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Sociologia e Trabalho:
Uma Leitura Sociológica Introdutória
Walmir Barbosa
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................................04
1. AS CIÊNCIAS SOCIAIS...................................................................................................05
2. AS TEORIAS CLÁSSICAS ..............................................................................................11
2.1. O Pensamento Positivista................................................................................................11
2.2. O Pensamento de Marx...................................................................................................13
2.3. O Pensamento Liberal de Max Weber ..........................................................................27
3. O SENTIDO ONTOLÓGICO DO TRABALHO............................................................35
4. HISTÓRIA, SOCIEDADE E TRABALHO.....................................................................39
4.1. Sociedade Primitiva e Trabalho.....................................................................................39
4.2. Sociedade Escravista e Trabalho ...................................................................................41
4.3. Sociedade Feudal e Trabalho .........................................................................................43
4.4. Sociedade Moderna e Trabalho .....................................................................................50
4.5. Sociedade Contemporânea e Trabalho .........................................................................60
5. CAPITALISMO, DINÂMICA DE REPRODUÇÃO E CRISE.....................................71
6. UMA ABORDAGEM CRÍTICA DO ESTADO..............................................................85
7. ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL107
8. PADRÃO DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA NO BRASIL DO SÉCULO XX .....119
8.1. Introdução........................................................................................................................119
8.2. Reorganização da Cafeicultura e Industrialização ......................................................120
8.2.1. A Formação do Assalariado Urbano ..........................................................................122
8.2.2. Da Manufatura à Indústria: A Difícil Transição ......................................................124
8.3. Estado, Classe Operária e Padrão de Acumulação de 1930 a 54................................129
8.3.1. A Revolução de 30 e o Surgimento do Estado Intervencionista...............................130
8.3.2. O Operariado no Conjunto das Transformações do Período ..................................133
8.3.3. Industrialização e Padrão de Acumulação.................................................................136
8.4. Padrão de Acumulação Capitalista Internacionalizado ..............................................142
8.4.1. A Nova Fase de Expansão............................................................................................144
8.4.2. Contradições e Desequilíbrios do Novo Padrão de Acumulação e Financiamento
Capitalista ...............................................................................................................................147
8.4.3. A Crise de 1962 a 1967.................................................................................................149
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8.4.4. As Características do Ciclo Econômico do “Milagre Econômico Brasileiro” ........155
8.5. Contradições e Crise do “Milagre Econômico Brasileiro”..........................................160
8.6. O II Plano Nacional de Desenvolvimento......................................................................163
8.6.1. O II PND: O Prolongamento da Acumulação Precedente e a Postergação da
Agonia......................................................................................................................................164
8.6.2. O II PND e as Contradições Burguesas......................................................................167
8.6.3. Contradições e Crise do II PND..................................................................................170
8.7. A Articulação do Modelo Econômico ............................................................................172
8.8. A Transição Para o Novo Padrão de Acumulação Capitalista e de Financiamento .180
9. GLOBALIZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA........................................183
10. IMPÉRIO E DESTRUIÇÃO...........................................................................................207
Anexo 1
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APRESENTAÇÃO
Convivemos com um período histórico particularmente difícil para o mundo do trabalho.
A democracia liberal reduzida a um caráter formal e a economia de mercado global acima da
política de sentido público e das necessidades humanas, têm determinado fenômenos sociais
como o acirramento das contradições e conflitos sociais, a busca pelas soluções individuais, a
desideologização do debate político e o avanço do relativismo, do irracionalismo e do niilismo
na sociedade atual.
O cinismo percorre o pensamento e a ação social de grande parte dos indivíduos e grupos
sociais que têm conservado o acesso privilegiado aos bens materiais e culturais. Legitimam e
justificam, de forma ativa ou passiva, direta ou indireta, explícita ou implícita, a democracia
liberal formal e a economia de mercado global, arquitetas do fascismo social em curso em todo o
mundo.
O presente texto pretende-se uma contribuição de caráter introdutório, no âmbito de
temas sociológicos e históricos, no sentido de proporcionar uma instrumentação teórica e
metodológica de abordagem crítica da realidade atual. O enfoque buscará uma abordagem de
totalidade da realidade a partir do mundo do trabalho.
O presente texto pretende-se constituir em um caderno didático básico e disponível
eletronicamente, voltado para a disciplina Sociologia do Trabalho. Enquanto material didático
concebido eletronicamente nos permitirá a sua reapreciação e reestruturação continuada a partir
da avaliação permanente conduzida por alunos e professores da disciplina.
Em que pese os limites de um texto de caráter introdutório e do próprio autor é necessário
que se registre as contribuições de Ana Paula O. S. Nunes e de Sebastião Cláudio Barbosa. Estas
contribuições ocorreram por meio de leituras críticas e debates pessoais, nem sempre assimiladas
pelo autor.
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1. AS CIÊNCIAS SOCIAIS
As ciências sociais possuem como objeto de investigação e estudo o comportamento
social humano. Comportamento este que pode assumir diversas expressões e formas sociais.
À medida que o conhecimento acerca do comportamento humano foi sendo ampliado, as
ciências sociais foram se dividindo em diversas ciências particulares. Dessa forma se
consolidaram na:
a) Sociologia, que se ocupa do estudo das relações sociais e das formas de associação dos
diversos grupos sociais. São temas de investigação da sociologia a divisão social da
sociedade, os conflitos sócio-politicos, os processos de mudança social etc.
b) Economia, que se ocupa do estudo do processo de produção, circulação, distribuição e
consumo de bens e serviços. São temas da investigação da economia o padrão de
acumulação capitalista vigente, as políticas públicas sobre a esfera do mercado etc.
c) Antropologia, que se ocupa do estudo das origens e desenvolvimento da cultura dos
diversos grupos humanos (étnico, nação etc), bem como suas identidades culturais. São
temas de investigação da antropologia a indústria cultural, mitos e ritos antigos
reminiscentes na nossa contemporaneidade etc.
d) Ciência Política, que se ocupa do estudo das relações de poder no âmbito das macro e
micro estruturas sociais. São temas de investigação da Ciência Política o caráter e o papel
do Estado, as lutas e conflitos políticos etc.
Surge a Sociologia
Conforme disse certa vez um pensador “não há raios em dia de céu azul”. Os fenômenos,
sejam eles naturais ou sociais, são fruto de condições e circunstâncias que podem ser mais ou
menos evidentes, mas que serão sempre determinantes para a sua materialização.
A sociologia surge como o resultado de condições e circunstâncias historicamente
determinadas. A acumulação primitiva do capital, que transforma o trabalho em mercadoria e
revoluciona a produção e a circulação das mercadorias, e a emergência do urbanismo,
antropocentrismo e do espírito crítico-investigativo, que dessacraliza a política e o Estado e
coloca o pensamento liberal e contratual no centro das relações sociais, desagrega
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progressivamente o chamado Antigo Regime, isto é, a sociedade de ordens, o absolutismo e o
mercantilismo.
Entre os séculos XV e XVIII transformações progressivas nas esferas sociais
econômicas, políticas e culturais estão, portanto, em curso. Como conseqüência, ocorrem as
revoluções industrial e burguesa, de forma a consolidar definitivamente a sociedade moderna e o
projeto social burguês.
A afirmação da nova sociedade intensifica as contradições e os conflitos sociais. Os
conflitos de classes envolvendo as classes sociais tradicionais (aristocracia, artesãos e
camponeses) e as classes sociais emergentes (burguesia, camadas médias e proletários) e,
principalmente, as novas classes sociais fundamentais, isto é, a burguesia e o proletariado. A
sociologia surge, portanto, para refletir sobre as transformações, crises e antagonismos de classes
que acompanham a afirmação da sociedade industrial e burguesa.
A sociologia não surge para contestar e/ou criticar a nova sociedade em consolidação. A
preocupação fundamental dos primeiros “sociólogos” consiste na reorganização e reestruturação
da sociedade capitalista e burguesa, de forma a encontrar um “padrão social saudável”. O
compromisso para com a preservação e manutenção da chamada nova ordem capitalista
encontra-se explícita no pensamento dos primeiros sociólogos.
A objetividade científica na sociologia
O conhecimento científico objetivo ou objetividade científica é uma busca permanente de
toda ciência e de todo pesquisador. Nas ciências sociais este objetivo não é facilmente
alcançável.
Os fatos sociais são singulares, não se repetem jamais. Tal singularidade priva as ciências
humanas da possibilidade de formular sistemas explicativos causais, o que faz de qualquer fato
social e de qualquer pesquisa sobre ele, processos sociais singulares e sujeitos à “arbitrariedade”
do sujeito que investiga o objeto.
É necessário, portanto, reconhecer o quanto é problemática a questão da objetividade
científica nas ciências sociais. De fato, podemos nos deixar conduzir, no estudo da sociedade ou
de grupos sociais a que pertencemos ou com os quais nos identificamos, por um conjunto de
idéias, crenças e valores que apreendemos ao longo da nossa existência.
Hoje reconhecemos mais claramente que a imparcialidade e a neutralidade do sujeito que
investiga frente ao objeto investigado é uma ilusão, uma miragem cada vez mais raramente não
reconhecida. Este fato, todavia, não pode ser tranqüilizador. A objetividade científica, que não é
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de forma alguma facilmente alcançável, pode ser conquistada. Portanto, é necessário buscar o
“distanciamento” ideológico-político frente ao fenômeno investigado e a abertura para novas
possibilidades teóricas, metodológicas e técnicas na investigação do referido fenômeno.
A sociologia no Brasil
Transformações profundas têm início no Brasil a partir da lei Eusébio de Queiroz e da
Lei de Terras, ambas de 1850. Por meio delas tem início a transição do trabalho escravo para o
trabalho livre e a transformação do trabalho (não do trabalhador) em mercadoria, isto é, tem
início a transição das relações escravistas de produção para as relações capitalistas de produção
no país.
Transformações são mais sentidas a partir de 1870. Observa-se uma rápida expansão
demográfica, um considerável processo de urbanização, a formação de segmentos médios
urbanos, uma intensa imigração européia, uma expansão inusitada da nova cafeicultura
capitalista, o surgimento das primeiras indústrias, entre outros processos. Estas transformações
culminam no processo de afirmação do projeto liberal republicano por meio da abolição da
escravidão, da Proclamação da República e da constituição promulgada de 1891. Surge nesse
processo, o Estado burguês no Brasil.
Estas transformações também estão presentes no pensamento. No plano da criação
literária, por exemplo, surge a reflexão e a crítica social, conforme demonstram as obras de
Aluízio de Azevedo, de Machado de Assis e de Castro Alves. Mas, seguramente, será com
Euclides da Cunha, por meio da obra Os Sertões (1902), que a reflexão e a crítica social opera
um grande passo no Brasil, seja para compreender o país, seja para afirmar um pensamento que
se ocupa do comportamento social humano.
Os Sertões permite um olhar para o país a partir dele mesmo, no qual se busca identificar
as contradições entre o litoral e o interior, o urbano e o rural. Permite, ainda, um olhar para as
classes sociais subalternas, e as mesmas são reconhecidas como possuidoras de capacidade e
possibilidade de transformar a realidade.
Nas primeiras décadas do século XX o processo de urbanização e de industrialização
acentuará perspectivas nacionalistas, modernistas e desenvolvimentistas. São exemplo destas
perspectivas o movimento tenentista, a Semana de Arte Moderna e a Revolução de 1930.
Definitivamente encontra-se despertada junto a setores da classe burguesa vinculada a
indústria e às camadas médias intelectualizadas a necessidade da compreensão dos conflitos
sociais, das contradições entre modernização e arcaísmo, do aprimoramento das instituições
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públicas em face das novas necessidades. O ambiente histórico favorável para o surgimento da
sociologia enquanto uma ciência voltada para
o conhecimento sistemático e metódico da
sociedade, culmina na fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (1934) da
Universidade de São Paulo, influenciada pela sociologia francesa de inspiração weberiana e
marxista, e com a fundação da Escola Livre de Sociologia e Política (1933), influenciada pela
sociologia norte-americana de inspiração neopositivista e funcionalista.
O surgimento das faculdades de sociologia encontra-se profundamente influenciado por
Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Estes estudiosos influenciaram
profundamente os anos 30 e 40.
Caio Prado Júnior, lançando mão do método marxista e partindo do referencial histórico,
busca uma investigação de cunho social. Por meio de obras como Evolução Política do Brasil
(1933) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), investiga o caráter subalterno e
dependente da sociedade brasileira, desde a sua origem até o século XX, bem como as formas de
opressão e exploração dos grupos sociais subalternos.
Sérgio Buarque de Holanda, lançando mão do método weberiano e partindo do
referencial histórico-cultural, busca uma investigação da trama estabelecida entre a ocupação do
espaço brasileiro e a construção da subjetividade destes grupos humanos. Por meio de obras
como o Raízes do Brasil (1936) e Visão de Paraíso (1959), investiga a visão esteriotipada dos
europeus acerca do Brasil.
Gilberto Freyre, lançando mão do método funcionalista e partindo do referencial
antropológico, busca uma investigação da cultura nacional. Por meio de obras como CasaGrande e Senzala (1933) e Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural no
Brasil (1936), investiga a fusão de raças, regiões e culturas e o papel do negro na formação da
identidade cultural brasileira.
Nos anos 50 o Pensamento social brasileiro amadurece definitivamente graças aos
estudos de Florestan Fernandes e Celso Furtado.
Florestan Fernandes busca, de um lado, uma síntese entre a formação teórica e a
formação prática transformadora, isto é, busca uma ciência da práxis; de outro, uma abordagem
que combinasse a identificação das estruturas – os fundamentos da organização social – com
conjunturas históricas – contradições geradas pela dinâmica interna da estrutura. Florestan
Fernades representa uma continuidade em relação a Caio Prado Júnior, visto que também busca
compreender as raízes do caráter subalterno e dependente do Brasil, bem como dar voz aos
grupos sociais subalternos por meio de obras como A organização social dos tupinambás
(1948) e A integração do negro à sociedade de classes (1964).
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Celso
Furtado
busca
construir
uma
interpretação
histórica
da
formação
e
desenvolvimento econômico do Brasil e da América Latina no contexto das relações
internacionais, a partir de referencias weberianas e keynesianas. O seu objetivo principal é
compreender o subdesenvolvimento.
Para Celso Furtado o subdesenvolvimento não seria uma etapa histórica necessária para
os países alcançarem o pleno desenvolvimento capitalista, e sim o fruto do próprio
desenvolvimento do capitalismo, e que leva ao sacrifício de povos, países e continentes. Celso
Furtado compreendia, ainda, que o subdesenvolvimento poderia ser superado nos marcos do
próprio capitalismo por meio de intervencionismo e planificação estatal, da estratégia de
industrialização por substituição de importações, da defesa do mercado interno e da
modernização do setor agropecuário.Procura demonstrar estas teses por meio de obras como
Formação Econômica do Brasil (1959) e Formação Econômica da América Latina (1969).
Nos anos 60 e 70 o pensamento social brasileiro é profundamente marcado por
pensadores como Darcy Ribeiro e Octávio Yanni.
Darcy Ribeiro busca estudar a questão indigenista sob influência do estruturalismo de
Levi-straus e do marxismo. Dentre suas obras de maior destaque encontram-se O Processo
Civilizatório (1968) e Os Brasileiros (1969).
Octávio Yanni busca estudar o desenvolvimento econômico brasileiro, a exploração e a
resistências dos grupos sociais do mundo do trabalho, referenciados nos clássicos marxistas e
weberianos. Dentre suas obras de maior destaque encontram-se Estado e Planejamento
Econômico no Brasil – 1930 a 1970 (1971) e A sociedade global (1993).
O pensamento social brasileiro encontra-se profundamente influenciado pela ofensiva
liberal, também denominada neoliberal, em todo o mundo. Esta ofensiva teve início com a
ascensão dos conservadores e republicanos neoliberais, respectivamente, na Inglaterra (Thacher,
1979) e nos Estados Unidos (Reagan, 1980) e foi aprofundada com a queda do Muro de Berlim
(1988) e com o fim da União Soviética (1991).
A ofensiva liberal culmina na campanha ideológica neoliberal, ancorada em aspectos
como na crítica do intervencionismo estatal, na defesa da privatização e desregulamentação da
economia, na ação política de desarticulação da rede pública e previdenciária de proteção social,
de um lado, e na campanha ideológica globalitária, ancorada em aspectos como na crítica das
barreiras alfandegárias, na livre movimentação de capital, mercadorias e serviços, no novo
impulso no processo de mundialização das empresas transnacionais. As conseqüências para o
pensamento social brasileiro foram o refluxo dos estudos sociais, o abandono da teoria e
10
metodologia marxista por diversos intelectuais, o crescimento dos estudos de abordagem
fragmentada, a revitalização de estudos de mentalidade, cultura, identidade etc.
Mais recentemente, observa-se a intensa retomada dos estudos dos fenômenos sociais, da
teoria e metodologia marxista e de abordagens de totalidade. Isto porque, de um lado, a ordem
mundial pós–guerra fria não proporciona uma distribuição mais justa dos bens materiais e
culturais, muito pelo contrário. De outro lado, o próprio agravamento da crise social, econômica,
política e ideológico-cultural do capitalismo e da sociedade burguesa, impõe desafios e respostas
inusitadas para as contradições e conflitos sociais.
Enfim, a perspectiva de uma ordem social nacional e internacional de abastância de bens
e de paz e do fim das revoluções, imortalizada na tese do “ fim da história ” de Francys
Fukuyama, dá lugar a bruta realidade. Neste contexto cabe à sociologia, em especial na sua
concepção crítico-transformadora, contribuir para a interpretação dessa realidade.
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2. AS TEORIAS CLÁSSICAS
A sociologia, já na sua origem, se ocupa das contradições e conflitos que percorrem a
sociedade. Todavia, a abordagem das contradições e conflitos assumem perspectivas e
compromissos sociais e políticos profundamente diferenciados. O pensamento positivista, o
pensamento de Marx e o pensamento de Weber expressam o prolongamento das contradições e
conflitos sociais para o próprio pensamento social.
2.1. O Pensamento Positivista
O Positivismo nasce de pensadores como Saint-Simon, August Comte e Émile Durkeim.
Para os positivistas a sociedade, tal qual o mundo natural, seria regida por leis naturais,
invariáveis, independentes da ação e da vontade dos indivíduos. O papel da ciência positiva seria
observar e descrever, sob neutralidade e objetividade científica, estas leis de forma que os
homens pudessem agir de acordo com elas.
A concepção positivista concebe a sociedade como um organismo composto por partes
diferentes e interdependentes. A existência saudável desta sociedade depende da integração entre
as partes e do desempenho da função específica de cada uma das mesmas. Assegurar integração
e desempenho de função proporcionaria um padrão de saúde social cuja expressão seria o
consenso, a conciliação e a coesão social.
Assegurar a harmonia entre as partes, dentro da ordem natural do mundo social, tornaria
possível a sociedade evoluir crescentemente, isto é, atingir o progresso. Contudo, em uma
sociedade em que cada indivíduo ou grupo – a parte – contestasse o seu lugar natural no interior
da sociedade, desconhecendo o seu papel e função específica, teria início a desintegração e a
crise de desempenho de função. Estabeleceria um estado de “patologia social”, cuja evidência
seria o conflito. Neste contexto, o progresso técnico, econômico, social, político, cultural, escolar
etc, estaria comprometido.
Para os positivistas a própria dinâmica acelerada das sociedades industriais
contemporâneas geraria um ambiente social permissivo a conflitos. A dinâmica acelerada de
criação de novas relações sociais proporcionada pela sociedade industrial, por exemplo, não
permitiria o tempo necessário para sedimentar usos e costumes que gerariam uma
regulamentação legal adequada sobre os direitos e deveres das partes que compõem o todo
social. Estabeleceria estados de anomia social, isto é, de ausência de leis claramente
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estabelecidas para dirigir a conduta dos indivíduos.
A perpetuação do estado de anomia geraria o caos e a desordem social de forma a colocar
sob risco a sociedade e o progresso social. A investigação das relações entre capital e trabalho
sob uma conjuntura de transformações capitalistas mergulhadas em estado de anomia social
cumpriria, por exemplo, o papel de proporcionar ao poder público e empresários as condições
para formular e estabelecer a legislação trabalhista adequada aos novos tempos. Como resultado
ocorreria a superação do conflito entre capital e trabalho.
Estado e Política Científica
Para a concepção positivista o cientista social, em especial o sociólogo, possui o
instrumental científico para detectar os estados de normalidade e de patologia social. Todavia,
não dispõe do instrumental político para materializar as suas conclusões científicas.
A materialização das conclusões científicas caberia a outro grupo social, os políticos. Isto
porque os políticos integrariam o Estado, instituição concebida por eles como sendo superior a
todas as outras instituições e acima dos indivíduos e dos grupos sociais, cuja função seria
coordenar as funções das diversas partes da sociedade, de forma a assegurar o bem comum, a
harmonia, a ordem e o progresso social. Assim, “o Estado seria o cérebro social, o lugar da
política que zela pelo bem comum” (Ridenti, 1992, p. 9).
A concepção positivista concebe a política como instrumento para o “tratamento” das
“patologias” identificadas e descritas pela sociologia, isto é, como a instituição necessária entre a
descoberta científica da ciência sociológica e a realidade a ser “tratada”. A atuação política não
poderia, portanto, encontrar-se ao sabor irresponsável e inconstante dos operadores políticos.
Poderia e deveria ser conduzida cientificamente pelos operadores políticos para combater os
conflitos, gerar a ordem social e promover o progresso econômico.
Nesta perspectiva, quando a atuação dos operadores políticos for igualmente científica, o
futuro político será previsível. Isto porque o futuro, ainda que sujeito a anomia social, seria o
desenvolvimento natural do presente racionalizado e planejado.
Sociedade e Vontade Política
Para a concepção positivista a sociedade, por meio de instrumentos ou espaços sociais
como a educação, a família, a igreja, a empresa etc, impõe um processo de sociabilização dos
indivíduos. O indivíduo incorporaria como seus valores próprios as regras de conduta social
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impostas pela sociedade, a exemplo do uso da linguagem, do amor à pátria, do respeito às
instituições, e assim por diante.
Na sociedade contemporânea os indivíduos teriam realçado o seu papel. Isto porque
ocorreria uma intensa divisão social e técnica do trabalho, respectivamente, na sociedade e no
local de trabalho. O fortalecimento das individualidades se articularia com a extrema
interdependência e solidariedade dos indivíduos, isto é, quanto mais o progresso técnico
individualizasse o indivíduo mais o tornaria interdependente. Nesta perspectiva, progresso social
e liberdade individual caminhariam na mesma direção quando a sociedade se encontrasse sob um
estado de ordem social.
Do ponto de vista político caberia aos indivíduos declinar de realizar mudanças nas leis
que regem o desenvolvimento social e que estão fora e acima das vontades particulares. Caberia
aos indivíduos concorrer para que estas leis atuassem livremente, somente possível com o
desenvolvimento da sociedade sob um estado de ordem social.
2.2. O Pensamento de Marx
Marx, por meio do diálogo crítico com os pensadores que o precedem e do
compromisso com o mundo do trabalho, formula um novo método de análise. Método este que
proporciona uma nova concepção de homem e de sociedade, uma interpretação dialética da
história e uma crítica da economia política burguesa.
Sociedade e Totalidade em Marx
Identificar o método de análise de Marx nos impõe, de início, expor o seu conceito de
“sociedade”. Para Marx, a sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e
específica, seria produto do desenvolvimento individual e da ação recíproca dos homens, tenham
eles consciência disso ou não. Entretanto, não poderiam eleger a formação social em que se
encontram, nem tampouco arbitrar livremente sobre suas forças produtivas. A formação social e
as forças produtivas seriam o resultado, respectivamente, das lutas sociais e da ação sobre a
natureza conduzidos por parte dos homens que os precederam.
A sociedade se conformaria em um todo complexo e interdependente, sujeita a
múltiplas determinações. A um determinado nível do desenvolvimento das forças produtivas,
corresponderia um determinado desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo. Um
determinado nível do desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo, corresponderia
14
a um determinado desenvolvimento das formas de organização social – organização da família,
das classes sociais etc. Um determinado nível de desenvolvimento das formas de organização
social, corresponderia a um determinado Estado. Um determinado desenvolvimento das forças
produtivas e das relações de produção, corresponderia a determinadas expressões ideológicoculturais (Marx e Engels, 1952, p. 414-424).
A sociedade, articulada por meio de uma formação social concreta e específica,
encontrar-se-ia em constante movimento. Portanto, qualquer formação social seria sempre
transitória e histórica.
Este conceito de “sociedade” é uma construção proporcionada pelo método dialético e
compõe a concepção materialista da história. A compreensão das sociedades de classes, por
exemplo, não pode ocorrer, portanto, abstraindo a gênese da sociedade, o modo como ela é
produzida e o modo como ela opera em função da sua própria gênese.
O Método Dialético
Para Marx, a idéia não pré-existiria ao real, ao material. A idéia seria o próprio real
transposto e traduzido no pensamento do homem. Marx excluía o sublime, o fantástico do
existente, do real.
Essa leitura dialética e materialista da relação entre idéia e real determinaria o método de
análise de Marx, de modo que este partiria sempre da investigação preliminar do real e do
concreto. Não do real e do concreto idealizado, como poderia sugerir o termo “população”,
quando abstraído das suas classes sociais, das relações de produção sobre as quais se apoia etc,
que, segundo Marx, somente poderia permitir atingir abstrações frágeis e progressivamente mais
simples. Mas do real e do concreto enquanto uma rica totalidade de determinações e diversas
relações. Para Marx 1982, p. 14),
(...) o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de
partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da
representação. No primeiro método, a representação plena volatiliza-se em determinações abstratas, no
segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso
é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se
aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao
concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzilo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto.
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Partir do real e do concreto permitiria, segundo Marx, apreender dinâmicas1 e formular
conceitos, enquanto expressão de múltiplas determinações do real captado e (re)construído no
pensamento. Para Marx, expressaria “o curso do pensamento abstrato que se eleva do mais
simples ao complexo” – e que corresponderia, efetivamente, ao próprio processo histórico
(Marx, 1982, p. 15). Encerrado esse momento retornar-se-ia ao real, mas agora enquanto real
reconstruído e conhecido.
O real se apresentaria enquanto um fluxo permanente de movimento e de contradição.
Movimento e contradição seriam dados objetivos do real, visto que emergiriam das próprias
bases sobre as quais historicamente se configuraria o real. Portanto, independentemente da
própria compreensão da idéia de movimento e de contradição (ou das representações construídas
no âmbito do pensamento, tendo em vista expressá-las), elas percorreriam o pensamento e a
prática do homem.
Movimento e contradição expressar-se-iam em um período ou etapa histórica dominado
por um modo de produção. Esse, por sua vez, se manifestaria por meio de formações sociais
concretas e específicas. O modo de produção, bem como as formações sociais concretas e
específicas, seriam estruturas sociais historicamente determinadas.
Marx concebe o real (a sociedade concreta em seu movimento e sob contradições) como
um processo histórico. Esse real estaria regido por dinâmicas históricas. Não dinâmicas gerais, ahistóricas que, emergidas de leis naturais, regeriam para todo o sempre o real, mas dinâmicas
específicas a cada período ou etapa histórica e que se expressariam por meio de modos de
produção e de formações sociais concretas e específicas. Essas dinâmicas regeriam o movimento
social, por um lado, como um processo, em grande medida, independente da vontade,
consciência e intenção dos homens; mas, por outro, capazes, ao mesmo tempo, de determinar
concretamente a vontade, a consciência e as intenções dos homens como agentes sociais
diferenciados.
Esgotado historicamente um modo de produção, novas dinâmicas se conformariam ao
longo do processo de surgimento de um novo modo de produção. Assim, por exemplo, as
dinâmicas que regulamentariam o comércio, a população, a moeda, no mundo medieval
1
Marx em diversas passagens utilizou o termo “lei” para retratar a dinâmica de um modo de produção ou uma
formação social concreta e específica, provavelmente influenciado pelo cientificismo do século XIX. Lei não no
sentido que o positivismo atribuía a essa palavra, ou seja, algo constante, necessário e determinado pela coisa em si,
que poderia ser reconhecido pelo homem através da observação direta dos fenômenos sociais e naturais. Para o
positivismo, as leis naturais e sociais seriam idênticas. Já para Marx, as “leis” ou dinâmicas sociais seriam históricas
e transitórias, expressando movimentos passíveis de transformação pela ação humana, não possuindo um sentido de
16
ocidental, não poderiam ser transpostas para compreender o comércio, a população e a moeda,
no mundo capitalista ocidental. Categorias que encerram sentidos genéricos, como comércio, por
exemplo, deveriam, por sua vez, ser investigadas dentro da especificidade que assumiriam em
cada modo de produção.
Para Marx, o fundamental na pesquisa científica seria, portanto, descobrir as dinâmicas
que regeriam e modificariam os fenômenos estudados. Para ele essas dinâmicas atuariam nas
condições e interesses materiais, inclusive no âmbito do próprio pensamento. Assim, a crítica do
próprio pensamento, idéia, cultura, da sociedade moderna, somente poderia surgir do real, do
material que o determina e não do pensamento refletindo diretamente sobre si mesmo. É da sua
base material, o real, desvendado pela pesquisa, que o pensamento poderia auto-criticar-se e
desalienar-se. Assim, o pensamento, a idéia, a cultura, em princípio fora de ‘lugar’, poderiam ser
colocadas em seus devidos ‘lugares’.
Marx cuida de distinguir, ainda, o método da pesquisa do método de exposição. Para
Marx, “a pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de
evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor
adequadamente o movimento real” (Marx, 1988, p. 26).
Marx dá exemplo concreto desta prática científica no estudo da economia política.
Anteriormente à confecção da obra O Capital, Marx conduz estudos amplos e profundos sobre a
mercadoria, o valor, a mais-valia, a reprodução (simples e ampliada) do capital, o dinheiro, entre
outros temas, como podemos confirmar nos esquemas de estudo pessoal que tomam a forma das
obras Para a Crítica da Economia Política e Teorias da Mais-Valia. Elas culminam, por meio
do método dialético, na apreensão das dinâmicas que regem o capitalismo e que podem
proporcionar condições sociais capazes de modificá-lo.
A conquista do conhecimento do real e a sua exposição ordenada no plano do
pensamento, podem criar a ilusão de uma construção a priori, de esquemas dedutivos. Mera
ilusão, se pensarmos que uma obra, quando finalizada, nada mais é do que fruto de intensa
pesquisa e exposição articulada por meio de uma coerência discursiva interna.
Marx, conforme observamos, apresenta o seu método dialético dentro de uma
configuração racional, empírica e materialista. Movimenta suas pesquisas do particular para o
geral e vice-versa, busca apreender dinâmicas e formular conceitos por meio de estudos
comparados dos fenômenos sociais, esforça para demonstrar a coesão entre o que anda nas
exatidão matemática, mas de coerência geral determinada pelo todo interdependente dos elementos que compõe a
sociedade.
17
‘cabeças’ e as bases materiais sobre as quais se localizam os ‘pés’ e coloca a temporalidade dos
fenômenos sociais no centro do seu pensamento.
A Concepção Materialista da História
Os debates sobre a destruição furtiva e o parcelamento da propriedade do solo, em curso
na Província Renana, desperta em Marx uma preocupação com os chamados “interesses
materiais” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 300 e 301). O recolhimento de lenha por parte de
um camponês em uma propriedade, considerada furto pela Dieta Renana, conduz Marx à tomada
de consciência de que o direito protegia a propriedade. Esse processo ocorre na sua experiência
como redator da Gazeta Renana, entre os anos de 1842-43.
Em 1844, por meio dos Anais Franco-Alemães, as investigações desembocam na
conclusão “(...) de que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano (...)”.
Segundo Marx, elas “(...) se baseiam, pelo contrário, nas condições materiais de vida (...)”.
Ainda segundo Marx, “(...) a anatomia da sociedade civil precisa ser procurada na economia
política” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 301).
A continuidade dos seus estudos permite a Marx concluir que “(...) na produção social
da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua
vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento
das suas forças produtivas materiais” (Marx e Engels, 1983, Volume 1, p. 301).
As relações de produção seriam as relações concretas que os homens estabeleceriam em
uma determinada sociedade, tendo em vista a produção e reprodução dos indivíduos, das classes
sociais e da sociedade. As relações de produção se expressariam na forma de propriedade, na
forma de produção e distribuição dos excedentes sociais e na forma de organização das relações
de trabalho entre as classes sociais. As relações de produção condicionariam profundamente as
relações sociais em geral.
As relações de produção encontrar-se-iam correlacionadas no seu desenvolvimento com
as forças produtivas, que seriam os recursos tecnológicos, o conhecimento científico, as
estruturas de produção rural e urbana, o nível de consciência social2 etc. Para Marx, não seria
2
O conceito de “consciência social” em Marx incorporaria as formas de expressão da subjetividade humana
(expressões literárias e filosóficas, romances, doutrinas religiosas, criações artísticas etc), bem como o nível de
consciência e conhecimento da relação homem/natureza e das relações sociais. Essas manifestações da consciência
social seriam ideológicas e mais ou menos racionais, humanistas e críticas, segundo o grau de desenvolvimento da
18
possível forças produtivas desenvolvidas, a exemplo do nível conquistado no capitalismo,
coexistindo com relações de produção ‘atrasadas’ historicamente se comparadas a estas, a
exemplo das relações de produção feudais. Portanto, relações de produção e forças produtivas
determinar-se-iam no desenvolvimento da sociedade humana.
As relações de produção e as forças produtivas, em suas relações concretas e
socialmente estabelecidas, formariam a estrutura3 (ou base) econômica da sociedade. Sobre a
estrutura “(...) se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas
formas de consciência social” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301).
Marx concebe uma interação e uma interdependência profunda entre a estrutura,
responsável pela produção e reprodução da vida material, e a superestrutura, responsável pela
produção e reprodução da vida política e espiritual. A relação dialética que Marx estabelece entre
estrutura e superestrutura não exclui a ontologia. Neste ponto, Marx é categórico quando afirma
que “(...) não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser
social é que determina a sua consciência” (Marx, 1983, Volume 1, p. 301).
Dito de outra forma, Marx não reconhece nas leis, nas formas do Estado, nas expressões
subjetivas dos indivíduos, segmentos e classes sociais uma autonomia e independência da
estrutura, ou seja, das condições materiais de existência da sociedade. Para Marx, a compreensão
das superestruturas exige, necessariamente, um movimento de investigação que parta da
estrutura.
O Conceito de “Modo de Produção”
Marx formula o conceito “modo de produção” para retratar a totalidade social
representada pela estrutura e pela superestrutura. Marx integra, portanto, totalidade e estrutura
para a compreensão, em grandes traços, dos longos períodos históricos de permanência ou
conservação – entendidos como movimentos que não alterariam a essência de uma estrutura, mas
que coexistiriam com a acumulação quantitativa de condições materiais e espirituais, que
levariam a um ponto de ruptura num futuro indeterminado – ou breves períodos históricos de
estrutura econômica, da experiência e de amadurecimento das classes sociais. Enfim, do estágio de desenvolvimento
da sociedade humana.
3
O conceito de “estrutura” pode receber diversos sentidos e dimensões na teoria e metodologia marxista. Pode
significar estrutura (base) econômica; superestrutura (estrutura fruto da materialização de instituições e formas de
consciência social); estrutura global e abstrata identificada com o conceito de “modo de produção”; estrutura global
identificada com uma formação social (ou sócio-econômica) específica e concreta. O fundamental é que o conceito
de “estrutura” remete sempre para um conjunto complexo de elementos interdependentes e estáveis (o que não
significa eterno) no tempo; a estrutura pode ser pensada em si própria ou em relação a outras estruturas.
19
transformações bruscas ou revolucionárias – entendidos como movimentos que alterariam a
essência de uma estrutura, ou seja, rupturas qualitativas das condições materiais e espirituais
responsáveis pela edificação de uma nova totalidade e estrutura.
Marx indica que os grandes períodos históricos estariam estruturados a partir dos modos
de produção comunal, asiático, antigo (escravo), feudal, e burguês. Modos de produção, social e
historicamente determinados, mutáveis, portanto, contrariando o ideal burguês da naturalização
das relações sociais, da sociedade burguesa e capitalista etc.
Modo de Produção e Transformação Histórica
Marx identifica contradições e conflitos na estrutura econômica da sociedade. Para
Marx, as forças produtivas tenderiam para o desenvolvimento, o que as faria colidir com as
relações de produção, que qualificaria e conservaria o modo de produção.
Essa contradição, emergida da estrutura econômica, prolongar-se-ia para além das
condições materiais da sociedade, penetrando na superestrutura e se expressando no âmbito
jurídico, político e ideológico. Isto porque Marx entende a sociedade como uma totalidade, na
qual a estrutura econômica exerce um profundo condicionamento sobre a superestrutura. A
contradição surgida entre as forças produtivas e as relações de produção, responsáveis pelo
prolongamento da contradição para o todo social, criaria um ambiente propício para
transformações. Nas palavras de Marx (1983, Volume 1, p. 302),
(...) abre, assim, uma época de revolução social. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir
sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção e que podem ser
apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas,
artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência
desse conflito e lutam para resolvê-lo.
Assim, a contradição que nasceria no âmbito da estrutura econômica e que se
prolongaria para a superestrutura, não poderia ser superada por ela mesma. A contradição acima
referida apenas criaria o espaço e o ambiente propício para as transformações. A transformação
dependeria da ação do sujeito social, de forma a dar um sentido e uma direção para a remoção
dos obstáculos que as relações de produção (em um determinado nível de desenvolvimento das
forças produtivas) representariam no sentido do posterior desenvolvimento das forças produtivas.
Para Marx, o termo sociedade expressaria um sujeito social genérico. Compreender a
20
história a partir desse sujeito social como um todo indiferenciado seria idealismo. A sociedade se
manifestaria, de fato, por meio de sujeitos sociais concretos, ou seja, das classes sociais
antagonizadas pela propriedade privada e em conflitos explícitos – revoltas, revoluções, greves
etc – e ocultos – inculcação de valores ideológicos, remanejamentos político-institucionais etc.
As lutas de classes seriam conduzidas pelas classes dominantes e dominadas.
Expressariam a praxis, ou seja, ações sociais (políticas, culturais etc), intencionais ou não,
sempre ideológicas, com o propósito de conservar ou revolucionar as relações de produção.
Marx supera, por meio da sua interpretação dialética do curso da história, o
economicismo, que atribui ao fator econômico a responsabilidade pelas transformações, o
evolucionismo, que reconhece uma dinâmica evolutivo-natural comandando o curso das
mudanças, e o voluntarismo, que personifica as mudanças por meio da ação de determinados
personagens e pequenos grupos, desprezando as estruturas econômicas e os embates de classes.
Modo de Produção e Formação Social
A distinção entre modo de produção e formação social não se apresenta clara para
diversos cientistas sociais marxistas - incluindo historiadores. Alguns cientistas sociais marxistas
reduzem o conceito de “modo de produção” a estrutura econômica. Reconhecem no conceito de
“superestrutura” (formas de consciência e instituições) uma dimensão que se encontraria fora do
conceito de “modo de produção”. Para esses cientistas sociais, modo de produção (estrutura
econômica) e superestrutura (formas de consciência e instituições) se comporiam de forma
interdependente em uma estrutura mais ampla denominada formação social - conjugação,
portanto, do modo de produção e da superestrutura em uma realidade concreta e específica
(Gorender, 1985, p. 1-35).
Na concepção de Marx, modo de produção englobaria de forma integrada a estrutura
(ou base) econômica e a superestrutura. O modo de produção seria o objeto teórico, genérico e
abrangente. Uma elaboração teórico-abstrata em nível do pensamento que se prestaria a
contribuir com os estudos de uma formação social (ou econômico-social) concreta e específica.
Enquanto conceito teórico-abstrato estaria em constante construção, visto que os estudos sóciohistóricos permitiriam a descoberta de novos elementos e relações no âmbito do conceito de
“modo de produção” (Vilar, 1988, p. 173 e 174).
O conceito de “formação social” encerraria a realidade social concreta e específica.
Seria, portanto, um conceito menos abrangente e que nos remeteria a uma formação histórica
concreta e específica, a exemplo da formação social portuguesa do século XVI ou da formação
21
social capitalista brasileira do século XX.
O conceito de “modo de produção” seria, portanto, um instrumento operatório, tendo
em vista o estudo de uma formação social concreta e específica.
O Conceito de “Classe Social”
O termo classe social não é criado por Marx. Os enciclopedistas franceses e Adam
Smith se referiam a “estados” ou “ordens”, enquanto que Babeuf e os socialistas franceses falam
de classes de possuidores e laboriosas. A contribuição de Marx para a construção do conceito de
“classe social” surge, primeiramente, da identificação e localização social das classes sociais a
partir das relações de produção, ou seja, da forma de propriedade e das relações que os homens
estabeleceriam em torno dela, tendo em vista a geração e apropriação dos excedentes sociais. As
classes sociais seriam definidas, em primeira instância, sobre as condições materiais em que se
inseriam.
Marx define as classes sociais também em termos políticos. As classes sociais,
distribuídas em termos de dominantes e dominadas, se relacionariam de uma determinada forma
com o poder em cada período histórico. As classes sociais se expressariam por meio de
“partidos”, estabeleceriam alianças, conformariam regimes políticos etc. “A história de todas as
sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, diria Marx
(Marx e Engels, Volume 1, p. 21, 1983).
A partir das relações de produção e das lutas políticas que lhes seriam inerentes, Marx
identifica as classes em termos de classes sociais fundamentais, em torno das quais a qualidade
das relações de produção e dos conflitos seriam definidos, e classes sociais não fundamentais,
periféricas no âmbito das relações de produção e incapazes de definir um projeto social
alternativo às relações sociais dominantes e conduzir um bloco de alianças em torno do mesmo.
Portanto, as relações de produção e a identidade e consciência acumuladas por meio da
experiência política definiriam a posição e a função das classes sociais na formação social
concreta e específica.
Marx não reconhece a existência de classes sociais nas sociedades que não se apoiam na
propriedade privada (comunidades tribais dos celtas, germânicos, eslavos; povos pastores do
oriente; índios da América; sociedades despóticas orientais etc). As sociedades despóticas,
embora coexistindo com a desigualdade social, não assumiria a forma completa de desigualdade
social, na medida em que a unidade centralizadora – Estado – se ergueria sobre as pequenas
comunidades
concentrando
a
propriedade,
mas
estabelecendo
relações
de
22
tributação/reciprocidade. Para Bourdé e Martin, se Marx e Engels tivessem possuído mais
informações históricas teriam dissociado “estados”, “ordens”, “castas” etc, de classes sociais
propriamente ditas nas formações pré-capitalista de produção (Bourdé e Martin, 1983, p. 159164).
Como esboço de uma sociologia das classes a partir de Marx, é possível identificar que:
a) a definição de uma classe social implica na referência a aspectos sociais, econômicos,
políticos e ideológicos;
b) seria pertinente considerar as classes em função da estrutura de classes e não isoladamente;
c) as lutas de classes determinam, em grande medida, os conflitos e dinâmicas do nível político
e dos demais níveis da sociedade. Tais conflitos e dinâmicas não podem, entretanto, ser
interpretados como mero prolongamento das lutas de classes.
O Conceito de “Ideologia”
Marx parte da compreensão de que existiria um elo entre formas ‘invertidas’ de
consciência e a existência material dos homens. Essa compreensão nasce da crítica a Feuerbach e
a Hegel.
Marx apreende a tese materialista de Feuerbach de que os homens criam Deus e as
religiões, e não o contrário. Distancia-se deste quando demonstra que tal inversão não é uma
pura construção do pensamento, mas que encontra-se no mundo real, que é um bálsamo criado
pelos homens para compensar as contradições do mundo real.
Marx submete o próprio pensamento de Hegel a esta crítica. Hegel supôs que a Idéia ou
Razão Absoluta se manifestaria no mundo empírico e que o Estado prussiano seria a autorealização da Idéia objetivada. Marx busca demonstrar que a idéia do Estado enquanto “universal
absoluto” que determina a sociedade civil, não seria apenas uma ilusão. Que havia um real sob
aquela ilusão e que somente poderia ser encontrada nas bases concretas de edificação da
sociedade civil e de Estado prussianos.
Entre 1845 e 1857 Marx formula o conceito de “ideologia” para demonstrar que a
precariedade do desenvolvimento material e as contradições emergidas na vida prática, levariam
os homens a criar e a projetar formas ideológicas de consciência. Formas espirituais e discursivas
que ocultariam ou disfarçariam a existência e o caráter dessas contradições. E que concorreriam,
nesta medida, para assegurar a reprodução das relações sociais, de forma a servir aos interesses
dominantes (Bottomore, 1988, p. 184).
A partir dos estudos das relações sociais capitalistas expressas nas obras Grundrisse e
23
O Capital, Marx chega a conclusão de que a “consciência invertida” é fruto da “realidade
invertida”. Assim, a ideologia burguesa expressaria essa inversão quando apregoa que “(...) a
igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de
troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e
liberdade” (Marx, apud Bottomore, 1988, p. 185).
Engels concorre também para a construção do conceito de “ideologia” por meio do
estudo sobre a guerra camponesa da Alemanha. Demonstra que, sob a chama da guerra de
religião no século XVI, encontram-se interesses materiais de classes e que
(...) se as lutas de classes tinham, naquela época, um caráter religioso, se os interesses, as necessidades, as
reivindicações das diferentes classes se dissimulavam sob a máscara da religião, isso nada altera a questão
(Engels, apud Bourdé e Martin, 1983, p. 166).
Encontra-se implícita nessa passagem a compreensão de que o fenômeno ideológico
também poderia se expressar enquanto valores e concepções de resistência das classes
dominadas. Engels demonstra, ainda, a exemplo da ação crítica de Marx sobre a ideologia
burguesa, que o fenômeno ideológico não seria algo exterior às relações sociais quando explica
que na Idade Média
(...) os padres receberam o monopólio da cultura intelectual e a própria cultura tomou um caráter
essencialmente teológico (...). Os dogmas da Igreja eram igualmente axiomas políticos e as passagens da
Bíblia tinham força de lei perante os tribunais (...). Consequentemente, todas as doutrinas revolucionárias,
sociais e políticas, deviam ser, ao mesmo tempo e principalmente, heresias teológicas (Engels, apud Bourdé
e Martin, 1983, p. 167).
O conceito de “ideologia” conserva em Marx uma conotação crítica e negativa porque foi
utilizado para a compreensão das distorções relacionadas com o ocultamento de uma realidade
contraditória e invertida. Não seria correto, portanto, atribuir ao conceito de “ideologia” o
sentido de falsa consciência.
Podemos chegar a três definições de ideologia em Marx e Engels:
a) ideologia enquanto parte ou conjunto das superestruturas: as formas ideológicas enquanto
a qualidade da consciência social possível dentro de uma determinada estrutura sócioeconômica; uma determinada visão de conjunto de uma sociedade, época ou classe
determinada por suas condições materiais de existência;
b) a ideologia enquanto ocultamento da realidade: ora como imposição das classes
24
dominantes para criar, legitimar e justificar as relações sociais dominantes (a exemplo
das Cruzadas, do levante da Vendéia etc), ora como forma de expressão de lutas de
resistência dos dominados enquanto conhecimento imperfeito (a exemplo da revolta
camponesa da Alemanha);
c) a ideologia enquanto um sistema de valores sociais impostos: seriam os valores sociais
impostos, indiretamente, por meio das relações sociais de produção, e, diretamente, por
meio dos instrumentos ideológicos públicos e privados
O conceito Estado
O conceito “Estado” ocupa grande importância no pensamento de Marx e Engels. O
Estado é concebido como uma instituição acima de todas as outras, com a função de assegurar e
conservar a dominação e a exploração de classe. Para Engels, o Estado é um instrumento
(...) da classe mais poderosa, economicamente dominante, que, por meio dele, torna-se igualmente a classe
politicamente dominante, adquirindo com isso novos meios de dominar e explorar a classe oprimida (Marx
e Engels, 1983, Volume 3, p. 137 ).
Essa conclusão não impede que o próprio Engels a relativizasse por meio do estudo de
uma realidade concreta, a guerra civil na França e as lutas políticas subsequentes que resultam no
golpe do 18 Brumário e no bonapartismo. Engels reconhece que
(...) ocorrem períodos nos quais as classes em luta se equilibram tão bem que o poder do Estado, como
mediador ostensivo, adquire, por momentos, uma certa margem de independência em relação a ambas
(Marx e Engels, Volume 3, 1983, p. 137).
Marx, também estudando a realidade que redunda no bonapartismo, chega mesmo a
atribuir interesses “próprios” ao Estado por meio da sua burocracia civil e militar. Marx
reconhece no Estado bonapartista francês uma máquina de Estado engenhosa, de amplas bases,
com um “exército” de funcionários e soldados de 1 milhão de homens. Uma máquina com
determinados interesses e objetivos próprios, que conforma
(...) um corpo parasitário terrível que cerca o corpo da sociedade francesa como um casulo e sufoca todos
os seus poros (Marx e Engels, Volume 1, 1983, p. 234 e 235).
25
De fato, Marx e Engels não encerram o conceito Estado em uma camisa de força
dogmática. Lênin, Gramsci, a Escola de Frankfurt, entre outros pensadores e vertentes marxistas,
dão continuidade ao estudo do Estado e ampliam o próprio conceito.
Práxis e Política
O conceito de “Práxis” representa um elemento central da filosofia marxista. Exprime o
poder que o homem tem de transformar o ambiente externo, tanto natural como social.
Marx define a práxis, primeiramente, como atividade prático-crítica. É a atividade
humana por meio da qual se busca resolver o real concebido subjetivamente. O lugar da práxis é
o processo histórico como resposta contínua à tirania das necessidades naturais e sociais.
Para Marx a humanidade está em luta consigo mesma, isto é, com as condições sociais e
naturais, por ela criadas e/ou modificadas. Segundo Bobbio,
(...) práxis é a identificação da mudança ambiental com a atividade humana, ela surge como
autotransformação ou como atividade que se modifica a si mesma ao modificar o ambiente. A terceira tese
de Feuerbach oferece a este respeito algumas indicações claras: é verdade que os homens são
condicionados pelo ambiente e pela educação, mas também é verdade que são justamente eles que
modificam as próprias condições ambientais (Bobbio, 1992, p. 987 e 988).
Para Marx não existe na realidade uma natureza pura, isto é, não modificada pela história
humana. Não existe, também, um único campo de ação onde não se possa descobrir dinâmicas.
A práxis é ação/investigação, fundamentada no movimento histórico.
Marx define práxis como encontro entre razão e história, isto é, o lugar da construção da
humanidade como obra de uma vontade expressa racionalmente. Construção suscitada por um
pensamento historicamente determinado, acolhido pela grande maioria por responder às
necessidades manifestadas em um contexto (natural e social) marcado pela intervenção do
homem e que se transforma por isso em instrumento de ação. Nesta definição, o conceito de
“Práxis” se aproxima do conceito “teoria”, sendo a primeira uma prática racionaltransformadora e a segunda um pensamento historicizado e realístico.
Marx também define práxis como luta de classes, isto é, um instrumento motor da
história da humanidade. A concepção de práxis como ação do gênero humano indiferenciado
socialmente e transformador das condições naturais e sociais ao longo da história da
humanidade, conjuga-se também com a concepção de práxis como oriunda da humanidade como
sujeito histórico diferenciado por meio das classes sociais em suas relações conflitantes, na qual
26
ocorre uma ação de supressão por parte de uma delas das formas de organização social que a
outra instaura. Esses conflitos entre as classes se exprimem na tensão constante que existe entre
as forças produtivas, tendentes ao desenvolvimento e as relações de produção, tendentes a
conservação.
O conceito de “práxis” recebe outras abordagens no âmbito da tradição marxista. Lukács
define práxis como a eliminação da indiferença da forma em relação ao conteúdo. Para o autor
Marx teria desmistificado a lógica idealista da idéia, isto é, desenraizado socialmente o
idealismo, e demonstrado que as classes subalternas são os sujeitos da história, em especial o
proletariado. Assim, teria-se estabelecido no pensamento uma nova lógica da totalidade, isto é,
da unidade do objeto (realidade natural e social) que é posto e do sujeito (proletariado) que o
põe. É a totalidade não como idéia que se faz espírito, mas como realidade do processo histórico
(Bobbio, 1992, p. 989).
Para Lukács a Práxis em Marx seria o ato que realiza a unidade entre o sujeito e o objeto,
na medida em que traduz em nova estrutura social e econômica a consciência das relações
estabelecidas entre os homens. Nela coincidiriam as determinações do pensamento e do
desenvolvimento da história. Por isso, a Práxis seria a consciência da totalidade e sua realização.
Todavia, a consciência não precederia a ação, mas fundaria-se no ato. O proletariado conheceria
a própria situação enquanto luta contra o capitalismo e agiria enquanto conhece a própria
situação (Bobbio, 1992, p. 989).
Lukács faz, enfim, o uso de três temas: o pensamento socialmente determinado; a
realidade em sua dinâmica; e, o sujeito em sua ação. A Práxis seria o ato revolucionário que
realiza o sujeito (o proletariado) como conhecedor e agente ao mesmo tempo e que,
simultaneamente, fundamenta a identidade do pensamento e da história.
Korsch define práxis como sendo a própria teoria marxista. Para Korsch “o marxismo é
a teoria da transição da sociedade capitalista para a sociedade socialista e assume aspectos
diversos, como, por exemplo, a social-democracia e o leninismo, destinados a sucederem-se um
ao outro, segundo a evolução do movimento operário” (Bobbio, 1992, p. 989).
A teoria marxista não seria apenas uma expressão das condições atuais das relações
entre as classes sociais, mas também a alavanca de uma futura ação revolucionária. Deste modo,
a teoria é Práxis, isto é, luta social de classes. Se, por um lado, ela é um aspecto da consciência
social da situação vigente, até o ponto de se identificar com a consciência de classe, por outro, é
apenas uma teoria, não uma teoria positiva mas crítica, que resolve as representações estáticas
em processos dinâmicos e em conflitos sociais. “Os elementos nela envolvidos, conquanto
27
aparentemente neutros, assumem uma específica conotação de classe; o Estado é o Estado
burguês; o direito é o direito burguês” (Bobbio, 1992, p. 990).
Para korsch a teoria marxista seria Práxis, não só por estar intimamente relacionada com
os conflitos sociais, dos quais é expressão, mas também por elaborar os meios de uma forma
alternativa de sociedade.
2.3. O Pensamento Liberal de Max Weber
O pensamento de Max Weber reconhece a realidade como inesgotável, fragmentada,
caótica e arbitrária. Não haveria, por exemplo, um movimento estrutural lógico, nem uma
totalidade construída a partir deste movimento estrutural.
Os cientistas sociais podem apenas construir modelos explicativos ideais - “tipos ideais” a partir de alguns aspectos da realidade. Uma abordagem científica seria apenas uma
aproximação da verdade, do que decorre a inexistência de uma verdade científica e a relatividade
do conhecimento. O que interessa mais é a busca da objetividade - neutralidade - científica e
menos a pretensa verdade.
A busca de uma neutralidade científica leva Weber a estabelecer uma rigorosa fronteira
entre o cientista, o homem do saber, das análises frias e penetrantes, e o político, homem de ação
e de decisão comprometido com as questões práticas da vida. O que a ciência tem a oferecer a
este homem de ação, segundo Weber, é um entendimento claro de sua conduta, das motivações e
das conseqüências de seus atos.
As raízes do método de Weber
O método sociológico de Weber é influenciado enormemente pelo contexto intelectual
alemão de sua época. Incorpora em seus trabalhos algumas idéias de Kant, como o entendimento
de que todo ser humano é dotado de capacidade e vontade para assumir uma posição consciente
diante do mundo; de Nietzsche, como a visão pessimista e melancólica dos tempos modernos; de
Sombart, como a preocupação de desvendar as origens do capitalismo; de Marx, como as teorias
acerca do capitalismo ocidental nas perspectivas histórica, econômica, ideológica e social.
A originalidade de Weber está na capacidade de refinamento de conceitos e de idéias
debatidos na sua época e no seu modo de interpretar o desenvolvimento histórico ocidental como
sendo fruto da racionalidade. Para Weber não haveria por que admitir o princípio de que a
economia determinasse as demais esferas da realidade social como, segundo ele, teria afirmado
28
Marx por meio da sua obra. Para Weber, somente a realização de uma pesquisa detalhada sobre
um determinado fato social poderia definir que dimensão (econômica, social, política, cultural)
da realidade condicionaria mais profundamente as demais.
Capitalismo e ética protestante
Em uma das suas obras mais importantes, A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, Weber coloca como uma de suas principais preocupações compreender quais
foram as especificidades que levaram algumas sociedades ocidentais ao desenvolvimento do
capitalismo. Para ele, o fator responsável pelo surgimento do capitalismo foi a razão humana
ligada a certos valores calvinistas presentes na época. O protestantismo calvinista acreditava que
por meio do trabalho o homem alcançaria Deus, e como o trabalho gerava lucros, a riqueza
também era uma forma de alcançá-lo.
Para Weber o moderno sistema de produção, eminentemente racional e capitalista, não se
origina do avanço das forças produtivas, nem das novas relações de produção como teria
afirmado Marx. Origina-se de um novo conjunto de normas sociais e morais, às quais denomina
ética protestante: o trabalho duro e árduo, a poupança e o ascetismo. Este conjunto de normas
sociais e morais teria proporcionado a reaplicação das rendas excedentes, em vez de seu
dispêndio e consumo em símbolos materiais e improdutivos de vaidade e prestígio, a exemplo do
que ocorria na Idade Média.
Para Weber o capitalismo, a organização burocrática e a ciência moderna constituem três
formas de racionalidade que surgiram a partir dessas mudanças religiosas ocorridas inicialmente
em países protestantes, a exemplo da Inglaterra e da Holanda. Países católicos, sob um conjunto
de normas sociais e morais impregnadas de aspectos cristãos - medievais, não teriam gerado esta
racionalidade.
Ação social e racionalidade
Para Weber a “ação social” e o “racionalidade” seriam os fatores mais relevantes na
análise de uma sociedade, isto porque a dimensão racional da ação humana seria a parte racional
do ser humano – enquanto indivíduo – que iria produzir e criar as esferas e estruturas da
sociedade, a exemplo da esfera econômica e da estrutura do Estado. Segundo ele,
As condutas são tanto mais racionalizadas quanto menor for a submissão do agente aos costumes e afetos e
29
quanto mais ele se oriente por um planejamento adequado à situação. Pode-se dizer, portanto, que as ações
serão tanto mais previsíveis quanto mais racionais (Weber apud Quintaneiro, 1998, p. 107).
Caberia ao sociólogo captar intelectualmente as ações sociais de sentido racional. No
entanto, essa tarefa encontraria limites quando fossem os valores e afetos os norteadores das
ações dos indivíduos.
A partir daí, Weber construiria quatro tipos de ação social: a) Ação social racional com
relação a fins: quando o agente imprimisse uma ação para alcançar um objetivo previamente
definido e lançasse mão dos meios necessários e adequados para tanto; b) Ação social racional
com relação a valores: quando o agente imprimisse uma ação de acordo com suas próprias
convicções e levasse em conta somente a sua fidelidade a certos valores, isto é, não levasse em
conta os efeitos que poderiam advir de sua conduta e por isso, às vezes, agisse com certa
irracionalidade; c) Ação social afetiva: quando o agente imprimisse uma ação inspirada em suas
emoções imediatas e sem consideração aos meios ou fins a atingir; d) Ação social tradicional:
quando o agente imprimisse uma ação em função de hábitos e costumes arraigados.
Sendo assim, a ação social – base da sociologia de Weber – seria fruto da conduta
humana. Essa ação social poderia ser de ato, omissão ou permissão, sendo operada no passado,
presente ou futuro.
Classe social e estamento
Para Weber, existiria diferença entre classe social e estamento. As classes seriam
formadas quando as ações sociais fossem orientadas para o mercado. Já os estamentos quando as
ações sociais fossem orientadas com base em regras de grupos de status. Para Weber, segundo
Quintaneiro,
As classes se organizam segundo as relações de produção e aquisição de bens, os estamentos, segundo
princípios de seu consumo de bens nas diversas formas específicas de sua maneira de viver (Quintaneiro,
1998, p. 118).
Política e poder
A concepção de ação social em Weber, cuja gênese encontra-se no indivíduo, tem uma
importante implicação: a continuidade das relações sociais seria problemática, porque não
30
existiria relação social sem poder e dominação, isto é, sem uma dimensão conflitiva. Conforme
Quintaneiro,
Poder significa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra
toda a resistência e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade (Quintaneiro, 1998, p. 121).
No entanto, enquanto o poder não for limitado por nenhuma circunstância social – porque
a vontade de alguém pode ocorrer em inúmeras situações – a dominação basear-se-ia na
obediência a um certo mandato. Partindo do entendimento de que todas as relações sociais
estariam mediadas pelo elemento domínio, isto é, que sempre ocorreria uma relação em que
alguém manda e outro obedece, Weber procura compreender as formas de dominação política
legítimas.
Para Weber em qualquer sociedade ocorre, o dominação política. Esta dominação poderia
ser de três tipos:
a) A dominação legal: dominação que se caracterizaria por meio de convenções, isto é, quando
normas, elaboradas em comum acordo, regulamentariam o exercício da dominação política.
Nesta perspectiva, o Estado liberal moderno, cujas constituições seriam definidas por meio
de assembléias nacionais constituintes, de representação indireta – deputados eleitos por
sufrágio universal – de representação direta – delegados da sociedade civil organizada – ou
de representação mista – deputados e delegados da sociedade civil – conformaria-se como
exemplo desta forma de dominação. Assim, direitos e deveres seriam claramente definidos
em face do poderes constituídos (executivo, legislativo e judiciário), da burocracia do Estado
etc.
b) A dominação tradicional: dominação que se caracterizaria por meio de crenças, isto é, de
concepções sedimentadas e reproduzidas de geração para geração e que configuraria uma
manifestação cultural tradicional. A tradição representaria, portanto, uma manifestação de
arcaísmo político.
c) A dominação carismática: dominação que se caracterizaria por meio do carisma do líder,
isto é, a vontade e o poder de comando do líder refletiria os anseios dos seus seguidores. A
dominação carismática poderia assumir a forma dos demagogos – construída sobre a
capacidade de oratória e de convencimento do líder político - , dos heróis-guerreiros –
construída sobre a capacidade de luta e das expectativas da guerra – e dos profetas –
31
construída sobre a capacidade de motivar espiritualmente e de assegurar a coerência dos fiéis
aos mandamentos.
Os tipos de dominação seriam “tipos ideais”, isto é, não se apresentariam de forma “pura”
na realidade concreta. Constituiriam-se em recursos metodológicos, tendo em vista a análise das
formas de dominação. Seriam, enfim, modelos explicativos que poderiam contribuir com a
compreensão das formas de dominação sem, contudo, dar conta do fenômeno em toda a sua
plenitude (Ridenti, 1992, p. 45-49).
Para Weber não ocorreria, no âmbito das relações sociais, uma relação de determinação
do econômico sobre o social em sentido amplo, isto é, nele incluído a política. As classes sociais,
definidas em termos econômicos, estariam fragmentadas na forma de grupos de status
(estamentos). A condição de subalternidade econômica de um grupo de status, enquanto parte de
uma classe social, poderia contrastar com um imenso prestígio político, cultural etc. Para Weber,
embora não ocorresse determinação, ocorreria interação e condicionamento entre classe social e
grupos de status.
Classe social e grupo de status poderiam interferir na ordem legal ou política da
sociedade. Esta interferência tenderia a ser maior quando potencializada pela atuação de partidos
políticos, isto é, de estruturas organizativas de caráter político voltadas para a disputa do poder,
tendo em vista o exercício da dominação política, seja no âmbito da sociedade civil, seja no
âmbito da sociedade política (Estado). Para Weber, o Estado, na medida em que representaria um
aparelho político e administrativo utilizado por grupos de status com o objetivo de materializar
determinados fins e valores destes mesmos grupos, converteria-se no objeto central da disputa
política (e da dominação política).
Weber caracteriza a política como sendo a participação no poder, ou a luta para influir na
distribuição dele, com a finalidade de desfrutar a sensação de prestígio causada por ele. Assim, o
homem não almejaria o poder somente para enriquecer economicamente, mas para desfrutar das
honras sociais que ele produz. Quando se diz que uma questão é “política”, o que se entende é
que o critério decisivo para sua resposta é o interesse na distribuição, manutenção ou
transferência do poder.
Dessa maneira, classes, estamentos, política, partidos etc., seriam fenômenos de
distribuição do poder dentro da comunidade e manifestações organizadas da luta cotidiana que
caracteriza a existência humana.
32
A burocracia
Para Weber a burocracia seria uma forma de organização humana que se basearia na
racionalidade, isto é, na adequação dos meios aos objetivos (fins) pretendidos, a fim de garantir a
máxima eficiência possível no alcance desses objetivos. Segundo ele, as origens da burocracia –
como forma de organização humana – remontariam à época da Antigüidade, quando o ser
humano elabora e registra seus primeiros códigos de normatização das relações entre o Estado e
as pessoas e entre as pessoas. Contudo, a burocracia – tal como existe hoje - teve sua origem nas
mudanças religiosas verificadas após o Renascimento.
Para Weber a burocracia não se limita à organização estatal. Weber nota a proliferação de
organizações de grande porte no domínio religioso (a Igreja), no educacional (a universidade), no
econômico (as grandes empresas), e assim por diante. Para tanto, teria concorrido o
desenvolvimento de uma economia monetária, que facilita e racionaliza as transações
econômicas; o crescimento quantitativo e qualitativo das tarefas administrativas do Estado
Moderno, que reflete a enorme complexidade e dimensão das tarefas de organização da
sociedade moderna; a superioridade técnica da administração burocrática, que permite uma força
autônoma à própria burocracia; e o desenvolvimento tecnológico, que permite um progressivo
aperfeiçoamento da administração burocrática
Para Weber, a burocracia seria a organização eficiente por excelência. Ela perseguiria a
racionalidade em relação ao alcance dos objetivos da organização; a precisão na definição dos
cargos e na operação das tarefas; a rapidez nas decisões; a univocidade de interpretação
garantida pela regulamentação específica e escrita; a uniformidade de rotinas e procedimentos; a
continuidade da organização no contexto de renovação dos quadros; a redução do atrito entre as
pessoas; a constância; a subordinação dos mais novos aos mais antigos; a confiabilidade; a
existência de benefícios sob o prisma das pessoas na organização.
Nessas condições, o trabalho seria profissionalizado, o nepotismo evitado e as condições
de trabalho favoreceriam a moralidade econômica e dificultariam a corrupção. A eqüidade das
normas burocráticas teria a virtude de assegurar cooperação entre grande número de pessoas sem
que essas pessoas se sentissem necessariamente cooperadoras.
O termo burocratização usado por Weber integraria, em alguma medida, com o conceito
de racionalização. Assim, a racionalização, para Weber, tanto poderia referir-se aos meios
racionais e sua adequação para se chegar a um fim, qualquer que fosse ele, como também
poderia referir-se à visão racional do mundo por meio de conceitos cada vez mais precisos e
33
abstratos, desenvolvidos inclusive pela ciência, de reforma a rejeitar toda religião e valores
metafísicos ou tradicionais, desmistificando o próprio mundo.
Weber temia a burocracia. Embora considerasse a burocracia como a mais eficiente
forma de organização criada, a concebia como uma enorme ameaça à liberdade individual e às
instituições democráticas das sociedades ocidentais. O próprio Weber notou que a estrutura
burocrática enfrentaria um dilema típico: de um lado, existiriam pressões constantes de forças
exteriores para encorajar o burocrata a seguir normas diferentes àquelas da organização e, de
outro lado, o compromisso dos subordinados com as regras burocráticas tenderia a se
enfraquecer gradativamente.
Neste quadro poderia ocorrer disfunções da burocracia, isto é, anomalias e imperfeições
no funcionamento da burocracia. Cada disfunção seria o resultado de algum desvio ou exagero
em cada uma das características do modelo burocrático. As disfunções da burocracia seriam a
internacionalização das normas; o excesso de formalismo e papelório; a resistência a mudanças;
a despersonalização do relacionamento; a categorização do relacionamento; a super
conformidade; a exibição de sinais de autoridade; a dificuldades com clientes e a
imprevisibilidade do funcionamento.
Liberalismo e Vontade Política
Para Weber, como os homens construiram a sociedade a partir de uma ação social
consciente, racional e motivados por vontade própria, a sociedade se encontraria em constante
transformação. Essa tenderia para a racionalização, a modernização e a organização (burocracia)
progressiva, isto é, a história da humanidade seria a materialização desta tendência.
O processo de transformação da sociedade não estaria determinado por um movimento
estrutural lógico. Weber concebia a história como um livro aberto; o seu curso dependeria da
vontade e da atuação política dos indivíduos e dos grupos de status, tendo em vista a conquista
do poder, de forma a materializar seus objetivos e projetos.
