PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)
Jogador vs. Programa: Conexões entre as ideias de Vilém Flusser e a
questão da liberdade nos videogames1
Ivan Mussa2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Os jogos eletrônicos se inserem em um conjunto maior de máquinas que podemos
definir como sistemas baseados em regras. O que os diferencia das demais máquinas
que atendem aos critérios deste grupo é que sua programação é feita com o intuito
principal de abrigar a experiência lúdica. Como programas, eles constroem
mecanismos para influenciar o comportamento de quem entra em contato com eles;
como um aglomerado de regras, eles definem o que se pode fazer e o que não se pode
fazer no sistema. Do ponto de vista do jogador, isso se traduz em um problema de
liberdade: como seria possível experimentar ações novas e se manifestar
criativamente se, em última análise, os programas definiriam as possibilidades
previamente? Neste artigo nos apropriamos dos movimentos teóricos de Vilém
Flusser para propor uma redefinição da questão da liberdade nos jogos. Queremos,
através do autor, demonstrar que a união entre jogador e programa pode permitir a
criatividade e abrigar a expressão livre.
Palavras-chave: videogames; programa; liberdade
"Oh, look at these two. How they wish to destroy one another. How they wish to
control one another. How they both wish to be free."
Female Narrator (The Stanley Parable)
Introdução
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Subjetividade, do 4º Encontro
de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014.
2
Doutorando do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PPGCOM/Uerj). E-mail: [email protected].
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O game designer Chris Crawford escreveu em 1989 o texto Process Intensity
(cujo título poderia ser traduzido como “Intensidade Procedimental”). Crawford
divide dois compostos básicos dos jogos eletrônicos: dados e processos. Dados seriam
imagens, textos escritos, sons e modelos bidimensionais ou tridimensionais. Processos
assumiriam o papel de movimentar, modificar e associar os dados entre si.
A tarefa de quem cria o jogo é articular dados e criar condições para que estes
sejam processados. O jogo só acontece quando o software dispara o movimento de
correntes elétricas, a troca de informações binárias e as mudanças de cor dos pixels
que mostram as metáforas visuais da interface. Processos atualizam-se durante toda a
dinâmica de um videogame, e sua unidade fundamental são ações dos jogadores e da
máquina (GALLOWAY, 2006, p. 1-26). Imagens, sons e vídeo fazem parte da cadeia
de dados que são alterados pelos processos: o produto da experiência é a alteração da
constituição material do jogo: “a obra em si é ação material”3 (GALLOWAY, 2006,
p. 2).
A matéria prima para projetar as condições de ação em um jogo são as regras.
Uma concepção comum a respeito destas é que seu papel é limitar possibilidades.
Todo sistema fecha portas a quem o usa, e quem o projeta busca controlar a atuação
de quem o consumirá. Atualmente, nos videogames, este paradoxo se manifesta nas
tentativas de arquitetar experiências cada vez mais encaminhadas e padronizadas.
A experiência de jogar Call of Duty 4: Modern Warfare (2007) e a linhagem
de jogos de tiro/guerra que ele desencadeou é repleta de constrangimentos impostos
pelos criadores do jogo. Embora ainda seja uma obra feita de ações, as regras que as
condicionam parecem servir como barreiras para a expressão livre do jogador, o que
motiva questionamentos a respeito da suposta “superioridade interativa” dos
videogames e a suposta possibilidade do jogador assumir o controle e se tornar
coautor da obra. O que este tipo de jogo tenta, na verdade, é emular a experiência
cinematográfica hollywoodiana, o que exige altas doses de controle narrativo, rítmico
e temático por parte dos criadores. Existe espaço para a liberdade do jogador?
3
Livre tradução de: “the work itself is material action”.
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A resposta está no lado oposto do problema: não é difícil encontrar jogos,
sejam antigos ou contemporâneos, que pedem o envolvimento criativo do jogador e
que este expresse sua subjetividade através das ferramentas do jogo. Esta premissa
atinge um nível de complexidade notável, sobretudo com SimCity (1989). Minecraft
(2009), ilustra essencialmente o que esta espécie de jogo propõe: a criação de peças
conectáveis de múltiplas maneiras, o que implicaria em uma liberdade de ação maior.
