Foto: Wikimedia Commons MONUMENTOS COM HISTÓRIA MILITAR A Batalha das Linhas de Elvas − 350 anos depois D urante seis décadas, entre 1580 e 1640, Portugal foi governado pela Dinastia Filipina, depois de D. Filipe – Filipe II de Espanha – ter sido proclamado rei na sequência das Cortes de Tomar. Em 60 anos acumularam-se muitos descontentamentos, revolta e ânsia de independência que não tardaram em fazer-se sentir. O lançamento de novos impostos fez transbordar a resistência eborense e em 21 de Agosto de 1637 deflagra a Revolta do Manuelinho, que rapidamente fez alastrar a rebeldia a outras regiões do país, levando o povo amotinado à rua, desrespeitando os fidalgos e qualquer poder estabelecido ao lado do governo de Lisboa. Esta revolta, provavelmente arquitectada pelo Procurador e pelo Escrivão do Povo, ficou assim conhecida com a intenção de preservar o anonimato dos seus protagonistas, sendo o Manuelinho um carismático habitante da cidade de Évora que, por ser portador de alguma desordem mental, era, portanto, inimputável. Mas a Revolta do Manuelinho não terá sido a 4 primeira, havendo notícias de outra, no Porto, em 1628, conhecida como o Motim das Maçarocas. Entre revoltas, motins, sublevações e insurreições começou a desenhar-se a Guerra da Restauração. No entanto, estas movimentações não foram suficientes para destituir o governo, tendo sido controladas pelas tropas castelhanas que entretanto chegaram em auxílio do rei. Foram suficientes, apesar de tudo, para acender a Revolta dos Conjurados, que terminou com a proclamação de D. João IV, em 1640. Os Conjurados, fortemente influenciados por João Pinto Ribeiro, eram um grupo coeso, com cerca de 40 homens oriundos, sobretudo, da nobreza nacional, cujo intento consistia no afastamento dos Filipes e na devolução do governo às mãos de um português. Em 1 de Dezembro de 1640 invadiram o Palácio da Duquesa de Mântua, defenestraram Miguel de Vasconcelos e proclamaram rei D. João IV, fundador da Dinastia de Bragança. Encontrando-se D. Filipe III a braços com uma revolução na Catalunha, não teve meios nem oportunidade para recuperar a soberania de Portugal. Mas isto não significava o fim das batalhas. Em 11 de Dezembro de 1640, D. João IV cria um Conselho de Guerra, para cuidar de todos os assuntos relativos ao Exército; seguiu-se-lhe a Junta das Fronteiras, que trataria das linhas de defesa fronteiriças, dos portos e da defesa de Lisboa, e em 1641 surge a Tenência com ordem para artilhar as fortalezas. São também reavivadas as Leis Militares de D. Sebastião, que reorganizam as tropas e, ao mesmo tempo, mas por vias paralelas, eram desenvolvidos grandes esforços diplomáticos. Em 1658, D. Luís de Haro comanda um contingente de 14000 infantes castelhanos e cinco mil cavaleiros e artilheiros e estabelece um apertado cerco à cidade de Elvas. Do lado português, D. António Luís de Meneses, Conde de Cantanhede, assume a chefia das tropas estacionadas na Região, acompanhado por D. Sancho Manuel, Mestre-deCampo-General. A praça portuguesa, bombardeada pelos canhões espanhóis e assolada pela peste, que sozinha ceifava 300 almas por dia, sofreu pesadas baixas. Entretanto, D. António Luís de Meneses consegue reunir em Estremoz um exército com cerca oito mil infantes, três mil cavaleiros e sete canhões e, em 14 de Janeiro daquele ano, marcha das Colinas da Assomada na direcção de Elvas, entrando pelo sítio dos Murtais, caindo sobre as tropas filipinas que, apesar da resistência inicial, acabam por sucumbir ao ímpeto português, debandando para Badajoz. A memória desta Batalha é guardada por um Padrão Comemorativo, mandado erigir por D. Afonso VI no sítio dos Murtais, a norte da cidade, até onde ainda hoje se ruma no aniversário da Batalha, elevado a feriado municipal. Outras vitórias levam Portugal a reunir condições para garantir a independência, mas apenas em 1668, depois de 28 anos de lutas e sendo já regente o Infante D. Pedro (rei D. Pedro II), é lograda a assinatura de um tratado de paz entre os dois países.JE Tenente RC Paulo Moreira Sumário Ano L - N.º 580 - Janeiro de 2009 PROPRIEDADE DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO Direcção, Redacção e Administração Largo de S. Sebastião da Pedreira 1069-020 Lisboa Telef: 213 567 700 Fax Civil: 213 567 791 Militar: 414 091 Os Primeiros Califas do Islão 16 E-mail: [email protected] E-mail: [email protected] E-mail − Intranet: Jornal do Exército Home page: www.exercito.pt DIRECÇÃO Director Coronel de Infantaria José Custódio Madaleno Geraldo Secretária Ass Adm Principal Teresa Felicíssimo 2.º Cabo-Condutor Fábio Carrada REDACÇÃO Chefe Tenente-Coronel J. Pinto Bessa Redactores Tenente Paulo Moreira Tenente Rico dos Santos Mauro Matias Designer Inês Galvão Operadoras Informáticas Ass Adm Especialista Elisa Pio Ass Adm Principal Guiomar Brito As Armas e as Letras 30 CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO Chefe Major Augusto Correia Operadores Informáticos Ass Adm Tânia Espírito Santo 2.º Cabo Gonçalo Silva Biblioteca Ass Adm Especialista Joana Moita SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS Operador Informático Sargento-Ajudante João Belém Distribuição Sargento-Ajudante Luís Silva Publicidade Sargento-Ajudante Luís Silva SECRETARIA Amanuense 1.º Sargento Carina Rodrigues COLABORAÇÃO FOTOGRÁFICA Lusa - Agência de Noticias de Portugal, SA Centro de Audiovisuais do Exército RCRPP/GabCEME EXECUÇÃO GRÁFICA Europress, Lda Rua João Saraiva, 10-A − 1700-249 Lisboa Telef 218 444 340 − Fax 218 492 061 [email protected] Tiragem − 6 000 exemplares Depósito Legal n.º 1465/82 ISSN 0871/8598 Chaimite O primeiro blindado português 42 Primos e Generais 12 Guernica – O poder da Arte 54 Secções Monumentos com História Militar – A Batalha das Linhas de Elvas - 350 anos depois 4 Editorial 5 Figuras e Factos 6 Passatempos de outros tempos 53 Capa: Praça das Linhas de Elvas – Gravura do Coronel Francisco D’Alincourt, 1802 Revisão do texto a cargo do Professor Doutor Eurico Gomes Dias. Os artigos publicados com indicação de autor são da inteira responsabilidade dos mesmos, não reflectindo, necessariamente, o pensamento da Chefia do Exército Português ÓRGÃO DE INFORMAÇÃO, CULTURA E RECREIO DO EXÉRCITO PORTUGUÊS, CRIADO POR PORTARIA DE 14JUL60 U m novo ano começa e, neste mundo extraordinário em que vivemos, o ser humano continua a caminhada no planeta azul a que chamamos Terra e que todos gostaríamos de conhecer e ver melhor. Apesar da fome e da guerra, todos ansiamos viver na abundância e em paz. Por isso celebramos a paz e evocamos as batalhas que contribuíram para pacificar a nossa Pátria e para continuar este Portugal que amamos e que nos enche de glória e de orgulho de ser português. Recordamos a Batalha das Linhas de Elvas, por ocasião dos seus 350 anos, [segundo o Mercurio Portuguez, de D. António de Souza de Macedo, a Batalha teve lugar a 14 de Janeiro de 1659], decisiva para que Portugal continuasse a ser um país livre e soberano. Com mais de oito séculos e meio de História, o País que “Deu Mundos Novos ao Mundo”, com um percurso pioneiro, foi ao encontro de novas civilizações e hoje o português, para além de ser uma das línguas mais faladas, tornou-se num instrumento de soft-power aonde o ideal da paz se contagia. As missões de paz que os militares portugueses têm protagonizado ao longo dos últimos anos são disso um bom exemplo. Terminamos com uma reflexão poética, fazendo votos para que a Paz seja o denominador comum entre todos os portugueses, estendendo esse desígnio a todos os que se entendem na Língua Portuguesa e aos seus amigos. Tributo à Paz A poesia chegou O mundo mudou O povo sorriu A guerra rebentou O povo chorou A poesia partiu Mas onde está a poesia Essa dádiva de Deus Que dizem brotar dos Céus? Está na Paz! 5 FIGURAS e FACTOS Dr. Jorge Sampaio no IDN I nserida no ciclo de conferências “Contributos para uma Estratégia Nacional”, levado a cabo pelo Instituto de Defesa Nacional (IDN), o Dr. Jorge Sampaio, Presidente da República entre 1996 e 2006, proferiu, no dia 17 de Dezembro, uma alocução intitulada “Seis Reflexões sobre os Desafios de uma Estratégia Nacional”. A sessão foi presidida pelo Ministro da Defesa Nacional, Professor Doutor Nuno Severiano Teixeira. Cerimónia de Imposição de Condecorações e Entrega de Espadas a Oficiais Generais O Chefe do Estado-Maior do Exército, General José Luís Pinto Ramalho, presidiu à cerimónia de imposição de condecorações e entrega de bastões e espadas a Oficiais-Generais, no dia 17 Dezembro, na Sala D. Maria do Museu Militar, em Lisboa, aos seguintes militares: Os Majores-Generais João Carlos Ferrão Marques dos Santos e José Ribeirinha Diniz da Costa foram condecorados com a Medalha de Serviços Distintos. Os Majores-Generais Carlos Martins Branco, António Xavier Lobato Faria Menezes e JoséAntónio Henriques Dinis, além de receberem o bastão e a espada de Oficial-General, foram condecorados com a Medalha D. Afonso Henriques Mérito do Exército − 1.ª Classe. Dia do Conselho Superior de Disciplina do Exército F oi celebrado, no dia 12 de Dezembro, o 112.º aniversário do Conselho Superior de Disciplina do Exército (CSDE). O CSDE remonta a 1896, data em que, por Decreto, é publicado o novo Regulamento de Disciplina do Exército e criado o Conselho de Disciplina do Exército.A cerimónia foi presidida peloTenenteGeneral Manuel Bação da Costa Lemos, Presidente do CSDE. Na sua intervenção, para além elogiar a dedicação e esforço dos membros do Conselho, o Tenente-General Bação de Lemos lembrou, sucintamente, os princípios pelos quais se rege este Órgão: Concelebramos, por isso, hoje o 112.º ano da sua existência legal, […] em que reafirmamos os princípios imanentes da sua inspiradora divisa: ”CONDUTA FIRME, MAS HUMANA”, traduzidos com equilíbrio e ponderação na avaliação da disciplina, como fundamento irrecusável da coesão e eficiência das Forças Armadas. Procedeu-se, de seguida, à imposição de condecorações, tendo a cerimónia sido concluída com um porto de honra. 6 FIGURAS e FACTOS Reunião Multidisciplinar “Patologia Respiratória Multicomponente” no Hospital Militar de Belém N os dias 10 e 11 de Outubro de 2008 realizou-se, no auditório do Hospital Militar de Belém (HMB), uma Reunião Multidisciplinar sobre “Patologia Respiratória Multicomponente”, com a participação activa e interessada de cerca de uma centena de profissionais de saúde. A sessão de abertura foi presidida pelo Director do Serviço de Saúde, MajorGeneral Mateus Cardoso, e contou ainda com a participação do Subdirector da Saúde, Coronel Médico Esmeraldo Alfarroba e do Director do HMB, Tenente-Coronel Médico Paulo Lúcio. Reunindo cerca de três dezenas de prelectores, foram apresentados temas que abrangeram a área médica e cirúrgica relacionada com a patologia respiratória, permitindo a troca de experiências, esclarecimentos e actualização de conhecimentos. Estiveram representados médicos e outros profissionais de saúde de diversos hospitais da região de Lisboa, tendo sido debatidos assuntos sobre patologia respiratória obstrutiva, oncológica, infecciosa e cardiológica; do ponto de vista cirúrgico, discutiu-se o cancro do pulmão, a terapêutica cirúrgica na apneia do sono e a reabilitação pré e pós operatória; na terapêutica médica foram apresentados temas relacionados com a ventilação não invasiva, radioterapia e broncoscopia de intervenção. A mais-valia desta reunião foi a sua multidisciplinaridade, permitindo a intervenção neste fórum de todos os profissionais que intervêm na prestação dos cuidados de saúde pneumológicos. Foram dois dias muito produtivos e gratificantes em que foram partilhados conceitos teóricos e a experiência individual dos intervenientes. A reunião foi ainda uma oportunidade para discutir e reflectir sobre as dificuldades com que se debatem os diferentes prestadores de saúde na sua prática quotidiana, dificuldades essas muitas vezes transversais às diferentes áreas de intervenção e comuns às diferentes Unidades de Saúde civis e militares. 93.º Aniversário do Regimento de Transportes D ecorreu no dia 16 de Dezembro, no Regimento de Transportes, a celebração do seu 93.º aniversário. A cerimónia foi presidida pelo Tenente-General Joaquim Formeiro Monteiro, Quartel-Mestre-General e Comandante da Logística. A história do Regimento de Transportes remonta a 1915, data em que o então Ministro da Guerra, General Norton de Matos, institucionalizou os transportes motorizados no Exército. O Comandante do Regimento de Transportes, Coronel Caetano de Sousa, na sua alocução relativa ao dia da Unidade fez referência à história do Regimento e ao lançamento do livro “O Motor no Exército”, à qual os presentes tiveram a oportunidade de assistir na Sala de Reuniões da Messe de Oficiais. Também aludiu à missão do Regimento, realizando um balanço relativo ao ano transacto. O Tenente-General Joaquim Formeiro Monteiro, na sua mensagem, reconheceu o ajustado trabalho levado a cabo pelo Regimento, referindo o seu esforço para dotá-lo dos meios necessários. Enalteceu ainda a história do Regimento, mostrando-se agradado com o lançamento do livro, ao qual se associou. Do programa da Cerimónia destaca-se a homenagem aos militares mortos em defesa da Pátria, a Imposição de Condecorações, o Hino do Regimento de Transportes, cantado em coro pelos seus militares, a exibição da Banda do Exército e uma demonstração do encargo Operacional da Companhia de Transportes. Na mesma ocasião, aproveitou-se a oportunidade para a apresentação do novo programa informático do “Sistema de Gestão de Frota”. 7 FIGURAS e FACTOS Visita Natalícia do General CEME aos Hospitais Militares S eguindo a tradição natalícia, o General Chefe do Estado-Maior do Exército, Luís Pinto Ramalho, visitou o Hospital Militar Principal e o Hospital Militar de Belém. A visita decorreu no dia 18 de Dezembro, tendo como mote dar apoio aos membros da Família Militar que, infelizmente, na quadra natalícia, se encontraram hospitalizados. O General CEME ofereceu aos acamados uma singela e significativa lembrança, juntamente com palavras de incentivo e esperança, tentando, desta forma, alegrar o Natal daqueles que atravessam maiores dificuldades. A ocasião foi aproveitada para deixar votos de Boas Festas a todos os profissionais que ali servem, tranquilizando-os em relação ao futuro. Clube Militar de Oficiais de Mafra O Clube Militar de Oficiais de Mafra (CMOM), constituído por escritura pública em 3 de Fevereiro de 2006, tem, desde o dia 11 de Outubro passado, sede no edifício D.ª Maria, na Tapada de Mafra, no Centro Militar de Educação Física e Desportos, cedido pelo EstadoMaior do Exército. Na cerimónia de inauguração participaram o Tenente-GeneralArtur Neves Pina Monteiro, em representação do Chefe do Estado-Maior do Exército, General JoséLuís Pinto Ramalho, o MajorGeneral Carlos Tia, em representação do General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea e o Major-General Carlos Chaves, em representação do General Comandante-Geral da GNR. Estiveram também presentes o Presidente da Câmara Municipal de Mafra, Engenheiro José Maria Ministro dos Santos, a Governadora Civil de Lisboa, Dr.ª DalilaAraújo, o Tenente-General Francisco Fialho da Rosa, Presidente do IASFA, o Secretário-Geral do Ministério da Defesa Nacional, Major-General Luís Augusto Sequeira, o Comandante do CMEFD, Coronel José Maria Paula Santos e o Comandante da Escola Prática de Infantaria, Coronel João Manuel Ormonde Mendes. Participaram também inúmeros convidados que têm colaborado com o CMOM, além de quase uma centena de associados e familiares. A cerimónia, de grande simplicidade, decorreu nas instalações do CMEFD, Unidade que acolhe o CMOM, com uma sessão de boas-vindas a todos os convidados e associados, a 8 que se seguiu, no edifício D.ª Maria, o descerramento do brasão do clube, a bênção das instalações e a inauguração de uma exposição de pintura com trabalhos do associado António Alves Martins, após o que teve lugar um porto de honra e um almoço de convívio no campo dos plátanos, organizado pelo associado Horst Klenm, com uma ementa tipicamente alemã. A criação do CMOM resultou da vontade de um número alargado de oficiais que residem na região de Mafra e que decidiram constituir uma associação para desenvolver os laços de camaradagem, amizade e boa convivência entre os militares que serviram ou servem a Instituição Militar. Tem também, como outros fins, dignificar as Forças Armadas, preservar e desenvolver os seus valores éticos e morais, proporcionar aos sócios um são convívio social, recreativo e cultural, desenvolver actividades de solidariedade social, culturais, desportivas, científicas e literárias e promover acções de cidadania abertas à comunidade. Desde 2006 que o clube organiza regularmente actividades desta natureza e promove acções dirigidas especialmente aos sócios, à comunidade escolar e às autarquias, com quem tem cooperado activamente. O CMOM está aberto a todos os oficiais das Forças Armadas e da GNR, no activo, na reserva ou na reforma e também a outros cidadãos, que podem ser admitidos como sócios extraordinários. A sede agora inaugurada, situada em local extraordinariamente aprazível, proporcionará a todos os oficiais que o desejarem um ponto de encontro e de convívio onde a cultura, a solidariedade e a amizade constituem referência. É determinação de todos os associados valorizar a nova sede, promover a recuperação da ala Este do edifício D.ª Maria, continuar as actividades até hoje desenvolvidas e colaborar com a instituição militar no esforço de apoio social a todos os militares que vivem na região. FIGURAS e FACTOS Comemorações do Dia da Zona Militar dos Açores (ZMA) E m 28 de Novembro comemorou-se o Dia da Zona Militar dos Açores (ZMA), quando se evocaram os 172 anos em que, por Decreto Régio de 1836, foi criada a 10.ª Divisão Militar, com Quartel-General em Ponta Delgada. A comemoração da efeméride, para além do reforço do dinamismo no seio da Instituição Militar através da reafirmação do espírito de corpo e da coesão entre as Unidades da ZMA, teve como objectivo principal dignificar a imagem do Exército Português junto da comunidade civil, divulgando as suas capacidades e as actividades desenvolvidas no corrente ano. Nesse sentido, o Comandante da ZMA, Major-General Cameira Martins, elaborou e mandou executar um ambicioso programa de Comemorações que teve início em 22 de Novembro, com a realização de uma Mini-maratona, e no dia 23 teve lugar uma prova de Corrida e Orientação Urbana em Ponta Delgada, tendo esta registado uma grande adesão popular e merecido os maiores elogios pela inovação aplicada e pela excelente organização. Nos dias 25 e 26 foi executado um exercício de patrulhas de reconhecimento envolvendo a participação do Encargo Operacional das Forças da ZMA e que, durante 24 horas, percorreram todas as freguesias da Ilha de S. Miguel. Em 26 de Novembro foi realizado um Concerto, no vetusto Teatro Micaelense, pela Banda Militar da ZMA, em parceria com o Coral de S. José, aberto à Família Militar e a toda a população Açoriana, com lotação esgotada, dado o excelente prestígio de que goza a Banda Militar no seio da população. Em 28 de Novembro as comemorações tiveram o seu ponto mais alto, pelo que, ciente das suas responsabilidades e perante os seus pares e a comunidade civil, o Comando da Zona Militar dos Açores, de uma forma inédita “invadiu” o moderno e cosmopolita Complexo Marítimo das Portas do Mar de Ponta Delgada, para aí comemorar o seu Dia. Presidida pelo Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, Juiz Conselheiro José António Mesquita, e com a presença de altas entidades Militares, Civis e Religiosas, das quais se destacam o Vice-Chefe do EstadoMaior do Exército, Tenente-General Oliveira Cardoso, e o Comandante Operacional do Exército, Tenente-General Pina Monteiro, realizou-se uma Cerimónia Militar com forças representativas de todas as Unidades da ZMA, constituídas pelo Grupo de Comando, pela Banda Militar, pelo Pelotão da Polícia do Exército, duas Unidades de Escalão Batalhão e uma Bateria de Artilharia Antiaérea, comandadas pelo Coronel de Infantaria Manuel da Silva, 2.º Comandante da ZMA. Na sequência desta cerimónia, e no Pavilhão das Portas do Mar, pelas 17H15, foi assinado um Acordo de Cooperação no âmbito da Educação, Emprego e Formação entre o Governo Regional dos Açores e a Zona Militar dos Açores. Pelas 17H30 foi efectuado o lançamento do Livro “Forte de S. Brás – Diferentes Olhares”, com as obras de escritores, pintores e fotógrafos convidados, seguindo-se a exposição das pinturas e das fotografias seleccionadas do concurso sobre o tema do livro. Posteriormente foram inauguradas duas Exposições Temáticas, uma sobre o tema “Militares Ilustres Açorianos − séc. XVII a XX” e outra sobre o apoio do Exército à Protecção Civil nos Açores e a participação nas Forças Nacionais Destacadas (FND), bem como uma exposição estática de material das Unidades da ZMA. A encerrar as Comemorações, o Comando da ZMA ofereceu a todos os Convidados presentes um “Pôr-do-Sol”, onde, de uma forma informal, conviveram todas as Entidades Militares, Civis e religiosas, numa demonstração inequívoca de um relacionamento exemplar. TABELA DE PREÇOS PARA 2009 PREÇO DE CAPA € 2,00 ASSINATURA ANUAL (11 números) VIA SUPERFÍCIE - Portugal Cont. Madeira e Açores € 20.00 VIA AÉREA - Países europeus € 45,00; Restantes Países € 65,00 NOTA: As assinaturas devem ser pagas antecipadamente NÚMEROS ATRASADOS - 1960 a 1969 € 4,00; 1970 a 1979 € 4,00; 1980 a 1989 € 3,00; 1990 a 2001 € 2,50; 2002 a 2007 € 2,00 Os preços incluem IVA à taxa de 5% Preço da Encadernação do JE do ano de 2007 € 27,95 c/IVA incluído N.B.: Os pedidos de envio pelos CTT serão acrescidos de portes segundo os códigos postais: 1000/2000 € 4,21; 3000/8000 € 5,79; Açores e Madeira € 6,56. 9 FIGURAS e FACTOS Exercício Mau Tempo 08 − Zarco 082 N o período de 17 a 20 de Novembro de 2008 a Zona Militar da Madeira participou no Exercício “MAU TEMPO 08 – ZARCO 082”, que decorreu no Arquipélago da Madeira. Este exercício conjunto de carácter regional foi realizado em estreita ligação e cooperação, nas fases de planeamento e execução, pelo Comando Operacional da Madeira (COM) e pelo Serviço Regional de Protecção Civil e Bombeiros da Madeira (SRPCBM) e teve como objectivos gerais: No âmbito do COM Planear e executar um exercício no âmbito das “Outras Missões de Interesse Público – Protecção civil”, em conjunto com o SRPCBM; Desenvolver e aperfeiçoar a interoperabilidade entre as forças e os meios dos três Ramos das ForçasArmadas sediados na Região Autónoma da Madeira (RAM), em resposta a solicitações do SRPCBM. No âmbito do SRPCBM Proceder ao planeamento conjunto com as Forças Armadas como Agente de Protecção Civil; Activar e coordenar os vários Agentes de Protecção Civil necessários a uma Operação de Emergência. Para o referido exercício foi criado um cenário fictício na ilha da Madeira, consistindo num acidente grave originado por condições meteorológicas muito severas e que colocaram em risco a segurança e o bem estar das populações, provocando a destruição de infra-estruturas e de bens essenciais para o normal desenvolvimento das actividades das populações. Este cenário teve como Teatro de Operações o sítio da Fajã do Penedo, freguesia da Boaventura no concelho de S. Vicente. Como intervenientes no exercício referem-se: Activados por parte do COM Meios do Comando da Zona Marítima da Madeira; Meios do Comando da Zona Militar da Madeira; Meios do Destacamento Aéreo da Madeira. Activados por parte do Comando Local da Polícia Marítima Meios da Polícia Marítima. 