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MONUMENTOS COM HISTÓRIA MILITAR
A Batalha das Linhas de Elvas
− 350 anos depois
D
urante seis décadas, entre 1580 e 1640, Portugal foi
governado pela Dinastia Filipina, depois de D. Filipe
– Filipe II de Espanha – ter sido proclamado rei na sequência
das Cortes de Tomar. Em 60 anos acumularam-se muitos
descontentamentos, revolta e ânsia de independência que
não tardaram em fazer-se sentir.
O lançamento de novos impostos fez transbordar a
resistência eborense e em 21 de Agosto de 1637 deflagra a
Revolta do Manuelinho, que rapidamente fez alastrar a
rebeldia a outras regiões do país, levando o povo amotinado
à rua, desrespeitando os fidalgos e qualquer poder
estabelecido ao lado do governo de Lisboa. Esta revolta,
provavelmente arquitectada pelo Procurador e pelo Escrivão
do Povo, ficou assim conhecida com a intenção de preservar
o anonimato dos seus protagonistas, sendo o Manuelinho
um carismático habitante da cidade de Évora que, por ser
portador de alguma desordem mental, era, portanto,
inimputável. Mas a Revolta do Manuelinho não terá sido a
4
primeira, havendo notícias de outra, no Porto, em 1628,
conhecida como o Motim das Maçarocas.
Entre revoltas, motins, sublevações e insurreições
começou a desenhar-se a Guerra da Restauração. No entanto,
estas movimentações não foram suficientes para destituir o
governo, tendo sido controladas pelas tropas castelhanas
que entretanto chegaram em auxílio do rei. Foram suficientes,
apesar de tudo, para acender a Revolta dos Conjurados, que
terminou com a proclamação de D. João IV, em 1640. Os
Conjurados, fortemente influenciados por João Pinto Ribeiro,
eram um grupo coeso, com cerca de 40 homens oriundos,
sobretudo, da nobreza nacional, cujo intento consistia no
afastamento dos Filipes e na devolução do governo às mãos
de um português. Em 1 de Dezembro de 1640 invadiram o
Palácio da Duquesa de Mântua, defenestraram Miguel de
Vasconcelos e proclamaram rei D. João IV, fundador da
Dinastia de Bragança. Encontrando-se D. Filipe III a braços
com uma revolução na Catalunha, não teve meios nem
oportunidade para recuperar a soberania de Portugal. Mas
isto não significava o fim das batalhas.
Em 11 de Dezembro de 1640, D. João IV cria um Conselho
de Guerra, para cuidar de todos os assuntos relativos ao
Exército; seguiu-se-lhe a Junta das Fronteiras, que trataria
das linhas de defesa fronteiriças, dos portos e da defesa de
Lisboa, e em 1641 surge a Tenência com ordem para artilhar
as fortalezas. São também reavivadas as Leis Militares de D.
Sebastião, que reorganizam as tropas e, ao mesmo tempo,
mas por vias paralelas, eram desenvolvidos grandes esforços
diplomáticos.
Em 1658, D. Luís de Haro comanda um contingente de
14000 infantes castelhanos e cinco mil cavaleiros e artilheiros
e estabelece um apertado cerco à cidade de Elvas. Do lado
português, D. António Luís de Meneses, Conde de
Cantanhede, assume a chefia das tropas estacionadas na
Região, acompanhado por D. Sancho Manuel, Mestre-deCampo-General. A praça portuguesa, bombardeada pelos
canhões espanhóis e assolada pela peste, que sozinha ceifava
300 almas por dia, sofreu pesadas baixas. Entretanto, D.
António Luís de Meneses consegue reunir em Estremoz um
exército com cerca oito mil infantes, três mil cavaleiros e sete
canhões e, em 14 de Janeiro daquele ano, marcha das Colinas
da Assomada na direcção de Elvas, entrando pelo sítio dos
Murtais, caindo sobre as tropas filipinas que, apesar da
resistência inicial, acabam por sucumbir ao ímpeto português,
debandando para Badajoz. A memória desta Batalha é
guardada por um Padrão Comemorativo, mandado erigir por
D. Afonso VI no sítio dos Murtais, a norte da cidade, até
onde ainda hoje se ruma no aniversário da Batalha, elevado
a feriado municipal.
Outras vitórias levam Portugal a reunir condições para
garantir a independência, mas apenas em 1668, depois de 28
anos de lutas e sendo já regente o Infante D. Pedro (rei D.
Pedro II), é lograda a assinatura de um tratado de paz entre
os dois países.JE
Tenente RC Paulo Moreira
Sumário
Ano L - N.º 580 - Janeiro de 2009
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Os Primeiros Califas do Islão 16
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Chaimite
O primeiro blindado português 42
Primos e Generais 12
Guernica – O poder da Arte 54
Secções
Monumentos com História Militar – A Batalha das Linhas de Elvas - 350 anos depois 4
Editorial 5
Figuras e Factos 6
Passatempos de outros tempos 53
Capa: Praça das Linhas de Elvas – Gravura do Coronel Francisco D’Alincourt, 1802
Revisão do texto a cargo do Professor Doutor Eurico Gomes Dias.
Os artigos publicados com indicação de autor são da inteira responsabilidade dos mesmos, não reflectindo, necessariamente, o pensamento da Chefia do Exército Português
ÓRGÃO DE INFORMAÇÃO, CULTURA E RECREIO DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, CRIADO POR PORTARIA DE 14JUL60
U
m novo ano começa e, neste mundo extraordinário em que vivemos, o
ser humano continua a caminhada no planeta azul a que chamamos
Terra e que todos gostaríamos de conhecer e ver melhor. Apesar da fome e da
guerra, todos ansiamos viver na abundância e em paz. Por isso celebramos a
paz e evocamos as batalhas que contribuíram para pacificar a nossa Pátria e
para continuar este Portugal que amamos e que nos enche de glória e de orgulho
de ser português. Recordamos a Batalha das Linhas de Elvas, por ocasião dos
seus 350 anos, [segundo o Mercurio Portuguez, de D. António de Souza de
Macedo, a Batalha teve lugar a 14 de Janeiro de 1659], decisiva para que
Portugal continuasse a ser um país livre e soberano.
Com mais de oito séculos e meio de História, o País que “Deu Mundos
Novos ao Mundo”, com um percurso pioneiro, foi ao encontro de novas
civilizações e hoje o português, para além de ser uma das línguas mais faladas,
tornou-se num instrumento de soft-power aonde o ideal da paz se contagia. As
missões de paz que os militares portugueses têm protagonizado ao longo dos
últimos anos são disso um bom exemplo.
Terminamos com uma reflexão poética, fazendo votos para que a Paz seja o
denominador comum entre todos os portugueses, estendendo esse desígnio a
todos os que se entendem na Língua Portuguesa e aos seus amigos.
Tributo à Paz
A poesia chegou
O mundo mudou
O povo sorriu
A guerra rebentou
O povo chorou
A poesia partiu
Mas onde está a poesia
Essa dádiva de Deus
Que dizem brotar dos Céus?
Está na Paz!
5
FIGURAS e FACTOS
Dr. Jorge Sampaio no IDN
I
nserida no ciclo de conferências “Contributos para
uma Estratégia Nacional”, levado a cabo pelo Instituto
de Defesa Nacional (IDN), o Dr. Jorge Sampaio, Presidente
da República entre 1996 e 2006, proferiu, no dia 17 de
Dezembro, uma alocução intitulada “Seis Reflexões sobre
os Desafios de uma Estratégia Nacional”.
A sessão foi presidida pelo Ministro da Defesa Nacional,
Professor Doutor Nuno Severiano Teixeira.
Cerimónia de Imposição de Condecorações e Entrega de Espadas
a Oficiais Generais
O
Chefe do Estado-Maior do Exército, General José
Luís Pinto Ramalho, presidiu à cerimónia de
imposição de condecorações e entrega de bastões e espadas
a Oficiais-Generais, no dia 17 Dezembro, na Sala D. Maria do
Museu Militar, em Lisboa, aos seguintes militares:
Os Majores-Generais João Carlos Ferrão Marques dos
Santos e José Ribeirinha Diniz da Costa foram condecorados
com a Medalha de Serviços Distintos.
Os Majores-Generais Carlos Martins Branco, António
Xavier Lobato Faria Menezes e JoséAntónio Henriques Dinis,
além de receberem o bastão e a espada de Oficial-General,
foram condecorados com a Medalha D. Afonso Henriques
Mérito do Exército − 1.ª Classe.
Dia do Conselho Superior de Disciplina do Exército
F
oi celebrado, no dia 12 de Dezembro, o 112.º aniversário
do Conselho Superior de Disciplina do Exército (CSDE).
O CSDE remonta a 1896, data em que, por Decreto, é publicado o
novo Regulamento de Disciplina do Exército e criado o Conselho
de Disciplina do Exército.A cerimónia foi presidida peloTenenteGeneral Manuel Bação da Costa Lemos, Presidente do CSDE. Na
sua intervenção, para além elogiar a dedicação e esforço dos
membros do Conselho, o Tenente-General Bação de Lemos
lembrou, sucintamente, os princípios pelos quais se rege este
Órgão: Concelebramos, por isso, hoje o 112.º ano da sua
existência legal, […] em que reafirmamos os princípios
imanentes da sua inspiradora divisa: ”CONDUTA FIRME,
MAS HUMANA”, traduzidos com equilíbrio e ponderação na
avaliação da disciplina, como fundamento irrecusável da
coesão e eficiência das Forças Armadas.
Procedeu-se, de seguida, à imposição de condecorações,
tendo a cerimónia sido concluída com um porto de honra.
6
FIGURAS e FACTOS
Reunião Multidisciplinar “Patologia Respiratória Multicomponente”
no Hospital Militar de Belém
N
os dias 10 e 11 de Outubro de 2008 realizou-se, no
auditório do Hospital Militar de Belém (HMB), uma
Reunião Multidisciplinar sobre “Patologia Respiratória
Multicomponente”, com a participação activa e interessada de
cerca de uma centena de profissionais de saúde. A sessão de
abertura foi presidida pelo Director do Serviço de Saúde, MajorGeneral Mateus Cardoso, e contou ainda com a participação
do Subdirector da Saúde, Coronel Médico Esmeraldo Alfarroba
e do Director do HMB, Tenente-Coronel Médico Paulo Lúcio.
Reunindo cerca de três dezenas de prelectores, foram
apresentados temas que abrangeram a área médica e cirúrgica
relacionada com a patologia respiratória, permitindo a troca de
experiências, esclarecimentos e actualização de conhecimentos.
Estiveram representados médicos e outros profissionais de
saúde de diversos hospitais da região de Lisboa, tendo sido
debatidos assuntos sobre patologia respiratória obstrutiva,
oncológica, infecciosa e cardiológica; do ponto de vista
cirúrgico, discutiu-se o cancro do pulmão, a terapêutica cirúrgica
na apneia do sono e a reabilitação pré e pós operatória; na
terapêutica médica foram apresentados temas relacionados com
a ventilação não invasiva, radioterapia e broncoscopia de
intervenção. A mais-valia desta reunião foi a sua
multidisciplinaridade, permitindo a intervenção neste fórum de
todos os profissionais que intervêm na prestação dos cuidados
de saúde pneumológicos. Foram dois dias muito produtivos e
gratificantes em que foram partilhados conceitos teóricos e a
experiência individual dos intervenientes.
A reunião foi ainda uma oportunidade para discutir e reflectir
sobre as dificuldades com que se debatem os diferentes
prestadores de saúde na sua prática quotidiana, dificuldades
essas muitas vezes transversais às diferentes áreas de
intervenção e comuns às diferentes Unidades de Saúde civis e
militares.
93.º Aniversário do Regimento de Transportes
D
ecorreu no dia 16 de Dezembro, no Regimento de
Transportes, a celebração do seu 93.º aniversário. A
cerimónia foi presidida pelo Tenente-General Joaquim Formeiro
Monteiro, Quartel-Mestre-General e Comandante da Logística.
A história do Regimento de Transportes remonta a 1915,
data em que o então Ministro da Guerra, General Norton de
Matos, institucionalizou os transportes motorizados no
Exército.
O Comandante do Regimento de Transportes, Coronel
Caetano de Sousa, na sua alocução relativa ao dia da Unidade
fez referência à história do Regimento e ao lançamento do
livro “O Motor no Exército”, à qual os presentes tiveram a
oportunidade de assistir na Sala de Reuniões da Messe de
Oficiais. Também aludiu à missão do Regimento, realizando
um balanço relativo ao ano transacto.
O Tenente-General Joaquim Formeiro Monteiro, na sua
mensagem, reconheceu o ajustado trabalho levado a cabo
pelo Regimento, referindo o seu esforço para dotá-lo dos meios
necessários. Enalteceu ainda a história do Regimento,
mostrando-se agradado com o lançamento do livro, ao qual
se associou.
Do programa da Cerimónia destaca-se a homenagem aos
militares mortos em defesa da Pátria, a Imposição de Condecorações, o Hino do Regimento de Transportes, cantado em
coro pelos seus militares, a exibição da Banda do Exército e
uma demonstração do encargo Operacional da Companhia de
Transportes.
Na mesma ocasião, aproveitou-se a oportunidade para a
apresentação do novo programa informático do “Sistema de
Gestão de Frota”.
7
FIGURAS e FACTOS
Visita Natalícia do General CEME aos Hospitais Militares
S
eguindo a tradição natalícia, o General Chefe do
Estado-Maior do Exército, Luís Pinto Ramalho, visitou
o Hospital Militar Principal e o Hospital Militar de Belém. A
visita decorreu no dia 18 de Dezembro, tendo como mote dar
apoio aos membros da Família Militar que, infelizmente, na
quadra natalícia, se encontraram hospitalizados. O General
CEME ofereceu aos acamados uma singela e significativa
lembrança, juntamente com palavras de incentivo e
esperança, tentando, desta forma, alegrar o Natal daqueles
que atravessam maiores dificuldades. A ocasião foi
aproveitada para deixar votos de Boas Festas a todos os
profissionais que ali servem, tranquilizando-os em relação
ao futuro.
Clube Militar de Oficiais de Mafra
O
Clube Militar de
Oficiais de Mafra
(CMOM), constituído por
escritura pública em 3 de
Fevereiro de 2006, tem,
desde o dia 11 de Outubro
passado, sede no edifício
D.ª Maria, na Tapada de
Mafra, no Centro Militar de
Educação Física e Desportos, cedido pelo EstadoMaior do Exército. Na cerimónia de inauguração participaram o Tenente-GeneralArtur Neves Pina Monteiro, em representação do
Chefe do Estado-Maior do
Exército, General JoséLuís
Pinto Ramalho, o MajorGeneral Carlos Tia, em representação do General Chefe do
Estado-Maior da Força Aérea e o Major-General Carlos
Chaves, em representação do General Comandante-Geral
da GNR. Estiveram também presentes o Presidente da
Câmara Municipal de Mafra, Engenheiro José Maria
Ministro dos Santos, a Governadora Civil de Lisboa, Dr.ª
DalilaAraújo, o Tenente-General Francisco Fialho da Rosa,
Presidente do IASFA, o Secretário-Geral do Ministério da
Defesa Nacional, Major-General Luís Augusto Sequeira, o
Comandante do CMEFD, Coronel José Maria Paula Santos
e o Comandante da Escola Prática de Infantaria, Coronel
João Manuel Ormonde Mendes. Participaram também
inúmeros convidados que têm colaborado com o CMOM,
além de quase uma centena de associados e familiares. A
cerimónia, de grande simplicidade, decorreu nas instalações
do CMEFD, Unidade que acolhe o CMOM, com uma sessão
de boas-vindas a todos os convidados e associados, a
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que se seguiu, no edifício D.ª Maria, o descerramento do
brasão do clube, a bênção das instalações e a inauguração
de uma exposição de pintura com trabalhos do associado
António Alves Martins, após o que teve lugar um porto de
honra e um almoço de convívio no campo dos plátanos,
organizado pelo associado Horst Klenm, com uma ementa
tipicamente alemã.
A criação do CMOM resultou da vontade de um número
alargado de oficiais que residem na região de Mafra e que
decidiram constituir uma associação para desenvolver os
laços de camaradagem, amizade e boa convivência entre os
militares que serviram ou servem a Instituição Militar. Tem
também, como outros fins, dignificar as Forças Armadas,
preservar e desenvolver os seus valores éticos e morais,
proporcionar aos sócios um são convívio social, recreativo
e cultural, desenvolver actividades de solidariedade social,
culturais, desportivas, científicas e literárias e promover
acções de cidadania abertas à comunidade.
Desde 2006 que o clube organiza regularmente
actividades desta natureza e promove acções dirigidas
especialmente aos sócios, à comunidade escolar e às
autarquias, com quem tem cooperado activamente.
O CMOM está aberto a todos os oficiais das Forças
Armadas e da GNR, no activo, na reserva ou na reforma e
também a outros cidadãos, que podem ser admitidos como
sócios extraordinários.
A sede agora inaugurada, situada em local
extraordinariamente aprazível, proporcionará a todos os
oficiais que o desejarem um ponto de encontro e de convívio
onde a cultura, a solidariedade e a amizade constituem
referência.
É determinação de todos os associados valorizar a nova
sede, promover a recuperação da ala Este do edifício D.ª
Maria, continuar as actividades até hoje desenvolvidas e
colaborar com a instituição militar no esforço de apoio social a todos os militares que vivem na região.
FIGURAS e FACTOS
Comemorações do Dia da Zona Militar dos Açores (ZMA)
E
m 28 de Novembro comemorou-se o Dia da Zona
Militar dos Açores (ZMA), quando se evocaram os
172 anos em que, por Decreto Régio de 1836, foi criada a 10.ª
Divisão Militar, com Quartel-General em Ponta Delgada.
A comemoração da efeméride, para além do reforço do
dinamismo no seio da Instituição Militar através da reafirmação
do espírito de corpo e da coesão entre as Unidades da ZMA,
teve como objectivo principal dignificar a imagem do Exército
Português junto da comunidade civil, divulgando as suas
capacidades e as actividades desenvolvidas no corrente ano.
Nesse sentido, o Comandante da ZMA, Major-General
Cameira Martins, elaborou e mandou executar um ambicioso
programa de Comemorações que teve início em 22 de Novembro,
com a realização de uma Mini-maratona, e no dia 23 teve lugar
uma prova de Corrida e Orientação Urbana em Ponta Delgada,
tendo esta registado uma grande adesão popular e merecido os
maiores elogios pela inovação aplicada e pela excelente
organização. Nos dias 25 e 26 foi executado um exercício de
patrulhas de reconhecimento envolvendo a participação do
Encargo Operacional das Forças da ZMA e que, durante 24
horas, percorreram todas as freguesias da Ilha de S. Miguel.
Em 26 de Novembro foi realizado um Concerto, no vetusto
Teatro Micaelense, pela Banda Militar da ZMA, em parceria
com o Coral de S. José, aberto à Família Militar e a toda a
população Açoriana, com lotação esgotada, dado o excelente
prestígio de que goza a Banda Militar no seio da população.
Em 28 de Novembro as comemorações tiveram o seu ponto
mais alto, pelo que, ciente das suas responsabilidades e perante
os seus pares e a comunidade civil, o Comando da Zona Militar
dos Açores, de uma forma inédita “invadiu” o moderno e
cosmopolita Complexo Marítimo das Portas do Mar de Ponta
Delgada, para aí comemorar o seu Dia.
Presidida pelo Representante da República para a Região
Autónoma dos Açores, Juiz Conselheiro José António
Mesquita, e com a presença de altas entidades Militares, Civis
e Religiosas, das quais se destacam o Vice-Chefe do EstadoMaior do Exército, Tenente-General Oliveira Cardoso, e o
Comandante Operacional do Exército, Tenente-General Pina
Monteiro, realizou-se uma Cerimónia Militar com forças
representativas de todas as Unidades da ZMA, constituídas
pelo Grupo de Comando, pela Banda Militar, pelo Pelotão da
Polícia do Exército, duas Unidades de Escalão Batalhão e uma
Bateria de Artilharia Antiaérea, comandadas pelo Coronel de
Infantaria Manuel da Silva, 2.º Comandante da ZMA.
Na sequência desta cerimónia, e no Pavilhão das Portas do
Mar, pelas 17H15, foi assinado um Acordo de Cooperação no
âmbito da Educação, Emprego e Formação entre o Governo
Regional dos Açores e a Zona Militar dos Açores.
Pelas 17H30 foi efectuado o lançamento do Livro “Forte de
S. Brás – Diferentes Olhares”, com as obras de escritores,
pintores e fotógrafos convidados, seguindo-se a exposição
das pinturas e das fotografias seleccionadas do concurso sobre
o tema do livro.
Posteriormente foram inauguradas duas Exposições
Temáticas, uma sobre o tema “Militares Ilustres Açorianos −
séc. XVII a XX” e outra sobre o apoio do Exército à Protecção
Civil nos Açores e a participação nas Forças Nacionais
Destacadas (FND), bem como uma exposição estática de material
das Unidades da ZMA.
A encerrar as Comemorações, o Comando da ZMA ofereceu
a todos os Convidados presentes um “Pôr-do-Sol”, onde, de
uma forma informal, conviveram todas as Entidades Militares,
Civis e religiosas, numa demonstração inequívoca de um
relacionamento exemplar.
TABELA DE PREÇOS PARA 2009
PREÇO DE CAPA € 2,00
ASSINATURA ANUAL (11 números)
VIA SUPERFÍCIE - Portugal Cont. Madeira e Açores € 20.00
VIA AÉREA - Países europeus € 45,00; Restantes Países € 65,00
NOTA: As assinaturas devem ser pagas antecipadamente
NÚMEROS ATRASADOS - 1960 a 1969 € 4,00; 1970 a 1979 € 4,00; 1980 a 1989 € 3,00; 1990 a 2001 € 2,50; 2002 a 2007 € 2,00
Os preços incluem IVA à taxa de 5%
Preço da Encadernação do JE do ano de 2007 € 27,95 c/IVA incluído
N.B.: Os pedidos de envio pelos CTT serão acrescidos de portes segundo os códigos postais: 1000/2000 € 4,21; 3000/8000 € 5,79; Açores e Madeira € 6,56.
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FIGURAS e FACTOS
Exercício Mau Tempo 08 − Zarco 082
N
o período de 17 a 20 de Novembro de 2008 a Zona
Militar da Madeira participou no Exercício “MAU
TEMPO 08 – ZARCO 082”, que decorreu no Arquipélago da
Madeira. Este exercício conjunto de carácter regional foi
realizado em estreita ligação e cooperação, nas fases de planeamento e execução, pelo Comando Operacional da Madeira
(COM) e pelo Serviço Regional de Protecção Civil e Bombeiros
da Madeira (SRPCBM) e teve como objectivos gerais:
No âmbito do COM
Planear e executar um exercício no âmbito das “Outras
Missões de Interesse Público – Protecção civil”, em conjunto
com o SRPCBM;
Desenvolver e aperfeiçoar a interoperabilidade entre as
forças e os meios dos três Ramos das ForçasArmadas sediados
na Região Autónoma da Madeira (RAM), em resposta a
solicitações do SRPCBM.
No âmbito do SRPCBM
Proceder ao planeamento conjunto com as Forças Armadas como Agente de Protecção Civil;
Activar e coordenar os vários Agentes de Protecção Civil
necessários a uma Operação de Emergência.
Para o referido exercício foi criado um cenário fictício na ilha
da Madeira, consistindo num acidente grave originado por
condições meteorológicas muito severas e que colocaram em
risco a segurança e o bem estar das populações, provocando a
destruição de infra-estruturas e de bens essenciais para o normal desenvolvimento das actividades das populações.
Este cenário teve como Teatro de Operações o sítio da Fajã
do Penedo, freguesia da Boaventura no concelho de S. Vicente.
Como intervenientes no exercício referem-se:
Activados por parte do COM
Meios do Comando da Zona Marítima da Madeira;
Meios do Comando da Zona Militar da Madeira;
Meios do Destacamento Aéreo da Madeira.
Activados por parte do Comando Local da Polícia Marítima
Meios da Polícia Marítima.
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Activados pelo Sub-Centro de Busca e Salvamento
Marítimo da Madeira
Meios de Busca e Salvamento Marítimo;
SANAS.