Mas ainda assim, existem regras nestes jogos, e elas limitam as possibilidades de ação
e inevitavelmente criam caminhos para que o jogador os siga, como todo sistema.
Então, em última análise, o criador do jogo está no controle?
Este artigo busca compreender este problema, que foi percebido por Vilém
Flusser em seu texto To Touch (FLUSSER, 2011, p. 23-32), através do exemplo da
máquina de escrever. Redirecionamos o pensamento para os videogames, por serem
estes meios de comunicação baseados na participação do jogador. O entendimento do
problema da liberdade, portanto, altera significativamente como esta participação
pode ser vista e quais efeitos comunicativos ela possui. Seguiremos as pistas deixadas
por Flusser neste texto, e também em outras menções que este faz à ideia de jogo,
com o objetivo de demonstrar como seu pensamento pode ajudar a repensar a relação
entre o programa do jogo e a intencionalidade do jogador.
Programa e Liberdade
Para Flusser, um programa existe em contato com quem o usa através de
teclas, botões, chaves4. Em uma máquina de escrever, uma tecla dispara processos
mecânicos que possibilitam que nosso único toque imprima a imagem de uma letra no
papel. Nos videogames, um único movimento de um joystick também causa processos
físicos que, numa escala infinitesimal de processos elétricos e magnéticos, é traduzido
em um personagem correndo ou em uma nave interestelar mudando sua rota de
locomoção.
4
No inglês, o termo pode ser unificado na palavra “key”.
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No processo de escrita de um texto ou da navegação em um ambiente digital,
o que motiva a atuação humana é a intencionalidade. O escritor ou jogador imaginam
algo e manifestam sua intenção através dos processos lógicos que o sistema (um
processador de texto ou jogo) organiza. Entretanto, a transferência entre intenção e o
produto final feito em conjunto com o sistema não necessariamente carrega valor
humano, pois o mesmo texto ou processo de jogo pode ser executado por um software
que selecione comandos aleatórios e os compute. Dado um tempo indeterminado e
que tende à infinidade, um texto igual a este poderá ser escrito por esta “inteligência
artificial”, assim como um jogo idêntico à uma partida de xadrez cujos jogadores
juravam ser única e repleta de valor pessoal.
Neste contexto, emerge uma possibilidade assustadora: a de que a diferença
entre a intenção humana e o funcionamento de um software aleatório é apenas o
tempo que se passa até que o produto da ação se concretize. A liberdade humana,
portanto, seria reduzida apenas a uma escala temporal, e não de natureza.
Flusser propõe que pensemos o problema a partir de sua outra margem, onde
encontramos o programador. Afinal, tanto a máquina de escrever, os softwares
processadores de texto e os jogos eletrônicos foram criados através da atuação (livre)
humana. Estaria aí a liberdade? Se respondêssemos sim, o problema investigado neste
artigo estaria resolvido: o criador do jogo exerce sua liberdade quando elabora um
sistema de ações, inventando-o e, ao mesmo tempo, dando origem a todos os produtos
possíveis da interação com este sistema. Mas logo o contrassenso desta proposta é
explicitado por Flusser: “Pois retornar da tecla para o programa e do programa para o
programador é um passo em direção ao abismo da regressão infinita”5 (FLUSSER,
2011, p. 27).
Se o ato livre e intencional do programador é responsável por todas as
possibilidades que um sistema pode gerar, seria válido dizer o mesmo para a
“programação” humana, fruto da evolução e do funcionamento genético (que cria o
5
Livre tradução de: “For backtracking from the key back to the program and from there back to the
programmer is a step into the abyss of infinite regress”.
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programador). Teríamos de caminhar para trás, até achar um programador original,
responsável por tudo aquilo que pode ser produzido com as “partículas que precisam
ser recolhidas” (FLUSSER, 2011, p. 23).
