos, 8 passam a influenciar, em certa medida, no contexto educacional brasileiro e no de outros países ocidentais, as discussões sobre o ensino-aprendizagem de língua materna envidadas por diferentes perspectivas teóricas e metodológicas. Diferenças à parte, essas perspectivas apelam para práticas de ensinoaprendizagem em língua materna fundadas na compreensão e produção de textos contextualizados, significativos, constituintes de usos públicos da linguagem e favorecedores de reflexão crítica. Tais propostas desencadeiam uma série de projetos e programas que passam a incorporar os discursos do novo paradigma entre os quais se insere o Programa Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (doravante OLPEF). Esse Projeto, que se apresenta em consonância com os PCN de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, 1999), surge inicialmente na forma de um concurso de produção textual que, posteriormente, passa a funcionar como estratégia de mobilização para a formação do professor em serviço, visualizando a implantação de uma metodologia dita reformuladora para o ensino-aprendizagem dos gêneros textuais, focalizando as escolas públicas brasileiras. A organização teórico-metodológica do Programa para o trabalho de produção dos textos gira em torno de três eixos básicos. O Programa emprega a noção de gênero, na perspectiva bakhtiniana, articulada à visão de ensinoaprendizagem vygotskyana, tomada no quadro teórico da proposta didática da Escola de Genebra, principalmente nos trabalhos de Dolz e Schneuwly (2004[1994], 2004[1996], 2004[1997], 2004[2001]), mas também de Bronckart (1999), que fornecem um modelo didático de abordagem dos gêneros (textuais), com vistas ao ensino-aprendizagem de língua materna em situação escolar. O Programa, recentemente institucionalizado, é fruto de uma parceria entre instituições públicas e privadas, cuja execução envolve o Ministério da Educação (de agora em diante, MEC), a Fundação Itaú Social e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (doravante, Cenpec). Tais aspectos mostram-se relevantes para a nossa pesquisa, uma vez que nosso objetivo é investigar as possibilidades de letramento em favor da formação cidadã dos alunos das escolas públicas brasileiras, subsidiado por materiais didáticos que se apresentam como inovadores. Em nosso entendimento, uma formação escolar efetivamente preocupada com a construção de condições favoráveis ao exercício da 9 cidadania implica em um trabalho didático em que seja relevante a construção de sentidos sociossituados. Acreditamos que um material didático é endereçado para diferentes planos. Dentre eles, estão os atores sociais envolvidos e as concepções teóricometodológicas em que esse material se fundamenta. As apreciações valorativas direcionadas para esses diferentes planos são sentidas na modelização didática. Sendo assim, propomos as seguintes questões de pesquisa: 1. Como se organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do Caderno PV da OLPEF voltado para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião?; e 2. De que forma as atividades propostas para a didatização do artigo de opinião no Caderno PV da OLPEF tratam a discursividade? Postas as justificativas e questões, no capítulo 1, apresentaremos a teoria enunciativo-discursiva do Círculo de Bakhtin, a qual nos auxiliará na análise dos dados. Anteriormente a isso, deter-nos-emos sobre uma discussão teórica acerca da contraposição, hoje instaurada, entre gêneros discursivos/textuais, a fim de melhor situar o contexto de nossa pesquisa. No capítulo 2, trataremos, inicialmente, da teoria de ensino-aprendizagem de Vygotsky, também eleita para nos auxiliar na análise dos nossos dados. Apresentaremos, em seguida, a proposta didática da Escola de Genebra, especificamente os estudos de Dolz e Schneuwly, empregada pela OLPEF na organização didático-pedagógica do artigo de opinião no Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖. No capítulo 3, delinearemos o percurso traçado por nós na realização desta pesquisa. Nos capítulos 4 e 5, apresentaremos as análises por nós realizadas acerca da organização teórico-metodológica do Caderno do Professor e sua operacionalização na modelização didática do artigo de opinião, procurando desvelar qual tratamento discursivo é viabilizado no projeto de ensino desse gênero. Por fim, apresentaremos nossas conclusões finais. 10 CAPÍTULO 1 A teoria da linguagem do Círculo de Mikhail Bakhtin: uma perspectiva sóciohistórica e ideológica Existe um postulado antigo e, em termos gerais, certeiro, de que o homem se faz consciente da realidade e a compreende mediante a linguagem. Efetivamente, sem a palavra é impossível uma consciência ideológica minimamente clara. No processo de refração do ser pela consciência, a linguagem e suas formas desempenham um papel importante. BAKHTIN/MEDVEDEV (1928) Neste capítulo, apresentaremos a concepção de linguagem de que falam Mikhail Bakhtin e seu Círculo6, e que sustenta nossas discussões e reflexões nesta pesquisa. Pela especificidade de nosso objeto — um programa educacional institucional que se propõe a fomentar o ensino-aprendizagem de língua portuguesa com enfoque nos gêneros textuais — encontramos na teoria da linguagem desse autor fundamentos que têm se mostrado promissores e dado o devido respaldo para pensar e interpretar situações de ensino-aprendizagem de língua materna na escola. O pensamento do Círculo de Bakhtin acerca da linguagem, principalmente o conceito de gênero que foi por ele ressignificado e ampliado, dando-lhe novo fundamento, tem exercido forte influência sobre teóricos e educadores e transformou-se numa referência constante nos últimos anos nos espaços acadêmicos e de pesquisa. Entretanto, esse discurso fundador tem sido apropriado, muitas vezes, de maneira literal e sempre revista, na forma de releituras que citam e se servem de alguns referenciais teóricos do autor para sua teoria, ao mesmo tempo em que dele se distancia, resultando no aparecimento de conceitos nem sempre O pensamento bakhtiniano é fruto das produções/discussões realizadas em conjunto por Bakhtin e um grupo de intelectuais russos que se dedicavam às mais variadas áreas das Ciências Humanas, no período que compreende os anos de 1920 a 1970 — na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), atual Rússia — conhecido como o Círculo de Bakhtin, entre eles V. N. Volochinov (1895-1936) e P. Medvedev (1892-1938) com os quais as autorias de algumas obras são disputadas. Por exemplo, no original russo e na tradução inglesa, as obras Discurso na vida e discurso na arte (1926) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) levam apenas a assinatura de Volochinov; já na tradução brasileira a partir da francesa, elas recebem dupla assinatura — de Volochinov e de Bakhtin. Acerca da questão da autoria, nas obras em que incide essa polêmica, citaremos o nome dos dois autores, separados por uma barra. Aquelas que receberam apenas a assinatura de Bakhtin serão citadas com seu nome somente. Não estenderemos maiores considerações sobre essa questão neste trabalho, maiores informações, consultar os trabalhos de Brait (2005, 2006), Fiorin (2005) e Souza (1999). 6 11 unívocos e consensuais, como é o caso da contraposição, hoje instaurada, entre gêneros textuais/gêneros discursivos. Em nossa pesquisa, consideramos que a categoria conceitual mais importante seja a discursividade, uma vez que, independentemente de qual é a abordagem ou terminologia utilizada (gênero discursivo/gênero textual), o que verdadeiramente interessa numa proposta de ensino-aprendizagem de língua materna na atual conjuntura da realidade escolar brasileira, em especial da escola pública com seus baixos índices de letramento, é perseguir a construção do sentido no/pelo uso da linguagem. Por outro lado, não podemos deixar de tecer algumas considerações a respeito das duas abordagens de gênero referidas nos dois parágrafos anteriores, porque temos, de um lado, um objeto de pesquisa que se fundamenta na transposição didática do gênero artigo de opinião numa abordagem de perspectiva textual e, por outro, optamos, para sustentar nossas reflexões e análises, em todos os níveis deste trabalho, pela abordagem de perspectiva discursiva por entendermos que ela favorece melhor propostas de ensino-aprendizagem voltadas para a construção do sentido, porque, como afirma Rojo (2005): [...] nossos alunos não precisam ser gramáticos de texto e nem mesmo conhecer uma metalinguagem sofisticada. Ao contrário, no Brasil, com seus acentuados problemas de iletrismo, a necessidade dos alunos é de terem acesso letrado a textos (de opinião, literários, científicos, jornalísticos, informativos, etc.) e de poderem fazer uma leitura [produzir um texto] crítica e cidadã desses textos (ROJO, 2005, p. 207). Sendo assim, buscaremos, já de início, refletir um pouco sobre as duas abordagens de gêneros apontadas nos últimos parágrafos, mas nosso intuito é buscar compreender a contribuição de cada uma no tratamento dos textos/enunciados e em que medida favorece a construção do sentido, da discursividade. Vamos iniciar nosso diálogo com a abordagem que opta pela terminologia ―gênero textual‖ e, posteriormente, dialogaremos com a abordagem discursiva. Numa próxima etapa, vamos interagir com o Círculo de Bakhtin em torno de sua concepção de linguagem, do seu conceito de enunciado concreto e dos gêneros discursivos. 12 1.1 Gêneros textuais e gêneros discursivos O que vemos é direcionado pelo modo como vemos e este é determinado pelo lugar de onde vemos [...]. Cada gênero representa um modo especial de construir e de concluir a totalidade, e, sobretudo repetimos que se trata de uma conclusão substancial, temática e não de um acabamento somente condicional ou composicional. BAKHTIN/MEDVEDEV (1928) O conceito de gênero tem uma longa tradição precisamente nos estudos literários e retóricos7. É relendo essa tradição de estudos que Bakhtin e seu Círculo irão não apenas desconstruir alguns critérios de classificação dos gêneros literários como também ampliar o domínio de sua aplicação e uso. À época em que escrevia o Círculo de Bakhtin, apenas os textos de valor social reconhecidos, como os literários e retóricos, eram designados por gêneros. Os gêneros literários e retóricos eram os únicos tomados como objeto de estudos, aspecto com o qual os membros do Círculo não concordavam e com base no qual reclamavam a existência de estudos que contemplassem os vários gêneros do discurso, focando sua natureza verbal comum. Segundo Barbosa (2001, p. 23), o Círculo de Bakhtin considera que ―todo e qualquer texto lido ou escrito, falado ou ouvido, enfim, tudo que é dito ou dizível pertence a algum gênero, por mais que, por vezes, não se saiba designá-lo ou reconhecê-lo‖. Com essa visão, os autores russos dão início a uma nova ideia de gêneros da linguagem. Por outro lado, com a ampliação da aplicação do conceito de gêneros, o Círculo de Bakhtin adverte para os problemas com os quais os estudos nessa direção poderiam se deparar devido, primeiro, à heterogeneidade e multiplicidade dos gêneros existentes [às vezes, concordando com Barbosa, nem sabemos denominá-los] e, segundo, à ausência de estudos que contemplem os demais elementos das condições de produção do discurso. As condições para a entrada do conceito de gêneros no contexto brasileiro, primeiro no âmbito da Academia e, posteriormente, nas orientações curriculares de alguns documentos educacionais, como os PCN para o ensino de língua materna, só ocorrem a partir da década de 90 do século XX, e se explicam, em parte, pela mudança de perspectiva em relação ao tipo de sujeito que se desejava formar através da educação escolar. 7 Ver Padilha (2005). 13 Numa perspectiva democrática neoliberal, além da orientação para a formação de mão-de-obra, base das políticas educacionais sob o regime militar das décadas de 1960-70, passa a compor os objetivos da educação pós- redemocratização (idos da década 1980) uma formação que também possibilite o exercício da cidadania e o desenvolvimento da criticidade. No âmbito de uma sociedade democrática, cuja base política e econômica guia-se pelo neoliberalismo numa era de globalização dos meios de produção e da informação, o indivíduo é considerado, apesar dos limites e interesses outros (mãode-obra qualificada e letrada), um sujeito de direitos e deveres. Por isso, verificamos certa preocupação com práticas de ensino mais reflexivas e a ênfase no exercício da cidadania. O enfoque na formação para a cidadania surge com a Constituição Federal promulgada em 1988, visando assegurar o retorno e o avanço ao estado democrático de direito eliminado pela ditadura militar (1964-1985). Na CF/88, conhecida como a ―Constituição Cidadã‖, a cidadania, em seu Art. 1º, inciso II, aparece como um dos fundamentos em que se deve orientar a forma de governo brasileiro. Isso porque cidadania e democracia são conceitos que se pressupõem, conforme aponta Pinsky (apud FIGUEIREDO, 2005, p. 65) ―a cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia‖. O desenvolvimento da cidadania passa a constar como um dos maiores objetivos da educação escolar brasileira, conforme normatiza o Art. 205 da CF/88. Tal objetivo constitucional é tomado como um dos princípios e fins da educação nacional de acordo com o Art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica (LDB/1996), o qual é também perseguido nos PCN (BRASIL, 1998) para o Ensino Fundamental, onde se espera que os alunos, nos anos finais, sejam capazes de: [...] compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas (BRASIL, 1998, p. 07) E nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006): [...] o ensino médio deve atuar de forma que garanta ao estudante a preparação básica para o prosseguimento dos estudos, para a inserção no 14 mundo do trabalho e para o exercício cotidiano da cidadania, em sintonia com as necessidades político-sociais de seu tempo (OCEM, 2006, p. 18). No âmbito do ensino de línguas, essa orientação vai sustentar as críticas às perspectivas teórico-metodológicas centradas em aspectos estritamente formais que não garantiam/garantem uma compreensão mais crítica e consciente dos discursos escritos/orais. Os estudos na área voltam-se cada vez mais para a busca de caminhos teórico-metodológicos que deem conta das novas demandas sociais postas à educação escolar. Em tal contexto, surgem os apelos da Academia em favor da presença dos gêneros no ensino-aprendizagem de línguas, cujo reflexo mostra-se na elaboração dos novos referenciais nacionais para o ensino de língua portuguesa (PCNLP, 1997, 1998, 1999), que passam a indicá-los como objeto de ensino ou chamam a atenção para a importância de se considerar as características destes na proposição de leitura e escrita, instaurando, assim, um novo paradigma de ensino. Quando o pensamento do Círculo de Bakhtin é descoberto pelos estudos linguísticos do Ocidente, a concepção bakhtiniana de linguagem e, mais recentemente, sua noção de gênero, passam a exercer forte influência sobre eles. O conceito de gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin é retomado, no contexto ocidental, com diferentes enfoques e por várias correntes de estudos dedicados às questões linguísticas. Muitas perspectivas teóricas, até certo ponto, não contraditórias com o pensamento desse autor, releem para suas teorias o seu conceito de gênero, em um movimento ―dialógico polifônico‖, culminando em releituras que apresentam ao mesmo tempo afiliação e distanciamento do pensamento do autor, tendo sua tradução perfeita na contraposição atualmente estabelecida entre gêneros discursivos e gêneros textuais ou no uso indistinto destes. Rojo (2005) apresenta uma reflexão acerca de tal distinção que achamos bastante pertinente no contexto deste trabalho. Para essa autora, se teoricamente uma e outra perspectiva são legítimas e úteis para a pesquisa, essa aceitação requer cautela quando estamos pensando no ensino-aprendizagem de língua materna no contexto brasileiro, em que se tem a noção de formação cidadã como eixo norteador. 15 A cidadania está ligada a valores e práticas tidos como frutos de um processo de construção sócio-histórica e cultural, cuja transmissão e cujo exercício passam a ser visados nas propostas a partir da década de 1990. Nesse âmbito, o ensinoaprendizagem de língua materna mostra-se privilegiado por ser a linguagem o signo ideológico-valorativo por excelência. As abordagens de gêneros, ao focalizar a linguagem em uso, podem trazer excelentes contribuições para a concretização desse objetivo da educação. Entretanto, uma abordagem de ensino-aprendizagem de linguagem que tome como princípio a formação para a cidadania deve tratar seus objetos e os valores neles veiculados como inerentes, relativos e abertos, uma vez que se trata de produtos culturais e ideológicos, construídos no processo sócio-histórico e inseridos em contextos específicos, sendo, portanto, instáveis. Sendo assim, o enfoque de uma ou outra abordagem pode trazer diferenças de maior ou menor grau na formação do leitor/construtor de textos a depender do tratamento dispensado a esses objetos. Quanto mais a abordagem oferecer condições para que os alunos compreendam criticamente os objetos de ensinoaprendizagem mais favorável será para a formação cidadã, uma vez que o exercício da cidadania pressupõe sujeitos críticos, livres e autônomos para compreender, questionar e transformar valores, normas e até mesmo direitos morais construídos no processo sócio-histórico de um povo, nação, grupo, comunidade etc. É com base nessas considerações que resolvemos iniciar este capítulo abordando primeiro a problemática dessa questão. Cientes de que o conceito de gênero não é unívoco, precisamos distinguir nossa escolha e posicionamento num trabalho de pesquisa que envolve o ensino-aprendizagem de língua materna na perspectiva de gêneros. 1.2 Gêneros textuais: uma apropriação textualizante Das correntes que têm por base parte da teoria bakhtiniana, mantendo com ela uma relação de ―aproximação/distanciamento‖, as que mais nos interessam aqui, por suas influências diretas na base teórico-metodológica do programa OLPEF, são os trabalhos de Marcuschi (2002), ainda bastante ligados a uma linguística de texto, e os trabalhos ligados a teorias interacionistas discursivas de origem francófona, como os estudos de Bronckart, cuja influência está articulada com os estudos 16 desenvolvidos por Dolz e Schneuwly8 (2004[1996], 2004[1997], 2004[1998], 2004[2001]) na área de didática de línguas. Bronckart (1999) diz tomar a obra bakhtiniana como uma de suas referências principais, mas discorda dela em vários pontos, a exemplo da insinuação explícita de que Bakhtin trata mecanicamente as relações entre formas de atividades e gêneros de discurso. Além disso, justifica, em parte, a opção pela terminologia ―texto/textual‖ por entender que a obra do pensador russo apresenta problemas de terminologia por conta das traduções e evolução. Feitas as observações, ele opta pela via da releitura da noção de linguagem bakhtiniana e recorre, para isso, a um esquema sociopsicológico para explicação do seu funcionamento. Para Bronckart (1999), a linguagem nasce da necessidade da existência de um instrumento mediador e regulador no quadro das atividades sociais. Surgindo uma atividade diferente, emerge uma forma comunicativa [um texto] diferente. Por outro lado, atividades semelhantes geram, no quadro social em que estão inseridas, famílias de textos semelhantes que tendem a se estabilizar de acordo com sua recorrência de uso. Essas espécies de texto, ao se estabilizar de forma mais ou menos forte, criam os gêneros de texto. Por isso, Rojo (2005, p. 190) afirma que Bronckart (1999) tende a classificar os gêneros como ―uma designação convencional e histórica para uma família de textos que apresentam semelhanças‖. O interesse de Bronckart, do seu lugar de psicólogo, está na descrição dos processos cognitivos e linguísticos envolvidos na produção do gênero como entrada para explicar as ações de linguagem9 (MACHADO, 2005). Há, na proposta do autor, certa ênfase no individual para explicação do funcionamento da linguagem porque faz ver as representações particulares10 que o produtor individual tem tanto do Esses autores utilizam parte dos estudos de Bronckart para a elaboração de sua teoria didática de ensino de língua materna no contexto da suíça francófona, a qual, posteriormente, expande-se e adapta-se ao contexto brasileiro, influenciando diretamente a base didático-metodológica do objeto foco de nossa pesquisa. Trataremos deles no próximo capítulo. 8 As ações de linguagem são, nessa perspectiva, estruturas de comportamento não diretamente ligadas aos motivos de ordem social; elas são orientadas por objetivos intermediários, ou específicos, relacionados ao próprio processo de produção e compreensão do texto por um indivíduo particular (FIGUEIREDO, 2005). 9 A respeito das representações dos parâmetros da situação, o produtor, ao produzir um texto, aciona representações acerca do contexto físico da interação (espaço-tempo da produção, produtor, destinatário) e representações sobre o contexto sócio-subjetivo que envolve os valores em relação ao lugar social da interação, ao seu próprio papel social, ao papel social do destinatário de seu texto e dos objetivos da interação. Assim, para realizar uma ação de linguagem, o produtor precisa dominar algumas operações que mobilizam representações sobre o contexto físico e sócio-subjetivo e sobre os conteúdos a serem verbalizados, além de ter que escolher o gênero de texto mais adequado ao contexto imediato e ao conteúdo que se quer expressar (MACHADO, 2005, p. 252-253). 10 17 gênero escolhido quanto dos elementos da situação imediata como o elemento que torna um texto único e diferente. Para Bronckart (1999), os gêneros são entidades profundamente vagas, característica esta que impede sua tomada como objeto de análise, classificação ou descrição. Diante disso, o autor deixa claro que sua preocupação maior está voltada para os textos empíricos11 que, a seu ver, são as únicas unidades concretas que materializam as ações de linguagem (MACHADO, 2005, p. 249). Seria, então, esse o motivo pelo qual o autor adota a nomenclatura ―gênero de texto‖. Segundo Figueiredo (2005, p. 29), Bronckart envida uma descrição dos textos cuja organização é constituída a partir de níveis superpostos que lhe garantem coerência interna. Neste trabalho, apesar de haver certa consideração por elementos de ordem enunciativa, estes são tratados de maneira paralela aos aspectos estruturais. Além disso, a base de sustentação está fincada em conceitos gramaticais ou linguístico-textuais, articulados a um contexto de produção visto em sua dimensão imediata. Tal enfoque formal justifica-se no quadro do projeto teórico do autor, que é elaborar um modelo de produção de discurso; daí sua ênfase em elementos estáveis e limitados. O caminho adotado pelo autor foi centrar sua proposta de análise em uma abordagem transversal aos gêneros cujo conceito principal é o dos tipos de discurso12. Os tipos de discurso são vistos como ―segmentos de estruturação linguística fortemente regulares que entram, em diferentes modalidades, na composição de todos os gêneros textuais‖ (BRONCKART apud ROJO, 2005, p. 190). Esses segmentos de discurso seriam resultantes da articulação de duas ordens de relação — mundo discursivo/mundo ordinário. O cruzamento dessas duas coordenadas pode estabelecer disjunções ou conjunções13 de acordo com a forma de apresentação dos conteúdos na dimensão espaço-temporal bem como apresentar Bronckart (1999) define texto empírico como sendo uma unidade concreta de produção de linguagem, que pertence necessariamente a um gênero, composta por vários tipos de discurso, e que também apresenta traços das decisões tomadas pelo produtor individual em função da sua situação de comunicação particular. 11 12 Os tipos de discurso definidos por Bronckart são quatro: narração, relato interativo, discurso interativo e discurso teórico. Diz-se que há conjunção quando o mundo discursivo articula-se ao mundo ordinário/vivido. A disjunção supõe um distanciamento desses dois mundos. 13 18 relações de autonomia ou implicação14 quando se trata da relação entre o produtor e os parâmetros físicos da ação de linguagem. Ainda de acordo com Figueiredo (2005), ao recortar o gênero pela descrição da composição e da materialidade linguística dos textos no gênero, Bronckart (1999) acaba por tornar os tipos discursivos o elemento catalisador do seu modelo geral de produção de discurso. Nesse sentido, a entrada nos discursos dá-se pelos elementos formais linguístico-gramaticais, distanciando-se, assim, do método sociológico de Bakhtin/Volochinov (2009[1929])15. Figueiredo pontua ainda que o resultado disso, aplicando essas categorias contidas no modelo de produção de discurso de Bronckart, leva a análise a passar pela tangente em termos de compreensão do tema do texto, uma vez que, ao não considerar os diferentes posicionamentos ideológicos presentes na esfera à qual os textos estão vinculados e da qual o autor pouco se ocupa, consegue chegar apenas à significação dos conteúdos verbalizados. No Brasil, Marcuschi (2002), ao fazer a definição e funcionalidade dos gêneros, distinguindo-os dos tipos textuais, adota também e unicamente a terminologia gêneros textuais e aproxima-se, em suas definições, de teorias de gêneros de origem anglófona e francófona (BIBER, 1988; SWALES, 1990; ADAM, 1990; BRONCKART, 1999), algumas vezes se referindo a Bakhtin, do qual notamos a presença apenas por algumas marcas textuais. Interessado em questões didáticas, Marcuschi (2002) propõe a distinção e a relação entre tipos e gêneros textuais. Os tipos textuais seriam constituídos de elementos linguístico-estruturais de diversos níveis que formariam uma sequência tipológica (narrativa, descritiva, dissertativa, argumentativa, injuntiva) (ADAM, 1990). Implicação supõe que os parâmetros físicos da ação de linguagem são o da interação em curso, sendo isso marcado pelo uso de referências dêiticas e a gestão do texto é produzida em co-responsabilidade. Autonomia pressupõe distanciamento desses parâmetros, caracterizando-se pelo apagamento das referências ao contexto, sendo o texto aí monogerado. 14 Neste trabalho, utilizamos algumas obras de Bakhtin e seu Círculo que ainda não possuem tradução oficial para o português, tendo nós acesso a elas através de traduções feitas por pesquisadores brasileiros apenas para fins acadêmicos. Este é o caso, por exemplo, de Para uma Filosofia do Ato (BAKHTIN, 1919-1921), traduzida por Faraco e Tezza, de Discurso na Vida e Discurso na Arte (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926), também com tradução dos mesmos pesquisadores, e um excerto, intitulado Os Elementos da Construção Artística (O problema do gênero), pertencente à obra O método Formal nos Estudos dos Gêneros (BAKHTIN/MEDVEDVEV, 1928). Esse excerto foi traduzido pela professora Simone Padilha apenas para uso restrito nas aulas de uma disciplina ministrada por ela na Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UFMT, no ano de 2009, denominada Gêneros Discursivos. Por isso, ao fazermos referência a essas obras no corpo do texto, deste trabalho, ou em citações recuadas, informaremos apenas autores e data em que se tem conhecimento da sua produção. Em relação à obra de 1919-1921, lembramos que há uma tradução recente (2010), organizada por Augusto Ponzio e o Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGE) da UFSCar, à qual não tivemos acesso durante a escritura, daí termos utilizado apenas a tradução para fins acadêmicos. 15 19 Os gêneros seriam artefatos comunicativos ou famílias de textos (BRONCKART, 1999) semelhantes caracterizados enquanto atividades sociodiscursivas, preenchidos por diversas sequências tipológicas de base. Nesse sentido, ele usa a expressão ―tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) [...] categorias conhecidas como narração, argumentação, exposição, descrição, injunção‖ (MARCUSCHI, 2002, p. 22). Já os gêneros textuais não se caracterizam nem se definem por aspectos linguístico-estruturais, sendo mais ―uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica‖, apresentando-se em número ilimitado (idem, ibidem). Outra noção tida pelo autor como vaga é a de domínio discursivo (BIBER, 1988). Segundo Marcuschi, essa expressão é utilizada para ―designar uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana [BRONCKART, 1999]‖ (MARCUSCHI, 2002, p. 23). Esses domínios são ―as grandes esferas da atividade humana [BAKHTIN, 2003[1952-1953] em que os textos circulam e propiciam o surgimento de discursos bastante específicos [...] discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso etc.‖ (MARCUSCHI, 2002, p. 24-25). Observamos, em certa medida, uma confusão/oscilação nessas definições/reflexões a respeito dos gêneros feitas por Marcuschi. Ao mesmo tempo em que o autor refere-se a gêneros como artefatos linguísticos concretos de característica sociodiscursiva (p. 33), definidos basicamente por seus propósitos (funções, intenções, interesses) (SWALES, 1990) e não apenas por suas formas (p.32), vai dizer que usa o termo gênero textual como uma ―noção vaga para referir textos materializados‖ (idem). Para Rojo (2005, p. 188), ao fazer isso, Marcuschi desfaz as fronteiras entre gêneros e textos ao ponto de deixar transparecer o texto como ―um evento ou acontecimento linguístico pertencente a uma família de textos que tem por designação social um (nome de) gênero, acompanhado de sua representação (noção) de base social‖. 20 Apesar de colocar em relevância as características comunicativas, cognitivas e institucionais dos gêneros tomados como práticas sociodiscursivas, Marcuschi (2002, p. 20-21) afirma que, muitas vezes, são as formas que determinam o gênero. Assim, além das funções e do suporte ou ambiente (aqui se subentende esfera), as formas também determinariam os gêneros, algo impensável em Bakhtin, para quem a discursividade assume a dianteira na ordem hierárquica estabelecida nas relações de produção de linguagem. Marcuschi não define claramente sua noção de discurso e deixa transparecer certa resistência em abordar questões ligadas ao sentido/tema do enunciado, advertindo apenas para se ter o cuidado de não ―confundir texto com discurso‖. O primeiro seria uma entidade concretizada em um material e em um gênero, o segundo seria ―aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instância discursiva‖ (MARCUSCHI, 2002, p. 24). A nosso ver, trata-se, nos trabalhos dos autores que optam pela terminologia gêneros textuais, de uma questão de metodologia que influencia na concepção teórica. Marcuschi, por exemplo, procura se aproximar do discursivo, mas, parecenos, não consegue articulá-lo ao texto, tratando-o de maneira externa: ―os gêneros textuais fundam-se em critérios externos (sociocomunicativos e discursivos), enquanto os tipos textuais fundam-se em critérios internos (linguísticos e formais)‖ (MARCUSCHI, 2002, p. 34). Dessa forma, o autor oscila entre o trato textual quando se diz respeito a questões ligadas à materialidade linguística e o trato genérico quando se ocupa dos aspectos funcionais e contextuais dos gêneros, tocando no sentido apenas em termos de significação relacionada ao conteúdo temático, algo esperado para uma proposta que não consegue manter a ordem de relação hierárquica entre os planos de produção da linguagem, considerando-os em um mesmo nível. Assim, centralizando no texto toda análise em termos de gêneros, o autor tende a desfazer as fronteiras entre um e outro ou abordá-los de forma compartimentada. Bronckart (1999), interessado em construir um modelo teórico de análise, opta pela entrada na linguagem pelos tipos de discurso como fonte de organização dos tipos de sequências e dos gêneros. Marcuschi (2002), preocupado com questões didáticas, apesar de falar em propósitos do gênero como elemento organizador, também resvala para os aspectos formais e dilui as fronteiras entre gênero e texto, 21 tratando aquele como um artefato linguístico concreto no sentido de empírico. Os dois autores tendem a tratar os gêneros como entidades/noções vagas para referir famílias de texto. Como observa Sobral (2007, p. 109), ―se não há gênero ou discurso que se realize sem texto, não há texto que exista sem discurso e sem gênero, exceto como meros sinais em alguma superfície, um não-texto, portanto, ao menos em termos verbais‖. Numa abordagem fundamentalmente bakhtiniana, tendo por base sua proposta metodológica de estudo dos gêneros (2009[1929]), a ordem de relevância maior a ser considerada em uma análise é a discursividade e a ela devem estar subordinados todos os outros aspectos da análise, inclusive os textuais. Barbosa (2001, p. 56) afirma que ―enunciados num gênero devem sempre ser descritos num movimento relacional entre aspectos da situação de produção que determinam temas, formas composicionais e estilos‖. Por isso, nossa ênfase na questão da discursividade. Com base nessas considerações, supomos que se quisermos um caminho bakhtiniano que entre na linguagem pelo sentido, devemos ampliar o escopo de consideração dos gêneros de formas gramaticais e composicionais para o âmbito de formas arquitetônicas sempre relacionadas a um projeto autoral. Numa perspectiva bakhtiniana, a arquitetônica é a construção do objeto discursivo que une e integra indissoluvelmente o material, a forma e o conteúdo. Tal união tem por base a atividade organizadora e estruturadora do sujeito criador sociossituado que, partindo de um querer dizer orientado valorativamente para os conteúdos do mundo ético (ditos e possíveis) e para os outros, constrói totalidades discursivas que têm sua unidade advinda do sentido. Já as formas composicionais, segundo Sobral (2005), não são da ordem do sentido e podem ser vinculadas ao que se denomina, hoje, de organização textual do objeto discursivo. Elas existem em função das formas arquitetônicas que as realizam de várias maneiras, orientadas por apreciações de valor. Isso leva-nos a afirmar muito seguramente que são os conteúdos costumeiramente mobilizados mais as valorações realizadas por centro de valores sociossituados em condições dadas da vida real e seus aspectos que fundam o gênero, por isso, eles são formas discursivas e não textuais. 22 Para melhor compreender a questão da discursividade na obra do Círculo de Bakhtin, vamos começar abordando sua concepção de linguagem. 1.3 O Círculo de Bakhtin: concepção de linguagem Em contraposição a um pensamento linguístico imanente, encerrado em formas, ou proveniente de um psiquismo individual, tendências então hegemônicas dos estudos linguísticos na época, o Círculo de Bakhtin irá propor seu pensamento concreto como a verdade da linguagem, disseminado nas suas várias obras, acrescentando a ele contornos éticos, históricos, sociológicos, ideológicos e dialógicos precisos. Esse modo de ver a linguagem começa a aflorar já em um dos primeiros textos escritos em 1919-1921, sobre a filosofia do ato. Nessa obra, Bakhtin trata do agir humano na vida em termos de uma atividade geral que envolve atos particulares. O ato envolve dois planos integrados indissoluvelmente, o da generalidade e o da particularidade. Trata-se de faces distintas, mas pressupostas — o processo ou o realizar-se permanente e concreto do ato e o produto resultante desse processo. Bakhtin (1919-1921) afirma que o mundo concreto é a vida de sujeitos concretos e não crê que a categorização teórica possa abarcar os atos totalmente muito menos abstraí-los sem fazê-los perder sua especificidade enquanto atos concretos realizados por sujeitos concretos situados em um aqui e agora únicos. Por outro lado, apesar de os atos singulares serem únicos e irrepetíveis, guardam em si elementos comuns aos outros atos, o que faz com que pertençam também à categoria geral de ―ato‖. Numa perspectiva bakhtiniana, deve-se ter cuidado para não se separar o conteúdo do ato e o processo de sua realização. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que o processo supõe um produto dele resultante, o produto, por sua vez, supõe um processo de produção (SOBRAL, 2009), ambos são indissoluvelmente integrados pela valoração mobilizada pela inter-relação eu-outro, num lugar e tempo únicos (idem, 2005). Bakhtin, além de nos fornecer uma perspectiva do ato humano integral, liberta o ser humano do individualismo pela responsabilidade em um dado domínio da cultura, e, por outro, livra-o da submissão total ao social pela responsabilidade 23 situada. O sujeito em Bakhtin não tem álibi na existência, é ético; em outras palavras, ele age sempre e responde por seus atos: ―o sujeito, ao agir, deixa por assim dizer uma ‗assinatura‘ em seu ato e por isso tem de responsabilizar-se pessoalmente por seu ato e se responsabiliza por ele perante a coletividade de que faz parte‖ (SOBRAL, 2009, p. 30). Trata-se, assim, conforme Sobral (2009), de uma filosofia humana do processo em que está reconhecida a importância do sujeito participativo e alteritário, bem como do processo e do produto, formando uma totalidade unificada pela orientação valorativa mobilizada na inter-relação autoral. Percebemos nas formulações da filosofia do ato de Bakhtin a presença ainda seminal de categorias que irão orientar todo seu pensamento em obras posteriores: a inter-relação eu-outro que antecipa, em termos, a noção de autoria tripartite, a consideração das categorias de tempo e espaço circunscritos, mais tarde denominadas cronotopo, e, principalmente, a ênfase no elemento axiológico como o plasmador das relações eu-outro em um objeto [produto]. Tais categorias e suas inter-relações nos antecipam, de forma embrionária, os conceitos de enunciação/enunciado, significação e tema e até mesmo de gêneros discursivos — componentes angulares de sua teoria de linguagem, de discurso. Em o Discurso na vida e discurso na arte (1926), Bakhtin/Volochinov avançam no desenvolvimento dessa filosofia, aplicando-a explicitamente ao fenômeno da linguagem. Nesta obra, a preocupação dos pensadores russos volta-se para a diferenciação entre a linguagem na vida cotidiana e na arte, especificamente a literária, apontando suas inter-relações e seus imbricamentos, com vistas a propor um estudo sociologicamente viável da literatura. Nela, percebemos como os autores compreendem a constituição sociológica da linguagem: A vida, portanto, não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da existência que circunda os falantes e unidade e comunhão de julgamentos de valor essencialmente sociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum enunciado inteligível é possível (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926). É impressionante como Bakhtin/Volochinov relacionam de forma imbricada a linguagem com a vida [o social], mostrando, nesse movimento, como o ser humano está no centro dessa relação com seus julgamentos de valores circunscritos socialmente fazendo a ponte entre vida e linguagem, formando uma unidade 24 indissolúvel, resultando em um ato de interação e de comunicação social. Vida e linguagem são plasmadas em um todo pela orientação valorativa de interlocutores situados. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2009[1929]), Bakhtin/Volochinov envidam uma discussão forte com a Linguística propriamente dita, deixando melhor delineada sua concepção acerca da linguagem. Para Clark e Holquist (1998), nesta obra: [...] estão expostas as principais pressuposições em que todas as suas outras obras se baseiam, por remissão a dois tópicos: o papel dos signos no pensamento humano e o da elocução na linguagem. Cada um desses tópicos liga-se então ao modo pelo qual transmitimos em nossa fala a fala dos outros (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 233). Verificamos nessa afirmação a presença de dois outros aspectos de extrema importância na teoria da linguagem e do discurso do Círculo de Bakhtin: os signos ideológicos e o dialogismo tido como sua propriedade inerente. 1.3.1 Linguagem e ideologia: os signos ideológicos O aspecto ideológico da linguagem é amplamente discutido na primeira parte de Marxismo e Filosofia da Linguagem (2009[1929]). Nela, Bakhtin/Volochinov esforçam-se para atrelar a ideologia a uma semiótica valorativa. Castro (2010) pontua que a teoria marxista, na qual o conceito de ideologia aparece como fundamento, cujo conceito está presente, de certa forma, no pensamento teórico dos pensadores russos, não dava um tratamento teórico à linguagem e à variedade simbólica a que se submete toda consciência humana. Para Bakhtin/Volochinov (2009[1929]), a ideologia está inextricavelmente relacionada aos sentidos, cujo tratamento prescinde de uma definição precisa e abrangente dos aspectos inerentes ao mundo semiótico que nos rodeia. Segundo Castro, essa seria uma das preocupações teóricas dos autores em relação aos desafios postos pelas discussões marxistas envidadas na época. Castro continua afirmando que tal questão está ligada a um problema de interpretação que ocorria no que se refere à compreensão das relações entre base econômica e superestrutura — fundamentos do pensamento marxista, tomados como molas propulsoras das mudanças sociais. Para os pensadores russos, havia 25 um erro de interpretação neste ponto em particular, uma vez que certos marxistas confundiam causalidade econômica com causalidade de tipo mecânica, culminando numa explicação aligeirada e simplista dessas relações. Diante de tal interpretação, Castro observa que Bakhtin/Volochinov (2009[1929]) defendem que, para tratar os fatores de mudanças sociais e o processo de realização das superestruturas ideológicas em sua devida complexidade, era preciso atentar para as formas de realização, composição e organização do material verbal, porque todo domínio socioideológico está inerentemente mergulhado na luta simbólica apoiada na palavra. Os autores russos destacam o papel central da linguagem na percepção e explicação dos elementos criados pelas relações sociais mediadas simbolicamente, nos diversos níveis dos domínios da ação humana. No capítulo 1 de Marxismo Filosofia da Linguagem (2009[1929]), Bakhtin/Volochinov dizem que a linguagem é o fenômeno ideológico por excelência e isso se explica, em parte, por sua pureza semiótica, isto é, de ser sua realidade toda absorvida pela sua função de signo. Além disso, a defesa da linguagem como elemento privilegiado para explicar os processos das mudanças sociais e das formações ideológicas liga-se a uma característica desse material verbal: sua ubiquidade social16. Para Bakhtin/Volochinov: [...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929], p. 42). Podemos concluir da citação acima que a linguagem tem a propriedade de plasmar e materializar as formas de relações e de comunicação sociais travadas nos mais diferentes domínios da ação humana, tornando-se, assim, um signo ideológico. Há, assim, um aprimoramento do conceito de ideologia, base do pensamento marxista, no âmbito da teoria do Círculo de Bakhtin, ao ser enquadrado pelo viés da linguagem. Ubiquidade social, no contexto dessa teoria, é a capacidade de a linguagem estar a serviço da comunicação social em todo e qualquer lugar, e não no sentido de incapacidade de veicular valores, pois ela é o material mais propício para tal fim, é o signo ideológico por excelência. 16 26 Ao se constituir signo ideológico, a linguagem ―reflete e refrata‖ em seus elementos os índices de valores sociais que os homens constroem em relação a si, ao outro, ao mundo, ligados não só à organização da vida socioeconômica e política, mas também à produção cultural dos grupos organizados que entram em interação em condições sócio-históricas determinadas17. Assim, apesar de os pensadores russos não se preocuparem em definir precisamente sua concepção de ideologia no conjunto de sua obra, Castro (2010) levanta que um dos conceitos de ideologia, extraído das obras iniciais do Círculo, está ligado a superestruturas, entendidas como conjuntos multifacetados de grandes segmentos estruturados de ideias18, ou núcleos institucionalizados da sociedade, sistematizados na forma de grandes visões de mundo ou de um recorte grande valorativo-social. O autor acrescenta que tais superestruturas ideológicas, subdivididas em instâncias sociais, discursivas e valorativas específicas, como a ciência, a arte, o direito, a religião etc., seriam responsáveis pela criação e manutenção do conjunto de perspectivas valorativas presentes na realidade cotidiana (CASTRO, 2010, p. 193). Nessa perspectiva, a ideologia espelha a organização e a regulação das relações histórico-materiais dos homens. A esse respeito, Miotello (2008, p. 176) afirma que ela ―é o sistema sempre atual de representação de sociedade e de mundo construído a partir das referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados‖. Castro (2010) aponta que outro conceito de ideologia presente no pensamento teórico do Círculo de Bakhtin é percebido como uma ação responsiva do sujeito perante o mundo, isto é, a atividade responsiva. Este conceito é mais compatível com o pensamento do Círculo que, assim como afirma Miotello (2005), defendia o entendimento desse conceito como um acontecimento vivo e dialógico. Castro (2010) salienta que o Círculo de Bakhtin soube extrair do pensamento marxista sua perspectiva sócio-histórica de sujeito e de cultura. Nessa perspectiva, os pensadores russos não tomam as relações entre infra e superestrutura a partir de uma explicação causal fechada de tipo econômica e política. Eles estão mais preocupados em pensar o homem e a cultura que ele produz via sua materialidade. 17 Castro (2010) observa que este primeiro conceito de ideologia é disseminado meio que amarrado ao contexto de produção econômica. O autor atribui esse viés, o qual Bakhtin não fará uso por estar alheio a qualquer imposição de base econômica, às contribuições teóricas de Volochinov e Medvedev, que se posicionam mais próximos do marxismo. 18 27 Portanto, algo sempre flexível e variável acompanhando o fluxo socioverbal a que está exposto o sujeito. Dessa forma, a vida da ideologia está inextricavelmente ligada à interação verbal realizada por sujeitos sociossituados. Assim, além de ligar a questão da ideologia ao processo de constituição dos signos, os autores russos também vão relacioná-la aos processos da subjetividade. Neste ponto, entra a questão da constituição alteritária do sujeito a partir das relações valorativas que estabelece com os outros. Nesse sentido, cada sujeito é único em termos de feitio subjetivo, mas sua atividade responsiva circunscreve-se aos seus limites socioformativos. De acordo com Castro (2010), nessa construção: O sujeito seria assim, o elemento processador e veiculador das tendências valorativas da sociedade, mas, como ele nunca vai assimilar todas as vertentes e tendências sócio-valorativas da sociedade — o sujeito é sempre uma seleção de vozes —, ele sempre se constitui numa expressão singular e única dessas tendências, expressando sempre um viés que lhe é próprio, possível, e inalienável, construído a partir de suas relações interpessoais igualmente singulares (CASTRO, 2010, p. 196). Tomando por base tal citação, podemos dizer que a ação responsiva de cada sujeito é vista como uma expressão ideológica. Bakhtin/Volochinov (2009[1929], p. 36) mesmos vão dizer que ―a lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social‖, e, sendo assim, [...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929], p. 98-99). Como observa Miotello (2005), diante de tal orientação, não podemos restringir o conceito de ideologia na teoria do Círculo de Bakhtin à falsa consciência ou expressão de uma ideia dada e acabada nem mesmo fechada aos domínios sociais institucionalizados, mas tratá-lo como expressão de uma tomada de posição valorativa pertencente não só ao sujeito, mas construído ativamente nas relações estabelecidas em seu ambiente ou grupo social determinado. As tomadas de posições, exteriorizadas ou não, só se realizam a partir das ações e reações verbais endereçadas aos outros ou no encontro com os pontos de 28 vista valorativos e ideológicos dos outros. Entender ideologia como a atividade responsiva é um passo para chegar à noção de dialogismo, que, para muitos dos seus comentadores, constitui o princípio unificador do seu pensamento, sobre o qual, no texto de 1959-1961, Bakhtin vai afirmar o seguinte: Essas relações [dialógicas] são profundamente originais e não podem reduzir-se a relações lógicas, ou lingüísticas ou psicológicas ou mecânicas, nem a nenhuma outra relação natural. É o novo tipo de relações semânticas, cujos membros só podem ser enunciados integrais (ou vistos como integrais ou potencialmente integrais), atrás dos quais estão (e nos quais exprimem a si mesmos) sujeitos do discurso reais ou potenciais, autores de tais enunciados. O diálogo real (a conversa do cotidiano, a discussão científica, a discussão política, etc.) (BAKHTIN, 2003[1959-1961], p. 330-331). Podemos entrever aí uma concepção de linguagem em sua ocorrência de uso (os diálogos são reais e mobilizados por sujeitos reais e situados) e ativa porque tem no ser humano, precisamente na sua relação/interação com o outro, o seu centro de valores: ―o acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência [sentido], sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos‖ (BAKHTIN, 2003[1959-1961], p. 311). Por isso, ―todo evento da linguagem [...] é a atualização de uma relação entre sujeitos históricos e sociais‖. A essência da linguagem é o sentido e esse sentido nasce da diferença, do confronto de vozes sociais travadas na interação verbal por sujeitos ativos. Assim, dialogismo e interação estão indissoluvelmente ligados e, juntos, constituem a base de produção dos discursos e da linguagem, logo, dos sentidos. 