10 Activados pelo Sub-Centro de Busca e Salvamento Marítimo da Madeira Meios de Busca e Salvamento Marítimo; SANAS. Activados por parte do SRPCBM Centro Regional de Operações de Socorro; EMIR/Serviço de Emergência Médica Regional; Serviço Municipal de Protecção Civil de S. Vicente; Bombeiros Voluntários de S. Vicente e Porto Moniz; Bombeiros Voluntários de Santana; Bombeiros Voluntários Madeirenses; Bombeiros Municipais do Funchal; Unidade Móvel de Comando e Telecomunicações de Emergência; Reboque de emergência para multi-vítimas; Hospital Central do Funchal; Equipa Regional de Canyoning; Equipa cinotécnica do Grupo Fiscal da Madeira/GNR. Os cerca de cinquenta incidentes injectados ao longo de todo o exercício permitiram testar e avaliar todo um conjunto de capacidades e procedimentos no âmbito das comunicações e sistemas de informação, assim como a activação de meios humanos e materiais em resposta aos pedidos do Serviço Regional de Protecção Civil e Bombeiros da Madeira de acordo com o cenário criado para o efeito. No dia 20 de Novembro, último dia do Exercício, nas zonas de São Cristóvão, Fajã do Penedo e Lamaceiros, em Boaventura, realizou-se o Distinguished Visitors Day (DVDay), onde estiveram presentes diversas Entidades civis e militares, destacando-se o Comandante da Zona Militar da Madeira, Major-General Miguel Rosas Leitão, o Secretário Regional dos Assuntos Sociais, Dr. Francisco Jardim Ramos, o Presidente da Câmara Municipal de São Vicente, Sr. José Humberto Sousa Vasconcelos, o Presidente da Câmara Municipal de Santana, Dr. Carlos de Sousa Pereira, assim como diversos órgãos de Comunicação Social. Ao longo da manhã foram efectuadas várias demonstrações no âmbito da actuação de meios de Busca e Socorro Costeiro, Equipas de Resgate de Montanha, Patrulhas de Reconhecimento, ReconhecimentoVisualAéreo, Equipas de Evacuação Terrestre e Evacuação Aérea (recuperação de ferido grave). Na zona da Fajã do Penedo houve uma VTC (Video-TeleConferência) entre o SRPCBM e os vários Comandos Militares (Comando Operacional da Madeira, Zona Marítima da Madeira e Destacamento Aéreo da Madeira), com meios envolvidos nas operações. Na zona dos Lamaceiros, e antes do final do exercício, que culminou com um almoço de confraternização, houve ainda possibilidade de visualização e acompanhamento da actividade de um Posto de Triagem, um Posto Sanitário de Campanha, meios de resgate e remoção de escombros, assim como uma equipa de alimentação e respectiva cozinha de campanha que forneceu a segunda refeição a todos os intervenientes nas demonstrações e às Entidades convidadas. FIGURAS e FACTOS Lançamento do livro “As Transmissões Militares − da Guerra Peninsular ao 25 de Abril” D ecorreu no dia 16 de Dezembro, na Fundação Portuguesa de Comunicações, o lançamento do livro “As Transmissões Militares − da Guerra Peninsular ao 25 de Abril”. O livro resume a viagem das transmissões militares portuguesas ao longo dos tempos, do pombo-correio à telegrafia, dos telefones de campanha à antena logarítmica periódica, traduzindo-se na evolução das comunicações, consolidada pelo contexto temporal vivido em cada altura. A obra foi produzida pela Comissão da História das Transmissões, representada pelo General Garcia dos Santos, com o apoio da Liga de Amigos do Arquivo Histórico Militar e editado pela Comissão Portuguesa de História Militar, com o patrocinio da Fundação Portugal Telecom. A cerimónia de lançamento foi presidida pelo Chefe do Estado-Maior do Exército, General Pinto Ramalho, e pelo Presidente da PortugalTelecom, Dr. Henrique Granadeiro. A apresentação do livro coube ao Professor Doutor. António Telo. 11 Eduardo Zúquete Primos e Generais Fotocomposição: Mauro Matias “Doze, redoze, vinte e quatro com catorze, dezasseis e vinte e um faz um cento menos um.” de uma lenga-lenga infantil que meu Pai me ensinou, há muitos, muitos anos. O s números primos sempre exerceram um fascínio raro sobre os humanos. Desde a antiguidade mais remota os sábios procuraram métodos de pesquisa rigorosos e exaustivos destes números frios e insociáveis que só admitem como divisores o próprio número e a unidade – o que é a mínima relação possível para a operação da divisão. Daí o nome de primos, talvez para assinalar a sua posição primordial – dividem outros (os seus múltiplos), mas não aceitam divisores (os seus submúltiplos) – circunstância que lhes confere um estatuto de excepção no universo infinito dos números inteiros. Sabem-se coisas lindas sobre os números primos, montes de coisas que aqui não vêm a propósito – excepto como calculá-los de forma rápida e segura. Para isso, é preciso usar um método antigo e maravilhosamente simples, que apenas vai cortando 12 todos os números que não são primos, por actuação do respectivos divisores, e deixa, como resíduo, os primos – afinal, tal como faria uma peneira, deixando passar a farinha e retendo o farelo. Talvez, por isso mesmo, este método antigo e maravilhosamente simples (mas trabalhoso, há que assinalar) se chama Crivo de Eratóstenes, em homenagem ao académico grego do terceiro século a.C. que o inventou. Erastóstenes era uma cabeça genial, talvez um dos mais notáveis e ecléticos cientistas da antiguidade mas, conforme nos conta Robert Crease, os seus contemporâneos tratavam-no depreciativamente por “Beta”, numa alusão pouco velada ao facto de não ser o primeiro em coisa nenhuma... Donde eu concluo que, já nesse tempo, em que se lutava nos Jogos Olímpicos para apenas merecer uma singela coroa de louros, se cultivava a desmedida exaltação do primeiro lugar, culto que, no nosso tempo, tem um lema menos lacónico, mas mais cruel, que estipula que o segundo é o primeiro dos últimos. Tenho para mim, todavia, que grande parte do avanço do conhecimento humano se deve justamente a pessoas que puderam estabelecer pontes, mesmo frágeis, entre diferentes disciplinas e ramos do saber e da experiência, naturalmente à custa de uma menor profundidade no conhecimento de cada uma das partes. Foto:http\\commons.wikimedia Se outra razão não houvesse para recordar este ilustre grego, lembro que se deve a Eratóstenes a primeira tentativa séria e científica de medição do raio da Terra, usando para o efeito conhecimentos múltiplos – a convicção de que a Terra era esférica (facto que, ao contrário de uma ideia muito divulgada, era conhecido desde a Antiguidade e não apareceu com o aventureiro Colombo), a noção do passeio do Sol ao longo da eclíptica e ideias consistentes sobre geometria plana, tentativa que só por si o consagra como um notável cientista.A história é simples e pode repetir-se ainda hoje, se as condições necessárias se verificarem. Reparou ele que em Siena, cidade do Médio Nilo (hoje denominada Assuão) e por alturas do solstício do Inverno, o Sol, ao meio-dia, ficava exactamente na prumada dos poços da cidade e se reflectia na água, o que valia por dizer que uma vara espetada no terreno nesse preciso momento não deixava sombra. Se, na mesma altura, alguém emAlexandria, cidade que se situava num meridiano um pouco mais a oeste do meridiano de Siena, espetasse uma vara no terreno e determinasse o ângulo cuja tangente era dada pelo quociente do comprimento da sombra sobre o comprimento da vara, ângulo igual ao ângulo ao centro formado pelos raios das duas cidades, o problema da dimensão do raio da Terra ficava resolvido, desde que fosse conhecida a distância entre as duas cidades, o que acontecia na realidade. Com este método singelo e genial ele calculou o raio da Terra com um erro inferior a 1,6 %, grau de aproximação notável que resistiu 20 séculos e ainda mais de pasmar se tivermos em conta a dificuldade que, ao tempo, representaria medir, com rigor, uma distância da ordem dos 900 quilómetros, muitíssimo superior ao comprimento das actuais bases geodésicas. Voltando ao crivo, algoritmo que imortalizou o seu nome. Eu compreendo que o facto deste método ser trabalhoso, ingénuo e residual – porque o que se procura, afinal, é o que sobra, não o que se peneira –, atraia irresistivelmente mentes brilhantes e mais actuais que ficariam com o nome gravado a ouro na história da matemática se conseguissem descobrir um algoritmo eficaz de pesquisa de primos – especialmente agora que a segurança das transacções electrónicas depende de um algoritmo baseado, exactamente, em números primos e que a sua detecção passou a ter, além de interesse científico, elevado valor comercial. Contudo, no meu íntimo e por razões que dificilmente poderei classificar de muito científicas, duvido que isso venha a acontecer. Porque o que confere estatuto especial ao número primo é exactamente a circunstância de ser residual e a detecção desta propriedade faz-se por subtracção de todas as outras situações, não é definível ou apreciável de per si. O conjunto das pessoas que não são sócias de nenhum clube desportivo só pode ser obtido depois de serem riscadas da lista universal, uma ou mais vezes, conforme os casos, todas aquelas que são sócias, respectivamente, de um ou mais clubes desportivos. E a massa final que resta na peneira, tal como no Crivo de Eratóstenes, é residual e não tem nenhuma propriedade afirmativa comum, apenas negativa – nenhum deles é sócio de clube algum. Recordo outra frase muito mais conhecida e atribuída a um outro gigante do pensamento e da acção, agora do nosso tempo, Winston Churchill, que terá dito e escrito que a democracia seria o pior dos sistemas, depois de todos os outros. Como muitas frases célebres, também esta permite várias leituras e aquela que me ocorre de momento, é que o formato deste conceito também é residual, como a pesquisa dos primos. Ficamos com os primos quando suprimimos todos os números com outros divisores; ficamos com a democracia quando suprimimos todos os outros sistemas repousando sobre tiranias. Em qualquer dos casos, não há algoritmos fáceis, fórmulas resolventes “chave na mão”, poções mágicas. Tal como o conjunto dos primos só se obtém pela erradicação dos números com divisores, assim a democracia só se pode obter pela exclusão de todas as formas ilegítimas, imorais ou insidiosas de clausura ou subversão da liberdade. Porque, afinal, as tiranias não são exclusivas das ditaduras, nem dos governos, nem do universo político; na vida de todos os dias estamos sujeitos a inúmeras formas de tirania – a do mais alto ou mais forte, a do idoso ou da criança com malícia, a do pseudo-intelectual ou do castelão do “guichet”, a do poder excessivo ou da reparação lenta, a da falsa humildade ou da descarada sobranceria, a da impertinência ou do excessivo volume de voz, a dos dogmáticos e a dos radicais, a dos muito doces 13 14 Foto:http\\commons.wikimedia e a dos muito azedos. Só quando todas estas tiranias forem erradicadas – pela educação, pela cultura e, muito especialmente, pelo genuíno, assumido e convicto respeito pelo próximo, é que se pode falar de democracia. E não apenas porque numas eleições mais ou menos participadas escolhemos o presidente, o governo, o autarca ou o líder de uma qualquer agremiação. Essa será uma forma primitiva, quase primária de democracia. O espaço democrático desenvolve-se em muitas dimensões, não apenas na função linear da votação. E, como o espaço democrático, muitas outras vertentes ou componentes do nosso quotidiano desenvolvem-se em espaços de muitas dimensões – que alguns “cientistas” da modernidade tentam, persistentemente, reduzir a espaços lineares de comparação, de ordenamento, de classificação. Uma vez mais, um processo de crivagem. Não basta o algoritmo resolvente de umas quaisquer eleições, muitas ou poucas, concorridas ou não; é necessário um processo lento e depurador de crivagem, de refinação, de apuramento que constitui afinal o crivo de Erastótenes da democracia. E daí a luminosa frase de Winston, que assim melhor se entende. O sistema não é bom, nunca o será – nem sequer é matematicamente preciso ou rigoroso, como o marquês de Condorcet, Jean-Marie Nicolas de la Caritat, ilustre aristocrata e matemático da melhor cepa, descobriu nos tempos já longínquos da Revolução Francesa. Talvez por isso mesmo, ocorreme de seguida, morreu com a cabeça separada do corpo porque os ferozes defensores da nova ordem tinham da ciência uma noção imperfeita mas, para eles, acabada e não suportavam, como radicais e antidemocratas que também eram, a ideia simples de que a ciência pudesse continuar a evoluir escapando ao controlo das suas limitações. Não é matematicamente precisa ou rigorosa, nem nunca o será – mas é, sem dúvida, o melhor sistema de que dispomos, quando limpo de toda a impureza. O dito de Winston tem a força oculta do Segundo Princípio da Termodinâmica – nunca se poderá provar mas, até à data, toda a experiência o confirma e nada o infirma. Volto aos primos, como uma borboleta tonta regressa à luz. Se pensarmos um pouco, sem grande profundidade matemática, aqui inoportuna, verificamos com facilidade que o lugar possível de todos os primos, salvo nos dígitos primeiros, se situa nos números imediatamente anteriores e imediatamente posteriores à série infinita dos múltiplos de seis: 5 e 7; 11 e 13 ; 17 e 19 ; ... porque todos os outros números da série serão múltiplos ou de 3 (o do meio) ou de 2 (os seus colaterais). E, mesmo assim, esta série reduzida apresenta enormes lacunas, que irão crescendo com o alongamento da série (no par seguinte, 23 e 25, o Winston Churchill, terá dito e escrito que a democracia seria o pior dos sistemas, depois de todos os outros segundo já não é primo e assim por diante). Mas, como a construção das lacunas não apresenta qualquer regra de regularidade, também não se chega, por essa via, a parte nenhuma. A beleza e a singularidade do Crivo de Eratóstenes permanecem intactas, pelo menos desta incursão tosca na génese dos primos. Mas a esta migração, quase inútil, frequente nas veredas mal sinalizadas do meu subconsciente, sucedeu outra, muito mais imprevista. Ocorreu-me que o curso que entrou para a Escola do Exército após o meu, em 1953, e cujos membros desempenharam um papel importante – talvez, mais do que importante, nuclear e decisivo – no Movimento do 25 deAbril, portanto na restauração da democracia em Portugal, foi o único, até agora e, muito provavelmente, para todo o sempre, que incluiu nas suas fileiras seis generais de quatro estrelas, como se chamaram até há pouco entre nós, ou full general, como lhes chamam os militares anglo-saxónicos, a saber: António dos Santos Ramalho Eanes, José Alberto Loureiro dos Santos, Gabriel Augusto do Espírito Santo, João deAlmeida Bruno,Amadeu Garcia dos Santos e Aníbal José Coentro de Pinho Freire, este último apenas graduado e, até agora, o único do grupo já falecido, que curiosamente representavam todas asArmas que, no seu tempo de cadetes, existiam na antiga Escola do Exército – Infantaria, Artilharia (dois), Cavalaria, Engenharia e Aeronáutica (dos sobreviventes se poderá anotar, sem malícia, que há quatro Santos e apenas um Pecador...). Como esta conversa descosida, reflecti eu nessa migração indisciplinada e errática, teria dado um tema maravilhoso, nem muito científico, nem por demais poético, todavia cheio de significado e de encanto, adequado à circunstância, para a aula comemorativa do cinquentenário da entrada do respectivo curso nas instalações da Amadora, em Outubro de 1953. Que figuras de retórica, que paralelismos empolgantes não se poderiam ter feito, então, entre o Crivo de Eratóstenes, na pesquisa dos primos, e o crivo das tiranias, na demanda da democracia, sempre apoiados na magia do número seis e das suas guardas, no grupo dos seis generais e dos seus cursos. Dá para fantasiar sem limites e sem dificuldades. Mas tal não aconteceu, por duas excelentes razões que importa decantar. A primeira foi que eu não recebi nenhum convite para leccionar a dita aula, pelo que não me tenho de penitenciar por uma qualquer recusa que não aconteceu, nem pela perda de uma oportunidade que não se verificou. E a segunda, muito mais íntima, muito mais refinada, mas nem por isso menos importante, é que esta ideia, tão sedutora e adequada, só me ocorreu, verdadeiramente, vários anos depois do evento – fora, portanto, do prazo útil. E isto serve – pelo menos, para mim serviu – para recordar que a mais doce e, talvez, a mais frequente das tiranias ocorre sempre que não enfrentamos com nitidez a verdade, mesmo sem a presença ou conhecimento de terceiros, mesmo sem consequências de nenhuma natureza. Afinal, o tal genuíno, assumido e convicto respeito pelo próximo, indispensável ao estabelecimento da democracia, começa por esse mesmo respeito por nós próprios e pela verdade.JE P.S. Pessoa amiga, a quem pedi leitura e parecer sobre o texto anterior, teve a cortesia de me informar que Aníbal Pinho Freire foi graduado apenas em Tenente-General, o que deita por terra toda a “belíssima” construção em torno do número 6 que nele se desenha. Mas, porque outras reflexões, dele constantes, continuam a ter validade, entendeu-se manter a sua publicação, esclarecendo, todavia, o leitor do involuntário lapso cometido. 15 Primeiro-Sargento António J. Rodrigues A “ sabedoria é a minha riqueza, a razão (juízo) é a raiz da minha fé, o amor é a minha fundação, o entusiasmo é a minha montada, a recordação (lembrança) a Deus é a minha companhia, a firmeza é o meu tesouro, a tristeza (dor) é a minha companheira, a ciência é a minha arma, a paciência é o meu manto, o contentamento é o meu despojo, a pobreza é o meu orgulho, a devoção é a minha arte, a convicção é o meu poder, a verdade é o meu redentor, a obediência é a minha suficiência, o esforço (na causa de Deus) é a minha postura, e a frescura dos meus olhos (o meu prazer) está na minha oração, o fruto do meu coração está na recordação d' Ele e a minha ânsia é para o meu Senhor (para ir ter com Ele)” terá dito, um dia, o profeta Maomé a 'Ali Bin Talib. “Khalifah” é a abreviatura de “khalifat-ur-rassul Allah”, “sucessor do mensageiro de Deus”. Os califas que verdadeiramente seguiram os passos do profeta Maomé são denominados como “califas ortodoxos” ou “califas piedosos” (“khulafa-urrashidin”). O califado islâmico, tal como o conceberamAbu 16 Bakr e 'Umar, constitui uma das experiências mais originais que o Islão conheceu. Com efeito, embora no plano político estes dois califas não tenham conseguido instaurar um regime democrático, no verdadeiro sentido do termo, e se tenham contentado com o conduzir a comunidade segundo o modelo teocrático estabelecido pelo profeta − combinado, no entanto, com uma consulta popular conforme o modelo tribal −, no plano social, pelo contrário, levaram muito longe a aplicação dos princípios formulados pelo Alcorão relativos à justiça social. O primeiro dos referidos princípios é o que afirma a igualdade dos homens entre si, como “dentes do mesmo pente”, precisa um “hadith”i . A esses dois objectivos dedicaram ambos os califas a maior parte dos seus esforços. No plano da política externa, dois princípios guiariam a sua acção: por um lado, a continuação da islamização da Península Arábica, seguindo a última recomendação ditada pelo Profeta: “não deverão subsistir duas religiões na Arábia”. Por outro, o restabelecimento das expedições militares para o Norte, respondendo assim à “Khalifah” é a abreviatura de “khalifat-ur-rassul Allah”, “sucessor do mensageiro de Deus”. Os califas que verdadeiramente seguiram os passos do profeta Maomé são denominados como “califas ortodoxos” ou “califas piedosos” (“khulafa-ur-rashidin”). chamada dos árabes, numerosos nos territórios bizantinos, à pressão dos beduínos, que ambicionavam os referidos territórios, e à necessidade de continuar a luta contra os judeus expulsos dos oásis, que podiam, como já tinham feito com os Qurayshis na “batalha do fosso”, formar uma frente com os cristãos e ameaçar a existência do jovem estado muçulmano. Os esforços dos novos califas tiveram como fim principal os objectivos referidos. Em contrapartida, os seus sucessores, 'Uthman e 'Ali, enredaram-se numa série de lutas intestinas, que viriam a diminuir consideravelmente o ritmo da sua acção e conduziriam a uma mudança radical do regime político, visto que se passou do poder dos califas para a primeira dinastia muçulmana, a dos Omíadas. Inequívoco é que, durante os últimos anos, os muçulmanos tinham erguido os alicerces de um estado. Além de Madinah “al-munawarrah” (Medina, “a esplendorosa”) e de Makkah “alMukarramah” (“Meca, a resplandecente”), a sua autoridade estendia-se desde a fronteira do império bizantino, passando pelos oásis de Fadak e Khaybar, a nordeste de Madinah, habitados por Judeus, até à cidade de Ta'if, a sudeste de Makkah. Numerosos chefes beduínos, mesmo de localidades mais distantes, tinham estabelecido alianças com Muhammad (Maomé) e aceitavam, inelutavelmente, a nova religião. A norte do Iémen, os cristãos de Najran tinham-se também submetido, mediante o pagamento de uma alcavala. Por volta do ano 638 a.C., o discípulo Abu Bakr activa a fase da expansão muçulmana, alargando decisivamente a influência desta a uma vasta zona do mundo, do Oriente (“as-sharq”) ao Ocidente (“al-gharb”). Em quatro anos, são conquistados a Síria, o Iraque e todo o Egipto. Em 661, com o início da dinastia omíada, partindo de territórios do oriente próximo, empenhados em transmitir a última revelação do ciclo profético, estenderam-se por todo o norte de África ocupando e acabando por acaudilhar extensas áreas territoriais onde se situam nos nossos dias a Líbia, a Tunísia, a Argélia e Marrocos. Não foi todavia sem problemas que esta expansão se conseguiu. Impunha-se converter ao Islão as populações autóctones, também guerreiras, apreensivas dos intentos dos invasores. 