Para Flusser, portanto, a suposta liberdade humana que se manifestaria através
de um programa não pode ser creitada apenas ao seu programador. Mas isso não
resolve o problema, apenas risca uma possível solução da lista. A consideração que
parece encerrar a dúvida de Flusser é a análise da própria experiência de escrever:
Eu sei, portanto, que minhas teclas me convidam a uma
malha de acidentes e necessidades determinada. E,
apesar disso tudo, eu experimento meu gesto de escrita
concretamente como um gesto livre [...]. Pois meu ser
está concentrado nas pontas dos meus dedos quando
escrevo: toda minha vontade, pensamento e
comportamento fluem para elas e através delas, além
das teclas, além do universo de partículas que elas
comandam, além da máquina de escrever e do papel, e
em direção à esfera pública.6 (FLUSSER, 2011, p. 28)
A própria sensação de liberdade existente no ato de escrever com uma máquina já
parece ser suficiente para “provar” a possibilidade do ato livre independente do
condicionamento imposto pelo programa. Mas o argumento de Flusser vai além: ele
chama a atenção para a continuidade existente na dinâmica da escrita. Sua
intencionalidade, seus pensamentos e sentimentos são traduzidos em gestos, que
viram folhas em um papel e que são publicados, ou seja, que comunicam. Quando o
texto alcança a esfera pública e, de alguma maneira, materializa uma manifestação da
intenção de quem o escreve para novos leitores, um fluxo se concretiza.
A dimensão da liberdade na relação com o programa, para Flusser, parece
morar na dimensão comunicativa de um aparato como a máquina de escrever: ela é
6
Livre tradução de: “I know, therefore, that my keys are inviting me into a determined mesh of
accident and necessity. And in spite of it all, I experience my writing gesture concretely as a free
gesture [...]. For my being is concentrated on my fingertips when I am writing: my entire will, thought,
and behavior flow into them and through them, past the keys, past the particle universe those keys
command, past the typewriter and the paper and into the public sphere.”
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um instrumento para “tornar o privado público” 7, enquanto outras chaves, como o
monitor de uma TV “tornam privados assuntos públicos”8 (FLUSSER, 2011, p. 29).
Se a máquina de escrever possibilita este tipo de trajeto, ela pode fazer parte da cadeia
de elementos que possibilitam a expressão livre.
Como é possível comparar isto – a produção de um texto – com a prática de
um jogo? Pode-se propor que um jogador de xadrez escolhe seus movimentos
segundo uma estratégia pessoal, um estilo de jogo. Ele imagina uma sequência de
ações, adaptando-a às escolhas do seu adversário. Jogadores geniais como José Raul
Capablanca e Gary Kasparov desenvolveram estilos próprios, reconhecíveis
rapidamente por quem possui familiaridade com o xadrez. Capablanca ficou marcado
pelo seu jogo simples e extraordinária capacidade de encerrar partidas. Kasparov, pelo
contrário, tornou-se um dos mais influentes jogadores da história com sua capacidade
de lidar com arrumações complexas no tabuleiro, e pela agressividade e eficiência na
abertura.
Mas tanto Capablanca quanto Kasparov escolhiam suas sequências de ações a
partir de uma miríade de possibilidades pré-determinadas pelas regras do jogo. Assim
como as combinações de caracteres de uma máquina de escrever. Se nesta última a
expressão livre existe na capacidade comunicativa (que trafega do privado para o
público), em que nível isto colocaria um jogo de xadrez ou um jogo eletrônico? O
produto da manipulação de seus sistemas não é necessariamente um trajeto do público
para o privado, ou tampouco faz o caminho inverso. Nesse sentido, jogar seria nada
mais do que a ilusão da atuação livre? No fundo se igualaria em natureza a uma
escolha aleatória dentro de um conjunto pré-determinado?
Jogo e Liberdade
Para responder a esta pergunta, continuaremos conversando com Flusser.
Desta vez, partiremos para a Filosofia da Caixa Preta (1985). Neste livro, Flusser
7
8
“making the private public”
“making public matters private”
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pensa sobre um outro aparato programado – a máquina fotográfica – e dedica mais
tempo para decifrar as suas características e como nos relacionamos com ele.
Acontece que neste livro a noção de jogo é extremamente importante, e ampla o
bastante para podermos perceber que colocar-se na posição de jogador é bem mais do
que escolher uma combinação dentro de um conjunto finito.