Activados por parte do SRPCBM
Centro Regional de Operações de Socorro;
EMIR/Serviço de Emergência Médica Regional;
Serviço Municipal de Protecção Civil de S. Vicente;
Bombeiros Voluntários de S. Vicente e Porto Moniz;
Bombeiros Voluntários de Santana;
Bombeiros Voluntários Madeirenses;
Bombeiros Municipais do Funchal;
Unidade Móvel de Comando e Telecomunicações de
Emergência;
Reboque de emergência para multi-vítimas;
Hospital Central do Funchal;
Equipa Regional de Canyoning;
Equipa cinotécnica do Grupo Fiscal da Madeira/GNR.
Os cerca de cinquenta incidentes injectados ao longo de
todo o exercício permitiram testar e avaliar todo um conjunto de
capacidades e procedimentos no âmbito das comunicações e
sistemas de informação, assim como a activação de meios
humanos e materiais em resposta aos pedidos do Serviço Regional de Protecção Civil e Bombeiros da Madeira de acordo
com o cenário criado para o efeito.
No dia 20 de Novembro, último dia do Exercício, nas zonas
de São Cristóvão, Fajã do Penedo e Lamaceiros, em Boaventura,
realizou-se o Distinguished Visitors Day (DVDay), onde
estiveram presentes diversas Entidades civis e militares,
destacando-se o Comandante da Zona Militar da Madeira,
Major-General Miguel Rosas Leitão, o Secretário Regional dos
Assuntos Sociais, Dr. Francisco Jardim Ramos, o Presidente da
Câmara Municipal de São Vicente, Sr. José Humberto Sousa
Vasconcelos, o Presidente da Câmara Municipal de Santana,
Dr. Carlos de Sousa Pereira, assim como diversos órgãos de
Comunicação Social.
Ao longo da manhã foram efectuadas várias demonstrações
no âmbito da actuação de meios de Busca e Socorro Costeiro,
Equipas de Resgate de Montanha, Patrulhas de Reconhecimento, ReconhecimentoVisualAéreo, Equipas de Evacuação
Terrestre e Evacuação Aérea (recuperação de ferido grave).
Na zona da Fajã do Penedo houve uma VTC (Video-TeleConferência) entre o SRPCBM e os vários Comandos Militares
(Comando Operacional da Madeira, Zona Marítima da Madeira
e Destacamento Aéreo da Madeira), com meios envolvidos nas
operações.
Na zona dos Lamaceiros, e antes do final do exercício, que
culminou com um almoço de confraternização, houve ainda
possibilidade de visualização e acompanhamento da actividade
de um Posto de Triagem, um Posto Sanitário de Campanha,
meios de resgate e remoção de escombros, assim como uma
equipa de alimentação e respectiva cozinha de campanha que
forneceu a segunda refeição a todos os intervenientes nas
demonstrações e às Entidades convidadas.
FIGURAS e FACTOS
Lançamento do livro “As Transmissões Militares − da Guerra Peninsular
ao 25 de Abril”
D
ecorreu no dia 16 de Dezembro, na Fundação
Portuguesa de Comunicações, o lançamento do livro
“As Transmissões Militares − da Guerra Peninsular ao 25 de
Abril”.
O livro resume a viagem das transmissões militares
portuguesas ao longo dos tempos, do pombo-correio à
telegrafia, dos telefones de campanha à antena logarítmica
periódica, traduzindo-se na evolução das comunicações,
consolidada pelo contexto temporal vivido em cada altura.
A obra foi produzida pela Comissão da História das
Transmissões, representada pelo General Garcia dos Santos,
com o apoio da Liga de Amigos do Arquivo Histórico Militar
e editado pela Comissão Portuguesa de História Militar, com
o patrocinio da Fundação Portugal Telecom.
A cerimónia de lançamento foi presidida pelo Chefe do
Estado-Maior do Exército, General Pinto Ramalho, e pelo
Presidente da PortugalTelecom, Dr. Henrique Granadeiro.
A apresentação do livro coube ao Professor Doutor.
António Telo.
11
Eduardo Zúquete
Primos e Generais
Fotocomposição: Mauro Matias
“Doze, redoze,
vinte e quatro com catorze,
dezasseis e vinte e um
faz um cento menos um.”
de uma lenga-lenga infantil que meu Pai me ensinou,
há muitos, muitos anos.
O
s números primos sempre exerceram um
fascínio raro sobre os humanos. Desde a
antiguidade mais remota os sábios procuraram
métodos de pesquisa rigorosos e exaustivos destes
números frios e insociáveis que só admitem como
divisores o próprio número e a unidade – o que é a
mínima relação possível para a operação da divisão.
Daí o nome de primos, talvez para assinalar a sua
posição primordial – dividem outros (os seus
múltiplos), mas não aceitam divisores (os seus
submúltiplos) – circunstância que lhes confere um
estatuto de excepção no universo infinito dos
números inteiros.
Sabem-se coisas lindas sobre os números primos,
montes de coisas que aqui não vêm a propósito –
excepto como calculá-los de forma rápida e segura.
Para isso, é preciso usar um método antigo e
maravilhosamente simples, que apenas vai cortando
12
todos os números que não são primos, por actuação
do respectivos divisores, e deixa, como resíduo, os
primos – afinal, tal como faria uma peneira, deixando
passar a farinha e retendo o farelo. Talvez, por isso
mesmo, este método antigo e maravilhosamente
simples (mas trabalhoso, há que assinalar) se chama
Crivo de Eratóstenes, em homenagem ao académico
grego do terceiro século a.C. que o inventou.
Erastóstenes era uma cabeça genial, talvez um dos
mais notáveis e ecléticos cientistas da antiguidade
mas, conforme nos conta Robert Crease, os seus
contemporâneos tratavam-no depreciativamente por
“Beta”, numa alusão pouco velada ao facto de não
ser o primeiro em coisa nenhuma... Donde eu concluo
que, já nesse tempo, em que se lutava nos Jogos
Olímpicos para apenas merecer uma singela coroa de
louros, se cultivava a desmedida exaltação do primeiro
lugar, culto que, no nosso tempo, tem um lema menos
lacónico, mas mais cruel, que estipula que o segundo
é o primeiro dos últimos. Tenho para mim, todavia,
que grande parte do avanço do conhecimento
humano se deve justamente a pessoas que puderam
estabelecer pontes, mesmo frágeis, entre diferentes
disciplinas e ramos do saber e da experiência,
naturalmente à custa de uma menor profundidade no
conhecimento de cada uma das partes.
Foto:http\\commons.wikimedia
Se outra razão não houvesse para recordar este
ilustre grego, lembro que se deve a Eratóstenes a
primeira tentativa séria e científica de medição do raio
da Terra, usando para o efeito conhecimentos
múltiplos – a convicção de que a Terra era esférica
(facto que, ao contrário de uma ideia muito divulgada,
era conhecido desde a Antiguidade e não apareceu
com o aventureiro Colombo), a noção do passeio do
Sol ao longo da eclíptica e ideias consistentes sobre
geometria plana, tentativa que só por si o consagra
como um notável cientista.A história é simples e pode
repetir-se ainda hoje, se as condições necessárias se
verificarem. Reparou ele que em Siena, cidade do
Médio Nilo (hoje denominada Assuão) e por alturas
do solstício do Inverno, o Sol, ao meio-dia, ficava
exactamente na prumada dos poços da cidade e se
reflectia na água, o que valia por dizer que uma vara
espetada no terreno nesse preciso momento não
deixava sombra. Se, na mesma altura, alguém emAlexandria, cidade que se situava num meridiano um pouco
mais a oeste do meridiano de Siena, espetasse uma
vara no terreno e determinasse o ângulo cuja tangente
era dada pelo quociente do comprimento da sombra
sobre o comprimento da vara, ângulo igual ao ângulo
ao centro formado pelos raios das duas cidades, o
problema da dimensão do raio da Terra ficava resolvido, desde que fosse conhecida a distância entre as
duas cidades, o que acontecia na realidade. Com este
método singelo e genial ele calculou o raio da Terra
com um erro inferior a 1,6 %, grau de aproximação
notável que resistiu 20 séculos e ainda mais de pasmar
se tivermos em conta a dificuldade que, ao tempo,
representaria medir, com rigor, uma distância da ordem
dos 900 quilómetros, muitíssimo superior ao
comprimento das actuais bases geodésicas.
Voltando ao crivo, algoritmo que imortalizou o seu
nome. Eu compreendo que o facto deste método ser
trabalhoso, ingénuo e residual – porque o que se procura, afinal, é o que sobra, não o que se peneira –,
atraia irresistivelmente mentes brilhantes e mais actuais
que ficariam com o nome gravado a ouro na história
da matemática se conseguissem descobrir um algoritmo eficaz de pesquisa de primos – especialmente
agora que a segurança das transacções electrónicas
depende de um algoritmo baseado, exactamente, em
números primos e que a sua detecção passou a ter,
além de interesse científico, elevado valor comercial.
Contudo, no meu íntimo e por razões que dificilmente poderei classificar de muito científicas, duvido
que isso venha a acontecer. Porque o que confere
estatuto especial ao número primo é exactamente a
circunstância de ser residual e a detecção desta
propriedade faz-se por subtracção de todas as outras
situações, não é definível ou apreciável de per si. O
conjunto das pessoas que não são sócias de nenhum
clube desportivo só pode ser obtido depois de serem
riscadas da lista universal, uma ou mais vezes,
conforme os casos, todas aquelas que são sócias,
respectivamente, de um ou mais clubes desportivos.
E a massa final que resta na peneira, tal como no Crivo
de Eratóstenes, é residual e não tem nenhuma
propriedade afirmativa comum, apenas negativa –
nenhum deles é sócio de clube algum.
Recordo outra frase muito mais conhecida e
atribuída a um outro gigante do pensamento e da
acção, agora do nosso tempo, Winston Churchill, que
terá dito e escrito que a democracia seria o pior dos
sistemas, depois de todos os outros. Como muitas
frases célebres, também esta permite várias leituras e
aquela que me ocorre de momento, é que o formato
deste conceito também é residual, como a pesquisa
dos primos. Ficamos com os primos quando suprimimos todos os números com outros divisores;
ficamos com a democracia quando suprimimos todos
os outros sistemas repousando sobre tiranias. Em
qualquer dos casos, não há algoritmos fáceis, fórmulas
resolventes “chave na mão”, poções mágicas. Tal
como o conjunto dos primos só se obtém pela erradicação dos números com divisores, assim a
democracia só se pode obter pela exclusão de todas
as formas ilegítimas, imorais ou insidiosas de clausura
ou subversão da liberdade. Porque, afinal, as tiranias
não são exclusivas das ditaduras, nem dos governos,
nem do universo político; na vida de todos os dias
estamos sujeitos a inúmeras formas de tirania – a do
mais alto ou mais forte, a do idoso ou da criança com
malícia, a do pseudo-intelectual ou do castelão do
“guichet”, a do poder excessivo ou da reparação lenta,
a da falsa humildade ou da descarada sobranceria, a
da impertinência ou do excessivo volume de voz, a
dos dogmáticos e a dos radicais, a dos muito doces
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Foto:http\\commons.wikimedia
e a dos muito azedos. Só quando todas estas tiranias
forem erradicadas – pela educação, pela cultura e,
muito especialmente, pelo genuíno, assumido e
convicto respeito pelo próximo, é que se pode falar de
democracia. E não apenas porque numas eleições mais
ou menos participadas escolhemos o presidente, o
governo, o autarca ou o líder de uma qualquer agremiação. Essa será uma forma primitiva, quase primária
de democracia. O espaço democrático desenvolve-se
em muitas dimensões, não apenas na função linear da
votação. E, como o espaço democrático, muitas outras
vertentes ou componentes do nosso quotidiano
desenvolvem-se em espaços de muitas dimensões –
que alguns “cientistas” da modernidade tentam,
persistentemente, reduzir a espaços lineares de
comparação, de ordenamento, de classificação.
Uma vez mais, um processo de crivagem. Não
basta o algoritmo resolvente de umas quaisquer
eleições, muitas ou poucas, concorridas ou não; é
necessário um processo lento e depurador de
crivagem, de refinação, de apuramento que constitui
afinal o crivo de Erastótenes da democracia.
E daí a luminosa frase de Winston, que assim
melhor se entende. O sistema não é bom, nunca o será
– nem sequer é matematicamente preciso ou rigoroso,
como o marquês de Condorcet, Jean-Marie Nicolas
de la Caritat, ilustre aristocrata e matemático da melhor
cepa, descobriu nos tempos já longínquos da
Revolução Francesa. Talvez por isso mesmo, ocorreme de seguida, morreu com a cabeça separada do
corpo porque os ferozes defensores da nova ordem
tinham da ciência uma noção imperfeita mas, para eles,
acabada e não suportavam, como radicais e antidemocratas que também eram, a ideia simples de que
a ciência pudesse continuar a evoluir escapando ao
controlo das suas limitações.
Não é matematicamente precisa ou rigorosa, nem
nunca o será – mas é, sem dúvida, o melhor sistema de
que dispomos, quando limpo de toda a impureza. O
dito de Winston tem a força oculta do Segundo
Princípio da Termodinâmica – nunca se poderá provar
mas, até à data, toda a experiência o confirma e nada o
infirma.
Volto aos primos, como uma borboleta tonta
regressa à luz. Se pensarmos um pouco, sem grande
profundidade matemática, aqui inoportuna, verificamos com facilidade que o lugar possível de todos os
primos, salvo nos dígitos primeiros, se situa nos
números imediatamente anteriores e imediatamente
posteriores à série infinita dos múltiplos de seis: 5 e 7;
11 e 13 ; 17 e 19 ; ... porque todos os outros números
da série serão múltiplos ou de 3 (o do meio) ou de 2
(os seus colaterais). E, mesmo assim, esta série reduzida
apresenta enormes lacunas, que irão crescendo com
o alongamento da série (no par seguinte, 23 e 25, o
Winston Churchill, terá dito e escrito que a democracia seria
o pior dos sistemas, depois de todos os outros
segundo já não é primo e assim por diante). Mas,
como a construção das lacunas não apresenta qualquer regra de regularidade, também não se chega, por
essa via, a parte nenhuma. A beleza e a singularidade
do Crivo de Eratóstenes permanecem intactas, pelo
menos desta incursão tosca na génese dos primos.
Mas a esta migração, quase inútil, frequente nas
veredas mal sinalizadas do meu subconsciente,
sucedeu outra, muito mais imprevista.
Ocorreu-me que o curso que entrou para a Escola
do Exército após o meu, em 1953, e cujos membros
desempenharam um papel importante – talvez, mais
do que importante, nuclear e decisivo – no Movimento
do 25 deAbril, portanto na restauração da democracia
em Portugal, foi o único, até agora e, muito
provavelmente, para todo o sempre, que incluiu nas
suas fileiras seis generais de quatro estrelas, como se
chamaram até há pouco entre nós, ou full general,
como lhes chamam os militares anglo-saxónicos, a
saber: António dos Santos Ramalho Eanes, José
Alberto Loureiro dos Santos, Gabriel Augusto do
Espírito Santo, João deAlmeida Bruno,Amadeu Garcia
dos Santos e Aníbal José Coentro de Pinho Freire,
este último apenas graduado e, até agora, o único do
grupo já falecido, que curiosamente representavam
todas asArmas que, no seu tempo de cadetes, existiam
na antiga Escola do Exército – Infantaria, Artilharia
(dois), Cavalaria, Engenharia e Aeronáutica (dos
sobreviventes se poderá anotar, sem malícia, que há
quatro Santos e apenas um Pecador...). Como esta
conversa descosida, reflecti eu nessa migração
indisciplinada e errática, teria dado um tema
maravilhoso, nem muito científico, nem por demais
poético, todavia cheio de significado e de encanto,
adequado à circunstância, para a aula comemorativa
do cinquentenário da entrada do respectivo curso
nas instalações da Amadora, em Outubro de 1953.
Que figuras de retórica, que paralelismos
empolgantes não se poderiam ter feito, então, entre
o Crivo de Eratóstenes, na pesquisa dos primos, e o
crivo das tiranias, na demanda da democracia, sempre
apoiados na magia do número seis e das suas
guardas, no grupo dos seis generais e dos seus
cursos. Dá para fantasiar sem limites e sem
dificuldades.
Mas tal não aconteceu, por duas excelentes
razões que importa decantar.
A primeira foi que eu não recebi nenhum convite
para leccionar a dita aula, pelo que não me tenho de
penitenciar por uma qualquer recusa que não aconteceu, nem pela perda de uma oportunidade que não
se verificou.
E a segunda, muito mais íntima, muito mais
refinada, mas nem por isso menos importante, é que
esta ideia, tão sedutora e adequada, só me ocorreu,
verdadeiramente, vários anos depois do evento –
fora, portanto, do prazo útil.
E isto serve – pelo menos, para mim serviu – para
recordar que a mais doce e, talvez, a mais frequente
das tiranias ocorre sempre que não enfrentamos com
nitidez a verdade, mesmo sem a presença ou conhecimento de terceiros, mesmo sem consequências de
nenhuma natureza. Afinal, o tal genuíno, assumido e
convicto respeito pelo próximo, indispensável ao
estabelecimento da democracia, começa por esse mesmo respeito por nós próprios e pela verdade.JE
P.S. Pessoa amiga, a quem pedi leitura e parecer sobre o
texto anterior, teve a cortesia de me informar que Aníbal
Pinho Freire foi graduado apenas em Tenente-General, o
que deita por terra toda a “belíssima” construção em torno
do número 6 que nele se desenha. Mas, porque outras
reflexões, dele constantes, continuam a ter validade,
entendeu-se manter a sua publicação, esclarecendo, todavia,
o leitor do involuntário lapso cometido.
15
Primeiro-Sargento António J. Rodrigues
A
“
sabedoria é a minha riqueza, a razão (juízo)
é a raiz da minha fé, o amor é a minha
fundação, o entusiasmo é a minha montada, a
recordação (lembrança) a Deus é a minha companhia,
a firmeza é o meu tesouro, a tristeza (dor) é a minha
companheira, a ciência é a minha arma, a paciência
é o meu manto, o contentamento é o meu despojo,
a pobreza é o meu orgulho, a devoção é a minha
arte, a convicção é o meu poder, a verdade é o meu
redentor, a obediência é a minha suficiência, o
esforço (na causa de Deus) é a minha postura, e a
frescura dos meus olhos (o meu prazer) está na
minha oração, o fruto do meu coração está na
recordação d' Ele e a minha ânsia é para o meu Senhor
(para ir ter com Ele)” terá dito, um dia, o profeta
Maomé a 'Ali Bin Talib.
“Khalifah” é a abreviatura de “khalifat-ur-rassul
Allah”, “sucessor do mensageiro de Deus”. Os
califas que verdadeiramente seguiram os passos
do profeta Maomé são denominados como “califas
ortodoxos” ou “califas piedosos” (“khulafa-urrashidin”).
O califado islâmico, tal como o conceberamAbu
16
Bakr e 'Umar, constitui uma das experiências mais
originais que o Islão conheceu. Com efeito, embora
no plano político estes dois califas não tenham
conseguido instaurar um regime democrático, no
verdadeiro sentido do termo, e se tenham
contentado com o conduzir a comunidade segundo
o modelo teocrático estabelecido pelo profeta −
combinado, no entanto, com uma consulta popular
conforme o modelo tribal −, no plano social, pelo
contrário, levaram muito longe a aplicação dos
princípios formulados pelo Alcorão relativos à
justiça social.
O primeiro dos referidos princípios é o que afirma
a igualdade dos homens entre si, como “dentes do
mesmo pente”, precisa um “hadith”i . A esses dois
objectivos dedicaram ambos os califas a maior parte
dos seus esforços.
No plano da política externa, dois princípios
guiariam a sua acção: por um lado, a continuação
da islamização da Península Arábica, seguindo a
última recomendação ditada pelo Profeta: “não
deverão subsistir duas religiões na Arábia”.
Por outro, o restabelecimento das expedições
militares para o Norte, respondendo assim à
“Khalifah”
é a abreviatura de
“khalifat-ur-rassul Allah”,
“sucessor
do mensageiro de Deus”.
Os califas
que verdadeiramente
seguiram os passos
do profeta Maomé
são denominados
como “califas ortodoxos”
ou “califas piedosos”
(“khulafa-ur-rashidin”).
chamada dos árabes, numerosos nos territórios
bizantinos, à pressão dos beduínos, que
ambicionavam os referidos territórios, e à
necessidade de continuar a luta contra os judeus
expulsos dos oásis, que podiam, como já tinham
feito com os Qurayshis na “batalha do fosso”,
formar uma frente com os cristãos e ameaçar a
existência do jovem estado muçulmano.
Os esforços dos novos califas tiveram como
fim principal os objectivos referidos. Em
contrapartida, os seus sucessores, 'Uthman e 'Ali,
enredaram-se numa série de lutas intestinas, que
viriam a diminuir consideravelmente o ritmo da sua
acção e conduziriam a uma mudança radical do
regime político, visto que se passou do poder dos
califas para a primeira dinastia muçulmana, a dos
Omíadas.
Inequívoco é que, durante os últimos anos, os
muçulmanos tinham erguido os alicerces de um
estado. Além de Madinah “al-munawarrah”
(Medina, “a esplendorosa”) e de Makkah “alMukarramah” (“Meca, a resplandecente”), a sua
autoridade estendia-se desde a fronteira do império
bizantino, passando pelos oásis de Fadak e
Khaybar, a nordeste de Madinah, habitados por
Judeus, até à cidade de Ta'if, a sudeste de Makkah.
Numerosos chefes beduínos, mesmo de localidades
mais distantes, tinham estabelecido alianças com
Muhammad (Maomé) e aceitavam, inelutavelmente,
a nova religião. A norte do Iémen, os cristãos de
Najran tinham-se também submetido, mediante o
pagamento de uma alcavala.
Por volta do ano 638 a.C., o discípulo Abu Bakr
activa a fase da expansão muçulmana, alargando
decisivamente a influência desta a uma vasta zona
do mundo, do Oriente (“as-sharq”) ao Ocidente
(“al-gharb”). Em quatro anos, são conquistados a
Síria, o Iraque e todo o Egipto. Em 661, com o início
da dinastia omíada, partindo de territórios do oriente
próximo, empenhados em transmitir a última
revelação do ciclo profético, estenderam-se por
todo o norte de África ocupando e acabando por
acaudilhar extensas áreas territoriais onde se situam
nos nossos dias a Líbia, a Tunísia, a Argélia e
Marrocos. Não foi todavia sem problemas que esta
expansão se conseguiu. Impunha-se converter ao
Islão as populações autóctones, também guerreiras,
apreensivas dos intentos dos invasores.
17
Houve batalhas demoradas no tempo e onerosas
nas consequências. Em muitas delas foram mortos
líderes de ambos os lados e a hostilidade, pouco
atenuada, das relações entre os contendores,
conduziu à segregação territorial de uns e de outros,
sem que chegasse a haver vencedores e vencidos.
No Magrebe, foi “al-qayrawan” (Kairouan,
literalmente “acampamento” ou “cidade-fortaleza”)
a primeira cidade que fundaram, em 670, sob a
anuência do emir (ou “emir”, plural “umara”, “aquele
que comanda”, “governador”, “príncipe” ou
“aquele que é investido de autoridade militar”) Uqba
Ibn Nafi, representante dos califas omíadas de
Damasco, cidade que, com o tempo, chegou a ser
uma das grandes capitais da “Ifriqiyya” (área
geográfica outrora formada pela matriz argelina,
tunisina e região tripolitânica) e o primeiro dos
quatro mais importantes propugnáculos da fé
islâmica no Magrebe, com o intento de aí se
estabelecer uma estância estratégica que lhes
permitisse vigiar as tribos berberes e preparar as
incursões pelo Norte de África sem que os
bizantinos, estabelecidos no litoral, os pudessem
causticar.
Seguiu-se a penetração nos territórios que hoje
formam a Argélia e Marrocos, com difusão da
cultura árabe e da doutrina religiosa islâmica.
A partir do século VIII, os barcos mercantis
árabes percorreram o Mediterrâneo e, do Atlântico
ao Irão, as caravanas seguiram rotas que
atravessavam países, populações e sociedades
diferentes.