1.3.2 O dialogismo: princípio constitutivo da linguagem Pelo processo do dialogismo, Bakhtin pensa o problema do sentido nos estudos linguísticos, demonstrando sua forte capacidade de articular elementos fixos a elementos dinâmicos em um todo indissolúvel. Bakhtin/Volochinov, no texto de 1929, dedicam um capítulo específico a essa questão ao tratar do sentido geral e particular da linguagem, antecipando que se tratava de um problema bastante difícil para os estudos linguísticos do início do século XX até mais da sua metade . Para o Círculo de Bakhtin, cada ato discursivo tem seu sentido estável e instável, pois se insere numa corrente ininterrupta de comunicação social. Assim, como o ato envolve o dado e o criado, o discurso também supõe um sentido 29 estabilizado e um sentido específico. O primeiro é denominado de significação e o segundo de tema do enunciado/do discurso. A significação está no plano do sistema da língua, de suas formas gramaticais, lexicais; o tema está no plano da interação. Sobre a distinção entre um e outro, Bakhtin/Volochinov (2009[1929]) propõem que: O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptarse adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir. A significação é um aparato técnico para a realização do tema (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929], p. 134). Por essa colocação, podemos afirmar que o tema mobiliza as formas da língua segundo as condições de produção [de enunciação] e é essa mobilização de elementos verbais e não-verbais que acende a chama do sentido. É por isso que Bakhtin/Volochinov (2009[1929]) dizem que a significação é o estágio inferior, em potencial, da capacidade da língua de significar, enquanto o tema seria o estágio superior. Sobral (2009, p. 75) observa, a esse respeito, que é preciso tomar essa interrelação não em termos de hierarquia, mas de precedência, isto é, a significação antecede o tema, que precisa da base dela para se estabelecer. Por outro lado, sozinha, a significação não dá conta do sentido porque atua no nível do que é potencial, abstrato, dicionarizado, que toma concretude apenas no interior de um discurso concreto. Sendo assim, o tema nasce da inter-relação autor-interlocutor numa situação histórica e concreta de comunicação, articulada com a significação composta pela somatória de todas as significações das formas de suas relações morfológicas, sintáticas, léxicas etc. No âmbito da teoria bakhtiniana, não se separa tema de significação. Não há como tomar a significação independente do tema, bem como não há como tomar o tema fora da base da significação, pois a enunciação, o todo discursivo, perderia seu elo na corrente da comunicação verbal. Para os autores russos, essa diferenciação é mais bem entendida no âmbito da compreensão. A base da comunicação é a interação social entre sujeitos socialmente constituídos orientados pela valoração que é ideológica. A interação só é possível porque os sujeitos que entram em relação atuam na base do conhecimento comum da situação discursiva, partilham um horizonte espacial comum e conhecem o material pelo qual a comunicação é concretizada. Nesse sentido, para o Círculo: 30 compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929], p. 137). Se houver compreensão, esta é seguida necessariamente de uma resposta. Para responder, os interlocutores pressupõem a existência de um sistema linguístico com que materialize sua orientação apreciativa em relação ao dizer do locutor, não importando o tipo de relação que estabeleça com ele. Nesses termos, a compreensão é ativa e se trata de um aspecto do dialogismo, é uma forma de diálogo: ―compreender é opor à palavra do outro uma contrapalavra‖ (ibidem, idem). Essa contrapalavra é uma apreciação valorativa que o interlocutor realiza da palavra do locutor. No ensaio de 2003[1952-1953], Bakhtin diz que, ao compreender o sentido discursivo do enunciado, o interlocutor ―concorda ou discorda (total ou parcialmente) completa-o, aplica-o, prepara para usá-lo‖ (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p. 272). O gesto de compreensão só se torna possível, porque os falantes partilham o conhecimento comum do contexto sócio-histórico e ideológico. E isso engendra o ato de resposta ativa, fazendo com que cada enunciado concreto realizado em uma esfera de atividade humana específica torne-se um elo na comunicação discursiva, num diálogo ininterrupto, com os enunciados passados, presentes e futuros. Como vimos desenvolvendo, o dialogismo é constitutivo não só da linguagem e das relações discursivas como também do próprio agir e ser humano. Pensando na linguagem, são as relações dialógicas que constituem seu verdadeiro campo. As relações dialógicas são confrontos de vozes que povoam os domínios culturais de uma dada sociedade, comunidade ou grupo social. O discurso é apresentado, nessa perspectiva, como a arena de enfrentamento entre essas diferentes vozes, como o lugar da presença inerente do outro. Na teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin, o conceito de vozes diz respeito à presença do outro como princípio constitutivo da produção e funcionamento discursivo. Nesse princípio alteritário de estruturação e organização discursiva, podemos perceber que sob o conceito de vozes, que remete ao dialogismo, transitam diversas categorias configuradas de acordo com a especificidade da esfera cultural e do gênero discursivo sobre os quais o autor russo se debruça em 31 uma obra ou em outra, como é o caso de polifonia, de plurilinguismo, do fenômeno da bivocalidade etc. Podemos definir ainda que o conceito de vozes, em Bakhtin, compreende o processo real de representação da fala social de outrem no discurso e também diz respeito a um processo constitutivo da produção discursiva. Sendo assim, as vozes, que são sempre socioideológicas, pois trazem sempre um ponto de vista, uma apreciação constituídos em determinado lugar, habitam o sujeito e se manifestam de forma dialógica em seus discursos e habitam os enunciados do passado, presente e futuro aos quais os discursos respondem, às vezes, sem mesmo saber (BAKHTIN, 2003[1959-1961]; AMORIM, 2003; BRAIT, 1994). Assim, no plano do discurso, visualizamos os discursos sempre respondendo a outros discursos e, por trás deles, sujeitos socialmente situados, nascendo dessa inter-relação pelo discurso o sentido. Por isso, dizemos que o dialogismo são as relações de sentido que nascem da diferença, do confronto 19 de diferentes vozes travado pelos sujeitos nas situações a que são expostos. Podemos afirmar que o conceito de dialogismo é amplo e envolve três planos distintos, conforme pontua Sobral (2009). Em primeiro lugar, dialogismo é a condição essencial de o próprio ser e agir dos sujeitos. Conforme explicamos anteriormente, o sujeito se constitui na relação com o outro, o qual, por sua vez, também o constitui. Assim, a formação do sujeito sempre é dada na diferença, na alteridade, no confronto com o outro, isto é, mediante relações dialógicas. Em segundo lugar, no plano da linguagem e da produção de discurso, novamente entrevemos relações dialógicas. Isso porque, a linguagem é apropriada pelo sujeito nas situações a que é exposto e em que está inserido. Assim, a realidade que lhe é apresentada mediante a linguagem é uma realidade semiotizada, valorada, que passou pelo crivo da avaliação de outros. Quando tratamos de um objeto, voltamos nosso olhar para os discursos que o circundam e não para a realidade em si mesma. É nesse sentido que se afirma que os sentidos nascem dos diálogos entre formas de discursos passados e formas de discursos futuros. Bakhtin diz que as relações dialógicas, o confronto de vozes, não podem ser tomadas de forma simplificada ou unilaterais, reduzidas a uma relação de contradição, desacordo, o confronto de diferentes vozes podem apresentar-se também na forma de relações dialógicas de concordância (BAKHTIN, 2003[1959-1961], p. 331). 19 32 Sobre o terceiro modo de olhar as relações dialógicas, Fiorin vai dizer que se trata de ―maneiras externas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso‖ (FIORIN, 2006, p. 32). Em outras palavras, o dialogismo também pode ser a base de uma forma de composição dos discursos — o diálogo, caracterizado pela marcação explícita das respostas na textualidade discursiva. Para Bakhtin (2003[1959-1961]), trata-se de concepção restrita de dialogismo, porque a concepção ampla, anteriormente apresentada, é a própria maneira de funcionamento vivo e de constituição da linguagem, dos discursos concretos. Essas formas de incorporação dos discursos alheios no próprio discurso são a maneira de fazer ver esse princípio constitutivo de funcionamento da linguagem na comunicação concreta. De acordo com Bakhtin/Volochinov (2009[1929]), há duas maneiras de incorporação dos discursos dos outros no próprio. A primeira apresenta-se na forma de discurso objetificado, isto é, o discurso do outro é citado bem como demarcado explicitamente no discurso citante, mediante a mobilização de formas textuais, como discurso direto, discurso indireto, aspas, negação. A segunda apresenta-se na forma do discurso bivocal, que não deixa marcas nítidas de separação entre discurso citado e discurso citante, há uma dialogização interna, presumida, que só se apreende pela compreensão de estratégias discursivas, como discurso indireto livre, ironia, paródia entre outros. Numa perspectiva bakhtiniana, todo discurso é constitutivamente dialógico, isto é, está animado pela presença de outros discursos, ainda que esses discursos não tenham na superfície textual uma separação nítida. Na materialidade textual, a organização composicional dos discursos pode apresentar-se de forma dialógica ou monologizada. Nas formas monologizadas, de acordo com o que pretende dizer o autor, há uma tendência, implícita ou explícita, de apagamento das vozes dos discursos que o constitui, construindo um cenário em que a voz do autor domina soberanamente. Nas formas dialógicas, a orquestra de vozes que constitui o discurso do autor é mostrada explicitamente ou sugerida de maneira implícita. Há, assim, uma estratégia discursiva de fazer ver abertamente o coro de vozes com que se entretém o autor, com elas mantendo uma relação de concordância, discordância etc., monofônica ou polifônica. 33 Há, assim, vários graus de monologismo e dialogismo, uma vez que não existem formas puras. Entretanto, no funcionamento real, vivo da linguagem e dos discursos não existem relações monológicas, mas formas que tendem a monologizar. Nesse sentido, por mais monologizado, autoritário que pareça ser um discurso, ele é sempre uma réplica a outro discurso e está direcionado a um outro que o constitui. Em suma, a concepção de linguagem e seu sentido que anima a teoria do Círculo de Bakhtin está fundada nas relações dialógicas concretas entre centros de valores socialmente situados. Nessa perspectiva, as diversas relações que se estabelecem no processo de comunicação discursiva fazem surgir discursos atravessados por diversas relações dialógicas, por isso, de certa forma, ―desacreditados‖, envoltos em múltiplas valorações. Os discursos são sempre ―réplicas‖ a discursos anteriores, sempre endereçados aos outros discursos que os constituem e, assim, eternamente. Com base nessa versão de linguagem, podemos afirmar com Sobral (2009) que o dialogismo não se limita, assim, ao contexto imediato, às interações realizadas em um contexto físico, muito menos à textualidade, à materialidade discursiva; também não se restringe às características pessoais dos sujeitos envolvidos. O dialogismo como princípio constitutivo da linguagem, logo, dos discursos, mobiliza elementos numa dimensão bem mais ampla — além do linguístico para o social, a historicidade, os valores, as ideologias etc., dos quais o linguístico é apenas uma via imprescindível (não o mais importante) de sua materialização. Para pensar o discursivo com Bakhtin e seu Círculo, é preciso que o visualizemos como evento vivo, enunciado concreto — acontecimento verbal — que participa da corrente de comunicação social ininterrupta, isto é, ao mesmo tempo processo e produto da atividade socioverbal de uma dada comunidade ou grupo social, deliberadamente organizado. 1.3.3 Os gêneros discursivos na perspectiva do Círculo de Bakhtin Alguns comentadores do pensamento de Bakhtin, como Rojo (2005), entre outros, salientam que a releitura não formalista dos gêneros por parte do Círculo de 34 Bakhtin está marcada em várias obras do grupo já na década de 1920, como nos textos de 1926, 1928 e 1929. Na obra de 1928, o enfrentamento se faz com os formalistas que classificavam os gêneros em termos de um conjunto mecânico formado da articulação de procedimentos formais recorrentes e específicos, os quais não requeriam considerações do contexto social e histórico. Em oposição a essa forma de classificação, Bakhtin/Medvedev vão pensar o gênero em sua ligação intrínseca com a realidade da comunicação social e os temas nela mobilizados. Cada gênero, se verdadeiramente, trata-se de um gênero significativo, é um complexo sistema de recursos e modos de dominação conceitual e de acabamento da realidade [...] repetimos que se trata de uma conclusão substancial, temática e não de um acabamento somente condicional ou composicional (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928, s.p.). O tratamento mecânico dos elementos estruturadores de uma obra [discurso] por parte dos formalistas levou-os a supervalorizar o plano composicional, ofuscando o ―problema da totalidade construtiva tridimensional, o problema do todo, o problema do gênero e o problema do acabamento temático na construção [...] dos gêneros do discurso‖, nos termos de Souza (1999, p. 98). Para compreender essa forma de construção da totalidade, é preciso visualizar a temática do gênero intrinsecamente vinculada à realidade. Pelo fato de o gênero pertencer, assim, à vida, ele aparecerá sempre duplamente orientado na realidade, cujas particularidades determinarão, por sua vez, sua totalidade. Assim, o gênero está orientado: [...] em primeiro lugar, em direção aos ouvintes e receptores, e em direção a condições determinadas de execução e percepção. Em segundo lugar... está orientado na vida, desde o interior, por assim, dizer, mediante seu conteúdo temático (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928, s.p.). Percebemos que a dupla orientação do gênero para a realidade se sustenta (na orientação imediata do exterior) na autoria, concebida como resultante das relações situadas entre autor e ouvinte plasmadas no produto discursivo. Mas essa orientação imediata exterior também está, no gênero, indissoluvelmente ligada, desde o interior, à vida mediante seu conteúdo temático. Com base nessa formulação, apesar de o termo gênero não estar referenciado, entrevemos a construção de seu conceito estreitamente vinculado a 35 condições de uma situação dada de comunicação e de interação sociais significativas como seu organizador e plasmador formal. Bakhtin/Volochinov (2009[1929]) prometem, que ―mais tarde, em conexão com o problema da enunciação e do diálogo, abordaremos o problema dos gêneros lingüísticos‖, antecipando apenas que: [...] cada época e cada grupo têm seu repertório de formas do discurso na comunicação socioideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas. Entre as formas de comunicação (por exemplo, relações entre colaboradores num contexto puramente técnico), a forma de enunciação (―respostas curtas‖ na ―linguagem de negócios‖) e enfim o tema, existe uma unidade orgânica que nada poderia destruir. Eis porque a classificação das formas de enunciação deve apoiar-se sobre uma classificação das formas de comunicação verbal (BAKHTIN/VOLOCHINVOV, 2009[1929], p. 44). Nessa direção, podemos visualizar não só a antecipação dos gêneros como formas de discurso social, mas também certa orientação metodológica, isto é, os gêneros devem estar subordinados às formas da comunicação verbal socioideológica. Essas últimas, equacionadas às esferas de atividades, das quais nos ocuparemos mais adiante, como se vê, possuem um papel extremamente importante na construção do gênero, são suas determinantes. Por enquanto, importa-nos dizer que Bakhtin/Volochinov apresentam aí um caminho para pensar os gêneros: seguir as relações hierárquicas na realidade social e os temas aí presentes bem como as condições em que essas relações acontecem. Esse percurso culmina em um conceito de gênero como um princípio especial de organização e conclusão dessas relações na forma de uma totalidade discursiva. Voltando ao texto de 1928, em razão de estar indissoluvelmente vinculado aos temas de uma situação social dada, ―cada gênero é capaz de abarcar tão somente alguns aspectos da realidade [...] [por meio de] determinados princípios de seleção, determinadas formas de visão e concepção da realidade, determinados modos... na profundidade de penetrá-la‖ (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928, s.p.). O autor afirma que a realidade do gênero é aquela que lhe é acessível no âmbito social de sua realização no processo de comunicação verbal, por isso, eles são sociológicos. Em contraposição à estruturação formalista do gênero, sustentada nos elementos abstratos da língua, Bakhtin/Medvedev (1928) propõem a definição desse 36 conceito no âmbito do enunciado visto como uma totalidade discursiva, da qual o gênero é a forma tipificada de construção e de acabamento. O enunciado é apresentado como a unidade real da comunicação verbal e não uma unidade abstrata. Tal orientação já está marcada no texto de 1926, em que Bakhtin/Volochinov fazem a seguinte afirmação: O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo de interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação. Quando cortamos o enunciado do solo real que o nutre, perdemos a chave tanto de sua forma quanto de seu conteúdo — tudo que nos resta é uma casca lingüística abstrata ou um esquema semântico igualmente abstrato (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, s.p.). Tal formulação transcende as questões estritamente linguísticas e orienta-se para o ―contexto extraverbal‖. Essa dimensão compreende três fatores imprescindíveis para a compreensão do enunciado: o horizonte espacial comum (lugar); o conhecimento e a compreensão comum da situação (a unidade temática/objeto do discurso) e a avaliação comum da situação (a valoração). Esses fatores que compõem o contexto extraverbal do enunciado, ou sua dimensão presumida, integram-se aos seus elementos composicionais, mediante a valoração, formando uma unidade orgânica. A formulação da noção de enunciado concreto, nesses termos, lança as bases, nas obras iniciais, para a construção do conceito de gênero discursivo, mais bem explicitado, mas não acabado, no ensaio O problema dos gêneros do discurso (2003[1952-1953]). Gênero discursivo é apresentado como um objeto de caráter sócio-histórico, inextricavelmente ligado a uma esfera ideológica precisa que lhe imprime características próprias. Essas características do gênero são referidas, no texto de 1928, como a totalidade construtiva tridimensional, a qual será apresentada, no texto de 2003[1952-1953], como resultante da mobilização de um conteúdo temático, da escolha e organização das palavras (o estilo verbal) e a sua disposição (a forma composicional), os quais seriam articulados e sempre atualizados pela valoração, em um determinado momento. As características genéricas acima mencionadas constituir-se-iam no todo do enunciado que, de acordo com sua recorrência em situações parecidas ou semelhantes, no âmbito das esferas de atuação, adquiririam relativa estabilidade, 37 podendo ser, assim, recuperadas e utilizadas como pré-configuração, constituindose em gêneros do discurso. Para pensar melhor essa interação entre enunciado e gênero, remetemos à concepção de linguagem do Círculo de Bakhtin formulada em termos de uma totalidade arquitetônica. Sobral (2009b), sustentado no diálogo do Círculo com suas bases filosóficas20, afirma que Bakhtin, já em Para uma Filosofia do Ato (1919-1921), recusa radicalmente todas as formas de teorização que tomam a parte pelo todo, propondo, em contrapartida, uma junção proveitosa entre o que há de comum entre os atos/enunciados e o que há de singular em cada ato/enunciado. O arremate de tal junção está na valoração que o sujeito realiza no processo de produção do ato/enunciado. Teoricamente, essa união é feita pela integração entre significação [o plano de sentido relativamente estabilizado — o conteúdo temático] e sentido [o plano de sentido construído em um contexto específico — o tema] em todo processo de produção de discursos/enunciados. Rojo (2005) sugere que o pensamento do Círculo de Bakhtin acerca dos gêneros seja conhecido seguindo as pistas do processo de construção dessa noção desde as obras iniciais. Isso possibilitaria ver a imbricação e acumulação de conceitos equivalentes e refinados numa evolução contínua que tomará, no texto de 2003[1952-1953], contornos de formalização explícita e de divulgação incompleta. A pesquisadora lastima que [...] a maior parte dos pesquisadores que recorrem a Bakhtin para discorrer/dialogar sobre os gêneros não cheguem a freqüentar a obra do Círculo de maneira mais dialógica e, simplesmente, contentem-se em citar ou repetir o texto de 1953, de maneira mais monofônica. Nesse outro caminho, mais polifônico, poderíamos relacionar — mais fácil e claramente — o conceito de gênero com os conceitos de dialogismo, heteroglossia, cronotopos, plurilingüismo, hibridismo, de tal maneira que a noção bakhtiniana de gênero do discurso seja colocada, de uma vez por todas, como um objeto discursivo ou enunciativo, e não como uma forma ou tipo, palavras infelizmente escolhidas por Bakhtin, no texto de 1953 (ROJO, 2005, p. 196). Podemos, assim, visualizar, pelo breve percurso por nós realizado em algumas obras iniciais do Círculo de Bakhtin em que a noção de gênero aparece de alguma forma trabalhada, a incriptação e junção de vários conceitos. Estes Sobral (2005, 2008) diz que Bakhtin, para a construção de sua concepção de linguagem e de discurso, une de forma complexa aspectos da obra de Kant, da fenomenologia de Husserl e do materialismo histórico-dialético de Marx e Engels. Conforme o pesquisador, Bakhtin não trata de maneira eclética do pensamento desses filósofos, mas com eles dialoga no sentido de releitura e apropriação daqueles aspectos que pudessem estar a serviço do projeto do Círculo. 20 38 culminarão numa noção de gênero bem mais complexa e rica, em que o sentido construído dialogicamente pela interação linguística entre sujeitos é sua pedra angular, sempre renovada e atualizada cada vez que um enunciado é produzido em seu âmbito. Nosso intuito, ao percorrer outras obras do Círculo, foi melhor compreender as noções de enunciado e de gênero, cruciais para nosso trabalho de pesquisa, dentro do próprio arcabouço teórico do Círculo de Bakhtin, a fim de evitar a tendência classificatória desses conceitos. Sob esse prisma, a noção de gênero pode ser tomada, sim, como um tipo relativamente estável de enunciado com suas particularidades, mas são tipos de natureza social, vinculados a esferas de comunicação verbal, orientados por relações dialógicas por trás das quais estão autor e interlocutor em um contexto de valores definido. Podemos complementar essa consideração com Sobral (2009b), dizendo que os elementos linguístico-textuais, a situação de produção dos discursos e as circunstâncias de tempo e de espaço estão unidas, no enunciado, pela orientação de produção de sentido, levada a efeito na relação entre os interlocutores nela envolvidos, bem como da orientação destes para o objeto discursivo. Nesse sentido, o enunciado é resultado desse processo autoral que deixa suas marcas no conteúdo, no material e na forma do enunciado, o que nos remete à diferenciação e, ao mesmo tempo, articulação intrínseca pela valoração entre formas composicionais (elementos formais ou plano textual) e formas arquitetônicas (elementos enunciativos ou plano contextual). De acordo com Souza (1999, p. 91), o conceito de enunciado concreto apresenta-se, no interior das ideias do Círculo, como base de reflexão para pensar sobre os gêneros do discurso. São os enunciados que engendram os gêneros no processo da comunicação verbal a partir de determinadas relações na comunicação social. É no âmbito do enunciado como unidade da comunicação verbal que podemos analisar cada gênero. Assim, aquela promessa feita por Bakhtin, na obra de 1929, de abordar os gêneros em sua vinculação com os enunciados é realizada no ensaio de 1952-1953, na qual o autor estabelece que esse conceito é a unidade de comunicação real. Vejamos como a construção dessa noção contribui para entendermos a noção de gênero. 39 1.3.4 O conceito de enunciado concreto No terreno da vida, como unidade da comunicação real, um índice da presença do enunciado é que ele possui autoria, isto é, tem autor e destinatário. O enunciado provém de alguém e se destina a alguém, que se posiciona em várias dimensões. O destinatário pode ser o interlocutor do diálogo face a face, um participante presumido no contexto de circulação do enunciado ou um supradestinatário que transcende as fronteiras temporais e espaciais de produção do enunciado. Por possuir autor e estar direcionado a um destinatário, o enunciado constitui-se em um conjunto semântico de natureza dialógica — elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera de atividade. Como elo de sentido, o enunciado, além de estar orientado para o seu objeto de sentido, também está orientado para os enunciados dos outros, é sempre uma resposta a enunciados anteriores e uma projeção de respostas ulteriores: [...] todo enunciado, além do seu objeto, sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam. O falante não é um Adão, e por isso o próprio objeto do seu discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de interlocutores imediatos (na conversa ou na discussão sobre algum acontecimento do dia-a-dia) ou com pontos de vista, visões de mundo, correntes, teorias etc. (no campo da comunicação cultural). Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião sempre têm uma expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal), e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto mas também para os discursos do outro sobre ele (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 300). Na obra acima citada, Bakhtin enfatiza em várias passagens essas características do enunciado — a de ser elo na corrente de comunicação discursiva e a de pertencer a alguém e estar orientado para outro. Assim, um enunciado pode plasmar diferentes sentidos sobre um mesmo objeto discursivo. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes; conhecem-se um aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos que lhes determinam seu caráter dialógico. Segundo Barbosa (2001), no contexto brasileiro de recepção das ideias do Círculo de Bakhtin, essas características do enunciado — ser uma resposta e estar pleno de outras, o que implica uma compreensão responsiva ativa e criadora — vão 40 funcionar como marcas distintivas da teoria sócio-histórica do Círculo de Bakhtin em relação a outras teorias enunciativas atuais. Partindo da corrente da comunicação social e, dentro dela, do fluxo verbal ligado às várias esferas de atividades humanas, aqueles que se filiam à teoria bakhtiniana não precisam diferenciar, por exemplo, o seu conceito de enunciado do conceito de enunciação. O escopo sociológico orientando a concepção de linguagem do Círculo faz com que a escolha de um único termo — enunciado concreto — recubra processo/produto, enunciação/enunciado21, não precisando, assim, entrar em pauta de discussão a sua diferenciação. Além da orientação voltada para o objeto do discurso e para os outros enunciados, todo enunciado é expressivo, isto é, marca uma atitude valorativa do autor frente ao objeto do discurso e aos enunciados alheios (existentes, préfigurados) dos outros participantes da comunicação discursiva, que se manifesta de diversas maneiras e intensidades, na constituição do enunciado. Assim, estar orientado para um objeto de sentido e para um destinatário é um dos fatores que diferencia enunciado das formas da língua e da materialidade do texto. Além desses aspectos, Bakhtin diz que outros dois fatores intrinsecamente ligados determinam a constituição do enunciado. O primeiro diz respeito a sua necessidade de resposta, que implica a troca ou alternância (imediata ou não) entre os sujeitos do discurso. Todo enunciado, em um dado momento, chega ao fim e abre-se, então, para a compreensão responsiva ativa e criadora do leitor. O segundo fator, inclusive colocado no texto de 1928, diz respeito ao acabamento do enunciado concreto que, para Bakhtin/Medvedev (1928), mostra-se um dos aspectos mais importantes na teoria dos gêneros. O acabamento é específico do enunciado e indica que o autor disse tudo o que queria dizer de acordo com o seu projeto discursivo, exaurindo substancialmente o objeto de sentido. São a alternância e o acabamento que permitem a resposta do outro, possibilitando, assim, a continuidade ininterrupta do diálogo na corrente da comunicação discursiva. Devido a essas razões, Bakhtin/Medvedev (1928) e Bakhtin (2003[19521953]) dizem que não devemos confundir acabamento com fim. O acabamento de sentido está ligado a um enunciado específico em condições determinadas, Paulo Bezerra, em nota de rodapé, nos informa que o termo empregado por Bakhtin, para referir-se a este conceito, ―viskázivanie‖ recobre tanto enunciado como enunciação, concluindo que o autor russo não faz distinção entre um e outro (2003 [1952-1953], p. 261). 21 41 dependente do tratamento do objeto, do material e dentro dos limites de um objetivo definido do autor, por isso é relativo. A intenção discursiva do autor, no âmbito de condições de comunicação discursiva específica ligada intrinsecamente aos enunciados anteriores, determina, por assim dizer, a escolha do objeto de sentido e, em relação necessária com ele, a escolha das formas típicas de gênero do enunciado. Como afirma o próprio Bakhtin, o enunciado é extremamente importante para a compreensão dos gêneros. O enunciado é definido como uma unidade discursiva, ou conjunto de posições de sentidos através da qual o autor executa um dado projeto enunciativo. Esse conjunto de sentidos é resultante da apreciação valorativa de seu autor em relação ao objeto discursivo, aos enunciados anteriores dos outros sobre esse objeto, considerando a resposta ativa do destinatário a quem se dirige. No âmbito das relações dialógicas, o intuito discursivo do autor (o elemento subjetivo) está relacionado a uma temática (o elemento objetivo), a qual está vinculada a uma situação concreta de comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais bem como pela relação individual dos interlocutores e suas respectivas orientações em relação aos enunciados anteriores. Esses parâmetros da situação de produção determinam a escolha das formas típicas do gênero do acabamento. Por outro lado, esse projeto discursivo do autor e sua orientação valorativa em direção aos outros parâmetros da situação de produção estão submetidos, em certa medida, às coerções das esferas de atuação onde são gerados e circulam os gêneros bem como da relação específica entre os interlocutores, por isso, o autor, ao mesmo tempo em que escolhe o gênero, adapta seu projeto discursivo ao gênero escolhido. Se tomarmos, juntamente com Sobral (2009a), a consideração da concepção de linguagem do Círculo como um sistema semiótico no interior do qual agem forças centrípetas (buscam a estabilidade) e centrífugas (aspiram a mudanças), visualizaremos a linguagem como produto e processo dessa luta tensa e contínua entre esses dois núcleos de forças, isto é, a busca constante pela cristalização de significações e a imensidão de possibilidades de sentidos sócio-historicamente construídos e em construção. Tal tensão dialógica não se dá em um vácuo, mas tem como centro a interação linguística de sujeitos concretos, interação esta estruturada e determinada 42 pelas formas de organização e de distribuição dos papéis sociais ideologicamente marcados e historicamente constituídos nas diversas instituições e situações de produção dos discursos, as quais são denominadas por Bakhtin/Volochinov (2009[1929]) de esferas de atividade humana. Percebemos que as esferas são de extrema importância para a compreensão dos discursos e, por consequência, dos gêneros, no âmbito da teoria discursiva do Círculo de Bakhtin. Sendo assim, buscamos entender esse conceito. 1.3.5 As esferas de atividade humana Bakhtin, apesar de referir-se a algumas esferas de atividade em vários textos, não faz considerações específicas a respeito desse conceito. De acordo com Sobral (2009a), as esferas são espaços de caráter sócio-histórico e ideológico de recorte do mundo onde se dão as relações entre os sujeitos, sejam elas discursivas ou não. O grau de estabilidade dessas esferas depende do seu grau de sistematização, ou do nível de sua institucionalização, no interior de uma dada sociedade, em um percurso histórico e conforme com conjunturas específicas. As esferas podem ser definidas como modos sócio-históricos relativamente estáveis de relação humana, por isso: [...] esfera tem um caráter mais amplo do que definições de instituição que se restringem àquilo que o Estado inclui em seu aparato. Para o Círculo, o simples fato do encontro casual de duas pessoas já é um evento institucional, uma relação social e histórica que envolve toda a sociedade, do ponto de vista de seus diferentes recortes possíveis num dado momento histórico. A relação entre duas pessoas traz à cena a soma total das relações sociais dessas pessoas, envolvendo no mínimo um espectro que vai da família ao Estado. Isso ocorre porque a sociedade não pode existir independentemente das relações entre os sujeitos que dela fazem parte: são precisamente essas relações que a constituem, seja qual for o ambiente e o grau específico de ―formalização‖ desse ambiente (SOBRAL, 2009a, p. 121). Segundo Barbosa (2001), com base em algumas características recortadas do conceito de campo de Bourdieu, cada esfera implica uma correlação de forças entre os sujeitos que possuem diferentes posições sociais as quais são instituídas pelas próprias esferas. Além disso, essas esferas trazem certas regras que impõem certas restrições a depender da função e do grau de hierarquia estabelecido entre os sujeitos sociais nela participantes, das finalidades dessa participação e dos 43 interesses em jogo. A autora aponta ainda que cada uma dessas esferas configura e é configurada por relações específicas de interação verbal, constituindo as esferas de comunicação. Percebemos, assim, a vinculação intrínseca entre o uso da linguagem e as atividades humanas. Por isso, a produção dos discursos deve ser vista em sua função no processo de interação no âmbito das esferas de atuação humana, considerando as restrições impostas pelas interrelações de posições sociais, pelo jogo de interesse e pelas finalidades próprias dessas esferas. Os discursos exprimem em sua configuração temática, composicional e estilística as condições de cada esfera. Bakhtin (2003[1952-1953]) divide as esferas de atividade humana em dois grandes domínios culturais, a esfera da vida cotidiana22 no interior da qual se configuram gêneros primários (de organização simples), vinculados mais diretamente com a modalidade oral da linguagem, e as esferas da comunicação ideológica sistematizada23, no âmbito das quais nascem os gêneros secundários (de organização mais complexa e elaborada), relacionados, em grande medida, à modalidade da linguagem escrita. Padilha (2005) aponta que tal divisão pode ser uma tentativa do autor de melhor operacionalizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso que, à parte as diferenças dos tipos genéricos de um ou outro domínio, comungam de uma natureza verbal comum. De acordo com o autor russo, tal divisão e diferenciação são de extrema importância para a compreensão da complexa natureza do enunciado. No seu processo de formação, os gêneros secundários absorvem e reelaboram diversos gêneros primários que se transformariam no âmbito daqueles, perdendo sua vinculação direta com o contexto de produção imediato. Vemos, assim, o princípio A ideologia do cotidiano é a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida cotidiana e a expressão exterior que a ela se liga constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema que acompanha cada um dos atos, gestos e cada um dos nossos estados de consciência. Na ideologia do cotidiano, podem-se distinguir ―níveis determinados‖ pela escala social, os quais servem para medir a atividade mental e a expressão. Nesses níveis, tomam corpo as novas forças sociais capazes de penetrar nas ideologias especializadas que, no entanto, submetem-se à influência dos sistemas ideológicos estabelecidos e assimilam parcialmente suas formas, práticas e abordagens (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929]). 22 Os sistemas ideológicos especializados e formalizados, a moral, a justiça, a arte, o jornalismo, a escola, são produtos do desenvolvimento técnico-econômico da sociedade. Eles se constituem e cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano e, em retorno, exercem forte influência sobre ela, dão o tom a essa ideologia. No entanto, os sistemas formalizados mantêm um vínculo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929]). 23 44 do dialogismo regendo, por toda parte a que se olha, a teoria discursiva do Círculo bakhtiniano. O fluxo discursivo, espaço próprio do vir-a-ser do sentido, pertencente a cada esfera, estabiliza as formas discursivas em que se materializa seu funcionamento, constituindo, assim, práticas discursivas mais ou menos regulares, isto é, os gêneros do discurso. Essas práticas discursivas relativamente estáveis constituem-se em totalidades construtivas tridimensionais indissociáveis que exprimem as especificidades da esfera de atividade humana a qual se encontram, de certa forma, vinculadas. Essa característica do gênero de ser, ao mesmo tempo, repetível e instável faz com que, por um lado, ele funcione como modelo para entender e agir discursivamente, imprimindo certa normatividade nas interações de linguagem a fim de não se criar sempre do nada os modos de falar a cada vez que se interage discursivamente: [...] Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas a diferencia no processo da fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível (BAKHTIN, 2003[19521953], p. 283). Podemos inferir daí que a escolha ou a adoção de um enunciado típico depende do conjunto de gêneros disponíveis e historicamente legitimados nos espaços sociais. Entretanto, não podemos nos esquecer de que essas formas de comunicação discursiva estão sujeitas a mudanças, reavaliações que marcam seu lado instável e permitem a interferência dos elementos da situação social mais imediata na construção do gênero do enunciado. Constituem-se como elementos das condições reais de produção do gênero do enunciado a intenção discursiva do autor (objetivo), as necessidades de uma temática (finalidade do objeto de sentido), a relação entre os participantes, o fundo aperceptivo (representação) que os participantes têm um dos outros e da situação, todos envolvidos pelo elemento axiológico (valor). De acordo com Bakhtin (2003[1952-1953]), o autor, com toda sua individualidade e subjetividade, adapta 45 seu projeto discursivo ao gênero escolhido. Assim, a generalidade dos enunciados típicos está indissoluvelmente vinculada à singularidade dos enunciados enquanto ―acontecimento‖ único e irrepetível que a atualiza sempre que é utilizado nas relações concretas pelo autor. 1.3.6 Gêneros discursivos e a constituição arquitetônica A articulação entre atividade autoral e gênero vista a partir do enfoque da apreciação valorativa do autor estabelece os elementos temáticos, composicionais e estilísticos do enunciado/discurso, que, quando tipificados, passam a constituir as dimensões essenciais do gênero do discurso enquanto um todo discursivo. Tais dimensões são apresentadas por Bakhtin (2003[1952-1953]) nos termos de um tripé indissociável: os conteúdos ideológicos costumeiramente mobilizados através do gênero (os temas); as formas dos procedimentos estruturais da comunicação discursiva compartilhadas pelos textos pertencentes ao gênero (formas composicionais) e a escolha dos elementos linguísticos (gramaticais, lexicais) engendrados a partir da posição enunciativa do autor e da forma composicional do gênero (o estilo). O conteúdo temático não se confunde com assunto. Está aí referido a objetos de sentidos que podem ser mobilizados ou dizíveis por determinada forma genérica, isto é, seria a parcela da realidade acessível e concebível pelo gênero (BAKHTIN/MEDVEDEV, 1928). A nosso ver, conteúdo temático pode ser visto como temas típicos, determinados sócio-historicamente, que, por serem costumeiramente mobilizados pelos enunciados pertencentes ao gênero, tomaram certa regularidade. A título de exemplo, podemos dizer que o domínio de sentido de que se ocupa o gênero artigo de opinião sãos os acontecimentos sociais (variados em escala temporal) que se mostram discursivizados e permitem uma opinião (avaliação) deliberada/declarada por parte de um autor seja legitimado pelo próprio lugar social de onde fala e pela instituição jornalística que faz a mediação da produção deste gênero. Acrescentaríamos que cada esfera de atividade recorta dimensões específicas da realidade de acordo com suas necessidades, construindo o conjunto de temas típicos passíveis de serem nela mobilizados por suas formas genéricas específicas. 46 Os procedimentos composicionais referem-se a maneiras de organizar, dispor, combinar os elementos materiais dos enunciados típicos em função das necessidades de suas temáticas, das condições específicas de comunicação e das finalidades e restrições esféricas. Poderíamos dizer que se trata de uma forma de compor ou de dizer vinculada aos conteúdos do discurso e ao material em que é realizado. Trata-se de uma formulação importante porque, ao longo de suas obras, o Círculo de Bakhtin sempre postulou que o objeto discursivo é uma totalidade de sentido em que há a união intrínseca do conteúdo, do material e da forma. Essa união é feita tendo por base o intuito discursivo de um autor, orientado axiologicamente para o conteúdo e para a recepção ativa de um interlocutor. Por esse motivo, essa atividade autoral duplamente orientada e valorada modela o conteúdo do discurso, constituindo o que Círculo denomina forma arquitetônica. As formas arquitetônicas precisam, para sua concretização, de um material que organize seu conteúdo, daí entrariam as formas composicionais, relacionadas às formas da língua e às estruturas textuais, formando dados textos empíricos. Como se vê, as formas composicionais existem em função das formas arquitetônicas que as realizam de várias maneiras, dependendo dos elementos discursivos acima mencionados. Logo, não se pode falar em forma arquitetônica sem mencionar as formas composicionais, pois que aquela precisa destas para organizar o conteúdo. O estilo de uma forma genérica diz respeito à seleção típica dos recursos léxicos, fraseológicos e gramaticais da língua e está vinculado, da mesma forma que os procedimentos composicionais, à atividade autoral no âmbito dos enunciados e de suas formas típicas nos espaços das relações de comunicação social — as esferas. Assim, o estilo está vinculado ao conteúdo de um discurso e aos seus modos de organização, não se tratando, portanto, de um desvio da norma. No ensaio de 1926, Bakhtin/Volochinov fazem a seguinte definição desse conceito: ‗O estilo é o homem‘ dizem; mas podemos dizer: o estilo é, pelo menos, duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma de seu representante autorizado, o ouvinte — o participante constante na fala interior e exterior de uma pessoa (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, s.p.). 47 Podemos visualizar, assim, que o estilo, seguindo a mesma explicação de outros conceitos, se define pela interação dialógica nos espaços sociais entre os participantes discursivos. Bakhtin/Volochinov (1926) salientam que o estilo é determinado por dois princípios constitutivos: as avaliações valorativas do autor e do interlocutor em relação ao objeto (―o peso hierárquico do mundo que ele descreve‖), e o grau de proximidade existente entre o autor do enunciado e esse interlocutor em relação a esse conteúdo determinado. A respeito dessa atitude avaliativa, Bakhtin/Volochinov frisam que não se trata daquelas avaliações ideológicas que estão incorporadas no conteúdo [...] na forma de julgamentos ou conclusões, mas àquela espécie mais entranhada, mais profunda de avaliação via forma que encontra expressão na própria maneira pela qual o material [...] é disposto (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1926, s.p.). Nesse sentido, dizemos que o estilo são escolhas operadas nos elementos da língua para expor o conteúdo discursivo e mostrar como são mantidas as relações dialógicas, em termos de valor e proximidade, entre os participantes em relação a esse conteúdo discursivo. No ensaio de 2003[1952-1953], Bakhtin afirma que o estilo está estritamente vinculado aos enunciados e suas formas típicas, os gêneros. Todo gênero possui um estilo típico; entretanto, todo enunciado, por ser individual, pode apresentar aspectos da individualidade do falante, ou seja, pode absorver um estilo particular. Esse estilo individual reflete a atitude subjetiva e avaliadora do autor a respeito do objeto do discurso e do fundo aperceptivo que o destinatário possui desse objeto a partir da relação social entre ambos [autor e ouvinte]. Mais uma vez reiteremos, então, que se trata de mecanismos dialógicos de introdução de pontos de vistas valorativos, axiológicos, não de fenômenos superficiais do nível da forma ou funcionalidade. Gostaríamos de concluir este capítulo afirmando que a entrada na linguagem pelo uso leva necessariamente à eleição do sentido como objeto a perseguir. O sentido é construído no eterno vir-a-ser das relações dialógicas e precisa mobilizar uma materialidade textual via discurso no âmbito de um gênero. Tal movimento está marcado no texto e aponta para dimensões intra e extratextual, ao mesmo tempo, as quais nos servirão para buscar os elementos do 48 discurso/do gênero vinculado no/com o texto e que dão forma ao ―cenário do evento‖ de que falam Bakhtin/Volochinov (1926). Trata-se, assim, não de excluir categorias textuais, mas de manter a ordem hierárquica de relevância a ser considerada, que, segundo os pensadores russos, ao propor seu método sociológico de análise da linguagem, seria a seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza (as esferas de atividade); 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal (os gêneros); 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009 [1929], p. 129). Nesse sentido, é o discurso que significa o texto e não o contrário. E essa mobilização dá-se no interior de um gênero, que pressupõe uma dada esfera de atuação humana. Sendo assim, podemos dizer que o gênero é uma forma sóciohistórica e ideológica de recortar o mundo/realidade nos espaços sociais de atuação humana e não textos que apresentam características semelhantes. Como afirma Ponzio (2008, p. 186): ―o signo [enunciado/gênero] não é uma coisa, mas um processo, um cruzamento de relações‖. Como estamos pensando na linguagem em uso voltada para o processo pedagógico, isto é, temos como enfoque propostas de trabalho que tomem o gênero como objeto ou base para o ensino-aprendizagem de língua materna, buscaremos, no próximo capítulo, apresentar também a teoria didático-pedagógica que orienta o programa OLPEF, objeto de nossa análise. 49 CAPÍTULO 2 Mudanças pedagógicas e didáticas no ensino-aprendizagem de língua materna: Vygotsky e a Escola de Genebra [...] o aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que as cercam. VYGOTSKY (1934) Como vimos desenvolvendo no Capítulo 1, se, devido às mudanças sociais instauradas nos fins do século XX, uma nova concepção de linguagem levou a mudanças no conteúdo ou objeto da disciplina Língua Portuguesa, os métodos de ensino também foram questionados a partir de novas teorias de ensinoaprendizagem. Também entram em pauta de discussão os processos de transposição e didatização desses conteúdos. Por nossa pesquisa inserir-se nos pressupostos do paradigma sócio-histórico e cultural, neste capítulo, pretendemos apresentar a concepção de ensinoaprendizagem do psicólogo russo Lev S. Vygotsky, para pensar os processos de ensino-aprendizagem, uma vez que ele afirma, assim como Bakhtin, a primazia da interação social nos processos de construção de todo conhecimento humano. Interessam-nos, também, discutir os pressupostos didáticos da Escola de Genebra, na abordagem de B. Schneuwly e J. Dolz, por fundamentarem a organização do material didático do Programa OLPEF, objeto desta pesquisa. 2.1 Vygotsky e o ensino-aprendizagem de língua materna: a ZPD Vygotsky, além de estudar a constituição e o funcionamento dos processos psíquicos superiores [consciência, conhecimento], a função social e psicológica da linguagem, dedicou-se também, devido a seus interesses ligados a temas educacionais, a estudar os processos de ensino-aprendizagem escolar. Neste trabalho, em função de sua natureza e objetivo, focalizaremos especificamente a relação entre ensino-aprendizagem e desenvolvimento e a 50 categoria pedagogicamente rica, acionada pelos processos de aprendizagem, denominada por Vygotsky de zona proximal de desenvolvimento (ZPD) 24. Um ponto importante para se pensar na proposta teórica de Vygotsky (2008[1934]) é o caráter social da aprendizagem. Para ele, a aprendizagem é um processo social de apropriação da cultura historicamente construída pela sociedade e ocorre na inter-relação das crianças com os adultos ou com um par mais avançado. Considerando ainda a aprendizagem um processo ininterrupto, ele também pode ocorrer entre pessoas e companheiros mais experientes, por isso, sua natureza é especificamente sócio-histórica e a internalização de seus instrumentos ocorre pela atividade mediadora do ―outro‖ 25. Pensando no aprendizado escolar, diríamos que ele tem uma história prévia, uma vez que as crianças não começam a aprender a partir de sua entrada na escola, mas desde o nascimento. Essa aprendizagem pré-escolar construída na interação da criança com o meio social e cultural nas atividades cotidianas subsidiará a construção dos conceitos escolares. A aprendizagem escolar pressupõe uma espécie de diálogo de duas vias entre a construção de conceitos cotidianos e a construção de conceitos científicos ou sistemáticos que se dá na escola. Quando os conceitos científicos são totalmente apreendidos, eles perfazem o caminho de volta, reorganizando os conceitos cotidianos, em um jogo de constituição mútua. Nesse processo, o papel da linguagem aparece como pedra angular, uma vez que é ela que subsidia as interações bem como ancora a construção e evolução do pensamento abstrato (verbal). Partindo do pressuposto de que seria pela linguagem que a criança se apropria do conhecimento e da experiência humanos, construídos sócio-historicamente, é por ela também que a criança internaliza esses conhecimentos e experiências, construindo sua individualidade. Assim, quando a criança resolve determinados problemas de forma independente, isso significa que Optamos por nos referir a este conceito na forma de zona proximal de desenvolvimento (ZPD) e não zona de desenvolvimento proximal (ZDP), porque, concordando com Rojo (2000), acreditamos que a ênfase do adjetivo recai sobre a zona fronteiriça ativada pelo ensino-aprendizagem e não sobre o desenvolvimento. 