Nas palavras de Flusser, os “programas dos aparelhos são compostos de
símbolos permutáveis” (FLUSSER, 1985, p. 16). Na máquina de escrever, estes
símbolos são sinais alfanuméricos. No xadrez, são as casas, divididas espacialmente, e
as peças. Em Minecraft, são os blocos, o avatar do jogador e as ferramentas que este
pode usar para alterar o mundo a sua volta. Os símbolos, portanto, possuem
propriedades que os diferenciam um do outro, como é possível notar na breve
definição de “Programa” de Flusser (1985, p. 5): “Jogo de combinação com
elementos claros e distintos”.
Miencraft, com uma skin personalizada. O jogador se encontra em um ambiente onde pode-se ver
os variados tipos de blocos, cada um deles com suas propriedades únicas. Podem ser coletados,
combinados e reposicionados.
É necessário chamar atenção para o fato de que tanto o xadrez quanto a
máquina de escrever fazem uso de programas que não se conectam com a definição
de “aparelho” pensada por Flusser. Um aparelho é concebido a partir de textos
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científicos. De qualquer modo, a linguagem também é um programa, assim como a
virtualidade construída pelas regras do xadrez, com a diferença de que “Não foi
produzida deliberadamente, nem recorreu a teorias científicas, como no caso de
aparelhos verdadeiros” (FLUSSER, 1985, p. 16).
Para Flusser, o escritor brinca com o “programa linguístico”, esgotando suas
possibilidades e enriquecendo o universo de possibilidades criado pelo programa. Esta
brincadeira é a dimensão fundamental do aparelho fotográfico: não é mais tão
importante o seu produto final, mas sim as virtualidades de seu funcionamento. Esta
virtualidade está nas regras do programa, e sua permutação é a prática do jogo:
recombinar determinados símbolos em uma determinada ordem.
Quando elementos distintos são combinados, estes produzem novos
significados e sensações. Se o jogo é “atividade com fim em si mesma” (FLUSSER,
1985, p. 5) e “definida por regras, na qual o jogador tenta alcançar alguma espécie de
objetivo” (GALLOWAY, 2006, p. 1), o processo de escrever pode ser lúdico.
Experimentar com as possibilidades de um programa é uma atividade com potencial
de jogo, e é uma forma de expressão da liberdade humana na relação com um sistema.
Nesse sentido, embora o processo de jogo não ultrapasse necessariamente a
barreira entre público e privado (ou faça o trajeto oposto), ele pode exercer função
essencial neste processo comunicativo. Basta que tenhamos um programa e um
“jogador” que permute os símbolos que compõem o sistema. Talvez esta permutação
tenha algum propósito prático externo à atividade que consideramos como jogo
(produzir um texto para informar o horário de um evento e colocá-lo em um quadro
de avisos, por exemplo). Mas se durante a escrita ocorre a brincadeira de
experimentar com a virtualidade do programa linguístico, a atitude lúdica está
presente.
Parece evidente que Flusser pensa o jogo como uma forma de se relacionar
com o mundo e com as coisas, e não como um produto ou experiência fechada. É
possível brincar com a linguagem, brincar com a máquina fotográfica e, naturalmente,
brincar em partidas de xadrez ou Minecraft. Jogar é sair do mundo do progresso e
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assumir um outro tipo de realidade. Para Flusser, homo ludens é aquele que vive esta
realidade, pois “o jogo dá ritmo e significado à vida” (FLUSSER, 1998, p. 55).
Quando filosofa sobre o brasileiro, Flusser identifica esta possibilidade, por exemplo,
na atitude do burguês que “foge da situação econômica, social e política insuportável
na direção da cultura”, onde “descobre uma nova realidade, a do espírito criador
humano” (FLUSSER, 1988, p. 63).
O argumento é claramente inspirado no trabalho de Johan Huizinga que, assim
como Flusser, enxergou que o ser humano – homo ludens – coloca um pouco de jogo
em diferentes esferas da vida. Ao falar da relação entre poesia e jogo, por exemplo,
Huizinga explica que a poiesis
se exerce no interior da região lúdica do espírito, num mundo
próprio para ela criada pelo espírito, no qual as coisas possuem
uma fisionomia inteiramente diferente da que apresentam na "vida
comum", e estão ligadas por relações diferentes das da lógica e da
causalidade. (HUIZINGA, 2000, p. 88)
O programa que comanda cada jogo é constituído por regras, e estas recriam
(simulam) a realidade, com novas propriedades causais e lógicas. O ato de entrar
nesta realidade alternativa e de brincar com seus símbolos é também um ato de
liberdade, que pode ser lido como uma forma de fuga da vida comum ou de atribuir a
ela um novo funcionamento.