Também então a comunidade religiosa e
linguística prevaleceu sobre as diferenças ou sobre
os conflitos políticos. O resultado disso para o
mundo muçulmano foi, desde finais do século VIII
até ao século XI − e mesmo mais tarde em alguns
casos −, uma intensa actividade económica e um
domínio da vida comercial mediterrânica, domínio
que se estendeu pelo interior do continente
africano e teve uma incontestável influência sobre
a vida dos territórios situados nas margens
setentrionais do Mediterrâneo.
Em todas estas vastas zonas impuseram uma
disciplina social e política cujas regras assentavam
em princípios religiosos da mensagem revelada no
Alcorão. E com respeito por esses princípios
determinaram uma ordem política hierarquizada
capaz de resistir a fenómenos de desagregação.
Seguro da sua riqueza em homens e em produtos
de todos os tipos, o mundo árabe-islâmico impôs a
sua lei em matéria de economia: o dinar (de ouro) e
o dirham (de prata) islâmicos eram as moedas que
serviam de base às transacções comerciais. Esta
actividade impulsionou o desenvolvimento de
18
Impuseram uma disciplina social e política cujas regras
assentavam em princípios religiosos da mensagem revelada
no Alcorão
grandes centros urbanos antigos (Damasco) ou a
criação de outros novos (al-Fustat, Baghdad,
Kairouan, Fez, etc.), o que atestava a riqueza e o
poder desta civilização.
O Califado de Abu Bakr
“Se eu tivesse que escolher um amigo que não
o meu Senhor, teria preferido Abu Bakr”, exora um
dito do profeta Maomé.
Antes de abraçar o Islão, Abu Bakr era já
conhecido como um respeitado cidadão e abastado
comerciante de Makkah. Três anos mais novo que
Maomé, uma certa afinidade natural aproximou-os
desde tenra idade. Permaneceu como companheiro
mais próximo do profeta e quando este convidou
os seus amigos e parentes mais chegados a
adoptarem o Islão, Abu Bakr contava-se entre os
que primeiro o fizeram. Conseguiu, inclusivamente,
persuadir os cépticos 'Uthman e Bilal, um escravo
negro, alto e magro, de voz estentórea, natural da
Abissínia, escolhido depois por Maomé para proferir
o “adhan” (“chamamento”, “apelo” à prece).
Abdul Ka'bah (“servo da Ka'bah”) era o seu
verdadeiro nome. O epíteto de Abu Bakr (“o pai
dos camelos”) obtê-lo-ia mais tarde, devido ao seu
grande interesse na criação de camelos, sendo
também conhecido por Abdullah (“servo de Deus”)
e Siddiq (“a testemunha para a verdade”).Abu Bakr,
o primeiro dos califas ortodoxos, homem modesto,
justo e fiel à recordação do mestre, tentou segui-lo
passo a passo, inspirando-se no seu pensamento e
acção. A primeira acção empreendida terá sido
O epíteto de Abu Bakr (“o pai dos camelos”) obtê-lo-ia mais tarde, devido ao seu grande interesse na criação de camelos
retomar o projecto de uma expedição que o profeta
preparara contra os territórios bizantinos e que
havia sido adiada em consequência da sua morte.
Apesar da conjuntura política desfavorável e das
divergências levantadas à volta da sua sucessão,
o novo califa quis expressar assim a sua fidelidade
à política realizada pelo profeta.
Um dos outros problemas do momento, que
corria o risco de se generalizar assim que a notícia
da morte do profeta Maomé foi conhecida, era a
rebelião e a recusa, por parte de um certo número
de tribos do Centro e do Sul, em pagar a “zakat”
(esmola legal), taxa devida sobre os valores dos
bens, e que era paga obrigatoriamente pelos mais
abastados para distribuir pelos pobres.
Os preâmbulos da apostasia já tinham
começado a aparecer antes de ter expirado o profeta,
mas a morte deste veio dar-lhes um forte impulso.
Muitas tribos justificavam essa atitude com a
prerrogativa de que aquela obrigação era somente
devida ao profeta. Entre essas tribos estavam os
“kindi”, os “rabi'a” do Bahrain, os “azdi” de Oman,
um grupo de “banu tamim” (que acabariam por
seguir uma pseudo-profetisa da tribo dos “banu
taglib”, chamada Sajah), “banu tay” (“banu”
significa “filhos de”; – é o plural de “ibn” e designa
filiação, propriedade e vínculo entre os diversos
ramos da ascendência ou da descendência), os
“gatafan” –, os “asad” (que se deixaram persuadir
por um pseudoprofeta chamado Talha al-Asadi),
os “banu hanifa” (arrastados por outro falso
messias chamado Musaylima, “o mentiroso”) e por
iemenitas influenciados por um terceiro visionário,
al-Aswad al-'Anasi, cuja acção se iniciara ainda em
vida do profeta e cuja morte teve lugar pouco tempo
antes da deste.
Abu Bakr enviou contra estas tribos forças
militares que os obrigam a desistir da apostasia e,
simultaneamente, ordenou ao mais importante dos
seus generais, Khalid ibn al-Walid, então
estabelecido em Yamama, um homem de suprema
coragem e um comandante nato, conhecido por
“saifullah” (“a espada de Deus”) − título atribuído
pelo Profeta Maomé após a memorável campanha
de Muta, que opôs muçulmanos a romanos e na
qual a coragem de al-Walid que, diz-se, terá quebrado
nove espadas nas suas mãos, se tornou uma
verdadeira apologia à estratégia e heroísmo de
guerra −, que penetrasse ainda mais na direcção do
Iraque, região que naquela época se encontrava
sob o domínio sassânida.
O exército muçulmano dirigiu-se para al-Ubulla
e defrontou-se com o exército sassânida na “batalha
das cadeias” (“as-salasil”), no decurso da qual Jalid
matou Hormuz, governador sassânida, em combate
singular. O êxito sorriu novamente às tropas de Abu
Bakr nas batalhas de al-Midar, al-Walja, Ullays,
Angishya, Maqr e Badaqla. Deu-se então a
conquista pelos muçulmanos de 'Ayn al-Tamr,
Duma e al-Firad, nas fronteiras sírio-iraquianas e,
com este bastião, a partir do ano 633, a parte
ocidental do Iraque, habitada essencialmente por
19
árabes, ficou sob a autoridade dos seguidores de
Maomé. Na primavera de 634, Jalid recebeu ordens
para se dirigir à Síria, para onde Abu Bakr enviara
tropas a fim de atacar os bizantinos. Vários
confrontos com estes terminariam com as vitórias
muçulmanas de Tabuk, Wadi'Araba e Datin.
Perante a ameaça desta campanha, os
bizantinos reuniram então um grande exército
destinado a deter os progressos dos muçulmanos
e a proteger as fronteiras do Império. Abu Bakr terá
ordenado então a Jalid que se dirigisse para a Síria
a fim de reforçar as tropas comandadas por Yazid
ibnAbi Sufyan, em particular, e por 'Amr ibn al-'As,
que lhe pedira auxílio.
Abu Bakr formou assim um comando único,
confiado a Jalid (a quem, posteriormente, foram
feitas acusações de crueldade e despotismo) e em
Março de 634 iniciou-se a marcha árabe sobre a
Síria-Palestina, que só se deteria depois da tomada
da Cesareia marítima, em Outubro de 640, já sob o
comando de Mu'awiya, futuro fundador da dinastia
omíada. O encontro entre os exércitos muçulmano
e bizantino, comandado por Teodoro, irmão de
Heraclio, teve lugar a 20 de Agosto de 634 nas
margens do Yarmuk, afluente do rio Jordão.A vitória
dos muçulmanos foi arrebatadora e abriu-lhes o
caminho para Damasco, Homs, Alepo, Antioquia e,
mais tarde, para o Norte do Iraque, região que J.H.
Breasted denomina de “Crescente Fértil”.
Abu Bakr morreria no dia 23 de Agosto de 634,
com a idade de 63 anos, sendo enterrado ao lado
do profeta Maomé. Graças a um espírito conciliador
que lhe permitiu pôr fim a todas as resistências que
se opunham ao califado e sabendo rodear-se de
homens devotos e influentes na comunidade, tais
como 'Umar e 'Uthman, que lhe sucederiam, Abu
Bakr deixou ao seu sucessor uma Arábia pacificada,
uma comunidade consolidada no seu interior e
soberana de uma política externa vitoriosa, frente
aos impérios bizantino e sassânida. O seu califado
teve a duração de apenas 27 meses (632-634).
O Califado de 'Umar
“Deus abençoou a língua e o coração de 'Umar
com a verdade”, terá dito um dia o profeta Maomé.
'Umar Ibn Al-Khattab nasceu no seio de uma
respeitável família Quraish, treze anos após o
nascimento de Maomé. Enquanto criança, aprendeu
a manejar a espada, a ler e a escrever, algo
extremamente raro em Makkah, naqueles tempos.
'Umar ganhava a vida como comerciante. O seu
mister levou-o a terras estrangeiras, tendo
contactado com todo o tipo de pessoas. Esta
20
experiência dar-lhe-ia a possibilidade de analisar,
profundamente, as empresas e os problemas dos
homens.
A personalidade de 'Umar caracterizava-se pelo
seu dinamismo, determinação, franqueza e
frontalidade, exprimindo sempre o que sentia e
pensava, mesmo que tal pudesse desagradar aos
outros.
A história da sua adesão ao Islão é bastante
interessante: estava-se no sexto ano da proclamação
da profecia. 'Umar tinha 27 anos de idade quando o
profeta proclamou a sua missão. As ideias que
Maomé professava incomodavam-no, assim como a
muitos dos Quraish.A fúria dele não conhecia limites
e perseguia todos os que emigravam para aAbissínia,
acusando o profeta de ser a maior causa da divisão
entre a sua gente.
Quando a sua serva aceitou o Islão, bateu-lhe até
à exaustão, dizendo-lhe: “parei porque estou cansado
e não por ter piedade de ti”. Outra vez, cheio de
animosidade para com as ideias do profeta,
desembainhou a espada e preparou-se para matá-lo.
Nesses dias Maomé passava o tempo numa casa perto
do monte Safa, em Dar Al-Arqam, onde congregava
comAbu Bakr, Hamza, 'Ali e alguns outros.
'Umar sabia dessa reunião e tomou rumo da
referida casa. Por coincidência, pelo caminho
deparou-se-lhe um amigo, Nuaim ibn Abdallah.
Quando 'Umar lhe disse qual era a sua intenção, o
amigo informou-o que a sua própria irmã, Fátima, e
o marido dela, Said ibn ZaidAl-Adwi, tinham também
aceite o Islão. Ao ouvir isto, 'Umar regressou logo
para casa do cunhado e da irmã. Quando lá chegou
ouviu alguém recitar o Alcorão. Furioso, entrou de
rompante e agarrou em Said começando a baterlhe. Fátima levantou-se para socorrer o marido e foi
também bruscamente agredida. Magoada, terá dito
ao irmão: “Umar, tu podes fazer o que quiseres, mas
não nos podes obrigar a renegar o Islão”.
Abu Bakr deixou ao seu sucessor uma Arábia pacificada,
uma comunidade consolidada no seu interior e soberana de
uma política externa vitoriosa
Estas palavras tiveram um efeito inesperado em
'Umar. Que fé era aquela que tornava tão fortes de
coração até as mulheres mais fracas? Pediu, então,
a sua irmã que lhe mostrasse o que tinha estado a
ler. Fátima retorquiu-lhe: “Se queres ver, primeiro
toma um banho, porque estás imundo, não podes
tocar no Alcorão”. Depois, trouxe à sua presença
fragmentos onde estavam escritos capítulos do
Alcorão.Ao verificar o seu conteúdo, 'Umar rendeu-
se à paz e deixou que as palavras alcorânicas caíssem
bem fundo no seu coração.
Convertido, dirigiu-se a casa onde permanecia
o profeta Maomé e jurou-lhe fidelidade, tendo
aquele dado-lhe a denominação de “faruk”, que
significa "o que distingue a verdade da falsidade".
Receando as divisões da comunidade por
motivo da sua sucessão, Abu Bakr recomendou a
designação de 'Umar, o que não deixou de reavivar
os ressentimentos entre os emigrados e os
auxiliares, assim como entre os partidários de 'Ali e
os outros muçulmanos. Fiel aos seus antecessores,
tal como a si mesmo, visto que era o braço direito
de Abu Bakr e o seu melhor conselheiro, 'Umar
continuou a mesma política de organização no
interior e de conquistas no exterior.
No Iraque, a uma derrota na “batalha da ponte”
(“al-jhisr”), em Outubro de 634, seguiu-se uma série
de vitórias muçulmanas, das quais a mais importante
foi a de al-Qadisiyya (fins de Maio de 637), que
abriu as portas da parte iraniana do Iraque ao
exército muçulmano.
De al-Qadisiyya até Nihawand (642), passando
por Babilónia, Ctesifonte − então capital dos
sassânidas−, Takrit, Qirqisya, Tustur e Gondisabur,
a marcha foi gloriosa e triunfal. A seguir ao
assassínio de Yazdgard III (rei sassânida de 632 a
651), a resistência da Pérsia enfraqueceu
consideravelmente e ficou reduzida a algumas
oposições locais e periféricas.
Foi assim que, sob o comando de 'Umar, o Islão
alargou o seu domínio a toda a Síria, a todo o Iraque
e a uma grande parte da Pérsia. Os nomes de três
batalhas resumem esta gloriosa fase de conquista:
Yarmuk, em 634, Qadisiyya, em 637, e Nibawand,
em 642.
Enquanto o exército muçulmano avançava
através do território persa, outro exército,
comandado por 'Amr ibn al-'As, dirigia-se para a
Palestina. O patriarca de Jerusalém, Sofrónio,
negociou com 'Amr a submissão da cidade. Entre
outras condições estabeleceu-se, por exigência do
patriarca, que o próprio califa 'Umar iria tomar posse
das chaves da cidade santa, o que ele fez em 637.
A escassa resistência que o exército encontrou
na Palestina incitou-o a continuar a sua marcha na
direcção do Egipto, terra rica que os nómadas da
Arábia cobiçavam.
Em Dezembro de 639, o exército ocupou al-'Aris
e daí tomou a rota que tinham seguido anteriormente
todos os conquistadores. Esta rota conduziu-o a
al-Farma (Janeiro de 640), a leste da actual Port Said,
a Balbis e a Babilónia do Egipto. Acampou em
Heliópolis ('Ain Shams), aguardando a chegada dos
reforços que vinham de Madinah para poder atacar
21
a cidade-fortaleza de Babilónia do Egipto, onde se
refugiara o exército bizantino.
O cerco durou sete meses e terminou com a
vitória dos muçulmanos (6 de Abril de 641).Ao tomar
este importante ponto estratégico, situado na parte
superior do delta do Nilo, os conquistadores tinham
aberto o caminho tanto para o sul como para o
norte. Alexandria rendeu-se a 8 de Novembro de
641, ao cabo de um longo cerco e da assinatura de
um tratado de paz que dava aos habitantes um prazo
de doze meses para decidirem se saíam da cidade
com o exército bizantino ou se ficavam e pagavam
um tributo.
A perda de Alexandria, considerada então como
a segunda capital, depois de Constantinopla, foi
um duro golpe para Bizâncio. Em duas ocasiões,
em 645 e 654, grandes armadas tentaram, sem êxito,
recuperá-la.
Depois destas tentativas bizantinas, o exército
muçulmano empreendeu a conquista sistemática do
Baixo e do Alto Egipto.
'Umar imprimiu à governação do seu califado
uma estrutura administrativa, criando
departamentos do Tesouro, do Exército e de
Receitas Públicas. No plano financeiro criou o
tesouro (“bayt al-mal”), que era mantido com a
quinta parte dos despojos de guerra, o produto
das terras conquistadas (“al-fay”), o imposto sobre
bens de raiz (“al-jaraj”) e o tributo pago por cristãos
e judeus (“al-jizya”), assim como a esmola legal dada
pelos fiéis, que se destinava aos muçulmanos
necessitados. Foram estabelecidos salários fixos
para os soldados.
Para poder realizar uma gestão sã e equitativa
destes recursos, 'Umar instaurou o “diuan”, cujo
papel consistia em anotar os rendimentos e as
despesas. Estabeleceram-se critérios sobre a
distribuição de pensões aos muçulmanos que mais
as merecessem, em função da data da sua adesão
ao Islão, da sua participação nas primeiras grandes
batalhas, do seu grau de parentesco com o profeta
ou do facto de pertencerem aos emigrados de
Makkah ou aos auxiliares medineses.
No plano militar, 'Umar conseguiu que o exército
muçulmano se tornasse o mais poderoso do seu
tempo. Dotou-o de grandes chefes, mandou
construir acampamentos, como os de Kufa e
Bassora, no Iraque, e o de al-Fustat, no Egipto, a
fim de não se misturarem com os habitantes das
terras conquistadas, e distribuiu entre os soldados
quatro quintos dos despojos de guerra.
No plano da organização civil nos países
conquistados, conservou em geral as estruturas
existentes, que eram de tipo militar. Assim, a Síria
estava dividida em cinco regiões militares (“al22
Ao verificar o seu conteúdo, 'Umar rendeu-se à paz e deixou
que as palavras alcorânicas caíssem bem fundo no seu
coração
jund”): a Palestina, com Jerusalém como centro; a
Jordânia, com Tiberíade como centro; a Damascena
(de Tiro a Trípolis), com Damasco como centro;
Homs, que englobava as regiões de Homs, Hama e
Laodiceia, e Qinnasrin, que compreendia as regiões
de Qinnasrin, Alepo e Antioquia (de formação mais
tardia).
Em geral, acontecia o mesmo nos outros países:
o princípio era nomear um governador militar que
garantisse o poder religioso, político e
administrativo, acompanhado de um “amil”
(funcionário do fisco), que dirigia as finanças da
província. Cumprindo uma vontade do profeta, 'Umar
expatriou aArábia de cristãos e judeus. Os primeiros
tiveram de abandonar Najran, e os segundos, Jaybar.
Com isso, a Arábia passou a ser totalmente
muçulmana. Só se consentiu uma excepção, a favor
dos cristãos taglibis, a quem se tolerou que
mantivessem a sua religião, por terem ajudado o
exército muçulmano na conquista do Iraque, mas
com a condição de os seus filhos serem educados
segundo o Islão.
Entre as outras iniciativas de 'Umar, refira-se a
da fixação do ano da Hégira (622), como ponto de
partida da era muçulmana. Por outro lado, sob o
seu califado, o árabe tornou-se a língua oficial do
Estado, que viu favorecida a sua expansão devido
à dispersão dos árabes pelas terras conquistadas.
Por isso, não demorou a transformar-se em língua
religiosa, literária e cultural da Síria-Palestina, Iraque
e Egipto. Além disso, nestes países, a sua
implantação viu-se favorecida pela existência de
tribos arabizadas em consequência das grandes
emigrações ocorridas nos séculos anteriores.
Quando 'Umar morreu, assassinado em 644, o
Islão dominava o Iraque, parte da Pérsia, até ao
Sind, toda a Síria e o Egipto. Sob o governo do seu
sucessor, as forças muçulmanas concentraram-se
em três frentes: a frente asiática, a frente africana e
a frente anatólica. Mas as graves divisões que
separaram a comunidade árabe dificultaram a
vitoriosa marcha dos seus exércitos. Além das
conquistas, o balanço político do califado de 'Umar
é imenso. Para a história do Islão, ele foi o
verdadeiro organizador do Estado muçulmano.
Certa vez, uma mulher apresentou uma queixa
contra ele. Quando apareceu no tribunal perante o
juiz, este levantou-se em sinal de respeito para com
o califa. 'Umar observou de pronto: “este é o
primeiro acto de injustiça que infligistes a esta
mulher!”.
Querendo evitar dissensões na comunidade,
tinha previsto um conselho cujo papel consistiria
em nomear um sucessor quando chegasse a altura
disso. Este conselho era formado por seis dos
homens mais representativos das diversas
tendências existentes em Madinah: 'Uthman Ibn
'Affan, dos Omíadas, 'Ali IbnAbi Talib, dos Hashim,
al-Zubayr Ibn al-'Awwan, filho de uma tia materna
do Profeta,Talha Ibn 'UbaydAllah, notável medinês,
As'd Ibn Abi Waqqas, conquistador do Iraque, e
'Abd al-Rahman Ibn 'Awf, um dos ricos emigrados.
À frente destes possíveis pretendentes ao califado,
'Umar pôs o seu filho 'Abd Allah. No entanto, este
não poderia ser eleitor nem elegível e só teria voto
consultivo. As suas funções, portanto, seriam as
de supervisar os trabalhos do conselho e fazer
executar as decisões deste.
Sendo os candidatos à sucessão de 'Umar tão
numerosos como os votantes, 'Abd al-Rahman
propôs retirar-se da competição na condição de
poder designar o novo califa. Elegeu 'Uthman, com
grande descontentamento por parte de 'Ali, alZubayr e Talha. Esta eleição deu origem à grande
provação (“al-mihna”) que iria sofrer o Islão
primitivo.
Em 23 d. H., quando se dirigia à mesquita para a
oração, um “maula” da “seita dos mágicos” de seu
nomeAbu Lulu Feroze, que teria algo a nível pessoal
contra 'Umar, atacou-o com uma adaga e apunhalouo diversas vezes. O califa não resistiria aos
ferimentos e viria a falecer, no dia seguinte, com 61
anos de idade, numa quarta-feira, dia 27 do mês de
“zu-alhijjah”. Governou de 634 a 644, e terá sido
enterrado ao lado do profeta Maomé, em Madinah.
O Califado de 'Uthman
“Todo o profeta tem um conselheiro e o meu
será 'Uthman”, terá dito o profeta Maomé.
Quando 'Umar Ibn Al-Khattab tombou,
presumivelmente vítima de um mago escravo, várias
testemunhas pediram-lhe que, antes de expiar,
nomeasse um sucessor. 'Umar apontou um painel
composto de seis dos dez “companheiros do
profeta Maomé” (e sobre os quais este terá dito:
“eles são pessoas do céu”), 'Ali, 'Uthman, Abdul
Rahman, Sa'ad, Al-Zubayr e Talha , a fim de eleger,
de entre eles, o próximo califa. Após dois dias de
Um dos contributos mais relevantes que 'Uthman ofereceu aos muçulmanos foi a compilação de um texto completo e
autorizado do Alcorão
23
discussões entre os candidatos e depois de
expressas as opiniões dos muçulmanos de Makkah,
a escolha recaiu finalmente em 'Uthman, o terceiro
califa do Islão.
'Uthman ibn Affan nasceu sete anos depois do
profeta Maomé. Pertencia ao ramo Umayya (Banu
Umayya) da tribo Quraish. Aprendeu a ler e a
escrever muito cedo e, ainda jovem, tornou-se num
próspero comerciante. Era conhecido como “dhur
nurain” (“o detentor de duas luzes”), devido ao
privilégio de ter tido como esposas duas filhas do
profeta Maomé, respectivamente Ruqayyah e
Kulssum.
'Uthman participou nas famosas Batalhas de
Uhud e de Trench. Após esta última, o profeta
resolveu realizar a peregrinação a Makkah, fazendose acompanhar de 'Uthman, como seu emissário
aos Quraish. Este episódio terminaria com o acordo
conhecido por “Tratado de Hudaibiya”.
O domínio de 'Uthman estendeu-se para
Ocidente até Marrocos, para Oriente até ao Afeganistão e para o Norte até à Arménia e Azerbaijão.
Durante o seu califado foi organizada a marinha, as
divisões administrativas do estado conheceram uma
nova dinâmica e muitos projectos públicos
ganharam forma. 'Uthman enviou companheiros do
profeta como seus deputados a diversas províncias
com o intuito de investigar cuidadosamente a
conduta dos oficiais, assim como as condições dos
povos.
Um dos contributos mais relevantes que
'Uthman ofereceu aos muçulmanos foi a compilação
de um texto completo e autorizado do Alcorão.
'Uthman reinou durante doze anos (644 - 656).