17 Houve batalhas demoradas no tempo e onerosas nas consequências. Em muitas delas foram mortos líderes de ambos os lados e a hostilidade, pouco atenuada, das relações entre os contendores, conduziu à segregação territorial de uns e de outros, sem que chegasse a haver vencedores e vencidos. No Magrebe, foi “al-qayrawan” (Kairouan, literalmente “acampamento” ou “cidade-fortaleza”) a primeira cidade que fundaram, em 670, sob a anuência do emir (ou “emir”, plural “umara”, “aquele que comanda”, “governador”, “príncipe” ou “aquele que é investido de autoridade militar”) Uqba Ibn Nafi, representante dos califas omíadas de Damasco, cidade que, com o tempo, chegou a ser uma das grandes capitais da “Ifriqiyya” (área geográfica outrora formada pela matriz argelina, tunisina e região tripolitânica) e o primeiro dos quatro mais importantes propugnáculos da fé islâmica no Magrebe, com o intento de aí se estabelecer uma estância estratégica que lhes permitisse vigiar as tribos berberes e preparar as incursões pelo Norte de África sem que os bizantinos, estabelecidos no litoral, os pudessem causticar. Seguiu-se a penetração nos territórios que hoje formam a Argélia e Marrocos, com difusão da cultura árabe e da doutrina religiosa islâmica. A partir do século VIII, os barcos mercantis árabes percorreram o Mediterrâneo e, do Atlântico ao Irão, as caravanas seguiram rotas que atravessavam países, populações e sociedades diferentes. Também então a comunidade religiosa e linguística prevaleceu sobre as diferenças ou sobre os conflitos políticos. O resultado disso para o mundo muçulmano foi, desde finais do século VIII até ao século XI − e mesmo mais tarde em alguns casos −, uma intensa actividade económica e um domínio da vida comercial mediterrânica, domínio que se estendeu pelo interior do continente africano e teve uma incontestável influência sobre a vida dos territórios situados nas margens setentrionais do Mediterrâneo. Em todas estas vastas zonas impuseram uma disciplina social e política cujas regras assentavam em princípios religiosos da mensagem revelada no Alcorão. E com respeito por esses princípios determinaram uma ordem política hierarquizada capaz de resistir a fenómenos de desagregação. Seguro da sua riqueza em homens e em produtos de todos os tipos, o mundo árabe-islâmico impôs a sua lei em matéria de economia: o dinar (de ouro) e o dirham (de prata) islâmicos eram as moedas que serviam de base às transacções comerciais. Esta actividade impulsionou o desenvolvimento de 18 Impuseram uma disciplina social e política cujas regras assentavam em princípios religiosos da mensagem revelada no Alcorão grandes centros urbanos antigos (Damasco) ou a criação de outros novos (al-Fustat, Baghdad, Kairouan, Fez, etc.), o que atestava a riqueza e o poder desta civilização. O Califado de Abu Bakr “Se eu tivesse que escolher um amigo que não o meu Senhor, teria preferido Abu Bakr”, exora um dito do profeta Maomé. Antes de abraçar o Islão, Abu Bakr era já conhecido como um respeitado cidadão e abastado comerciante de Makkah. Três anos mais novo que Maomé, uma certa afinidade natural aproximou-os desde tenra idade. Permaneceu como companheiro mais próximo do profeta e quando este convidou os seus amigos e parentes mais chegados a adoptarem o Islão, Abu Bakr contava-se entre os que primeiro o fizeram. Conseguiu, inclusivamente, persuadir os cépticos 'Uthman e Bilal, um escravo negro, alto e magro, de voz estentórea, natural da Abissínia, escolhido depois por Maomé para proferir o “adhan” (“chamamento”, “apelo” à prece). Abdul Ka'bah (“servo da Ka'bah”) era o seu verdadeiro nome. O epíteto de Abu Bakr (“o pai dos camelos”) obtê-lo-ia mais tarde, devido ao seu grande interesse na criação de camelos, sendo também conhecido por Abdullah (“servo de Deus”) e Siddiq (“a testemunha para a verdade”).Abu Bakr, o primeiro dos califas ortodoxos, homem modesto, justo e fiel à recordação do mestre, tentou segui-lo passo a passo, inspirando-se no seu pensamento e acção. A primeira acção empreendida terá sido O epíteto de Abu Bakr (“o pai dos camelos”) obtê-lo-ia mais tarde, devido ao seu grande interesse na criação de camelos retomar o projecto de uma expedição que o profeta preparara contra os territórios bizantinos e que havia sido adiada em consequência da sua morte. Apesar da conjuntura política desfavorável e das divergências levantadas à volta da sua sucessão, o novo califa quis expressar assim a sua fidelidade à política realizada pelo profeta. Um dos outros problemas do momento, que corria o risco de se generalizar assim que a notícia da morte do profeta Maomé foi conhecida, era a rebelião e a recusa, por parte de um certo número de tribos do Centro e do Sul, em pagar a “zakat” (esmola legal), taxa devida sobre os valores dos bens, e que era paga obrigatoriamente pelos mais abastados para distribuir pelos pobres. Os preâmbulos da apostasia já tinham começado a aparecer antes de ter expirado o profeta, mas a morte deste veio dar-lhes um forte impulso. Muitas tribos justificavam essa atitude com a prerrogativa de que aquela obrigação era somente devida ao profeta. Entre essas tribos estavam os “kindi”, os “rabi'a” do Bahrain, os “azdi” de Oman, um grupo de “banu tamim” (que acabariam por seguir uma pseudo-profetisa da tribo dos “banu taglib”, chamada Sajah), “banu tay” (“banu” significa “filhos de”; – é o plural de “ibn” e designa filiação, propriedade e vínculo entre os diversos ramos da ascendência ou da descendência), os “gatafan” –, os “asad” (que se deixaram persuadir por um pseudoprofeta chamado Talha al-Asadi), os “banu hanifa” (arrastados por outro falso messias chamado Musaylima, “o mentiroso”) e por iemenitas influenciados por um terceiro visionário, al-Aswad al-'Anasi, cuja acção se iniciara ainda em vida do profeta e cuja morte teve lugar pouco tempo antes da deste. Abu Bakr enviou contra estas tribos forças militares que os obrigam a desistir da apostasia e, simultaneamente, ordenou ao mais importante dos seus generais, Khalid ibn al-Walid, então estabelecido em Yamama, um homem de suprema coragem e um comandante nato, conhecido por “saifullah” (“a espada de Deus”) − título atribuído pelo Profeta Maomé após a memorável campanha de Muta, que opôs muçulmanos a romanos e na qual a coragem de al-Walid que, diz-se, terá quebrado nove espadas nas suas mãos, se tornou uma verdadeira apologia à estratégia e heroísmo de guerra −, que penetrasse ainda mais na direcção do Iraque, região que naquela época se encontrava sob o domínio sassânida. O exército muçulmano dirigiu-se para al-Ubulla e defrontou-se com o exército sassânida na “batalha das cadeias” (“as-salasil”), no decurso da qual Jalid matou Hormuz, governador sassânida, em combate singular. O êxito sorriu novamente às tropas de Abu Bakr nas batalhas de al-Midar, al-Walja, Ullays, Angishya, Maqr e Badaqla. Deu-se então a conquista pelos muçulmanos de 'Ayn al-Tamr, Duma e al-Firad, nas fronteiras sírio-iraquianas e, com este bastião, a partir do ano 633, a parte ocidental do Iraque, habitada essencialmente por 19 árabes, ficou sob a autoridade dos seguidores de Maomé. Na primavera de 634, Jalid recebeu ordens para se dirigir à Síria, para onde Abu Bakr enviara tropas a fim de atacar os bizantinos. Vários confrontos com estes terminariam com as vitórias muçulmanas de Tabuk, Wadi'Araba e Datin. Perante a ameaça desta campanha, os bizantinos reuniram então um grande exército destinado a deter os progressos dos muçulmanos e a proteger as fronteiras do Império. Abu Bakr terá ordenado então a Jalid que se dirigisse para a Síria a fim de reforçar as tropas comandadas por Yazid ibnAbi Sufyan, em particular, e por 'Amr ibn al-'As, que lhe pedira auxílio. Abu Bakr formou assim um comando único, confiado a Jalid (a quem, posteriormente, foram feitas acusações de crueldade e despotismo) e em Março de 634 iniciou-se a marcha árabe sobre a Síria-Palestina, que só se deteria depois da tomada da Cesareia marítima, em Outubro de 640, já sob o comando de Mu'awiya, futuro fundador da dinastia omíada. O encontro entre os exércitos muçulmano e bizantino, comandado por Teodoro, irmão de Heraclio, teve lugar a 20 de Agosto de 634 nas margens do Yarmuk, afluente do rio Jordão.A vitória dos muçulmanos foi arrebatadora e abriu-lhes o caminho para Damasco, Homs, Alepo, Antioquia e, mais tarde, para o Norte do Iraque, região que J.H. Breasted denomina de “Crescente Fértil”. Abu Bakr morreria no dia 23 de Agosto de 634, com a idade de 63 anos, sendo enterrado ao lado do profeta Maomé. Graças a um espírito conciliador que lhe permitiu pôr fim a todas as resistências que se opunham ao califado e sabendo rodear-se de homens devotos e influentes na comunidade, tais como 'Umar e 'Uthman, que lhe sucederiam, Abu Bakr deixou ao seu sucessor uma Arábia pacificada, uma comunidade consolidada no seu interior e soberana de uma política externa vitoriosa, frente aos impérios bizantino e sassânida. O seu califado teve a duração de apenas 27 meses (632-634). O Califado de 'Umar “Deus abençoou a língua e o coração de 'Umar com a verdade”, terá dito um dia o profeta Maomé. 'Umar Ibn Al-Khattab nasceu no seio de uma respeitável família Quraish, treze anos após o nascimento de Maomé. Enquanto criança, aprendeu a manejar a espada, a ler e a escrever, algo extremamente raro em Makkah, naqueles tempos. 'Umar ganhava a vida como comerciante. O seu mister levou-o a terras estrangeiras, tendo contactado com todo o tipo de pessoas. Esta 20 experiência dar-lhe-ia a possibilidade de analisar, profundamente, as empresas e os problemas dos homens. A personalidade de 'Umar caracterizava-se pelo seu dinamismo, determinação, franqueza e frontalidade, exprimindo sempre o que sentia e pensava, mesmo que tal pudesse desagradar aos outros. A história da sua adesão ao Islão é bastante interessante: estava-se no sexto ano da proclamação da profecia. 'Umar tinha 27 anos de idade quando o profeta proclamou a sua missão. As ideias que Maomé professava incomodavam-no, assim como a muitos dos Quraish.A fúria dele não conhecia limites e perseguia todos os que emigravam para aAbissínia, acusando o profeta de ser a maior causa da divisão entre a sua gente. Quando a sua serva aceitou o Islão, bateu-lhe até à exaustão, dizendo-lhe: “parei porque estou cansado e não por ter piedade de ti”. Outra vez, cheio de animosidade para com as ideias do profeta, desembainhou a espada e preparou-se para matá-lo. Nesses dias Maomé passava o tempo numa casa perto do monte Safa, em Dar Al-Arqam, onde congregava comAbu Bakr, Hamza, 'Ali e alguns outros. 'Umar sabia dessa reunião e tomou rumo da referida casa. Por coincidência, pelo caminho deparou-se-lhe um amigo, Nuaim ibn Abdallah. Quando 'Umar lhe disse qual era a sua intenção, o amigo informou-o que a sua própria irmã, Fátima, e o marido dela, Said ibn ZaidAl-Adwi, tinham também aceite o Islão. Ao ouvir isto, 'Umar regressou logo para casa do cunhado e da irmã. Quando lá chegou ouviu alguém recitar o Alcorão. Furioso, entrou de rompante e agarrou em Said começando a baterlhe. Fátima levantou-se para socorrer o marido e foi também bruscamente agredida. Magoada, terá dito ao irmão: “Umar, tu podes fazer o que quiseres, mas não nos podes obrigar a renegar o Islão”. Abu Bakr deixou ao seu sucessor uma Arábia pacificada, uma comunidade consolidada no seu interior e soberana de uma política externa vitoriosa Estas palavras tiveram um efeito inesperado em 'Umar. Que fé era aquela que tornava tão fortes de coração até as mulheres mais fracas? Pediu, então, a sua irmã que lhe mostrasse o que tinha estado a ler. Fátima retorquiu-lhe: “Se queres ver, primeiro toma um banho, porque estás imundo, não podes tocar no Alcorão”. Depois, trouxe à sua presença fragmentos onde estavam escritos capítulos do Alcorão.Ao verificar o seu conteúdo, 'Umar rendeu- se à paz e deixou que as palavras alcorânicas caíssem bem fundo no seu coração. Convertido, dirigiu-se a casa onde permanecia o profeta Maomé e jurou-lhe fidelidade, tendo aquele dado-lhe a denominação de “faruk”, que significa "o que distingue a verdade da falsidade". Receando as divisões da comunidade por motivo da sua sucessão, Abu Bakr recomendou a designação de 'Umar, o que não deixou de reavivar os ressentimentos entre os emigrados e os auxiliares, assim como entre os partidários de 'Ali e os outros muçulmanos. Fiel aos seus antecessores, tal como a si mesmo, visto que era o braço direito de Abu Bakr e o seu melhor conselheiro, 'Umar continuou a mesma política de organização no interior e de conquistas no exterior. No Iraque, a uma derrota na “batalha da ponte” (“al-jhisr”), em Outubro de 634, seguiu-se uma série de vitórias muçulmanas, das quais a mais importante foi a de al-Qadisiyya (fins de Maio de 637), que abriu as portas da parte iraniana do Iraque ao exército muçulmano. De al-Qadisiyya até Nihawand (642), passando por Babilónia, Ctesifonte − então capital dos sassânidas−, Takrit, Qirqisya, Tustur e Gondisabur, a marcha foi gloriosa e triunfal. A seguir ao assassínio de Yazdgard III (rei sassânida de 632 a 651), a resistência da Pérsia enfraqueceu consideravelmente e ficou reduzida a algumas oposições locais e periféricas. Foi assim que, sob o comando de 'Umar, o Islão alargou o seu domínio a toda a Síria, a todo o Iraque e a uma grande parte da Pérsia. Os nomes de três batalhas resumem esta gloriosa fase de conquista: Yarmuk, em 634, Qadisiyya, em 637, e Nibawand, em 642. Enquanto o exército muçulmano avançava através do território persa, outro exército, comandado por 'Amr ibn al-'As, dirigia-se para a Palestina. O patriarca de Jerusalém, Sofrónio, negociou com 'Amr a submissão da cidade. Entre outras condições estabeleceu-se, por exigência do patriarca, que o próprio califa 'Umar iria tomar posse das chaves da cidade santa, o que ele fez em 637. A escassa resistência que o exército encontrou na Palestina incitou-o a continuar a sua marcha na direcção do Egipto, terra rica que os nómadas da Arábia cobiçavam. Em Dezembro de 639, o exército ocupou al-'Aris e daí tomou a rota que tinham seguido anteriormente todos os conquistadores. Esta rota conduziu-o a al-Farma (Janeiro de 640), a leste da actual Port Said, a Balbis e a Babilónia do Egipto. Acampou em Heliópolis ('Ain Shams), aguardando a chegada dos reforços que vinham de Madinah para poder atacar 21 a cidade-fortaleza de Babilónia do Egipto, onde se refugiara o exército bizantino. O cerco durou sete meses e terminou com a vitória dos muçulmanos (6 de Abril de 641).Ao tomar este importante ponto estratégico, situado na parte superior do delta do Nilo, os conquistadores tinham aberto o caminho tanto para o sul como para o norte. Alexandria rendeu-se a 8 de Novembro de 641, ao cabo de um longo cerco e da assinatura de um tratado de paz que dava aos habitantes um prazo de doze meses para decidirem se saíam da cidade com o exército bizantino ou se ficavam e pagavam um tributo. A perda de Alexandria, considerada então como a segunda capital, depois de Constantinopla, foi um duro golpe para Bizâncio. Em duas ocasiões, em 645 e 654, grandes armadas tentaram, sem êxito, recuperá-la. Depois destas tentativas bizantinas, o exército muçulmano empreendeu a conquista sistemática do Baixo e do Alto Egipto. 'Umar imprimiu à governação do seu califado uma estrutura administrativa, criando departamentos do Tesouro, do Exército e de Receitas Públicas. No plano financeiro criou o tesouro (“bayt al-mal”), que era mantido com a quinta parte dos despojos de guerra, o produto das terras conquistadas (“al-fay”), o imposto sobre bens de raiz (“al-jaraj”) e o tributo pago por cristãos e judeus (“al-jizya”), assim como a esmola legal dada pelos fiéis, que se destinava aos muçulmanos necessitados. Foram estabelecidos salários fixos para os soldados. Para poder realizar uma gestão sã e equitativa destes recursos, 'Umar instaurou o “diuan”, cujo papel consistia em anotar os rendimentos e as despesas. Estabeleceram-se critérios sobre a distribuição de pensões aos muçulmanos que mais as merecessem, em função da data da sua adesão ao Islão, da sua participação nas primeiras grandes batalhas, do seu grau de parentesco com o profeta ou do facto de pertencerem aos emigrados de Makkah ou aos auxiliares medineses. No plano militar, 'Umar conseguiu que o exército muçulmano se tornasse o mais poderoso do seu tempo. Dotou-o de grandes chefes, mandou construir acampamentos, como os de Kufa e Bassora, no Iraque, e o de al-Fustat, no Egipto, a fim de não se misturarem com os habitantes das terras conquistadas, e distribuiu entre os soldados quatro quintos dos despojos de guerra. No plano da organização civil nos países conquistados, conservou em geral as estruturas existentes, que eram de tipo militar. Assim, a Síria estava dividida em cinco regiões militares (“al22 Ao verificar o seu conteúdo, 'Umar rendeu-se à paz e deixou que as palavras alcorânicas caíssem bem fundo no seu coração jund”): a Palestina, com Jerusalém como centro; a Jordânia, com Tiberíade como centro; a Damascena (de Tiro a Trípolis), com Damasco como centro; Homs, que englobava as regiões de Homs, Hama e Laodiceia, e Qinnasrin, que compreendia as regiões de Qinnasrin, Alepo e Antioquia (de formação mais tardia). Em geral, acontecia o mesmo nos outros países: o princípio era nomear um governador militar que garantisse o poder religioso, político e administrativo, acompanhado de um “amil” (funcionário do fisco), que dirigia as finanças da província. Cumprindo uma vontade do profeta, 'Umar expatriou aArábia de cristãos e judeus. Os primeiros tiveram de abandonar Najran, e os segundos, Jaybar. Com isso, a Arábia passou a ser totalmente muçulmana. Só se consentiu uma excepção, a favor dos cristãos taglibis, a quem se tolerou que mantivessem a sua religião, por terem ajudado o exército muçulmano na conquista do Iraque, mas com a condição de os seus filhos serem educados segundo o Islão. Entre as outras iniciativas de 'Umar, refira-se a da fixação do ano da Hégira (622), como ponto de partida da era muçulmana. Por outro lado, sob o seu califado, o árabe tornou-se a língua oficial do Estado, que viu favorecida a sua expansão devido à dispersão dos árabes pelas terras conquistadas. Por isso, não demorou a transformar-se em língua religiosa, literária e cultural da Síria-Palestina, Iraque e Egipto. Além disso, nestes países, a sua implantação viu-se favorecida pela existência de tribos arabizadas em consequência das grandes emigrações ocorridas nos séculos anteriores. Quando 'Umar morreu, assassinado em 644, o Islão dominava o Iraque, parte da Pérsia, até ao Sind, toda a Síria e o Egipto. Sob o governo do seu sucessor, as forças muçulmanas concentraram-se em três frentes: a frente asiática, a frente africana e a frente anatólica. Mas as graves divisões que separaram a comunidade árabe dificultaram a vitoriosa marcha dos seus exércitos. Além das conquistas, o balanço político do califado de 'Umar é imenso. Para a história do Islão, ele foi o verdadeiro organizador do Estado muçulmano. Certa vez, uma mulher apresentou uma queixa contra ele. Quando apareceu no tribunal perante o juiz, este levantou-se em sinal de respeito para com o califa. 'Umar observou de pronto: “este é o primeiro acto de injustiça que infligistes a esta mulher!”. Querendo evitar dissensões na comunidade, tinha previsto um conselho cujo papel consistiria em nomear um sucessor quando chegasse a altura disso. Este conselho era formado por seis dos homens mais representativos das diversas tendências existentes em Madinah: 'Uthman Ibn 'Affan, dos Omíadas, 'Ali IbnAbi Talib, dos Hashim, al-Zubayr Ibn al-'Awwan, filho de uma tia materna do Profeta,Talha Ibn 'UbaydAllah, notável medinês, As'd Ibn Abi Waqqas, conquistador do Iraque, e 'Abd al-Rahman Ibn 'Awf, um dos ricos emigrados. À frente destes possíveis pretendentes ao califado, 'Umar pôs o seu filho 'Abd Allah. No entanto, este não poderia ser eleitor nem elegível e só teria voto consultivo. As suas funções, portanto, seriam as de supervisar os trabalhos do conselho e fazer executar as decisões deste. Sendo os candidatos à sucessão de 'Umar tão numerosos como os votantes, 'Abd al-Rahman propôs retirar-se da competição na condição de poder designar o novo califa. Elegeu 'Uthman, com grande descontentamento por parte de 'Ali, alZubayr e Talha. Esta eleição deu origem à grande provação (“al-mihna”) que iria sofrer o Islão primitivo. Em 23 d. H., quando se dirigia à mesquita para a oração, um “maula” da “seita dos mágicos” de seu nomeAbu Lulu Feroze, que teria algo a nível pessoal contra 'Umar, atacou-o com uma adaga e apunhalouo diversas vezes. O califa não resistiria aos ferimentos e viria a falecer, no dia seguinte, com 61 anos de idade, numa quarta-feira, dia 27 do mês de “zu-alhijjah”. Governou de 634 a 644, e terá sido enterrado ao lado do profeta Maomé, em Madinah. O Califado de 'Uthman “Todo o profeta tem um conselheiro e o meu será 'Uthman”, terá dito o profeta Maomé. Quando 'Umar Ibn Al-Khattab tombou, presumivelmente vítima de um mago escravo, várias testemunhas pediram-lhe que, antes de expiar, nomeasse um sucessor. 'Umar apontou um painel composto de seis dos dez “companheiros do profeta Maomé” (e sobre os quais este terá dito: “eles são pessoas do céu”), 'Ali, 'Uthman, Abdul Rahman, Sa'ad, Al-Zubayr e Talha , a fim de eleger, de entre eles, o próximo califa. Após dois dias de Um dos contributos mais relevantes que 'Uthman ofereceu aos muçulmanos foi a compilação de um texto completo e autorizado do Alcorão 23 discussões entre os candidatos e depois de expressas as opiniões dos muçulmanos de Makkah, a escolha recaiu finalmente em 'Uthman, o terceiro califa do Islão. 'Uthman ibn Affan nasceu sete anos depois do profeta Maomé. Pertencia ao ramo Umayya (Banu Umayya) da tribo Quraish. Aprendeu a ler e a escrever muito cedo e, ainda jovem, tornou-se num próspero comerciante. Era conhecido como “dhur nurain” (“o detentor de duas luzes”), devido ao privilégio de ter tido como esposas duas filhas do profeta Maomé, respectivamente Ruqayyah e Kulssum. 'Uthman participou nas famosas Batalhas de Uhud e de Trench. Após esta última, o profeta resolveu realizar a peregrinação a Makkah, fazendose acompanhar de 'Uthman, como seu emissário aos Quraish. Este episódio terminaria com o acordo conhecido por “Tratado de Hudaibiya”. O domínio de 'Uthman estendeu-se para Ocidente até Marrocos, para Oriente até ao Afeganistão e para o Norte até à Arménia e Azerbaijão. Durante o seu califado foi organizada a marinha, as divisões administrativas do estado conheceram uma nova dinâmica e muitos projectos públicos ganharam forma. 'Uthman enviou companheiros do profeta como seus deputados a diversas províncias com o intuito de investigar cuidadosamente a conduta dos oficiais, assim como as condições dos povos. Um dos contributos mais relevantes que 'Uthman ofereceu aos muçulmanos foi a compilação de um texto completo e autorizado do Alcorão. 'Uthman reinou durante doze anos (644 - 656). Os primeiros seis foram pautados por alguma tranquilidade interna. No entanto, durante a segunda metade do seu califado despoletou uma intensa rebelião. Rivalidades existentes entre os clãs de Makkah antes da pregação de Maomé, estavam a dar origem a uma série de crises institucionais. Com efeito, os Banu 'Abd Shams e os Banu Hashim, descendentes de 'Abd Manaf, filho de Qusayy, rivalizavam quanto à sua influência na cidade. Tendo o seu pai concedido a Hashim o privilégio de abastecer os peregrinos de água e alimentos, 'Abd Shams, pai de Umayya, dedicouse ao comércio de caravanas e estabeleceu relações mercantis com a Abissínia, o Egipto, a Síria e o Iraque. À medida que iam enriquecendo mais que os seus primos, os Banu Umayya passaram a desempenhar um papel determinante no seio do senado oligárquico que governava a cidade. Tendo aderido ao Islão depois de o terem combatido, tentaram recuperar o seu prestígio perdido por 24 motivo da conquista de Makkah e desempenhar, no Islão, o papel que tinham anteriormente. Conseguiram-no com Mu'awiya, fundador da dinastia Omíada. A reacção dos Hachemitas (dos quais sairia a dinastia dos Abássidas) perante a ascensão dos seus primos foi-se tornando cada vez mais violenta. Ao verem que os dois primeiros califas não eram hachemitas e que o terceiro era omíada, endureceram a sua oposição à subida deste ao trono. Por outro lado, este entendeu não os tratar com deferência, confiando os postos-chave aos seus e utilizando os fundos públicos de acordo com os seus interesses. Assim, multiplicaram-se os partidários do pretendente hachemita ao califado, 'Ali, primo do profeta e seu genro, e intensificou-se o seu descontentamento. 