Jogo e criatividade
Um jogo pode ser feito de símbolos permutáveis, mas também pode oferecer
caminhos pensados previamente. Nestes jogos, os símbolos são diferentes mas não
alteram significativamente o estado ou efeito dos outros símbolos que os rodeiam. Um
exemplo disso é um quebra-cabeça, que é jogado quando conectamos diferentes
peças. No entanto, existe uma única combinação correta, e o segredo do jogo está em
descobri-la através de certos sinais (o formato da peça, o pedaço de imagem que ela
exibe e a imagem original).
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Não poderíamos chamar este tipo de jogo de programa, já que seus símbolos
não são permutáveis. Eles não podem ser combinados em diferentes ordens,
quantidades e formações para gerar novidades. É um problema controlado, não um
sistema: uma tarefa cujo objetivo é “recompor uma forma original” (KASTRUP,
2007, p. 27).
No entanto, se um jogo cria um sistema com peças que possuem propriedades
distintas e que, ao se conectarem, criam possibilidades novas, começa a haver a
possibilidade de permutação de símbolos e, portanto, de criatividade. As
possibilidades de combinação e expressão lúdica através do reposicionamento e da
ativação das propriedades dos blocos em Minecraft permite que ocorra a “invenção de
problemas” (KASTRUP, 2007, p. 29). No mundo criado pelo jogo, os perigos e
possibilidades são fruto de permutações de tantos símbolos, que o jogo torna-se
complexo demais para ser previsto.
Para que isso aconteça, “As potencialidades contidas no programa devem
exceder à capacidade do funcionário para esgotá-las” (FLUSSER, 1985, p. 15). A
imprevisibilidade dos sistemas nos jogos ocorre, portanto, quando o jogo define
muitos símbolos, com muitas propriedades. Em outras palavras, quando as regras
existem em grande número. Além de limitar comportamentos, regras especificam
affordances (JUUL, 2005, p. 58)9. Miencraft define regras em grande número, e estas
especificam que os objetos (símbolos) que podem influenciar uns aos outros. Este tipo
de desenho de jogo possibilita que nem mesmo o criador do programa possa prever
todos os seus resultados.
O jogador se perde neste sistema, envolto por um ambiente cujas
possibilidades são numerosas demais para serem previstas mas que, exatamente por
isso, podem ser matéria prima para a criação. A novidade no jogo nasce da interação
entre cognição humana e o sistema do jogo (JUUL, 2005, p. 82). Elas nascem da
9
O termo affordance foi cunhado pelo psicólogo James J. Gibson no livro The Echological Approach
to Visual perception (1986). O termo se refere às possibilidades de ação que surgem do encontro entre
dois ou mais elementos do ambiente. Jesper Juul, no livro Half-Real (2005), usa o termo com um
significado próximo a “possibilidade de ação”, algo que uma regra permite (affords) um jogador.
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intenção e da vontade do jogador, transfere-se para os seus dedos que apertam as
teclas, pondo o aparelho em funcionamento. O jogador é funcionário do aparelho,
cuja função é “permutar símbolos programados” (FLUSSER, 1985, p. 16). Assim, o
jogador põe em movimento estas “caixas pretas que brincam de pensar” (FLUSSER,
1985, p. 17), pois pensar é permutar símbolos guardados na memória. E jogar é fazer
justamente isto: morar no momento de experimentação que compõe o processo
comunicativo.
Considerações finais
Partimos do problema da liberdade na manipulação de sistemas, que possuem
resultados pré-definidos pelas regras que o constituem. Comparamos a máquina de
escrever pensada por Flusser com os jogos eletrônicos e seus sistemas de regras,
também limitados a um conjunto controlado de possibilidades. Para Flusser, a
máquina de escrever é um componente da cadeia de elementos que possibilitam sua
manifestação criativa. Quando digita, ele transfere sua intencionalidade para o
funcionamento do programa da máquina, que faz nascer um produto que torna público
o que era privado.