Para Weber, os indivíduos livres e conscientes, ao articular razão e objetivos construiriam
seus destinos materializados em estruturas sociais. As estruturas sociais (Estado, empresas,
organizações da sociedade civil etc.) criadas, que materializariam racionalidade, modernidade e
organização, tenderiam ao desvirtuamento. As estruturas da sociedade voltariam-se contra a
liberdade do indivíduo; a burocracia se sobreporia ao cidadão.
No tocante à política, qualquer dos três “tipos ideais” de dominação política legítima
tenderia a conviver com o deslocamento da prática de domínio político dos indivíduos para os
34
quadros administrativos e burocráticos. As decisões políticas tenderiam a materializar opressão
ao invés de liberdade.
Para Weber, sociedade e Estado, de caráter liberal, democrático e ocidental, possuiriam
condições superiores às formas que sociedade e Estado assumiram no passado. A dominação
política tenderia a ser legal e ocorreria situações atenuantes do desvirtuamento burocrático como
partidos políticos fortes, parlamento representativo e independente. A ação empreendedora das
elites econômicas buscando fugir ao controle da burocracia pública. A existência de líderes
políticos carismáticos que traduziriam as vontades autônomas dos indivíduos abalando as normas
rígidas de enquadramento social do poder instituído etc.
Weber é um pensador que se posiciona a favor do capitalismo e dos interesses nele
dominantes. Pensador liberal, acreditava que o capitalismo era um sistema nacional e eficiente
pois promovia a racionalização por meio da burocracia – fosse ela privada ou pública.
35
3. O SENTIDO ONTOLÓGICO DO TRABALHO
Os homens transformam a natureza e se transformam na mesma medida. Isto porque os
homens podem refletir acerca da sua forma de agir e porque se comunicam e sistematizam as
suas experiências sociais na forma de cultura, o que os diferencia, obviamente, dos animais.
Desta forma os homens fazem a “história humana”, isto é, transformam a realidade
natural e social, conforme a época e o lugar. Esta transformação tem sempre como ponto de
partida a herança material e cultural das gerações anteriores, de maneira a incorporar (e/ou
reformular), a recusar ou a criar novas práticas e conceitos à medida em que avança o processo
histórico.
O domínio da fala e a sua materialização por meio da linguagem (escrita, pictórica,
cênica etc.), ao permitir ao homem representar a realidade, o permite também registrar as suas
diversas formas de experiência vivida. O registro transforma-se em herança das experiências de
criação material e cultural, isto é, transforma-se em cultura, o que possibilita ao homem avaliar
as experiências vividas no passado em face do seu presente, bem como projetar novas formas
materiais e culturais superiores àquelas que se encontram no seu presente.
No centro da existência humana, que é sempre e objetivamente a materialização de
experiências de criação material e cultural, o homem age sobre a natureza de forma a transformála, tendo em vista obter os bens materiais e culturais necessários à sua existência. Esta ação, que
nos primórdios da humanidade assumiu formas como a domesticação de plantas e animais e a
criação de cidades, e que atualmente assume formas como o domínio da tecnologia do silício (e a
conseqüente revolução tecnológica representada pela informática) e as estações espaciais,
representa a interação homem-natureza e a criação da paisagem humanizada.
Representa, ainda, a otimização da ação humana em termos quantitativos e qualitativos
sobre a natureza por meio de diversos equipamentos para o desenvolvimento do trabalho, e de
diversas formas de organização do trabalho, isto é, a criação dos equipamentos (forças
produtivas) e a organização do trabalho (relações de produção) que são interdependentes e que se
interdeterminam.
O grau de desenvolvimento das forças produtivas e a forma de estruturação das relações
de produção fornecem as bases sobre as quais são criadas as superestruturas da sociedade.
Assim, são criadas instituições como o Estado, a família, a igreja, a escola etc; o pensamento
como o mito, a literatura, a ciência, a arte, a filosofia, a política etc; os valores, como a moral, a
ética etc.
36
Da mesma forma como não é possível surgir forças produtivas altamente desenvolvidas,
como a robótica e a rede de comunicação, coexistindo com relações de produções superadas
historicamente, como o escravismo e o feudalismo, também não é possível a manifestação da
superestrutura igualmente “inadequada” ou “inadaptada” às forças produtivas e às relações de
produção. Não poderia, por exemplo, vigorar o direito escravista sob a vigência das forças
produtivas e relações de produção capitalistas.
A ação do homem na natureza não é uma ação puramente exterior, conforme podemos
averiguar empiricamente. A sua ação na natureza demanda um tipo de organização dele mesmo,
de forma que o homem constrói estruturas sociais, pensamentos e valores que são, em última
instância, materializações da construção da sua própria subjetividade.
O trabalho possui uma trajetória, uma progressividade histórica. É possível, portanto,
falarmos de uma história do trabalho, enquanto uma delimitação temática da história da
humanidade. História do trabalho que expressa o fundamento último do ser social, que é a sua
capacidade de transformar e criar o mundo natural e o mundo social, em direção da sua plena
humanização. Assim,
À medida que o trabalho muda o jeito de ser, de pensar e de agir de cada ser humano e de cada cultura,
torna-se condição de humanização e instrumento da liberdade, porque é pelo trabalho que o homem
viabiliza a realização de seus projetos (desejos) no mundo, ao mesmo tempo em que se torna propriamente
humano (Aranha,1997, p. 23).
À medida que a sociedade humana se complexifica, a integração plena entre trabalho
teórico (intelectual, não-material) e trabalho prático (manual e material) termina por ser rompido.
Evidentemente, o trabalho teórico (intelectual, não-material) demanda atividade prática (manual
e material) e o trabalho prático (manual e material) demanda atividade teórica (intelectual, nãomaterial). Todavia, em cada tipo de trabalho passa a haver o predomínio das características que
lhe impõe a sua peculiaridade e condição.
Essa ruptura, provavelmente decorrente da complexidade adquirida pela sociedade
humana, foi agravada por meio do surgimento da propriedade privada e da desigualdade social.
De tal forma, que o trabalho teórico (intelectual, não-material) foi progressivamente se
desvinculando do trabalho prático (manual e material), embora esta desvinculação raramente
fosse completa.
Nas sociedades organizadas a partir da distribuição hierárquica das classes sociais, os
trabalhadores foram, ou excluídos do acesso à educação formal – a exemplo do escravismo e do
37
feudalismo -, ou este acesso cumpria uma necessidade imposta pelo padrão tecnológico e pelo
padrão de gestão da produção, mas submetido a certos limites – a exemplo da transição do
feudalismo para o capitalismo, com a escola de ofícios; do capitalismo concorrencial e
monopolista, com a escola técnica; e do capitalismo oligopolista pós-fordista, com os centros de
formação tecnológica. Os segmentos mais pobres dos trabalhadores em termos materiais e
culturais, sem clareza quanto às relações de poder e de domínio subjacente às relações sociais
como um todo, e das relações de trabalho em particular, terminam mais facilmente excluídos do
acesso ao conhecimento e da formação institucionalizada voltada para o trabalho teórico
(intelectual e não-material). Já os segmentos não tão pobres dos trabalhadores em termos
materiais e culturais possuem acesso a este conhecimento, de forma a disputar espaços com os
diversos segmentos das classes médias nos centros de formação tecnológica e nas universidades,
de padrão de qualidade baixo e intermediário.
O modo de produção capitalista é o modo de produção que mais intensamente é premido
pela necessidade de ampliar a formação do trabalhador por meio da educação formal, isto é, de
ampliar a virtuosidade do trabalhador. Todavia, a virtuosidade, materializada no poder de
reflexão, crítica, discernimento, iniciativa e domínios, pode criar o espaço para a organização
objetiva e criação subjetiva da razão crítica radical, revolucionária em relação às relações sociais
erguidas a partir das relações capitalistas de produção.
É possível duas conclusões a este respeito. A primeira, é que o capitalismo lança mão de
meios curriculares, comportamentais, psicológicos, publicitários etc, para impedir que a
ampliação da educação formal que se lhe impõe por sua própria dinâmica interna, proporcione o
pleno encontro entre o trabalho teórico (intelectual e não material) e o espaço para a criação da
razão crítica radical.A segunda é que o processo de pleno encontro entre o trabalho teórico
(intelectual e não material) e o espaço para a criação da razão crítica radical não poderá ocorrer
como decorrência do avanço natural do pensamento ou das exigências da dinâmica de expansão
(tecnológica e gestionária) do capital.
A “camisa de força” intelectual e prática a que os trabalhadores estão submetidos não
poderá ser alterada senão por eles mesmos. Para tanto, será necessário conduzir disputas como os
projetos curriculares de educação formal e o espaço do local de trabalho, isto é, disputar as
relações sociais.
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39
4. HISTÓRIA, SOCIEDADE E TRABALHO
O trabalho existe para satisfazer as necessidades humanas. Desde as mais simples
necessidades, como as de alimento e de abrigo, até as mais complexas, como as de lazer e de
crença. O trabalho se volta, enfim, para satisfazer as necessidades humanas, materiais e culturais.
Ao se analisar as diversas formas de sociedade, encontram-se os mais variados modos
de organização do trabalho, como também maneiras muito diferentes de se valorizar essa
atividade. Encontram-se, ainda, diferentes formas de relação do trabalho com as demais esferas
da vida social.
4.1. Sociedade Primitiva e Trabalho
Ao colocar a palavra “trabalho” entre aspas quando se estuda as sociedades tribais
procura-se destacar o fato de que a idéia de trabalho, como algo separado das outras atividades,
não existe nessas sociedades.
Ao se analisar a questão das atividades, entre nós entendidas como trabalho, nas
sociedades tribais (sociedades de caçadores e coletores ou mesmo aquelas pré-agrícolas e prépastoras), não se pode partir do mesmo ponto de vista que se adota para analisar o trabalho nas
sociedades modernas. Isso porque as atividades vinculadas à produção nas sociedades tribais
estão associadas aos ritos e mitos, ao sistema de parentesco, às festas, às artes, enfim, a toda a
vida social do grupo tribal. O trabalho não tem um valor em si (do tipo “o trabalho dignifica o
homem”), separado de todos os demais aspectos da vida social. Ele só pode ser entendido como
parte do conjunto de atividades que caracterizam essas sociedades como tais (Tomazi, 2000, p.
35).
Quando se fala em sociedades tribais é necessário esclarecer que elas não são todas
iguais. Diferenciam-se tanto no tempo, como no espaço. Por exemplo, os guaranis, que viveram
e vivem no sul do Brasil, além de diferentes entre si quanto ao processo histórico de cada grupo,
vão se transformando gradativamente a partir das suas próprias características particulares. Outra
advertência é ter em mente que esses povos, cujos membros contemporâneos vivem quase
sempre em condições precárias, isolados e em áreas restritas, guardam poucas semelhanças com
os seus antepassados que, de modo geral, viviam em regiões ricas em caça e pesca e em
alimentos de toda a sorte (Tomazi, 2000, p. 35 e 36).
40
As sociedades tribais distribuídas pelos mais diferentes pontos da terra e com as mais
diferentes estruturas sociais possuiam, e algumas ainda possuem, uma organização do trabalho
em geral baseada na divisão por sexo, em que homens e mulheres executavam atividades
diferentes. Os seus equipamentos e instrumentos são, aos olhos dos estrangeiros, muito simples e
rudimentares, ainda que sejam eficazes para o que deles se exige. Guiados por tal concepção,
muitos analistas, durante muito tempo, classificaram essas sociedades como de economia de
subsistência e de técnica primitiva. Passava-se a idéia de que esses povos viveriam em estado de
pobreza, com o mínimo necessário à sobrevivência.
Marshall Sahlins, antropólogo norte-americano, chama essas sociedades de “sociedades
do lazer”, ou as primeiras “sociedades de abundância”, pois, ao analisá-las, percebeu que elas
não só tinham todas as suas necessidades materiais e sociais satisfeitas, como também
dispunham de um mínimo de horas diárias vinculadas a atividades de produção (cerca de três ou
quatro horas e nem sempre todos os dias). Como exemplo podemos registrar a experiência atual
dos yanomamis, que dedicam pouco mais de três horas diárias às atividades produtivas (Tomazi,
2000, p. 36).
Por se dedicarem menos tempo as atividades produtivas e por não se constituirem em
sociedades de geração de excedentes, não significa que tivessem uma vida de privações. Ao
contrário, essas sociedades viviam muito bem alimentadas, demonstrando vitalidade em seus
membros.
O modo como se relacionam com a natureza é a explicação para o fato de trabalharem
muito menos do que nós. A terra é, além do lugar onde se vive, um valor cultural, pois é ela que
dá aos homens os seus frutos; a floresta presenteia os caçadores com os animais de que
necessitam para a sobrevivência. Não são os homens que produzem ou caçam, mas que recebem
aquilo de que necessitam da “mãe natureza”. Há um profundo conhecimento do meio em que
vivem, o que faz com que conheçam as plantas, os animais, a forma como crescem e se
reproduzem, o que é bom e o que é ruim para se alimentar, e quando podem utilizar certas
plantas e determinados animais para a sua alimentação, para a sua cura ou para os seus ritos.
O “mundo do trabalho” nas sociedades tribais é algo que tem relação com todos os
outros elementos de suas sociedades e com todo meio ambiente em que vivem. Nelas não se
encontra a idéia de que se deve produzir mais para acumular riqueza. A sua riqueza está na vida
e como passam os dias. As atividades produtivas limitam-se a conseguir os meios necessários à
sobrevivência, sendo executadas em conjunto com outras atividades.
O tempo é utilizado para descansar, dançar, caçar, pescar, plantar, colher e para o
cumprimento dos rituais, que na maioria dos casos envolvem todas as outras atividades. Quando
41
os machados de pedra foram substituídos por ferramentas de ferro entre os sianes da Nova
Guiné, de forma a permitir diminuir o tempo de trabalho para conseguir os alimentos necessários
à subsistência, eles não se preocuparam em produzir mais, mas passaram a utilizar o tempo de
que dispunham para se divertir, descansar, ou para outras atividades que lhes proporcionavam
mais prazer. Há um contínuo de atividades sociais interligadas, que dificilmente podem ser
entendidas e explicadas separadamente (Tomazi, 2000, p. 36 e 37).
O aspecto mais importante das sociedades tribais é o sentido de unidade existente no
cotidiano dessas sociedades. Segundo o antropólogo francês Pierre Clastres, quando a atividade
produtiva se transforma em trabalho desligado das outras esferas da vida e, portanto, alienado,
contabilizado e imposto por aqueles que querem aproveitar-se do fruto desse trabalho, é sinal de
que essas sociedades tornaram-se divididas entre dominantes e dominados e, portanto, tem início
a sua descaracterização que tenderá a culminar na origem da propriedade privada, na
constituição da sociedade de classes e no surgimento de uma instituição suprema (Estado)
estruturadora das leis e da conduta social (Tomazi, 2000, p. 37).
4.2. Sociedade Escravista e Trabalho
O Mundo Antigo Ocidental articula-se a partir de uma formação social e econômica
escravista. Esta realidade não impede que transformações profundas fossem operadas.
A necessidade de escravos passa a ser preenchida basicamente pela pirataria e pelas
guerras. De tal forma que a construção da democracia grega em diversas cidades, com o cultivo
do ócio para as artes, os esportes e a política, se mantém por meio da expansão do escravismo,
isto é, o processo de maior elevação da humanização do homem à época se apoia no processo de
maior brutalização do homem à época. Uma ideologia escravista sustenta esta sociedade.
Segundo Aristóteles,
Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao
homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que se obtém. Partindo dos nossos
princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil
que obedecer. Tal é o escravo por instinto: pode pertencer a outrem (...) e não possui razão além do
necessário para dela experimentar um sentimento vago; não possui a plenitude da razão (Aristóteles, A
Política, cap. II, p. 7 e 13).
A sociedade romana, que em grande medida preserva e estende o legado cultural grego,
também proporciona heranças culturais. O pequeno desenvolvimento da Filosofia e da Ciência, a
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ausência de experiências democráticas e a pouca originalidade estilística, convive com enormes
progressos no campo da Política, da gestão pública, do Direito e da Engenharia.
As conquistas do período republicano são responsáveis por uma transformação das bases
sociais e econômicas de Roma. A economia agrícola camponesa familiar, policultora e artesanal,
voltada prioritariamente para a auto-suficiência (economia natural) dá lugar a uma economia
agrária e urbana mercantil, trabalhada fundamentalmente por escravos – os escravos,
aproximadamente 60 mil em uma população de 4,4 milhões de homens livres em 225 a. C., salta
para aproximadamente 3 milhões em uma população de 4,5 milhões de homens livres em 43 a.
C..
Os pequenos e médios proprietários plebeus (assidui) vivenciam uma tragédia
econômica e social com as guerras de conquista e os seus efeitos: os campos são em parte
abandonados por sua mobilização para o exército; a importação de trigo reduz o preço deste
produto, o que leva os proprietários plebeus ao endividamento ou os impede de pagar suas
dívidas, conduzindo muitos a perder suas terras; a conversão da agricultura tradicional, adaptada
à economia natural, para a agricultura mercantil, apoiada no cultivo e produção, respectivamente,
de oliveira/azeite e parreira/vinho, o que exige recursos enormes devido ao período de carência,
agrava a crise da economia camponesa tradicional.
Uma plebe urbana proletarizada forma-se. Diferentemente dos proprietários plebeus,
possuidora de um elevado senso cívico e participativo, a plebe urbana proletarizada encontra-se
desocupada e desmoralizada, mantida por laços clientelísticos – dependentes de mantimentos e
algum dinheiro doado por patronos (patrícios que mantém clientela) – e por trigo distribuído
sob subsídio pelo Estado. Uma combinação de patronato, na esfera privada, e de política de
“pão e circo” (panem et circenses), na esfera pública. Uma estratégia dos patrícios para o
domínio dos segmentos sociais mais pobres dos plebeus, com os objetivos de impedí-los de se
mobilizarem por meio de um projeto político independente e autônomo, de criar obstáculos para
a sua incorporação em movimentos reformistas oriundos de membros patrícios e de plebeus ricos
e de convertê-los em uma reserva político-militar para conduzir guerras de conquista, para
manter o domínio dos povos conquistados e para deter eventuais revoltas de escravos.
No Mundo Antigo Ocidental podemos identificar dois grandes campos morais. Campos
estes que, obviamente, se expressaram por meio de infindáveis morais.
A Moral dos homens livres, determinada pelas experiências sociais aristocráticas e que se
expressaram em idéias dominantes daquele período, é criada e difundida pelos filósofos, os
intelectuais orgânicos da aristocracia escravista. Trata-se de uma Moral efetiva, isto é, vivida
concretamente e expressa por meio de normas formalizadas ou não.
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A Moral dos homens livres teve como referência a separação entre homens – que
possuiriam alma de homem e que poderiam se humanizar e se libertar progressivamente – e os
escravos – que possuiriam alma de escravo (ou que nem possuiriam qualquer alma) e que não
poderiam se humanizar e se libertar. A Moral impunha aos homens livres a humanização por
meio do cultivo da alma e do corpo por meio das atividades proporcionadas pelo ócio (o teatro, a
escultura, o esporte etc); da individualidade de cada membro no âmbito da comunidade; e da
responsabilidade política de cada cidadão para com a preservação da comunidade política.
A moral dos escravos indicava assumir maior sistematização nos períodos que
antecediam as suas revoltas, motivadas por uma obscura esperança de liberdade. Nessas revoltas
e nos breves períodos de liberdade que se seguiam quando se faziam vitoriosos, qualidades
morais como a solidariedade, o espírito de sacrifício, a lealdade etc, encontravam-se presentes. A
destruição desta Moral emergente por parte da classe aristocrática passava, necessariamente, pela
destruição da memória e da experiência daqueles que a viveram, isto é, pela morte dos escravos
recapturados.
A Moral dos homens livres no Mundo Antigo Ocidental lega para a humanidade
referências morais fecundas. Dentre elas podemos destacar a correlação entre Moral e Política; a
Moral e a Política como parâmetros para dirigir e organizar as relações entre os membros da
comunidade política e que se ocupam de todos os problemas humanos (religião, guerra, natureza
etc); as virtudes civis (amor e fidelidade a comunidade, dedicação aos negócios públicos, a
primazia do público em face do privado etc); a progressiva consciência da definição e proteção
dos interesses da comunidade concomitantemente com a consciência da definição e proteção da
individualidade dos seus membros; e a consciência da responsabilidade pessoal com a esfera
pública como parte de uma autêntica conduta Moral (Vasquez, 1989, 31-33).
4.3. Sociedade Feudal e Trabalho
O Mundo Medieval Ocidental articula-se a partir de uma formação social e econômica
senhorial e feudal. Esta formação tem origem no interior do Baixo Império Romano por meio da
ruralização da sua população, do retrocesso demográfico, do esvaziamento do comércio, do
refluxo monetário, das guerras civis e das invasões.
Entre os séculos VI e VII a formação social e econômica senhorial e feudal se consolida.
A escravidão dá lugar a servidão; a sociedade escravista dá lugar a sociedade medieval como um
sistema de dependências e de vassalagens estratificado e hierárquico; a unificação econômica e
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política romana dá lugar a fragmentação econômica e política na forma de unidades autárquicas
feudais ou comunas urbanas; a moral e a Ética racionalista e escravista dá lugar a uma moral e a
uma Ética profundamente condicionada por meio de elementos religiosos.
A sociedade medieval encontra-se organizada por meio de feudos, de aldeias e de burgos.
Na sociedade prevalece a relação de vassalagem – juramento de fidelidade prestado por um
inferior (vassalo) a um superior (suserano). A ordem social é concebida como inscrita na
natureza das coisas. E esta natureza encontra-se, por sua vez, determinada pela palavra e vontade
divina.
Nos feudos a divisão social do trabalho assume a forma senhorial-feudal. O senhor feudal
possui a propriedade das terras, bosques e instalações feudais, enquanto que camponeses
possuem a propriedade dos meios de trabalho direto e um grau variável de liberdade e de
obrigações.
Nas aldeias e burgos a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização
social: a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros etc, organizam-se em confrarias,
articuladas a partir de um juramento de confiança mútua. Cada corporação de ofício possui seus
emblemas, seus próprios hinos, se agrupam em locais específicos nas catedrais e festas
populares.
Sociedade e Economia Medieval
O sistema feudal encontra-se em formação desde o Baixo Império Romano. A crise do
Império fez com que os claríssimos (descendentes da nobreza senatorial) superem a sua
condição absenteísta e tornem a habitar o campo. Os domínios (villa) são então divididos em
reserva senhorial, explorada e comandada diretamente pelo senhor, e manso, loteada e
explorada por seus protegidos que, em contrapartida pagam em produtos, dinheiro e serviços ao
senhor. O manso é dividido, ainda, em manso livre ou ingênuo (ingénuile), cultivado pelos
colonos (cuja lei proíbe camponeses de abandonar a terra, trabalhadores de abandonar a
profissão e filhos são obrigados a seguir a atividade do pai), e manso servil, cultivado pelos
escravos assentados na terra, chamados servi casatti.
Com o fim do Império a villa desaparece dando lugar ao senhorio. Assim, a reserva
senhorial tem as suas dimensões reduzidas em favor do manso e o senhor passa a viver
fundamentalmente das rendas proporcionadas pelo manso. Formam-se, ainda, as terras comunais
no âmbito do senhorio, constituídas de florestas e pastos de uso comunitário.
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A diferença entre colono, homem juridicamente livre, mas preso a terra, e escravo,
“coisa” juridicamente alienável, convive com um processo de desaparecimento ao longo dos
séculos VII e VIII. No lugar destas categorias de trabalhadores da terra surge o homem livre,
mas dependente do senhor, denominado servo. Os servos encontram-se sujeitos a obrigações
servis, como: a Corvéia, pagamento de trabalho gratuito nas terras e nas instalações
(indominicatum) da reserva senhorial; Censo ou Foro, pagamento anual em dinheiro e que
corresponde a uma espécie de aluguel da terra; Banalidades, pagamento de taxas pelo uso das
instalações (indominicatum) da reserva senhorial, como o moinho, o forno, o lagar (tanque no
qual se espreme a uva para fazer o vinho); Dízimo, pagamento de um décimo da produção
agrícola para a Igreja; Talha, pagamento de taxa cobrada excepcionalmente pelo senhor e cujo
valor é por ele mesmo definido; Champart (de campi-partes), pagamento de um percentual da
produção da terra arroteada, isto é, tornada arável por meio do trabalho do servo.
O servo descendente dos escravos pode estar submetido a maior pagamento de trabalho
gratuito (Corvéia), bem como ao pagamento de taxas específicas como a mão morta, para
herdar o lote mansial, a capitação (chevage), cobrada anualmente por cada membro da família, a
farmariage, para obter autorização de casamento com servo sujeito a outro senhor.
Há, ainda, camponeses livres alodiais (possuidores de alódios), isto é, terras livres, isentas
de direitos senhoriais, cuja tradição definia como pertencentes ao rei. Estes camponeses
descendem dos guerreiros germânicos.
As terras alodiais diminuem a partir do século XI. As guerras senhoriais e as incursões de
piratas, salteadores e invasores, levam camponeses livres dos alódios a transferir suas terras aos
senhorios em troca de proteção, convertendo-se em camponeses vilões, ou seja, camponeses
livres, embora integrados no senhorio.
Juntamente com a formação da nova realidade social formam-se novas relações políticas
com base nas relações de vassalagem. Relações exclusivas a senhores, nos quais quem concede
um senhorio torna-se suserano e quem recebe (o senhorio enfeudado ou dado em benefício)
torna-se vassalo. Compunha-se um laço de fidelidade estrita, de forma que o vassalo deve
fidelidade ao seu suserano, mas não ao suserano do seu suserano.
As relações de vassalagem provocam um sistema de vassalagem cujas características são
a criação de múltiplos pólos de poder instáveis e rivais que disputam a terra, elemento que
permite ampliar a relação de clientela do suserano; a fragmentação da soberania, o que implica
que o imperador do Sacro Império Romano-Germânico e os reis não exerçam sua soberania
sobre os súditos na medida em que não possuem poder absoluto, mas apenas sobre seus próprios
vassalos; a condição de governo da nobreza feudal nos seus domínios proporcionado pelo poder
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banal, isto é, o direito de comando ou governo no plano do senhorio, do local ou da região
(oriundo do direito de ban, de origem germânica, que significa direito ou poder de comandar
alguém); a decomposição do Estado – que no período romano significa poder central, articulado
sobre um território e uma população e definido e regulado a partir de um conjunto de leis – que
determina a substituição de um sistema jurídico estatal por um sistema jurídico articulado por
meio de laços e sujeições pessoais definido e regulado pelo costume e pela tradição.
A sociedade da Idade Média cristã ocidental encontra-se submetida a uma estrutura social
hierárquica, tendo a nobreza de sangue no topo, seguida pelos cavaleiros ou pequena nobreza,
mais abaixo uma espécie de funcionários de grandes senhores denominados ministeriais ou
nobreza de serviço e, por fim, as camadas sociais inferiores compostas por camponeses (servos,
vilões, alodiais e pequenos proprietários), artesãos urbanos, trabalhadores assalariados, etc.
A estrutura social encontra-se, em termos fundamentais, imobilizada socialmente e composta a
partir do nascimento.
A Igreja busca legitimar esta estrutura social. Reconhece na estrutura social um momento
da ordem terrestre. A ordem terrestre, por sua vez, é reconhecida enquanto um reflexo da ordem
celeste, igualmente hierárquica. Enquanto ordem criada por Deus, a ordem terrestre é sagrada e
imutável, o que significa que a mudança ou desautorização da mesma (nela incluída a estrutura
social) contraria Deus.
Para a Igreja a estrutura social possui três pilares: o religioso, composto pelos oratores
(os que oram ou rezam); o militar, composto pelos pugnatores ou bellatores (os que lutam ou
guerreiam); e o econômico composto pelos laboratores (os que labutam ou trabalham). Nesta
clara cristianização de Platão, a sociedade justa possui uma hierarquia rígida: no topo encontrase o clero, com a responsabilidade de governar os homens, em uma perspectiva ampla, com base
nas sagradas escrituras; abaixo encontra-se a nobreza, com a responsabilidade de defender os
homens; e, por fim, na base encontram-se os trabalhadores, com a responsabilidade de produzir.
A Igreja concebe formalmente uma sociedade de ordem ou estamental. Consagra a
desigualdade como um fundamento natural (da natureza), isto é, determinado pelo nascimento.
Mas este fundamento natural (ele próprio uma manifestação do destino a que todos devem se
resignar) é uma criação da graça de Deus. O homem somente pode mudar o que é por ele criado
ou concedido, não o que é criado ou concedido por Deus. O que independe da nossa vontade
somente nos resta aceitar e cumprir.
A crise do poder temporal com o fim do Império Romano do Ocidente e o advento dos
inconstantes e instáveis reinos romano-germânicos, a insegurança provocada pelas invasões,
doenças e fome e a expansão do poder espiritual por meio do crescimento organizativo,
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doutrinário e econômico da Igreja, geraram um ambiente favorável para o desenvolvimento de
uma nova subjetividade. As interpretações do mundo de cunho natural e social deslocou-se da
natureza e do homem para Deus; da razão para a fé; da Filosofia para a Teologia, e da vida social
concreta para os dogmas religiosos. De forma a coroar a nova subjetividade o poder temporal
passou a estar atrelado ao poder espiritual.
No mundo medieval ocidental desenvolve-se uma Moral feudal e cristã. A Igreja,
concebida como instrumento de Deus e ordenadora do poder espiritual, e a aristocracia feudal,
concebidos como homens de linhagens e ordenadores do poder temporal, são os arquitetos da
referida Moral.
A aristocracia feudal concebia-se como possuidora, por natureza, de uma série de
qualidades morais elevadas que a distinguiam dos homens comuns e dos servos. A aristocracia
não teria que provar estas qualidades, apenas vivenciá-las. Edifica-se a Moral cavalheiresca,
exaltadora da guerra, do ócio e das virtudes cavalheirescas (cavalgar, desenvolver habilidades
com as armas, apreender técnicas e táticas militares e tecer loas à mulher amada) e cultuadora da
honra, da coragem e da valentia. Moral que também acomoda e legitima práticas como a
crueldade (no trato com os servos, com os vencidos nas guerras etc), a hipocrisia, a traição, o
direito de pernada etc.
A Igreja edifica a Moral monástica, exaltadora da humildade, da pobreza e da
contemplação divina. Moral que também acomoda, na esfera privada, práticas como a gula, o
fausto, a felonia, a luxuria.
Os servos e os homens livres das cidades (artesãos, mercadores etc), embora
reconhecidos pela Igreja e pela aristocracia como possuidores do direito à vida e reconhecidos
como seres humanos, não são reconhecidos como possuidores de uma vida moral. Todavia,
almeja liberdade e independência pessoal; cultiva laços de ajuda mútua e de solidariedade; e
estabelece uma relação íntima com o meio natural (especialmente a terra) e o trabalho, expresso
por meio de um universo simbólico e ritualístico diversificado. Estes anseios são projetados na
perspectiva do paraíso, isto é, do mundo de liberdade e de igualdade alcançável na esfera do
mundo sobrenatural, divino.
A Expansão Feudal
A Baixa Idade Média da cristandade ocidental convive com profundas transformações.
Elas são, principalmente, agrícolas, comerciais, demográficas e urbanas.
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O arroteamento dos campos, isto é, a transformação de uma área intocada para uma área
de cultivo ou pecuária, expande-se sobre territórios circundantes aos já ocupados ou provoca
uma ação colonizadora sobre territórios distantes. O resultado é uma expansão dos excedentes.
O novo padrão tecnológico acentua a expansão de excedentes, bem como a sua
transformação. A invenção da charrua, o novo atrelamento pela base do pescoço do animal, a
rotação de culturas, a ferragem dos animais, o moinho de roda movido a água (azenha), são
algumas das novas tecnologias.
Ocorre, também, uma mudança da forma de extração da renda da terra. A renda extraída
em trabalho e, marginalmente, em produto e em dinheiro, passa a ser extraída fundamentalmente
em dinheiro. A conversão da corvéia de pagamento de trabalho gratuito para o pagamento em
dinheiro, de um lado, afrouxa a servidão, de outro, estimula o desenvolvimento de técnicas
(materiais e administrativas) para assegurar excedentes por meio da ultrapassagem dos limites
dos pagamentos monetários (pré fixados por contratos) das obrigações.
Os novos excedentes proporcionam a retomada da especialização em determinadas
atividades econômicas (artesanato, comércio, agricultura), intensificam a circulação dos
excedentes, proporcionam o surgimento de centros comerciais (feiras e cidades), impulsiona a
remonetarização da sociedade e configura uma economia mercantil. Dois processos decorrem
diretamente destas transformações: o crescimento populacional, que salta de 20 milhões de
habitantes na Europa em 950, para 46 milhões em 1050, para 61 milhões em 1200 e para 73
milhões em 1300; e a independência da cidade em relação aos senhores e reis por meio de
revoltas e/ou compra de liberdade (materializadas em carta comunal, carta de franquia, etc),
trabalhada no seu interior por artesãos organizados em corporações de ofícios e dirigidas pelo
patriciado urbano (elite social), fundador das comunas (estrutura de poder e governo das
cidades independentes).
A Crise Feudal
A crise vivida pela Baixa Idade Média da cristandade ocidental (a crise geral do
feudalismo) decorre da conjugação de três elementos estruturais: do patamar demográfico
formado no início do século XIV, responsável por uma enorme ampliação de demanda de bens;
da exigüidade dos recursos naturais da Europa Ocidental, cuja evidência é mascarada pelos
arroteamentos tardios, em curso em terras inadequadas à atividade agropecuária sob a vigência
do padrão técnico e científico disponível; e dos limites a que as forças produtivas encontram-se
submetidas sob o domínio das relações de produção feudais, expressas no padrão técnico e
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científico disponível, na forma de arregimentação do trabalho, na gestão da produção, etc. O
quadro se completa com a conjuntura de chuvas torrenciais de 1315 a 1318. Conforme
Anderson,
O determinante mais profundo desta crise provavelmente estará num “emperramento” dos mecanismos de
reprodução do sistema até o ponto das suas capacitações básicas. Em particular, parece claro que o motor
básico da recuperação dos solos, que impulsionara toda a economia feudal por três séculos, acabou
ultrapassando os limites objetivos da estrutura social e das terras disponíveis. A população continuou a
crescer e a produção caiu nas terras marginais ainda disponíveis para uma recuperação aos níveis da técnica
existente, e o solo deteriorava por causa da pressa e do mau uso (Anderson, 1987, p. 191 e 192).
A superfície agitada da crise revela-se: a escassez monetária decorrida da grande
expansão urbano-mercantil leva reis a adulterar o valor das moedas cunhadas em ouro e em
prata, desencadeando desvalorização monetária e inflação; o conflito entre senhores e reis pelos
excedentes é responsável por infinitos conflitos e guerras locais e regionais e por conflitos
amplos e duradouros (Guerras dos Cem Anos, Guerras das Duas Rosas, etc); levantes e
rebeliões urbanas e rurais, a exemplo, respectivamente, da Jacquerie, revolta camponesa na
França em 1358, e do Ciompi, levante dos trabalhadores assalariados de Florença em 1378; a
Peste Negra manifesta nos surtos de 1348, de 1350-60 e 1373-75, que ao ceifar
aproximadamente 30% da população desarticula a produção pela carência de mão-de-obra e
abandono de atividades; e a fome, a exemplo da cidade francesa de Ypres em 1316, quando
aproximadamente 15% da sua população morre de fome, também concorrendo para desarticular
a produção, intensificar conflitos e ceifar vidas.
As forças de produção tendem à paralisia e recuo durante a crise geral feudal, isto porque
se desenvolvem no contexto das relações feudais de produção. A retomada do seu
desenvolvimento ocorre apenas quando as relações de produção começam a ser mudadas e
reordenadas radicalmente. Para Anderson,
(...) as relações de produção, em geral, mudam anteriormente às forças de produção numa época de
transição (...). (...) as consequências imediatas da crise do feudalismo ocidental não foram algum surto
rápido de novas tecnologias na indústria ou na agricultura; isto ocorreria apenas depois de um considerável
intervalo. A consequência direta e decisiva foi antes uma alteração social penetrante do interior ocidental.
(...) Na verdade, ela mostrou ser o ponto decisivo na dissolução da servidão no ocidente (Anderson, 1987,
p. 197 e 198).
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A crise geral feudal concorre para consolidar a independência das cidades, estimular
novas atividades artesanais e comerciais livres do controle de corporações e guildas, provocar o
processo de centralização do Estado, desencadear a transição da posse servil para o
arrendamento do camponês livre e abalar as concepções teológicas medievais. As primeiras
bases materiais e espirituais para a transição do feudalismo para o capitalismo estão lançadas.
4.4. Sociedade Moderna e Trabalho
O Mundo Moderno Ocidental articula-se a partir de uma formação social e econômica
aristocrática, absolutista e feudal. A revolução urbana e comercial em curso reduz
progressivamente a importância da vida rural e das normas da vida cristã tradicional; o crescente
deslocamento da riqueza da terra para o comércio, a manufatura e o banco e as revoltas
camponesas ameaçam o domínio aristocrático; o espírito racionalista, humanista, investigador e
manipulador, é responsável pelo abalo dos alicerces da Igreja Católica. Estes processos
determinam a necessidade de um redesenho da ordem aristocrática.
No plano social, no início dos tempos modernos, uma ordem social aristocrática fundada
nas linhagens, no nascimento e nas ordens sociais é reformulada e reposta durante a vigência do
chamado Antigo Regime. Ao final dos tempos modernos, após um longo processo em que o
novo emerge permanentemente, a ordem social do Antigo Regime (fundada na sociedade de
ordens, no Estado absolutista e no mercantilismo) dá lugar a uma ordem social do liberalismo
(fundada na divisão da sociedade em classes econômicas, na universalidade dos direitos civis e
na livre iniciativa).
No plano político, a fragmentação política e administrativa medieval dá lugar a
centralização política e administrativa por meio da criação dos Estados nacionais modernos.
Emerge o Estado aristocrático, absolutista e feudal como uma gigantesca máquina política, fiscal
e militar para fazer frente a uma dupla ameaça. De um lado, a burguesia em ascensão econômica
e moral, mas pressionada pelos impostos e impedida de compor as funções burocráticas civis e
militares do Estado, salvo funções ministeriais delegadas pelo rei. De outro lado, os camponeses
em rebelião contra o monopólio da terra, as obrigações aristocráticas e clericais (em produção,
trabalho ou dinheiro) e os impostos, totalmente impedidos de qualquer participação e decisão
política. O Estado constitui-se, enfim, em um instrumento para recolher parte da riqueza
burguesa (e das camadas populares) e redistribui-la em favor da aristocracia e para preservar a
extração da renda da terra gerada pelos camponeses, também em favor da aristocracia.
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E, ao final dos tempos modernos, a burguesia estende o seu domínio econômico à esfera
política por meio das revoluções burguesas. O objetivo é imprimir uma nova qualidade ao
processo de transformação da sociedade à sua imagem e semelhança.
No plano econômico, ocorre a chamada acumulação primitiva de capital, isto é, o
processo de criação das condições para a consolidação das relações capitalistas de produção por
meio da separação do produtor direto dos meios de produção (cercamento dos campos com a
expropriação/proletarização camponesa) e da centralização do capital (capital-moeda, meios de
produção etc) e dos recursos naturais (terra, florestas etc) nas mãos da burguesia e da aristocracia
aburguesada. Dessa forma é possível transformar em dominante a arregimentação da força de
trabalho por meio do assalariamento e a conseqüente extração do sobre-trabalho na forma da
mais-valia.
A acumulação primitiva de capital, além de lançar as bases do predomínio das relações
capitalistas de produção, proporciona diversas formas de arregimentação de capital na Europa
Ocidental, a exemplo do Antigo Sistema Colonial, do tráfico de escravos, da pirataria etc. A
acumulação primitiva de capital também tem um grande impulso graças ao desenvolvimento
científico que se concretiza na constituição da ciência moderna para a qual concorre Galileu,
Newton, Descartes, entre outros.
No plano ideológico-cultural, a religião deixa de ser a forma ideológica dominante e a
Igreja Católica perde a sua condição de guia espiritual. De um lado, ocorre a separação daquilo
que a Idade Média havia unificado: a razão separa-se da fé (e a filosofia, da teologia); a natureza
separa-se de Deus (e as ciências naturais, dos pressupostos teológicos); o Estado separa-se da
Igreja (e as doutrinas políticas, dos preceitos sacros); e o homem separa-se de Deus (e a
humanidade constituída de autarcia, livre-arbítrio e poder transformador, da determinação
divina). De outro lado, ocorre a afirmação do humanismo individualista burguês, de forma a
consolidar a idéia de homem autárquico, constituído de livre arbítrio e que manipularia a
realidade em favor dos projetos econômicos, políticos e sociais de caráter pessoal, e a
harmonizar esta idéia com a idéia de que a livre iniciativa de todos convergiria para uma
integração e satisfação de todos, tão bem expressa pela metáfora da “mão-invisível” de Adam
Smith.
A moral burguesa emergida da acumulação primitiva de capital opôs-se a moral
aristocrática então dominante. A moral burguesa valoriza o trabalho, a liberdade, a iniciativa
pessoal (individualismo), a riqueza, e condena o fausto, o ócio, a libertinagem nos costumes, o
parasitismo, as práticas e artes da guerra etc, legítimos à moral aristocrática.
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O homem do projeto ideológico-cultural burguês em consolidação deveria ser livre das
amarras normativas morais, jurídicas e políticas. O homem concreto e o homem artificial
(comunidade política) passa a ter como referências fundamentais a idéia de livre arbítrio na
relação homem/Deus, a estrutura jurídico-político-militar do Estado como pré-condição da
defesa dos direitos naturais (a vida, a liberdade e a propriedade) e a condição social humana
como decorrente do talento e do mérito de cada um.
O homem é revalorizado em sua dimensão pessoal, racional e sensível, e é concebido
como dotado de vontade e iniciativa. Afirmaria o seu valor por meio da política, concebida como
manifestação essencialmente humana, da qual o homem determinaria o seu devir histórico, e da
nova ciência e da natureza, manipuladas como instrumentos da geração do valor etc.
O homem moderno percebe-se no centro da Política, da Ciência, da Arte e da Moral. Tal
percepção liberta a Ética dos pressupostos teológicos medievais e a fez crescentemente
antropocêntrica, embora ainda convivesse com um homem tratado por vezes de maneira abstrata
e possuidor de uma natureza universal e imutável.
Acumulação primitiva de capital
No plano econômico os comerciantes suplantam os guerreiros. O comércio e a
manufatura, embora ainda não guie o dia-a-dia da sociedade, apoia-se sobre uma mentalidade
profundamente valorizadora da propriedade privada sob direito romano (alienável) e do lucro.
Em várias regiões da Europa Ocidental os comerciantes ingressam em uma dinâmica de
irresistível ascensão econômica que haveria de culminar na consolidação das relações capitalistas
de produção sobre bases industriais.
O campo convive com a eliminação da servidão e o início do arrendamento da terra, isto
é, trabalhador que paga um aluguel pelo uso da terra, sob controle do capital agrário. Esse
processo expressa a primeira forma de controle do capital sobre a produção, isto é, o capital não
se restringe, a partir de então, ao controle da esfera da circulação (ou controle mercantil),
estendendo o seu controle sobre a produção de bens.
Na Inglaterra da Idade Média as terras de propriedade da aristocracia formam os campos
abertos (Open Fields). Estes se distribuem em parcelas de terras (de aproximadamente 200
metros de comprimento por 20 metros de largura), com diversas parcelas distribuídas de forma
descontinua para cada família de servos. No decorrer da grande crise feudal os lotes dos campos
abertos (Open Fields) são reunidos pelos proprietários em unidades compactas cercadas e
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redistribuídas para arrendatários. A servidão pessoal simbolizada na corvéia é substituída por
pagamento em dinheiro, de forma que o servo, na prática, termina convertido em arrendatário.
A aristocracia agrária supera a sua identidade feudal, mas continua como a classe
dominante. Esta classe em diversas regiões dá início a criação da sua condição de classe social
absenteísta – declina da condição de comando da atividade econômica e passa a viver de renda
auferida pelo arrendamento da terra. O domínio da classe dominante tradicional é, por sua vez,
progressivamente desautorizado pela novas classes emergentes como a média e pequena
burguesia urbana e rural e o camponês arrendatário.
O processo de cercamento dos campos na Europa a partir dos séculos XV e XVI, tem
como grande efeito a separação do produtor direto dos bens naturais (terra, madeira etc) e dos
meios de produção (ferramentas, excedentes, etc). Dessa forma é lançada definitivamente as
bases das relações capitalistas de produção – na medida em que separa riqueza e capital,
concentrado em poucas mãos e gera uma população desprovida de propriedade e bens para o
capital e passiva de contrato via assalariamento - e do controle progressivo do capital sobre a
produção em geral – na medida em que articula atividades produtivas sob as novas relações de
produção (manufatura, agricultura comercial, etc) e desarticula atividades tradicionais
(corporações, economia senhorial feudal, etc).
Na Inglaterra da Idade Média as terras públicas são denominadas terras comuns. Terras
nas quais camponeses retiram madeira e aqueles com poucos recursos cultivam a terra e criam
animais. A ocupação por parte de novos camponeses sobre as terras comuns dependia da
permissão tácita dos camponeses já residentes. Com os cercamentos das terras comuns por meio
de doação real, venda ou fraude, elas têm sua função econômica reduzida a pastagens para
ovelhas para atender as necessidades de lã da manufatura têxtil em expansão. A terra torna-se
uma forma de propriedade absolutizada em poucas mãos, contrastando com grandes contingentes
humanos absolutamente expropriados de qualquer forma de propriedade.
Ocorre a transformação do regime de trabalho. O trabalho compulsório medieval, que se
caracteriza por uma força extra-econômica, no qual os servos são obrigados a trabalhar devido ao
costume e a tradição e cuja violação desencadeia uma punição pelo uso da força do senhor
feudal, desaparece progressivamente. O trabalho livre moderno, que se caracteriza por ser
realizado por meio de uma força econômica, é controlado pela combinação entre a condição
proletária do trabalhador e sua oferta/exposição no mercado. O trabalho encontra-se livre de
qualquer poder pessoal do patrão, com quem ele estabelece um contrato de trabalho no âmbito
do mercado. O trabalho encontra-se controlado, na verdade, por uma entidade ativa e dominante:
o capital.
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Conforma-se o confronto entre dois princípios de hierarquização social. A aristocrática,
tradicional, de nascimento (estamental), na qual a estruturação social é estabelecida pelo
nascimento, representada basicamente pela separação entre nobres e não-nobres; e a burguesa,
emergente, da economia (classe), na qual a estruturação social é estabelecida pela iniciativa e
eficácia (ou não) no mercado, representada basicamente pela separação entre ricos e não ricos.
O princípio de hierarquização social burguesa provoca a criação do mito de uma
sociedade aberta ao talento - em que pese o fato de que nenhuma sociedade anterior apresenta a
mobilidade social desta nova ordem social. Talento que se afirma por meio do trabalho. Daí a
mudança de mentalidade em relação ao trabalho: tornado sagrado pela ética protestante
calvinista, convertido em fonte de riqueza da sociedade pelo liberalismo e transformado em
atividade de todo homem justo e honrado pelo conceito burguês de trabalho.
Ocorre no período moderno a transformação do caráter das guerras. A guerra antiga
almeja terras, impostos dos conquistados, pilhagens e escravos. A guerra medieval almeja
feudos, saques, aprimorar a nobreza na arte da guerra e proteger a cruz por meio da espada. A
guerra moderna encontra-se subordinada ao capital mercantil, isto é, as guerras passam a ser
realizadas para remover obstáculos ao desenvolvimento mercantil ou para proporcionar
condições para a sua otimização (pirataria, conquista colonial, captura de escravos, guerras
comerciais continentais, etc). A guerra está a serviço da extração da renda da terra e da
expansão/reprodução do capital em benefício, respectivamente, da aristocracia e da burguesia.
Uma nova sociedade e uma nova economia, respectivamente, burguesa e capitalista
avança lentamente por dentro da sociedade e economia tradicional. Mas o suficiente para abalar
a antiga estrutura social e econômica aristocrático-feudal e, ao mesmo tempo, lançar as bases da
transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista.
O Renascimento
Ao ingressarmos na modernidade, chama imediatamente a nossa atenção o surgimento de
uma nova cultura, em especial por meio da estética do Renascimento. O Renascimento é um
movimento cultural que valoriza o humano, a razão, o espírito de investigação.
O Renascimento é, em grande medida, a expressão do caráter do homem burguês na
esfera cultural. É o processo de estabelecimento, a partir de experiência vivenciada pela
burguesia, de um universo cultural em cujo centro encontra o homem de iniciativa e racional.
Homem que busca no mundo laico a compreensão da natureza e da sociedade.
O Renascimento é um processo que homogeneíza e universaliza esta experiência social
burguesa, bem como socializa junto às demais classes sociais esta experiência, especialmente as
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classes sociais do mundo do trabalho. Isto converte o Renascimento em um movimento estético
que é também cultura, representação e ideologia de dominação de classe.
O Renascimento concorre para emancipar a cultura urbano-burguesa da cultura ruralfeudal e para alforriar o mercado das limitações estabelecidas pela igreja e pelo Estado
absolutista. Ao libertar a razão das imposições da fé concorre para a posterior afirmação da
cultura urbano-burguesa, da consolidação do modo de vida burguês e da formação da razão
crítica e instrumental a serviço do capital.
A Reforma Protestante
A reforma protestante constitui-se em outro processo da afirmação da nova cultura,
especialmente importante para a transformação mental do período moderno. Para Lutero o
homem encontra-se para sempre condenado em decorrência do pecado original. A única salvação
possível é pela fé, isto é, como manifestação puramente espiritual e individual. Segundo Lutero,
o cristão que arrepender verdadeiramente dos pecados tem plena remissão da pena e da falta.
Lutero dispensa, portanto, os intermediários que pretendem ligar os homens a Deus, bem
como a realização de obras, a aquisição de indulgências e o voto de pobreza. Ao valorizar a vida
interior e espiritual do cristão como único meio de salvação Lutero dá forma ao individualismo
na religião cristã.
Calvino, por sua vez, imprime um sentido burguês a este individualismo. A ética católica
cristã, da salvação pelas obras e a ética luterana cristã da salvação pela fé, responsabilizam o fiel
por sua salvação. Calvino, partindo do individualismo cristão de Lutero, propõe a doutrina da
predestinação, isto é, desde o início dos tempos Deus decide quem será salvo e quem será
condenado.
A insegurança proporcionada pela dúvida trazida para o fiel é solucionada com a
incorporação na doutrina calvinista dos sinais reveladores da condição do homem. Assim,
aqueles que trabalham e possuem êxito empresarial ou profissional são os eleitos, aqueles que
colecionam fracassos são os condenados. Naturalmente tal doutrina tende a modificar
profundamente o comportamento dos homens, visto que a conquista de êxito na atividade
exercida passa a se constituir em uma representação de mundo almejada pelo fiel calvinista, na
medida em que o situa para si mesmo e para a sua comunidade como escolhido, portanto,
superior aos demais.
A teologia calvinista lança a ética da valorização do trabalho, do individualismo burguês,
do espírito de poupança, da aquisição de bens, da vida material modesta, da vida moral severa no
56
cumprimento dos mandamentos. Uma ética cristã e burguesa que harmoniza individualismo,
lucro e salvação cristã.
A religião calvinista concorre, portanto, para a constituição de burgueses ávidos de lucros
e propriedades, com uma ação racional e empenho pessoal nessa direção, e de trabalhadores
disciplinados e sóbrios, com um senso de missão a ser desenvolvida com eficácia, ordem e
respeito às convenções. O calvinismo, em grande medida, é a versão burguesa do cristianismo.
É, ainda, a ante-sala do liberalismo de Locke, visto que concebe a desigualdade social como
determinada pela predestinação dos homens, enquanto como o liberalismo de Locke a concebe
enquanto decorrente das transformações de uma sociedade comercial e monetarizada e do caráter
e personalidade dos indivíduos.
Os Estados Nacionais Aristocráticos
Os Estados nacionais, nascidos a partir do final da Baixa Idade Média, constituem-se em
estruturas de poder comandadas pelas dinastias territoriais e situadas de forma intermediária
entre o poder local da nobreza feudal e os poderes universais representados pelo Papa (poder
espiritual) e pelo Imperador (poder temporal). A sua formação obriga os reis a se sobrepor sobre
os particularismos da nobreza feudal de província. Para tanto, é necessário um consistente
aparato burocrático-administrativo e militar.
Os Estados nacionais absolutistas não são obras de uma burguesia mercantil emergente.
Nem, tampouco, de um bloco contraditório de forças sociais e políticas - a monarquia, a nobreza
feudal e a burguesia mercantil. Os Estados nacionais absolutistas são o resultado da luta política
da aristocracia feudal, na sua busca por assegurar a continuidade da extração da renda da terra,
num contexto marcado por profundas mudanças.
As cidades comerciais e administrativas se fortalecem na Baixa Idade Média e nos
tempos modernos. A parcelarização das soberanias feudais - cuja forma são as relações de
suserania e vassalagem, que asseguram aos últimos autonomia e lhes impõe obrigações (fiscais,
militares etc) - garante às cidades, no contexto de relativa autonomia e liberdade, uma expansão
econômica segura.
As cidades antagonizam-se em relação ao campo quando este tem como característica
práticas econômicas servis e autárquicas, impondo-lhe uma divisão social do trabalho expansiva
e uma agricultura comercial. Conglomeram nas cidades, por sua vez, atividades mercantis,
manufatureiras e bancárias. As cidades impõe ao campo uma especialização produtiva
agropecuária mercantil, subordinada e integrada às necessidades urbanas (Fourquin, 1979, p.
57
345-376).
A aristocracia feudal enxerga nesta dinâmica de mudanças a oportunidade de ampliar
suas rendas, seja pelos novos mercados abertos na cidade para víveres e matérias primas, seja
pela ampliação (quantitativa e qualitativa) das atividades sujeitas a tributação. Participa
intensamente da criação de cidades, da normatização de legislações, da proteção de estradas e
comerciantes, da implantação de portos fluviais, do controle da emissão de moedas etc. A
aristocracia feudal também enxerga na extensão dos rearranjos institucionais para territórios mais
amplos, rompendo com localismos e regionalismos estreitos, uma forma de ampliar suas rendas.
Estas mudanças provocam transformações profundas na forma do Estado feudal. Além da
ampliação das mudanças para os limites de um grande território, dinamizando a extração da
renda fundiária de nova forma (em dinheiro), proporcionaria uma nova modalidade de extração
da referida renda: o fundo público.
O Estado feudal, por meio de um gigantesco aparato fiscal, administrativo e militar,
assegura renda aos homens de sangue azul - homens cuja fidalguia, além de garantir rendas e
funções públicas, lhes desencumbe do pagamento de impostos. O fundo público transforma-se,
portanto, numa nova fronteira de extração da renda da terra a benefício da aristocracia feudal.
O fim da servidão não significa o desaparecimento das relações feudais no campo. A
coerção extra-econômica privada, a dependência pessoal e a associação do produtor direto com
os instrumentos de produção não desaparecem quando o sobreproduto rural deixa de ser extraído
na forma de trabalho ou prestações em espécie, e passa a ser extraída em dinheiro. A propriedade
agrária aristocrática, impedindo, ao mesmo tempo, um mercado livre de terras e a mobilidade
efetiva do camponês, conserva as relações feudais de produção (Anderson, 1985, p. 17).
As monarquias nacionais então se formam. Submetidas, contudo, ao controle da
aristocracia feudal por meio de instâncias feudais recuperadas e redefinidas. Os conselhos
aristocrático-feudais - denominados cortes, nos reinos espanhões; estados ou ordens, na França;
parlamento, na Inglaterra - controlam a monarquia, bem como a baixa nobreza local e provincial
dentro do seu próprio campo de classe.
O Estado absolutista é um Estado feudal reforçado e recolocado para enfrentar uma dupla
ameaça à aristocracia feudal. De um lado, a comutação generalizada das obrigações, que
transformadas em rendas monetarizadas, ameaça a unidade básica da opressão política e
econômica do campesinato - exploração econômica com coerção político-legal. De outro lado, o
fortalecimento da burguesia mercantil por meio do crescimento das economias urbanas, que
prenuncia um futuro conflito pela direção da sociedade (Anderson, 1985, p. 18-20).
O Estado absolutista é, afinal, expressão da hegemonia aristocrática no contexto de um
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intenso processo de urbanização, de redefinição das relações campo/cidade e de mercantilização.
Não se caracteriza, portanto, como fruto de um estado de equilíbrio de classes, no qual a
monarquia nacional equacionaria os conflitos entre aristocracia e burguesia, como
equivocadamente concebem, entre outros, Marx e Engels (Marx e Engels, 1983, p. 137).
A aristocracia feudal permanece proprietária dos meios de produção fundamentais,
portanto, dominante econômica e politicamente. E conserva-se, enquanto tal, do princípio ao
final da história do absolutismo.
As dinastias territoriais formam o novo aparato público assegurando a hegemonia da
aristocrática por meio da manutenção da estrutura estamental da sociedade e da concessão de
inúmeros privilégios (monopólios dos altos cargos da burocracia civil e militar, sistema jurídico
próprio, insenção de impostos, direito de pensão pela condição de linhagem, etc); por meio da
prestação de homenagem de um vassalo ao seu suserano, de forma a determinar alianças
políticas, guerras e casamentos que contribuam para a centralização política; e por meio da
cobrança regular de impostos determinados pelas assembléias da nobreza e do clero, mais tarde
também participada pela burguesia.
No bojo destas transformações ocorre o processo de centralização política em torno dos
novos Estados nacionais; o nascimento da Europa, isto é, um continente recortado por Estados
dirigidos por meio de monarquias nacionais absolutistas, mas economicamente unificados pelo
mercado; e os monarcas transformam-se em figuras poderosas de direito civil e religioso.
Estado Nacional e Mercantilismo
A política social e econômica dos Estados nacionais caracteriza-se pelo dirigismo estatal
e pelo ideal de um Estado forte. A política econômica mercantilista é a que melhor retrata estes
objetivos.
A política mercantilista consiste de medidas criadas e praticadas pelo Estado tendo em
vista conquistar e preservar territórios e concentrar a maior reserva possível de ouro e de prata.
Para tanto, dirige a economia segundo programas e metas previamente estabelecidas; busca uma
balança comercial favorável por meio de política protecionista, de obstáculos para a exportação
de matérias primas e de estímulo para a exportação de manufaturados; impulsiona a produção
manufatureira por meio de proteção tarifária e financiamento público; promove o comércio
externo por meio de concessão de monopólio de extração / comercialização de determinados
produtos e de formação de companhias de economia privada, pública ou mista; implanta o antigo
sistema colonial por meio de trabalho compulsório (escravidão, mita, encomienda, etc),
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exclusivo comercial metropolitano e combinação entre capital público e privado tendo em vista
gerar um valor (ouro, açúcar, etc) mercantil.
A eficácia da política mercantil e de outras políticas do Estado absolutista depende de
outros processos, tais como o crescimento demográfico e cercamento dos campos, responsáveis
pela maior oferta de mão-de-obra, pela redução do custo do capital com salários, pela
dinamização do mercado interno para a atividade manufatureira e pela disponibilidade de
homens para a guerra; e a redefinição do caráter e dos propósitos das guerras, responsáveis por
gerar territórios, por viabilizar controle de mercados fornecedores de escravaria e especiarias,
por proporcionar soberania náutica, e assim por diante.
Os Estados nacionais e o mercantilismo desencadeiam o expansionismo moderno. Esse
expansionismo conjuga todas as formas e objetivos do expansionismo antigo, como a conquista
de recursos naturais e de escravos, bem como com o que lhe é peculiar, qual seja, a conquista de
territórios para se reproduzir valor. Embora todas as formas de expansionismo se constitua em
uma característica das sociedades fundadas na desigualdade social, o novo expansionismo possui
um caráter essencialmente econômico.
Uma divisão internacional do trabalho é criada de forma a assegurar a transferência de
um volume incalculável de riquezas e a avançar as forças sociais e produtivas na Europa. Forças
sociais e produtivas que, posteriormente, contribuem para promover a dupla revolução burguesa
e industrial do século XVIII.
O Iluminismo e a Razão
A Revolução intelectual que se efetiva na Europa, especialmente na França do século
XVIII e que é conhecida como Iluminismo, representa o ápice das transformações culturais
iniciadas no século XIV pelo movimento renascentista. O antropocentrismo e o individualismo
renascentistas, que incentivam a investigação científica e que levam à gradativa separação entre
o campo da fé (religião) e da razão (ciência), atinge com o iluminismo o poder de operar
profundas transformações no modo de pensar e agir do homem.
O Iluminismo procura uma explicação racional de forma que rompa com todas as formas
de pensar até então consagradas pela tradição, em especial a submissão cega à autoridade e a
concepção teocêntrica medieval. Para os iluministas somente por meio da razão o homem pode
alcançar o conhecimento, a convivência harmoniosa em sociedade, a liberdade individual e a
felicidade. A razão é, portanto, o único guia da sabedoria que pode permitir esclarecer qualquer
problema, possibilitando ao homem a compreensão e o domínio da natureza.
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Os iluministas propõem a reorganização da sociedade, com uma política centrada no
homem, sobretudo no sentido de garantir-lhe igualdade e liberdade. Criticam: os resquícios
feudais, como a permanência da servidão; o regime Absolutista e o Mercantilismo, com a
limitação do direito à propriedade; a influência da Igreja Católica sobre a sociedade,
principalmente no campo da educação e cultura; a desigualdade de direitos e deveres entre os
indivíduos.
4.5. Sociedade Contemporânea e Trabalho
Na Europa do final do século XVIII consolidam-se a sociedade burguesa e o capitalismo
por meio, respectivamente, da Revolução Burguesa e da Revolução Industrial.
A Revolução Burguesa, iniciada por meio da Independência dos Estados Unidos (1776) e
da Revolução Francesa (1789), evidencia a crise de hegemonia aristocrático-feudal. Todavia, a
ascensão da burguesia à condição de classe dominante não é acompanhado, imediatamente, pela
construção da sua hegemonia. A resistência aristocrática, de um lado, e a presença do movimento
proletário com a bandeira vermelha, de outro, desperta o temor da burguesia e da sua
representação política. Decorre deste quadro as formas de regime e de governo não republicano
tendo em vista assegurar o domínio burguês – o consulado, o I e II Impérios na França; a
Monarquia Parlamentar Constitucional na Inglaterra; o fascismo na Europa do Século XX,
etc.
Após as Revoluções de 1848 (A Primavera dos Povos) a burguesia busca um acordo
definitivo com a aristocracia e abandona qualquer veleidade revolucionária. A bandeira tricolor é
abandonada definitivamente.
A economia mercantil torna-se afinal uma economia capitalista. Um mercado de tipo
especial se forma: um mercado que não hesita em recrutar como trabalhadores o exército de
homens livres, sem trabalho e sem meios de sobrevivência, que vaga pela Europa, em
conseqüência das mudanças sociais advindas com o cercamento dos campos. O mercador
transforma-se, portanto, em capitalista quando, enfim, passa a converter a força de trabalho em
mercadoria, assalariá-la sob contrato de trabalho e submetê-la a uma intensa espoliação
econômica. Este é um passo único na história da humanidade.
A partir daí, as paisagens transformaram-se rapidamente: primeiramente chaminés, trens,
ruas, edifícios, movimento; mais tarde complexos industriais e comerciais, metrópolis, nova
revolução nos transportes, telecomunicações. As grandes cidades multiplicam-se. O rural é
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urbanizado. Estabelecem-se novas relações entre os homens, a natureza e os objetos
(coisificados).
O capitalismo concorrencial e de livre iniciativa, que nasce com a Revolução Industrial,
se esgota no final do século XIX. O capitalismo monopolista, por sua vez, nasce a partir de então
e se estende aos dias atuais. Dessas mudanças surge a crise do liberalismo, isto é, da concepção,
de teoria e ideologia valorizadora da iniciativa individual, do livre mercado e da sociedade
contratual como elementos propulsores das transformações sociais. A crise do liberalismo e a
competição imperialista dá lugar a ascensão do fascismo, da corrida armamentista e das guerras
regionais e mundiais.
Ciência para o capital, razão instrumental e lógica do valor: uma mentalidade marcada
pela mercantilização do mundo natural e social, pelo espírito de acumulação, pelo
individualismo assume dimensões sem precedentes. Um novo modo de vida, tipicamente
burguês e urbano, que assume uma forma “acabada” no “American way of life”, se impôs em
escala mundial.
Porém, o capitalismo traz no seu próprio ventre as forças sociais e políticas da sua
contestação: o proletariado. Vivendo em um intenso processo de dominação política, exploração
econômica e opressão ideológica, esta nova classe começa a travar lutas por melhores condições
de vida.
Capitalismo e Contestação do Mundo do Trabalho
As condições de trabalho da classe operária são as piores possíveis na primeira metade do
século XIX. Longas jornadas de trabalho, salários aviltantes, trabalho infantil, e assim por diante
Neste contexto, tendo a Inglaterra como referencia forma-se, no início do século XIX, a
primeira expressão de uma consciência de classe de cunho economicista e corporativo, o
Ludismo. A revolta contra o patrão e o desemprego culminam na destruição de máquinas e
equipamentos. Mas a violência patronal por meio de grupos armados e leis de Estado que
condenam à forca operários presos invadindo fábricas ou destruindo máquinas debelam estes
movimentos.
Posteriormente, tem lugar o Cartismo, que consiste no envio de cartas e petições para que
o parlamento se conscientize da situação da classe operária e adote leis de proteção do
trabalhador. Embora igualmente economicista e corporativo este movimento possui a virtude de
incorporar a intervenção institucional como forma de luta, sob uma unidade de ação de classe. A
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expansão da indústria moderna, o triunfo ideológico-político da concepção liberal de sociedade e
o pequeno resultado prático do movimento cartista o esvazia ao final dos anos 40 do século XIX.
O movimento trade-unionista, isto é, o movimento sindical tem início a partir de meados
do século XIX. Nascidos das caixas de solidariedade criadas pelos trabalhadores para socorrer
emergências como enterros, amparo a órfãos, socorro a enfermos, etc, desenvolve-se enquanto
organismo de defesa de classe circunscritos fundamentalmente à esfera econômica.
Por meio destas lutas nascem e/ou consolidam o anarquismo moderno e o socialismo,
doutrinas sociais que criticam e contestam a desumanidade do capitalismo. Todas essas correntes
políticas, denominadas de esquerda, são radicalmente contra a primazia do lucro sobre a vida e o
bem-estar do homem. Por isso seus adeptos pensam em formas de construir uma nova sociedade
e tentam colocar estes objetivos em prática.
O socialismo real nasce em lugar aparentemente improvável, a Rússia Czarista, por meio
da Revolução Russa de 1917. Posteriormente, se estende para países e continentes.
Liberalismo, Cidadania e Estado
A teoria liberal expressa-se como movimento político no processo da Revolução
Francesa. Sucumbe uma sociedade política fundada na idéia de mundo ordenado, na forma de
uma hierarquia divina, natural e social e na organização feudal (pacto de submissão do vassalo
ao amo). A idéia de direito natural (relações entre indivíduos fundada na liberdade e igualdade
oriundas do Estado de Natureza) e de contrato social (relações de pacto estabelecidos por
indivíduos livres e iguais), sucumbe, também, a idéia da origem divina do poder e da justiça
fundada nas virtudes do bom governante.
O indivíduo é concebido como a origem e destinatário do poder político, nascido de um
contrato social racional e livremente estabelecido, onde as partes cederiam um nível de poder,
mas não alienariam a sua individualidade contido no Estado de Natureza, isto é, a vida, a
liberdade e a propriedade. O poder teria a forma ideal e clássica do Estado republicano
impessoal, no qual o parlamento (poder legislativo), expressão dos interesses dos cidadãos e
composto por meio do sufrágio, controlaria o governo (poder executivo) e a magistratura (poder
judiciário).
O Estado, por meio da lei e da força determinados pelos proprietários privados e seus
representantes, é concebido como instrumento político-institucional-burocrático-militar que
garante a ordem pública. As suas funções seriam: 1) assegurar o direito natural de propriedade e
a liberdade dos sujeitos econômicos no mercado por meio de leis e da coação policial-militar; 2)
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arbitrar os conflitos que se desenvolvem no âmbito da sociedade civil por meio das leis e da
coação policial-militar; e 3) legislar e regulamentar a esfera pública sem, contudo, interferir na
consciência dos cidadãos.