24 No curso do desenvolvimento, a criança apropria-se dos sistemas simbólicos construídos historicamente pelo grupo social que a cerca, transformando-os em conhecimento interior através da imitação e da aprendizagem, processos que percorrem primeiro o nível intersubjetivo (a interação social) em direção ao nível intrasubjetivo (conhecimento interno). Trata-se, assim, de um processo histórico dinâmico e ininterrupto de intercâmbio humano travado nas várias esferas sociais, como a família, a igreja, a imprensa, os sindicatos, a escola etc. 25 51 esses conhecimentos foram consolidados e reconstruídos e passam a se constituir como conhecimentos individualizados26. Nesse sentido, para Vygotsky (2008[1926, 1934]), o caminho percorrido pelo aprendizado e pelo desenvolvimento passa primeiro pelo social para depois transformar-se em atividade individual interior. Assim, contrapondo-se às perspectivas naturalistas e biológicas que também se dedicavam a essa temática e que colocavam o aprendizado a reboque do desenvolvimento 27, o psicólogo russo, por meio de um conceito pedagogicamente rico e instrumentalmente poderoso — o de ZPD — fornece subsídios proveitosos para pensar o ensino-aprendizagem em situações escolares. O autor apresenta esse conceito como um: [...] espaço dinâmico onde se desvela a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 28 2008 [1934], p. 97) . A criação de ZPD pelas atividades de ensino-aprendizado despertaria ―vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros‖ (VYGOTSKY, 2008[1934], p. 103). Sendo assim, apesar de inter-relacionados, ensino-aprendizado e desenvolvimento não se confundem: ―o processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrás do processo de aprendizado; desta sequenciação resultam, então, as zonas de desenvolvimento O ensino-aprendizagem, mediado pelo outro (colega ou professor) e pelos instrumentos simbólicos (linguagem), aciona o processo de desenvolvimento das funções mentais superiores que englobam desde a memória, a análise, o planejamento, a formação do pensamento e, principalmente, o domínio da linguagem. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que toda função psicológica superior, antes de ser internalizada, passou pela experiência exterior — a relação social. Ressalte-se que o que foi adquirido no plano externo não é simplesmente transferido para o plano interno — o processo de internalização é sempre ativo. A recepção não é passiva às influências sociais. Pode-se falar de uma reconstrução interna que transforma o internalizado. O papel do outro é sempre muito importante nessa atividade de internalização. A criança aprende a resolver as tarefas com o auxílio do outro para depois fazer sozinha (realização interna do que primeiro sucedia como atividade externa); logo, sua participação mental está sempre presente nesse processo, por isso é ativo. 26 Para Vygotsky, o aprendizado conduz o desenvolvimento, uma vez que, quando devidamente organizado, cria uma zona de desenvolvimento imediato, a qual funciona como elemento desencadeador de processos mentais interiores de desenvolvimento que, sem ele, não ocorreriam. 27 Assim, no nível de desenvolvimento real, encontram-se os processos mentais superiores já concluídos ou, como aponta o próprio Vygotsky, ―os frutos do desenvolvimento‖. Já na ZPD estão aquelas funções que estão em processo de maturação ou, metaforicamente falando, ―brotos‖ ou ―flores‖ do desenvolvimento. 28 52 proximal e que funcionam como indicativas de aprendizagem‖ (VYGOTSKY, 2008[1934], p. 103). Ao enfatizar sua concepção de aprendizagem mediada pelo outro, Vygotsky (2008[1926]) vincula o ensino à aprendizagem. Estabelecendo os colegas e o professor como os pares mais avançados, acaba por privilegiar o papel da esfera escolar nesse processo. Para ele, a escola deve elevar o nível das exigências, potencializando os processos de aprendizagem que estão em fase de desenvolvimento, isto é, as funções não amadurecidas que se encontram na zona próxima de desenvolvimento e não se baseando nas zonas dos processos concluídos, como tradicionalmente ocorre. De acordo com Facci (2004, p. 78), para Vygotsky, a zona proximal de desenvolvimento tem um valor mais direto para a dinâmica da instrução que o nível atual de seu desenvolvimento. Logo, o ensino deve incidir sobre essa zona de desenvolvimento e as atividades pedagógicas precisam ser organizadas, com a finalidade de conduzir o aluno à apropriação dos conceitos científicos elaborados pela humanidade. Um ensino que focalize os processos de aprendizagem já concluídos não avança no desenvolvimento; pelo contrário, é arrastado por ele. Assim, para Vygotsky, ―o ‗bom aprendizado‘ é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento‖ (VYGOTSKY, 2008[1934], p. 102). Ainda nas palavras de Facci (idem), o processo de ensino-aprendizagem deve guiar o desenvolvimento e propiciar condições e premissas para que as crianças desenvolvam suas funções psíquicas superiores, como a memória, a análise, o planejamento, a formação do pensamento e o domínio da linguagem (na nossa perspectiva, dos gêneros). O professor possui, neste processo, papel de destaque como mediador entre o aluno e o conhecimento, cabendo a ele intervir na zona proximal de desenvolvimento dos alunos, conduzindo a prática pedagógica. Deve, portanto, estar atento às peculiaridades do desenvolvimento psíquico em diferentes etapas evolutivas, para que possa estabelecer estratégias que favoreçam a apropriação do conhecimento científico, papel do ensino escolar. De acordo com Schneuwly (apud PAES DE BARROS, 2005, p. 40), a aplicação aos processos de ensino do conceito de zona de desenvolvimento próximo nem sempre é fácil: 53 [...] Em tal contexto de reflexão, ela [ZPD] está longe de ser uma ferramenta operacional facilmente aplicável ao ensino e à educação, capaz de servir de base a um procedimento do tipo: deve-se descobrir a zona de desenvolvimento proximal para permitir que o aluno passe de um nível a outro. Ela contém antes a idéia de que, ficticiamente, o professor ou educador define uma zona que poderá ser aquela do próximo nível do desenvolvimento e ensina como se o desenvolvimento fosse automaticamente se seguir ao seu ensino (SCHNEUWLY, 1992, p. 15). Nessa reflexão de Schneuwly, percebe-se que a ZPD não pode ser definida previamente, porque, como afirmam Dolz e Schneuwly, posteriormente: [...] a ZPD não é determinável a priori; o ensino, em sua lógica educativa própria (sobretudo, lógica dos programas), só pode propor situações de interação que julga serem eficazes; e estas somente o serão se os elementos interativos forem assimiláveis ao estado de desenvolvimento efetivo do aluno. Portanto, o sucesso na criação de uma ZPD nunca está assegurado e depende grandemente da experiência profissional do professor (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004 [1996], p. 50). Como podemos perceber pela citação, tal zona tem a possibilidade de ser acionada somente no processo de ensino, ou seja, no momento em que professor e aluno estão engajados em atividades compartilhadas. Neste âmbito, o papel do professor enquanto aquele que ensina é colocado em destaque, porque ele é responsável por dispor ferramentas e criar condições para que os alunos construam seu conhecimento. O desenvolvimento humano caracteriza-se pela transformação das funções psíquicas tipicamente humanas, resultado da interação do indivíduo com o outro, na apropriação dos instrumentos simbólicos culturalmente construídos pelos seres humanos, como a linguagem, por exemplo. A linguagem, além de sua função primordial comunicativa, é, posteriormente, assimilada como elemento estruturante do pensamento. Para Vygotsky (2008[1934]), a função organizadora da linguagem invade o processo de uso de instrumento e produz formas fundamentalmente novas de comportamento. Essa função eleva o nível de desenvolvimento do indivíduo, pois permite a categorização do mundo, a abstração e generalização dos objetos, enfim, o conhecimento superior. Assim, pela linguagem, o homem constrói conhecimentos, valores, visões de mundo e do homem no campo individual. Por isso, a escola precisa propiciar aos alunos a apropriação dos conhecimentos científicos, que estão no domínio cultural da produção sistematizada e sempre acima dos espontâneos, porque se situam na 54 zona das funções psíquicas superiores em que o nível de pensamento é mais elevado. Por sua apropriação necessitar sempre da conscientização do objeto e da categorização verbal, o domínio da linguagem (dos gêneros) nesse processo é imprescindível. Vimos assim que os estudos sobre a linguagem em paralelo aos estudos sobre ensino-aprendizagem a partir das últimas décadas do século XX motivam, em parte, mudanças no ensino-aprendizagem de língua materna. No contexto brasileiro, o pensamento de Vygotsky e Bakhtin, que primam por perspectivas sócio-históricas e culturais, encontra um meio fértil, uma vez que nos situávamos em um momento em que as preocupações com questões relacionadas à cidadania, de um lado, e as transformações sociais, históricas e científicas, de outro, exigiam a renovação do ensino, de forma geral, e de forma específica, de língua portuguesa, ainda bastante preso a um enfoque tradicional. A efervescência acadêmica e política favoreceram a chamada ―mudança de paradigma‖, delineando uma nova configuração da Língua Portuguesa como disciplina, a qual desponta com novos objetos e métodos de ensino e aprendizagem. Os gêneros discursivos/textuais passam a ser considerados no ensino de língua portuguesa, tendo em vista a multiplicidade de práticas de linguagem no contexto da atualidade a partir de um novo enfoque metodológico. Se Vygotsky, ao propor sua teoria de ensino-aprendizagem, estava pensando também em situações escolares, o mesmo não se pode afirmar sobre Bakhtin. Caberia a nós indagarmos como os potenciais conceitos teóricos desses dois autores vêm sendo articulados de forma a favorecer situações de ensinoaprendizagem de língua materna. Na Europa, a partir dos anos 90, em boa medida, no seio da Universidade de Genebra, mais precisamente na Unidade de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, surge um dos principais grupos de pesquisadores que relê as teorias de Vygotsky e Bakhtin na proposição de uma metodologia didática para o ensino-aprendizagem de língua materna29, por meio da aproximação de alguns conceitos-chave desses dois autores, como os de discurso, linguagem, interação, apropriação e o papel do outro (ROJO, 2003). 29 No caso do cantão de Genebra, a língua materna é o francês. 55 Rojo ainda observa que, nessa releitura, a linguagem é vista como instrumento de inter-ação com o outro e de organização do pensamento, até porque, como afirma Figueiredo (2005), tal releitura didática também é atravessada pela teoria do ISD30 acerca de texto e de linguagem, principalmente a noção de gênero como modelo e as de tipo de discurso. 2.2 Gênero: mega-instrumento de ensino-aprendizagem de Língua Materna Uma primeira contribuição, a destacar, da releitura que a Escola de Genebra faz de alguns conceitos de Vygotsky e Bakhtin, é a sugestão de Schneuwly (2004[1994]) em considerar o gênero como um mega-instrumento para ensinoaprendizagem de línguas. A construção dessa metáfora passa pela releitura das obras do psicólogo e do filósofo russo feita pelo ISD. No âmbito dessa teoria, os gêneros são instrumentos necessários à realização das atividades/ações discursivas e favorecedores do desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para aproximar o gênero, na acepção bakhtiniana, da noção de instrumento, na visão vygotskyana31, o didático genebrino justifica que, semelhante ao instrumento vygotskyano, o gênero é um objeto semiótico complexo essencial ao agir discursivo do sujeito. O gênero dá forma às ações discursivas, como também traz uma representação delas, prefigurando as possíveis. Por isso, o gênero é um dispositivo que permite, a um só tempo, a produção e a compreensão de textos. Schneuwly (2004[1994]) continua a comparação observando que, no processo discursivo, o gênero também é escolhido de acordo com a base de orientação de uma ação definida (finalidade, destinatários e conteúdo), funcionando, assim, como um instrumento de mediação entre a adaptação de seus aspectos A perspectiva teórica do Interacionismo Sócio-Discursivo, liderada por Bronckart, foi brevemente apresentada no capítulo 1 quando tratávamos da contraposição entre gêneros discursivos e gêneros textuais. 30 31 Vygotsky ( 2004, 2007[1930]), inserindo os tipos de ferramentas/instrumentos na categoria maior de atividade mediadora tripolar, subdivide-os em técnicos e psicológicos. Os instrumentos técnicos seriam meios naturais dos quais o homem lança mão para orientar e controlar sua ação direcionada aos objetos sobre os quais ele age, a fim de dominar e transformar a natureza, numa determinada situação. Os instrumentos psicológicos são construções artificiais das quais o homem se serve para orientar e controlar a ação sobre si mesmo, dominando e transformando seus próprios processos psíquicos. Vygotsky (1930) não estabelece diferenciação entre ferramenta e instrumento; Schneuwly (2004[1994]) o segue quando faz a releitura dessa categoria. 56 temáticos, composicionais e linguísticos a essa base de orientação para a ação discursiva em uma situação concreta de uso de linguagem. Refletindo sobre essa adaptação, o autor genebrino afirma que Bakhtin (2003[1952-53]), apesar de ter apontado tal necessidade, não diz que mecanismos mobilizar em sua realização. Partindo dessa ―ausência‖ na obra do pensador russo, Schneuwly (idem) sinaliza que o uso do gênero em situações específicas implica o domínio de seus ―esquemas de utilização‖ e isso nem sempre se dá de forma direta, pressupondo, assim, seu ensino-aprendizagem. Tal característica asseguraria sua entrada à escola como objeto de ensino. A produção de texto (ação discursiva) ainda envolveria outros esquemas de utilização ligados ao tratamento do conteúdo, do plano comunicacional e linguístico para os quais o gênero funciona como organizador global de suas formas e possibilidades. Com base nessas considerações, o didata genebrino propõe a metáfora do gênero como mega-instrumento: Poderíamos aqui construir uma outra metáfora: considerar um gênero como ―mega-instrumento‖, como uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos (sobretudo lingüísticos, mas também paralingüísticos), permitindo agir eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação (SCHNEUWLY, 2004[1994], p. 28). Barbosa (2001) observa que Schneuwly não esclarece detalhadamente que ―subsistemas semióticos‖ seriam esses, donde a autora interpreta que eles poderiam ser considerados instrumentos menores de ordem enunciativa, textual e gramatical envolvidos na produção e compreensão dos textos. Rojo (2000) assinala que esses instrumentos menos complexos são construídos em nível da linguagem e do pensamento, o que, para nós, fundamenta a consideração dos gêneros também como ferramentas para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Seguindo o raciocínio interpretativo de Barbosa (idem), o domínio dos gêneros passaria pelo domínio desses instrumentos menos complexos, que seriam tematizados de forma contextualizada. A autora acrescenta que, nesse sentido, cada gênero carrega conteúdos específicos a ele relacionados, cuja apropriação asseguraria o desempenho em situações de ação verbal. Afirma ainda que tal forma de entender os gêneros é importante para o trabalho pedagógico, pois possibilita uma definição mais pontual de conteúdos e objetivos que podem servir, no processo 57 de ensino-aprendizagem de um gênero, como referência não só para o aluno, mas também para o professor. Schneuwly (2004[1994]) encontra na releitura dos gêneros uma entrada privilegiada para favorecer o desenvolvimento da linguagem em situações escolares. Isso porque, para esse autor, além de fornecerem um suporte para a atividade de linguagem, nas situações de comunicação, os gêneros funcionam como referência para os aprendizes, nos contextos de aprendizagem escolar. Posteriormente, o entendimento dos gêneros como práticas sociais de linguagem cristalizadas permite a Dolz e Schneuwly (2004[1996], p. 51) os considerarem legítimos para serem tomados como modelo de atuação: ―a análise de suas características fornece uma primeira base de modelização instrumental para organizar atividades de ensino que esses objetos de aprendizagem requerem‖. Além disso, para Dolz e Schneuwly (idem), a entrada dos gêneros na escola pressupõe um processo de transformação, pois deixam de ser apenas instrumentos de comunicação para ser objetos de ensino-aprendizagem em uma situação de produção diferente de sua esfera de origem. 2.3 A transposição didática dos gêneros A adoção dos gêneros como objeto de ensino-aprendizagem escolar exige diferentes níveis de concretização e um deles seria pensar como a escola trabalha com os conhecimentos culturalmente produzidos que, ao serem tomados por ela, constituem-se em conhecimentos escolarizados (BARBOSA, 2001). Segundo essa mesma autora, Chevallard (1997), didático francês, define esse desdobramento do conhecimento como um processo de transposição didática. Nessa perspectiva, a passagem desses conhecimentos para a esfera escolar implica três tipos de transformações compreendidas da seguinte forma: objeto de saber → objeto a ensinar → objeto ensinado. Ainda conforme Barbosa (2001, p. 110), há pelo menos duas maneiras de se entender a transposição. Ela pode ser entendida como processo de simplificação dos objetos das ciências, de forma a serem compreendidos pelos alunos e, nesse sentido, a escola teria um papel eminentemente reprodutor, e, em oposição a esta, outro tipo de transposição poderia ser pensado em termos de seleção de quais dimensões desses objetos se pretende ensinar de acordo com princípios de 58 legitimidade, pertinência e solidarização. Schneuwly (2004[1997]) e Dolz e Schneuwly (2004[1998]) assinalam que seria sobre esses três aspectos interrelacionados que se assentaria a construção de um modelo de gênero. A legitimidade diz respeito à consideração, na elaboração dos modelos, de conhecimentos legitimados por seu reconhecimento social, o qual é dado tanto por seu status teórico quanto por sua elaboração por especialistas no domínio em questão. A pertinência refere-se ao processo de seleção, dentre os saberes de referência disponíveis, dos procedimentos e conteúdos visualizados pelo projeto de ensino, tendo em vista as finalidades e objetivos escolares e as capacidades dos alunos visados. O efeito de solidarização está ligado à criação um novo todo de saberes coerentes, pela integração dos conhecimentos legitimados com os pertinentes para serem ensinados, em função dos objetivos visados. Nesse sentido, quando se procede à transposição dos saberes legitimados para situação de ensino, ocorre uma transformação nesses saberes por força dos objetivos de ensino. Barbosa (2001) sinaliza que, como não se trata de ―formar físicos, geógrafos, lingüistas, matemáticos etc.‖, esses saberes, quando passam por um tratamento didático, são decompostos, recortados para a apreensão dos alunos, e, nesse caso, a escola, assim como as outras esferas, também produziria conhecimento ainda quando os importa, na forma de conhecimentos didáticos32. Dolz e Schneuwly (2004[1997]), certos de que o processo de transposição é inevitável e próprio de situações de ensino escolar, propõem a elaboração de um modelo didático de gêneros que funciona como ―uma variação do gênero de referência, construída numa dinâmica de ensino-aprendizagem, para funcionar numa instituição cujo objetivo é precisamente este‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1997], p. 81). Nesse sentido, os autores apostam numa proposta de tratamento do gênero em situações escolares a partir de uma espécie de ―ficcionalização‖ que seja capaz de oferecer aos alunos condições de produção mais próximas possíveis das de origem do gênero enfocado. Como afirma Barbosa (2001), não é porque se procede a transposições que se deve desconsiderar os parâmetros da situação de produção original. Sendo Para Rojo (2000), a escola lida com dois tipos de gêneros: os escolares e os escolarizados. Os primeiros seriam construtos da e circulariam na própria esfera escolar para a viabilização de suas atividades, neste grupo, a autora elenca a tomada de nota, seminário, resumo, relatório, ensaio escolar etc. Os segundos seriam gêneros provenientes de outras esferas de atuação social e que adentraram a escola pelos processos de transposição didática, adquirindo na esfera escolar caráter de ficcionalização. 32 59 assim, cabe-nos atentar para o quanto esses processos de transposição distanciam (ou não) o gênero de sua situação de produção. Sendo a ficcionalização inerente às situações de ensino, as formas de lidar com elas e os seus efeitos não são unívocos. A respeito da questão entre introdução dos gêneros como objeto de ensino-aprendizagem escolar e suas práticas sociais de referência, Schneuwly e Dolz (2004[1997]) apresentam três modos comumentes mobilizados nas abordagens de ensino. O primeiro modo é intitulado desaparecimento da comunicação. De acordo com os autores, essa forma de desdobrar o conhecimento cultural abstrai completamente as práticas sociais de comunicação, focalizando, assim, o domínio da pura forma linguística. Trata-se de uma inversão que, de instrumento de comunicação, o gênero passa à forma de representação da realidade, isto é, imprime-lhe um caráter natural. Tal maneira de tratar o gênero em situações escolares favorece uma abordagem em termos tipológicos, tendo na sequência canônica ―descrição – narração – dissertação‖ o seu exemplo mais conhecido (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004[1997], p. 77). Na segunda forma, a escola é vista como autêntico lugar de comunicação. Nessa abordagem, as situações de produção/recepção de texto são criadas nas próprias dimensões da esfera escolar através da adoção de gêneros eminentemente escolares como fonte de inspiração. Parte-se do seguinte pressuposto: ―aprende-se a escrever, escrevendo‖, por isso, os gêneros não são tomados enquanto instrumento de comunicação, como também não são descritos nem ensinados. Nesse sentido, pode-se falar novamente em um processo de naturalização de outra ordem: ―o gênero nasce naturalmente da situação‖ (idem, p. 78). O terceiro modo de lidar com o desdobramento dos gêneros como objeto de ensino seria a negação da escola como lugar específico de comunicação. Nessa perspectiva, a esfera escolar, enquanto lugar de reprodução das práticas de linguagem, não provoca transformação nos gêneros que nela adentram. Tendo como ponto de partida o bom desempenho do aluno em diferentes situações de comunicação extraescolares, toma-se como princípio básico o trabalho com a diversidade de gênero, metodologicamente abordada, em parte, pela simulação das situações sociais extraescolares nas quais os gêneros circulam. A consideração de tais abordagens funciona apenas a título de exemplificação das inúmeras implicações embutidas na tomada do gênero como 60 objeto de ensino, ultrapassando, assim, a simples tomada de um novo objeto e enfoque metodológico. Pensamos que, se por um lado, não se podem desconsiderar as especificidades da esfera escolar, as situações de ensino-aprendizagem nas quais os gêneros são tomados como objeto e os objetivos postos pela educação escolar, por outro, não devemos perder de vista os conhecimentos e práticas de referência que precisam ser tomados e contextualizados de forma significativa para os alunos. Outra questão que importa discutir no contexto da adoção dos gêneros como objeto de ensino-aprendizagem de língua materna é a definição dos critérios de escolha dos gêneros que se deseja ensinar. Isso se coloca porque, de um lado, temse uma multiplicidade e heterogeneidade de gêneros, de outro lado, têm-se os objetivos e as finalidades do ensino, culminando em vários critérios de classificação possíveis. Se por um lado tal diversidade de classificação pode se mostrar problemática devido à confusão terminológica e conceitual que pode suscitar, por outro lado, ela tem sido explorada na proposta didática genebrina para a abordagem dos gêneros, em situações de ensino-aprendizagem, uma vez que permite relê-los de acordo com os objetivos de sua proposta. 2.4 Agrupamento de gêneros: a proposta curricular da Equipe de Genebra Dolz e Schneuwly (2004[1996]), seguindo o raciocínio da validade didática, propõem uma forma de organização dos gêneros para serem tomados em situação de ensino-aprendizagem escolar na forma de agrupamentos que articulam três critérios de classificação: domínios sociais de comunicação, aspectos tipológicos e capacidades de linguagem dominantes (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 60-61). Os autores, ao construir essa forma de organização dos gêneros, estão pensando na progressão do ensino-aprendizagem. A título de exemplificação, e considerando o enfoque do nosso trabalho, recortamos o quadro de agrupamentos em que os autores elencam os gêneros que têm como um dos critérios a discussão de problemas sociais controversos: 61 Quadro 1 - Proposta provisória de agrupamentos de gêneros [Gêneros da ordem do argumentar] Domínios sociais de comunicação Aspectos tipológicos Capacidades de linguagem dominantes Exemplos de gêneros orais e escritos Discussão de problemas sociais controversos Argumentar Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição textos de opinião diálogo argumentativo carta de leitor carta de reclamação carta de solicitação deliberação informal debate regrado assembléia discurso de defesa (advocacia) discurso de acusação (advocacia) resenha crítica (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 61) Figueiredo (2005), analisando o agrupamento proposto pelos didáticos de Genebra, argumenta que pensar os domínios sociais de comunicação tomando por base a finalidade ou a motivação para uma atividade linguística parece ser mais adequado do que fazer uma equivalência (cf. MARCUSCHI, 2002) entre ―domínios‖ e ―esferas de atividade‖. Baseando-nos numa exemplificação dada pela autora, mas trazendo para o nosso quadro de enfoque, poderíamos dizer que é mais coerente pensar Discussão de problemas sociais controversos como um objetivo pragmático que se dá em qualquer instância social (no jornalismo, no judiciário, na ciência, na escola, na administração, no cotidiano) em vez de tratá-lo como ―esfera‖ conceitual que aponta para instituições sociais específicas (FIGUEIREDO, 2005, p. 35). Para Barbosa (2001), o enfoque nas finalidades sociais de comunicação poderia fortalecer e concretizar uma perspectiva enunciativa de trabalho com a linguagem. Entretanto, a autora adverte que tal abordagem poderia ser algo interessante devido às possibilidades de convergência com as esferas de comunicação, propostas por Bakhtin (2003[1952-1953]), com exceção do agrupamento I ―Cultura literária e ficcional‖, os outros resvalam para o elenco de finalidades ou objetivos gerais33 nem sempre vinculados a esferas específicas. Os outros agrupamentos são: II) Documentação e memorização das ações humanas; III) Discussão de problemas sociais controversos; IV) Transmissão e construção de saberes; V) Instruções e prescrições‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 60-61). 33 62 No segundo critério, a organização dos gêneros é feita com base em ordens tipológicas, no total de cinco: narrar, relatar, argumentar, expor e descrever ações (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 60-61). Analisando o agrupamento baseado nas finalidades discussão de problemas sociais controversos (Quadro 01), percebemos que a categoria tipológica argumentar funciona como eixo de articulação entre os outros dois critérios e que, na visão dos autores, permite a progressão do ensino. No terceiro critério, os autores mobilizam um dispositivo sociopsicológico de funcionamento da linguagem, cujo percurso incluiria as práticas, passaria pelas atividades, ações até as capacidades de linguagem. Tal escolha é feita a fim de justificar os critérios de seleção adotados para o agrupamento, conforme Figueiredo (2005). Para Dolz e Schneuwly (2004[1997], p. 72-73), as práticas de linguagem estão relacionadas à categoria maior de práticas sociais em geral, adquirindo aí função de mediação. Como na visão dos autores, as práticas de linguagem implicam dimensões sociais, cognitivas e linguísticas do funcionamento da linguagem numa situação de comunicação particular, estudá-las implicaria sua análise a partir de critérios construídos pelos sujeitos no sentido individual (representação) e social. Em relação às atividades de linguagem, os autores afirmam que elas podem ser orientadas por um motivo contido nas práticas sociais em que nascem. Por isso, ―a atividade de linguagem funciona como uma interface entre o sujeito e o meio e responde a um motivo geral de representação-comunicação‖, como também “ela tem sua origem nas situações de comunicação, desenvolve-se em zonas de cooperação social determinada e, sobretudo, ela atribui às práticas sociais um papel determinante na explicação de seu funcionamento‖ (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004[1997], p. 73). Para Figueiredo (2005, p. 35), as atividades de linguagem, nessa perspectiva, podem ser tomadas como equivalentes a textos, com a diferença de estes últimos estarem subordinados aos gêneros do discurso e por, consequência, às esferas sociais, e não somente às práticas que dão uma ideia de categoria muito aberta e não tão situadas socialmente. A autora acrescenta ainda que, tomando as categorias de práticas de linguagem e atividades de linguagem, poderia associá-las aos gêneros e aos textos, respectivamente. Voltando a Schneuwly e Dolz (2004[1997]), os autores continuam a explicar o dispositivo sociopsicológico de desenvolvimento da linguagem, dizendo que as 63 atividades de linguagem, por sua vez, podem ser estruturadas em um sistema de ações: ―as atividades podem ser decompostas em ações, ou estruturas de comportamento não diretamente articuladas aos motivos, mas orientadas por objetivos intermediários [...]‖ (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004[1997], p. 73). Tomando novamente Figueiredo (2005, p. 36), as ações de linguagem são interpretadas pela autora como equivalentes a tipos de discurso, uma vez que, assim como estes, no quadro teórico do ISD, compõem os textos, as ações de linguagem estruturariam as atividades de linguagem. Dando continuidade, a autora afirma que, assim como teríamos os tipos de discurso narração, relato, discurso teórico, discurso interativo estruturando livremente os textos pertencentes aos gêneros, teríamos também as ações de narrar, argumentar, relatar, expor compondo as atividades de linguagem. Por fim, Schneuwly e Dolz (2004[1997], p. 74) afirmam que toda ação de linguagem exige do sujeito uma série de capacidades construídas a partir de três níveis de operações: o sujeito, ao enunciar, precisa adaptar-se às características do contexto e do referente (capacidades de ação), mobilizar modelos discursivos (capacidades discursivas) e dominar as operações psicolinguísticas e as unidades linguísticas envolvidas na enunciação (capacidades linguístico-discursivas). Pensando em situações de ensino-aprendizagem escolar, Dolz e Schneuwly (2004[1996], p. 53) apontam que a escola deveria desenvolver nos alunos as capacidades de linguagem, a fim de levá-los ―a uma melhor mestria dos gêneros e das situações de comunicação que lhes correspondem‖. Em relação às capacidades de ação, (adaptação da produção escrita/oral às características do contexto e do referente por parte do agente), estas implicam a análise da situação da enunciação. Busca-se, assim, desenvolver nos alunos o entendimento de que, em uma produção de um texto ou em sua leitura, eles devem proceder a uma adaptação dos elementos da situação de enunciação a partir da análise do contexto físico, do papel social do produtor e do destinatário do texto, do lugar social e da finalidade da produção. Inclui-se também nessa dimensão a mobilização dos conteúdos a serem verbalizados. No que tange às capacidades discursivas (gestão discursiva do texto ou elaboração de sua infra-estrutura), os elementos envolvidos nessa elaboração 64 implicam a seleção de modelos discursivos (tipos de discurso34), por meio dos quais se fará a organização de um plano de texto adequado ao gênero (sequências textuais) além de envolver a escolha dos conteúdos (o que é dizível no gênero) que serão privilegiados na produção textual. A categoria de capacidades linguístico-discursivas (escolha das unidades linguísticas) mobiliza mecanismos de textualização de forma a garantir a coesão e a conexão no nível linguístico propriamente dito (elementos gramaticais, lexicais e organização sintática (período, oração/enunciado) como organizadores textuais, advérbios, modalizações, anafóricos, tempos verbais, gerenciamento de vozes etc.) (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1998]). Depreende-se assim que, nessa visão da equipe de Genebra, correlacionado ao uso dos gêneros está o domínio de algumas capacidades que habilitariam o agente produtor a mobilizar uma série de procedimentos nelas envolvidos, a fim de adquirir a mestria na produção escrita/oral de textos, além dos aspectos tipológicos e das finalidades da produção. Posto isto, eles articulam as capacidades globais envolvidas no domínio dos gêneros às tipologias, como critérios de aproximação: Quadro 02 - Proposta provisória de agrupamento de gêneros Aspectos tipológicos Capacidades de linguagem dominantes Narrar Mimeses da ação através da criação da intriga no domínio do verossímil Relatar Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo Argumentar Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição Expor Apresentação textual de diferentes formas dos saberes Descrever ações Regulação mútua de comportamentos (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 60-61). Schneuwly (2004 [1994], p. 36-37) aponta que as capacidades discursivas implicam em um tipo de relação instaurada pelo enunciador com a situação de produção do texto e a maneira como ele se relaciona com o mundo discursivo, que pode ser, no primeiro caso, implicado ou autônomo, e, no segundo, conjunto ou disjunto. A relação de implicação supõe uma interação em que os participantes, lugar e momento são definidos pela situação imediata. Numa relação autônoma, os elementos da situação são abstraídos e construídos num nível superior. A relação conjunta supõe o uso da linguagem para falar do mundo existente, no qual se age. Já a relação disjunta supõe uma representação do mundo discursivo, isto é, no qual não se está. Vemos assim a noção de tipos de discurso construída no quadro do ISD aproveitada por Schneuwly para pensar os gêneros em situação de ensino-aprendizagem. 34 65 Barbosa (2001, p. 147), notando tal opção, observa que ―parece haver uma solução de compromisso com propostas tipológicas, o que acaba por determinar que esse aspecto se constitua no principal critério assumido na elaboração do agrupamento, sendo os outros dois derivados desse‖. Assim, com base na categoria transversal argumentação e nas capacidades de linguagem globais envolvidas na ação de argumentar, vários gêneros provenientes das mais diversas esferas de comunicação são elencados. Dolz e Schneuwly (2004[1996]) justificam, em parte, tal opção pelo fato de os gêneros serem diversos e instáveis; daí o enfoque na progressão com base em categorias que forneçam condições mais estáveis de composição dos gêneros, o que serviria melhor aos intuitos de didatização e à progressão curricular, por possibilitar que aspectos de um tipo presente em um gênero possam ser transferidos para outro gênero que tenha, mais ou menos, afinidades de formas de composição35. Outro motivo que leva os autores genebrinos a privilegiar ou considerar grandemente os aspectos tipológicos é a sua crença em que não se pode romper radicalmente com a tradição do ensino de língua materna, que se funda, há muito tempo, em tipologias do tipo por eles apresentado. Esse motivo é justificado a partir da apresentação dos três critérios gerais também considerados para estruturar o agrupamento genérico os quais devem: 1.[corresponder] às grandes finalidades sociais legadas ao ensino, respondendo às necessidades de linguagem em expressão escrita e oral.; 2.[retomar], de modo flexível, certas distinções tipológicas que já figuram em numerosos manuais e guias curriculares; 3.[ser] relativamente homogêneos quanto às capacidades de linguagem dominantes implicadas na mestria dos gêneros agrupados (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 58-59). Quanto ao terceiro é último critério, cabem algumas considerações. Nas palavras dos autores: É interessante atentar para o fato de Dolz (cf. os textos cuja assinatura inicial vem com o nome de Dolz, (2004 [1996, 1997]) deixar entrever um posicionamento bem mais ligado e subordinado a uma perspectiva do ISD (BRONCKART) cujo enfoque volta-se para aspectos cognitivos como as capacidades de linguagem, do que Schneuwly que, apesar de se ligar também a essa teoria e servir-se de algumas de suas ideias, abre mais espaço para uma discussão discursiva com base em Bakhtin (2003[1952-1953]), (vide SCHNEUWLY, 2004[1994, 1997]). 35 66 A própria diversidade dos gêneros, seu número muito grande, sua impossibilidade de sistematização impedem-nos, pois, de tomá-los como unidade de base para pensarmos uma progressão. Não há eixo de continuidade que permitiria pensar a construção de capacidades, senão aquele de dominar cada vez melhor um gênero, e outro, e outro e, por meio deles, a arte de escrever em geral — o que constitui precisamente a 36 pedagogia do coroamento [...] (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 57). Machado (2005, p. 258), por sua vez, conclui que, nessa perspectiva ―‗ensinar gêneros‘ na verdade, não significa tomá-los como o objeto real de ensino e aprendizagem‖. Os gêneros constituir-se-iam em modelos das práticas sociais comunicativas em que as ações de linguagem se realizam. Por isso, o objeto real de ensino seriam tais ações que, uma vez dominadas, constituem as capacidades de linguagem. Pensando em nosso caso de pesquisa com enfoque no gênero artigo de opinião da esfera jornalística, ele é tomado principalmente para o desenvolvimento das capacidades de linguagem argumentativas e, dentre elas, para o desenvolvimento das capacidades de linguagem dominantes: sustentação, refutação e negociação de tomada de posição [ênfase nossa] (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 61). A proposta de agrupamento genérico da equipe de Didática de Genebra tem como pressuposto a disponibilização de instrumentos na construção de progressões curriculares que viabilizem o desenvolvimento das diferentes capacidades necessárias ao domínio dos gêneros agrupados de forma espiral37 (assegura a sequenciação e respeita o princípio pedagógico da diferenciação38) e complexa39 A pedagogia do coroamento é referida por Dolz e Schneuwly como uma forma tradicional de transpor e tratar os gêneros no espaço escolar, como na clássica sequenciação ―descrição/narração/dissertação‖, da qual tratamos na seção anterior. Nessa perspectiva, os gêneros são naturalizados, abstraídos da função comunicativa, tornando-se plenamente produtos escolares. A progressão é feita passo a passo, subjazendo a ela uma visão de que a linguagem representa o mundo e este apresenta objetos simples e complexos. O objetivo então seria desenvolver uma única capacidade representacional, ―a arte de escrever‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 55-56). 36 Nessa perspectiva de progressão (em espiral), o trabalho com determinadas capacidades globais implicadas no gênero, como exemplo os gêneros que envolvem a capacidade do argumentar e capacidades dominantes, deve ser feito desde as séries iniciais do ensino básico e não somente nas séries finais, como ainda acontece nas práticas escolares correntes. 37 Dolz e Schneuwly (2004[1996]) supõem que as capacidades de escritas dos alunos não se distribuem uniformemente nos diferentes agrupamentos. Para eles, alguns têm mais facilidade para narrar, outros para descrever, outros ainda para argumentar etc. Essa forma de progressão contemplaria as diferenças dos alunos. 38 A complexificação aconteceria numa progressão inter-séries, no sentido de que haja, ao mesmo tempo, um aumento da diversidade de gêneros trabalhados, como também ocorra, nas séries subsequentes, a retomada dos gêneros já ensinados nas séries anteriores desde que a abordagem seja feita em níveis mais complexos (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 62-64). 39 67 dos objetos (aumento quantitativo e qualitativo dos gêneros trabalhados), princípios norteadores de tal progressão. Nesse sentido, em um nível mais global, os agrupamentos focalizam as capacidades mais dominantes e comuns aos gêneros aí elencados. No encaminhamento curricular, as capacidades visadas são mais locais. Nessa linha de raciocínio, ―quanto mais precisa a definição das dimensões ensináveis de um gênero, mais ela facilitará a apropriação deste como instrumento e possibilitará o desenvolvimento de capacidades de linguagem diversas que a ele estão associadas‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1997], p. 89). Tal definição supõe outro nível de concretização, o da elaboração de modelo ou a modelização didática condizente com a proposta de agrupamento. A modelização didática compreende o processo de confrontar as características de constituição e funcionamento (descritas por teóricos e especialistas no domínio em questão) do gênero que se pretende focalizar em uma proposta de ensino com as capacidades reais e potenciais (ZPD), para esse gênero, dos alunos que serão envolvidos em tal proposta. Cruzando esses dois dados, procede-se à seleção das propriedades do gênero que serão contempladas na proposta tendo em vista as necessidades de ensino e as possibilidades de aprendizagem dos alunos focalizados, construindo, assim, a modelização didática do gênero. Tal modelização apontará os elementos ensináveis em uma situação de comunicação específica e fundamentará a elaboração de projetos de ensino neste gênero específico — as sequências didáticas — sobre as quais nos deteremos mais adiante, neste capítulo (DOLZ; SCHNNEUWLY; DE PIETRO, 2004[1998]). Pensando em um aspecto do nosso objeto de pesquisa, qual seja a análise de um material didático em torno do artigo de opinião, vejamos, a título de observação, como estão organizados os objetivos de linguagem para o ciclo 7-8, no quadro de proposta de progressão para o agrupamento de gêneros da ordem do ―argumentar‖ (DOLZ; SCHENEUWLY, 2004[1996]). Nesta proposta, sugere-se o trabalho com o artigo de opinião. 68 Quadro 3 - Proposta de Progressão para agrupamento de gêneros "argumentar" (ciclo 7-8) CICLO EXEMPLOS DE GÊNEROS REPRESENTAÇÃO DO ESTRUTURAÇÃO DISCURSIVA DE TEXTOS QUE CONTEXTO SOCIAL DO TEXTO ESCOLHA DE UNIDADES LINGUÍSTICAS PODERIAM SER ESCOLHIDOS discernir as posições defendidas num texto escolher um plano de texto utilizar imprensa local: carta de leitor, carta aberta, artigo de opinião compreender as crenças utilizar verbos declarativos definir a tese e defender, apreciativos, depreciativos correspondência: carta de solicitação do receptor do texto para adaptar-se a elas distinguir entre argumento/não antecipar posições argumento e entre argumento contra/contra-argumento 7-8 ESCRITA alheias e atuar sobre elas adaptado ao gênero argumentativo trabalhado elaborar argumentos e agrupá-los analisar as características por tema ORAL contrárias diálogo argumentativo citar a palavra alheia deliberação informal distinguir lugares sociais e gêneros argumentativos prever diferentes tipos de argumento e hierarquizá-los em função da finalidade a atingir selecionar as palavras alheias que apóiam sua própria tese organizadores argumentativos marcando: refutação, concessão, oposição neutros, utilizar fórmulas introduzindo citações em função da orientação argumentativa reconhecer e utilizar diversos meios para exprimir dúvida, probabilidade, certeza (advérbios, verbos auxiliares, emprego dos tempos) utilizar organizadores enumerativos distinguir modalidades de enunciação: questões retóricas, fórmulas interrogativas; exclamativas organizar o texto em função da estratégia argumentativa (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 66) 68 69 Tomando o trecho do quadro em exemplo, podemos observar que nele estão contempladas as três capacidades apresentadas na proposta de agrupamento: capacidades de ação, capacidades discursivas e capacidades linguístico-discursivas que correspondem às colunas representação do contexto social, estruturação discursiva do texto e escolha de unidades linguísticas, respectivamente. À primeira vista, o contexto social (capacidades de ação) determinaria, em certa medida, a estruturação discursiva do texto e as escolhas léxico-gramaticais, isto é, os elementos enunciativos orientariam a escolha dos elementos discursivos e linguísticos. A nosso ver, seriam essas capacidades que estariam organizando tal proposta de progressão. No entanto, é interessante observarmos que o entendimento de discursivo, conforme a coluna ―Estruturação Discursiva do Texto‖, no quadro da página anterior, tem o sentido de organização ou composição textual em uma visão retórica. Para nós, esse é um ponto de distanciamento entre o trabalho didático genebrino e a teoria de linguagem do Círculo de Bakhtin, em que discursivo é entendido como processo de construção de sentidos dos textos/enunciados. Sendo assim, discursivo, na perspectiva dessa didática, não é o mesmo discursivo/discursividade em Bakhtin. Posto isso, a sequenciação, no encaminhamento proposto, está adequada à orientação de complexificação dada no agrupamento, supondo, no exemplo dado, a ênfase não só em movimentos de sustentação (presente em todos os ciclos), mas também em movimentos de refutação (contra-argumentação) (sugerido a partir do 56 ciclos) bem como os movimentos de negociação (a partir do 7-8 ciclos). Segundo Barbosa (2001): [...] sustentar uma opinião supõe a consideração de um ponto de vista – o próprio, que se quer assumir [...] refutar supõe pelo menos dois pontos de vista [um dominante] não coincidentes com o próprio [...] negociar supõe também levar em conta pelo menos duas posições a respeito de uma mesma questão controversa, mas agora de um modo mais complexo: há que se incorporar parte da opinião do outro e, ao mesmo tempo, minimizála, para dar destaque a sua própria (BARBOSA, 2001, p. 164-165). Assim, na sequenciação apresentada para o ciclo 7-8, na qual está inserido o artigo de opinião, supõe-se certa complexificação no que diz respeito ao nível de representação do contexto social, estabelecendo as capacidades de ―discernir as posições defendidas em um texto e delinear a situação polêmica subjacente (refutação), compreender as crenças alheias e atuar sobre elas (concessão), 70 antecipar posições contrárias (oposição)‖, tais capacidades exigiriam, por sua vez, a escolha de elementos linguísticos, como ―utilizar organizadores argumentativos marcando: refutação, concessão, oposição‖ (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1996], p. 66). Sendo o artigo de opinião um gênero eminentemente fundado na escrita, passemos a considerar as capacidades envolvidas nesse tipo de produção. 2.5 Gênero: letramento e capacidades de produção escrita Como dissemos na introdução deste trabalho, as mudanças de conjuntura sociopolítica ligadas às transformações tecnológicas da informação e da comunicação e ao processo da globalização conferem, em fins do século XX, a nossa educação novos desafios. Segundo Rojo (2009), nessa nova óptica, impõe-se ―dar conta das demandas da vida, da cidadania e do trabalho numa sociedade globalizada e de alta circulação de comunicação e informação, sem perda da ética plural e democrática [...]‖ (ROJO, 2009, p. 90). Tais transformações articuladas aos avanços teóricos e metodológicos levam à proposição de enfoques em práticas didáticas devidamente situadas. No que diz respeito às práticas de produção escrita, o seu domínio significativo passa a implicar a consideração dos contextos culturais e sóciohistóricos particulares de seu surgimento e uso. Essa perspectiva está inserida no campo de estudos comumente denominado estudos do letramento. Nesse âmbito nasce o conceito de letramento ideológico, que remete à existência de múltiplos letramentos ligados às esferas de atividade numa dada sociedade: a igreja, a família, a escola, os sindicatos, o jornalismo, o rádio e, mais recentemente, a televisão e, de forma mais intensa, a Internet40. Tal conceito surge em contraposição ao conceito de alfabetização strictu sensu e ao de letramento autônomo41. Nessa perspectiva, passam a ser considerados: 1. Os elementos relativos à textualidade e ao contexto imediato de produção de texto, para além da consideração sobre aspectos relativos ao sistema de escrita; 2. A valorização de práticas de contato com a escrita em situações de uso, escolares e não escolares; 3. A consideração das relações entre escrita e cultura(s); 4. O incremento da discussão sobre as relações entre oralidade e escrita e a afirmação da necessidade de busca de soluções de continuidade no processo de construção de ambas (BARBOSA, 2001, p. 71). 40 O termo letramento é dividido em duas grandes concepções – o letramento autônomo e o letramento ideológico – identificados por Street (1984). Alguns pesquisadores brasileiros, entre eles Kleiman (1995), Soares (1998), Rojo (2001, 2004), apontam ser o modelo autônomo reproduzido sem grandes mudanças desde o século XX na nossa sociedade e nas práticas escolares e que essa visão de letramento pressupõe a escrita um fenômeno invariável independente do contexto 41 71 Barbosa (2001) assinala que, apesar dos avanços que tal conceito traz às práticas de escrita, o mesmo ainda encerra certa imprecisão ou, melhor, generalidade, necessitando, assim, de melhor especificação, pois, ainda que se fale em letramentos múltiplos, no que diz respeito à escritura, não se pode ensinar linguagem escrita regida por uma espécie de contexto de produção geral e irrestrito. Por isso, o ensino deve focalizar as diferentes formas de dizer, determinadas por diferentes situações comunicativas, ―pois todas as formas ligadas à escrita [...] como toda interação semiótica verbal, materializam-se através de uma forma genérica‖ (BARBOSA, 2001, p. 77). É nesse contexto de discussões e problematizações que surgem propostas de ensino-aprendizagem de se focarem os aspectos inerentes à escrita ou ―dos eventos de letramento‖ no interior do trabalho com um gênero determinado, pois que o uso desses elementos está condicionado às características e às condições de produção das formas de dizer que os envolvem. Nesse sentido, Barbosa (2001) propõe o redimensionamento do conceito de letramento, articulando-o aos gêneros discursivos. Nesse redimensionamento, letramento passa a ser o processo de apropriação das formas genéricas, ligadas de uma forma ou de outra, à escrita: Ser letrado, nessa concepção, é dominar diferentes gêneros secundários. Portanto, nessa perspectiva, a escola não deve só se preocupar com a oferta de práticas de letramento, tomadas de forma geral, mas, antes e principalmente, deve criar situações para que os alunos possam se apropriar de gêneros secundários que circulam socialmente. [...] Mestre dos gêneros [...] é alguém que os domina e deles se serve para garantir a adequação e bom desempenho em diferentes situações comunicativas (BARBOSA, 2001, p. 80). Dando prosseguimento a essa forma de entendimento, Rojo (2009) ressalta que, além das capacidades de codificação correlatas às de decodificação, o processo de escrita significativo e situado envolve: normalizar o texto, usando os aspectos notacionais da escrita, que vão da ortografia padrão à separação de palavras e à pontuação adequadas; aos mecanismos de concordância nominal e verbal e de regência verbal etc.; comunicar, adequando o texto à situação de produção, a seus interlocutores-leitores, a seu suporte e veículo, de maneira a atingir suas finalidades; (diferente do oral), de funcionamento lógico e racional interno ao texto, intrinsecamente ligado ao desenvolvimento cognitivo ou progresso social, possuindo leis e qualidades próprias estendidas aos grupos que a possuem. 