Os primeiros seis foram pautados por alguma
tranquilidade interna. No entanto, durante a
segunda metade do seu califado despoletou uma
intensa rebelião. Rivalidades existentes entre os
clãs de Makkah antes da pregação de Maomé,
estavam a dar origem a uma série de crises
institucionais. Com efeito, os Banu 'Abd Shams e
os Banu Hashim, descendentes de 'Abd Manaf,
filho de Qusayy, rivalizavam quanto à sua influência
na cidade. Tendo o seu pai concedido a Hashim o
privilégio de abastecer os peregrinos de água e
alimentos, 'Abd Shams, pai de Umayya, dedicouse ao comércio de caravanas e estabeleceu relações
mercantis com a Abissínia, o Egipto, a Síria e o
Iraque.
À medida que iam enriquecendo mais que os
seus primos, os Banu Umayya passaram a
desempenhar um papel determinante no seio do
senado oligárquico que governava a cidade. Tendo
aderido ao Islão depois de o terem combatido,
tentaram recuperar o seu prestígio perdido por
24
motivo da conquista de Makkah e desempenhar,
no Islão, o papel que tinham anteriormente.
Conseguiram-no com Mu'awiya, fundador da
dinastia Omíada.
A reacção dos Hachemitas (dos quais sairia a
dinastia dos Abássidas) perante a ascensão dos
seus primos foi-se tornando cada vez mais violenta.
Ao verem que os dois primeiros califas não eram
hachemitas e que o terceiro era omíada, endureceram
a sua oposição à subida deste ao trono. Por outro
lado, este entendeu não os tratar com deferência,
confiando os postos-chave aos seus e utilizando
os fundos públicos de acordo com os seus
interesses. Assim, multiplicaram-se os partidários
do pretendente hachemita ao califado, 'Ali, primo
do profeta e seu genro, e intensificou-se o seu
descontentamento.
'Uthman conseguiu, com a sua política, alinhar
contra ele os emigrados e os auxiliares, com excepção de alguns indivíduos, na sua maior parte
muçulmanos das grandes cidades (al-Fustat, Kufa,
Bassora) e personagens influentes de Madinah, tais
como Talha, al-Zubayr e 'Aisha, que queria o
califado para o seu irmão Muhammad.
Aos descontentes juntaram-se algumas
delegações dos países conquistados, que chegaram
em Abril de 656 e cercaram 'Uthman na sua residência,
exigindo-lhe mudanças e reformas. No entanto, o
seu ambiente omíada, de que não conseguia desligarse, impedia-o de satisfazer os sitiantes. Mu'awiya,
que tinha consolidado o seu poder na Síria,
ambicionava a sucessão de 'Uthman, seu parente e
aliado, e aguardava o seu desaparecimento para
consegui-lo.
É surpreendente que um governante de tão
vastos territórios, cujos exércitos não tinham igual,
se visse impotente perante tal rebeldia. Numa sextafeira, dia 17 de Junho de 656, em 17 de “zu-alhijjah”
do ano 35 da Hégira, após prolongado cerco, os
rebeldes penetraram na casa de 'Uthman,
assassinando-o. Tinha 84 anos. O poder dos rebeldes
era tão grande que o seu corpo permaneceu por
enterrar com as suas roupas ensanguentadas, a
mortalha mais apropriada aos mártires da causa do
Islão.
Apesar dos distúrbios que abalaram o califado
de 'Uthman e que conduziram ao seu assassínio, o
balanço dos seus doze anos de poder não foi
episódico. Na Pérsia, o exército muçulmano
penetrou no Turquestão, após a pacificação das
regiões conquistadas e chegou até aos arredores
de Derbent, donde foi repelido pelos turcos.
Avançou seguidamente pela Cirenaica, a oeste, pelo
Cáucaso, a norte, até Oxus e ao Hindu Kush, a leste.
Em 711 tinham chegado a Tashkent e começado
a consolidar o domínio islâmico na Ásia Central,
empreendimento que foi efectivado com a derrota
das forças chinesas na batalha do rio Talas, em 751.
No ocidente, concluíram a conquista do Norte de
África e, em 709, prosseguiram, através da Espanha,
até França.
Na Ásia Menor, Mu'awiya, que operava por sua
conta, realizou algumas razias nas zonas costeiras
e chegou até 'Amuriyya (Amorion). Estas incursões
proporcionaram-lhe ricos despojos de guerra. A
seguir apropriou-se de várias fortalezas arménias
na Cilícia, ocupou por algum tempo as ilhas de
Chipre (649 e 653) e Rodes (654) e realizou alguns
saques nas costas sicilianas em 652, com o auxílio
da primeira armada muçulmana, criada por ele.
Em África, após as tentativas fracassadas de
Bizâncio para recuperar Alexandria, o exército
muçulmano consolidou as suas posições no Egipto
e avançou para o sul, onde conquistou a Núbia. Ao
fim de uma feroz resistência, os núbios firmaram um
acordo de paz com os muçulmanos. De regresso a
Alexandria, o exército árabe partiu à conquista de
algumas possessões bizantinas na África do Norte:
apoderou-se com facilidade da Tripolitânia e chegou
até Cartago, após quinze meses de ataques e cercos
contra as cidades fortificadas que ia encontrando à
sua passagem.
Satisfeitos com os despojos que tinham obtido,
os chefes do exército muçulmano decidiram
regressar ao Egipto. No entanto, a crescente
oposição à política de 'Uthman e o seu assassínio
diminuíram o ritmo das conquistas até as deter em
todas as frentes. Seria preciso esperar a subida ao
poder de Mu'awiya para que se retomassem as
acções militares.
No interior, 'Uthman, que se tornara califa aos
70 anos, teve de enfrentar uma violenta oposição
popular contra o partido omíada e contra alguns
companheiros do profeta que tinham acumulado
grandes fortunas e reconstituído, deste modo, a
oligarquia de Makkah, contra a qual o profeta lutara
durante toda a sua vida.
O porta-voz da classe pobre, um piedoso
companheiro de Maomé, escandalizado pela vida
de desregramento, prodigalidade e jogo que
levavam os jovens com os Banu Umayya, criticou
publicamente o regime. O califa exilou-o para o
Nedjed (formado tão depressa por desertos de areia,
“nufud”, como por desertos pedregosos, “alhamada” ou “al-harra”, com escassos pastos que
os nómadas disputavam), onde não tardou a morrer,
o que não fez mais do que intensificar a fúria do
povo contra 'Uthman.
Outro problema que veio criar o descontentamento e afastou de 'Uthman um grupo de homens
que começava a desempenhar um papel importante
na sociedade daquela altura, foi a questão dos
“qurra”, leitores e transmissores do Alcorão. Na
origem deste descontentamento estava a
codificação do livro sagrado. 'Umar, alarmado pela
morte, no decorrer das guerras contra as tribos
apostaras, de vários companheiros do profeta, tinha
pedido a Zayd Ibn Tabit, sob o califado de Abu
Bakr, que reunisse os capítulos do Alcorão antes
do total desaparecimento das testemunhas da
revelação. Mas outro companheiro, 'Abd Allah Ibn
Mas'ud, tinha-se consagrado à mesma tarefa, o que
retardou a escolha de uma recensão canónica única.
Depois de se tornar califa, 'Uthman pediu a Zayd
que acabasse o seu trabalho, ordenando os
capítulos recolhidos segundo uma ordem de
extensão crescente. O califa realizou a recensão
definitiva e mandou que se queimassem e
destruíssem as outras recensões, completas ou
incompletas, já existentes. O texto estabelecido por
ordem de 'Uthman é o que chegou até nós. lbn
Mas'ud, governador de Kufa sob o mandato de
'Umar, mas destituído por 'Uthman, acusou este de
ter introduzido modificações em textos do Alcorão
Em África, após as tentativas fracassadas de Bizâncio para
recuperar Alexandria, o exército muçulmano consolidou as
suas posições no Egipto e avançou para o sul, onde
conquistou a Núbia
25
e de não ter tido em conta algumas “leituras”
contidas no seu próprio códice. Isto veio levantar
a corporação dos leitores contra o califa. Entre as
referidas “leituras” modificadas ou suprimidas,
havia, ao que parece, textos que testemunhariam o
direito de 'Ali a suceder ao profeta Muhammad.
Quando 'Uthman morreu, e dada a violenta
oposição contra o partido omíada, 'Ali parecia o
único candidato digno de assumir o califado.
Forçado pelo ambiente a seu favor, viria a aceitar o
califado com resignação.
O Califado de 'Ali
“Tu ('Ali) és meu irmão neste mundo e no outro”,
terá dito um dia o profeta Maomé.
Após o martírio de 'Uthman Ibn Affan, o lugar
do califa permaneceu vazio durante dois ou três
dias. Muitas pessoas insistiam para que 'Ali Ibn
Abi Talib tomasse o lugar, mas este encontravase embaraçado com o facto de tal proposta. No
entanto, quando os companheiros do profeta
também lhe pediram ele resolveu, finalmente,
aceitar.
'Ali Talib era primo do profeta Maomé, tendo
crescido na própria casa de infância deste. Mais
tarde, desposaria a sua filha mais nova, Fátima,
permanecendo com ele perto de trinta anos.
'Ali tinha dez anos de idade quando Maomé
recebeu a “mensagem divina”. Certa noite, ele viu
o profeta e a sua esposa Khadijah prostrados. Terá
perguntado, então, ao profeta, o significado das
suas acções, ao que este respondeu estarem a rezar
ao Deus único, Todo-Poderoso, e que ele deveria
também aceitar o Islão. 'Ali terá argumentado que
gostaria de se aconselhar, primeiramente, com seu
pai. Passou uma noite de insónia e, de manhã,
dirigiu-se ao profeta tendo-lhe dito: “Quando Deus
me criou, Ele não consultou o meu pai. Assim,
porque terei eu de consultar o meu pai para servir
Deus?”.
Quando chegou a “Revelação”, Maomé
convidou os seus familiares para uma refeição.
Após terem terminado, dirigiu-se aos seus parentes,
perguntando-lhes: “Quem se junta a mim na causa
de Deus?". Houve um profundo silêncio durante
algum instante, e a seguir 'Ali levantou-se
exclamando: “Eu sou o mais novo de entre os que
aqui estão presentes. Os meus olhos incomodamme porque estão inflamados e as minhas pernas
estão magras e fracas, mas juntar-me-ei a si, e ajudálo-ei conforme puder”. A assembleia irrompeu num
riso ridículo. No entanto, durante os difíceis dias
em Makkah, 'Ali fez justiça a tais palavras
26
Com a morte de 'Ali chega ao fim a primeira e uma das mais
notáveis fases da História do Islão
enfrentando todas as adversidades de uma forma
sacrificada.
Quando os Quraish planeavam assassinar
Maomé, 'Ali dormiu na cama deste, envolvido no
manto verde que o profeta costumava usar,
arriscando a sua vida com estóica lealdade e
abnegável bravura.
Exceptuando a expedição de Tabuk, 'Ali
combateu em todas as batalhas do Islão com
distinção, particularmente na jornada de Khaybar.
Diz-se que na batalha de Uhud terá sofrido mais de
dezasseis ferimentos. Maomé conceder-lhe-ia o
nome de “assadullah” (“Leão de Deus”).
O Profeta amava 'Ali e chamava-o por muitos e
carinhosos nomes. Certa vez, encontrando-o
adormecido sobre a poeira, sacudiu-lhe as vestes e
disse-lhe, afectuosamente: “Acorda abu turab!”
(“pai do pó”).
A sua sagacidade e austeridade conferiram a
'Ali uma enorme distinção entre os companheiros
do profeta.Abu Bakr, 'Umar e 'Uthman consultaramno, frequentemente, durante os seus respectivos
califados. Muitas vezes 'Umar, na sua ausência, fêlo vice-regente em Madinah. Era, igualmente, um
grande entendido em literatura árabe, e foi o pioneiro
no campo da gramática e da retórica. Os seus
discursos, sermões e cartas serviram como modelo
de expressão literária para muitas gerações. Muitos
dos seus ditos sensatos e epigramáticos foram
conservados. Apesar disso, manteve-se sempre
modesto na sua conduta. Uma vez, já durante o seu
califado, quando se dirigia ao mercado, um homem
reconheceu-o, levantou-se em sinal de respeito e
seguiu-o. 'Ali parou, voltou-se para trás e ter-lhe-á
dito: “Não faças isso. Tais maneiras são uma
tentação para um governador e uma desgraça para
o governado”.
Como já anteriormente foi mencionado, 'Ali
aceitou o califado com bastante relutância. O
assassinato de 'Uthman e os eventos que o
rodearam eram um sintoma e causa de uma provável
guerra civil, em larga escala.
Durante cinco anos 'Ali iria ser fustigado com
as maiores dificuldades. Alguns companheiros
influentes recusaram-se a reconhecê-lo e outros
governadores que ele destituiu negaram-se a
abandonar os seus postos. O mais poderoso deles
era Mu'awiya, governador da Síria, que se dedicou
a criar-lhe dificuldades e a afastar do novo califa
uma parte cada vez mais importante da comunidade,
tanto em Madinah como nos países conquistados.
A situação no Hijaz tornar-se-ia de tal forma
insustentável que 'Ali teve de deslocar a sua capital
para o Iraque.
A primeira dificuldade que 'Ali teve de enfrentar
foi vingar o sangue de 'Uthman. Mu'awiya
reclamava-o e incitava os nostálgicos do califado,
al-Zubayr e Talha, a que se dirigissem a Kufa e a
Bassora para amotinarem contra 'Ali os habitantes
destas duas populosas cidades.
Al-Zubayr e Talha encontraram uma aliada
excepcional na pessoa de 'Aisha, viúva do profeta,
que também reclamava o castigo dos assassinos
de 'Uthman. Os partidários dos Omíadas fizeram
afluir a Makkah, de Bassora e do Iémen, muito
dinheiro e um grande número de camelos. Formouse um exército de mais de 1.000 ginetes, que se
dirigiu a Bassora. Ao chegar a al-Mirbad, 'Aisha
pediu ao povo de Bassora que se lhe juntasse.
Então, 'Alí, que equipara um exército para combater
Mu'awiya, marchou, por sua vez, para aquela cidade
e enviou uma delegação a Kufa para que os seus
habitantes aderissem à causa do califado.
A batalha teve lugar em meados do mês de
Dezembro de 656. O exército de 'Aisha contava com
30.000 homens e o de 'Ali, com 20.000.Al-Zubayr e
Talha caíram em combate. Então, o núcleo do
exército rodeou 'Aisha, montada no seu camelo.
'Ali ordenou que dirigissem as setas para o animal,
para não ferir a viúva de Maomé. O seu irmão
Muhammad, que tinha dado a morte de 'Uthman,
tirou 'Aisha da sua liteira, colocou-a sobre um
palanquim e conduziu-a a Bassora, onde 'Ali a tratou
com todas a deferências. Posteriormente, 'Aisha
compreenderia o erro de juízo que havera cometido,
nunca se tendo perdoado por isso... “Quem me dera
nunca ter nascido!”, repetia constantemente.
A “batalha do camelo” custou a vida a cerca de
10.000 muçulmanos, o que desgostou 'Ali, mas
causou regozijo a Mu'awiya, que esperava que este
confronto tivesse enfraquecido o exército do califa.
Começou imediatamente a criar dissensões entre
os muçulmanos do Egipto, uma parte dos quais
aderiu a ele, e activou logo os preparativos para um
confronto decisivo contra 'Ali, que se tinha
instalado em Kufa para estar mais perto da Síria. O
confronto entre os dois exércitos teve lugar em
Siffin, perto de al-Raqqa, nas margens do Eufrates,
em Junho de 657. O exército de 'Ali, formado por
iraquianos e membros de tribos árabes divididas
entre si, contava com 150.000 homens. O de
Mu'awiya, com apenas 50.000, mas eram homens
decididos a vencer, guiados por um chefe que
estava a jogar tudo por tudo e que era aconselhado
por outro personagem ainda mais ambicioso que
ele, 'Amr Ibn al-'As, governador da Palestina, que
negociou previamente com Mu'awiya a sua
retribuição no caso de se dar a vitória e conseguiu
a nomeação como governador da rica província do
Egipto.
Mu'awiya apressou-se a chegar a Siffin antes
de 'Ali e pôde assim escolher a localização para o
seu acampamento, uma planície fértil perto do
Eufrates. 'Ali não conseguiu encontrar um acesso
ao rio, necessário para abastecer de água os seus
homens, e teve de obtê-lo pela força, embora o tenha
deixado aberto para os dois exércitos, contra a
opinião adversa das suas tropas. Houve várias
trocas de mensageiros entre os dois chefes, com a
esperança de evitar a batalha, mas as negociações
conduziram a um beco sem saída. Passados dez
dias, 'Ali atacou com todo o seu exército e esteve
prestes a alcançar a tenda de Mu'awiya que se
dispunha a fugir quando 'Amr Ibn al-'As teve a
ideia de fazer embandeirar o Alcorão e pedir uma
trégua aos seus adversários.
O exército de 'Ali, dividido, obrigou o califa a
suspender os combates. Após uma troca de
mensageiros, ambas as partes aceitaram uma
arbitragem. 'Amr Ibn al-'As era o representante da
parte síria eAbu Musa Al-Ash'ari da parte iraquiana.
O acordo baseava-se na aceitação incondicional
da decisão que ambos tomassem. Em Fevereiro de
658 encontraram-se em Adruh, na província de alBalqa', a leste do Jordão, cada um dos antagonistas
acompanhado por 400 homens. 'Amr servir-se-ia
de um estratagema para favorecer os seus
interesses: deixou falar primeiro Abu Musa, que
27
anunciou aos presentes depor ambos os
antagonistas e que deixava aos muçulmanos o
encargo de elegerem o novo califa. Quando chegou
a sua vez, 'Amr aceitou a deposição de 'Ali e
proclamou califa Mu'awiya.
O mundo muçulmano encontrou-se, pois,
dividido em dois califados: a leste, a Península
Arábica, o Iraque e a Pérsia, sob o poder de 'Ali; a
oeste, a Síria e o Egipto, sob o poder de Mu'awiya.
Mas os seguidores de 'Ali estavam, por sua vez,
divididos em dois campos. O primeiro deles era
formado pelos que, cansados da guerra, declinaram
o seu ódio contra Mu'awiya e os sírios,
contentando-se com o fornecer provas jurídicas da
legitimidade de 'Ali: foram denominados “shi'itas”
(“shi'a” de “shi'atu'Ali”, “o partido de 'Ali”). Os
componentes do outro campo eram basicamente
nómadas, não aceitavam o princípio da arbitragem
nem das suas consequências e exigiam a 'Ali que
provasse os seus direitos com as armas.
Como os primeiros eram mais numerosos e
tinham maior influência sobre o califa, este não pôde
seguir os segundos. Por isso, estes deixaram o
exército de 'Ali e chamaram-lhe “infiel”,
comparando-o a Mu'awiya. Foram denominados
“jarijis”, que quer dizer, “desertores” do exército de
'Ali, tendo formado um exército com cerca de 3.000
combatentes decididos a atacar 'Ali. O encontro
teve lugar em Nahrawan, entre Wasit e Baghdad.
Embora os “jarijis” tenham combatido
valentemente, foram esmagados pelo exército de
'Ali.
Por seu lado, Mu'awiya enviou um exército para
o Egipto sob o comando de 'Amr Ibn al-'As, que se
tomou governador do país. Surgiram também
dificuldades entre 'Ali e o seu primo 'Abd Allah Ibn
'Abbas, governador de Basra, acusado de
corrupção e de injustiça. Obrigado a prestar contas
a 'Ali da sua gestão, lbn 'Abbas apoderou-se do
conteúdo do tesouro e fugiu para Makkah, o que
causou graves dissensões entre os habitantes de
Basra.
Enquanto os “jarijis” semeavam o terror no
Iraque e multiplicavam as exigências de tributos, a
guerra civil começava a alargar-se e Mu'awiya
equipava um exército para invadir o Iraque. 'Ali
debatia-se com os seus “partidários”, que
continuavam a recusar-se a fazer parte do exército
que ele preparava para pacificar o Iraque e
reconquistar a Síria e o Egipto.
Acabou por convencê-los, depois de os ter
ameaçado de se apresentar sozinho perante o
inimigo. Não obstante, era já demasiado tarde, visto
que os “jarijis” tinham decidido suprimir os
culpados das sangrentas divisões entre os
28
muçulmanos, ou seja, Mu'awiya, 'Amr Ibn al-'As e
'Ali. Era o quadragésimo ano da Hégira (“hijra”).
Um grupo fanático de “jarijis” kharijitas encarregou
três executores, que acordaram o dia e hora precisa
para cumprir o seu crime. Escolheram a sexta-feira,
21 de Janeiro de 661, à hora da oração matutina.
Mu'awiya salvou-se da morte graças à sua cota de
malha; 'Amr, doente naquela manhã, designou para
presidir à oração o chefe da sua polícia, que morreu
em seu lugar. Mas 'Ali foi atacado numa mesquita
por Ibn-Muljim, que o atingiu com uma espada
envenenada, e pereceu assassinado.
Ao assassínio de 'Ali, consequência imediata
do de 'Uthman, sendo ambos o resultado de uma
rivalidade ancestral entre dois clãs de Makkah que
disputavam entre si a primazia, consagrou a cisão
da comunidade islâmica em três grupos: os
Omíadas, fundadores de uma dinastia que reinaria
de 661 a 750, os Hachemitas, fundadores do
império abássida (“abbasiii”), que se manteria até
à tomada de Baghdad pelos Mongóis, em 1258, e
os Kharijitas, que continuariam a atacar durante
muito tempo ambos os califados e que fundaram
imanados independentes em Oman e no Norte de
África.
Com a morte de 'Ali, cujo califado durou de 656
a 661, chega ao fim a primeira e uma das mais
notáveis fases da História do Islão. Durante todo
este período foi o Alcorão e as práticas de Maomé,
o último Mensageiro de Deus, a “sunnah”, que
guiaram os dirigentes, fundamentaram os modelos
da sua conduta moral, para além de terem inspirado
as suas acções. Foi uma época de justiça social, em
que governante e governado, rico e pobre,
poderoso e fraco, se encontravam equitativamente
sujeitos à Lei Divina.
Depois de 'Ali, Mu'awiya assumiu o califado. A
partir de então, este ganhou um carácter hereditário,
passando de uma dinastia para outra.JE
i
“Ahadith qudsi” (“hadith” no singular, cujo significado
literal é “história”, “relato”, “narração”), são colecções de
“tradições” relativas ao profeta Maomé que pretendiam
inicialmente ajudar o crente a solucionar os problemas que
a governação de um vasto império colocava. Estas ciências,
denominadas de “siratu rassul” (biografia tradicional do
Profeta), são numerosas e de diversos géneros. As “ahadith”
são, pois, conjuntos de condutas apostólicas (“sunnah”,
“caminho trilhado”), sermões, linguagem aforística ou
metafórica, pausas tácitas, beneplácitos, desaprovações ou
quaisquer outros procedimentos relativos aos mais diversos
assuntos, adoptados pelo profeta e preservados por aqueles
que estiveram presentes ou por aqueles a quem as suas
memórias chegaram às mãos por via das primeiras
testemunhas.
Tenente RC Ana Rita Carvalho
A
Antiguidade Clássica encerra valores,
ideais, motivos e temas que constituem
uma matriz fundamental da nossa cultura, com
irradiação ao longo dos séculos e em diversas
esferas do conhecimento e da actividade humana.
Um desses tópicos − “as armas e as letras” −,
imortalizado por um dos nossos poetas maiores,
Camões, espelha um duplo perfil e missão cometidos
ao homem e ao cidadão, letrado e guerreiro, como
ressonância do ideal cívico e militar que, do
Classicismo à Idade Média, até à era Moderna e à
Contemporaneidade se corporizou em figuras
modelares ou assumiu expressão em renovadas
imagens e na forma mentis do Povo Português e da
cultura ocidental.
A origem do tópico das armas e das letras é, na
verdade, bastante remota. Luís de Sousa Rebelo,
em estudo aprofundado que lhe dedica1, situa a
sua origem mais longínqua na religião pré-histórica
do Indo-Europeu, no qual “o sistema cósmico,
religioso e social se hierarquizava numa ordem
trinitária de funções: A Soberania (…), a Guerra e a
Fecundidade. A função de Soberania aparece aí
dominada pelo carácter duplo, que assume o Rei
que a exerce, ora mágico e terrificante, ora sábio e
justo.” (op. cit.,p. 195). Essa antinomia funda30
mentará, segundo o autor, a cosmovisão veiculada
na Cultura Clássica greco-romana, sendo
primeiramente herdada pelos gregos. Não
abordaremos, por estar fora deste âmbito, a
inscrição e amplificação deste tópico na literatura e
na cultura clássica greco-latina. Retenhamos,
todavia, a sua existência no mundo helénico, matriz
fundadora da cultura ocidental.
