UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÕES E ARTES BRUNO DE OLIVEIRA FERREIRA EDUCOMUNICAÇÃO & DISCURSOS: A FALA DO ADULTO NOTICIADA PELO JOVEM São Paulo 2014 BRUNO DE OLIVEIRA FERREIRA EDUCOMUNICAÇÃO & DISCURSOS: A FALA DO ADULTO NOTICIADA PELO JOVEM Trabalho de conclusão apresentado à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como pré-requisito para obtenção do título de especialista em Educomunicação: Comunicação, Mídias e Educação. ORIENTAÇÃO: PROFª. DRª. MARIA CRISTINA PALMA MUNGIOLI São Paulo 2014 2 Dedico este trabalho à rede de jovens e amigos que conquistei durante minha atuação como educomunicador. Os Virajovens ressignificaram o jornalismo em minha vida profissional, trazendo-me a percepção do quanto a comunicação pode ser transformadora, quando feita de modo engajado e numa perspectiva educativa. 3 AGRADECIMENTOS À coordenação do curso de especialização em Educomunicação: Comunicação, Mídias e Educação, da ECA/USP pela confiança em me conceder a bolsa de estudos para cursar esta especialização que tem inestimável relevância em minha formação humana e profissional. À Viração Educomunicação, que realizou meu sonho de adolescente de trabalhar com Educomunicação, sensibilizando-me para ser um cidadão mais participativo, um ser humano melhor resolvido e um profissional realizado. À querida Profª Dra. Maria Cristina Palma Mungioli pela atenciosa, inspiradora e provocativa orientação, que muito me auxiliou no delineamento deste trabalho e pela indicação de autores preciosos e fundamentais para esta monografia e, sobretudo, para minha atuação como jornalista e educomunicador. Aos adolescentes Daniel Mendes, Thailane Oliveira e Thamires Rozendo, com os quais tive contato durante a cobertura educomunicativa da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, em Brasília, em outubro de 2013, e que gentilmente concederam entrevistas extremamente relevantes para este trabalho. À Lilian Romão, Elisangela Nunes (Elis) e Rafael Silva, colegas da Viração, que também aceitaram contribuir para este trabalho, dedicando momentos importantes de suas horas de trabalho para responderem questões fundamentais para o seu desenvolvimento. À família e amigos queridos, pela compreensão em razão da minha ausência nos últimos feriados e finais de semana em que dediquei atenção exclusiva à conclusão deste trabalho. 4 RESUMO O objetivo da pesquisa foi discutir e analisar a prática de produção de notícias realizada sob a perspectiva da Educomunicação, chamada “cobertura educomunicativa”, pela organização Viração Educomunicação. Trata-se de um tipo de atividade orientada por educomunicadores dessa organização nas quais adolescentes e jovens atuam como entrevistadores, repórteres e produtores de conteúdo midiático sobre congressos, conferências e seminários que tratem de direitos humanos, educação e comunicação. O presente trabalho buscou discutir as circunstâncias em que as coberturas se desenvolvem como prática pedagógica, por meio da qual o jovem enuncia seus discursos, construídos sob olhar e orientação do adulto. Dessa forma procurou-se compreender se, efetivamente, a aproximação dos jovens com produção midiática promove o encontro dialógico entre esses atores sociais. Como forma de conseguir sua sustentabilidade financeira, a Viração promove coberturas educomunicativas como prestação de serviço. Assim, a principal pergunta deste trabalho pode ser assim apresentada: nessa relação contratual, seria possível ao jovem elaborar um discurso crítico, problematizador e independente por meio de linguagens midiáticas? Como forma de responder a essa pergunta, o presente estudo baseou-se em pesquisa bibliográfica, documental e de campo, utilizando como técnica de pesquisa o estudo de caso. O trabalho se construiu sobre os pilares dos estudos de Analise do Discurso (AD), dos estudos de linguagem de Bakhtin e dos estudos do campo da Educomunicação. Os resultados da pesquisa indicaram que a metodologia da cobertura educomunicativa analisada não propiciou a apropriação da comunicação na perspectiva da relação e do diálogo. A discussão efetuada indicou que o problema metodológico não incidiu, de fato, sobre a relação contratual da prestação de serviço, mas sobre a metodologia adotada. Frente ao problema, o presente trabalho apresenta uma proposta de intervenção com o objetivo de favorecer a comunicação dialógica e engajada dos jovens participantes em atividades de cobertura educomunicativa. Palavras-chave: Educomunicação, discurso, diálogo, cobertura educomunicativa, produção midiática, jovem. 5 ABSTRACT The objective of this research was to discuss and analyze the practice in production of news under Educommunication perspective, known as “educommunicative coverage”, by the organization ‘Viração Educomunicação’. It is an activity guided by educommunicators from that organization in which teenagers and young act as interviewers, reporters and producers of media content over congresses, conferences and seminars dealing with human rights, education and communication. This study aimed to discuss the circumstances in which the coverage is developed as a pedagogical practice, through which the young states his speeches built under the supervision of an adult. Thus we attempted to understand if effectively the approximation of young people with midiatic production promotes dialogical encounter between these social actors. As a way to achieve financial sustainability ‘Viração’ promotes educommunicative coverage as service provision. So the main question of this study can be presented as it follows: this contractual relationship, it would be possible to prepare a young to create a critic discussion, problem-solving and independent through media languages? In order to answer this question, this study is based on literature, documentary and field research, using as a technique research the case study, this work is built on the pillars of studies Discourse Analysis (DA), the Bakhtin language studies and studies in the field of Educommunication. Results of this research indicated that the methodology of educommunicative coverage analyzed, did not provide the appropriation from the perspective of the relationship and dialogue. The discussion carried out, indicated that the methodological problem does not relate, in fact, the contractual relation of service provision but on the adopted methodology. Face to the problem, this study presents a proposal for intervention, aiming to promote dialogic communication and engaged to young participants in activities of educommunicative coverage. Keywords: Educommunication, speech, production, teenage. dialogue, educommunicative coverage, midiatic 6 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................... 8 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 10 PARTE I - A CONSTRUÇÃO DO OBJETO ............................................................................... 14 1. VIRAÇÃO EDUCOMUNICAÇÃO...................................................................................... 15 1.1. Coberturas educomunicativas ............................................................................................. 22 2. EDUCOMUNICAÇÃO: DO SENSO COMUM À TRANSFORMAÇÃO SOCIAL ............... 28 2.1. O papel do educomunicador ............................................................................................... 33 3. JORNALISMO COMO PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA .................................................. 36 3.1. A produção da notícia ......................................................................................................... 37 3.2. Reportagem: o relato circunstanciado ................................................................................ 41 3.3. Cobertura jornalística na perspectiva da Educomunicação ................................................ 43 3.4. Participação de adolescentes e jovens por meio da Educomunicação ................................ 48 4. DISCURSO, MÍDIA E PODER ................................................................................................ 54 4.1. Mídia, discursos e ideologia ............................................................................................... 58 4.2. Legitimação do discurso ..................................................................................................... 62 4.3. Leitura crítica das mídias.................................................................................................... 64 PARTE II - ANÁLISE DO OBJETO ............................................................................................ 66 5. CAMINHOS E MAPAS DA PESQUISA ................................................................................. 67 5.1. Objetivos da pesquisa ......................................................................................................... 67 5.2. Hipóteses de trabalho ......................................................................................................... 68 5.3. Procedimentos metodológicos ............................................................................................ 69 5.4. Questionários norteadores das entrevistas .......................................................................... 73 6. A NOTÍCIA PRODUZIDA PELO JOVEM ............................................................................. 75 6.1. Gestores da Viração e a cobertura educomunicativa .......................................................... 76 6.2. A visão dos jovens sobre a cobertura educomunicativa ..................................................... 78 6.3. Conteúdos produzidos no contexto da cobertura educomunicativa.................................... 79 6.4. Recepção de conteúdo da cobertura educomunicativa ....................................................... 93 7 6.5. Análise dos vídeos ............................................................................................................ 102 6.6. O jovem comunicador e o discurso do adulto .................................................................. 106 6.7. Retomada das hipóteses .................................................................................................... 117 7. PROPOSTA DE INTERVENÇÃO ......................................................................................... 123 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 127 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 130 ANEXOS ..................................................................................................................................... 133 ANEXO 1 - ENTREVISTA COM LILIAN ROMÃO, DIRETORA EXECUTIVA DA VIRAÇÃO EDUCOMUNICAÇÃO ............................................................................................................... 134 ANEXO 2 - ENTREVISTA COM RAFAEL ALVES DA SILVA, COORDENADOR DA COBERTURA DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL .................................... 140 ANEXO 3 - ENTREVISTA COM ELISANGELA NUNES CORDEIRO, EDUCOMUNICADORA DO GRUPO DE ADOLESCENTES QUE PARTICIPARAM POLITICAMENTE DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL ............................................................................. 149 ANEXO 4 - ENTREVISTA COM JOVENS PARTICIPANTES DA COBERTURA DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL ................................................ 151 ANEXO 5 - PESQUISA DE RECEPÇÃO A PARTIR DA ASSISTÊNCIA DO VÍDEO ENTREVISTA COM ANTÔNIO OLIVEIRA, DO FÓRUM DO CEARÁ, NA 3ª CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL ............................................................................................................ 158 ANEXO 6 - PROJETO COBERTURAS EDUCOMUNICATIVAS DO PROCESSO DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL ................................................ 