'Uthman conseguiu, com a sua política, alinhar contra ele os emigrados e os auxiliares, com excepção de alguns indivíduos, na sua maior parte muçulmanos das grandes cidades (al-Fustat, Kufa, Bassora) e personagens influentes de Madinah, tais como Talha, al-Zubayr e 'Aisha, que queria o califado para o seu irmão Muhammad. Aos descontentes juntaram-se algumas delegações dos países conquistados, que chegaram em Abril de 656 e cercaram 'Uthman na sua residência, exigindo-lhe mudanças e reformas. No entanto, o seu ambiente omíada, de que não conseguia desligarse, impedia-o de satisfazer os sitiantes. Mu'awiya, que tinha consolidado o seu poder na Síria, ambicionava a sucessão de 'Uthman, seu parente e aliado, e aguardava o seu desaparecimento para consegui-lo. É surpreendente que um governante de tão vastos territórios, cujos exércitos não tinham igual, se visse impotente perante tal rebeldia. Numa sextafeira, dia 17 de Junho de 656, em 17 de “zu-alhijjah” do ano 35 da Hégira, após prolongado cerco, os rebeldes penetraram na casa de 'Uthman, assassinando-o. Tinha 84 anos. O poder dos rebeldes era tão grande que o seu corpo permaneceu por enterrar com as suas roupas ensanguentadas, a mortalha mais apropriada aos mártires da causa do Islão. Apesar dos distúrbios que abalaram o califado de 'Uthman e que conduziram ao seu assassínio, o balanço dos seus doze anos de poder não foi episódico. Na Pérsia, o exército muçulmano penetrou no Turquestão, após a pacificação das regiões conquistadas e chegou até aos arredores de Derbent, donde foi repelido pelos turcos. Avançou seguidamente pela Cirenaica, a oeste, pelo Cáucaso, a norte, até Oxus e ao Hindu Kush, a leste. Em 711 tinham chegado a Tashkent e começado a consolidar o domínio islâmico na Ásia Central, empreendimento que foi efectivado com a derrota das forças chinesas na batalha do rio Talas, em 751. No ocidente, concluíram a conquista do Norte de África e, em 709, prosseguiram, através da Espanha, até França. Na Ásia Menor, Mu'awiya, que operava por sua conta, realizou algumas razias nas zonas costeiras e chegou até 'Amuriyya (Amorion). Estas incursões proporcionaram-lhe ricos despojos de guerra. A seguir apropriou-se de várias fortalezas arménias na Cilícia, ocupou por algum tempo as ilhas de Chipre (649 e 653) e Rodes (654) e realizou alguns saques nas costas sicilianas em 652, com o auxílio da primeira armada muçulmana, criada por ele. Em África, após as tentativas fracassadas de Bizâncio para recuperar Alexandria, o exército muçulmano consolidou as suas posições no Egipto e avançou para o sul, onde conquistou a Núbia. Ao fim de uma feroz resistência, os núbios firmaram um acordo de paz com os muçulmanos. De regresso a Alexandria, o exército árabe partiu à conquista de algumas possessões bizantinas na África do Norte: apoderou-se com facilidade da Tripolitânia e chegou até Cartago, após quinze meses de ataques e cercos contra as cidades fortificadas que ia encontrando à sua passagem. Satisfeitos com os despojos que tinham obtido, os chefes do exército muçulmano decidiram regressar ao Egipto. No entanto, a crescente oposição à política de 'Uthman e o seu assassínio diminuíram o ritmo das conquistas até as deter em todas as frentes. Seria preciso esperar a subida ao poder de Mu'awiya para que se retomassem as acções militares. No interior, 'Uthman, que se tornara califa aos 70 anos, teve de enfrentar uma violenta oposição popular contra o partido omíada e contra alguns companheiros do profeta que tinham acumulado grandes fortunas e reconstituído, deste modo, a oligarquia de Makkah, contra a qual o profeta lutara durante toda a sua vida. O porta-voz da classe pobre, um piedoso companheiro de Maomé, escandalizado pela vida de desregramento, prodigalidade e jogo que levavam os jovens com os Banu Umayya, criticou publicamente o regime. O califa exilou-o para o Nedjed (formado tão depressa por desertos de areia, “nufud”, como por desertos pedregosos, “alhamada” ou “al-harra”, com escassos pastos que os nómadas disputavam), onde não tardou a morrer, o que não fez mais do que intensificar a fúria do povo contra 'Uthman. Outro problema que veio criar o descontentamento e afastou de 'Uthman um grupo de homens que começava a desempenhar um papel importante na sociedade daquela altura, foi a questão dos “qurra”, leitores e transmissores do Alcorão. Na origem deste descontentamento estava a codificação do livro sagrado. 'Umar, alarmado pela morte, no decorrer das guerras contra as tribos apostaras, de vários companheiros do profeta, tinha pedido a Zayd Ibn Tabit, sob o califado de Abu Bakr, que reunisse os capítulos do Alcorão antes do total desaparecimento das testemunhas da revelação. Mas outro companheiro, 'Abd Allah Ibn Mas'ud, tinha-se consagrado à mesma tarefa, o que retardou a escolha de uma recensão canónica única. Depois de se tornar califa, 'Uthman pediu a Zayd que acabasse o seu trabalho, ordenando os capítulos recolhidos segundo uma ordem de extensão crescente. O califa realizou a recensão definitiva e mandou que se queimassem e destruíssem as outras recensões, completas ou incompletas, já existentes. O texto estabelecido por ordem de 'Uthman é o que chegou até nós. lbn Mas'ud, governador de Kufa sob o mandato de 'Umar, mas destituído por 'Uthman, acusou este de ter introduzido modificações em textos do Alcorão Em África, após as tentativas fracassadas de Bizâncio para recuperar Alexandria, o exército muçulmano consolidou as suas posições no Egipto e avançou para o sul, onde conquistou a Núbia 25 e de não ter tido em conta algumas “leituras” contidas no seu próprio códice. Isto veio levantar a corporação dos leitores contra o califa. Entre as referidas “leituras” modificadas ou suprimidas, havia, ao que parece, textos que testemunhariam o direito de 'Ali a suceder ao profeta Muhammad. Quando 'Uthman morreu, e dada a violenta oposição contra o partido omíada, 'Ali parecia o único candidato digno de assumir o califado. Forçado pelo ambiente a seu favor, viria a aceitar o califado com resignação. O Califado de 'Ali “Tu ('Ali) és meu irmão neste mundo e no outro”, terá dito um dia o profeta Maomé. Após o martírio de 'Uthman Ibn Affan, o lugar do califa permaneceu vazio durante dois ou três dias. Muitas pessoas insistiam para que 'Ali Ibn Abi Talib tomasse o lugar, mas este encontravase embaraçado com o facto de tal proposta. No entanto, quando os companheiros do profeta também lhe pediram ele resolveu, finalmente, aceitar. 'Ali Talib era primo do profeta Maomé, tendo crescido na própria casa de infância deste. Mais tarde, desposaria a sua filha mais nova, Fátima, permanecendo com ele perto de trinta anos. 'Ali tinha dez anos de idade quando Maomé recebeu a “mensagem divina”. Certa noite, ele viu o profeta e a sua esposa Khadijah prostrados. Terá perguntado, então, ao profeta, o significado das suas acções, ao que este respondeu estarem a rezar ao Deus único, Todo-Poderoso, e que ele deveria também aceitar o Islão. 'Ali terá argumentado que gostaria de se aconselhar, primeiramente, com seu pai. Passou uma noite de insónia e, de manhã, dirigiu-se ao profeta tendo-lhe dito: “Quando Deus me criou, Ele não consultou o meu pai. Assim, porque terei eu de consultar o meu pai para servir Deus?”. Quando chegou a “Revelação”, Maomé convidou os seus familiares para uma refeição. Após terem terminado, dirigiu-se aos seus parentes, perguntando-lhes: “Quem se junta a mim na causa de Deus?". Houve um profundo silêncio durante algum instante, e a seguir 'Ali levantou-se exclamando: “Eu sou o mais novo de entre os que aqui estão presentes. Os meus olhos incomodamme porque estão inflamados e as minhas pernas estão magras e fracas, mas juntar-me-ei a si, e ajudálo-ei conforme puder”. A assembleia irrompeu num riso ridículo. No entanto, durante os difíceis dias em Makkah, 'Ali fez justiça a tais palavras 26 Com a morte de 'Ali chega ao fim a primeira e uma das mais notáveis fases da História do Islão enfrentando todas as adversidades de uma forma sacrificada. Quando os Quraish planeavam assassinar Maomé, 'Ali dormiu na cama deste, envolvido no manto verde que o profeta costumava usar, arriscando a sua vida com estóica lealdade e abnegável bravura. Exceptuando a expedição de Tabuk, 'Ali combateu em todas as batalhas do Islão com distinção, particularmente na jornada de Khaybar. Diz-se que na batalha de Uhud terá sofrido mais de dezasseis ferimentos. Maomé conceder-lhe-ia o nome de “assadullah” (“Leão de Deus”). O Profeta amava 'Ali e chamava-o por muitos e carinhosos nomes. Certa vez, encontrando-o adormecido sobre a poeira, sacudiu-lhe as vestes e disse-lhe, afectuosamente: “Acorda abu turab!” (“pai do pó”). A sua sagacidade e austeridade conferiram a 'Ali uma enorme distinção entre os companheiros do profeta.Abu Bakr, 'Umar e 'Uthman consultaramno, frequentemente, durante os seus respectivos califados. Muitas vezes 'Umar, na sua ausência, fêlo vice-regente em Madinah. Era, igualmente, um grande entendido em literatura árabe, e foi o pioneiro no campo da gramática e da retórica. Os seus discursos, sermões e cartas serviram como modelo de expressão literária para muitas gerações. Muitos dos seus ditos sensatos e epigramáticos foram conservados. Apesar disso, manteve-se sempre modesto na sua conduta. Uma vez, já durante o seu califado, quando se dirigia ao mercado, um homem reconheceu-o, levantou-se em sinal de respeito e seguiu-o. 'Ali parou, voltou-se para trás e ter-lhe-á dito: “Não faças isso. Tais maneiras são uma tentação para um governador e uma desgraça para o governado”. Como já anteriormente foi mencionado, 'Ali aceitou o califado com bastante relutância. O assassinato de 'Uthman e os eventos que o rodearam eram um sintoma e causa de uma provável guerra civil, em larga escala. Durante cinco anos 'Ali iria ser fustigado com as maiores dificuldades. Alguns companheiros influentes recusaram-se a reconhecê-lo e outros governadores que ele destituiu negaram-se a abandonar os seus postos. O mais poderoso deles era Mu'awiya, governador da Síria, que se dedicou a criar-lhe dificuldades e a afastar do novo califa uma parte cada vez mais importante da comunidade, tanto em Madinah como nos países conquistados. A situação no Hijaz tornar-se-ia de tal forma insustentável que 'Ali teve de deslocar a sua capital para o Iraque. A primeira dificuldade que 'Ali teve de enfrentar foi vingar o sangue de 'Uthman. Mu'awiya reclamava-o e incitava os nostálgicos do califado, al-Zubayr e Talha, a que se dirigissem a Kufa e a Bassora para amotinarem contra 'Ali os habitantes destas duas populosas cidades. Al-Zubayr e Talha encontraram uma aliada excepcional na pessoa de 'Aisha, viúva do profeta, que também reclamava o castigo dos assassinos de 'Uthman. Os partidários dos Omíadas fizeram afluir a Makkah, de Bassora e do Iémen, muito dinheiro e um grande número de camelos. Formouse um exército de mais de 1.000 ginetes, que se dirigiu a Bassora. Ao chegar a al-Mirbad, 'Aisha pediu ao povo de Bassora que se lhe juntasse. Então, 'Alí, que equipara um exército para combater Mu'awiya, marchou, por sua vez, para aquela cidade e enviou uma delegação a Kufa para que os seus habitantes aderissem à causa do califado. A batalha teve lugar em meados do mês de Dezembro de 656. O exército de 'Aisha contava com 30.000 homens e o de 'Ali, com 20.000.Al-Zubayr e Talha caíram em combate. Então, o núcleo do exército rodeou 'Aisha, montada no seu camelo. 'Ali ordenou que dirigissem as setas para o animal, para não ferir a viúva de Maomé. O seu irmão Muhammad, que tinha dado a morte de 'Uthman, tirou 'Aisha da sua liteira, colocou-a sobre um palanquim e conduziu-a a Bassora, onde 'Ali a tratou com todas a deferências. Posteriormente, 'Aisha compreenderia o erro de juízo que havera cometido, nunca se tendo perdoado por isso... “Quem me dera nunca ter nascido!”, repetia constantemente. A “batalha do camelo” custou a vida a cerca de 10.000 muçulmanos, o que desgostou 'Ali, mas causou regozijo a Mu'awiya, que esperava que este confronto tivesse enfraquecido o exército do califa. Começou imediatamente a criar dissensões entre os muçulmanos do Egipto, uma parte dos quais aderiu a ele, e activou logo os preparativos para um confronto decisivo contra 'Ali, que se tinha instalado em Kufa para estar mais perto da Síria. O confronto entre os dois exércitos teve lugar em Siffin, perto de al-Raqqa, nas margens do Eufrates, em Junho de 657. O exército de 'Ali, formado por iraquianos e membros de tribos árabes divididas entre si, contava com 150.000 homens. O de Mu'awiya, com apenas 50.000, mas eram homens decididos a vencer, guiados por um chefe que estava a jogar tudo por tudo e que era aconselhado por outro personagem ainda mais ambicioso que ele, 'Amr Ibn al-'As, governador da Palestina, que negociou previamente com Mu'awiya a sua retribuição no caso de se dar a vitória e conseguiu a nomeação como governador da rica província do Egipto. Mu'awiya apressou-se a chegar a Siffin antes de 'Ali e pôde assim escolher a localização para o seu acampamento, uma planície fértil perto do Eufrates. 'Ali não conseguiu encontrar um acesso ao rio, necessário para abastecer de água os seus homens, e teve de obtê-lo pela força, embora o tenha deixado aberto para os dois exércitos, contra a opinião adversa das suas tropas. Houve várias trocas de mensageiros entre os dois chefes, com a esperança de evitar a batalha, mas as negociações conduziram a um beco sem saída. Passados dez dias, 'Ali atacou com todo o seu exército e esteve prestes a alcançar a tenda de Mu'awiya que se dispunha a fugir quando 'Amr Ibn al-'As teve a ideia de fazer embandeirar o Alcorão e pedir uma trégua aos seus adversários. O exército de 'Ali, dividido, obrigou o califa a suspender os combates. Após uma troca de mensageiros, ambas as partes aceitaram uma arbitragem. 'Amr Ibn al-'As era o representante da parte síria eAbu Musa Al-Ash'ari da parte iraquiana. O acordo baseava-se na aceitação incondicional da decisão que ambos tomassem. Em Fevereiro de 658 encontraram-se em Adruh, na província de alBalqa', a leste do Jordão, cada um dos antagonistas acompanhado por 400 homens. 'Amr servir-se-ia de um estratagema para favorecer os seus interesses: deixou falar primeiro Abu Musa, que 27 anunciou aos presentes depor ambos os antagonistas e que deixava aos muçulmanos o encargo de elegerem o novo califa. Quando chegou a sua vez, 'Amr aceitou a deposição de 'Ali e proclamou califa Mu'awiya. O mundo muçulmano encontrou-se, pois, dividido em dois califados: a leste, a Península Arábica, o Iraque e a Pérsia, sob o poder de 'Ali; a oeste, a Síria e o Egipto, sob o poder de Mu'awiya. Mas os seguidores de 'Ali estavam, por sua vez, divididos em dois campos. O primeiro deles era formado pelos que, cansados da guerra, declinaram o seu ódio contra Mu'awiya e os sírios, contentando-se com o fornecer provas jurídicas da legitimidade de 'Ali: foram denominados “shi'itas” (“shi'a” de “shi'atu'Ali”, “o partido de 'Ali”). Os componentes do outro campo eram basicamente nómadas, não aceitavam o princípio da arbitragem nem das suas consequências e exigiam a 'Ali que provasse os seus direitos com as armas. Como os primeiros eram mais numerosos e tinham maior influência sobre o califa, este não pôde seguir os segundos. Por isso, estes deixaram o exército de 'Ali e chamaram-lhe “infiel”, comparando-o a Mu'awiya. Foram denominados “jarijis”, que quer dizer, “desertores” do exército de 'Ali, tendo formado um exército com cerca de 3.000 combatentes decididos a atacar 'Ali. O encontro teve lugar em Nahrawan, entre Wasit e Baghdad. Embora os “jarijis” tenham combatido valentemente, foram esmagados pelo exército de 'Ali. Por seu lado, Mu'awiya enviou um exército para o Egipto sob o comando de 'Amr Ibn al-'As, que se tomou governador do país. Surgiram também dificuldades entre 'Ali e o seu primo 'Abd Allah Ibn 'Abbas, governador de Basra, acusado de corrupção e de injustiça. Obrigado a prestar contas a 'Ali da sua gestão, lbn 'Abbas apoderou-se do conteúdo do tesouro e fugiu para Makkah, o que causou graves dissensões entre os habitantes de Basra. Enquanto os “jarijis” semeavam o terror no Iraque e multiplicavam as exigências de tributos, a guerra civil começava a alargar-se e Mu'awiya equipava um exército para invadir o Iraque. 'Ali debatia-se com os seus “partidários”, que continuavam a recusar-se a fazer parte do exército que ele preparava para pacificar o Iraque e reconquistar a Síria e o Egipto. Acabou por convencê-los, depois de os ter ameaçado de se apresentar sozinho perante o inimigo. Não obstante, era já demasiado tarde, visto que os “jarijis” tinham decidido suprimir os culpados das sangrentas divisões entre os 28 muçulmanos, ou seja, Mu'awiya, 'Amr Ibn al-'As e 'Ali. Era o quadragésimo ano da Hégira (“hijra”). Um grupo fanático de “jarijis” kharijitas encarregou três executores, que acordaram o dia e hora precisa para cumprir o seu crime. Escolheram a sexta-feira, 21 de Janeiro de 661, à hora da oração matutina. Mu'awiya salvou-se da morte graças à sua cota de malha; 'Amr, doente naquela manhã, designou para presidir à oração o chefe da sua polícia, que morreu em seu lugar. Mas 'Ali foi atacado numa mesquita por Ibn-Muljim, que o atingiu com uma espada envenenada, e pereceu assassinado. Ao assassínio de 'Ali, consequência imediata do de 'Uthman, sendo ambos o resultado de uma rivalidade ancestral entre dois clãs de Makkah que disputavam entre si a primazia, consagrou a cisão da comunidade islâmica em três grupos: os Omíadas, fundadores de uma dinastia que reinaria de 661 a 750, os Hachemitas, fundadores do império abássida (“abbasiii”), que se manteria até à tomada de Baghdad pelos Mongóis, em 1258, e os Kharijitas, que continuariam a atacar durante muito tempo ambos os califados e que fundaram imanados independentes em Oman e no Norte de África. Com a morte de 'Ali, cujo califado durou de 656 a 661, chega ao fim a primeira e uma das mais notáveis fases da História do Islão. Durante todo este período foi o Alcorão e as práticas de Maomé, o último Mensageiro de Deus, a “sunnah”, que guiaram os dirigentes, fundamentaram os modelos da sua conduta moral, para além de terem inspirado as suas acções. Foi uma época de justiça social, em que governante e governado, rico e pobre, poderoso e fraco, se encontravam equitativamente sujeitos à Lei Divina. Depois de 'Ali, Mu'awiya assumiu o califado. A partir de então, este ganhou um carácter hereditário, passando de uma dinastia para outra.JE i “Ahadith qudsi” (“hadith” no singular, cujo significado literal é “história”, “relato”, “narração”), são colecções de “tradições” relativas ao profeta Maomé que pretendiam inicialmente ajudar o crente a solucionar os problemas que a governação de um vasto império colocava. Estas ciências, denominadas de “siratu rassul” (biografia tradicional do Profeta), são numerosas e de diversos géneros. As “ahadith” são, pois, conjuntos de condutas apostólicas (“sunnah”, “caminho trilhado”), sermões, linguagem aforística ou metafórica, pausas tácitas, beneplácitos, desaprovações ou quaisquer outros procedimentos relativos aos mais diversos assuntos, adoptados pelo profeta e preservados por aqueles que estiveram presentes ou por aqueles a quem as suas memórias chegaram às mãos por via das primeiras testemunhas. Tenente RC Ana Rita Carvalho A Antiguidade Clássica encerra valores, ideais, motivos e temas que constituem uma matriz fundamental da nossa cultura, com irradiação ao longo dos séculos e em diversas esferas do conhecimento e da actividade humana. Um desses tópicos − “as armas e as letras” −, imortalizado por um dos nossos poetas maiores, Camões, espelha um duplo perfil e missão cometidos ao homem e ao cidadão, letrado e guerreiro, como ressonância do ideal cívico e militar que, do Classicismo à Idade Média, até à era Moderna e à Contemporaneidade se corporizou em figuras modelares ou assumiu expressão em renovadas imagens e na forma mentis do Povo Português e da cultura ocidental. A origem do tópico das armas e das letras é, na verdade, bastante remota. Luís de Sousa Rebelo, em estudo aprofundado que lhe dedica1, situa a sua origem mais longínqua na religião pré-histórica do Indo-Europeu, no qual “o sistema cósmico, religioso e social se hierarquizava numa ordem trinitária de funções: A Soberania (…), a Guerra e a Fecundidade. A função de Soberania aparece aí dominada pelo carácter duplo, que assume o Rei que a exerce, ora mágico e terrificante, ora sábio e justo.” (op. cit.,p. 195). Essa antinomia funda30 mentará, segundo o autor, a cosmovisão veiculada na Cultura Clássica greco-romana, sendo primeiramente herdada pelos gregos. Não abordaremos, por estar fora deste âmbito, a inscrição e amplificação deste tópico na literatura e na cultura clássica greco-latina. Retenhamos, todavia, a sua existência no mundo helénico, matriz fundadora da cultura ocidental. Da origem remota do Indo-Europeu, o binómio “armas e letras” transita, com variantes, para a cultura greco-romana, sendo trabalhado nas epopeias homéricas, em que a aretê, a excelência guerreira, coexiste com o culto das letras e das artes, revelando-se os seus heróis pelas qualidades de inteligência e de sageza.Aquiles (na Ilíada) ou Ulisses (na Ilíada e na Odisseia), revelam-se no teatro de guerra, pela bravura em combate, mas igualmente pelos artifícios de inteligência, de que o último é pródigo, ao conceber, por exemplo, o célebre Cavalo de Tróia, episódio mencionado no Canto VIII da Odisseia. Nesta obra, o herói, adquirindo o epíteto de “artificioso”, fará frente aos múltiplos obstáculos que se lhe deparam no percurso, mercê do seu carácter engenhoso e da sua criatividade. Já na epopeia de Virgílio, A Eneida, a par do valor militar e, numa dimensão que supera o ideal homérico, Foto:http\\commons.wikimedia segundo o qual ambas as virtudes − a força bélica e a sageza− investem o herói, afirma-se uma ética e uma moral que caracterizam a excelência do herói enquanto cidadão dotado de inteligência prática e de um saber que o elevam para lá da força do seu braço. Na epopeia latina, o ideal heróico é transmutado − enquanto Aquiles corporiza o valor militar e Ulisses a astúcia, Eneias personifica um novo ideal, não apenas guerreiro mas de cidadania activa, no governo da cidade e como fundador de uma nova pátria.Assim, o herói Eneias, na sua longa viagem e, mais tarde, pela missão de que é incumbido ao fundar Roma, é investido de uma virtude moral (iustitia, pietas) e de um ideal de civilidade (civitas) que transcendem a acção bélica. O epíteto que o caracteriza é disso sinónimo − ele é o “pius Eneias” (o “piedoso”, num sentido diferente daquele que a tradição judaico-cristã consagrou), o