Da origem remota do Indo-Europeu, o binómio
“armas e letras” transita, com variantes, para a
cultura greco-romana, sendo trabalhado nas
epopeias homéricas, em que a aretê, a excelência
guerreira, coexiste com o culto das letras e das artes,
revelando-se os seus heróis pelas qualidades de
inteligência e de sageza.Aquiles (na Ilíada) ou Ulisses
(na Ilíada e na Odisseia), revelam-se no teatro de
guerra, pela bravura em combate, mas igualmente
pelos artifícios de inteligência, de que o último é
pródigo, ao conceber, por exemplo, o célebre Cavalo
de Tróia, episódio mencionado no Canto VIII da
Odisseia. Nesta obra, o herói, adquirindo o epíteto de
“artificioso”, fará frente aos múltiplos obstáculos que
se lhe deparam no percurso, mercê do seu carácter
engenhoso e da sua criatividade.
Já na epopeia de Virgílio, A Eneida, a par do valor
militar e, numa dimensão que supera o ideal homérico,
Foto:http\\commons.wikimedia
segundo o qual ambas as virtudes − a força bélica e a
sageza− investem o herói, afirma-se uma ética e uma
moral que caracterizam a excelência do herói enquanto
cidadão dotado de inteligência prática e de um saber
que o elevam para lá da força do seu braço.
Na epopeia latina, o ideal heróico é transmutado
− enquanto Aquiles corporiza o valor militar e
Ulisses a astúcia, Eneias personifica um novo ideal,
não apenas guerreiro mas de cidadania activa, no
governo da cidade e como fundador de uma nova
pátria.Assim, o herói Eneias, na sua longa viagem
e, mais tarde, pela missão de que é incumbido ao
fundar Roma, é investido de uma virtude moral
(iustitia, pietas) e de um ideal de civilidade (civitas)
que transcendem a acção bélica. O epíteto que o
caracteriza é disso sinónimo − ele é o “pius Eneias”
(o “piedoso”, num sentido diferente daquele que a
tradição judaico-cristã consagrou), o herói dotado
de um sentido moral do dever ante os deuses da
cidade e perante os homens, seus concidadãos, na
defesa do território e do Estado por si fundado.
A pietas é incorporada e vivida pelo herói
virgiliano num sentido que o investe como bom
cidadão, edificando o valor da polis, a cidadeestado, qualidade que difere, em certa medida, da
sageza do herói homérico, profundamente
Da origem remota
do Indo-Europeu,
o binómio “armas
e letras” transita para a
cultura greco-romana,
sendo trabalhado nas
epopeias homéricas,
em que a aretê coexiste
com o culto das letras
individualizado. Este distingue-se em combate −
como Aquiles − ou no cenário da viagem, real e
simbólico percurso − como Ulisses. O astucioso
herói homérico, após a guerra de Tróia, enceta a
sua magnífica viagem, horizonte temático central
nesta epopeia fundadora, no imaginário e na
Literatura ocidental, de um sentido de errância.
Constituirá este, aliás, um dos mitos estruturantes
do imaginário português, antes mesmo da odisseia
31
real do seu povo, aquando dos Descobrimentos,
que no plano simbólico constituem a superação
dos feitos narrados nas epopeias clássicas. Esta
mesma ideia se encarregou Camões, o Poeta maior
da nossa epopeia, de fixar em Os Lusíadas,
justamente realçando que os Portugueses superam,
na terra como no mar, as façanhas dos antigos,
desde logo pela essencial diferença de a aventura
deste povo ser real. Ouçamos a voz do Poeta na
estrofe terceira do Canto I, de Os Lusíadas:
Convém, todavia, relembrar que já antes da
epopeia marítima, o tema da errância estivera
presente, na nossa Literatura e na vida colectiva,
durante a Idade Média, sobretudo na Lírica, em
algumas Cantigas de Amigo. E também nos
romanceiros, sob a inspiração de narrativas muito
divulgadas à época, nomeadamente a da viagem de
Marco Pólo. E é justamente o modelo de herói
humanizado e dotado de sapiência, para além das
virtudes guerreiras, que vai transitar para a Idade
Média e depois para o Renascimento, adquirindo
expressão, não apenas no campo da Literatura mas
igualmente no contexto bélico da luta contra o infiel,
conjugando as duas feições − a do guerreiro e a do
homem dotado de uma grandeza de alma à altura
dos santos e heróis. Lembremos os romances ou
rimances, poesia narrativa cujos protagonistas
surgem modelados segundo um ideal heróico de
inspiração cristã e que, no plano do real, encontram
inúmeros representantes na nossa História
medieval, tendo um dos seus exemplos mais
acabados no Condestável Nun' Álvares Pereira.
Durante a Idade Média proliferam, nas Letras,
as hagiografias, as vidas de santos, e também a
panegírica, em que se revitaliza uma tradição retórica
que advém da Antiguidade Clássica e de autores
cristãos da baixa Idade Média. O lirismo galaicoportuguês, que ganhou expressão a partir de finais
do século XII, tendo atingido o apogeu no século
XIII e o declínio no século XIV, está intimamente
ligado à valorização concedida pelo rei e pela corte
às artes e às letras, a qual por sua vez reflecte o
prestígio social assumido, no seio de uma elite
social, pela aliança entre a cultura e um espírito
marcadamente cavaleiresco. A figura do cavaleiro32
Foto:http\\commons.wikimedia
Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre lusitano
A quem Neptuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
trovador assume um papel social importante,
consubstanciando plenamente a articulação das
“letras” e das “armas”. Esse ideal, veiculado na
tradição ibérica e não somente portuguesa (é
herdeiro da tradição occitânica), encontrara
expressão plena na corte de Afonso X, o Sábio, rei
de Castela e avô de D. Dinis.
Como traço prevalecente da tradição clássica
na Idade Média ressurge, segundo Sousa Rebelo,
“um ideal de monarca ilustrado, dominante na
D. Dinis incarnou magnificamente o ideal das armas e das
letras, tendo a sua corte constituído exemplo máximo
civilização hispano-islâmica.” (op.cit., p.196). Este
perfil no qual se conciliam de novo a grandeza épica
e guerreira e o culto das letras e das armas encontra,
entre nós, o seu exemplo mais perfeito no rei D.
Dinis, “Trovador" e "Lavrador”, em cujo reinado se
fixam definitivamente as fronteiras portuguesas,
sobretudo em zonas limítrofes do território nacional,
entre as quais Olivença. D. Dinis incarnou
magnificamente o ideal das armas e das letras, tendo
a sua corte constituído exemplo máximo, na nossa
Idade Média, embora também nas cortes de D.
Sancho II e de D. Afonso III fosse concedido algum
relevo às Letras.
D. Dinis promoveu uma importante política de
fixação de populações e de estabilização do território,
detentor como foi de uma visão prospectiva no âmbito
daquilo que hoje designaríamos por ordenamento
do território. Paralelamente, na sua corte floresceram
as letras e as artes, e o próprio monarca foi poeta
maior na arte de trovar, como o comprovam as
Cantigas de Amigo e de Amor por si escritas (legounos, no total, 138). Esses poemas revelam uma riqueza
estilística e compositiva e uma complexa urdidura de
motivos e temas, sendo de destacar a subtileza com
que tratou o tema da Saudade (conceito mais tarde
amplamente tratado por D. Duarte).
A par das obras de feição religiosa e da poesia
lírica peninsular dos cancioneiros, surge a crónica,
os primeiros textos históricos, de que constituem
Foto: arquivo JE
No caso de Fernão Lopes, expoente máximo da nossa
cronística medieval, desenha-se nos seus textos um modelo
de herói colectivo
sumo exemplo a Crónica Geral de Espanha, de 1344,
uma literatura hispânica, pois se enquadrava num
meio cultural que envolvia toda a Península Ibérica,
sem prejuízo da definição de fronteiras dos Estados
que então iam despontando. Já no âmbito da
literatura especificamente nacional, encontram-se
naturalmente as crónicas de Fernão Lopes e, mais
tarde, de Zurara. No caso de Fernão Lopes, expoente
máximo da nossa cronística medieval, desenha-se
nos seus textos um modelo de herói colectivo,
contracenando com o individual, centrado nas figuras
régias e da aristocracia. Nas suas crónicas, é o
colectivo que se movimenta em grandes quadros
humanos, tendo subjacente um ideal cívico que
conduz, muitas vezes, à luta armada. Veja-se, a título
de exemplo, a Crónica de El-Rei D. João I .
Outro exemplo de nobre letrado digno de menção
foi entre nós o de D. Pedro Afonso, Conde de
Barcelos (1289-1354), filho natural de D. Dinis, que à
sua volta constituiu um núcleo de tradutores e
compiladores de textos antigos. Porém, e apesar de a
educação literária ser parte integrante da formação
da classe aristocrática, as exigências das campanhas
militares constantes, durante a Idade Média, com o
processo da Reconquista, levaram a que o culto das
letras fosse persistentemente relegado a segundo
plano em face da actividade castrense. A própria
função social dos nobres, enquanto guerreiros, numa
sociedade profundamente estratificada, conduziu
muitas vezes a um desprezo pelas artes e pelas letras,
tendência que coexistiu com a contrária, ou seja, com
a preocupação de conciliar a Literatura com a Guerra.
Segundo Luís de Sousa Rebelo, na obra citada, tal
tendência verificou-se já mesmo na Crónica Geral
de Espanha, de 1344, compilada pelo Conde de
Barcelos, e assumiu a forma de oposição entre o
cavaleiro (guerreiro) e o clérigo (letrado). Em sentido
diverso, o binómio das armas e das letras instituiuse como opção entre os filhos dos nobres, situação
decorrente do próprio direito sucessório, cabendo
aos primogénitos assumir cargos políticos
(associados, naquele tempo, ao poder armado),
embora os segundos filhos normalmente fossem
também armados cavaleiros, posto que instruídos
na oratória e nas letras em geral2. Este modelo
educativo ajustava-se, naturalmente, ao modelo social propugnado para a aristocracia, o qual virá a ter
longa vida, prolongando-se até ao século XIX,
enquanto modelo social.
A nobilitação da cultura, nas cortes dos nossos
primeiros monarcas, que a par da arte da guerra
define a compleição do nobre medieval, está patente
na Instituição Universitária, como é atestado pelos
Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1309, sob
a égide de D. Dinis, nos quais pontifica a ideia de
que o fortalecimento do poder real decorre não
apenas das armas mas igualmente da cultura letrada,
nomeadamente das leis e da justiça.
Durante o século XIV, com o movimento político
e social desencadeado pela crise dinástica de 138385 e pela revolução que levou ao trono D. João I, se
vai afirmando, no seio da burguesia, o direito de
cidadania fundamentado na Lei. A afirmação desse
direito vê-se nomeadamente nas Cortes de Coimbra,
em 1385, onde João das Regras (e outros doutores
da lei pertencentes ao Conselho do Mestre de Aviz,
como João Afonso da Azambuja, Gil d' Ossém e
MartimAfonso) procedem à legitimação do Mestre,
enquanto monarca, através do Direito Canónico.
Gera-se nova tensão social, que opõe a velha
aristocracia à burguesia, em que se incluem os
letrados, magistrados e judeus, frequentemente
letrados, que tomaram o partido de D. Leonor Teles
e de Castela, em 1383-85, contra o povo das cidades
e vilas de Portugal, o que contribuiria para a
generalização de um menosprezo pelas letras. A
burguesia identificar-se-á progressivamente com os
valores do Humanismo, em que os dois termos do
binómio “armas e letras” se compatibilizam.
D. João I constitui um exemplo de rei cavaleiro
(dado às letras apenas no final da sua vida). Serão
sobretudo seus filhos − a Ínclita Geração −
especialmente D. Pedro das Sete Partidas e o futuro
33
É, porém, no Renascimento dos séculos XV e
XVI, pela reabilitação da Cultura Clássica que então
ocorreu, que o binómio das “letras e das armas”
ganha renovada expressão, sob a inspiração de
autores do Humanismo italiano, tendo assumido
igualmente grande dimensão na Espanha dos
séculos XVI e XVII. É todavia sob a pena do poeta
maior do Renascimento − Camões − que o tópico
literário ganha expressão mais sublimada. O
conhecido verso de Os Lusíadas “Numa mão
sempre a espada e noutra a pena” (Canto VII, est.79)
condensa-o admiravelmente, ao mesmo tempo que
aponta uma vertente experiencial. Leia-se a estrofe
referida, em que o poeta vem referindo-se às ninfas
do Tejo:
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos mavórcios inumanos,
Qual Cánace que à morte se condena,
Numa mão sempre a espada e noutra a pena.
Foto: arquivo JE
rei D. Duarte, autor de uma obra célebre, O Leal
Conselheiro, que constituirão exemplos acabados
do nobre sapiente e guerreiro.
Todavia, após o desastre militar de Alfarrobeira
(1449) e a morte do Conde D. Pedro, assistir-se-á a
uma reafirmação social da aristocracia terratenente,
tendência acompanhada por uma estratificação
mais rígida da sociedade, levando a uma nova cisão
entre a cultura letrada e o poder militar. Por outro
lado, a cisão opera-se também com a cultura
religiosa, cuja visão subordina os feitos
cavaleirescos a uma ordem de valores espirituais.
Com a política africana de D. Afonso V (143881) reemerge a aristocracia feudal e seus valores
castrenses, os quais se associam, de um modo geral,
uma secundarização da cultura letrada face ao
mérito militar do “cavaleiro”. Todavia prevalece a
consciência de que o poder político e militar deve
ser sustentado, inclusivamente, no valor das leis.
Nas Ordenações Afonsinas consta assim que “todo
o poderio e conservaçom da República (…)
proced[e] da raiz e virtude de duas cousas, a saber,
Armas e Leyx”. (Livro I, art.2, tomo I, Coimbra, 1792,
p. 3, apud Luís de Sousa Rebelo, op. cit., p. 205).
D. João I constitui um exemplo de rei cavaleiro. Serão
sobretudo seus filhos - a Ínclita Geração - que constituirão
exemplos acabados do nobre sapiente e guerreiro.
deixando transparecer certa nota dissonante
relativamente ao pouco apreço em que eram tidas
as Letras. O poeta propugna um ideal de herói
esclarecido, remetendo, por exemplo, para César,
nas estrofes 96-99 do Canto V:
Vai César subjugando toda a França,
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas numa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança,
É nas comédias grande experiência.
LiaAlexandro e Homero, de maneira
Que sempre se lhe soube à cabeceira.
Canto V, 96
Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da lácia, grega ou bárbara nação,
Senão da portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e a rima,
Porque quem não sabe a arte, não na estima
Canto V, 97
Canto VII, est 79
O tópico das “letras” e das “armas”, reflectindo,
em Camões, um ideal de conciliação entre o saber e
a acção, apresenta, por vezes, matizes diferentes,
34
Camões evoca, nestes versos, a querela que
opôs o pensamento político de Cícero ao de César
(o primeiro dos quais sobreleva um ideal de
cidadania à acção política imposta pelas armas ante
Foto:http\\commons.wikimedia
Foto:http\\commons.wikimedia
Camões consuma assim ele mesmo o ideal de congruência
entre as armas e as letras
as grandes questões nacionais), defendendo um
ideal de civilidade. A esta linha de pensamento
opõe-se a de César cuja acção e ideologia política
assentam no militarismo. Porém, no político e chefe
militar que foi César, a acção guerreira não é
incompatível com o culto das letras, como nos diz
Camões. Já quanto a Cícero, uma das suas mais
célebres obras é Pro Arquia (Em defesa do poeta
Arquias), a qual relata o caso que o levou aos
tribunais em defesa do poeta que pretendia a
concessão de cidadania romana, sustentado no
merecimento que as Letras lhe concediam, ao
perpetuar os grandes feitos da cidade de Roma.
Alexandre Magno é também, naqueles versos,
exemplo do chefe militar que durante as campanhas
se cultiva nas Letras e na História, diverso do
português, afeito às armas mas avesso às Letras.
Camões, na sua obra épica, faz a apologia dos
grandes feitos de armas dos Portugueses, ao
mesmo tempo que lança uma invectiva aos seus
contemporâneos para que cultivem as Letras e exalta
o valor da razão e da ciência, a par do valor militar.
Ele próprio foi soldado e tomou armas pela sua
Pátria, sublimando-a pela Literatura e elevando os
feitos humanos à categoria de heroísmo.
Camões definir-se-á numa cultura de “saber de
experiências feito”, ante D. Sebastião, a quem dedica
o poema épico, auto-representando-se como poeta
e como militar e construindo o seu próprio modelo
de herói, como é definido na estrofe 155 do Canto
X: “Pera servir-vos braço às armas feito;/ Pera
cantar-vos mente às Musas dada”. Camões
consuma assim ele mesmo o ideal de congruência
entre as armas e as letras, porém de modo complexo,
já que o mesmo tópico é repensado noutros lugares
da sua obra. À assunção de um ideal cívico e de um
modelo humano de completude, haurido na
formação humanística e militar, contraporá o
desprezo pelas Letras que era constante entre os
seus contemporâneos, o que constitui a negação
daquele ideal cívico-militar. À constatação desse
facto, a sensibilidade poética de Camões associará
alguns temas recorrentes na sua obra, como o do
desengano, do desconcerto do mundo e da
vacuidade das acções humanas, ou o tema clássico
do tempus fugit, da fugacidade do Tempo e da vida.
Veja-se a amarga visão veiculada nas “Oitavas
sobre o desconcerto do Mundo”, na célebre
“Canção X”, e em Os Lusíadas:
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
Canto I, 106
35
Noutro lugar do Poema, expressa a visão
desencantada de poeta cuja musa se encontra exaurida
e não logra alcançar o entendimento dos seus
contemporâneos, que desprezam o canto e a poesia.
Assim sucede quase no fecho do poema, no Canto X:
presente ainda hoje no imaginário português.
Na ascendência de sentido do binómio “armas e
letras” está o da sapientia et fortitudo (do saber e da
força), com expressão, na Idade Média e no
Renascimento, tendo inspirado o ideal do rei ilustrado,
que se propagou por toda a Europa, sobretudo nos
séculos XVII e XVIII.A figura do rei ilustrado conjuga
a faceta bélica com a sapiência das artes e das letras
repercutindo num ideal de vida cortesã.
Para além de Camões, em Os Lusíadas, 1572, na
sua obra lírica, e na poesia de Sá de Miranda, o
tópico das “armas” e das “letras” vai ser glosado,
na pena de humanistas como Garcia de Resende
(Cancioneiro Geral, 1574), Diogo de Teive, Diogo
do Couto (O Soldado Prático, 1612), João de Barros
(Ásia, 1552), Fernão Lopes de Castanheda (História
do Descobrimento e Conquista da Índia pelos
Portugueses, 1551), Pero de Andrade Caminha,
António Ferreira, Jacinto Freire de Andrade (Vida
de D. João de Castro, 1651), etc., associado a um
compromisso cívico e a um ideal de “humanismo
militante” (Sousa Rebelo, op cit, p. 212), de que
ressai a união entre pensamento e acção. Neste
último plano, se inscreve a guerra, que era
justificada, no plano da conquista e da manutenção
de um vasto Império, como também justificada pela
Literatura e por ela sublimada.
No plano político, assistir-se-á a uma
centralização do poder régio, já a partir do reinado
de D. João II (1481-1495), que retirou privilégios à
nobreza, política continuada no reinado de D.
Manuel I (1495-1521), acompanhada de um
ressentimento contra a cultura humanista de
letrados e judeus. Porém, um outro factor estratégico
Não mais Musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho,
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Du?a austera, apagada e vil tristeza.
Canto X, est. 145
36
Nessa época floresce um movimento cultural e uma literatura
que exaltam a aliança do ideal de cavalaria com a acção
nobilitante da cultura
Foto:http\\commons.wikimedia
A oposição entre os dois termos do binómio −
“armas e letras” − decorre assim, ao olhar do
humanista que foi Camões, de condicionantes
sociais, impondo-se, pela própria Reconquista e,
depois, pela aventura marítima, a figura do
“cavaleiro” ou do “guerreiro”, cuja missão prioritária
era a de defesa do território. Camões personificando
um ideal de Humanismo renascentista, incarna o
duplo perfil − o de cavaleiro, ou soldado, e o de
letrado. A sua biografia e a sua obra reflectem essa
dupla matriz da sua formação e do seu percurso
existencial, corporizando ele o perfil de poeta errante
por mar e por terra, lugares do recontro e da guerra
e também da viagem e do conhecimento.
Se se vem desmistificando a ideia de que a Idade
Média seria uma época de trevas (por contraposição
ao Renascimento e depois ao Iluminismo), a
recuperação e dignificação da Cultura dos primeiros
séculos da nossa existência opera um reajustamento
da imagem de Portugal e dos portugueses, no
encontro com algumas das suas principais matrizes
culturais. A recuperação da cultura medieval vem
demonstrar que a figura do cavaleiro não é
incompatível com a do letrado. Aliás, nessa época
floresce um movimento cultural e uma literatura que
exaltam a aliança das letras com as armas, do ideal
de cavalaria com a acção nobilitante da cultura.
Por outro lado, a acção evangelizadora
inspirada no ideal de Cruzada, a concepção do
Estado e do Direito, como inspiração divina, durante a Idade Média, e a tensão social gerada pela
existência dos cristãos-novos, grupo do qual saíam
muitas vezes os letrados, levaram à prevalência de
um ideal guerreiro, em detrimento de uma cultura
baseada no conhecimento livresco, o que irá
prolongar-se até ao Renascimento. Esta entrada
tardia da cultura humanista entre nós coexiste com
a pervivência do antigo espírito de cavalaria, tão
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No reinado de D. João III tem lugar uma reforma cultural,
no âmbito da qual é revalorizado o estudo das Humanidades
levou à valorização das acções guerreiras e de uma
cultura marcadamente militar no reinado de D.
Manuel I, “O Venturoso” − as conquistas ultramarinas antes e depois da Descoberta do Caminho
Marítimo para a Índia, a acção bélica e, sobretudo,
de fixação dos portugueses nos territórios descobertos. O antigo papel do nobre conquistador volta
à boca de cena, privilegiando-se, na sua formação,
o adestramento na arte da guerra, em detrimento da
formação literária, embora o rei nunca haja
descurado a importância desta formação na
educação dos nobres.
D. Manuel e, sobretudo, D. João III (1521-1557)
vão preocupar-se especialmente com a formação
de fidalgos e com a criação de uma elite intelectual
que servisse os interesses da Coroa e do Estado,
ao mesmo tempo que se tentava dirimir conflitos e
oposições de ordem social, chamando à Corte quer
fidalgos quer burgueses formados na Universidade
de Coimbra. Importante, neste contexto, foi a
Reforma Joanina de 1537, que introduziu alterações
no currículo de estudos. Está a constituir-se uma
incipiente classe política oriunda da burguesia e da
aristocracia, tendo na Universidade um esteio de
formação para os altos cargos do Estado, ao mesmo
tempo que se estrutura um novo paradigma social,
segundo o qual o direito conferido pela linhagem
não é requisito suficiente para o exercício de
funções, devendo ser complementado pela
formação universitária.
As reformas na Universidade concretizaram uma
abertura intelectual, vindo alimentar a Coroa, que
passa a estar dotada de uma classe de letrados
altamente qualificados e de um alto clero afecto já
aos ideais humanistas. Todavia, o clima de relativa
abertura intelectual, em que os ideais humanistas
se plasmam numa Literatura e numa Cultura
fecundas e originais, é logo coarctado pelo Concílio
de Trento (1545-65), pela Contra-Reforma e pela
acção da Inquisição, cerceadora do Saber e da
Liberdade.