163 8 APRESENTAÇÃO Nas páginas que seguem, o leitor terá acesso a uma pesquisa que discute o processo de elaboração de discursos por jovens participantes de uma atividade, cuja metodologia se alicerça na produção de conteúdos noticiosos na perspectiva da Educomunicação, denominada cobertura educomunicativa. A introdução contextualiza, em linhas gerais, a proposta de uma cobertura educomunicativa, apresentando-a como metodologia integrante da organização que esta pesquisa adota como objeto de estudo: a Viração Educomunicação, levantando as principais questões abordadas no desenrolar do trabalho, bem como os principais referenciais teóricos utilizados. Este trabalho divide-se em duas partes, sendo a primeira dedicada a construir teoricamente o objeto da pesquisa; e a segunda se atém à análise e detalhamento de suas especificidades. Dessa maneira, o primeiro capítulo resgata o histórico da organização que desenvolveu a metodologia de cobertura educomunicativa que se pretende analisar, bem como a sua atual configuração, projetos e missão. O segundo capítulo procura referenciar o paradigma que orienta a atuação da organização em questão e suas práticas, a Educomunicação, destacando suas principais questões e o papel social do educomunicador. A partir da experiência de cobertura da Viração, o capítulo seguinte aborda o jornalismo como prática educomunicativa, traçando características comuns e divergentes entre as duas áreas de atuação. A partir de autores do jornalismo, da interface comunicação/educação e de outras áreas, procura-se definir cobertura educomunicativa e compreender de que forma ela promove a participação social de jovens em contextos predominantemente formais e adultos. O quarto capítulo aborda o conceito de discurso e sua elaboração pelo sujeito, bem como a sua concepção a partir das mídias, procurando esclarecer de que forma implicita ideologia e pontuando mecanismos que o legitimam socialmente. A segunda parte deste trabalho inicia-se com o capítulo 5, que esclarece quanto aos procedimentos metodológicos adotados para a realização da pesquisa, elencando os objetivos da discussão que propõe e as hipóteses de trabalho. O capítulo seguinte dedica-se, finalmente, à análise 9 dos dados da pesquisa de campo, colocando em diálogo as falas dos entrevistados – que abrangem gestores da organização, jovens participantes da cobertura e jovens receptores de um dos conteúdos produzidos durante a conferência em questão – com autores utilizados na parte teórica deste trabalho. Neste mesmo capítulo, procuramos ainda analisar os conteúdos midiáticos produzidos por jovens durante a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, numa tentativa de, retomando o processo da cobertura educomunicativa, identificar posicionamento crítico nas mensagens. Os capítulos finais dedicam-se à elaboração de uma proposta de intervenção com vistas à superação das fragilidades metodológicas identificadas na pesquisa e às considerações finais, abordando nova perspectiva quanto ao papel do educomunicador no contexto analisado. 10 INTRODUÇÃO A educação do sujeito sócio-histórico-cultural não se faz apenas dentro de uma sala de aula. Ao contrário, desde Sócrates se discute a importância de se pensar a Educação e as práticas educacionais para além de um espaço circunscrito onde os educandos ficassem confinados. Apesar de antiga, a concepção de que o processo de ensino-aprendizagem não ocorre apenas intra-muros escolares sempre foi vista com ceticismo em termos de políticas públicas de educação. No entanto, atualmente, com o grande avanço das tecnologias de informação e de comunicação nas últimas décadas, ganha força o argumento de que a escola é o ambiente em que pouco se aprende, uma vez que os indivíduos, graças às mais modernas possibilidades de interação com o outro – sobretudo no âmbito da internet – podem experimentar e vivenciar o conhecimento de maneira lúdica e comunicativa. Além disso, os valores sociais e o conhecimento são constituídos e transmitidos de geração em geração e ressignificados a partir dos acontecimentos que eclodem no inevitável curso da história. Sobretudo em razão do confronto entre ideologias distintas que disputam a hegemonia social. O sujeito, em seu processo de formação constante, pelo simples fato de estar no mundo, adquire, cotidianamente e de diferentes formas e a partir de seu lugar no mundo, concepções e valores sobre esse mesmo mundo. As diversas instâncias sociais com as quais o indivíduo tem contato desde o nascimento auxiliam em sua constituição enquanto sujeito. Para Martín-Barbero, a interação com as situações cotidianas mediadas, com outros sujeitos sociais, instituições, meios de comunicação (entre elas) e seus valores é o que torna o sujeito quem ele é, com suas concepções de mundo, sua personalidade, seus desejos, sua forma de viver e transformar a realidade que o cerca. Martín-Barbero entende que as mediações são, portanto, múltiplas, uma vez que o sujeito interage por meio das diversas formas de mediação com seus pares em diferentes instâncias e perspectivas, mas todas elas, de alguma maneira, contribuem para a sua formação humana. É nesse contexto que se torna imprescindível ao educomunicador se deter e problematizar os discursos produzidos e veiculados pelas mídias, pois, apesar, de atualmente haver uma multiplicidade de meios de interação, observa-se em geral, o reforço de ideias hegemônicas em vez 11 de sua problematização, inclusive naqueles meios e veículos que se apresentam como alternativas à massificação da comunicação. Nesse sentido, argumentamos que os discursos se disseminam nas mídias, na escola, nas redes sociais, no âmbito religioso, entre outros, sem um adequado processo de mediação, no sentido que Martín-Barbero lhe atribui, que lhes questione o sentido. Principalmente no âmbito da infância e adolescência há uma grande preocupação, por parte dos adultos, de “filtrar” determinados discursos, especialmente no sentido de impedir que crianças e adolescentes tenham acesso a mensagens de teor violento e pornográfico, numa legítima tentativa de proteger seus direitos. Essa postura, no entanto, nem sempre consegue proteger as crianças e jovens tanto em razão do grande acesso à informação por meio da rede mundial de computadores quanto em razão da curiosidade natural dos indivíduos dessas faixas etárias. No entanto, acreditamos com Martín-Barbero e Rey (2001) que, no âmbito da educação, não basta apenas proteger crianças e adolescentes de alguns conteúdos hoje facilmente acessados. Por isso, defendemos, desde cedo, uma leitura crítica e problematizadora dos discursos amplamente difundidos na sociedade. No entanto, a educação tradicional é uma das instâncias sociais que, em vez de colocar em cena, para o estudante, a diversidade de vozes existentes na sociedade, procura legitimar apenas os discursos hegemônicos, marginalizando ou ignorando as visões de mundo – e todas as possibilidades expressivas que surgem a partir dela –, de grupos sociais que constroem, em um contexto social adverso às ideias dominantes, seu discurso de resistência. Dessa forma, são iniciativas contra-hegemônicas que, atualmente, buscam problematizar os discursos conservadores. Presentes nos movimentos sociais e nas comunidades periféricas dos grandes centros urbanos, ou ainda em comunidades rurais, que lidam cotidianamente com a ausência do Estado e a vulnerabilidade social, propõem formas de educação que possibilitam a vivência e o aprendizado de valores sociais que revertem a dominante lógica do capital. No âmbito da Educomunicação, identificam-se projetos de organizações sociais e que criam mecanismos para viabilizar a expressão de crianças, adolescentes e jovens a partir do estímulo à produção midiática. Nesse sentido atua a organização não governamental Viração Educomunicação, que promove ações junto a esses atores, para que exerçam seu direito à expressão e à comunicação em espaços públicos de discussão, ocupados predominantemente por adultos. 12 A Viração orienta jovens para que atuem como entrevistadores e repórteres em atividades definidas como coberturas educomunicativas, em que adolescentes produzem conteúdos em linguagem jornalística sobre congressos, conferências e seminários que tratem de direitos humanos, educação e comunicação. Partindo do reconhecimento da legitimidade e relevância dessa prática social, o presente trabalho busca discutir as circunstâncias em que as coberturas se desenvolvem enquanto prática pedagógica, por meio da qual o jovem enuncia seus discursos. Discursos, por sua vez, construídos sob olhar e orientação do adulto. Dessa forma procuramos compreender se, efetivamente, a aproximação dos jovens com produção midiática promove o encontro dialógico entre esses atores sociais. Os jovens, ao participarem desse tipo de atividade, possuem contato com uma diversidade de pessoas e discursos, especialmente de autoridades, ligadas ao Poder Executivo Federal, ou especialistas e representantes de entidades da sociedade. É a partir das declarações dessas personalidades que constroem seus discursos, sob a orientação de educomunicadores, que os ensinam técnicas de entrevista e redação jornalística. No entanto, a dúvida que motiva o desenvolvimento deste trabalho é a circunstância por meio da qual as coberturas protagonizadas pelos jovens ocorrem. Como forma de conseguir sua sustentabilidade financeira, a Viração promove coberturas educomunicativas como prestação de serviço. Fato que a caracteriza como uma relação econômica e que prevê como contrapartida a produção de conteúdos midiáticos realizados pelos jovens que orienta. Nesse sentido, as perguntas que nos move neste trabalho são: nessa relação contratual, seria possível e permitido ao jovem elaborar um discurso crítico, problematizador e independente por meio de linguagens midiáticas, uma vez que a cobertura educomunicativa é uma prestação de serviço da Viração a um contratante? Até que ponto é possível estimulá-lo a realizar uma comunicação engajada, uma vez que essa postura pode destoar dos interesses do contratante? É possível mediar o processo para que, ao mesmo tempo que atenda às expectativas do contratante, não deixe de cumprir com o papel de estimular o senso crítico dos jovens por meio da produção midiática? Por outro lado, cabe ainda acrescentar duas perguntas: a intenção da cobertura é ser uma instância da comunicação institucional do evento? Isso é adequado na perspectiva da Educomunicação? 13 São essas as questões que permeiam o presente trabalho, monografia do curso de especialização em Educomunicação: Comunicação, Mídias e Educação, da ECA/USP. A partir de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, busca-se compor nossa pesquisa que se pauta pelo uso de ferramentas da Análise de Discurso para o estudo dos conteúdos produzidos por adolescentes no contexto da cobertura educomunicativa da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, que ocorreu em Brasília, no mês de outubro 2013. É preciso colocar que este que escreve é profissional da Viração Educomunicação e tem colaborado em coberturas que a organização promove na condição de prestadora de serviço desde abril de 2011. Nesta condição, integrou a equipe de educomunicadores que acompanhou os adolescentes na referida atividade na capital federal. Dessa forma, trata-se de uma pesquisa qualitativa que desenha sob a perspectiva da técnica de estudo de caso. Os resultados dessa pesquisa embasaram-se em dados e informações colhidos a partir das seguintes fontes: pesquisa de campo, que compreende (1) pesquisa bibliográfica; (2) entrevistas com adolescentes participantes da cobertura da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, gestores e educomunicadores da Viração Educomunicação; (3) pesquisa de recepção com adolescentes de São Paulo com base nos produtos audiovisuais produzidos durante a cobertura. 