72 textualizar, organizando as informações e temas do texto de maneira progressiva (progressão temática) e atribuindo-lhe coerência (malha tópica, forma de composição do texto e coesão; intertextulizar, levando em conta outros textos e discursos sobre os mesmos temas, para com eles concordar, deles discordar, com eles dialogar (ROJO, 2009, p. 90). Schneuwly (2004[1994]), com base na categoria de gêneros secundários de Bakhtin (2003[1952-53]) associada aos conceitos científicos — domínio cultural da produção sistematizada que se situam na zona das funções psíquicas superiores —, de que fala Vygotsky, refletirá sobre as implicações do emprego dos gêneros secundários, pelas suas particularidades complexas de constituição e funcionamento, base para as relações formais especialmente mediadas pela escrita, como favorecedores do desenvolvimento da linguagem em situações de ensinoaprendizagem escolar. A reflexão do didático genebrino sustenta-se no reconhecimento de que o uso dos gêneros secundários pressupõe certa relação de autonomia com a situação de produção imediata, necessitando, assim, de novos instrumentos de mediação, os quais seriam de ordem enunciativa, cognitiva e textual — elementos esses transversais ao gênero (cf. a subseção em que tratamos do agrupamento dos gêneros proposto pela Escola de Didática de Genebra). A apropriação do gênero, ao pressupor o domínio desses elementos, primeiro em nível local, depois generalizados para outras situações, provocaria uma revolução no sistema de produção da linguagem do aluno aprendiz. Assim, relacionando o uso dos gêneros secundários às circunstâncias de comunicação escrita, podemos considerar que as capacidades requeridas pela produção escrita estão correlacionadas àquelas requeridas ao domínio e mestria dos gêneros secundários uma vez que é a base destes. Com base nessa relação entre uso dos gêneros secundários e domínio das capacidades de linguagem nele envolvidas, os didáticos genebrinos elaboram uma proposta didática para subsidiar situações de ensino-aprendizagem voltadas, em grande medida, para a formação do produtor proficiente de textos escritos ou orais. Grande parte das propostas e encaminhamentos didáticos dos didáticos de Genebra privilegia a formação do produtor proficiente. Consideramos que isso ocorra em virtude do contexto escolar para o qual essa proposta didática foi 73 inicialmente pensada — os objetivos da educação escolar de Genebra. Tal proposta, no contexto brasileiro, necessitaria de certas adaptações, inclusive de enfoque, tendo em vista serem as necessidades e objetivos da educação brasileira diferentes da genebrina. Num contexto social em que um número bastante considerável da população adulta ainda é iletrado ou possui baixo grau de letramento, grau esse também observado nos estudantes dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, reafirmado pelas avaliações institucionais como a Prova Brasil, Saeb e o Enem, e internacionais como o Pisa, as necessidades dos alunos brasileiros são bem mais de práticas leitoras que lhes garantam a formação crítica para o exercício participativo da cidadania, o que pressupõe, entre outras capacidades, a de compreender ativamente os textos lidos num processo construção e reconstrução de sentidos destes textos, conforme apontam Jurado (2003), e Rojo e Batista (2003). Por tais considerações, acreditamos que, embora também não possamos menosprezar a prática de produção textual em favor de práticas leitoras, não deve haver o privilégio de uma sobre a outra, porque, para os objetivos da educação brasileira, especificamente para o ensino-aprendizagem de língua materna, tais práticas devem estar articuladas. Sendo assim, a formação do produtor eficiente (precisamente do autor crítico), no âmbito do gênero, o que pressupõe a compreensão das propriedades desses objetos e dos mecanismos de produção de sentidos, auxilia o leitor, nas práticas de leitura, na reconstrução dos sentidos dos textos alheios. O leitor crítico, por sua vez, contribui com o autor na medida em que lhe permite compreender ativamente os textos alheios e estabelecer com eles um diálogo crítico em seu próprio texto. Sabendo da influência dos didáticos de Genebra não só nos documentos oficiais, especificamente os PCN (BRASIL, 1998), na orientação dos novos paradigmas para o ensino da escrita em língua portuguesa, mas também na organização teórico-metodológica do nosso objeto de pesquisa — o programa OLPEF — apresentaremos, na próxima seção, o caminho ou como os autores organizam os gêneros para a compreensão escrita/oral dos alunos. 74 2.6 Sequências didáticas: novos modos de fazer As mudanças que vimos no ensino, além de alcançar sua organização e seus princípios, atingem também a maneira de organizar seus objetos em um sentido de se ter maior flexibilidade e diversidade dos tipos e formas de materiais didáticos. Um novo objeto que responda a novas finalidades exige, assim, novos procedimentos. Nesse contexto, o uso do livro didático (doravante LD), que assumiu o lugar central nas práticas escolares a partir dos anos 60 e 70, assume uma posição incômoda. Isso porque os LDs, de guias referenciais, passaram, com o tempo, a definir objetivos, conteúdos, progressão (ou sua omissão), metodologia, avaliação, enfim, o currículo escolar, de certa forma, resultado da proletarização do professor (BATISTA, 2004). O aligeiramento da formação em nível superior (ou sua ausência total), no contexto das décadas de 60 e 70, cria as condições para que o livro didático e sua forma de organização passem de material de apoio à de orientador e estruturador da aula, tomando, assim, o lugar do professor. A organização deste tipo de material (abordagem repetitiva e fechada de conteúdos) instaura um tratamento dos objetos de forma fragmentada, pouco adequada à situação de ensino-aprendizagem em que se busca a formação geral para o exercício autônomo da cidadania. No contexto desses novos objetivos e objetos, as sequências didáticas delineiam-se como uma alternativa possível às limitações impostas ao trabalho escolar pelo livro didático. Dolz et al. (2004[2001]) apresentam um modelo didático, denominado sequências didáticas, que tem sido bastante utilizado na organização de materiais didáticos no contexto do ensino brasileiro, a exemplo do programa OLPEF. Os autores apresentam esse procedimento didático como ―um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral/escrito, o qual tem por objetivo melhorar uma determinada prática de linguagem” (DOLZ et al., 2004[2001], p. 97). Quatro componentes sustentam a base desse modelo. Vejamos cada um a seguir: 1.Apresentação da situação: caracteriza a primeira etapa do conjunto de atividades. Nela, o aluno é colocado diante de uma situação de produção bem definida e exposto a um problema de comunicação que deverá 75 resolver com a produção de um gênero escrito/oral. Para isso, ele precisa conhecer as informações sobre o projeto coletivo de produção escrita ou oral: a adoção de gênero, locutor, interlocutor, suporte. Ainda nessa fase, os aprendizes deverão conhecer os conteúdos e selecionar quais vão trabalhar. Por exemplo, se o gênero for um artigo de opinião, os alunos devem compreender a questão colocada e os movimentos de argumentação implicados nos diferentes posicionamentos. Os autores sugerem a criação de um projeto de classe para tornar as atividades desenvolvidas nas sequências mais significativas e pertinentes, como no caso, produzir um artigo de opinião para publicação no jornal da escola, jornal local ou participação em um concurso de produção escrita. 2.Produção inicial: Essa fase caracteriza o primeiro lugar de aprendizagem da sequência. É o momento em que os alunos estabelecem o primeiro contato com o gênero enfocado. Para que os alunos consigam elaborar essa primeira produção, a fase anterior deve ter sido suficientemente definida e compreendida. A realização da produção inicial é condição sine qua non para o ensino, uma vez que, por ela, os alunos mostram a si mesmos e ao professor o que sabem sobre o gênero e, ao mesmo tempo, conscientizam-se dos problemas com os quais se defrontam. Essa produção funciona, assim, como reguladora da sequência didática. A partir dessa constatação, podem-se definir as capacidades que os alunos já dominam [o conhecimento real] e as que estão em potencialidade [conhecimento potencial]. Com essas informações, o professor, com base nas capacidades reais dos alunos, planeja as intervenções, de forma a contemplar os problemas encontrados na produção inicial, criando um espaço onde zonas de desenvolvimento proximais, condição para o aprendizado, possam ser ativadas. 3.Módulos: Nesta etapa, o gênero tem suas dimensões decompostas e a abordagem dos componentes que colocam problemas de comunicação para os alunos é feita passo a passo, a fim de facilitar sua apropriação. Trata-se de um procedimento didático-pedagógico tendo por finalidade específica levar os aprendizes ao domínio dessas dimensões. Ressalta- 76 se, porém, que no funcionamento do gênero elas são indissociáveis. Esses problemas com os quais os alunos se defrontam no ensinoaprendizagem do gênero são de níveis diferentes que funcionam, psicologicamente, simultaneamente. Os autores referem-se às capacidades de linguagem implicadas no domínio dos gêneros. Além disso, os alunos precisam resolver os problemas comunicativos aplicados a cada gênero específico. As capacidades requeridas no uso de cada gênero são: 1. Capacidades de representação da situação de comunicação [imagem do destinatário, posição social do locutor, e finalidade da produção]; 2. Capacidades de elaboração de conteúdos [busca de informações, tomada de notas, rascunho,]; 3. Capacidades de planejamento [saber adequar o conteúdo à forma composicional do gênero]; 4. Capacidades de realização do texto [escolhas léxicogramaticais na tessitura do texto]. 4.Produção final: Depois de trilhado o percurso dos módulos e feitas as intervenções devidas de acordo com os problemas ou limitações do aluno na prática de linguagem proposta e adequadas às suas capacidades, de certa forma, individuais, o professor solicita ao aluno uma produção final na qual ele pode mobilizar as noções e instrumentos apropriados separadamente durante a realização dos módulos. O modo como o grupo de Genebra propõe o trabalho com os conteúdos que visem à apropriação dos procedimentos e das capacidades implicados no domínio do gênero mostra-se didaticamente privilegiado. Começando pela situação de produção, o aluno é, desde o início, guiado por uma base de orientação, ou seja, por critérios bem definidos — os elementos da situação — dos quais o conhecimento e a compreensão constituem condição para o sucesso inicial e depois final de sua produção escrita/oral. Para Barbosa (2001), a perspectiva metodológica adotada no modelo didático da Escola de Genebra busca constituir numa abordagem construtivista de abordagem reflexiva. As orientações dadas para o desenvolvimento das etapas ou componentes da sequência supõem um caminho indutivo no percurso do qual o aluno é levado à manipulação, ao uso, à reflexão e à apropriação dos elementos que 77 compõem o gênero. Nessa perspectiva, o aluno vai do complexo (produção inicial) para o simples (decomposição das dimensões do objeto) e de volta para o complexo (produção final). Nesse movimento, dele são exigidas duas produções intercaladas por exercícios e atividades que contemplem uma a uma as particularidades do objeto. A autora acrescenta que tal abordagem contempla os critérios de progressão em espiral e de complexificação dos objetos em nível local. Delineia-se também, nessa proposta, um caminho para a avaliação formativa. A definição de critérios precisos dá ao professor os instrumentos para avaliar o que os alunos já sabem sobre o objeto e suas dificuldades para, a partir daí, fazer as intervenções necessárias e concernentes aos objetivos estabelecidos pelo projeto no desenvolvimento dos módulos. A organização da etapa de intervenção por módulos que contemplem separadamente as particularidades do objeto, as quais provocam problemas de comunicação para os alunos, possibilita a variação dos modos de trabalho, isto é, das atividades. Esse princípio pedagógico responde às exigências de diferenciações de ensino, e isso pode dar a cada aluno a possibilidade de apropriar-se dos procedimentos e instrumentos por diferentes caminhos, aumentando, assim, suas chances de aprender. Nesse sentido, as atividades podem problematizar as dificuldades dos alunos por meio de vários procedimentos: comparar, observar e analisar textos; elaborar sínteses e revisão; pesquisar, debater e reorganizar conteúdos, levantar hipóteses e generalizar relações, revisar textos, a partir dos quais os alunos podem apropriar-se das capacidades implicadas no domínio do gênero. Além disso, as atividades levam a reflexões sobre os objetos de ensino, construindo a respeito deles uma metalinguagem e regras que favorecem o controle do próprio comportamento linguístico. A metalinguagem e as regras construídas podem ser concretizadas em um documento do tipo síntese, glossário etc., e devem ser mobilizadas na produção final como instrumento de indicação de objetivos, regulação e controle do comportamento linguístico durante a revisão e a reescrita e avaliação do próprio conhecimento por parte do aluno. Esse documento pode servir também ao professor na realização da avaliação do tipo somativo da produção final do aprendiz. Assim, o aluno tem critérios definidos a seguir e o professor critérios definidos a avaliar no final da 78 intervenção. Tal estratégia dá um tom mais objetivo à avaliação, permitindo observar as aprendizagens efetuadas e possíveis retornos, em outras ocasiões, a aspectos mal assimilados. Para Barbosa (2001), esse procedimento didático possibilita um trabalho de imersão, de aprofundamento, não de visitação, dos conteúdos selecionados, enfoque este que pode romper com a fragmentação presente em procedimentos do tipo tradicional. A lógica é que, no final da intervenção, o aluno tenha se apropriado não apenas de um gênero específico, mas também da capacidade de hipotetizar sobre a situação de produção. Assim, uma vez apropriados esses procedimentos e capacidades, os alunos, quando confrontados com gêneros escritos/orais que eles ainda não dominam, serão capazes de levantar hipóteses a respeito das condições de sua produção, o que pode corroborar com um desempenho mais adequado. A autora enfatiza que seria uma espécie de relação simétrica entre a forma como se ensina (metodologia) e a forma como se espera que os alunos ajam quando se deparam com situações de produção/compreensão escrita/oral. Apresentado, em linhas gerais, o modelo didático da Escola da Genebra, base para a elaboração de várias propostas de sequências didáticas para o ensinoaprendizagem de língua materna, no contexto brasileiro, como é o caso dos Cadernos do Programa OLPEF, no próximo capítulo, apresentaremos nosso objeto de pesquisa, nossos objetivos, nossos dados e corpora, e os processos e procedimentos utilizados em nossa coleta e análise de dados, para, posteriormente adentrarmos, precisamente, na análise do nosso objeto. 79 CAPÍTULO 3 Metodologia de pesquisa: em busca dos dados Dissemos no capítulo 1 que nosso objetivo é investigar o tratamento discursivo que os textos/enunciados vêm recebendo nos processos de sua didatização e escolarização com vistas à sua compreensão e produção em propostas didáticas alternativas42 para o ensino-aprendizagem de língua materna. O material didático alternativo em enfoque, nesta investigação — o Caderno Pontos de Vista (PV) —, dentre os quatro Cadernos de produção textual disponíveis, faz parte da OLPEF e se detém sobre a didatização ou escolarização do artigo de opinião com vistas à sua compreensão e produção por parte de alunos das 2ª e 3ª séries do Ensino Médio das escolas públicas brasileiras. Nesta etapa, pretendemos apresentar os percursos por nós trilhados para coleta e análise de dados no processo desta pesquisa. Vamos iniciar apresentando nosso objeto, questões e objetivos de pesquisa, tomando por base as contribuições das teorias eleitas para nos subsidiar no processo de análise. Posteriormente, abordaremos a metodologia de coleta e análise de dados. 3.1 Perspectivas sócio-históricas nas Ciências Humanas: a teoria enunciativodiscursiva de Bakhtin Nossa pesquisa inscreve-se, principalmente, na teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin e, quando necessário, na teoria de ensino-aprendizagem de Vygotsky, Entendemos aqui por ―material didático alternativo‖ aquele que não é submetido à avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Esses materiais, geralmente, estão inseridos em projetos educacionais mais amplos e são frutos de parcerias público-privada, como é o caso do material focalizado nesta pesquisa. Esse tipo de colaboração ou parceria público-privada na educação surge num contexto político-econômico neoliberal que, para atender às demandas socioeconômicas de expansão da educação básica a todos com um mínimo de qualidade sem dispender o mesmo em termos de financiamentos, investir-se-á, através de reformas educacionais, em nova regulação pautada em estratégias de gestão e financiamento focadas em amplas políticas públicas educacionais que mobilizam a parceria com instituições de iniciativa privada além do apelo ao voluntarismo e ao comunitarismo. É em tal contexto que localizamos o programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF), uma parceria do MEC com a Fundação Itaú Social e a ONG de São Paulo Cenpec. Para a realização desse programa, no ano de 2008, houve um investimento de 16 milhões de reais, metade do montante arcado pelo Banco Itaú e metade pelo MEC. Sendo assim, há um investimento público nesses materiais de forma direta (repasses de recursos da educação) ou indireta (dedução em impostos, salário educação etc. das empresas ou corporações empresariais que financiam a elaboração dos materiais e a execução dos programas). 42 80 eleitas para nos auxiliar posteriormente na análise dos nossos dados. Ressaltamos que a fundamentação teórico-metodológica do programa OLPEF — a Escola Didática de Genebra — também emprega, de forma relida e revista, e articulados com outros conceitos de outras teorias, alguns referenciais conceituais desses autores. Segundo Amorim (2003), Bakhtin, em sua teoria enunciativo-discursiva de abordagem sócio-histórica, constitui a linguagem como o objeto privilegiado de suas reflexões. A autora acrescenta que a linguagem é, nessa teoria, pensada como acontecimento discursivo cujo nascimento dá-se nas relações entre diferentes valores e isso constitui a pedra angular da produção de sentidos. Sendo assim, podemos afirmar que a linguagem, enquanto acontecimento discursivo valorativo, é vista como um fenômeno concreto e histórico em constituição nas interações dialógicas entre sujeitos sociossituados. Vygotsky (2008[1935], p. 75) também dá especial atenção às interações sociais, entretanto, voltado para o desenvolvimento e aprendizagem da criança de forma geral e para o aprendizado escolar, de forma específica. Para explicar a relação do ensino-aprendizagem da criança com o contexto sócio-histórico a que está exposta, Vygotsky (2008[1935], p. 112) cria um conceito pedagogicamente rico e instrumentalmente poderoso, o qual denominou de Zona Proximal de Desenvolvimento (ZPD). Segundo o psicólogo russo, o processo de construção de conhecimento (mediado pela linguagem) aparece em dois níveis, o conhecimento real, quando a criança consegue lançar mão de estratégias para a resolução de problemas sozinha, e o conhecimento potencial (ZPD), quando a criança só soluciona problemas em colaboração com um par mais avançado. Assim, enquanto Vygotsky estava preocupado com os processos de construção de conhecimento e da formação das funções superiores, os quais passam pelo domínio da linguagem, em que o processo de ensino-aprendizagem escolar é extremamente importante, Bakhtin volta todo seu esforço em compreender como se dá o processo de construção de sentidos no/pelo uso da linguagem. Funcionando como engrenagem que move tal processo de construção valorativa está a atitude responsiva dos sujeitos nos contextos em que estão inseridos. De acordo com Amorim: 81 [...] o contexto será sempre uma arena onde diferentes valores se afrontam, engendrados nas diferentes posições sociais que ocupamos. O pensamento tornado ato é um pensamento valorado, um pensamento com entonação e que adquire, segundo a expressão de Bakhtin, ‗a luz do valor‘ (AMORIM, 2003, p. 19). Podemos perceber que o contexto possui papel fundamental na construção de sentidos, uma vez que é ele o palco de encontros de diferentes valores e sua mudança leva, em sua maioria, a mudanças desses valores e das implicações éticas envolvidas nas formas de produção da linguagem. É nesse sentido que podemos compreender a formulação de Bakhtin (2003[1952-1953]) de que a realidade da linguagem é o seu acontecimento vivo na forma de enunciados concretos vistos como elos de construção dos sentidos sociossituados, cuja compreensão pressupõe a consideração de suas condições determinadas de produção. Bakhtin (2003[1952-1953/1959-61]) concebe os enunciados concretos como radicalmente alteritários. Eles são réplicas ativas ou expressões de posições valorativas sempre procedendo de alguém e se endereçando a outros sujeitos também ativos, inseridos em determinados espaços sócio-históricos e ideológicos de sentidos, dos quais é esperada uma verdadeira compreensão ativa e criadora. A teoria da linguagem do Círculo de Bakhtin é considerada uma teoria dialógica, pois sua essência é o sentido que nasce da diferença, do confronto de vozes sociais travadas na interação verbal por sujeitos ativos. Nessa teoria, dialogismo e interação estão indissoluvelmente ligados e, juntos, constituem a base de produção discursiva/da linguagem, logo, dos sentidos. Todo evento de linguagem é a atualização de uma relação entre sujeitos históricos e sociais. Passando para o âmbito da pesquisa, na perspectiva de Bakhtin (2003[195961]), a especificidade das Ciências Humanas reside nos sentidos e significados dos outros, os quais são realizados e dados ao pesquisador apenas sob a forma de textos entendidos como enunciados concretos. O texto/enunciado concreto, enquanto acontecimento vivo, ―sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos‖ que expressam atitudes valorativas no contexto dialógico da própria época em termos de réplicas ativas aos outros. É nesse sentido que podemos compreender a afirmação do autor russo quanto ao objeto real das Ciências Humanas: 82 [...] é o homem social (inserido na sociedade), que fala e exprime a si mesmo por outros meios. Pode-se encontrar para ele e para a sua vida (o seu trabalho, a sua luta etc.) algum outro enfoque além daquele que passa pelos textos de signos criados ou a serem criados por ele? A ação física do homem deve ser interpretada como atitude mas não se pode interpretar a atitude fora da sua eventual (criada por nós) expressão semiótica (motivos, objetivos, estímulos, graus de assimilação, etc.) (BAKHTIN, 2003[1959-61], p. 319). Podemos, com base na citação acima, compreender o fazer do pesquisador em Ciências Humanas como um processo inserido no contexto emoldurador (interrogativo, questionador etc.) a ser criado pela pesquisa e inter-relacionado complexamente com o texto/o enunciado valorativo do outro (objeto de estudo e reflexão). Sendo assim, temos o encontro de dois textos, o texto objeto de estudo e o texto a ser criado, que responde ativamente ao objeto estudado. Com base em tais considerações, podemos afirmar que a alteridade também é constitutiva da produção de conhecimento no âmbito das Ciências Humanas, porque pressupõe sempre essa relação dialógica tensa em termos de reaçõesrespostas entre eu e outro, situados em lugares sociais não simétricos, produzindo valores diferentes. Amorim (2001) atribui à alteridade, na pesquisa, a dimensão de estranhamento, tida como condição de possibilidade do objeto a ser pesquisado. A autora (idem) observa que, no processo de construção de conhecimento, não basta reconhecer a diferença, mas é preciso o distanciamento: a interrogação, o questionamento, a recusa da evidência etc. Na base dessas reflexões de Amorim está um conceito bakhtiniano considerado o elemento-chave para a compreensão da atividade de pesquisa — a exotopia — que aponta para a não coincidência entre os horizontes dos sujeitos envolvidos no ato de conhecimento. Isso porque, segundo Bakhtin: [...] em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver [...] o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele (BAKHTIN, 2003[1979], p. 21). Bakhtin (2003[1979], p. 23) fala do excedente de visão pelo qual o pesquisador procura, primeiro, conhecer o outro do lugar deste para, numa etapa posterior, assumir um lugar exterior e dali tomar distanciamento do que o outro vê a partir do que lhe é possibilitado ver, a fim de completá-lo: 83 Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 23). Para Amorim (2003, p. 14), o conceito de exotopia pressupõe uma atitude de doação no sentido de que ―é dando ao sujeito um outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador dá aquilo que somente de sua posição, e portanto com seus valores, é possível enxergar‖. Assim, o processo de pesquisa, ainda que inserido em um contexto de conhecimento teórico humano possível, é um ato responsável cuja assinatura é dada do lugar singular que ocupa o pesquisador em um dado contexto ou momento sócio-histórico. Entendemos, assim, que a questão da alteridade constrói, em grande medida, o trabalho do pesquisador. Por isso, o trabalho de pesquisa em Ciências Humanas também envolve uma relação dialógica do pesquisador com seu pesquisado, na qual aquele assume o lugar do terceiro participante enquanto entendedor que busca uma compreensão ativa e criadora. E esta passa a integrar o processo dialógico que envolve o pesquisado. A noção de compreensão ativa e criadora de índole dialógica é pedra angular na teoria de linguagem bakhtiniana. Essa noção pressupõe necessariamente posicionamentos/réplicas valorativo-ideológicos que integram, juntamente com a vontade discursiva do autor, endereçada para o destinatário e para o objeto do seu querer dizer, o processo ininterrupto de constituição da discursividade, logo, dos sentidos. Acreditamos que a noção de compreensão ativa e criadora de índole dialógica e ideológica nos fornece subsídios pertinentes para investigar como a discursividade ou a produção de sentidos tem sido trabalhadas nos processos de didatização/escolarização dos gêneros discursivos/textuais em materiais didáticos voltados para o ensino-aprendizagem de língua portuguesa conclamado, no atual contexto brasileiro, como uma ferramenta extremamente importante em favor da formação cidadã de nossos alunos, conforme pontuam os documentos oficiais, como os PCN (BRASIL, 1997, 1998, 1999). 84 Em tal perspectiva, tomamos por objeto de pesquisa o tratamento discursivo dado ao gênero artigo de opinião numa proposta de didatização/escolarização contida em um material didático de um programa educacional recentemente institucionalizado, que se propõe a fomentar o ensino-aprendizagem de língua portuguesa em favor da formação cidadã, numa abordagem assumida na perspectiva dos gêneros textuais. Para compreender melhor tal objeto por nós delineado, elaboramos os seguintes questionamentos aos quais pretendemos responder no decorrer da pesquisa: 1. Como se organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do Caderno PV, da OLPEF, voltadas para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião? 2. De que forma as atividades propostas para a didatização do artigo de opinião no Caderno PV, da OLPEF, tratam a discursividade? Esses questionamentos têm por fim nortear as respostas para os seguintes objetivos: 1. Comparar entre a 1ª e 2ª edições a organização teórico-metodológica do material didático proposto para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião. 2. Analisar o tratamento discursivo dispensado na 1ª e 2ª edições do material ao processo de didatização do gênero artigo de opinião. Apresentados os percursos previamente estabelecidos, passamos à apresentação dos caminhos percorridos no processo de coleta de nossos dados de pesquisa. 85 3.2 Metodologia de coleta de dados Pretendemos, nesta seção, apresentar o percurso por nós realizado no processo de coleta de dados de nossa pesquisa. Dissemos, na seção anterior, que, para a fundamentação desta pesquisa, sustentar-nos-íamos em teorias de enfoque sócio-histórico, na perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin e de ensinoaprendizagem de Vygotsky. Já a natureza da pesquisa adotada no processo de coleta e seleção dos nossos dados é a investigação qualitativa numa abordagem dialógica. Tais procedimentos metodológicos são bastante adequados na pesquisa em Ciências Humanas a partir da perspectiva sócio-histórica, em que o objeto a ser pesquisado é o ser expressivo e falante, portanto temos relações entre sujeitos, possibilitadas pela linguagem. E o homem se expressa sempre através do texto concreto que requer uma compreensão. Segundo Freitas (2003), não existindo texto, não se pode ter objeto para investigação. Observa também que o texto só se realiza na fronteira entre duas consciências e isso constitui a particularidade dos estudos humanos de ser interrogativo, ser troca, diálogo, pensado em um sentido amplo em que se toma a relação do texto com seu contexto. Bodgan e Biklen (1994), situados em outra perspectiva teórica, vão afirmar que a fonte de dados da pesquisa qualitativa é o texto concreto no qual o acontecimento da pesquisa emerge e sobre o qual os pesquisadores qualitativos procuram uma compreensão através da descrição minuciosa complementada pela explicação do objeto pesquisado. Daí ―tentam analisar os dados em toda sua riqueza, respeitando, tanto quanto o possível, a forma em que estes foram registrados ou transcritos‖ (1994, p. 48). Partindo de tal entendimento, ―tudo pode constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão do nosso objeto de estudo‖ (idem, p. 49). A palavra escrita, na investigação de natureza qualitativa, assume um papel importante tanto na coleta dos dados quanto em sua análise. Ainda conforme Bodgan e Biklen: Ao recolher dados descritivos, os investigadores qualitativos abordam o mundo de forma minuciosa. [...] A abordagem da investigação qualitativa exige que o mundo seja examinado com a idéia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objecto de estudo. [Por 86 isso] A descrição funciona bem como método de recolha de dados, quando se pretende que nenhum detalhe escape ao escrutínio (BODGAN; BIKLEN, 1994, p. 49). Acreditamos que o aspecto de propiciar a coleta minuciosa e o tratamento descritivo dos textos concretos, estabelecendo com eles uma relação dialógica, é bastante pertinente para compreendermos a fundamentação teórico-metodológica e o tratamento dado à discursividade no processo de didatização do gênero artigo de opinião no material didático elaborado pelo programa OLPEF, dadas as características dinâmicas e complexas desse objeto de pesquisa, quando pensado no processo de eterno vir-a-ser ou acontecimento vivo da linguagem. Outra possibilidade dada pela pesquisa qualitativa é a seleção de fontes de dados de base documental. Tomamos como fonte documental para a seleção de nossos dados o material didático, o Caderno do Professor Ponto de Vista em sua 1ª e 2ª edições, elaborado pelo programa OLPEF. Neste caderno, estão presentes, ao mesmo tempo, informações teórico-metodológicas direcionadas ao professor — uma vez que também é um material utilizado para sua formação — bem como as atividades direcionadas para o trabalho didático-pedagógico de produção escrita e leitura com os alunos, para o ensino-aprendizagem de um gênero específico, no nosso caso, o gênero artigo de opinião. Podemos afirmar que nossa pesquisa fundada na investigação qualitativa, em que se tem como principal fonte de dados a base documental, dá-nos subsídios efetivos no processo de coleta para tratar nossos dados de forma minuciosa e descritiva, extraindo deste trabalho informações pertinentes para responder nossas questões e atingir nossos objetivos de pesquisa. 3.2.1 Critérios de escolha do Programa OLPEF e do Caderno do Professor “Pontos de Vista” 43 Nossa escolha do Programa OLPEF justifica-se por ser um projeto que, segundo organizadores, traz uma metodologia reformuladora e constitui estratégia de referência para a formação de professores na perspectiva do trabalho com os As informações sobre o Programa Olimpíada da Língua Portuguesa foram retiradas dos sites da Fundação Itaú Social: https://www.itau.com.br/itausocial; do site do MEC relacionado ao PDE: http://pdemec.grupotv1.com; do site Comunidade Virtual do Programa: http//:escrevendo.cenpec.org.br., como também da revista na Ponta do Lápis e do Caderno do Professor, acessados no período de março a 2009 a março de 2010. 43 87 gêneros textuais. Além disso, por se tratar também de um Programa recentemente institucionalizado, que tem diferentes agentes atuando em sua execução, a saber: MEC, uma fundação de um banco privado, a Fundação Itaú, e a responsabilidade técnica de uma ONG, o Cenpec. Dissemos em outra ocasião nesta pesquisa que o foco do programa OLPEF é a formação do professor em serviço para o desenvolvimento de práticas de escrita (muitas das atividades do Caderno PV constituem-se em práticas de leitura, mas todas estão a serviço da produção escrita), nas escolas públicas brasileiras, em uma perspectiva que afirma tomar os gêneros textuais como objetos de ensino. O programa foco desta pesquisa inicia-se como Programa Escrevendo o Futuro, uma parceria entre a Fundação Itaú Social44 e o Cenpec. Até 2007, ano de sua última edição, ele atingiu mais de 3,5 milhões de alunos. Seis anos depois, em 2008, após a assinatura do protocolo de intenções entre a Fundação, o Cenpec e o MEC, o programa foi reorganizado sob o nome de ―Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro”. No ano de 2008, em sua nova fase, o Programa ampliou seu raio de atuação, recebendo 202.280 inscrições de professores, que desenvolveram o concurso de produção textual com 6 milhões de estudantes, distribuídos em 5.445 cidades brasileiras. Este número corresponde a 98% dos municípios. Já em 2010, o número de inscrição de professores subiu para 239.458, envolvendo 7,2 milhões de alunos, situados em 5.488 municípios espalhados por todo o Brasil. Para o artigo de opinião houve 51.889 professores inscritos. Para a execução de suas ações, o Programa estabeleceu algumas linhas de atuação. Inicialmente, o ponto de partida era o roteiro de sequência didática proposto no Caderno do Professor, na forma de oficinas, para o trabalho com três gêneros específicos na edição de 2008, e para o ano de 2010, quatro gêneros. O conjunto de cadernos é dividido atualmente em quatro categorias: poesias, memórias, artigo de opinião e crônicas. Como política pública de educação de abrangência nacional, além da estratégia de um concurso de produção textual e do fornecimento de material Sobre a Fundação Itaú Social, cabe dizer que essa instituição foi criada em 2000 pelo Banco Itaú, com o objetivo específico de estruturar e implementar os investimentos sociais da empresa, tendo como foco programas de melhoria das políticas públicas de educação. A Instituição passa a atuar na área de produção de leitura e de escrita a partir da criação do Programa Escrevendo o Futuro, em 2002, em cooperação técnica com o Cenpec. 44 88 didático específico para a realização das atividades em sala de aula, o Programa ampliou suas linhas de atuação, lançando mão de formas alternativas de alcançar em grande escala o professor de língua portuguesa. Segundo Madi (201045), tal estratégia surge porque se foi percebendo que com uma formação sustentada apenas por ações mobilizadas em um período que correspondia à realização do concurso corria-se o risco de que o professor, passado o concurso, esquecesse a metodologia apresentada pelo Programa e voltasse para sua rotina de trabalho anterior. O programa tinha de encontrar outros mecanismos que, além de atingir em grande escala, mantivessem a pauta de formação de trabalho na perspectiva dos gêneros textuais em dia para o professor. Assim, o Programa começou a publicar ―Na Ponta do Lápis‖, uma periódico com questões teóricas, entrevista com especialistas na área de pesquisa e ensinoaprendizagem de língua materna, relato de prática de professores, análise de textos de alunos tendo por objetivo primeiro alimentar esse processo de formação gradual e progressivamente46. Posteriormente nasceu a Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro, criada para promover o encontro entre os participantes do Programa em todo o Brasil, informar sobre novidades na área educacional, debater questões relacionadas ao ensino de língua, ler textos literários como também promover cursos de formação à distância, cujo enfoque é o ensino dos gêneros textuais contemplados nos Cadernos elaborados pelo referido Programa. Em 2009, o Programa passou a disseminar suas ações através de cursos de formação presencial, realizados por docentes de universidades públicas, endereçados aos técnicos de língua portuguesa das secretarias estaduais e municipais de educação, escolhidos para passar pelo processo de formação e, posteriormente, realizar o trabalho de multiplicação junto às escolas. Madi (2010) declara que hoje há uma rede de formação e um acervo que possibilita a atuação do Programa para trabalhar em escala, atingindo um número Sonia Madi é coordenadora pedagógica do programa, e essa declaração foi feita em entrevista publicada na Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro, do programa, no dia 18/02/2010. 45 Este fascículo tem uma tiragem média de 40 mil exemplares para um número de mais de 300 mil professores atualmente cadastrados no site da Comunidade Escrevendo o Futuro. Sendo assim, apesar de os organizadores afirmarem que, a partir da inscrição do professor no Programa, ele passa a receber essa revista periódica, sua tiragem impressa que é remetida para a residência dos professores cadastrados na Comunidade Virtual não atinge a todos os professores. Entretanto, os fascículos digitalizados, atualmente, são disponíveis para o professor no site da Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro. 46 89 cada vez maior de professores e alunos. Observa ainda que o objetivo por trás desses mecanismos de atuação de grande amplitude pública é contribuir para a concretização de um novo padrão de ensino-aprendizagem de leitura e de escrita e levar o professor a incorporar essa metodologia no trabalho de ensino de língua portuguesa na prática cotidiana de sala de aula. O funcionamento do Programa estrutura-se em duas fases: nos anos pares, acontece a realização do concurso de produção textual nas escolas públicas brasileiras e, nos anos ímpares, são realizadas atividades de formação do professor, de forma presencial para formadores de professores e online para formadores de professores e professores. Na execução inicial do programa, as ações de realização do concurso antecederam as ações de formação de professores. Assim, no ano de 2008, marco inicial de realização do concurso como Programa OLPEF, ocorreu a realização do concurso de produção textual e, posteriormente, no ano de 2009, ocorreram as ações de formação presencial dos formadores de professores e online para professores. A esses formadores de professores, técnicos das secretarias estaduais e municipais de educação, cabe o trabalho de multiplicação de formação com os professores das escolas. Como se vê, trata-se de um programa de ampla dimensão com várias frentes ou estratégias de atuação. Nesse processo, possuindo ferramentas tecnológicas e infra-estrutura de amplo alcance público, o Programa envolve e mobiliza segmentos públicos, privados e sociedade civil organizada (ONGs) na execução de suas ações, investindo nelas em torno de 16 milhões. É, assim, um Programa diferenciado em termos de amplitude e capacidade de entrada na escola pública brasileira, façanha não alcançada por outros programas da mesma categoria, além do montante de investimento recebido, cujas fontes são provenientes do público e do privado. Devido às várias frentes de atuação do Programa, para melhor compreendermos seu funcionamento e nos munirmos das condições necessárias para alcançar os objetivos por nós propostos no início da pesquisa, decidimos começar nossa coleta com três grandes conjuntos de dados, os quais julgamos serem as frentes principais de atuação do Programa e que poderiam nos fornecer os subsídios pertinentes para compreensão do nosso objeto de pesquisa: os materiais didáticos — o Caderno do Professor; os cursos de formação presencial e à distância; a aplicação do Caderno por parte de um professor. 90 Na ocasião em que delineamos o conjunto de dados alvo de nossa pesquisa, pretendíamos compreender o tratamento discursivo dado ao gênero no processo de sua didatização nos Cadernos da OLPEF e observar como o professor aplicava este material em sala de aula. Portanto, tínhamos dois grandes conjuntos de dados, inicialmente. Posteriormente, sabendo dos cursos de formação online e presencial, conjecturamos que, talvez, poderíamos encontrar dados interessantes para pensar nosso objeto de pesquisa. Tínhamos informações de que esses cursos funcionavam também como ferramentas para manter a pauta da formação na perspectiva dos gêneros em dia e subsidiar o professor na aplicação do Caderno em sala de aula, principalmente o curso de formação online ofertado na Comunidade Virtual do Programa. 3.2.2 O primeiro conjunto de dados: os Cadernos do Professor O primeiro conjunto de dados de nossa pesquisa constituiu-se dos materiais didáticos, denominados Cadernos do Professor, elaborados pelo programa OLPEF para a aplicação, por parte do professor, no ensino-aprendizagem de produção escrita do gênero didatizado em cada Caderno específico, os quais, no ano de 2008, estavam divididos da seguinte forma47: ―Poetas na escola‖, ―Se bem me lembro‖ e ―Pontos de Vista‖, no âmbito dos quais foram didatizados os gêneros poesias, memórias e artigo de opinião. Iniciamos a coleta desse primeiro conjunto de dados no início do primeiro semestre de 200948. Na ocasião, decidimos que faríamos um levantamento prévio desse material didático elaborado pelo Programa, a fim de verificarmos, devido aos limites da pesquisa, quais dos Cadernos disponíveis melhor atenderiam aos objetivos de nosso trabalho de pesquisa49. Para isso, realizamos uma leitura panorâmica a título de conhecimento abrangente dos materiais didáticos. O Caderno ―A ocasião faz o escritor‖ só foi introduzido para a realização do concurso no ano de 2010, por isso não passou por esta fase de coleta dos nossos dados. 47 Esses dados nos foram concedidos pela professora Dra. Simone Padilha, nossa orientadora, e também docente formadora do Programa no Estado de Mato Grosso. 48 Fizemos também a leitura atenta, mas não aprofundada, de todos os textos semifinalistas no Estado de Mato Grosso nas três categorias para o concurso realizado em 2008. A leitura desses textos tinha apenas como objetivo obter uma visão 49 91 Como nosso objetivo principal era analisar o tratamento discursivo realizado em materiais didáticos alternativos voltados para o ensino-aprendizagem da língua portuguesa, conjecturamos que o Caderno ―Pontos de Vista‖ — em que se focaliza o ensino-aprendizagem da produção escrita do artigo de opinião em favor da formação para a cidadania — nos fornecia melhores condições para chegar aos objetivos propostos no âmbito desta pesquisa, uma vez que o uso desse gênero pressupõe um sujeito altamente crítico, portanto, um gênero em que a discursividade se mostra bastante aflorada. Decidimos, assim, que o Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖, pela especificidade do gênero nele didatizado e pelos objetivos propostos, seria um dos dados da nossa pesquisa. Como esse Caderno passou, no ano de 2010, por uma reformulação, achamos por bem tomar as duas edições como dados de nossa pesquisa para procedermos a um trabalho de comparação do tratamento didático dispensado nas duas edições. Isso porque, de acordo com Madi (2010), houve mudança de ênfase no tratamento didático, pois, na edição de 2008, o enfoque estava na estrutural formal e, na edição de 2010, nos objetivos e função do gênero artigo de opinião. 3.2.3 O segundo conjunto de dados: os cursos de formação online e presencial O segundo conjunto de dados de nossa pesquisa constituiu-se dos cursos de formação de professores realizados na modalidade à distância (online) no site da Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro e na modalidade presencial, realizado na cidade de Cuiabá-MT. Esse conjunto de dados foi coletado no período de agosto a outubro de 2009. 3.2.3.1 Formação online e presencial: a coleta e a mudança de percursos A parte dos dados correspondente ao curso de formação presencial foi coletada em duas etapas. A primeira ocorreu nos dias 17, 18 e 19 de setembro de 2009, computando 20 horas. A segunda ocorreu nos dias 22, 23 e 24 de outubro do geral dos resultados alcançados no processo de aplicação em sala de aula das propostas de produção dos gêneros focalizados em cada Caderno do Professor, no ano de 2008. 92 mesmo ano, com o mesmo número de horas, totalizando 40 horas. O curso, cuja pauta é estabelecida pelos responsáveis técnicos do Programa, no caso, o Cenpec, foi ministrado na cidade de Cuiabá-MT por uma docente formadora da Universidade Federal de Mato Grosso. Os dados referentes ao curso de formação online50 foram coletados no período de 12 de agosto a 23 de setembro de 2009, totalizando 30 horas. Esse curso é endereçado aos técnicos formadores de professores das secretarias estaduais e municipais de educação e a todos os professores, coordenadores e diretores de escolas públicas brasileiras. Para realizar a coleta dos dados referente ao curso presencial, solicitamos junto à docente formadora e à coordenadora do Programa no Estado de Mato Grosso a participação no curso. A permissão nos foi concedida na condição de ―convidadas‖, uma vez que ele é endereçado aos professores técnicos formadores das secretarias estaduais e municipais de educação. Na coleta, enquanto participante, usamos o procedimento da observação, do registro escrito e da coleta dos materiais utilizados no processo de formação, como textos de leitura e outras atividades propostas no decorrer do curso. Em relação ao curso online, decidimos participar como professores-cursistas do curso ―Artigo de Opinião‖ 51 , uma vez que já havíamos optado pelo Caderno ―Pontos de Vista‖ como um dos dados da nossa pesquisa52. No percurso de coleta dos dados referentes ao curso presencial, descobrimos, por meio de conversas com representantes dos responsáveis técnicos do Programa que o curso, naquela ocorrência, não estava voltado necessariamente O espaço virtual do curso é organizado por menus, totalizando 07 (sete): Módulos, Datas, Blogs, Mural, Fascículo, Relatório e Ajuda. O menu Módulos subdivide-se nas seguintes áreas: Início, Motivação, Leitura, Reflexão e Tarefa. Esse menu é o eixo norteador do curso enquanto que os outros funcionam como apoio ou complemento ao mesmo. Sendo assim, na coleta dos dados, ele foi o foco de nossos interesses. 50 Na época da coleta, as opções de cursos disponíveis na Comunidade Virtual eram 01 turma de ―Poesias‖, 01 turma de ―Memórias‖ e 02 de ―Artigo de Opinião‖. 51 Sobre o curso de formação online, apesar de ele fornecer melhores condições para alcançar o professor em grande escala e direcionar melhor a formação para fundamentar o trabalho de aplicação do Caderno em sala de aula por parte do professor, não atinge a maioria dos professores por dificuldades várias, principalmente a de atuar em ambientes virtuais o que provoca o alto índice de desistência (algo em torno de 75%), levantado por nós em conversas informais com colegas cursistas e mediadoras do curso no espaço virtual da Comunidade, e, por experiência própria quando, posteriormente à coleta dos dados, atuamos como mediadoras neste curso. Além, é claro, da falta de tempo do professor que se sente sobrecarregado de trabalho e cansado das formações continuadas, conforme levantaram alguns formadores do Cefapro na ocasião de relato da formação que haviam realizado entre as etapas do curso presencial ofertado em Cuiabá. De uma turma inicial com uma média de 30 alunos, concluem, em média, de 10 a 08 alunos. 52 93 para o professor em sala de aula, mas para os professores formadores de professores, no caso de Mato Grosso, os formadores do Centro de Formação de Professores (Cefapro53). Soubemos também que o curso chegaria ao professor que estava na sala de aula tendo por base a metodologia da multiplicação que se organiza, no âmbito do Programa, da seguinte forma: um docente formador54 de uma universidade pública ministra o curso presencial em duas etapas intercaladas por um período de 20 a 30 dias para os formadores, no caso de Mato Grosso, do Cefapro. Esses formadores escolheriam um representante (professor ou coordenador, de preferência, professor de língua portuguesa) de cada escola integrante de seu polo para fazer a multiplicação. Na ocasião, diante de várias dificuldades apontadas por tais formadores em realizar a multiplicação, como falta de logística (dificuldades de os professores selecionados para receber a multiplicação se deslocarem de suas cidades até a cidade sede do polo do Cefapro, falta de apoio financeiro para arcar com as diárias destes professores), formação não prevista na pauta do Cefapro, o que levava a um processo de ―encaixar‖ tal multiplicação na agenda do órgão, algo tido por alguns de difícil mobilidade, além da falta de tempo habitual do professor sobrecarregado do trabalho cotidiano, supomos que tal multiplicação, provavelmente, não envolveria o professor da sala de aula de forma ampla e também não ocorreria no ano de 2009, logo antes o início da aplicação do Caderno, que ocorreria no início de 201055. Tentamos acompanhar a multiplicação para os professores das escolas através de e-mails e telefonemas mantidos com as formadoras do Cefapro da sede em Cuiabá, porque pretendíamos encontrar, nesta formação, o sujeito de nossa O Cefapro é um órgão ligado à Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC-MT) e tem como função manter e alimentar a formação continuada dos professores da rede estadual de ensino. Este órgão tem sede em Cuiabá e vários polos estratégicos distribuídos pelo interior do Estado. 