herói dotado de um sentido moral do dever ante os deuses da cidade e perante os homens, seus concidadãos, na defesa do território e do Estado por si fundado. A pietas é incorporada e vivida pelo herói virgiliano num sentido que o investe como bom cidadão, edificando o valor da polis, a cidadeestado, qualidade que difere, em certa medida, da sageza do herói homérico, profundamente Da origem remota do Indo-Europeu, o binómio “armas e letras” transita para a cultura greco-romana, sendo trabalhado nas epopeias homéricas, em que a aretê coexiste com o culto das letras individualizado. Este distingue-se em combate − como Aquiles − ou no cenário da viagem, real e simbólico percurso − como Ulisses. O astucioso herói homérico, após a guerra de Tróia, enceta a sua magnífica viagem, horizonte temático central nesta epopeia fundadora, no imaginário e na Literatura ocidental, de um sentido de errância. Constituirá este, aliás, um dos mitos estruturantes do imaginário português, antes mesmo da odisseia 31 real do seu povo, aquando dos Descobrimentos, que no plano simbólico constituem a superação dos feitos narrados nas epopeias clássicas. Esta mesma ideia se encarregou Camões, o Poeta maior da nossa epopeia, de fixar em Os Lusíadas, justamente realçando que os Portugueses superam, na terra como no mar, as façanhas dos antigos, desde logo pela essencial diferença de a aventura deste povo ser real. Ouçamos a voz do Poeta na estrofe terceira do Canto I, de Os Lusíadas: Convém, todavia, relembrar que já antes da epopeia marítima, o tema da errância estivera presente, na nossa Literatura e na vida colectiva, durante a Idade Média, sobretudo na Lírica, em algumas Cantigas de Amigo. E também nos romanceiros, sob a inspiração de narrativas muito divulgadas à época, nomeadamente a da viagem de Marco Pólo. E é justamente o modelo de herói humanizado e dotado de sapiência, para além das virtudes guerreiras, que vai transitar para a Idade Média e depois para o Renascimento, adquirindo expressão, não apenas no campo da Literatura mas igualmente no contexto bélico da luta contra o infiel, conjugando as duas feições − a do guerreiro e a do homem dotado de uma grandeza de alma à altura dos santos e heróis. Lembremos os romances ou rimances, poesia narrativa cujos protagonistas surgem modelados segundo um ideal heróico de inspiração cristã e que, no plano do real, encontram inúmeros representantes na nossa História medieval, tendo um dos seus exemplos mais acabados no Condestável Nun' Álvares Pereira. Durante a Idade Média proliferam, nas Letras, as hagiografias, as vidas de santos, e também a panegírica, em que se revitaliza uma tradição retórica que advém da Antiguidade Clássica e de autores cristãos da baixa Idade Média. O lirismo galaicoportuguês, que ganhou expressão a partir de finais do século XII, tendo atingido o apogeu no século XIII e o declínio no século XIV, está intimamente ligado à valorização concedida pelo rei e pela corte às artes e às letras, a qual por sua vez reflecte o prestígio social assumido, no seio de uma elite social, pela aliança entre a cultura e um espírito marcadamente cavaleiresco. A figura do cavaleiro32 Foto:http\\commons.wikimedia Cessem do sábio grego e do troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandre e de Trajano A fama das vitórias que tiveram, Que eu canto o peito ilustre lusitano A quem Neptuno e Marte obedeceram; Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta. trovador assume um papel social importante, consubstanciando plenamente a articulação das “letras” e das “armas”. Esse ideal, veiculado na tradição ibérica e não somente portuguesa (é herdeiro da tradição occitânica), encontrara expressão plena na corte de Afonso X, o Sábio, rei de Castela e avô de D. Dinis. Como traço prevalecente da tradição clássica na Idade Média ressurge, segundo Sousa Rebelo, “um ideal de monarca ilustrado, dominante na D. Dinis incarnou magnificamente o ideal das armas e das letras, tendo a sua corte constituído exemplo máximo civilização hispano-islâmica.” (op.cit., p.196). Este perfil no qual se conciliam de novo a grandeza épica e guerreira e o culto das letras e das armas encontra, entre nós, o seu exemplo mais perfeito no rei D. Dinis, “Trovador" e "Lavrador”, em cujo reinado se fixam definitivamente as fronteiras portuguesas, sobretudo em zonas limítrofes do território nacional, entre as quais Olivença. D. Dinis incarnou magnificamente o ideal das armas e das letras, tendo a sua corte constituído exemplo máximo, na nossa Idade Média, embora também nas cortes de D. Sancho II e de D. Afonso III fosse concedido algum relevo às Letras. D. Dinis promoveu uma importante política de fixação de populações e de estabilização do território, detentor como foi de uma visão prospectiva no âmbito daquilo que hoje designaríamos por ordenamento do território. Paralelamente, na sua corte floresceram as letras e as artes, e o próprio monarca foi poeta maior na arte de trovar, como o comprovam as Cantigas de Amigo e de Amor por si escritas (legounos, no total, 138). Esses poemas revelam uma riqueza estilística e compositiva e uma complexa urdidura de motivos e temas, sendo de destacar a subtileza com que tratou o tema da Saudade (conceito mais tarde amplamente tratado por D. Duarte). A par das obras de feição religiosa e da poesia lírica peninsular dos cancioneiros, surge a crónica, os primeiros textos históricos, de que constituem Foto: arquivo JE No caso de Fernão Lopes, expoente máximo da nossa cronística medieval, desenha-se nos seus textos um modelo de herói colectivo sumo exemplo a Crónica Geral de Espanha, de 1344, uma literatura hispânica, pois se enquadrava num meio cultural que envolvia toda a Península Ibérica, sem prejuízo da definição de fronteiras dos Estados que então iam despontando. Já no âmbito da literatura especificamente nacional, encontram-se naturalmente as crónicas de Fernão Lopes e, mais tarde, de Zurara. No caso de Fernão Lopes, expoente máximo da nossa cronística medieval, desenha-se nos seus textos um modelo de herói colectivo, contracenando com o individual, centrado nas figuras régias e da aristocracia. Nas suas crónicas, é o colectivo que se movimenta em grandes quadros humanos, tendo subjacente um ideal cívico que conduz, muitas vezes, à luta armada. Veja-se, a título de exemplo, a Crónica de El-Rei D. João I . Outro exemplo de nobre letrado digno de menção foi entre nós o de D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos (1289-1354), filho natural de D. Dinis, que à sua volta constituiu um núcleo de tradutores e compiladores de textos antigos. Porém, e apesar de a educação literária ser parte integrante da formação da classe aristocrática, as exigências das campanhas militares constantes, durante a Idade Média, com o processo da Reconquista, levaram a que o culto das letras fosse persistentemente relegado a segundo plano em face da actividade castrense. A própria função social dos nobres, enquanto guerreiros, numa sociedade profundamente estratificada, conduziu muitas vezes a um desprezo pelas artes e pelas letras, tendência que coexistiu com a contrária, ou seja, com a preocupação de conciliar a Literatura com a Guerra. Segundo Luís de Sousa Rebelo, na obra citada, tal tendência verificou-se já mesmo na Crónica Geral de Espanha, de 1344, compilada pelo Conde de Barcelos, e assumiu a forma de oposição entre o cavaleiro (guerreiro) e o clérigo (letrado). Em sentido diverso, o binómio das armas e das letras instituiuse como opção entre os filhos dos nobres, situação decorrente do próprio direito sucessório, cabendo aos primogénitos assumir cargos políticos (associados, naquele tempo, ao poder armado), embora os segundos filhos normalmente fossem também armados cavaleiros, posto que instruídos na oratória e nas letras em geral2. Este modelo educativo ajustava-se, naturalmente, ao modelo social propugnado para a aristocracia, o qual virá a ter longa vida, prolongando-se até ao século XIX, enquanto modelo social. A nobilitação da cultura, nas cortes dos nossos primeiros monarcas, que a par da arte da guerra define a compleição do nobre medieval, está patente na Instituição Universitária, como é atestado pelos Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1309, sob a égide de D. Dinis, nos quais pontifica a ideia de que o fortalecimento do poder real decorre não apenas das armas mas igualmente da cultura letrada, nomeadamente das leis e da justiça. Durante o século XIV, com o movimento político e social desencadeado pela crise dinástica de 138385 e pela revolução que levou ao trono D. João I, se vai afirmando, no seio da burguesia, o direito de cidadania fundamentado na Lei. A afirmação desse direito vê-se nomeadamente nas Cortes de Coimbra, em 1385, onde João das Regras (e outros doutores da lei pertencentes ao Conselho do Mestre de Aviz, como João Afonso da Azambuja, Gil d' Ossém e MartimAfonso) procedem à legitimação do Mestre, enquanto monarca, através do Direito Canónico. Gera-se nova tensão social, que opõe a velha aristocracia à burguesia, em que se incluem os letrados, magistrados e judeus, frequentemente letrados, que tomaram o partido de D. Leonor Teles e de Castela, em 1383-85, contra o povo das cidades e vilas de Portugal, o que contribuiria para a generalização de um menosprezo pelas letras. A burguesia identificar-se-á progressivamente com os valores do Humanismo, em que os dois termos do binómio “armas e letras” se compatibilizam. D. João I constitui um exemplo de rei cavaleiro (dado às letras apenas no final da sua vida). Serão sobretudo seus filhos − a Ínclita Geração − especialmente D. Pedro das Sete Partidas e o futuro 33 É, porém, no Renascimento dos séculos XV e XVI, pela reabilitação da Cultura Clássica que então ocorreu, que o binómio das “letras e das armas” ganha renovada expressão, sob a inspiração de autores do Humanismo italiano, tendo assumido igualmente grande dimensão na Espanha dos séculos XVI e XVII. É todavia sob a pena do poeta maior do Renascimento − Camões − que o tópico literário ganha expressão mais sublimada. O conhecido verso de Os Lusíadas “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” (Canto VII, est.79) condensa-o admiravelmente, ao mesmo tempo que aponta uma vertente experiencial. Leia-se a estrofe referida, em que o poeta vem referindo-se às ninfas do Tejo: Olhai que há tanto tempo que, cantando O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A Fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo e novos danos Agora o mar, agora experimentando Os perigos mavórcios inumanos, Qual Cánace que à morte se condena, Numa mão sempre a espada e noutra a pena. Foto: arquivo JE rei D. Duarte, autor de uma obra célebre, O Leal Conselheiro, que constituirão exemplos acabados do nobre sapiente e guerreiro. Todavia, após o desastre militar de Alfarrobeira (1449) e a morte do Conde D. Pedro, assistir-se-á a uma reafirmação social da aristocracia terratenente, tendência acompanhada por uma estratificação mais rígida da sociedade, levando a uma nova cisão entre a cultura letrada e o poder militar. Por outro lado, a cisão opera-se também com a cultura religiosa, cuja visão subordina os feitos cavaleirescos a uma ordem de valores espirituais. Com a política africana de D. Afonso V (143881) reemerge a aristocracia feudal e seus valores castrenses, os quais se associam, de um modo geral, uma secundarização da cultura letrada face ao mérito militar do “cavaleiro”. Todavia prevalece a consciência de que o poder político e militar deve ser sustentado, inclusivamente, no valor das leis. Nas Ordenações Afonsinas consta assim que “todo o poderio e conservaçom da República (…) proced[e] da raiz e virtude de duas cousas, a saber, Armas e Leyx”. (Livro I, art.2, tomo I, Coimbra, 1792, p. 3, apud Luís de Sousa Rebelo, op. cit., p. 205). D. João I constitui um exemplo de rei cavaleiro. Serão sobretudo seus filhos - a Ínclita Geração - que constituirão exemplos acabados do nobre sapiente e guerreiro. deixando transparecer certa nota dissonante relativamente ao pouco apreço em que eram tidas as Letras. O poeta propugna um ideal de herói esclarecido, remetendo, por exemplo, para César, nas estrofes 96-99 do Canto V: Vai César subjugando toda a França, E as armas não lhe impedem a ciência; Mas numa mão a pena e noutra a lança, Igualava de Cícero a eloquência. O que de Cipião se sabe e alcança, É nas comédias grande experiência. LiaAlexandro e Homero, de maneira Que sempre se lhe soube à cabeceira. Canto V, 96 Enfim, não houve forte Capitão Que não fosse também douto e ciente, Da lácia, grega ou bárbara nação, Senão da portuguesa tão somente. Sem vergonha o não digo, que a razão De algum não ser por versos excelente, É não se ver prezado o verso e a rima, Porque quem não sabe a arte, não na estima Canto V, 97 Canto VII, est 79 O tópico das “letras” e das “armas”, reflectindo, em Camões, um ideal de conciliação entre o saber e a acção, apresenta, por vezes, matizes diferentes, 34 Camões evoca, nestes versos, a querela que opôs o pensamento político de Cícero ao de César (o primeiro dos quais sobreleva um ideal de cidadania à acção política imposta pelas armas ante Foto:http\\commons.wikimedia Foto:http\\commons.wikimedia Camões consuma assim ele mesmo o ideal de congruência entre as armas e as letras as grandes questões nacionais), defendendo um ideal de civilidade. A esta linha de pensamento opõe-se a de César cuja acção e ideologia política assentam no militarismo. Porém, no político e chefe militar que foi César, a acção guerreira não é incompatível com o culto das letras, como nos diz Camões. Já quanto a Cícero, uma das suas mais célebres obras é Pro Arquia (Em defesa do poeta Arquias), a qual relata o caso que o levou aos tribunais em defesa do poeta que pretendia a concessão de cidadania romana, sustentado no merecimento que as Letras lhe concediam, ao perpetuar os grandes feitos da cidade de Roma. Alexandre Magno é também, naqueles versos, exemplo do chefe militar que durante as campanhas se cultiva nas Letras e na História, diverso do português, afeito às armas mas avesso às Letras. Camões, na sua obra épica, faz a apologia dos grandes feitos de armas dos Portugueses, ao mesmo tempo que lança uma invectiva aos seus contemporâneos para que cultivem as Letras e exalta o valor da razão e da ciência, a par do valor militar. Ele próprio foi soldado e tomou armas pela sua Pátria, sublimando-a pela Literatura e elevando os feitos humanos à categoria de heroísmo. Camões definir-se-á numa cultura de “saber de experiências feito”, ante D. Sebastião, a quem dedica o poema épico, auto-representando-se como poeta e como militar e construindo o seu próprio modelo de herói, como é definido na estrofe 155 do Canto X: “Pera servir-vos braço às armas feito;/ Pera cantar-vos mente às Musas dada”. Camões consuma assim ele mesmo o ideal de congruência entre as armas e as letras, porém de modo complexo, já que o mesmo tópico é repensado noutros lugares da sua obra. À assunção de um ideal cívico e de um modelo humano de completude, haurido na formação humanística e militar, contraporá o desprezo pelas Letras que era constante entre os seus contemporâneos, o que constitui a negação daquele ideal cívico-militar. À constatação desse facto, a sensibilidade poética de Camões associará alguns temas recorrentes na sua obra, como o do desengano, do desconcerto do mundo e da vacuidade das acções humanas, ou o tema clássico do tempus fugit, da fugacidade do Tempo e da vida. Veja-se a amarga visão veiculada nas “Oitavas sobre o desconcerto do Mundo”, na célebre “Canção X”, e em Os Lusíadas: No mar tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade aborrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno? Canto I, 106 35 Noutro lugar do Poema, expressa a visão desencantada de poeta cuja musa se encontra exaurida e não logra alcançar o entendimento dos seus contemporâneos, que desprezam o canto e a poesia. Assim sucede quase no fecho do poema, no Canto X: presente ainda hoje no imaginário português. Na ascendência de sentido do binómio “armas e letras” está o da sapientia et fortitudo (do saber e da força), com expressão, na Idade Média e no Renascimento, tendo inspirado o ideal do rei ilustrado, que se propagou por toda a Europa, sobretudo nos séculos XVII e XVIII.A figura do rei ilustrado conjuga a faceta bélica com a sapiência das artes e das letras repercutindo num ideal de vida cortesã. Para além de Camões, em Os Lusíadas, 1572, na sua obra lírica, e na poesia de Sá de Miranda, o tópico das “armas” e das “letras” vai ser glosado, na pena de humanistas como Garcia de Resende (Cancioneiro Geral, 1574), Diogo de Teive, Diogo do Couto (O Soldado Prático, 1612), João de Barros (Ásia, 1552), Fernão Lopes de Castanheda (História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, 1551), Pero de Andrade Caminha, António Ferreira, Jacinto Freire de Andrade (Vida de D. João de Castro, 1651), etc., associado a um compromisso cívico e a um ideal de “humanismo militante” (Sousa Rebelo, op cit, p. 212), de que ressai a união entre pensamento e acção. Neste último plano, se inscreve a guerra, que era justificada, no plano da conquista e da manutenção de um vasto Império, como também justificada pela Literatura e por ela sublimada. No plano político, assistir-se-á a uma centralização do poder régio, já a partir do reinado de D. João II (1481-1495), que retirou privilégios à nobreza, política continuada no reinado de D. Manuel I (1495-1521), acompanhada de um ressentimento contra a cultura humanista de letrados e judeus. Porém, um outro factor estratégico Não mais Musa, não mais, que a lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho, Não no dá a Pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Du?a austera, apagada e vil tristeza. Canto X, est. 145 36 Nessa época floresce um movimento cultural e uma literatura que exaltam a aliança do ideal de cavalaria com a acção nobilitante da cultura Foto:http\\commons.wikimedia A oposição entre os dois termos do binómio − “armas e letras” − decorre assim, ao olhar do humanista que foi Camões, de condicionantes sociais, impondo-se, pela própria Reconquista e, depois, pela aventura marítima, a figura do “cavaleiro” ou do “guerreiro”, cuja missão prioritária era a de defesa do território. Camões personificando um ideal de Humanismo renascentista, incarna o duplo perfil − o de cavaleiro, ou soldado, e o de letrado. A sua biografia e a sua obra reflectem essa dupla matriz da sua formação e do seu percurso existencial, corporizando ele o perfil de poeta errante por mar e por terra, lugares do recontro e da guerra e também da viagem e do conhecimento. Se se vem desmistificando a ideia de que a Idade Média seria uma época de trevas (por contraposição ao Renascimento e depois ao Iluminismo), a recuperação e dignificação da Cultura dos primeiros séculos da nossa existência opera um reajustamento da imagem de Portugal e dos portugueses, no encontro com algumas das suas principais matrizes culturais. A recuperação da cultura medieval vem demonstrar que a figura do cavaleiro não é incompatível com a do letrado. Aliás, nessa época floresce um movimento cultural e uma literatura que exaltam a aliança das letras com as armas, do ideal de cavalaria com a acção nobilitante da cultura. Por outro lado, a acção evangelizadora inspirada no ideal de Cruzada, a concepção do Estado e do Direito, como inspiração divina, durante a Idade Média, e a tensão social gerada pela existência dos cristãos-novos, grupo do qual saíam muitas vezes os letrados, levaram à prevalência de um ideal guerreiro, em detrimento de uma cultura baseada no conhecimento livresco, o que irá prolongar-se até ao Renascimento. Esta entrada tardia da cultura humanista entre nós coexiste com a pervivência do antigo espírito de cavalaria, tão Foto:http\\commons.wikimedia No reinado de D. João III tem lugar uma reforma cultural, no âmbito da qual é revalorizado o estudo das Humanidades levou à valorização das acções guerreiras e de uma cultura marcadamente militar no reinado de D. Manuel I, “O Venturoso” − as conquistas ultramarinas antes e depois da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, a acção bélica e, sobretudo, de fixação dos portugueses nos territórios descobertos. O antigo papel do nobre conquistador volta à boca de cena, privilegiando-se, na sua formação, o adestramento na arte da guerra, em detrimento da formação literária, embora o rei nunca haja descurado a importância desta formação na educação dos nobres. D. Manuel e, sobretudo, D. João III (1521-1557) vão preocupar-se especialmente com a formação de fidalgos e com a criação de uma elite intelectual que servisse os interesses da Coroa e do Estado, ao mesmo tempo que se tentava dirimir conflitos e oposições de ordem social, chamando à Corte quer fidalgos quer burgueses formados na Universidade de Coimbra. Importante, neste contexto, foi a Reforma Joanina de 1537, que introduziu alterações no currículo de estudos. Está a constituir-se uma incipiente classe política oriunda da burguesia e da aristocracia, tendo na Universidade um esteio de formação para os altos cargos do Estado, ao mesmo tempo que se estrutura um novo paradigma social, segundo o qual o direito conferido pela linhagem não é requisito suficiente para o exercício de funções, devendo ser complementado pela formação universitária. As reformas na Universidade concretizaram uma abertura intelectual, vindo alimentar a Coroa, que passa a estar dotada de uma classe de letrados altamente qualificados e de um alto clero afecto já aos ideais humanistas. Todavia, o clima de relativa abertura intelectual, em que os ideais humanistas se plasmam numa Literatura e numa Cultura fecundas e originais, é logo coarctado pelo Concílio de Trento (1545-65), pela Contra-Reforma e pela acção da Inquisição, cerceadora do Saber e da Liberdade. No reinado de D. João III, “o tópico das armas e das letras atinge a sua consumação ideológica, passando a ser copiosamente glosado, em contextos diversos, e integrado num ideal de Humanismo Cívico.” (id.,p. 208). A formação humanística é então essencial aos conselheiros do Rei, associando-se ao binómio das “letras” e das “artes” o do “saber de experiências feito”, glosado por Camões. De facto, no reinado de D. João III tem lugar uma reforma cultural, no âmbito da qual é revalorizado o estudo das Humanidades, em que as artes e as letras são valorizadas pelo conhecimento que facultam ao Homem sobre si mesmo e sobre a sociedade e o Estado, devendo estar presentes no espírito daqueles que o governam. O Saber assume mesmo uma expressão de liberdade, porquanto ao homem livre deve assistir um espírito de sabedoria. Essa mesma concepção está presente num texto do humanista Diogo de Teive, a Oratio in laudem Ioannis tertii (Oração em louvor de João III), publicado aquando da inauguração do Colégio dasArtes, em 1548, na qual se defende que as artes proporcionam ao Homem o conhecimento propiciador da liberdade, e propugna um ideal de liberdade cívica, aplicável ao conselho régio e extensível ao próprio poder local, na administração das cidades do reino, estando