14 PARTE I A CONSTRUÇÃO DO OBJETO 15 1 VIRAÇÃO EDUCOMUNICAÇÃO A Viração Educomunicação existe como organização social desde 2009, ano em que é registrada oficialmente, com independência jurídica. Anualmente, a Viração presta contas de suas atividades por meio de relatórios e balanços fiscais apresentados em suas assembleias ordinárias, que ocorrem em todo mês de abril 1. No entanto, a história e práticas educomunicativas da Viração datam de março de 2003, com a primeira edição da Revista Viração, uma publicação que desde então procura ser um veículo de comunicação para que jovens de diferentes regiões brasileiras, organizados em grupos, exerçam o direito humano à comunicação. Até 2009, com apoio jurídico da Associação de Apoio às Meninas e Meninos da Região da Sé (AAMM), a Viração era um “projeto social impresso” – nas palavras de seu fundador, o jornalista Paulo Lima –, que com o tempo expande sua prática de produção midiática “com, para e a partir do jovem” para além da revista. Paulo Lima, motivado com o Prêmio Jornalista Amigo da Criança, concedido a ele pela ANDI – Comunicação e Direitos, em 2002, começa a nutrir a ideia de criar uma nova versão da Revista Alô Mundo 2, voltada ao público infanto-juvenil. A ideia do jornalista era fazer uma versão laica da publicação, que tivesse grande circulação no meio escolar e que desencadeasse ações de Educomunicação, pautadas nos princípios do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (PROETTI: 2011). A publicação aos poucos foi se transformando em um projeto de proporções maiores, que transcenderam suas páginas e até mesmo o seu processo de produção. No início, a revista era feita por um grupo de jovens de São Paulo que, reunidos na sede do projeto, na época localizada no bairro do Butantã, propunham pautas, produziam matérias e avaliavam os conteúdos da revista, além de produzirem mídias artesanais, como lambe-lambe 3 e fanzines 4. Nas palavras de Paulo 1 Os relatórios e balanços da Viração podem ser acessados no site da organização: www.viracao.org. Publicação voltada para crianças e jovens católicos, idealizada e dirigida pelos Missionários Combonianos. 3 Lambe-lambe são pôsteres confeccionados artesanalmente e fixados com cola, em locais públicos e de grande circulação. 2 16 Lima, o que inicialmente era uma publicação inovadora passou, paulatinamente, a ser metodologia educativa e de mobilização social: Viração nasceu como minha iniciativa pessoal e, aos poucos e logo logo, foi se tornando obra coletiva. (...) Depois, o projeto foi crescendo, várias organizações foram pedindo para a gente ir irradiando o nosso jeito de fazer educomunicação em outras paradas: consórcio social da juventude, escolas, ONGs, Igrejas, secretarias de governos e ministérios (LIMA apud PROETTI, 2011, p. 19). Em 2005, a Viração conquista seu primeiro conselho editorial jovem fora de São Paulo, em Brasília. Foi esse grupo que criou o termo “virajovem” para designar os jovens da rede da Viração. Neste mesmo ano, integrantes dessa rede estiveram presentes no Fórum Social Mundial, onde realizam a primeira “Agência Jovem” 5, como são denominadas as coberturas jornalísticas colaborativas na perspectiva da Educomunicação realizadas pela Viração. A metodologia colaborativa e dialógica adotada pela Viração e seu caráter militante pelo direito humano à comunicação dos jovens integrantes dos conselhos editoriais da Revista Viração (virajovens), presentes como movimento social em espaços políticos como o próprio Fórum Social Mundial, além da I Conferência Nacional de Comunicação e as duas edições da Conferência Nacional de Juventude, fortaleceram e transformaram o então “projeto social impresso” em organização não governamental. É costume dizer que as árvores nascem das sementes. Mas como poderia uma sementinha gerar uma árvore enorme, uma mangueira, por exemplo? Pois bem, as sementes não contêm os recursos necessários ao crescimento de uma árvore. Esses recursos devem vir do ambiente onde ela nasce. O ambiente em que foi gerada Viração foi muito fecundo. Estávamos embalados pela grande novidade que representou o Fórum Social Mundial. Estávamos embalados pelo primeiro governo Lula. Era março de 2003. O ambiente em que nasceu Viração era propício. Mas não foi nada fácil chegar até aqui. Ouvimos muitos “nãos”. Foram muitos os tempos de vacas magras (...). Mas, as portas e janelas, aos poucos, foram se abrindo. A gente foi sendo conhecido e reconhecido, no Brasil e no exterior; no ambiente acadêmico e no movimento social que defende a democratização da cultura e da comunicação (LIMA apud PROETTI: 2011: 19). 4 Fanzine é um tipo de publicação impressa feita sem recursos e muitas vezes xerocada para baratear o custo da produção. Hoje em dia, engloba todo tipo de publicação com caráter amador, sem intenção de lucro, pela simples paixão pelo assunto abordado. 5 Desde 2011, os conteúdos produzidos durante as coberturas educomunicativas da Viração são postados no site www.agenciajovem.org. Esse portal de notícias tem o mesmo objetivo da Revista: ser um espaço de expressão de adolescentes e jovens, em diferentes linguagens midiáticas. 17 A Viração parte do reconhecimento do direito à comunicação e expressão de adolescentes e jovens e da necessidade de viabilizá-lo. A revista pretende ser um canal de comunicação, por meio do qual adolescentes e jovens presentes em diversos estados do Brasil, com vivências sociais e culturais diversas, tenham a possibilidade de expressar suas realidades e repertórios a partir de seu próprio olhar sobre suas experiências cotidianas, temas de interesse e afinidade, Uma proposta de revista feita para, com e a partir de adolescentes e jovens de todo o Brasil, e não apenas do eixo Rio-São Paulo. E essas primeiras palavras encarnadas no projeto ganharam vida em março de 2003 a partir do slogan: mudança, atitude e ousadia jovem (...). Nesse processo, sempre acreditamos na força do “colaborativo” e do “cooperativo”. Por isso, fomos tecendo parcerias com outras organizações que também assumiam a causa de uma comunicação livre (LIMA apud PROETTI, 2011, p. 19). Atualmente, a Revista Viração, com mais de dez anos de existência, ultrapassou o número de 100 edições. Entre 2011 e 2013, a publicação era mensal e, em 2014, volta a ter dez edições anuais, como era antes de ser contemplada pelo Edital Periódicos do Ministério da Cultura 6. Produzida por adolescentes e jovens organizados atualmente em 26 conselhos editoriais jovens presentes em 20 estados brasileiros e no Distrito Federal, o processo de produção midiática da Revista Viração, caracterizada pela participação de jovens presentes nas cinco regiões brasileiras, só é possível graças a um processo de mediação tecnológica que envolve os participantes em um espaço virtual. É pela internet que o relacionamento, a troca e o diálogo acontecem com vistas à elaboração de um produto midiático impresso. Trata-se, mais do que um espaço de conversa e propostas, de um ambiente pedagógico, onde as sugestões de pautas encontram respaldo em orientações metodológicas e sugestões de encaminhamentos de todos os envolvidos nesse processo. É em um grupo fechado da rede social Facebook, do qual participam atualmente 134 membros, contado com um mediador, que é jornalista educomunicador 7, que, uma vez por mês, 6 Em 2011, a Revista Viração foi contemplada pelo Edital Periódicos, do Ministério da Cultura, que adquiriu, mensalmente, 8,5 mil exemplares da revista, distribuindo-os em todas as bibliotecas públicas do país e em Pontos de Cultura e Leitura. Um dos requisitos para ser contemplado por esse edital é que a publicação fosse mensal, com 12 edições anuais. 7 Jornalistas educomunicadores são os profissionais da Viração que têm formação acadêmica em jornalismo e são responsáveis por realizar a mediação com os colaboradores jovens do processo de produção de conteúdo para os 18 esses os representantes dos conselhos editoriais jovens – denominados “midiadores” – reúnem-se por meio de chat para discutir as pautas da edição seguinte, avaliar a edição anterior e partilhar interesses e dúvidas comuns. No entanto, os conselhos possuem, individualmente, atividades e agendas locais. Em geral, durante a reunião presencial do Virajovem, há oficinas de redação, discussão sobre temas ligados ao editorial da revista ou mesmo debate, palestra de aprofundamento sobre assuntos específicos e/ou organização de alguma ação de mobilização. A ideia é que os participantes colaborem para que se redesenhe um novo discurso jornalístico sobre e para as juventudes (PROETTI, 2011, p. 16). Apesar da maior parte do processo ser virtual, os virajovens, a cada um ou dois anos, encontram-se presencialmente em um grande encontro nacional. O último realizado foi em junho de 2013, reunindo 60 participantes, entre integrantes da Rede Virajovem e da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Comunicadores (Renajoc). A maioria dos jovens integram ambas as redes o que, por certo tempo, causou confusão entre os participantes das iniciativas que não sabiam diferenciar “Virajovem” de “Renajoc”. Os interessados em formar um conselho virajovem são orientados pelos educomunicadores da Viração a conhecerem mais sobre a Revista a partir da leitura de alguns de seus materiais pedagógicos: o Mão na Roda, uma espécie de manual de redação dos veículos de comunicação da Viração Educomunicação; e o Guia de Educomunicação – conceitos e práticas da Viração 8. Como não é possível garantir a participação de todos os virajovens nos chats, há espaços da revista que ficam em aberto e são compartilhados posteriormente pelo jornalista educomunicador responsável pela publicação no grupo fechado do Facebook e em um grupo de e-mails. Os representantes dos conselhos editorais ausentes no chat observam esses espaços e, posteriormente, propõem pautas, completando o espelho da edição futura. No entanto, os jovens mais ativos não aguardam o chat para compartilharem suas ideias de pauta. A qualquer momento, postam suas propostas na página do grupo ou as encaminham diretamente para o jornalista veículos de comunicação da organização. O jornalista educomunicador, diferentemente de um jornalista convencional, coloca seus conhecimentos jornalísticos a serviço da prática educomunicativa, auxiliando e orientando as produções de conteúdo de adolescentes e jovens. 8 Disponíveis gratuitamente para download e leitura em: www.issuu.com/portfolio_viracao. 19 educomunicador. As ideias compartilhadas recebem comentários e sugestões do jornalista e também dos demais virajovens. Imagem 01. Grupo secreto dos Viramidiadores, no Facebook A revista não é vendida em banca, mas é comercializada por meio de assinatura anual. O assinante paga, atualmente, o valor de 65 reais para receber 10 edições da Viração. Atualmente, a Viração contabiliza 270 assinantes pagantes, além de 604 pessoas que recebem a revista como cortesia. Parte dos recursos financeiros de alguns dos projetos da Viração Educomunicação é destinada à impressão da revista. A rede de conselhos editoriais jovens da Viração é composta por adolescentes e jovens voluntários e sua atuação é, prioritariamente, realizada em grupo 9. Nota-se o envolvimento imediato de jovens que manifestam interesse por contribuir com conteúdos para a revista, que têm contato com a publicação em espaços como conferências, bibliotecas públicas, escola, pontos de cultura e leitura, percebendo o seu caráter colaborativo. Os jovens interessados entram em contato com a redação da revista, em São Paulo, manifestando interesse em colaborar e são orientados, à distância, por um educomunicador da organização. Aos interessados em constituir um conselho editorial jovem da Viração é explicado como proceder quanto à organização de um grupo de jovens local e como redigir e pesquisar fontes para a sua primeira pauta. 9 A Viração preza pela colaboração coletiva, por meio dos conselhos editoriais jovens. No entanto, muitos são os jovens que, de modo individual, manifestam interesse em colaborar com a produção de conteúdos para a Viração. 