As Novas Morais
A consolidação da burguesia como classe e a efetivação do seu domínio, em especial a
partir do século XIX, determina uma transformação da moral burguesa. Esta moral, que como
qualquer outra moral convive com uma distância entre os seus fundamentos e as práticas sociais
concretas por ela orientadas e com uma influência direta da moral dominante com a qual
conflitua, perde seus elementos de progressismo moral. A “nova” moral burguesa incorpora
elementos da velha moral aristocrática como a busca do conforto material, a valorização do ócio
e do parasitismo social etc, e desenvolve outros elementos como a dissimulação, o formalismo, o
cinismo, o chauvinismo, a institucionalização do comportamento humano etc.
A atuação desta “nova” moral burguesa sob o mundo do trabalho, em especial sobre o
proletariado urbano, possui grande significado. Atuação esta que assume um poder estruturador e
propagador moral ainda maior devido aos processos de alienação e desumanização a que o
trabalhador encontra-se submetido, frutos da tecnologia de produção e dos métodos de
planejamento e racionalização do trabalho. Além da imposição da perspectiva do conforto
burguês (consumismo, abastância material etc), do concorrencialismo, do individualismo, da
obsessão pelo trabalho, observamos mais recentemente a moral cultuadora do corporativismo de
empresa (o trabalhador como parte da empresa, a empresa com seus símbolos e ritos etc), do
compromisso moral do trabalhador para com a empresa etc.
As classes e grupos sociais que compõe o mundo do trabalho também elaboram a sua
moral. Por meio da sua experiência social no trabalho, da sua organização político-sindical, das
suas publicações, das lutas sociais, dos seus intelectuais orgânicos etc, os trabalhadores reúnem
elementos de conduta moral alternativos como a solidariedade, a progressiva igualdade de
gênero e étnica, a identidade de classe etc. A homogeneização/unificação destes elementos de
conduta moral alternativos, vivem fluxos e refluxos na direta relação com as transformações
produtivas, a intensidade e qualidade da interferência da mídia na sociedade, as formas e
qualidades da organização das lutas sociais, e assim por diante.
O Mundo Contemporâneo Ocidental conhece, ainda, a emergência de concepções
filosóficas e políticas que incorpora perspectivas de classes e grupos sociais subalternos. A
contestação da ordem social e econômica, das estruturas de poder, dos padrões culturais, da
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relação com a natureza, são algumas das temáticas provocas pelas referidas concepções.
No plano filosófico, a Ética contemporânea é uma reação contra o formalismo kantiano e
o racionalismo absoluto hegeliano, no sentido de salvar o concreto. Como características gerais
desta reação podemos identificar: a) a defesa do homem concreto (o indivíduo para o
existencialismo; o homem social para Marx), em face do formalismo de Kant e do universalismo
abstrato de Hegel; b) o reconhecimento do irracional no comportamento humano, em face do
racionalismo absoluto de Hegel; c) a procura da origem da Ética no próprio homem, em face da
sua fundamentação transcendente (Vásquez, 1989, p. 251 e 252).
Crise do Capital e Welfare State
Os anos dourados do capitalismo no século XX se encontram entre o final da Segunda
Guerra Mundial e o início dos anos 70. A base dos anos dourados são o liberalismo econômico, o
planejamento estatal e a política de proteção social.
No período ocorre a conjugação entre o liberalismo econômico, que estimula a
criatividade, a competição tecnológica, a redução de custos e a busca pela elevação da margem
de lucros; a presença do planejamento estatal, que direciona e programa em certa medida os
oligopólios, contém a competitividade que vem ameaçar a lucratividade e transforma o Estado
em um grande comprador, investidor direto e agente financeiro da economia ; e a política de
proteção social, que assegura a extensão da educação e saúde pública, edifica um amplo sistema
previdenciário, programas de seguridade social aos trabalhadores da ativa, etc.
A compreensão da articulação destes processos nos obriga a recuar à crise capitalista de
1929. A super-produção norte-americana durante o conflito mundial de 1914-1918, quando este
país supre as necessidades internacionais não supridas pela Europa Ocidental sob conversão
industrial bélica e interrupção militar do comércio, não recua no pós-guerra. Ao término da
reconstrução européia, em parte financiada pelos Estados Unidos, tem início uma produção de
mercadorias em uma escala inédita.
A reprodução expansiva do capital nos anos 20 ocorre no contexto de uma pressão
concorrencial sob pleno liberalismo econômico, que obriga as corporações econômicas e
empresários em geral a compensar o menor custo por unidade devido ao avanço tecnológico e o
menor valor por unidade comercializada devido a disputa por mercado, por meio do aumento da
capacidade de produção. O resultado é que a produção ultrapassa a capacidade de consumo do
mercado e tem início a crise de super-produção.
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O quadro se complica ainda mais com a atuação da Bolsa de Valores dos Estados Unidos.
Nos anos 20 ela deixa de ser, fundamentalmente, um instrumento de capitalização das empresas
por meio da venda de ações, e se transforma em um espaço privilegiado de especulação em torno
das ações, atribuindo-lhe valores irreais.
Quando no dia 24 de outubro de 1929 os investidores e empresas colocam ações à venda
e estas não obtém procura, tem início a espiral de super oferta e desvalorização de ações e
mercadorias, de forma a quebrar indústrias, bancos e investidores. A produção cai e o
desemprego sobe, ambos dramaticamente. Quando bancos e o governo norte americano retomam
os empréstimos concedidos aos países europeus e os Estados Unidos reduz importações destes
mesmos países, bem como de economias agro-exportadoras altamente especializadas como a
brasileira em torno do café, a crise se estende sobre todo o mundo.
O liberalismo econômico e a crença na livre iniciativa demonstram-se incapazes de fazer
frente a crise econômica. As eleições presidenciais dos Estados Unidos de 1933 assegura a
vitória de Franklin Delano Roosevelt, ancorado em um discurso que propõe um Estado
intervencionista para a saída da crise.
Empossado e assessorado por economistas seguidores do economista inglês John
Maynard Keynes (1883-1946), apresenta um plano para a saída da crise chamado New Deal
(Novo Acordo). Este plano distribui-se em três etapas.
A primeira etapa (1933 e 1934) tem como iniciativas fundamentais o controle financeiro
por meio da proibição da exportação de ouro, da desvalorização do dólar, da moratória e do
controle da atividade bancária, de forma a conter especulação, estimular exportações, deter o
processo de falência; o controle agrícola por meio do equilíbrio entre oferta e procura, do
fortalecimento do poder aquisitivo dos trabalhadores assalariados rurais e da defesa dos
pequenos proprietários, de forma a assegurar a rentabilidade agropecuária, aumentar a demanda
de bens industriais por parte da população do campo e assegurar que os bancos recebam valores
correspondentes a dívidas e hipotecas de empresas rurais e agricultores; a suspensão das lei
antitrustes por meio do National Industrial Recovery Act, de forma a criar gigantescas
corporações econômicas de forma a ampliar a sua capacidade de atuação interna e externa,
reduzir competição, viabilizar maior programação da atividade empresarial e equilibrar produção
e demanda e reduzir custos de produção até certo limite; e proteger os consumidores e sindicatos
por meio da redução da jornada de trabalho, proibição do trabalho de crianças, criação do salário
mínimo e aumento salarial em diversos setores, de forma a aumentar a geração de emprego,
assegurar renda às famílias e aquecer demanda por bens industriais e serviços.
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A segunda etapa (1935-1936) tem como iniciativas fundamentais a continuidade da
tomada de medidas para solucionar os problemas rurais imediatos por meio da renegociação de
hipotecas, financiamento público para o setor agropecuário, redução da super-produção e
aumento da produção de bens tecnológicos agropecuários, de forma a reduzir o êxodo rural,
garantir a criação de emprego no campo; e a aprovação do Social Security Act (Ato de
Segurança Social) por meio do qual se criam seguros contra desemprego, velhice, doenças e
acidentes, de forma a lançar as bases do que mais tarde viria a ser o Estado do bem-estar social
(welfare state).
A terceira e última etapa (1936-1938) tem como iniciativas fundamentais a Lei Wagner,
por meio da qual é concedido direito de liberdade sindical, de forma a libertar o sindicato da
tutela do patrão, estimular a organização sindical de categorias de trabalhadores pouco
qualificados e estimular o poder econômico-reivindicativo dos trabalhadores. Nesta etapa
esgotam-se as medidas de reformismo econômico.
A maior liberdade de organização sindical e a combatividade econômico-reivindicativa
dos trabalhadores decorre da retomada da atividade econômica, da Lei Wagner e da experiência
política dos trabalhadores em curso. Decorre, também, da dinamização do sistema de proteção e
defesa dos trabalhadores, conduzido por meio de reformas sociais que garantam estender direitos
civis, políticos e sociais para amplos setores do mundo do trabalho.
O New Deal representa uma visão liberal heterodoxa e inovadora. Acossado pela crise
recessiva, pela crise social que pode dar margem ao surgimento de projetos e movimentos sociais
revolucionários e pela defesa da propriedade e do lucro dos capitalistas e usufruindo da
disponibilidade de uma teoria econômica liberal-intervencionista e reguladora (keynesianismo) e
da referência de planejamento econômico estatal em curso por meio dos planos qüinqüenais da
URSS, o New Deal dá conta de retirar o país da crise. A superação da crise ocorre por meio da
programação econômica e financiamento estatal; da preservação/modernização da estrutura
capitalista por meio da sua oligopolização e competição controlada; da ampliação das reservas
econômicas, políticas e ideológicas da hegemonia burguesa por meio da humanização das
relações de trabalho através do piso nacional de salários, dos programas de proteção social, da
superação de formas brutais de exploração de trabalho (com a sua transferência para a periferia
capitalista); da recriação e reposição da expectativa da satisfação das necessidades individuais no
contexto das relações de mercado.
Ao término da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos emergem como a única
superpotência do mundo ocidental. Todavia, o desemprego oriundo da desmobilização do
exército e de parte da indústria bélica, bem como a intensa mobilização dos trabalhadores por
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reajustes salariais, evidenciam importantes tensões sociais. A opção das classes dominantes e da
burocracia de Estado se subdivide em dois planos. De um lado, assegurar a continuidade da
política de reforma social. O Fair Deal (Acordo Justo) do governo Truman (1948-52), por meio
do controle de salários e preços, programa de moradia, melhoria do sistema previdenciário e
subsídio à agricultura, no plano econômico, e aprovação de leis, direitos civis e garantia de
liberdade de organização sindical em contraposição aos conservadores, no plano político. De
outro, desencadeia uma ofensiva ideológica e política contra a esquerda, intelectuais e artistas. A
ofensiva assume uma dimensão paradigmática no movimento de extrema direita e anticomunista
denominado macartismo.
A sociedade norte americana dos anos 50 em diante converte-se em uma sociedade
urbanizada e articulada sobre a base da abundância de informação e imagem, do consumismo e
do individualismo. Este padrão de sociedade adapta-se perfeitamente a democracia liberal
representativa norte-americana, na qual as pressões dos grupos sociais (renda, etnia,
escolaridade, etc) traduz-se por meio da opinião pública com consequência direta na ação de
partidos, políticos, governos, burocracia, instituições, etc. A extensão dos direitos sociais e
políticos afro-americanos e da ação política, jurídica e policial da União para garanti-los,
completa a legitimidade perante a sociedade norte-americana e o mundo deste padrão social e
regime político. O “American way of life” por meio do cinema norte-americano, da mídia, das
corporações econômicas, etc, se universaliza.
A Grande Crise do Capitalismo e os Novos Regimes
A sociedade capitalista e burguesa de cunho liberal convive com um terreno favorável
para o desenvolvimento da sua crítica. A ascensão do capital monopolista e do imperialismo
mina a doutrina liberal em termos ideológicos. De um lado, esgota a sociedade cuja economia
encontra-se, em alguma medida, aberta ao talento. O pequeno negócio não possui mais
viabilidade mediante a ação do capital corporativo, o que coloca em cheque o liberalismo em sua
dimensão econômica. O sistema político censitário e/ou restritivo da participação da mulher na
Europa e a conquista, exploração, segregação e genocídio neocolonial na África, Ásia e Oceania,
colocam em cheque o liberalismo em sua dimensão política.
A disputa por mercados e a afirmação de novas nações proporcionam um terreno
favorável para o nacionalismo. Esta ideologia e ideal político, que bloqueia a percepção da
humanidade, do sistema econômico dominante e das relações políticas como totalidade articulase com outras ideologias e ideais políticos de direita e de esquerda. Como resultado transforma-
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se em um importante fator de radicalização de conflitos e contradições e de ocultamento das suas
próprias essências de dominação, exploração e opressão.
A intolerância entre nações e etnias concorre para a radicalização social obscurantista. O
preconceito contra eslavos, o anti-judaismo, a supremacia ariana, são materializações desta
intolerância. Intolerância esta capaz, ao mesmo tempo, de impedir a percepção dos fundamentos
da sociedade capitalista e burguesa (contradição capital versus trabalho; hegemonia liberal
burguesa) e canalizar recalques sociais gerado pelo desemprego, falência de pequenos negócios,
etc, em direção dos “outros”.
Nos países ocidentais de forte tradição liberal e de grandes reservas econômicas como os
Estados Unidos, a Inglaterra e a França a crise da sociedade capitalista e burguesa não convive
com a formação de uma crítica dos fundamentos desta sociedade por parte do mundo do
trabalho. Estes países não convivem com movimentos revolucionários no final do século XIX e
no século XX. Mesmo a França, com uma história contemporânea profundamente marcada por
movimentos socialistas e por insurgências e com a importante presença dos partisans na
resistência contra a ocupação nazista, não convive com a crise de hegemonia burguesa em face
do mundo do trabalho e, exatamente por isto, não convive também com a reação e a adesão
maciça burguesa e de setores das classes médias abastadas em torno de um projeto fascista.
Nos países ocidentais de fraca tradição liberal, industrializados e de modestas reservas de
hegemonia como a Alemanha (pós I e II Guerras Mundiais) e Itália, ou de fraca tradição liberal,
autoritárias, pré-industriais e de reservas de hegemonia ainda mais restritas, como Espanha e
Portugal, a sociedade capitalista e burguesa convive com a formação de uma crítica dos
fundamentos desta sociedade por parte do mundo do trabalho. Os movimentos revolucionários
de 1918-19 e 1927 na Alemanha, 1936-39 na Espanha, 1912-20 na Itália evidenciam esta crítica.
Nestas sociedades emerge o fascismo como ideologia e ideal político. A burguesia e as
classes médias abastadas aderem ao fascismo como reação à perspectiva socialista e
revolucionária do mundo do trabalho. Conforme Gramsci, elas abandonam a guerra de posição,
fundamentalmente de cunho consensual, e passam a conduzir a guerra de movimento,
fundamentalmente de cunho coercitivo, orientada em torno da concepção e doutrina fascista.
Nos países de fraca tradição liberal, onde a burguesia não desfruta de grandes reservas
econômicas e não se demarca enquanto classe social com projeto próprio em face da aristocracia,
a exemplo dos países da Europa Oriental, forma-se um ambiente de afirmação de uma crítica
social radical. De um lado, a crítica do regime autoritário, teocrático ou não, que identifica a
burguesia e uma perspectiva liberal-democrática como instrumentos para o avanço político e
econômico da sociedade. Nesta leitura política a burguesia deve ser empurrada politicamente
69
para a revolução democrático-burguesa. De outro lado, a crítica à sociedade capitalista e
burguesa, que reproduz a exploração e opressão social. Nesta leitura o capitalismo representa
uma fase necessária de desenvolvimento das forças produtivas que prepara as condições
materiais e objetivas para uma transformação social futura.
Nestes países, o caráter contra-revolucionário da burguesia e/ou a sua incapacidade de
liderar as forças revolucionárias esgotam o caráter democrático-burguês destas revoluções. E as
revoluções transformam-se em revolução de caráter nacional-democráticas, dirigidas por uma
vanguarda socialista e revolucionária.
70
71
5. CAPITALISMO, DINÂMICA DE REPRODUÇÃO E CRISE
As teses sobre as quais se apóia a análise crítica sobre o sistema capitalista mantém a sua
atualidade. As relações sociais entre os homens no capitalismo são reguladas antes pelo valor de
troca do que pelo valor de uso das mercadorias e serviços que eles produzem. Em síntese, as
necessidades humanas encontram-se na dependência direta do poder de compra das pessoas no
mercado.
A satisfação das necessidades humanas apresenta-se como resultado secundário da
produção e do lucro mediado pelo sistema de trocas. É o capital e os bens, não o homem e a vida,
que encontram-se no centro da atividade econômica no sistema capitalista.
O processo de desenvolvimento do capitalismo acirra a dupla contradição presente na sua
base de reprodução. Primeiramente, a contradição estabelecida entre a crescente produtividade
do trabalho social, por um lado, e seu o uso repressivo e destrutivo, por outro. Em segundo lugar,
a contradição estabelecida entre o caráter social da produção e a apropriação privada dos
excedentes.
O capitalismo somente pode resolver essa contradição temporariamente, de forma a
aumentar o seu caráter repressivo e destrutivo por meio do desperdício, do luxo e da destruição
das forças produtivas. A corrida competitiva pelo armamento, pela produção e pelo lucro
proporcionam
um
elevado
grau
de
concentração
do
poder
econômico
-
via
centralização/concentração oligopolista e financeira do capital. A expansão econômica agressiva
para o exterior, os conflitos regionais criados e/ou incentivados e as disputas por influência
continental entre os países de capitalismo central, tendem a formar ciclos recorrentes de
dependência, de guerras e de depressões.
A quinta tese sobre a qual se apóia a análise crítica sobre o sistema capitalista insere a
idéia da possibilidade da transformação social. Segundo Marx, o ciclo de reprodução do capital
carrega a possibilidade histórica de ser interrompido pelo mundo do trabalho em aliança com
outros setores populares. Isto porque as classes do mundo do trabalho suportam o peso da
exploração econômica, o que as tende levar à perspectiva da transformação social, de forma a
assumir o controle do aparato produtivo e a desencadear a superação das contradições básicas do
sistema capitalista de produção. Por um lado, liquidando com o sistema social de produção mas
de controle e apropriação privados e, por outro, libertar o desenvolvimento das forças produtivas
e estabelecer a integração entre o desenvolvimento das forças produtivas e as necessidades
humanas.
72
Capitalismo e Crise
Marx e os intelectuais críticos do capitalismo que se referenciam no marxismo clássico
concebem o ‘fenômeno’ crise em função do capital, tema fundamental para a reflexão social e
econômica no âmbito do capitalismo. Portanto, em termos do marxismo clássico, a abordagem do
fenômeno crise deve partir, necessariamente, da negatividade constitutiva do capital.
O capital constitui o fundamento do processo da reiteração e expansão das suas próprias
condições de existência. Cumprida a etapa da acumulação primitiva de capital, o capital se
materializa nos meios de produção que se coloca à frente da força de trabalho como algo estranho e
com poder de obrigá-lo a produzir; e na própria força de trabalho, adquirida pelo capitalista no
mercado e integrada ao capital como capital variável. Enquanto materialização da riqueza social e
enquanto proprietário das faculdades do produtor, o capital constitui-se, em um determinado
sentido, no ‘sujeito’ que transforma a produção e a circulação das mercadorias em meios para a sua
reprodução expansiva. Assim, todas as formas econômicas, das atividades econômicas em sentido
restrito às formas de organização (tecnológica e organizacional) do trabalho, são simples
mediadoras da referida expansão (Coggiola (Coord.), 1996, p. 291-302).
O movimento do capital engendra uma contradição: para (re)-criar o fundamento da sua
valorização o capital necessita, concomitantemente, de criar e subordinar a força de trabalho e
encontrá-la como seu oposto no mercado e no processo de produção. Dessa forma, reduzindo o
trabalho à condição de mercadoria poderá absorvê-lo como capital variável.
Por outro lado, a partir desta transformação o capital busca valorizar-se crescentemente, o
que leva ao progressivo predomínio do capital constante em relação ao capital variável. Dito de
outra forma, o domínio do trabalho vivo pelo morto (capital), com o progressivo predomínio do
capital constante em relação ao capital variável (como uma tendência à negação do trabalho vivo
pelo morto), constitui-se na manifestação da contradição, visto que é o trabalho a fonte do valor e,
portanto, do próprio capital.
No plano das relações econômicas este ‘sujeito’ se expressa por meio dos capitalistas
individualmente e enquanto grupo social. Cada capitalista em particular deve se confrontar com o
trabalhador para que possa obter a mais-valia (fundamento oculto do capitalismo, ao mesmo tempo
sua força propulsora e fonte da sua reprodução expansiva). Neste sentido, aumentar a duração e a
intensidade do trabalho e, acima de tudo, a sua produtividade é a garantia da sua extração (e,
possivelmente, expansão). O capitalista deve se confrontar também com os demais capitalistas para
preservar suas taxas de lucratividade e assegurar mercados. Para tanto, ele deve necessariamente
baixar os seus custos de produção.
73
Como ‘sujeito’ da auto-valorização, que confronta consigo mesmo e com a sua negação, o
capital subordina a produção e a circulação de mercadorias como fases do processo pelo qual ele se
acumula e reproduz. Fases estas que, se reproduzindo sob uma relativa autonomização e sob o
impulso desmedido de auto-valorização, não se determinam pelo consumo e necessidades sociais.
A economia capitalista, apoiada na sua intrínseca anarquia em termos da produção, da
circulação e da produção/circulação, concorre para crises recorrentes (Marx, 1984, v. I, p. 26).
O fato da determinação do que, como e quando produzir residir no âmbito de cada unidade
de produção e destas competirem entre si, inviabiliza processos de crescimento equilibrado entre e
inter departamentos4 e setores econômicos. Indicadores de mercado como preços, custos e juros,
que sob certas condições estimulam a expansão mais ou menos rápida da acumulação, não podem
revelar barreiras como os limites de demanda ou de insumos básicos no mercado. Dessa forma,
normalmente a uma fase de expansão sucede uma fase de desaceleração da expansão, que pode ser
um decréscimo de ritmo da expansão, uma recessão, ou ainda uma depressão, condicionada pelo
grau da intensidade da fase expansiva precedente, pelos desequilíbrios estruturais, pela mobilidade
do Estado enquanto agente produtivo, pelas formas assumidas pela luta de classes, entre outras
variantes.
Na esfera da circulação do capital, a crise aparece de modo privilegiado como paralisia do
movimento de compras e vendas entre os departamentos5 econômicos. Os departamentos
econômicos, que idealmente precisam produzir conforme as necessidades um do outro, de fato
determinam sua produção de acordo com o impulso de valorização dos seus próprios capitais; visam
seus lucros, sem considerar ex ante que os mesmos têm que se realizar por meio da venda do seu
produto aos outros departamentos econômicos (Singer, 1989, p. 17-20).
Na fase de expansão, o sistema dispõe de reservas da fase precedente de desaceleração como
excedente de mão-de-obra, capacidade produtiva ociosa, matéria-prima estocada, terra improdutiva,
às quais se agrega a ‘poupança’ pública e privada como pedra de toque da retomada da expansão. A
nova expansão pode ter início a partir de setores produtivos que possuem grande repercussão na
estrutura de reprodução material da sociedade. A indústria da construção civil, por exemplo, capaz
de provocar, por meio da sua rápida expansão, uma demanda importante para o Departamento I,
como canos, máquinas, cimento, vidros, azulejos etc; para o Departamento II, como tecidos e
4
O conceito ‘departamento econômico’ é primeiramente formulado por Marx (1973, vol. II, 3 seção). Para
compreender a reprodução ampliada do capital em escala nacional, Marx opera uma separação da economia em
Departamento I, produtor de bens de produção e Departamento II, produtor de bens de consumo. Kalecki (1983, p.
35-55) propôs um novo esquema, desmembrando o segundo departamento econômico (originalmente trabalhado por
Marx) em Departamento II, produtor de bens de consumo corrente e Departamento III, produtor de bens de consumo
duráveis. Adotaremos o esquema desenvolvido por Kalecki.
74
alimentos, decorrentes do maior volume de emprego e, possivelmente, de salários dos trabalhadores
empregados neste setor; e para o Departamento III, como eletrodomésticos, carros etc, consumidos
por capitalistas, gestores intermediários da produção e trabalhadores em geral. Uma onda de
expansão iniciada em alguns setores tende, por um efeito cascata, a estender-se sobre todos os
demais setores e departamentos econômicos.
Quando as reservas precedentes à fase de expansão esgotam-se, quando uma expansão
reiterativa da produção dá lugar à acumulação real, os problemas começam a ser gerados. Os
capitais, procurando os investimentos de retorno maior, mais rápido e mais seguro, tendem a se
concentrar em determinados setores e ramos de atividades, em detrimento de outros. ‘Gargalos’
gerados em setores e ramos de atividades que exigem investimentos de grande monta e de retorno a
longo prazo (como as atividades do Departamento I) podem não mobilizar os capitais necessários
para a sua expansão.
A mobilização dos capitais pode não ser o bastante para conter a interrupção precoce de uma
fase de expansão real, visto que o tempo de ampliação e/ou montagem de novas unidades
produtivas, especialmente em se tratando do Departamento I, é sempre de médio a longo prazo. A
escassez e elevação de preços decorrentes podem transformar seus produtos em mercadorias
proibitivas a diversas empresas, desencadear falências, elevar custos gerais de toda a estrutura
produtiva, provocar ciclos de inflação e retomar as grandes taxas de desemprego.
A mobilização e adequado investimento da poupança social em atividades do Departamento
I, materializada em uma satisfatória ampliação da sua produção, pode acarretar uma carência de
recursos nos Departamentos II e III, formadores da sua demanda. Além disso, a sua própria
acumulação e dos seus agentes financeiros pode ser comprimida pela pressão de custos que exerce
sobre os demais. De uma forma, ou de outra, a crise e os seus sintomas tendem a reaparecer. Em
outras palavras, em uma economia de mercado a cada ‘gargalo’ superado em um dado período
outros se formam.
Na esfera da produção mais ampla (que engloba como etapas a da circulação e a da
produção imediata de mercadorias pelo capital), a crise econômica capitalista se expressa de forma
mais completa e complexa. É nesta esfera que a negação do trabalho vivo pelo morto (capital) se
manifesta na tendência ao crescimento proporcional do valor do capital constante em relação ao
capital variável, levando à queda da taxa média de lucro mesmo com um possível aumento da taxa
de mais-valia.
Para conservar/ampliar a taxa de mais-valia extraída e conservar/baixar custos de produção,
o capitalista recorre ao aumento de capital fixo. O crescimento do capital fixo em relação ao
trabalho - tecnologização da produção - é o principal meio para aumentar a produtividade do
75
trabalho, e o crescimento do capital fixo em relação ao produto - a capitalização da produção - é o
principal meio para reduzir os custos unitários de produção.
O crescimento do capital fixo por produto unitário é o elemento mais importante para se
obter economias de escala. As empresas sob economias de escala viabilizam o crescimento do
volume de matérias-primas processadas por trabalhador. Como resultado, tanto as matérias-primas
como a produção de mercadorias tendem a aumentar por unidade de trabalho. Concomitantemente,
o maior volume de capital fixo por produto unitário implica maior despesa de depreciação do
referido capital e maiores custos de materiais auxiliares (eletricidade, combustível, instalações
prediais etc) por produto unitário.
Conforme indicou Bottomore,
(...) para métodos mais avançados, a maior capitalização (capital adiantado por produto unitário)
implica maiores custos unitários não relativos a trabalho (capital constante unitário C), enquanto a maior
produtividade implica menores custos unitários com o trabalho (capital variável unitário V). No salto, o custo
unitário de produção C+V deve declinar, de modo que o último deve mais do que compensar o primeiro. Sob
condições técnicas determinadas, no momento em que os limites do conhecimento e da tecnologia existentes
forem alcançados, os aumentos subseqüentes no investimento por produto unitário provocaria reduções cada
vez menores nos custos unitários de produção (Bottomore, 1988, p. 372).
A conseqüência principal desta dinâmica é que os métodos mais avançados tendem a
proporcionar menor custo unitário de produção em detrimento da taxa de lucro (que tende a cair).
Ainda que os salários e a intensidade e duração da jornada de trabalho se conservem, o aumento da
composição orgânica do capital (capital constante suplantando crescentemente o capital variável na
composição do capital) tende a elevar-se mais rapidamente do que a taxa de mais-valia,
determinando a queda da taxa geral de lucro.
Em que pese todo este quadro, a concorrência capitalista empurra os capitalistas a adotarem
a capitalização (ou tecnologização) da produção. Aqueles que primeiramente adotam os ‘novos’
métodos de capital mais intensivo, ao reduzir custos podem reduzir também seus preços
abocanhando parte do mercado junto aos seus concorrentes. Podem também manter por um
determinado período uma acumulação relativamente elevada para os padrões gerais da ‘nova’
realidade da acumulação. Aqueles capitalistas que lhes seguem na aplicação do referidos métodos
não dispõem desta acumulação relativamente elevada, visto que recoloca-se uma nova guerra de
preços, reduzindo a acumulação. Aqueles capitalistas que não conseguem aplicar os novos métodos
vão à falência ou restringem-se a um papel econômico periférico e quase tão-somente reiterativo.
Para o capitalista individual que primeiramente adota estes métodos de capital intensivo, o
76
menor custo unitário obtido permite reduzir preços e expandir-se a expensas de seus concorrentes,
compensando sua menor taxa de lucro (por unidade produzida), por meio de uma fatia maior do
mercado. Aqueles que adotam os referidos métodos tardiamente e/ou estão sujeitos a pressões
financeiras, estão sujeitos, ao mesmo tampouco, a uma taxa de lucro ainda menor e a uma
acumulação igualmente menor no conjunto do ciclo econômico.
No sistema como um todo, o resultado é a queda da taxa média de lucro. Este resultado
determina um desestímulo crescente à acumulação, ou seja, da realização de novos investimentos,
tendo em vista a manutenção/ampliação da massa de lucros.
A estagnação da massa total de lucro, enquanto uma ‘onda longa’ no sistema, tende a
conduzir, em um certo momento, a uma crise geral do sistema. Conforma-se, portanto, a tendência
secular de queda da taxa média de lucro (processo ao longo do qual ‘ondas longas’ de crise e de
acumulação necessariamente ocorrem).
A tendência de queda da taxa média de lucro convive com contratendências neutralizadoras
(Coggiola (Coord.), 1996, p. 194-195; Bottomore, 1988, p. 371-373; Sweezy, 1976, p. 125-128). A
contenção salarial; a intensificação do processo de exploração da força de trabalho; a eliminação de
conquistas trabalhistas; a recriação de formas de exploração e dominação extra-econômica
(escravidão, servidão, etc); a geração de capital constante mais barato por meio de uma determinada
tecnologia disponível; a migração de empresas para espaços sócio-econômicos e territoriais com
força de trabalho e recursos naturais mais baratos; o desenvolvimento de novos métodos de gestão
da produção que alcançam maior racionalização da produção e intensidade do trabalho; a
terceirização de fases da atividade produtiva barateando custos de serviços e produtos; a importação
de bens de consumo para assalariados e meios de produção mais baratos; o desenvolvimento de
indústrias complementares nas quais a composição orgânica de capital fosse relativamente baixa,
entre outros processos, podem contribuir para a elevação da taxa de lucro, aumentando a taxa de
exploração e/ou baixando a composição orgânica do capital. Tais processos são tão importantes
para o capitalista individual como para o sistema como um todo.
Os referidos processos (entre outros) podem compor um processo mais amplo, qual seja, a
reestruturação produtiva. Enquanto tal será, necessariamente, um mecanismo voltado para
assegurar, de um lado, o avanço das forças produtivas, e, de outro, a ressubordinação do trabalho ao
capital com novos métodos organizativos/administrativos que esvaziem o potencial de resistência
dos trabalhadores.
A reconstituição e/ou ampliação do exército industrial de reserva nos quadros da crise possui
uma importância particular enquanto uma contratendência à tendência de queda da taxa média de
lucro. A perda de estímulo para novos investimentos e a destruição de forças produtivas (falências,
77
concordatas, desvalorização e/ou destruição dos excedentes etc) provocados pela crise,
proporcionam um ambiente extremamente favorável para a diminuição dos salários e para a queda
das condições de trabalho graças à super-oferta da força de trabalho. Tal processo diminui o custo
do trabalho no âmbito dos custos da produção e é um importante fator de ampliação das taxas de
extração de mais-valia.
Destacamos também enquanto contratendência à tendência de queda da taxa média de lucro
o papel que o Estado passa a cumprir a partir da crise de 1929. A conversão do fundo público em
fundo de financiamento da acumulação, a possibilidade de mobilizar capitais especulativos e
canalizá-los para a produção, por meio da emissão de títulos, a transformação do Estado em agente
produtivo que pode determinar sob certas conjunturas o perfil da conjuntura ou período econômico
e/ou abrir mão dos seus ganhos em benefício da iniciativa privada, o desenvolvimento de pesquisas
tecnológicas
e
científicas
para
o
capital,
a
condição
de
grande
comprador
e
impulsionador/contratador de obras públicas, entre outras condições e atribuições, edifica o Estado
como uma instituição anti-crise e de contratendência à queda da taxa média de lucro.
É necessário reconhecermos, ainda, que a crise, enquanto realidade do sistema capitalista e
independentemente de ser mais ou menos destrutiva, será parte constitutiva do processo de
concentração e centralização de capitais (Coggiola (Coord.), 1996, p. 303-315). O referido processo,
em termos econômicos globais de cada país (não de cada empresa enquanto unidade produtiva),
apresenta uma fase em que predomina a concentração e outra em que predomina a centralização de
capitais. Na fase da concentração de capitais - precedida por uma fase de centralização de capitais e
desencadeada por uma nova etapa de competição oligopolista e monopolista e/ou pela atuação de
governos por meio da manipulação de políticas econômicas - as reservas de capitais acumulados por
parte das empresas e presentes na órbita financeira são aplicados na ampliação quantitativa e/ou
qualitativa das empresas, verticalizando e/ou horizontalizando os espaços de atuação dos seus
capitais. Nesta fase, o crescimento das despesas ocorre passo a passo com o aumento das receitas.
A rigidez relativa entre a estrutura de custos e o nível das receitas determina uma
instabilidade para as empresas que necessitam contar com provisão financeira - com exceção dos
oligopólios e uma parte dos monopólios, a maioria das empresas necessitam da referida provisão,
obtida junto ao sistema financeiro. As empresas não monopolistas ou monopolistas sem suporte de
autofinanciamento somente dispõem de duas alternativas: ingressar na fase da concentração de
capitais (sob pena de reduzir suas receitas em relação às demais empresas) ou amargar uma gradual
marginalização no mercado.
Desencadeado o processo, conforma-se a tendência à homogeneização das taxas de retorno
impostas pelos oligopólios e monopólios, com grandes conseqüências econômicas. As empresas
78
que não efetuam despesas, embora com taxas de retorno superiores a taxas de retorno média
imposta pelos oligopólios e monopólios possuem receitas infinitamente inferiores. Aquelas
empresas monopolistas ou não que recorreram intensamente aos empréstimos junto ao sistema
financeiro também apresentam uma receita inferior aos oligopólios e monopólios que se autofinanciaram. No curso do processo da concentração de capital - no qual ocorre a reprodução
ampliada do capital, ou seja, expansão que ultrapassa a pura e simples reiteração econômica - o
impacto desencadeado pela nova taxa de retorno e os custos financeiros de muitas empresas será a
falência e conseqüente incorporação daquelas despreparadas para a competição nos termos ditados
pelas maiores e mais capitalizadas. Em conseqüência, diminui o número de empresas e intensifica o
controle dos oligopólios e monopólios sobre o mercado.
Consumado o processo tem início novamente a fase de centralização de capitais, ou seja, de
capital líquido na forma de lucros das empresas diretamente produtivas que ampliam suas receitas oligopólios e monopólios - ou empresas financeiras que partilham dos lucros das empresas que
recorrem a financiamentos - bancos, bolsas de valores etc. A nova massa de capitais não
diretamente aplicado, ou reserva de poupança, começa a ser recomposto preparando as condições
para uma nova fase de concentração de capitais.
A crise, independentemente da sua extensão e natureza, cumpre sempre um importante
papel na reprodução ampliada do capital, qual seja, o de destruir para construir em novas bases. A
crise (incompatibilidade entre produção e consumo; interrupção do fluxo de compras e vendas ou de
pagamentos; desproporcionalidade e desequilíbrio entre os departamentos econômicos em que se
divide o capital social; queda da taxa média de lucro; sobre-acumulação; desvalorização do capital
existente e contradições inerentes à dinâmica de concentração e centralização de capitais) será,
portanto, fruto da contradição constitutiva do capital.
As crises não levam a um colapso econômico final capaz de destruir completamente e de
uma só vez o sistema. Para Marx, o fim das crises somente pode advir do trabalhador, que tomando
consciência de si mesmo e das relações sociais que o envolve, edifica-se como o sujeito real e
verdadeiro da produção (dominando o sujeito abstrato, representado pelo capital). O capitalismo,
cuja essência é a (relação de) contradição inscrita na sua própria origem, desaparece com a
eliminação da referida contradição; o que equivale reconhecer que a crise no capitalismo somente
seria superada por meio da superação do próprio sistema.
A concepção de crise em Marx, conforme identificamos, não pode ser separada da dinâmica
do capital e, nem tampouco, a superação definitiva da crise no capitalismo fora da superação do
próprio capitalismo. Neste ponto reside a unidade dialética da concepção marxista acerca do capital
e da crise. As teorias que se encontram fora desta concepção (incluindo aquelas que se reivindicam
79
da teoria econômica de Marx), de forma explícita ou não, conformam-se enquanto teorias (ou
metodologias) para o capital.
Em nossa perspectiva, cada processo de crise no capitalismo compõe uma teia específica de
articulação destes elementos “estruturais” identificados por Marx. A crise, portanto, deve ser
compreendida enquanto crise das relações capitalistas de produção e que, como tal, pode encontrar,
como obstáculos conjunturais à sua reprodução, realidades econômicos-sociais e/ou institucionais.
Os obstáculos à reprodução capitalista poderão inviabilizar ou imprimir um curso particular
ao desenvolvimento capitalista. A forma e o sentido da superação destes obstáculos serão,
necessariamente, uma conseqüência da interferência das classes, movimentos, grupos sociais e
partidos políticos, em uma dada conjuntura nacional e internacional e sob uma determinada
correlação de forças, em nível das superestruturas da sociedade.
Postas estas considerações gerais, é necessário que superemos alguns equívocos quanto ao
entendimento do conceito crise no sistema capitalista. Primeiramente, é necessário que se
compreenda que a crise não é algo anormal ao sistema capitalista. Ela compõe a essência do
referido sistema e é necessária à sua própria reprodução.
Em segundo lugar, é necessário que se compreenda que cada crise possui a sua
especificidade. Uma crise poderá ser induzida ou não pelo poder público, como também ser mais ou
menos duradoura.
Em terceiro lugar, devemos discriminar as crises em função do grau e profundidade da sua
repercussão. Neste sentido, as crises podem ser de repercussões mais imediatas e de curto prazo,
que decorrem de flutuação dos indicadores econômicos e da reacomodação produtiva das atividades
econômicas; de repercussão mais ampla, que podem findar/criar novos ciclos expansivos no âmbito
de um padrão de acumulação e financiamento; e, finalmente, de repercussão muito ampla, que
caracterizam o esgotamento de um padrão de acumulação e financiamento capitalista.
Em quarto lugar, devemos reconhecer que a crise no capitalismo não possui causalidades
puramente econômicas e que estas podem não se encontrar entre os fatores mais importantes na
deflagração de uma crise econômica. O que implica orientarmo-nos por uma perspectiva de
totalidade, ou seja, localizar fatores sociais, políticos, econômicos e ideológico-culturais que
concorram para uma crise, bem como hierarquizá-los segundo a sua importância na conjuntura.
Em quinto lugar, a crise provoca, inexoravelmente, uma estagnação ou acumulação restrita
de capital em termos econômicos globais. Comumente ocorre, paralelamente a este processo, a
transferência de mais-valia e rendas para os grupos monopolísticos e oligopolísticos assegurandolhes elevadíssima acumulação.
Em sexto lugar, uma crise econômica pode estar criando condições sociais, políticas,
80
econômicas e ideológico-culturais para uma nova fase de acumulação do capital. Neste sentido, a
destruição desencadeada pela crise pode ser um pressuposto para uma nova construção de espaço
econômico do capital (ou expansão das relações capitalistas de produção).
Capitalismo e Experiências ‘Pós-Revolucionárias’
As contradições emergidas do capitalismo e indicadas por Marx dão conta de evoluir para
processos revolucionários no século XIX e, principalmente, no século XX. Alguns destes
processos são derrotados, a exemplo da Comuna de Paris de 1871, outros nos legam as
experiências ‘pós-revolucionárias’, a exemplo do leste da Europa e da China.
As experiências ‘pós-revolucionárias’ denominadas ‘socialismo real’ não logram realizar
a utopia socialista. O burocratismo, as relações autoritárias de poder, a corrida armamentista, o
desequilíbrio do desenvolvimento do processo produtivo, o atraso técnico-científico comparado
aos centros dominantes do capitalismo, são demonstrações inequívocas da deturpação e
desvirtuamento das sociedades ‘pós-revolucionárias’.
É trivial - senão conservador – fixar-nos apenas nas condições objetivas para explicar os
‘desvios’ e ‘insuficiências’ dos processos de construção do socialismo nas sociedades ‘pósrevolucionárias’. É necessário salientarmos a distância estabelecida entre essas experiências
históricas e a utopia socialista, especialmente a violentação da práxis da transformação social
pela ação das vanguardas políticas. Em outras palavras, é menos importante compreender a
superioridade tecno-científica dos centros imperialistas quando comparado com a identificação
dos obstáculos que as estruturas de poder construídas nas experiências ‘pós-revolucionárias’
acarretam no sentido da incompetência, acomodamento, desilusão e desperdícios, tendo em vista
a compreensão da crise das referidas experiências.
A transição do capitalismo para o socialismo somente poderá assegurar a superação da
propriedade e do controle privado dos meios de produção se tal processo encontrar-se integrado
coerentemente com o caráter social da produção e basear-se em uma hegemonia do mundo do
trabalho. A contradição dialética entre a intervenção direta do mundo do trabalho (expresso no
conceito ‘controle social da produção’) e os centros de poder externo ao mundo do trabalho
(expresso na nova estrutura de poder construída) deve ser superado pela gestão direta da
produção já nos primeiros ‘momentos’ da transição para o socialismo. Dessa forma, poderá ser
possível libertar e harmonizar o desenvolvimento das forças produtivas com as necessidades da
sociedade humana. Nada disso ocorre nas sociedades ‘pós-revolucionárias’ do século XX.
A práxis política de transformação social deve superar qualquer prática política sectária e
81
golpista, de forma a orientar-se pela ética e pela autonomia do movimento. O sentido estratégico
da práxis pode significar a realização da utopia socialista ou a sua negacão, a transição para o
socialismo ou a crise de definição e de perspectivas em sociedades ‘pós-revolucionárias’.
Os equívocos das concepções predominantes nas experiências ‘pós-revolucionárias’ não
permitem que a tese de Marx, segundo a qual a propriedade dos produtores sobre os meios de
produção libertaria o desenvolvimento das forças produtivas, fosse confirmada ou refutada pela
ação concreta dos atores sociais do mundo do trabalho.
Capitalismo e Conflito Social
O papel transformador do mundo do trabalho e a transição para o socialismo sofrem uma
crise para algumas análises marxistas sobre sociedades capitalistas de intermediário e de elevado
grau de desenvolvimento das forças produtivas. Para situarmos o debate necessitamos identificar
alguns aspectos da sociedade capitalista do final do século XIX e do século XX.
Marx previa um conteúdo revolucionário e permanente do capitalismo no plano do
desenvolvimento das suas forças produtivas. Para Marx, o capitalismo removeria a camisa-deforça sob a qual as forças produtivas encontrariam-se submetidas nas sociedades pré-capitalistas
e as conduziria de tal forma que as contradições, no que concerne às relações capitalistas de
produção, estabeleceriam um período revolucionário de transição para o socialismo. A tendência
de proletarização crescente de amplas camadas da sociedade e a internacionalização do espaço e
política revolucionárias haveriam de se constituir em uma conseqüência dialética do processo.
Essas previsões de Marx não se confirmam plenamente. No seu processo de
desenvolvimento o capitalismo mundializa-se definitivamente, estende os seus tentáculos sobre
todas as esferas da vida social e alcança o estágio de capitalismo monopolista de Estado. Mas
nesse processo (e como reação a estratégia socialista) produz-se um conjunto de iniciativas e
instrumentos no sentido de garrotear a contradição fundamental capital versus trabalho, de forma
a buscar a subordinação do desenvolvimento das forças produtivas às relações capitalistas de
produção.
No plano técnico e científico o desenvolvimento das forças produtivas encontra-se
deprimido porque está vinculado necessariamente ao desperdício e ao luxo elevado e irrestrito.
Grandes somas de excedentes são transferidas para financiar e manter a indústria da guerra;
indústrias locomotivas do sistema, como a de automotores, produtoras de veículos de luxo e de
decrescente duração, secundarizam a produção de meios de trabalho produtivo e de transporte de
massa; informática e eletrônica, sob os limites das relações capitalistas de produção, canalizam-
82
se muito mais para a área de distribuição, serviços e pesquisas, que para os processos de
produção propriamente ditos, e assim por diante.
A sociedade norte-americana, locomotiva do capitalismo e paraíso do ‘modus vivendi’
burguês ocidental é paradigmática. O elevado grau de desenvolvimento das suas forças
produtivas expressam esse conteúdo repressivo e destrutivo, por meio do luxo e desperdício
nacionais, financiados graças a um sucateamento do sistema produtivo e pauperização social da
periferia do mundo capitalista (América latina, África etc) e pela ‘guetificação’ social de
parcelas da população da própria sociedade norte-americana. O ‘irracionalismo econômico’
atinge o seu clímax e dramaticidade no próprio déficit público anual dos Estados Unidos, no
momento superior a um terço da dívida externa fixa do chamado ‘terceiro mundo’.
No plano político o desenvolvimento das forças produtivas encontra-se deprimido,
primeiramente, pela institucionalização das lutas sociais. As reformas eleitorais e trabalhistas
conduzidas na Alemanha no final do século XIX por Otto von Bismarck e posteriormente
exportadas para outros países são capazes, respectivamente, de integrar/subordinar a ação
política da esquerda ao campo institucional e de lançar as bases das progressivas reformas
sociais e de seguridade social que redundaria mais tarde no Estado do bem-estar social. A
carência de uma política econômica coerente com estas reformas e a necessidade de controlar a
instabilidade depressiva e as crises terminam por proporcionar a teoria keynesiana de regulação
econômica.
A revolução produtivista proporcionada pelos métodos fordista e taylorista de gestão
produtiva integra estas mudanças institucionais. A divisão técnica do trabalho realizado por estes
métodos assegura a ampliação da produção sem que para tanto tenha que assegurar um
trabalhador com ampla consistência intelectual e motivado pelo trabalho coletivo.
Combinadamente, o fordismo, o taylorismo e, a partir das últimas décadas, o toyotismo,
advogam nos países de capitalismo central a produção em massa e consumo em massa, nela
incluído os trabalhadores.
Amplia-se progressivamente a partir do final do século XIX as reservas sociais e políticas
da hegemonia burguesa. O capitalismo encontra um meio de integrar, sob determinados limites,
as expectativas individuais de consumo e conforto das pessoas em geral e dos trabalhadores em
particular com a necessidade de reprodução material dele mesmo. Este processo, consolidado nas
décadas de 50 e de 60 na forma dos chamados anos dourados do capitalismo, provavelmente
teria ocorrido antes não fosse as duas grandes guerras mundiais.
No plano da formação da consciência o desenvolvimento das forças produtivas encontrase reprimido devido a manipulação científica das necessidades, dos desejos, das satisfações, dos
83
prazeres. Esta manipulação representa um reforço complementar à unificação e integração da
sociedade. Surgida da combinação entre a mídia eletrônica e a psicologia comportamental manipuladas cientificamente - ela opera em nível da publicidade, da indústria da diversão, etc, de
forma a gerar o nó górdio entre a superestrutura político-ideológica e a base do processo
produtivo. Esse padrão ‘americanista’ da sociedade de trocas, emergido da concepção liberal do
trabalho e da reificação do mercado, tem funcionado como um importante pára-choque das
contradições e conflitos sociais.
A razão crítica transformadora, que se apresenta como algo irresistível para os marxistas
do final século XIX e início do século XX, dá lugar a uma razão crítica instrumental, fruto da
coisificação humana na sociedade de trocas. A perspectiva do desenvolvimento da consciência
‘em si’ para a consciência ‘para si’ - transformadora e internacionalista - não se realiza na
sociedade da Revolução de Outubro. Na Europa Ocidental, após as tentativas revolucionárias das
primeiras décadas, podemos mesmo concluir ter ocorrido um refluxo da consciência ‘em si’ para
a consciência ‘corporativa’.
O capitalismo monopolista de Estado - proveniente da fusão das instituições e órgãos
públicos com os núcleos dirigentes dos monopólios e oligopólios - consegue reprimir o
desenvolvimento da contradição estabelecida entre as forças produtivas e as relação de produção
capitalistas por meio da combinação entre a planificação econômica e aparelhos públicos e
privados de hegemonia. A concepção marxista da passagem do capitalismo para o socialismo
passa a conviver, a partir de então, com abalos emergidos da nova configuração do capitalismo.
Ao construir novas reservas políticas e ideológicas a classe dominante não perde de vista
o terreno nacional como a base fundamental para a realização do seu domínio. Os países de
economia central buscam garantir índices de bem estar para parcelas substanciais das suas
populações, visando promover altos níveis de estabilidade política e o tempo e espaço
necessários para fortalecer sua hegemonia ideológica. O capital oligopolista e financeiro
internacional compreende que a coesão interna dos países de capitalismo central é fundamental
para manutenção do domínio do capital em plano mundial.
Nos países de capitalismo periférico a ‘pauperização progressiva’ é real para amplos
setores. Contudo, os aparelhos de hegemonia, a militarização do Estado, os recursos da política
tradicional, a constituição de segmentos sociais médios privilegiados, entre outros elementos,
constituem-se em amortecedores das contradições sociais, isto é, convertem em mecanismos de
contenção do desenvolvimento da luta de classes na perspectiva da transformação social.
O capitalismo não pode conter ad eterno a contradição fundamental estabelecida entre as
forças produtivas e as relações de produção. A subordinação das forças produtivas às relações de
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produção pode estar sendo abalada por meio da globalização da economia, do acirramento da
competitividade, da reestruturação produtiva, da desregulamentação econômica, da demolição
e/ou minimização do Estado do bem-estar social em diversos países, da desregulamentação do
mercado de trabalho, entre outros processos, em curso a partir dos anos 70 na Europa Ocidental e
Japão e anos 80 e 90 do século XX no restante do mundo. As crises econômicas periódicas, o
acirramento da disputa de hegemonia entre os blocos imperialista, a elevação do movimento
operário internacional, a luta pela garantia das conquistas conduzidas pelo ‘socialismo real’ no
leste da Europa, são exemplos de processos que expressam luta de classe e que são capazes de
proporcionar acirramentos da contradição fundamental capital versus trabalho.
Em que pese o contexto histórico favorável para o desenvolvimento do capitalismo no
início do século XXI, não há como não reconhecer que ele sofre derrotas importantes. O
movimento anti-globalização, a internacionalização da luta pelo socialismo, os limites da ação
imperialista no mundo muçulmano etc, evidenciam, por um lado, processos históricos que não
podem simplesmente ser removidos pelo capitalismo e, por outro, as condições básicas e
fundamentais desses conflitos não possuem solução no seu interior.
85
6. UMA ABORDAGEM CRÍTICA DO ESTADO
O Estado, desde a antiguidade, é concebido como uma instituição suprema da sociedade
por parte de amplos setores sociais. Ainda hoje é freqüente a crença de que o Estado encontra-se
acima dos grupos sociais e a serviço da sociedade como um todo. Uma abordagem crítica do
Estado nos obriga partir da concepção contratualista, identificar o pensamento de Hegel e, por
fim, analisar os principais nomes da tradição marxista.
A Concepção Contratualista de Estado
Uma abordagem crítica do Estado possui como fundamento primeiro o processo de
debate sobre a relação estabelecida entre Estado e sociedade inaugurado com a modernidade.
Isso porque a dinâmica produtivista do capital e a liberalização do indivíduo das amarras feudais
dão bases para a formação da concepção contratualista moderna.
Hobbes, por meio do método dedutivo, constrói uma leitura da relação estabelecida entre
Estado e sociedade calcado no contrato social estabelecido entre os indivíduos. Graças a
transferência da liberdade e de direitos dos indivíduos em favor do Estado e da constituição do
mesmo como um poder exterior e acima da sociedade e dos indivíduos particulares, seriam
dirimidos os conflitos e promovida a cooperação.
Locke, desenvolvendo um diálogo teórico e filosófico com Hobbes, problematiza a
relação estabelecida entre Estado e sociedade. Se o Estado é fruto da transferência de liberdade e
de direitos - em decorrência da escassez e dos conflitos em curso entre os homens, porque estes
são egoístas e ambiciosos em sua natureza - e o Estado seria formado por homens, quem então
controlaria o Estado? Locke propugna o controle dos cidadãos sobre o Estado por meio do
parlamento.
Montesquieau e Rousseau também se inserem no debate contratualista moderno.
Propõem, respectivamente, a divisão e equilíbrio entre os poderes e o princípio da vontade geral
(soberania popular), tendo em vista salvaguardar os cidadãos frente ao Estado.
A Influência de Hegel
Hegel, analisando o Estado moderno, concreto, na sua organização interna e nas suas
relações com a sociedade, o concebia como uma manifestação da Razão Absoluta ou Eterna.
86
Desta forma, se contrapunha à tradição iluminista fundada na “gênese lógica” do poder político contratualistas - e à tradição de modelos ideais de Estado - a exemplo de Kant (Saes, 1994, p.
56).
Hegel restabelece a distinção entre Estado e sociedade civil formulada pelos pensadores
iluministas. Sociedade civil em Hegel decompõe-se em classes, enquanto homens distribuídos
em ramos da atividade econômica - agricultura, indústria, comércio, atividades burocráticas. A
classe industrial envolveria, por exemplo, proprietários e não proprietários ao mesmo tempo.
Hegel não identifica interesses comuns, coletivos conformados a partir da posição que os
homens ocupam em relação à propriedade dos meios de produção.
A sociedade civil seria o domínio das carências individuais e fins particulares, ou seja,
uma conjunção de necessidade natural e vontade arbitrária (Saes, 1994, p. 57 e 58). Para Hegel,
entretanto, a sociedade civil não existiria se não existisse o Estado que a construísse, que a
conformasse e que a integrasse. É o Estado que fundaria o povo; é o Estado que fundaria a
sociedade civil.
O Estado incorporaria a sociedade civil; essa teria sentido, se realizaria e se aniquilaria no
Estado, expressão objetiva da Razão Eterna. É possível duas conclusões quanto a este ponto:
primeiramente, os dois momentos - Estado e sociedade civil - são distintos apenas enquanto
conceitos, visto que eles são unidos e inseparáveis na Razão. Em segundo lugar, é possível
identificar uma concepção organicista e ampliada de Estado, visto que o mesmo abarcaria toda e
qualquer forma de organização humana, ou seja, expressão das carências individuais e fins
particulares.
O Estado em Hegel é ético. O Estado concretizaria uma concepção moral e
organizaria/dirigiria os homens em direção à plena realização da Razão Eterna - a conquista da
felicidade e da liberdade ao término do seu processo de auto-conhecimento.
É possível identificar contraposições entre Hegel e os pensadores iluministas. Rousseau,
apegado a relação indivíduo e poder político nos termos do contrato social, realçaria o princípio
da “vontade geral” ou “soberania popular”, de maneira que o Estado dissolveria na sociedade e a
sociedade civil triunfaria sobre o Estado. Para liberais ingleses, a exemplo Locke, o legislativo
(parlamento) deveria estar acima do executivo (monarca), sendo este subordinado àquele poder.
Para Adam Smith, o Estado liberal não seria ético, não educaria, deveria tão somente assegurar
as liberdades e garantias individuais, o livre jogo das forças do mercado e a soberania da nação
frente as demais.
Para Hegel, o Estado fundaria o povo, portanto, a soberania seria do Estado; soberania
que criaria e expressaria ética, concretizadora da moral; o Estado, personificado no monarca,
87
teria nesse a representação da soberania do Estado, cabendo a ele mesmo (monarca) a outorga da
constituição que fixaria os direitos e funções em geral e dele mesmo, em particular.
Os vínculos de Hegel com o absolutismo prussiano não o situa completamente fora do
iluminismo. Podemos concebê-lo com um momento de transição entre a sociedade ocidental liberal e capitalista - e a sociedade oriental - absolutista e não capitalista -, como de fato a Prússia
o é, tanto em termos geográficos quanto históricos.
A superestimação do Estado em detrimento da sociedade civil é acompanhado,
contraditoriamente, pela defesa de reformas moderadas do Estado prussiano. A mais importante
certamente é a defesa da abertura do aparelho do Estado (burocracia civil, militar e judiciária)
para todos os homens. Hegel recusa o recrutamento dos membros do aparelho de Estado a partir
do nascimento e da personalidade natural. O preenchimento das funções do Estado poderia ser
exercido por qualquer indivíduo pertencente à classe universal dos cidadãos, por meio da
competência e exame público. Assim, Hegel “dissocia” o aparelho de Estado da classe
dominante, permitindo o Estado ser representado dentro de uma autonomia completa ou relativa.
Hegel propõe, ainda, a monarquia constitucional. Busca compatibilizar (ou sintetizar) a forma do
Estado absolutista com a emergência do Estado burguês. A rigor, compatibilizar a conservação
do status quo da aristocracia com a ascensão burguesa (Saes, 1994, p. 56 e 57; Gruppi, 1985, p.
24 e 25).
Para Saes, Hegel
(...) nega em termos práticos a existência de grupos sociais, de interesses de grupo social e de conflitos
entre os grupos sociais em função de tais interesses: e preconiza a ascendência do interesse geral (pura
forma sem conteúdo) sobre os interesses particulares (Saes, 1994, p. 59).
A resposta que Hegel dá para a relação entre o indivíduo e o poder político é
conservadora. Para Hegel a sociedade civil estaria absorvida na sociedade política e a ela seria
subordinada.
O Estado em Marx e Engels
Marx e Engels fazem a crítica do contratualismo, em grande medida influenciados pelas
contradições sociais geradas pelo capitalismo e pela emersão social e política do proletariado
moderno. Para Marx e Engels o Estado possui uma origem calcada na desigualdade e no conflito
de classe; constitui-se como uma instituição acima de todas as outras, com a função de assegurar
88
e conservar a dominação e a exploração de classe; e assumir uma certa margem de
independência em relação às classes, especialmente em conjunturas de intenso conflito social.
A tradição teórica marxista a partir de então preserva estas idéias acerca do Estado. Elas
revelam as continuidades que Lênin, Gramsci e outros assumem em relação às idéias que Marx e
Engels desenvolvem sobre o Estado
O Estado no “Jovem Marx”
Marx preserva os conceito de “sociedade civil” enquanto o conjunto das relações
econômicas e interesses privados e de “sociedade política” correspondendo ao Estado. Marx, por
um lado, concebia uma profunda conexão entre os dois conceitos, por outro, atribuía à sociedade
civil o momento decisivo da relação. Afirma Marx,
Minha pesquisa chegou à conclusão que as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem
ser compreendidas por si só, nem pela assim chamada evolução geral do espírito humano, mas têm suas
raízes nas relações materiais da existência - cujo conjunto Hegel inclui no termo de sociedade civil,
seguindo o exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII - e que a anatomia da sociedade civil deve ser
procurada na economia política. (Marx, 1978, p. 129).
Para Marx, seria por meio da sociedade civil - o conjunto das relações econômicas e
interesses privados -, fundadora do Estado, que se poderia compreender o surgimento do Estado,
o seu caráter de classe, a natureza de suas leis, as representações sobre as quais ele se apoiaria, e
assim por diante. E mais, o Estado, “criatura” da sociedade civil, constituiria-se num instrumento
voltado para a garantia das próprias bases sobre as quais se apoiaria a sociedade civil. O Estado
burguês, por exemplo, protegeria as relações capitalistas de produção, de forma a assegurar a
reprodução ampliada do capital, a acumulação privada do produto social, a redistribuição do
fundo público a benefício do grande capital, a exploração da renda fundiária, etc. Portanto, o
Estado seria, ao mesmo tempo, parte integrante das relações capitalistas de produção e
instrumento de defesa das mesmas.
O “jovem Marx” contestava a dominação do Estado (burocracia) sobre a sociedade civil e
defendia a supressão do Estado moderno. Para o Marx de 1843-44, a extinção do Estado
(burocracia e mecanismos de representação política) seria a pré-condição da verdadeira
democracia, de maneira que cada homem poderia ser burocrata e representante de si mesmo.
Em que pese esta perspectiva, que coloca Marx e Hegel em campos distintos quanto às
89
opções políticas e compromissos sociais, Marx não rompe completamente com Hegel no tocante
a sua concepção de Estado. Marx admitia que sociedade civil e sociedade política seriam duas
esferas sociais separadas.
Marx, embora não rompa com Hegel no tocante a concepção de Estado, o supera no
âmbito da referida concepção. Apoiando-se na crítica feuerbachiana da alienação, avança mais
do que Hegel e o submete à crítica, quando reconhece na referida separação a origem da
alienação política. A criação do Estado e a disposição da burocracia contra a sociedade civil seria
a gênese da dilaceração da essência humana. A expressão acabada desta relação seria a criação
da relação entre governantes (burocracia) e governados (sociedade civil expresso nos burgueses,
proletários, etc.). A burocracia perseguiria a sociedade civil. Portanto, suprimir a burocracia seria
suprimir o próprio Estado.
O conceito de sociedade civil também conserva-se no universo filosófico e teórico de
Hegel. “O jovem Marx”, tal qual Rousseau e Hegel, não rompe com o formalismo. “Interesse
geral” versus “interesse particular” ainda é uma forma sem conteúdo, conforme demonstra a
afirmação de Marx de que a sociedade civil seria o campo do “interesse concreto do povo” em
contraposição ao “interesse particular” da burocracia. Marx ainda não concebia a sociedade civil
enquanto realidade conformada por classes sociais sob relações conflitantes, calcados nos
interesses de classes.
Saes chama a atenção para o fato de que Marx, em A Questão Judaica, qualifica a
propriedade privada, a cultura e a ocupação como premissas ou pressupostos do Estado político
moderno. Mas indaga: Há uma relação entre base (econômica) e superestrutura conforme é
demonstrada no “prefácio”? Há uma relação entre Estado e propriedade, sendo o primeiro
guardião da segunda? Para Saes, as premissas, tanto os elementos materiais (propriedade,
ocupação) quanto os espirituais (religião, cultura) estariam apresentados lado a lado, separados e
sem estabelecer qualquer hierarquia de relação. As diferenças e particularismos, persistindo no
Estado moderno, levariam os homens em direção a uma solução ilusória, de forma a acreditar em
uma comunidade aparentemente universal - o Estado, guardião do interesse geral da sociedade.
Então, para Marx,
(...) a relação que se estabelece entre o Estado político e as suas premissas não é a relação entre os atos de
governo (política implementada pela burocracia) e os interesses dos proprietários dos meios de produção; é,
antes, a realimentação contínua da comunidade imaginária (Estado) pela subsistência de diferenças
materiais e espirituais entre os homens (Saes, 1994, p. 65).
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Estado e sociedade civil não formam no “jovem Marx” uma unidade de contrários, mas
um círculo vicioso no qual a sociedade civil, alienada, permitiria o robustecimento do Estado, ao
mesmo tempo causa e efeito da alienação. No texto A Introdução à Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel, a introdução da figura histórica do proletariado, em que pese o
amadurecimento da análise, ainda não permite superar o círculo vicioso. Em primeiro lugar, o
proletário é o homem destituído de propriedade, não uma classe social inserida numa
determinada relação de produção, a exemplo do operário fabril. Em segundo lugar, Marx afirma
que, eliminada a propriedade privada, se estaria suprimindo o Estado, mas, como Marx não
estabelece a relação que o Estado mantém com a sociedade, ou seja, seu guardião, de forma a
reconhecer nela apenas uma das várias premissas do Estado moderno, não haveria porque
acreditar que o mesmo desapareceria em se conservando as demais premissas. Em terceiro lugar,
ainda que se considere a supressão do Estado como um objetivo instrumental, tendo em vista
abrir caminho para que o proletariado suprimisse a propriedade privada, haveria um problema :
tal idéia pressuporia o Estado como guardião da propriedade privada, mas essa ainda não havia
sido elaborada por Marx. O que se depreende que ele atribui tal função à sociedade civil, ela
protegeria a propriedade privada. Em quarto lugar, o papel do proletariado não fica claro, visto
que ele próprio seria parte da sociedade civil e encontraria-se alienado, não podendo ser o
dirigente do processo por sua própria força. Poderia apenas impulsionar a ação por meio da
crítica da propriedade e do Estado moderno conduzido pelos filósofos (Saes, 1994, 67).
Marx ainda se encontra submetido em uma contradição intelectual e política. A adesão ao
comunismo, em uma perspectiva proletária, conflitua com a concepção hegeliana de Estado, que
é uma concepção burguesa.
A Concepção de Estado no Marx de 1848-1852
Saes (1994 – 19**) situa o pensamento político do “jovem Marx” como uma variante do
radicalismo pequeno-burguês. Para o autor, o pequeno burguês, enquanto produtor independente,
viveria em um quadro de isolamento econômico. Como resultado, sua ação política tendia a ser
individualizada em relação ao Estado. A relação Estado e classe social tendia a não ser
construída, o que culminaria em uma relação Estado/indivíduo marcado pelo estatismo, seja por
sua confirmação ou por sua negação. Concretamente, a pequena burguesia conservadora tenderia
ao bonapartismo, com o reforço da burocracia e com crença na representação supra classe social
do Estado; a pequena burguesia reformista tenderia ao populismo, a exemplo do republicanismo
radical e democrático; e a pequena burguesia revolucionária tenderia ao anarquismo. O
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pensamento de Marx coincidiria, em suas linhas gerais, com a pequena burguesia revolucionária
(Saes, 1994, p. 71 e 72).
A grande expansão das forças produtivas a partir dos anos 40 e 50 na Europa Ocidental e
EUA, as revoluções operárias e populares de 1848 e 1871 e o descortinamento da máquina do
Estado (1848-1852), proporciona a formação de um movimento social proletário revolucionário.
O pensamento de Marx, de 1843-44 à 1848-52 reflete esta passagem, ou seja, o movimento
comunista estaria em transição - uma ideologia pegueno-burguesa radical dá lugar a uma
ideologia proletária revolucionária. Conforme o conceito de “intelectual orgânico” de Gramsci,
Marx incorpora/reflete, por assim dizer, esta nova realidade sócio-econômica e política,
conservando/superando o “jovem Marx”.
Por meio das obras As lutas de Classes na França de 1948 a 1950 e Dezoito Brumário
de Luís Bonaparte Marx supera a separação polarizada entre Estado (burocracia) e sociedade
civil, bem como a existência da dominação da burocracia sobre a sociedade civil no Estado
moderno. Realça, ainda, o caráter instrumental que a ação política da burocracia de Estado
assume, tendo em vista assegurar os interesses das classes dominantes, quais sejam, a
propriedade privada burguesa e as relações de exploração.
Para Marx, os limites estabelecidos para a atuação da burocracia de Estado - a
preservação da propriedade e das relações de exploração - permitia a esta burocracia uma grande
margem de iniciativa. A burocracia de Estado assumia, por assim dizer, os limites de consciência
possível das classes dominantes, ou seja, superaria os interesses burgueses corporativos e
imediatos na defesa da sociedade burguesa. Ela poderia, inclusive, reprimir politicamente ou
ferir interesses econômicos particularistas da classe burguesa, contraditórios com a preservação
da ordem social e com a acumulação de capital a longo prazo. Tudo seria lícito, desde que
assegurasse a ordem social e a acumulação.
Marx destaca o parasitismo da burocracia de Estado. Burocratismo parasitário acionado
pelo poder executivo cuja função básica seria vigiar e punir a sociedade. Trata-se de um
parasitismo de novo tipo. Enquanto no período de vigência do Estado absolutista o fundo público
é redistribuído na forma de rendas asseguradas pelos títulos, funções e cargos remunerados,
ocupados unicamente pela aristocracia, com a ascensão burguesa a redistribuição passa a se
dirigir, indiretamente, à tecnocracia - o staff superior da burocracia civil e militar -, e,
diretamente, à classe burguesa via financiamentos, superfaturamentos de obras, serviços e
mercadorias realizadas e/ou adquiridos via contratos, etc. O parasitismo passa a servir, ainda,
como instrumento voltado para cooptar as classes populares por meio de serviços sociais
prestados, e para reprimir os movimentos sociais de forma a assegurar a ‘ordem’ e a
92
‘acumulação’.