esta, tal como o poder judicial, tutelada pelo Soberano. Recupera-se também, na cultura humanista, o valor da memória e da escrita, como inscrição perene de feitos e personagens memoráveis. A obra escrita equipara-se, em valor, às obras empreendidas pelos descobridores e construtores do império, sendo o papel do escritor complementar ao do militar, ao equiparar-se a cultura ao valor dos feitos bélicos. Mais tarde, durante a dinastia filipina e, com a monarquia dual (1580-1640), alteram-se os padrões sócio-culturais no nosso País, ressurgindo um sentido agudo de patriotismo, se bem que a sua consciencialização seja mais tardia e assuma expressão em torno do movimento dos Restauradores, com forte adesão popular. O tema das “armas” e das “letras” adquire renovado sentido 37 ao serviço de uma causa cívica, à semelhança da que mobilizou as massas populares em 1383-85. E de novo se instaura também a cisão entre um conceito de acção militante e um modelo contemplativo de existência, conforme com a cultura letrada. A aristocracia terratenente e guerreira volta a assumir supremacia durante o império filipino, cujas possessões Portugal integrava. Dois intelectuais de renome fazem eco, na sua obra, do ideal das “armas” e das “letras” − D. Francisco Manuel de Melo e o Padre António Vieira. Ambos propugnam a aliança entre o pensamento e a acção − D. Francisco como militar e letrado; o padre António Vieira como exímio orador, missionário, e diplomata. Ambos experienciam igualmente a viagem, a militância e diversas formas de provação, tendo a pena como instrumento de acção cívica. Num outro autor de Seiscentos, Francisco Rodrigues Lobo, vamos encontrar a inscrição do tópico literário, que é expressão de um ideário cultural, numa obra intitulada Corte na Aldeia, de 1619, em que surge a figura do “perfeito cortesão”, aliando as duas vertentes, de letrado e cavaleiro. Ambas revestem um ideal cortesão próprio de um estrato aristocrático e influenciado por modelos estrangeiros políticos e estético-literários, transmutados num ideal cívico tipicamente nacional que naturalmente sofreu modificações durante o período filipino. A esse ideal está associada a promoção a que aspira o fidalgo de província, com pretensões a um lugar na Corte. Se o nascimento e o estado de nobreza eram condição sine qua non dessa promoção social, a cultura e a experiência de Corte permitem essa ascensão. A carreira das armas e/ou das letras passará a ser não apenas apanágio da nobreza de sangue − a ela terá acesso a burguesia letrada, frequentadora das academias e universidades. Delineia-se assim um ideal social tendente a encarar as letras como mais-valia para o acesso à Corte e a funções de conselho a ela adstritas, ao mesmo tempo que se assiste a um declínio das funções sociais da velha nobreza, que tradicionalmente se afirma pelo poder das armas, e a uma ascensão social da burguesia. A par do fidalgo guerreiro começa, por outro lado, a afirmar-se uma aristocracia com ambição política, na esfera da Corte, que deseja interferir efectivamente no governo da Nação, obnubilando a antiga aristocracia de espada. No século XVII ressuma, pois, de novo o tema das “armas” e das “letras”, integrado num renovado ideal cívico, por vezes com novas expressões como o binómio entre a “força” e o “entendimento”, correspondendo a prevalência de cada um dos termos a diferentes períodos e contextos da nossa 38 História. Assim, enquanto os primeiros reis se sustentaram no poder armado, a Razão ganha espaço em períodos mais tardios, quando o Rei recebe por direito de herança a Coroa, governando com auxílio de um conselho de homens sapientes e doutos, com uma formação humana, integral, sejam letrados ou legistas. Ao cavaleiro sucede o letrado e o cortesão, formado num ideal de civilidade. Este novo ideal social será fulcral na própria legitimação da independência nacional após 1640, porquanto “o problema da sucessão da Coroa Portuguesa é encarado aí como um conflito entre o Entendimento e a Força” (id., p. 233). Digladiam-se aí duas forças, a primeiras das quais assiste a D. Catarina de Bragança, enquanto a “Força” é o sustentáculo de Filipe II (1556-1598), na visão veiculada por Rodrigues Lobo.Assim, foi pelo poder das armas que o Duque de Alba invadiu Portugal, em nome de Filipe. No discurso do poeta e na mente dos conspiradores que fizeram a Restauração, tal acto rompeu o equilíbrio entre as “letras” e as “armas”, estas sinónimo da repressão que esmaga o País sob o domínio filipino. As “armas” serão reabilitadas, sim, mas no contexto da luta contra Castela. Às “armas” associa-se inegavelmente um dever de cidadania e um ideal de luta pela liberdade e independência, ao passo que as letras legitimam esse mesmo ideal e sublimam a acção. A Restauração, não sendo uma revolução popular na sua origem, transforma-se num movimento que conglomera os diversos estratos sociais (com excepção de uma facção clerical e aristocrática afecta a Castela) unidos por um sentido de nacionalidade com forte enraizamento nas classes populares. Também este movimento conspirativo é exemplo de uma aliança das “letras” com as “armas”, pois a elite dos ilustrados é quem planeia e, numa primeira instância, executa a acção revolucionária, estando ambos os termos − “letras e armas” − ao serviço de uma causa cívica. Como por uma lógica de vitalidade/retrocesso, o tópico das “armas” e das “letras” conhecerá uma erosão durante o Século das Luzes, em que a revolução científica e intelectual é acompanhada da centralização do poder régio baseada no conceito de despotismo esclarecido. O tópico conhece então uma deriva de sentidos, recaindo em mera figura retórica (por exemplo, na obra de Filinto Elísio) e sendo mesmo glosado em termos parodísticos numa obra de António José da Silva, intitulada Vida do Grande Dom Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, de 1733. Será já no período liberal, sobretudo no contexto da Revolução de 1820, que o binómio das “armas” e das “letras” ganha novas acepções, enriquecendo- Foto:http\\commons.wikimedia A Restauraçãode é exemplo de uma aliança das “letras” com as “armas”, pois a elite dos ilustrados é quem planeia e, numa primeira instância, executa a acção revolucionária se com novo fundo ideológico. Coexistirá então com o tópico literário que advém de uma longa tradição nacional, a par das novas categorias sociais surgidas no devir histórico. A geração liberal que faz a Revolução de 1820 é uma geração de intelectuais que pega em armas, conjugando harmoniosamente Foto:http\\commons.wikimedia No plano político afirmar-se-á, ao longo dos séculos XIX e XX, uma tendência para a intervenção cívica cada vez mais alargada do intelectual na vida pública, de que constitui sumo exemplo a célebre Geração de 70 a “pena” e a “espada”. E que melhor exemplo do que o de Almeida Garrett, o poeta profundamente envolvido nas lutas liberais, munido das palavras e das armas, e um dos chamados “bravos do Mindelo”, desembarcados naquela praia nortenha e terçando armas por D. Pedro? Os fundamentos ideológicos da sua geração e as categorias da acção que acompanham o ideal liberal encontram-se espelhados na sua obra e nas suas personagens, nomeadamente em Viagens na Minha Terra, Frei Luís de Sousa e Catão (1821). Relembre-se a personagem de Carlos das Viagens, que assume o duplo papel de letrado e de combatente liberal, vivendo uma espécie de dilaceramento interior e acabando por assumir a sua veia aristocrática, convertendo-se em barão. E também a personagem de Frei Dinis, que antes de professar, pegara em armas e seguira depois a carreira das letras. Tanto nas Viagens como em Frei Luís de Sousa conciliam-se as figuras do intelectual com o guerreiro ao serviço da causa liberal. No Frei Luís de Sousa há lugar a uma fina análise social, em que se expõe a dicotomia entre o nobre letrado (personificado por Manuel de Sousa Coutinho), representante da nobreza culta, que assume cargos políticos, e a velha aristocracia, de sangue e espada, cristalizada em torno do antigo sonho africano, aguardando o regresso de um Portugal morto em Alcácer Quibir, personificada naquela obra por D. João de Portugal (e também por Telmo e Maria). Em Catão, a analogia com o Império Romano coloca em choque duas personagens e duas ideologias − César, personificando o poder tirânico da força sobre a razão e o ideal cívico, e Catão, corporizando o valor da racionalidade ao serviço da urbe. No limite, é a dicotomia entre a força irracional e a razão que aqui é equacionada. A dicotomia entre as duas ordens de valores - a razão vs. o poder assente na força complexifica-se no Portugal oitocentista, enquanto problemática social, política e cultural. Delineia-se, por um lado, uma tensão entre o foro psicológico, individual (em que a problemática existencial efectivamente se coloca) e o foro colectivo; por outro lado, a dicotomia entre a permanência própria da tradição e o devir histórico. Apesar da complexidade crescente desta problemática, continua a verificar-se um equilíbrio entre as “armas” e as “letras”, transitando o tópico do campo literário para o da filosofia política. A tradição cultural em que se enxerta o tópico das “armas” e das “letras” conhecerá novos e diversificados afloramentos em obras da contemporaneidade. Igualmente no plano político afirmar-se-á, ao longo dos séculos XIX e XX, uma tendência para a intervenção cívica cada vez mais alargada do intelectual na vida pública, de que constitui sumo 39 exemplo a célebre Geração de 70 do século XIX, que reuniu nomes como os deAntero de Quental, Eça de Queirós, Fialho d'Almeida, Ramalho Ortigão, entre tantos outros ilustres. Na base do seu ideário político estão as ideais liberais, cada vez mais identificadas, junto ao final do século, com a República e, no plano filosófico, com um existencialismo que complexamente coexiste, na obra de Antero por exemplo, com um elevado sentido de imanência. Já em pleno século XX, a temática das “armas” e das “letras” volta a ganhar fôlego, no âmbito da corrente estético-literária e ideológica designada por Neo-Realismo, nos anos 30 e 40, que propugna o empenhamento político do intelectual e do artista, na qual se inscrevem nomes como Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Branquinho da Fonseca, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, entre muitos outros. Na literatura destes autores, quase se pode dizer que se interconvertem ambos os termos, uma vez que as “letras” estão ao serviço de uma causa cívica, política, marcada por forte sentido de empenhamento e aliada a um sentido de combate que passa do plano metafórico ao mais pragmático e “realista”. A posição ideológica assumida pela maioria destes escritores será influenciada pela filosofia existencialista que tem em Jean-Paul Sartre o principal arauto. Durante o chamado primeiro Neo-Realismo (até à década de 50 do século XX), o empenhamento social do escritor adquire expressão mais vinculativa, deixando pressupor em alguma literatura e em algum cinema uma supremacia das “armas” sobre as “letras”, sendo que o primeiro termo do binómio condensa um teor semântico que se expande a diversas áreas de intervenção, fundamentalmente ao campo social e político. Se o tópico das “armas” e das “letras” ganha, nesse contexto, pleno acolhimento, na Cultura e na Literatura portuguesas, a partir da segunda metade do século XX aufere novos aprofundamentos temáticos e discursivos, pelo investimento imagético e expansão semântica de ambos os termos e, bem assim, pela transmutação metafórica dos dois termos − “armas” e “letras”. Leia-se um interessante soneto de Manuel Alegre, intitulado “A foice e a pena”, que joga com a antítese entre os dois termos − “armas” e “letras” − mas numa variante semântica, apontando o sentido de intervenção social e literária, mantendo embora a tensão de significados: A foice e a pena Com outra que não pena arma trabalhas. Se é minha a pena é tua a foice. Mas se acaso são diferentes nossas armas as penas são as mesmas e as batalhas. 40 Eu ceifo com a pena ervas daninhas e a mentira que a todos envenena. E tu ceifando penas essa pena Que fraterna se junta às penas minhas. Onde tu ceifas eu ceifeiro sou da tua dor ceifeira e dessas queixas que dizes a ceifar e nunca ceifas. Se já teu canto a foice te ceifou canta ceifeira canta: a dor destrói-se juntando a foice à pena e a pena à foice. In O Canto e as Armas Noutro contexto, mas no mesmo marco temporal, as “armas” ressurgirão no cenário real do combate, quando se trata de revitalizar a imagem do “guerreiro”, por via das acções militares, mormente na Guerra do Ultramar, de 1961 a 1974, reescrevendo a letras de sangue o memorial oito vezes secular de um povo guerreiro; mas também, metaforicamente, plasmam-se num canto poético, a diversas vozes, quando se trata de incutir a determinada literatura o sentido de um simbólico combate. As “letras” integrarão esse sentido, quer pela nobilitação, através da escrita, de uma renovada epopeia do Soldado Português; quer pela sua leitura de sentido inverso, na chamada “literatura de resistência”, que reescreve uma espécie de antiepopeia, a que antevê o fim do Império e denuncia a face terrífica da guerra, não deixando de evidenciar, em muitos casos, os traços de grandeza da acção verdadeiramente épica corporizada pelos militares nos longínquos cenários bélicos, em África. Em qualquer das vertentes interpretativas, trata-se de uma saga muitas vezes experienciada em primeira pessoa e transcrita para as páginas da Literatura, e de uma renovada interpretação do tópico das “armas” e das “letras”. Neste contexto, as armas acenderam-se em canto poético e as letras adquiriram o poder real e simbólico de um combate, travado ora com a pena ora com a espada, nas mãos daqueles que nos diversos sectores da sociedade para ele foram mobilizados e reescreveram a epopeia possível, nos cenários longínquos onde actuaram os lusíadas do século XX. É, porém, no culminar desta saga, com a Revolução de 25 de Abril de 1974, que plenamente se consuma e reemerge, no século XX português, o binómio das “armas” e das “letras”. Reemerge na acção e no discurso, na reabilitação da figura do Militar, convocado para o cenário de uma nova gesta colectiva conotada com a conquista da Liberdade.A emergência do arquétipo do Militar, pela renovação Foto:http\\commons.wikimedia A Revolução dos Cravos convoca a memória da batalha, da figura do combatente investido de uma responsabilidade cívica e carreando os destinos de um povo do seu papel e função social, teve então condições para se adequar plenamente ao sentido de Nação e do rumo histórico do seu povo, pois que enraizava (como enraíza) profundamente no imaginário nacional de um País cuja História, em quase 900 anos, é indissociável da História militar. E não faltam, na Revolução de Abril, alguns dos caracteres que, no plano simbólico, a elevam (e aos seus mentores) à categoria épica das grandes acções da História (e sua vertente mítica). Nela encontramos, segundo as categorias estabelecidas por Wolfgang Kayser3 para a caracterização da epopeia e, para só enunciar algumas, uma grandiosa acção colectiva, isto é, um feito que se alarga a nível nacional e que interessa a toda a comunidade; um herói colectivo − o Povo Português− quando sai às ruas em defesa desse feito; a individualização de personalidades, isto é a criação do herói individual (e temos diversos exemplos) que, pelas suas características (destreza, bravura, capacidade de comando, etc.), se distingue e em breve cristaliza no imaginário popular como ser de índole sobre-humana; até mesmo o período de tempo em que a acção é espoletada, o qual não durou mais de 24 horas (estamos, naturalmente a falar do golpe de Estado e não do processo revolucionário em si). Antes de passar à escrita, à crónica ou aos livros de História, a epopeia potencialmente consubstanciada pela Revolução dos Cravos, pelas acções de recorte épico desencadeadas na madrugada de 25 de Abril ganharam desde logo uma projecção colectiva de dimensão histórica, que vai enraizar simultaneamente em arquétipos míticos da nossa cultura. Nela se inscreve a figura mítica do “salvador da Pátria”, cristalizado em torno da figura do Militar (ancestralmente ligado, no nosso imaginário, à conquista e defesa do território de seus inimigos reais ou imaginários), imbuído num ideal de civilidade, que se traduz na mudança de um estado de coisas, neste caso na restituição da Liberdade, numa dimensão quase redentora. E este modelo de herói, que do real transita rapidamente para o imaginário da população, está bastante próximo do herói camoniano, pois também agora se trata da defesa de um ethos colectivo, guerreiro. Coexistem nele aspectos de tradição e modernidade − é a epopeia verídica, com homens de carne e osso, que rodeiam as chaimites e clamam vitória; mas são também a memória e o imaginário social ligados, ainda que remotamente, ao ideal heróico do cavaleiro medieval (da estirpe de um Álvaro Pais, quando brada ao povo de Lisboa por D. João, mestre de Avis, futuro D. João I, quando este defronta o conde Andeiro, no Paço de LeonorTeles). Esta dimensão épica emoldura os eventos e as personagens, sendo o individual subsumido pelo social, ao projectar-se o herói (Povo) paradigma de uma nação. Se a Revolução corresponde à emergência de um paradigma de que ressalta o valor das “armas”, também no plano simbólico ele se articula com as “letras”, não só do ponto de vista da eficácia da palavra, como sobretudo pela presença de um elemento insólito (mesmo se fruto do acaso), com elevada carga imagética − os cravos que simbolicamente despontam do cano das armas, anulando a sua funcionalidade mais imediata (a acção armada) para a substituir semanticamente pelo seu oposto (a pacificidade). Do ponto de vista da simbologia que prevaleceu, a imagem está muito próxima do fantástico (de que temos vários exemplos na nossa História, a começar na transmutação do pão em rosas, ao tempo da Rainha Santa). Por uma inversão da lógica do real empírico, é a metáfora que surge em primeiro lugar, a suscitar uma leitura do real. A Revolução dos Cravos convoca, assim, no nosso imaginário recente, a memória da batalha, da figura do combatente investido de uma responsabilidade cívica e carreando os destinos de um povo, numa grande acção conjunta, inspirada num qualquer ideal e perpetrada no teatro das grandes acções da História, conjugando harmoniosamente as “armas” e as “letras” (enquanto doutrinação e ideário) ou, no caso vertente, as “armas” e os “cravos”, versão actualizada (e lírica) daquele binómio. JE 1 «Armas e Letras. Um tópico do Humanismo Clássico», in A tradição clássica na Literatura Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, pp. 195-240. 2 A esses filhos segundos, quando não enveredavam pela vida religiosa, era muitas vezes destinado um papel perfeitamente secundário, que os lançava à conquista de terras e de glórias mediante feitos de armas, ao serviço de grandes senhores. 3 In Análise e Interpretação da Obra Literária. 41 Miguel Silva Machado «O Sr. Ministro (do Exército) quiz saber se não estaria em condições de fabricar em Portugal, uma viatura semelhante (à V-100 “Commando” da firma americana “Cadillac-Gage”). … O Sr. Ministro prometeu, caso aceitasse a proposta, pôr à minha disposição os Estabelecimentos Fabris do Exército, ou outros que escolhesse». Major de Infantaria (Ref) João Batista de Souza Donas-Bôtto* Necessidades operacionais em África A ssim nasceu, segundo o seu criador, o que viria a ser o primeiro veículo blindado produzido em série em Portugal. Esta V-100 tinha sido escolhida para suprir a necessidade crescente de uma viatura blindada de transporte de pessoal, de rodas, moderna, que se fazia sentir nos teatros de operações em África. O 42 material em serviço era de concepção ultrapassada, muito usado e estava-se à beira da rotura em alguns equipamentos. Mas nem tudo era mau, os militares estavam satisfeitos com o desempenho das AML Panhard, mas faltavam-lhes outras gamas de veículos blindados, nomeadamente de transporte de pessoal. Já então a necessidade de protecção do pessoal – contra minas, flagelações, engenhos explosivos improvisados –, tão em voga nas actuais “operações de paz” e com acrónimos diversos popularizados pelos media, era uma preocupação dos comandantes no terreno. Em Julho de 1966 o Chefe do Estado-Maior do Exército, General Luís Maria da Câmara Pina, envia uma mensagem «secreto» aos comandantes militares de Angola, Moçambique e Guiné, a informar que “Apareceu disponibilidade financeira aquisição autometralhadoras AML ou viaturas blindadas transporte pessoal. A fim fundamentar propostas agradecia indicasse prioridade que em seu critério julga estabelecerse para fins operacionais acerca daqueles materiais podendo apenas adquirir um deles qual conviria comprar primeiro.”(2 ) Depois do estudo e planeamento das aquisições Capa do manual elaborado pela BRAVIA para os operadores de Chaimite de viaturas blindadas de transporte de pessoal, foi feita proposta à tutela. Foram estabelecidos contactos e terá sido mesmo firmado um contrato preliminar com a fábrica fornecedora nos EUA. Como aconteceu com outros equipamentos militares nesta época, o governo americano não autorizou a concretização do negócio, uma vez que Portugal iria empenhar estes meios fora do âmbito NATO. É então que o Ministro do Exército, Coronel Joaquim da Luz Cunha, através de um colega de curso, convoca para o seu gabinete o Major na situação de Reforma Donas-Bôtto, ligado ao meio empresarial e à venda de material militar, para uma reunião onde faz a proposta que inicia este texto. Após algumas reticências iniciais e depois de contactos exploratórios com pessoas, militares e civis, que viriam a colaborar no processo, dentro e fora de Portugal, Donas-Bôtto aceita o desafio do Ministro do Exército. É o inicio de uma fascinante história, repleta de vicissitudes, de vitórias e derrotas, que levarão o primeiro veículo blindado produzido em série em Portugal a actuar em condições das mais diferentes possíveis, nos mais improváveis pontos do planeta. Ao serviço das Forças Armadas Portuguesas mas também, como veremos, de outras forças armadas e de segurança... até à actualidade. Chaimite Pretendeu Donas-Bôtto, com a designação dada, escreveu mais tarde, homenagear uma geração de militares portugueses que haviam combatido em África no final do século XIX: “…Admirei as campanhas de Mousinho e dos seus companheiros, os majores Caldas Xavier, Paiva Couceiro, Aires Ornelas...”. Passados anos dos combates em Moçambique e nomeadamente em Chaimite, o então Alferes Donas-Bôtto constatou quando por lá andou no comando de uma brigada de caça, foi “…auxiliado por régulos da região de Maputo, feitos por Mousinho, tenentes de 2.