Tanto na máquina de escrever quanto no jogo, este processo acontece através
da permutação de símbolos que podem ser recombinados a partir de regras. A
experimentação com este sistema funciona como jogo: uma atividade que tem fim em
si mesma, um processo de esgotamento das possibilidades permitidas pelo programa,
que sempre superam a capacidade do jogador de prevê-las e imaginá-las. O jogo com
o sistema, mesmo que não seja uma forma de movimentar dados através da via que
viaja entre o público e o privado, pode ser um processo que faça parte desta dinâmica
comunicativa. Os jogos eletrônicos são programas que, por vezes, permitem a
experimentação livre com este tipo de fenômeno.
Quando os sistemas dos jogos possuem símbolos numerosos e possibilitam a
permutação e a recombinação destes símbolos, há a produção de novidade. Os
videogames que programam este tipo de virtualidade abrem margem para a
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criatividade, a invenção de problemas e a concepção de objetivos feitos pelos
jogadores. Nos conectamos com os jogos para produzir diferença e novidade, através
da nossa intencionalidade que se une a seu funcionamento de máquina.
É possível propor que o videogame é uma forma de organizar experiências
similares ao uso da caixa preta: jamais saberemos tudo que eles podem nos mostrar,
mas tentar esgotar as possibilidades é uma atividade com fim em si mesma. O jogador
pode “enfrentar” o programa, no sentido de esgotar seus limites, mas, em última
análise, os dois fazem parte de um mesmo fluxo de ações, e precisam um do outro
para gerar processos novos.
O jogo The Stanley Parable (2013) é um grande discurso a respeito da
possibilidade de liberdade nos videogames, colocando o jogador na carne de um
personagem (Stanley) que aperta botões quando é mandado. Um dia, as ordens param
de aparecer e Stanley é obrigado a sair de sua sala e descobrir o que aconteceu. A
partir daí o jogador é convidado a desvendar uma série de possibilidades narrativas
que se bifurcam em vários pontos.
Ao experimentar todas as possibilidades do jogo, fica claro que sua intenção é
desmistificar a possibilidade de escolher nosso próprio caminho nesse tipo de sistema.
Todas as escolhas teriam sido pensadas antes por uma inteligência superior. O
narrador do jogo ridiculariza as tentativas do jogador de controlar a experiência, mas
também se complica constantemente tentando encaminhar o jogo para onde quer. A
guerra jogador e programa não tem vencedor e, no final, é uma comunicação
impossível.
A partir do pensamento de Flusser, é possível ler esta crítica não como uma
declaração da impossibilidade dos videogames permitirem a liberdade, a escolha e a
criação. Na verdade, o jogo pode ser um grito desejoso por experiências com mais
símbolos permutáveis e menos tentativas de regular a experiência. Numa determinada
cena, o narrador é substituído por uma narradora, que observa a briga infrutífera de
fora. Mas além de dizer como os dois – programa e jogador – querem destruir um ao
outro, a narradora diz: “Você vê? Consegue ver como eles precisam um do outro?
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Talvez não. Às vezes esssas coisas não podem ser vistas” 10 . O que procuramos
mostrar, aqui, é que Flusser as viu: quando a intenção do jogador encontra a
virtualidade do programa, a liberdade pode emergir.
Referências
CRAWFORD, Chris. Process Intensity. 1989. Disponível em:
http://www.erasmatazz.com/library/the-journal-of-computer/jcgd-volume-1/processintensity.html (acessado 11/08/2014).
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
______. Fenomenologia do brasileiro. Ed. UERJ, Rio de Janeiro, 1998.
______. Into the Universe of Technical Images. Minneapolis: University of
Minnesota Press, 2011.
GALLOWAY, Alexander. Gamic Action: Four Moments. In: Gaming: Essays on
Algorithmic Culture. Minneapolis e Londres: University of Minnesota Press, 2006.
GIBSON, James J. The Ecological Approach to Visual Perception. Londres:
Psychology Press, 1986.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.
JUUL, Jesper. Half-Real: Video Games between Real Rules and Fictional Worlds.
Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2005.
KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo: Uma introdução do tempo e do
coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
10
“Can you see? Can you see how much they need one another? No, perhaps not. Sometimes these
things cannot be seen.”
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