No reinado de D. João III, “o tópico das armas e
das letras atinge a sua consumação ideológica,
passando a ser copiosamente glosado, em
contextos diversos, e integrado num ideal de
Humanismo Cívico.” (id.,p. 208). A formação
humanística é então essencial aos conselheiros do
Rei, associando-se ao binómio das “letras” e das
“artes” o do “saber de experiências feito”, glosado
por Camões. De facto, no reinado de D. João III tem
lugar uma reforma cultural, no âmbito da qual é
revalorizado o estudo das Humanidades, em que
as artes e as letras são valorizadas pelo conhecimento que facultam ao Homem sobre si mesmo e
sobre a sociedade e o Estado, devendo estar
presentes no espírito daqueles que o governam. O
Saber assume mesmo uma expressão de liberdade,
porquanto ao homem livre deve assistir um espírito
de sabedoria. Essa mesma concepção está presente
num texto do humanista Diogo de Teive, a Oratio
in laudem Ioannis tertii (Oração em louvor de João
III), publicado aquando da inauguração do Colégio
dasArtes, em 1548, na qual se defende que as artes
proporcionam ao Homem o conhecimento
propiciador da liberdade, e propugna um ideal de
liberdade cívica, aplicável ao conselho régio e
extensível ao próprio poder local, na administração
das cidades do reino, estando esta, tal como o poder
judicial, tutelada pelo Soberano.
Recupera-se também, na cultura humanista, o
valor da memória e da escrita, como inscrição
perene de feitos e personagens memoráveis. A
obra escrita equipara-se, em valor, às obras
empreendidas pelos descobridores e construtores
do império, sendo o papel do escritor complementar
ao do militar, ao equiparar-se a cultura ao valor
dos feitos bélicos.
Mais tarde, durante a dinastia filipina e, com a
monarquia dual (1580-1640), alteram-se os padrões
sócio-culturais no nosso País, ressurgindo um
sentido agudo de patriotismo, se bem que a sua
consciencialização seja mais tardia e assuma
expressão em torno do movimento dos Restauradores, com forte adesão popular. O tema das
“armas” e das “letras” adquire renovado sentido
37
ao serviço de uma causa cívica, à semelhança da
que mobilizou as massas populares em 1383-85. E
de novo se instaura também a cisão entre um
conceito de acção militante e um modelo
contemplativo de existência, conforme com a cultura
letrada. A aristocracia terratenente e guerreira volta
a assumir supremacia durante o império filipino,
cujas possessões Portugal integrava. Dois
intelectuais de renome fazem eco, na sua obra, do
ideal das “armas” e das “letras” − D. Francisco
Manuel de Melo e o Padre António Vieira. Ambos
propugnam a aliança entre o pensamento e a acção
− D. Francisco como militar e letrado; o padre
António Vieira como exímio orador, missionário, e
diplomata. Ambos experienciam igualmente a
viagem, a militância e diversas formas de provação,
tendo a pena como instrumento de acção cívica.
Num outro autor de Seiscentos, Francisco
Rodrigues Lobo, vamos encontrar a inscrição do
tópico literário, que é expressão de um ideário
cultural, numa obra intitulada Corte na Aldeia, de
1619, em que surge a figura do “perfeito cortesão”,
aliando as duas vertentes, de letrado e cavaleiro.
Ambas revestem um ideal cortesão próprio de um
estrato aristocrático e influenciado por modelos
estrangeiros políticos e estético-literários,
transmutados num ideal cívico tipicamente nacional
que naturalmente sofreu modificações durante o
período filipino. A esse ideal está associada a
promoção a que aspira o fidalgo de província, com
pretensões a um lugar na Corte. Se o nascimento e
o estado de nobreza eram condição sine qua non
dessa promoção social, a cultura e a experiência de
Corte permitem essa ascensão.
A carreira das armas e/ou das letras passará a
ser não apenas apanágio da nobreza de sangue − a
ela terá acesso a burguesia letrada, frequentadora
das academias e universidades. Delineia-se assim
um ideal social tendente a encarar as letras como
mais-valia para o acesso à Corte e a funções de
conselho a ela adstritas, ao mesmo tempo que se
assiste a um declínio das funções sociais da velha
nobreza, que tradicionalmente se afirma pelo poder
das armas, e a uma ascensão social da burguesia. A
par do fidalgo guerreiro começa, por outro lado, a
afirmar-se uma aristocracia com ambição política,
na esfera da Corte, que deseja interferir
efectivamente no governo da Nação, obnubilando
a antiga aristocracia de espada.
No século XVII ressuma, pois, de novo o tema
das “armas” e das “letras”, integrado num renovado
ideal cívico, por vezes com novas expressões como
o binómio entre a “força” e o “entendimento”,
correspondendo a prevalência de cada um dos
termos a diferentes períodos e contextos da nossa
38
História. Assim, enquanto os primeiros reis se
sustentaram no poder armado, a Razão ganha
espaço em períodos mais tardios, quando o Rei
recebe por direito de herança a Coroa, governando
com auxílio de um conselho de homens sapientes e
doutos, com uma formação humana, integral, sejam
letrados ou legistas. Ao cavaleiro sucede o letrado e
o cortesão, formado num ideal de civilidade.
Este novo ideal social será fulcral na própria
legitimação da independência nacional após 1640,
porquanto “o problema da sucessão da Coroa
Portuguesa é encarado aí como um conflito entre o
Entendimento e a Força” (id., p. 233). Digladiam-se
aí duas forças, a primeiras das quais assiste a D.
Catarina de Bragança, enquanto a “Força” é o
sustentáculo de Filipe II (1556-1598), na visão
veiculada por Rodrigues Lobo.Assim, foi pelo poder
das armas que o Duque de Alba invadiu Portugal,
em nome de Filipe. No discurso do poeta e na mente
dos conspiradores que fizeram a Restauração, tal
acto rompeu o equilíbrio entre as “letras” e as “armas”,
estas sinónimo da repressão que esmaga o País sob
o domínio filipino. As “armas” serão reabilitadas,
sim, mas no contexto da luta contra Castela. Às
“armas” associa-se inegavelmente um dever de
cidadania e um ideal de luta pela liberdade e
independência, ao passo que as letras legitimam esse
mesmo ideal e sublimam a acção.
A Restauração, não sendo uma revolução popular na sua origem, transforma-se num movimento
que conglomera os diversos estratos sociais (com
excepção de uma facção clerical e aristocrática
afecta a Castela) unidos por um sentido de
nacionalidade com forte enraizamento nas classes
populares. Também este movimento conspirativo é
exemplo de uma aliança das “letras” com as “armas”,
pois a elite dos ilustrados é quem planeia e, numa
primeira instância, executa a acção revolucionária,
estando ambos os termos − “letras e armas” − ao
serviço de uma causa cívica.
Como por uma lógica de vitalidade/retrocesso,
o tópico das “armas” e das “letras” conhecerá uma
erosão durante o Século das Luzes, em que a
revolução científica e intelectual é acompanhada
da centralização do poder régio baseada no
conceito de despotismo esclarecido. O tópico
conhece então uma deriva de sentidos, recaindo
em mera figura retórica (por exemplo, na obra de
Filinto Elísio) e sendo mesmo glosado em termos
parodísticos numa obra de António José da Silva,
intitulada Vida do Grande Dom Quixote de la
Mancha e do Gordo Sancho Pança, de 1733.
Será já no período liberal, sobretudo no contexto
da Revolução de 1820, que o binómio das “armas” e
das “letras” ganha novas acepções, enriquecendo-
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A Restauraçãode é exemplo de uma aliança das “letras”
com as “armas”, pois a elite dos ilustrados é quem planeia
e, numa primeira instância, executa a acção revolucionária
se com novo fundo ideológico. Coexistirá então com
o tópico literário que advém de uma longa tradição
nacional, a par das novas categorias sociais surgidas
no devir histórico. A geração liberal que faz a
Revolução de 1820 é uma geração de intelectuais
que pega em armas, conjugando harmoniosamente
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No plano político afirmar-se-á, ao longo dos séculos XIX e
XX, uma tendência para a intervenção cívica cada vez mais
alargada do intelectual na vida pública, de que constitui
sumo exemplo a célebre Geração de 70
a “pena” e a “espada”. E que melhor exemplo do que
o de Almeida Garrett, o poeta profundamente
envolvido nas lutas liberais, munido das palavras e
das armas, e um dos chamados “bravos do Mindelo”,
desembarcados naquela praia nortenha e terçando
armas por D. Pedro?
Os fundamentos ideológicos da sua geração e
as categorias da acção que acompanham o ideal
liberal encontram-se espelhados na sua obra e nas
suas personagens, nomeadamente em Viagens na
Minha Terra, Frei Luís de Sousa e Catão (1821).
Relembre-se a personagem de Carlos das Viagens,
que assume o duplo papel de letrado e de combatente
liberal, vivendo uma espécie de dilaceramento interior
e acabando por assumir a sua veia aristocrática,
convertendo-se em barão. E também a personagem
de Frei Dinis, que antes de professar, pegara em armas
e seguira depois a carreira das letras. Tanto nas
Viagens como em Frei Luís de Sousa conciliam-se
as figuras do intelectual com o guerreiro ao serviço
da causa liberal. No Frei Luís de Sousa há lugar a
uma fina análise social, em que se expõe a dicotomia
entre o nobre letrado (personificado por Manuel de
Sousa Coutinho), representante da nobreza culta,
que assume cargos políticos, e a velha aristocracia,
de sangue e espada, cristalizada em torno do antigo
sonho africano, aguardando o regresso de um
Portugal morto em Alcácer Quibir, personificada
naquela obra por D. João de Portugal (e também por
Telmo e Maria). Em Catão, a analogia com o Império
Romano coloca em choque duas personagens e duas
ideologias − César, personificando o poder tirânico
da força sobre a razão e o ideal cívico, e Catão,
corporizando o valor da racionalidade ao serviço da
urbe. No limite, é a dicotomia entre a força irracional
e a razão que aqui é equacionada.
A dicotomia entre as duas ordens de valores - a
razão vs. o poder assente na força complexifica-se
no Portugal oitocentista, enquanto problemática
social, política e cultural. Delineia-se, por um lado,
uma tensão entre o foro psicológico, individual (em
que a problemática existencial efectivamente se
coloca) e o foro colectivo; por outro lado, a dicotomia
entre a permanência própria da tradição e o devir
histórico. Apesar da complexidade crescente desta
problemática, continua a verificar-se um equilíbrio
entre as “armas” e as “letras”, transitando o tópico
do campo literário para o da filosofia política.
A tradição cultural em que se enxerta o tópico
das “armas” e das “letras” conhecerá novos e diversificados afloramentos em obras da contemporaneidade. Igualmente no plano político afirmar-se-á,
ao longo dos séculos XIX e XX, uma tendência para
a intervenção cívica cada vez mais alargada do
intelectual na vida pública, de que constitui sumo
39
exemplo a célebre Geração de 70 do século XIX, que
reuniu nomes como os deAntero de Quental, Eça de
Queirós, Fialho d'Almeida, Ramalho Ortigão, entre
tantos outros ilustres. Na base do seu ideário político
estão as ideais liberais, cada vez mais identificadas,
junto ao final do século, com a República e, no plano
filosófico, com um existencialismo que
complexamente coexiste, na obra de Antero por
exemplo, com um elevado sentido de imanência.
Já em pleno século XX, a temática das “armas” e
das “letras” volta a ganhar fôlego, no âmbito da
corrente estético-literária e ideológica designada por
Neo-Realismo, nos anos 30 e 40, que propugna o
empenhamento político do intelectual e do artista,
na qual se inscrevem nomes como Alves Redol, Soeiro
Pereira Gomes, Branquinho da Fonseca, Manuel da
Fonseca, Fernando Namora, entre muitos outros. Na
literatura destes autores, quase se pode dizer que se
interconvertem ambos os termos, uma vez que as
“letras” estão ao serviço de uma causa cívica,
política, marcada por forte sentido de empenhamento
e aliada a um sentido de combate que passa do plano
metafórico ao mais pragmático e “realista”. A posição
ideológica assumida pela maioria destes escritores
será influenciada pela filosofia existencialista que tem
em Jean-Paul Sartre o principal arauto. Durante o
chamado primeiro Neo-Realismo (até à década de 50
do século XX), o empenhamento social do escritor
adquire expressão mais vinculativa, deixando
pressupor em alguma literatura e em algum cinema
uma supremacia das “armas” sobre as “letras”, sendo
que o primeiro termo do binómio condensa um teor
semântico que se expande a diversas áreas de
intervenção, fundamentalmente ao campo social e
político. Se o tópico das “armas” e das “letras”
ganha, nesse contexto, pleno acolhimento, na Cultura
e na Literatura portuguesas, a partir da segunda
metade do século XX aufere novos aprofundamentos temáticos e discursivos, pelo investimento
imagético e expansão semântica de ambos os termos
e, bem assim, pela transmutação metafórica dos dois
termos − “armas” e “letras”.
Leia-se um interessante soneto de Manuel
Alegre, intitulado “A foice e a pena”, que joga com a
antítese entre os dois termos − “armas” e “letras” −
mas numa variante semântica, apontando o sentido
de intervenção social e literária, mantendo embora a
tensão de significados:
A foice e a pena
Com outra que não pena arma trabalhas.
Se é minha a pena é tua a foice. Mas
se acaso são diferentes nossas armas
as penas são as mesmas e as batalhas.
40
Eu ceifo com a pena ervas daninhas
e a mentira que a todos envenena.
E tu ceifando penas essa pena
Que fraterna se junta às penas minhas.
Onde tu ceifas eu ceifeiro sou
da tua dor ceifeira e dessas queixas
que dizes a ceifar e nunca ceifas.
Se já teu canto a foice te ceifou
canta ceifeira canta: a dor destrói-se
juntando a foice à pena e a pena à foice.
In O Canto e as Armas
Noutro contexto, mas no mesmo marco
temporal, as “armas” ressurgirão no cenário real do
combate, quando se trata de revitalizar a imagem
do “guerreiro”, por via das acções militares,
mormente na Guerra do Ultramar, de 1961 a 1974,
reescrevendo a letras de sangue o memorial oito
vezes secular de um povo guerreiro; mas também,
metaforicamente, plasmam-se num canto poético, a
diversas vozes, quando se trata de incutir a
determinada literatura o sentido de um simbólico
combate. As “letras” integrarão esse sentido, quer
pela nobilitação, através da escrita, de uma renovada
epopeia do Soldado Português; quer pela sua leitura
de sentido inverso, na chamada “literatura de
resistência”, que reescreve uma espécie de antiepopeia, a que antevê o fim do Império e denuncia
a face terrífica da guerra, não deixando de
evidenciar, em muitos casos, os traços de grandeza
da acção verdadeiramente épica corporizada pelos
militares nos longínquos cenários bélicos, em
África. Em qualquer das vertentes interpretativas,
trata-se de uma saga muitas vezes experienciada
em primeira pessoa e transcrita para as páginas da
Literatura, e de uma renovada interpretação do
tópico das “armas” e das “letras”. Neste contexto,
as armas acenderam-se em canto poético e as letras
adquiriram o poder real e simbólico de um combate,
travado ora com a pena ora com a espada, nas mãos
daqueles que nos diversos sectores da sociedade
para ele foram mobilizados e reescreveram a epopeia
possível, nos cenários longínquos onde actuaram
os lusíadas do século XX.
É, porém, no culminar desta saga, com a
Revolução de 25 de Abril de 1974, que plenamente
se consuma e reemerge, no século XX português, o
binómio das “armas” e das “letras”. Reemerge na
acção e no discurso, na reabilitação da figura do
Militar, convocado para o cenário de uma nova gesta
colectiva conotada com a conquista da Liberdade.A
emergência do arquétipo do Militar, pela renovação
Foto:http\\commons.wikimedia
A Revolução dos Cravos convoca a memória da batalha, da
figura do combatente investido de uma responsabilidade
cívica e carreando os destinos de um povo
do seu papel e função social, teve então condições
para se adequar plenamente ao sentido de Nação e
do rumo histórico do seu povo, pois que enraizava
(como enraíza) profundamente no imaginário nacional
de um País cuja História, em quase 900 anos, é
indissociável da História militar. E não faltam, na
Revolução de Abril, alguns dos caracteres que, no
plano simbólico, a elevam (e aos seus mentores) à
categoria épica das grandes acções da História (e
sua vertente mítica). Nela encontramos, segundo as
categorias estabelecidas por Wolfgang Kayser3 para
a caracterização da epopeia e, para só enunciar
algumas, uma grandiosa acção colectiva, isto é, um
feito que se alarga a nível nacional e que interessa a
toda a comunidade; um herói colectivo − o Povo
Português− quando sai às ruas em defesa desse feito;
a individualização de personalidades, isto é a criação
do herói individual (e temos diversos exemplos) que,
pelas suas características (destreza, bravura,
capacidade de comando, etc.), se distingue e em breve
cristaliza no imaginário popular como ser de índole
sobre-humana; até mesmo o período de tempo em
que a acção é espoletada, o qual não durou mais de
24 horas (estamos, naturalmente a falar do golpe de
Estado e não do processo revolucionário em si).
Antes de passar à escrita, à crónica ou aos livros
de História, a epopeia potencialmente consubstanciada pela Revolução dos Cravos, pelas acções
de recorte épico desencadeadas na madrugada de
25 de Abril ganharam desde logo uma projecção
colectiva de dimensão histórica, que vai enraizar
simultaneamente em arquétipos míticos da nossa
cultura. Nela se inscreve a figura mítica do “salvador
da Pátria”, cristalizado em torno da figura do Militar
(ancestralmente ligado, no nosso imaginário, à
conquista e defesa do território de seus inimigos
reais ou imaginários), imbuído num ideal de civilidade,
que se traduz na mudança de um estado de coisas,
neste caso na restituição da Liberdade, numa
dimensão quase redentora. E este modelo de herói,
que do real transita rapidamente para o imaginário
da população, está bastante próximo do herói
camoniano, pois também agora se trata da defesa de
um ethos colectivo, guerreiro. Coexistem nele
aspectos de tradição e modernidade − é a epopeia
verídica, com homens de carne e osso, que rodeiam
as chaimites e clamam vitória; mas são também a
memória e o imaginário social ligados, ainda que
remotamente, ao ideal heróico do cavaleiro medieval
(da estirpe de um Álvaro Pais, quando brada ao povo
de Lisboa por D. João, mestre de Avis, futuro D.
João I, quando este defronta o conde Andeiro, no
Paço de LeonorTeles). Esta dimensão épica emoldura
os eventos e as personagens, sendo o individual
subsumido pelo social, ao projectar-se o herói (Povo)
paradigma de uma nação.
Se a Revolução corresponde à emergência de
um paradigma de que ressalta o valor das “armas”,
também no plano simbólico ele se articula com as
“letras”, não só do ponto de vista da eficácia da
palavra, como sobretudo pela presença de um
elemento insólito (mesmo se fruto do acaso), com
elevada carga imagética − os cravos que
simbolicamente despontam do cano das armas,
anulando a sua funcionalidade mais imediata (a acção
armada) para a substituir semanticamente pelo seu
oposto (a pacificidade). Do ponto de vista da
simbologia que prevaleceu, a imagem está muito
próxima do fantástico (de que temos vários exemplos
na nossa História, a começar na transmutação do
pão em rosas, ao tempo da Rainha Santa). Por uma
inversão da lógica do real empírico, é a metáfora que
surge em primeiro lugar, a suscitar uma leitura do
real. A Revolução dos Cravos convoca, assim, no
nosso imaginário recente, a memória da batalha, da
figura do combatente investido de uma responsabilidade cívica e carreando os destinos de um povo,
numa grande acção conjunta, inspirada num qualquer
ideal e perpetrada no teatro das grandes acções da
História, conjugando harmoniosamente as “armas”
e as “letras” (enquanto doutrinação e ideário) ou, no
caso vertente, as “armas” e os “cravos”, versão
actualizada (e lírica) daquele binómio. JE
1
«Armas e Letras. Um tópico do Humanismo Clássico»,
in A tradição clássica na Literatura Portuguesa, Lisboa,
Livros Horizonte, pp. 195-240.
2
A esses filhos segundos, quando não enveredavam pela
vida religiosa, era muitas vezes destinado um papel
perfeitamente secundário, que os lançava à conquista de
terras e de glórias mediante feitos de armas, ao serviço de
grandes senhores.
3
In Análise e Interpretação da Obra Literária.
41
Miguel Silva Machado
«O Sr. Ministro (do Exército) quiz saber se não
estaria em condições de fabricar em Portugal, uma
viatura semelhante (à V-100 “Commando” da firma
americana “Cadillac-Gage”).
…
O Sr. Ministro prometeu, caso aceitasse a
proposta, pôr à minha disposição os Estabelecimentos Fabris do Exército, ou outros que
escolhesse».
Major de Infantaria (Ref) João Batista de Souza
Donas-Bôtto*
Necessidades operacionais
em África
A
ssim nasceu, segundo o seu criador, o que
viria a ser o primeiro veículo blindado
produzido em série em Portugal.
Esta V-100 tinha sido escolhida para suprir a
necessidade crescente de uma viatura blindada de
transporte de pessoal, de rodas, moderna, que se
fazia sentir nos teatros de operações em África. O
42
material em serviço era de concepção ultrapassada,
muito usado e estava-se à beira da rotura em alguns
equipamentos. Mas nem tudo era mau, os militares
estavam satisfeitos com o desempenho das AML
Panhard, mas faltavam-lhes outras gamas de
veículos blindados, nomeadamente de transporte
de pessoal. Já então a necessidade de protecção
do pessoal – contra minas, flagelações, engenhos
explosivos improvisados –, tão em voga nas actuais
“operações de paz” e com acrónimos diversos
popularizados pelos media, era uma preocupação
dos comandantes no terreno.
Em Julho de 1966 o Chefe do Estado-Maior do
Exército, General Luís Maria da Câmara Pina, envia
uma mensagem «secreto» aos comandantes
militares de Angola, Moçambique e Guiné, a
informar que “Apareceu disponibilidade financeira aquisição autometralhadoras AML ou
viaturas blindadas transporte pessoal. A fim
fundamentar propostas agradecia indicasse
prioridade que em seu critério julga estabelecerse para fins operacionais acerca daqueles
materiais podendo apenas adquirir um deles qual
conviria comprar primeiro.”(2 )
Depois do estudo e planeamento das aquisições
Capa do manual elaborado pela BRAVIA para os operadores
de Chaimite
de viaturas blindadas de transporte de pessoal, foi
feita proposta à tutela. Foram estabelecidos
contactos e terá sido mesmo firmado um contrato
preliminar com a fábrica fornecedora nos EUA.
Como aconteceu com outros equipamentos militares
nesta época, o governo americano não autorizou a
concretização do negócio, uma vez que Portugal
iria empenhar estes meios fora do âmbito NATO.
É então que o Ministro do Exército, Coronel
Joaquim da Luz Cunha, através de um colega de
curso, convoca para o seu gabinete o Major na
situação de Reforma Donas-Bôtto, ligado ao meio
empresarial e à venda de material militar, para uma
reunião onde faz a proposta que inicia este texto.
Após algumas reticências iniciais e depois de
contactos exploratórios com pessoas, militares e
civis, que viriam a colaborar no processo, dentro e
fora de Portugal, Donas-Bôtto aceita o desafio do
Ministro do Exército. É o inicio de uma fascinante
história, repleta de vicissitudes, de vitórias e
derrotas, que levarão o primeiro veículo blindado
produzido em série em Portugal a actuar em
condições das mais diferentes possíveis, nos mais
improváveis pontos do planeta. Ao serviço das
Forças Armadas Portuguesas mas também, como
veremos, de outras forças armadas e de segurança...
até à actualidade.
Chaimite
Pretendeu Donas-Bôtto, com a designação
dada, escreveu mais tarde, homenagear uma geração
de militares portugueses que haviam combatido em
África no final do século XIX: “…Admirei as
campanhas de Mousinho e dos seus companheiros, os majores Caldas Xavier, Paiva
Couceiro, Aires Ornelas...”. Passados anos dos
combates em Moçambique e nomeadamente em
Chaimite, o então Alferes Donas-Bôtto constatou
quando por lá andou no comando de uma brigada
de caça, foi “…auxiliado por régulos da região
de Maputo, feitos por Mousinho, tenentes de 2.ª
linha” devido “…ao respeito e consideração
(conseguidos pela geração de Mousinho),
extensivos até ao final da década de quarenta…”.