20 A partir da participação desses jovens na revista, muitos deles, dependendo do interesse e disponibilidade, também integram coberturas educomunicativas para a Agência Jovem de Notícias em suas cidades, e também em outras localidades com outros integrantes da Rede Virajovem, onde ocorrem eventos relacionados a direitos humanos da criança, adolescente e juventude, e também referentes à Comunicação, oportunidades além do encontro nacional para que os jovens da rede possam se articular pessoalmente. Percebe-se, na maioria dos casos, o perfil militante dos interessados em colaborar com a Viração na produção de conteúdos. Na maioria das vezes, são jovens pertencentes a movimentos sociais, coletivos em comunidades periféricas, participantes de conferências, fóruns e seminários sobre direitos humanos, que enxergam a revista como uma possibilidade de participação política por meio da comunicação. Além da Revista Viração, que ainda é o “cartão de visita” da organização, a Viração abarca outros projetos na perspectiva da Educomunicação. A Viração tem forte atuação em comunidades da periferia de São Paulo, onde atua oferecendo ciclos de formações voltados para adolescentes e educadores sociais em Comunicação e Direitos Humanos em parceria com organizações sociais também atuantes na questão dos diretos da juventude, educação, esporte e comunicação. Entre os projetos da Viração Educomunicação, destacam-se, além da Revista Viração: Agência Jovem de Notícias Além de um site noticioso, existente desde 2011, trata-se de um processo de formação em comunicação, direitos humanos e humanidades, oferecida semanalmente para uma turma de adolescentes estudantes do ensino médio, composta por jovens de diversas regiões de São Paulo. De acordo com o Relatório de Atividades da Viração, em 2012, 70 adolescentes integraram as formações da Agência Jovem de Notícias no segundo semestre do ano, que totalizaram em 54 horas de atividades na sede da organização. São os jovens participantes desse projeto que integram as coberturas educomunicativas realizadas pela Viração em São Paulo. Plataforma dos Centros Urbanos 21 Processo de formação com adolescentes e jovens de comunidades da periferia de São Paulo que durou, ao todo, quatro anos, de 2008 a 2011. A iniciativa da Plataforma dos Centros Urbanos é do Fundo Internacional para a Infância (Unicef), tendo a Viração como parceira técnica. A ideia era utilizar a Educomunicação como ferramenta de mobilização de adolescentes que serão, por sua vez, mobilizadores e multiplicadores de práticas de comunicação e cidadania em suas comunidades, visando o desenvolvimento local. Estuda-se um segundo ciclo da Plataforma dos Centros Urbanos a ser implementada em 2014. Programa Quarto Mundo Trata-se de um programa de TV feito, desenvolvido e produzido por adolescentes. Uma iniciativa da Viração Educomunicação em parceria com a TV USP, os programas são exibidos pelo Canal Universitário. Projeto existente desde 2008, o programa esteve em sua oitiva temporada no ano de 2013. Os jovens participantes desse projeto passam por uma série de formações em comunicação e humanidades na sede da Viração e também participam de reuniões de pauta e gravação dos programas na TV USP. A cada temporada, marcada pela renovação do grupo de adolescentes anualmente, pensa-se em um novo formato para o programa, que lança mão de linguagens como jornalismo e ficções para abordar os temas sugeridos pelo grupo. Campanha É da Nossa Conta Uma iniciativa da Fundação Telefônica, em parceria com o Unicef e outras organizações sociais, a campanha tem como objetivo sensibilizar a sociedade para a questão do trabalho infantil e adolescente desde 2012. Nessa parceria, coube à Viração conceber e aplicar um processo de formação com 15 jovens, responsáveis por criar uma publicação colaborativa, resultado desse processo de formação, sobre a temática, que foi utilizado como material de divulgação da campanha nos lançamentos pelo Brasil. Em 2013, a parceria continuou com a produção de novos materiais e a cobertura jovem dos eventos relacionados à campanha e outros lançamentos pelo Brasil. Renajoc e Projeto Mais Educomunicação 22 A Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Comunicadores (Renajoc) foi criada em 2008, no contexto do I Encontro Nacional de Adolescentes e Jovens Comunicadores, promovido pela Viração com integrantes de seus conselhos editoriais jovens. Desde então, essa rede procura incidir politicamente com a pauta do direito humano à comunicação e democratização dos meios de comunicação em diversos espaços públicos relacionados à juventude e aos direitos humanos. Em 2011, a Renajoc passa por uma reestruturação em mais um encontro nacional, definindo ações e intervenções políticas em datas específicas do ano, como o Dia da Terra, em 22 de abril; e o Dia da Juventude Comunicativa, o Dia C, em 17 de outubro. Em 2013, importantes acontecimentos marcam a Renajoc: a realização de um encontro nacional da rede e a realização de um seminário sobre juventude e comunicação, com apoio e participação da Viração em sua organização. Há ainda o primeiro grande projeto da Renajoc, também em parceria com a organização: o Mais Educomunicação, que continua em 2014. O Mais Educomunicação trata-se de um processo de formação em 20 escolas públicas de diferentes estados do país, contempladas pelo Programa Mais Educação, do governo federal. Estudantes do ensino fundamental aprendem sobre direito humano à comunicação, produzem mídias artesanais e são envolvidos nas ações pela democratização da comunicação promovidas pela Renajoc. O projeto, em 2013, realizou ciclos de formação em comunicação e humanidades, nas 20 escolas, com temas relacionados aos direitos humanos, cultura e sobre técnicas de produção em comunicação. Ao todo foram realizadas 259 oficinas, com 415 estudantes de 11 a 18 anos, em 20 cidades, 4 escolas do Norte, 4 no Nordeste, 2 no Centro-Oeste, 8 no Sudeste e 2 no Sul (VIRAÇÃO, 2013, p. 15). O Mais Educomunicação é um projeto financiado pelo Instituto C&A, em que a Viração Educomunicação administra e repassa o recurso destinado a essa iniciativa, para os facilitadores regionais da Renajoc que, por sua vez, o disponibiliza para todos os envolvidos em ministrar as oficinas nas escolas, em suas regiões. 1.1. Coberturas educomunicativas 23 As coberturas educomunicativas constituem o foco principal de nossa pesquisa e serão apresentadas com maior detalhamento no capítulo 3. De acordo com o Relatório de Atividades de 2012 e 2013 da Viração Educomunicação, a organização realizou, nos últimos dois anos, 71 coberturas educomunicativas de eventos no Brasil e no exterior. No entanto, o documento não menciona quantas delas foram em caráter de prestação de serviço e também não explicita se esse foi o total de coberturas realizadas pela organização na perspectiva da Educomunicação. A Viração promoveu três coberturas internacionais nos últimos dois anos, sendo a maior delas a da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e seus processos paralelos, como a Cúpula dos Povos, em junho de 2012. Cerca de 120 jovens de 18 países realizaram, durante 12 dias, 165 notícias produzidas em cinco idiomas. A experiência muito enriquecedora abriu portas para as coberturas internacionais promovidas pela Viração. Do grupo de adolescentes e jovens que estiveram na Rio+20 surgiu a proposta de conhecer de perto e entender os processos de negociações climáticas que ocorrem nas Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – COP, que ocorrem todos os anos. A edição de 2012 (COP18) estava agendada para ocorrer entre 26 de novembro e 07 de dezembro em Doha, no Qatar (VIRAÇÃO, 2012, p. 38). A cobertura de duas edições seguintes da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) ocorreram em dezembro de 2012, em Doha, capital do Qatar; e em novembro de 2013, em Varsóvia, capital da Polônia. A primeira foi composta por cinco jovens, apenas uma delas brasileira e integrante da equipe da Viração Educomunicação. Na COP 18, em Doha, foram produzidas 41 notícias em três idiomas. Já a cobertura da COP 19, em Varsóvia, contou com um grupo de 40 participantes de cinco países. Entre os brasileiros, duas jovens da Renajoc e uma integrante da equipe da Viração. As duas coberturas das edições da COP foram financiadas por instituições parceiras da Viração, como: Fundação Luterana de Diaconia, Unicef, Fundação Friedrich Ebert, Província Autônoma de Trento e Observatório Sustentável (Itália). Essas organizações e entidades cobriram despesas com transporte e alimentação dos participantes da cobertura. Em ambos os casos, a cobertura foi uma forma de atuar politicamente nesse espaço de discussão acerca das mudanças climáticas, não sendo, portanto, uma prestação de serviço. 24 A cobertura da Rio+20 foi um processo semelhante mas, por ser um acontecimento que abarcou uma série de eventos no Rio de Janeiro, a Viração, nesse contexto, realizou a prestação de serviço para o Ministério da Educação e para o Instituto Marina Silva, que realizaram ações cobertas pelos jovens da Rede da Viração. No entanto, a cobertura jovem educomunicativa desse evento, como um todo, não se configurou como prestação de serviço, mas sim como uma forma de militância, contanto com o apoio financeiro de duas organizações, Avina e Cenpec, além da Província Autônoma de Trento e Unicef. Nos últimos dois anos, a organização foi responsável por duas grandes coberturas em caráter de prestação de serviço a ministérios do governo federal e Organização Internacional do Trabalho (OIT), que envolveram adolescentes de todos os estados do país. A primeira foi em 2012, das etapas estaduais e nacional da IX Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (IX CNDCA). A segunda foi em 2013, com as etapas nacional e global da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Durante o primeiro semestre de 2012, aconteceram as etapas estaduais da IX CNDCA. A Viração Educomunicação foi responsável pela coordenação da cobertura das conferências de 17 estados, nos quais adolescentes ligados aos Conselhos Estaduais de Direito da Criança e Adolescente (CEDECA) foram convidados localmente para participar da cobertura. Um dos critérios para a participação foi o interesse por mídias e comunicação. Os educomunicadores da Viração, então, promoveram a formação com os participantes em comunicação e direitos humanos e o planejamento da cobertura educomunicativa. Isso em 17 estados, nos quais seus profissionais acompanharam e orientaram presencialmente o processo de cobertura, além de levar os grupos a escolher dois integrantes da cobertura estadual para a cobertura da etapa nacional. Nos demais estados, aplicaram as formações e acompanharam as coberturas educadores de organizações ligadas à Rede ANDI, parceira da Viração. A etapa nacional da Conferência ocorreu em agosto de 2012, em Brasília, reunindo 60 adolescentes para a ocasião, dois selecionados de cada estado e também adolescentes do Programa Vira Vida, do Sesi, principal patrocinador da IX CNDCA. Os educomunicadores da Viração também coordenaram a cobertura da etapa nacional da conferência. 