Marx também aborda o exercício do poder político pelas classes dominantes por meio dos
poderes executivo e legislativo. O exercício indireto do poder político - executivo - e o exercício
direto - legislativo – por parte das classes dominantes cumpriria a função ideológica de ocultar a
dominação. A representação popular na definição do poder executivo o apresentaria como um
poder legítimo e acima dos interesses imediatos de qualquer grupo, sendo que de fato seus
limites de ação estariam definidos e submetidos ao poder legislativo.
Em condições especiais, a exemplo de poderosos movimentos sociais insurgentes, as
classes dominantes poderiam transferir o seu poder político direto para o poder executivo
(burocracia). De fato, é o que ocorre no golpe do 18 Brumário.
Teoricamente, o Marx de 1848-1852, também neste ponto, incorpora/supera o “jovem
Marx”. Enquanto que para o “jovem Marx” o parlamento encontraria-se emasculado de poder
decisório, dominado pela burocracia (manietado pelo executivo) e reduzido à função ideológica
de ocultar o exercício do poder, para o Marx de 1948-52 o parlamento seria o poder que as
classes dominantes dominariam diretamente e que também poderiam, eventualmente, governar
diretamente por meio dele (Saes, 1994, p. 71).
Dezoito Brumário de Luíz Bonaparte
A obra Dezoito Brumário de Luíz Bonaparte possui grande importância para o
pensamento de Marx como um todo e para a consolidação da sua concepção de Estado em
particular. O Dezoito Brumário de Luíz Bonaparte, de um lado, revela a crise do novo Estado
em consolidação, que substituíra o Estado absolutista. De outro, ocorre em uma conjuntura de
intervenção clara e direta das classes subalternas, ou seja, pela primeira vez na história essas
classes colocam em questão o poder e de forma laica.
A história, portanto, desvela o caráter do novo Estado (burguês) em consolidação (e em
crise), bem como instrumentaliza em termos práticos e teóricos a classe proletária (ou pelo
menos seus setores mais politizados e esclarecidos) em relação à disputa do poder. De certa
forma Marx, na obra Dezoito Brumário de Luíz Bonaparte é, por assim dizer, um instrumento
deste duplo processo, ou seja, um intelectual orgânico que pôde conduzir uma leitura desta
conjuntura, descortinando-a em uma determinada perspectiva de classe.
O novo Estado é burguês. O Estado absolutista é derrubado por meio da Revolução
Francesa de 1789 graças a atuação de setores republicanos, populares e jacobinos. A derrota dos
93
jacobinos ao término da fase da Convenção (1793-94) da Revolução Francesa, a Constituição de
1795 e a fase do Diretório (1794-99) define claramente o caráter do novo Estado. O Estado
comandado por Napoleão Bonaparte na fase do Consulado (1799-04) é um Estado burguês,
apoiado em uma forte burocracia civil e militar e que se impôs sobre a sociedade. Este Estado
cresce e se fortalece em termos econômicos, políticos, nacionais e burocráticos. Sob a construção
do Estado burguês e de uma sociedade civil burguesa, construía-se uma hegemonia burguesa.
A desconstrução de uma hegemonia e a construção de outra ocorre em um contexto de
crise. E não poderia ser diferente, visto que interesses de classes estão sucedendo no poder de
Estado, tendo em vista conquistar condições favoráveis para a reprodução das relações sociais
que mais podiam satisfazer seus interesses materiais.
A classe dominante tradicional e a emergente se enfrentam, as várias frações da classe
dominante emergente disputam a liderança da conquista e as classes subalternas se inserem no
processo. Conforme Marx chama a atenção, um dos grandes dilemas das crises que antecedem a
ascensão do Primeiro e do Terceiro Napoleão é o fato de que a ascensão popular tem como
resultado o fortalecimento do Estado, visto que a incapacidade da conquista do poder por parte
deste movimento determinaria a sua derrota, por um lado, e a conservação de uma cultura
política e uma estrutura burocrático-militar qualificada para a subordinação das classes
subalternas, por outro. Escreve Marx,
O poder executivo, com sua enorme organização burocrática e militar, com seu mecanismo complicado e
artificial, com um exército de meio milhão de funcionários ao lado de outro exército de meio milhão de
soldados - esse corpo parasitário medonho que envolve como um invólucro todo o organismo da sociedade
francesa e entope todos os seus foros - criou-se no período da monarquia absoluta, no fim do sistema
feudal, aperfeiçoando o centralismo estatal (Marx, 1983, p. 234 e 235).
O Estado burguês encontra-se montado na França de 1848.
O Golpe do 18 Brumário e o Bonapartismo
A revolução de 1848 desencadeia uma conjuntura crítica em termos políticos. As lutas de
classes se intensificam na França e na Europa. É a “primavera dos povos”, como fica conhecida
esta revolução.
A partir de 1849, com a eleição de Luíz Bonaparte graças ao dilúvio eleitoral dos
camponeses em seu favor - que o leva para a presidência da Segunda República recém criada tem início a contra-revolução. O processo da contra-revolução atinge o seu ápice com o golpe do
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Dezoito Brumário, quando a Segunda República dá lugar ao Segundo Império e Luíz Napoleão é
sagrado Napoleão III.
Interpretando a revolução de 48, as lutas de classes subsequentes e o golpe de Estado de
Bonaparte, Marx identifica uma série de problemas. Aspectos que, por um lado, revelam
características do Estado bonapartista, por outro, permite a identificação de aspectos típicos do
Estado burguês em geral.
Em primeiro lugar, Marx destaca o problema da aparente autonomia do Estado. O
gigantesco aparato burocrático civil e militar que “envolve como um invólucro todo o organismo
da sociedade francesa e entope todos os seus poros”, ou seja, o Estado subordina a sociedade
civil. E mais, agora a espada domina e se sobrepõe a todos os indivíduos, setores e classes
sociais. O Estado que destrói a imprensa revolucionária (48 e 49), persegue a imprensa burguesa;
que submete à vigilância as reuniões populares, submete à vigilância os salões burgueses; que
reprime os movimentos subalternos, reprime os movimentos da sociedade em geral. O Estado,
que reprime as classes subalternas à pedido da burguesia, termina por acuar a própria burguesia.
Marx demonstra que o crescimento da burguesia do Estado, quando o liberalismo
econômico pleiteia o Estado mínimo - restrito à função de preservar as regras do jogo, cujo
fundamento se apoia na idéia de que todos seriam iguais no mercado - quando o papel coercitivo
se prolonga para todas as classes sociais - inclusive indivíduos e setores da classe burguesa - leva
vários indivíduos e grupos sociais a acreditar no caráter autônomo do Estado, que o mesmo
encontra-se pairando sobre a sociedade. De fato, uma leitura empírica dos processos e fatos em
curso poderia levar a esta ilusão. Entretanto, uma leitura mais atenta demonstra que o Estado
encontra-se articulado em uma certa lógica, que esta organizado no sentido de medidas, de
critérios, de atuações cujo sentido é a reposição expansiva das relações capitalistas de produção e
a dinamização das forças produtivas. Ao término do Segundo Império (1870) a França
transforma-se na segunda nação industrial da Europa.
Esta problemática inseria uma outra: Quem é a classe dominante e como ela exercia o
poder? Marx demonstra que a classe dominante não existe enquanto uma classe homogênea. A
unidade desta classe em torno da defesa da propriedade e do status quo não se prolonga nas
opções e projetos políticos concretos.
A diversidade de segmentos, na forma de frações de classe e correntes políticas, para
Marx, emergia da forma concreta como os referidos segmentos inseriam na estrutura de
reprodução material da sociedade. Marx, enfim, encontra o elemento explicativo das lutas de
classes no âmbito da classe dominante, de forma a identificar a coincidência entre projeto
político e interesses sociais concretos.
95
Marx demonstra, ainda, que o exercício da dominação burguesa ocorria em um contexto
de uma aliança de classes. De forma que no Estado, no governo e na sociedade, o domínio
burguês incluía setores da pequena propriedade, intelectuais, setores médios, latifundiários. A
hegemonia pressupõe um conjunto de alianças e/ou cooptação social. Em segundo lugar, a
dominação não ocorria diretamente. O domínio, a exemplo da forma do regime bonapartista,
poderia ocorrer por meio de outras esferas de poder (judiciário e legislativo) e de esferas da
burocracia de Estado, ou da sociedade civil. Apenas episodicamente a burguesia exercia
diretamente o poder. Em terceiro lugar, a dominação dependia direta ou indiretamente das forças
armadas. A ‘espada’ não é uma característica apenas dos Estados precedentes, mas de todo
Estado. O Estado burguês aprimora em termos organizacionais, estratégicos, doutrinários e
bélicos o aparato repressivo do Estado. Em quarto lugar, a dominação burguesa sob a forma
bonapartista pressupõe uma base social de sustentação política mobilizada e controlada. O
campesinato, que projeta Napoleão Bonaparte - responsável pela legalização da repartição da
terra - no sobrinho Luíz Bonaparte, e que o concebe como o protetor/salvador dos interesses da
classe camponesa frente a rapinagem do capital comercial, industrial e financeiro, proporciona ao
Imperador uma base social de sustentação política no campo. O lumpem proletário, formado por
segmentos sociais proletários despolitizados e imediatistas, mobilizados por meio de métodos
demagógicos e populistas, por sua vez, proporciona ao Imperador uma base social de sustentação
política na cidade. Em quinto lugar, o clero aparece como o intelectual orgânico deste Estado. O
clero busca proporcionar a legitimidade divina do Império e do Imperador na medida que os
concebe como fruto da manifestação da graça de Deus, que assegura a conduta dos homens de
acordo com as leis e a obediência ao Estado/governo e que monopoliza a educação e o saber
formal.
Estado e Representações de Classe no Bonapartismo
O Estado burguês, na forma do regime bonapartista, concorre decisivamente para o
ocultamente da realidade. Sob um discurso liberal, promove uma poderosa burocracia pública.
Sob uma aparente autonomia induzida por esta própria burocracia, efetivamente conduz a
proteção e expansão dos interesses dominantes na forma da progressiva acumulação capitalista
(expandindo as forças produtivas e repondo as relações capitalistas de produção).
Marx demonstra, ironicamente, que o ocultamento da realidade assume, nas várias classes
e grupos sociais, representações invertidas da realidade. Os camponeses apareciam como
inocentes, mas de fato, encontram-se no contexto de sua ideologia pequeno-burguesa e da sua
96
configuração sócio-econômica concreta (atomizados em pequenas unidades familiares dispersas
nas diversas localidades), projetando Napoleão I, guardião da propriedade e família camponesa,
no III como novo guarrdião. A burguesia, que com sua imprensa sob vigilância e seus salões
vasculhados, aparecia como vítima de um poder construído graças a disputa e enfraquecimento
das suas várias frações de classe, seria a grande beneficiária do poder. O partido da ordem,
aristocrático (ou aristocracia aburguesada), dividido por meio das casas de Bourbon e de
Orleans, que vêem no novo imperador sagrado o seu tutor, o teria de fato como tal apenas na
medida em que este protegesse a propriedade privada. O proletariado de 1948, que partilharia do
governo por meio de Proudhon e do ministério do trabalho, com a ilusão de que por meio do
governo de coalisão ocuparia uma parte do poder, não consegue nada além do que concorrer,
temporariamente, para fortalecer o mito do Estado como instituição acima das classes sociais. O
próprio exército, que aparecia como uma força própria e monopolizadora da violência, que
consolida a imagem de que a farda é o manto do poder, nada mais é do que um instrumento da
defesa da propriedade burguesa.
Marx demonstra, portanto, que uma leitura puramente calcada nos sentidos, empírica, não
poderia dar conta de toda complexidade que as lutas de classes e a relação Estado e sociedade
assumia na França do período de 1848-52 e na sociedade moderna em geral. Seria necessário
ultrapassar as aparências dos fenômenos por meio de uma abordagem de totalidade, ou seja, a
partir da localização da forma concreta em que cada classe ou grupo social se insere na produção
e as relações que essa produção estabelece com as instâncias da superestrutura. Somente assim
seria possível identificar a conjuntura da luta de classes e projetar futuros cenários político.
A Origem do Estado: A Contribuição de Engels
Engels, apoiando-se em estudos de Henry Morgan (1818-1881) e em anotações de Marx,
elabora em 1894 a obra A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Esta obra
supre uma carência tendo em vista a interpretação e análise do Estado, qual seja, a sua origem.
Engels demonstra que a sociedade é anterior a família. Que o desenvolvimento da
sociedade engendra o surgimento da família e que esta, por sua vez, é redefinida no tempo. A
sociedade originária, a tribo, sob propriedade comunal, não conhece as formas de propriedade
pública e privada, a desigualdade social, a opressão sobre a mulher, etc.
Com a domesticação dos animais e das plantas, com a consequente geração de
excedentes, forma-se a propriedade e começa o início da desigualdade social e de gênero.
Forma-se uma ordem patriarcal. Forma-se a família enquanto unidade que inclui a propriedade e
97
os homens - escravos e livres. O pater familias tem poder de vida e morte sobre todos.
Para Engels o desenvolvimento econômico e social desencadearia transformações nesta
família que o próprio desenvolvimento na sua fase anterior havia criado. Esta família entraria em
crise e seria dissolvida, dando lugar a classes sociais definidas em torno da propriedade privada
que progressivamente se absolutiza em poucas mãos. De um lado, escravos e proprietários e, de
outro lado, proprietários de terra e os que não possuíam terra alguma.
Começaria a surgir, a partir de um determinado desenvolvimento das forças produtivas,
uma instituição, que tendia a dominar e manter coesa a sociedade. O Estado, historicamente
formado, seria esta instituição. E como tal, nasceria no contexto do surgimento das classes
sociais em luta. Seria um instrumento nas mãos dos proprietários de terras e escravos tendo em
vista institucionalizar sua dominação. Esta ocorreria por meio do aparato policial-militar, da
estrutura jurídica e do sistema político.
Engels demonstra que o Estado nasce da sociedade cujo desenvolvimento das forças
produtivas engendra as classes, que o Estado é um instrumento em favor das classes dominantes,
que o Estado é uma estrutura de poder que procedia da sociedade mas que era apresentado como
estando acima dela e que esta estrutura de poder ficava ‘estranho’ à própria sociedade, sendo
apresentado como poder separado dela e como seu próprio criador. Engels demonstra, ainda, que
o Estado, expressão da dominação de uma classe, busca um equilíbrio político-jurídico contraditório, provisório, transitório - entre as classes em conflito, tendo em vista assegurar
condições mais adequadas para o desenvolvimento das forças produtivas e para a conservação
das relações de produção.
Engels reconhece, tal qual Marx, que o Estado, aparentemente separado da sociedade,
constituía-se como um organismo com suas próprias dinâmicas internas, com sua burocracia
civil e militar, com sua estrutura política, e assim por diante. Mas, de fato, seriam aparências,
visto que esta lógica interna do Estado, aparentemente em contradição com a lógica da
sociedade, corresponderia a uma determinada sociedade.
A sociedade concreta, portanto, diferenciada socialmente, ordenada a partir do
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção e cujos níveis e formas de
organização da vida social - a propriedade, a família, o Estado, a religião, etc. - estariam sobre
uma profunda interdependência. A sociedade determinaria o Estado, estando a própria sociedade
sujeita a uma hegemonia social.
Conforme podemos verificar, Engels não dá grandes contribuições à descobertas que
Marx realiza no O Golpe do 18 Brumário. As suas contribuições significativas encontram-se na
distinção entre sociedade e família, na demonstração de que a família patriarcal (organização
98
gentílica) dá lugar às classes com a descoberta da propriedade e na relação estabelecida entre a
formação das classes e da luta de classes como determinantes do surgimento do Estado.
As Contribuições de Gramsci
Gramsci amplia consideravelmente a noção de Estado proposta por Marx. Sua abordagem
do conceito de Estado ocorre por meio do desenvolvimento de outros conceitos e de outras
problemáticas, usadas como instrumental teórico para um compreensão e aproximação da
realidade na perspectiva de uma transformação social. Tais conceitos são: hegemonia e bloco
histórico. As problemáticas mais abordadas: a questão do partido - moderno príncipe - e dos
intelectuais. Na obra A Questão Meridional, tais conceitos e problemáticas se encontram
inseridos numa abordagem histórica concreta, qual seja, a situação do Mezzogiorno ou sul da
Itália.
Tal como em Marx, o Estado é concebido por Gramsci como “organismo próprio de
grupo, destinado a criar condições favoráveis à expansão máxima desse grupo” (Gramsci, 1989,
p. 50). Conserva, portanto, uma base classista. No entanto, a expansão máxima desse grupo
ocorre em conexão com os interesses do grupo subordinado e a
(...) vida estatal é concebida como uma contínua superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre
os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados; equilíbrio em que os interesses
do grupo dominante prevalecem até determinado ponto, excluindo o interesse econômico corporativo
estreito (Gramsci, 1989, p. 50).
De tal afirmação podemos tirar algumas informações básicas: a) O Estado, apesar de
representar uma classe ou grupo, necessita para manter o ‘equilíbrio’, superar os interesses
estreitos do grupo fundamental que o compõe e abarcar os interesses dos grupos subordinados.
Daí a quebra de uma das ortodoxias marxistas que vê no Estado um mero defensor dos interesses
de uma única classe; b) Apesar da superação dos interesses econômicos-corporativos estreitos do
grupo fundamental, o Estado continua a visar a expansão desse grupo, a questão é que para que
essa expansão ocorra de forma máxima, tais interesses devem ser superados; c) A superação dos
equilíbrios instáveis se dá no âmbito da lei, ou seja, no nível superestrutural.
A esta fase em que determinada classe consegue superar os interesses econômicoscorporativos, abarcar os interesses de outros grupos e se constituir em “Estado”, propriamente
dito, Gramsci atribui ao momento principal das relações-de-força, ou seja, ao momento das
relações de forças políticas. Para que esse momento realmente se concretize, o grupo
99
fundamental deve criar uma “hegemonia” com elação aos grupos subordinados.
O conceito hegemonia aparece assim claramente ligado a questão do Estado em Gramsci.
Em A Questão Meridional, o autor procura aplicar esse conceito à realidade italiana. Ele afirma
que “o proletariado pode tornar-se classe dirigente e dominante (ou seja, hegemônica) na medida
em que consiga criar um sistema de aliança de classes que permita mobilizar contra o
capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora...” ( ). Assim, a conquista
do poder por parte de uma classe, aqui no caso, o proletariado, passa pela direção e dominação,
que esse grupo é capaz de exercer sobre outros, o que ocorre por meio da construção de uma
aliança de classe. Essa aliança, muito mais que um agrupamento ocasional em torno de questões
esporádicas, é uma união de caráter orgânico, garantida pela difusão de idéias unificadoras das
classes em questão e pelo atendimento das reivindicações básicas e materiais dos diversos
grupos. Ao grupo principal cabe dar a direção ideológica aos demais, superando para isso os seus
interesses econômicos-corporativos e se colocando como grupo que pretende dirigir os demais.
Pois,
O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deve levar em conta os interesses, as tendências
dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida (...). É indubitável que os sacrifícios e compromissos
não se relacionam com o essencial, pois a hegemonia é ético-política mas também econômica (Gramsci,
1989, p. 33).
Essa linha de raciocínio nos leva a incorporar duas novas discussões: a) A questão da
identificação/direção/sociedade civil versus Estado/dominação/sociedade política; e b) A questão
da formação do “bloco histórico”.
Na primeira discussão podemos partir das seguintes afirmações de Gramsci: 1) “Podemos
distinguir dois grandes níveis na superestrutura, o que pode ser designado como ‘sociedade
civil‘, isto é, o conjunto de organismos chamados internos e privados, e da ‘sociedade política’,
ou Estado, correspondendo respectivamente a função de hegemonia que o grupo dirigente exerce
sobre o conjunto do corpo social e da dominação direta ou comando, que se expressa através do
Estado e do poder jurídico” ( ); 2)“(...) a noção de Estado comporta elementos que devem ser
vinculados à sociedade civil (no sentido de Estado=sociedade política+Sociedade civil, isto é,
uma hegemonia couraçada de coerção” (Gramsci apud Buci-Gluckmann, 1980, p. 98).
A distinção realizada por Gramsci entre sociedade civil, identificada como espaço de
construção da hegemonia, e sociedade política, como espaço de coerção - criando o par
dominação/direção, presente em toda obra de Gramsci -, aparece aqui como pura distinção
100
formal, realizada apenas no nível metodológico, uma vez que na realidade concreta tal distinção
não existe. Tanto é que na segunda assertiva passa a identificar sociedade política e sociedade
civil como partes constitutivas do Estado.
Na verdade, a concretude do Estado se dá pela manifestação da hegemonia - identificada
como poder de direção; e pela coerção. Para Gramsci, um grupo que pretende se constituir
enquanto grupo dirigente de uma sociedade, deve se constituir também, e principalmente, como
grupo dominante, ou seja, deve ser portador da ‘vontade coletiva’. No entanto, o momento da
coerção não deixa de existir.
A hegemonia se constrói no interior do bloco histórico. Este, mais do que uma aliança de
classes realizada num determinado momento histórico, representa a unificação de grupos em
torno de um projeto histórico e classista. O que garante a união desse bloco é a criação e
ampliação da hegemonia pela classe fundamental; assim, na análise contida na obra A Questão
Meridional Gramsci caracteriza a sociedade meridional como ‘um gigantesco bloco agrário’,
constituído pelos grandes proprietários, pelos grandes intelectuais, pelos camponeses, pela média
burguesia e pela intelectualidade média. A união desse grupo disforme sob a direção dos grandes
proprietários, ligados aos grandes industriais do norte, ocorre por meio da ação dos intelectuais,
responsáveis pela criação de uma cultura que leva à submissão da massa camponesa, que apesar
de revolta, é desorganizada. O grupo de intelectuais é responsável pela criação e manutenção da
hegemonia do grupo dirigente no que ela tem de ideológico, de superestrutural.
É tal a importância da criação da hegemonia para a manutenção do bloco histórico, que
Gramsci afirma nesse mesmo texto que o bloco intelectual é “a armadura flexível e resistente do
bloco agrário”. Para a destruição desse bloco e a criação de um novo, torna-se necessária a
conquista dos intelectuais, enquanto grupo, para uma nova proposta de ordenação social, para a
criação de uma nova hegemonia.
O papel do intelectual na obra de Gramsci, tem uma importância fundamental. Aos
intelectuais cabe a tarefa da construção de uma nova cultura política que, difundida, se tornaria
senso comum. O intelectual para Gramsci não é uma figura passiva, alheia à realidade, e neutra
na emissão de seus pareceres. É, ao contrário, elemento dinâmico dentro da formação social; é
ele que por meio de sua colaboração teórica e da sua ligação direta com a massa cria e repassa
ideologia6 da classe que se encontra no poder. É o intelectual quem tem a capacidade de realizar
6
Em Gramsci o “conceito de ideologia está relacionado a uma concepção de um mundo amplamente manifesta na
arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva. Mais do que um
sistema de ideais, ela também está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e proporcionar
orientação para a ação. A ideologia está socialmente generalizada, pois o homem não pode agir sem regras de
conduta, sem orientações. Portanto, a ideologia torna-se o “terreno sobre o qual os homens se movimentam,
101
a ligação entre infra e superestrutura, tornando o bloco histórico mais homogêneo e coeso, e em
última instância, garantindo a hegemonia da classe que se encontra na direção do bloco.
Se o desenvolvimento da ideologia e sua homogeneização dentro da sociedade são as
principais provas da hegemonia de um grupo dirigente, seu enfraquecimento e a utilização da
força, são os sinais de debilitação da hegemonia e da passagem da ditadura.
Quando a classe fundamental conquista a hegemonia, ela consegue o consenso e o
controle da sociedade civil: consegue construir um bloco histórico homogêneo. O
desenvolvimento do controle ideológico gera então o enfraquecimento da sociedade política e da
coerção. A sociedade civil passa a ter, digamos, predominância sobre a sociedade política. Em
uma situação em que a hegemonia não está totalmente desenvolvida, em que o grupo social
principal domina mas não dirige a sociedade, temos uma situação de ditadura, onde a coerção
será amplamente utilizada para a manutenção do aparelho de Estado.
A situação de hegemonia e ditadura não estão totalmente separadas, a não ser em casos
históricos específicos. A classe dirigente mesmo quando hegemônica, não dirige toda a
sociedade, mas somente as classes auxiliares e aliadas. A hegemonia jamais é total, e um mesmo
grupo pode ser ao mesmo tempo dirigente e dominante. Daí a presença e utilização do aparato
repressivo por parte do Estado, quando a situação o exige.
A concretização da hegemonia e a construção do bloco histórico, por meio da ação da
classe fundamental apoiada pelos intelectuais, se realiza fundamentalmente no partido. Para
Gramsci:
Na realidade de todos os Estados, o ‘chefe de Estado’, isto é, o elemento equilibrador dos diversos
interesses em luta contra o interesse predominante, mas não exclusivo num sentido absoluto, é exatamente
o “partido político”; ele porém, ao contrário do que se verifica, no direito constitucional tradicional, não
reina nem governa juridicamente: tem o poder de fato, exerce a hegemonia e, portanto, equilibradora de
interesses diversos, na ‘sociedade civil’, mas de tal modo que está entrelaçada de fato com a sociedade
política, que todos cidadãos sentem que ele reina e governa (Gramsci, 1989, p. 102).
Na análise realizada por Gramsci no texto O Moderno Príncipe, o partido é visto como
o portador da vontade coletiva, definida como “a vontade como consciência atuante da
necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo” (Gramsci, 1989,
p. 7).
adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. É portanto na ideologia e pela ideologia que uma classe pode
exercer a hegemonia sobre as outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes massas”.
Dicionário do Pensamento Marxista. 2ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 186p.
102
A criação dessa vontade coletiva passa por dois elementos a serem desenvolvidos pelo
partido: a) A formação de uma vontade coletiva nacional-popular; e b) Uma reforma intelectual e
moral.
Esses dois aspectos da vida do partido, remetem novamente à função dos intelectuais na
construção da hegemonia dentro do bloco histórico e à função educativa que o Estado se reveste.
O partido político, que detém o “poder de fato” tanto em relação à sociedade civil quanto à
sociedade política, é o grande articulador de uma nova concepção de mundo, responsável pela
aglutinação e criação de uma nova vontade coletiva que permita a unidade de Estado enquanto
representante de classe. O partido, mesmo que dividido em várias facções, na realidade, só existe
enquanto partido único e orgânico de uma única classe que representa, as divisões internas de
caráter superficial são superadas todas as vezes que o poder da classe hegemônica se encontra
ameaçado, nesse momento as diversas facções se unem formando um bloco compacto que visa a
manutenção do Estado.
Retornando à função educativa do partido e do Estado vamos encontrar tanto em O
Moderno Príncipe quanto no texto Americanismo e Fordismo, as indicações sobre o papel
desempenhado pelo Estado na formação e adequação das massas a uma nova ordem moralintelectual, quanto produtiva. No primeiro texto encontramos:
Missão educativa e formativa do Estado, cujo fim é sempre criar novos e mais elevados topos de
civilização, adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do
desenvolvimento continuado do aparelho econômico de produção, portanto elaborar também fisicamente
novos tipos de humanidade (Gramsci, 1989, p. 91).
No texto Americanismo e Fordismo essa situação é bem explicitada; as novas formas
de produzir introduzidas por Ford, com o respaldo do pensamento político/econômico/ideológico
do Estado americano passam a criar um novo tipo de trabalhador. Mais capacitado e mais
adequado ao desenvolvimento do Estado americano, tanto que o autor chega a afirmar que a
hegemonia vem da fábrica (...) .
No entanto, essa adequação a um novo tipo de Estado e produção não ocorre
simplesmente em função da ‘educação’ a que o Estado submete as massas. O uso da força está
presente nesse processo. Para Gramsci, as mudanças do modo de viver se verificam por meio de
cruéis coerções proporcionadas pelo domínio de um grupo social sobre todas as forças
produtivas da sociedade. O surgimento de novos tipos de civilização, ou o curso do processo de
103
desenvolvimento são marcados por crises. Para ele, “quando a pressão coercitiva é exercida
sobre todo o complexo social, desenvolvem-se ideologias puritanas que moldam a forma exterior
de persuasão e do consentimento ao uso intrínseco da força” (Gramsci, 1989, p. 393 e 394).
A coerção combinada com a persuasão (que pode ser feita por meio da criação de
ideologias puritanas ou do pagamento de salários mais altos) tem a função de engajar as massas
trabalhadoras nas novas formas de produção. Passado o momento de crise, e estando as massas
enquadradas, podem diminuir tanto a pressão - o que gera o que o autor chama de ‘liberalismo’,
após a imposição do puritanismo - quanto a redução dos meios persuasivos com redução dos
salários.
O que é importante notar ainda no texto é que o autor não desvincula o processo
produtivo do processo de construção e domínio do Estado sobre a massa. Pelo contrário, no caso
específico do americanismo, Gramsci é claro em destacar que para a imposição de uma nova
forma de produção necessita-se de um tipo especial de Estado; no caso, o Estado deve ser liberal
no sentido “da livre iniciativa e do individualismo econômico que alcança através de meios
próprios, como “sociedade civil”, através do próprio desenvolvimento histórico, o regime de
concentração industrial e de monopólio” (Gramsci, 1989, p. 388). Vê-se por essa passagem a
identificação de Estado como ‘sociedade civil’.
Ainda no que diz respeito à relação Estado/consenso/coerção, Gramsci é claro em afirmar
que o “centralismo democrático” é o elemento de instabilidade do Estado. O que significa dizer
que na luta entre a preponderância da coerção ou do consenso, consegue maior equilíbrio o
Estado que consegue ter como base um partido que se paute principalmente no consenso, que
seja um partido realmente orgânico no sentido de conseguir se adaptar às novas realidades e
necessidades das bases dos grupos que compõem o bloco histórico no poder. Caso contrário, o
centralismo burocrático - que ocorre em função do primarismo político das bases e leva a
formação de um Estado autoritário - passa a predominar e a minar a base de sustentação do
Estado. Resumindo, a construção da hegemonia pelo grupo fundamental é o componente
principal da manutenção de uma determinada ordem social e do Estado que lhe corresponde.
Contribuições Pós-Gramsci
Claus Offe parte do entendimento de que o Estado possui uma autonomia relativa em
relação aos interesses imediatos das classes dominantes nos momentos de acirramento das lutas
de classes, realizado Marx na obra O Dezoito Brumário de Luíz Bonaparte. Agrega a este
104
reconhecimento o papel da burocracia como agente organizador, racionalizador e modernizador
do capitalismo monopolísta, realizado por Max Weber nos estudos sobre burocracia.
Para Claus Offe a burocracia assume a função de mediador da luta de classes que se
desenvolve no processo de acumulação capitalista. Isto porque a contradição básica da produção
capitalista, qual seja, a crescente socialização da produção e a apropriação privada dos
excedentes, gera uma infinidade de crises políticas, econômicas e sociais que obriga ao Estado
construir mecanismos públicos e privados, externos e internos ao mercado, para detê-los
(Carnoy, 1986, p. 169).
As funções do Estado como administrador das frequêntes crises do capitalismo, sob etapa
monopolista, seriam ampliadas. E tal ampliação comprometeria uma relação simétrica entre os
interesses da classe dominante e a atuação do Estado, a exemplo da era do pacto fordista sob o
denominado “Welfare state”. Seria, portanto, dificil perceber até que ponto o Estado
representaria o interesse social do capital, qual seja, a reprodução do modo capitalista de
produção, na medida em que ele transformaria-se em administrador de uma sociedade de
interesses diversos e conflituosos e em árbitro dos conflitos e disputas das diferentes expressões
sociais e políticas do mundo do capital e das diferentes expressões sociais e políticas do mundo
do trabalho.
Joachim Hirsh parte do entendimento de que a sociedade capitalista seria profundamente
marcada pela concorrência entre o capital industrial, financeiro e comercial. Tal processo
constituiria frações políticas burguesas disputando a orientação do Estado (Carnoy, 1986, p.
181).
Para Joachim Hirsh o Estado reproduziria em si mesmo esta concorrência e conflito, o
que o impediria de representar os interesses gerais do capital. Todavia, a existência do Estado
burguês dependeria da reprodução da acumulação do capital – que é a reprodução expansiva do
valor, das relações capitalistas de produção e do domínio político e ideológico da classe
burguesa. A acumulação do capital, por sua vez, não seria possível sem o Estado burguês – que é
o direito (leis, instituições etc) e o burocratismo (aparato burocrático civil e militar, modus
operandi etc).
Nicos Poulantzas parte do entendimento de que o Estado, como is todas as instituições
sociais, seria um produto da luta de classes. Portanto, a forma e a estrutura do Estado no
capitalismo seriam construídos pela luta das classes presentes na sociedade capitalista e pelo
papel que o Estado desempenharia nessa luta.
Para Nicos Poulantzas a luta de classes nasceria das relações de produção e se
prolongaria para dentro de todas as instituições. Do que se conclui que ocorreria uma disputa
105
entre as diversas frações burguesas tendo em vista assegurar o domínio político, bem como um
grau de interferência da classe operária na moldagem do Estado.
Pietro Ingrão, que também reconhece o Estado como produto e modelador da luta de
classes, o concebe como campo político onde as camadas populares atuariam e onde poderiam
obter conquistas que alterasse o sentido e o conteúdo do desenvolvimento capitalista. A
democracia nas sociedades capitalistas, para ele uma conquista operária por meio das suas lutas,
seria o regime político que melhor adequaria às conquistas progressivas e à própria redefinição
continuada do desenvolvimento capitalista (Carnoy, 1986, p. 208).
Considerações Finais
Marx e Engels acentuam em suas análises a gênese do Estado, o seu caráter de classe, a
sua determinação material e a sua historicidade. Para Marx e Engels o Estado desaparecia com o
fim da “pré-história da humanidade”, isto é, como o fim da história humana caracterizada pela
propriedade privada e pela desigualdade social.
Os demais teóricos marxistas acentuam o Estado como espaço de luta de classes.
Determinados teóricos chegam mesmo a recusar a abordagem do Estado como um aparelho
repressivo da classe burguesa.
É possível reconhecer que na abordagem marxista atual predomina o entendimento de
que o Estado no capitalismo seria dominado pela burguesia; de que ele seria voltado para a
reprodução das relações capitalistas de produção; e de que ele concorreria para a criação de um
aparelhamento político e econômico voltado para a acumulação do capital. É possível
reconhecer, ainda, o entendimento de que o Estado, na medida em que seria espaço da luta de
classes, poderia ter suplantado a sua natureza burguesa.
106
107
7. ESTADO E AUTORITARISMO NO BRASIL
Os donos do poder, os seus colaboradores e os ingênuos ou ignorantes (re)criam mitos de
ocasião. O mito de que somos uma nação jovem; de que compomos um povo multi-étnico
tolerante e cordial; de que vivemos em uma sociedade democrática, são exemplos.
O propósito deste texto é bastante restrito: basicamente, constitui-se em um discurso
histórico-político de contraposição ao conteúdo mítico e falacioso presente nos discursos das
elites políticas e econômicas, tomando como referência a reconstituição teórico-histórica das
relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade brasileira.
Sociedade e Estado Escravista Moderno no Brasil
A moderna sociedade brasileira se forma para o ‘outro’. Subjacente à epopéia da
conquista de povos e territórios, por parte dos portugueses, ocorre o empreendimento mercantil,
que é uma das formas básicas assumidas pela acumulação primitiva do capital e pela afirmação
progressiva da sociedade burguesa.
O caráter de uma sociedade formada para o ‘outro’ se conforma por meio de um
conglomerado de interesses poderosos, interna e externamente conjugados. Esses interesses são
capazes, por intermédio de adequações estruturais constantes nos diversos níveis da vida social
em face das transformações que ocorrem no mundo e dentro da própria sociedade brasileira, de
se perpetuar até nossos dias.
O século XVII representa uma fase crucial da história colonial brasileira. Uma economia
latifundiária, escravista e especializada encontra-se estruturada - o que não impede, por exemplo,
a existência de um campesinato com ou sem pequenas propriedades; uma classe dominante local
- senhorial e escravista - apresenta-se formada e ciente dos seus interesses e limites definidos no
âmbito do Império Português. Está composta uma relação que percorreria toda a nossa história:
uma classe dominante local articulada a um poder dominante externo, tendo em vista explorar os
homens nativos e vindos de outros lugares para a ‘nova’ terra; e uma sociedade voltada para
consumir produtos e modelos culturais metropolitanos.
O processo de ‘independência’ do Brasil mantém essa estrutura. A novidade é o
afastamento dos interesses portugueses no Brasil, que encontram-se ameaçados e/ou restringidos
desde o início do século XVIII em favor da burguesia financeira e comercial inglesa.
Definitivamente, articulam-se os interesses da classe dominante senhorial e escravista com os
interesses ingleses.
108
O Estado no Brasil colônia e no Brasil império encontra-se apoiado em um direito
escravista, que é uma variante de Estado de função estrita7, típico de uma sociedade précapitalista. Os homens são reconhecidos a partir de uma distinção absoluta entre aqueles que
possuem capacidades - os homens livres, reconhecidos como pessoas - e aqueles que não
possuem capacidades – os escravos, reconhecidos como coisas.
A composição do aparelho de Estado reflete essa distinção. É proibido o acesso de
escravos ao aparelho estatal na condição de funcionários. É restringida, também, a participação
de homens livres pobres - não originários da classe dominante - no aparelho de Estado por meio
de sanções de caráter estamental ou censitário. Conforme Décio Saes,
Na colônia, só podem integrar as Câmaras Municipais os “homens bons”; e estão excluídos dessa categoria
os homens livres que desempenhem “ofícios mecânicos”. No processo eleitoral imperial, vigoram restrições
censitárias (por exemplo, quanto ao nível de renda) que inviabilizam a participação eleitoral dos homens
livres pobres (1999, p. 113 e 114).
A função estrita do Estado encontra-se articulada com um aparato social e cultural
igualmente coercitivo. A cultura patriarcal-cristã; a condição da mulher escrava e livre,
respectivamente, objeto sexual e reprodutora; a coisificação do escravo; a violência pública e
privada contra o escravo em geral e o escravo rebelde em particular, entre tantos outros aspectos
ideológico-culturais, atestam o caráter reificador e violento da sociedade brasileira colonial e
imperial.
O Estado no Brasil colônia e no Brasil império assume uma identidade direta e
abertamente classista entre a classe dominante e o seu corpo burocrático-funcional. Como
consequência, os funcionários do Estado concebem como natural a submissão de homens
considerados como coisas à vontade dos seus proprietários, bem como tendem a naturalizar
naqueles essa condição.
Sociedade e Estado Burguês no Brasil
Em meados do século XIX o capitalismo ingressa em uma nova fase de desenvolvimento.
A industrialização se estende para a maioria dos países da Europa ocidental e para os EUA; a
disputa industrial e comercial entre os países capitalistas centrais intensifica a demanda por
7
No Estado de função estrita ocorre uma identidade direta entre a classe dominante e o Estado. Este se constitui em
um aparelho essencialmente coercitivo. A forma de dominação assume, basicamente, uma dimensão extraeconômica.
109
mercados fornecedores de produtos primários e consumidores de bens industrializados; a
revolução nos transportes e comunicações, representada pela locomotiva e pelo navio a vapor, é
responsável, respectivamente, pela integração do interior de países e continentes às economias
litorâneas e integra países e continentes à economia mundial.
Essa nova realidade do capitalismo internacional concorre para transformações profundas
na realidade brasileira do século XIX. O desafio colocado para a classe dominante senhorial e
escravista é ajustar a sociedade brasileira ao capitalismo internacional em transformação e, ao
mesmo tempo, preservar o caráter geral presente na própria gênese da sociedade brasileira. A
solução encontrada é a modernização conservadora. Processo de mudança sem povo e sem
democratização do poder ou da propriedade, de forma que as mudanças institucionais
encontram-se enclausuradas em um formalismo burocrático-conservador e as mudanças
produtivas não incorporam progressiva participação do mundo do trabalho nos excedentes
econômicos.
A sociedade brasileira se transforma rapidamente ao longo da segunda metade do século
XIX. A interrupção do tráfico negreiro - fruto das pressões inglesas e que redundaria na Lei
Eusébio de Queiroz de 1850 -, a imigração européia, o crescente predomínio do trabalho livre
(assalariado, semi-assalariado e não-assalariado), o florescimento de uma cafeicultura capitalista
no oeste paulista e a metamorfose da classe dominante senhorial e escravista em classe burguesa
e capitalista, são algumas dessas transformações. Enfim, uma nova configuração social e
econômica brasileira encontra-se em curso.
Os processos sociais e econômicas em curso abrem caminho para a transformação da
sociedade brasileira em uma sociedade capitalista e burguesa. Esses processos haveriam de
redundar, também, em transformações institucionais, de forma a readequar a institucionalidade o Estado em particular - a essa nova configuração social e econômica. Um ambiente favorável a
uma revolução política está em curso no Brasil.
A revolução política de 1888-1891 - na forma da Abolição da Escravatura de 1888, da
Proclamação da República de 1889 e da Assembléia Constituinte de 1891- coloca um ponto final
no Estado escravista moderno e edifica o Estado burguês no Brasil, que é uma variante de Estado
de função universal8, típico de uma sociedade capitalista e burguesa. O direito burguês igualiza
formalmente todos os homens perante a lei, ao reconhecê-los como sujeitos individuais de
direitos, e lança as bases para que a exploração do trabalho assumisse um caráter contratual,
8
No Estado de função universal não ocorre uma identidade direta entre a classe dominante e o Estado. Esse tende a
se constituir num aparelho coercitivo recoberto de hegemonia. A forma de dominação assume, basicamente, uma
dimensão econômica.
110
fruto da negociação entre capital e trabalho no mercado (Saes, 1985, P. 181-192).
O modo de organização do aparelho de Estado, de forma a refletir os preceitos liberais,
passa a ser universalista e meritório, mas essencialmente excludente, uma vez que há um
processo de bestialização dos pobres livres e ex-escravos. Essa exclusão, em certa medida,
explica as primeiras revoltas populares na República, a exemplo da Revolta da Vacina. De fato,
não há uma cumplicidade entre o Estado e a sociedade, somente um formalismo burocrático e
conservador (Carvalho, 1987, p. 113-126).
Ainda no tocante à organização do Estado, conforme observamos, qualquer homem, em
princípio, poderia compor a sua burocracia a partir da sua seleção formalizada por meio de
critérios de competência. Ocorre, portanto, uma distinção entre o Estado e a classe dominante em
termos formais, de maneira que o Estado passa a ser representado como uma estrutura supra
classe social. Enfim, estão lançadas as condições para a recriação do mito do Estado como
expressão de um ‘contrato social’.
O Estado burguês no Brasil haveria de passar por diversos regimes políticos. Do período
da revolução política a 1930 articula-se o regime liberal oligárquico, hegemonizado por uma
burguesia financeira e comercial agroexportadora e compradora e pela burguesia financeira e
comercial inglesa compartilhada, agora, pela burguesia financeira e comercial norte-americana.
O compromisso desse Estado é assegurar a expansão da economia agroexportadora em geral e da
economia cafeeira em particular, de forma a proteger/expandir os interesses nela envolvidos.
Esse compromisso é assegurado sob intensa coerção, de forma a combinar as esferas
pública e privada. No plano político, são exemplos desse compromisso a restrição e manipulação
do sufrágio com a exclusão dos analfabetos, mulheres e militares, a votação aberta sob coação; o
fisiologismo, o clientelismo, o ‘é dando que se recebe’, as perseguições políticas, a fraude, etc,
como método herdado do Império e ampliado com a República; a diplomação dos eleitos como
pré-condição para a ocupação da função parlamentar; o impedimento de organização partidária
do mundo do trabalho, entre outras formas. No plano social, a intensa repressão aos movimentos
sociais camponeses, aos operários e a segmentos das camadas médias, a exemplo,
respectivamente, de Canudos, dos sindicatos anarquistas e do tenentismo, também atestam esse
compromisso.
O compromisso na defesa dos interesses dominantes se prolonga, ainda, para esferas
microestruturais. São exemplos dessa realidade a reposição de expressões ideológico-culturais
patriarcal-cristãs herdadas do passado colonial e imperial, a exclusão das mulheres do mercado
de trabalho e da participação política e o preconceito racial.
A revolução de 1930, fruto de uma conjuntura de crise internacional e nacional que abala
111
os interesses do imperialismo e da oligarquia e que ameaça a reprodução da sociedade brasileira,
proporciona um espaço de intervenção política autônoma dos setores vinculados a uma
perspectiva industrializante. Após a queda dos setores burgueses vinculados à agroexportação e à
importação, tem início uma longa fase em que predomina um compromisso de classe básico
vinculado à industrialização substituidora de importações e ao intervencionismo Estatal planificando, financiando e investindo diretamente nessa direção. Esse compromisso envolvia,
sobretudo, a burocracia civil e militar, setores médios da sociedade e industriais.
Os regimes formados ao longo desse compromisso são: é estabelecido um regime político
provisório e pouco institucionalizado entre 1931 e 1934. Este é suplantado por um regime
democrático representativo pluripartidário instável entre 1934 e 1937. Esse regime é derrubado
por um golpe civil-militar em 1937, sendo instituído o regime do Estado Novo entre 1937 e
1945. Como podemos confirmar, trata-se de um período de intenso conflito social entre as
frações da classe dominante e destas em relação aos trabalhadores urbanos e rurais organizados.
A instabilidade dos dois primeiros regimes políticos do pós-1930 e a ditadura varguista
evidenciam, ainda, a carência de legitimidade do Estado de função universalista.
Um novo regime democrático, mas ainda de participação política formal restrita, vigora
entre 1946 e 1964. A rearticulação dos interesses envolvendo a classe dominante local e os
interesses norte-americanos e europeus, abalados pela crise do capitalismo internacional nos
anos 30, pela Segunda Guerra Mundial e pela reconstrução européia, tem lugar intensamente a
partir do Programa de Metas do governo J.K.. A rearticulação assume, entre outras formas, a
constituição do tripé da industrialização brasileira (capital privado nacional, capital privado
estrangeiro e capital estatal), a multinacionalização da economia nacional e o padrão de
endividamento externo (Oliveira,1984, p. 76-92). Essa rearticulação se, por um lado, evidencia a
falta de disposição da classe dominante local em conduzir a luta anti-imperialista e edificar um
projeto nacional independente e autônomo, por outro, não a coloca inteiramente identificada com
os interesses do capital internacional.
A ampliação da participação de membros do mundo do trabalho na política institucional,
por meio da extensão dos direitos políticos às mulheres, é ‘compensado’ de diversas formas.
Podemos destacar a conservação da exclusão dos analfabetos do processo político formal, o
controle das entidades sindicais e sua redução à condição de células do Estado e a política
ideológica de massas, amplamente viabilizada por meio dos novos e disseminados veículos de
comunicação de massa.
Grande importância ocupa o denominado ‘pacto populista’, uma estratégia de
incorporação controlada dos trabalhadores urbanos e rurais no processo político por parte da
112
burocracia civil e partidos políticos burgueses, de forma a mobilizá-los contra resistências
corporativas e imediatistas do grande capital e impedi-los de trilhar um caminho de organização
independente e autônomo de classe. Segundo Oliveira,
O pacto populista era a forma de hegemonia burguesa, uma hegemonia que se afirmara sem liquidar com o
seu antigo contendor, a oligarquia agrária cafeicultora; uma hegemonia que se afirmara dirigindo
poderosamente a ação e a intervenção do Estado sustentáculo e mola de sua expansão; uma hegemonia que
se afirmara utilizando o Estado para vigiar o proletariado urbano sem necessariamente ser repressor
ostensivo (...) (1993, p. 88).
Não menos importante, tendo em vista o controle do mundo do trabalho, é o
impulsionamento de um padrão sócio-cultural calcado no agora mundializado ‘American way of
life’ - ou seja, no individualismo, no consumismo, na maximização de ganhos e propriedades -,
no ‘dar um jeitinho’, no ‘levar vantagem em tudo’, entre outras formas. Esse padrão, embora
emergindo como parte da afirmação das relações capitalistas de produção, tece raízes mais
profundas e formas mais intensas se comparado a outros países. Provavelmente uma decorrência
do ‘contágio pelo exemplo de cima’, ou seja, a prática de vilipendiamento e instrumentalização
do Estado, por parte da classe dominante, passa a introjetar valores e práticas anti-éticas sobre
amplos setores sociais.
Com o golpe militar de 1964, tem início o regime militar que se estende até 1984. Sob
profunda coerção, é assegurado o compromisso de classe básico vinculado à industrialização, ao
intervencionismo estatal e à articulação de capitais inaugurado com o Programa de Metas. A
estrutura sindical e o arcabouço de seguridade social também é preservado.
O caráter autoritário do regime militar não poderia eliminar a condição universalista do
Estado, mas lhe imprime características próprias. A realização de eleições controladas, o
bipartidarismo, etc, asseguram a ritualização do Estado universalista. Na prática, contudo, pouco
se diferencia do Estado de condição estrita, visto que não possui uma dimensão hegemônica
subordinadora da dimensão coercitiva. Mais um golpe, enfim, é conduzido contra os projetos
populares que se desenvolviam nos início dos anos 60.
Por fim, um novo regime liberal-democrático conservador tem início em 1985. Suas
bases institucionais são definidas somente em 1988 com a Assembléia Nacional Constituinte. O
caráter conservador do regime, evidenciado pela base política e social de sustentação,
fundamentalmente a mesma do período militar, confirmar-se-ia na constituinte por meio da
conservação do monopólio da terra, do caráter autocrático do governo federal, entre outras
113
formas.
Aspectos progressistas assegurados em alguns capítulos constitucionais, como a proteção
de setores estratégicos da sociedade brasileira da ação do capital internacional e a extensão do
direito de greve aos servidores públicos federais, ou são derrubados pela reforma constitucional
subsequente, a exemplo do primeiro, ou nunca são regulamentados, a exemplo do segundo.
Avanços reais coube às instituições criadas a partir de então e/ou que teve suas atribuições e
composição de quadros redefinidas, como os Procons e os Ministérios Públicos, operadores de
uma verdadeira ‘revolução silenciosa’ na sociedade. ‘Revolução’ atualmente ameaçada pela
chamada ‘lei da mordaça’.
Nos anos 90, ocorrem rupturas em relação às políticas iniciadas nos anos 30 e
redefinidas em alguns aspectos na segunda metade dos anos 50, como o papel do Estado
enquanto agente produtivo e regulador e a proteção da indústria e mercado interno. Tem início
uma política macroeconômica no sentido de, por um lado, eliminar a articulação instável do tripé
da industrialização brasileira iniciada no final dos anos 50 e, por outro, assegurar uma profunda
desnacionalização da economia brasileira. Esse duplo objetivo é alcançado por meio da
privatização do setor público, sob liderança do capital financeiro internacional e participação
subalterna de grandes capitais privados locais, e da aquisição de grandes monopólios privados
locais por corporações internacionais de atuação globalizada.
Configura-se uma processualidade, cuja direção tem sido a eliminação de uma burguesia
local com interesses contrários ao capital financeiro internacional e, ao mesmo tempo, a
transferência dos espaços econômicos fundamentais dentro do país em favor desse capital.
Política conduzida do ‘alto’ do Estado e dirigida pela tecnocracia, agora renovada por meio de
quadros formados nas instituições universitárias norte-americanas e de trânsfugas da esquerda
brasileira (Saes, 1999, p. 118 e 119).
De 1930 a 1990, tanto os regimes articulados sob a forma democrático-burguesa quanto a
forma autoritária, não restringem e/ou não podem restringir os regimes políticos às
recomendações clássicas do liberalismo político e econômico. Direitos são assegurados em lei
por meio de lutas sociais como os direitos previdenciários, o contrato indeterminado de trabalho,
entre outros.
Nos anos 90, em uma conjuntura desfavorável às lutas sociais, presenciamos uma
mudança também nesse plano. Esse processo decorre da progressiva identificação e nivelamento
dos regimes políticos democrático-burgueses ao propugnado pela teoria liberal, ou seja, remover
leis e instituições, fruto de lutas e pressões sociais, que objetivamente representam obstáculos à
hegemonia política burguesa e ao livre mercado. Efetivamente essa realidade tem redundado na
114
precarização do mundo do trabalho - na forma do avanço do desemprego estrutural, do
subemprego, da eliminação de direitos trabalhistas, etc. - no aprofundamento das desigualdades
sociais - na forma do distanciamento econômico entre as classes sociais, exclusão e
marginalização de amplos setores sociais, etc. - e no esvaziamento das funções do Estado - na
forma do sucateamento de serviços sociais básicos como saúde e educação, restrição de
programas sociais, redução/restrição do sistema previdenciário, etc.
Já em relação ao padrão sócio-cultural calcado em aspectos como o individualismo e o
consumismo, típicos do ‘American way of life’, é incorporado um irresistível processo de
coisificação e banalização do mundo e a cultura do descartável. A esse quadro se agrega, em
certa medida como desdobramento dele mesmo, a crise de instituições que secularmente
concorrem para a modelagem da sociedade brasileira, como a família, a igreja e a escola.
Uma perspectiva materialista vulgar, individualista e presentista de tempo e sociedade,
amplamente desenvolvida nos anos 90, tem concorrido para restringir o envolvimento de
membros do mundo do trabalho, da juventude e da intelectualidade com projetos sociais
coletivos orientados na direção da construção de uma sociedade justa e democrática.
Estado e rebeldia popular
A formação e o desenvolvimento do Estado escravista moderno no Brasil é contestado
inúmeras vezes. A luta indígena, ao longo de grande parte do período colonial, resistindo à
conquista portuguesa e/ou a classe senhorial e escravista, representa a luta pela defesa da
liberdade do grupo tribal. Representa, também, a luta pela defesa da vida tribal contra o Estado,
ou seja, a defesa de uma sociedade organizada sem o Estado e contra o Estado – ou a qualquer
outra forma de poder que se sobrepusesse aos membros da comunidade.
A resistência negra, na forma dos quilombos, e a insurreição pernambucana de 1817, por
sua vez, representam exemplos de lutas de classes e grupos sociais, resistindo à sociedade e
Estado escravista moderno. Prefiguram, de forma mais ou menos elaborada em termos formais,
um projeto de sociedade construído sobre novas bases.
A derrota das classes e grupos sociais dominados é uma pré-condição para a manutenção
do caráter geral assumido pela sociedade e Estado escravista moderno. Os conflitos e
contradições, no contexto de uma sociedade cuja modalidade de dominação social são extraeconômica, não possui mediações típicas de uma dominação centrada sobre bases consensuais.
Em uma sociedade que é escravista, o poder não poderia buscar uma legitimidade junto
às maiorias sociais a partir da conformação de uma subjetividade que se reconhecesse como
115
parte de uma racionalidade intrínseca dessa sociedade e na qual os indivíduos encontrassem uma
perspectiva de conciliação dos seus interesses privados no seu interior. Na medida em que as
maiorias sociais são compostas de escravos, a dominação somente poderia ser direta e ostensiva,
o que demanda, de um lado, um Estado de função estrita e, de outro, a violência como método de
contenção da resistência e da rebeldia.
O caráter da sociedade e do Estado escravista moderno no Brasil é suavizado por Gilberto
Freyre em Casa Grande e Senzala, obra responsável pela mais mitológica das imagens de um
Brasil tolerante. O conservadorismo político de Freyre é acompanhado da visão da escravidão
proporcionando uma herança positiva. Essa visão é consolidada com a tese de que os negros
acabam por colonizar os brancos, ou seja, que a cultura encarcerada nas senzalas,
metaforicamente falando, teria invadido a casa grande. Essa imagem do Brasil, na ótica de
Gilberto Freyre, seria completada com o seu mito da democracia racial brasileira.
Historiadores e sociólogos aglutinados em torno de Caio Prado Júnior e Florestan
Fernandes conduzem uma severa crítica a Gilberto Freyre. As pesquisas trazem à luz a dureza da
escravidão, a herança do escravismo no nosso tempo e a vitalidade do preconceito racial contra
os negros e possuidores de ascendência africana. Gilberto Freyre é colocado em xeque
(Gorender, 1990, p. 14).
A atual retomada de Gilberto Freyre nos meios acadêmico e intelectual pretende
relativizar o que historicamente representam a sociedade e o Estado escravista moderno no
Brasil, bem como a herança recebida pela sociedade brasileira. A brutalidade da escravidão e o
legado perverso deixado pelo escravismo dão lugar à cumplicidade entre brancos e negros, à
tolerância cultural, às intercomunicações raciais, etc. Expressam, enfim, a forma requintada do
pensamento conservador, cujo objetivo, obviamente, não se encontra no passado, mas no
presente, na busca por ‘reconhecer’ e ‘compreender’ a identidade da ‘nação’ brasileira, a sua
cordialidade, a sua tolerânçia, a sua alegria, etc.
A formação e desenvolvimento da sociedade e Estado burguês no Brasil também são
contestados inúmeras vezes. A luta de Canudos, o movimento anarco-sindical do início do século
XX, as Ligas Camponesas dos anos 50, são exemplos dessas contestações. A manutenção do
caráter geral assumido pela sociedade e Estado burguês no Brasil, caracterizado pela
dependência e subalternidade de um capitalismo periférico, também pressupôs a derrota das
classes e grupos sociais dominados. Essas derrotas, contudo, não são o resultado de uma ação
unicamente coercitiva, como no passado colonial e imperial.
A relação estabelecida entre Estado e sociedade, após a revolução política de 1889-1891,
é mais complexa. Esse Estado, ao fundar-se sobre princípios universalistas, edifica-se,
116
formalmente, como uma instituição de representação geral e que poderia ser composta por
qualquer cidadão, independentemente da sua condição social ou concepção de mundo. O Estado
não se apresenta como aparelho de coerção diretamente identificado com a classe dominante e
com estrito papel repressivo.
O Estado universalista proporciona, formalmente, condições para uma dominação sobre
bases predominantemente consensuais, ou seja, coerção revestida de hegemonia. Por meio de
aparelhos públicos e privados de hegemonia como, respectivamente, a escola e os meios de
comunicação de massa, a concepção de mundo e valores burgueses, transfigurados de universais
e naturais, seriam estendidos sobre toda a sociedade e moldariam a subjetividade dos grupos
sociais subalternos.
Desde a formação do Estado universalista ocorre, contudo, uma enorme distância entre os
princípios liberais universalistas, de um lado, e a sua legalidade restritiva e prática política, do
outro. Durante a vigência do regime liberal oligárquico, por exemplo, está presente uma
dimensão abertamente coercitiva que se sobrepôs à dimensão consensual, como os métodos e
práticas do sistema político-eleitoral, a questão operária então tratada como um caso de polícia,
entre tantas outras formas. A universalidade do Estado em diversos regimes políticos autoritários
posteriormente articulados, como o do Estado Novo e o regime militar inaugurado em 1964,
fundamentalmente quase que se reduz a uma dimensão estritamente formal. O próprio regime
liberal-democrático, de caráter conservador e inaugurado com o fim da ditadura militar, possui
na tutela militar um dos seus principais alicerces.
A história brasileira não possui exemplos de projetos e processos oriundos da classe
dominante ou do Estado burguês no sentido de redistribuir propriedade e poder. O Estado
universalista no Brasil, por sua vez, não é fruto de uma hegemonia burguesa previamente
construída e sobre a qual se legitimasse. Finalmente, a superexploração de grandes massas
populares, a exclusão social, o monopólio sobre propriedade, entre outros processos, não
proporcionam grandes reservas políticas e ideológicas para uma dominação de classes estável e
um campo favorável para a sedimentação de uma subjetividade profundamente marcada pela
naturalização e resignação. Esse contexto, conforme demonstramos, dá nos diversos exemplos de
lutas de resistência e, não raramente, de rebeldia popular.
A dominação de classes no Brasil contemporâneo convive, enfim, com uma instabilidade
intrínseca. Esse é o quadro que, em última instância, determina a centralidade que o papel da
força ocupa nessa sociedade e nesse Estado, em especial quando a intervenção política das
classes e grupos sociais subalternos ultrapassa limites sociais e institucionais pré-estabelecidos.
117
A Necessária Desconstrução dos Mitos
A colonização brasileira, efetivamente, começa pelo menos um século antes da
colonização dos Estados Unidos e do Canadá, o que demonstra que não somos um povo jovem.
Possuímos uma das histórias nacionais mais violentas e opressoras do mundo moderno, o que
desautoriza o pretenso caráter de povo tolerante e cordial. O autoritarismo presente nas nossas
relações sociais está inscrito no nosso cotidiano, o que evidencia quão distante nos encontramos
de ser uma sociedade verdadeiramente democrática.
Responsabilizar unicamente a colonização portuguesa ou a herança colonial pela tragédia
revivida no nosso cotidiano, ou seja, enquanto uma herança da espoliação externa é, no mínimo,
um mito e uma grande falta para com a verdade histórica. A condição de uma sociedade formada
para o “outro” é posta e reposta ao longo de 500 anos, sendo o Estado um instrumento
estratégico nessa direção. Essa condição social ocorre de forma mais ou menos contraditória, por
meio da convergência de interesses entre a classe dominante local e os interesses internacionais.
A história brasileira não nos deixa dúvidas: essa comunhão de interesses operou e opera em
detrimento das maiorias sociais.
A (re)criação dos referidos mitos (e de outros tantos) presta-se a escamotear o fato de que
não compomos uma nação. Formamos uma sociedade enquanto um amálgama de classes e
grupos sociais profundamente diferenciados, no âmbito do qual o mundo do trabalho encontra-se
submetido a diversos níveis e formas de exploração econômica, de dominação política e de
opressão ideológica.
A construção da nação, entendendo por tal uma sociedade integrada, democrática e
participativa, constitui-se em uma possibilidade histórica. A sua efetivação está na direta
proporção da mobilização da maioria dos membros do mundo do trabalho, em aliança com
outros setores sociais, tendo em vista romper com a condição de povo formado para o ‘outro’,
conformando-se enquanto um povo formado para ‘si’ – conquistando participação democrática e
consciente das possibilidades históricas que se abrirão, tendo em vista a construção de um
projeto de sociedade alternativa à sociedade atual - e para ‘todos’ - sendo parte da construção de
um novo projeto civilizatório para a humanidade.
A construção da nação para ‘si’ e para ‘todos’ certamente não poderá aguardar um grande
projeto alternativo de sociedade e/ou o grande dia para a sua efetivação. Nem poderá tão
somente conceber o Estado e o governo como alvos. A construção da nação, nos termos aqui
propostos, passa pelas escolhas que realizamos em nosso cotidiano. Essas escolhas poderão
repor/ampliar as estruturas (sociais, econômicas, políticas e culturais) herdadas do nosso
118
processo histórico ou construir estruturas a partir de outras bases.
Somente por meio da mediação de uma práxis verdadeiramente democrática, libertária e
ética, desenvolvida no âmbito das relações de gênero, de etnia, de entidades e movimento
sociais, etc., é que poderemos transformar a realidade nacional e mundial. Boas escolhas e
práticas é um bom começo...
119
8. PADRÃO DE ACUMULAÇÃO CAPITALISTA NO BRASIL DO
SÉCULO XX
8.1. Introdução
O desenvolvimento das forças produtivas e o surgimento de novas relações sociais ao
longo da história do Brasil do século XX, tomam como base a articulação mais geral que
orientou a sua relação no contexto da reprodução ampliada do capital. Desde logo cabe
evidenciar que os próprios elementos que comandam essa relação eternizam o caráter geral da
sociedade brasileira, qual seja seu papel dependente e subalterno no contexto da divisão
internacional do trabalho.
A intermediação comercial e financeira externa, a dependência tecnocientífica, a
exploração irracional e extensiva dos recursos naturais e da força de trabalho... impossibilitam
uma plena acumulação de capital, que se completa em grande parte externamente. O Brasil,
como Estado da “Periferia”, transforma-se numa “galinha dos ovos de ouro” do imperialismo.
O desenvolvimento das forças produtivas não adquire no Brasil um sentido radical e
desestruturador das antigas relações de produção. É um processo gradual e de preservação
transitória de determinadas relações pré-capitalistas de produção e/ou modernização
conservadora, de acordo com uma lógica de superação/conservação. Essa é a dinâmica que
preside contrastes como a existência de grandes conglomerados industriais e o tradicionalismo
agrário em vastas regiões, ou a modernização estrutural e a marginalização social e
superexploração de amplas camadas da população.
Finalmente, o quadro geral da sociedade brasileira é fechado através da modernização
conservadora das instituições e do tradicionalismo cultural. O progresso material combinando
velhas e novas estruturas, reflete ao nível superestrutural frustrando a participação popular e
instalando amplos mecanismos coercitivos.Os processos de coerção extra-econômicos
necessários à forma concreta em que as relações de capital assumem no Brasil, condicionam
sobremaneira as relações entre a sociedade política e a sociedade civil, definindo o caráter
intervencionista e autoritário do Estado.
Progresso sem desenvolvimento, redefinições institucionais que não alteram o caráter
conservador delas próprias e contradições no interior das classes dominantes com soluções
pactuadas – com ou sem ruptura de hegemonia – é o bastante para expressar o movimento de
contra-revolução permanente em curso no Brasil contemporâneo.
120
Essas características presentes na História do Brasil, especialmente ao longo do século
XX, não serão objeto de análise na sua totalidade. Apenas no que toca às relações que estas
características assumem com a industrialização do país, elemento determinante no interior dos
padrões de acumulação capitalista implementado após a Revolução de 30. Nosso objetivo é
estabelecer a relação assumida historicamente entre industrialização e padrões de acumulação
capitalista, da década de 30 à década de 80.
O nosso quadro metodológico terá como base de apoio o método marxista, expresso
claramente nas fontes bibliográficas recolhidas. A construção da reflexão se apoiará no esquema
da reprodução ampliada proposto por Marx, onde a reprodução é estudada a partir das relações
entre dois Departamentos da economia, o produtor de bens de produção e o produtor de bens de
consumo. Contudo, adotaremos o modelo teórico utilizado no cerne dos trabalhos de Michal
Kalecki (1) , que efetua uma subdivisão no Departamento de bens de consumo proposto por Marx,
e que assume a seguinte divisão: Departamento I, produtor de bens de capital ou de produção,
incluindo os bens intermediários que também são capital constante; Departamento II, produtor de
bens de consumo não duráveis ou imediatos; e Departamento III, produtor de bens de consumo
duráveis.
8.2. Reorganização da Cafeicultura e Industrialização
A crise do sistema de trabalho escravo atinge o seu ponto mais elevado nos anos 80 do
século XIX. A crise e a abolição se desenvolvem no justo momento da expansão acelerada do
mercado mundial do café, quando o Brasil se transforma no seu maior fornecedor.
Enquanto outras atividades, também em expansão, priorizaram a migração interna, como
a borracha e o cacau, a cafeicultura buscou na imigração européia a transição do trabalho escravo
para o livre. Italianos, espanhóis e portugueses, formam as novas massas de trabalhadores do
complexo cafeeiro. Este processo se desenvolve após algumas iniciativas particulares, com o
Estado financiando o deslocamento dessas massas imigrantes, das campanhas publicitárias às
passagens transatlânticas. Novamente o Estado, a serviço da oligarquia rural, cria o sistema de
trabalho dominante e o trabalhador, como os antigos Estados português e imperial haviam
desenvolvido o sistema de trabalho escravo.
O mercado de mão-de-obra livre, assalariada – trabalhadores do complexo cafeeiro como
ferroviários, ensacadores portuários, empregados das casas de comércio e bancos, etc – e a semi(1)
Michal Kalecki. Teoria Da Dinâmica Econômica – Ensaio Sobre As Mudanças Cíclicas E A Longo Prazo Da
Economia Capitalista. Citado por Francisco de Oliveira, página 77, 1980.
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assalariada – os trabalhadores representados pelos colonos, cujo meio de vida é adquirido via
pequeno salário e renda da terra – formam potencialmente um mercado de consumo em
expansão. Este mercado pode-se ampliar em função de acontecimentos conjunturais, como a
disputa pelas correntes imigratórias junto aos Estados Unidos e Argentina, as greves de colonos e
ferroviários, e outros, tendendo a elevar os salários e rendas dos trabalhadores do complexo
cafeeiro.
A massa imigrante é sempre superior às necessidades da cafeicultura, proporcionando um
intenso movimento destas populações para outras atividades e regiões, ampliando e
diversificando o mercado. Não menos importante na conformação do mercado são os
trabalhadores das atividades em expansão, como o cacau e a borracha, os pecuaristas e as
“indústrias” da charqueada, da manteiga, e outros.