53 Segundo responsáveis técnicos do Programa, o critério de escolha de tal docente é que ele estava envolvido com estudos dos gêneros textuais/discursivos e com formação de professores. 54 Observamos que alguns formadores do Cefapro de polos localizados no interior do Estado conseguiram se organizar e realizar a 1ª parte da multiplicação entre os intervalos da 1ª e 2ª etapas de formação do curso presencial e relataram, por escrito e oralmente, como ocorreu a formação, quantas horas utilizaram e quem foram seus sujeitos formativos (alguns escolheram professores, outros coordenadores, na ocasião alguns formadores reclamaram de que os professores, alguns, não receberam bem a formação, vendo-a como uma a mais para sobrecarregá-los). Depois de finalizadas as etapas do curso presencial, não tivemos mais condições de acompanhar esse processo; soubemos apenas em ocasião de apresentações em seminários que em alguns polos essa multiplicação foi realizada com o total de horas estabelecidas pelos organizadores da formação presencial, qual seja, 40 horas, divididas em duas etapas de 20 horas cada. 55 94 pesquisa. Tal multiplicação só ocorreu em maio de 2010 com duração de 04 horas. Soubemos disso em conversa com nosso próprio sujeito da pesquisa, e, posteriormente, em conversa por telefone com as próprias formadoras. O sujeito por nós selecionado para acompanhar a aplicação do Caderno nos contou que o enfoque da formação multiplicada fora a sequência didática e a apresentação geral do Programa. Tendo em vista que esses dados haviam entrado em nosso processo de coleta por conjecturarmos que eles poderiam fazer a diferença na hora de o professor realizar a aplicação do Caderno na sala de aula, diante dessas condições, primeiro, de a multiplicação ter sido feita de forma aligeirada e extremamente sintetizada e, segundo, de o professor não ter participado do curso online, decidimos não utilizar tais dados coletados antes do encontro com um dos sujeitos de nossa pesquisa: o professor. Assim, esses dados foram coletados, mas não serão utilizados no processo de nossa análise. 3.2.4 O terceiro conjunto de dados: a aplicação do Caderno A terceira e última etapa de coleta de nossos dados diz respeito à aplicação do Caderno ―Pontos de Vista‖ por parte de um professor da rede estadual de ensino na cidade de Várzea Grande-MT, o qual aplicou a proposta em uma turma da 2ª série do Ensino Médio. A coleta desses dados ocorreu de 10 de junho a 16 de agosto de 2010, com um intervalo de 20 dias correspondente ao período de férias dos professores e alunos. Esses dados foram coletados em oito dias distribuídos, com desconto dos dias de férias, em um período de um mês e meio em média. Como critério de escolha do professor que seria sujeito de nossa pesquisa, estabelecemos que ele devesse ter participado dos cursos de formação online e presencial na forma de multiplicação por parte dos técnicos formadores da Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (SEDUC-MT). No processo de procura do sujeito de nossa pesquisa, fomos percebendo que não seria fácil encontrá-lo56. Percorremos várias escolas no município de Várzea Grande, ligamos Na ocasião, nossa procura começou no fim do mês de abril e até fins de maio de 2010, percebemos que o trabalho de multiplicação do curso de formação presencial não havia ocorrido no polo de Cuiabá que atende a 120 escolas localizadas na região chamada ―Baixada Cuiabana‖ que compreende entre outros municípios a cidade de Cuiabá, Várzea Grande, Chapada dos Guimarães, Santo Antonio do Leverger, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Rosário Oeste. Em conversa com duas das técnicas responsáveis pelo trabalho de multiplicação, fomos informados de que elas ainda não haviam 56 95 em tantas outras e sempre os professores nos respondiam que não iam desenvolver as oficinas com seus alunos. Depois de muita procura, encontramos um professor57 que aceitou nosso acompanhamento durante a aplicação do Caderno ―Pontos de Vista‖ com uma turma de 2ª série do Ensino Médio, composta, em média, por 20 alunos. Este professor havia participado da multiplicação feita pelos técnicos formadores da SEDUC-MT. Ele também estava inscrito no curso de formação online, mas não compareceu no ambiente para realizar as atividades do curso. Ainda assim, devido às dificuldades em encontrar um professor dentro dos critérios estabelecidos por nós e até mesmo fora deles, decidimos manter nossas observações com o professor que aceitou ser observado. Utilizamos, nesta etapa, o procedimento de observação e registro escrito, além de gravarmos com uma câmera fotográfica pequena trechos das oficinas que julgávamos pertinentes para entender nosso objeto de pesquisa. No decorrer da observação, percebemos que, por mais que o professor tivesse boa vontade em desenvolver a proposta, tivesse lido todo o material conforme orientação do Programa, planejado as atividades e o tempo de sua realização, contasse com uma turma participativa e empenhada em aprender, a aplicação do Caderno ―Pontos de Vista‖ cada vez mais ficava comprometida. Tínhamos um material didático com quinze oficinas planejadas para serem executadas utilizando, em média, de duas a quatro aulas. Além das poucas aulas de língua portuguesa disponíveis para o Ensino Médio (3 por semana), o professor enfrentou férias coletivas (20 dias), feriados, festa escolar (festa junina para a qual os alunos eram dispensados para fazer ensaios), mal-estar do professor, empréstimo de aula por parte de outro professor, além de a Escola estar passando por uma reforma muito longa e que comprometia o encontrado um espaço na agenda para inserir a multiplicação. Tal formação ocorreu às pressas já em fins do mês de maio, totalizando quatro horas, e, conforme conversa com o professor sujeito de nossa pesquisa, as multiplicadoras restringiramse à apresentação da metodologia da sequência didática e dos Cadernos do Professor. O definido no final do curso de formação presencial voltado para os técnicos formadores da secretaria era que tal formação deveria computar a mesma carga horária recebida naquela ocasião de formação, ou seja, 40 horas. A Escola em que ocorreu a coleta está localizada no bairro Cristo Rei na cidade de Várzea Grande-MT. O professor que aceitou nosso acompanhamento tinha 08 anos de experiência em sala de aula, era a 2ª vez que participava do concurso, mas na categoria artigo de opinião era a primeira. O professor possui especialização na área de ensino-aprendizagem de língua portuguesa e graduou-se e pós-graduou-se numa universidade privada localizada na mesma cidade onde está localizada a Escola e onde também ele mora. 57 96 desenvolvimento efetivo das atividades, uma vez que os alunos estavam utilizando locais improvisados na quadra de esporte. Percebemos também que o professor tinha algumas dificuldades em entender a proposta, principalmente a parte teórica referente ao modelo de argumentação introduzido no Caderno da 2ª edição. Diante disso, tendia a trabalhar com o material utilizando a prática de produção de texto desenvolvida no seu trabalho cotidiano com o modelo de dissertação, incrementado-a com alguns elementos apresentados pela proposta, como a questão polêmica, bastante enfatizada no trabalho do professor, e a construção dos argumentos, em sua maioria, referentes à crença pessoal. Isso se deveu, em sua maioria, ao insucesso de outras atividades extraescolares realizadas pelos alunos, como leituras e pesquisas. O professor resumiu e juntou como pode as oficinas para que pudesse desenvolvê-las no tempo que dispunha. Muitas atividades tidas pela proposta como fases importantes para a produção escrita, como realização de debates, pesquisa de informações para ampliação de conhecimento e busca de outros argumentos, uso de outros elementos da argumentação, escrita coletiva, análise e revisão de textos no gênero artigo de opinião, reescrita do texto, foram descartadas por questão de tempo. No final da coleta, tínhamos sérias dúvidas se valeria a pena submeter os dados coletados à análise e se eles, coletados naquelas condições, nos dariam os subsídios necessários para compreensão de nosso objeto de pesquisa. Na ocasião não tomamos nenhuma decisão e fomos desenvolvendo a pesquisa. 3.2.5 Recortes dos três conjuntos de dados coletados Com os dados coletados e algumas decisões já tomadas, tínhamos que traçar um caminho pertinente para o tratamento do objeto por nós delineado, inserido no âmbito de nossos objetivos delineados e das possibilidades e limites de nossa pesquisa. Como dissemos anteriormente, os cursos de formação online e presencial, no fim do processo de coleta e após a coleta dos dados referentes à aplicação do Caderno, pareceram-nos desnecessários, uma vez que as condições de sua pertinência no âmbito de nossa pesquisa haviam sido perdidas: multiplicação 97 aligeirada e sintetizada58 ao extremo e não participação por parte do professor no curso online. Portanto, apesar de terem sido coletados, ambos não foram submetidos à análise. O processo de observação e coleta desses dados nos valeu pela experiência e pelo conhecimento que nos auxiliou posteriormente nas nossas reflexões sobre os fins, as possibilidades e limites do referido Programa. Tínhamos ainda mais dois conjuntos de dados: a aplicação do Caderno ―Pontos de Vista‖ e o Caderno propriamente dito. Em relação à aplicação, como se tratava de um estudo de caso, refletimos que as problemáticas encontradas no processo de coleta comprometeriam nosso objetivo, nesta etapa, qual seria, de analisar a aplicação que o professor faz deste material em sala de aula, uma vez que nem mesmo das condições de tempo necessárias para sua aplicação o mesmo dispôs. Da forma como a proposta foi aplicada não traria grandes contribuições ao nosso objeto focalizado nesta pesquisa, qual seja, o tratamento da discursividade no material didático Caderno ―Pontos de Vista‖. Sendo assim, optamos também por não utilizar esta parte de dados coletada. Tais dados nos serviram como alerta para as dificuldades de aplicação de uma proposta de ensino-aprendizagem de gêneros textuais/discursivos organizados numa perspectiva do modelo de didática da Escola de Genebra no contexto brasileiro. Nosso tempo escolar é bastante problemático, restrito, e nossas condições de trabalho e formação são bem diferentes do contexto genebrino, além de as necessidades de nossos alunos também serem bem diferentes. Sendo assim, considerando o tempo e o espaço restritos deste trabalho, decidimos tomar como dados para a nossa pesquisa e posteriormente, para nossa análise, apenas o material Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖. 3.3 Os corpora de nossa pesquisa Como os materiais por nós selecionados como dados de nossa pesquisa são os que mais facilmente chegam ao professor e se constituem ao mesmo tempo em material didático e material de formação do professor, passam a compor os corpora Acrescentamos ainda que o curso presencial constitui, em grande parte, mais em um evento de apresentação geral do Programa, suas linhas de atuação e do acervo disponível para subsidiar o professor na aplicação dos materiais didáticos elaborados para o trabalho de ensino-aprendizagem dos gêneros textuais. 58 98 de nossa pesquisa a base teórico-metodológica que fundamenta a proposta do Caderno ―Pontos de Vista‖ e as atividades didáticas contidas em suas unidades/oficinas para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião. Considerando ainda a reformulação desse material no ano de 2010, decidimos tomar como dados para análise as duas edições 2008 e 2010 do Caderno ―Pontos de Vista‖. Pretendemos, por meio dos corpora constituídos, ter construído as condições necessárias para o tratamento analítico do nosso objeto de forma a alcançar os objetivos por nós propostos. 3.4 Metodologia de análise de dados Como estávamos trabalhando com duas edições do Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖, precisávamos conhecer minuciosamente a organização desses materiais. Por isso, decidimos que procederíamos a uma análise extensiva do Caderno do Professor ―Pontos de Vista‖ nas edições de 2008 e 2010, pois, segundo o Cenpec, diferenciavam-se entre um tratamento didático do gênero voltado para sua forma estrutural, na 1ª edição (2008), e um tratamento mais funcional, na 2ª edição (2010), para selecionarmos sobre quais aspectos da base teóricometodológica e quais atividades da sequência didática no gênero artigo de opinião recairia no enfoque de nossa análise. Por acreditarmos que a base teórico-metodológica é determinante no tratamento didático dispensado aos objetos de ensino e que a adoção de uma ou outra perspectiva teórica dará determinados contornos e possibilitará o trabalho com determinados elementos, e não outros, do objeto focalizado, precisávamos conhecer a fundamentação teórico-metodológica da proposta, a fim de verificarmos se ela é e como é mobilizada no processo de didatização do gênero artigo de opinião e sua potencialidade no tratamento da discursividade. Para tal, decidimos que, primeiro, procederíamos a um levantamento geral da organização dos Cadernos de forma comparativa entre as duas edições e, segundo, envidaríamos um levantamento também comparativo focalizando a organização da sequência didática em si mesma. 99 No primeiro levantamento, desvelamos a estrutura geral de composição desses materiais59. Pudemos rastrear também, de forma geral, sobre quais aspectos recaíram as reformulações por que passou o Caderno ―Pontos de Vista‖. No levantamento da organização geral da proposta, observamos a ocorrência de reformulação na fundamentação teórica, que, na abordagem do gênero, na 1ª edição, oscilava entre perspectivas discursivas e textuais, passou, na 2ª edição, a procurar unificação em torno da perspectiva textual. Além disso, notamos também alguns deslocamentos espaciais dos elementos constituintes da organização geral, como a transposição do texto de apresentação para professor acerca da base teórico-metodológica assumida, que na 1ª edição, localiza-se em uma seção à parte e, na 2ª edição, na introdução e disseminada ao longo da sequência didática. Houve também um acréscimo do número de unidades/oficinas, na 2ª edição. Diante de tal descoberta, decidimos que procederíamos a uma análise extensiva da fundamentação teórica e metodológica do Caderno ―Pontos de Vista‖ em um procedimento comparativo entre as duas edições. Para selecionarmos as atividades didáticas sobre as quais recairia nossa análise, procedemos a um segundo levantamento sintetizado em um quadro comparativo entre as duas edições, agora focalizando a organização geral da sequência didática em torno do gênero artigo de opinião. Por ele, percebemos que o acréscimo de seções/oficinas, na 2ª edição, recaiu, principalmente, sobre os elementos que diziam respeito à estruturação da argumentação. Para confirmar tal resultado, decidimos proceder a um novo levantamento, utilizando outra estratégia de classificação. Decidimos classificar atividade por atividade. Para isso, tomamos emprestado e readaptamos às especificidades das atividades dos Cadernos uma ficha de avaliação elaborada por Padilha (2005), com base na Ficha de Avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Decidimos utilizar essa adaptação, e não a ficha do PNLD, por julgarmos mais adequada aos nossos objetivos. Tal organização é composta de uma seção de apresentação dos objetivos do programa OLPEF, uma seção de apresentação, justificativa e objetivos da proposta didática, da sequência didática no gênero artigo de opinião, dos critérios de avaliação, de um encarte, na 1ª edição, e 01 Coletânea, na 2ª edição, de textos modelares no gênero artigo de opinião, de 01 seção de apresentação da base teórico-metodológica que fundamenta a proposta. Percebemos também que o encarte era constituído por textos mais fabricados para servir à própria situação de produção do gênero nas condições da escola e a Coletânea era constituída de textos coletados na imprensa nacional e regional. 59 100 Procedemos ao levantamento e fizemos uma quantificação do número de atividades propostas em cada edição e da incidência dos aspectos prevalecentes no conjunto das atividades classificadas. Conforme mostraremos no capítulo 4 desta pesquisa, a maioria das atividades, principalmente as da 2ª edição, estava voltada para um tratamento da estrutura da argumentação e das formas de estruturação e composição do gênero artigo de opinião. Em segundo lugar, estavam as atividades voltadas para o tratamento objetivo-funcional desse gênero, sobrando pouco espaço ao tratamento da construção dos sentidos nas atividades classificadas. De posse dessas informações, decidimos proceder a uma análise qualitativa das atividades do Caderno ―Pontos de Vista‖, seguindo três formas de procedimentos. Quando se tratasse de atividades iguais em uma edição e outra, escolheríamos aleatoriamente a atividade contida em qualquer uma das edições. Quando se tratasse de atividades que haviam sofrido modificação, procederíamos a uma análise comparativa das atividades contidas nas duas edições. Por fim, quando se tratasse de atividade nova, analisaríamos apenas na 2ª edição. Tomando em consideração o objetivo da proposta didática de fornecer um material cuja organização gira em torno da didatização de um gênero altamente favorável à formação cidadã, estabeleceremos como categorias de análise o conceito de discursividade, a compreensão responsiva e criadora de índole dialógica e ideológica. 101 CAPÍTULO 4 Análise de dados 1: O quadro teórico organizador dos Cadernos “Pontos de Vista” da OLPEF Nosso objetivo, nesta etapa, é apresentar a organização e a base teóricometodológica do Caderno do Professor “Pontos de Vista” (PV), organizado em uma sequência didática do artigo de opinião, proposta pelo Programa OLPEF. Focalizamos, nesta análise, os Cadernos da edição do concurso de 2008 (GAGLIARDI; AMARAL) e de 2010 (RANGEL, GAGLIARDI; AMARAL). Altenfelder60 (2010) diz que a organização do Caderno do professor é feita de forma a atender uma demanda dos professores a respeito da integração entre teoria e prática, ausente na maior parte dos materiais didáticos que são ou muito teóricos ou muito distantes da prática. Assim, a orientação do Caderno visa a essa integração entre teoria e prática: apresenta a teoria e ensina, ao mesmo tempo, como fazer na prática por meio das atividades propostas organizadas em sequências didáticas, sendo essa forma de organização uma de suas apostas na diferenciação da proposta. Barbosa (2001), ao defender uma proposta de ensino-aprendizagem na perspectiva dos gêneros do discurso, salienta que tal trabalho supõe diferentes níveis de concretização, dentre eles, a escolha dos gêneros e dos seus aspectos que deverão ser privilegiados numa descrição e análise para a construção de programas de ensino e a elaboração ou utilização de material didático adequado ao mesmo. Parece que a escolha da sequência didática na OLPEF vem atender a essa proposta. A análise, nesta etapa, compõe um dos passos de nosso trabalho de pesquisa acerca deste programa e pretende buscar a resposta para a seguinte questão: Como se organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do Anna Helena Altenfelder foi formadora do Cenpec do ano de 2002 a 2008 e defendeu recentemente (agosto/2010) sua tese de doutorado tendo como título O papel da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro no processo de formação dos professores participantes, pela PUC/SP. Logo após a defesa, ela concedeu uma entrevista ao Cenpec para falar sobre os resultados obtidos (24/08/2010). 60 102 Caderno PV da OLPEF voltado para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião? 4.1 A base teórico-metodológica do Programa OLPEF A proposta de ensino-aprendizagem contida nos dois cadernos do fascículo Pontos de Vista da OLPEF está fortemente ancorada numa ferramenta didática, ultimamente, bastante utilizada por autores de materiais didáticos que buscam alternativas diferenciadas para o trabalho de ensino, cuja base são os gêneros. No percurso de conhecimento do Programa relatado no capítulo 3, percebemos que a sua proposta didático-pedagógica está bastante alinhada com a ―Escola de Genebra‖, cujos pesquisadores pertencem ao Departamento de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra (UNIGE). A teoria didática dessa Escola foi apresentada no capítulo 2, sendo retomada aqui em linhas gerais, a fim de situar o material analisado. Em linhas gerais, a Escola Didática de Genebra, a partir da releitura feita pelo ISD de Bronckart da teoria de gêneros de Bakhtin e da teoria de aprendizagem de Vygotsky, emprega-as, de forma reelaborada, em sua proposta didática para o ensino-aprendizagem de língua materna (francês). Fazendo uso da metáfora dos instrumentos psicológicos, de que fala Vygotsky em sua concepção interacionista social do desenvolvimento psicológico, Schneuwly (2004[1994]) vai explorar o gênero como um instrumento semiótico que possibilita a comunicação, o desenvolvimento das funções superiores dos alunos, aspectos fundamentais para a sua participação em diversas atividades de linguagem, como as discursivas. Os gêneros são vistos, precisamente, como mega-instrumentos complexos, no interior dos quais se organizam signos menores em níveis diferentes. Eles funcionam como mediadores semióticos que dão forma e possibilitam a materialização de uma atividade de linguagem ou ação discursiva numa situação particular entre sujeitos. Apesar de reconhecer que as práticas de linguagem (falar, escrever) pressupõem a apropriação dos gêneros, para esses autores, do ponto de vista didático-pedagógico, os gêneros não podem ser tornados objeto de ensinoaprendizagem porque se trata de entidades vagas e múltiplas, que não dão possibilidade de identificação com base em suas propriedades linguísticas, única 103 unidade empiricamente acessível. Essa justificativa é aproveitada do quadro teórico do ISD do qual os autores faziam parte no início de suas pesquisas. De acordo com Machado (2005), no âmbito dessa Escola, os gêneros são tomados como ―quadros da atividade social em que as ações de linguagem se realizam‖. Sendo assim, o objeto real de ensino/aprendizagem são as ações de linguagem que, dominadas, constituem as capacidades de linguagem. De acordo com Dolz e Schneuwly (2004[1996]), são requeridas, em toda e qualquer forma de comunicação, as capacidades de ação, as capacidades discursivas e as capacidades linguístico-discursivas. Com base no modelo didático elaborado, a Escola Didática de Genebra sugere um procedimento definido como ―um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito‖, denominado de sequência didática, que é composta por quatro componentes: apresentação da situação; produção inicial; módulos e produção final, constituindo uma unidade de trabalho escolar (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004[2001], p. 97). Tal encaminhamento didático está marcado na forma como os autores do Caderno PV do Programa OLPEF organizam o material didático em torno do gênero artigo de opinião. A forma como os autores do material ora analisado organizam o gênero e recortam suas dimensões a serem trabalhadas deixam entrever que seguem não só a ordem de proposição dos componentes que envolvem o instrumento sequência didática, mas também tomam os objetivos de ensinoaprendizagem de língua propostos pela Escola de Genebra, expressos na forma como escolhem e tratam os elementos a serem trabalhados nas atividades com vistas à construção das capacidades de linguagem envolvidas no artigo de opinião. Como dissemos anteriormente, a Equipe de Didática de Genebra emprega a noção de gênero discursivo de Bakhtin relida pelo ISD de Bronckart. Entretanto, tal releitura é ampliada para sua aplicação no ensino de língua materna. Por isso, conforme pontua Figueiredo (2005), ao mesmo tempo em que a proposta didática dos autores favorece um trabalho mais significativo de ensino-aprendizagem de língua materna, pois permite uma abordagem da língua em contextos de uso mais próximos da realidade, privilegia aspectos da ordem do texto e da enunciação em detrimento de questões discursivas que envolvem o contexto histórico mais amplo de produção. Assim, a abordagem de gênero que empregam é a textual. 104 Ainda segundo Figueiredo (idem), tal orientação vai estar marcada no encaminhamento dado às sequências didáticas que tomam o gênero como um modelo de famílias de textos com características semelhantes e o trabalham com base nas regularidades do conjunto, defendendo tal estratégia com base na validade didática, isto é, gêneros como objeto de ensino e não apenas como objetos de comunicação. Ressaltamos que tal encaminhamento não é sempre unívoco nos trabalhos da Equipe de Didática de Genebra. Chamamos a atenção, em nota anterior (cf. p. 73), que Dolz é sempre mais ligado ao ISD, enquanto Schneuwly tem buscado outras escolhas, entre elas, Bakthin. Já ao tomarmos a noção de gênero numa perspectiva bakhtiniana, visualizamos o gênero como objeto sócio-histórico que implica, na sua totalidade, a articulação intrínseca entre conteúdo, material e forma. Tecendo essa articulação está o sujeito-autor por meio de sua apreciação valorativa em direção ao conteúdo do gênero e em direção à resposta ativa de seus interlocutores, situado em um tempo-espaço único. Por isso, a ordem de relevância deve ser a discursividade, à qual estão subordinados os elementos linguísticos e composicionais, nisso está a designação gêneros do discurso61. Na próxima seção, apresentaremos a organização geral da proposta didática da OLPEF para o artigo de opinião. 4.2 Cadernos “Pontos de Vista” 2008-2010: comparando a organização geral No levantamento da organização geral da proposta, seguimos a ordem em que os elementos são apresentados pelos autores. Tomando por base a intenção do programa em organizar em um único material didático teoria e prática voltadas para o ensino-aprendizagem do gênero e, ao mesmo tempo, para a formação do professor, temos, na 1ª edição, do Caderno Pontos de Vista, a seguinte organização: apresentação da proposta e das finalidades do programa de forma bem sucinta assinada pelas instituições parceiras (MEC, Fundação Itaú e Cenpec); carta ao professor na qual a equipe da OLPEF informa a estratégia do programa (concurso Na academia, vide os trabalhos apresentados nos últimos eventos sobre a temática, como os do SIGET (Simpósio Internacional de Gêneros Textuais), não há um consenso a respeito de tal distinção entre gênero textual/discursivo. Há os que defendem sua distinção como Rojo (2005), Sobral (2006) numa perspectiva discursiva e Bronckart (1999), numa perspectiva textual, entre outros, há aqueles que optam por uma terminologia, mas não explicam sua opção: é o caso, no Brasil, de Marcuschi (2002), que utiliza a terminologia textual. 61 105 como pretexto para formação do professor para o trabalho com gêneros textuais via sequências didáticas). Na introdução, são apresentados os objetivos específicos da proposta didática (formação de autores de textos socialmente eficazes em favor da cidadania); segue-se a sequência didática propriamente dita no gênero artigo de opinião organizada com diferentes tipos de atividades sistematizadas na forma de oficinas, num total de doze62, que objetivam identificar as condições de produção de um artigo de opinião, o conteúdo temático desse gênero, como ele se estrutura textualmente e alguns de seus aspectos gramaticais, orientando ao mesmo tempo professores a como ensinar e alunos a como produzir um texto no gênero enfocado. Na parte final, as autoras apresentam os critérios de avaliação dos textos, considerando os aspectos enfatizados nas atividades da sequência 63. Além disso, fornecem um encarte com modelos de artigos de opinião, coletados na imprensa nacional. Por fim, as autoras apresentam a base teórico-metodológica que orienta a organização do Caderno, como concepção de língua, discurso e gênero e a sequência didática organizada para o artigo de opinião. Uma rápida olhada nas referências bibliográficas apresentadas nos apontou para o fato de que as autoras se comprometem tanto com abordagens mais discursivas com base em Bakhtin, (2003[1952-1953]), e seus comentadores, entre eles I. Machado, (1999); Rojo, (2000); Rodrigues, (2000); Kleiman, (2007), quanto com abordagens mais textuais dos gêneros, baseadas em Marcuschi (2002); Schneuwly (2004[1994]), Dolz e Schneuwly (2004[1996]). O Caderno da 2ª edição inicia-se com uma carta ao professor e apresentação da nova coleção de materiais incluindo, além dos fascículos, uma coletânea de textos nos gêneros focados pela OLPEF na forma impressa e digital (CD-ROM), prefácio escrito pelo professor Joaquim Dolz, que apresenta a metodologia da sequência didática, e a introdução com os objetivos do projeto de ensino do artigo Oficinas do fascículo Pontos de Vista, 1ª edição: 1. Artigo de opinião; 2. A notícia em debate; 3. Polêmica; 4. Por dentro do artigo; 5. Questão, posição e argumentos; 6. Sustentação de uma posição; 7. Como articular; 8. Vozes no artigo de opinião; 9. Pesquisar para escrever; 10. Assim fica melhor; 11. Produção de artigos e 12. Últimos retoques (GAGLIARDI; AMARAL, 2008). 62 Os critérios são os seguintes: 1. Pertinência ao tema proposto (1,0 ponto); 2. Presença de elementos do gênero ―artigo de opinião‖ (3,0 pontos); 3. Busca de informações sobre o tema (2,0) pontos; 4. Originalidade (1,0) e; 5. Aspectos gerais de gramática e ortografia (3,0). 63 106 de opinião. A proposta geral do programa, as estratégias da proposta didática e seus objetivos permanecem os mesmos da edição anterior. A sequência didática no gênero artigo de opinião está organizada em atividades divididas em quinze oficinas64, portanto, com acréscimo de três. Percebemos que as oficinas 01 e 02, situadas na parte que contempla as condições de produção do gênero, apresentam, ao mesmo tempo, atividades que estavam inclusas na oficina 01, na 1ª edição, e atividades novas com enfoque na ação de argumentação. A proposta de produção do primeiro texto individual, que na proposta da 1ª edição estava inserida na oficina 03, juntamente com atividades que visavam à identificação de questões polêmicas e o reconhecimento de bons argumentos, foi colocada, sozinha, na oficina 05. Percebemos, desde a introdução, certa preocupação em se apresentar o gênero a partir das regularidades do conjunto, a fim de fornecer um modelo didático mais estável do artigo de opinião. Tal preocupação é apresentada, de forma mais explícita, na oficina 07, em que os autores fornecem ao professor e, por extensão aos alunos (porque as informações teóricas são seguidas de atividades para sua aplicação), um modelo de estrutura da argumentação, proposto pelo filósofo inglês Stephen Toulmin, a fim de subsidiar as atividades de trabalho com a organização textual do gênero. Com base nos objetivos e elementos novos presentes nas oficinas, conjecturamos que a mudança entre uma e outra edição parece enfatizar o enfoque teórico sobre a argumentação, uma vez que tanto os novos elementos inseridos nas oficinas bem como a presença de novas oficinas estão voltados para um trabalho mais efetivo com as categorizações e estruturas da argumentação. Verificamos também algumas alterações nos critérios de avaliação, bem como na apreciação valorativa de cada um na forma como estabelece o valor de pontuação. A adequação ao tema proposto (em vez de 1,0 passa a valer 1,5). Os critérios de avaliação dos aspectos do gênero propriamente dito (divididos em três na edição anterior) passam a integrar um único critério ―adequação ao gênero‖ que abarca a adequação discursiva (2,5) e adequação linguística (2,5), o critério de Argumentar é preciso; 2. O poder da argumentação; 3. Informação versus opinião; 4. Questões polêmicas; 5. A polêmica no texto; 6. Por dentro do artigo; 7. O esquema argumentativo; 8. Questão, posição e argumentos; 9. Sustentação de uma tese; 10. Como articular; 11. Vozes presentes no artigo de opinião; 12. Pesquisar para escrever; 13. Aprendendo na prática; 14. Enfim, o artigo; 15. Revisão final. 64 107 originalidade é substituído pelas marcas de autoria (2,0), finalizando com o critério de respeito às convenções da escrita (1,5). Apesar de os autores anteciparem que os critérios estabelecidos dizem respeito à forma como os gêneros são descritos no fascículo e, portanto, entendido pelos autores e pela OLPEF, observamos que os descritores deixam entrever certa apreciação maior pelos aspectos linguísticos (4 descritores) do que pelos aspectos discursivos (3 descritores). Além disso, apesar de avaliar a escolha de recursos adequados ao leitor, não especificam quais seriam esses recursos. Outro aspecto que merece uma comparação com a edição anterior são as referências. Na 2ª edição, percebemos um movimento de unificação teórica, privilegiando a tendência textual. Percebemos que, apesar de aparecer uma referência de um capítulo da obra de Bakhtin, denominado ―O todo semântico da personagem‖, contido na complexa obra ―O autor e a personagem na atividade estética (2003[1924-1927]), as demais referências linguísticas são todas de vertentes textuais como Marcuschi (1983, 2001), Matêncio (s.d), Dolz e Schneuwly (2004[1994]), Dolz e Pasquier (2004[1994]), Dolz (2004), Nascimento (2009), Machado et all (2009) e retóricas como Toulmin (2001) e Breton (2005). Diante disso, não questionando o enfoque da proposta na textualidade, perguntaríamos quais aspectos da compreensão e produção em sala de aula esse enfoque ensejaria e quais seriam suas contribuições para o ensino-aprendizado da produção escrita com vistas à formação para a cidadania. Há de se pensar também que o gênero artigo de opinião é bastante produtivo no que diz respeito à questão da formação do leitor crítico/cidadão. Alguns desses aspectos podem ser antecipadamente cotejados na introdução da proposta do projeto didático dos autores na 1ª e 2ª edições. Verificamos que, à primeira vista, a proposta assume uma abordagem que enfoca a língua em contextos de uso mais próximos da realidade: Em nossa vida estamos sempre partilhando, conversando com as pessoas sobre os acontecimentos do cotidiano... Mas as opiniões não se restringem à fala — elas também podem ser dadas por escrito (GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 08). A mesma orientação é dada na 2ª edição: Desde a hora em que nos levantamos até a hora em que vamos dormir, essas e outras questões nos instigam, pois envolvem fatos socialmente 108 relevantes: a seca do Nordeste e a pobreza dela decorrente; o ―funil‖ do vestibular e a angústia que ele provoca no adolescente; o aumento da criminalidade entre menores [e aqui a causa está ausente] [...] (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 17). Ao buscar orientar a proposta mostrando a linguagem voltada para a vida e vice-versa, principalmente para seus problemas, os autores adotam uma abordagem em que o ensino-aprendizagem de língua materna pode tornar-se muito mais significativo, algo bastante positivo porque abre espaço para a consideração dos valores que entram no uso social da linguagem. Isso se marca, de certa forma, na justificativa que os autores apresentam de estabelecer como entrada no gênero a questão polêmica: [...] Afinal, entender o que está em jogo em cada caso, perceber ―quem é quem‖, certificar-se de interesses em disputa, estratégias em ação etc. são formas eficazes de se envolver nas questões que movem a vida em sociedade. Debatê-las, colaborando para a formulação coletiva de respostas, é parte da vida política cotidiana numa sociedade democrática [...] (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p.18). De acordo com a citação acima, podemos depreender que os autores pretendem apresentar uma abordagem dos usos da linguagem tomando em consideração os valores que nela circulam. Essa interpretação pode ser inicialmente embasada pela preocupação dos autores em inserir, ainda que de forma rápida, nas duas edições, o artigo de opinião em sua esfera de atividade específica. A 1ª edição apresenta o gênero artigo de opinião como um dos gêneros da esfera jornalística que gira em torno da argumentação, assim como o editorial e a carta do leitor. A forma como as autoras explicam a presença dos três gêneros jornalísticos fundados na argumentação dá a entender que a diferença entre um e outro se funda na marca de autor, ―pessoa de representatividade social, órgão de imprensa e leitor‖. Já na 2ª edição, os autores optam por apresentar sucintamente a forma de funcionamento da esfera jornalística, dividindo-a em duas grandes finalidades: Retratar a realidade e contribuir para a reflexão a seu respeito são, portanto, as duas intenções básicas do jornalismo. De forma geral, as matérias não assinadas, especialmente a notícia, procuram nos dar, na medida do possível, uma descrição objetiva e imparcial dos fatos que relatam. Já as matérias assinadas, como os editoriais, os artigos de opinião, as críticas, as resenhas, as grandes reportagens etc., se esforçam para analisar e discutir esses mesmos fatos (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 18). 109 Com base na citação acima, cabe a nós perguntar como os autores entendem o funcionamento da esfera jornalística. Se nossa interpretação proceder, teremos então que a atividade jornalística situa-se, por um lado, acima dos interesses e disputas em jogo nas questões sociais, adquirindo aí um papel isento de valor e eminentemente informativo do que acontece no nosso cotidiano e, por outro, possui um status de privilégio marcante, uma vez que, ao informar o público dos acontecimentos abre seu espaço para os formadores de opinião analisar, comentar, opinar sobre esses fatos, contribuindo para a reflexão e transformação a respeito da realidade retratada. Nessa perspectiva, a função dessa atividade é tomada de forma inquestionável, uma vez que apresenta o que é na realidade e não sua interpretação, além do fato de sua função não exercer qualquer influência nos gêneros ditos de opinião, como o artigo, tendo sua importância neste gênero apenas enquanto espaço de sua produção (suporte). Do nosso ponto de vista, trata-se de uma visão, de certa forma, bastante equivocada. Segundo Melo (1994), a ideia de neutralidade é uma imagem construída pelos segmentos da esfera jornalística tendo como fim o favorecimento de si próprios como a construção de credibilidade junto aos leitores e sociedade. Além disso, os valores e opiniões não existem apenas na forma de um ponto de vista declarado, eles se mostram na escolha de pautas, na disposição do material, das imagens, entre tantos outros. Portanto, acreditamos que a busca mais acurada do funcionamento da esfera de atividade jornalística pode favorecer melhor a reflexão crítica do aluno a respeito do que lê nesse âmbito e do que escreve para esse âmbito. Em suma, no material, o jornalismo é considerado uma atividade de interação humana sociocomunicativa, mas as ideologias que nela circulam são tomadas de forma naturalizadas. Essa forma de entender a atividade jornalística remete ao entendimento dos autores do que seja autoria. Por exemplo, as notícias são tidas como sem autoria, ―anônimas e neutras‖, enquanto o artigo de opinião possui autoria ―‗filtrada‘ pelo ponto de vista do articulista‖. Seu interlocutor é aquele leitor ―que se interessa por aquilo que pensa e por que pensa a respeito de determinado assunto‖ (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 18-19). 110 Depreendemos que, apesar de os autores da proposta didática afirmarem que a escrita do artigo de opinião é para aqueles reconhecidos pelos jornais e pelos seus leitores como detentores de um desempenho profissional ou especialidade que possa trazer uma contribuição própria e relevante para o debate, dão mais margens para que se entenda o ponto de vista do articulista como sendo propriamente pessoal, aspecto para o qual corrobora a assinatura e o pé biográfico do autor. Se os fatos chegam ao público ‗filtrados‘ pelo ponto de vista do articulista (autor do artigo), seria interessante que os autores considerassem que, por sua vez, esse ponto de vista passa também por, no mínimo, três filtros até chegar ao ponto de vista do autor. O primeiro filtro é da própria empresa jornalística que, diferentemente do que parecem entender os autores, não é neutra diante das questões sociais. Assim, o jornal, ao convidar um determinado articulista para escrever sobre determinado assunto, já está agindo valorativamente e filtrando o que e quem pode falar em sua página ―nobre‖. Rodrigues (2001) e Alves Filho (2006) observam que os artigos escritos por colaboradores tendem a passar cada vez mais por um processo rígido de seleção, ficando apenas o espaço discursivo da carta do leitor para a colaboração espontânea. Além disso, os artigos precisam passar pela avaliação do redator, que resguarda o direito de publicação ou não. Assim, o jornal posiciona-se como um autor interposto no artigo de opinião que, juntamente com o autor, assume a responsabilidade pela sua autoria: o primeiro, política e profissionalmente, o segundo, juridicamente. Portanto, não se trata de responsabilidade pertencente apenas ao articulista, como é apresentada na proposta. Alves Filho (2008) afirma que o artigo pode se prestar, de maneira difusa e implícita, para propagar as posições ideológicas do próprio jornal, uma vez que a instituição escolhe como articulistas justamente aquelas personalidades do horizonte social cujos valores vão ao encontro dos seus. O autor ainda afirma que o modo como a instituição jornalística promove (ou não) a inserção de articulistas representantes dos segmentos sociais é um forte indicador de suas posições socioideológicas e revela, mais ou menos, o grau de comprometimento dessa instituição com a participação social e as práticas democráticas. Rodrigues (2001) notou que, em relação ao lugar social de enunciação, há a presença de articulistas da esfera política, da indústria, do comércio, da 111 administração e, em menor escala, da esfera artística, da jurídica, da jornalística e da científico-acadêmica. Revela, ainda, que o articulista necessita ser visualizado como de destaque e notoriedade profissional e social em sua esfera de atuação. Nesse sentido, não basta ter destaque e notoriedade profissional, mas depende do lugar de sua inserção social. Com base no perfil sociopolítico dos articulistas dos grandes jornais apontado por Rodrigues, podemos afirmar que, se para alguns segmentos da elite essa abertura para vozes externas ao jornal constitui um gesto de democratização, para as classes desprivilegiadas torna-se uma forma de censura à expressão. Vimos, então, que, além de não ser para qualquer um a investidura da função de articulista, como reconhecem os autores da proposta, também não é de qualquer esfera de atuação que ele pode se posicionar. Assim, o articulista é um representante legitimado por sua esfera de atuação e não por sua vida privada e, justamente por isso, ele não fala diretamente em seu próprio nome, mas a partir do ponto de vista de sua esfera. É a construção dessa imagem de articulista competente, autorizado socialmente e midiologicamente que legitima seu ponto de vista, constituindo-se de antemão em um discurso autorizado. E nesse aspecto, um elemento verbal que contribui para a construção dessa imagem de competência é o pé-biográfico, o qual é considerado na fundamentação teórico-metodológica da proposta, mas sobre o qual não se tecem maiores comentários, afirmando apenas que contribui para revelar sua identidade. Nesse sentido, todo gênero do discurso pressupõe uma determinada configuração de autoria. É ela que orienta o autor na produção do seu discurso bem como os interlocutores na recepção do mesmo. Entretanto, essa autoria presumida pode ser mais ou menos reenquadrada pelo projeto discursivo do autor, pelo fundo aperceptivo que ele traz do interlocutor e de ambos sobre o objeto do discurso. A autoria presumida no gênero artigo de opinião se mostra bastante complexa uma vez que está ―atravessada‖ por diferentes instâncias enunciativas como a própria esfera jornalística e a de atuação do autor, o querer dizer desse autor, além do fundo aperceptivo do leitor. Sobre o destinatário do artigo, é interessante ressaltar que ele também não é qualquer um ou ―muitos‖. Rodrigues (2001) observou que os jornais de grande circulação nacional direcionam-se para os leitores, em sua maioria, das classes A e B. A autora ainda chama a atenção para uma descoberta, a qual precisaria ser 112 confirmada cientificamente, de que os jornais destinados para as classes C e, principalmente, D e E, não possuem artigos de opinião. Alves Filho (2008) observou, por sua vez, que em jornais de circulação regional verifica-se a presença de leitores da classe C devido à ausência das classes A e B, que preferem, para emitir suas opiniões, o espaço da entrevista televisiva. Assim, o articulista também não escreve para qualquer um, mas para aquele interlocutor/leitor sócio-historicamente privilegiado pela esfera jornalística e pelo gênero artigo de opinião. A autoria do artigo apresentada na proposta mostra-se bastante simplificada e restrita à situação de produção imediata, aspecto que pode limitar o potencial significativo do gênero artigo de opinião. Essa forma restrita de entendimento dos elementos da situação de produção do gênero não garante a unidade de que os autores precisam para a elaboração da proposta. Por isso, apesar de considerar o ponto de vista dos autores, socialmente legitimados pelo jornal e pelos leitores por sua ―representatividade social‖ (1ª ed.) ou sua ―contribuição própria relevante para o debate‖ (2ª ed.), direcionado para o objeto discursivizado, o que funda o gênero em si não é a autoria, mas aqueles elementos que se mostram mais estáveis, como o conteúdo temático, apresentado nos termos dos autores como questão polêmica: Sem as questões polêmicas de que já falamos, não existe opinião. Elas geram discussões porque há diferentes pontos de vista circulando sobre o assunto que as envolvem. Assim, o articulista, ao escrever, assume posição própria nesse debate, procurando justificá-lo. Afinal, argumentos bem fundamentados têm maior probabilidade de convencer os leitores (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 20). Numa perspectiva bakhtiniana, o conteúdo temático faz parte dos elementos relativamente estáveis do gênero e funciona como potencialidade para sua realização, concretizando-se apenas no agir valorativo do sujeito-autor endereçado para o objeto e para o ouvinte, em um aqui e agora únicos. Nesse sentido, a linguagem é sempre dialógica e, sendo assim, qualquer objeto do mundo interior ou exterior mostra-se sempre perpassado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações dos outros. Eles nos chegam desacreditados, contestados, avaliados, categorizados e iluminados pelo discurso alheio. Bakhtin (2003[1959-1961]) nos revela que essas relações dialógicas não podem ser interpretadas em termos simplificados e unilaterais, reduzidas a uma contradição, desacordo. As relações dialógicas são ricas em variedades e matizes. 113 Depreendemos disso que os sujeitos não se posicionam em suas relações com os outros apenas em polos opostos; seus posicionamentos podem variar de grau e amplitude a depender das situações sócio-históricas de produção do discurso e de sua inserção social em grupos determinados. Diante disso, podemos afirmar que esse caráter de réplica apreciativa é constitutivo de todos os enunciados/textos. No âmbito da teoria enunciativodiscursiva, conforme Rodrigues (2001) e Alves Filho (2008), a finalidade do artigo em si não nos dá elementos suficientes para diferenciá-lo nem dos outros enunciados que circulam socialmente nem de outros gêneros jornalísticos com a mesma orientação. Os autores apontam que é a autoria intrinsecamente ligada aos gêneros que nos possibilita discerni-lo enquanto uma manifestação verbal específica que está vinculada ao cronotopo de sua produção e às relações dialógicas nele estabelecidas. No âmbito da proposta didática ora em análise, o entendimento do objeto do artigo de opinião como uma temática controversa reduzida a dois polos divergentes pode facilitar a compreensão da interação no artigo de opinião na forma como desejam os autores, mas limita a compreensão das relações dialógicas que, se consideradas em sua variedade e matizes, poderiam contribuir de forma mais efetiva para a concretização da proposta em prol da formação cidadã. Essa forma de entendimento do objeto temático do gênero está ligada, em termos, à noção que os autores têm de argumentação como uma ação de linguagem que envolve sempre situações difíceis e violentas, como mostraremos mais à frente. Daí essa articulação entre questão polêmica, as ações de argumentação e a cidadania: Aprender a ler e a escrever esse gênero na escola contribui para desenvolver a capacidade de participar, com argumentos convincentes, das discussões sobre as questões do lugar onde se vive e, mais do que isso, de formar opinião sobre elas, colaborar para resolvê-las, praticar a cidadania (GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 09). Aprender a ler e a escrever esse gênero na escola favorece o desenvolvimento da prática de argumentar, ou seja, anima a buscar razões que sustentem uma opinião ou tese... escrever artigos de opinião pode ser um importante instrumento para a formação do cidadão (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 20). 114 Tomando por base a citação acima, podemos interpretar que o objetivo de formar o produtor de texto socialmente eficaz em favor da cidadania teria suas possibilidades, no ensino-aprendizado do artigo de opinião, através do domínio das capacidades de argumentação, como tomar posição e sustentar a opinião. Apesar da ênfase na categoria de ação de linguagem, os autores também abordam o artigo de opinião como uma resposta ativa inserida na corrente da comunicação verbal: Ao escrever seu artigo, o articulista toma determinado acontecimento, ou o que já foi dito a seu respeito, como objeto de crítica, de questionamento e até de concordância. Ele apresenta seu ponto de vista inserindo-o na história e no contexto do debate de que pretende participar. Por isso mesmo tende a incorporar ao seu discurso a fala dos participantes que já se pronunciaram a respeito do assunto, especialmente os mais marcantes (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 20) Observamos, pela citação acima, que tal consideração tende a tomar o artigo de opinião como um objeto sócio-histórico situado e endereçado. Por outro lado, no último trecho da citação, há uma tendência em restringir ou determinar, a priori, com quem o autor dialoga. Depreendemos que os autores, ao apresentarem o objetivo da proposta de ensino-aprendizagem do artigo de opinião, pretendem sustentar a proposta, ao mesmo tempo, em categorias de ações de linguagem e na discursividade, como mostra a citação acima. Cabe verificar como essas duas noções estão relacionadas e qual a profundidade de tratamento e a relevância que cada uma adquire na proposta. Em síntese, os objetivos da proposta didática não sofreram alterações de uma edição para a outra e a oscilação teórica presente na 1ª edição permanece na 2ª ainda na introdução, o que não se repete nas referências bibliográficas, por exemplo. Na próxima seção, buscaremos o embasamento teórico dos autores, a fim de melhor entender a organização do Caderno ―Pontos de Vista‖ e suas contribuições à prática didática de sala de aula tendo em vista a formação em favor da cidadania. 