25 Imagem 02. Números referentes à cobertura das etapas estaduais e nacional da IX CNDCA. Fonte: Relatório de Atividades de 2012. Viração. Em casos como esse, nem sempre os adolescentes possuem intimidade com produção midiática, mesmo tendo interesse por comunicação. Por isso, recebem uma rápida formação antes do evento sobre como realizar uma cobertura em diferentes linguagens midiáticas. Em um encontro preparatório, os adolescentes se apresentam uns aos outros, realizam dinâmicas de integração e escolhem a linguagem com a qual querem produzir conteúdos sobre o evento. Na etapa nacional da conferência, cada educomunicador da Viração foi responsável por orientar as produções na perspectiva de uma das linguagens possíveis, ensinando minimamente as técnicas que compõem cada uma delas e planejando a cobertura nessa perspectiva. Normalmente, as coberturas da Viração acontecem nos seguintes suportes: áudio, vídeo, texto, fotografia e jornal mural. Esporadicamente, há ainda a produção de fanzines, mas não é 26 formado um grupo exclusivamente para essa finalidade. Uma prática recente também tem sido a produção de um boletim impresso e diário sobre os principais acontecimentos dos eventos cobertos. De modo semelhante, ocorreu em 2013, a cobertura da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, que exigiu atenção dos educomunicadores da Viração em três momentos, todos em 2013, em Brasília: em maio, com uma formação com duas educomunicadoras da Viração sobre comunicação e direitos da criança e do adolescente; em agosto, com a cobertura da etapa nacional da conferência, que contou com a presença de cerca de 200 pessoas; e em outubro, com a cobertura da etapa global, que reuniu cerca de 5 mil pessoas. Em ambas as etapas da conferência, os adolescentes e educomunicadores encontraram-se um dia antes do início do evento para entrosamento e preparação coletiva que dura, em média, oito horas. Na parte da manhã, iniciam as atividades com uma roda em que se apresentam a partir de uma cantiga entoada, constroem acordos coletivos de convivência e são orientados sobre aspectos gerais do evento, tanto o que diz respeito à programação e discussões, como questões logísticas, horário de almoço, saída do hotel para o espaço da conferência etc. Na parte da tarde, divididos em grupos, a partir do interesse pela mídia com a qual desejam se envolver durante a experiência, reúnem-se com um educomunicador responsável por uma linguagem midiática. Em seus grupos de trabalho, discutem pautas, abordagens e formatos de suas peças de comunicação. Os conteúdos midiáticos da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil foram produzidos em cinco diferentes suportes: texto, podcast 10, vídeo, fotografia, jornal mural e boletim impresso. No total, foram produzidas 12 notícias sobre a conferência, além da participação política de parte dos adolescentes no evento que teve uma declaração como produto final, lida em plenária, no último dia do evento. Todos os conteúdos produzidos em coberturas realizadas pela Viração são publicados no site Agência Jovem de Notícias e, em alguns casos, replicados nos sites institucionais ou noticiosos dos órgãos, empresas ou organizações que contratam a Viração para a realização das coberturas. Na maior parte das vezes, as notícias produzidas durante as coberturas são compiladas em uma reportagem especial, geralmente de capa, da Revista Viração. 10 Podcasts são pequenos programas em linguagem radiofônica, feitos para serem ouvidos pela internet. 27 A despeito do intenso trabalho de produção midiática da organização, envolvendo adolescentes e jovens, a Viração procura atuar na perspectiva educomunicativa, da mobilização desses atores sociais para participarem de um evento no papel de comunicadores à orientação técnica sobre escrever como um texto jornalístico e operar equipamentos eletrônicos, como filmadoras e gravadores. O conceito de Educomunicação é, portanto, incorporado às práticas da organização, tendo suas metodologias e gestão construídas com base nele. Não por acaso, quando se formaliza enquanto organização não governamental, incorpora a palavra “Educomunicação” à sua razão social. No entanto, o conceito de Educomunicação ainda não é reconhecido formalmente e, embora se apresente como uma forma de trabalho com mídias e educação, acaba por confundir-se com o que especialistas chamam de interface comunicação/educação. 28 2 EDUCOMUNICAÇÃO: DO SENSO COMUM À TRANSFORMAÇÃO SOCIAL É em um contexto em que a mídia faz cada vez mais parte do cotidiano da juventude – não mais entendida apenas como consumidora e espectadora de conteúdos disseminados pelos meios de comunicação de massa, mas também como parte ativa em espaços midiáticos possibilitados pelos avanços tecnológicos das últimas décadas – que se intensifica a discussão acerca da interface comunicação/educação. Não é possível falar ainda em livre acesso ou total democratização dos meios de comunicação apenas porque pela internet é possível a todo cidadão, que a ela tenha acesso, manifestar e divulgar suas informações e opiniões. No entanto, a crescente apropriação desse recurso é cada vez mais notória e tem modificado as relações humanas e também as áreas e formas de atuação na educação e na comunicação. É dessa discussão que a Educomunicação se destaca enquanto forma de atuação na interface comunicação/educação. No entanto, ela não emerge com o advento da internet, tampouco da web 2.0. As práticas hoje consideradas educomunicativas são identificadas, inicialmente, entre os movimentos sociais e na educação popular que, ainda na década de 1950, de modo autônomo e alternativo, promoviam processos educativos diferentes da escola. Nesses processos, o conhecimento era trabalhado a partir da horizontalidade das relações. Isso significa dizer que os indivíduos participantes desse processo – educandos e educadores – contribuíam ativamente para a aprendizagem. A Educomunicação tem como pilar as ideias de Paulo Freire, que pensa a educação como prática libertadora, como promotora da emancipação do indivíduo, incentivando-o a traçar o percurso de sua própria aprendizagem, a partir das referências de mundo mais próximas de si. “Saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 2011, p. 47). Pela perspectiva freireana, a educação só é efetivamente libertadora se for dialógica, ou seja, comunicacional: 29 Educador e educandos (liderança e massas), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no ato de recriar este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes (FREIRE, 2011, p. 77). Freire critica o ensino tradicional, entendendo a simples transferência de saber como instrumento de opressão, já que, para ele, “a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação do significado” (FREIRE apud CITELLI, 2011, p. 64). Comunicação e educação ideais, ainda de acordo com a perspectiva de Freire, convergem no entendimento da necessidade de viabilizar a expressão e a possibilidade de refletir criticamente sobre a realidade. Mas a escola, instituição que representa a educação formal e há séculos é considerada como espaço de legitimação do conhecimento, ainda se enquadra na perspectiva bancária de transferência de saber, em vez de ser um local de promoção do diálogo, de interação social e cultural. As ideias e práticas de Paulo Freire foram e continuam sendo emblemáticas e referenciais para a Educomunicação. A partir da década de 1990, o Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (NCE/USP) começa a identificar o fenômeno social que posteriormente seria denominado como Educomunicação. Nesse contexto, Ismar de Oliveira Soares, coordenador do NCE, percebe que organizações sociais brasileiras, inspiradas nos ideais de Freire, fazem o contraponto ao ensino tradicional da escola, uma vez que “têm conseguido atrair cada vez mais jovens para suas ações, devido, especialmente, à atitude reflexiva e crítica que elas demonstram ter diante da sociedade de massa guiada pela ideologia do consumo” (SOARES, 2011, p. 29). As práticas identificadas na educação não formal, em cursos extracurriculares de escolas particulares e em projetos presentes em redes públicas de ensino mostram que uma forma de trabalhar a criticidade de estudantes tem sido por meio da produção midiática. Vivenciar a experiência de comunicadores, por meio da elaboração de vídeos, programas de rádio, jornais e boletins impressos, blogs e páginas nas redes sociais, permite à juventude o entendimento da importância da comunicação, sobretudo como exercício da cidadania. Hoje, as práticas educomunicativas são viabilizadas por conta do grande acesso que se tem a recursos tecnológicos comunicacionais – como câmeras de fotografia e vídeo e gravadores – muitas 30 vezes presentes em um simples celular, além do próprio acesso à internet, que possibilita o contato com a Web 2.0 e suas inúmeras plataformas que permitem que o usuário crie o seu espaço de comunicação. No entanto, devemos nos lembrar que os atuais avanços tecnológicos se constituem como facilitadores da comunicação, mas que não são por si sós os únicos aliados para uma comunicação de caráter plural e democrático. Como exemplo disso, citamos o fato de Mario Kaplun, ainda na década de 1970, utilizar o método do Cassete-foro 11 para promover a escuta entre moradores de uma mesma comunidade e entre comunidades pobres do Uruguai e outros países sulamericanos, identificando a necessidade de promover a reflexão sobre a própria realidade desses sujeitos (BONA; CONTEÇOTE; COSTA, 2007). Assim, é possível afirmar que Educomunicação é um paradigma, uma vez que adota um ponto de vista ideológico, político e ético acerca dos fenômenos da interface comunicação/educação, pautado pelo direito à expressão, pelo entendimento de que crianças, adolescentes e jovens são sujeitos de direito e pelo uso dos recursos comunicacionais enquanto possibilidade de ampliação da expressão de estudantes e comunidades. Dessa forma, uma das competências da Educomunicação é planejar estratégias que, levando em conta as diferentes realidades e possibilidades, viabilizem a transformação social, a partir da participação consciente dos indivíduos de uma comunidade. Nas palavras de Soares, a Educomunicação é compreendida como o conjunto de ações voltadas ao planejamento e implementação de práticas destinadas a criar e desenvolver ecossistemas comunicativos abertos e criativos em espaços educativos, garantindo, desta forma, crescentes possibilidades de expressão a todos os membros das comunidades educativas (SOARES, 2011, p. 36). A Educomunicação representa, portanto, um contraponto à hegemonia do ensino relegado a sua condição bancária (FREIRE, 2011), uma vez que seus processos viabilizam a expressão e a participação ativa dos educandos e a horizontalidade das relações. No entanto, na educação formal, em geral, o estudante recebe passivamente os conhecimentos transmitidos pelo professor que, numa perspectiva comunicacional funcionalista, se coloca como autoridade do conhecimento ministrado. 11 O método do Cassete-foro, de Mario Kaplún, consistia em promover o intercâmbio entre comunidades por meio da gravação de fitas cassete, em que os moradores abordavam questões relacionadas às suas próprias realidades, com propósito educativo. 31 Mas, paralelamente à experiência conservadora de aprendizagem escolar, em tempos de Web 2.0 e das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTIC’s), observa-se um rico e autônomo processo de aprendizagem a partir das tecnologias mediadas por computador, especialmente entre crianças, adolescentes e jovens. A experiência de educação que estudantes do ensino regular possuem na escola diverge das atraentes possibilidades que os recentes recursos tecnológicos disponibilizam em seus momentos fora da escola. Semelhante ao processo dos jogos, essa forma de aprendizagem demonstra que a linearidade escolar não é a única forma de adquirir conhecimento. Essas tecnologias permitem que o estudante saia da condição de receptor passivo dos conteúdos e passe a ser também produtor de informação e/ou conhecimento. Essa transformação exige da escola, do professor e dos próprios alunos novas formas de interação em diferentes instâncias (professor/aluno; professor/aluno/tecnologia; professor/aluno/tecnologia/sociedade). Nesse sentido, Orozco-Gomez destaca a necessidade de estabelecer uma estratégia eficiente para que uso dos novos meios esteja, efetivamente, a serviço da aprendizagem. Com isso, entendese que as novas tecnologias conclamam uma revisão do modelo pedagógico das escolas. Já que uma das características mais marcantes da era digital é a interatividade, ampliando-se as possibilidades de diálogo entre os indivíduos, a escola não pode furtar-se, ao adotar recursos inovadores, de tornar a educação de fato dialógica. Nas palavras do autor: Não se trata de incorporar acriticamente a tecnologia no tecido social, educativo e comunicativo. O que estamos requerendo, sobretudo nos países consumidores, não produtores de novas tecnologias, como os latino-americanos, é uma série de estratégias que permitam a nossas sociedades aproveitar o potencial da tecnologia para nossos próprios fins e de acordo com as nossas peculiaridades culturais, científicas e