Nas atividades concorrentes à cafeicultura, predominam em geral as relações de produção
pré-capitalistas, mas integram a sua força de trabalho no mercado como consumidores. O
querosene, tecidos, sal, óleo, calçados, ferramentas simples...; são artigos necessários e que
podem ser oferecidos pelo sistema de manufatura. Uma infinidade de mercadorias para o
abastecimento do mercado interno, passa a ser produzida progressiva e constantemente no plano
interno. Geralmente aqueles que se encareciam em demasia com o transporte e tarifas
aduaneiras. Não podemos também negligenciar o fato de que uma parcela considerável das
mercadorias simples, não se constitui em grande interesse de produção de um sistema capitalista
internacional monopolizado e que possui nos bens de capital o centro dinâmico da sua estrutura
produtiva.
O mercado é uma das conseqüências da abolição/política imigratória. Mas há outras não
menos importantes. A vinda dos trabalhadores braçais, embora majoritários, não pode nos levar a
desconsiderar a mão-de-obra especializada imigrante. Artesãos e mecânicos desalojados pelas
novas indústrias, contabilistas e administradores desempregados pela contração econômica e
falência de milhares de unidades produtivas com a depressão de 1873/75 na Europa, e outros
processos, proporcionam uma força de trabalho de alta qualidade técnica para o Brasil do
período, fator essencial para uma industrialização.
Vêm ainda os pequenos capitalistas aventureiros, ansiosos por reproduzir os seus capitais.
Estes se articulam prioritariamente à oligarquia e exportadores, montando atividades
complementares à produção agro-pecuária, como moinhos de trigo, indústrias de banha,
beneficiamento da produção agrícola voltada para o mercado interno. Esses pequenos capitalistas
imigrados se transformam em grandes capitalistas, especialmente pelo contraste do
desenvolvimento das forças produtivas, por exemplo, entre o eixo Rio – São Paulo – Minas e o
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Norte da Itália. E se credenciam com certa facilidade para representar bancos e capitalistas que
possuíam, ou pelo menos interessam-se em estabelecer relações econômicas com o Brasil. Dessa
forma viabilizam capitais novos, sempre muito importantes para a industrialização local.
A industrialização em curso, especialmente a partir do início desse século, assume a
condição de substituição de importações de mercadorias simples. Evidentemente, somente pode
apresentar este caráter, na medida que a industrialização se encontra avançada em diversos
países, controlando as relações econômicas internacionais em bases monopolistas e imperialistas.
Essa industrialização não obedece a um planejamento de Estado e nem é totalmente
beneficiária das transformações no interior do processo de reprodução material da sociedade.
Quanto ao “ponto de chegada”, não há nada bem definido para os industriais emergentes, a não
ser mais ao final da República Velha, quando o acirramento das contradições entre um padrão
agrário dominante e um padrão industrial em desenvolvimento, conduzem a um ponto de
ruptura.
8.2.1. A Formação do Assalariado Urbano
A formação do assalariado urbano, especialmente da mão-de-obra industrial, será um
efeito secundário da própria estrutura do trabalho da cafeicultura. A imigração é sempre muito
superior às necessidades do complexo cafeeiro, fornecendo um gigantesco excedente de força de
trabalho, com intensos deslocamentos internos, no campo e deste para as cidades, gerando um
enorme estoque de força de trabalho integrado no processo produtivo urbano ou como exército
industrial de reserva.
Fator importante na constituição dessa força de trabalho é a própria estrutura da terra e a
dificuldade dos colonos e população nativa livre, de ter acesso a ela. A Lei de Terras se
constituiu historicamente num preciosíssimo instrumento da separação dos produtores dos meios
de produção, proporcionando uma carência de terras às famílias que potencialmente podem se
transformar em pequenos proprietários.
A condição de um bem natural restrito pela Lei de Terras e de capital acumulado após a
derrubada das matas e preparação das terras para a atividade agrícola, determinará uma elevação
do seu valor, o que significará um obstáculo aos colonos para a sua aquisição. Warren Dean
(2)
indica que um grupo de 6 pessoas que compõem o número médio da família colona, necessitaria
de 41,3 hectares para obter os seus meios de vida, através de uma agricultura comercial familiar-
(2)
Warren Dean, Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura, 1820-1920, pág. 180, 1971.
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policultora e da produção doméstica de valor de uso. O valor médio desses hectares gira na
ordem de 6.090 mil reis, o que corresponde a aproximadamente 12 anos de trabalho, acumulado
na forma de salário de uma família média. Mesmo as terras cansadas pela exploração intensiva
do café, não teriam valor muito menor, o que evidencia o enorme obstáculo à aquisição de terras.
A incorporação na indústria é muito provável à família deslocada do campo para a
cidade. Ambientada na produção doméstica de bens de uso e com certos conhecimentos na
manipulação de máquinas, por um lado, e uma relação positiva para com o trabalho,
diferentemente de uma cultura negativa para com o trabalho muito presente na população nativa
emergente do sistema monocultor-escravista, por outro lado, amadurecem as condições básicas à
rápida emersão das relações de produção e sociais tipicamente do capitalismo e da sociedade
burguesa no meio urbano.
A mão-de-obra migrante, por outro lado, será pouco incorporada na produção industrial,
em que pese o seu número muito superior quando comparada à população imigrante. No campo,
a mão-de-obra nativa é utilizada no desmatamento, preparação da terra, plantio e
acompanhamento do café até o início da sua produção, quando é substituída pelo colono. Nas
cidades eles formam potencialmente um exército industrial de reserva. Na verdade são
marginalizados sociais ocupados em atividades secundárias e pré-capitalistas, como pequeno
comércio e ambulantes, ou assalariados braçais de pouco nível técnico e submetidos a uma
divisão social de trabalho simples, como estivadores e pedreiros. Poucos comporão, até 1930, a
classe operária brasileira da nascente indústria.
São Paulo é a cidade recebedora do maior contingente de colonos deslocados do campo.
A super oferta de mão-de-obra pressiona para baixo os salários, o que os coloca num nível
comparativo extremamente desigual ao custo de vida. A incorporação das mulheres e crianças é
uma constante, especialmente pela sua “docilidade” e menor salário.
Inicialmente o capital possui uma liberdade quase total na exploração do trabalho. A
inexistência de qualquer dispositivo institucional limitativo da exploração capitalista, as
dificuldades de comunicação entre os vários idiomas e dialetos dos imigrantes, somado ao seu
individualismo na perspectiva da acumulação de dinheiro rápido para aquisição de pequena
propriedade rural ou urbana, atrasará a construção dos instrumentos de resistência da classe
operária.
Lentamente, contudo, as greves e outras formas de luta começam a ocorrer. Algumas de
longa duração e com elevados índices de organização, articulados fundamentalmente em torno
de melhorias das condições de trabalho e de remuneração e a luta pela sindicalização. As
movimentações operárias apresentam poucos resultados positivos. As poucas vitórias,
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geralmente, foram seguidas pelo não cumprimento das reivindicações conquistadas. As greves
são brutalmente reprimidas, os sindicatos não são reconhecidos e não se regulamentam as
condições de trabalho.
A elevação do movimento operário pós-primeira guerra mundial, na Europa, influenciará
decisivamente o movimento operário no Brasil. A direção anarquista buscará a radicalização do
movimento com base num programa reivindicatório e independência de classe. Fenômeno
especialmente importante nesse período é a Revolução de Outubro na Rússia Czarista e o seu
significado político. Entretanto, não é suficiente para impedir a tendência de longa depressão do
movimento operário iniciado nos anos 20, em que pese elevações conjunturais de luta e
organização como o bloco operário-camponês, patrocinado pelo PCB ao final dos anos 20.
A recomposição interna da classe operária com o gradual e constante aumento da
população nativa no seu interior, fruto da migração, interrupção da imigração estrangeira e
transformações do sistema produtivo, acentuará a tendência de depressão política e organizativa.
8.2.2. Da Manufatura à Indústria: A Difícil Transição
A separação dos produtores dos meios de produção funda as condições básicas para a
instalação de um sistema de produção de mercadorias flexível à transição/consolidação ao
capitalismo, especialmente porque acompanhado de diversos fatores dinamizadores de um
processo de diferenciação econômica interno ao sistema produtivo.
Contudo, ao final do século XIX as mudanças evidenciam os seus próprios limites. A
ruptura da ‘autarquia do latifúndio’ é reprimida, a circulação da produção e o mercado se
ampliam lentamente e o controle dos meios de troca pela oligarquia via barracões, coronelismo e
outras formas, não viabiliza uma grande descentralização das rendas. No que toca ao meio
urbano, espaço privilegiado para o processo de industrialização, o quadro não pode ser diferente.
Ela carece de máquinas e equipamentos, uma força de trabalho com a virtuosidade a ser
transferida para o capital e um mercado ampliado.
O surgimento de uma enorme população para o capital não se constitui em fator decisivo
para a industrialização. Não há uma subordinação do campo à cidade oriundo de um
aprofundamento da divisão social interna do trabalho. O mercado da indústria é quase tão
somente a cidade – “cidades dentro de fábricas”, no dizer de Francisco de Oliveira
(3)
. A
conjugação dos elementos conduz a uma elevação do capital constante a níveis que
(3)
F. de Oliveira, op. cit., págs. 25 e 26.
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comprometem a reprodução do valor da indústria. É, portanto, compreensivo o fato de que,
mesmo em conjunturas de câmbio baixo, os setores industriais não disporem de recursos para a
importação considerável de bens de capital. A “industrialização” não haveria de superar uma
condição medíocre...
A indústria na República Velha, em geral, se assemelha mais a um sistema de
manufaturas com adoção de algumas poucas máquinas e uma primária divisão social do trabalho,
do que exatamente a um sistema fabril. Exceção apenas aos ramos de produção articulados na
perspectiva de reelaborar as matérias-primas geradas pela produção agropecuária, voltada
basicamente para o mercado interno, como o têxtil e alimentar. Estes ramos são responsáveis
pela maior concentração de capitais, tendo como conseqüência recursos tecnológicos superiores
aos demais e uma divisão social do trabalho mais profunda.
Os quadros a seguir
indicados por Simonsen
(4)
baseados em censos estatísticos
realizados na República Velha, sugerem estas constatações acima indicadas:
ANO DE 1889
SETORES INDUSTRIAIS
DISTRIBUIÇÃO DE CAPITAL
Indústria Têxtil
60%
Indústria de Alimentação
15%
Indústria Química e Análogos
10%
Indústria de Madeira
04%
Indústria Vestuário e Objetos de Toucador
3,5%
Indústria Metalúrgica
03%
O censo indicado por Simonsen aponta um total de 636 estabelecimentos industriais, ou
seja, aqueles que se diferenciam da tradicional manufatura, empregando 54.169 operários no
Brasil.
Poucas modificações em termos de caráter e natureza do processo de industrialização
ocorrem nas três décadas seguintes. Na verdade, a reprodução do capital se desenvolve nas
mesmas bases, convivendo agora com uma acentuada acumulação quantitativa proporcionada
pela proliferação de um grande número de pequenas unidades industriais, graças à Primeira
Guerra Mundial e as crises subseqüentes ao seu término. Se essas conjunturas dificultam a
importação de máquinas e equipamentos, radicalizam no mercado interno a necessidade de
mercadorias que não mais chegam na quantidade necessária.
O censo de 1920, também indicado por Simonsen (5) fundamenta esta afirmação:
126
ANO DE 1920
SETORES INDUSTRIAIS
DISTRIBUIÇÃO DO CAPITAL
Indústria de Alimentação
40,2%
Indústria Têxtil
27,6%
Vestuário e Toucador
8,2%
Simonsen localiza 13.336 estabelecimentos industriais, empregando 275.512 operários.
Paul Singer
(6)
chama a atenção para o fato de que os censos indicados por Simonsen devem ter
apresentado uma tendência de ampliação do número de instalações “industriais” analisadas; do
contrário, ocorre uma diminuição do número de operários por unidade produtiva, o que seria
contraditório ao processo de acumulação de capital e aprofundamento da divisão social interna
do trabalho, que embora sofrendo processos repressores, segue lenta e constantemente o seu
curso. É correto concluirmos ainda que as indústrias propriamente ditas, desenvolvidas a partir
das manufaturas, cumprem um inevitável papel de desorganização competitiva das últimas,
incorporando crescentemente capital e mercados neste processo de diferenciação produtiva, o
que os censos não captam de forma transparente.
A industrialização substitutiva convive em geral com uma dupla dificuldade: a distanciar
inexistência de uma extensa política de proteção às indústrias nacionais e um mercado interno
pouco integrado. No Brasil não há de ser diferente.
As barreiras alfandegárias existentes emergem nas políticas do Estado oligárquico, menos
pela capacidade de pressão dos segmentos industrial manufatureiros e mais pelo caráter
contraditório do próprio Estado. As tarifas aduaneiras são a principal fonte das receitas do Estado
para financiar e ampliar o seu sistema político-administrativo clientelístico e modernizar
estruturas militares, por um lado, e cumprir os encargos financeiros da intermediação comercial e
financeira externa e a reiteração agro-exportadora, como cobrir serviços da dívida externa
contraídas para a instalação da infra-estrutura do complexo cafeeiro ou refinanciar a própria
dívida, financiar a produção agro-exportadora nos períodos de plantio, colheita e
comercialização, e outros fins, por outro lado. As tarifas aduaneiras em geral são baixas, não se
constituindo uma política protecionista ao setor industrial e/ou manufatureiro em condições
normais.
(4)
Roberto C. Simonsen, A Evolução Industrial do Brasil, citado por Paul Singer – Interpretação do Brasil: Uma
experiência Histórica de Desenvolvimento, pág. 213, 1985.
(5)
Roberto C. Simonsen, citado por Paul Singer, op. cit. pág. 213.
(6)
Paul Singer, op. cit., pág. 213.
127
Entretanto, em conjunturas especialíssimas as tarifas aduaneiras podem contribuir para o
processo de industrialização. Nas conjunturas de crise do capitalismo internacional, há a retração
do mercado internacional e, conseqüentemente, a demanda externa do café e outros produtos de
exportação. Contudo, os custos financeiros do endividamento externo continuam pressionar a
economia, obrigando o Estado a elevar tarifas aduaneiras e baixar o câmbio, ou seja, ampliar o
recolhimento de divisas via elevação das taxas de importação, mas compensando a entrada das
importações pelo barateamento do processo de transformação da libra em mil – réis. Em geral e
de início, este processo contribui com a importação de bens de capital, especialmente se estes
produtos assumem encargos tarifários mais baixos.
A depender da profundidade da crise, estes processos não são suficientes para suprir os
custos financeiros externos, o que obriga o Estado a tomar um dupla iniciativa: emitir moedas e
lançar títulos da dívida pública no mercado. Dessa forma e contraditoriamente aos interesses dos
cafeicultores, o Estado amplia a quantidade de meios de pagamento no mercado (o que o
expande e facilita o movimento de trocas), funda um processo de financiamento interno da
produção ocupando temporariamente parte do processo desenvolvido externamente, amplifica a
acumulação de capital e aprofunda a divisão social interna do trabalho, junto ao sistema de
produção de mercadorias.
Esse quadro conjuntural não nos pode conduzir a uma superestimação do papel do Estado
no processo de industrialização. Primeiramente, na medida em que os processos de
financiamento internos através da emissão de moedas e títulos da dívida pública, fundam uma
elevada inflação provocada pela superabundância dos meios de pagamento no mercado, o que
determina como conseqüência elevação dos preços das mercadorias importadas, retornando ao
ponto inicial da conjuntura da crise com retração das importações – o que em princípio
interessava ao sistema industrial-manufatureiro, dificultava a importação dos bens de capital. Em
segundo lugar, ao comércio internacional voltar à normalidade, o Estado oligárquico volta a
reestabelecer as bases da antiga política econômica, adotando inicialmente uma política
contracionista e retirando os excessos de moeda do mercado, reestabelecendo índices tarifários
baixos, elevando o câmbio e equilibrando os níveis de inflação. Se, com a conjuntura de
desequilíbrio da divisão internacional e interna do trabalho, o processo de avanço do modo de
produção de mercadorias sofre dificuldades, com o reestabelecimento da normalidade seriam
ainda maiores.
O Estado da República Velha, oligárquico, socializa os prejuízos da cafeicultura entre
todos os demais ramos da economia através de uma política fiscal que recolhe renda nos diversos
setores e a transfere para cumprir os custos financeiros externos do setor agro-exportador. Um
128
reflexo do conteúdo autofágico do sistema, determinado pela intermediação comercial e
financeira externa e pela reiteração agro-exportadora.
Outra dificuldade da industrialização substitutiva reside na inexistência de um mercado
nacional integrado.
Salvo as estradas de ferro e embarcações costeiras, geralmente localizadas nas áreas de
atividade agro-exportadora, poucos são os meios de transporte e comunicação. Os muares e os
carroções de bois ainda são o que de mais avançado existia em diversas regiões. Mas as novas
relações avançam lentamente, unificando os mercados fragmentados e estabelecendo as divisões
regionais de trabalho, subordinados aos centros de expansão das relações capitalistas de
produção – as cidades “industriais”.
Ao final dos anos 20, a produção industrial se encontra majoritariamente organizada
como produção simples de mercadorias. O que podemos chamar de indústria, na verdadeira
acepção da palavra, é algo pouco diferenciado no interior do sistema de beneficiamento e
transformação da produção primária. Os próprios ramos de maior concentração de capitais e
força de trabalho, como o têxtil e o alimentar, não chegam a proporcionar grandes unidades se
tomados para comparação os padrões modernos. Nem tão pouco se desenvolvem de forma
autônoma ao setor hegemônico, representado pela agro-exportação.
A industrialização por substituição de importações não pode ser concebida como
decorrência da conjuntura internacional, comprometedora em diversos momentos das relações
comerciais internacionais. Nem tão pouco como conseqüência secundária da reorganização da
cafeicultura, em que pese importantes fatores proporcionados por esta atividade. Ela é reflexo do
conjunto de transformações por que passa a sociedade nacional em transição do trabalho escravo
para o livre, no contexto de uma crescente inserção no mercado internacional. O processo é
contraditório. E tal como um “ovo da serpente” a indústria se desenvolve sob a hegemonia do
setor agro-exportador. Lentamente vai se constituindo um processo de intermediação comercial e
financeira interna que já não pode ser removido, ampliam-se os meios de pagamento, consolidase uma população real para o capital, rompe-se crescentemente a ‘autarquia do latifúndio’ e
avança a divisão social interna do trabalho.
Em perspectiva histórica, a intermediação comercial e financeira externa e a reiteração
agro-exportadora reprimem o aprofundamento da divisão social interna do trabalho, e a formação
do mercado interno. Mas também, nesse ponto, o processo apresenta um sentido contraditório, na
medida que o próprio Estado estimula circunstancialmente o sistema de produção de mercadorias
como forma de suprir necessidades internas impossíveis de serem satisfeitas pela importação em
129
período de contração do comércio internacional e/ou para recolher parte do valor produzido pelo
setor industrial-manufatureiro a fim de cumprir custos financeiros.
Estrategicamente, a ruptura da contradição de um modelo agro-exportador gerador de
safras superiores às necessidades do mercado internacional e cujo valor-produto tende a cair em
decorrência desse processo em que pese a ação do Estado para mantê-lo elevado, e de um
sistema de produção de mercadorias em crescente ampliação, que ascendia a uma qualidade
superior na forma de uma nascente industrialização, era inevitável. Seu alvo fundamental é a
política do Estado.
A ruptura vêm com a crise depressiva iniciada em 1929 e a Revolução de 30. A definição
da política do Estado, numa frase de qual hegemonia, há de aguardar o Estado Novo, quando um
novo bloco dominante apoiado nos industriais, em setores oligárquicos prioritariamente voltados
para o mercado interno e numa nova tecno-burocracia, lançam as bases do novo padrão de
acumulação capitalista, agora tendo na industrialização o seu centro dinâmico.
8.3. Estado, Classe Operária e Padrão de Acumulação de 1930 a 54
O período de 1930 a 54 marca uma profunda virada na sociedade brasileira. O pano de
fundo das mudanças é a consolidação do capitalismo em bases industriais, ou seja, é o momento
da mudança qualitativa representado pela transferência do centro dinâmico da economia,
baseado no modelo agro-exportador, para a produção industrial; da circulação de mercadorias
pelo domínio da produção.
Este processo, no seu curso de desenvolvimento, há de resolver a contradição existente
entre uma base econômica que se diversifica e complexica tendo uma vasta formação de
indústrias de caráter semi-familiar, e um bloco dominante no aparelho de Estado, de base
oligarca, tendente a estancar tal processo, condição necessária para a reprodução dominante do
modelo agro-exportador baseado no café. Como as contradições que se formam na base da
reprodução material da sociedade somente podem ser resolvidas no plano da super-estrutura,
ocorre a Revolução de 30, na qual os novos grupos e classes sociais urbanas conseguem derrotar,
parcialmente, a oligarquia agrária.
De uma nova composição do aparelho de Estado decorre uma nova política de Estado.
Agora intervencionista e modernizadora, voltada a buscar a racionalidade e o planejamento
necessário ao processo de industrialização. Este objetivo é parcialmente conseguido pela tecnoburocracia localizada nos novos institutos, companhias, etc. De qualquer forma, a nova política
130
estatal dá conta de libertar o desenvolvimento das forças produtivas represadas pela
predominância da economia agro-exportadora.
8.3.1. A Revolução de 30 e o Surgimento do Estado Intervencionista
A Revolução de 30 já não é vista como conseqüência direta da crise de 1929. Alguns
estudos
(7)
têm demonstrado que os efeitos da crise de 1929 no Brasil seriam mais intensos a
partir de 32 a 33. Contudo, a Revolução de 30 marca uma vitória parcial dos novos grupos e
classes sociais emergentes sobre os setores dominantes da oligarquia rural.
O fundamental a ser observado é que os novos grupos e classes sociais emergentes
(novas classes médias, burguesia industrial, militares e proletariado industrial) entraram em
contradições de interesses com os grupos oligárquicos dominantes e possuem, além de projetos
de classe, força e organização para encaminhá-los. Isso também fica evidenciado nas
contradições de interesses que permeiam o bloco revolucionário de 30, dispondo os setores
políticos comprometidos com os interesses da fração de burguesia industrial, novas classes
médias e militares, com as oligarquias dissidentes, integrantes das forças revolucionárias.
A liquidação quase definitiva da oligarquia na composição do Estado ocorre entre 1935 e
37, com um chefe político oligarca na cabeça do Estado!
“A derrota da oligarquia permite um processo de redefinição de relações entre o Estado e
a sociedade, criando condições para o desenvolvimento do Estado burguês, como um sistema
que engloba instituições políticas e econômicas, e estimulando a produção de padrões e valores
sociais e culturais propriamente burgueses” (8).
A redefinição do papel do Estado na sociedade brasileira, no sentido de uma
modernização via processo de industrialização, exige por parte das frações dominantes no
aparelho de Estado, o fechamento do regime e o findar das formas de liberdades democráticas
que existem no regime oligárquico.
São criadas comissões, conselhos, departamentos, institutos, companhias, fundações e
formulam planos, que permitam o direcionamento da transferência do setor dinâmico da
economia para a indústria, ou seja, fornecem a base político-administrativa para sustentar o
processo de industrialização, particularmente favorecido pela crise comercial existente entre os
países industrializados e dependentes provocado pela crise de 29, que se desdobra em uma
década de recessão e na Segunda Guerra Mundial. Como destaca Octávio Ianni, foram criados
(7)
(8)
Edgar Carone, O Estado Novo (1937-1945), pág. 19, 1976.
Octávio Ianni, Estado e Planejamento Econômico do Brasil, páginas 25 e 26, 1986.
131
em “1930: Ministério do trabalho, Indústria e Comércio; 1931: Conselho Nacional do Café,
Instituto do Cacau da Bahia; 1932: Ministério da Educação e Saúde Pública; 1933:
Departamento Nacional do Café, Instituto do Açúcar e do Álcool; 1934: Conselho Federal do
Comércio Exterior, Instituto Nacional de Estatística, Código de Minas, Código de Águas, Plano
Geral de Viação Nacional, Instituto de Biologia Animal; 1937: Conselho Brasileiro de
Geografia, Conselho Técnico da Economia e Finanças; 1938: Conselho Nacional do Petróleo,
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), Instituto Nacional do Mate, Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (I.B.G.E.); 1939: Plano de Obras Públicas e
Aparelhamento de Defesa; 1940: Comissão de Defesa da Economia Nacional, Instituto Nacional
do Sal, Fábrica Nacional de Motores; 1941: Companhia Siderúrgica Nacional, Instituto
Nacional do Pinho; 1942: Missão Cooke, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(SENAI); 1943: Coordenação da Mobilização Econômica, Companhia Nacional de Álcalis,
Fundação Brasil Central, Usina Siderúrgica de Volta Redonda, Consolidação das Leis do
Trabalho, Serviço Social da Indústria (SESI), Plano de Obras e Equipamentos, I Congresso
Brasileiro de Economia; 1944: Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, Serviço
de Expansão do Trigo; 1945: Conferência de Teresópolis, Superintendência da Moeda e Crédito
(SUMOC), Decreto-Lei nº 7.666, sobre Atos Contrários à Ordem Moral e Econômica” (9).
Todas estas iniciativas tomadas pelo Estado e pelo Governo autoritário do Estado Novo
obedecem a estudos prévios, embora permeados de situações críticas ou problemáticas surgidas
ao longo do processo político e da evolução econômica do Brasil
(10)
. A transição do centro
dinâmico da agricultura de exportação para a indústria, onde a agricultura (e particularmente o
café) corresponde a mais de 60% das exportações, em um período dominado por uma crise
comercial internacional, quase que exige respostas imediatas e num quadro de acentuadas
contradições.
A política governamental se volta também no sentido de estabelecer uma nova relação
entre as classes sociais, particularmente a classe operária. Até 1930, o tratamento dado à questão
social pelo Estado oligárquico é a repressão direta aos movimentos operários e camponeses.
Algumas leis e decretos que, de alguma forma, atendem a interesses dos trabalhadores urbanos,
são encaminhados pelo Governo sob a pressão direta das greves. Contudo, após aprovados, não
recebem por parte do Estado aplicação (ou apenas temporariamente), servindo mais como
expediente tático com o objetivo de contornar os movimentos de maior envergadura.
(9)
Octávio Ianni, op. cit., pág. 35 e 36.
Ibidem, pág. 36.
(10)
132
A legislação trabalhista surge como um instrumento que objetiva sistematizar e
formalizar as relações políticas entre as classes sociais urbanas. Particularmente voltada para
pacificar as relações entre os vendedores e compradores da força de trabalho no mercado urbano,
carrega no centro da doutrina da paz social uma política de controle e dominação da atividade e
organização política do proletariado, esvaziando politicamente os sindicatos e incorporando-os
como formas de organização estatal.
O atendimento de reivindicações econômicas e políticas do operariado na forma da
Consolidação das Leis do Trabalho (C.L.T.), cumpre um importante papel junto à fração da
burguesia industrial, num processo de expansão e diferenciação da estrutura econômica
brasileira. Primeiramente, pela subordinação e controle das atividades sindicais pelo Estado e
pela fundação de uma burocracia sindical auto-reproduzida pelo imposto sindical. Mas também
por estabelecer os limites inferiores de exploração da força de trabalho pelo capital, cuja
tendência anterior aponta para uma pauperização excessiva da classe operária, o que gera uma
tensão que inviabiliza a formalização da oferta e demanda da força de trabalho no mercado,
como também gerar a própria incapacidade de reprodução da força de trabalho e, por
conseqüência, do sistema capitalista. As mobilizações sociais urbanas deixam de ser tratadas
como um caso de polícia, e passam a ser tratadas como uma questão social.
Paralelamente ao processo de criação de institutos, companhias, departamentos,
fundações, conselhos e de definição de uma política operária precisa e articulada, o Estado passa
a intervir através de um planejamento previamente estabelecido. Normalmente são
planejamentos de curto e médio prazo, compelidos por problemas e dilemas novos, e muitas
vezes, mais complexos.
A idéia e a prática da planificação passam a fazer parte da política econômica
governamental. A preocupação com a racionalidade administrativa, que se manifesta na forma de
companhias, institutos, etc, criados pelo Estado, gera novas condições para a formação e o
desenvolvimento de uma espécie de tecno-estrutura estatal no Brasil. “Integram-se nesse
processo o burocrata, o político, o militar e o burguês, tentados a intensificar os métodos de
racionalidade do aparelho de Estado. Particularmente importante para a efetivação do
planejamento estatal é o surgimento do assessor técnico, no serviço público e nas entidades
privadas, chamados a aplicar métodos que proporcionem a racionalidade capitalista. A ação
desses elementos se revelaria capaz de contrabalançar em boa medida o relativo fracasso das
reformas do aparelho administrativo estatal encetado na época” (11).
(11)
Gabriel Cohn, Problemas de Industrialização no Século XX, págs. 301, 302 e 303, 1976.
133
Em 1942 cria-se a Coordenação de Mobilização Econômica, órgão governamental que
têm o caráter de um verdadeiro super-ministério. Por seu intermédio, o governo coordenava
assuntos econômicos, financeiros, tecnológicos e organizatórios da economia nacional.
Dentre os órgãos criados pela Coordenação de Mobilização Econômica, particularmente
importante é o Setor de Produção Industrial (SPI). É um órgão destinado a planejar o
funcionamento e a expansão do setor industrial. Possui as seguintes atribuições:
1) – Elaborar a planificação industrial do país, articulado às necessidades militares voltadas
à guerra;
2) – Orientar, dirigir e controlar o programa de produção industrial do país, com liberdade
de iniciativa neste sentido;
3) – Fixar as prioridades dos fatores de produção: energia, combustível, transportes,
matérias-primas, mão-de-obra;
4) – Estudar e organizar a produção em série de produtos;
5) – Realizar pesquisas e estudos técnicos e econômicos;
6) – Promover a formação de técnicos especializados para a indústria;
7) – Dar assistência técnica à indústria e realizar o controle de sua eficiência quando julgar
necessário.
8.3.2. O Operariado no Conjunto das Transformações do Período
O processo de industrialização que percorre o período de 1937 a 54 é acompanhado de
uma profunda transformação quantitativa e qualitativa, da classe operária. Parece-nos que os
fatores determinantes dessa transformação se encontram na nova relação campo/cidade, que o
sistema capitalista em consolidação imprimiu, e na ação governamental informada por uma
política operária corporativista, articulando repressão, concessões e incorporação das entidades
do movimento pelo Estado.
A classe operária do começo do século é formada basicamente de populações imigrante
européia de origem italiana, espanhola e portuguesa. A transferência dessas populações aptas
para o trabalho nas oficinas e fábricas, em pleno processo de formação daquilo que se pode
chamar indústria, é uma iniciativa absolutamente necessária, visto que não se encontra no país
uma população muito disposta a se assalariar ou que se encontra em condições de manipular as
ferramentas e máquinas com precisão. A escravidão gera uma resistência naquelas populações
integradas no sistema escravista quanto ao trabalho, de uma forma geral, e da subordinação a um
patrão com o qual estabelece um contrato de trabalho, em particular. Articula-se, com tal
134
tendência, a pouca capacidade dessa população nativa em manipular com habilidade e
criatividade as ferramentas e poucas máquinas com as quais se movimentam as primeiras
fábricas, na verdade apenas em transição da condição de manufatura familiar para as fábricas
com uma divisão social de trabalho mais intensiva e com a especialização de seus elementos.
A nova composição social da classe operária vai se definindo ao longo dos anos 30. Tal
processo nos parece determinado por dois fatores interligados, a saber: integração do território
nacional e urbanização. A construção de novas ferrovias e, principalmente, rodovias a partir de
30, dá conta de abrir as regiões semi-isoladas, que vivem em economia de subsistência, criando
na prática um mercado, potencialmente abundante em mão-de-obra barata. O desenvolvimento
das vias de comunicação permite o deslocamento de grandes massas de populações para aquelas
regiões que interessa ao capital concentrá-las. Combinadamente, ocorre a redefinição do espaço
campo/cidade, com a migração espontânea ou forçada daquela população rural, de tal forma que
já nos anos 50 a população urbana supera a rural.
A redefinição do espaço campo/cidade e sua conseqüência imediata – movimentação de
populações internas tendentes a concentrar-se nas cidades – influencia decisivamente a
composição da classe operária, quando tal processo é acompanhado de uma reorganização das
unidades produtivas. Embora a industrialização se caracterize como extensiva, desenvolvida ao
longo da estrutura industrial já montada anteriormente ou complementar à mesma, a adoção de
novas ferramentas em massa e uma nova organização do trabalho, com métodos produtivos que
apontam no sentido de uma maior divisão de tarefas e especializações, dispensa à maioria dos
operários um grande volume de conhecimentos e formação técnica. Uma massa vasta de homens,
mulheres e crianças, podem ser preparados a curto prazo para assumir tarefas que no conjunto da
produção passam a se constituir em atividades mais simples.
Duas conseqüências imediatas decorrem desse processo. Primeiramente, ao ampliar
massivamente o exército industrial de reserva, estabelece uma tendência de pressão com relação
a baixa do poder de compra dos salários, como conseqüência de sua oferta superar em muito à
demanda por parte das indústrias. Transforma-se também a perspectiva da classe operária. O
contraste no plano das condições de existência da antiga população rural, submetida a uma
economia de subsistência, agora transformada em operária, dispondo de benefícios sociais e
políticos não estendidos ao campo e, possivelmente uma mesa mais abastecida, conduz a uma
perda de combatividade, a uma tendência de acomodação que percorrerá um longo período de
nossa história.
A ação governamental com relação à classe operária não se limita ao objetivo de
sintetizar e formalizar as relações políticas entre as classes sociais urbanas. Mais do que isso, se
135
orienta no sentido de enquadrar e absorvê-la como um componente do processo de
industrialização, mediante uma “aliança” antagônica de classe. Numa frase, repressão, algumas
concessões e interlocutores confiáveis.
Um conjunto de decretos, leis e dispositivos constitucionais atendiam a várias dentre as
reivindicações econômicas e políticas do operariado. Desde 1930, estabelecem-se ou
reformulam-se direitos trabalhistas tais como: salário mínimo; jornada máxima de oito horas de
trabalho; igualdade salarial sem distinção de sexo, idade, nacionalidade e estado civil; repouso
semanal remunerado; férias anuais remuneradas; proibição do trabalho noturno a menores de 16
anos; proibição de trabalho a menores de 14 anos; assistência médica ao trabalhador e gestante;
carteira profissional; regras jurídicas para criação e funcionamento de sindicatos, federações e
confederações, etc.
“Em poucos anos o sindicalismo brasileiro passa a fazer parte intrínseca do sistema
administrativo-estatal. Em 1943, toda essa legislação é reelaborada, ampliada e sistematizada na
Consolidação das Leis do Trabalho” (12).
Atendendo a algumas reivindicações do operariado, a ação governamental aponta no
sentido de organizar o mercado de trabalho urbano, ao mesmo tempo em que cria as condições
políticas mais favoráveis para imprimir o controle e dominação da atividade e organização
operária. As lutas por tais reivindicações remontam ainda ao século XIX, intensificando-se nos
anos 20, o que nos impõe não subestimar o poder de pressão do movimento. Mas a repressão do
Estado se transforma qualitativamente. De uma repressão voltada para represar as reivindicações
operárias, grandemente atendidas pelo processo de concessões que terminam na definição da
C.L.T., ela se transforma em uma repressão àquelas entidades ou movimentos que perseguem a
independência e autonomia do movimento, resistentes às iniciativas governamentais.
O universo da consciência da classe operária no período de 37 a 54, e mesmo um pouco
mais tarde, se localizará nos marcos do nacionalismo econômico proposto por partidos como
P.C.B. e P.T.B.. É o período em que as reivindicações da classe operária se enquadram no
projeto das classes dominantes, desdobramento da perda de independência de classe e do
desacúmulo no sentido de construir uma alternativa de sociedade à sociedade capitalista. A
afirmação dessa tendência não se deve apenas à ação governamental, da política de colaboração
de classe do P.C.B. ou da recomposição da classe operária. Ela é conseqüência do conjunto das
transformações porque passa a sociedade brasileira e da confiança na possibilidade de um
desenvolvimento nacional e independente.
(12)
Octávio Ianni, op. cit., páginas 49 e 50.
136
8.3.3. Industrialização e Padrão de Acumulação
A década de 30 é especialmente significativa para a definição do processo de
desenvolvimento industrial no Brasil, por fatores básicos de grande influência ao longo do
período.
No plano político interno à sociedade brasileira, ocorre uma profunda redefinição da ação
do Estado, fruto da rearticulação de poder realizada a partir da Revolução de 30. No plano
externo, é efetuada a substituição da hegemonia da Inglaterra pelos E.U.A., como o novo centro
econômico dominante no sistema capitalista internacional. É importante observar duas mudanças
no plano das relações econômicas com o novo país dominante. Primeiramente, o caráter de uma
economia continental com a capacidade de produzir quase que qualquer tipo de mercadoria, o
que diminui a margem de independência no plano econômico do país dependente. Em segundo
lugar, a capacidade de investimentos de grande monta e voltados para os setores produtivos,
particularmente o industrial, o que significa uma inversão com relação aos investimentos
ingleses voltados para os setores de prestação de serviços ou estruturas para o transporte e
comercialização dos produtos do setor agro-exportador da economia brasileira.
Ao longo do período de transição e construção da nova hegemonia no plano do
capitalismo internacional, ocorre um conjunto de condições favoráveis à industrialização, cuja
característica principal é a ruptura, quase sempre apenas parcial, das relações comerciais
internacionais entre os países industrializados e aqueles cuja característica básica é a produção de
mercadorias simples. A Primeira Guerra Mundial e a reconstrução européia, a grande depressão
econômica de 1929 a 36, e a Segunda Guerra Mundial e a nova reconstrução européia, dão conta
de conduzir a uma profunda crise no modelo agro-exportador da economia brasileira baseado
principalmente no café. Por outro lado, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, ficou
impossibilitada a exportação de bens de capital pelos centros capitalistas, cujas economias
sofrem um processo de reconversão para a guerra.
As classes e grupos sociais emergentes (Tenentes, os setores mais politizados do
proletariado, algumas camadas das classes médias, a fração da burguesia industrial e setores
agrários voltados para o mercado interno) estão todos, de alguma forma, identificando a solução
dos problemas com soluções de tipo nacionalista. Está produzido na consciência das classes
sociais mais desenvolvidas e urbanizadas algumas convicções importantes:
a) Os desenvolvimentos econômicos existentes no Brasil, em geral, ocorrem como reflexos
do funcionamento e das flutuações do capitalismo mundial;
137
b) A descoberta de que surtos de desenvolvimento econômico – particularmente industrial –
estão sempre relacionados às rupturas provocadas pelas crises do capitalismo mundial;
c) As épocas de transformações dos sistemas econômicos e políticos estão associados à
nacionalização dos setores privados e governamental.
Essas convicções passam a fazer parte da consciência dos grupos dominantes e de alguma
forma se integram nas ações do Estado. A idéia de economia nacional implica na nacionalização
das decisões de política econômica, ou seja, o nacionalismo econômico compreende a idéia e a
decisão de criar um capitalismo nacional tendo como base o desenvolvimento, industrialização e
independência. O conteúdo de uma política econômica nacionalista se estende até 54, sendo que,
ao nível do discurso, permanece até a década de 60.
Não podemos superestimar o conteúdo nacionalista da política econômica governamental
entre 30 e 54. Na questão siderúrgica, por exemplo, quando o governo ditatorial de Vargas busca
formas e recursos para instalar a Companhia Siderúrgica Nacional, propõe ao governo norteamericano a liberalização de investimentos para a sua construção. O conteúdo nacionalista da
política econômica governamental é determinado, menos por uma perspectiva rigorosamente
nacionalista dos grupos e classes dominantes, e mais pela imperiosa situação de uma economia
que acumula, no sentido de uma significativa substituição de importações de mercadorias
simples e que transita para a produção de mercadorias mais complexas. Agravado pelo fato de
não encontrar capital internacional disponível para financiar tal processo devido a fatores
conjunturais, ou porque quando existe não é, normalmente, investido na produção industrial,
visto que compromete a divisão internacional do trabalho ainda dominante no período.
O padrão de acumulação e financiamento que será buscado para a economia brasileira
fundamenta-se numa prévia expansão do setor produtor de bens de produção (Departamento I),
de caráter estatal e que pode gerar a base para uma expansão industrial mais equilibrada entre os
três departamentos básicos. Este padrão de acumulação e financiamento está sendo determinado
pela própria expansão industrial brasileira e o estado das forças produtivas dos países
imperialistas sob a recessão e depois em guerra. Segundo Francisco de Oliveira,
“O acúmulo de capital para os investimentos no setor produtor de bens de produção (Departamento I) e que
se desdobrava em financiamento da acumulação e capital no setor produtor de bens de consumo nãoduráveis (Departamento II) e no setor produtor de bens de consumo duráveis (Departamento III), quase
inexistente, através de preços subsidiados de produtos do Departamento I (ferro, aço, química básica,
borracha, equipamentos e máquinas simples), eram financiadas a partir de três pontos:
138
1.
Política Cambial, que permitia a transferência de excedentes do setor agro-exportador para o
setor industrial;
2.
Nacionalização dos Setores Básicos do Departamento I, basicamente nos setores produtores de
bens intermediários; essa nacionalização realiza o processo de financiamento no departamento I, visto que
tem como base a absorção da renda gerada pela sociedade civil, enquanto a política cambial realiza o
processo do financiamento interno e externo nos dois outros departamentos. Em decorrência da conjuntura
internacional e da divisão internacional do trabalho, o endividamento e a participação do capital estrangeiro
não possui grande significado;
3.
Contenção Relativa do Salário Real do Trabalhador. A estratégia desse padrão de acumulação e
financiamento fundava-se na premissa de que a acumulação do setor privado da economia seria
potencializada pela transferência de parte do excedente via preços subsidiados dos bens e serviços
produzidos pelas empresas estatais, propiciada pelo próprio aumento da produtividade do trabalho no setor
produtor de bens de produção, o que implicava no virtual barateamento do capital constante do setor
privado da indústria. Enfim, o departamento I nacionalizado, financia os departamentos II e III através da
venda de insumos industriais e serviços a preços subsidiados” (13).
Instala-se um germe de indústria de base, que apenas parcialmente substituirá os produtos
produzidos pelo setor produtor de bens de produção (departamento I). O que caracteriza
realmente a industrialização neste período é a grande expansão da fiação, tecelagem, indústrias
de alimentação e outros ramos do departamento II. A indústria têxtil, por exemplo, expande a sua
produção a uma taxa geométrica de 13% ao ano entre 1932 e 39, enquanto o conjunto da
indústria de transformação é de 10%. A decolagem dos setores que compõem o departamento II
não ocorre na base da adoção de métodos e técnicas de produção que apontam no sentido de uma
reestruturação do parque industrial; é uma industrialização extensiva que se desenvolve ao longo
da estrutura industrial já montada anteriormente ou ampliada.
Ocorre um processo de penetração por parte da indústria em áreas mais complexas do que
bens de consumo final (indústria mecânica, metalurgia, material elétrico, etc.). Contudo, a
diversificação industrial mediante implantação de numerosos ramos não ocorre neste período,
como exemplifica a quase inexistência do setor produtor de bens de consumo duráveis
(Departamento III).
Assim como observa Paul Singer através de fontes recolhidas junta a Benedito H.
Nascimento,
(13)
Francisco de Oliveira, op. cit., pág. 79.
139
“Foi através do automóvel e do caminhão que a Segunda Revolução Industrial penetrou no Brasil. Os
veículos foram os produtos que o Brasil passou a importar em grande quantidade desde os anos 20. Surge
assim um novo ramo industrial: montagem de veículos, já desde o seu início capitalista e dominado pelas
subsidiárias dos fabricantes estrangeiros. Novos ramos de produção foram instalados a partir da Segunda
Guerra Mundial, quando pequenas oficinas são montadas para produzir peças de reposição,
impossibilitadas de serem importadas. Já em 1944, a indústria brasileira podia oferecer mais de duas mil
peças diferentes para automóveis e caminhões, radiadores, pistões e molas. Também produziam-se rodas
para veículos, tambores de freio, cubos de roda, suportes de mala, pinos e buchas, correias de ventilador,
discos de engrenagens, pontas de eixo, camisas, engrenagens para câmbio, cardãs, pinhões para
diferenciais...; neste período também eram fabricadas, no Brasil, praticamente todas as carrocerias para
ônibus e caminhões” (14).
O processo de expansão industrial impõe a abertura de novas regiões e sua articulação ao
centro industrial localizado no eixo Rio - São Paulo. As regiões interioranas são interligadas
através de uma divisão inter-regional do trabalho, o que significa ampliar o mercado para o
capital industrial no seu processo de expansão, como concebe Rosa Luxemburgo. A integração
do território nacional e a formação de um mercado consumidor nacional exige uma
especialização das novas áreas, na produção de produtos assimiláveis à sociedade nacional, de
origem primária (arroz, feijão, milho, carne, etc) e dirigidos aos centros urbanos em franco
crescimento. A produção e comercialização por parte do produtor interiorano coloca-o em
condições de consumir os produtos industrializados.
A integração do território nacional, ocorrendo no bojo da “Segunda Revolução
Industrial” e tendo o veículo como o produto motor dessa fase, promoverá uma alteração radical
na composição dos meios de transporte e comunicação. A partir de 30 a construção ferroviária
quase cessa no Brasil e a rodoviária se acelera de maneira impressionante:
“A rede ferroviária passa de 31.851 Km em 1928 a 34.206 em 1955. Os caminhões em circulação, sobem
de 54.842 em 1937, para 109.210 em 1947 e para 210.244 em 1951. É bom observar que as rodovias e
caminhões se concentram principalmente no eixo Rio – São Paulo” (15).
Em 1939 e 1952, a produção brasileira cresceu a uma taxa média de 8,3% ao ano. Os
ramos que mais se desenvolvem neste período são a indústria de borracha (18,4% a.a.), de
material de transporte (16%a.a.), metalurgia (15,2%a.a.), minerais não metálicos (12,1%a.a.) e
química e farmacêutica (10,5%a.a.). Não por acaso, estes também são os ramos em que as
(14)
(15)
Benedito H. Nascimento, citado por Paul Singer, op. cit., página 221.
Villela e Suzigan, citado por Paul Singer, op. cit., pág. 219.
140
importações crescem mais durante estes anos, revelando um aspecto essencial do processo de
industrialização de um país retardado, que se dá mediante importação de tecnologia, tanto na
forma de novos produtos como de mudanças de processo (16).
O padrão de acumulação e financiamento fundamentado numa prévia expansão do
departamento I, apresenta limites intransponíveis, como demonstra o período de 30 a 54. Cinco
(5) ordens de fatores apontam tais limites, segundo Francisco de Oliveira,
“1 – O financiamento externo somente era viável quando expandiam as exportações agrícolas e/ou quando
melhoravam os termos de intercâmbio;
2 – O financiamento interno residia na apropriação pela indústria, de excedentes gerados no setor
exportador. A contradição resulta de que, ao mesmo tempo que era fundamental transferir parte do
excedente da produção cafeeira para o setor industrial (Estatal e Privado), era necessário preservar a
rentabilidade da empresa agro-exportadora, a única a proporcionar os meios de pagamentos internacionais
indispensáveis ao suprimento da oferta interna de bens de capital e insumos básicos;
3 – A nacionalização do setor produtor de bens de produção intermediários, sendo estatais, eram isentos de
impostos, o que aumentava o parque produtivo, a circulação de mercadorias, mas não aumentava as receitas
fiscais do Estado;
4 – O caráter político do pacto populista imobilizava o Estado para realizar uma reforma fiscal que, do lado
do setor privado da economia, captasse a fração do excedente necessário para financiar sua estratégia de
acumulação, o que significa recuperar para o Estado uma fração dos aumentos de produtividade que eram
gerados, transferidos e apropriados pelo setor privado;
5 – No que se refere à aliança com os assalariados, o pacto populista impediu a utilização da inflação como
fonte de recursos ao Estado. A contenção relativa do salário real, aumentou apenas os lucros das empresas
privadas, mas não se transformou, em toda a sua potencialidade, em mecanismo da estratégia da
acumulação capitalista assim definida” (17).
A população urbanizada passa a necessitar de uma vasta quantidade de produtos. A pauta
de exportação não se diversifica, o que diminuiu a capacidade de importação. Impõe-se desta
maneira a substituição de importações como condição básica para a continuidade do processo de
industrialização. Cumpre-se produzir no país os novos produtos (de consumo durável), os
equipamentos e matérias-primas que não podem ser importados. A produção de automóveis ou
caminhões, eletrodomésticos, derivados de petróleo, etc, não pode ser feita em pequena escala,
por empresas semi-familiares, que crescem paulatinamente mediante a acumulação de seus
(16)
Ibidem, citado por Paul Singer, op, cit., pág. 222.
141
próprios lucros, visto que tais mercadorias são produto da Segunda Revolução Industrial,
provenientes de um capitalismo que se torna monopolista.
É preciso fazer inversões de grande vulto, com longos prazos de maturação, condição
necessária para a continuidade do processo de substituição de importações em novas bases, ou
seja, integrar a economia brasileira na fase do capitalismo monopolista. Essa passagem para a
fase monopolista apenas começa mediante intervenção do capital estatal, visto que o capital
privado nacional, ainda débil e embrionário, não pode dirigir tal processo e o Estado não dispõe
de condição para assumir totalmente a direção. No início da década de 50 está concluída a
reconstrução européia e japonesa, o que permite um montante de capitais europeus e norteamericanos se dispor a investimentos nos países dependentes. A industrialização das economias
dependentes entra na divisão internacional do trabalho do mundo capitalista como uma nova
forma de expansão desse sistema.
No caso brasileiro, cujo padrão de acumulação e financiamento fundamenta-se numa
prévia expansão do departamento I, apenas parcialmente realizado, assume, com os
investimentos internacionais e, posteriormente, a transferência de multinacionais, um grande
desenvolvimento do departamento III, que se transforma no setor mais dinâmico e dirigente da
economia. Monopolista e internacionalizado, o departamento III coloca o Brasil na condição de
exportador de manufaturas (durável e não-durável) e consumidor de produtos do setor de bens de
produção (departamento I), cujo setor se encontra montado nos países industrializados. O Brasil
se limita a produzir, do departamento I, os bens intermediários de produção (ferro, borracha,
carvão, etc), em grande parte exportados e importados sob a forma de bens de capital (máquinas,
equipamentos, aço, insumos industriais não produzidos internamente, etc.).
Podemos notar que as rupturas políticas, econômicas e sociais que ocorrem nesses anos
não são completas; são apenas parciais. Além disso, o sistema econômico e político brasileiro
está já numa relação subordinada. Há empreendimentos reais, além de concepções, que revelam
o elevado índice de integração entre interesses de empresários, comerciantes, importadores,
políticos brasileiros e interesses de governos e homens de negócios dos países dominantes.
A década de 50 marca um ponto de inflexão no processo de industrialização no Brasil. A
internacionalização monopolista da economia brasileira, tendo o departamento III como seu setor
dinâmico, é algo mais de que provável a uma economia de base agro-exportadora, cujo processo
de industrialização por substituição de importações é determinado em grande parte por fatores
externos à sociedade. Ao superar a fase da substituição simples de mercadorias, a economia
(17)
Francisco de Oliveira, op. cit., págs. 80, 81 e 82.
142
brasileira encontra-se sem compressão para ingressar na fase seguinte, mantendo as bases de um
capitalismo com níveis significativos de independência internacional, sendo compelida a uma
rearticulação geral nos quadros da internacionalização monopolista dependente.
8.4. Padrão de Acumulação Capitalista Internacionalizado
A sociedade brasileira convive com um único padrão de acumulação capitalista e de
financiamento entre 1956 e 1990. Padrão este que convive, por sua vez, com ciclos de expansão
e retração econômica.
A partir dos anos 90 tem início a transição para um novo padrão de acumulação
capitalista e financiamento. Novo padrão em que não há lugar para a articulação entre os capitais
estatal e privados nacional e internacional por meio dos departamentos econômico-industriais I,
II e III.
A Criação do Padrão de Acumulação Capitalista Internacionalizado
A sociedade brasileira, nos primeiros anos da década de 50, revela uma tendência de
crescente urbanização. A exigência de novos produtos tipicamente característicos, neste período, a
uma população urbana provoca pressões para a sua livre importação, principalmente por parte de
importadores e das classes médias. As importações tendem a crescer também graças ao próprio
avanço da industrialização substitutiva. Insumos industriais, tecnologia de processos industriais e
know how não satisfeitos pelo precariamente instalado Departamento I impõe a sua importação sob
pena de comprometer não somente a expansão, mas a própria reiteração produtiva do capital.
As pressões dirigem-se, portanto, no sentido de produzir no país os novos produtos de
consumo duráveis, voltados para o atendimento das novas classes e grupos sociais de vida
urbana, como também os equipamentos e matérias-primas que não podem ser importados na
quantidade necessária e que são imprescindíveis ao prosseguimento do processo de
industrialização. Dois grandes obstáculos colocam-se: a produção dos bens de consumo duráveis
como automóveis e eletrodomésticos, e de bens de produção como derivados de petróleo e
máquinas, caracterizam-se como mercadorias típicas de uma revolução industrial de “segunda
fase”, somente possíveis de serem produzidas através de grandes plantas industriais, ou seja, por
grupos industriais monopolistas.
As empresas privadas nacionais encontram-se distantes destas condições e características,
necessitando de novos ciclos de acumulação para tanto. Quanto ao setor estatal, não dispõe de
143
meios econômicos para assumir tal tarefa, salvo os bens intermediários instalados e/ou em
processo de instalação, como os minerais não-metálicos: cimento, borracha etc. O Estado não
possui condições para conduzir inversões de grande vulto e com longos prazos de maturação
segundo as novas exigências.
A primeira metade dos anos 50 caracteriza-se por uma profunda modificação das relações
internacionais. A conclusão da reconstrução européia e japonesa permite o restabelecimento de
relações imperialistas multipolares, o término da guerra da Coréia distancia risco de uma nova
guerra mundial total, o novo espaço político-militar dos Estados Unidos (liderando o mundo
ocidental e a polarização representada pela guerra fria) constituem-se nos aspectos mais
importantes que impulsionam esta modificação.
Os acordos de Bretton Woods permitem a conformação de uma conjuntura internacional
caracterizada pela superabundância de capitais disponíveis para investimentos em países como o
Brasil. Estes investimentos assumem a forma de empréstimos governamentais, de empréstimos
de agências financeiras internacionais - Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional - e de
transferência de recursos para a aplicação direta na forma de capital de risco.
O movimento das empresas multinacionais à procura de compensação relativa em termos
de mercados cativos e de matérias primas e mão-de-obra barata e abundante é intenso.
Destacam-se, num primeiro momento, as empresas multinacionais e capitais europeus. Estes são
seguidos, posteriormente, pelas multinacionais e capital de risco dos Estados Unidos ao final dos
anos 60 e início dos 70, com enormes vantagens econômico-tecnológico e político-diplomático
sobre as demais. Formam-se, neste período, comissões e grupos de trabalhos entre Estados com o
propósito de definir diretrizes, conduzir planejamentos e coordenar investimentos internacionais.
Na defesa do projeto de desenvolvimento capitalista nacional, em nossa perspectiva
“inorgânico”, conduzido pela alta cúpula civil e militar, movimentam-se diversos setores.
Encontram-se mobilizados amplos segmentos da classe operária, influenciada pelo trabalhismo
varguista e pelos comunistas, da baixa classe média assalariada, inclinada em direção a soluções
nacionalistas e intervencionistas, da grande burguesia industrial, com posições contraditórias e
dos grandes proprietários rurais, vinculados à grande propriedade rural que produz para o
mercado interno.
A luta contra o projeto de desenvolvimento capitalista em bases nacionais apoia-se na
burguesia antiindustrialista, vinculada à exportação e importação, nas altas classes médias,
vinculadas a uma percepção conservadora e moralista de sociedade e na ação diplomática e
econômica (financeira principalmente) dos Estados Unidos, que direciona-se no sentido de deter
o processo de industrialização intensiva no Brasil.
144
O período compreendido entre 1956 e 1960, da vigência do Programa de Metas, marca
um ponto de inflexão no padrão de acumulação implementado entre 1933 e 1955. A conjugação
entre as pressões internacionais - norte-americanas, contrárias à intensa industrialização
brasileira, particularmente com relação às margens de autonomia conquistada, e européia,
favorável a uma industrialização internacionalizada com liberdade de remessa de lucros livre de
carga fiscal - e as contradições e perda de dinamismo econômico do padrão de acumulação em
curso, acentua conflitos políticos e sociais, abala alianças estabelecidas no bloco do poder,
subverte diretrizes econômicas e culmina na ruptura político-institucional representada pelo
golpe civil-militar de 1954. Um novo padrão de acumulação tem início no Brasil entre 1956 e
1960.
8.4.1- A Nova Fase de Expansão
O novo padrão de acumulação e financiamento tem como eixo básico a expansão sem
precedentes do Departamento III, convertido no setor dinâmico da economia. A sua instalação
ocorre através da transferência de multinacionais e da recorrência ao capital financeiro
internacional.
À esta face da dependência agrega-se outra, qual seja, as condições de instalação do
Departamento I com a magnitude exigida para a produção de insumos, equipamentos, máquinas
e sistemas produtivos básicos ao Departamento III, característico de uma etapa monopolista do
desenvolvimento capitalista. Esta etapa apenas tem dado os seus primeiros passos no Brasil,
através das primeiras empresas monopolistas de caráter estatal como a Companhia Siderúrgica
de Volta Redonda e a Petrobrás, que produz uma restrita pauta de insumos industriais básicos. O
Departamento I, básico ao Departamento III conserva-se, no fundamental, nos Estado Unidos e
na Europa.
A instalação do Departamento I de forma a atender a nova demanda representa,
principalmente, pelo Departamento III é uma pré-condição do novo padrão de acumulação e
financiamento. A pressão que a importação de insumos industriais básicos, tecnologia, know how
etc, exerce sobre o balanço de pagamentos no padrão de acumulação precedente amplia-se
enormemente no novo padrão econômico, comprometendo a sua reprodução e expansão. A carência
de capitais disponíveis para a expansão acelerada do Departamento I, à medida que o crescimento
das exportações, basicamente de origem agropecuária, não se amplia rapidamente, o que mantém as
divisas externas restritas, obriga o Estado a recorrer a um intenso endividamento externo. O objetivo
é eliminar pontos de estrangulamentos da economia e desencadear um desenvolvimento acelerado,
145
equilibrado e integrado.
O instrumento catalisador da mudança do padrão de acumulação é o Programa de Metas.
Elaborado pelo governo J.K., o Programa consiste, basicamente, de um planejamento global para
a economia brasileira a ser desenvolvido entre 1956 e 1960. Os objetivos centrais do Programa
de Metas é a aplicação de um programa de infra-estrutura, a condução da internacionalização da
economia brasileira e a viabilização da expansão da fronteira agrícola.
O Programa incorpora em si mesmo as diretrizes e o planejamento para a implementação
do novo padrão de acumulação. Ele reflete as relações de interdependência e complementaridade
da estrutura econômica brasileira frente à estrutura econômica internacional, nos quadros de uma
industrialização induzida que encontra grandes obstáculos em decorrência do estrangulamento
do setor de mercado externo.
O Programa de Metas reflete também o bloqueio exercido pelo pacto populista sobre o
Estado, impedindo-o de efetuar uma reforma fiscal capaz de encontrar recursos internamente ao
país para alavancar o Departamento I, ampliando as condições para uma futura instalação do
Departamento III. O Programa de Metas expressa, portanto, o prosseguimento da
industrialização brasileira mediante as crescentes exigências estabelecidas pela reprodução do
capital em âmbito mundial e o impasse político representado pelo populismo.
Modificações importantes são observadas na distribuição setorial da produção industrial
brasileira entre 1950 e 1960. Conforme podemos confirmar através da Tabela I, conserva-se a
crescente participação na produção industrial total nacional dos ramos industriais que compunha
o Departamento I - indústrias de metalurgia (de 9,4% para 11,5%), mecânica (de 2,1% para
3,5%), material elétrico e de comunicações (de 1,6% para 3,9%), papel (de 2,2% para 3,0%),
borracha (de 1,9% para 2,3%), química (de 5,3% para 8,7%) e plástico (de 0,3% para 0,8%),
com exceção para as indústrias minerais não-metálico (de 7,2% para 6,7%). Cresce, também, o
ramo industrial que assume, através da instalação das indústrias automobilísticas, características
que o integram ao Departamento III da economia - indústria de material de transporte (de 2,2%
para 7,7%).
Mantém-se a decrescente participação dos ramos industriais que compõe o Departamento
II - indústria de madeira (de 4,2% para 3,2%), couros e peles (de 1,3% para 1,1%), farmacêuticos
(de 2,8% para 2,5%), perfumes (de 1,6% para 1,4%), têxtil (de 19,6% para 12,0%), confecções e
sapatos (de 4,2% para 3,6%), produtos alimentares (de 20,5% para 16,9%), bebidas (de 4,4%
para 2,9%), fumo (de 1,4% para 1,3%) e editorial e gráfica (de 4,0% para 3,0%), com exceção
para a indústria de móveis que conserva-se no mesmo patamar (2,2%).
146
A divisão que operamos em termos de ramos de atividade industrial é um tanto
problemática para efeito de aplicação da divisão departamental da economia. Esta divisão ajustase melhor em termos de “indústria” e não de ramo industrial à medida que um ramo pode
comportar, ao mesmo tempo, a produção de bens de consumo duráveis e a produção de bens de
produção, como por exemplo ocorre com a chamada indústria de transportes, quando produz
automóveis e equipamentos de transportes pesados, ou, ainda, a indústria de material elétrico e
comunicação, quando produz bens eletrodomésticos e cabos e equipamentos elétricos. Em que
pese este contencioso, a divisão aqui proposta contribui para revelar o significado da alteração da
participação dos ramos e departamentos econômicos na produção industrial total brasileira.
O Departamento I - excluí dele o setor de material de transporte a partir de meados dos
anos 50 - participa com 40,4% do produto industrial total, O Departamento II participa com
50,1% e o recém instalado Departamento III - neste momento ainda basicamente restrito a
indústria automobilística - participa com 7,5%. O resíduo dos levantamentos é de 1,6%.
Confirma-se, portanto, as tendências esboçadas no padrão de acumulação e
financiamento capitalista precedente, quais sejam, a decrescente participação na produção
industrial total do país dos ramos industriais vinculados ao Departamento II da economia e a
crescente diversificação da atividade industrial.
Estes dados revelam, além da própria continuidade da recomposição dos Departamentos
econômicos e ramos industriais, o ingresso da sociedade brasileira na segunda onda
industrializante, caracterizada pela consolidação do Departamento I e delimitação e conformação
do Departamento III. Também revelam a possibilidade de um desenvolvimento industrial autosustentado através da consolidação dos ramos industriais representados pelas indústrias de
metalurgia, mecânica e química, que, reunidas, participam com 23,7% da produção industrial
total do país. Enfim, a economia brasileira, em termos fundamentais, adquire as condições
materiais básicas para se reproduzir a partir dela mesma.
Mantega, Moraes (1980, p. 25-28) demonstram que o número de estabelecimentos
industriais cresceu em 32%, sendo que nos ramos de material elétrico, comunicação, metalurgia,
mecânica, de transportes este crescimento é superior a 100%. Demonstram, ainda, que no
período compreendido entre 1957 e 1962 a produção industrial aumenta a uma média anual de
11,9% ao ano, sendo que nos ramos da indústria de material de transporte e de material elétrico o
crescimento é de 27% ao ano, no ramo de indústria química 16,7%, no ramo de indústria
mecânica 16,5%, no ramos de indústria metalúrgica 15,6% e no ramos de indústria de Borracha
15%.
147
Estes dados apresentados por Mantega e Moraes revelam uma aceleração dos ramos
industriais integrados nos Departamentos I e III da economia no período compreendido entre
1957 e 1962 em relação a sua performance no período compreendido entre 1950 e 1960, o que
seguramente é conseqüência da aceleração industrial desencadeado pelo Programa de Metas.
Os autores demonstram, finalmente, que o setor de bens de consumo não-duráveis
apresenta uma média de crescimento abaixo dos 32% no mesmo período. Também apresenta
taxas menores em termos de crescimento anual entre 1957 e 1962. A indústria têxtil e de
alimentação, por exemplo, crescem respectivamente, 8,8% e 7,5% ao ano.
8.4.2- Contradições e Desequilíbrios do Novo Padrão de Acumulação e Financiamento
Capitalista
O novo padrão de acumulação e financiamento capitalista esbarra em contradições
políticas e econômicas em direção da reprodução expansiva da economia. Esgota-se a
possibilidade de expandir as fontes de financiamentos interno e externo. O setor agropecuário
não pode suportar uma compressão maior dos preços dos produtos que compõe a cesta básica e
matérias primas-industriais com o nível de produtividade apresentado no início dos anos 60. O
setor agro-exportador sob o chamado “confisco cambial”, especialmente o grande proprietário
rural vinculado ao mercado externo, conhece os limites de uma acumulação restrita.
A condução de uma política fiscal capaz de acumular nas mãos do Estado uma parcela da
riqueza socialmente produzida e concentrada na iniciativa privada nacional esbarra na resistência
do empresariado industrial. A redefinição desta política prova as resistências do pacto populista e
entra em relativa contradição com a estratégia de desenvolvimento assentada na expansão do
setor público, visto que o mesmo converte-se, neste período, num instrumento que proporciona
condições ultra-favoráveis para a aceleração da acumulação no âmbito da iniciativa privada.
A redefinição da política fiscal junto ao Departamento III também não é conduzida. Os
incentivos para a implantação das multinacionais como a isenção fiscal, serviços públicos
oferecidos a custos comprimidos a estes setores, entre outros, ainda vigoram para diversas
empresas. A busca pela atração de novas multinacionais e investimentos indiretos, por sua vez,
concorre para que o Estado decline de realizar uma política fiscal que recolhe parte dos
gigantescos lucros auferidos pelas multinacionais e outros investimentos internacionais. A
própria pressão do capital multinacional tende a imobilizar institucionalmente o Estado no
sentido de conduzir uma reforma fiscal (Oliveira, 1984, p. 91-92). O capital internacional,
148
diretamente aplicado no Brasil, converte-se em parte integrante do núcleo hegemônico em torno
do Estado.
O regime liberal-populista, articulado sob a contradição de mobilizar de forma controlada
a classe operária, convertendo-a numa base de apoio do projeto de industrialização e assegurar o
intenso processo de extração da sua mais-valia, impede a extração da mais-valia absoluta da
classe operária para além de certos limites. Embora tendo a sua organização e consciência
submetidas em grande medida ao controle do Estado, a classe operária proporciona espaços para
articulação de um movimento operário com um elevado nível de mobilização e experiência,
capaz de radicalizar-se na defesa das suas reivindicações básicas.
Em termos imediatos, o regime encontra-se imobilizado para conduzir um vigoroso
aprofundamento da extração de mais-valia da classe operária. Em termos mediatos, conservando
a tendência então delineada entre 1952 e 1964, não apenas o regime, mas a própria base de
reprodução material da sociedade pode estar ameaçada.
O desequilíbrio entre os departamentos econômicos e a imobilidade institucional do
Estado para corrigi-lo - que decorre do próprio caráter do regime, de um lado, e da crise políticoinstitucional que emerge da expansão e crescente autonomia dos movimentos operários e
camponeses, da tentativa de impedimento da ascensão de Goulart à presidência da República, do
projeto de desenvolvimento capitalista nacional reeditada pelo governo e da crise de
governabilidade, por outro - afugenta temporariamente os capitais internacionais. Esta realidade
priva o padrão de acumulação e financiamento de fonte de financiamento externo complementar
à agro-exportação, imprescindível para a reiteração e expansão da estrutura econômica nas bases
em que esta passa a estruturar-se no país a partir do Programa de Metas.
Se atentarmos para o fato de que todos os ganhos de produtividade em todos os
departamentos da economia, devido ao padrão de relações interdepartamentais, desaguam nos
departamentos líderes, quais sejam o Departamento III, internalizado no país e o Departamento I,
ainda localizado nos Estados Unidos e Europa no tocante à produção de tecnologia e insumos
industriais decorrente de maior composição tecnológica, confirmamos o grau elevado de
“descapitalização social” que o país passa a conviver.
Segundo Oliveira (1984, p. 86-87) e Mendonça (1981, p. 256) a paralisia do Estado em
conduzir a reforma fiscal, a liberdade de remessa de lucros, a imperiosa importação de
tecnologia e insumos industriais e a condição privilegiada das multinacionais nas articulações
interdepartamentais encarrega-se de desviar para fora os impulsos dinâmicos do novo padrão de
acumulação
149
À tradicional crise de balanço de pagamentos, comum a países sob a industrialização
substitutiva e que concorre de forma significativa para o esgotamento do padrão de acumulação e
financiamento implementado no Brasil entre 1933 e 1955, agrega-se outra. A crise de balanço de
pagamentos decorrente de um padrão de acumulação e financiamento de realização interna de
valor, mas cujas empresas multinacionais, que lideram as relações interdepartamentais da
economia nacional, transferem os seus lucros para os seus países de origem e/ou para a
circulação de capital-dinheiro no mercado internacional. Agrega-se a isto o crescimento
significativo da dívida externa, que impôs o pagamento de juros, dividendos e amortizações
externamente.