4.3 Caderno PV: comparando as propostas teóricas nas 1ª e 2ª edições Nesta seção, pretendemos apresentar as bases teóricas que fundamentam as propostas dos Cadernos na 1ª e 2ª edições a fim de melhor entendê-las. No Caderno da 1ª edição, as autoras reservam uma seção específica ―Para saber mais 115 ainda‖ a fim de apresentar a concepção teórica de linguagem e a metodologia utilizadas na proposta. Nessa seção, no tópico ―Língua, discurso e gênero‖, vejamos como as autoras apresentam a concepção de linguagem que orienta o material: Todos nós produzimos diversos textos que se dão em diferentes gêneros — orais ou escritos, formais ou informais. Cada situação exige o uso de uma forma particular de comunicação. [...] As finalidades são distintas, os interlocutores são diferentes e os meios de circulação do texto não são os mesmos. Muitos gêneros são aprendidos informalmente, nas relações sociais, com familiares ou amigos [...] Outros gêneros, porém, exigem aprendizagem sistematizada, como os textos literários, científicos e jornalísticos (GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 83). Uma primeira observação a fazer é que, apesar do tópico estar intitulado ―Língua, discurso e gênero‖, em nenhum momento do resumo há referência ao discurso de forma marcada. Observemos na primeira citação que, em vez de ―discurso‖ ou ―enunciado‖, as autoras empregam o termo ―texto‖ para se referir às diversas formas de comunicação que se dão em diferentes gêneros. Os termos ―texto‖ e ―gênero‖ aparecem sempre sozinhos. Bakhtin também não é citado formalmente no corpo do resumo, mas notamos o emprego de algumas de suas noções, como a consideração da flexibilidade do uso da linguagem de acordo com a situação de produção, circulação e recepção das formas de comunicação e a divisão dos gêneros em domínios culturais (gêneros informais e gêneros sistematizados), todos diluídos no tom de nota informal imprimido à apresentação da base teórica de linguagem. Podemos inferir dessas informações que a língua/linguagem para as autoras são as diversas formas textuais que utilizamos na comunicação com os outros (bilhete, pauta de reunião, conversa entre amigos, carta de leitor). Essas formas textuais constituir-se-iam em diferentes gêneros de acordo com as finalidades da atividade humana (relação familiar, relação de trabalho, relação entre amigos, relação com a imprensa). O uso da linguagem adquire caráter específico de acordo com as finalidades, os interlocutores e os meios em que circulam. Nesse sentido, o uso da linguagem implica as condições de produção, circulação e recepção, portanto, aspectos constitutivos da discursividade. Por outro lado, notamos que o contexto de constituição dos gêneros é considerado de forma restrita, isto é, o enfoque está 116 voltado para as finalidades sociais imediatas da comunicação (escrever um bilhete, preparar uma pauta de reunião, dar um telefonema, escrever uma carta de leitor), sem tocar nas razões ideológicas dos gêneros serem como são. No tópico ―O papel da escola‖, as autoras justificam a ação pedagógica da escola no que respeita ao ensino-aprendizagem de linguagem, percebemos que elas se comprometem mais com a perspectiva discursiva: A pessoa que fala, lê ou escreve está imersa numa história, numa cultura e em diferentes grupos sociais nos quais exerce papéis variados. Trata-se de um processo de construção de sentido que ocorre na relação entre os interlocutores e o contexto em que atuam. [...] Na sala de aula o texto, além de ser a materialização de práticas reais de linguagem, torna-se também objeto de ensino-aprendizagem. É importante acolher os conhecimentos que os alunos trazem, introduzir novos conteúdos e valores por meio de situações desafiadoras e fazer a mediação entre os discursos dos alunos — geralmente construídos em esferas cotidianas de interação, como a família e a vizinhança — e os discursos produzidos em outras esferas, como as da ciência, da política e da mídia (GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 84-85). Na primeira citação, notamos que as autoras buscam resgatar os aspectos históricos, culturais e sociais na constituição das práticas de linguagem, isto é, os gêneros, que seriam resultados do processo de construção de sentido entre autores e interlocutores em contextos determinados. Na segunda citação, o texto não é mais apresentado como a unidade das formas de comunicação, mas apenas sua materialização. Na última citação, as autoras adotam claramente o termo discurso em vez de texto, construído nas esferas de atividade humana (cotidianas e sistematizadas). Além disso, apesar de as autoras utilizarem o verbo ―introduzir‖ (a nosso ver, ―construir‖ seria mais adequado), os valores são colocados como objetivos de ensino-aprendizagem. Como se vê, há uma oscilação teórica de um tópico para outro. A primeira citação, inserida no tópico de apresentação da fundamentação metodológica, aponta também para a consideração da categoria de Zona Proximal de Desenvolvimento de Vygotsky nos processos de ensino-aprendizagem: ―[...] acolher os conhecimentos que os alunos trazem, introduzir novos conteúdos e valores por meio de situações desafiadoras e fazer a mediação entre os discursos dos alunos [...] e os discursos produzidos em outras esferas [...]‖ (GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 85). 117 Ainda nesse tópico, percebemos a presença de forma muito resumida e até mesmo incompleta de referências às justificativas que os autores da Escola de Genebra dão para escolher os critérios de classificação utilizados na organização dos gêneros a serem tomados em situação de ensino-aprendizagem escolar: ―A escola não tem condições de ensinar todos os gêneros existentes, nem pode prever todos aqueles que os alunos utilizarão em sua vida futura‖ (GAGLIARDI; AMARAL, 2008, p. 84). Em vez de, no trecho seguinte, as autoras explicarem tal afirmação, restringem-se a afirmar a importância do trabalho escolar na formação da autonomia dos alunos para aprender sozinhos os gêneros de que vão necessitar no futuro, tidos como ―saberes linguísticos‖ necessários para o exercício da cidadania. Subjacentes a essas afirmações sem explicações estão os critérios de classificação dos gêneros utilizados pela Escola de Genebra para organização desses objetos em situações de ensino-aprendizagem, fundados na validade didática, tendo em vista a progressão do ensino-aprendizagem. A presença das orientações dessa escola didática se faz sentir também no modo como as autoras propõem a transposição didática dos gêneros, que se funda na articulação de dois critérios: situações autênticas de comunicação e situações semelhantes às autênticas, nos termos dos representantes da Escola de Genebra, ―ficcionalizadas‖. As autoras apresentam, no final da seção, o instrumento de sequência didática, também fornecido pela Escola de Genebra, que constitui a principal ferramenta metodológica proposta pelo Programa. À sua apresentação, as autoras dedicam duas laudas e pouco explicando o conceito, a forma como é realizada e o que se mobiliza em cada etapa. As autoras dedicam um tópico para justificar a escolha do modelo didático fornecido pela Escola de Genebra e, em seguida, passam a apresentar como esse modelo é desdobrado na proposta didática do Caderno do Professor da OLPEF. A sequência didática do fascículo ―Pontos de Vista‖ organiza-se, assim como propõe o modelo genebrino, em torno de quatro componentes. O primeiro componente trabalha a apresentação do projeto de escrita e da situação de produção do gênero artigo de opinião. O segundo envolve a produção inicial de um texto no gênero artigo de opinião. Esta primeira escrita deve funcionar como elemento regulador do processo de ensino-aprendizagem organizado na sequência didática tanto para o aluno quanto para o professor. 118 O terceiro componente organiza-se em torno de módulos elaborados de acordo com os problemas apresentados na produção inicial dos alunos. Nesses módulos, o professor deve oferecer aos alunos instrumentos necessários para superar as dificuldades encontradas na primeira produção. Para isso, é preciso planejar várias atividades mobilizando diversos instrumentos: leitura de variados textos na forma do gênero estudado para ampliar o repertório dos alunos; escuta, leitura, escrita, reflexão sobre língua para conhecer as características específicas do gênero; pesquisa para ampliar o conhecimento do aluno sobre o assunto abordado; síntese das informações obtidas; produção coletiva, com base na síntese realizada, com o intuito de promover a interação e troca entre pares menos e mais avançados. O quarto componente envolve a produção final individual. Nesta produção individual, o aluno deve colocar em prática o que aprendeu no percurso da sequência didática. No que se refere a essa produção, o professor deve proceder a uma nova avaliação da aprendizagem. Espera-se, também, que o aluno seja capaz de avaliar sua própria aprendizagem no caminho percorrido uma vez que precisa reescrever seu texto, tendo por suporte um roteiro na forma de quadro-síntese produzido durante ou no fim da sequência. Por fim, decide-se o suporte no qual circulará a produção dos alunos. De acordo com a análise das informações que cercam a sequência didática, podemos afirmar que o discurso das autoras está afinado e articulado com o discurso da mudança, presente nos parâmetros referenciais (PCN), no caso, para o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, resultados dos apelos da academia — no contexto brasileiro e no de outros países — em prol de um ensino-aprendizagem de língua contextualizado e significativo. Entretanto, como já vimos antecipando, esse contexto social aí considerado não se expande; restringe-se a uma dimensão imediata e escolar de uso da linguagem. No Caderno da 2ª edição, não há uma seção específica para tratamento da teoria e da metodologia que embasam a proposta. Temos o prefácio de Joaquim Dolz no qual é apresentada a metodologia da sequência didática da Escola de Genebra e as demais considerações a respeito da linguagem são tecidas na Introdução, em que os autores procuram apresentar as condições de produção do artigo de opinião, como já dito anteriormente. Observamos que os autores, diferentemente da 1ª edição, preocupam-se em fornecer informações a respeito de teorias da argumentação de enfoque retórico, com ênfase em sua forma de 119 estruturação, a qual é diluída nas atividades que compõem a sequência na forma de quadros-síntese e boxe. A apreciação pela categoria de argumentação retórica, na 2ª edição, já está presente nas primeiras unidades do Caderno. Nelas, estão propostas atividades de reflexão sobre o papel da argumentação na resolução de conflitos e tomada de decisões coletivas. A estratégia utilizada pelos autores é a proposta de leitura de uma notícia cuja temática envolve a violência no contexto da escola pública motivada por preconceito. O foco da atividade é a discussão do fato específico, orientada por um roteiro de questões e respostas que pretende levar à conclusão de que o preconceito é uma forma de violência injustificável e que impede a construção de uma ética voltada para o bem comum, por isso deve ser combatido pela argumentação ―com vistas a estabelecer consensos sobre o que se deve e o que não se deve fazer‖ (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 29). Para subsidiar o professor nas atividades propostas a fim de que os alunos percebam o valor da argumentação, os autores oferecem na seção da unidade, quando propõem um debate entre os alunos para discutir o valor da argumentação na condução da vida pública de uma sociedade, um box onde trazem a voz de Breton (2005) para corroborar com o posicionamento dos autores de que argumentar envolve situações difíceis: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.31. 120 As estratégias de atividades propostas pelos autores, como a promoção de debates em torno de problemas sociais, podem favorecer não só a reflexão crítica e a emergência de autoria dos alunos, mas também criam condições para a assunção dos objetivos dos autores, qual seja desestimular a violência. Isso é altamente positivo tendo em vista que se trata de algo com que não apenas a sociedade, mas também a escola precisa saber lidar e trabalhar no seu cotidiano atualmente. Precisamos observar, por outro lado, que a forma como os autores induzem o tratamento da violência e do preconceito por meio dos roteiros de orientação de leitura e discussão não favorece a sua apreensão crítica por parte do aluno. Na orientação da leitura da notícia, os autores conduzem a discussão de forma a construir uma ideia de que a agressão ao menino tenha sido motivada apenas por sua gagueira, tomando por base a fala da mãe, relatada de forma indireta na notícia. No discurso indireto da mãe, há apenas a menção de que ―o filho sofre com as brincadeiras de colegas, porque é gago‖. Podemos até tomar a gagueira como pano de fundo para essa agressão, mas a causa mais direta, provavelmente, está relacionada com uma resposta também violenta pelo agredido, o que gerou novas agressões na forma física. Os autores, envidando todos os esforços para desestimular a violência, acabaram por não problematizar a questão, tratando o caso como uma injustiça gratuita, preconceito eticamente inaceitável e antissocial. Tal forma de tratamento da questão do preconceito pode surtir efeitos imediatos e pragmáticos que, a longo prazo, podem ser esquecidos pelos alunos. Diferentemente do que pensam os autores, o preconceito contra as diferenças não é antissocial; pelo contrário, toca-lhe na raiz, porque a sociedade é composta por grupos sociais com valores éticos e estéticos diferentes. Isso não justifica, é claro, a violência, o preconceito, mas os explica em grande parte. Como os próprios autores afirmam serem verdades tão bem estabelecidas que dispensam argumentos, acrescentamos, porque entraram no horizonte social de determinados grupos como valores encarnados. Os autores, na forma como conduzem a questão, propõem a não escuta do outro, do preconceituoso pelo corte do diálogo ao tratá-lo como inexplicável ou incoerente. Como o objetivo dos autores é levar professores e alunos a reconhecerem a argumentação como instrumento de resolução de conflitos e base para a tomada de decisões coletivas consensuais, eles focalizam a refutação em detrimento da problematização que fica à margem das estratégias propostas, uma 121 vez que ela não aceita consensos, mas a negociação que é sempre tensa porque envolve interesses diferentes. A nosso ver, os preconceitos, para serem combatidos, precisam ser conscientizados e, para isso, é preciso explicá-los, problematizá-los, a fim de que os alunos os compreendam em sua sócio-história e seus possíveis efeitos nas relações sociais. Talvez este seja um caminho mais pertinente para favorecer mudanças de atitudes, pensamento e valores. A forma como os autores conduzem a proposta, além de levar ao preconceito velado (ser politicamente correto, porque há um consenso sobre a forma como se deve ou não agir), mostra-se como um discurso monofônico, ao direcionar o olhar do aluno para uma única visão sobre a questão do preconceito não tão bem situada. Diante disso, podemos afirmar que os autores fornecem uma noção de argumentação como o instrumento promotor da grande conciliação entre os homens e que, por ela ser um elemento constitutivo da marca de genericidade do artigo de opinião — a questão polêmica — favorece a tomada deste gênero em favor da formação cidadã. Cabe a nós questionar qual é o preço dessa conciliação e, diante disso, qual o conceito de cidadania nela enfocado. Na segunda unidade, em que os autores propõem como objetivo orientar o professor a levar os alunos a uma definição coletiva do que seja a argumentação, buscaremos verificar como essa busca de consensos para os problemas sociais é proposta: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.39. 122 Tal box é apresentado ao professor, a fim de subsidiá-lo na orientação do debate dos alunos com a finalidade de se chegar a uma definição coletiva do que seja a argumentação. Antes de oferecê-lo, os autores tecem um comentário geral sobre a noção de argumentar que, a nosso ver, é sintetizado no box, por isso, nos restringirmos a ele. Podemos notar, nessa definição, uma mescla de categorias didáticas da Escola de Genebra e conceituais da Nova Retórica mobilizadas para definir a noção de argumentação. No quadro teórico genebrino, as ações de linguagem são consideradas estruturas de comportamento que não estão diretamente ligadas a motivos de ordem social, mas a objetivos relacionados ao próprio processo de produção e compreensão do texto por um indivíduo particular. Tal forma de entender a linguagem tende a enfatizar os aspectos sociopsicológicos envolvidos em seu funcionamento e, consequentemente, restringir o tratamento do sentido da linguagem às representações particulares que o produtor tem dos elementos da situação imediata. Isso está marcado na proposta do Caderno, quando os autores, em um comentário anterior ao box, afirmam que ―argumentar é uma ação verbal na qual se utiliza a palavra oral ou escrita para defender [...] um ponto de vista particular a respeito de determinado fato (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 38). Vemos, assim, que a ação do autor está restrita ao seu posicionamento sociopsicológico em um contexto imediato. Isso abre espaço para que a finalidade da argumentação seja complementada por uma perspectiva retórica articulada às ações de argumentar, à qual, apesar de os autores do Caderno não se referirem formalmente no corpo do texto, está presente na ênfase colocada na função convincente da argumentação, no uso da nomenclatura ―auditório‖ bem como na centralização da questão polêmica no discurso argumentativo, o que nos remetem, em certa medida, à abordagem desses elementos por Tyteca e Perelman (1958)65. O argumento está ligado aos estudos do raciocínio de perspectiva aristotélica, expressos por dois modos básicos de raciocinar, os quais não se excluem nem se sobrepõem: por demonstração analítica (silogismo), e por argumentação dialética. O primeiro tipo se traduz numa demonstração fundada em proposições evidentes (provas válidas derivadas de premissas universais) que conduzem o pensamento a uma conclusão verdadeira. Nele se apóia a Lógica Formal. O segundo tipo se expressa através de argumentos com base em enunciados possíveis, dos quais se poderiam extrair conclusões verossímeis. Nele se funda a Retórica. As provas evidentes gerariam certezas, em virtude do teor de verdade das premissas universais, enquanto que as prováveis gerariam opiniões. No pensamento aristotélico, essas duas formas distintas de raciocínio – silogismo e dialética – tinham igual importância uma vez que representam métodos próprios de conduzir o raciocínio (Santos, 2005, p. 86-87). Tyteca e Perelman, bem como Toulmin, incluem-se no quadro da Nova Retórica. 65 123 Segundo Santos (2005), Perelman e Tyteca (1958), reatando a dicotomia aristotélica de que algumas discussões eram do domínio da ciência (lógica) e outras da retórica (dialética), vão destacar, mais que o próprio conteúdo inserido em um contexto de controvérsia, a intenção persuasiva do produtor, realizada numa fala convincente, a fim de promover mudanças de atitudes no auditório. A intenção persuasiva dimensiona-se para o que se conhece, hoje, como estratégias argumentativas de convencimento utilizadas pelo orador. Pela citação acima, podemos afirmar que esses conceituais estão mobilizados, juntamente com os conceituais da Escola de Genebra, na proposta de definição de argumentação dos autores no âmbito da qual as estratégias mobilizadas pelo produtor existem mais em função do ato de convencimento de uma pessoa ou todo um auditório, predominando sobre o próprio ponto de vista do autor. A explicação dá margens para interpretações de que, na argumentação, o ponto de vista do autor não é tão importante. O que importa mesmo é o que pensam aqueles para os quais a argumentação se dirige. Cria-se uma imagem em que as partes são colocadas em relação uma com a outra de forma externa, sem aquela ligação indissolúvel, por dentro, de que falam Bakhtin/Volochinov (1926). Para Bakhtin (2003[1952-1953]), autor e interlocutor estão integrados no objeto do discurso, cujas participações no processo de produção da linguagem são ativas. O autor, ao construir um enunciado discursivo, responde ao seu interlocutor e, por outro lado, espera dele uma resposta, uma compreensão responsiva. Por isso, nesse processo, o autor adapta-se ao interlocutor e ao objeto discursivo, mas ele tem um querer dizer que considera por dentro o interlocutor. O discurso/enunciado é sempre um elo na corrente de comunicação discursiva, portanto está ligado como réplica a elos precedentes e subsequentes. Além disso, Bakhtin (2003[1959-1961]) afirma que todo enunciado possui um destinatário de índole e graus variados de proximidade, de concretude e de compreensibilidade. Esse destinatário, dependendo das condições e formas de comunicação, pode ser o do diálogo face a face. O autor também procura e antecipa, no próprio enunciado, a compreensão responsiva do destinatário próximo ou presumido. Bakhtin afirma ainda que o autor, em menor ou maior consciência, conta com um supradestinatário superior do qual espera uma compreensão responsiva idealmente verdadeira. 124 Para o autor russo, isso se explica porque toda palavra quer ser ouvida, e para isso, o autor não pode deixar a si mesmo e seu enunciado feito de discurso sob o jugo pleno e definitivo dos destinatários presentes ou próximos. O autor ainda adverte que esse supradestinatário não é algo metafísico, mas o elemento constitutivo do enunciado total. Acrescenta que todo diálogo constrói-se como que no fundo de uma compreensão responsiva de um terceiro invisivelmente presente, situado acima de todos os participantes do diálogo (BAKHTIN, 2003[1959-196], p. 333). Em relação ao destinatário, na proposta didática dos autores, podemos afirmar que a noção se mostra de difícil compreensão, até mesmo pela nomenclatura utilizada. Com base nos termos ―pessoa‖, ―adversário‖, depreendemos que os autores estão pensando no interlocutor empírico, que, no caso do discurso argumentativo, apresentado de forma geral, pode ser o do diálogo face a face. Consideremos, ainda, que o uso do segundo termo possa estar ligado à transposição para o âmbito da proposta de perspectivas de funcionamento do discurso argumentativo retórico, em que se tem como centro um problema controverso, polêmico, envolvendo dois lados opostos. Outros termos utilizados pelos autores para se referirem aos interlocutores do discurso argumentativo são ―auditório‖ e ―público‖. Estes termos podem ser entendidos como o destinatário presumido do contexto imediato de circulação do discurso argumentativo como um ―grupo de estudantes‖, ―uma comunidade de senhoras católicas‖ ou ―conjunto dos leitores‖ de um determinado jornal (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 38-39). Não verificamos nenhuma referência ou consideração a respeito de um supradestinatário com o qual o autor possa contar absolutamente. Isso talvez se explique pelo enfoque retórico imprimido à proposta, o qual pressupõe sempre uma luta entre lados opostos que precisam vencer pelo discurso. Portanto, a compreensão responsiva é conseguida, em termos, à força da argumentação. Sendo assim, voltando à questão da conciliação coletiva, podemos afirmar que, na perspectiva teórica dos autores, ela é conseguida pela neutralização da voz do outro, consentida pela coletividade convencida pelos argumentos do autor. Tal forma de entender a ação argumentativa é bastante mobilizada numa concepção retórica que pressupõe a presença de questões controversas ou polêmicas entre dois lados opostos e em contradição. Isso é marcado na proposta na forma como os 125 autores entendem a marca genérica do artigo de opinião que, segundo eles, é a questão polêmica. Vejamos como os autores propõem sua definição: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.57. Esse trecho está inserido em uma atividade em que os autores objetivavam levar os alunos a identificar questões polêmicas. Por falta de uma definição melhor da questão na parte teórica oferecida pelos autores, resolvemos tomar tal trecho para apresentar esta noção que, a nosso ver, sustenta o projeto de ensino do artigo de opinião. Podemos perceber que os autores, ao fundarem o referido artigo em uma questão polêmica dicotômica, tendo em vista que as diferentes soluções ou respostas a essa questão sempre envolvem posições opostas, restringem bastante as possibilidades desse gênero, que, a nosso ver, é a incorporação mais expressiva das relações dialógicas. O autor de um artigo de opinião, a nosso ver, nem sempre está polemizando abertamente com alguma coisa. Ele pode simplesmente construir sua apreciação valorativa sobre determinado objeto, respondendo a apreciações anteriores de outros autores e esperando deles respostas ou uma compreensão ativa, que podem ser de discordância ou concordância, parcial ou total, negociação, as quais podem estar conjuntamente representadas no discurso ou não, e isso depende do querer dizer do autor e do fundo aperceptivo que ele tem de seu destinatário. Assim, não há a obrigação de se posicionar contra ou a favor, o locutor pode em sua posição oscilar entre um e outro, pode, enfim, negociar com seu destinatário, a depender das condições efetivas de produção do seu discurso. A nosso ver, essa entrada escolhida pelos autores justifica-se, em parte, pela necessidade de busca de elementos estáveis do gênero que favoreçam a construção de um modelo de produção do artigo de opinião. Sendo assim, 126 estabelecer o objeto discursivo, a priori, sobre o qual o autor deva se posicionar, bem como definir, de forma geral, quais seriam os conhecimentos, valores e suas formas de organização facilitam a proposta porque se tratam de elementos regulares do gênero. Numa proposta didática de ensino-aprendizagem de gênero, os elementos que incorporam a organização estrutural da língua bem como sua inserção em um gênero do discurso são importantes, mas não devem predominar sobre os elementos enunciativo-discursivos sem correr o risco de se ver a autoria do aluno e até mesmo do professor desaguar. Observemos mais uma informação teórica: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 59. 127 Novamente os autores voltam a enfatizar o papel das estratégias argumentativas no ato de convencimento do adversário e do auditório envolvido para adesão favorável à tese do autor. E isso pressupõe, da parte do autor, saber usar palavras apropriadas à linguagem e utilizar o ‗tom certo‘ bem como mobilizar tipos de argumentos e organizar a argumentação. Aqui, os autores poderiam esclarecer o que querem dizer com ‗tom certo‘ e ―saber usar palavras apropriadas à linguagem‖. Em relação ao ―por onde‖ se vai entrar no debate, poderia ser algo bastante interessante na proposta, uma vez que se aproximaria daquilo que Bakhtin (2003[1952-1953]) define como o querer dizer do autor a respeito de determinada temática que determinaria, juntamente com a temática e o seu destinatário, as escolhas linguísticas e composicionais do enunciado, ou seja, conjunto de recursos utilizados para realizá-lo. No exemplo apresentado na página anterior, o ―por onde‖ entrar no debate diz respeito à seleção de um aspecto de uma questão polêmica que, a título de exemplificação, os autores apresentam a discussão em torno da existência de formas certas e erradas de falar o português. Observamos que o que se levanta na orientação é o posicionamento de outros e não um projeto discursivo do autor. Seguindo o raciocínio dos autores, seria o objeto discursivo que determinaria a intenção discursiva do autor e por extensão os tipos de argumentos mais adequados para defendê-lo. A nosso ver, o projeto discursivo do autor, na relação necessária com os enunciados anteriores, e, na relação de ambos com o objeto discursivo, determina a própria escolha do objeto discursivo bem como a escolha da forma do gênero em que será construído o enunciado (BAKTHIN, 2003[1952-1953], p. 281). Tal orientação de ênfase nos elementos estáveis do gênero reflete certa preocupação dos autores em oferecer um modelo de gênero. Na 2ª edição, ela está marcada de forma mais explícita na transposição para o interior da proposta de aspectos de teorias da argumentação que subsidiam essa tarefa. Isso se mostra de forma mais evidente com a entrada de autores ligados à teoria da argumentação de perspectiva retórica, principalmente de autores que se ocupam em fornecer modelos ou esquemas de estruturação da argumentação, como o do filósofo inglês Stephen Toulmin (1958). Os estudos de Toulmin sobre a argumentação estão inseridos no movimento de reavivamento da retórica, cuja contribuição principal tem sido a de apresentar 128 uma estrutura de argumentação, em termos, mais flexível do que a proposta pela lógica clássica com base em premissa maior, premissa menor e conclusão. Segundo Silva (2008), para Toulmin, as premissas nem sempre induzem a uma conclusão. Daí sua contribuição, a de inserir, no modelo de argumentação da lógica clássica, as estratégias de argumentação. Ainda de acordo com o mesmo autor, Toulmin deseja imprimir um aspecto diferenciado da retórica clássica bem como da sua abordagem convencional imprimido pela racionalidade que a transformou em uma categoria abstrata, aplicável a qualquer audiência e disciplina. Segundo Espindola (2010, p. 65), Toulmin procura aproximar aspectos dos argumentos que têm validade contextual com aspectos independentes do contexto. Ele trabalha, inicialmente, com o conceito de campo tido como áreas do saber nas quais a argumentação se desenvolve e como lugar de validação dos argumentos: campo jurídico, da lógica, da religião, da arte etc. Com base nisso, ele investiga entre argumentos de diferentes campos quais aspectos variam conforme o campo e quais são invariáveis, a fim de verificar se existe um padrão estrutural dos argumentos. O resultado dos estudos de Toulmin é apresentado no seu modelo estrutural da argumentação, o qual é transposto para subsidiar a análise da estruturação discursiva do artigo de opinião da OLPEF: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p.83. 129 O esquema do modelo de argumentação de Toulmin foi apresentado em uma oficina que objetiva analisar a organização do artigo de opinião do ponto de vista da argumentação. Com tal modelo, Toulmin acreditava estar apresentando uma estrutura mais exata e flexível que a da lógica, uma vez que, além de captar as diferenças que dão força ao argumento, possibilita a adequação de tais elementos ao seu contexto. Em seguida à apresentação do modelo, os autores da proposta do Caderno PV apresentam uma explicação topicalizada dos elementos nele contidos, procurando identificar sua presença no artigo de opinião utilizado como modelo de análise. Em termos gerais, D representa os dados/fatos em que o argumentador baseia seu raciocínio; C é a tese que o argumentador pretende defender com base nos dados apresentados. Na lógica clássica, os dados induzem à conclusão. No modelo de Toulmin, surge um terceiro elemento, a justificativa (J), entendida como as estratégias ou regras de raciocínios que autorizam a passagem dos dados à conclusão. Na perspectiva de Toulmin, esses três elementos constituem o núcleo do seu modelo e estão presentes em qualquer argumentação, ou seja, são elementos que independem dos contextos. Os outros três elementos agregam-se a uma argumentação, dependendo do auditório específico, a fim de conferir-lhe mais consistência/eficácia. O suporte (S) entra na argumentação, caso os dados não sejam suficientes ou a justificativa não seja aceitável a ponto de gerar a conclusão; a justificativa pode ter também seu escopo limitado, daí a entrada do modalizador (M) por meio do qual o argumentador manifesta determinada atitude a respeito da conclusão, esperando que o leitor a aceite. O argumentador pode ainda referir-se a prováveis contestações ao seu raciocínio, procurando mostrar sua não procedência por meio da refutação (R). O uso desse modelo de estrutura da argumentação na análise linguística tem recebido algumas ressalvas. Segundo Santos (2005, p. 96), apesar de o modelo apresentar-se como alternativa à rigidez de análise proposta pela lógica clássica, uma vez que insere novos elementos na composição do discurso argumentativo e reconhece a audiência e o contexto como interferentes na argumentação, ele permanece como um modelo que supervaloriza a estrutura lógica formal do discurso argumentativo, o que dificulta sua aplicação direta à análise de argumentos. Por isso, também ele tem se mostrado limitado para subsidiar a compreensão das 130 relações discursivas pelos e entre os enunciadores nas diferentes situações de surgimento de um texto argumentativo. Se olhássemos esse modelo de argumentação de uma perspectiva enunciativo-discursiva de enfoque sócio-histórico, diríamos que nenhum elemento da organização composicional do texto/enunciado ou dos seus aspectos tipológicos pode ser dado a priori. Isso porque o texto/enunciado desenvolve-se na interação, no diálogo, e as formas composicionais, os argumentos são mobilizados de acordo com o querer dizer do autor, seus objetivos, características dos interlocutores, das instâncias de produção e circulação, enfim, das condições de produção do discurso. Os autores da proposta do Caderno PV ainda recorrem a uma estrutura canônica mais generalizante, baseada na tipologia textual da dissertação. Os autores classificam o artigo de opinião com um texto dissertativo-argumentativo organizado em três grandes partes: a introdução, o desenvolvimento e a conclusão. Estas três partes constituem a forma global do texto dissertativo-argumentativo, como o artigo de opinião, no interior das quais se podem identificar a contextualização do assunto, da temática, os interlocutores e a tese defendida, os argumentos sustentados e hierarquizados e por fim a conclusão, respectivamente. No final da apresentação teórica do quadro de organização geral para o texto dissertativo, os autores sugerem ao professor que organize atividades de análise de artigos de opinião através das quais os alunos possam perceber que o esquema estrutural de argumentação oferecido por Toulmin pode ser incluído no esquema geral do texto dissertativo, afirmando que se trata de uma estrutura padrão recorrente, especialmente, no artigo de opinião (RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL, 2010, p. 87). Vários autores denunciam os riscos da transposição dessas tipologias textuais ou discursivas para o espaço didático. Rojo (2004), por exemplo, observa que, se numa dissertação escolar, o início pode coincidir com a apresentação de uma tese que, em seguida, é sustentada por argumentos de diversos tipos hierarquizados, por outro lado, isso nem sempre se confirma em um artigo de opinião em que o articulista pode iniciar por um relato exemplar ou ironia, para chegar à formação da opinião. Os próprios pesquisadores da Escola de Genebra, na qual a proposta diz fundamentar a organização didática dos Cadernos, afirmam que sua aplicação no terreno didático ―comporta um grande risco de derivas aplicacionistas e normativas‖ 131 (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004[1998], p. 172), podendo originar a gramaticalização dos eixos do uso, ou dos textos, com base no pressuposto de que o conhecimento das regras de estruturação dos textos levaria ao seu uso, como adverte Rojo (idem). Há que se pensar também que a encriptação de tantas perspectivas teóricas torna a proposta de difícil compreensão, principalmente no que diz respeito aos conceituais de estruturação da argumentação de fundamentação retórica. Numa proposta que se apresenta com o objetivo de formar, ao mesmo tempo, professores e alunos, isso pode trazer alguns problemas. Os autores, além de apresentarem categorias ou estruturação geral da argumentação, bem como categorias ou estruturação tipológica do texto argumentativo tomando essas classificações como estruturas padrão do artigo de opinião, apresentam também tipologia referente aos argumentos que devem ser utilizados no artigo de opinião. Apesar de os autores afirmarem que os tipos de argumento devem ser usados de acordo com o tema escolhido bem como com o público (o auditório) para quem escreve o articulista, percebemos não só certa normatividade e abstração ao apresentar um quadro-modelo em que se estabelecem, a priori, os tipos gerais de argumentos a que deve recorrer o aluno para construir os seus argumentos bem como certa generalização da adequação destes tipos às áreas ou campos de uso e não adequação aos textos específicos e suas condições de produção particulares. Indagaríamos ainda qual a eficiência desse tipo de proposta de exercício para a construção de textos eficientes e significativos? Será que novamente cairíamos na velha questão de que o conhecimento das formas, e aqui estamos em um nível mais expandido em relação aos fonemas, frases e orações, levaria ao domínio do uso? Vejamos o quadro-modelo de argumentos previsíveis para o artigo de opinião: Quadro 4 - Tipos de argumento. RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H.Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 102-103. 132 133 Pelo quadro anterior, podemos perceber que, apesar de os autores os tipos de argumentos e, em seguida, fornecerem uma explicação conceitual a respeito da mesma com exemplificação, por um lado, a definição conceitual não é suficiente para o entendimento dos tipos e, por outro, os exemplos são tomados descontextualizados, deixando transparecer um tratamento desarticulado entre os elementos tipológicos e os elementos da situação de produção. Além disso, apesar de se tratar de uma problemática que se apresenta de forma localizada no exercício, não podemos deixar de apontar, no exemplo 6 do quadro anterior, a presença de certa orientação bastante ―naturalizadora‖ para a questão apresentada, vejamos a proposição: ―a não existência de política pública que garantam a entrada do jovem no mercado de trabalho leva boa parte dos recémformados ao desemprego ou subemprego‖ (D→C), sustentados pelo seguinte argumento (J) ―o desemprego e o subemprego é uma consequência necessária das dificuldades dos jovens de ingressar no mercado de trabalho‖. Apesar de o exemplo estar disposto em um raciocínio complexo, fundamentado no discurso retórico — e que, talvez, o aluno nem o compreenda — permite a apreensão de determinada orientação. Podemos notar na lógica desse argumento certa aproximação com discursos político-econômicos e sociais que propagam certa compreensão do funcionamento do mundo social regidos por leis tidas como ―naturais‖. Por isso, para nós, a marca linguística ―necessária‖ faz emergir discursos outros como ―as leis naturais devem reger a sociedade‖, justificando, assim, problemas sociais como ―necessários‖. Sendo assim, questões políticas e sociais são transformadas em questões técnicas e estruturais. Esse discurso de naturalização das condições de exclusão e desigualdade investe também em uma legitimação cultural, buscando uniformizar as formas de pensar e ver o mundo, como se não houvesse alternativas aos rearranjos apresentados por ele. Frigotto apud Del Pino assinala que, no plano ideológico de tal discurso, há um desvio da responsabilidade social para o plano individual e, sendo assim: Já não há políticas de emprego e renda dentro de um projeto de desenvolvimento social, mas indivíduos que devem adquirir competências e habilidades no campo cognitivo, técnico, de gestão e atitudes para se tornarem competitivos e empregáveis (FRIGOTTO APUD DEL PINO, 2001, p. 79). 134 Por essas considerações, acreditamos que o exemplo dado na atividade não é adequado em um projeto de ensino voltado para jovens estudantes das escolas públicas brasileiras, em sua maioria, inseridos nas classes populares. Isso porque ele induz a um conformismo que não condiz com o objetivo da proposta, nem com as necessidades de seus destinatários alunos. Tais observações exigem reflexão e confirmam a necessidade de todo e qualquer material que adentra a escola ser analisado e avaliado. Posto isso, gostaríamos de finalizar este capítulo, pontuando algumas conclusões a que chegamos. O levantamento e análise da base teórico-metodológica das duas edições do Caderno PV nos possibilitou confirmar que há mobilização de elementos de abordagens teóricas enunciativo-discursivas, textuais e retóricas na elaboração da proposta. Pelas informações e explicações conceituais a respeito da concepção de linguagem assumida e pela forma como apresentam o funcionamento e a constituição dos gêneros, especificamente do artigo de opinião, e suas instâncias de produção, circulação e recepção, os autores criadores da proposta didática nos apontam, em certa medida, para a abordagem de gênero a que estão efetivamente vinculados no processo de produção de sua obra didática e quais elementos (o quê) dos gêneros receberão, em maior ou menor grau, apreciação nesse projeto de ensino. Sendo assim, podemos afirmar que a abordagem de gêneros assumida na obra didática ora em análise é a de perspectiva textual. Fundamentados em tal perspectiva, o discurso autoral vai dando contornos aos aspectos do gênero que serão apreciados no projeto didático na forma como descreve e apresenta as características do gênero enfocado na proposta. Por ela, percebemos que os elementos considerados importantes para serem ensinados no que diz respeito ao gênero, no âmbito dos objetivos da proposta, são seus aspectos funcionais e temáticos. O enfoque dado à categoria sociopsicológica ou estrutura discursiva argumentativa é bastante evidente. Em nosso entendimento, esse é um dos principais critérios de organização e objetivos da proposta didática no âmbito da qual o artigo de opinião é posto como pano de fundo. Isso se apresenta, de certa forma, 135 na consideração dos elementos da situação de produção numa dimensão imediata, expressa não só na pouca consideração, mas também no equívoco de compreensão do funcionamento da esfera jornalística e sua implicação na constituição do gênero enfocado. Quando se trata da estruturação ou composição textual, os autores mesclam o emprego da perspectiva textual à perspectiva retórica e tipologia textual, esta última fortemente questionada nos estudos da linguagem e nas abordagens de ensino-aprendizagem de língua materna nos últimos tempos. A introdução dessa última perspectiva, no âmbito da proposta didática da 2ª edição do Caderno PV, foi por nós interpretada como uma tentativa dos autores da proposta aproximarem mais dos seus contempladores, professores e alunos. Em relação à metodologia (como), os autores criadores apropriam-se de uma abordagem didático-pedagógica fundada no procedimento da sequência didática. A escolha dessa orientação metodológica aponta para a postura dos autores criadores a respeito de como se aprende e se ensina língua materna. A metodologia assumida permite um trabalho mais indutivo e reflexivo no tratamento didático dos objetos de ensino, expresso, na proposta, na forma como dispõem sua organização local: apresentação da situação de produção, primeira produção textual, atividades que recortam as propriedades do gênero enfocado e produção final. Ou seja, trata-se de uma abordagem metodológica que orienta passo a passo, como usam os autores criadores, no ensino-aprendizagem do objeto proposto. No próximo capítulo, o enfoque de nossa análise recairá sobre o trabalho de modelização didática presente nas atividades do Caderno PV, a fim de desvelarmos que tratamento discursivo é investido na didatização do artigo de opinião. 136 CAPÍTULO 5 Análise de dados 2: a didatização do gênero artigo de opinião na proposta do Caderno “Pontos de Vista” da OLPEF Fizemos, no capítulo anterior, o levantamento da base teórico-metodológica sobre a qual o discurso autoral66 sustenta-se para propor os encaminhamentos didáticos em torno da proposta de produção escrita do gênero artigo de opinião. Observamos, naquele momento, que a apreciação valorativa do discurso autoral está voltada, em grande medida, para uma abordagem de gêneros numa perspectiva textual, a qual recebeu, no Caderno PV, 2ª edição, uma ênfase de abordagem retórica. O Caderno PV encontra-se dividido em oficinas, que preferimos denominar unidades, no interior das quais são propostas as atividades específicas, organizadas em torno de um assunto67, as quais, por sua vez, são subdivididas em etapas, que preferimos denominar seções. Todo o conjunto de atividades apresentadas no Caderno PV tem por objetivo final levar os alunos a escrever um texto no gênero artigo de opinião e todas as atividades (leitura, análise de textos, pesquisas, discussões, debates, escrita pontual) estão voltadas para o fornecimento ao aluno do que dizer e do como dizer na produção do seu texto no gênero artigo de opinião. A proposta adota um procedimento didático de enfoque em um gênero específico, constituindo-se em um projeto de ensino direcionado. Esse Para usarmos a categoria de ―discurso autoral‖ estamos nos fundamentando no conceito de autoria numa perspectiva bakhtiniana. Volochinov/Bakhtin (1926) pensam a autoria em termos de uma relação tripartite em que se unem, indissoluvelmente, três partes de um mesmo processo ―autor-objeto-interlocutor‖ constituídas sócio-historicamente. Perguntas como ―quem produziu o texto/enunciado, para quem, em que condições, com que finalidade?‖ são questões básicas para a compreensão da autoria. No que diz respeito à autoria nos materiais didáticos, Padilha (2005) observa que esse elemento está constituído e envolvido por uma série de avaliações direcionadas para diferentes planos, como os atores sociais envolvidos, as instâncias educacionais, as concepções teóricas e metodológicas sobre os conteúdos e disciplinas, os documentos oficiais, as políticas públicas etc. Eles entram em composição na ação criadora de uma obra didática a qual é sentida na seleção dos textos, nos recortes e adaptações efetuados, na formulação das atividades, na escolha teórico-metodológica, em diferentes propostas (PADILHA, 2005, p. 81). É esse trabalho criador valorativamente endereçado e sociossituado que denominamos aqui de discurso autoral. 66 Empregamos o termo ―assunto‖ em vez de ―tema‖, como faz o discurso autoral, porque, em nosso entendimento, tema, na proposta, é usado para se referir aos conteúdos ou assuntos permitidos pelo gênero, já na teoria enunciativo-discursiva, que fundamenta nossa análise, este termo refere-se à avaliação valorativa presente em um texto específico. Assim, utilizaremos ―conteúdo temático‖ quando, na proposta, estiver se referindo a eventos sociais dizíveis no gênero (questão polêmica), e ―assunto‖ quando remeter a questões mais abrangentes ou a aspectos do gênero que serão tematizados em cada unidade (elaboração da questão polêmica, tomada de posição, uso de argumento, articulação textual etc.). O termo ―tema‖ só será usado do nosso ponto de vista teórico. 67 137 procedimento, a nosso ver, evita a dispersão e possibilita um planejamento mais pontual sobre as propriedades recortadas para ensino-aprendizagem. Tal abordagem é tomada do modelo didático da Escola de Genebra, o qual está bem delineado no texto de Dolz et. al. (2004[2001]). Neste capítulo, focalizaremos nossa análise nas formulações das atividades, buscando compreender a forma de didatização resultante do trabalho de criação autoral em diálogo com suas bases de fundamentação teórico-metodológica. Primeiro, apresentaremos um levantamento dos tipos de atividades propostas, numa síntese, que engloba as duas edições do Caderno PV. Depois, focalizaremos a análise em aspectos ou partes dos exercícios ou questões que se mostrarem mais pertinentes para os objetivos por nós propostos. Pretendemos, nesta etapa, responder à seguinte questão de nossa pesquisa: De que forma as atividades propostas para didatização do artigo de opinião no Caderno PV da OLPEF tratam a discursividade? 5.1 Cadernos PV: os tipos de atividades com o artigo de opinião Para realizar o levantamento dos tipos de atividades, tomamos por base um agrupamento adaptado a propostas de escolarização dos gêneros poéticos realizado por Padilha (2005), que usou os descritores das Fichas de Avaliação do PNLD/2004, voltadas para a leitura e compreensão dos textos escritos na disciplina Língua Portuguesa. Por se tratar de gêneros diferentes, com enfoques também diferenciados (leitura como subsídio da produção escrita, debate, etc. no nosso caso), assim como fez a autora, procederemos a uma adaptação do seu agrupamento às atividades encontradas nos Cadernos PV. Num levantamento geral, previamente apontado no capítulo anterior, percebemos que entre uma edição e outra houve um acréscimo de unidades. Em um levantamento posterior, observamos também um aumento de seções e atividades. Sendo assim, procedemos a uma síntese dos tipos de atividades contidas no Caderno da 1ª edição. Posteriormente, levantamos os tipos de atividades contidas na 2ª edição, inserindo na síntese da 1ª edição apenas as atividades acrescentadas que estão marcadas em itálico. 138 Apresentamos, a seguir, a síntese dos tipos de atividades contidas na 1ª e na 2ª edições, referente ao Caderno PV, para os concursos de produção textual realizados no ano de 2008 e 2010 respectivamente. Agrupamento de atividades realizadas com o artigo de opinião no Caderno PV nas 1ª e 2ª edições Tipos de Atividades Situação de produção: elencamos neste item as atividades que exploram o autor e 68 leitor típico, o conteúdo temático , a finalidade e o suporte do artigo de opinião. Leitura de textos exemplares no gênero artigo de opinião. Leitura de exploração dos elementos da situação de produção: local de produção, autor, leitor, finalidade, assunto do texto, posição e argumentos do autor. Leitura de textos no gênero em seu portador usual — o jornal —, com breve orientação para exploração da disposição gráfica e da divisão do jornal em seções. Finalidade: organizamos sob esse item as atividades que relacionam a finalidade do gênero artigo de opinião com a do gênero notícia. Leitura de exploração da situação de produção do gênero notícia e de apreciação de valores éticos ou políticos sobre a temática. Atividade de exploração das semelhanças e diferenças entre a finalidade e o conteúdo temático do artigo de opinião com os da notícia. Leitura de reconhecimento do conteúdo temático da notícia presente no artigo de opinião. Alimentação temática: organizamos sob este item as atividades que exploram diferentes estratégias de busca e seleção de informações pertinentes ao assunto escolhido e a questão polêmica levantada. Levantamento de assuntos polêmicos circulando na imprensa. Uso oral: elencamos, neste item, atividades que propõem o uso de gêneros orais escolares e escolarizados em prol do exercício das capacidades globais da Debate coletivo sem ou com auxílio do jogo Q.P Brasil. Exposição oral de resultados de busca de informações sobre assuntos e questão polêmica escolhida para a produção textual. Discussão escolar sobre o valor da argumentação. Identificação de questões polêmicas de relevância social presentes no local onde vivem os alunos. Identificação de conflitos no ambiente escolar e seu entorno e discussão desses conflitos objetivando a tomada de posição contra a violência. Pesquisa de grupo orientada para obter, reunir, sintetizar e socializar informações sobre o assunto escolhido para a produção textual a fim de melhor sustentar a argumentação. 