tecnológicas (OROZCO-GOMEZ, 2011, p. 160). Então, na escola e em outros ambientes de formação de seres humanos, como nas atividades de organizações e movimentos da sociedade civil, é necessário criar o que Soares (2011) chama de ecossistema comunicativo, que não emerge espontaneamente, mas é criado intencionalmente para a promoção de uma gestão democrática da comunicação. Diferentemente dos que, como Martín Barbero, empregam o conceito para designar a nova atmosfera gerada pela presença das tecnologias às quais cada um de nós e a própria educação estaríamos compulsoriamente conectados, preferimos usar o termo como uma figura de linguagem para nomear um ideal de relações, construído coletivamente em dado 32 espaço, em decorrência de uma decisão estratégica de favorecer o diálogo social, levando em conta, inclusive, as potencialidades dos meios de comunicação e de suas tecnologias (SOARES, 2011, p. 44). Dessa forma, é necessário olhar para essas novas ferramentas como possibilidades de expressão, por meio das quais novas ideias terão inserção na sociedade e a transformarão. No entanto, nas redes sociais, espaço onde cidadãos comuns tornam-se comunicadores e formadores de opinião, por exemplo, observa-se a disseminação de mensagens de teor conservador, semelhante às transmitidas pelos grandes meios. Frente a isso, a Educomunicação procura utilizar as ferramentas tecnológicas de comunicação para disseminar novos discursos, possíveis a partir da desconstrução do senso comum. Vale, contudo, destacar que as escolas que ousam inserir em seus contextos pedagógicos as novas tecnologias, acabam por se aterem mais ao tecnicismo e menos ao caráter dialógico das novas mídias. Muniz Sodré (2012) acredita que o foco tecnicista da educação para os meios, sobretudo no âmbito escolar, se deve por conta do caráter subserviente da educação formal ao sistema capitalista, que forma para a vida profissional. Do ponto de vista do capital, no mundo contemporâneo, globalizado e digital, é fundamental que profissionais de todas as áreas dominem as novas tecnologias. Mas Sodré defende a revisão do modelo educacional vigente, que se faz necessária justamente a partir da emersão das novas tecnologias. Ele não cultua o tecnicismo. Pelo contrário, propõe uma educação comunicacional no sentido de ser uma efetiva questionadora – e consequente contraponto – da hegemonia capitalista. Para ele, a transformação educacional deveria, assim, ser isomórfica com a transformação social, uma vez que nenhuma pedagogia conseguiria por si só retroagir sobre a lógica autoritária do capital espelhada na homogeneidade dos dispositivos formais da educação. Diz Mészáros: “O que precisa ser confrontado e alterado fundamentalmente é todo o sistema de internalização, com todas as suas dimensões, visíveis e ocultas. Romper com a lógica do capital na área da educação equivale, portanto, a substituir as formas onipresentes e profundamente enraizadas da internalização mistificadora por uma alternativa concreta 12 abrangente” (SODRÉ, 2012, p. 138) . 12 Sodré, neste trecho, cita as ideias do filósofo marxista húngaro István Mészáros, contidas na obra A educação para além do capital. 33 Nessa perspectiva, entende-se que a Educomunicação advém da necessidade de resistência. Os primeiros fenômenos identificados como práticas educomunicativas eram uma forma de fazer frente à ausência do Estado, que não garantia o direito fundamental à educação de comunidades marginalizadas, ou eram iniciativas conscientes de movimentos sociais que reconheciam a necessidade de garantir a liberdade de expressão em um contexto de repressão e censura imposto por governos militares, no contexto latino-americano. Hoje, ademais, o sentido de existir da Educomunicação se dá também pela “crise” no âmbito da educação, que se sente ameaçada pelas mídias, que possuem papel central na sociedade contemporânea. A Educomunicação atua sobretudo no sentido de difundir o acesso às novas tecnologias da informação e comunicação, bem como na viabilização da expressão e da aprendizagem autônoma que esse contexto propicia. A esse cenário soma-se ainda a questão do oligopólio dos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, a Educomunicação pretende intervir nessa realidade, buscando um novo modelo de sociedade no qual os processos educativos sejam efetivamente transformadores, tendo como pilar a valorização do sujeito; em que a comunicação seja, efetivamente, um direito de todos. 2.1. O papel do educomunicador As tecnologias da informação, cada vez mais acessíveis, permitem um intenso compartilhamento de ideias. Mas a possibilidade de expressão nos espaços virtuais de interação não garante a revisão ou desconstrução de valores sociais hegemônicos e o estabelecimento de relações humanas baseadas no respeito e na solidariedade. O direito à expressão é exercido nesses ambientes, no entanto, os sujeitos ainda são retransmissores de senso comum e de conservadorismo. É importante destacar, no entanto, que os meios de comunicação de massa não são os únicos responsáveis pela construção dos valores sociais. Martín-Barbero (2009) discute a questão das negociações de sentido, afirmando que a relação estabelecida entre os discursos midiáticos e a sociedade vai além de uma oferta de consumo de informação. Assim, entende-se que os meios de comunicação tentam, ao emitirem mensagens, uma imposição ideológica que apenas fará sentido a quem as recebe se o seu teor vai ao encontro de suas experiências concretas na realidade. “Assim, o 34 eixo do debate deve se deslocar dos meios para as mediações, isto é, para as articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade de matrizes culturais” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 261). Dessa forma, percebe-se a necessidade de que o educomunicador exerça o papel de mediador da relação entre o sujeito e as esferas da vida social responsáveis pela construção de sentido, por sua formação, levando-o à reflexão, ao questionamento que tenha como finalidade a desconstrução do senso comum e a construção de valores sociais mais fraternos e democráticos, que contemplem a diversidade de indivíduos e grupos humanos. Pode-se ainda compreender o educomunicador como um educador que foge à concepção bancária de educação, ainda hegemônica na sociedade contemporânea, uma vez que entende a necessidade de estimular a criticidade para a efetiva conquista da autonomia do sujeito. Isso, no entanto, não descarta a possibilidade de um professor ter uma conduta educomunicativa no espaço da sala de aula, procurando desenvolver com seus alunos uma atitude reflexiva diante da vida, o questionamento e a criatividade para além do conteúdo pronto ministrado em classe. Isso demonstra a interdisciplinaridade da Educomunicação que, transversal, pode ser praticada em diferentes espaços de formação humana, contanto que haja possibilidade para a criação de um ecossistema comunicativo democrático. Este é justamente o ponto. Toda educação individualista, marcada pela competitividade, não faz mais que classificar as pessoas, naturalizando e legitimando ecossistemas comunicativos rígidos contra os quais os jovens se revoltam, promovendo o que costumeiramente se define como indisciplina. Nesse sentido, a convivência saudável passa a ser, definitivamente, a grande meta do projeto educomunicativo (SOARES, 2011, p. 45). Mas o que acontece, predominantemente, no interior das salas de aula é a prática da educação bancária, ou seja, uma comunicação unidirecional. E assim como a escola ensina ao aluno um conhecimento pronto como sendo verdade absoluta, os meios de comunicação de massa transmitem informações com base em fatos como sendo realidade inquestionável. No entanto, alerta Baccega, que o mundo que conhecemos pela mídia é editado, ou seja, os meios selecionam o que deve ser conhecido e o ponto de vista sob o qual fazemos a leitura dos fatos apresentados. Diz ela que 35 A interpretação do mundo em que vivemos, mundo em cuja construção os meios de comunicação desempenham importante papel, é um dos desafios do campo. São os meios de comunicação que selecionam o que devemos conhecer, os temas a serem pautados para discussão e, mais que isso, o ponto de vista a partir do qual vamos ver as cenas escolhidas e compreender esses temas (BACCEGA, 2011, p. 33). O mundo apresentado pela mídia de massa é transmitido de forma simplificada, sem espaço para a relativização das problemáticas sociais. Opta-se, dessa forma, pela generalização, das quais se originam os estereótipos. Com Lippmann, entende-se que o aprendizado inicial do sujeito sobre o mundo se dá a partir do conhecimento do outro, sem o qual não é possível formar um conhecimento próprio. Nesse sentido, Heller (1985) alerta para a necessidade de superar os estereótipos, o que permite sair do pensamento simplificado sobre a vida e sobre as situações cotidianas, para problematizá-las. Ainda Lippmann enfatiza o papel da educação em relação aos estereótipos afirmando que as mais sutis e penetrantes de todas as influências são as que criam e mantém o repertório de estereótipos. Dizem-nos tudo sobre o mundo antes que o vejamos. Imaginamos a maioria das coisas antes de experimentá-las. E a menos que a educação nos tenha tornado agudamente conscientes, essas preconcepções governam profundamente todo o processo da percepção (LIPPMANN, 1980, p. 156). Consciente da complexidade das mediações vivenciadas pelo sujeito social, o educomunicador deve ser o agente capaz de estimular o diálogo entre os indivíduos, tendo como ponto de partida para o processo educativo dialógico o repertório das individualidades advindo de suas experiências concretas e referências reais. A partir desse diagnóstico, o educomunicador dá início a um processo próprio de mediação, conduzindo o grupo com o qual trabalha do senso comum à problematização de questões, a partir da qual será possível a transformação coletiva da realidade. Por esse motivo, entende-se que a Educomunicação valoriza os processos educativos comunicacionais. Diferentemente da escola tradicional que transmite conteúdos com a finalidade de avaliar sua apreensão por parte dos alunos em uma prova, cuja nota adquirida é o ápice do percurso pedagógico, a Educomunicação preocupa-se em construir uma trajetória educativa qualitativa que, consequentemente, refletirá na ação transformadora dos sujeitos nela inserida. 