8.4.3- A Crise de 1962 a 1967
As abordagens estruturais realizadas por Furtado, Rangel, Prado Jr, Tavares e Singer, em
plena crise dos anos 60, contribuem de forma decisiva para uma apreensão crítica das principais
determinantes da crise econômica do período. Contribuem, também, para revelar as próprias
deficiências e possibilidades da economia brasileira (Mantega e Moraes, 1980, 45-50).
A abordagem estagnacionista contribui decisivamente para a localização de vários fatores
que impedem um crescimento equilibrado da economia brasileira, em especial a carência de
demanda, a concentração de rendas, o “atraso” da estrutura fundiária e o caráter monopolístico
da economia brasileira. Prado Jr. amplia estes fatores com os problemas advindos do processo de
internacionalização econômica agregados a uma estrutura de distribuição de rendas altamente
regressiva. Tavares, partindo da carência estrutural de demanda, chegou à carência estrutural de
investimentos para assegurar a contínua expansão da economia brasileira.
As interpretações que realçam a expansão ou a possibilidade de expansão da economia
brasileira concorrem no sentido de situar a crise dos anos 60, como ciclo de conjuntura ou como
“estado da estrutura”. Nada que a caracterize como sendo um “beco sem saídas”.
Tanto numa como noutra abordagem realça-se as possibilidades da economia brasileira
definidas a partir dela mesma, ou melhor, das soluções políticas para problemas econômicos
estruturais, como claramente transparece no pensamento de Rangel. Aquelas abordagens que
realçam a expansão ou a possibilidade de expansão realizam, ainda, um contrapeso com relação
às teorias que, nascidas de concepções estagnacionistas, podem desenvolver-se para análises
catastrofistas.
Essas interpretações apresentam algumas deficiências na interpretação da crise dos anos
60. Elas carecem de uma visão integrada da economia brasileira de forma a perceber a
150
continuidade estabelecida entre a industrialização e a estrutura agrária, entre a carência de
demanda/distribuição regressiva de rendas e a realização do valor monopolista, entre a carência
de programas de financiamento e a transferência de excedentes para o exterior. Carecem, ainda,
de uma análise que localize a economia brasileira em face da reprodução do capital em escala
internacional, de forma a aquilatar melhor os limites e possibilidades da economia brasileira.
As interpretações da crise dos anos 60 caracterizam-se por um viés marcadamente
econômico. Não apreendem a economia como espaço de condensação do sistema de relações de
classe, mas como espaço em si. Mesmo autores como Ignácio Rangel e Caio Prado Jr buscam
compreender, respectivamente, as reformas econômicas necessárias para um ciclo expansivo ou
os fatores econômicos que impedem este ciclo expansivo, e não o sistema de relações sociais e a
dinâmica de reprodução do capital internacional que o determinam e como o referido sistema
eleva-se para o campo das superestruturas.
Um debate importante tem lugar nos anos 70 e 80 sobre a crise econômica do início dos
anos 60 e o esgotamento do regime populista. Mendonça (1988, p. 69-75) atribui às
características do padrão econômico implementado a causa da recessão dos anos de 1960 a 1962.
Esse padrão é pressionado pelos custos da implementação de um largo programa de montagem
da infra-estrutura necessária para a economia brasileira sob rápida monopolização, pelo
crescente desequilíbrio da balança comercial através da importação de tecnologia e insumos
industriais e da deterioração dos preços das exportações brasileiras e pelos encargos financeiros
desencadeados pelo padrão de endividamento externo.
O padrão econômico tem concorrido decisivamente para o esgotamento do regime
populista à medida que radicaliza as contradições sociais, em especial o confisco salarial
desencadeado através do ciclo inflacionário gerado no governo JK - contornado temporariamente
graças ao engajamento da sociedade na construção do “país do futuro”. Herdado pelos demais
governos civis, que, por sua vez, encontram-se destituídos das condições econômicas, sociais e
políticas favoráveis para o apelo ideológico anterior, as contradições sociais converter-se-iam
num elemento impulsionador da combatividade da classe operária e demais setores populares.
Singer (1984, p. 228-229) basicamente não difere da autora na caracterização da crise.
Contudo, concebe o seu início somente a partir de 1962, quando os índices de crescimento
industrial despencam dos 10,2% de crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) entre
1956 a 1962, para 2,9% entre 1962 a 1967. Atribui à crise econômica a ruína do consenso, à
medida que o proletariado passa a perceber-se expropriado pelo capital, as classes dominantes
deparam-se com um Estado permeável às pressões dos trabalhadores e o campesinato radicaliza
a luta pela terra.
151
Para Ianni (1986, p. 207-226), a crise reduz o índice de investimentos, diminui a entrada
de capitais, provoca queda da taxa de lucro e agrava a inflação. Especialmente importante é o
abandono por parte do governo Goulart das orientações para o combate da inflação e para o
equilíbrio do déficit público sugeridas pelo governo norte-americano e pelo FMI, a serem
desenvolvidas nas áreas de políticas creditícia, cambial, orçamentária e salarial. As principais
conseqüências dessas sugestões são a recessão econômica tem como desdobramentos o
desemprego, a falência de segmentos industriais, a concentração de rendas, no plano econômico,
seguido de uma desagregação incontrolável do regime populista expresso nas lutas sindicais, nas
ligas camponesas, na radicalização dos embates ideológicos, no plano político.
O governo Goulart orientando-se pela preservação das bases do regime e pelo
atendimento das pressões populares, optou pelas reformas de base reeditando o projeto de
desenvolvimento capitalista em bases nacionais e buscando implementar uma política externa
independente. Esta orientação conduziu, num primeiro momento, à fuga dos capitais externos e à
retirada de apoio ao governo Goulart, por parte do governo dos Estados Unidos e, num segundo
momento, à conspiração aberta ao governo Goulart por parte dos capitais externos e do governo
dos Estados Unidos.
Ianni destacou, ainda, a mudança de caráter do ciclo inflacionário, que deixou de se
constituir em uma técnica de “confisco salarial” - poupança monetária forçada - e passou a
funcionar como inflação de custos, intensificando a oposição patronal.
Para Mantega, Moraes (1980, p. 42-47), a crise recessiva de 1962 tem catalisou as
contradições do padrão de acumulação e conduziu ao esgotamento do regime. As suas causas são
a fase descendente do ciclo industrial e o arrefecimento das inversões privadas nacionais e
multinacionais a partir de 1961, apenas amenizadas pelas inversões públicas de 1962; o recuo
das instituições financeiras internacionais em criar novas linhas de financiamento, visto que
temem a crise institucional e exigem o combate da inflação e do déficit público, segundo o
método monetarista, para liberar novos financiamentos; a crescente resistência dos trabalhadores
que provocou uma crise institucional e diminuiu ou ameaçou diminuir a taxa de extração da
mais-valia, comprometendo a taxa média de lucro; e a queda da rentabilidade agrícola e dos
preços do café no mercado mundial, desencadeando, respectivamente, o aumento do custo de
vida e a diminuição das divisas externas.
Guido Mantega e Maria Moraes, embora estabelecendo relações entre a crise recessiva de
1962 e as contradições estruturais do padrão de acumulação implementado a partir de 1956,
atribuem uma autonomia relativa à mesma, interpretando-a a partir de causalidades econômicas,
152
políticas e sociais da conjuntura. E, por fim, é a crise recessiva e não as contradições estruturais
do padrão de acumulação, que concorreu diretamente para o esgotamento do regime.
Nos anos de 1959/60, um ciclo inflacionário que atua sobre custos tem início no país,
aprofundou-se nos anos seguintes. Combinado aos desequilíbrios estruturais da economia e às
crises institucionais, este ciclo inflacionário evoluiu para uma crise recessiva. O quadro recessivo
agravou-se quando a poupança do setor privado não mais se materializa de forma expressiva, em
novos investimentos.
Atribuir à crise recessiva a ruptura do consenso social em torno do regime populista
representa uma superestimação excessiva da crise econômica nos acontecimentos que se
seguiram e uma subestimação da trajetória contraditória sobre a qual apoiou-se o regime. A
contradição entre o projeto de desenvolvimento sob bases nacionais e o projeto de
desenvolvimento
sob
internacionalização
econômica
mobilizou,
mais
ou
menos
conscientemente, uma ampla parcela da sociedade brasileira. Esta contradição é agravada com a
virada de padrão de acumulação e financiamento capitalista implementado pelo governo JK por
meio do Programa de Metas e da preservação do discurso nacionalista. Os desequilíbrios
orçamentários federais e a conseqüente inflação decorrente da emissão de moeda para assegurar
as inversões econômicas e a construção de Brasília, polarizara a disputa dos projetos de
desenvolvimento.
O movimento operário e o movimento camponês reagiram às condições estruturais do
país, especialmente ao padrão de distribuição de rendas vigentes no país. As pressões em torno
de reformas estruturais na perspectiva do desenvolvimento sobre bases nacionais, que
incorporam perspectivas operárias e populares tem início já em meados dos anos 50. Coube ao
ciclo inflacionário e à crise recessiva acentuar a ruptura do consenso social sob o regime
populista, e não provocá-la.
Atribuir à crise recessiva desequilíbrios estruturais como aqueles revelados pelo
descompasso na instalação dos departamentos econômicos e/ou na crise de demanda dela
decorrentes incorre, a nosso ver, numa interpretação economicista ainda mais acentuada. A
conjuntura compreendida entre 1958 e 1964 era profundamente sensível aos problemas
econômicos, cujas raízes residiam no padrão de acumulação e financiamento capitalista
implementado, e nas crises institucionais que emanavam das bases de conformação do regime,
da ordem mundial e dos conflitos sociais do país. Delimitar o que era essencialmente econômico
do que era essencialmente político não é possível.
O Estado converteu-se no principal impulsionador econômico da acumulação do capital,
sujeito às contradições interdepartamentais da economia que inevitavelmente emergiam como
153
crise política e institucional. E não menos importante, o Estado transformou-se numa gelatinosa
condensação da correlação de forças à medida que classes e grupos sociais reconstruía suas
identidades e reelaborava perspectivas, sujeito, portanto à reacomodação de forças que a
estrutura econômica internacionalizada e o pacto populista não dá sinais de poder acomodar.
A crise recessiva, portanto, possuía, ao mesmo tempo, fatores econômicos e políticos que
a determinaram. No campo econômico, concorreu para a queda da taxa média de lucro, acentuou
disputas em torno do excedente social e inibiu novas inversões. No campo político, ampliou as
contradições sobre as quais o regime se apoiou e impediu o governo de realizar uma intensa
reforma tributária e fiscal.
Após o golpe militar de 1964, o governo buscou equacionar alguns dos problemas que
concorriam para a instabilidade econômica e para o processo inflacionário. Conforme Singer
(1985, p. 228-229), os desequilíbrios do balanço de pagamentos e do orçamento público foram
contornados através da reforma no sistema fiscal, o que permitiu a elevação da participação do
Estado no PIB para 26,7%, que, no período anterior, oscilara entre 17% e 21%; o déficit
orçamentário da União caiu para 0,6% do PIB em 1969, enquanto no período 1962/63 havia
atingido a casa de 4,3%; a criação da “correção monetária” dos títulos da dívida pública
possibilitou o financiamento do déficit orçamentário sem multiplicar os meios de pagamento, o
que representou um importante fator de controle do processo inflacionário; romperam-se as
diversas resistências regionais e trabalhistas por meio dos atos institucionais emitidos pelo
governo militar extinguindo partidos, cassando mandatos parlamentares e direitos políticos,
prendendo e exilando opositores.
Os salários cairam vigorosamente a partir de 1964. O primeiro e decisivo fator foi a
deterioração do piso nacional dos salários, que, além de realidade salarial de uma grande parcela
dos trabalhadores brasileiros do período, atuou como âncora e nivelador dos salários dos
trabalhadores mais qualificados, para baixo. A repressão da atividade sindical e a elevação da
taxa de desemprego decorrente das falências e concordatas de empresas despreparadas para
enfrentar a longa crise depressiva, então desencadeada pelas orientações econômicas do
Ministério da Fazenda, sob gestão de Roberto Campos, permitiram, ao governo militar, acentuar
ainda mais a deterioração do salário-mínimo.
Conforme podemos observar através da Tabela II, o salário-mínimo já vivia com um
processo de deterioração no período de 1959 - quando se encontrava no patamar de 119,45
dólares - e 1963 - quando atingiu o patamar de 89,62 dólares. Entre 1959/63, ocorreu apenas uma
reação importante à tendência de deterioração do salário-mínimo por meio de correções salariais
de 1961 - quando atingiu o patamar de 111,52 dólares - determinada, fundamentalmente, pela
154
crise política que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros e à posse de João Goulart, com os
aumentos salariais atuando como elemento mobilizador das massas operárias e populares em
favor da posse do novo governo.
A partir da queda do governo Goulart, o salário-mínimo não somente foi alvo de políticas
de correções salariais eventuais, como conviveu com um lento, porém constante, processo de
deterioração chegando a atingir 56,54 dólares em 1976.
Os salários também caíram em função das novas relações de produção em implantação,
quando a extensa monopolização da economia, no final dos anos 50, impulsionam a
conformação de novos quadros técnico-burocráticos no setor público e na iniciativa privada, de
elevada qualificação profissional, participando de forma cada vez maior do produto socialmente
produzido, mesmo sob o quadro de crise recessiva. Este processo, por sua vez, assegurou a
demanda para os bens de consumo duráveis gerados pelo setor monopolista da economia. Foram
face e contraface da mesma moeda.
Conforme observa Singer, os salários do pessoal administrativo e qualificado não parou
de crescer entre 1964 e 1967, enquanto que os salários dos trabalhadores pouco qualificados
diminuiu fortemente. Ainda segundo o autor, “na indústria de transformação, entre 1964 e 1967,
em termos reais, o salário médio caiu 2,7% mas o salário mediano, que exprime o teto de
remuneração dos 50% pior pagos, foi reduzido de 14% (1984, p. 229)”.
Ocorre no período um certo reequilíbro no balanço de pagamentos. A crise recessiva,
diminuindo o poder de compra dos trabalhadores, que representava a demanda principal do
Departamento II, e inibindo programas de expansão do Departamento III, no período abaixo da
sua capacidade produtiva, atuou no sentido de conter a importação de tecnologia e insumos
industriais, contribuindo para o equilíbrio da balança comercial. Também concorreu para o
reequilíbro no balanço de pagamentos a substituição de produtos importados como determinados
bens de consumo duráveis e de produtos intermediários e tecnologia por parte das indústrias que,
sendo instaladas a partir da fase de expansão de 1956 a 1960, completam a montagem da sua
estrutura produtiva em pleno período da crise recessiva.
O Departamento II foi o mais penalizado pela crise recessiva. Privado de mercado devido
à queda dos salários, do intenso desemprego e da distribuição regressiva da renda, de um lado, e
reproduzindo-se sob características de elevada competitividade pré-monopolista, de outro,
conheceu um formidável estreitamento da sua taxa média de lucro. As falências e concordatas
atingiram uma ampla faixa de empresas de baixa composição orgânica de capital e/ou não
suficientemente organizadas, do ponto de vista técnico-administrativo, para se adaptarem à nova
fase de acumulação.
155
A presença do capital multinacional no Departamento II acentuou, ainda mais, as
pressões sobre as indústrias nacionais do referido departamento. A elevada produtividade do
capital multinacional permitiu uma elevada acumulação, mesmo sob pressão de preços e
restrição de mercados, ou seja, a elevada rentabilidade do setor gerou “folga” de preços através
da queda de custos e super-oferta de produtos que, por sua vez, “criou” mercados através da
eliminação de outros competidores ou restrição dos seus mercados. Conforme é possível
constatar na Tabela III, em 1967, entre as 10 maiores empresas do setor, 5 são empresas
multinacionais.
A monopolização foi a saída para as maiores indústrias do Departamento II. A elevação
da escala de produção proporcionada pelo aumento da composição orgânica de capital criou um
amplo mercado, seja pela queda dos custos de produção, quando confrontados com as indústrias
não monopolizadas do referido departamento, seja pelo acentuar das falências e concordatas
destas últimas, mesmo após o ciclo recessivo. O mercado é ampliado, ainda, através da
construção das grandes rodovias, o que permitiu que as indústrias do Departamento II,
monopolizadas ou em processo de monopolização, tenham seus produtos introduzidos nas
regiões mais distantes em relação ao Centro-Sul do país, destruindo atividades artesanais e
indústrias locais incapazes de competir com um setor industrial, cuja composição do capital era
muito superior.
8.4.4- As Características do Ciclo Econômico do “Milagre Econômico Brasileiro”
O ciclo econômico do chamado “Milagre Econômico Brasileiro” consolidou as
transformações estruturais inauguradas no governo JK, caracterizadas pela crescente integração
do mercado nacional, pela internacionalização econômica e pela hegemonia do capital
monopolista e oligopolista. As condições políticas, institucionais e econômicas adequadas ao
desenvolvimento do referido ciclo foram consolidadas com o golpe militar de 1964, responsável
pela derrocada política e organizativa do movimento operário e das frações burguesas não
monopolistas; com a reforma constitucional de 1967, chamada a redefinir relações entre o capital
nacional e internacional e entre Estado e sociedade civil; e por meio de políticas econômicas dos
governos militares, invocadas para conduzir a concentração e centralização de capitais,
principalmente, através do arrocho salarial.
Criaram-se as condições para um “boom” econômico, privilegiando os monopolistas do
setor público e do setor privado concentrados, respectivamente, nos Departamento I e III. A
impulsão foi dada por três elementos. Ocorreu um deslocamento de um número expressivo de
156
multinacionais para o Brasil à procura de vantagens relativas como matérias-primas e mão-deobra - a maioria norte-americanas, enquanto que no primeiro ciclo da internacionalização
predominam os oligopólios europeus.
As multinacionais recém-chegadas, juntamente com as demais instaladas anteriormente,
passaram a produzir voltadas, também, para o mercado externo. Incentivos fiscais e creditícios
criados pelo governo, além, é claro, da capacidade ociosa dos monopólios, do mercado subcontinental representado pelos demais países da América Latina e das pressões do governo para
equilibrar o balanço de pagamento determinaram uma crescente participação das multinacionais
no mercado externo.
O endividamento externo proporcionou o outro elemento responsável pelo impulso do
Milagre Econômico Brasileiro. Os empréstimos voltaram-se para saldar as dívidas de
importações - especialmente de bens de capital - e renegociar a dívida externa, que naquele
período estava em torno de 3.900 milhões de dólares em 1968 (Tabela III). O fato do processo de
monopolização da fase precedente ter se voltado basicamente para o mercado interno não
proporcionou as divisas externas necessárias para cobrir a remessa de lucros, dividendos,
royaltes, bens de capital - cuja reversão em termos expressivos ocorreu a partir do período do
“Milagre”, não antes.
Tal realidade decorreu, ainda, do fato de que a expansão precedente ter se conservado,
basicamente, no Departamento III, sendo que o Departamento I, também ampliado, não
diversificou a sua produção para além de insumos e tecnologia básica, não se estendendo para a
geração de bens de produção de elevada composição tecnológica, o que somente teve início no
período do Milagre Econômico Brasileiro. Portanto, somente o endividamento externo pôde
possibilitar os meios de financiamento complementares às fontes internas de financiamento para
a expansão do capitalismo monopolista associado e dependente.
O setor público da economia, concentrado basicamente no Departamento I, passou a
assumir uma função lucrativa. A venda subsidiada de insumos e serviços para o setor privado foi
moderada sob pena de descapitalizar e inviabilizar a expansão do referido departamento, sem o
qual o Milagre Econômico Brasileiro não seria possível.
O processo de descapitalização do setor público em curso até o “Milagre Econômico
Brasileiro” encerrou, em si mesmo, duas outras formas de descapitalização, não apenas dele mas
da economia nacional como um todo. Primeiramente, a transferência dos estímulos da expansão
das forças produtivas do país para os grandes centros capitalistas, à medida que a
comercialização dos produtos do setor público, com um subsídio implícito na forma da
comercialização dos insumos e tecnologia a preços que empatam com os custos de produção (ou
157
mesmo abaixo deles), amplia as margens de lucros da multinacionais, os quais são transferidos
para seus países de origem. Ocorria, portanto, uma descapitalização da estrutura produtiva
nacional.
Em segundo lugar, proporcionou, ainda, uma facilidade indireta para as exportações
realizadas por parte das multinacionais, que dessa forma compensavam o atraso tecnológico das
plantas industriais, aqui instaladas, com os insumos industriais subvalorizados produzidos pelo
setor público.
Além de pressionado pelo balanço de pagamento em constante desequilíbrio,
especialmente, devido à carência de divisas para assegurar a importação de tecnologia e a
remessa dos lucros das multinacionais e encargos financeiros da dívida externa, o Estado
preservou as condições que possibilitaram dinamizar as exportações e acentuar as pressões sobre
as exíguas divisas, à medida que o lucro ampliado pelo processo descrito tendia a sair do país.
Formava-se um agudo processo de desnacionalização dos excedentes socialmente produzidos,
cuja moderação dependia da própria estabilidade relativa da expansão que então teve início. Para
tanto, a relativa correção dos valores dos insumos e tarifas públicas tornara-se necessária.
Aspecto importante foi a nova relação estabelecida entre os capitais. No período
compreendido entre 1930 e 1954, as relações entre os capitais no âmbito da estrutura de
produção restringem-se, basicamente, ao capital privado nacional e ao capital estatal. O capital
multinacional encontrava-se alheio, em termos fundamentais, da produção.
A oposição que o capital privado nacional exerceu ao capital estatal, com exceção da
fração da burguesia comercial que monopolizou o circuito da exportação e importação, defendeu
um retorno da economia brasileira para a divisão internacional do trabalho precedente e teceu
uma crítica contundente ao papel industrializante do capital estatal, tinha um caráter fluido.
Manifestava-se em conjunturas precisas: quando seus interesses encontravam-se imediatamente
comprometidos pela presença/expansão das empresas estatais em ramos de atividade que o
capital privado nacional encontrava-se consolidado.
A oposição do capital privado nacional à ação do capital estatal não assumiu um cunho
sistemático porque não possuía as condições de substituí-lo na implantação dos novos ramos
industriais; porque o setor estatal proporcionava serviços e produtos não raramente abaixo dos
próprios custos de produção ampliando as condições de lucratividade no setor privado nacional;
porque a expansão do setor estatal ampliou as possibilidades de diversificação da produção do
setor privado; e porque a `classe dirigente´ dispunha de instrumentos como política cambial,
linhas de financiamentos, etc, para sobrepor-se aos interesses corporativos e imediatistas dos
grupos dominantes.
158
O capital monopolista internacional - em especial o norte-americano - pouco participou
da estrutura produtiva industrial nacional no período precedente à internacionalização da
economia. A liberação de empréstimos norte-americanos para a implantação de projetos, como a
instalação da Companhia Siderúrgica Nacional de Volta Redonda, decorreu mais da disputa de
hegemonia internacional, prontamente explorada pelo governo Vargas, conforme demonstra a
literatura referente à industrialização brasileira, do que de interesses econômicos imediatos. A
oposição do capital internacional tornou-se veemente quando da incidência de elevadas taxas
alfandegárias sobre mercadorias importadas ou do controle da saída de lucros dos investimentos
aqui realizados.
A partir do Programa de Metas, com a ampla instalação de um setor industrial
multinacional e com a ampliação do capital estatal, as relações entre capitais privados e estatal
tornaram-se mais complexas. O capital privado nacional conservou a sua oposição de cunho não
sistemático em relação ao capital estatal, estabelecendo determinados limites na ação do capital
estatal e usufruindo de múltiplos benefícios do referido capital ou das instituições e mecanismos
controlados pela classe dirigente.
Enquanto o capital comercial monopolista importador e exportador manteve-se a sua
tradicional oposição à ação do Estado, em prol da industrialização acelerada, o capital industrial
privado nacional, como exemplificam os setores vinculados a indústrias de equipamentos e
autopeças, respaldou a ação do Estado. Outros setores industriais, como aqueles organizados na
Associação Brasileira para o Desenvolvimento da Indústria de Base (ABDIB), que congregavam
empresas fortemente atreladas ao setor estatal, assumiram o apoio explícito à presença expansiva
do Estado na economia visto que, por extensão, ampliaram sua presença econômica.
O capital multinacional, tal qual o capital industrial privado nacional, assumiu uma
oposição formal e de superfície em relação a ação do capital estatal. A oposição do capital
internacional foi intensa apenas quando se desenvolviam debates no sentido de criar/ampliar
reservas de mercado para a indústria nacional, quando do impedimento da presença do capital
internacional nos setores denominados “estratégicos” aos interesses nacionais, ou, ainda, quando
da adoção de políticas restritivas à remessa de lucros.
O padrão de acumulação e financiamento capitalista que têm início com o Programa de
Metas e que conviveu com um importante ciclo expansivo no período do “Milagre Econômico
Brasileiro”, monopolista, dependente e internacionalizado, não apenas preservou, mas, também,
ampliou, enormemente, a participação do capital estatal na economia. Vários fatores concorrem
para tanto. A lógica da expansão do novo padrão econômico consistia em tomar recursos
externos baratos à altura daquela conjuntura e potencializá-los internamente. O setor público, o
159
maior de todos os tomadores de empréstimos externos, investiu na produção, ampliou as
possibilidades de investimento do capital privado nacional e multinacional e otimizou a
realização destes capitais graças a infra-estrutura proporcionada pelo setor público.
O setor público converteu-se, também, num grande comprador de mercadorias do setor
privado. Ao mesmo tempo, oferece ao setor privado serviços e produtos de custos inferiores
àqueles existentes no mercado internacional, o que aprofundou as condições de plena
acumulação no referido setor.
A relação era especialmente interessante para o capital multinacional à medida que o
setor público contraía empréstimos externos junto às instituições financeiras como o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional, cuja origem estava nos grupos oligopolísticos
internacionais. Em outras palavras, o setor público, ao diversificar as suas atividades produtivas
gerando novos serviços e produtos e instalando uma consistente infra-estrutura nacional,
ampliava as condições de realização dos capitais privados, sendo que ao capital privado
internacional ocorreu uma rentabilidade extra na forma dos rendimentos dos empréstimos
contraídos.
Uma boa parte das transações financeiras entre multinacionais, instituições financeiras
internacionais e o Estado sequer envolveram capitais líquidos, mas sim equipamentos, insumos
industriais, assistência técnica, proporcionados pelas matrizes de grupos oligopolísticos. Os
próprios empréstimos consistiam em processos de realização de mercadorias das matrizes dos
grupos oligopolísticos - tecnologia defasada, não raramente - ao mesmo tempo que davam um
sentido lucrativo ao excesso de liquidez internacional, ou seja, dos excedentes financeiros que
ultrapassavam a possibilidade de acumulação nos países cêntricos.
Os empréstimos internacionais realizados por parte do Estado, que entre outros objetivos
deveriam implementar o capital estatal, apresentavam a maior garantia entre todos os tomadores
de empréstimos, quais sejam, o fundo público e as próprias instalações de produção e de serviços
do setor público. Portanto, concomitantemente à abertura de possibilidades criadas pelo padrão
de endividamento externo para a realização econômica dos capitais oligopolísticos internacionais
e monopolísticos nacionais, agregava-se a garantia econômica dos empréstimos representada
pelo patrimônio público e a transformação destes empréstimos em capitais de risco no horizonte
estratégico.
O imbricamento que os capitais a assumiram a partir da segunda metade dos anos 50 não
apenas no Brasil e na América Latina, mas em todo o mundo, a consolidação das economias
regionais como subsistemas do capitalismo mundial, a constituição dos Estados nacionais em
reservas político-militares do imperialismo nos quadros da Guerra Fria e da luta contra o
160
socialismo, e a alta cúpula da burocracia civil e militar (ou classe dirigente) com seus conceitos
de modernização e de progresso, o seu alinhamento ao bloco ocidental e a reposição do caráter
coercitivo do Estado, [completam as condições para a convergência dos capitais monopolistas
nacionais e oligopolístas internacionais para o padrão de acumulação e financiamento
monopolista, dependente e internacionalizado].
8.5.- Contradições e Crise do “Milagre Econômico Brasileiro”
Mendonça (1988, p. 75-94) compreendeu a crise subseqüente ao Milagre Econômico
Brasileiro como decorrente das características e do grau de desenvolvimento do novo momento
do padrão de acumulação internacionalizado. A elevada produtividade e acumulação das
empresas monopolistas gerou uma transferência de grande parte da renda e de mais-valia
acumulada nos demais setores econômicos para as mesmas, produzindo um desenvolvimento
ainda mais desequilibrado devido às diversas velocidades, formas e intensidade da acumulação.
O quadro se agravou, ameaçando a própria acumulação em amplos setores econômicos não
integrados ao capital internacional e estatal, à medida que o caráter multinacional das empresas
de maior capitalização implicava no envio para fora das frações majoritárias dos seus lucros nos
quadros de uma produção voltada para dentro.
Umas das conseqüências decorrentes desse processo, além da própria transferência dos
estímulos da produção para “fora”, é o déficit na balança comercial mediante o imperativo das
restritas divisas externas flagradas pela necessidade da remessa de lucros das multinacionais e da
importação de insumos, tecnologias e bens de consumo correntes. O endividamento externo,
proporcionando divisas externas, foi a saída escolhida para cobrir o déficit na balança comercial,
assegurar a remessa de lucros das multinacionais e dos dividendos e serviços da dívida externa.
A crise do petróleo acentuou as dificuldades da economia brasileira à medida que
eliminou a grande liquidez internacional, dificultando o refinanciamento da dívida externa e as
coberturas do déficit na balança comercial; provocou a elevação das taxas de juros internacionais
e institui a substituição de programas de financiamento internacionais de longo prazo por
programas de curto e médio prazo. A elevação dos preços do petróleo em 400% pressionou,
ainda mais, a balança comercial do país, dependente da importação de petróleo e insumos
industriais derivados. Neste quadro, subiram os custos de produção e da renovação do capital
constante, ameaçando, respectivamente, a realização da produção e a acumulação.
161
Para Sergio Goldenstein (1986, p. 93-99), o balanço de pagamentos - saldo das transações
correntes mais os pagamentos do principal da dívida externa - não apresentou um enorme
desequilíbrio. Conforme demonstra a Tabela III, a dívida externa, um importante fator
responsável pelo desequilíbrio, totalizou 3.372 milhões de dólares, em 1967.
A corrida do país aos grandes empréstimos internacionais extrapolou, em muito, as
necessidades de refinanciamento da dívida. Segundo Goldenstein, 50% dos empréstimos têm
sido desnecessários para este objetivo. Mas, a superabundância das reservas cambiais ou
internacionais, então proporcionada pelo padrão de economia de endividamento internacional,
foi necessária como forma suplementar à poupança interna para financiar a aceleração do
crescimento econômico. Todos os setores econômicos abocanharam uma parte destes recursos.
O autor chamou a atenção para o fato de que o superendividamento provocou o
“inchamento” das reservas de câmbio resultando numa ampliação excessiva da base monetária
nacional, visto que a “quantidade de moeda gerada pela conversão de dívidas em moeda nacional
é bem superior à quantidade de moeda destruída pela conversão de cruzeiros em divisas”. Para
conter a expansão da base monetária e sustentar taxas de juros internas superiores às próprias
taxas internacionais, o governo aumentou a dívida pública, que saltou dos Cr$ 10.111 milhões
em 1970 para Cr$ 38.344 milhões em 1973. Acentuando, dessa forma, um fator da crise do
balanço de pagamento que até o início daquele período não ocupava grande importância para
formação da referida crise.
O “choque do petróleo” que ocorreu em outubro de 1973 não foi o elemento responsável
pelo esgotamento do ciclo do “Milagre Econômico Brasileiro”, mas encarregou-se de antecipá-lo
na visão de Sérgio Goldenstein. Elevaram-se os custos da importações de matérias primas e de
petróleo e, em conseqüência, ocorreu uma elevação formidável do déficit comercial.
A historiografia sobre o tema, referenciando nas taxas de crescimento do produto interno
bruto, aponta a crise do petróleo como um marco que delimita o início da crise do “Milagre
Econômico Brasileiro”. Esta crise foi responsável pela elevação das taxas de juros e pela
diminuição da liquidez financeira internacional. Economias como a brasileira conhecem um
processo que ameaça seu ritmo de crescimento econômico, à medida que se elevam os encargos
financeiros internacionais, recriando de forma ampliada a velha crise no balanço de pagamentos.
A elevação das taxas de juros e diminuição de liquidez no mercado internacional de capitais
comprometeram, por sua vez, a continuidade do processo de internalização do Departamento I.
O Estado, que no início do período criou as Obrigações Reajustáveis do Tesouro
Nacional (ORTN) e as Letras do Tesouro Nacional (LTN) como forma de refinanciar o déficit
público e formou poupança nas mãos do Estado para conduzir inversões na infra-estrutura, entre
162
outros objetivos, convive, agora, com uma elevação das taxas de juros no sistema financeiro
nacional, em decorrência da elevação dos custos de capitais disponíveis no mercado mundial.
Teve início o gigantesco endividamento interno como estratégia para o refinanciamento do
déficit público.
O Estado encontrava-se premido pela transferência de renda para o exterior através das
multinacionais e da dívida externa e pelas pressões sobre o balanço de pagamento delas
decorrente, de um lado, e pela criação de uma gigantesca esfera especulativa interna que tem que
ser constantemente refinanciada, de outro. O resultado foi a “descapitalização” do país, a
fundação de um paraíso financeiro especulativo e o crescente estreitamento da poupança do setor
público.
A estratégia de expansão implementada deu sinais de esgotamento. Assentada na
importação de bens de capital e insumos industriais, na ampliação da infra-estrutura interna e na
instalação de políticas creditícias para importação e exportação, conduzida basicamente pelo
Estado, não pôde ser mantida devido a elevação dos custos do capital internacional, da
tecnologia e dos insumos industriais após a crise do petróleo.
No biênio 1973/74 a política de confisco salarial conheceu os seus limites sociais, em
termos de epidemias e explosões sociais, e os limites econômicos, em termos de ameaça a
amplos setores industriais vinculados à produção de bens de consumo não-duráveis para os
trabalhadores. Conforme já demonstrado na Tabela I, o salário mínimo caiu para 54,48 dólares
em 1974. O confisco salarial encontrou, portanto, grandes obstáculos para ser ampliado além
daqueles limites.
O setor agropecuário fomentou o seu sub-setor agro-exportador graças às subvenções
públicas. O cultivo e industrialização da soja e da laranja, por exemplo, conviveram com uma
expansão inaudita graças a esse mecanismo. Mas, parte da rentabilidade do sub-setor, é,
portanto, artificializada. Possibilitada através de capital “morto” liberado pelo Estado na forma
das subvenções públicas, o que representou a “destruição” de excedentes sociais para a geração
de superávites comerciais.
O sub-setor agropecuário, voltado para o mercado interno, conheceu ganhos restritos de
produtividade. O tabelamento de preços conduzidos por entidades como a SUNAB, voltou-se
para baratear custos de reprodução da força de trabalho e ampliou a acumulação de capital no
setor urbano-industrial, o que terminou por comprimir a lucratividade do sub-setor. Os poucos
ganhos de produtividade que se realizou no sub-setor, por sua vez, tenderam a concentrar-se nas
mãos dos atravessadores e dos monopólios alimentícios. Estes processos, responsáveis pela baixa
163
capitalização do setor agropecuário, concorreram, também, para o esgotamento do ciclo
econômico do “Milagre Econômico Brasileiro”.
O centro das contradições do padrão de acumulação internacionalizado expressou-se
duplamente. Primeiro, no fato de que o processo de realização do valor se deu, internamente,
voltado fundamentalmente para o mercado interno, enquanto os setores mais dinâmicos e
rentáveis da economia eram de propriedade externa, multinacionais que buscam transferir para
fora sua acumulação. A esta contradição agregou-se outra, qual seja a instalação precária do
Departamento I. Tal realidade exigiu a importação de insumos e tecnologia, o que comprometeu
a
expansão
equilibrada
dos
departamentos
econômicos
através
da
transferência
interdepartamental de estímulos internamente à economia brasileira e concorreu para acentuar
crescentemente a crise do balanço de pagamento.
A esta dupla característica do padrão de acumulação agregou-se o recurso do
endividamento externo para assegurar a instalação da infra-estrutura de transporte e comunicação
e a ampliação dos setores do Departamento I (já instalados ou da instalação de novos setores).
Criou-se um padrão de endividamento externo. Para além de constituir-se numa das
fontes de financiamento da expansão do novo padrão de acumulação na forma da infra-estrutura
e cobertura de importações de tecnologia e insumos, o endividamento foi necessário para criar os
meios de pagamento internacionais para a realização da remessa de lucros das multinacionais,
dividendos da própria dívida externa, royalties etc.
8.6.- O II Plano Nacional De Desenvolvimento
O II Plano Nacional De Desenvolvimento (II PND) foi elaborado num contexto de crise,
mas com o propósito de retomar as elevadas de taxas de crescimento econômico do período
precedente. Sua grande importância residiu, ao mesmo tempo, no fato de ter “completado” a matriz
das relações interindustriais taylorista-fordista (através da instalação dos últimos ramos industriais
constitutivos do setor produtor de bens de produção sem, contudo, suprir os bens de tecnologia
superior, o que conservou o país dependente dos bens oriundos de ramos industriais do referido
setor localizado nos países cêntricos) e de ser a última fase de dinamismo da economia brasileira até
os dias atuais.
164
8.6.1.- O II PND: O Prolongamento da Acumulação Precedente e a Postergação da Agonia
O II Plano Nacional de Desenvolvimento iniciou oficialmente em 1974 e expandiu-se, de
fato, até 1976. Expressou a tentativa de continuidade do processo de montagem da matriz de
relações industriais que teve início em 1956 com o Programa de Metas e que conheceu um salto
importante com o chamado “Milagre Econômico Brasileiro”.
O II PND apoiou-se num diagnóstico acerca da economia brasileira. Localizou como
importante gargalo econômico a insuficiência de produtos oriundos do setor de bens de produção
criados, ou ampliados, pela expansão industrial da fase precedente; reconheceu no atraso do setor
da indústria alimentícia implicações inflacionárias; identificou a sensibilidade da economia
brasileira à importação de determinados produtos, em especial em termos de elevação de custos
de produção; e apontou a tendência de um elevado desequilíbrio externo desencadeado pela
pressão das importações de insumos industriais, tecnologia e petróleo e derivados na balança
comercial e, principalmente, no balanço de pagamento.
Os problemas da economia brasileira, esclarecidos pelo diagnóstico realizado, não
poderiam, conforme previa o plano, ser enfrentados parcial e isoladamente. Os problemas
deveriam ser enfrentados simultaneamente, através de um plano global de desenvolvimento, de
tal forma que provocasse a criação e transferência de estímulos sobre o conjunto da economia.
As metas estratégicas do II PND foram basicamente três: conservar uma taxa elevada de
crescimento para a economia brasileira, pelo menos aproximada às taxas obtidas no período do
“Milagre Econômico Brasileiro”; corrigir os desníveis e os gargalos gerados pela expansão
industrial anterior, buscando uma expansão mais estável e corretiva; e realizar uma
transformação das prioridades da indústria brasileira, convertendo o Departamento I, produtor de
bens de produção, no setor mais dinâmico e indutor do processo de expansão industrial,
ocupando o lugar que até então fora desempenhado pelo Departamento III, produtor de bens de
consumo duráveis. Dessa forma, segundo os ideólogos e tecnocratas do regime, a sociedade
brasileira criou condições adequadas para ingressar no rol dos países desenvolvidos, mais ao
final do século XX.
Em que pese o discurso justificador do II PND, há outros fatores de extrema importância
para compreendermos a sua formação. A crise do “Milagre Econômico Brasileiro”, já se
manifestava no primeiro semestre de 1973, aguardava o “Choque do Petróleo” de outubro de
1973 e a mudança de governo, em março de 1974, para revelar a amplitude das suas
conseqüências sobre a economia brasileira. As modificações de alguns indicadores econômicos
entre 1973 e 1974 nos revelam a gravidade da crise naquele momento: as importações de
165
matérias primas (incluindo o petróleo) passam de 3.271 milhões de dólares para 8.429 milhões
de dólares; o custo de importação por tonelada salta de 124,4 dólares para 230,2 dólares; o preço
da tonelada de petróleo importado vê-se multiplicado por 4; o déficit comercial atinge 4.690
milhões de dólares em 1974; e as despesas da balança de pagamento passam de 10.530 milhões
de dólares para 18.522 milhões de dólares, conforme podemos constatar na Tabela IV.
O balanço de pagamentos foi o elemento central a ser considerado. Conforme já alertado
por Prado Jr (1966, p. 134-135), Oliveira (1984, p. 92-107) e Mantega, Moraes (1980, p. 59-71)
o balanço de pagamentos tornou-se o elemento de maior fragilidade do padrão capitalista de
acumulação e financiamento implementado no Brasil, porque teve que mobilizar enormes divisas
para que o capital estrangeiro - diretamente aplicado na forma das multinacionais; indiretamente
aplicado e de curto prazo, como os capitais aplicados na esfera financeira nacional; e
empréstimos provenientes de governos e instituições financeiras internacionais voltados para a
montagem de infra-estrutura, para o refinanciamento da própria dívida externa e para o repasse
de riqueza na forma de financiamentos ou subsídios às empresas privadas e públicas – pudesse
ser enviado para o exterior.
Manter as condições para um aporte constante de capitais externos foi fundamental para o
governo “cobrir” o déficit do balanço de pagamentos e reiterar a dinâmica econômica acima
referida. Com a crise do petróleo, esta dinâmica foi pressionada em vários aspectos. A elevada
liquidez internacional desapareceu. Os países centrais operaram modificações importantes na sua
estrutura de produção internamente. Como se revela mais tarde, ao final dos anos 70 e início dos
anos 80, estas modificações não se circunscreveram a remanejamentos das bases das relações
interindustriais. Elas voltaram-se para a modificação da matriz de relações interindustriais e,
consequentemente, do paradigma tecnológico adotado até então.
O taylorismo-fordismo, que conheceu os primeiros sinais de esgotamento ao final dos
anos 60, mediante as novas exigências de um mercado internacional multipolar e altamente
competitivo, viveu o seu “réquiem” com a crise do petróleo. Os custos financeiros elevaram-se
porque devem financiar a corrida bélico-militar do ocidente liderada pelos Estados Unidos contra
a ex-União Soviética, cobrir déficits públicos dos Estados capitalistas centrais em decorrência da
imobilização de capitais na forma de tecnologia, de insumos industriais e de matérias primas
estocáveis, assumir os custos dos novos preços do petróleo e derivados que elevam-se
violentamente e, principalmente, viabilizar o financiamento do processo de reestruturação
oligopolista dos países centrais.
Os capitais dos países centrais tendiam, nesta conjuntura, a conservar-se neles mesmos
em função da crise depressiva e da restrição da taxa média de lucro e, principalmente, para
166
subsidiar pesquisas tecnológicas e científicas para a conquista de novo padrão tecnológico, para
requalificar gerencial e administrativamente as empresas, para recompor em novas bases o
quadro de pessoal e para desencadear novas formas de reestruturação do trabalho.
A implementação do II PND, portanto, deveu-se menos à pressão dos empresários
privados ligados ao Departamento I e mais à busca por parte do Estado de completar a instalação
da matriz interindustrial iniciada a partir do Programa de Metas. E isto, menos em decorrência de
pressões de cunho nacionalista e mais em função do imperativo da substituição de importações
de insumos industriais básicos - especialmente petróleo e derivados - e tecnologia básica que tão
profundamente abalaram o balanço de pagamento, posteriormente à crise do petróleo, pelas
razões acima indicadas.
O balanço de pagamentos buscava ser equilibrado. Além da própria substituição das
importações de insumos industriais, petróleo e tecnologia, ocorreu a conversão do país em
exportador de uma larga parcela destes mesmos produtos reforçando a balança comercial. De tal
forma, que às pautas de exportações - que convivam com um crescimento inaudito de
determinados produtos agropecuários como a soja e o suco de laranja, de bens de consumo
duráveis como o automóvel e eletrodomésticos e de bens de consumo não duráveis como
calçados e tecidos - incorporaram os minérios brutos, ferro, aço etc.
O II PND permitiu concluir a montagem da matriz das relações interindustriais que têm
início com o Programa de Metas. Esta “conclusão” desenvolve-se sob o paradigma tecnológico e
empresarial da produção taylorista-fordista.
Enquanto o esgotamento e transição deste paradigma acentua-se a partir da crise do
petróleo nos países capitalistas centrais, o governo militar desenvolveu o II PND com o
propósito de “completar” - no sentido de instalar todos os setores econômicos ainda que de
forma insuficiente, tecnologicamente defasado e “impossibilitado” de produzir todo e qualquer
produto de elevada composição tecnológica - a matriz das relações interindustriais. Eis o quadro:
elevado endividamento externo, instalação de novos setores industriais sob estrutura produtiva
defasada em relação aos países centrais e dependência tecnológica.
Este quadro estrutural-dependente culminou com a transferência líquida de recursos
numa escala inaudita a partir do choque econômico internacional de 1979. Conforme podemos
conferir na Tabela V, o impacto do choque econômico internacional de 1979 determinou a
elevação dos juros da dívida externa de 2.696 US$ milhões em 1978 para 4.186 US$ milhões em
1979. Nos anos que se seguem, a elevação foi ainda maior ocorrendo, concomitantemente, a
retração da liquidez internacional - o que comprometeu a estratégia de recorrer a novos
167
empréstimos para refinanciar juros e serviços da dívida externa - e a pressão para a remessa dos
juros e dividendos.
Os anos 80 reiteraram os impasses estruturais que tão profundamente caracterizaram a
sociedade brasileira no período do “Milagre Econômico Brasileiro”: sangria permanente de
recursos nacionais; dívida que crescia vertiginosamente apesar desta sangria; paradigma
tecnológico nacional obsoleto se confrontado com os países capitalistas centrais e em franco
sucateamento devido à crise de financiamento interno e externo da economia; infra-estrutura que
acumulava crescente carência de recursos e gargalos estruturais; ausência de uma consistente
articulação institucional e fundos satisfatórios para o desenvolvimento de ciência e tecnologia
que concorresse para a conquista de padrões técnico-científico, genuinamente nacionais;
aceleração da destruição dos recursos naturais não-renováveis decorrente de bolsões de
população
extremamente
empobrecidas
e
de
uma
estrutura
produtiva
extensiva,
tecnologicamente defasada e que buscasse superávites comerciais, a qualquer custo, para aliviar
o déficit da balança de pagamentos; e distribuição altamente regressiva da renda, da informação,
da participação política e da escolaridade no âmbito da sociedade brasileira.
O Brasil - juntamente com os demais países denominados “países em desenvolvimento”
ou “economias emergentes” - concorreu para o financiamento da reestruturação da matriz das
relações interindustriais e do paradigma tecnológico dos países capitalistas centrais. A
transferência de recursos assume extrema importância para a conformação do montante de
capital social necessário à reestruturação tecnológica dos países centrais.
8.6.2- O II PND e as Contradições Burguesas
O II PND conservou-se nos limites do processo de industrialização em curso no Brasil.
Formou-se tendo em vista completar a internalização de setores de atividade do Departamento I,
corrigir desequilíbrios motivados por atrasos de determinados setores e equacionar pressões
externas no sentido de conservar o caráter do padrão capitalista de acumulação e financiamento
inaugurado com o Programa de Metas. O II PND não se constituiu, portanto, num plano voltado
para redefinir um padrão econômico, o que implicava em transformar a matriz das relações
interindustriais, o modelo tecnológico adotado e o caráter da relação entre o setor público e o
setor privado.
O II PND propôs-se a completar a matriz das relações interindustriais em curso,
conservar o modelo tecnológico e manter a relação entre o setor público e o privado, porém,
168
modificando, por dentro da matriz, a dinâmica das relações interdepartamentais. Buscava-se
atribuir ao Departamento I a liderança das articulações interdepartamentais.
O fato do II PND comprometer conjunturalmente interesses dos capitais vinculados ao
Departamento II e III, visto que estes não têm - salvo alguns ramos industriais isoladamente prioridade nas grandes inversões públicas, tal processo pôde até mesmo ampliar espaços de
crescimento para estes departamentos econômicos a médio prazo. Esta realidade não deteve as
contradições e disputas políticas e econômicas que se formaram nos bastidores do regime militar.
As disputas intersetoriais se deram em torno do fundo público e em função da redefinição
das relações interdepartamentais sob a matriz das relações interindustriais vigentes. O setor da
construção civil, em especial as empreiteiras, assumiu oposição ao II PND, temeroso de que a
canalização dos recursos públicos para o Departamento I ameaçasse o ritmo da sua acumulação,
visto que o Estado dispunha de recursos mais exíguos para manter a quantidade e o ritmo das
obras públicas como usinas, conjuntos residenciais etc. O capital estrangeiro, por sua vez,
mobilizou-se, prioritariamente, para conservar o Departamento III por ele controlado como o
mais dinâmico da economia. Pressionou as autoridades da área econômica do governo para
conservar livres as importações de máquinas e equipamentos - e não raramente, insumos
industriais - para obtê-los junto à matriz do próprio grupo multinacional aqui instalado. Os
industriais do Departamento I disputavam, ao mesmo tempo, a restrição às importações de bens
de produção que já estavam sendo produzidos internamente pela iniciativa privada e maior
participação nos fundos públicos. Os obstáculos e disputas em torno do II PND residiam,
basicamente, no tocante à participação nos fundos públicos, na restrição das importações e no
grau da participação do Estado na economia.
O Estado brasileiro sob o regime militar demonstrou dificuldade em arbitrar as perdas,
disciplinar o processo de acumulação em curso e operar ruptura com interesses estabelecidos.
Conforme Lídia Goldenstein (1994, p. 85) afirma,
As resistências ao Plano foram abortadas por meio dos velhos mecanismos de sempre: o Estado mantém as
transferências de recursos e os mecanismos de proteção aos velhos setores até então privilegiados,
assumindo os custos para evitar rupturas de acordo com a característica básica do padrão de acumulação
brasileiro.
Esta dificuldade, conforme afirma Lídia Goldenstein, é conseqüência do caráter do
Estado. Este encontrava-se composto por uma articulação de interesses que, a nosso ver,
expressa-se no bloco no poder, contraditoriamente imobilizando-o no sentido de romper com
169
interesses “atrasados” e “tradicionais”, mas agilizando-o na defesa dos interesses dos grupos
monopolísticos.
O empresariado vinculado ao Departamento I e organizado na Associação Brasileira para
o Desenvolvimento da Indústria de Base (ABDIB) desenvolveu, durante o regime militar,
críticas às teses privatistas e de afastamento do Estado das articulações econômicas e defendeu a
proteção à indústria nativa. A crítica ao regime ditatorial e a defesa ao retorno do país ao “estado
de direito” também possuia grande presença nas entrevistas e posicionamentos dos
representantes mais ilustres desse setor.
A posição de Mantega, Moraes (1980, p. 95-101) segundo os quais este setor aguardava a
oportunidade e condições para um rearranjo político-econômico nacional, tendo em vista liderar
e ser o centro articulador de um novo projeto de hegemonia nos parece inconsistente.
Primeiramente, por que este setor não assumiu uma postura contundente de oposição ao regime
militar, mobilizando a sociedade civil e demais frações burguesas sensíveis a um rearranjo
político. A sua oposição é moderada e não abraçam uma bandeira nacionalista, o que caracteriza
muito mais uma acomodação de forças e interesses dentro do bloco do poder do que uma
transformação dele mesmo. A reacomodação de interesses fez-se “necessária” mediante a queda
do impulso expansivo da economia em geral e do papel de grande destaque que o Departamento
I assume durante os períodos do “Milagre Econômico Brasileiro” e do II PND, em especial o seu
setor privado.
Em segundo lugar, um novo projeto de hegemonia seria o resultado do esgotamento da
estrutura de reprodução material sobre o qual se apoia a sociedade. A Revolução de 30 e o
período pós-revolucionário, precedido pelo esgotamento do padrão de acumulação então vigente,
encarregam-se de romper com os escombros do referido padrão e edificar um novo padrão
econômico. Isto não ocorreu no Brasil do II PND, visto que a economia conservava-se sob uma
dinamicidade relativamente elevada e, nem tampouco, havia sinais concretos da crise orgânica
do padrão de acumulação vigente (que no futuro não muito distante haveria de se manifestar).
Indubitavelmente os representantes da ABDIB ou de qualquer outra fração burguesa que
compunha o bloco do poder - os setores monopolísticos da indústria alimentícia, o capital
bancário/financeiro, o capital multinacional etc - não caracterizaram como esgotada a matriz das
relações interindustriais vigentes ou propuseram uma matriz alternativa. Nem tampouco uma
“guerra política” interburguesa de bastidores foi presenciada no período do regime militar pós-II
PND.
170
8.6.3- Contradições e Crise do II PND
O II PND recorreu de forma intensa ao padrão de endividamento externo, repondo uma
estratégia de financiamento numa conjuntura que se apresentava desfavorável a esta iniciativa.
Porém, era um imperativo daquele plano, visto que inexistiam condições internas de
financiamento.
A reorganização do sistema bancário desenvolvido no Programa de Ação Econômica do
Governo (PAEG) conservava os bancos nas operações convencionais de serviços e de crédito ao
consumidor. O objetivo central era criar uma estrutura de financiamento ao consumidor para
viabilizar a realização comercial dos bens de consumo duráveis, atingindo, praticamente, todo o
corpo social. A conformação de uma estrutura de financiamento da produção não era objetivo
central do PAEG. Os bancos privados nacionais não possuiam capitais e, nem tampouco,
interesse de financiar a longo prazo a instalação/ampliação dos novos setores produtivos.
A outra saída foi operar uma reforma fiscal e tributária extremamente forte apurando nas
mãos do Estado os recursos necessários para alavancar uma nova arrancada industrializante a
partir do setor público. Tal iniciativa certamente comprometeu a manutenção das taxas de
crescimento (ainda elevadas no “Pós-Milagre”) e desencadeou um ciclo inflacionário intenso,
além, é claro, de romper com o pacto político interburguês que assegurava a estabilidade pelo
alto do regime militar.
A entrada de recursos externos para “equilibrar” os déficits da balança de pagamentos
converteu-se num processo vital para a reiteração do padrão econômico fundado na dependência
e subalternidade na conjuntura do II PND, seja para cobrir custos de tecnologia, seja para cobrir
o desequilíbrio da balança comercial devido à elevação dos preços do petróleo e insumos
derivados e da deterioração dos termos de troca motivada pela queda do valor das exportações de
produtos primários, seja ainda para cobrir custos de encargos financeiros anteriores e para “criar”
liquidez para a remessa de lucros das multinacionais.
A entrada de recursos externos não contava com uma grande participação das empresas
multinacionais e dos monopólios industriais e bancos nacionais, que no período anterior
completam os empréstimos recorridos pelo governo. A elevação dos custos internacionais do
capital, a subida dos custos de tecnologia e de insumos industriais importados e a queda de ritmo
de crescimento interno da economia desestimularam a corrida dos setores privados atrás de
empréstimos internacionais.
A retração dos investimentos e da aceleração da inflação completavam o quadro. A
insegurança econômica, a relativamente elevada capacidade ociosa das empresas e as
171
convidativas aplicações de prazos cada vez mais curtos e indexados à correção monetária
(ORTN), absorveram recursos para a esfera financeira. Os títulos públicos converteram-se, sem
risco e com a proteção da correção monetária contra a inflação, na âncora que regulamentou a
rentabilidade das aplicações financeiras em geral.
Este processo obedeceu a uma estratégia do governo que nasceu durante o PAEG e
conservou-se posteriormente para encontrar as divisas externas, para viabilizar a remessa de
lucros das multinacionais e os dividendos e serviços do endividamento externo - e que durante o
II PND agregou-se à necessidade de encontrar recursos para importar tecnologia, petróleo etc, de
custo mais elevado - o governo adotou a política de elevar o patamar dos juros internos,
obrigando o grande capital privado a realizar empréstimos externos. Na fase da expansão do
“Milagre Econômico Brasileiro”, quando as empresas consideravam mais interessante aplicar
diretamente na produção do que imobilizar seus ativos nas aplicações financeiras, o esquema
adotado não revelava todo o seu “risco”. Mas converteu-se numa “armadilha” quando o
dinamismo econômico caiu e a inflação cresceu.
Assegurar as aplicações de curto prazo e indexadas à correção monetária (ORTN)
converteu-se num problema de graves proporções para a economia brasileira, a saber:
transformou-se num mecanismo de propagação inflacionaria, seja pelos novos e abundantes
meios de pagamento que ela mesma representava, seja pela correlação entre inflação e
remuneração financeira; liquidou-se a frágil estrutura de financiamento da estrutura produtiva
através de bancos nacionais na forma de linhas de crédito voltadas para a estrutura produtiva
privada, visto que não se corria riscos no âmbito da especulação financeira em torno dos títulos
do governo; converteu-se o fundo público em algo crescentemente comprometido com a
reiteração e acumulação do capital na esfera financeira, exaurindo a sua capacidade de
financiador da economia e fiador da seguridade social de acordo com a dimensão keynesiana que
historicamente o Estado assumiu no Brasil; edificou o Brasil como mais uma das repúblicas dos
capitais de aplicação de curtíssimo prazo, sem qualquer sentido produtivo.
Formou-se um círculo vicioso e especulativo para os capitais privados nacionais e
estrangeiros que se encontravam na forma de poupança interna. O processo, contudo, estendeuse, também, por sobre os capitais captados externamente através de monopólios empresariais e
bancários. Conforme esclarece Lídia Goldenstein,
De um lado, as autoridades econômicas elevam as taxas de juros tentando “empurrar” empresas e bancos
para o mercado financeiro internacional. De outro, preocupadas com a inflação e, ao mesmo tempo, para
garantir as taxas de juros internas elevadas, absorvem a liquidez decorrente da entrada de recursos externos
172
vendendo títulos públicos às taxas por elas elevadas, aumentando o volume de títulos em circulação e,
consequentemente, seu custo financeiro. (Lídia Goldenstein, 1994, p. 90).
Finalmente, parte dos empréstimos externos realizados pelo governo foi repassado para a
iniciativa privada sob taxas de retorno inferiores àquelas do próprio empréstimo e com longo
período de carência. A isto somavam-se incentivos fiscais, subsídios e serviços públicos a custos
defasados, ou seja, o Estado não apenas abriu mão da sua participação nos excedentes gerados por
parte de determinados setores da iniciativa privada, como também transferiu capital líquido para o
setor privado a título de “fundo perdido” para várias empresas, ramos de atividades ou mesmo
setores econômicos.
8.7- A Articulação do Modelo Econômico
O padrão de acumulação monopolista, dependente e internacionalizado se articulou por
meio da entrada das multinacionais, do padrão de endividamento externo e da própria
monopolização da indústria nativa. O dinamismo do padrão de acumulação passou a depender de
forma crucial destes capitais.
A presença das multinacionais se intensificou, conforme podemos comprovar através da
Tabela III. No universo das 10 maiores empresas por setor, as multinacionais se destacavam nos
setores de bens de capital (especialmente indústrias de materiais elétricos, mecânicos e
químicos), bens de consumos duráveis (com grande destaque para as indústrias de materiais de
transporte e eletrodomésticos) e bens de consumo não-duráveis.
Quando consideramos o fato de que o setor produtor de bens de consumo duráveis
controlado pelas multinacionais era a locomotiva do padrão e absorvia ganhos de produtividade
de todos os demais setores em decorrência da sua localização estratégica, concluímos que os
números não alcançavam o grau dessa influência. Isto fica mais evidente quando agregamos à
interpretação desta influência a superioridade tecnológica e empresarial destas empresas. Em
1974, elas detinham em torno de 30% do patrimônio líquido total das 5.113 maiores empresas da
indústria de transformação do país, conforme podemos confirmar através da Tabela XLII.
As empresas monopolistas nacionais também se consolidaram no período. Embora
praticamente excluídas do setor de bens de consumo duráveis elas passaram a monopolizar o
setor de construção civil, o comércio, as comunicações e assumiram grande importância no setor
de bens de capital e bens de consumo não-duráveis conforme podemos averiguar através da
mesma Tabela.
173
As empresas estatais monopolizavam os setores de bens intermediários e de serviços. Em
que pese as orientações econômicas voltadas para a autovalorização dos seus capitais, estas
empresas assumiram o papel de proporcionar condições econômicas e infra-estruturais para
impulsionar o dinamismo do modelo. Isto determinava que uma parte significativa dos seus
ganhos de produtividade fossem transferidos para as grandes empresas privadas.
O padrão de endividamento externo também passou a assumir crescente importância no
contexto da articulação econômica do modelo, conforme podemos comprovar através da Tabela
XXXVIII. O crescimento da dívida conviveu com uma aceleração a partir de 1967 quando se
encontrava na casa dos U$ 3.372 milhões. Mas, foi a partir de 1971 que a dívida externa deu
sinais de uma dinâmica irresistível de expansão saindo da casa dos U$ 5.295 milhões em 1970 e
atingindo a casa dos U$ 6.622 milhões. Em 1976 atingiu a casa dos U$ 25.985 milhões.
A dinâmica de expansão da dívida externa estava relacionada aos investimentos infraestruturais (estradas, frota naval, telecomunicações etc) e da indústria de base de caráter estatal
realizados pelos governos militares, tendo em vista assegurar a expansão econômica; com a
pressão do capital financeiro internacional interessado em encontrar importadores de capitais em
condições de potencializar a sua reprodução; com os estreitos superávits da balança comercial
(quando não deficitária a exemplo dos anos de 1971 e 1972); com a exigência de divisas externas
para o envio de lucros das multinacionais e com o próprio refinanciamento da dívida externa em
função da sua própria dinâmica e dos desequilíbrios econômicos em curso. Portanto, tratava-se
de uma dinâmica estrutural da economia monopolista, dependente e internacionalizada. A
referida dinâmica seria significativamente agravada com a chamada “crise do petróleo” em 1973.
A estrutura econômica brasileira, que convivia com a instalação dos últimos ramos
industriais necessários para completar a estrutura industrial, se articulava a partir de um padrão
de relações interindustriais taylorista-fordista. Padrão este em processo de superação nos países
de capitalismo cêntrico.
Este processo assumiu grande relevância para a compreensão do período à medida que a
estrutura econômica brasileira não se transformou num grande exportador de produtos
industrializados de elevada composição tecnológica, em especial bens de consumo duráveis e
bens de produção. Além da defasagem tecnológica estabelecida entre o padrão de relações
interindustriais vigente no Brasil e o padrão de relações interindustriais pós-taylorismo-fordismo
dos países de capitalismo cêntrico, agregava-se o fato de que as subsidiárias das multinacionais
não vieram produzir no país para competir com suas próprias matrizes internacionais. Vieram
para explorar a condição de um mercado cativo representado pelo mercado nacional.
Conforme podemos verificar através da Tabela XXXV, entre 1968 e 1976 a exportação de
174
produtos agrícola in natura caiu de 69,1% em 1968 para 47,8% em 1976. Esta queda de
participação dos produtos agrícola in natura nas exportações ampliou espaços para a exportação de
outros produtos, em especial de bens industrializados.
A exportação de minérios não-industrializados subiu de 7,4% para 11,1%. Outros produtos
não-industrializados (que se encontravam fora do grupo de bens minerais e agropecuários in natura)
caiu de 2,9% para 1,8%.
Os bens industrializados elevavam a participação nas pautas de exportação no mesmo
período. Os bens industrializados de base agrícola subiam de 16,2% para 19,7%, enquanto que
os bens industrializados de base não-agrícola subiam de 0,7% para 15,3% e outros
industrializados subiam de 3,7% para 4,8%.
A participação dos bens agrícolas in natura, minerais, outros “não-industrializados” e
industrializados de base agrícola em 80% das exportações e os bens industrializados de base nãoagrícola e “outros industrializados” em 20% das exportações demonstra a dependência da economia
brasileira da exportação de produtos e indústria primária. Esta realidade determinava a submissão da
estrutura econômica brasileira aos termos de troca favoráveis aos países cêntricos. Determinava
ainda a sua vulnerabilidade às instabilidades da economia internacional a exemplo da “crise do
petróleo”, quando ocorreu uma queda do valor dos bens primários e uma elevação brutal do valor
do petróleo e de bens tecnológicos no mercado internacional.
Esta realidade demonstrava, ainda, que a montagem dos últimos setores industriais
necessários para completar o padrão interindustrial taylorista-fordista não modificava (pelo menos
até quele momento) a condição da economia brasileira. Conservava-se, em termos fundamentais, a
condição de uma economia exportadora de produtos primários de origem agrícola e mineral in
natura, pré-transformado ou transformado.
A dependência da economia nacional em relação à dinâmica de expansão das
multinacionais e monopólios nacionais (não raramente diretamente dependente das
multinacionais) e a elaboração de políticas governamentais pragmaticamente voltadas para
assegurar investimentos em infra-estrutura e financiamentos direcionados para os setores
privados de ponta da economia concorreram, decisivamente, para a consolidação do papel
estratégico das empresas multinacionais e monopólios nacionais no conjunto da sociedade
brasileira. Exemplo dessa realidade nos deu a indústria automobilística, que determinou em
grande medida o ritmo da importação de petróleo, da pesquisa de extração de petróleo, da
construção de refinarias, da construção de estradas de rodagem, do planejamento urbano, da
conformação de uma indústria fornecedora de peças e componentes para automóveis, da
175
indústria de base estatal fornecedora de ferro e outros insumos industriais, da canalização da
poupança privada para a realização comercial da sua mercadoria, entre outros condicionamentos.
A condição de uma economia transferidora de estímulos produtivos na forma do envio de
lucros das multinacionais, do pagamento de custos financeiros internacionais e dos termos de
troca desfavoráveis, criou uma extrema dependência das atividades econômicas estratégicas (o
grande capital nacional e, principalmente, multinacional) e dos capitais financeiros
internacionais para assegurar taxas de investimentos reais.
Podemos comprovar esta afirmação através da análise do comportamento do produto
interno bruto (PIB) e dos déficits em conta corrente contidos na Tabela XI. No período
compreendido entre 1950 e 1955 o PIB cresceu a uma taxa média de 6,7% e acumulou um
déficit em conta corrente de U$ 1.025 milhões. A taxa média de crescimento do PIB apresentava
significativamente elevada se considerarmos que a economia brasileira, embora dependente e
submetida a uma industrialização restringida a bens primários, não se encontrava
internacionalizada.
No período compreendido entre 1956 e 1961, ou seja, o período de implantação do
padrão de acumulação monopolista, dependente e internacionalizado, a taxa média de
crescimento do PIB foi de 7,4% e o déficit de conta corrente foi de U$ 1.466 milhões.
Observava-se já neste período uma elevação moderada do PIB (0,7%) frente a um crescimento
expressivo do déficit de conta corrente (U$ 441 milhões) em relação ao período anterior.
No período de 1962 a 1967 a economia monopolista, dependente e internacionalizada deu
sinais importantes do quanto ela estava determinada pelas multinacionais, capital financeiro
internacional e monopólios nacionais. A radicalização das lutas dos operários, classes médias
assalariadas, estudantes e trabalhadores e pequenos produtores rurais, expressa na forma da
denúncia do pacto populista no período imediatamente precedente ao golpe militar de 1964,
determinou o recuo dos investimentos diretos dos grandes capitais nacionais e internacionais e o
cancelamento de novos empréstimos (a exemplo dos 726 milhões de dólares negociados entre o
governo Goulart e o governo norte americano e o FMI) para assegurar o financiamento do déficit
em conta corrente e continuidade de investimentos em infra-estrutura industrial e transporte. Nos
anos de 1963 e 1964 o crescimento do PIB foi, respectivamente, de 1,5% e 2,9%. As dúvidas que
se seguiram ao golpe fizeram os grandes capitais conservarem-se recuados em relação a novos
investimentos. Em conseqüência o crescimento do PIB foi de apenas 2,7% em 1965.
No período o PIB caiu para 3,5% e o déficit em conta corrente acumulou em U$ 178
milhões. O déficit em conta corrente somente não foi muito maior em decorrência da contenção
dos gastos do governo com serviços sociais, restrição das importações etc.
176
No período compreendido entre 1968 e 1973, qual seja, o ciclo econômico do chamado
“Milagre Econômico Brasileiro”, o PIB cresceu a uma taxa média de 11,1%. Isto foi possível
porque ocorreu a entrada de novas multinacionais, intensificou a corrida aos empréstimos
internacionais e acentuou a concentração dos grupos econômicos nacionais assegurados, é claro,
por uma “estabilidade” política e social proporcionada por um Estado altamente repressivo.