Servindo-se dos seus contactos nos EUA, onde
se desloca de imediato, no Brasil – onde aliás tinha
residência e interesses – e em Portugal, no meio
fabril, Donas-Bôtto cria as condições mínimas para
43
Gravura de Fernando Leitão mostrando as antigas OGME
em Belém, junto à Av. da Índia, hoje na posse do Ministério
da Cultura, onde existiu o “Pavilhão Chaimite” (na imagem
é o último telheiro à direita no meio da vegetação)
João Donas-Bôtto, na foto Cadete da Escola do Exército
em 1943, foi o criador do projecto “Chaimite” assim
denominado pela grande admiração que tinha pelas
campanhas portuguesas em Moçambique no sec-XIX
iniciar o projecto. Logo em Março de 1967 funda a
empresa “BRAVIA SARL, Sociedade LusoBrasileira de Viaturas e Equipamentos” e em breve
estão concluídos os planos de uma viatura
semelhante à V-100 “Commando”.
O primeiro protótipo da Chaimite foi
manufacturado nas Oficinas Gerais de Material de
Engenharia, em Belém, no então designado
«pavilhão Chaimite», com acompanhamento de um
engenheiro americano contratado, debaixo de
medidas de segurança apertadas e muito segredo.
Não só os tempos eram outros e os assuntos
militares não eram propriamente discutidos na praça
pública, como o país estava em guerra e mesmo
alguns dos tradicionais amigos de Portugal já o
não eram.
Constou mais tarde que este engenheiro, que
se fazia acompanhar por um operário especializado,
teria sido preso quando regressou aos EUA, visto
ter colaborado neste processo não oficial de
“transferência de tecnologia” para Portugal.
Este protótipo fica pronto e o Exército
encomenda 28 viaturas ainda em 1967. Apesar de
alguma desilusão – o fabricante naturalmente queria
vender mais – os cascos das Chaimites começam a
ser fabricados na SOREFAME (Sociedades
44
Reunidas de Fabricações Metálicas), que se
dedicava à construção de locomotivas e carruagens
para os caminhos-de-ferro. Seguia-se a montagem
que decorria nas OGME, disponibilizadas para o
efeito.
Mas o desenrolar da construção e montagem
não decorria com a celeridade desejada e face a
nova encomenda de 56 unidades para o Exército,
em 1968, agora garantida pelo Secretariado Geral
da Defesa Nacional e com a perspectiva de vendas
no mercado internacional, a BRAVIA procura
instalações próprias. Nesse sentido, compra a
totalidade do capital da “VM – Veículos
Motorizados, SARL”, no Porto Alto (Samora
Correia), firma que se dedicava ao fabrico de
veículos para fins industriais e agrícolas. A área
coberta é significativamente aumentada e criam-se
as condições para ali fabricar e montar as Chaimites.
No final de 1970 estavam recepcionadas pelo
Exército 18 viaturas V-200 Chaimite e reinava no
ramo alguma expectativa sobre a evolução do
desempenho operacional da viatura. Havia mesmo
debate interno sobre qual a melhor organização das
unidades que deveriam utilizar a V-200, muito
dependente dos resultados em campanha. “Julgase, no entanto, que embora as viaturas Chaimite
possam ser feitas no país, as questões levantadas
por Sua Ex.ª o Ministro da Defesa Nacional no
despacho transcrito em 4. ainda não estão
suficientemente esclarecidas, porquanto as
viaturas blindadas Chaimite ainda não foram
«testadas» em combate”(3 ), refere em documento
«secreto» o Chefe da Repartição do Gabinete do
CEME, General Manuel Nicolau deAbreu CastelloBranco, em Dezembro de 1970.
As questões a que o Ministro da Defesa
Nacional aludia no referido ponto 4. diziam
essencialmente respeito à opção entre adquirir mais
viaturas blindadas AML no estrangeiro, ou comprar
mais Chaimites nas versões armadas previstas em
catálogo pela BRAVIA. Colocava o Ministro a
questão de saber se as Chaimites, sendo muito mais
baratas, podiam efectivamente cumprir as missões
que as nossas tropas lhes destinariam; se estariam
fabricadas em tempo; se estaria assegurada a
manutenção.
Nesta altura ainda reinava uma grande incógnita
sobre a eventual normalização das viaturas
blindadas de rodas no Exército. Tal parecia ser o
desejo do Ministro da Defesa. No entanto, não
desejaria avançar para a solução Chaimite nas suas
diferentes versões e consequente retirada do material “AML Panhard” e “Fox”, sem primeiro ter a
garantia de que a viatura V-200 correspondia ao
desejado pelos utilizadores, as forças em campanha
nas três frentes de guerra anti-subversiva.
Emprego operacional
em África
No final do ano de 1970 as primeiras Chaimites
são enviadas para a Guiné para serem testadas na
guerra. Serão 4 na versão V-200 Auto Transporte
de Pessoal Blindado (designação comercial dada
pela BRAVIA), aquilo a que poderemos chamar a
versão base, e 1 Cadillac-Gage V-100 “Commando”.
Esta viatura, “made in USA”, que chegou a Portugal fruto dos contactos internacionais de DonasBôtto e da sua determinação, que para muitos que
o conheceram chegava a raiar o inimaginável, foi
equipada com uma torre e canhão de 90mm de
origem belga. No fundo era uma viatura de teste
que deveria dar origem à versão da ChaimiteV-400,
designada Carro de Combate Ligeiro pelo
fabricante. Como curiosidade note-se que este
canhão, depois de utilizado pontualmente na Guiné
e de ter regressado a Portugal, permaneceu na
BRAVIA até ao seu encerramento, mais de 20 anos
depois. As V-200 que rumaram à Guiné foram armadas com metralhadoras HK21 7,62mm que estavam
em serviço no Exército.
Segundo nos relata o Major de Cavalaria João
Luíz Mendes Paulo, num interessantíssimo livro
publicado em 2006(4 ), esta estreia da Chaimite não
correu do melhor modo. Testadas brevemente em
Alcochete antes da partida, pressionados pela
urgência das necessidades que se faziam sentir na
Guiné, vários defeitos foram detectados nas
viaturas, nomeadamente a nível do armamento.
Carlos de Sousa Azevedo,Alferes Miliciano de
Cavalaria que se encontrava na Guiné – na mesma
unidade de Mendes Paulo – e que fora nomeado
para frequentar o primeiro curso de Chaimite no
Regimento de Cavalaria 7 – a primeira unidade do
Exército que as recebeu –, reforça as avaliações do
Major: “As novas viaturas criaram-nos enormes
expectativas dado o estado lamentável em que se
encontrava o nosso material blindado na Guiné e
Os Dragões desfilam em Luanda com as suas Chaimites usando camuflagem idêntica às AML e às EBR (Foto Armindo
Antunes)
45
ainda a sua escassez. A primeira decepção ocorreu
com as metralhadoras HK 21. Não eram
claramente as armas para aquele tipo de suporte.
Concebidas para operar com bipé, «ao alto»,
mesmo com o adaptador que havia sido criado,
havia problemas.”
Note-se aliás que o próprio Donas-Bôtto
aconselhou o uso de outras metralhadoras que não
as HK21, e tanto assim foi que o primeiro manual
elaborado pela BRAVIA para aV-200 previa diversos
tipos de metralhadora de torre, mas não a HK21.
Os problemas encontrados e que tinham
resolução lá se foram tentando ultrapassar e as
viaturas permaneceram em serviço na Guiné até à
Independência. Em Março de 1974, na estrada
Bafatá – Nova Lamego, uma Chaimite foi atingida
por uma granada de RPG que incendeia a viatura e
causa 2 mortos.
Quanto à viatura com o canhão, continua Carlos
Azevedo, “era na realidade melhor que a Chaimite
mas também não a tivemos lá muito tempo. Ainda
foi empregue em algumas missões – foi usada na
reacção a uma emboscada com sucesso – mas em
breve regressou à BRAVIA. Apesar disso ficou-nos
a sensação que a arma quando abria fogo
destabilizava a viatura e dificultava a precisão
do tiro.”
De acordo com as encomendas nacionais feitas
à BRAVIA – 84 V-200 –, o EME faz um detalhado
estudo para a sua distribuição pelas unidades das
“Províncias Ultramarinas” e da “Metrópole”. No
entanto, poucas Chaimites acabam por chegar a
pisar solo africano.
Além das 4 que serviram na Guiné a partir de
1970, a Moçambique, ao porto da Beira chegaram 3
V-200 em finais de 1972. Estas viaturas estariam
destinadas, numa primeira fase, a reforçar a
capacidade portuguesa de proteger as chamadas
“cargas críticas” para Cabora Bassa. O entãoAlferes
Miliciano de Cavalaria Carlos Vieira, embora não as
tenha operado, recorda-se de as ver e fez-se mesmo
fotografar junto a uma em Vila Pery (actual Chimoio).
Em Angola, os “Dragões”, ou melhor, a sua
unidade em Luanda, recebem e operam 7 viaturas
V-200. As Chaimites ainda executam trabalho
operacional, quer nas escoltas aos movimentos
logísticos quer em operações autónomas, tendo
sido, segundo relatos de militares dos Dragões,
sujeitas a algumas flagelações, sem consequências.
Neste período, em Angola, a manutenção destas
viaturas não apresentou grandes problemas. “A
realidade é que muitas vezes exigia-se da viatura
mais do que aquilo para que ela fora prevista,
mas em termos de manutenção nunca tivemos
problemas, quer de fornecimento de sobressa46
Detalhe da torre com as duas HK 21. No período que se
seguiu ao PREC e antes das missões de paz, as Chaimites
foram empregues em instrução e exercícios, sobretudo em
unidades de cavalaria (Foto Centro de Audiovisuais do
Exército)
lentes, quer outros.” Diz-nos o Capitão SM na
reforma, Armindo Antunes, ao tempo Sargento
mecânico, chefe da oficina dos “Dragões” em
Luanda. Claro que algumas limitações da viatura
foram detectadas, mas nada que as impedisse de
cumprir as missões. A questão dos semi-eixos que
partiam quando sujeitos a grande esforço e das
embraiagens que se deterioravam, eram sem dúvida
os problemas mais frequentes.
Na altura do processo de descolonização as
viaturas foram empregues várias vezes em Luanda
em acções de manutenção da ordem pública e
estiveram operacionais até 10 de Novembro de 1975.
“Depois do último arriar da Bandeira Nacional
na fortaleza de S. Miguel, a coluna auto fortemente
armada, composta por pára-quedistas, fuzileiros
e todas as viaturas blindadas dos Dragões, dirigiuse para o porto de Luanda, viaturas completamente municiadas com as peças viradas para a
cidade”, recorda ainda hoje com emoção Armindo
Antunes, que havia feito toda a sua vida militar até
essa altura em Angola (1961 a 1975). Chegados ao
Porto houve que retirar milhares de munições das
viaturas, deixá-las no cais, embarcar as viaturas em
batelões e rumar ao “Uíge”, que estava ao largo.
Assim terminou, em 10 de Novembro de 1975, o
ciclo das Chaimites na antiga África Portuguesa.
25 de Abril
A participação das Chaimites no golpe militar
de 25 de Abril de 1974 irá proporcionar a maior
Em Santarém, no local onde Salgueiro Maia foi recebido
pela população da cidade no regresso do “25 de Abril de
1974”, está hoje este memorial que inclui uma V-200
Chaimite (Foto Miguel Machado)
exposição pública que esta viatura teve e, sem
dúvida, colocá-la na História de Portugal.
Curiosamente, poucos possivelmente se lembram
que as Chaimites começaram o 25 de Abril em ambos os “lados”. Lembra o então Alferes Miliciano
de Cavalaria Luís David e Silva, Comandante do
Esquadrão de Reconhecimento AML/VBL
(reduzido) do Regimento de Cavalaria 7, que no dia
do golpe saiu com dois dos seus três pelotões de
Chaimites e VBL em direcção ao Terreiro do Paço e
só ali, pelas 06h15, se junta a Salgueiro Maia:
“Todas as nossas viaturas blindadas estavam
completamente armadas e municiadas […] Nas
operações que fizemos nesses dias e nos meses
seguintes, integrados no Agrupamento November,
a Chaimite mostrou-se perfeitamente adequada
às necessidades…Os nomes atribuídos às viaturas
blindadas era um hábito da EPC, em Lisboa no
RC 7 não o fazíamos”.
Se até esta altura a viatura era uma ilustre
desconhecida, mesmo para a maioria dos militares
portugueses, agora vai saltar para as primeiras
páginas dos jornais e para as reportagens
televisivas de todo o mundo. A imagem das
Chaimites no dia do golpe – e note-se bem que a
coluna da EPC apenas incluía duas V-200 – “colouse” ainda à figura de um dos principais nomes da
revolta, Salgueiro Maia. A Chaimite da EPC,
alcunhada de “Bula”, no Largo do Carmo, em
Lisboa, a retirar o Presidente do Conselho de
Ministros, Marcelo Caetano, do Comando Geral da
GNR, no meio da multidão, ficou no imaginário
colectivo da Nação.
Estas viaturas passaram a ser figuras quase que
obrigatórias em qualquer livro, artigo ou
documentário cinematográfico sobre a história
recente de Portugal. Foram “actores” imprescindíveis em mais do que um filme, sendo o mais
conhecido, “Alvorada de Abril”, de Maria
Medeiros. Este filme, bem assim como um
documentário da televisão SIC, alusivo aos 30 anos
do 25 de Abril, nunca se realizariam sem o enorme
apoio do Exército que, além das viaturas – Chaimites
e outras –, empenhou muito pessoal especializado
nestes projectos.
De tal forma a viatura simboliza o chamado
“espírito do 25 de Abril” que a «Associação 25 de
Abril» opera hoje uma viatura Chaimite,
desmilitarizada, mas ostentando matrícula militar.
Habitualmente cabe-lhe encabeçar o desfile popular comemorativo desta data, na Avenida da
Liberdade, em Lisboa, tendo aos comandos, sempre,
o Sr. João Paralta, funcionário civil das OGME.
No memo sentido, a homenagem em forma de
monumento originalmente datada de 1999, da
cidade de Santarém ao “Capitão Salgueiro Maia, à
Escola Prática de Cavalaria e à Liberdade”. Nesta
cidade ribatejana, depois de algumas peripécias,
com mudanças de localização e até o armazenamento, foi reinaugurado em 2006 o monumento
onde sobressaem uma estátua de Salgueiro Maia e
uma viatura V-200.
Passados 35 anos destes acontecimentos,
muitos portugueses, até por força da idade, podem
não percepcionar esta notoriedade. Atente-se
assim, para a ilustrar melhor, como começava um
artigo sobre a Chaimite na revista do Automóvel
Clube de Portugal, de Janeiro/Fevereiro de 1975, onde
já aborda, por exemplo, a sua utilização intensa feita
pelos Comandos: “…tornou-se vulgar para os
automobilistas portugueses terem de ultrapassar
viaturas militares ou que dar prioridade a um
Chaimite vindo da direita. Mas que sabem afinal
os leitores acerca destes veículos concebidos para
a guerra, que passaram a ser presença habitual
nas ruas e estradas do País, nos écrans de televisão,
nos jornais, revistas e cartazes?”(5 )
47
Durante o denominado PREC (Processo
Revolucionário em Curso), as Chaimites vão
continuar a ser intensamente usadas em território
nacional. Sobretudo em missões ligadas à
manutenção de ordem pública e à participação nos
momentos mais tensos deste conturbado tempo: o
11 de Março e o 25 de Novembro. Adquire aqui
especial destaque a utilização feita, primeiro pelo
Batalhão de Comandos 11 e mais tarde pelo
Regimento de Comandos. Para a história da viatura
esta unidade contribui com variados e importantes
factos, dos quais aqui apenas se destaca um: Foi o
seu maior utilizador, com mais de 50 V-200 Chaimites
“à sua carga”!
Por esta altura também teve alguma expressão
pública a utilização feita pelo Regimento de
Artilharia de Lisboa, aqui mais pelo radicalismo
político das suas acções que pelo número de
viaturas utilizadas.
Mesmo que muito utilizadas, nem por isso
granjearam grandes adeptos nesta época. “As
viaturas Chaimite nunca me agradaram, tinha que
as utilizar mas a contragosto. Não davam
protecção ao pessoal, tinham fraco armamento e
impediam a saída rápida do pessoal a vantagem
que poderiam ter era a de meter medo! Quem as
via na rua assustava-se”, lembra o Capitão
Comando Sousa Gonçalves, que à frente da
Companhia de Comandos 121 teve um papel
determinante do 25 de Novembro de 1975.
Após a normalização da situação político-militar
no país, as Chaimites também “recolhem a quartéis”
e voltam a ser empenhadas nas habituais tarefas de
tempo de paz de qualquer Exército: Instrução e
exercícios.
É nesta fase que começam a ser mais evidentes
alguns problemas. Figueiredo Júnior, oficial de
manutenção no Regimento de Comandos durante
9 anos, recorda: “tínhamos que substituir
continuamente bloqueios e semieixos, fizemos
também algumas alterações nos travões,
artesanalmente nas oficinas do Regimento, para
melhorar o seu desempenho. Entre outros exemplos
lembro que os foles em borracha para os
servofreios esgotaram-se no mercado e fomos
obrigados a manufacturar, com cabedal, foles de
substituição”.
Em 1976 a BRAVIA fornece ao Corpo de
Fuzileiros da Marinha Portuguesa 4 V-200, as quais
vão ser empenhadas, quer no âmbito da Marinha,
quer nos grandes exercícios conjuntos que nos
finais dos anos 70 se realizaram.
Estas viaturas vão, passado pouco tempo, ser
retiradas de serviço nos fuzileiros, mas só em 1996
são definitivamente abatidas para a sucata. Hoje,
48
uma destas viaturas, à qual tinha sido adaptado um
conjunto de seis lança-granadas foguete 8,89mm,
encontra-se em exposição estática na Base de
Fuzileiros, Base Naval de Lisboa, no Alfeite.
A Chaimite “convertida”
No inicio dos anos de 1980 começa a pensar-se
seriamente em efectuar uma modernização das
viaturas Chaimite. O Exército dispunha de muitas
viaturas, mas os problemas que apresentavam
avolumavam-se e necessitavam resolução.
A remotorização das Chaimites, feita nas OGME em Lisboa,
abrangeu 81 Chaimites V-200 (Foto OGME)
A opção que acabou por ser tomada – e
implementada a partir de 1985 – foi a de atribuir
essa empreitada à fábrica americana Cadillac. Este
facto foi um autêntico “balde de água fria” para
Donas-Bôtto e a sua empresa BRAVIA-VM. A
Cadillac era precisamente, como se compreende, a
sua principal concorrente no mercado internacional,
a derradeira oportunidade da empresa portuguesa
continuar a produzir a Chaimite.
Em 1985, uma das V-200/BRAVIA-VM do
Exército foi transportada para as instalações da
Cadillac Gage e a partir dela se fez o protótipo da
designada Chaimite “convertida”. Recorda o Major-General Fernando Pinto da Silva, ligado a este
processo e que acompanhou algum tempo os
trabalhos na fábrica nos arredores de Detroit, “o
protótipo foi depois testado em Portugal, já em
1986, e criou-se uma linha de montagem nas
OGME para proceder às transformações. Este
processo que abrangeu 81 viaturas prolongou-se
para além de 1988. Na sequência também se
modificaram algumas viaturas para porta-
morteiro.” O fundamental desta transformação
consistiu na substituição do motor Chrysler V8, a
gasolina, por um Cummins, 4 tempos a diesel V6,
uma caixa automática substituiu a manual, os
bloqueios das pontes foram melhorados e os
semieixos reforçados.
As Oficinas Gerais de Material de Engenharia,
além do seu papel inicial neste programa e na
manutenção subsequente que garantiam, passaram
nesta fase a assegurar não só a reconversão como
a grande manutenção. Com o fim da Bravia as OGME
recebem grande quantidade de sobressalentes e
ficam com a capacidade – até hoje – de reparação
total e mesmo de fabricação de praticamente todos
os seus componentes. “Nós fazemos a reparação
da Chaimite toda. Pode-se dizer que os nossos
funcionários o fazem de «olhos fechados». As
OGME ficaram com o último lote de peças
provenientes da BRAVIA e algumas ainda restam
hoje em dia. Como ficamos também com os moldes
originais e temos capacidade quando necessário
– e isso acontece – para fabricar peças novas”,
refere-nos o Coronel Morgado da Silva, Director
das OGME.
Estas grandes reparações variam muito de
acordo com o estado em que as viaturas chegam às
OGME, mas de um modo geral incluem a revisão
total do motor, dos sistemas de travagem,
refrigeração, aquecimento, eléctrico, da caixa de
velocidades, da direcção, a substituição e ou
reparação de vários “detalhes”, que vão dos
bancos à reparação dos fechos das portas e
naturalmente à pintura. “Saem daqui novas!”,
conclui o Coronel Morgado da Silva.
Outros mercados
Em 1970 a BRAVIA conseguiu a sua primeira
encomenda para o estrangeiro, a Infantaria de
Marinha do Peru. Tratou-se de um passo importante
na expansão da firma e uma aliciante entrada de
divisas. As viaturas foram fornecidas em 1972 e a
BRAVIA tenta ainda o fornecimento de outras
viaturas tácticas de rodas neste país, como por
exemplo o “Leopardo”, viatura pesada, concorrente
directo da “Berliet” e da “Mercedes-Benz”, todas
na versão 6x6.
Ainda em 1972, esta viatura 6x6 “Leopardo”,
como outra também concebida pela BRAVIA, a
“Gazela” 4x4, foram propostas ao Exército
Português. Algumas destas estiveram mesmo ao
serviço deste ramo, mas mais tarde a BRAVIA volta
O Peru foi o primeiro cliente internacional da V-200 Chaimite. Na foto uma da Infantaria de Marinha em desfile na capital
Lima (Foto Lewis Majia Prada)
49
adequado para as missões em que é empregue.
Tem sido usado em diferentes missões de polícia e
tarefas ligadas à segurança”, refere-nos o Director-Geral das Forças de Segurança do Líbano, GeneralAchraf Rifi.
Irão, Venezuela, Malásia, Myamar, foram
mercados onde a BRAVIA terá, durante 20 anos,
colocado aV-200 Chaimite e onde a V-100, ou outras
viaturas, acabaram vencedoras. Se o preço era a
grande vantagem daV-200, já a capacidade da fábrica
para fornecer sobressalentes parecia não ser a ideal
e com o decorrer dos anos os problemas financeiros
crescentes da BRAVIA certamente não ajudaram
nada a concretização dos negócios.
BRAVIA encerra
Estas Chaimites V-200 servem em 3 unidades das Forças de
Segurança Libanesas e estão a ser modernizadas desde 2007
(Foto ISF);
a comprá-las para as vender no mercado civil.
Nesta época foi ainda tentada a venda ao
Ministério do Interior (GNR) de uma outra viatura,
a “Comando” MKIII 4x4, também sem sucesso. A
GNR, segundo Nuno Andrade refere no seu livro
sobre os acontecimentos de 25 de Abril de 1974(6 ),
adquiriu mais tarde 38 viaturas blindadas “Shorland
MKIII” na Irlanda do Norte, pelo preço unitário de
1.309.525$00. As primeiras foram entregues no mês
anterior ao golpe militar de 25 de Abril de 1974 e as
restantes durante o espaço de um ano.
Todas estas viaturas tiveram protótipos prontos
e prestaram provas em várias ocasiões e países,
mostrando bem a luta da empresa para alargar a sua
carteira de clientes. As encomendas nacionais –
referindo-me aqui apenas ao material militar, porque
a VM fabricava também material para uso civil –
não eram suficientes para manter a produção.
Mas a perseverança, mesmo a teimosia, de
Donas-Bôtto, conseguiu alguns sucessos. Vendeu
viaturas V-200 para o Líbano em 1980 e, segundo o
próprio, ainda através de dados recolhidos em
documentação da empresa, também a Líbia e as
Filipinas adquiriram alguns exemplares da V-200.