69 Exercício lúdico, contido no jogo Q.P Brasil , com foco na identificação de questões polêmicas na vida cotidiana dos alunos. Leitura de texto no gênero charge para ampliar conhecimento do assunto. Síntese das informações obtidas nas atividades de busca e seleção. Ao nos referirmos a ―conteúdo temático‖, estamos nos reportando à questão polêmica, que, de acordo com a definição dada pelos autores, nos possibilitou entendê-la como aquilo que é permitido dizer no gênero artigo de opinião. 68 Trata-se de um jogo elaborado pelo Cenpec, responsável técnico pelo programa OLPEF. Esse jogo tem o objetivo de trabalhar, de forma mais lúdica, a argumentação junto aos alunos. Ele foi enviado às escolas no início do ano de 2010 e algumas de suas atividades já estão sugeridas na 2ª edição do Caderno PV. 69 139 Agrupamento de atividades realizadas com o artigo de opinião no Caderno PV nas 1ª e 2ª edições Tipos de Atividades argumentação: tomada de Discussão escolar para conceituar a argumentação. posição, sustentação e refutação. Aspecto Geral: listamos sob este item as atividades que tematizam estratégias de compreensão dos elementos da situação de produção e da organização/composição textual do artigo de opinião em um único exercício. Leitura com foco em estratégias de ativação, antecipação, checagem, reconhecimento e compreensão dos elementos constituintes do artigo de opinião. Exercício de localização de informações, no texto, para responder às questões postas no roteiro de leitura. Sugestões de leitura de outros textos no gênero contidos no Encarte do Caderno PV ou nos portadores usuais, seguindo o modelo de leitura apresentado. Composição/organização textual e recursos linguísticos: neste item, agrupamos as atividades que exploram a organização/composição textual dos discursos argumentativos no artigo de opinião e o uso de operadores textuais lógicoargumentativos. Exercício de (re)conhecimento da questão polêmica, tomada de posição e tipos de argumentos presente num texto exemplar no gênero. Escolha e avaliação de argumentos consistentes utilizando o jogo Q.P Brasil. Exercício de (re)conhecimento da organização textual do ponto de vista da dissertação (introdução, desenvolvimento e conclusão. Exercício de (re)conhecimento da organização textual do ponto de vista da argumentação (dados — conclusão com ou sem modalizador — justificativa com ou sem suporte — refutação). Exercício de comparação entre a organização textual da dissertação com a da argumentação. Exercício de (re)conhecimento do argumento principal do texto. Exercício de identificação de tipos de argumentos explorando o jogo Q.P Brasil. Exercício de identificação de diferentes tipos de argumentos em frases modelos. Montagem de frases para treinar o uso dos organizadores lógicoargumentativos como conjunções, elementos de tomada de posição, modalização, acréscimo e enumeração. Observação de aspectos ortográficos, expressões, emprego de sinônimos e pronomes para evitar repetições etc. Leitura de (re)conhecimento das vozes presentes em um texto exemplar no artigo de opinião. Produção de contra-argumentação sobre tomada de posição em texto fornecido para leitura e suporte da atividade. Inserção da contra-argumentação no texto fornecido para leitura e suporte da atividade. Tomada de posição baseada em situações ficcionalizadas. Produção de um texto breve como pretexto para usar os organizadores lógico-argumentativos. Uso escrito: dispomos, neste item, as atividades que utilizam a produção textual como estratégia para o exercício das capacidades de argumentação separadamente. Produção textual: neste item, agrupamos as atividades que envolviam a produção global dos textos no gênero artigo de opinião. Primeira produção individual guiada por um quadro-controle de constatações. Reescrita coletiva de um texto, no gênero, com problemas de adequação, guiada por roteiro de questão e quadro de orientação. Segunda produção individual guiada por roteiro de orientação. Revisão individual guiada por roteiro de orientação. 140 A fim de mostrarmos de forma mais detalhada o levantamento feito e a tendência de enfoque presente na proposta do Caderno PV, faremos uma síntese geral na forma de quantificação dos tipos de atividades contidos nas duas edições desse material didático, apresentando-a no gráfico abaixo em termos de porcentagem: Figura 1 - Incidência de enfoque dos tipos de atividades com o gênero artigo de opinião O gráfico acima nos dá uma amostra da média de atividades propostas no Caderno PV na 1ª e 2ª edições. Do total de atividades, podemos perceber que encabeçam a lista, com 48%, as atividades que enfocam o uso oral e escrito a serviço do exercício isolado de capacidades argumentativas globais e as atividades que exploram a organização/composição retórica textual e os elementos linguísticos do discurso argumentativo. Em seguida, com 18%, estão as atividades que exploram a alimentação do conteúdo temático, 10% para a produção textual, 8% que focalizam os aspectos gerais do gênero, sendo o mesmo percentual para as atividades voltadas para a exploração da situação de produção e da finalidade. Notamos que, de uma edição para outra, apesar de ter havido um acréscimo de três atividades no que respeita à alimentação temática e a algumas questões referentes à finalidade do gênero, a inserção de novas atividades, inclusive com 141 sugestões de uso de atividades contidas no jogo Q.P Brasil, deu-se mais nas seções em que os autores pretendem explorar categorias de ação e tipologias argumentativas, somando um total de nove atividades acrescidas. Podemos afirmar, então, que as modificações da 2ª edição em relação à 1ª consistem em um tratamento mais contundente dos elementos formais e estruturais do gênero. Com base no levantamento dos tipos de atividades propostas para o desenvolvimento do gênero artigo de opinião no Caderno PV da 1ª e 2ª edições, percebemos que ocorre certa oscilação na condução didática das atividades, pois há um investimento ora em uma abordagem reflexiva, ora transmissiva. Essa tensão está evidente, de certa forma, no discurso didático-pedagógico contido nas instruções e explicações postas nas atividades, como ―instigue com perguntas, releiam, discutam‖ ou ―localizem as respostas, identificar os trechos‖. No conjunto de atividades de expressão oral e escrita, a ênfase recai sobre as ações globais de linguagem, como opinar, sustentar e refutar questões de fundo controverso que circulam em nível nacional e local, ou questões fictícias levantadas com o único intuito de treino de uso dessas categorias, a fim de exercitar a ação argumentativa. Transcrevemos abaixo um excerto de uma atividade contida na segunda seção da unidade nove, da 2ª edição, que exemplifica essa tendência: 142 RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 105-106. Essa atividade é por nós classificada no rol das atividades que focalizam a produção escrita tendo por base elementos isolados da categoria de ação argumentativa. Podemos perceber que, na atividade, a base de orientação para a produção escrita é dada na forma de situação-problema ficcionalizada e definição a priori da questão polêmica subjacente, o que caracteriza uma abordagem de ensino, de certa forma, descontextualizada. Nela, tematiza-se a capacidade de formular uma opinião, usar argumentos para defender tal opinião e refutar a opinião contrária com base na situação modelo apresentada. Temos, nesta atividade, mobilizadas duas capacidades de linguagem. Na segunda comanda, oferece-se ao aluno um elemento da base de produção ligado às capacidades de ação (delineio da questão polêmica) e induz-se o aluno à construção de capacidades ―discursivas‖70 (formulação de uma tese, sustentação e refutação). Observamos, na terceira comanda, que as ações dos alunos são, em certa medida, determinadas a priori, na forma como estabelece a elaboração de sua opinião (favorável ou contrária), tomando como parâmetro a divisão do grupo feita pelo professor. Visualizamos nesta atividade a presença dos três critérios utilizados pela Escola de Genebra para organizar o ensino-aprendizagem de língua materna no Conforme apontamos no capítulo 2, na perspectiva da Escola de Genebra e, por extensão, no Caderno PV, discurso/discursivo(a) remetem a aspectos da organização ou da composição retórica e textual do artigo de opinião. Na perspectiva teórica por nós assumida na análise, discurso/discursivo(a) diz respeito ao processo de construção de sentido do texto. Para diferenciar as duas acepções que recobrem os termos em uma perspectiva ou outra, usaremos aspas nestas terminologias quando estiverem sendo tomadas pela perspectiva teórica do discurso autoral do material didático. 70 143 âmbito dos gêneros textuais, ocorrendo aqui em um nível local. Há a apresentação de um quadro com situações-problemas ficcionalizadas de fundo controverso que requerem, na sua mobilização, capacidades de ação e ―discursiva‖ voltadas para o domínio da ação argumentativa. Isso parece ser o objetivo em si da atividade. Como dissemos no capítulo 2 deste trabalho, a Escola de Genebra defende, na transposição didática dos gêneros, o uso de variáveis do gênero de referência tendo em vista sua escolarização, cujo objetivo é justamente o de seu ensinoaprendizagem e não apenas seu uso em situações concretas de comunicação. Para Dolz e Schneuwly (2004[1996, 1997]), é a validade didática que letigitima o tratamento do gênero em situações escolares a partir de uma espécie de ficcionalização, apesar de se buscar condições mais próximas possíveis das de origem do gênero enfocado. Parece ser isso que se realiza nesta atividade apresentada. A nosso ver, é preciso certa cautela para, em nome da validade didática, não cristalizar demais os gêneros textuais/discursivos, sob pena de perder o que eles podem fornecer de melhor numa proposta de ensino-aprendizagem: o potencial para trabalhar a construção dos sentidos. Isso porque a ênfase no repetível do gênero direciona o tratamento didático para o seu lado estável. Uma perspectiva mais voltada para o tratamento da produção dos sentidos, por sua vez, privilegiaria o acontecimento do gênero em sua discursividade. Do nosso ponto de vista, a articulação proveitosa desses dois aspectos no âmbito do artigo de opinião pode gerar propostas de didatização altamente favoráveis para o letramento dos jovens da escola brasileira, em favor da formação cidadã, principalmente da pública, que passa, atualmente, por uma crise de qualidade no ensino. Entretanto, a amostra dos tipos de atividades e a atividade por nós analisada, a título de exemplo, nos antecipam, em termos, o quanto uma abordagem mais discursiva está ausente das atividades dos Cadernos PV. Na próxima seção, enfocaremos as atividades em si da proposta didática contida nestes Cadernos a fim de desvelar o tratamento discursivo recebido pelo artigo de opinião. 144 5.2 Cadernos PV: as atividades com o artigo de opinião Nesta etapa, vamos conduzir a análise seguindo, mais ou menos, os tipos de atividades classificadas no levantamento apresentado na primeira etapa deste capítulo. Nossa intenção era apresentar pelo menos uma amostra de cada tipo de atividade encontrada. Entretanto, considerando a extensão da análise, procuraremos apresentar aquelas atividades que se mostrarem mais pertinentes para os nossos objetivos. Sendo assim, não vamos nos ater às atividades de produção escrita, uma vez que se trata do objetivo em si da proposta e, usando a mesma justificativa, não nos voltaremos para as atividades linguísticas em si, tendo em vista sua recorrência restrita no quadro de atividades geral da proposta. Focalizaremos as atividades representativas dos tipos por nós levantados em leitura e uso oral que apresentaram, de uma edição para outra, abordagens pertinentes para compreensão do tratamento didático dos elementos da situação de produção, da alimentação temática, das características gerais do gênero. No que diz respeito aos tipos de atividades eleitas por nós para constar em nossa análise, em relação àqueles tipos de atividades em que percebemos não ter havido modificação de uma edição para outra, deter-nos-emos em sua ocorrência apenas em uma das edições. Ocorrendo apenas uma pequena modificação, como inserção de outras questões complementares entre uma edição e outra, analisaremos apenas a que estiver mais completa. Naquelas em que ocorrer, entre uma edição e outra, modificações efetivas que podem diferenciar o enfoque, procederemos a uma análise tentando apontar em que medida ela contribui para a didatização do gênero. 5.3 As atividades da base de produção do artigo de opinião Em conformidade com o modelo didático adotado, os autores dividem a didatização do gênero em componentes, em um total de quatro, no geral. O primeiro corresponde a atividades voltadas para a exploração da situação de produção do artigo de opinião. Segundo os autores da Escola de Genebra, o conhecimento e a 145 compreensão da situação de produção do gênero é condição para o sucesso inicial e depois final da produção do texto por parte do aluno. Nesta seção de nossa análise, tomaremos a segunda unidade, da 2ª edição, e a segunda unidade, da 1ª edição do Caderno PV, a fim de delinearmos o tratamento didático em torno dos elementos que compõem a base de produção do gênero artigo de opinião no material por nós analisado. Decidimos pela 2ª edição, porque as atividades nela contidas se estendem mais sobre a situação de produção do artigo de opinião; já em relação ao procedimento de comparação do artigo de opinião com a notícia, mantivemos o enfoque na unidade da 1ª edição, por não termos percebido modificações relevantes que nos levassem a estabelecer um deslocamento para o da 2ª edição ou um procedimento de comparação entre as duas. Na etapa da sequência didática do Caderno PV em que se tem por objetivo a didatização de elementos que subsidiam o aluno a compreender a base de produção do artigo de opinião, verificamos que é recorrente a mobilização de algumas capacidades leitoras, a maioria delas ligadas a uma concepção de leitura cognitiva. Rojo (2009) nos fornece alguns descritores que nos mostram como essas capacidades de leitura, denominadas de compreensão ou estratégias de leitura, induzem o ato de ler: Ativação de conhecimentos de mundo: previamente à leitura ou durante o ato de ler, o leitor está colocando constantemente em relação seu conhecimento amplo de mundo com aquele exigido e utilizado pelo autor do texto. Antecipação ou predição de conteúdos ou de propriedades dos textos [...] A partir da situação de leitura, de suas finalidades, da esfera de comunicação em que ela se dá; do suporte do texto (livro, jornal, revista[...]); de sua disposição na página; de seu título [...] o leitor levanta hipóteses tanto sobre o conteúdo como sobre a forma do texto ou do trecho seguinte de texto que estará lendo. Checagem de hipóteses: ao longo da leitura, no entanto, o leitor checará constantemente essas suas hipóteses, confirmando-as ou desconfirmandoas e, consequentemente, buscando novas hipóteses mais adequadas. Localização e/ou retomada (cópia) de informações: em certas práticas de leitura (para estudar, para trabalhar, para buscar informações em enciclopédias, obras de referência, na internet), o leitor está constantemente buscando e localizando informação relevante, para armazená-la — por meio de cópia, recorte-cole, iluminação ou sublinhado — e, posteriormente, reutilizá-la de maneira reorganizada (ROJO, 2009, p. 77-78). 146 Todas essas capacidades contribuem, em certa medida, no processo de leitura. Entretanto, é preciso ressaltar que os estudos nesta área buscam outras abordagens que têm respondido melhor às exigências de leitura postas à contemporaneidade, como a necessidade da formação de leitores críticos e autônomos. Para essa necessidade, as capacidades acima mencionadas, ainda que sejam operacionalizadas em conjunto, têm se mostrado insuficientes por dar conta apenas de aspectos cognitivos e metacognitivos envolvidos nesse processo. Essa problemática nos permite afirmar que, numa proposta didática voltada para a formação do aluno em favor da cidadania, cujo exercício pressupõe um posicionamento crítico, é preciso aumentar o nível de complexidade das capacidades leitoras no sentido de levar o aluno a desenvolver uma efetiva compreensão dos textos/enunciados lidos e escritos. Acerca disso, um conceito bakhtiniano mobilizado atualmente em algumas propostas de leituras que pretendem dar conta dessas capacidades é a compreensão ativa e criadora. Esse conceito subsidiará nossa análise. Passemos a observar como os elementos da situação de produção são abordados na atividade contida segunda unidade, da 2ª edição, cujo objetivo é levar os alunos a estabelecer o primeiro contato com o artigo de opinião: RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 36. 147 Observamos que a atividade mobiliza, para os objetivos propostos, algumas estratégias de leitura cognitiva e metacognitiva, como a localização e (re)conhecimento dos elementos da situação de produção, a exemplo das 1ª e 2ª questões, e ativação de conhecimentos de mundo nas 3ª, 4ª e 5ª questões. Percebemos que, nessas primeiras questões, o discurso autoral procura direcionar o aluno para a observação do processo de articulação entre as circunstâncias do contexto de produção e as escolhas dos conteúdos ditos no texto de referência, o que se pode depreender na colocação da última questão. Acreditamos que esse tratamento didático visualiza o desenvolvimento de duas capacidades de linguagem — ação e discursiva. Com o propósito de fazer com que os alunos desenvolvam essas capacidades, o discurso autoral adota duas perspectivas: primeiro, levar o aluno a compreender o processo de escritura (circunstâncias do contexto de produção e as escolhas dos conteúdos ditos) no texto do outro, para, posteriormente, saber mobilizá-lo na sua própria produção textual. Esse tipo de abordagem, bastante recorrente na proposta, foi identificado por nós durante o levantamento dos tipos de atividades. Outra questão que julgamos relevante pontuar são as definições e explicações fornecidas pelo discurso autoral, com o intuito de caracterizar os elementos do gênero para os quais aponta o roteiro de questão acima analisado. Nelas, há, em certa medida, pistas sobre as propriedades que estão sendo consideradas no processo de modelização do artigo de opinião, mas também sobre a apreciação do discurso acerca desses elementos, a qual pode ser depreendida, em termos, na sequência da atividade: RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 37. 148 A respeito das características apresentadas, acreditamos que é preciso fazer algumas ponderações sobre algumas questões, embora as explicações estejam de acordo com a fundamentação teórico-metodológica assumida na proposta didática. A primeira ponderação a ser feita diz respeito à primeira explicação. Nela, percebemos que o lugar de produção e circulação do gênero artigo de opinião está restrito aos meios de sua reprodução e difusão, ou seja, aos seus suportes: o jornal impresso, a revista e sites. Isso, em boa medida, responde aos critérios de modelização que estão sendo considerados na didatização do artigo de opinião, cuja ênfase está mais voltada para a finalidade pragmática de sua compreensão e produção do que para as motivações socioideológicas que levam um sujeito-autor a produzir um texto/enunciado exemplar neste gênero. Nessa perspectiva, se, por um lado, não há necessidade de propor a esfera de atividade jornalística como princípio de organização do artigo de opinião, porque a argumentação sobre problemas sociais controversos ocorre em qualquer instância social (no jornalismo, no judiciário, na ciência, na escola, no cotidiano etc.), por outro, isso pode representar certa limitação de enfoque, pois a caracterização do artigo de opinião assentada mais no princípio de sua funcionalidade pragmática tende a privilegiar as regularidades do gênero em detrimento de suas especificidades. Tal enfoque didático pode dar conta de um dos objetivos do projeto de ensino do artigo de opinião assumido na proposta, que é desenvolver nos alunos as capacidades dominantes na ação de argumentação. Caberíamos questionar em que medida tal enfoque contribui para a formação letrada dos alunos em favor do exercício da cidadania, principalmente, como leitor — outro objetivo da proposta. Uma segunda ponderação recai sobre o movimento de articulação da temática do gênero artigo de opinião a fatos atuais discursivizados na notícia. Em nosso entendimento, nem sempre o que é tematizado no artigo de opinião precisa ter sido necessariamente discursivizado na notícia. Além disso, a atualidade da temática tratada neste gênero diz mais respeito à historicidade do evento discursivo do que ao acontecimento datado, como o é na notícia. A terceira ponderação recai sobre a caracterização do leitor típico do artigo de opinião e está ligada, de certa forma, à primeira ressalva levantada. Acreditamos que a pouca consideração dada à esfera de produção e circulação do gênero artigo 149 de opinião favorece a interpretação dada ao lugar social típico de sua recepção.Rodrigues (2001) observa que a produção e a circulação do artigo de opinião estão restritas aos grandes jornais e revistas impressos, cujas linhas editoriais visualizam leitores inseridos em um universo econômico e cultural próprio dos segmentos de maior prestígio social, de onde também escolhem seus articulistas. Talvez essas fossem considerações preferíveis na caracterização do leitor típico do gênero a restringi-lo a alguém tido pelo jornal como ―potencialmente envolvido no debate, na qualidade de cidadão‖. Como se trata da primeira atividade de exploração dos elementos da base de produção do gênero artigo de opinião constituída de questões bastante abertas e genéricas, plausíveis de serem aplicadas na leitura de qualquer texto exemplar no gênero, como propõe a atividade, essa questão será por nós retomada em outro momento na análise em que poderemos cotejar em uma seção do Caderno PV a relação entre o texto tomado como referência de estudo e as questões postas como roteiro de leitura. Observemos mais uma atividade, inserida na mesma seção, com o mesmo objetivo, mas sugerindo a leitura de textos exemplares no gênero artigo de opinião em seu portador usual: 150 RANGEL; GAGLIARDI; AMARAL. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 40-41. Apesar de esta atividade estar presente no Caderno PV da 1ª edição, percebemos que ela se mostra mais completa no da 2ª edição; daí restringirmos nossa análise a esta edição. Enfoquemos a segunda e a terceira comandas da atividade. Em relação àquela, percebemos que o discurso autoral encaminha a atividade de forma a levar o aluno a explorar o aspecto gráfico e organizacional do gênero em seu suporte original. Percebemos que há uma orientação para a percepção de que a divisão gráfica possibilita compreender a divisão organizativa do jornal. Sobre a divisão organizacional do jornal presente na atividade, é possível dizer que o discurso autoral serve-se de conceitos de teorias da comunicação próprias do jornalismo, tendo em vista a própria terminologia utilizada ―matéria assinada‖, ―matéria não assinada‖, ―texto opinativo‖, ―informação pura‖. Pensando nessa perspectiva, essa divisão encaminhada na atividade recai sobre a forma material e a funcionalidade dos gêneros. Essa forma de compreensão é confirmada na terceira comanda da atividade. 151 Uma primeira observação a ser pontuada acerca da divisão diz respeito à caracterização da dupla funcionalidade da atividade jornalística presente na atividade: matérias opinativas e matérias informativas. As primeiras, subentende-se, de caráter pessoal e parcial, e as segundas afirmadamente de caráter neutro e imparcial. Assim, cabe aqui fazermos uma ponderação partindo de uma perspectiva discursiva: será que a neutralidade e a imparcialidade são elementos capazes de efetivamente caracterizar o funcionamento das matérias informativas? Será que não haveria outros caminhos mais eficazes para evidenciar a funcionalidade dessas matérias, por exemplo, partir de um cotejamento entre o conteúdo tematizado e as formas de dizê-lo? Outra observação a ser feita diz respeito ao que o discurso autoral entende por ―funcionalidade condicionada a uma visão particular ou específica do mundo etc.‖. O que viria a ser precisamente ―uma visão particular‖ e ―uma visão específica do mundo‖? Será que ―particular‖ estaria remetendo ao querer dizer pessoal do autor dos gêneros e ―específica‖ para o aspecto funcional desses gêneros? Levantamos essas questões, porque as explicações dadas não nos esclarecem essa questão. Além disso, pensando naqueles para quem se endereça a proposta — professores e alunos — acreditamos que tais explicações mostram-se insuficientes para o entendimento do que tematiza a atividade. Nas últimas duas comandas da atividade, o discurso autoral retoma o enfoque para o tratamento da situação de produção e para alguns aspectos ―discursivos‖ do artigo de opinião, apresentados na proposta como algumas de suas características próprias. Com exceção do item ―b‖, da terceira comanda, em que se sugere a apreensão do leitor do artigo de opinião por meio de ―aspectos do texto‖ sobre os quais não podemos dizer se são linguísticos ou discursivos, o discurso autoral repete o propósito e a abordagem dados na primeira seção da atividade. Assim, o enfoque volta-se novamente para o propósito de desenvolver nos alunos as capacidades de ação e ―discursivas‖ através da percepção de como o outro, o autor do texto, constrói seu ponto de vista e as estratégias argumentativas levando em consideração o contexto da enunciação, como a temática, o lugar de onde o autor escolhe para posicionar e o leitor presumido. Até este momento da análise, podemos dizer que o discurso autoral nos dá pistas de que considera essas capacidades a força motora para o domínio do artigo de opinião. 152 Ainda dentro do mesmo componente da sequência didática que objetiva fornecer a base da situação de produção do artigo de opinião, vamos focalizar a segunda unidade, do Caderno PV, da 1ª edição, na qual poderemos aprofundar nosso olhar sobre a divisão funcional da atividade jornalística fornecida na proposta didática a fim de entender como o discurso autoral desdobra essa questão na proposta de estudos comparativos para diferenciação entre gêneros específicos71. Nessa unidade, a atividade tematiza a comparação entre os gêneros notícia e artigo de opinião, a fim de estabelecer pontos de contatos e diferenciações entre os dois. A notícia foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, no caderno Cotidiano, do dia 4/12/2007. O redator é um correspondente do jornal no Rio de Janeiro, e o mesmo assina a notícia: GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 16. Podemos assinalar que as questões presentes, na segunda comanda, apontam para uma retomada dos propósitos de leitura presentes nas atividades voltadas para trabalhar a base de situação de produção do artigo de opinião, servindo-se das mesmas abordagens na proposta de estudo do gênero notícia. Com exceção da inclusão de uma charge, cujo objeto está relacionado ao objeto da notícia e funciona, na atividade, como estratégia de ampliação de conhecimento do assunto, não houve, na 2ª edição, grandes modificações que pudessem apresentar nova orientação de enfoque ou abordagem, restringindo aquelas aos objetos discursivos dos textos que passam a ser internet e eleições. Por isso, nosso enfoque de análise ficará na atividade contida na 1ª edição. 71 153 Entretanto, a atividade apresenta uma tematização com um enfoque diferente, na segunda comanda. Na primeira seção, a atividade voltada para a leitura do gênero notícia avança em termos de complexidade exigida. Vimos que, além de buscar o desenvolvimento de estratégias de leitura que demandam capacidades de localização de informações dos elementos da situação de produção e de ativação de conhecimento de mundo durante o ato de ler para entender o conhecimento mobilizado pelo autor e depreender seus fins, objetiva também desenvolver certa capacidade de apreciação ético-subjetiva e política. Na terceira comanda, espera-se que as questões postas levem os alunos a estabelecer, através da reflexão, o tipo de relação existente entre a notícia e o artigo de opinião em termos de pontos de contato e diferenciação, conforme se depreende também das orientações postas ao professor: GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 17. A interferência do discurso autoral, que deseja manter sua via de interpretação para a questão, mostra-nos o que se tematiza necessariamente na atividade. Primeiro, a atividade objetiva, através do procedimento de comparação, levar os alunos a estabelecer relações entre a temática do gênero artigo de opinião e os fatos discursivizados no gênero notícia de forma a perceber que nisso consiste o ponto de contato entre esses dois gêneros, orientação confirmada na segunda seção da mesma atividade: 154 GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 17. Segundo, em conformidade com a fundamentação teórico-metodológica assumida, busca-se, por esse procedimento, à confirmação da orientação posta pelo discurso autoral em relação à divisão funcional dicotômica do jornalismo entre fatos e opinião. O gênero notícia seria o representante exemplar dos textos informativos, de caráter neutro e imparcial, e o gênero artigo de opinião representaria os textos opinativos, de caráter parcial, conforme informação expressa pelo próprio discurso autoral, no segundo quadro, da segunda seção: GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 19. Esse enquadramento que o artigo de opinião sofreu ao longo da didatização contida na proposta do Caderno PV não possibilita ao aluno autonomia para distinguir as especificidades de determinadas formas genéricas que têm como ponto 155 comum uma abordagem argumentativa. Se partirmos de tal classificação, é possível distinguir o artigo de opinião de um editorial ou de uma dissertação de vestibular? Do nosso ponto de vista, a resposta seria não. Rodrigues (2001) e Alves Filho (2008), ambos dedicados aos estudos deste gênero numa perspectiva enunciativodiscursiva, assinalam que a finalidade pragmática do artigo em si não oferece elementos suficientes para diferenciá-lo de outros gêneros jornalísticos com a mesma orientação. Os dois autores propõem como critério mais pertinente para essa diferenciação a autoria do gênero articulada à finalidade ideológico-discursiva da esfera jornalística e sua junção numa interação social singular no espaço do jornalismo. A nosso ver, esse caminho retiraria o enfoque da finalidade pragmática dos textos e evitaria uma ênfase nas representações particulares de seus interlocutores, inserindo-os na ordem da historicidade. Para analisarmos melhor essa última questão, vamos apreciar a caracterização do gênero notícia fornecida como subsídio para a atividade em um box da unidade: GAGLIARDI, E. AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 16. Podemos perceber que a orientação assumida, na atividade, a respeito da finalidade informativa de caráter neutro e imparcial do gênero notícia é confirmada como uma de suas características constitutiva. Essa caracterização é seguida, entretanto, de certa modalização que aponta para o funcionamento socioideológico desse gênero, em que se pode sentir também a presença de pontos de vista, valores, aspectos comumentes atribuídos ao artigo de opinião. Há também considerações sobre aspectos da sua estruturação composicional e estilística. 156 Retornando nosso olhar para a primeira seção da atividade, tomando como parâmetro a caracterização acima apresentada, observamos que, com exceção dos elementos da situação de produção e da finalidade do gênero notícia, nenhum dos outros aspectos, como a estrutura composicional e estilística e o funcionamento socioideológico se desdobram enquanto tematizações na atividade proposta. Em nosso entendimento, as afirmações de que a neutralidade da notícia é uma pretensão e que ela traz em si concepções, princípios e ideologia de quem escreve, não contribuem para o professor compreender essa questão, nem leva efetivamente os alunos a perceber que princípios e ideologias seriam esses e como se materializam em um texto. Cotejando as orientações contidas no quadro de atividade com o box informativo, podemos afirmar que o elemento valorativo-ideológico no gênero notícia figura, na proposta, de forma externa ao texto — nas reações diversas a posteriori de seus prováveis leitores, por isso, ele não se desdobra na materialidade textual. Sobre a dupla divisão funcional do jornalismo apresentado na proposta, lembramos, com Eco (1998), que ela passa de tema central nas décadas de 19601970 a adquirir, na atualidade, caráter obsoleto. O autor assinala que, com exceção do boletim meteorológico, não há notícia em si neutra e imparcial, porque o ato de escolha e seleção de determinados fatos, acontecimentos como temática da notícia e a paginação desta já se constituem em atos orientados valorativamente. Acreditamos que se trata de problematizações pertinentes para se considerar e explorar em propostas didáticas voltadas para o letramento dos alunos, especialmente daqueles de escola pública, como o são os destinatários da proposta didática em análise. Entretanto, a ênfase na finalidade e temática dos gêneros como marcas de sua distinção em relação aos outros, a nosso ver, restringe a exploração dos elementos valorativos. Entretanto, trata-se de um aspecto que, no âmbito do arcabouço teóricometodológico em que se fundamenta a proposta didática, não representa, em si, um problema, tendo em vista que o objetivo do ensino-aprendizagem de linguagem seria o desenvolvimento de certas capacidades sociopsicológicas implicadas nas ações de linguagem (relatar, argumentar etc.), objeto, como vimos, bastante apreciado na proposta. 157 Vamos analisar mais algumas atividades, pertencentes ainda ao primeiro componente da sequência didática (apresentação da situação de produção), em que se objetiva fornecer ao aluno uma base de representação do contexto de produção, mas o que está em enfoque são os conteúdos dizíveis em um artigo de opinião. 5.4 As atividades de elaboração temática do artigo de opinião Vamos analisar, agora, uma atividade em que a intenção maior é tematizar os conteúdos passíveis de serem ditos em um artigo de opinião. A atividade está contida na quarta unidade do Caderno PV da 2ª edição72. Vejamos como este elemento está didatizado na proposta: Entre uma edição e outra do Caderno PV não houve mudanças em si no conteúdo e forma das atividades que visualizam levar os alunos a identificar os conteúdos dizíveis no artigo de opinião, enfoquemos, então, a atividade da 2ª edição. 72 RANGEL, O. E.; GAGLIARDI E. ; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 56-58. 158 159 O elemento temático do gênero artigo de opinião recebeu um tratamento didático em atividades anteriores, que enfatizavam o conhecimento das condições de produção, circulação e recepção do gênero. Por isso, nesta etapa do projeto de ensino do artigo de opinião, a atividade focaliza encaminhamentos para o levantamento e seleção desses conteúdos plausíveis de serem verbalizados nesse gênero. A nosso ver, há uma preocupação em garantir que o aluno saiba o que dizer adequando-o não só à temática do gênero considerada na proposta, mas também à finalidade contida no âmbito restrito do projeto: escrever um artigo de opinião sobre ―O lugar onde vivo‖ para participar de um concurso de produção textual. Para que o aluno tenha clareza do que dizer, a atividade está investida de diferentes estratégias para a elaboração temática. Um primeiro movimento direciona o olhar do aluno para questões controversas de amplitude geral e que implicam ao menos uma determinada comunidade, cuja circulação ocorre em diferentes veículos jornalísticos de difusão coletiva (TV, rádio e jornal), conforme podemos depreender das orientações e explicações postas na primeira, na segunda e terceira comandas. Um segundo movimento volta-se para as questões de âmbito local, como as que circulam no meio social da vida cotidiana do aluno, ou seja, sua comunidade local, e, se preciso for, restringir ainda mais a amplitude para o âmbito da escola. O terceiro movimento faz o caminho de volta, na forma de relação e articulação entre o geral e o local. Em relação a esses movimentos, podemos perceber nas explicações duas formas subjacentes de entender os conteúdos que podem ser verbalizados em um artigo de opinião. Se, na segunda comanda, a controvérsia constitutiva da temática do artigo de opinião está na possibilidade de se estabelecer sobre ela diferentes pontos de vista, assumindo, assim, um aspecto bastante dialógico, na terceira comanda, o discurso autoral vai fechando esse leque de possibilidades ao estabelecer que esse elemento implica, necessariamente, duas posições: uma favorável e outra contrária, tendo a comunidade envolvida que optar por uma ou outra posição. Em nosso entender, essa forma de conceituação encaminha o entendimento desse elemento para uma definição mais retórica. Percebemos que a recorrência a 160 um modelo estrutural da argumentação de perspectiva retórica, conforme apontamos no capítulo 4 desta pesquisa, influencia também na apreciação do discurso autoral sobre os elementos do gênero artigo de opinião. Notamos que o aspecto prevalecente no projeto de ensino do artigo de opinião é o caráter dicotômico. A nosso ver, tal tratamento restringe as possibilidades de compreensão do objeto discursivo, uma vez que outras orientações são possíveis. Além do mais, fechar o tratamento dos acontecimentos sociais dados no artigo de opinião numa questão de fundo controverso dual pode mostrar-se problemático para o aluno que aprende. A nosso ver, nem sempre tal polêmica dicotômica vai estar presente nos exemplares com os quais possa se deparar em leituras extraescolares ou até mesmo escolares. O interessante seria ressalvar, que em algumas condições, isso pode não se confirmar. Mas a proposta tende a apresentar um modelo do gênero em que esse aspecto é tomado como marca distintiva. Assim, o discurso autoral não se desfaz dele, uma vez que desconstruiria seu projeto discursivo. Apesar disso, percebemos que, subjacente à orientação que guia a atividade, está uma postura indutiva a qual busca articular o cotidiano e o formal. Essa abordagem indutiva, que visualiza a elaboração da temática do texto exemplar a ser produzido pelo aluno, nos remete à perspectiva de ensino-aprendizagem escolar vygotskyana, segundo a qual o aprendizado escolar tem uma história prévia (a da família, do grupo social mais próximo etc.), construída na interação da criança com o meio social e cultural, nas atividades cotidianas, e que é tomada como base para a construção do aprendizado escolar. Metodologicamente, a orientação indutiva sobre a elaboração da temática a ser abordada no texto exemplar no gênero enfocado, articulando o local e o geral, representa um ponto positivo na atividade no âmbito da proposta, uma vez que é recorrente os alunos reclamarem que não sabem o que dizer quando vão produzir um texto. Essa é uma preocupação considerada na atividade e no todo da proposta didática, cujo intuito é garantir o interesse do aluno pela proposta de produção textual. Vejamos mais uma atividade ainda no âmbito do componente da sequencia didática, que objetiva levar o aluno ao conhecimento da situação de produção exposta, ainda ligada, em termos, ainda à construção da orientação temática: 161 162 RANGEL, O. E.; GAGLIARDI E. ; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 60-62. Trata-se de uma atividade que envolve o trabalho com a linguagem oral, ancorada na proposição de realização de um debate coletivo. A inserção do debate coletivo no âmbito de um conjunto de atividades que supõem terem como finalidade levar o aluno ao domínio do gênero artigo de opinião é uma estratégia pedagógica bastante eficiente, por se tratar de um gênero do qual os alunos já têm certo conhecimento, devido não só às suas semelhanças com a discussão de questões na vida cotidiana (na família, entre amigos etc.) como também, em maior ou menor grau, à proximidade com situações da vida cotidiana, como seu uso na TV. Por esse procedimento de recorrer a gêneros mais próximos das experiências prévias dos alunos, podemos visualizar uma apreciação do discurso autoral a respeito de como se aprende, demonstrada, não apenas na seleção dos gêneros 163 que se intercalam na proposta, mas também na condução da atividade orientada por uma postura mais indutiva, em que se valorizam ora o uso e a reflexão, ora a prescrição. A intercalação de textos em outros gêneros no interior de uma proposta didática pode dar-se por diversas razões. Em nosso entender, a introdução, na proposta, do gênero debate está posta não apenas por possibilitar o exercício imediato da temática levantada na atividade anterior, através uso oral, mas também por apresentar certa estrutura discursiva que o discurso autoral pretende transferir para o gênero artigo de opinião. Por isso, percebemos um movimento de valorização, na atividade, muito mais sobre a forma de desenvolvimento da temática do que em sua alimentação no âmbito do debate. A atividade salienta uma preocupação maior sobre o ―como fazer‖, orientando o professor passo a passo na condução do debate, deixando-nos entrever que o elemento efetivamente tematizado na atividade é a estrutura ―discursiva‖ da argumentação. O primeiro passo é submeter a classe a divisões e subdivisões de forma que estejam criadas as condições mínimas de produção do debate coletivo em contexto escolar: ―os que irão argumentar a favor‖, ―aqueles que irão argumentar contra‖ [com abertura para adoção de outro caminho, a nosso ver, algo louvável, mas que aparece nessa única orientação no todo da proposta], e ―os que irão avaliar o debate‖. Na explicitação das condições mínimas de produção do gênero, visualizamos certa preocupação em fazer com que os alunos a vivenciem dos três ângulos possíveis: debatedores favoráveis, debatedores contrários e auditório avaliador, na forma como propõem o tempo do debate: ―primeiro e segundo turno‖. Há também menções à forma composicional do gênero (fala, réplica e tréplica) e sobre o estilo (referir-se ao adversário de maneira respeitosa e respeitar sua vez de falar) além do registro/tipo de linguagem a ser empregada. Todos esses elementos são apresentados como normas ou regras do debate que deverão ser respeitados em sua produção, mas o enfoque da atividade em si recai é sobre a estruturação discursiva do texto, conforme podemos depreender das questões postas para orientar a tomada de nota e a análise por parte do grupo avaliador. 164 As questões conduzem o olhar do aluno-avaliador pontualmente ora para a localização das categorias dominantes de ação argumentativa, como a identificação da tese/posição, das estratégias e dos argumentos, presentes na 1ª, 2ª e 3ª questões, ora para a reflexão de seus efeitos no próprio avaliador, como a força dos argumentos e a capacidade de eles gerarem uma conclusão, como na 5ª e 6ª questões. Essa postura autoral de prescrever, olhemos também a 1ª questão, e ao mesmo tempo induzir à reflexão, vejamos a última questão, é recorrente nesse projeto didático ora em análise. Tal postura pode ser evidenciada em várias comandas da mesma atividade, como na sexta, em que se objetiva a esquematização das teses e estratégias desenvolvidas pelo grupo, no segundo quadro de questões que induzem a localização, repetição e, ao mesmo tempo, reflexão sobre os aspectos que envolvem a elaboração do processo argumentativo. Notamos que começa a se delinear aquele movimento percebido nas unidades iniciais anteriormente analisadas de fazer ver, primeiro, como o outro constrói seu ponto de vista e as estratégias argumentativas levando em consideração o contexto da enunciação, para depois, os alunos mobilizarem essas estruturas discursivas em seus próprios textos. Subjacente à realização dos procedimentos propostos na atividade analisada, estão pressupostas as capacidades de ação e ―discursiva‖, confirmando mais uma vez que se trata das forças propulsoras do projeto de modelização didática do discurso autoral. Vemos, assim, que o que prevalece na atividade é a construção de capacidades dominantes da ação argumentativa, ligadas à alimentação da temática controversa e sua estruturação ―discursiva‖. Pudemos perceber que a orientação para a construção do elemento temático de caráter dicotômico prevalece também nesta atividade, expressa na divisão, subdivisão da sala, na orientação de tomadas de posição favoráveis/contrárias etc. Tal forma de estruturação, a nosso ver, implica em pontos positivos e negativos. Em relação aos pontos positivos, acreditamos que tal organização permite duas formas de alternância: uma entre os participantes do evento discursivo, que assumem em tempo real e imediato o papel de autor e interlocutor e outra em relação ao papel de participante contemplador que avalia. Além disso, a própria escolha do gênero debate coletivo simula essa alternância de modo mais simples, 165 uma vez que se aproxima bastante do diálogo real na vida cotidiana (a conversa, a discussão entre amigos, entre a família etc.), em que as posições e réplicas entre os interlocutores, ainda que breves e fragmentárias, dão-se em um tempo-espaço imediato. Tal característica do funcionamento do debate pode favorecer a compreensão do próprio modo de funcionamento da linguagem enquanto instrumento sóciohistórico de interação humana assentado na alternância discursiva. Lembremos aqui Bakhtin (2003[1952-1953]), que oferece, acerca desse princípio, a seguinte explicação: Todo enunciado — da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico — tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, os enunciados dos outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por último, uma ação responsiva baseada na compreensão). O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva. O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da palavra ao outro [...] (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p. 275). Como vimos, o debate, por sua ocorrência numa dimensão real e imediata, pode favorecer a compreensão por parte dos alunos interlocutores do princípio de funcionamento da linguagem, uma vez que as estratégias de organização da produção do gênero favorecem a criação de condições em que os alunos possam vivenciar diferentes posições enunciativas em um espaço-tempo imediato. A dinâmica do debate coloca ainda à disposição do professor e do aluno, no âmbito do trabalho com a linguagem oral, ferramentas (tomada de nota, análise, estruturação, esquematização, síntese), criando condições para que o professor e os alunos identifiquem o grau de conhecimento que possuem sobre o objeto proposto na atividade e o que precisam ainda conhecer para usá-lo efetivamente. O papel atribuído ao professor é bastante importante, na atividade, uma vez que ele precisa atuar não apenas como orientador do debate no sentido de organizar e auxiliar os alunos a formular a tese e sustentá-la solidamente como também mediar a interação. Nessa perspectiva, a atividade mediadora do ―outro‖, o professor, assume papel ativo na construção do conhecimento do ―outro‖, o aluno 166 (VYGOTSKY, 2008[1934]). Assim, a organização metodológica é um ponto positivo na atividade. Em relação aos pontos negativos, pensando na divisão dicotômica da questão polêmica que supõe dois lados opostos e um auditório que contempla/assiste, acreditamos que seria interessante ampliar mais as possibilidades de tratamento discursivo da questão, graduando as possibilidades de tomadas de posição. É bem verdade que tal forma de organização facilita a apreensão de categorias estruturais, bastante enfatizadas na proposta. Entretanto, são aspectos que, a nosso ver, não garantem em si uma efetiva compreensão ativa dos discursos. Ressaltemos, também, que é preciso ter o cuidado para não diluir as fronteiras entre o debate e o artigo de opinião. Trata-se de gêneros com autoria e funções socioideológicas diferentes. Portanto, o debate serve bem para fazer com que os alunos percebam de forma mais próxima a sua vida cotidiana de como funciona, em termos, os gêneros de base argumentativa. Mas não pode tomar o lugar do artigo de opinião a não ser em situações em que se aponta para uma intenção de estilo individual, o que deve ser sinalizado e trabalhado didaticamente enquanto tal. O debate presta-se melhor a uma visão retórica porque pressupõe interlocutores específicos: de um lado, temos o autor e seus aliados, de outro lado, o adversário e seus aliados e vice-versa, e o terceiro participante é o auditório com o papel de ouvinte. Bakhtin (2003[1970-1971]), acerca de tal visão retórica do discurso, pontua que ―a discussão retórica é uma discussão na qual o importante não é se aproximar da verdade [apreciação valorativa] mas vencer o adversário‖. Por isso, ―o discurso retórico argumenta do ponto de vista do terceiro‖, que é o auditório/ouvinte sobre o qual recai a função de decidir o vencedor. O pensador russo acrescenta ainda que essa forma de discurso, de colocar de um lado ―os indiscutivelmente inocentes‖ e os ―indiscutivelmente culpados‖, evidencia a vitória absoluta de um e a humilhação plena de outro, o que para ele destrói ―a própria esfera dialógica da vida da palavra‖ (BAKHTIN, 2003[1970-1971], p. 386). Ao reconhecermos que a proposta do material, no que se refere à visão retórica para a questão temática, está, em boa medida, reduzindo os conceitos a aspectos funcionais, é pertinente apresentarmos outro conceito que foi tomado 167 também numa visão funcionalista — as vozes. Sabemos que este conceito está associado a várias teorias da linguagem — enunciação, análise do discurso, enunciativo-discursiva, ISD etc., mas aqui o que nos interessa é sua operacionalização no projeto de ensino do artigo de opinião. Este conceito está posto e operacionalizado na décima primeira unidade, denominada ―Vozes presentes no artigo de opinião‖. O conceito de ―vozes‖ apresentado pelo discurso autoral está subdividido em duas categorias: aliado/adversário e auditório. Essas categorias são desdobradas nas formas de discurso de autoridade, fatos, dados estatísticos, exemplos etc.: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 116-117. Na definição e explicação do conceito de ―vozes‖, notamos que o discurso autoral ora se movimenta para uma abordagem mais discursiva ―um artigo de opinião tende a reproduzir, no corpo do texto, o próprio debate de que participa... costuma trazer diversas vozes, isto é, referências explícitas e implícitas a informações e/ou posições diferentes‖, ora para uma abordagem mais retórica ―a voz de um aliado tem a função de apoiar a tese defendida... a voz de um adversário representa um contra-argumento possível... o auditório representa, no debate, o 168 conjunto dos interlocutores que o argumentador quer convencer[...]