O déficit em conta corrente atingiu U$ 5.835 milhões. Como podemos conferir através da
Tabela XXXVIII as exportações (U$ 20.024 milhões) empataram com as importações (U$
20.027 milhões) no referido período, do que se conclui que o déficit em conta corrente ocorreu
em função dos novos empréstimos internacionais para assegurar investimentos nos programas de
infra-estrutura industrial de cunho estatal (mas também privado através do BNDES), para o
refinanciamento do endividamento e para encontrar divisas externas para a remessa de lucros das
multinacionais.
No período compreendido entre 1974 e 1976 o PIB foi de 8,2% e o déficit em conta
corrente acumulado foi de U$ 19.846 milhões. A elevação dos preços do petróleo e tecnologia
(equipamentos, máquinas, petróleo e insumos industriais) e a queda dos preços dos produtos
primários no mercado mundial foram responsáveis por uma balança comercial desfavorável de
U$ 10.272 milhões. A elevação dos juros internacionais e os novos empréstimos internacionais
para o refinanciamento da dívida externa, para manter a continuidade das obras de infra-estrutura
industrial e transportes em formação e para assegurar divisas que pudessem enviar os lucros das
multinacionais foram responsáveis pelos restantes U$ 9.574 milhões que compuseram o déficit
em conta corrente no período.
A taxa média de crescimento do PIB, no período, ainda foi expressiva em decorrência do
II PND, fruto de um esforço para assegurar a continuidade de taxas elevadas de crescimento (ou
postergar a agonia) da economia de forma extremamente favorável ao grande capital. Dessa
forma, grande parte dos novos empréstimos foram direcionados para completar o setor industrial
estatal (especialmente os pólos petroquímicos) e para estimular o grande capital por meio de
empréstimos realizados pelo BNDES tendo em vista ampliar instações industriais e implementar
os grandes empreendimentos agropecuários etc.
O dinamismo do padrão de acumulação monopolista, dependente e internacionalizado
não foi assegurado tão-somente através da lógica de expansão do grande capital conforme
podemos observar. O Estado cumpriu um papel fundamental. Além de criar condições políticas,
sociais (repressão política dos movimentos reivindicativos e de contestação da ordem social,
aprovação de leis que acentuou a expulsão de populações de não-proprietários do campo etc) e
econômicas (liberação de empréstimos através de instituições financeiras estatais com juros reais
177
negativos, incentivo à realização de empréstimos internacionais, “queima” de recursos públicos
na forma de incentivos para exportação etc) extremamente favoráveis ao grande capital, o Estado
concorreu decisivamente para criar mercado para a realização comercial dos bens e serviços
gerados pelo grande capital.
O Estado estimulou a conformação de setores sociais em condições de consumir bens de
elevada composição de valor através de mecanismos como a elevação dos salários da tecnocracia
do Estado (que tendia a elevar os salários dos executivos e dos serviços de profissionais liberais)
da incidência regressiva dos impostos etc. Isto cumpria um papel imprescindível para a
realização comercial dos bens das empresas multinacionais e as modernas empresas de capital
nacional visto que estas empresas geravam elevada produtividade sem, contudo, gerar muitos
empregos e com elevada renda. O Estado concorria, ao mesmo tempo, para conformar um
mercado “europeu” de consumo no Brasil e para submeter as grandes massas operárias e
populares a pequenos aumentos no nível de emprego, subemprego, baixos níveis salariais e
precarização social.
A partir do ciclo econômico do chamado “Milagre Econômico Brasileiro” a vinda de
novas multinacionais, os novos ganhos de escala e diversificação de atividade das multinacionais
e monopólios nacionais instalados, a consolidação das indústrias de base etc, impunha a
formação de nova demanda.
A demanda por bens tecnológicos e de consumo teria de aumentar a partir de então. Ampliar
a geração de divisas externas para conter o déficit em conta corrente tornou-se ainda mais
necessário. A reestruturação do setor agropecuário permitiu atender esta dupla exigência do padrão
de acumulação monopolista, dependente e internacionalizado. Modernizar o setor agropecuário
criava demanda para bens tecnológicos e bens de consumo corrente. Por outro lado, o setor
agropecuário (ao lado da exportação de minérios), por ser o principal setor de inserção no mercado
mundial, deveria ser estruturado de forma a acelerar a exportação (in natura ou transformado).
A demanda de bens agropecuários passou então a depender do médio e grande
estabelecimento rural capitalizado. Recorrendo a um padrão de tecnologia agrícola
mundialmente conhecido como “revolução verde” (apoiada na tratorização e quimificação da
produção, aperfeiçoamento genético, especialização produtiva, agricultura extensiva etc) o setor
agropecuário passou a demandar uma infinidade de bens de capital. Os setores sociais
beneficiados pela modernização do setor passaou a demandar uma grande quantidade de bens de
consumo corrente e durável.
A demanda de tratores elevou-se de 61.338 em 1960 para 323.113 em 1975 (Tabela XIV).
No mesmo período a demanda de fertilizantes subiu de 305 (1000 t) para 1.978 (1000 t). A demanda de
178
agrotóxicos elevou-se de 22,4 (1000 t) em 1965 para 78,5 (1000 t) (Tabela XV). Estes bens tecnológicos
eram produzidos pelas indústrias de material de transporte e de bens químicos, ambas dominadas
pelo capital multinacional.
A pequena produção esteve à margem da modernização do setor agropecuário no período
compreendido entre 1967 e 1976. Isto porque a referida modernização pressupunha a
expropriação/proletarização de amplas parcelas da população rural, para que fosse possível o
desenvolvimento das relações capitalistas de produção, a movimentação de grandes massas de
capitais para o consumo em larga escala de tratores, fertilizantes e agrotóxicos, a viabilização de
uma produção concentrada em poucas e grandes unidades para assegurar baixos custos de
comercialização e a absorção de grandes montantes de financiamentos etc.
Grandes grupos monopolistas e oligopolistas, usufruindo de incentivos fiscais e
creditícios e/ou em busca de acumulação marginal em decorrência do acirramento da competição
dos grandes capitais, destacaram-se na conformação das demandas dos oligopólios e monopólios
que produziam bens tecnológicos para o setor agropecuário. Na forma de indústrias e
agroindústrias e de grandes propriedades demandavam diretamente a produção dos novos bens
tecnológicos. Especialmente na forma de indústria e agroindústria estes capitais provocavam a
demanda destes bens indiretamente, na medida em que subordinavam e imprimiam um tipo de
atividade agropecuária “moderna” numa parte da pequena produção e da média e grande
propriedade a elas dependentes.
O impedimento à ampla modernização da pequena produção e à democratização das
terras no período tornou-se “compreensível” neste contexto macro-econômico. Era inadmissível
para padrão de acumulação instalado - cotado em sua reprodução expansiva, dependente da
acumulação dos grandes conglomerados e voltada para a realização dos bens por eles produzidos
- voltar-se para a modernização da pequena produção. Isto porque a modernização não
ultrapassaria o limite da restrita geração de rendas (em relação à necessidade de meios de
pagamento para o consumo dos bens tecnológicos então disponíveis), visto que o Estado
encarregava-se de comprimir o custo da cesta básica (fundamentalmente produzidos pela
pequena produção) para que se viabilizasse a extrema acumulação de mais-valia no espaço
urbano-industrial e rural (sob relações capitalistas de produção).
Esta extrema acumulação de mais-valia deveria ser o bastante para assegurar a
reprodução do capital nacional (dependente ou não de empréstimos externos ) e capital
internacional e proporcionar rendas nas mãos do Estado para cobrir encargos financeiros
externos e exigências infra-estruturais internas. Em outras palavras, a pequena produção cumpria
uma lógica: gerar bens de consumo barato sob trabalho familiar, assegurando ampliação das
179
condições de extração da mais-valia no espaço urbano-industrial e rural (sob relações capitalistas
de produção).
O padrão tecnológico de cunho agrícola extensivo, por outro lado, era importado dos
países centrais, especialmente dos Estados Unidos. Este padrão era contraditório com relação a
agricultura intensiva desenvolvida na pequena propriedade através da mão-de-obra familiar. A
adoção do novo padrão pressupunha grandes extensões de terras, elevadas despesas
(investimento nos recursos tecnológicos) e assalariamento da força de trabalho, o que
representava um obstáculo para a realização da demanda daqueles bens.
A democratização das terras assumiu contradições com relação ao novo padrão
tecnológico agropecuário, bem como da dinâmica econômica urbano-industrial. Este padrão
agropecuário deveria se apoiar sobre relações capitalistas de produção. Portanto, uma massa de
proletários do campo teria que ser formada e ampliada para a manutenção de contratos de
assalariamento (temporário e permanente) e extração da mais-valia.
A massa de proletários deveria também assegurar a queda dos custos do capital variável
tendo em vista, ao mesmo tempo, concorrer para viabilizar os investimentos em capital constante
(o próprio capital constante, em especial na forma de recursos tecnológicos mecânicos,
proporcionava a diminuição dos custos com capital variável através da substituição de mão-deobra).
As atividades econômicas desenvolvidas no espaço urbano-industrial também se
beneficiavam da intensa proletarização. Além da depreciação dos salários em decorrência do
agigantamento do exército industrial de reserva do interesse do capital em geral, gerou-se uma
massa de trabalhadores para as atividades industriais que, em função da baixa capitalização e/ou
modernização tecnológica, não apresentavam ganhos de escala, a exemplo da construção civil e
setores de serviços (público e privado). O baixo custo da contratação desta mão-de-obra, mesmo
sob baixos níveis de mecanização e qualificação profissional, permitiu grande extração da maisvalia.
A modernização da agricultura, portanto, articulava-se com o setor urbano-industrial de
várias formas. Através deste processo criou-se condições extremamente favoráveis para a
realização dos ganhos dos monopólios e oligopólios industriais, bancos e empresários do campo.
As terras converteram-se em geradoras de renda para o grande capital à medida que a
contradição capitalista versus proprietário era “solucionada” pela conformação do empresariamento
e/ou gradual reorientação dos latifúndios. O grande capital recorreu, a exemplo da média e grande
propriedade tradicional, à exploração de relações não-capitalistas de produção no campo,
desenvolvidas paralelamente (ou não) com as relações capitalistas de produção. Usufruiu da
180
condição da terra como reserva de valor, apropriando-se de uma renda socialmente gerada, mas para
ele transferida através da sua permanente valoração. A terra, portanto, proporcionava ganhos ao
grande capital mesmo quando improdutiva.
A aquisição de terra pelo grande capital nem sempre demandava desembolso de capital
(imobilizado como renda da terra). Através de concessões realizadas por governos, a compra
através de recursos públicos concedidos (incentivos fiscais e creditícios), aquisições a preços
ínfimos proporcionados pela fraude e violência, entre outras formas, o grande capital teve acesso
à renda da terra sem que fosse necessário a imobilização de grandes montantes de capitais ou
mesmo, em alguns casos, de capital algum.
Instituições como a FUNAI, SUDAM, SUDENE, BNDES concorreram para tanto.
Orientadas pela lógica do padrão de acumulação monopolista, dependente e internacionalizado
asseguraram ganhos para o grande capital. Coerente, portanto, com a dinâmica de expansão
econômica dependente dos grandes capitais.
A terra converteu-se em um importante espaço de investimento. O bem natural convertiase (em certo sentido) em “meio de produção” para o grande capital. E, como tal, deveria ser
privado daquele que criava renda e que podia gerar mais-valia: o trabalhador rural.
8.8.- A Transição Para o Novo Padrão de Acumulação Capitalista e de Financiamento
O novo padrão de acumulação capitalista e de financiamento que começou a ser
implementado a partir de 1990, não se articulou por meio de uma divisão de atuação dos capitais
estatal e privados nacional e internacional, respectivamente, nos Departamentos I, II e III como
no padrão de acumulação precedente. Ocorreu uma progressiva alienação do Estado da esfera da
produção e das atividades de serviços através da privatização.
Os capitais monopolistas nacionais e, principalmente, multinacionais assumiram a quase
totalidade da esfera da produção e das atividades de serviços. O Estado foi reduzido a um papel
de regulação e controle dos diversos setores econômicos ditos estratégicos (telecomunicações,
eletricidade etc). Regulação e controle este conduzido de forma mista, isto é, compartilhada com
as próprias empresas monopolistas e oligopolistas que atuavam nos diversos setores, o que
objetivamente comprometeu a própria regulação e controle implementada em prejuízo das
maiorias sociais e do próprio país.
O novo padrão de acumulação capitalista e de financiamento foi determinado pela nova
fase da mundialização do capital financeiro internacional. A nova expansão das empresas
transnacionais no país, seja por meio de novos investimentos das empresas já instaladas
181
internamente ou por meio de deslocamento de novas empresas, acentuou a lógica da
concorrência. Este processo foi agravado pela própria desregulamentação da economia operada
por sucessivos governos instalados no país após 1990 e pela abertura indiscriminada da
economia brasileira. Como conseqüência ocorreu o sacrifício de uma política de industrialização
substitutiva de importações, a inviabilização de uma política nacional de industrialização e a
eliminação de todas as regras para produção e circulação do capital e de produtos.
O novo padrão de acumulação desencadeou mudanças fundamentais na forma de
organização da relação estabelecida entre o capital e o trabalho. Ocorreu mudanças na forma de
organização do trabalho e da produção (com novos métodos de gerenciamento e das novas
tecnologias), na forma de contrato de trabalho (com o contrato indeterminado dando lugar a
formas de contrato de trabalho determinado, temporário etc), entre outros processos.
O novo padrão de acumulação operou mudanças no padrão cultural dos trabalhadores e
da sociedade em geral. De um lado, acentuou valores como o individualismo, a competição e o
consumismo. De outro, desenvolveu novas formas de integrar o trabalhador à produção,
almejando a integralidade das suas potencialidades físicas e intelectuais.
Formou-se uma realidade no país em que o capital financeiro internacional, direta e
indiretamente presente em todos os setores da atividade econômica, governa. Aos governos têm
restado a administração econômica, basicamente restrita a estabilização monetária, ao ajuste
fiscal e ao combate à inflação (Carleial e Valle, 1997, p. 446- 448). Concomitantemente, tem
ocorrido agravamento dos endividamentos externo e interno, desequilíbrio das balanças
comercial e de pagamento, pressão das remessas de lucros das empresas transnacionais, entre
outros fatores macroeconômicos adversos. Do ponto de vista econômico, o novo padrão de
acumulação, ainda em processo de conformação final, foi responsável por uma grave crise
econômica e social. A desindustrialização, a desarticulação de instrumentos de planejamento,
controle e regulação pública, a desestatização, a desnacionalização, entre outros processos
econômicos, e o desemprego, o subemprego e a marginalização/exclusão social, entre outros
processos sociais, são algumas das conseqüências do novo padrão de acumulação.
182
183
9. GLOBALIZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
A palavra globalização foi elaborada no campo próprio das ideologias. Transformou-se
em um lugar-comum de enorme conotação positiva. De fato, converteu-se em um discurso
político e ideológico dos países de capitalismo cêntrico e em uma verdadeira “evangelização” da
periferia capitalista. Discurso anunciador do desenvolvimento socializador de riqueza no plano
mundial em um futuro indeterminado, mas que opera no presente justamente acentuando
desigualdades locais, regionais, nacionais e mundiais (Carvalho, 2000, p. 7-13).
Para muitos o início da globalização se reportaria à expansão mercantil européia a partir
do século XV. No século XIX a unificação econômica e política do mundo se completaria em
torno das potências centrais, com a consolidação das corporações econômicas, a disputa dos
mercados internacionais e o predomínio do padrão consumista sob forte influência da Segunda
Revolução Industrial.
A nossa abordagem, todavia, parte da compreensão de que não devemos confundir
mundialização do capital com globalização. A globalização é uma fase da mundialização do
capital na qual ocorre a coincidência entre a hegemonia incontestável do capital financeiro
internacional e a desterritorialização dos Estados nacionais, isto é, a globalização é fruto de um
avanço das forças econômicas dos países capitalistas centrais e, principalmente, da imposição
política destes países sobre os países capitalistas periféricos.
Sob a globalização a economia mundial passou por transformações profundas. Os preços
dos produtos primários deixaram de estar conectados aos preços dos produtos industriais,
especialmente tecnológicos; ocorre uma intensa redução do emprego operário na indústria; e a
dinâmica econômica desloca-se definitivamente do patamar nacional para o mundial.
A globalização expressa a universalização cada vez maior do capital financeiro
internacional. Isto determina processos como a re-hierarquização dos poderes políticos e
econômicos regionalizados; as novas formas de produção reinventadas continuamente a partir da
reestruturação produtiva; a nova base ideológica de estruturação empresarial implementada com
a substituição de antigos métodos por novos nas áreas de produtos, processos, organização
estratégica; a expansão dos fluxos financeiros internacionais com a tendência à
desregulamentação financeira, o avanço de novos serviços financeiros e a liberdade cambial
(Carvalho, 2000, 16-40).
184
A globalização expressa, portanto, uma nova etapa de internacionalização do capital em
termos econômicos, políticos e militares, com inevitáveis desdobramentos culturais. Conforme
Ianni (1997, p. 11),
A globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e
processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e
nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades,
culturas e civilizações.
Crise Capitalista dos Anos 70 e a Reestruturação Produtiva
No final dos anos 60 e início dos anos 70 o fordismo – enquanto método de produção,
pacto produtivista-consumista e base tecnológica eletromecânica – entrou em crise. Como causa
e efeito da referida crise ocorreu a radicalização do movimento operário, queda da lucratividade
do capital e a tendência à estagnação econômica (Bihr, 1998. 40-56).
Neste mesmo período ocorreu nos países de capitalismo periférico e dependentes um
aumento significativo de sua participação relativa no montante global de recursos, o que também
concorreu para a crise dos países capitalistas cêntricos. Do ponto de vista produtivo, foi se
formando um ambiente econômico no qual os países capitalistas periféricos tornaram-se mais
competitivos no mercado internacional por meio de produtos manufaturados da Segunda
Revolução Industrial e com mão-de-obra pouco qualificada. Isto devido à políticas de
estabilização econômica em um cenário de ampla liquidez internacional; à políticas de atuação
de capitais transnacionais nestes países; e a políticas de crescimento econômico, de forma a atrair
investidores internacionais e diversificar as posições empresariais.
A partir dos anos 70 teve início nos países capitalistas cêntricos o advento da Terceira
Revolução Industrial e o rompimento do modelo tradicional do trabalho estabelecido no pósguerra. Identificamos, a partir de então, o enfraquecimento do poder de difusão dos produtos,
processos e formas de organização das empresas que compunham a base dos investimentos das
décadas de 50 e 60, especialmente da indústria pesada e de eletrodomésticos; o abalo das
correlações de preços entre matérias-primas e produtos manufaturados (década de 70-80); a
aceleração dos preços de matérias-primas básicas, em especial do petróleo, desequilibrando a
estabilidade financeira, a produção industrial e o comércio internacional; o continuado
rompimento do marco institucional da Guerra Fria, sobre o qual ocorreu a expansão da atividade
industrial do pós-guerra (Bihr, 1998, 60-75).
185
A reestruturação produtiva foi, portanto, uma resposta do capital financeiro internacional
por meio do modelo produtivo japonês, americano, sueco, alemão e italiano para a crise que
atingiu o capitalismo no início dos anos 70. Esta resposta consistiu na transformação das
máquinas e equipamentos industriais por meio da automação programada de base eletrônica; nos
produtos de maior valor agregado e competitivos; na criação de formas de organização dos
processos produtivos mais flexíveis, otimizando a capacidade e agilidade de produzir com mais
qualidade; no aumento dos índices de exportação desses países; na aplicação intensiva das
formas de cooperação entre empresas para a viabilização de pesquisas para o desenvolvimento
de novos processos, produtos e serviços; na capacidade de articulação entre as condições macroeconômicas de organização industrial e as políticas do Estado etc. Agregou-se a tudo isto o
aprofundamento das relações inter-industriais; a conversão das empresas monopolistas nacionais
em transnacionais; e o acirramento da competição mesmo nas empresas pequeno porte.
As empresas transnacionais, que de fato constituíram-se no motor das transformações em
curso ao lado do capital financeiro-bancário igualmente transnacional, enfraqueceram o poder de
regulamentação e estabelecimento de relações trabalhistas dos Estados nacionais, com
conseqüências para o mundo do trabalho; mantiveram estreitos vínculos com o país de origem;
reduziram o espaço das políticas econômicas nacionais; maximizaram a capacidade de serem
flexíveis, com hierarquias mais niveladas e estruturas mais abertas, permitindo mais agilidade e
eficácia em suas operações e viabilizando a produção sob escala e escopo; flexibilizaram a
produção e automação dos processos que vão exigir, por sua vez, trabalhadores mais preparados,
com domínios em informática, línguas, processo global da produção, bem como com mais
iniciativa e comprometimento para atuar em estruturas hierárquicas enxutas.
Sinteticamente podemos dizer que o novo paradigma de produção tem como motor da
acumulação a inovação sistêmica promovida pelas transnacionais e não o lançamento de novos
blocos de investimentos. O novo estilo de desenvolvimento está baseado na difusão acelerada,
profunda e simultânea de inovações técnicas, organizacionais e financeiras sob forte influência
do novo paradigma tecnológico. Paradigma tecnológico este que encontra-se capitaneado pela
micro-eletrônica, de forma que a sua disseminação nos diversos setores da economia tem levado
a uma reestruturação da produção e da divisão internacional do trabalho com reflexos diretos no
nível de emprego (Carvalho, 2000, 16-40).
186
Aspectos da Globalização
A globalização é um processo que apresenta aspectos sociais, políticos e culturais, mas as
suas bases são econômicas. A globalização envolve a aceleração da internacionalização
econômica e o acirramento da competição sob a óptica comercial, financeira, produtiva e
tecnológica.
Sob o aspecto comercial a globalização refere-se à expansão dos fluxos de comércio em
um contexto de acirramento da concorrência em âmbito internacional. A competitividade, os
acordos comerciais e as negociações políticas tornam-se fatores prioritários para o delineamento
das políticas nacionais.
Sob o aspecto financeiro a globalização refere-se a expansão dos fluxos financeiros
internacionais. O desenvolvimento das relações financeiras internacionais são facilitadas pela
tendência de desregulamentação financeira que podemos observar na maioria dos países, pelo
avanço da internacionalização de serviços financeiros e pela liberalização cambial.
A globalização financeira baseia-se na formação de um único mercado financeiro
mundial, interligado pela telemática, com funcionamento ininterrupto em tempo real. Em 1995,
para um PIB mundial de aproximadamente U$ 38 trilhões, um montante de U$ 11 trilhões
flutuava pelo planeta, motivados pelos atrativos de mercado, de forma a obter a maior
lucratividade com o menor risco.
Sob o aspecto produtivo a globalização articula-se ao incremento dos fluxos de
investimentos estrangeiros diretos, às estratégias das empresas transnacionais e ao processo de
reestruturação empresarial para enfrentar o mercado cada vez mais competitivo. As grandes
empresas transnacionais tendem a se constituir em cadeias de produção espalhadas por muitos
países, com os objetivos de distribuir sua produção em todo o globo e de maximizar sua
lucratividade.
As empresas transnacionais romperam estes entraves nacionais e passaram a operar em
todo o mundo. Dentre as 200 maiores transnacionais, 74 são da Europa Ocidental, 62 são do
Japão, 53 são dos Estados Unidos da América e 11 são do restante do mundo (Moraes, 2000).
Elas totalizaram em 95 um faturamento de U$ 7,85 trilhões, ou 31,1% do PIB mundial.
Sob o aspecto da economia política da globalização é necessário reconhecermos o caráter
simultâneo de suas determinações econômicas e políticas. A globalização impõe um processo de
re-hierarquização de poderes políticos e econômicos regionalizados e assimétricos, mas que
integra subalternamente mesmo elos distantes como a África Central.
187
Os blocos econômicos também se constituem em uma das marcas da globalização. Em
1995, 59% das transações comerciais mundiais se realizaram no interior dos blocos econômicos,
23% entre eles e apenas 13% fora deles. Estes blocos criaram estratégias de sobrevivência e de
desenvolvimento, imprimindo características peculiares na estrutura e dinâmica do panorama
global (Moraes, 2000).
Reestruturação Econômica e Desemprego
Na nova divisão internacional de trabalho as empresas transnacionais, especialmente as
de alta tecnologia, terceirizam sua produção. Esta terceirização ultrapassa seus Estados nacionais
de origem, reservando para a sua matriz atividades como pesquisa, marketing, desing etc.
A formulação e o desenvolvimento de estratégias na atividade industrial são determinadas
pela competição entre as transnacionais de um mesmo país e como parte da disputa entre países.
O processo de reestruturação industrial alcançou um êxito global no caso do Japão, com
desdobramentos competitivos e complementares na Ásia, sobretudo na Coréia do Sul e Taiwan.
A Europa convive com dificuldades com o jogo de interesses nacionais específicos.
Neste contexto de competição os países de capitalismo organizado (Japão e Alemanha)
ou com forte presença do Estado no sistema bancário (França, Itália e Coréia,) estão bem mais
sucedidos se comparados com aqueles países que aplicam políticas ultra-liberais de ajuste e
desregulamentação (Inglaterra). Ocorre, ainda, um fracasso dos ajustes automáticos do balanço
de pagamentos preconizados pelos Estados Unidos e pelo FMI, com efeitos sobre a instabilidade
financeira internacional, em especial nos países capitalistas periféricos. A modernização em
termos de países e empresas com a distribuição regressiva dos excedentes sociais proporcionados
pelo progresso técnico e com a “socialização” das perdas, implica em uma crise estrutural e em
enormes transferências patrimoniais (Moraes, 2000).
A dinâmica da economia mundial tem se concentrado nos setores de alta tecnologia que
requerem altíssimos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. O processo de inovação
destes setores tem se restringido aos países de capitalismo central. Neste países observa-se a
cooperação entre Estado, empresas e universidades, no sentido de garantir a hegemonia nos
referidos setores.
O setor microeletrônico representa é o mais dinâmico em transformações e imprime o
avanço tecnológico, a criação/desenvolvimento de novos mercados e a intensificação da
concorrência entre os países capitalistas centrais. A opção por assegurar o dinamismo do setor
microeletrônico implica significativos investimentos.
188
O desemprego, que vem crescendo a partir do final da década de 60, decorre em grande
medida destes processos. Trata-se, portanto, de um desemprego estrutural decorrente da
reestruturação das economias nacionais, da instabilidade financeira internacional, da competição
industrial-comercial e da liberação de mercados.
Processo mais intenso no setor industrial, visto que é o setor que mais intensamente
incorpora a reestruturação produtiva e sofre os demais processos (abertura de mercados, recessão
etc). O aumento de empregos no setor de serviços não foi suficiente para atenuar o desemprego.
A sobre-oferta de trabalhadores sem trabalho tem determinado intensa crise social. Esta
crise social tem se expressado, entre outras formas, na marginalidade social e no deslocamento
de trabalhadores dos países pobres para as metrópoles (no sentido norte-sul e leste-oeste).
Globalização e Reestruturação Produtiva nos Países periféricos
Tem ocorrido um aumento de participação relativa dos países capitalistas periféricos no
montante global de recursos. A absorção do investimento direto em torno de 40% do fluxo
mundial de capital em 1996, responde por, mais ou menos, um terço das fusões e aquisições de
empresas nacionais pelas empresas transnacionais (Moraes, 2000).
As estratégias do capitalismo financeiro são globais e direcionam-se para a busca de
mercados com relação a produtividade, qualidade e custo. Assim, ocorre o deslocamento da
produção e de postos de trabalho de um país para o outro conforme as conveniências e a
verificação de ganhos efetivos.
As empresas transnacionais, com um sistema de produção que inclui flexibilidade
administrativa, fragmentação do processo produtivo e aplicação de insumos de diferentes
origens, favorecem a transferência de mercados de trabalho e mão-de-obra para os diferentes
países. Isto afeta o índice de concentração de empresas nos países.
A atividade produtiva e a acumulação do capital vivem um período em que as fronteiras
econômicas se estreitam; os intercâmbios científicos e sócio-culturais se aperfeiçoam, a
flexibilização das condições de trabalho e dos processos decisórios empresariais avançam, o
treinamento e a eficiência de cada setor da organização empresarial tornam-se vitais para a
empresa, a produção se terceiriza, e agilizam-se os comandos e processos relativos à utilização
racional do tempo, dentre outros fatores.
No campo do trabalho, a implantação de novas tecnologia, ao invés de liberar o processo
criativo dos trabalhadores, padroniza cada vez mais os processos programados de trabalho. O
189
patronato, na verdade, disputa não só a força de trabalho treinada, mas também a mente do
trabalhador.
Com a globalização, a terceirização ganha espaço, além do trabalho informal e do
desemprego e do subemprego. A crise da organização e luta sindical também passa a compor
esta realidade.
Percebemos que os velhos métodos tayloristas de trabalho continuam vigorando em
várias unidades produtivas espalhadas pelo planeta. Todavia, a flexibilização do trabalho e da
produtividade tende a se consolidar no desenvolvimento do capitalismo.
No novo padrão de acumulação capitalista a tecnologia microeletrônica exerce papel
central na competitividade internacional e constitui-se em fator limitante à integração dos países
capitalistas periféricos no mercado global. As vantagens comparativas representadas pelo custo
da mão-de-obra barata e abundantes recursos naturais tende a ser um fator positivo de
decrescente importância.
Nos países de capitalismo periférico e dependente, a continuar as orientações políticas em
curso nestes países, as tendências são de regressão produtiva, desaparecimento da moeda
nacional, subordinação à dinâmica de cosmopolitização dos padrões de consumo,
aprofundamento das desigualdades e apartheidização social. Em que pese esta realidade
continuará ocorrendo interesse pela região por parte do capital financeiro internacional (Mello
Apud Moraes, 2000).
A América Latina
A expansão e internacionalização dos serviços, o retrocesso da substituição de
importações e a especialização do setor exportador em “commodities” na América Latina vão
definindo uma modalidade de inserção da mesma na divisão internacional do trabalho.
A partir de 1985 tem início o ajuste nas grandes empresas da Argentina e do Brasil,
especialmente nas transnacionais, com importantes ganhos de produtividade. Ajuste este
comandado pela aplicação de novos métodos gerenciais e maior especialização em linhas de
produção.
Nos anos 90, por conta do ajuste macroeconômico e da abertura comercial, a Argentina e
o Brasil mudam o padrão de especialização do setor industrial. Houve retratação do complexo
metal-mecânico e expansão dos ramos industriais intensivos em recursos naturais.
As conseqüências deste processo foram, entre outras, a redução de emprego e da
demanda por bens de capital nacional, e o aprofundamento dos encadeamentos industriais.
190
O Brasil
O Brasil ingressou nos anos 80 endividado. O processo de crescimento da economia
brasileira esbarra, ainda, na falta de recursos externos.
A dívida externa brasileira e a falta de recursos externos repercutiu, por sua vez, no ajuste
interno em termos de restrições fiscais e monetárias, o que levou a recessão econômica e ao
“achatamento” dos salários. O resultado deste quadro de instabilidade da economia brasileira
durante as décadas de 70 e 80 foi o atraso tecnológico e dos métodos de gerenciamento em
relação ao que se processava no Japão e na Europa.
O Brasil iniciou o seu processo de abertura econômica nos anos 90. Tal processo
repercutiu diretamente sobre os empregos, os consumidores, os preços e a tecnologia.
A abertura da economia não considerou e não adaptou o país aos fatores de
competitividade sistêmica. Esta realidade provocou um desafio significativo para empresas
nacionais motivado pelo elevado custo financeiro e tributário, pela carência de infra-estrutura e
pela intensa burocracia. Agregou-se a este quadro o precário e insuficiente sistema educacional e
a falta de programas de treinamento profissional, o que gerou dificuldades no que se refere à
adaptação da força de trabalho às exigências tecnológicas e na geração de resultados econômicos
eficientes em face dos custos elevados. Com relação aos níveis de utilização da capacidade
produtiva instalada presenciamos um elevado nível de ociosidade. Esta realidade veio a agravar a
situação, de forma a pressionar os custos na estrutura produtiva.
Na nova estrutura de produção o complexo metal-mecânico cede importância para o
hegemônico complexo microeletrônico e a química fina torna-se mais significativa que a
química pesada. A proposta de novos métodos de organização da produção, como o “just in
time”, o controle estatístico de processo e a manutenção preventiva total, parece dar conta de
níveis significativos na qualidade e produtividade industrial. A introdução destes métodos
envolve transformações importantes nas relações capital e trabalho.
No Brasil estudos sobre as relações capital e trabalho mostraram níveis altos de controle e
atitudes autoritárias por parte das gerências brasileiras e implantação dos círculos de qualidade
sem envolvimentos dos trabalhadores. Esses métodos melhoram a produtividade e a qualidade da
produção. Contudo, não proporcionaram significativos ganhos para os trabalhadores no que se
refere a participação nos ganhos de produtividade, a crescente estabilidade no emprego etc
(Carleial e Valle, 1997, 134-138).
191
Reestruturação Produtiva no Brasil
O desempenho das empresas brasileiras, se comparadas às internacionais, apresenta a
seguinte situação no início de 1990: defasagem tecnológica de equipamento e instalação
deficiências nas tecnologias de processo e de produto, falta de investimento em P&D, limites na
difusão de sistemas de gestão de qualidade, lentidão na adoção de inovações gerenciais e
organizacionais, carência de interação entre usuários e produtores, entre fornecedores e
produtores; padrão anacrônico de relações gerenciais/trabalhistas (tomando como referência a
globalização) etc.
O governo Collor implantou dois planos de estabilização econômica. O resultado foi a
retração da atividade econômica, em especial, devido a medidas fiscais e monetárias adotadas, a
retomada do pagamento da dívida externa e do reforço do processo de endividamento interno.
No período de 1989/92, o ajuste se faz em um cenário de abertura comercial e
reestruturação da produção, envolvendo medidas como a concentração em linhas de produtos
competitivos, a terceirização de serviços e a preocupação com programas de qualidade e
produtividade. A nova política industrial teve como meta o aumento da eficiência na produção e
comercialização de bens e serviços por meio da reestruturação da indústria. O BNDES,
estratégico na nova política industrial, teve como papel incrementar a competitividade e
produtividade industrial, ampliar e modernizar os investimentos em infra-estrutura (setores de
energia elétrica, transporte e portos), redefinir o papel do Estado na ampliação da participação
de capitais privados em atividades anteriormente sob responsabilidade estatal, estabelecer
parcerias com a iniciativa privada em determinados setores, e buscar diminuir os desequilíbrios
regionais e sociais.
A economia brasileira passou nos anos 90, portanto, por quatro processos interrelacionados e simultâneos: globalização, abertura de economia, estabilização e privatização. No
que tange a reestruturação produtiva, o processo foi mais intenso nos setores da indústria.
Produtividade e Emprego na Indústria Brasileira
O setor industrial apresentou ao longo da década de 70 um aumento de produção, de
produtividade e de emprego. Tais resultados foram garantidos, primeiramente, pelos três últimos
anos do Milagre Econômico (70-73). No período o crescimento industrial, turbinado pelo
192
endividamento externo e pelo intenso arrocho salarial dos trabalhadores, atinge níveis superiores
a 7% do PIB (Tabela XI).
Esta trajetória de elevada atividade industrial foi interrompida com a crise do petróleo de
1973. A crise foi responsável pela elevação dos custos dos insumos industriais, dos bens de
capital e de elevação das taxas internais de juros.
O II PND (1974/78), implementado pelo governo Geisel, assegurou um elevado índice
de atividade industrial em um contexto econômico desfavorável. Este índice foi mais intenso no
biênio 74/76, quando a capacidade de investimento público ainda é elevado, em que pese o custo
de elevação da atividade industrial em decorrência da elevação dos custos da atividade industrial
decorrente da crise do petróleo na forma da elevação dos custos de insumos industriais (petróleo,
derivados, etc), de bens de capital e de capital. A pressão dos custos da dívida externa e interna
assume um grande significado. Os investimentos privados recuaram, mas o governo tentou
manter a atividade industrial com os investimentos programados por meio do II PND.
Conforma-se um contexto de desaceleração da atividade industrial, moderado por meio
dos investimentos públicos no setor industrial. Como resultado geral da década, ocorreu um
índice de crescimento da atividade industrial.
Nos anos 80, por força da própria crise, ocorreu uma redução da atividade industrial: caiu
a oferta de emprego e a produção. Ocorreu, todavia, uma elevação da produtividade. No período
80/85 a produtividade girou em torno de 6,5% com intensa redução de emprego. Esta
combinação se constituiu em uma estratégia do patronato industrial de caráter defensivo, isto é,
aumentar produtividade buscando redução de custos, e moderar os custos da implementação do
aumento da produtividade com a redução da folha de pagamento. No período 86/90 a
produtividade permaneceu elevada com intensa redução de emprego e de produção (Carleial e
Valle, 1997, p. 44-47).
Na década de 90 ocorreu um comportamento econômico muito mais diferenciado. No
período 90/92, sob intensa recessão econômica, houve um aumento de produtividade com queda
de emprego e muito mais ainda de produção, a exemplo de 1984. O aumento de produtividade
está relacionado a uma estratégia defensiva - redução de emprego (e salário em algumas casos)
mediante a redução de demanda interna, a continuidade da participação subalterna no mercado
internacional de bens industriais e a competição com os produtos importados a partir da abertura
não programada da economia, e ofensiva – investimento de bens tecnológicos importados por
meio da abertura econômica e que são responsáveis em grande medida pelo aumento de
produtividade (Carleial e Valle, 1997, p. 44-47).
193
No período 93/95 ocorreu um aumento de produtividade e de produção, mas não houve
aumento de emprego. A economia apresentava uma retomada de atividade no período, reforçada
com o advento do Plano Real, e a abertura econômica é intensificada. Podemos concluir que o
aumento de produtividade obedeceu, fundamentalmente, a uma estratégia ofensiva, vinculada
portanto com a restruturação das bases tecnológicas das industrias e com a adoção de novos
métodos de gestão da produção.
A produtividade do setor de atividade industrial se apresentou bastante elevada no início
dos anos 90. Os vários estudos acerca da produtividade do período apontam para um aumento de
7% na média do período de 90/95 (Carleial e Valle, 1997, p. 44-47).
No período de 1995-97 os investimentos permaneceram defensivos em eficiência
operacional. Buscou-se a ampliação de projetos destinados a reposição e/ou redução de custos.
Os investimentos de diversificação e/ou renovação de produtos não foram numerosos.
As taxas de desemprego permaneceram elevadas. A redução da massa salarial
acompanhou as taxas de desemprego, bem como a criação de um ambiente desfavorável aos
trabalhadores em decorrência de iniciativas de desregulamentação do mercado de trabalho por
meio das novas formas de contrato de trabalho (contrato determinado, temporário, etc) e de
flexibilização de negociação no âmbito do próprio contrato de trabalho (bancos de horas, férias
coletivas não remuneradas, etc).
No período de 1998/99, especialmente a partir da desvalorização cambial de março de
1999, ocorreu uma crescente ampliação das empresas nacionais com o mercado interno, reduz
moderadamente o desemprego e reduziu-se o coeficiente de ociosidade industrial. Os
investimentos das empresas industriais, especialmente das de plantas pequenas, foram
dependentes da participação de terceiros no financiamento dos seus projetos, totalizando 30% do
total. No período ocorreu, ainda, em 12% das empresas industriais em localizações distintas
daquelas em que se situa a planta matriz original. Os estados que mais atraíram estes
investimentos foram o Paraná, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (Fonseca e
Bielschowsky, 2001).
No período 2000/2002, segundo pesquisa CNI/CEPAL, os investimentos tendem a se
caracterizar por ser forte e auto sustentável. De fato há fatores que dificultam esta tendência,
como a crise energética, as elevadas taxas de juros, a carga de impostos, as incertezas oriundas
das restrições macroeconômicas e a projetada recessão mundial. Mas, segundo a pesquisa, o
empresariado industrial encontra-se otimista com a estabilidade de preços, pelo rápido
crescimento das vendas industriais no mercado interno motivada pela desvalorização cambial e
pela eficiência adquirida nos anos 90.
194
No período permanece a carência de fontes de financiamento, o elevado custo dos
mesmos e a dependência da participação de terceiros no financiamentos de seus projetos de
investimento chega a 41% dos recursos necessários. Os projetos de investimentos planejados têm
como objetivo aumentar o grau de automação industrial em 87% das empresas. Assim,
Como o impulso ao desemprego dado pela reestruturação organizacional das empresas nos anos 90 parece,
no essencial, já se ter esgotado, é possível que a automação venha a ter efeitos sobre o emprego bem menos
desfavorável do que aqueles ocorridos durante a referida reestruturação (Fonseca e Bielschowsky, 2001).
No atual período ocorre uma redução na participação dos projetos destinados à reposição
e/ou redução de custos e uma elevação daqueles que objetivam expansão e uma forte elevação na
participação daqueles que objetivam renovação de produtos. Do que se conclui que pode estar
superada a fase em que predominaram investimentos defensivos em eficiência operacional, do
miniciclo de modernizações de 1995/97, e que tem ocorrido um significativo movimento na
direção da diversificação de produtos.
As empresas industriais movimentam-se para os estados, fora dos estados de suas
matrizes. Bahia, Minas Gerais e Goiás são os estados que mais atraem estas empresas, enquanto
que São Paulo e Paraná são os estados que mais convivem com movimentações de investimentos
de novas plantas no seu próprio interior.
A referida expansão especial das empresas tenderá a aumentar o número total de
empregados. Por outro lado, cerca de 60% das plantas originais não sofreram redução na
produção e no emprego.
O mercado doméstico tende a se converter na grande alavanca do investimento das
empresas industriais. Estas empresas esperam que os novos investimentos permitam aumentar a
razão entre exportações e vendas totais e que haja uma relativa estabilidade na participação das
importações no custo total com insumos e matérias primas. Assim, um novo ciclo de
investimento tende a não se constituir necessariamente limitado, a médio e longo prazos, por
uma deterioração do saldo comercial.
Em suma, antes da crise energética a industria brasileira planejava aumentar os
investimentos, sobretudo, os voltados à inovação, indicando uma melhora qualitativa no perfil do
investimento. O resultado mais surpreendente talvez seja o que se refere às contas externas, que
costuma-se identificar, ao lado dos problemas fiscais como a grande restrição macroeconômica
atual ao crescimento sustentável. Um resultado favorável para a balança comercial parece
195
depender, porém, de que efetivamente se cumpram os investimentos programados e, mais que
isso, que se ingresse num ciclo investidor robusto (Fonseca e Bielschowsky, 2001).
A Dinâmica da Reestruturação Produtiva no Brasil
As inovações tecnológicas e organizacionais iniciadas nos anos 80 nas empresas
vinculadas ao mercado externo passaram a difundir-se para o conjunto da economia brasileira
nos anos 90, basicamente, em razão da recessão conjugada à abertura indiscriminada da
economia. As empresas que reagiram à crise e à maior concorrência, fizeram uso das inovações
tecnológicas de base microeletrônica em uma lógica defensiva com o objetivo de aumentar a
produtividade, reduzir custos de produção e melhorar a qualidade dos seus produtos. As
exigências de qualidade e produtividade e a pressão por redução de custos se generalizaram para
um universo cada vez maior de empresas, inclusive para aquelas vinculadas mais diretamente ao
mercado interno como as empresas do setor de alimentos, têxtil, informática etc.
O comércio e o serviços (públicos e privados) também passaram a aplicar programas de
qualidade, produtividade e redução de custos. Os impactos das inovações tecnológicas,
organizacionais e gerenciais começaram a afetar indistintamente todos os trabalhadores. Em
razão dessas exigências o maior desafio para as empresas passou a ser a flexibilidade produtiva.
As empresas procuram organizar a produção e o trabalho de forma que a planta industrial fosse
capaz de produzir uma gama cada vez maior de produtos em uma mesma linha de produção e ter
capacidade de enfrentar as oscilações do mercado. A introdução das inovações tecnológicas
(robôs, terminais de computadores etc.) passou a ser acompanhada e subordinada à
implementação de novas formas de organização da produção e do trabalho (células e/ou ilhas de
produção, grupos de trabalho participativos e polivalentes etc.) e inúmeros programas de
controle e desenvolvimento da qualidade (TQC, Kaizen, etc.).
A marca mais característica da reestruturação produtiva no país é, todavia, a
predominância das inovações organizacionais e gerenciais. Ainda é pouca expressiva a
incorporação das novas máquinas e equipamentos de base microeletrônica fora das empresas
transnacionais instaladas no Brasil. A maioria das empresas alteram a organização da produção e
do trabalho, mas mantendo as mesmas máquinas e equipamentos.
Entre as inovações organizacionais e gerenciais mais difundidas estão a terceirização e o
“just-in-time”. A adoção da terceirização pelas empresas consiste em concentrar esforços naquilo
196
que é a vantagem competitiva da empresa e transferir o conjunto das atividades, seja de apoio
(limpeza, restaurante, transporte, enfermaria etc) ou mesmo de produção (ferramentaria,
manutenção etc), para outras empresas, com o objetivo de reduzir custos e simplificar o processo
produtivo. A terceirização pode manter as mesmas atividades no interior das empresas ou
deslocá-las para as empresas. Esse processo tem uma natureza perversa e selvagem, pois envolve
rebaixamento salarial e informalização das relações de trabalho, perderam benefícios sociais e
trabalhistas aumento da jornada de trabalho (Moraes, 2000).
O “just-in-time”, por sua vez, é um instrumento de controle da produção cujo objetivo
básico é atender o cliente da empresa com a maior rapidez possível, reduzindo os estoques de
matéria-prima e de bens intermediários e finais. Para tanto, utiliza-se um sistema de informações
que procura estabelecer o momento exato de articulação entre as várias etapas de fabricação, o
material exato para o processo de produção e a quantidade exata de produção. Esse sistema pode
também se estender para os fornecedores externos (Moraes, 2000).
O “just-in-time” está associado à implementação das células de fabricação e tecnologias
de grupo. Apóia-se na operação com níveis reduzidos de insumos, o que exige uma enorme
coordenação entre as diversas etapas de produção. As células ou ilhas de fabricação são uma
nova forma de organizar a produção, já que as máquinas são ordenadas de acordo com o fluxo
das peças e não mais pelo tipo de máquinas. As células ou ilhas de fabricação são acompanhadas
pela utilização do Kaizen e do Programa de Qualidade Total com o propósito de integrar o
controle de qualidade à produção envolvendo todas as atividades e postos de trabalho.
A tendência mais recente das relações com os fornecedores externos é a criação de pólos
industriais e condomínios de empresas. O polo industrial consiste na aproximação geográfica dos
fornecedores das empresas que utilizam uma gama muito variada de peças para a fabricação de
um determinado produto final. O condomínio industrial, por sua vez, envolve a instalação dos
fornecedores no terreno ou mesmo no interior da planta da empresa-mãe. Essas duas formas de
organização espacial da relação das empresas com os seus fornecedores tem crescido no setor
automotivo, na informática, na eletrônica de consumo e na chamada linha branca (televisão,
geladeira, freezer, fogão etc.).
As empresas, na reestruturação produtiva, não estão optando somente por estabelecer
novas relações produtivas e comerciais com vistas a uma maior aproximação geográfica com os
seus fornecedores. Essa política é acompanhada pela globalização das compras (global sourcing),
ou seja, as chamadas empresas-mãe passam a importar grande parte dos insumos (peças,
componentes etc) utilizados nos seus processos industriais (Moraes, 2000).
197
A redução dos níveis hierárquicos para aumentar a rapidez na aplicação das decisões e
intensificar a coordenação interna entre as suas várias áreas e departamentos das empresas
também tem sido observada.
Essas mudanças têm gerado alterações na natureza do trabalho e das funções e profissões.
Os trabalhadores, além de responsáveis por múltiplas funções de operação, limpeza, manutenção
e controle de qualidade, passam a ser submetidos a ritmos muito mais intensos de trabalho. O
trabalho tende a se concentrar mais na execução de operações de sistemas, máquinas e
equipamentos do que naquele associado à manipulação direta do material ou insumo em
processo de fabricação. Essas mudanças no trabalho exercido no interior das empresas têm
reforçado as características dos chamados operadores e eliminado diversas profissões do suporte
e apoio.
A polivalência do trabalhador no Brasil não tem significado maior valorização econômica
do mesmo. Quase sempre o trabalhador passa a executar as mesmas atividades que antes eram
executadas por um número maior de trabalhadores, sem contudo haver alterações salariais e nas
das condições de trabalho.
Essa situação reflete não só o descaso pelo trabalhador enquanto ator fundamental no
processo de geração de riqueza, mas, também, o paradoxo do sistema educacional e de formação
profissional do nosso país. Assim, os baixos níveis de qualidade do ensino básico e o
pensamento empresarial em conceber a formação profissional como mero adestramento são
incoerentes com as novas prerrogativas de um trabalhador dotado de conhecimentos universais e
de uma qualificação profissional polivalente.
Qualidade e Exclusão Social
A obsessão pela qualidade que invade o campo produtivo explica-se, em parte, pela
existência de um mercado cada vez mais diversificado e diferenciado. É a necessidade de
desenvolver novas estratégias competitivas que permitam uma maior e melhor adaptabilidade a
um mercado de tipo pós-fordista, que supõe um mercado diferenciado e uma qualidade
diferencial. Sem este caráter diferencial, não se pode compreender uma das razões fundamentais
que explicam a qualidade no mundo empresarial.
Não é impossível homogeneizar – para cima – todo um mercado. Consumir mercadorias
de qualidade não é um direito de todos em uma sociedade capitalista. Na terminologia do
moderno mercado mundial, “qualidade” quer dizer “excelência” e “privilégio”, mas não
“direito”.
198
Os poucos que podem consumir mercadorias de qualidade não querem, por sua vez,
consumir sempre um padrão unificado e homogêneo de produtos. Exigem variedade, permanente
atualização, inovação, criatividade, bons serviços etc. Os outros, segundo a interpretação
dominante, se beneficiarão na medida em que, quanto maior consumo da minoria, maior deverá
ser a produção, o que gerará maior empregabilidade, riqueza acumulada e bem-estar social. Em
suma, os que falam sobre qualidade no mercado referem-se sempre à qualidade dos incluídos,
não a dos excluídos.
Reestruturação Produtiva e o Sindicalismo Brasileiro
O processo de modernização conservadora teve início no governo Collor. Ele ocorreu no
justo momento da inflexão do padrão de acumulação capitalista e de financiamento vigente,
calcado no intervencionismo estatal enquanto agente produtivo, planejador estratégico e
regulador do mercado, na proteção do mercado interno, na transferência de renda dos vários
setores de atividade econômica para o setor industrial e no padrão de endividamento externo e
interno como alavanca econômica.
A reestruturação produtiva ocorreu no bojo de um processo de mudança econômica
(nacional e internacional) caracterizado pela abertura da economia internacional, pela
desregulação do mercado interno, pela restrição do papel do Estado na economia, pela corrida
tecnológica e produtiva.
A reestruturação produtiva foi imprimida de forma conservadora. A economia foi exposta
de forma abrupta à competição internacional, o que determinou a eliminação de várias empresas
do setor produtivo, a redução de empregos e a recessão econômica. Não ocorreu um pacto de
compromisso possível entre empresários e trabalhadores, de forma que os trabalhadores
terminaram arcando com o ônus principal. Os ganhos de produtividade das grandes empresas
não foram compartilhadas com os trabalhadores.
A globalização, embora se constitua em uma cadeia de elos desiguais entre os países
tendo em vista assegurar o domínio do hemisfério norte sobre o sul, foi considerada pelos setores
conservadores e globalitários o instrumento que poderia engendrar a modernização, bem como
um processo inevitável e um ideal e método do desenvolvimento. Formou-se o pensamento
único em relação a globalização. Fora dele somente restava a heresia.
O capital financeiro internacional passa a governar por meio das agências financeiras
internacionais (Banco Mundial e FMI) e das políticas econômicas dos três grandes blocos
econômicos. Neste contexto os governos dos países ditos emergentes devem honrar seus
199
compromissos financeiros internacionais, assegurar a abertura das suas economias e inserir de
forma subalterna à globalização. A razão de ser da política financeira internacional é a
estabilidade monetária, o ajuste fiscal e o combate a inflação.
Os objetivos buscados por meio da abertura econômica, da política de estabilização
monetária e da privatização do setor público foram o processo de desindustrialização de amplos
setores tidos como não modernos, a desestruturação dos métodos produtivos tradicionais, o
desemprego como elemento de contenção dos salários, o avanço das empresas transnacionais
adquirindo empresas privatizadas e/ou criando novas de forma a introduzir padrões de produção
mais modernos, entre outros. Os objetivos políticos em relação ao mercado de trabalho foram o
isolamento dos sindicatos, a desregulamentação dos direitos trabalhistas e a flexibilização do
mercado de trabalho.
A revolução produtiva apoiou-se na robótica, na informática, nos novos materiais, etc.
Como resultado, ocorreu a revolução na produção e fluxo de informações e dados. Seus
objetivos foram reduzir o estoque de material, fazer o tempo de atravessamento do produto no
interior da fábrica mais breve, satisfazer o cliente como estratégia para manter ou ampliar sua
participação no mercado, fazer o trabalhador polivalente, aumentar a qualidade dos produtos,
diminuir custos e desperdícios por maio da eliminação de funções e postos de trabalho, do
barateamento dos componentes do produto e da utilização da modularidade e produtibilidade,
fazer crescer a produtividade da empresa de forma a conquistar níveis “ótimos” de escala,
atenuar o conflito sindical e obter a adesão do trabalhador aos novos métodos produtivos
(Carleial e Valle, 1997, 453).
As novas estratégias de gestão orientaram-se pelo processo de focalização da empresa em
razão da sua atividade-fim, o que levou a terceirização e/ou descentralização de certas unidades
da empresa; pela introdução da manufatura celular (“just in time”, kanban, kaizen etc) e dos
programas de qualidade na organização da produção, o que levou a provocar novas práticas,
comportamentos e condutas na empresa; pela polivalência de funções e trabalho em grupo, o que
levou a minar a solidariedade entre os trabalhadores, a segmentar o trabalho e a ampliar as
responsabilidades e domínios profissionais dos mesmos; e pelo envolvimento e participação do
trabalhador no processo de produção, o que levou a integrar a criatividade do trabalhador no
processo produtivo, ao mesmo tempo em que impõe formas mais sutis de imposição do controle
e domínio sobre os trabalhadores (Carleial e Valle, 1997, 453-454).
A revolução tecnológica industrial e as novas estratégias de gestão provocaram a redução
do emprego e a redução dos custos da mão-de-obra para o capital. Todavia, levou as empresas a
200
valorizarem a polivalência do trabalhador, a sua participação nos níveis mais básicos de decisão
e a iniciativa para solucionar problemas.
A valorização do potencial material e intelectual do trabalhador se constituiu em uma
estratégia voltada para aumentar o lucro e para construir uma imagem mais humanista da
empresa. Mas, o que verdadeiramente almeja a empresa é o lucro. Quando esta estratégia de
mais consenso (hegemonia) e menos controle (coerção) não impede a resistência do trabalhador
ou redunda em queda da taxa de lucro, o discurso e o método de relação estabelecido entre o
capital e o trabalho muda radicalmente.
As novas estratégias de gestão para assegurar eficácia tiveram que se apoiar sobre duas
premissas. De um lado, expansão do padrão cultural típico da sociedade capitalista e burguesa,
isto é, um padrão cultural caracterizado pelo individualismo, materialismo, consumismo e
concorrencialismo. Tal padrão teve que ser completado por meio de uma leitura racional e
instrumental responsável pela leitura fragmentada da realidade. De outro lado, a determinação do
isolamento do sindicato combativo de categoria. Este sindicato representava um obstáculo ao
processo de modernização da empresa porque resistia a implantação da terceirização, da
intensificação do trabalho, da multiplicação de funções do trabalhador, e assim por diante.
A Ação Sindical em Face da Reestruturação Produtiva
A implementação das políticas de reestruturação produtiva possuiu uma precondição
geral para a sua eficácia, qual seja, a expulsão rápida e completa da empresa dos trabalhadores
em excesso e a criação do desemprego estrutural. Sem minar a resistência dos trabalhadores não
seria possível garantir as inovações.
As empresas e o governo buscaram desregulamentar o mercado de trabalho e flexibilizar
a legislação trabalhista. Assim, foram implementadas a medida provisória nº 1029, a medida
provisória nº 1079, a Portaria 85 do Ministério do Trabalho (Carleial e Valle, 1997, p 465-469).
A estratégia da empresa em relação aos trabalhadores se apoiou na busca da solução dos
conflitos na empresa. Para tanto, criaram organizações voltadas para a mediação entre
trabalhadores e capitalistas, e submetidas aos objetivos da empresa. Nas negociações,
circunscritas na empresa, houve uma política de exclusão do sindicato Política esta nem sempre
marcada de êxito.
As empresas, quando muito, incentivaram o sindicato à japonesa, isto é, circunscrito à
empresa e que compartilha com esta as mesmas estratégias e objetivos. Dessa relação emerge o
neocorporativismo, a crise de identidade de classe e os pensamentos exclusivistas e autoritários.
201
A hiper-localização dos conflitos, da organização e da identidade do trabalhador impõe-se
enquanto uma tendência política.
A luta de resistência contra a restruturação produtiva tem se revelado insuficiente. A luta
sindical tem exigido o desenvolvimento de um projeto alternativo dos trabalhadores para
enfrentar a globalização, o neoliberalismo e a restruturação produtiva.
A luta sindical tem que buscar combinar o básico da luta imediata (salário, produtividade
participada etc) com a luta geral; impulsionar um novo sindicalismo, construído pela base e com
diretorias renovadas permanentemente; e contribuir com a criação de uma vasta organização de
base independente e autônoma. A luta sindical tem que se desenvolver de forma horizontal
(apoiada em organismos de base), de modo a edificar uma democracia de base efetiva e
cotidiana; e a incorporar na mesma luta a diversidade de trabalhadores da empresa (terceirizados,
temporários, determinados etc), bem como os excluídos do trabalho (desempregados).
A luta sindical pela redução da jornada de trabalho e pela reconstrução de espaços de
humanização por meio do “ócio” gerado se coloca como uma necessidade. Enfim, a luta sindical
pode se constituir em uma luta em prol de uma nova cultura e um novo projeto de civilização
fundada no humanismo e na solidariedade.
A crise do sindicato, do movimento sindical e das lutas sindicais tradicionais pode
proporcionar o momento para que os mesmos se reformulem. As transformações e suas
conseqüências são, em termos básicos, conhecidas.
Reestruturação Produtiva, Trabalhador Polivalente e Educação
O discurso da valorização humana do trabalhador e a defesa ardorosa da educação básica
para a formação do cidadão e de um trabalhador polivalente, participativo, flexível e de elevada
capacidade de abstração e decisão, decorre da própria vulnerabilidade do novo padrão produtivo.
O novo padrão aumenta a necessidade qualitativa do trabalhador.
O novo padrão produtivo, apoiado em sistemas informatizados, projeta o processo de
produção com modelos de representação do real e não com o real. Estes modelos, em face de
uma matéria-prima que não é homogênea, podem apresentar problemas que comprometem todo
o processo. A intervenção direta de um trabalhador com capacidade de análise torna-se crucial
para a gestão da variabilidade e dos imprevistos produtivos.
Por serem sistemas altamente integrados, problemas e imprevistos não atingem apenas
um setor do processo produtivo, mas toda a estrutura produtiva da empresa. O trabalhador
parcelar do taylorismo passou a se constituir em um entrave para o novo padrão produtivo, visto
202
que o novo trabalhador devia ser capaz de identificar e de resolver problemas e imprevistos em
equipe.
O capital tem que redescobrir a humanidade obliterada do trabalhador por parte do
taylorismo/fordismo. O capital passou a se interessar mais pela apropriação de qualidades sóciopsicológicas do trabalhador coletivo por meio dos chamados sistemas sócio-técnicos de trabalho
em equipes, dos círculos de qualidade etc. Trata-se de novas formas de gestão da força de
trabalho que visam a garantir a integração do trabalhador aos objetivos da empresa (Moraes,
2000).
O capital busca forçosamente trabalhadores com um nível de abstração mais elevado, o
que implica em mais tempo de escolaridade e de uma escolaridade de melhor qualidade. Mas
também busca, combinadamente, manter tanto a subordinação do trabalhador quanto a qualidade
de sua formação.
A estratégia mais geral de subordinação do trabalho ao capital dá-se mediante o
mecanismo de exclusão social. Estes mecanismos são materializados na expansão do
desemprego estrutural, na precarização do trabalho, na contratação de serviços terceirizados, no
enfraquecimento do poder sindical, entre outros processos.
No campo da educação e da formação, o processo de subordinação do trabalhador ao
capital busca efetivar-se mediante a delimitação dos conteúdos e da gestão do processo
educativo. No plano dos conteúdos, a educação geral, abstrata, vem demarcada da exigência da
polivalência ou de conhecimentos que permitam a policognição.
O conceito de “policognição”, que busca explicitar as demandas emergentes do sistema
produtivo capitalista dentro do novo padrão tecnológico, se caracteriza por um conjunto de
conhecimentos. Estes conhecimentos envolvem o domínio dos fundamentos científicointelectuais subjacentes às diferentes técnicas que caracterizam o processo produtivo moderno,
associado ao desempenho de um especialista em um ramo profissional específico; a
compreensão de um fenômeno em processo no que se refere tanto à lógica funcional das
máquinas inteligentes como à organização produtiva como um todo; a responsabilidade,
lealdade, criatividade e sensualismo; e a disposição do trabalhador para colocar seu potencial
cognitivo e comportamental a serviço da produtividade da empresa.
O conceito de “polivalência” é de cunho mais operacional. Indica as exigências
demandadas do “novo” trabalhador, isto é, a boa formação geral, atenção, lealdade,
responsabilidade. Indica, ainda, a capacidade de perceber um fenômeno em processo. Todavia,
não indica a necessidade de domínio dos fundamentos científico-intelectuais subjacentes às
diferentes técnicas produtivas modernas.
203
Há, portanto, diversas concepções acerca de atividades polivalentes. Cada concepção
demanda um tipo de qualificação e de intensificação do trabalho. Por outro lado, a tensão real
sobre a qual se dá a formação e qualificação humana está impelida pelo processo de reconversão
tecnológica.
Breve Trajetória do Ensino Tecnológico
A trajetória da educação tecnológica no Brasil pauta-se, marcadamente, pela dicotomia
entre o pensar e o fazer. Mas tem passado por mudanças significativas. A progressiva conquista
da eqüivalência com o ensino regular e as mudanças pedagógicas e curriculares permitiram que
se transitasse, de uma concepção originária de adestramento e formação de mão-de-obra por
processos educativos centrados em currículos tecnicistas e meramente profissionalizantes, para
uma concepção e prática educativa que buscava superar as contradições entre teoria e prática e
entre tecnologia e humanismo.
Dessa forma foi possível a construção paulatina de um padrão unitário de qualidade, de
reconhecida excelência, na formação de cidadãos aptos a intervirem ativamente na vida social
pelo exercício pleno da cidadania, o que inclui a capacitação para o trabalho. Centros federais e
escolas técnicas e agrotécnicas puderam formar cidadãos críticos, aptos para se inserir
ativamente na vida produtiva, não como meros manipuladores de pacotes tecnológicos
importados e de rápida obsolescência, mas como reais produtores de conhecimento tecnológico.
Construiu-se, assim, por demanda de amplos setores da sociedade, um importante patrimônio
sócio-educacional que mais se aproximou do conceito de educação unitária no Brasil.
Esse modelo de instituição, no entanto, passou a ser sistematicamente desmontado a
partir do início do primeiro governo Fernando H. Cardoso. O Projeto de Lei nº 1603 tinha como
eixo a extinção da integração entre a educação profissional e a formação geral do educando, de
forma a reduzir os centros federais de educação tecnológica e as escolas técnicas e agrotécnicas a
meras instituições formadoras/treinadoras de mão-de-obra e a impor um cunho nitidamente
privatista no funcionamento das instituições de ensino tecnológico.
Em uma manobra para contornar as resistências desencadeadas ao PL nº 1603 o governo
o retirou de trâmite no Congresso, mas o transformou no Decreto-Lei nº 2208/97 e impôs, assim,
a reforma que desejava às instituições de ensino tecnológico. Como passo seguinte, cooptou os
dirigentes das IFEs com o canto de sereia de um financiamento de US$ 500 milhões para a
implantação do Projeto de Reforma e Organização da Educação Profissional (PROEP) elaborado
de forma atender aos objetivos da reforma.
204
O governo reafirmou sua opção por um tipo de educação: adequar a formação técnoprofissional às exigências do mercado, de forma a qualificar e requalificar profissionais com
conhecimento superficial e instrumental, de rápida obsolescência. Tal processo concretizou o
descompromisso com a educação pública de qualidade e restringiu o acesso (não formal, mas
real) aos níveis mais elevados de pós-graduação para os poucos incluídos nos centros federais de
educação.
As transformações em curso, que buscam abrigo e justificação ideológica na
diversificação, flexibilização e expansão da oferta de cursos tecnológicos, revelam na prática o
recrudescimento da dualidade estrutural do sistema escolar brasileiro. Dualidade estrutural que,
embora originada na educação básica, também se expandiu para o nível superior.
Reforma do Ensino Tecnológico e os Novos Desafios
A pedagogia do eficientismo industrial traz para o campo pedagógico concepções
empresariais que imprimem à educação uma perspectiva mercadológica que, por princípio,
recusa a autonomia dos educadores e dos educandos e submete-os à ditadura do mercado. Daí
resultam as teorias economicistas que vinculam, linear e mecanicamente, a educação ao aparato
produtivo, subordinando-a à lógica da rentabilidade.
Os assessores do Banco Mundial consideram que o modelo educacional dos centros
federais de educação tecnológica e escolas técnicas e agrotécnicas federais apresenta elevados
custos e não proporcionam benefícios sociais e econômicos, isto é, não se adapta nem ao
mercado, nem à produção, permanecendo distante dos interesses empresariais. Alegam, ainda,
que os alunos que concluíram o ensino médio de nível técnico não ingressavam imediatamente
no mercado de trabalho, prosseguindo em sua formação acadêmica. Os assessores do Banco
Mundial reproduzem, enfim, a concepção de trabalho como instrumento subalterno do processo
de acumulação e reprodução do capital.
O Banco Mundial propõe a reforma implementada pelo governo FHC por meio do
Decreto nº 2.208/97 e da portaria nº 646/97. Retoma e aprofunda o paradigma dual: a escola que
ensina a pensar por meio do domínio teórico-metodológico do conhecimento socialmente
produzido e acumulado e a escola que ensina a fazer por meio da memorização de procedimentos
e do desenvolvimento psico-físicos; o ensino humanista-acadêmico para os ricos e o ensino
profissional para os pobres. De um lado, privilegia a gestão e o controle do processo produtivo,
de outro, dissocia trabalhador e cidadania.
205
Com o saber fragmentado, o trabalhador terá maiores dificuldades para compreender, em
sua totalidade, o processo de trabalho e as relações sócio-econômicas. A política e a sociedade se
constituirão em terrenos pouco compreensíveis. A educação não será integral, articulada ao
processo produtivo, tendo em vista garantir ao trabalhador o controle qualificado sobre a sua
própria prática produtiva. O saber e o fazer, dissociados, proporcionam grandes obstáculos para
essa compreensão.
Um Projeto Pedagógico de Formação Integral
A concepção de educação unitária e politécnica deve orientar a contraposição à reforma
da educação técnica e tecnológica no Brasil. Os seus pressupostos são o trabalho como princípio
educativo e a formação politécnica.
A educação é um processo de formação social e profissional e, nesse sentido, quer a
educação de nível médio, quer a de nível superior, deve preparar para o mundo do trabalho. O
trabalho é um processo pelo qual o ser humano se faz e imprime a sua ação sobre a natureza e o
meio social, transformando-os e transformando a si próprio.
A preparação educacional/profissional para o mercado de trabalho é o processo de
disponibilização de força de trabalho para a realização da relação capitalista de produção,
regulada pela dinâmica da concorrência e das trocas de mercado. Já a preparação
educacional/profissional para o mundo do trabalho seria o desenvolvimento pleno do potencial
humano, o que, no campo da educação, significaria a apreensão e unificação dos saberes
científicos, tecnológicos, éticos e políticos, social e historicamente construídos, em busca da
realização dos sujeitos históricos e da construção do presente e do futuro. Trata-se, portanto, de
negar a redução do processo educacional/profissional à funcionalidade da produção.
A formação politécnica é a formação por meio do resgate da relação entre conhecimento,
produção e relações sociais. Isto por meio da apropriação do saber científico-tecnológico pela
perspectiva sócio-histórica, que permita a participação na vida social, política e produtiva, como
cidadão e trabalhador. O educando deverá estar em condições de dominar as diferentes
modalidades de saberes requeridos pela atividade social e produtiva, com a compreensão do seu
caráter e de sua essência.