Parte das Chaimites vendidas ao Líbano estão a ser
remotorizadas e modificadas desde 2007 com o apoio
dos EUA. Neste país, sujeito às convulsões internas que se conhecem, as Chaimites têm sido bem
testadas e agradam aos utilizadores. “É um veículo
fácil de conduzir, manobrável e as suas formas
tornam-no difícil de ser atingido por mísseis. O
nível de protecção que confere às guarnições é
50
A falta de encomendas de modo continuado
por parte de clientes nacionais do equipamento
militar e de manutenção de ordem pública proposto
pela BRAVIA, as poucas vendas internacionais e
opções ligadas à sua gestão acabaram por levar a
firma a uma situação económica muito difícil. Embora
a fabricação e vendas de material não tipicamente
militar, algum até para as Forças Armadas, se
mantivessem no início dos anos 80, a BRAVIA –
Sociedade Luso Brasileira de Viaturas e
Equipamentos, vê-se obrigada a entrar, em 1987,
num programa de recuperação de empresas para
tentar adiar o que na realidade veio a acontecer, a
falência.
Mesmo assim, neste período muito difícil da
vida da empresa, Donas-Bôtto tenta a todo o custo
recuperar algumas encomendas internacionais,
como a feita para a Líbia que ficou incompleta,
aparentemente por motivos de ordem política, mas
sem sucesso. Contactos com possíveis compradores internacionais, nomeadamente os que já
tinham a viatura, voltam a ser feitos, mas sem
sucesso.
O processo de falência acaba por se arrastar
anos seguidos, cheio de peripécias, e o Exército
ainda é chamado a colaborar nas necessárias
peritagens relativas aos equipamentos militares em
depósito nas instalações do Porto Alto. “A fábrica
já tinha apenas e quase só acessórios e material
militar muito incompleto. Recordo alguns, julgo
que três, cascos de Chaimite incompletos, um
canhão de 90mm “MECAR” com culatra
montando numa viatura, vários equipamentos de
transmissões e dispositivos anti-emboscada, duas
metralhadoras, uma pesadas e uma ligeira e
muitos acessórios de Chaimite de pequena
dimensão, como farolins de diversos tipos,
periscópios e jerry-cans”, recorda o então Major
do Serviço de MaterialVictor Murta, um dos peritos
do Exército que ali se deslocou na presença das
competentes autoridades e de Donas-Bôtto, em
Maio de 1993.
As OGME receberam, e naturalmente pagaram,
o material que ainda lhe poderia servir – e serve,
como acima se referiu – tendo este processo
terminado já em 1998. Também um conjunto de 21
cascos de viaturas Chaimite, incluindo um protótipo
da V-400, o chamado “Carro de Combate Ligeiro”,
se encontram hoje nas OGME, disponíveis para
alienação.
Pela primeira vez desde a 1.ª Guerra Mundial o
governo português decide, em 1995, enviar uma
força de combate para um teatro de operações na
Europa, a Bósnia-Herzegovina. Em pleno Inverno,
numa região semi-destruída por uma guerra civil de
vários anos, com um cessar-fogo que ninguém
sabia se iria ser cumprido, abundantes zonas
minadas e/ou repletas de munições não rebentadas,
estradas em péssimo estado, mas ainda assim os
únicos locais por onde se podia andar, e onde
abundavam episódios com atiradores furtivos. Ou
seja, o local ideal para fornecer aos militares em
operações alguma protecção que não apenas a lona
de um “jeep” e o seu próprio capacete e colete
balístico.
Os pára-quedistas que constituem a grosso da
força(7 ) tinham chegado ao Exército há menos de 2
anos e não dispunham de viaturas blindadas. A
escolha foi fácil: as veteranas Chaimites atribuídas
às Unidades de Cavalaria ou em depósito eram as
únicas existentes.
Na Bósnia em 1996 as Chaimites foram duramente testadas
num cenário para o qual não tinham sido concebidas (Foto
Miguel Machado)
São feitas algumas adaptações de última hora – como o
aquecimento – e 26 Chaimites seguiram para a Bósnia (Foto
Miguel Machado)
Missões de Paz
O Serviço de Material prepara uma revisão geral,
são feitas algumas adaptações de última hora com
recurso ao mercado civil – como o aquecimento
que acabou por ter funcionamento muito deficiente
– e 26 Chaimites seguiram para a Bósnia.
Apesar das condições draconianas existentes
para as guarnições das viaturas e das limitações
operacionais e mecânicas, a Chaimite cumpriu a
missão. Conferiu mobilidade e protecção
suficientes e garantiu capacidade de dissuasão em
várias situações delicadas.
No primeiro período da missão, sobretudo em
Fevereiro e Março de 1996, a Chaimite viria a ter o
seu 2.º grande período de exposição pública, com
as escoltas aos comboios humanitários Sarajevo51
No Kosovo as Chaimites continuam a ser empregues pelos batalhões portugueses, sobretudo em missões de manutenção de
ordem pública. Aqui em conjunto com viaturas da Gendarmerie francesa (Foto Miguel Machado)
Gorazde, os incidentes e as patrulhas na neve a
ocuparem grande espaço na comunicação social
portuguesa.
Em Outubro de 1996, fruto de acidente no
decurso de uma patrulha, uma Chaimite capotou e
dois militares faleceram.
Continuou ao serviço dos batalhões que se
seguiram na Bósnia, quer nas missões da NATO,
quer da União Europeia, durante 11 anos, até Portugal ter decidido retirar a força de escalão batalhão
daquele país.
No Kosovo foram utilizadas juntamente com os
M-113 e M-11 entre 1999 e 2001, data em que Portugal retirou a sua unidade escalão batalhão desta
missão.
Em 2005 o Exército volta a participar na Kosovo
Force da NATO e, numa primeira fase, as Chaimites
estão ausentes do batalhão português. Com o início,
pouco depois, da missão do Exército no Afeganis-
1
Título do livro em preparação sobre a história da
Viatura Blindada Anfíbia “Chaimite” e o seu criador, Major
Donas-Bôtto.
* As passagens deste artigo, referidas como da autoria
do Major Donnas-Bôtto, são parte de um conjunto de textos
assinados pelo próprio, cujas cópias se encontram na posse
do autor e que foram endereçados a várias instituições,
nomeadamente ao Ministério das Finanças, ao Provedor de
Justiça, ao Tribunal Judicial de Benavente e à Presidência
da República.
52
tão, é decidido utilizar os Hummer em serviço no
Kosovo para aquela missão e substituí-los pela
Chaimite. Parte das viaturas que estão na Bósnia
são para ali transferidas e refira-se, a título de
curiosidade, que esta mudança de teatro de
operações foi feita via aérea em aviões C-130 da
Força Aérea Portuguesa.
Actualmente as Chaimites mantêm-se no
Kosovo ao serviço do Agrupamento Mike da
Brigada de Intervenção, mobilizado pelo Regimento
de Cavalaria n.º 6 de Braga.
O último capítulo da sua vida operacional no
Exército Português está assim a aproximar-se do
fim com recepção e entrada ao serviço da família de
viaturas Pandur II 8X8 da austríaca “Steyr”. Na
construção e montagem desta moderna viatura, além
da firma portuguesa “Fabrequipa”, as OGME,
seguindo no fundo uma tradição do tempo da
Chaimite, também já começaram a participar.JE
2
In Arquivo Histórico-Militar
idem nota 2.
4
“Elefante Dundum”, ISBN: 989-8024-01-1
5
«Chaimite “superstrar”, ou como se fabrica e conduz
um blindado anfíbio», revista do ACP, Jan/Fev 1975.
6
“Para Além do Portão”: ISBN 979-989-8014-95-5
7
Quase mil militares integram os 2.º Batalhão de
Infantaria Aerotransportada, Destacamento de Apoio de
Serviços e Destacamento de Ligação.
3
PASSATEMPOS DE OUTROS TEMPOS
in Jornal do Exército n.º 1 de 1960
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53
Sargento-Ajudante Artilharia João Bucho
P
ablo Diego José Francisco de Paula Juan
Nepomuceno María de los Remedios
Cipriano de la Santísima Trinidad Clito Ruiz y
Picasso − conhecido como Picasso, pintor, escultor,
artista gráfico e ceramista espanhol. Nasceu em
Málaga, onde seu pai, professor de desenho, era
conservador do Museu Municipal, estudou em
Barcelona e trabalhou em Paris. Desde pequeno
sempre revelou muito interesse e uma grande
facilidade para desenhar. Faleceu com 91 anos de
idade, no sul de França.
Pablo Picasso foi um dos mais famosos pintores
do século XX, fundador do Cubismo. A arte
moderna deve importantes impulsos à sua
criatividade e ao seu incansável espírito de
iniciativa, sendo inclusive apelidado de “pai da arte
moderna”.
Segundo consta, em relação à política, Picasso
não se mostrou muito afectado pela Primeira Guerra
Mundial. Contudo, a Guerra Civil Espanhola veio
despertar nele um forte sentimento de revolta e uma
acesa solidariedade com os Republicanos,
tornando-se, em 1944, membro do Partido Comunista Francês.
54
Em 1936, o General Francisco Franco (1892-1975)
encabeçou uma revolta militar contra o governo
democraticamente eleito, composto por socialistas
e liberais. Em 1937, a Guerra Civil Espanhola dividia
a Espanha em duas correntes opostas: por um lado,
os republicanos socialistas (apoiados por brigadas
de voluntários estrangeiros e pela URSS), por outro,
os nacionalistas fascistas do General Franco
(apoiados pelos fascistas italianos seguidores de
Mussolini e pelos nazistas alemães seguidores de
Hitler). Os regimes fascistas de ambos os países
eram aliados de Franco numa guerra civil que,
podemos afirmar, prepararam o palco para a
Segunda Guerra Mundial. Nesta altura, a Espanha
entra em ruptura tendo Madrid resistido ao cerco
das tropas de Franco, é então que uma bomba
rompe as defesas do Museu do Prado (local onde
se encontra a maravilhosa colecção de arte
espanhola) e Picasso sente-se pessoalmente
atacado, sentindo um grande desejo de proteger as
obras dos seus antepassados, dos quais se destaca
Goya, aceitando o cargo de Director do Museu,
tendo tomado parte activa no deslocamento das
obras primas do Museu do Prado para Valência.
A Guerra Civil espanhola teve momentos muito
violentos e sangrentos, contudo nenhum deles
ganhou tanto relevo a nível internacional como
quando os aviões de Hitler, em 26 de Abril de 1937,
investiram durante mais de três horas sobre uma
pequena cidade a 24 km de Bilbau, a Norte de Espanha,
zona histórica e ancestral do nacionalismo basco
(povo com língua e cultura própria e com um grande
sentido de identidade) que queria derrubar Franco.
Guernica, transformou-se num símbolo, convertendo-se na primeira cidade da história destruída por um
ataque aéreo direccionado contra alvos civis.
A repercussão negativa do ataque nazi à cidade
de Guernica foi tão grande que os jornais de todo o
mundo a noticiaram. Destaque para o jornalista Inglês
George Steers, correspondente do jornal “The Times”
londrino que, na altura, cobria a guerra em Bilbau, e foi
a Guernica onde faz o seguinte relato, datado de 28 de
Abril de 1937:
“Guernica, a mais antiga cidade dos bascos, e o
centro da sua tradição cultural, foi ontem
completamente destruída por um ataque aéreo dos
rebeldes. O bombardeio da cidade desprotegida,
situada muito atrás da linha de combate, durou
exactamente três quartos de hora. Durante este lapso
de tempo uma forte esquadrilha de aparelhos de origem
alemã− aviões de bombardeamento Junkers e Heinkel,
assim como caças Heinkel − lançou ininterruptamente
bombas, algumas com 500 Kilogramas, sobre a cidade.
Simultaneamente aviões de caça em voo picado rasante
atiravam com metralhadoras sobre a população que
tinha fugido para os campos. Num curto espaço de
tempo toda a cidade estava em chamas (...). Às 2 horas
da madrugada de hoje, quando visitei a cidade, toda
ela era uma visão terrível, queimada de ponta a ponta.
A cerca de 16 quilómetros da cidade, já se podia ver o
reflexo das chamas nas nuvens de fumo sobre as
montanhas. Casas continuaram a desmoronar-se durante toda a noite, até que as ruas se tornaram grandes
amontoados de destroços vermelhos e impenetráveis.
Muitos dos sobreviventes civis tomaram o longo
caminho de Guernica a Bilbao em antigas carroças de
rodas de madeira, puxadas a bois. Carretes
sobrecarregadas de objectos domésticos salvos da
conflagração entupiram as estradas durante a noite
inteira. Outros sobreviventes foram evacuados em
caminhões do governo, mas muitos viram-se
obrigados a permanecer na cidade em chamas,
55
Para o pavilhão de Espanha, na Exposição Internacional de Paris, de 1937, dedicada ao progresso e à paz, cria o painel a
que chamou “Guernica”
procurando parentes e crianças desaparecidos,
enquanto as unidades do corpo de bombeiros e a
polícia militar basca, sob a direcção pessoal do ministro
do Interior, Señor Monzon, prosseguiram as operações
de resgate até o amanhecer (...)”
Vários historiadores apontam que Guernica era
considerada como um alvo de pouco valor militar. Por
isso, a acção das vagas de Junkers e Heinkel, que
reduzem a cinzas e escombros a pequena cidade de
menos de dez mil habitantes, vai mobilizar a indignação
internacional.
O resultado do bombardeamento é devastador.
Uma comissão de inquérito formada após a
conquista da cidade pelas forças de Franco revela
que só 10% das construções não sofreram danos. Por
seu lado, os bascos no exílio referem, na época, a
existência de 1600 mortos e 900 feridos. O centro da
cidade foi totalmente destruído, as ruas e praças
envoltas em chamas devido, em larga medida, ao facto
de as construções serem maioritariamente de madeira.
A destruição de Guernica foi a primeira demonstração
da técnica de bombardeamentos de saturação, mais
tarde empregue na 2.ª Guerra Mundial
Perante estas imagens e a proliferação das notícias
que davam conta das atrocidades cometidas em
Guernica, na imprensa (jornais e revistas) europeia e
nos EUA, Picasso, que vivia em Paris, segundo consta,
terá sido alertado pela notícia e pelas fotografias que
surgiram no jornal francês “L'Humanité” e, tendo em
mãos, nesta altura, uma encomenda para o pavilhão
de Espanha, na Exposição Internacional de Paris, de
56
1937 (EXPO 1937), dedicada ao progresso e à paz ,
cria, entre Maio e Junho, o painel a que chamou
“Guernica”, tema deste artigo de reflexão.
Através dos pincéis, Picasso imortalizou o drama,
o sofrimento e a brutalidade do bombardeamento da
antiga capital dos Bascos, a cidade de Guernica,
bombardeada pela Legião Condor pertencendo à
Luftwaffe (Força AéreaAlemã), ao serviço das tropas
nacionalistas de Francisco Franco, em 1937.
Na construção do painel, Picasso teve a ajuda de
uma mulher que tinha conhecido num café, chamada
Dora Maar, pintora e fotógrafa participante do
movimento surrealista que, mais tarde, veio a tornarse sua amante e parceira criativa. A presença de Dora
passou a fazer parte do estúdio, tendo fotografado o
seu trabalho. Picasso começou com alguns rabiscos,
a carvão sobre tela, até que, envolvido na sua
problemática pessoal, após ter visitado a outra sua
amante Marie-Thérèse, e a filha recém nascida, Maya,
acaba por ter de controlar uma rixa entre Dora e esta
última. Segundo os historiadores, tratava-se de um
período em que Picasso passava por emoções muito
violentas, vivendo num “caos emocional”, não
conseguindo resistir a transpor a completa angústia
da sua vida pessoal para a sua arte politizada.
Esta obra não tenciona representar o próprio
acontecimento, mas sim evocar uma série de
poderosas imagens, a agonia da guerra total.
Olhemos então para o painel, onde o simbolismo
da cena vai resistindo a diversas interpretações, a
juízos mais subjectivos, embora estejam presentes
vários elementos iconográficos tradicionais. À
esquerda, a mãe chorando a morte do filho, (trata-se
dos descendentes da Pietá), a mulher com a lâmpada
na mão lembra-nos a Estátua da Liberdade, e a mão do
cadáver empunhando uma espada partida (um
emblema bem conhecido da resistência heróica).
Também sentimos o contraste entre o ameaçador touro
de cabeça humana, que certamente representa as
forças do mal, e o cavalo ferido e agonizante. O cavalo
é, à semelhança do touro, uma figura saída da mitologia
espanhola e representa o povo que agoniza sob o
jugo opressor do touro, símbolo da brutalidade, das
forças do mal. Estas figuras devem a sua terrível
eloquência àquilo que são e não aquilo que
representam (Janson, 1977:656).
aparecendo frequentemente a imagem da arena nos
seus trabalhos. O cavalo, relinchando de dor, representa as vítimas. Entre os dois animais, uma pomba
simboliza a liberdade ferida. Os sinais de esperança,
no meio de tanta dor e destruição, são dados pela
lâmpada acesa (candeeiro eléctrico aceso, em forma
de sol, que sugere o “olho de deus” que tudo vê), e
por um candeeiro nas mãos de uma das mulheres.
A própria cor existente no quadro, ou a sua ausência, já que se trata de uma pintura a preto e branco,
parece querer demonstrar o sentimento de repúdio do
artista ao bombardeio da pequena cidade espanhola.
As formas distorcidas e destroçadas são a expressão
de um horror insuportável e do aniquilamento. É
importante salientar que as imagens fragmentadas na
Se continuarmos a visualizar o painel, facilmente
faremos a sua leitura. Por exemplo, as figuras fragmentadas e agonizantes, dando-nos a clara sensação de
caos, de onde se destacam a figura da mãe e do filho,
a que já nos referimos. O quadro reproduz um total de
seis seres humanos, todos olhando para o céu, e três
animais. A criança morta pende inerte nos braços da
mãe que, no seu rosto, espelha uma grande angústia,
representada pela língua que sugere um punhal.
Formas semelhantes aparecem um pouco por todo o
quadro. Poderemos também ver, entre outros aspectos,
à direita, uma casa a arder após o bombardeamento,
de onde saem três mulheres e o homem que, em
desespero, levanta os braços ao céu. No centro, o
guerreiro morto com o corpo caído, desmembrado,
esquartejado, junto à espada partida encontra-se uma
flor, como uma mensagem de esperança numa vida
nova, apesar das tentativas do Homem para a destruir
constantemente. A comovente delicadeza da flor
parece aumentar o horror geral da cena caótica. A
presença do touro deve-se também ao fascínio que
Picasso desde sempre revelou pela tourada,
composição só fazem sentido se as diferentes partes
se integrarem no todo, ou seja, se tivermos uma visão
holística, onde o todo é sempre superior à soma das
diferentes partes, caso contrário, teremos uma visão
distorcida e muito redutora da realidade.
Rapidamente o painel se transformou num objecto
de protesto e denúncia contra a violência, a guerra e a
barbárie.Terminada a feira, em Paris, o quadro viajou
durante cerca de 20 anos, por vários países da Europa,
da Noruega à Itália, mas também atravessou oAtlântico
e foi exposto em LosAngeles, Chicago, São Francisco,
São Paulo, entre outras cidades. Depois de viajar pelo
estrangeiro e de estar exposto em Paris, chegou a
Espanha em 1981 e foi para Madrid, para o Museu
Rainha Sofia, localizado no bairro madrileno deAtocha,
onde actualmente se encontra.
Quando julgávamos que o quadro já não nos
poderia dizer mais nada de novo, nesta nova era de
conhecimento informático e tecnologia digital,
rapidamente somos confrontados com o poder da arte,
de revelar o interno, o escondido, de conseguir
transmitir emoções e sentimentos. O quadro opera
57
Fotos: http:\\commons.wikimedia
58
http: Commons, WiKimedia
um verdadeiro milagre. Apesar de todas as imagens
de violência e desgraça com que somos atingidos, ele
faz-nos… descobrir, transformar, inventar, sentir. Faznos interiorizar. A arte rompe com as nossas rotinas
pré concebidas e indolentes. A rotina que este quadro
destrói ou, melhor dizendo, ajuda a desconstruir, é um
mal do nosso tempo, assim como já o era no tempo de
Picasso, o hábito de aceitar passivamente a violência,
a indiferença, o caos e a desordem perante o massacre. A obra de arte contribui para o processo de
reconstrução da vida.
A arte permite a transfiguração do horror, da morte
em vida, do feio em belo. Poder de metamorfose.Através do acto criativo, Picasso vai desconstruir e
construir uma nova realidade, a arte permite ordenar o
caos.
Podemos pois afirmar que Guernica não existe em
nome da beleza, mas para romper com as cicatrizes,
para nos fazer sangrar, para nos agitar e fazer avançar
em frente.
Esta obra continua a gerar grande polémica, neste
início do séc. XXI. Basta lembrarmo-nos do ocorrido
em 2003, quando a imagem de Guernica, existente na
entrada das instalações do Conselho de Segurança
das Nações Unidas, em Nova Iorque, foi coberta por
uma grande cortina azul, quando os representantes
das Nações Unidas apresentavam os seus argumentos para uma eventual intervenção armada no Iraque.
Esta atitude foi muito divulgada e criticada pelos
media, pois o painel encontra-se colocado num local
onde os diplomatas costumam fazer as tradicionais
conferências de imprensa. Questionado sobre o
porquê da obra ter sido tapada, Fred Eckhard,
secretário de imprensa da ONU, respondeu: “É um
fundo inadequado para as câmaras”.
Poderíamos fazer um comentário crítico e afirmar
que talvez não fosse muito “adequado” que os
representantes das Nações Unidas, ao mesmo tempo
que falavam de guerra, confrontassem o mundo com
as imagens de casas a arder, figuras de mulheres,
crianças e animais gritando de horror e a sofrerem,
lembrando-nos do bombardeamento sobre Guernica.
Associado a isto, é pertinente recordarmos
também o esforço que a Câmara Municipal de Biscaya,
tem efectuado ao longo destes últimos anos, junto do
Governo Espanhol, reclamando pelo regresso da obra
ao Município Basco, recebendo sempre por resposta
que, por razões técnicas, o quadro não sai de Madrid.
“O que pensam que é um pintor?
Um imbecil que só tem olhos?
Não, a pintura não foi inventada para decorar casas.
Ela é uma arma de ataque e de defesa contra o
inimigo” (Picasso) JE
A imagem de Guernica, existente na entrada das instalações
do Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi coberta
por uma grande cortina azul, quando os representantes das
Nações Unidas apresentavam os seus argumentos para uma
eventual intervenção armada no Iraque
Referências:
Janson, H. W. (1977). História da Arte (2.ª Edição). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Walther, I. F. (1990). Picasso. Colónia: Tachen GmbH.
Alguns sítios de interesse:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guernica_(quadro)
http://www.pbs.org/treasuresoftheworld/guernica/
gmain.html
http://lartnouveau.com/art_deco/expo_internationale_1937.htm
http://pageperso.aol.fr/bottomcircle/Expo-1937page2.html
http://www.areamilitar.net/HISTbcr.aspx?N=36
http://www.tlaxcala.es/pp.asp?reference =2510&lg=po
(Entrevista traduzida de George Steer sobre o
bombardeamento a Guernica)
http://www.mare-alta.web.pt/mundo.htm
(Comentários na Europa e em Portugal no governo de
Salazar perante o bombardeamento).
http://www.museoreinasofia.es/museoreinasofia/live/
index.html
www.picasso.fr
(Site oficial de Picasso)
www.paris.org/Musees/Picasso
(Site do Museu Picasso)
http://www.lena-gieseke.com/guernica/movie.html
Guernica em 3D − Uma artista nova-iorquina, Lena
Gieseke, transformou o painel pintado a óleo, de Picasso,
numa versão tridimensional. O projecto é “uma oportunidade
rara de ver a pintura sobre uma perspectiva única, revelando
aspectos que normalmente passariam despercebidos ao público
em geral”, escreve a especialista em infografia digital.
Biografia
Sargento-Ajudante de Artilharia desde 1995, a prestar
serviço na Unidade de Apoio da Área Militar AmadoraSintra, onde exerce funções de Sargento de Matrícula em
acumulação com as de encarregado da ADM e DRF.
Licenciado em Psicologia, com formação Pós-Graduada
na área de Gestão do Stress.
Formador e docente em contexto universitário: ISPA;
ISLA; BELAS ARTES.
Membro da SPAT, arte-psicoterapeuta e formador
Certificado pelo IEFP.