36 3 JORNALISMO COMO PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA Alguns projetos de Educomunicação, especialmente os vinculados ao terceiro setor visam elevar a autoestima de crianças, adolescentes e jovens em condição de vulneralibidade social e com histórico de sistemática violação de direitos. Assim, a adoção da comunicação como processo pedagógico promove o exercício da cidadania e conhecimento dos direitos humanos, sensibilizando-os para a transformação de suas vidas e contextos em que estão inseridos. Dessa forma, técnicas jornalísticas são amplamente utilizadas por educadores sociais ou educomunicadores, que compreendem que a criança e o jovem podem exercer o papel de protagonistas em suas comunidades ou contexto social ao exercer a função de comunicador, entrevistando pessoas próximas de si, fotografando o seu entorno, pesquisando sobre a sua comunidade, moradores, problemas e questionando lideranças sobre possibilidades de soluções. Enfim, exercendo o direito à comunicação e propiciando que outros também o tenham. Assim, quando assume a identidade de repórter em seu contexto social, o jovem é levado a realizar a atividade básica para produzir informação: o questionamento. O que antes era corriqueiro e passava muitas vezes despercebido no dia a dia do jovem – especialmente situações de desigualdade social e violação de direito que geram incômodo, mas também conformidade –, passa a ser problematizado. E o objetivo de produzir notícia em torno de questões que envolvem seus próprios direitos possibilita que o jovem conheça mais a respeito de si mesmo, de sua comunidade, questione as violações de direito que identifica e exerça a sua cidadania. Enfim, a busca de informações e da melhor maneira de interpretá-las e transmiti-las coloca questões que vão desde a forma de comunicar até o questionamento do conteúdo que será comunicado. É certo que, antes de chegar a esse ponto, o jovem é sensibilizado por educadores sobre a importância de exercer a cidadania, a partir de discussões em grupo. Deve-se ainda salientar que a prática do jornalismo por crianças, adolescentes e jovens faz com que intervenham na realidade. Ao dialogar com atores sociais próximos – e outros distantes – de suas realidades, desenvolvem um 37 olhar, a partir da concretude, sobre discursos com os quais têm contato. E essa intervenção pode gerar a transformação dessa realidade. Seja por meio da fala oficial do prefeito ou secretário municipal que visita a sua comunidade, seja no desabafo de uma vizinha, que enfrenta as mesmas dificuldades do jovem, ou de um líder comunitário, que possui a vivência dos problemas e ainda consegue ter uma visão analítica e militante. Essa multiplicidade de pontos de vista, quando trabalhada educomunicativamente, possibilita ao adolescente condições de problematizar a realidade na qual se insere e para que nela possa incidir e auxiliar na transformação social. Dessa maneira, a prática educomunicativa que utiliza o exercício do jornalismo torna-se uma importante ferramenta para o conhecimento de uma realidade que, muitas vezes, se escamoteia por meio de discursos das instituições e de seus representantes. De que outra forma haveria motivação para envolver o adolescente nas esferas de poder? Não fosse pelo objetivo de entrevistar um prefeito, secretário ou ministro, de ter o registro de um fato, por que adolescentes, em muitos casos oprimidos e tímidos em razão de sua condição social, aceitariam dialogar com pessoas que possuem grande notoriedade? A produção de notícias parece, então, ser um bom caminho para essa aproximação e promoção de uma postura mais participativa e questionadora frente às autoridades. Assim, assumindo o papel de jornalistas, jovens se propõem a produzir notícias. Cabe aqui salientar que ao trabalharmos com a produção da notícia com crianças, jovens e adolescentes objetiva-se fazer com que esses sujeitos atuem como protagonistas de sua própria história compreendida aqui em sua dimensão social e política. Dessa forma, não se pretende por meio dessas práticas que esses atores se julguem jornalistas, uma vez que o jornalismo e sua prática possuem características e um campo autônomo tanto em termos acadêmicos quanto profissionais. 3.1. A produção da notícia Nas mídias, a notícia é um primeiro relato, muitas vezes confuso e simplificado, de um acontecimento de grandes proporções ou que gera debates importantes para a construção de novos sentidos e compreensões. E essa construção parte da percepção do indivíduo acerca da realidade e 38 da expressão do seu ponto de vista. Charaudeau (2013) entende que a notícia é construída a partir dessa percepção, que chama de processo evenemencial. O jornalista parte, em muitos casos, do testemunho – ou seja, da percepção – de uma pessoa envolvida em um acontecimento para, então, noticiá-lo. E, de modo geral, para virar notícia, um fato deve se caracterizar pela excepcionalidade. Wolf (apud Pena) elenca uma série de categorias e características de fatos que o fazem ter valor de notícia (ver quadro abaixo). Entre eles, destacam-se “interesse humano”, “feitos excepcionais”, “atualidade” e “novidade”. Dessa forma, para um fato ser noticiado, é preciso que cause surpresa, que gere impacto. Quadro 1. Valores-notícia, segundo Wolf (apud Pena, 2012, p. 72) Categorias substantivas Categorias relativas ao produto Categorias relativas ao meio de informação Categorias relativas ao público Categorias relativas à concorrência Importância dos envolvidos Quantidade de pessoas envolvidas Interesse nacional Interesse humano Feitos excepcionais Brevidade – nos limites do jornal Atualidade Novidade Organização interna da empresa Qualidade – ritmo, ação dramática Equilíbrio – diversificar assuntos Acessibilidade à fonte/ local Formatação prévia/ manuais Política editorial Plena identificação de personagens Serviço/ interesse público Protetividade – evitar suicídios etc. Exclusividade ou furo Gerar expectativas Modelos referenciais Para que isso aconteça, certamente a natureza do fato deverá ser relevante. Um acidente aéreo ou incêndio que fazem centenas de vítimas significam tragédia, por serem inesperados e envolver seres humanos. Isso tem a ver com os valores que os fatos representam, simbolizam, significam e que são constituídos socialmente. Nas palavras de Charaudeau, mortos são mortos, mas para que signifiquem “genocídio”, “purificação étnica”, “solução final”, “vítimas do destino”, é preciso que se insiram em discursos de inteligibilidade do 39 mundo que apontam para sistemas de valores que caracterizam os grupos sociais (CHARAUDEAU, 2013, p. 131). No entanto, para além do significado dos acontecimentos, um fato para se constituir como notícia depende mais de sua construção discursiva e narrativa do que, propriamente, de uma característica de excepcionalidade. A notícia se constrói a partir de uma percepção da realidade e seu sentido se constitui de forma aparentemente isolada, no próprio acontecimento e em sua significação descontextualizada. No entanto, o fato, apesar de ser um acontecimento tido como isolado, sua compreensão e sua penetração se constroem por meio do interdiscurso, ou seja, por meio de suas relações de diversas ordens com os discursos pré-existentes, com a memória discursiva. 13 Discorrendo sobre os artifícios narrativos utilizados pelas mídias que acabam por se estruturar como "visão superficial do mundo", Charaudeau afirma: O que é, então, essa visão superficial do mundo proposta pelas mídias, na qual não há nenhuma duração, nenhuma (ou quase nenhuma) perspectiva quanto ao passado, nenhuma (ou insignificante) projeção para o futuro? E como é que o homem, que passa sua existência interrogando-se sobre sua origem e seu destino, pode interessar-se por tal superficialidade quanto aos fatos do mundo? Eis um primeiro desafio a levantar para as mídias. Elas o conseguem, ao nosso ver, à custa de um blefe, mas um blefe nobre, um blefe pela boa causa do direito do cidadão à informação. Esse blefe é a narrativa (CHARAUDEAU, 2013, p.135). Dessa forma, compreendemos que não é apenas o fato em si que tem características de noticiabilidade. É claro que essa é uma questão que diz respeito ao perfil e interesses das mídias. No entanto é a narrativa que determina a notícia, que não é um simples relato de um acontecimento, mas um relato estruturado em um discurso jornalístico que, via de regra, produz sentido acerca de um fato, exprimindo, a partir de um processo de seleção (edição) as falas de pessoas envolvidas no acontecimento. Trata-se de um mundo editado, segundo a concepção de Baccega , “ou seja, ele é 13 Adota-se aqui a definição de interdiscurso apresentada por Eni P. Orlandi, in Análise de discurso: princípios e procedimentos, p. 31, segundo a qual o interdiscurso se estabelece a partir das relações entre memória e discurso. O interdiscurso é “(...) definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja: é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob forma do préconstruído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra.” 40 redesenhado num trajeto que passa por centenas, às vezes milhares de filtros até que ‘apareça’ no rádio, na televisão, no jornal. Ou na fala do vizinho e nas conversas dos alunos” (BACCEGA, 1994, p. 7). A notícia constitui-se por pontos de vista: do jornalista que a redige, das pessoas citadas na narrativa, do editor que faz adaptações no relato etc. Por isso, pode-se dizer que, assim como qualquer outro relato, a notícia é subjetiva. No entanto, a ideia de que o discurso jornalístico é objetivo é amplamente disseminada. Pena (2012) explica que não há incoerência nessa afirmação. Para ele, a narrativa jornalística não é objetiva, mas há mecanismos adotados pela imprensa que minimizam a subjetividade inevitável também no âmbito jornalístico: A objetividade, então, surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais e outras idiossincrasias. E como estas não deixarão de existir, vamos tratar de amenizar sua influência no relato dos acontecimentos. Vamos criar uma metodologia de trabalho (PENA, 2012, p. 50). Faz parte da metodologia mencionada por Pena (2012) a estrutura textual, que caracteriza a notícia, que segue um padrão estilístico definido como Pirâmide Invertida, em que as principais informações encontram-se no primeiro parágrafo do texto, tendo o seu desdobramento e pormenores nos parágrafos subsequentes. Dessa forma, o primeiro parágrafo da notícia, conhecido como lead (do inglês leader, ou simplesmente lide, a forma aportuguesada), no meio escrito; ou como cabeça nos meios audiovisuais e radiofônicos, deve ser um texto que responda a seis questões básicas acerca de um fato, não necessariamente nesta ordem: (1) O quê?, (2) Quem?, (3) Quando?, (4) Onde?, (5) Como? e (6) Por quê?. Nos demais parágrafos, haverá o aprofundamento dessas ou de algumas dessas questões, conforme a apuração do repórter e da urgência da publicação da notícia, a depender do fato a ser reportado. Geralmente, informações mais precisas e detalhadas sobre acidentes de grandes proporções, que envolvem um elevado número de vítimas, por exemplo, são descobertas aos poucos, mas mesmo sem muita clareza sobre um acontecimento, o redator ou repórter já é capaz de produzir uma informação prévia, a ser complementada conforme o acontecimento é investigado. 41 3.2. Reportagem: o relato circunstanciado Pretendemos, a seguir, discorrer a respeito da reportagem, gênero jornalístico que exige maior aprofundamento em torno de uma temática. Entendemos que, nem sempre, a construção de uma notícia, seja no âmbito jornalístico ou como prática educomunicativa, exige criticidade de seu autor. Mas como a Educomunicação pretende o desenvolvimento do senso crítico, especialmente entre crianças e adolescentes, observa-se que o exercício da reportagem pode potencializar, mais do que a produção de notícias, o processo educativo de problematização da realidade por jovens. Diferentemente da notícia, que diz respeito a um fato isolado, descontextualizado, há, ainda no âmbito jornalístico, a reportagem, compreendida como relato circunstanciado (Noblat apud Pena, 2012), uma vez que tematiza o fato da notícia, que ganha profundidade. Enquanto a notícia limita-se ao fato e seus envolvidos, a reportagem aprofunda-se na significação do fato, suscitando temas que, muitas vezes, permanecem latentes na notícia. Isso porque lança mão da opinião e da análise que, neste caso, não se refere ao posicionamento direto do jornalista, mas das fontes especializadas que consulta para a construção do seu discurso 14. Para o professor João de Deus Corrêa, “reportagem é um relato jornalístico temático, focal, envolvente e de interesse atual, que aprofunda a investigação sobre fatos e seus agentes”. Já para o professor Nilson Lage, “é a exposição que combina interesse do assunto com o maior número possível de dados, formando um todo compreensível e abrangente” (PENA, 2012, p. 76). A reportagem possibilita, nas mídias, a compreensão de uma questão, muitas vezes a partir de um acontecimento pontual percebido na realidade, relatado em forma de notícia e que repercute na sociedade, suscitando polêmicas e diferentes pontos de vista. Foi o que aconteceu, por exemplo, em janeiro de 2013, com o incêndio da Boate Kiss, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no qual morreram 242 pessoas 15. A partir de uma série de notícias em torno do acontecimento e 14 Charaudeau sugere que o acontecimento comentado parte do jornalista, no contexto do jornalismo de opinião, a partir da interpretação que faz dos fatos e das opiniões de especialistas. 15 Disponível em: http://migre.me/iaYg4. Acesso em 6.mar.2014, às 19h29. 