‖. Isso evidencia que existe certa tensão em relação à concepção teórica do conceito de vozes, já na operacionalização desse conceito, o discurso autoral privilegia uma abordagem — a retórica. Observemos a atividade abaixo: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 119-120. 169 Nas instruções postas para a apreensão das vozes presentes no texto usado como referência para a realização da atividade, o discurso autoral encaminha a questão para uma visão funcionalista. Nessa perspectiva, o conceito de vozes é restringido a um aspecto funcional que o discurso autoral arregimenta para ilustrar como o articulista serve-se disso para referendar seu ponto de vista (comandas b, c, d e e). Percebemos que, na condução dada à questão, a atividade investe numa articulação entre o que se apresenta por ―vozes‖ e o que o discurso autoral apresenta ao longo da proposta como ―tipos de argumentos‖, que entram na composição dos textos/enunciados com a função de fundamentar o ponto de vista do autor dos textos argumentativos. Observamos que o discurso autoral, na comanda b, esforça-se por dar certa orientação valorativa para a presença do outro, o jornalista Elio Gaspari, no texto do articulista. Entretanto, essa orientação é simplista, pois as informações referentes aos dados profissionais do jornalista não se desdobram na interpretação da forma como a ―voz‖ desse jornalista foi transmitida no texto. Não há qualquer articulação entre a incorporação dessa ―voz‖ e o lugar social assumido por seu autor no contexto do artigo do articulista, e suas decorrências em termos de efeitos de sentido. Há, assim, um encaminhamento para a apreensão do ―outro‖ como individual (pessoa física) e o propósito é apenas sua localização no discurso citante como apoio para a tese do articulista. O uso do conceito de vozes, na atividade do Caderno PV, distancia-se bastante de uma abordagem discursiva, em que esse conceito aponta sempre para posicionamentos ideológico-valorativos provenientes de lugares sócio-históricos definidos. Remetemos, aqui, a Bakhtin, para quem as relações entre os discursos, sob um enfoque translinguístico, são transformadas ―em ‗visões de mundos‘ (ou em certas visões de mundo centradas na linguagem ou no discurso), em ‗pontos de vista‘, em ‗vozes sociais‘, etc. (BAKHTIN, 2003[1959-61], p. 325). Retornando à atividade, notamos que, na comanda c, existe um movimento de associação entre dados e vozes, isto é, as informações representadas no texto exemplar do artigo de opinião são atribuídas a determinadas vozes, cuja função é se aliar ao e respaldar o ponto de vista do articulista, sinalizadas pelo discurso autoral em ―de acordo com os números da respeitadíssima Fundação Seade‖ e ―Dizem que‖ [grifos do autor]. Essas duas vozes foram evidenciadas pelo discurso autoral apenas 170 a título de localização e apontamento de sua função (aliada) no texto. Assim como apontamos na comanda anterior, o discurso autoral não oferece encaminhamentos para a apreensão dos lugares sociais preferíveis arregimentados no texto do articulista e seus efeitos na orientação e relação para outros textos. Tal abordagem repete-se, na condução contida na comanda d, em que o enfoque recai sobre as duas funções que as vozes transmitidas assumem no discurso do articulista: a de se aliar ou a de se opor ao articulista. Podemos afirmar que a função dicotômica dessas vozes vai depender do grau de proximidade que estabelece com a tese do articulista. Assim, ―a grande imprensa/o pessoal/a patrulha‖ é uma voz adversária, porque, diferentemente do que defende o articulista, privilegia as ―más notícias‖, já ―a imprensa local‖ é uma voz aliada, pois abre espaço para as ―boas notícias‖, apresentadas pelo articulista. Em relação ao papel do leitor, na comanda e, este restringe-se ser convencido pelo articulista. Podemos depreender que a operacionalização do conceito de vozes está posta de duas formas na atividade do Caderno PV. No nível da representação, o discurso autoral prioriza a seleção dos mecanismos de transmissão e organização das vozes do outro de forma declarada ou citada, precisamente pelas marcas linguísticas do discurso indireto. No nível das relações, são privilegiadas as lógicas (tese, argumentos, conclusão) — construídas em cima de discordâncias/polêmica aberta — e funcionais (convencer, persuadir). Em termos de objetivos, percebemos que a pretensão do discurso autoral é levar o aluno a localizar e (re)conhecer essas formas tematizadas na atividade. Tal operacionalização aproxima-se mais de uma perspectiva do ISD de Bronckart (1999) que tende a usar o conceito de ―vozes‖ para referir à presença de ―discursos‖ individuais (no sentido pessoa física) declaradamente citada nos textos. Já em uma perspectiva discursiva, as relações de sentido estabelecidas entre diferentes vozes em um mesmo texto não são redutíveis aos mecanismos de transmissão das vozes alheias no texto, nem essas vozes são individuais no sentido de pessoa física. Aquelas seriam mais amplas e complexas. Se as formas de composição são definidas conforme o autor apresente ou não as vozes de outros em seu texto, as relações de sentido, independente de o autor apresentá-las ou não, estarão constitutivamente presentes no seu texto, ainda que não se mostrem 171 nitidamente, mas no todo do sentido, na expressão, no estilo, nas ínfimas nuanças da composição etc. Isso porque, remetendo-nos a Bakhtin: O enunciado [texto] é pleno de tonalidades dialógicas(...) Porque a nossa própria idéia — seja filosófica, científica, artística — nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento (BAKHTIN, 2003[1952-53], p. 289). Conforme podemos depreender deste trecho de Bakthin, no sistema de alteridades infinitas, há diferentes maneiras de fazer falar a voz do outro. Assim, o conceito de voz alheia ou apropriada possui variadas gradações e matizes e não pode estar limitado pelos mecanismos de transmissão dessa palavra de forma declarada ou marcada. Como bem assinala Brait: Registrar a existência de um discurso indireto como forma de instauração da voz alheia não significa praticamente nada para o conceito de dialogismo, de vozes em confronto, estabelecido por Bakhtin. É necessário observar no conjunto do enunciado, do discurso, de que forma a confluência das vozes significa muito mais uma interpretação do discurso alheio, ou a manipulação na direção da argumentação autoritária, ou mesmo a apropriação e subversão desse discurso (BRAIT, 1994, p. 25). Achamos que a observação acima é bastante pertinente para a nossa discussão em torno do uso do conceito de vozes na atividade do Caderno PV, ainda que esse material, conforme já apontamos, não empregue uma abordagem discursiva. Isso porque, sendo as relações entre as diferentes vozes declaradas ou não, caberá ao leitor a posteriori representá-las na sua resposta compreensiva e criadora, e a escuta dessa pluralidade de vozes que habitam os textos dependerá da memória discursiva do leitor, conforme pontua Amorim (2003). Em nosso entendimento, no caso em análise, é função do discurso autoral, na medida em que se propõe formar o professor para ensinar os alunos, fornecer condições favoráveis para uma recepção e réplica ativa desses textos na escola. Assim, o que estaria implicado não seriam apenas as formas de transmissão dessas vozes em cada gênero ou texto, mas também as formas como eles são recepcionados na escola. E, parafraseando Brait (1994), diríamos que munidos da capacidade de replicar ativamente os textos, os professores e os alunos poderiam, diante de um texto, perguntar se a multiplicidade de vozes declaradas demonstra um 172 democrático processo dialógico ou unicamente uma cacofonia polienunciativa? A nosso ver, essas condições, na atividade ora analisada, não foram dadas. Na próxima seção vamos focalizar algumas atividades que investem no tratamento dos elementos até aqui apresentados de forma conjunta. 5.5 As atividades com as características principais do artigo de opinião Vejamos agora os tipos de atividades voltadas para a compreensão das principais características do gênero artigo de opinião. Como notamos algumas modificações do tipo de atividade de uma edição para outra, vamos começar tomando como exemplo a atividade contida no Caderno PV da 1ª edição: 173 GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Caderno Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008. As orientações da atividade estão centradas em um enfoque mais dedutivo e nos revelam o tipo de compreensão que se busca estabelecer na leitura e interpretação do texto exemplar no gênero artigo de opinião. A primeira atividade, nesta etapa, constitui-se na leitura de um texto exemplar nesse gênero, assinado por Renato Roseno, advogado e coordenador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca – Ceará) e da Associação Nacional do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced). O artigo foi publicado originalmente no site do Cedeca/Ceará e tem por título ―Sou contra a redução da maioridade penal‖. 174 As orientações e o roteiro confirmam o que vimos levantando ao longo da análise. Em um primeiro momento, são postas orientações pontuais acerca do processo argumentativo que remetem para elementos a serem localizados no texto exemplar oferecido para leitura. Em um segundo momento, o discurso autoral direciona passo a passo o olhar do aluno para os elementos que julga serem as características do artigo de opinião, mobilizando para isso um roteiro de questões. Nessas questões, constatamos que o discurso autoral retoma o enfoque por nós delineado nas seções anteriores. Esse enfoque está voltado para o desenvolvimento de capacidades de linguagem, precisamente de ação e discursiva. Num último momento, localizado na segunda seção, o discurso autoral sugere a leitura de outros textos no artigo de opinião, disponíveis no Encarte do Caderno ou em outros portadores do gênero, a fim de fixar o conhecimento acerca do gênero. No que concerne ao tratamento do gênero na proposta didática, há um investimento na seleção de textos modelares no referido gênero, especialmente no Caderno da 1ª edição, em que se encontra a atividade ora analisada. Em nosso entender, esses textos selecionados respondem, em certa medida, aos critérios assumidos pelo discurso autoral para definição do gênero artigo de opinião. O exemplar escolhido para a atividade de leitura segue bem de perto esses critérios, pois toca, por sua forma de organização e estruturação, nos elementos do gênero mais padronizados, como contexto social imediato, elemento temático, finalidade e categorias ―discursivas‖. A nosso ver, essa condução para os elementos estáveis e para algumas categorias ―discursivas‖ pode ter sua pertinência até certo ponto, uma vez que, ao se disponibilizarem textos mais padronizados, favorecem a apreensão por parte de autores em formação. Deve-se ressaltar, porém, que essa condução didática restringe o trabalho de ensino-aprendizagem do gênero por não dar conta da amplitude dos elementos envolvidos na construção dos textos/enunciados. Isso limita a flexibilidade dos sentidos neles construídos, desconsiderando o que gênero poderia oferecer de melhor em um projeto de ensino-aprendizagem de língua materna, principalmente quando o objetivo é favorecer a formação cidadã. Neste roteiro e nas respostas oferecidas, os elementos que materializam o gênero focalizado na atividade de leitura são apresentados como que ―naturais‖, 175 sem motivações e sem possibilidades de efeitos de sentido diferentes. Nada é dito a respeito das razões pelas quais o autor se posiciona contra a redução da maioridade penal. O mesmo ocorre a respeito das vozes das quais ele discorda. Vejamos a ocorrência desse tipo de atividade anteriormente analisada no Caderno PV da 2ª edição: 176 RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 72-73. Comparando as atividades das duas edições, percebemos que ocorre uma pequena mudança no que diz respeito às abordagens de leitura. De uma postura dedutiva, na 1ª edição, passa-se para um direcionamento mais indutivo em algumas partes localizadas na primeira seção da atividade, na 2ª edição. Tal modificação está evidenciada na proposição de momentos diferenciados de leitura, em que se objetiva, primeiro, oferecer condições para que o aluno ative seus conhecimentos prévios e antecipe o que está dito no texto/enunciado e os elementos de sua situação de produção, para, em um segundo momento, verificá-los na leitura do texto/enunciado. 177 Apesar da mudança de abordagem na primeira parte da atividade entre uma edição e outra, as instruções acerca das estratégias de leitura e as perguntas postas remetem mais uma vez para aquilo que observamos em seções anteriores desta análise a respeito do que está sendo posto como critérios de modelização didática do artigo de opinião. Nesse sentido, nesta primeira etapa da primeira seção da atividade, observamos que, na visão do discurso autoral, é pertinente o ensino dos aspectos do gênero que dizem respeito à forma e ao conteúdo temático do artigo de opinião bem como o exercício mesclado de determinadas capacidades de leitura (ativação de conhecimento de mundo, antecipação de conteúdos e checagem de hipóteses) e de linguagem (mobilização de representações acerca de alguns elementos da situação de produção) para que o aluno apreenda esses aspectos. A seguir, apresentamos o texto exemplar no gênero artigo de opinião inserido como referência para a realização da atividade: RANGEL, E.; GAGLIARDI, E.; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2010, p. 74-75. 178 179 RANGEL, E.; GAGLIARDI, E ; AMARAL, H. Pontos de Vista. São Paulo: Cenpec, 2008, p. 76-78. 180 181 Podemos perceber que, na transposição didática do gênero da sua esfera de circulação original para a escolar, houve uma preocupação em manter alguns aspectos composicionais do artigo de opinião, como título, assinatura, veículo e data de publicação, pé biográfico e mensagem padrão do jornal, todos elementos bastante pertinentes para a compreensão do texto/enunciado. Cotejando essas informações com as intruções e questões postas na atividade, observamos que o discurso autoral consegue explorar de forma siginificativa a posição enunciativa do articulista com sua posição social. Na quinta questão da seção anterior da atividade, observamos que o discurso autoral instiga o aluno a perceber as relações entre assinatura, informações contidas no pé biográfico e autor típico do artigo. Notamos também que há a intenção, na sexta questão contida na segunda seção, de direcionar o aluno para que relacione essas informações biográficas com a estratégia argumentativa. De uma perspectiva enunciativo-discursiva, o pé biográfico é um elemento da composição do artigo que auxilixa na legitimação do caráter sócio-histórico da autoria no gênero que, ao trazer um conjunto de valorações socioideológicas em um determinado lugar social, funciona como elemento de legitimação da autoria e status de competência de seu autor, constituindo-se em um índice importante para a construção da orientação temática e do sentido do gênero. A construção dessa imagem de articulista competente e autorizado socialmente, aspecto que o discurso autoral quer fazer o aluno perceber, legitima seu ponto de vista, o que o constitui, de antemão, em um discurso autorizado. Esses aspectos podem ser desvelados no estilo individual do autor que oportuniza condições extremamente favoráveis para a construção do sentido do texto/enunciado. É lamentável que, apesar de estar, em certa medida, contemplada a inter-relação entre esses elementos formais e o lugar social, e sua implicação na posição enunciativa do autor, as questões de estilo se perdem na atividade. Em relação ao veículo de publicação do texto/enunciado, verificamos que, ora o discurso autoral localiza melhor com informações o órgão de imprensa em que circula o texto/enunciado, ora deixa essa tarefa para o professor e o aluno, como é o caso da atividade por nós apresentada. 182 Isso está evidenciado na sétima questão, da primeira seção da atividade, onde poderíamos visualizar certa preocupação do discurso autoral em levar o aluno a relacionar as possibilidades e limites de interpretação do texto ligadas ao seu seu lugar de circulação. Entretanto, a forma como é posta a questão e a ausência de outras estratégias de interpretação deixam a cargo do aluno ou do professor (ou ambos) essa inter-relação. Em nosso entender, não é adequado deixar essa tarefa para os autores em formação (professor e aluno), pois, caso eles não consigam realizá-la a contento, perde-se uma oportunidade excelente para se tratar da autoria interposta no artigo de opinião, aspecto que, a nosso ver, contribuiria para a compreensão não apenas da temática do gênero, mas também para a construção do sentido do texto/enunciado. A nosso ver, a pouca relevância dada à questão demonstra a pouca apreciação do discurso autoral sobre a esfera de circulação, deixando entrever que esse elemento não influencia na constituição/composição dos textos/enunciados. Essa orientação foi evidenciada por nós, no capítulo 4 desta pesquisa, através da definição e explicação por parte do discurso autoral a respeito do funcionamento da esfera jornalística, tomada mais como um suporte do texto de que um lugar sóciohistórico de relações. Acreditamos que essas informações são muito importantes porque apontam não só para a função e objetivos pragmáticos da atividade jornalística (informar, promover a discussão de problemas sociais controverso), mas possibilitam explorar suas interrelações, interesses e limitações, aspectos esses que são sentidos nas suas formas de interação, isto é, nos seus gêneros. Estamos falando, portanto, em função socioideológica do jornalismo. Em linhas gerais, na segunda etapa da primeira seção da atividade, as instruções e as questões do roteiro frisam as características temáticas, funcionais e estruturais do artigo de opinião. Esse direcionamento é bastante recorrente ao longo do projeto de ensino-aprendizagem do referido gênero, conforme observações já assinaladas em outros momentos desta análise. Esses elementos estão sublinhados no texto exemplar posto como referência de leitura para auxiliar o professor na condução da atividade. A condução que o discurso autoral faz, através do procedimento de iluminação das propriedades 183 elencadas como características do gênero, nos revela, de certa forma, como está sendo tratada a discursividade na proposta. Nesta abordagem, o discurso autoral investe em uma estratégia de leitura, privilegiando a localização de informações que recaem sobre alguns aspectos do texto exemplar, como questão polêmica, contexto de circulação, tese, lugar de enunciação do articulista, argumentos utilizados, interlocutores etc. Assim, nesta abordagem, o tratamento da ―discursividade‖ está articulado entre aquilo que está dito no texto e as estruturas discursivas mobilizadas. Tal abordagem, em boa medida, está ancorada na base teórico-metodológica da Escola Didática de Genebra, sobre a qual está proposto o trabalho didático com o artigo de opinião. E em relação à abordagem do gênero, busca-se um enfoque mais voltado para seus aspectos contextuais imediatos, funcionais, temáticos e estruturais, isto é, sobre seus elementos mais regulares, pois estão preocupados em fornecer ―modelos didáticos‖ de gêneros que sirvam ao ensino-aprendizagem de língua materna. Nessa perspectiva, em termos didáticos, o gênero é tomado como modelo de referência para a realização das ações de linguagem, as quais, como dissemos, para serem realizadas, exigem mais do autor a capacidade de representação do contexto social imediato de produção e as capacidades de estruturação e textualização dos conteúdos verbalizados do que necessariamente reflexões acerca das motivações sociais que levaram autor a produzir um texto/enunciado. Tal orientação teórica vai desdobrar-se em propostas didáticas que salientam os aspectos da ordem da enunciação e do texto, mas pouco se detêm em questões da ordem da discursividade, as quais não ultrapassam o contexto mais imediato de produção. É o que parece se evidenciar nas instruções e questões postas na atividade ora em análise, que revelam uma preocupação maior em enfatizar a presença, nos textos exemplares no gênero, de uma temática controversa de caráter dicotômico, sua finalidade e estruturação discursiva, tendo como pano de fundo o contexto imediato de sua produção. Em decorrência do modelo teórico assumido na proposta didática por nós analisada, afirmamos que as esferas de circulação têm pouca influência na constituição dos textos/enunciados postos, para estudos nas atividades. Salientamos anteriormente no texto exemplar (artigo de opinião) contido na atividade 184 ora analisada, que a esfera de produção e circulação está sinalizada, mas não se consideram efetivamente, nas instruções e questões, suas possíveis influências na constituição do texto exemplar analisado. O mesmo procede com aquilo que o discurso autoral denomina de ―mensagem padrão do jornal‖, elemento sinalizado, mas sobre o qual não há nenhuma menção nas atividades. A apreciação de valor sobre esses elementos revelam que eles têm pouca importância na proposta, cuja função parece restringirse a um suporte de produção e circulação. A pouca relevância, e até mesmo a forma de compreensão, da esfera de circulação do gênero artigo de opinião leva, assim como acontece na 1ª edição, a uma abordagem externa dos elementos da situação de produção, não dando conta da presença de outros discursos subentendidos no texto. Esses discursos são postos na atividade como ―posições e/ou debatedores anteriores‖ e ―os adversários do articulista‖. A terceira e quarta questões, que se referem a esses elementos, são respondidas de forma vaga, conforme estes excertos: ―há referências indiretas (não nomeadas)‖, ―nós‖ ―a sociedade civil, a mídia‖, ―os que dão excessiva atenção à ‗corrupção cultural‘‖. Na resposta à última questão, o discurso autoral apresenta o destinatário do texto/enunciado exemplar no artigo de opinião como sendo a ‗opinião pública‘ e a mídia. As atividades até aqui analisadas apontam, em certa medida, para uma preocupação do discurso autoral em apresentar um modelo didático do gênero artigo de opinião, o que não constitui em si um problema, pois está ligado às contingências dos processos de didatização que todo objeto sofre ao ser transposto para fins de ensino-aprendizagem. Entretanto, ao mesmo tempo que é interessante trabalhar diversos textos exemplares no gênero para evidenciar o que é modelar, é preciso também atentar para os aspectos que se modificam nesses textos, ligados, de certa forma, ao autor concreto, ao contexto de produção e ao leitor presumido numa dimensão imediata e ampla. Para isso, seria necessária uma efetiva articulação entre esses elementos aos aspectos modelares do gênero. A nosso ver, tal encaminhamento fica a desejar na proposta. A título de exemplificação, podemos observar o tratamento dado à temática do gênero que o discurso autoral, no intuito de manter a definição conceitual assumida na proposta didática, não explora a especificidade desse aspecto do 185 gênero em sua ocorrência concreta nos textos/enunciados. Isso pode ser, de certa forma, evidenciado na questão e resposta de interpretação da temática contida na segunda seção da atividade ora analisada. Em nosso entender, a temática delineada no texto/enunciado exemplar na atividade não constittui em si uma polêmica e nos leva a afirmar que há uma intenção de forçar a questão como de fundo controverso para inserir no modelo de gênero construído na proposta, até porque, sem a questão polêmica, em sua perspectiva, não existe artigo de opinião. Esse tratamento didático nos faz pensar em algumas questões: 1. Essa lacuna seria uma estratégia de facilitação do trabalho do professor? 2. Se a resposta for sim, tal estratégia seria legítima numa proposta que se coloca com o objetivo de formar o professor para trabalhar com os gêneros? Percebemos que o foco de tematização da atividade em sua última etapa são os argumentos utilizados pelo autor para defender seu ponto de vista e seu endereçamento para o seu leitor. O discurso autoral apresenta uma síntese dos argumentos, cuja organização composicional dá-se em níveis graduais, apresentados na análise autoral por tipos de argumentos. Acreditamos que, em lugar de tipos de argumentos, os autores poderiam explorar a síntese como sendo a forma composicional do texto analisado. Essa entrada possibilitaria, inclusive, explorar melhor o destinatário do artigo de opinião que, da forma como foi apresentada pelo discurso autoral, fica desarticulado do todo. Afirmar que dá para subentender esse destinatário ―pela linguagem utilizada‖, ―pela tese e pelos argumentos usados em defesa‖ não leva o aluno a compreender como isso acontece efetivamente no texto. Perguntaríamos aqui: que linguagem? Trata-se de modalidade ou estilo? Não há em nenhum momento exploração desses elementos nas questões que objetivavam levar o professor e os alunos à compreensão do referido texto. Assim, o destinatário do enunciado não pode ser percebido apenas no conteúdo, mas na forma composicional e no estilo, ou seja, na sua totalidade discursiva. Ainda que o interlocutor do autor sejam os formadores de opinião, é preciso mostrar no todo do enunciado como esse elemento constitutivo do discurso é sentido, como sua presença é marcada e influencia por dentro o texto. 186 Acreditamos que, para despertar a réplica ativa do ouvinte-aluno, o caminho deveria ser outro. É interessante buscarmos novamente Bakhtin (2003[1952-1953]) que nos dá algumas orientações para o tratamento dessa questão: O enunciado se verifica um fenômeno muito complexo e multiplanar se não o examinamos isoladamente e só na relação com o seu autor (o falante), mas como um elo na cadeia da comunicação discursiva e da relação com outros enunciados a eles vinculados (essas relações costumavam ser descobertas não no plano verbalizado — estilístico-composicional — mas tão somente no plano semântico-objetal) (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p. 299). A nosso ver, a proposta ora em análise peca por essa desarticulação entre o plano verbalizado (estilístico-composicional), o plano semântico-objetal (conteúdo temático) e a situação de comunicação que envolve o autor sociossituado e seu querer dizer endereçado para alguém. Percebemos a ausência de um tratamento mais direcionado para os traços estilísticos do texto em busca da construção do sentido para o mesmo. O discurso autoral pouco se detém nessa questão e, quando o faz, trata-o desarticuladamente dos textos usados como exemplares do gênero. É o que demonstram as atividades contidas na décima unidade em que se propõem aos alunos exercícios de uso de conectores e operadores argumentativos em frases descontextualizadas, cuidadosamente nomeadas de ―pequenos textos‖, na primeira seção, e produção de ―textos breves‖, como pretexto para para uso dessas unidades linguísticas. Se tomarmos os textos/enunciados como respostas ativas a enunciados precedentes de determinada esfera de atividade, veremos que os traços estilísticos e a forma composicional marcados no discurso apontam para relações diálogicas vivas, que dinamizam esses objetos, porque: O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria idéia — seja filosófica, científica, artística — nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento (BAKHTIN, 2003[1952-1953], p. 298). Acreditamos que o conceito de dialogismo poderia ser muito producente para modelizar uma proposta didática de ensino aprendizagem dos gêneros 187 textuais/discursivos, principalmente do gênero artigo de opinião, no âmbito de um projeto de ensino que toma como objetivo a formação cidadã. Quando o que se persegue numa proposta didática é fazer os alunos perceberem essas relações dialógicas que constituem os textos/enunciados, abre-se um leque de possibilidades para que esses alunos avancem na construção dos sentidos para o que lêem e escrevem, criando-se condições para que se tornem efetivamente leitores e escritores críticos e letrados. Entretanto, os critérios para modelizar o gênero, percebemos, foram os de domínios sociais de comunicação, as estruturas discursivas e as capacidades de linguagem. Tais critérios têm sua pertinência à medida em que, sendo transversais aos gêneros, funcionariam como um esquema generalizado de apropriação de suas propriedades e, quando devidamente apropriados, daria aos alunos certa autonomia e desempenho na produção e compreensão dos diversos gêneros. Por outro lado, eles restringem o tratamento dos elementos específicos dos textos/enunciados, direcionando o enfoque mais para as questões de funcionalidade, composição ou estruturação, limitando o tratamento da discursividade. Percebemos que, nas atividades, a apreciação do discurso autoral incide, em maior ênfase, sobre aspectos voltados para a estruturação ou composição retórica e textual, sobre a alimentação temática (assunto) e o tratamento, em menor ênfase, de alguns elementos gramaticais de ordem lógico-argumentativa. Com base no que vimos demonstrando na análise, a ―discursividade‖ é tratada em sua funcionalidade prágmática. 188 CONCLUSÃO Finda a análise do projeto de ensino-aprendizagem do artigo de opinião do Caderno PV, podemos apresentar nossas considerações finais. Por nossa pesquisa inserir-se nos pressupostos do paradigma sócio-histórico e cultural no ensino-aprendizagem de língua materna em contexto escolar, buscamos compreender, primeiro, os postulados do Círculo de Bakhtin acerca da produção de linguagem e suas interrelações com a ideologia, a fim de que nos subsidiassem nas reflexões teóricas sobre a produção discursiva nos enunciados. Dadas as contingências de nosso objeto de pesquisa, recorremos às formulações de Vygotsky acerca do ensino-aprendizagem e tivemos também que compreender o modelo didático da Escola de Genebra, pois é nele que se fundamenta o projeto de ensino por nós analisado. Como frisamos em algumas ocasiões de nosso trabalho, essa Escola relê e revê alguns referenciais conceituais de Bakhtin e Vygotsky para propor seus encaminhamentos didáticos. No percurso analítico, procuramos investigar a organização geral da proposta e sua base teórico-metodológica, por acreditarmos que um dos fatores de acabamento de um material didático está ligado à avaliação que o discurso autoral realiza sobre os seus objetos de ensino-aprendizagem, em boa medida sustentado pela fundamentação teórico-metodológica assumida. Essa inter-relação faz-se sentir na modelização didática efetuada, foco de outra etapa de nossa investigação, a fim de desvelar o tratamento dado à discursividade no projeto de ensino. Na confluência dos caminhos teóricos e analíticos, colocamos como linhamestra de investigação a busca por respostas para a questão do tratamento da discursividade nos textos/enunciados. Subjacente a esse objetivo estava nossa preocupação em desvelar as condições de letramento em favor da formação cidadã dos alunos das escolas públicas brasileiras criadas por materiais didáticos que se apresentam como inovadores. Sendo assim, achamos relevante retomar nossas questões de pesquisa, a fim de melhor expor nossos achados. 189 Com o objetivo de entender a organização geral e a base teóricometodológica da proposta didática do projeto de ensino do artigo de opinião, orientamos nossa investigação pela seguinte questão: 1.Como se organizam teórica e metodologicamente a 1ª e a 2ª edições do Caderno PV, da OLPEF, voltadas para o ensino-aprendizagem do gênero artigo de opinião? Em relação à organização teórico-metodológica, no Caderno PV, da 1ª edição, ocorreu uma mescla entre abordagens de perspectiva discursiva e textual, cuja oscilação pode ser sentida nas definições de concepção de linguagem, do funcionamento e constituição dos gêneros e suas instâncias de produção, circulação e recepção e do funcionamento e finalidade do jornalismo como também na defesa das finalidades legadas ao ensino. No Caderno da 2ª edição, na introdução à proposta ainda se sentia a mescla entre a perspectiva discursiva e textual na definição de alguns elementos do gênero, por exemplo, no esforço do discurso autoral em definir um conceito de jornalismo que culminou numa definição, em certa medida, equivocada. Mostrou-se também em uma passagem em que se abordava a dimensão ideológica da linguagem, elemento que, infelizmente, não se desdobrou nas atividades. Nesta 2ª edição, notamos, como predominante, uma preocupação mais consciente em assumir uma abordagem mais textual articulada a uma perspectiva retórica. Nesse movimento, percebemos que o discurso autoral procurava apagar possíveis marcas que podiam comprometê-lo com uma abordagem discursiva, limpando referências bibliográficas, termos e nomenclaturas que poderiam ser, com esta abordagem, identificados, conforme assinalamos no capítulo 4 desta pesquisa. No que diz respeito aos objetivos gerais do Programa (formar o professor para o trabalho na perspectiva dos gêneros textuais) e do projeto de ensino do artigo de opinião em si (ensinar o artigo de opinião para desenvolver as capacidades de argumentação favoráveis à formação cidadã), esta oscilação teórica não representou aparentemente nenhuma modificação. A abordagem textual que predomina na fundamentação teórica da proposta, tanto na 1ª quanto na 2ª edição, é a perspectiva da Escola de Genebra, 190 conscientemente assumida pelo discurso autoral não apenas na escolha do modelo didático dessa escola para projetar o ensino-aprendizagem do artigo de opinião, mas também nos elementos que foram sendo delineados e que constituíram os critérios utilizados na elaboração da sequência didática do gênero artigo de opinião. Assim, já na fundamentação teórica, o discurso autoral nos permitiu entrever quais aspectos do gênero estavam sendo apreciados e privilegiados na forma como descrevia e apresentava as características do artigo de opinião. Em consonância com a noção de gênero adotada, pudemos antecipar, de certa maneira, que, no âmbito do projeto de ensino contido no Caderno PV, os elementos considerados importantes para serem ensinados seriam seus aspectos funcionais e composicionais retóricos textuais. E aqui, com o objetivo de investigar o tratamento discursivo recebido pelo artigo de opinião no processo de sua didatização, no Caderno PV da OLPEF, começamos a envidar mais algumas considerações, a fim de responder nossa segunda questão de pesquisa: 2. De que forma as atividades propostas para a didatização do artigo de opinião no Caderno PV, da OLPEF, tratam a discursividade? Conforme pudemos demonstrar, nas análises das atividades do Caderno PV, apesar de haver uma preocupação em fornecer ao professor e ao aluno uma base a respeito da situação de produção e fornecer subsídios para a alimentação da temática do artigo de opinião, o discurso autoral, para dar conta da estruturação textual, mesclou o emprego de categorias sociopsicológica de perspectiva textual como as ações de linguagem dominantes implicadas no uso do artigo de opinião (tese, sustentação, refutação) com categorias ―discursivas‖ de perspectiva retórica (dados, conclusão, justificativas, suporte, modalizador e refutação). Além disso, essas categorias foram complementadas com a exploração de tipologias textuais, na 2ª edição, e, algumas vezes, capacidades leitoras cognitivistas. Em relação ao modelo ―discursivo‖ de argumentação, buscado nos aportes da retórica, sua inserção no projeto representou mais um acúmulo de categorias para o professor e para o aluno sem que representasse algo efetivamente relevante que a categoria anteriormente trabalhada não pudesse atender. Além disso, esse modelo 191 apresentado de forma tão resumida, em vez de constituir uma opção teórica alternativa ao professor, como talvez possa ter objetivado o discurso autoral, tornou a proposta de mais difícil compreensão. A nosso ver, trata-se de categorias retóricas com as quais a maior parte do professorado não tem nenhuma familiaridade, portanto, exigem tempo para formação nessa perspectiva, o que não pode ser realizado através de breves definições no âmbito do próprio projeto de ensino. Diante disso, há que se escolher, formar o professor ou aluno. Caso contrário, não acontece nenhuma uma coisa, nem outra. Nossa experiência mostrou que o professor prefere desconsiderar tais orientações e enveredar por caminhos mais conhecidos, como é o caso da tipologia textual, cuja inserção na proposta foi por nós interpretada como uma apreciação do discurso autoral sobre seus destinatários professores no sentido de que conhece e considera os conhecimentos destes. Além disso, se o objetivo da proposta for verdadeiramente contribuir para a formação de produtores de textos significativos em favor do exercício da cidadania, talvez fosse interessante amenizar a importância dessas categorias em prol de outras. Isso porque, a ênfase nas categorias de linguagem e nas tipologias textuais, ainda que se justifique na proposta, pode trazer o risco de os professores reduzirem a amplitude e profundidade da discursividade e da enunciação aos aspectos formais e textuais do gênero, porque estão mais familiarizados com eles. Rojo (2005) adverte que isso impediria uma compreensão mais efetiva dos aspectos enunciativodiscursivos envolvidos na mudança de enfoque que um trabalho baseado em gênero pode trazer. Apesar de o projeto enfocar o gênero artigo de opinião e trabalhar um contexto de comunicação e uma temática específica, de envidar esforços por diferenciá-lo de outros gêneros da esfera jornalística, como a notícia, de apresentar uma autoria típica, as definições e explicações utilizadas pelo discurso autoral não davam conta de diferenciá-lo de outros gêneros de caráter também opinativoargumentativo, a exemplo da temática controversa, marca principal de diferenciação do artigo de opinião no projeto didático, que pode estar presente em um editorial, carta aberta, ensaio etc. O mesmo se pode afirmar quanto à estruturação discursiva apresentada. Já em relação à autoria típica e ao lugar de produção e circulação do gênero artigo de opinião, além de apresentar algumas definições equivocadas e 192 generalizadas (como no caso do leitor típico do artigo, da função socioideológica do jornalismo) não adquirem grande relevância no projeto de ensino. Além disso, raramente as atividades conseguiam realizar um trabalho eficiente de articulação entre o contexto de comunicação, a temática, a estruturação textual e os recursos expressivos ou estilísticos. Isso se evidenciou na pouca consideração das capacidades linguístico-discursivas no projeto de ensino, quando contempladas, era de forma desarticulada, focalizando apenas alguns elementos de ordem lógico-argumentativa com base em frases ou situações descontextualizadas. Esteve ausente da proposta uma exploração das marcas linguísticas como escolhas direcionadas para determinados efeitos de sentido do texto/enunciado, em dada condição de produção. Observamos também que a capacidade de negociação estava praticamente ausente em todo o projeto de ensino-aprendizagem do artigo de opinião. É interessante ressaltar que o próprio modelo didático em que se fundamenta a proposta inclui a negociação como uma capacidade de linguagem importante no domínio dos gêneros da ordem do argumentar, na qual se insere o artigo de opinião. Considerando que os destinatários presumidos no projeto de ensino do artigo de opinião são alunos de escolas públicas cursando as últimas duas séries do Ensino Médio, ainda que essa seja a mais complexa das capacidades argumentativas, seria indispensável contemplá-la no projeto. Em nosso entender, sua ausência na proposta está ligada a estratégias de modelização no que diz respeito à definição da temática do artigo de opinião. Modelizada como de fundo controverso, reduzida a dois pólos divergentes, fecha-se a possibilidade para a negociação. Como observamos na análise, se por um lado essa estratégia didática pode facilitar a compreensão da interação no artigo de opinião na forma como desejam os autores, por outro, limita a compreensão das relações dialógicas que, se consideradas em sua variedade e matizes, poderiam contribuir de forma mais efetiva para a concretização dos objetivos do projeto em prol da formação cidadã. Essa visão da temática do artigo de opinião está ligada, em termos, à adoção de aspectos da retórica que, conforme afirmamos na análise das atividades no capítulo 5, não influenciam apenas na modelização da estrutura discursiva do gênero, mas também em elementos de seu contexto de produção. 193 Assim, a proposta perde uma grande oportunidade de operacionalizar um elemento, como as relações dialógicas, que poderia trazer contribuições pertinentes para a concretização dos seus objetivos pretendidos, utilizando um gênero como o artigo de opinião, bastante produtivo no que diz respeito à questão da formação do autor e leitor crítico, uma vez que materializa, de maneira mais nítida, as relações discursivas instauradas nos textos/enunciados exemplares desse gênero. Em vez disso, algumas vezes, a proposta resvala até mesmo para perspectivas fundadas em tipologias textuais: introdução, desenvolvimento e conclusão. O caminho proposto para o estudo do gênero artigo de opinião é trabalhar suas regularidades e categorias ―discursivas‖ transversais a ele, quando diz respeito à sua estruturação composicional. E isso reverberou em uma ―discursividade‖ limitada ao contexto de comunicação, que poderá responder adequadamente à construção da significação dos textos/enunciados, mas pode não ser producente para a construção/reconstrução dos efeitos de sentidos produzidos por esses objetos discursivos. Em nosso entender, esses estudos transversais sobre a argumentação não consideram as especificidades dos gêneros. Um artigo de opinião pode muito bem se apresentar sem estar necessariamente organizado em torno de uma tese, sustentada por argumentos hierarquizados em termos de sustentação e refutação. Como bem assinalam Rojo e Cordeiro (2004, p. 10), há possibilidade de recorrências a outras estratégias de introdução como um relato, um depoimento, para chegar à opinião. Ocorrências desse tipo não faltaram nos textos exemplares inseridos no projeto como base para o desenvolvimento das atividades. No que diz respeito às instâncias de enunciação, o discurso autoral considerou as três instâncias básicas — articulistas, temática, leitores (estes de forma bem genérica) — tomadas mais em sua individualidade. Em relação aos articulistas, deu-se pouco relevo ao lugar sócio-histórico de onde esses autores assumiam suas posições, que poderiam encaminhar o trabalho para considerações acerca das correlações de forças ideológico-valorativas envolvidas na produção e compreensão dos discursos. Isso se mostrou também na pouca consideração ou consideração equivocada do papel sócio-histórico do jornalismo, conforme demonstramos no capítulo 4. 194 Sobre a organização didática, a grande aposta do Programa é o modelo didático adotado na construção da proposta de ensino-aprendizagem do gênero, deixando entrever que nisso consiste sua marca diferencial e de inovação. Em certa medida, a adoção desse modelo didático fundado no procedimento da sequência didática aponta para a postura dos autores criadores a respeito de como se aprende e como se ensina língua materna. Concordamos que a metodologia assumida permite (o que nem sempre ocorreu nas atividades) um trabalho indutivo e reflexivo no tratamento didático dos objetos de ensino, expresso, na proposta, na forma como dispõem sua organização local: apresentação da situação de produção, primeira produção textual, atividades que recortam as propriedades do gênero enfocado e produção final. Trata-se de uma abordagem metodológica que orienta passo a passo, como usam os autores criadores, no ensino-aprendizagem do objeto proposto na forma de imersão e não de ―visitação‖. Há um trabalho de complexificação em nível local no interior do projeto de ensino. Nesse movimento, vários instrumentos são mobilizados e disponibilizados, a fim de facilitar o processo de apropriação das formas de linguagem objetivadas na proposta didática. Concordamos com o potencial de tal metodologia em um trabalho que tome o ensino-aprendizagem dos gêneros textuais/discursivos como mega-instrumentos. Conjecturamos, porém, que a instrumentalização excessiva do gênero, apesar da justificativa dos autores genebrinos focada na validade didática, pode levar ao seu fechamento, restringindo, assim, seus potenciais discursivos. O fechamento ou o acanhamento dos processos discursivos no tratamento didático faz com que se perca o que o gênero textual/discursivo possa oferecer de melhor enquanto objeto ou espaço de ensino-aprendizagem de língua materna. Pensando ainda no contexto da educação básica brasileira — em que nossos alunos se encontram em condições de letramento bastante distante do desejado e, por isso, o apelo a práticas de letramento que favoreçam a formação desses alunos em favor da cidadania, de forma que a escola construa um sujeito autônomo, crítico e participativo de seu tempo-espaço sócio-histórico — acreditamos que o tratamento da discursividade, ou seja, a construção de sentidos é bastante proveitosa em um processo de ensino-aprendizagem de língua materna que ainda toma como eixo a apreensão/(re)conhecimento de fórmulas textuais, genéricas etc. 195 A escolha do tema geral do concurso — ―O lugar onde vivo‖ — previamente definido e que funciona como pano de fundo da proposta responde bem às necessidades postas pela contemporaneidade de articulação entre o local e geral, na medida em que deverá ser adaptado e direcionado a um tema específico, mas que tenha relevância social, escolhido pelo professor e pelos alunos participantes para ser desenvolvido na produção textual. Concordamos com o discurso autoral que este tema contribui para a valorização da interação entre crianças e jovens entre si e o meio em que vivem, o que pode possibilitar o conhecimento e estreitar os vínculos com a comunidade como também possibilita, com a escolha desse tema, que o aluno se aproprie da escrita aplicada a contextos específicos e significativos para ele. Entretanto, na operacionalização da proposta, o discurso autoral privilegia os elementos estáveis do gênero enfocado, em detrimento da exploração de aspectos que poderiam favorecer a formação crítica do leitor e autor de textos. Acreditamos ser esse enfoque decorrente da ênfase da proposta na formação do produtor proficiente de textos, e isso acarreta algumas restrições para o objetivo a que se propõe. A nosso ver, o enfoque no produtor proficiente é decorrente da base teóricodidática adotada. Conforme apontamos no capítulo 2, há um privilégio, nas propostas e encaminhamentos curriculares dos didatas genebrinos, da formação do produtor proficiente, em prejuízo da formação do leitor e autor críticos. No entanto, entendemos que esses didáticos, quando elaboraram a proposta didática e propuseram seus encaminhamentos, tinham em vista um contexto específico de ensino — o de Genebra. Em vista disso, pontuamos que, no contexto de ensino brasileiro, principalmente o público, essa proposta didática precisaria ser adaptada, inclusive, sofrer um realinhamento de enfoque, porque, os resultados de exames de avaliações externas, como também os estudos acadêmicos, apontam que as necessidades mais urgentes do ensino público brasileiro é favorecer a formação do leitor crítico. Observamos ainda que a formação do produtor proficiente ou autor passa pela formação do leitor crítico e vice-versa. Por isso, essas duas formações não podem ser feitas separadamente. Por isso, advogamos uma abordagem que abranja o artigo de opinião em sua discursividade e dimensão sócio-histórica, atentando para os aspectos do seu 196 processo de produção, circulação e recepção, para as dimensões ideológicas envolvidas nessas inter-relações, bem como para os aspectos da forma composicional e expressões linguísticas que dão contornos ao estilo autoral ou ao estilo do gênero e contribuem para a reconstrução dos sentidos. Nessa perspectiva, mesmo as categorias transversais ao artigo de opinião poderiam ser mais bem trabalhadas, desde que se buscassem os efeitos de sentidos produzidos pela opção de uma ou outra, pelos interesses ideológicos em jogo etc. Por esse caminho talvez fosse possível a construção de projetos de ensino mais relevantes para a construção dos sentidos dos textos/enunciados, o que, em nosso entender, deve ser perseguido numa proposta que pretende formar o aluno produtor de textos significativos em favor do exercício da cidadania. Tal formação prescinde de um trabalho articulado entre leitura e produção, o que não se efetivou na proposta, a qual está bastante voltada para a formação do produtor de texto, podendo tal afirmação ser comprovada pelos tipos de atividade de leitura propostos. Neles, a condução da leitura objetivava mais o (re)conhecimento de aspectos composicionais e funcionais necessários para a produção textual, que o desenvolvimento da capacidade de compreensão crítica do texto. Como bem nos lembra Rojo (2005), diante da realidade escolar brasileira com seus acentuados problemas de iletrismo, a necessidade dos alunos é de terem acesso letrado a textos de opinião entre outros. Para isso, há que se investir em propostas de ensino que despertem para a réplica ativa e para a flexibilidade dos sentidos na polissemia dos signos e não apenas em propostas qe ensinem os alunos a reconhecer, localizar e repetir os significados e as formas dos textos. Esperamos que este trabalho tenha contribuído para os estudos de Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Materna e para as Políticas de Ensino na medida em que traz em seu bojo análises de materiais didáticos específicos, bastante subsidiados pelo poder público, e que adentram a escola sem serem avaliados institucionalmente, e estarem ainda pouco avaliados academicamente. 197 BIBLIOGRAFIA ALVES FILHO, F. A autoria institucional nos editoriais de jornais. Alfa, São Paulo, n. 50 (1), p. 77-89, 2006. _______. O pé biográfico e a constituição da autoria em artigos de jornal. Linguagem em (Dis)curso, v. 8, n. 2, p. 335-351, maio/ago. 2008. AMORIM, A. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa Editora, 2001. ________. Vozes e Silêncio no texto de pesquisas em Ciências Humanas. Caderno de Pesquisas, n. 116, p. 7-19, julho/2002. ________. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In: FREITAS, M. T.; Souza, S. 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