ª linha” devido “…ao respeito e consideração (conseguidos pela geração de Mousinho), extensivos até ao final da década de quarenta…”. Servindo-se dos seus contactos nos EUA, onde se desloca de imediato, no Brasil – onde aliás tinha residência e interesses – e em Portugal, no meio fabril, Donas-Bôtto cria as condições mínimas para 43 Gravura de Fernando Leitão mostrando as antigas OGME em Belém, junto à Av. da Índia, hoje na posse do Ministério da Cultura, onde existiu o “Pavilhão Chaimite” (na imagem é o último telheiro à direita no meio da vegetação) João Donas-Bôtto, na foto Cadete da Escola do Exército em 1943, foi o criador do projecto “Chaimite” assim denominado pela grande admiração que tinha pelas campanhas portuguesas em Moçambique no sec-XIX iniciar o projecto. Logo em Março de 1967 funda a empresa “BRAVIA SARL, Sociedade LusoBrasileira de Viaturas e Equipamentos” e em breve estão concluídos os planos de uma viatura semelhante à V-100 “Commando”. O primeiro protótipo da Chaimite foi manufacturado nas Oficinas Gerais de Material de Engenharia, em Belém, no então designado «pavilhão Chaimite», com acompanhamento de um engenheiro americano contratado, debaixo de medidas de segurança apertadas e muito segredo. Não só os tempos eram outros e os assuntos militares não eram propriamente discutidos na praça pública, como o país estava em guerra e mesmo alguns dos tradicionais amigos de Portugal já o não eram. Constou mais tarde que este engenheiro, que se fazia acompanhar por um operário especializado, teria sido preso quando regressou aos EUA, visto ter colaborado neste processo não oficial de “transferência de tecnologia” para Portugal. Este protótipo fica pronto e o Exército encomenda 28 viaturas ainda em 1967. Apesar de alguma desilusão – o fabricante naturalmente queria vender mais – os cascos das Chaimites começam a ser fabricados na SOREFAME (Sociedades 44 Reunidas de Fabricações Metálicas), que se dedicava à construção de locomotivas e carruagens para os caminhos-de-ferro. Seguia-se a montagem que decorria nas OGME, disponibilizadas para o efeito. Mas o desenrolar da construção e montagem não decorria com a celeridade desejada e face a nova encomenda de 56 unidades para o Exército, em 1968, agora garantida pelo Secretariado Geral da Defesa Nacional e com a perspectiva de vendas no mercado internacional, a BRAVIA procura instalações próprias. Nesse sentido, compra a totalidade do capital da “VM – Veículos Motorizados, SARL”, no Porto Alto (Samora Correia), firma que se dedicava ao fabrico de veículos para fins industriais e agrícolas. A área coberta é significativamente aumentada e criam-se as condições para ali fabricar e montar as Chaimites. No final de 1970 estavam recepcionadas pelo Exército 18 viaturas V-200 Chaimite e reinava no ramo alguma expectativa sobre a evolução do desempenho operacional da viatura. Havia mesmo debate interno sobre qual a melhor organização das unidades que deveriam utilizar a V-200, muito dependente dos resultados em campanha. “Julgase, no entanto, que embora as viaturas Chaimite possam ser feitas no país, as questões levantadas por Sua Ex.ª o Ministro da Defesa Nacional no despacho transcrito em 4. ainda não estão suficientemente esclarecidas, porquanto as viaturas blindadas Chaimite ainda não foram «testadas» em combate”(3 ), refere em documento «secreto» o Chefe da Repartição do Gabinete do CEME, General Manuel Nicolau deAbreu CastelloBranco, em Dezembro de 1970. As questões a que o Ministro da Defesa Nacional aludia no referido ponto 4. diziam essencialmente respeito à opção entre adquirir mais viaturas blindadas AML no estrangeiro, ou comprar mais Chaimites nas versões armadas previstas em catálogo pela BRAVIA. Colocava o Ministro a questão de saber se as Chaimites, sendo muito mais baratas, podiam efectivamente cumprir as missões que as nossas tropas lhes destinariam; se estariam fabricadas em tempo; se estaria assegurada a manutenção. Nesta altura ainda reinava uma grande incógnita sobre a eventual normalização das viaturas blindadas de rodas no Exército. Tal parecia ser o desejo do Ministro da Defesa. No entanto, não desejaria avançar para a solução Chaimite nas suas diferentes versões e consequente retirada do material “AML Panhard” e “Fox”, sem primeiro ter a garantia de que a viatura V-200 correspondia ao desejado pelos utilizadores, as forças em campanha nas três frentes de guerra anti-subversiva. Emprego operacional em África No final do ano de 1970 as primeiras Chaimites são enviadas para a Guiné para serem testadas na guerra. Serão 4 na versão V-200 Auto Transporte de Pessoal Blindado (designação comercial dada pela BRAVIA), aquilo a que poderemos chamar a versão base, e 1 Cadillac-Gage V-100 “Commando”. Esta viatura, “made in USA”, que chegou a Portugal fruto dos contactos internacionais de DonasBôtto e da sua determinação, que para muitos que o conheceram chegava a raiar o inimaginável, foi equipada com uma torre e canhão de 90mm de origem belga. No fundo era uma viatura de teste que deveria dar origem à versão da ChaimiteV-400, designada Carro de Combate Ligeiro pelo fabricante. Como curiosidade note-se que este canhão, depois de utilizado pontualmente na Guiné e de ter regressado a Portugal, permaneceu na BRAVIA até ao seu encerramento, mais de 20 anos depois. As V-200 que rumaram à Guiné foram armadas com metralhadoras HK21 7,62mm que estavam em serviço no Exército. Segundo nos relata o Major de Cavalaria João Luíz Mendes Paulo, num interessantíssimo livro publicado em 2006(4 ), esta estreia da Chaimite não correu do melhor modo. Testadas brevemente em Alcochete antes da partida, pressionados pela urgência das necessidades que se faziam sentir na Guiné, vários defeitos foram detectados nas viaturas, nomeadamente a nível do armamento. Carlos de Sousa Azevedo,Alferes Miliciano de Cavalaria que se encontrava na Guiné – na mesma unidade de Mendes Paulo – e que fora nomeado para frequentar o primeiro curso de Chaimite no Regimento de Cavalaria 7 – a primeira unidade do Exército que as recebeu –, reforça as avaliações do Major: “As novas viaturas criaram-nos enormes expectativas dado o estado lamentável em que se encontrava o nosso material blindado na Guiné e Os Dragões desfilam em Luanda com as suas Chaimites usando camuflagem idêntica às AML e às EBR (Foto Armindo Antunes) 45 ainda a sua escassez. A primeira decepção ocorreu com as metralhadoras HK 21. Não eram claramente as armas para aquele tipo de suporte. Concebidas para operar com bipé, «ao alto», mesmo com o adaptador que havia sido criado, havia problemas.” Note-se aliás que o próprio Donas-Bôtto aconselhou o uso de outras metralhadoras que não as HK21, e tanto assim foi que o primeiro manual elaborado pela BRAVIA para aV-200 previa diversos tipos de metralhadora de torre, mas não a HK21. Os problemas encontrados e que tinham resolução lá se foram tentando ultrapassar e as viaturas permaneceram em serviço na Guiné até à Independência. Em Março de 1974, na estrada Bafatá – Nova Lamego, uma Chaimite foi atingida por uma granada de RPG que incendeia a viatura e causa 2 mortos. Quanto à viatura com o canhão, continua Carlos Azevedo, “era na realidade melhor que a Chaimite mas também não a tivemos lá muito tempo. Ainda foi empregue em algumas missões – foi usada na reacção a uma emboscada com sucesso – mas em breve regressou à BRAVIA. Apesar disso ficou-nos a sensação que a arma quando abria fogo destabilizava a viatura e dificultava a precisão do tiro.” De acordo com as encomendas nacionais feitas à BRAVIA – 84 V-200 –, o EME faz um detalhado estudo para a sua distribuição pelas unidades das “Províncias Ultramarinas” e da “Metrópole”. No entanto, poucas Chaimites acabam por chegar a pisar solo africano. Além das 4 que serviram na Guiné a partir de 1970, a Moçambique, ao porto da Beira chegaram 3 V-200 em finais de 1972. Estas viaturas estariam destinadas, numa primeira fase, a reforçar a capacidade portuguesa de proteger as chamadas “cargas críticas” para Cabora Bassa. O entãoAlferes Miliciano de Cavalaria Carlos Vieira, embora não as tenha operado, recorda-se de as ver e fez-se mesmo fotografar junto a uma em Vila Pery (actual Chimoio). Em Angola, os “Dragões”, ou melhor, a sua unidade em Luanda, recebem e operam 7 viaturas V-200. As Chaimites ainda executam trabalho operacional, quer nas escoltas aos movimentos logísticos quer em operações autónomas, tendo sido, segundo relatos de militares dos Dragões, sujeitas a algumas flagelações, sem consequências. Neste período, em Angola, a manutenção destas viaturas não apresentou grandes problemas. “A realidade é que muitas vezes exigia-se da viatura mais do que aquilo para que ela fora prevista, mas em termos de manutenção nunca tivemos problemas, quer de fornecimento de sobressa46 Detalhe da torre com as duas HK 21. No período que se seguiu ao PREC e antes das missões de paz, as Chaimites foram empregues em instrução e exercícios, sobretudo em unidades de cavalaria (Foto Centro de Audiovisuais do Exército) lentes, quer outros.” Diz-nos o Capitão SM na reforma, Armindo Antunes, ao tempo Sargento mecânico, chefe da oficina dos “Dragões” em Luanda. Claro que algumas limitações da viatura foram detectadas, mas nada que as impedisse de cumprir as missões. A questão dos semi-eixos que partiam quando sujeitos a grande esforço e das embraiagens que se deterioravam, eram sem dúvida os problemas mais frequentes. Na altura do processo de descolonização as viaturas foram empregues várias vezes em Luanda em acções de manutenção da ordem pública e estiveram operacionais até 10 de Novembro de 1975. “Depois do último arriar da Bandeira Nacional na fortaleza de S. Miguel, a coluna auto fortemente armada, composta por pára-quedistas, fuzileiros e todas as viaturas blindadas dos Dragões, dirigiuse para o porto de Luanda, viaturas completamente municiadas com as peças viradas para a cidade”, recorda ainda hoje com emoção Armindo Antunes, que havia feito toda a sua vida militar até essa altura em Angola (1961 a 1975). Chegados ao Porto houve que retirar milhares de munições das viaturas, deixá-las no cais, embarcar as viaturas em batelões e rumar ao “Uíge”, que estava ao largo. Assim terminou, em 10 de Novembro de 1975, o ciclo das Chaimites na antiga África Portuguesa. 25 de Abril A participação das Chaimites no golpe militar de 25 de Abril de 1974 irá proporcionar a maior Em Santarém, no local onde Salgueiro Maia foi recebido pela população da cidade no regresso do “25 de Abril de 1974”, está hoje este memorial que inclui uma V-200 Chaimite (Foto Miguel Machado) exposição pública que esta viatura teve e, sem dúvida, colocá-la na História de Portugal. Curiosamente, poucos possivelmente se lembram que as Chaimites começaram o 25 de Abril em ambos os “lados”. Lembra o então Alferes Miliciano de Cavalaria Luís David e Silva, Comandante do Esquadrão de Reconhecimento AML/VBL (reduzido) do Regimento de Cavalaria 7, que no dia do golpe saiu com dois dos seus três pelotões de Chaimites e VBL em direcção ao Terreiro do Paço e só ali, pelas 06h15, se junta a Salgueiro Maia: “Todas as nossas viaturas blindadas estavam completamente armadas e municiadas […] Nas operações que fizemos nesses dias e nos meses seguintes, integrados no Agrupamento November, a Chaimite mostrou-se perfeitamente adequada às necessidades…Os nomes atribuídos às viaturas blindadas era um hábito da EPC, em Lisboa no RC 7 não o fazíamos”. Se até esta altura a viatura era uma ilustre desconhecida, mesmo para a maioria dos militares portugueses, agora vai saltar para as primeiras páginas dos jornais e para as reportagens televisivas de todo o mundo. A imagem das Chaimites no dia do golpe – e note-se bem que a coluna da EPC apenas incluía duas V-200 – “colouse” ainda à figura de um dos principais nomes da revolta, Salgueiro Maia. A Chaimite da EPC, alcunhada de “Bula”, no Largo do Carmo, em Lisboa, a retirar o Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, do Comando Geral da GNR, no meio da multidão, ficou no imaginário colectivo da Nação. Estas viaturas passaram a ser figuras quase que obrigatórias em qualquer livro, artigo ou documentário cinematográfico sobre a história recente de Portugal. Foram “actores” imprescindíveis em mais do que um filme, sendo o mais conhecido, “Alvorada de Abril”, de Maria Medeiros. Este filme, bem assim como um documentário da televisão SIC, alusivo aos 30 anos do 25 de Abril, nunca se realizariam sem o enorme apoio do Exército que, além das viaturas – Chaimites e outras –, empenhou muito pessoal especializado nestes projectos. De tal forma a viatura simboliza o chamado “espírito do 25 de Abril” que a «Associação 25 de Abril» opera hoje uma viatura Chaimite, desmilitarizada, mas ostentando matrícula militar. Habitualmente cabe-lhe encabeçar o desfile popular comemorativo desta data, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, tendo aos comandos, sempre, o Sr. João Paralta, funcionário civil das OGME. No memo sentido, a homenagem em forma de monumento originalmente datada de 1999, da cidade de Santarém ao “Capitão Salgueiro Maia, à Escola Prática de Cavalaria e à Liberdade”. Nesta cidade ribatejana, depois de algumas peripécias, com mudanças de localização e até o armazenamento, foi reinaugurado em 2006 o monumento onde sobressaem uma estátua de Salgueiro Maia e uma viatura V-200. Passados 35 anos destes acontecimentos, muitos portugueses, até por força da idade, podem não percepcionar esta notoriedade. Atente-se assim, para a ilustrar melhor, como começava um artigo sobre a Chaimite na revista do Automóvel Clube de Portugal, de Janeiro/Fevereiro de 1975, onde já aborda, por exemplo, a sua utilização intensa feita pelos Comandos: “…tornou-se vulgar para os automobilistas portugueses terem de ultrapassar viaturas militares ou que dar prioridade a um Chaimite vindo da direita. Mas que sabem afinal os leitores acerca destes veículos concebidos para a guerra, que passaram a ser presença habitual nas ruas e estradas do País, nos écrans de televisão, nos jornais, revistas e cartazes?”(5 ) 47 Durante o denominado PREC (Processo Revolucionário em Curso), as Chaimites vão continuar a ser intensamente usadas em território nacional. Sobretudo em missões ligadas à manutenção de ordem pública e à participação nos momentos mais tensos deste conturbado tempo: o 11 de Março e o 25 de Novembro. Adquire aqui especial destaque a utilização feita, primeiro pelo Batalhão de Comandos 11 e mais tarde pelo Regimento de Comandos. Para a história da viatura esta unidade contribui com variados e importantes factos, dos quais aqui apenas se destaca um: Foi o seu maior utilizador, com mais de 50 V-200 Chaimites “à sua carga”! Por esta altura também teve alguma expressão pública a utilização feita pelo Regimento de Artilharia de Lisboa, aqui mais pelo radicalismo político das suas acções que pelo número de viaturas utilizadas. Mesmo que muito utilizadas, nem por isso granjearam grandes adeptos nesta época. “As viaturas Chaimite nunca me agradaram, tinha que as utilizar mas a contragosto. Não davam protecção ao pessoal, tinham fraco armamento e impediam a saída rápida do pessoal a vantagem que poderiam ter era a de meter medo! Quem as via na rua assustava-se”, lembra o Capitão Comando Sousa Gonçalves, que à frente da Companhia de Comandos 121 teve um papel determinante do 25 de Novembro de 1975. Após a normalização da situação político-militar no país, as Chaimites também “recolhem a quartéis” e voltam a ser empenhadas nas habituais tarefas de tempo de paz de qualquer Exército: Instrução e exercícios. É nesta fase que começam a ser mais evidentes alguns problemas. Figueiredo Júnior, oficial de manutenção no Regimento de Comandos durante 9 anos, recorda: “tínhamos que substituir continuamente bloqueios e semieixos, fizemos também algumas alterações nos travões, artesanalmente nas oficinas do Regimento, para melhorar o seu desempenho. Entre outros exemplos lembro que os foles em borracha para os servofreios esgotaram-se no mercado e fomos obrigados a manufacturar, com cabedal, foles de substituição”. Em 1976 a BRAVIA fornece ao Corpo de Fuzileiros da Marinha Portuguesa 4 V-200, as quais vão ser empenhadas, quer no âmbito da Marinha, quer nos grandes exercícios conjuntos que nos finais dos anos 70 se realizaram. Estas viaturas vão, passado pouco tempo, ser retiradas de serviço nos fuzileiros, mas só em 1996 são definitivamente abatidas para a sucata. Hoje, 48 uma destas viaturas, à qual tinha sido adaptado um conjunto de seis lança-granadas foguete 8,89mm, encontra-se em exposição estática na Base de Fuzileiros, Base Naval de Lisboa, no Alfeite. A Chaimite “convertida” No inicio dos anos de 1980 começa a pensar-se seriamente em efectuar uma modernização das viaturas Chaimite. O Exército dispunha de muitas viaturas, mas os problemas que apresentavam avolumavam-se e necessitavam resolução. A remotorização das Chaimites, feita nas OGME em Lisboa, abrangeu 81 Chaimites V-200 (Foto OGME) A opção que acabou por ser tomada – e implementada a partir de 1985 – foi a de atribuir essa empreitada à fábrica americana Cadillac. Este facto foi um autêntico “balde de água fria” para Donas-Bôtto e a sua empresa BRAVIA-VM. A Cadillac era precisamente, como se compreende, a sua principal concorrente no mercado internacional, a derradeira oportunidade da empresa portuguesa continuar a produzir a Chaimite. Em 1985, uma das V-200/BRAVIA-VM do Exército foi transportada para as instalações da Cadillac Gage e a partir dela se fez o protótipo da designada Chaimite “convertida”. Recorda o Major-General Fernando Pinto da Silva, ligado a este processo e que acompanhou algum tempo os trabalhos na fábrica nos arredores de Detroit, “o protótipo foi depois testado em Portugal, já em 1986, e criou-se uma linha de montagem nas OGME para proceder às transformações. Este processo que abrangeu 81 viaturas prolongou-se para além de 1988. Na sequência também se modificaram algumas viaturas para porta- morteiro.” O fundamental desta transformação consistiu na substituição do motor Chrysler V8, a gasolina, por um Cummins, 4 tempos a diesel V6, uma caixa automática substituiu a manual, os bloqueios das pontes foram melhorados e os semieixos reforçados. As Oficinas Gerais de Material de Engenharia, além do seu papel inicial neste programa e na manutenção subsequente que garantiam, passaram nesta fase a assegurar não só a reconversão como a grande manutenção. Com o fim da Bravia as OGME recebem grande quantidade de sobressalentes e ficam com a capacidade – até hoje – de reparação total e mesmo de fabricação de praticamente todos os seus componentes. “Nós fazemos a reparação da Chaimite toda. Pode-se dizer que os nossos funcionários o fazem de «olhos fechados». As OGME ficaram com o último lote de peças provenientes da BRAVIA e algumas ainda restam hoje em dia. Como ficamos também com os moldes originais e temos capacidade quando necessário – e isso acontece – para fabricar peças novas”, refere-nos o Coronel Morgado da Silva, Director das OGME. Estas grandes reparações variam muito de acordo com o estado em que as viaturas chegam às OGME, mas de um modo geral incluem a revisão total do motor, dos sistemas de travagem, refrigeração, aquecimento, eléctrico, da caixa de velocidades, da direcção, a substituição e ou reparação de vários “detalhes”, que vão dos bancos à reparação dos fechos das portas e naturalmente à pintura. “Saem daqui novas!”, conclui o Coronel Morgado da Silva. Outros mercados Em 1970 a BRAVIA conseguiu a sua primeira encomenda para o estrangeiro, a Infantaria de Marinha do Peru. Tratou-se de um passo importante na expansão da firma e uma aliciante entrada de divisas. As viaturas foram fornecidas em 1972 e a BRAVIA tenta ainda o fornecimento de outras viaturas tácticas de rodas neste país, como por exemplo o “Leopardo”, viatura pesada, concorrente directo da “Berliet” e da “Mercedes-Benz”, todas na versão 6x6. Ainda em 1972, esta viatura 6x6 “Leopardo”, como outra também concebida pela BRAVIA, a “Gazela” 4x4, foram propostas ao Exército Português. Algumas destas estiveram mesmo ao serviço deste ramo, mas mais tarde a BRAVIA volta O Peru foi o primeiro cliente internacional da V-200 Chaimite. Na foto uma da Infantaria de Marinha em desfile na capital Lima (Foto Lewis Majia Prada) 49 adequado para as missões em que é empregue. Tem sido usado em diferentes missões de polícia e tarefas ligadas à segurança”, refere-nos o Director-Geral das Forças de Segurança do Líbano, GeneralAchraf Rifi. Irão, Venezuela, Malásia, Myamar, foram mercados onde a BRAVIA terá, durante 20 anos, colocado aV-200 Chaimite e onde a V-100, ou outras viaturas, acabaram vencedoras. Se o preço era a grande vantagem daV-200, já a capacidade da fábrica para fornecer sobressalentes parecia não ser a ideal e com o decorrer dos anos os problemas financeiros crescentes da BRAVIA certamente não ajudaram nada a concretização dos negócios. BRAVIA encerra Estas Chaimites V-200 servem em 3 unidades das Forças de Segurança Libanesas e estão a ser modernizadas desde 2007 (Foto ISF); a comprá-las para as vender no mercado civil. Nesta época foi ainda tentada a venda ao Ministério do Interior (GNR) de uma outra viatura, a “Comando” MKIII 4x4, também sem sucesso. A GNR, segundo Nuno Andrade refere no seu livro sobre os acontecimentos de 25 de Abril de 1974(6 ), adquiriu mais tarde 38 viaturas blindadas “Shorland MKIII” na Irlanda do Norte, pelo preço unitário de 1.309.525$00. As primeiras foram entregues no mês anterior ao golpe militar de 25 de Abril de 1974 e as restantes durante o espaço de um ano. Todas estas viaturas tiveram protótipos prontos e prestaram provas em várias ocasiões e países, mostrando bem a luta da empresa para alargar a sua carteira de clientes. As encomendas nacionais – referindo-me aqui apenas ao material militar, porque a VM fabricava também material para uso civil – não eram suficientes para manter a produção. Mas a perseverança, mesmo a teimosia, de Donas-Bôtto, conseguiu alguns sucessos. Vendeu viaturas V-200 para o Líbano em 1980 e, segundo o próprio, ainda através de dados recolhidos em documentação da empresa, também a Líbia e as Filipinas adquiriram alguns exemplares da V-200. Parte das Chaimites vendidas ao Líbano estão a ser remotorizadas e modificadas desde 2007 com o apoio dos EUA. Neste país, sujeito às convulsões internas que se conhecem, as Chaimites têm sido bem testadas e agradam aos utilizadores. “É um veículo fácil de conduzir, manobrável e as suas formas tornam-no difícil de ser atingido por mísseis. O nível de protecção que confere às guarnições é 50 A falta de encomendas de modo continuado por parte de clientes nacionais do equipamento militar e de manutenção de ordem pública proposto pela BRAVIA, as poucas vendas internacionais e opções ligadas à sua gestão acabaram por levar a firma a uma situação económica muito difícil. Embora a fabricação e vendas de material não tipicamente militar, algum até para as Forças Armadas, se mantivessem no início dos anos 80, a BRAVIA – Sociedade Luso Brasileira de Viaturas e Equipamentos, vê-se obrigada a entrar, em 1987, num programa de recuperação de empresas para tentar adiar o que na realidade veio a acontecer, a falência. Mesmo assim, neste período muito difícil da vida da empresa, Donas-Bôtto tenta a todo o custo recuperar algumas encomendas internacionais, como a feita para a Líbia que ficou incompleta, aparentemente por motivos de ordem política, mas sem sucesso. Contactos com possíveis compradores internacionais, nomeadamente os que já tinham a viatura, voltam a ser feitos, mas sem sucesso. O processo de falência acaba por se arrastar anos seguidos, cheio de peripécias, e o Exército ainda é chamado a colaborar nas necessárias peritagens relativas aos equipamentos militares em depósito nas instalações do Porto Alto. “A fábrica já tinha apenas e quase só acessórios e material militar muito incompleto. Recordo alguns, julgo que três, cascos de Chaimite incompletos, um canhão de 90mm “MECAR” com culatra montando numa viatura, vários equipamentos de transmissões e dispositivos anti-emboscada, duas metralhadoras, uma pesadas e uma ligeira e muitos acessórios de Chaimite de pequena dimensão, como farolins de diversos tipos, periscópios e jerry-cans”, recorda o então Major do Serviço de MaterialVictor Murta, um dos peritos do Exército que ali se deslocou na presença das competentes autoridades e de Donas-Bôtto, em Maio de 1993. As OGME receberam, e naturalmente pagaram, o material que ainda lhe poderia servir – e serve, como acima se referiu – tendo este processo terminado já em 1998. Também um conjunto de 21 cascos de viaturas Chaimite, incluindo um protótipo da V-400, o chamado “Carro de Combate Ligeiro”, se encontram hoje nas OGME, disponíveis para alienação. Pela primeira vez desde a 1.