A intensificação da concorrência intercapitalista e a nova base científico-tecnológica e de
gestão dos processos produtivos exigem que as empresas intensifiquem o processo de trabalho,
pelo desenvolvimento de conhecimentos técnicos mais amplos e de habilidades atitudinais e
comportamentais que garantam iniciativa, gestão do processo e capacidade para agir em
206
situações imprevistas. Mas, todos esses requerimentos ou qualidades devem ser desenvolvidos e
circunscritos na justa medida de funcionalidade da manutenção da alienação do trabalho, base da
exploração capitalista. Isto porque o capital, ao mesmo tempo em que necessita ampliar a base
cultural e tecnológica do trabalhador para garantir a sua reprodução e valorização ampliada,
necessita também negá-la para preservar a continuidade do processo de alienação e exploração.
A educação unitária e politécnica trabalha pela unificação dos saberes e por sua
referência à materialidade dos processos de produção. Opõe-se a propostas educacionais que se
baseiam na crescente especialização e na formação de novas disciplinas para cada conjunto de
conteúdos e técnicas, bem como no fortalecimento do caráter psicologizante de currículos, tendo
em vista o desenvolvimento de atitudes e comportamentos considerados favoráveis ao ambiente
de trabalho. A educação unitária e politécnica busca integrar saberes a partir da identificação de
núcleos unitários que se inter-relacionam, atenta à diversidade e multiplicidade do real, não
especializar e resolver as contradições no campo do artificialismo curricular. Caminhar contra a
dispersão ou fragmentação curricular e de saberes de forma a superar polaridades que
historicamente têm se manifestado em concepções educacionais, como entre o conhecimento
geral e o conhecimento específico, entre o conhecimento técnico e o político, entre o
conhecimento humanista e o tecnológico, entre a teoria e a prática, é o grande objetivo.
A produção da ciência e das tecnologias não é neutra. Sem reconhecermos isto
incorreremos na superficialidade de supor que os impactos tecnológicos podem ser controlados
unicamente a partir da ampliação do conhecimento e da informação, deixando de lado os
interesses contraditórios que envolvem a questão. Como sabemos, a produção, a utilização e o
impacto das tecnologias não atingem, uniformemente, as sociedades, nem em relação às classes
sociais que as compõem, nem tampouco aos diversos países.
207
10. IMPÉRIO E DESTRUIÇÃO
A nova ordem mundial constitui-se em um produto da nova forma de soberania.
Soberania esta definida pelo Império do Capital. Ele rege e ordena juridicamente a nova
soberania e impõe o mercado global, a forma política da mundialização do capital que se torna
crescentemente dominante desde a queda do Muro de Berlim.
O Império do Capital é o único império que se fez presente em nível mundial. Ele penetra
em todos os espaços naturais e sociais. O Império é ilimitado no sentido espacial, isto é, domina
a totalidade do mundo e não há nada externo ao seu poder. Sendo único e não tendo fronteiras
nem limitação rígida, torna-se flexível e não se sabe onde tem início e onde termina a sua área de
influência. É ilimitado no sentido social, isto é, engloba toda e qualquer faceta da vida humana e
faz desta seu objeto.
O Império do Capital não se faz presente igualmente no mundo. A sua expansão,
reprodução e dominação é desigual e combinada, fruto da plena liberdade na produção e
realização capitalista do valor, isto é, plena liberdade de atuação e reprodução do capital em
detrimento do homem e da vida.
O Império do Capital não é uma nova versão norte-americana do imperialismo. Ele não
se apóia em estruturas políticas e econômicas referenciadas no Estado-nação. Diferentemente do
imperialismo, que depende do Estado-nação, que tem o regime político limitado pelos países
envolvidos e que faz do conflito e da guerra a forma inevitável de soberania, o Império do
Capital não tem competidores, opera por meios e princípios diferentes e têm uma forma diferente
de soberania, na qual nenhum Estado-nação pode funcionar como centro de poder.
O ordenamento político do Império do Capital esta em formação. O seu modelo
político tende a ter como referência a República Norte Americana, que articula o poder central
da União com o poder dos estados (sob estreitos limites de independência e autonomia). Estes
poderes estão, por sua vez, sujeitos a movimentos de pressão oriundos de redes de poderes e
contra-poderes da sociedade civil.
A idéia básica do modelo político do Império do Capital é a substituição do poder
soberano do Estado-nação pelo poder constituinte internacional, referenciados em estruturas
políticas internacionais, sob o entendimento de que quem participa deste poder deve se submeter
ao poder que ele mesmo participa e comanda. Estruturas que devem ser capazes de conciliar o
poder político centralizado internacionalmente com a liberdade de pressão de Estados nacionais,
movimentos sociais, etc.
208
A nova soberania imposta apóia-se em um sistema político em que a soberania é
continuamente confirmada/reformulada por meio de redes de poderes e contra-poderes existentes
no mundo. Diferentemente da soberania imperialista que necessita destruir para dominar, o
Império do capital integra e incorpora o diferente à sua rede de poder, de forma a alcançar a
extração da riqueza dos pobres dentro de uma legalidade internacional.
O centro da estruturação e organização política da nova soberania é a Organização das
Nações Unidas. (ONU) que tem agido crescentemente como centro internacional das decisões
mundiais.
A questão da justiça no Império do capital também constitui-se como um ordenamento
em formação também nos planos militar, monetário e ideológico-cultural..
No plano militar o Império dispõe de estruturas policial-militares e de espionagem para a
sua proteção. Possui órgãos de defesa mundial como a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN), bem como em órgãos de defesa nacionais e regionais como exércitos e polícias
nacionais. O Império impõe a nova soberania no plano militar por meio de operações militares
como na Guerra do Golfo, de operações de controle social como no policiamento eletrônico de
cidades, etc.
No plano econômico o Império dispõe de estruturas econômicas internacionais, bem
como de estruturas nacionais que garantem o seu sucesso. São as instituições financeiras
internacionais (FMI, BIRD), as corporações econômicas transnacionais, a Organização Mundial
do Comércio (OMC), os bancos centrais nacionais, etc. Elas ditam as normas e leis que
regulamentam as atividades econômicas no âmbito do comércio internacional, os fluxos de
capitais, as políticas de patentes, e assim por diante.
No plano ideológico-cultural o Império dispõe de estruturas de reprodução dos seus
valores. Estruturas como a indústria cinematográfica norte americana, as corporações
internacionais de comunicação, e assim por diante. Dentre seus objetivos estão a reprodução de
manifestações da nova ideologia do Império como a realidade fragmentada no campo da
informação, o American way of life no campo do modo de vida, o individualismo burguês no
campo do comportamento social, igualdade formal no campo dos direitos.
A face mais cruel do Império do Capital é o “apartheid social”. Parte desse quadro é
provocado pelas políticas econômicas impostas pelos instrumentos financeiros do Império: o
FMI e o Banco Mundial. Esses instrumentos financeiros possuem como centro de suas políticas
econômicas a estabilização monetária e os programas de ajuste fiscal.
As políticas de estabilização monetária tem como propósito central o combate à inflação.
Por meio da integração temporária ou permanente entre a moeda local e a moeda padrão
209
internacional (dólar), convergem as economias nacionais em direção da dolarização da
economia. Essa política, responsável pelo controle da inflação e pelo fortalecimento da moeda
nacional, gera danos sociais e econômicos irreparáveis. A balança comercial torna-se
desfavorável, seu equilíbrio obriga recorrer a novos empréstimos internacionais e desencadeia o
aumento da dívida externa. Como consequência temos a desindustrialização nacional, a queda
das exportações e das divisas externas, a queda da produção e da produtividade e o aumento do
desemprego. O desemprego em alta, por sua vez, reduz ainda mais o mercado consumidor.
Finalmente, ocorre a queda do investimento nacional nas estruturas de produção e na infraestrutura, a redução dos gastos sociais, a crise dos sistemas previdenciários, o crescimento do
desemprego e do emprego formal, e assim por diante.
As campanhas de ajuste fiscal constituem um discurso técnico e também lógico, no qual
se deve gastar somente o que se arrecada. Entretanto, as instituições financeiras internacionais
não reconhecem que a maior parte dos ganhos de um país são utilizados no pagamento das
dívidas interna e externa, em detrimento de investimentos na saúde, na educação, no meio
ambiente, na geração de empregos, etc.
A globalização capitalista do Império do capital precisa ser enfrentada. A reação contra o
Império pode ser realizada por movimentos políticos de caráter revolucionário que se isolam de
relações diretas com o Império, a exemplo do Movimento Zapatista no México, passando por
movimentos políticos que propugnam profundas reformas sociais, a exemplo do MST no Brasil.
As manifestações mundiais anti-globalização são coordenados por setores heterogêneos e
as vezes contraditórios. Aglutina ambientalistas, comunistas, punks, pacifistas, etc. As
manifestações tem ocorrido de forma mais intensa nos países capitalistas dominantes onde a
maioria está inserida com vantagens no Império do Capital. Isto se deve à solidariedade e ao
caráter humano de alguns destes movimentos e organizações, mas também pelo temor e ameaça
que uma grande imigração de populações pobres para os centros do capital pode causar em
termos de diminuição da oferta de empregos, de redução da qualidade de vida, etc.
Estudos identificam 2,8 bilhões de pessoas vivendo com menos de 2 dólares por dia
atualmente no mundo. O fenômeno da pobreza está em expansão, seja quantitativamente, pelo
aumento do número de pobres e excluídos, seja qualitativamente, devido à precarização de
mecanismos de acesso a educação e a cultura, bem como pela destruição de identidades
culturais.
O que nos resta a fazer diante dessa espoliação justificada é lutar a fim de tentar impedir
que o mercado global aprofunde cada vez mais as desigualdades já existentes. Um bom começo
para isso é a organização das vítimas do Império do capital, para uma postura consciente
210
acerca da situação mundial e que participem efetivamente das lutas internacionais em defesa
de um modelo alternativo de desenvolvimento local, nacional e internacional.
Capital Globalizado e Destruição
A Modernidade neoliberal, que encontra acolhida em amplos setores das classes médias e
que recebe uma intensa campanha dos meios de comunicação, mostra os seus limites. Brasil,
México, Argentina, Indonésia, Rússia despencam dos seus modestos crescimentos econômicos.
Na Europa, os pobres (desabrigados, mendigos, etc) somam 15% da população. Na Rússia, uma
década de capitalismo, regado à máfia e neoliberalismo, reduz em 7 anos a expectativa de vida
da sua população.
Como conseqüência, temos as subclasses, os subpaíses, a xenofobia exacerbada, o
desemprego em massa. Temos também o sacrifício da razão e da ciência em favor do vazio
cultural, do descartável, da anarquia econômica que alimenta a sociedade de consumo, do
desperdício que afeta gravemente o equilíbrio ecológico e acentua a pobreza.
A violência e a morte, bem como sua banalização, avançam irresistivelmente nos grandes
conglomerados urbanos do planeta. Nos Estados Unidos, sociedade na qual tem crescido o
conceito de tolerância zero a violência, a população carcerária ultrapassa a casa de 1.800.000
detentos, sendo, inclusive, uma nova e importante fronteira de exploração da mão-de-obra pelo
capital. Localidades controladas pelo crime organizado multiplicam-se em países tão diferentes
como Brasil, Colômbia, França e Rússia onde, não raramente, sequer a força policial-militar
consegue penetrar e restabelecer um estado de ordem social.
O neoliberalismo é também o reino da especulação financeira globalizada. Vinte e três
trilhões de capital volátil especulam no mercado internacional, sendo que U$ 1,8 trilhão deste
mesmo capital é movimentado entre países e continentes, por meio dos sistemas de
computadores de bancos e instituições financeiras, em um único dia. A bolha especulativa não
para decrescer e todas as soluções encontradas até o momento buscam equacionar seus
problemas imediatos (salvando especuladores, banqueiros e instituições), mas empurrando o
acerto de contas para o futuro. A produção mundial encontra-se suplantada pelo capital
especulativo, o que evidencia o tamanho da bolha especulativa e o sacrifício das camadas
populares, das políticas sociais dos Estados e das atividades produtivas.
A concentração da propriedade e do saber nas mãos dos grandes conglomerados e das
classes médias superiores, um dos traços fortes da economia mundializada e globalizada,
encontra-se casada com a exclusão social – menos emprego, menos salários, menos direitos e
211
mais marginalização. A incorporação de tecnologias, que permitem aumentos de produtividade
nas empresas, substitui postas de trabalho. Aumentos de produtividade de empresas, e mesmo de
amplos setores da economia, não levam necessariamente a aumentos de produção na sociedade,
visto que a mesma é acompanhada da destruição e desarticulação de outras empresas e setores da
economia. A modernização econômica apresenta, ainda, como traço característico, a
internacionalização econômica dos países de capitalismo periférico e dependente dos grandes
centros capitalistas por meio de nova onda de penetração dos capitais transnacionais, cujo
resultado é a transferência de recursos destes países para fora em prejuízo do próprio
crescimento e desenvolvimento sócio-econômico.
O processo civilizatório, conforme podemos observar, encontra-se submetido a uma
sensível e desumana degradação. Como sistema histórico, todavia, o capitalismo está sujeito a
mudanças que podem proporcionar uma maior longevidade ou a sua brevidade histórica.
O Que Fazer?
É necessário o desenvolvimento de três grandes processos sociais, sem os quais não será
possível a formação de atores políticos críticos, motivados por projetos políticos próprios e
fortemente organizados para viabilizá-los.
Efetivar a universalização da educação pública, gratuita e de qualidade e conquistar os
espaços de educação (escola, universidades, etc) do Estado e do capital são passos necessários
para a construção da conscientização política contra a injustiça social. De um lado, porque a
educação permite a aquisição de instrumentações primeiras para a conscientização política como
ler, escrever, informar, interpretar, analisar, e o acesso ao conhecimento científico e tecnológico
desenvolvido pela humanidade. De outro, porque a conquista dos espaços da educação e sua
transformação em sociedade civil organizada permitem que sejam orientados para formar o
mundo do trabalho para a liberdade, não para o capital, na medida em que poderão ser criados
projetos de educação alternativa e impulsionar projetos sociais alternativos tendo a educação e o
espaço em que ela ocorre como ferramentas.
É necessário preservar ou mesmo reconstruir as identidades culturais comunitárias. A
condição de classes e grupos sociais atuando como sujeitos sociais e políticos possui como
fundamento a cultura de cada povo. Essa necessidade torna-se urgente quando os centros de
poder do capital aciona poderosas forças pasteurizadoras e homogeneizadoras da cultura, a
exemplo das novas mídias, dos oligopólios de informação, dos novos kits culturais.
212
Por fim, as classes, grupos e indivíduos sociais necessitam se organizar e se defender.
Operar redefinições no Estado e limites na economia de mercado, ou mesmo colocar em questão
as bases sobre as quais a sociedade atual se articula, no atual período de luta de classes, somente
será possível por meio da construção de uma vasta organização da sociedade civil do mundo do
trabalho. É necessário libertar organizações tradicionais da sociedade civil do mundo do
trabalho, a exemplo dos sindicatos e dos partidos políticos, do imobilismo burocrático, do
favorecimento material de grupos políticos encastelados na sua estrutura e da tradição vertical e
autoritária de relação com a base, e impulsionar a criação de organizações novas da sociedade
civil do mundo do trabalho, como ONGs, movimentos de ambientalistas, de sem-teto, de
minoria.
A construção destes três grandes processos sociais, tendo em vista a superação da
injustiça social, são insuficientes. A luta contra o Império do capital deve ser acompanhada por
um conjunto de orientações políticas para o mundo do trabalho.
É necessário realizar a contraposição ao neoliberalismo. Ele representa um modelo de
civilização apoiado na intensificação dramática da desigualdade nas relações sociais, de maneira
a transformar crianças, mulheres, minorias étnicas, desempregados, camponeses, imigrantes, etc,
em vítimas de processo de exploração/opressão. Processo este que se converte em exclusão
social.
A contraposição ao neoliberalismo deve ter como referência a luta pela defesa do homem
excluído e da humanidade. A defesa não pode residir, fundamentalmente, na luta econômica ou
mesmo contra a exploração do trabalhador. Esta luta tende a se submeter a uma lógica mercantil
da valoração do trabalho.
A luta deve ter como fundamento o homem excluído, não o explorado, a humanidade,
não a classe social. Todavia, um dos grupos sociais politicamente mais articulados e com maior
potencial de mobilização são os grupos sociais do mundo do trabalho diretamente explorados
pelo capital, mas que não se converteram em aristocracia operária. A luta contra a exclusão
social e pela humanidade deve, enfim, tê-los como uma das bases de sustentação, mas as
perspectivas da luta transcende a luta econômica (corporativa ou não) contra a exploração
econômica. De outro lado, há experiências políticas e sociais nos diversos países e em dadas
conjunturas e períodos de luta de classes em que grupos sociais movem lutas e convertem-se em
prioridade para uma ação insurgente e em torno do qual convergem outros movimentos. São
exemplos os zapatistas no México, os sem-terra no Brasil, os sem-teto na Alemanha.
É necessário realizar a contraposição à estratégia de luta do mundo do trabalho fundada
em uma igualdade homogeneizadora e pasteurizadora, uma igualdade de cunho econômico. Em
213
primeiro lugar, a contraposição a esta igualdade deve se realizar por meio da combinação da luta
pela igualdade e pela diferença. Os diversos grupos e movimentos sociais, com base na sua
necessidade, experiência, organização e identidade deve escolher como, quando e sobre que base
organizar/articular suas lutas. Deve ser superada a idéia da classe guia e do partido de vanguarda
(ou de organização equivalente) dirigente, de direção vertical e centralizadora. Em segundo
lugar, a contraposição a esta estratégia deve superar o gradualismo, o artificialismo e o
desmembramento da luta pelos direitos humanos que o liberalismo político realiza, isto é, a
divisão dos direitos humanos em direitos civis, quando das revoluções burguesas do século
XVIII e XIX, direitos políticos, quando da pressão popular pelo fim dos regimes políticos
censitários, liberdade de organização partidária e criação das democracias burguesas ocidentais,
e direitos sociais e econômicos, quando do advento do Estado do bem-estar social, atualmente
em retrocesso pela ação política e econômica neoliberal.
A luta deve ser pelos direitos humanos de forma a superar o gradualismo, artificialismo e
desmembramento. A sua plataforma concreta é o direito ao trabalho, terra, habitação,
alimentação, saúde, educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz.
É necessário realizar a contraposição à democracia liberal e representativa e o poder da
burocracia de Estado, ambos corruptos. Democracia e burocracia que oculta o poder (econômico,
político, científico, ideológico) e dissolve as classes e os indivíduos como cidadãos. Democracia
jurídica, política formal, burocracia tecnicista e autoritária, instrumentos a serviço da reprodução
da exclusão social.
A democracia e o poder buscados não devem se expressar por meio das metas definidas
pela esquerda marxista da II, III e IV Internacionais, quando identificam o Estado como a meta a
ser conquistada – e que, ainda hoje, uma parte da esquerda insiste em perseguir. A concepção
estadolatra e burocrática de poder, que edifica o Estado como alvo de conquista, deve ser
contraposta pela perspectiva do horizonte a ser alcançado. A ausência de metas políticas claras e
da técnica política moderna da realização das metas políticas permite o aprendizado político e a
caminhada de todos (cada qual a seu tempo e velocidade). A construção de metas e de novas
técnicas políticas, em alguma altura da caminhada, poderão dessa forma não sacrificar os
horizontes a serem alcançados.
A democracia buscada deve ser popular e participativa. Ela deve expressar-se na
democracia interna da organização da sociedade civil do mundo do trabalho, do movimento
social ou organização partidária, de forma a superar o centralismo democrático de feição
leninista; na unidade da diversidade dos movimentos, lutas e realidades do mundo do trabalho,
estruturadas por meio de organizações horizontais e universais de decisão e de poder
214
compartilhada; e na estruturação de organizações sociais de caráter produtivo, cultural, ambiental
ou social que reflita uma nova forma de gestão, de participação, de relações com a comunidade.
Desta prática pode nascer uma nova gestão, um novo poder, um novo homem, uma nova
participação, uma nova liberdade, uma nova igualdade, uma nova cumpricidade social. Uma
nova revolução, enfim.
215
Anexo 1
DESEMPREGO E PRECARIZAÇÃO: UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA
O desemprego e a precarização das condições e relações de trabalho não ocorreram
somente em lugares específicos, tais como num setor econômico ou numa região, embora
possam ter sido mais intensos em alguns lugares. Não podem também ser atribuídos a pouca
empregabilidade, aos desempregados, a fatores internacionais e tecnológicos. Mesmo que tais
fatores possam gerar desemprego e precarização, eles não foram o motivo principal da
deterioração do mercado de trabalho brasileiro ocorrida na década de 1990.
O desemprego e a precarização das relações e condições de trabalho que são observadas
na década de 90, sendo mais intensas no primeiro governo de FHC (1995–98), foi um fenômeno
de amplitude nacional bastante intenso, jamais ocorreu na história do país.
O país nunca conviveu com tamanho grau de desemprego, nem com a crescente
degeneração das condições de trabalho com o aumento do trabalho temporário, por tempo
determinado, sem renda fixa, ou seja, no Brasil passou a surgir os bicos. Pelo contrário, após a
Segunda Guerra Mundial o país se transformou em uma economia urbana e industrial com um
elevado surgimento de empregos formais, sendo capaz de introduzir ao mercado de trabalho
urbano grande parte de uma população com um grande crescimento demográfico e também
pessoas expulsas do campo.
Nos anos 80 houve uma alteração no mercado de trabalho. Surgiu com intensidade o
desemprego urbano e iniciou-se a deterioração das condições de trabalho, ampliando a
informalidade. Nesse período foram preservadas as estruturas industrial e produtiva, fazendo
com que o desemprego e a precarização fossem relativamente baixos, vinculados às oscilações
da economia na década e à inflação. No término da década o desemprego era baixo e pouco
definida a deterioração das condições de trabalho.
Na década de 90 a situação modificou-se, a geração de emprego sofreu as conseqüências
desestruturantes de um processo de retração das atividades produtivas.
O desemprego disparou. A Folha de São Paulo indicava que o desemprego havia
alcançado mais de 10 milhões de brasileiros pelo país. Em algumas regiões metropolitanas as
taxas de desemprego haviam superado 20% da população economicamente ativa.
Essas taxas são ocultas e frias, pois não mostram o lado humano de desestruturação
pessoal, familiar, social, e desassossego que afeta um em cada cinco trabalhadores das grandes
cidades brasileiras.
216
O desemprego afeta os trabalhadores de maneira desigual. Além da intensa elevação da
taxa de desemprego, alterações têm ocorrido na estrutura e no tempo de desemprego. Entre 1989
e 1998, o desemprego afetou e cresceu mais entre os homens, de mais idade (40 anos ou mais),
cônjuges e para os de maior escolaridade. Estes dados desmentem a argumentação do governo e
seus economistas, pois, após negarem a existência do desemprego, tentaram atribuí-lo à
desqualificação do desempregado. O tempo de desemprego médio era de cerca de 15 semanas
em 1989, passou para 36 semanas em 1998 e alcançou 40 semanas nos primeiros meses de 1999.
Os desempregados vêm tendo menor acesso ao seguro-desemprego. As condições de
trabalho tornaram-se informais, precárias, com trabalhos e salários descontínuos, de curta
duração e sem contribuir para a Previdência. A redução do mercado regulamentado pelas leis
trabalhistas que garantem proteção ao trabalhador, tais como Previdência Social, o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o seguro-desemprego, pode ser observado pelo
crescimento dos trabalhadores sem carteira de trabalho assinada e por conta própria.
De acordo com pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ou do
DIEESE-SEADE, cerca de 50% dos trabalhadores brasileiros das grandes cidades se encontram
em algum tipo de informalidade, sem garantias mínimas de saúde, aposentadoria, segurodesemprego, FGTS e grande parte sem registro. Três em cada cinco brasileiros ativos das
grandes cidades estão ou desempregados (um em cinco) ou na informalidade (dois em cinco),
sendo que destes últimos uma grande parcela apresenta degradação das condições de trabalho e
de seguridade social.
No Brasil, segundo o Instituto Datafolha, seriam cerca de 24 milhões de brasileiros
nessas condições, dos quais mais de 12 milhões trabalhariam sem registro em carteira porque se
encontram desempregados e não conseguem outro tipo de trabalho.
Desta maneira iniciou-se um processo de desassalariamento1, onde houve a redução dos
assalariados e a ampliação de situações, onde não existe contribuição para a Previdência e,
portanto, sem acesso à aposentadoria.
O intenso processo de desestruturação do mercado de trabalho ocorrido nos anos 90,
principalmente no primeiro governo FHC (1995–1998) teve uma grande redução de geração de
empregos formais. A indústria de transformação e a de construção civil foram as mais atingidas,
embora todos os setores apresentaram recuo do emprego formal.
Ao longo dos anos 90 foram queimados cerca de 3,3 milhões de postos de trabalho
1
Ao longo do século XX o Brasil ampliou consideravelmente a participação dos assalariados entre os trabalhadores
ocupados. Na década de 1990 este processo é revertido, reduzindo-se a participação dos assalariados, sobretudo
daqueles com carteira de trabalho assinada.
217
formais da economia brasileira, sendo que desde que FHC assumiu em 1995 foi contabilizada
uma queima de nada menos de 1,8 milhões de empregos formais, segundo os dados do Cadastro
Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), do Ministério do Trabalho. Até maio de
1999 a indústria de transformação reduziu seus empregos formais na década em cerca de 1,6
milhão (cerca de 73% do que dispunha em 1989) e os subsetores mais atingidos foram os das
indústrias têxtil (-364 mil), metalúrgica (-293 mil), mecânica (-214 mil), química e produtos
farmacêuticos (-204 mil) e material de transporte (-92 mil). A construção civil viu
desaparecerem cerca de 322 mil empregos formais. O comércio também foi duramente atingido
(-294 mil). O setor financeiro reduziu sua mão-de-obra formal em cerca de 354 mil. Apenas
apresentou um comportamento positivo o heterogêneo subsetor Serviços, compreendido por
alojamento, alimentação, reparação e diversos (cerca de 160 mil).
O aumento do emprego público e das áreas de educação e saúde impediram o
desempenho negativo da geração de empregos formais da economia brasileira. Mas nos últimos
anos isso deve apresentar uma retração com a privatização das empresas públicas e com os
sucessivos ajustes fiscais e seus cortes nos gastos sociais. Recente pesquisa do Datafolha registra
apenas 5,4 milhões de funcionários públicos no Brasil. Com a ampliação da política de cortes
nos gastos sociais do governo federal aos planos estadual e municipal, deverá se acentuar a
queda do emprego público e dos empregos formais nos próximos anos.
Com o crescimento do desemprego e da informalização, as relações de trabalho ficaram
prejudicadas. Os trabalhadores e seus sindicatos ficaram debilitados e as empresas adquiriram
um maior poder no mercado de trabalho, tornando comum mecanismos contratuais unilaterais ou
por empresa, que terminaram, a longo prazo, por favorecer a desvalorização da contratação
coletiva mais setorializada ou centralizada, a preservação de baixos salários e a ampliação das
diferenças de rendimentos dos ocupados, além de acentuar a queda dos níveis de sindicalização.
Aconteceram importantes mudanças nas condições e na dinâmica dos trabalhadores e de
suas organizações sindicais no período recente.
Por um lado, a ação sindical foi restringida pela profunda transformação regressiva da
estrutura produtiva, pelo crescimento econômico comum, pela redução dos espaços de
negociação setoriais e nacionais, pelo aumento do desemprego, pela redução de empregos
formais e pela elevação da precarização das condições e relações de trabalho.
Por outro lado, os sindicatos e centrais sindicais, que estavam à beira de uma ação
propositiva nacional (como, por exemplo, impulsionando as câmaras setoriais) entraram num
evidente movimento defensivo. Também houve uma desaceleração na quantidade de greves, com
maior dispersão e fragmentação da ação sindical.
218
A saída deste movimento defensivo constitui um desafio extraordinário para as
organizações dos trabalhadores: ser capaz de se opor às políticas governamentais que geraram
esta profunda regressão das estruturas da produção e do emprego nacional e, ao mesmo tempo,
propor políticas alternativas e constituir com amplas forças sociais um movimento capaz de
apoiar democraticamente um novo projeto nacional.
A Arquitetura do Caos
O Brasil teve, ao longo deste século, uma história de crescimento econômico, geração de
empregos, mobilidade social e concentração de renda. Executou-se no pós-guerra um dos mais
intensos processos de urbanização e industrialização devido a uma inserção internacional ampla,
mas qualificada por meio de um processo de substituição de importações, transformando, em
poucas décadas, um país de base agrária em uma das maiores e mais dinâmicas economias do
mundo.
O desempenho econômico da década de 1990 não somente foi a metade do ocorrido nos
anos 80, considerada a década perdida, como foi o pior do século, levando consigo o sonho de
uma melhor distribuição de renda e de uma sociedade mais justa.
A economia está paralisada, desarticulada, desestruturada e submetida aos desígnios de
uma elite doméstica antinacional e do capital financeiro internacional. O Estado nacional foi
destruído pelas privatizações, pelas sonegações e guerras fiscais e pelos cortes de gastos e
despesas públicas. O desemprego atinge um em cada cinco habitantes das grandes cidades e a
informalidade atinge outros dois em cada cinco.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) considera que cerca de 57 milhões
de brasileiros – o equivalente a 35% da população – estão atualmente abaixo da linha de pobreza
e que entre 16 e 17 milhões de brasileiros vivem em condições de miséria absoluta.
A violência tornou-se um cotidiano. Em um único fim de semana de 1999, os jornais
noticiaram o assassinato de 59 pessoas em São Paulo. No mês de maio foram 415 assassinatos
apenas em São Paulo.
O desmoronamento do Estado e da economia nacional é de deixar qualquer um perplexo.
Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso apostaram todas as suas fichas na modernidade
supostamente virtuosa da desregulação da concorrência e da globalização financeira
internacional.
Para FHC, esta modernidade geraria uma nova dinâmica na economia internacional,
chegando a declarar em uma entrevista que essa nova dinâmica favoreceria o surgimento de um
219
novo Renascimento, onde renasceria uma nova era de avanços da razão e da técnica, sem
ganhadores ou perdedores.
A mundialização de bens e capitais, sob a preeminência do capital financeiro não trouxe a
esperada convergência da riqueza das nações, mas a reafirmação da hegemonia e da centralidade
dos Estados Unidos. Para os países que abandonaram um projeto nacional próprio, o Consenso
de Washington2 tornou-se uma política única de um pensamento único, cujos comportamentos
desviantes seriam combatidos com os movimentos voláteis e disciplinadores do capital
financeiro.
FHC tomou a nuvem por Juno.
Por um lado, FHC acreditou que bastava integrar o país rapidamente a esta nova
economia internacional, consolidando a abertura comercial e financeira indiscriminada, iniciada
por Collor e Itamar Franco, dispensou a constituição de um projeto de desenvolvimento ou de
políticas setoriais de defesa da produção e do emprego nacionais e caracterizou quaisquer
políticas de defesa da produção e do emprego nacionais como corporativas ou inflacionistas.
Por outro lado, acreditou que necessitava ancorar a moeda nacional ao dólar e o
financiamento do investimento aos mercados financeiros para integrar a economia e a sociedade
brasileira ao Primeiro Mundo.
Essa política econômica – baseada no tripé abertura econômica e financeira
indiscriminada, sobrevalorização do real e juros elevados – teve por conseqüência um
crescimento econômico medíocre e uma profunda desestruturação produtiva, com trágicas
conseqüências sobre o mercado de trabalho nacional, além da ampliação dos desequilíbrios das
contas públicas e das contas externas e do rápido desmonte do Estado.
Desestruturação Produtiva
Uma maior abertura financeira (com ampliação da mobilidade do fluxo de capitais, ou
seja, das facilidades à convertibilidade dos vários tipos de ativos e passivos financeiros) agregouse ao longo da década de 1990 ao processo de abertura comercial indiscriminada iniciado em
1990 (com a eliminação das barreiras não-tarifárias, abolição das restrições à importação de
determinados bens e rápida redução das tarifas). Isso tudo em meio ao verdadeiro populismo
2
Conjunto de propostas elaboradas em um seminário do Banco Mundial em Washington e destinadas aos países
periféricos, visando a redução do Estado, a liberalização de mercados e a desregulamentação financeira.
220
cambial baseado na valorização da moeda nacional e nos elevados juros, que acompanharam o
Plano Real desde sua implantação em meados de 1994.
Em um primeiro momento, os efeitos perversos destas políticas econômicas foram
ocultados pelos efeitos da estabilização sobre o consumo, sobre a expansão do crédito e pelo
maior ingresso de recursos externos. O governo chegou a ostentar que, com o Plano Real, os
problemas básicos da economia brasileira estariam resolvidos(inflação e financiamento) e que se
tratava de assegurar o crescimento sustentado da economia.
Com o excesso de intervenção internacional, o Brasil aceitou passivamente a inversão de
sua política cambial e a dependência aos fluxos externos de curto prazo, com altas taxas de
arbitragem em dólar. Com a desregulamentação financeira e cambial e uma abertura comercial
indiscriminada, houve uma ganância especulativa e patrimonial que, de certo modo, ocultou os
riscos de desajuste global, de vulnerabilização e dependência crescente de nossa economia.
Os movimentos de capitais externos tornaram-se novamente positivos a partir de 1992. A
ampliação do movimento de capitais foi puxada pelos investimentos de portfólio, destinados às
bolsas de valores e aos fundos de renda fixa. Quando estes, mais sensíveis à instabilidade global,
sofreram retração inicial resultante da eclosão da crise mexicana em 1994, o Investimento Direto
do Exterior (IDE) passou a predominar. O IDE, que havia se mantido em níveis oscilantes até
1993, multiplicou por 13 o seu valor no período 1994 – 1998. Segundo a Comissão Econômica
para a América Latina e Caribe (CEPAL), nos últimos anos o total ingressado ultrapassou todo o
estoque de capital acumulado ao longo da história (US$ 44 bilhões).
Parcelas expressivas do IDE são orientadas pelo processo de compra ou fusão de
empresas em escala global e pelo deslocamento dos investidores internacionais em direção a
diversos segmentos da infra-estrutura econômica. O IDE dirigiu-se à compra de empresas
públicas resultantes do processo de privatizações ou de empresas do próprio setor privado,
reduzidas em seu valor pela concorrência desigual que enfrentaram. Desta maneira conformou-se
um intenso deslocamento e desnacionalização do controle acionário das empresas e setores
econômicos, mas sem aplicar a ampliação da capacidade produtiva instalada. Tanto nas
privatizações de estatais quanto no processo de fusões e consolidação de empresas privadas, têm
sido comum a redução do número de empregados (mediante processos de enxugamento e
encolhimento) e da capacidade geradora de empregos (por meio da subcontratação de empresas
estrangeiras, maior importação de insumos e até de mão-de-obra).
O IDE se concentrou, em um primeiro momento, nos bens de consumo duráveis
(automobilístico, eletrônico de consumo e eletrodomésticos) e não-duráveis (alimentos, bebidas
e produtos de higiene e limpeza). Até 1996, cerca de 55% dos recursos estavam investidos na
221
indústria. O IDE deslocou-se ao setor Serviços, que já representa cerca de 80% do capital
externo investido devido ao processo de privatização dos serviços públicos.
Inicialmente, o ingresso de investimento externo no setor serviços aliviou o déficit criado
nas contas externas pelo comércio, os fretes, o turismo, os juros da dívida. Em seguida, os
recursos investidos começaram a gerar um fluxo permanente de remessa de lucros e dividendos
para o exterior. No setor Serviços, que, não sendo exportador e gerador de divisas, estes fluxos
tendem a pressionar o balanço de pagamentos. Segundo a Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), cada US$ 10 bilhões investidos em serviços devem
gerar remessas anuais de US$ 1 bilhão todo ano.
As privatizações deveriam gerar recursos destinados à redução da dívida pública,
segundo o governo. A relação dívida líquida/PIB, que era de cerca de 29% ao final de 1994,
alcançou 41% em 1998 e chegou a cerca de 50% em junho de 1999. O governo FHC lançou
sucessivos ajustes fiscais para assegurar o pagamento dos juros e combater seu crescimento, mas
o único resultado foi o agravamento do desmonte do Estado nacional, com a deterioração dos
serviços públicos e de sua capacidade de investimento, geração de emprego e crescimento.
O breve crescimento econômico observado após a implantação do Plano Real teve como
principal componente o movimento expansivo do consumo privado, que além de inicialmente
favorecer a expansão da produção(sobretudo de bens de consumo duráveis) também ampliou as
importações. A elevação do consumo privado foi favorecida pela demanda reprimida por anos de
instabilidade, pelo efeito da estabilização dos preços sobre o poder de compra dos rendimentos
(sobretudo daqueles menos protegidos contra a inflação) e pela expansão do crédito.
Dado a abertura indiscriminada, sobrevalorização cambial e elevados juros, o
crescimento econômico tornou-se insustentável. Quando se acentuava minimamente, teve de ser
contido, na tentativa de evitar o completo descontrole do déficit comercial e da conta corrente do
balanço de pagamentos.
A política econômica não pôde minimamente crescer, pois quando o fazia ampliava ainda
mais os cada vez maiores déficits comerciais e do saldo em transações correntes. A economia
nacional teve, então, o segundo pior desempenho da década de 1990, com uma queda de 0,12%
do PIB (atrás apenas da recessão de Collor de 1992), e 1999 também prenuncia uma retração das
atividades produtivas. O resultado: o crescimento econômico da década de 1990 foi o menor do
século XX.
Com um quadro de crescimento tão medíocre e não sustentado em taxas de investimento
adequadas, a economia não pode gerar empregos em quantidade e qualidade suficientes para
assegurar a incorporação anual de 1,5 milhão a 1,8 milhão de novos ingressantes no mercado de
222
trabalho, e ampliaram-se sobremaneira as taxas de desemprego e a precarização das condições e
relações de trabalho.
Efetivamente, a abertura comercial indiscriminada, a ausência de políticas industriais e
agrícolas, a sobrevalorização do real e os elevados juros introduziram um freio ao crescimento
do conjunto da economia (indústria, serviços e agricultura) e uma clara desvantagem da
produção doméstica diante da concorrência internacional. A reação das empresas, dada a menor
competitividade diante dos concorrentes externos a que foram levadas, foi imediata: aceleraram a
terceirização de atividades, abandonaram linhas de produtos, fecharam unidades, racionalizaram
a produção, importaram máquinas e equipamentos, buscaram parcerias, fusões ou transferência
de controle acionário e reduziram custos, sobretudo da mão-de-obra.
De um superávit de cerca de US$10,5 bilhões em 1994, ao final do governo FHC o país
alcançou um déficit de mais de US$6 bilhões. Essa alteração do comércio exterior se deveu,
sobretudo, ao desempenho das importações.
Os ganhos de produtividade, resultantes da ampliação das importações, não se refletiram
sobre as exportações ou sobre o crescimento da produção, ao contrário do dito antecipadamente
pelos defensores da sobrevalorização cambial. Segundo a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), entre 1980 e 1996 o Brasil não teria conseguido acumular ganhos de produtividade. A
nova especialização da indústria consolidou os setores exportadores tradicionais e ampliou as
importações de mais elevado conteúdo tecnológico.
Dessa forma, não pôde surpreender a perda de espaço das exportações brasileiras em
mercados como os da América do Norte, da Europa e da Ásia, ampliando apenas a participação
na América Latina. Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1989 as
exportações brasileiras de US$ 34,4 bilhões correspondiam a 1,1% do volume do comércio
global. Em 1998, com exportações de US$ 51,1 bilhões, o Brasil viu cair sua participação no
comércio mundial para 0,95%.
O baixo crescimento, somado à dinâmica comercial brasileira, fez com que os empregos
formais fossem dizimados e se expandissem de maneira inusitada e trágica o desemprego e a
precarização das condições e relações de trabalho. Em contrapartida, as importações maciças
favoreceram uma verdadeira exportação de empregos para os países que venderam produtos ao
Brasil.
O desempenho industrial foi medíocre se observarmos a indústria extrativa mineral, setor
tradicionalmente competitivo e exportador. A indústria produtora de bens de consumo duráveis
apresentou um acentuado crescimento nos primeiros anos do governo FHC. Foi nesse setor,
favorecido pela expansão do consumo e protegido tarifariamente e pelos custos de transporte,
223
que se concentrou a maior parte do crescimento da produção e do investimento. Quando se
retraiu a atividade econômica, a indústria foi a mais atingida e o setor produtor de bens de
consumo duráveis apresentou a queda mais pronunciada (-20,5%), tal como observado em 1998.
A indústria apresentou nesse ano, pela primeira vez no período 1995–1998, um desempenho
negativo, de cerca de –2%. O setor produtor de bens de consumo duráveis passou a ser atingido
pelas políticas visando a retração das atividades produtivas, pelo fim dos efeitos positivos da
estabilização monetária sobre o poder de compra dos salários menos protegidos da inflação e
pela ainda maior elevação dos juros com efeitos deletérios sobre o crédito e a inadimplência.
Dessa forma, o desempenho da indústria de bens de consumo duráveis terminou o período 1995–
1998 com pouco mais de 4% de crescimento, relativo a 1994.
Em resumo, a adoção de uma inserção internacional subordinada, da abertura comercial e
financeira indiscriminada, da sobrevalorização cambial e dos elevados juros foi por várias razões
danosa ao emprego. Entre estas razões, destacam-se:
a) Crescentes déficits da balança comercial (resultantes da intensa elevação das
importações) e do saldo das transações correntes (resultante da elevação dos déficits da
balança comercial e dos serviços), que apontam para recorrentes crises cambiais;
b) Crescimento econômico medíocre e sujeito a fortes movimentos de retração das
atividades produtivas, dado seu reflexos na elevação dos déficits do saldo da balança
comercial e do saldo das transações correntes;
c) Elevação crescente da dívida líquida do setor público e constituição de sucessivos
ajustes fiscais que aceleraram o desmonte do Estado nacional, com cortes de pessoal,
deterioração das atividades públicas no campo social e redução de sua capacidade de
investimento;
d) Transformação da estrutura do comércio exterior, com um crescimento medíocre das
exportações (ancorado em setores exportadores tradicionalmente competitivos e de
grande escala de produção baseados em recursos naturais e energia abundante, tais como
papel e celulose, agrobusiness, siderurgia, processamento mineral e alumínio) e intensa
ampliação das importações nos setores de maior conteúdo tecnológico;
e) Especialização produtiva regressiva, com ampliação da desnacionalização, redução do
valor agregado no país, com forte substituição da oferta doméstica de bens finais por
importados, fechamento de linhas de produção e até mesmo de unidades fabris inteiras.
224
Políticas sociais e emprego no Brasil
O rápido crescimento econômico e o implemento da riqueza material ocorrido no pósSegunda Guerra não se refletiram, proporcionalmente, na melhoria das condições de vida da
maioria da população brasileira, entre outros fatores, devido à inexistência de políticas sociais
adequadas.
A gestão conservadora teve como um de seus aspectos centrais circunscrever as
melhorias sociais a um mero desdobramento do crescimento econômico.
Atualmente a situação está bastante grave, pois, além da concentração de renda, apontada
por todos os estudos nacionais e internacionais, elevaram-se ainda mais a pobreza e a miséria. As
políticas sociais – já precárias, pouco cidadãs e universais –, com o agravamento das condições
econômicas e do mercado de trabalho, sofreram triplamente. Primeiro, pela redução de recursos
que acompanhou os diversos ajustes fiscais e deteriorou qualitativa e quantitativamente os
serviços sociais básicos, sobretudo nas áreas com elevada participação de recursos da esfera
federal, como a saúde. Segundo, pela redução do uso de políticas universalistas e pela
generalização do uso de programas sociais extremamente focalizados, sem estratégia
assistencialistas e clientelistas na relação com o público-alvo. Terceiro, porque estas mudanças
vieram, quase sempre, acompanhadas de propostas de reformas sociais explicitamente
privatizantes, favorecidas pela falência organizada dos serviços públicos.
Nesse sentido, o governo brasileiro mais uma vez acompanhou as recomendações de
organismos internacionais como o Banco Mundial, aceitou passivamente as restrições financeiras
resultantes da abertura indiscriminada e lançou-se na fantasia das políticas compensatórias.
Não se trata de menosprezar a importância de algumas dessas políticas. No entanto, há
que se reconhecer que elas não representam uma solução duradoura, pois não intervêm na
distribuição da riqueza, tão pouco nos preços ou salários. Somente em outro quadro econômico e
com uma estratégia articulada com uma política social de resultados duradouros e de longo prazo
dirigida à consolidação e ao alargamento da cidadania estas políticas poderiam ter uma efetiva
participação complementar em determinadas áreas e/ou situações específicas.
Nesse caso, após uma verdadeira reforma tributária capaz de assegurar o caráter
progressivo da arrecadação, com a constituição de um sistema fiscal capaz de transferir renda e
riqueza para os mais fracos, esta política social cidadã articularia e daria outro significado à
questão agrária e às diversas políticas de repartição da riqueza.
Importante é reconhecer que em meio a uma situação de tão acentuada desestruturação
produtiva, do mercado de trabalho e do Estado, as políticas sociais, seja de tipo compensatório
225
ou não, mantêm-se no interior de uma lógica reparadora ou adaptativa e têm sua eficácia
extraordinariamente limitada, quando não claramente favorecem o próprio desmonte do serviço
público. Isso ocorre, por um lado, pelo medíocre crescimento da produção e do emprego e pelo
extraordinário poder destrutivo das políticas econômicas adotadas. Não sem razão, os fundos
públicos com base na contribuição dos ocupados tenderam a reduzir sua capacidade e
comprometeram, sobremaneira, as políticas sob sua responsabilidade, como é o caso da
Previdência e do FGTS, entre outros. Por outro lado, porque os diversos ajustes fiscais realizados
implicaram cortes para o conjunto das políticas sociais e mesmo para as políticas sociais restritas
e focalizadas.
Salário mínimo, emprego e distribuição de renda
Embora no pós-Segunda Guerra o emprego tivesse crescido intensamente, ele não se
refletiu em uma maior regulação institucional e em um perfil menos regressivo da distribuição de
renda.
Três fatores favoreceram este processo. Primeiro, a intensa concorrência entre
trabalhadores pouco qualificados, resultante das pressões advindas de um processo
extremamente rápido de urbanização e de acentuados movimentos migratórios. Em segundo
lugar, em grande parte do período se bloqueou a ação sindical com a repressão político-militar e
o poder normativo da Justiça do Trabalho. Em terceiro lugar, houve um significativo
rebaixamento do salário mínimo desde os anos 60.
Promoveu-se, assim, uma acentuada diferenciação entre os salários, abrindo o leque
salarial. O Brasil vai se caracterizar por um dos mais extraordinários diferenciais entre os mais
elevados salários e os salários de base.
Com a democratização ocorrida nos anos 80 se esperava uma elevação do salário mínimo
e, conseqüentemente, uma redução do leque salarial.
Não são poucos os brasileiros que ainda recebem salário mínimo: 21% dos trabalhadores
ocupados recebem até um salário mínimo; e 18,7% recebem entre um e dois salários mínimos.
Portanto, com uma política de mais intensa elevação do salário mínimo, 40% dos trabalhadores
seriam diretamente beneficiados, o que corresponde a mais de 30 milhões de brasileiros.
No entanto, esses milhões de trabalhadores terminam por não se fazer representar com
intensidade e eficiência nas instituições públicas. Por um lado, é verdade que a estagnação com
surtos inflacionários na década de 1980 e, depois, a forte retração das atividades produtivas e do
emprego na década de 1990 tiveram impactos negativos na intensidade da pressão política de
sindicatos e partidos populares sobre o Estado, explicando, em parte, por que o salário mínimo
226
continua baixo. Mas também há que se considerar que estes trabalhadores da base salarial
continuam sofrendo a concorrência de uma oferta ainda ilimitada de mão-de-obra. Isso também
se reflete em sua baixa capacidade de organização e em sua praticamente nula participação nos
sindicatos e centrais sindicais. Esses trabalhadores, segundo a última Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD), concentram-se no setor de prestação de serviços
(32,6% dos trabalhadores que recebem até um salário mínimo) e na agricultura (30,9%). Têm
especial participação os trabalhadores ditos informalizados, sendo significativos os trabalhadores
autônomos (32,9% entre os que recebem até um salário mínimo) e os trabalhadores domésticos
(20,2%), mas em sua maioria são assalariados (46,2%). Regionalmente, concentram-se na região
Nordeste (48,6%).
A incompleta conformação de uma sociedade salarial e democrática se reflete também
em como a sociedade vê o trabalho. O descaso com os trabalhos simples ou com as condições de
vida daqueles que recebem o salário de base é generalizado, embora poucos se coloquem como
defensores do valor do salário mínimo.
Se o regime escravocrata era mantido com argumentos de aparência lógica no perigo de
desorganização da economia, a falta de braços para a lavoura, hoje eles não são muito diferentes
quando se busca justificar os valores injustificáveis do salário mínimo. Ora são as preocupações
com os gastos da Previdência, ora com as pequenas municipalidades, ora com a inflação, ora
com sua eficiência, ora com as regiões mais atrasadas, ora com o desemprego. Todos os
argumentos são questionáveis, mas o importante é que só buscam justificar como variável de
ajuste a redução do mínimo, representando um profundo descaso com a melhoria da distribuição
de renda e com o combate à pobreza.
Nesse sentido, uma coisa é certa: ou o país decide com coragem política retomar o
processo de elevação do salário mínimo, conjuntamente com o crescimento econômico e com
outras políticas estruturais de combate à pobreza e à concentração de renda, ou a dinâmica
profunda e crescentemente desigual da distribuição dos salários e da renda será mantida.
Reconstruir a nação, retomando o crescimento com emprego e distribuição de renda
O Brasil é um país profundamente desigual (do ponto de vista regional, da renda e do
acesso à terra, à propriedade, às políticas públicas e ao poder).
As duas décadas de estagnação econômica – a última com profunda desestruturação
produtiva e do mercado de trabalho – não ampliaram somente a miséria. O resultado tem sido um
verdadeiro desmonte da nação, em que o desemprego é apenas a parte mais visível do processo.
227
Só com a retomada do crescimento econômico sustentado será possível reduzir o desemprego e a
precarização das condições e relações de trabalho que ocorreram na década de 1990.
No entanto, a experiência brasileira já mostrou que o crescimento econômico pode ser
acompanhado de intensa expansão do emprego e de ampliação da concentração de renda,
sobretudo se combinada com a ausência de espaço democrático, quando os movimentos sociais
são impedidos de pressionar o Estado e as empresas por uma melhor distribuição dos ganhos de
produtividade. Assim sendo, sabemos que não basta o crescimento. Nesse sentido, o maior
desafio brasileiro é o de aliar o crescimento econômico à geração de empregos, à distribuição de
renda e à redução das desigualdades sociais e regionais.
A principal tarefa de uma política econômica alternativa será retomar o crescimento com
emprego e distribuição de renda. Portanto, trata-se de reinserir de outra maneira a economia
brasileira no plano internacional, redimensionando as aberturas comercial e financeira e
revalorizando a produção e o emprego nacionais.
Nesse caso, três eixos centrais se apresentam como indispensáveis: o controle do fluxo de
capitais, uma pausa no precipitado processo de abertura comercial e a renegociação das dívidas.
O primeiro, permitirá uma maior autonomia da política macroeconômica de maneira a
subordina-la aos objetivos nacionais de crescimento econômico, distribuição de renda e combate
à pobreza. Atualmente, a crescente dependência dos fluxos de capitais monitora a política
econômica em função dos interesses das finanças internacionais, do extraordinário poder dos
credores e das políticas deflacionistas. O segundo, permitirá reduzir a desmedida propensão a
importar e a acumulação crônica de déficits comerciais. O reconhecimento da importância do
investimento direto externo e das empresas de capital estrangeiro não pode prescindir de uma
política regulatória capaz de potencializar seus fatores positivos à produção e ao emprego
nacional. O terceiro, permitirá a redução do fardo que pesa hoje sobre o setor privado e público,
e que limita as capacidades de gasto e investimento.
As políticas setoriais deverão estar articuladas nacionalmente, de maneira a romper com a
guerra fiscal e assegurar os objetivos do projeto de desenvolvimento do país, dos estados e
regiões.
As políticas industrial e de comércio exterior deverão redefinir a forma de articulação da
economia doméstica com o exterior, rompendo com o processo de desnacionalização, permitindo
a internalização de setores produtivos com maior desenvolvimento tecnológico (de processo e
produto, mas também gerencial e mercadológico) e uma inserção mais dinâmica no comércio
internacional.
As política agrícola e agrária deverão ter um múltiplo papel, articulando a indispensável
228
reativação da agricultura com a necessária distribuição da renda, da propriedade e do poder no
campo, rompendo também com as condições que têm secularmente favorecido a preservação das
oligarquias regionais e sua sobre-representação no Congresso e com a histórica pressão exercida
pelo processo migratório sobre o mercado de trabalho dos grandes centros urbanos do país.
A política de financiamento deverá reconstituir a base de financiamento doméstica,
inclusive com a utilização de instituições públicas e a eliminação da excessiva dependência do
financiamento externo.
A política fiscal, por meio de uma ampla reforma tributária deverá permitir uma
recuperação do gasto público em setores estratégicos na infra-estrutura e nas políticas sociais,
assegurando a ampliação do emprego e o efetivo exercício da solidariedade para com os
despossuídos.
As políticas de distribuição de renda e eliminação da pobreza deverão compreender
vários instrumentos, tais como a já referida reforma agrária, a maior eqüidade tributária, uma
política salarial destinada a elevar o poder de compra do salário mínimo e política de renda
mínima.
* Este texto é uma síntese de passagens da obra A Desordem do Trabalho, de George Mattoso
(MATTOSO, Jorge. A Desordem do Trabalho. São Paulo: TT Scritta, 1996.).
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WEFFORT, Francisco (org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 1991.
232
11.1- Fontes Documentais
Índice Simples Da Utilização De Insumos Básicos Pela Agricultura: 1967 - 1975 (Base 1966 100), IN: MESQUITA, A. Alguns Indicadores sobre a Evolução da Economia Global e do Setor
Agrícola do Brasil. Brasília: Suplan/MA. Apud NETO, Francisco Graziano. Questão Agrária e
Ecologia: crítica da moderna agricultura. São Paulo : Brasiliense, 1982.
Patrimônio Líquido Das 5.113 Maiores Empresas Não Financeiras Conforme Propriedade Do
Capital, 1974 - Em Milhões De CR$, in: Quem é quem na Economia Brasileira, Revista Visão,
31/8/1975, p. 29. Apud MANTEGA, Guido, MORAES, Maria. Acumulação Monopolista e
Crises No Brasil. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1979.
Principais Indicadores Da Economia Política (1950 - 1985). Dados Compostos com base nos
dados da Conjuntura Econômica e Contas Nacionais do Brasil da FGV e dos Anuários
Estatísticos do Brasil de 1950 à 1985, do IBGE.
Principais Produtos Agrícolas Brasileiros Exportáveis a/, In: Natura e Transformados (1968 - 1976)
/ Em US$ 1.000 FOB, in: IANNI, Octavio. Ditadura e Agricultura. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979.
SUDAM (Pecuária): Distribuição Por Dimensão de Área Ocupada, Dos Estados e Territórios, in:
IANNI, Octavio (dados compostos com base em informações do IPEA, SUDAM e NAEA).
Ditadura e Agricultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
Superintendência Para O Desenvolvimento Da Amazônia. Quadro Anual Dos Incentivos Fiscais
Liberados Pela SUDAM - Distribuição Setorial e Total Consolidado de Incentivos Liberados
(1956 - 1977). 1978.
Taxas Médias Anuais De Crescimento Dos Preços De Atacado Das Classes De Bens (1946 - 1980),
in: MARCONDES, Renato Leite. Agricultura e Desenvolvimento no Brasil: Trinta Anos Depois.
Revista Economia e Empresa, Volume 2, no 2. São Paulo, abril / maio de 1995.
Taxas Médias Anuais De Crescimento Real Da Agricultura, Indústria e PIB (1930 - 1985), in:
MARCONDES, Renato Leite. “Agricultura e Desenvolvimento no Brasil: Trinta Anos Depois”.
Revista Economia e Empresa, Volume 2, no 2. São Paulo, abril / maio de 1995.
11.2- Periódicos
DIEESE. MORAES, João Carlos de. A Crise Dos Anos 70 e a Reestruturação Produtiva. São
Paulo: DIEESE, 2000.
Jornal Folha de São Paulo. BAUMAMM, R. A Cepal e as crises externas. 10/10/1998.
Jornal Folha de São Paulo. FONSECA, Renato, BIELSCHOWSKY, Ricardo. Investimentos na
indústria brasileira: 98-02. 09/07/2001.
ISTO É - Brasil 500 anos. Isto É, 01/07/1998.
233
Revista Marxismo Hoje. KATZ, Cláudio. O pós-marxismo: uma crítica. Revista organizada por
Osvaldo Coggiola. São Paulo: FFLCH-USP/XAMÃ, 1994.
Jornal Folha de São Paulo. SCHWARZ, Roberto. Um Seminário De Marx. 8 de outubro de 1995.
Revista Práxis. SECCO, Lincoln. Ciclos longos e renovação tecnológica na economia capitalista.
Revista nº 06, Belo Horizonte/Rio de Janeiro/São Paulo: Projeto Joaquim de Oliveira, 1995.
Revista Universidade e Sociedade. TEIXEIRA, Francisco José Soares. Marx e as metamorfoses
do mundo do trabalho. Publicação semestral do Sindicato Nacional Dos Docentes Das Instituições
De Ensino Superior - ANDES, Ano V, nº 08, Brasília: 1995.
Revista USP. OLIVEIRA, Francisco de. A Economia Política Da Social-Democracia. Nº 17,
Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) da Universidade de São Paulo. São Paulo : USP,
1993b.
TABELA I
ÍNDICE DO SALÁRIO-MÍNIMO REAL
ANO
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1961
1962
1963
1964
1965
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
SALÁRIO-MÍNIMO
98,98
111,04
117,46
122,65
106,70
119,45
100,30
111,52
101,82
89,62
92,49
88,82
76,03
72,05
70,39
67,74
68,93
65,70
64,79
59,37
54,48
56,93
56,54
Fonte: DIEESE, Boletim Informativo, 1988.
234
TABELA II
BRASIL: CLASSIFICAÇÃO DAS 10 MAIORES EMPRESAS POR SETORES, CAPITAL MAIS
RESERVAS: 1967-1972
Estatal
-
Bens de capital
Bens de cons. duráveis.
Bens de cons.
não-duráveis
Bens intermediários
Serviços públicos
Construção civil
Comércio
Comunicações
6
9
-
1967
NaEscional trangeira
3
7
4
6
5
5
1
7
8
10
3
1
1
2
-
N/clas
s.
Estatal
-
1
1972
Na- Estranciogeira
nal
4
6
2
8
5
4
2
-
7
9
2
-
1
8
8
10
2
1
1
-
N/cla
ss.
1
-
Fonte AFONSO, Carlos, SOUZA, Herbert. O estado e o desenvolvimento capitalista no Brasil (Tabela organizada a partir dos dados contidos
em “Quem é quem na economia Brasileira”, editora Visão S.A., Volume 33, nº 5 e 8 de março de 1968 e nº6 de agosto de 1973). Rio de
Janeiro : Paz e Terra, 1977.
TABELA III
DÍVIDA EXTERNA A MÉDIO E LONGO PRAZO
1964/1982 - US$ MILHÕES
Ano
Div. bruta
em 31/12
Div./PIB
(%)
1964
1965
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
2.942
2.930
2.956
3.372
3.916
4.403
5.295
6.622
9.521
12.571
17.165
21.171
25.985
32.037
43.511
49.904
53.847
61.411
11,8
11,4
11,4
11,9
12,7
15,7
17,3
17,9
17,0
18,2
19,3
22,8
22,6
22,6
24,7
Aux. Desenv. e
emprést
Compens.
valor
(%)
1.219
36
1.116
28
879
20
935
18
923
14
758
8
959
8
951
6
898
4
980
4
1.867
6
2.895
7
3.516
7
3.747
7
3.386
6
Financiamento,
importações.
Dívida em moeda
valor
(%)
valor
(%)
1.386
41
670
20
1.653
42
1.104
28
1.920
44
1.605
36
1.709
32
2.285
43
2.201
33
3.193
48
2.784
29
5.528
58
3.487
28
7.848
62
4.741
28
11.211
65
5.464
26
14.561
69
6.577
25
18.194
70
8.422
26
21.528
67
10.830
25
29.500
68
11.572
23
34.625
69
12.108
22
37.819
70
12.880
21
44.984
73
235
70.197
1982
28,0
3.624
5
13.520
19
52.832
75
Fonte: Tabela formada com base em dados recolhidos, in: AFONSO, Carlos, SOUZA, Herbert. O Estado e o Desenvolvimento capitalista no
Brasil, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; e GOLDEINSTEIN, Sérgio. A Dívida Externa Brasileira - 1964-1982: evolução e crise. Rio de
Janeiro : Guanabara, 1986.
TABELA IV
CUSTO MÉDIO DO ENDIVIDAMENTO EXTERNO, 1978 - 1982
US$ MILHÕES
Ano
1978
1979
1980
1981
1982
Dív. Externa média
no ano ( 1 )
37.774
46.707
51.875
57.629
65.804
Custo médio
ao ano ( 2/1 )
7,2
9,4
12,2
15,9
17,3
Juros ( 2 )
2.696
4.186
6.311
9.161
11.353
FONTE: GOLDENSTEIN, Sérgio. A dívida externa Brasileira - 1964-1982: evolução e crise (Tabela organizada com
base em dados emitidos pelo BACEN). Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
TABELA V
BRASIL: CLASSIFICAÇÃO DAS 10 MAIORES EMPRESAS POR SETORES, CAPITAL MAIS
RESERVAS: 1967-1972
Estatal
Bens de capital
Bens de cons. duráveis.
Bens de cons.
não-duráveis
Bens intermediários
Serviços públicos
Construção civil
Comércio
Comunicações
6
9
-
1967
NaEscional trangeira
3
7
4
6
5
5
1
7
8
10
3
1
1
2
-
N/clas
s.
Estatal
-
1
Nacional
4
2
5
2
-
7
9
2
-
1
8
8
10
1972
Estrangeira
N/cla
ss.
6
8
4
-
2
1
1
-
1
-
Fonte AFONSO, Carlos, SOUZA, Herbert. O estado e o desenvolvimento capitalista no Brasil (Tabela organizada a partir dos dados contidos
em “Quem é quem na economia Brasileira”, editora Visão S.A., Volume 33, nº 5 e 8 de março de 1968 e nº6 de agosto de 1973). Rio de
Janeiro : Paz e Terra, 1977.
236
TABELA VI
PATRIMÔNIO LÍQUIDO DAS 5.113 MAIORES EMPRESAS NÃO FINANCEIRAS CONFORME
PROPRIEDADE DO CAPITAL, 1974 - EM MILHÕES DE CR$
Setores
MINERAÇÃO
IND. DE TRANSFORMAÇÃO
minerais não-metálicos
metalurgia
mecânica
apar. elétr. e mat. de comun.
materiais de transporte
madeiras e artefatos
mobilário
borracha
couros e peles
química
têxtil
produtos alimentícios
bebidas
fumo
editorial gráfico
indústrias diversas
AGROPECUÁRIA E
SILVICULTURA
CONSTRUÇÃO E
ENGENHARIA
SERVIÇOS DE UTIL.
PÚBLICA
transporte e armazenagem
outros serviços públicos
COMÉRCIO
PREST. DE SERVIÇOS
TOTAL
62,08
20,11
1,56
33,70
0,94
4,07
6,12
54,92
1,03
1,33
Empresas
Estrangeiras
(%)
12,23
29,32
35,08
12,29
45,74
60,75
62,79
8,59
60,54
11,09
23,26
13,11
30,66
13,88
98,79
2,47
46,66
2,93
18.317
14,91
3,00
82,09
97.835
87,95
6,53
5,52
19.051
78.784
30.735
84.656
407.577
77,74
90,42
0,69
26,98
36,90
1,22
7,81
4,78
3,77
14,79
21,04
1,77
94,53
69,25
48,31
Patrimônio
Líquido
9.636
161.570
7.550
27.711
8.292
6.475
15.154
8.781
576
1.834
684
40.165
12.410
16.910
3.571
2.095
2.142
8.211
4.825
Estatais (%)
Nacionais (%)
25,69
50,57
63,36
54,01
53,32
39,25
33,14
91,41
100,00
33,34
88,91
21,82
86,89
68,31
86,12
1,12
97,53
53,34
95,74
Fonte: Quem é quem na economia Brasileira, Revista Visão, 31/8/1975, p. 29. Apud MANTEGA, Guido, MORAES, Maria.
Acumulação Monopolista e Crises no Brasil. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1979.
237
Ano
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976*
TABELA VII
DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DOS GRUPOS DA PAUTA DE EXPORTAÇÕES
POR SUA ORIGEM SETORIAL
(1968 / 1976)
Não-industrializados
Industrializados
(in natura)
Agrícolas
Minerais
outros nãode base
de base ñOutros
in natura
industrializados
agrícola a/
agrícola
industrializados
69,1
7,4
2,9
16,2
0,7
3,7
66,5
7,7
3,5
17,0
1,0
4,3
62,4
9,7
2,6
15,7
4,6
5,0
55,8
10,3
2,5
21,0
6,8
3,6
56,9
7,3
2,2
22,4
7,4
3,9
56,0
6,7
2,3
22,7
8,1
4,2
47,3
8,4
1,8
24,6
12,5
5,4
430
12,7
2,0
195
17,1
5,8
47,8
11,1
1,8
19,7
15,3
4,8
a/: Além de produtos alimentícios, inclui ainda têxteis, calçados e produtos de origem extrativa vegetal.
Fonte: IANNI, Octavio. Ditadura e agricultura. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1979.
TABELA VIII
PRINCIPAIS INDICADORES DA ECONOMIA POLÍTICA ( 1950 - 1985 )
Ano
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1961
1962
1963
1964
1965
1966
1967
1968
1969
Inflação
(IPA)
Média
2,5
21,1
12,6
15,7
24,5
19,7
21,6
14,9
14,2
42,8
31,3
40,5
50,2
76,0
81,3
53,6
41,1
26,7
22,7
19,1
Conta Corrente
PIB
Capacidade Déficit ( - ) ou
Superávit ( + )
CrescimenOciosa
(US$MM)
to
6,5
6,0
8,7
2,5
10,1
6,9
3,2
8,1
7,7
5,6
9,7
10,3
5,3
1,5
2,9
2,7
3,8
4,8
11,2
10,0
0,0
2,4
5,9
6,2
6,4
4,9
6,8
9,5
3,6
1,0
4,2
0,0
0,0
8,1
11,3
14,9
14,2
18,9
15,7
13,2
140
-403
-624
55
-195
2
57
-264
-248
-311
-478
-222
-389
-114
140
368
54
-237
-508
-281
Base
Monetária
%
24,5
14,1
17,6
16,7
24,5
15,8
19,3
35,1
18,0
38,7
40,2
60,4
64,4
70,1
78,5
72,7
23,1
30,8
42,0
28,7
238
19,3
21,5
17,7
15,4
29,1
27,8
40,4
40,6
38,9
55,4
109,2
113,0
94,0
164,9
232,9
223,4
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
8,8
12,0
11,1
13,6
9,7
5,4
9,7
5,7
5,0
6,4
7,2
-1,6
0,9
-3,2
4,5
8,3
12,2
9,8
6,5
0,3
0,1
3,0
0,0
3,2
3,3
4,1
3,5
12,3
15,2
24,0
22,6
19,8
-562
-1.307
-1.489
-1.688
-7.122
-6.711
-6.013
-4.037
-6.990
-10.742
-12.886
11.734
-16.310
-6.837
45
-630
16,9
36,3
18,5
47,1
32,9
36,4
49,8
50,7
44,9
84,4
56,9
69,9
86,8
96,8
243,8
256,0
FONTE: IBGE e FGV.
TABELA IX
EVOLUÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE TRATORES NO BRASIL.
1950/80
Tratores (no.)
8.372
61.338
165.870
323.113
527.906
Anos
1950
1960
1970
1975
1980
ha lavouras / trator Estabelecimentos/trator
2.281
247
468
54
205
30
124
15
87*
10
Fonte: Agroanalysis / FGV, Ano 3, no 66, 1979 e Censos Agropecuários / IBGE.
TABELA X
EVOLUÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE FERTILIZANTES QUÍMICOS
E DE AGROTÓXICOS NO BRASIL - 1950/78.
Fertilizante
Anos
1950
1960
1970
1975
1978
1.000t
Agrotóxico
Índice
89
305
286
1.978
3.100
Fonte: Agroanalysis / FGV, Ano 4, no 1 e ano 4, no 10, 1980.
1.000t
100
343
321
2.222
3.483
Índice
22,4
78,5
75,2
100
350
336
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