ª Guerra Mundial o governo português decide, em 1995, enviar uma força de combate para um teatro de operações na Europa, a Bósnia-Herzegovina. Em pleno Inverno, numa região semi-destruída por uma guerra civil de vários anos, com um cessar-fogo que ninguém sabia se iria ser cumprido, abundantes zonas minadas e/ou repletas de munições não rebentadas, estradas em péssimo estado, mas ainda assim os únicos locais por onde se podia andar, e onde abundavam episódios com atiradores furtivos. Ou seja, o local ideal para fornecer aos militares em operações alguma protecção que não apenas a lona de um “jeep” e o seu próprio capacete e colete balístico. Os pára-quedistas que constituem a grosso da força(7 ) tinham chegado ao Exército há menos de 2 anos e não dispunham de viaturas blindadas. A escolha foi fácil: as veteranas Chaimites atribuídas às Unidades de Cavalaria ou em depósito eram as únicas existentes. Na Bósnia em 1996 as Chaimites foram duramente testadas num cenário para o qual não tinham sido concebidas (Foto Miguel Machado) São feitas algumas adaptações de última hora – como o aquecimento – e 26 Chaimites seguiram para a Bósnia (Foto Miguel Machado) Missões de Paz O Serviço de Material prepara uma revisão geral, são feitas algumas adaptações de última hora com recurso ao mercado civil – como o aquecimento que acabou por ter funcionamento muito deficiente – e 26 Chaimites seguiram para a Bósnia. Apesar das condições draconianas existentes para as guarnições das viaturas e das limitações operacionais e mecânicas, a Chaimite cumpriu a missão. Conferiu mobilidade e protecção suficientes e garantiu capacidade de dissuasão em várias situações delicadas. No primeiro período da missão, sobretudo em Fevereiro e Março de 1996, a Chaimite viria a ter o seu 2.º grande período de exposição pública, com as escoltas aos comboios humanitários Sarajevo51 No Kosovo as Chaimites continuam a ser empregues pelos batalhões portugueses, sobretudo em missões de manutenção de ordem pública. Aqui em conjunto com viaturas da Gendarmerie francesa (Foto Miguel Machado) Gorazde, os incidentes e as patrulhas na neve a ocuparem grande espaço na comunicação social portuguesa. Em Outubro de 1996, fruto de acidente no decurso de uma patrulha, uma Chaimite capotou e dois militares faleceram. Continuou ao serviço dos batalhões que se seguiram na Bósnia, quer nas missões da NATO, quer da União Europeia, durante 11 anos, até Portugal ter decidido retirar a força de escalão batalhão daquele país. No Kosovo foram utilizadas juntamente com os M-113 e M-11 entre 1999 e 2001, data em que Portugal retirou a sua unidade escalão batalhão desta missão. Em 2005 o Exército volta a participar na Kosovo Force da NATO e, numa primeira fase, as Chaimites estão ausentes do batalhão português. Com o início, pouco depois, da missão do Exército no Afeganis- 1 Título do livro em preparação sobre a história da Viatura Blindada Anfíbia “Chaimite” e o seu criador, Major Donas-Bôtto. * As passagens deste artigo, referidas como da autoria do Major Donnas-Bôtto, são parte de um conjunto de textos assinados pelo próprio, cujas cópias se encontram na posse do autor e que foram endereçados a várias instituições, nomeadamente ao Ministério das Finanças, ao Provedor de Justiça, ao Tribunal Judicial de Benavente e à Presidência da República. 52 tão, é decidido utilizar os Hummer em serviço no Kosovo para aquela missão e substituí-los pela Chaimite. Parte das viaturas que estão na Bósnia são para ali transferidas e refira-se, a título de curiosidade, que esta mudança de teatro de operações foi feita via aérea em aviões C-130 da Força Aérea Portuguesa. Actualmente as Chaimites mantêm-se no Kosovo ao serviço do Agrupamento Mike da Brigada de Intervenção, mobilizado pelo Regimento de Cavalaria n.º 6 de Braga. O último capítulo da sua vida operacional no Exército Português está assim a aproximar-se do fim com recepção e entrada ao serviço da família de viaturas Pandur II 8X8 da austríaca “Steyr”. Na construção e montagem desta moderna viatura, além da firma portuguesa “Fabrequipa”, as OGME, seguindo no fundo uma tradição do tempo da Chaimite, também já começaram a participar.JE 2 In Arquivo Histórico-Militar idem nota 2. 4 “Elefante Dundum”, ISBN: 989-8024-01-1 5 «Chaimite “superstrar”, ou como se fabrica e conduz um blindado anfíbio», revista do ACP, Jan/Fev 1975. 6 “Para Além do Portão”: ISBN 979-989-8014-95-5 7 Quase mil militares integram os 2.º Batalhão de Infantaria Aerotransportada, Destacamento de Apoio de Serviços e Destacamento de Ligação. 3 PASSATEMPOS DE OUTROS TEMPOS in Jornal do Exército n.º 1 de 1960 Soluções no próximo número do JE Pretendo assinar o Jornal do Exército Para enco mendar basta fotocopiar o cupão e enviar para E STADO -M AIOR Lo gística, Rua dos Remédio s, n.º 202 – 1140-065 L ISBOA Nom e: _____________ ______ ___________ ______ __________ ______ DO E XÉRCITO – Secção de Profissão : _________ ______ __ M orada: _________ _________ ______ ___________ __ ____________ ________ ______ ____________ ___ Código P ostal: ______ ____________ Localidade: _____ ___________ ___ (Só para Militares) Posto: ____ _____________ T elefone: _______________ Ram o das F A: _______________ NIF: _______ ______ Assina tura Anual – Continente e Ilh as: € 2 0.00 - Via Aére a: Países Europe us € 45.00 - Restantes P aíses € 65.00 Para pedido de números atrasados, ou enca dernaç ões , conta cte-nos para: Largo S. Sebastião da Pedreira - 1069-020 Lisboa, Tel: 213 56 7 700 ou via email: jornal.exercito@ sapo.pt P AR A P AGAM ENTO DA M INHA A SSINATUR A T RA NSFE RÊ NC IA B A NC ÁR IA : N acional 0781 0112 0 112 0011 6976 9 – D .G.T. C HE Q UE : junto env io o Ch eque n.º - _________ ______ _ s/Banc o - _____________ ______ ___ à ordem da Sec ção de Logística do Estado -M aior do Ex ército. V ALE P OS TAL : junto env io o v ale postal n.º ______________ no v alor de _________ ___________ ______ _ 53 Sargento-Ajudante Artilharia João Bucho P ablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Clito Ruiz y Picasso − conhecido como Picasso, pintor, escultor, artista gráfico e ceramista espanhol. Nasceu em Málaga, onde seu pai, professor de desenho, era conservador do Museu Municipal, estudou em Barcelona e trabalhou em Paris. Desde pequeno sempre revelou muito interesse e uma grande facilidade para desenhar. Faleceu com 91 anos de idade, no sul de França. Pablo Picasso foi um dos mais famosos pintores do século XX, fundador do Cubismo. A arte moderna deve importantes impulsos à sua criatividade e ao seu incansável espírito de iniciativa, sendo inclusive apelidado de “pai da arte moderna”. Segundo consta, em relação à política, Picasso não se mostrou muito afectado pela Primeira Guerra Mundial. Contudo, a Guerra Civil Espanhola veio despertar nele um forte sentimento de revolta e uma acesa solidariedade com os Republicanos, tornando-se, em 1944, membro do Partido Comunista Francês. 54 Em 1936, o General Francisco Franco (1892-1975) encabeçou uma revolta militar contra o governo democraticamente eleito, composto por socialistas e liberais. Em 1937, a Guerra Civil Espanhola dividia a Espanha em duas correntes opostas: por um lado, os republicanos socialistas (apoiados por brigadas de voluntários estrangeiros e pela URSS), por outro, os nacionalistas fascistas do General Franco (apoiados pelos fascistas italianos seguidores de Mussolini e pelos nazistas alemães seguidores de Hitler). Os regimes fascistas de ambos os países eram aliados de Franco numa guerra civil que, podemos afirmar, prepararam o palco para a Segunda Guerra Mundial. Nesta altura, a Espanha entra em ruptura tendo Madrid resistido ao cerco das tropas de Franco, é então que uma bomba rompe as defesas do Museu do Prado (local onde se encontra a maravilhosa colecção de arte espanhola) e Picasso sente-se pessoalmente atacado, sentindo um grande desejo de proteger as obras dos seus antepassados, dos quais se destaca Goya, aceitando o cargo de Director do Museu, tendo tomado parte activa no deslocamento das obras primas do Museu do Prado para Valência. A Guerra Civil espanhola teve momentos muito violentos e sangrentos, contudo nenhum deles ganhou tanto relevo a nível internacional como quando os aviões de Hitler, em 26 de Abril de 1937, investiram durante mais de três horas sobre uma pequena cidade a 24 km de Bilbau, a Norte de Espanha, zona histórica e ancestral do nacionalismo basco (povo com língua e cultura própria e com um grande sentido de identidade) que queria derrubar Franco. Guernica, transformou-se num símbolo, convertendo-se na primeira cidade da história destruída por um ataque aéreo direccionado contra alvos civis. A repercussão negativa do ataque nazi à cidade de Guernica foi tão grande que os jornais de todo o mundo a noticiaram. Destaque para o jornalista Inglês George Steers, correspondente do jornal “The Times” londrino que, na altura, cobria a guerra em Bilbau, e foi a Guernica onde faz o seguinte relato, datado de 28 de Abril de 1937: “Guernica, a mais antiga cidade dos bascos, e o centro da sua tradição cultural, foi ontem completamente destruída por um ataque aéreo dos rebeldes. O bombardeio da cidade desprotegida, situada muito atrás da linha de combate, durou exactamente três quartos de hora. Durante este lapso de tempo uma forte esquadrilha de aparelhos de origem alemã− aviões de bombardeamento Junkers e Heinkel, assim como caças Heinkel − lançou ininterruptamente bombas, algumas com 500 Kilogramas, sobre a cidade. Simultaneamente aviões de caça em voo picado rasante atiravam com metralhadoras sobre a população que tinha fugido para os campos. Num curto espaço de tempo toda a cidade estava em chamas (...). Às 2 horas da madrugada de hoje, quando visitei a cidade, toda ela era uma visão terrível, queimada de ponta a ponta. A cerca de 16 quilómetros da cidade, já se podia ver o reflexo das chamas nas nuvens de fumo sobre as montanhas. Casas continuaram a desmoronar-se durante toda a noite, até que as ruas se tornaram grandes amontoados de destroços vermelhos e impenetráveis. Muitos dos sobreviventes civis tomaram o longo caminho de Guernica a Bilbao em antigas carroças de rodas de madeira, puxadas a bois. Carretes sobrecarregadas de objectos domésticos salvos da conflagração entupiram as estradas durante a noite inteira. Outros sobreviventes foram evacuados em caminhões do governo, mas muitos viram-se obrigados a permanecer na cidade em chamas, 55 Para o pavilhão de Espanha, na Exposição Internacional de Paris, de 1937, dedicada ao progresso e à paz, cria o painel a que chamou “Guernica” procurando parentes e crianças desaparecidos, enquanto as unidades do corpo de bombeiros e a polícia militar basca, sob a direcção pessoal do ministro do Interior, Señor Monzon, prosseguiram as operações de resgate até o amanhecer (...)” Vários historiadores apontam que Guernica era considerada como um alvo de pouco valor militar. Por isso, a acção das vagas de Junkers e Heinkel, que reduzem a cinzas e escombros a pequena cidade de menos de dez mil habitantes, vai mobilizar a indignação internacional. O resultado do bombardeamento é devastador. Uma comissão de inquérito formada após a conquista da cidade pelas forças de Franco revela que só 10% das construções não sofreram danos. Por seu lado, os bascos no exílio referem, na época, a existência de 1600 mortos e 900 feridos. O centro da cidade foi totalmente destruído, as ruas e praças envoltas em chamas devido, em larga medida, ao facto de as construções serem maioritariamente de madeira. A destruição de Guernica foi a primeira demonstração da técnica de bombardeamentos de saturação, mais tarde empregue na 2.ª Guerra Mundial Perante estas imagens e a proliferação das notícias que davam conta das atrocidades cometidas em Guernica, na imprensa (jornais e revistas) europeia e nos EUA, Picasso, que vivia em Paris, segundo consta, terá sido alertado pela notícia e pelas fotografias que surgiram no jornal francês “L'Humanité” e, tendo em mãos, nesta altura, uma encomenda para o pavilhão de Espanha, na Exposição Internacional de Paris, de 56 1937 (EXPO 1937), dedicada ao progresso e à paz , cria, entre Maio e Junho, o painel a que chamou “Guernica”, tema deste artigo de reflexão. Através dos pincéis, Picasso imortalizou o drama, o sofrimento e a brutalidade do bombardeamento da antiga capital dos Bascos, a cidade de Guernica, bombardeada pela Legião Condor pertencendo à Luftwaffe (Força AéreaAlemã), ao serviço das tropas nacionalistas de Francisco Franco, em 1937. Na construção do painel, Picasso teve a ajuda de uma mulher que tinha conhecido num café, chamada Dora Maar, pintora e fotógrafa participante do movimento surrealista que, mais tarde, veio a tornarse sua amante e parceira criativa. A presença de Dora passou a fazer parte do estúdio, tendo fotografado o seu trabalho. Picasso começou com alguns rabiscos, a carvão sobre tela, até que, envolvido na sua problemática pessoal, após ter visitado a outra sua amante Marie-Thérèse, e a filha recém nascida, Maya, acaba por ter de controlar uma rixa entre Dora e esta última. Segundo os historiadores, tratava-se de um período em que Picasso passava por emoções muito violentas, vivendo num “caos emocional”, não conseguindo resistir a transpor a completa angústia da sua vida pessoal para a sua arte politizada. Esta obra não tenciona representar o próprio acontecimento, mas sim evocar uma série de poderosas imagens, a agonia da guerra total. Olhemos então para o painel, onde o simbolismo da cena vai resistindo a diversas interpretações, a juízos mais subjectivos, embora estejam presentes vários elementos iconográficos tradicionais. À esquerda, a mãe chorando a morte do filho, (trata-se dos descendentes da Pietá), a mulher com a lâmpada na mão lembra-nos a Estátua da Liberdade, e a mão do cadáver empunhando uma espada partida (um emblema bem conhecido da resistência heróica). Também sentimos o contraste entre o ameaçador touro de cabeça humana, que certamente representa as forças do mal, e o cavalo ferido e agonizante. O cavalo é, à semelhança do touro, uma figura saída da mitologia espanhola e representa o povo que agoniza sob o jugo opressor do touro, símbolo da brutalidade, das forças do mal. Estas figuras devem a sua terrível eloquência àquilo que são e não aquilo que representam (Janson, 1977:656). aparecendo frequentemente a imagem da arena nos seus trabalhos. O cavalo, relinchando de dor, representa as vítimas. Entre os dois animais, uma pomba simboliza a liberdade ferida. Os sinais de esperança, no meio de tanta dor e destruição, são dados pela lâmpada acesa (candeeiro eléctrico aceso, em forma de sol, que sugere o “olho de deus” que tudo vê), e por um candeeiro nas mãos de uma das mulheres. A própria cor existente no quadro, ou a sua ausência, já que se trata de uma pintura a preto e branco, parece querer demonstrar o sentimento de repúdio do artista ao bombardeio da pequena cidade espanhola. As formas distorcidas e destroçadas são a expressão de um horror insuportável e do aniquilamento. É importante salientar que as imagens fragmentadas na Se continuarmos a visualizar o painel, facilmente faremos a sua leitura. Por exemplo, as figuras fragmentadas e agonizantes, dando-nos a clara sensação de caos, de onde se destacam a figura da mãe e do filho, a que já nos referimos. O quadro reproduz um total de seis seres humanos, todos olhando para o céu, e três animais. A criança morta pende inerte nos braços da mãe que, no seu rosto, espelha uma grande angústia, representada pela língua que sugere um punhal. Formas semelhantes aparecem um pouco por todo o quadro. Poderemos também ver, entre outros aspectos, à direita, uma casa a arder após o bombardeamento, de onde saem três mulheres e o homem que, em desespero, levanta os braços ao céu. No centro, o guerreiro morto com o corpo caído, desmembrado, esquartejado, junto à espada partida encontra-se uma flor, como uma mensagem de esperança numa vida nova, apesar das tentativas do Homem para a destruir constantemente. A comovente delicadeza da flor parece aumentar o horror geral da cena caótica. A presença do touro deve-se também ao fascínio que Picasso desde sempre revelou pela tourada, composição só fazem sentido se as diferentes partes se integrarem no todo, ou seja, se tivermos uma visão holística, onde o todo é sempre superior à soma das diferentes partes, caso contrário, teremos uma visão distorcida e muito redutora da realidade. Rapidamente o painel se transformou num objecto de protesto e denúncia contra a violência, a guerra e a barbárie.Terminada a feira, em Paris, o quadro viajou durante cerca de 20 anos, por vários países da Europa, da Noruega à Itália, mas também atravessou oAtlântico e foi exposto em LosAngeles, Chicago, São Francisco, São Paulo, entre outras cidades. Depois de viajar pelo estrangeiro e de estar exposto em Paris, chegou a Espanha em 1981 e foi para Madrid, para o Museu Rainha Sofia, localizado no bairro madrileno deAtocha, onde actualmente se encontra. Quando julgávamos que o quadro já não nos poderia dizer mais nada de novo, nesta nova era de conhecimento informático e tecnologia digital, rapidamente somos confrontados com o poder da arte, de revelar o interno, o escondido, de conseguir transmitir emoções e sentimentos. O quadro opera 57 Fotos: http:\\commons.wikimedia 58 http: Commons, WiKimedia um verdadeiro milagre. Apesar de todas as imagens de violência e desgraça com que somos atingidos, ele faz-nos… descobrir, transformar, inventar, sentir. Faznos interiorizar. A arte rompe com as nossas rotinas pré concebidas e indolentes. A rotina que este quadro destrói ou, melhor dizendo, ajuda a desconstruir, é um mal do nosso tempo, assim como já o era no tempo de Picasso, o hábito de aceitar passivamente a violência, a indiferença, o caos e a desordem perante o massacre. A obra de arte contribui para o processo de reconstrução da vida. A arte permite a transfiguração do horror, da morte em vida, do feio em belo. Poder de metamorfose.Através do acto criativo, Picasso vai desconstruir e construir uma nova realidade, a arte permite ordenar o caos. Podemos pois afirmar que Guernica não existe em nome da beleza, mas para romper com as cicatrizes, para nos fazer sangrar, para nos agitar e fazer avançar em frente. Esta obra continua a gerar grande polémica, neste início do séc. XXI. Basta lembrarmo-nos do ocorrido em 2003, quando a imagem de Guernica, existente na entrada das instalações do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque, foi coberta por uma grande cortina azul, quando os representantes das Nações Unidas apresentavam os seus argumentos para uma eventual intervenção armada no Iraque. Esta atitude foi muito divulgada e criticada pelos media, pois o painel encontra-se colocado num local onde os diplomatas costumam fazer as tradicionais conferências de imprensa. Questionado sobre o porquê da obra ter sido tapada, Fred Eckhard, secretário de imprensa da ONU, respondeu: “É um fundo inadequado para as câmaras”. Poderíamos fazer um comentário crítico e afirmar que talvez não fosse muito “adequado” que os representantes das Nações Unidas, ao mesmo tempo que falavam de guerra, confrontassem o mundo com as imagens de casas a arder, figuras de mulheres, crianças e animais gritando de horror e a sofrerem, lembrando-nos do bombardeamento sobre Guernica. Associado a isto, é pertinente recordarmos também o esforço que a Câmara Municipal de Biscaya, tem efectuado ao longo destes últimos anos, junto do Governo Espanhol, reclamando pelo regresso da obra ao Município Basco, recebendo sempre por resposta que, por razões técnicas, o quadro não sai de Madrid. “O que pensam que é um pintor? Um imbecil que só tem olhos? Não, a pintura não foi inventada para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e de defesa contra o inimigo” (Picasso) JE A imagem de Guernica, existente na entrada das instalações do Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi coberta por uma grande cortina azul, quando os representantes das Nações Unidas apresentavam os seus argumentos para uma eventual intervenção armada no Iraque Referências: Janson, H. W. (1977). História da Arte (2.ª Edição). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Walther, I. F. (1990). Picasso. Colónia: Tachen GmbH. Alguns sítios de interesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guernica_(quadro) http://www.pbs.org/treasuresoftheworld/guernica/ gmain.html http://lartnouveau.com/art_deco/expo_internationale_1937.htm http://pageperso.aol.fr/bottomcircle/Expo-1937page2.html http://www.areamilitar.net/HISTbcr.aspx?N=36 http://www.tlaxcala.es/pp.asp?reference =2510&lg=po (Entrevista traduzida de George Steer sobre o bombardeamento a Guernica) http://www.mare-alta.web.pt/mundo.htm (Comentários na Europa e em Portugal no governo de Salazar perante o bombardeamento). http://www.museoreinasofia.es/museoreinasofia/live/ index.html www.picasso.fr (Site oficial de Picasso) www.paris.org/Musees/Picasso (Site do Museu Picasso) http://www.lena-gieseke.com/guernica/movie.html Guernica em 3D − Uma artista nova-iorquina, Lena Gieseke, transformou o painel pintado a óleo, de Picasso, numa versão tridimensional. O projecto é “uma oportunidade rara de ver a pintura sobre uma perspectiva única, revelando aspectos que normalmente passariam despercebidos ao público em geral”, escreve a especialista em infografia digital. Biografia Sargento-Ajudante de Artilharia desde 1995, a prestar serviço na Unidade de Apoio da Área Militar AmadoraSintra, onde exerce funções de Sargento de Matrícula em acumulação com as de encarregado da ADM e DRF. Licenciado em Psicologia, com formação Pós-Graduada na área de Gestão do Stress. Formador e docente em contexto universitário: ISPA; ISLA; BELAS ARTES. Membro da SPAT, arte-psicoterapeuta e formador Certificado pelo IEFP.