42 de sua repercussão em outras cidades brasileiras 16, alguns veículos de comunicação realizaram reportagens sobre segurança em locais de grande concentração de pessoas, trazendo a fala de especialistas no tema. Pode-se dizer que a notícia e a reportagem correspondem às formas de acontecimentos abordados pelos meios de comunicação, de acordo com uma classificação de Charaudeau (2013). Segundo ele, nas mídias, há três formas de acontecimento: acontecimento relatado, acontecimento comentado e acontecimento provocado. A reportagem enquadra-se enquanto acontecimento comentado, que foge ao simples relato do fato, mas prevê comentários acerca do acontecimento, com a intenção de problematizá-lo, de identificar sua causa e suas consequências. Isso porque o comentário argumentativo impõe uma visão do mundo de ordem explicativa. Não se contenta em mostrar ou imaginar o que foi, o que é ou o que se produz; o comentário procura revelar o que não se vê, o que é latente e constitui o motor (causas, motivos e intenções) do processo evenemencial do mundo. Problematiza os acontecimentos, constrói hipóteses, desenvolve teses, traz provas, impõe conclusões (CHARAUDEAU, 2013, p.176). A notícia, por outro lado, pode ser o relato de um acontecimento espontâneo ou de um acontecimento provocado por algum setor social, inclusive a própria mídia, em muitos casos pautados por datas históricas e de celebração de alguma causa, questão social ou tradição. Também coletivas de imprensa, declarações de autoridades ou personalidades em eventos públicos e premiações, por exemplo, são acontecimentos provocados, muitos deles pela própria imprensa, como os debates entre candidatos à presidência, ou pelos indivíduos nela envolvidos. É comum, enquanto acontecimento provocado, que artistas conhecidos do grande público, por meio de suas assessorias, emitam notas aos meios de comunicação sobre situações corriqueiras e banais que os envolvem. Em razão da notoriedade de personalidades que protagonizam fatos corriqueiros, como uma simples caminhada na praia, os trajes usados em uma festa ou até mesmo o nascimento de um filho ou uma separação de casal, acontecimentos do dia a dia viram notícia. Nesse âmbito, destacamos a notícia como mercadoria, conforme lembra Marcondes Filho (2009) e o jornalismo como espetáculo a serviço da indústria cultural. Para o autor, a 16 Os meios de comunicação passaram a noticiar que a fiscalização voltada à segurança de boates e outros estabelecimentos de grande concentração de pessoas passou a ser mais frequente e rigorosa devido ao triste episódio ocorrido na cidade gaúcha. 43 espetacularização em torno da notícia esvazia a possibilidade de questionamento e problematização dos fatos que ganham sentido em si mesmos. Além disso, o autor lembra ainda outras duas dimensões do jornalismo, que servem às formas de dominação social vigentes: o jornalismo como veiculador ideológico e como estabilizador político. Isso porque o jornalismo recorre a mecanismos, presentes também na indústria do entretenimento, que ele chama de “dialética da atemorização e da tranquilização”. Para ele, a notícia, tal qual se apresenta para o receptor, como forma “quebrada” da realidade, como pedaço do real, de onde se abstrai somente o fato específico que a originou, e como disposição múltipla e diversificada no jornal, na televisão, no rádio, no cinema, atua no receptor participando de um jogo psíquico, em que num momento ele desencadeia processos de preocupação e, noutro, de alívio e descontração (MARCONDES FILHO, 2009, p. 79). Apesar do padrão estilístico da narrativa jornalística, em especial da notícia, observa-se o uso cada vez mais frequente de mecanismos que humanizam a informação. Geralmente, os discursos jornalísticos colocam em cena personagens da vida real e, muitas vezes, é a partir ou em torno deles que a informação que pretendem transmitir se manifesta, estabelecendo empatia e identificação com o receptor, que vê seus dramas, suas limitações, dificuldades e opiniões manifestas nos dizeres do outro, um cidadão comum. 3.3. Cobertura jornalística na perspectiva da Educomunicação Por cobertura jornalística entende-se uma série de notícias produzidas sobre um mesmo evento, geralmente de grandes proporções. Para uma organização com incidência no movimento social que defende os direitos da infância, adolescência e juventude, bem como o direito humano à comunicação e a democratização dos meios de comunicação, – como é o caso da Viração – conferências, fóruns e seminários que tratem dessas questões podem ser considerados eventos de grandes proporções, especialmente quando são de iniciativa do Estado, com caráter público, que efetiva e viabiliza a participação de diversos setores sociais. Além disso, não se pode ignorar que a apropriação das tecnologias e ferramentas de comunicação é um direito humano e que, independente da utilização pedagógica do jornalismo em 44 contextos educomunicativos, a aproximação do jovem dessa linguagem é, também, uma maneira de viabilizar esse direito, previsto no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Referese não propriamente à liberdade de expressão, mas principalmente ao acesso aos meios pelos quais o ser humano recebe e emite opiniões e informações. “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS apud LIMA, 2012). É claro que esse direito está associado à liberdade de expressão, condição a ser valorizada no contexto da Educomunicação, e que pode ser anterior ou simultânea ao direito à comunicação, especialmente nos tempos atuais em que, com amplo acesso à internet, a juventude, principalmente por intermédio das redes sociais expressa livremente seus pensamentos, sentimentos, frustrações, desejos e conquistas. Na verdade, o direito à comunicação perpassa as três dimensões da cidadania, constituindose, ao mesmo tempo, em direito civil – liberdade individual de expressão – em direito político – através do direito à informação –, e em direito social – através do direito a uma política pública garantidora do acesso do cidadão aos diferentes meios de comunicação (LIMA, 2011, p. 220). Pode-se dizer, inclusive, que o direito humano à comunicação é uma das principais características de uma cobertura no âmbito da Educomunicação, ou apenas cobertura educomunicativa, como denominamos neste trabalho. Não se trata de jornalistas no exercício de sua profissão, mas de adolescentes e jovens exercendo o seu direito de se expressar por intermédio de veículos de comunicação. E, nesse contexto, desempenham o papel de repórteres, produtores, redatores, fotógrafos e apresentadores, funções assumidas de acordo com a afinidade e interesse pessoal de cada participante do processo pela linguagem, mídia e atividade a ser executada. Busca-se formar um grupo coeso, embora, entre os integrantes, exista diferença no papel exercido durante a atividade da cobertura. E a linguagem jornalística, nesse sentido, é ferramenta pedagógica por meio da qual os adolescentes formatarão suas mensagens. 45 A Viração, em seu Guia de Educomunicação 17, diferencia cobertura jornalística de cobertura educomunicativa. No entendimento da organização, a diferença entre elas é o processo, sendo que na perspectiva educomunicativa, uma cobertura de evento é dialógica, engajada e participativa, além de ter um caráter amador. Muitas coisas da prática do jornalismo são muito úteis para a produção de uma reportagem feita a partir da Educomunicação. A única diferença é a forma com que fazemos. Em vez de nos preocuparmos com os procedimentos de uma forma individualista, procuramos produzir tudo coletivamente, garantir que todos tenham voz no processo de produção e se sintam à vontade para discutir “como”, “com quem”, “por que”, e “para quê” estão fazendo aquela reportagem (VIRAÇÃO, 2011, p. 27). Entende-se, desta forma, que as coberturas educomunicativas valorizam o processo participativo, o envolvimento e a viabilização da expressão dos adolescentes, sem que o produto final seja mais importante que o andamento de sua produção. Nesse sentido, entende-se que a notícia, nesse contexto, é o produto final de um processo educativo, de interação do jovem com outros atores sociais, com os quais aprenderão, tirarão dúvidas e compartilharão opiniões e impressões. A intencionalidade dessa notícia também é diversa da veiculada em grandes meios de comunicação. Ao estimular que jovens exerçam o seu direito humano à comunicação, especialmente no contexto de eventos cujo propósito seja a discussão dos direitos humanos, e considerando ainda que parte deles vivencia em seu cotidiano a temática do evento coberto, as produções realizadas pelos adolescentes devem não apenas procurar esclarecer e definir conceitos, mas principalmente mobilizar o jovem receptor a se engajar na causa em questão. No entanto, fora do âmbito da Educomunicação, também é possível identificar processos semelhantes aos propostos pela Viração. Na mídia alternativa há iniciativas de comunicação compartilhada e coberturas colaborativas, executadas por profissionais da área, que, no entanto, não se definem “educomunicativos” mesmo adotando em suas práticas um processo horizontal, democrático, participativo, engajado e dialógico. É o que se observa, por exemplo, nas coberturas midiáticas dos protestos contra o aumento da tarifa de ônibus, ocorridos em junho de 2013, em São Paulo, realizados por integrantes de 17 Disponível em: http://issuu.com/portfolio_viracao/docs/guia_educomunicacao 46 coletivos dedicados à comunicação alternativa e compartilhada, como o Mídia Ninja 18. No entanto, sabe-se que os envolvidos nessas atividades são militantes adultos e possuem experiência com comunicação, diferentemente dos adolescentes e jovens envolvidos nos processos educomunicativos da Viração que, em sua maioria, estão começando a sua militância política e experiência com comunicação alternativa. Enquanto processo educativo, as coberturas educomunicativas, no âmbito das iniciativas da Viração, são realizadas por jovens e orientadas por profissionais de comunicação dessa organização, responsáveis por instruí-los tecnicamente na produção de peças jornalísticas, em diferentes linguagens midiáticas. Nesse contexto, é papel do educomunicador não apenas ensinar a fazer produtos midiáticos, mas também mediar o processo, a fim de que, conforme prevê a Viração, a cobertura seja um processo dialógico, horizontal e consciente entre os integrantes do grupo. O papel do educomunicador é justamente promover uma espécie de mediação para garantir que todos os envolvidos em um determinado processo consigam se expressar livremente, com seu direito de voz garantido e empenhados em contribuir para a promoção do que chamamos de uma gestão participativa da comunicação (VIRAÇÃO, 2011, p. 21). No âmbito da produção midiática feita por adolescentes, cabe ainda ao educomunicador o papel de editor dos conteúdos produzidos. É esse profissional que avaliará a qualidade da peça produzida e, quando necessário, dará sugestões de como complementar a notícia com mais informações, além de apontar erros gramaticais e de ortografia, especialmente quando a produção é escrita. Por vezes, nesse processo, a depender da relevância do conteúdo produzido no contexto de uma cobertura, cabe ainda ao educomunicador acelerar o seu processo de produção, auxiliando o adolescente ou jovem, que sem a prática frequente na produção midiática ou por não ser profissional de jornalismo, acaba realizando o relato do acontecimento mais vagarosamente, condição própria de quem está aprendendo. Assim, compreende-se que a prioridade no processo de produção é que os produtos de comunicação sejam fruto da intervenção do adolescente no espaço onde está inserido e que no 18 Mídia Ninja é um grupo de ativistas dedicado à mídia alternativa, que ganhou grande visibilidade em decorrência da cobertura que realizou dos protestos em junho de 2013, ocorridos em São Paulo e outras cidades brasileiras. 47 produto final seja possível observar o seu aprendizado, a partir da importância que deu a relatos que ouviu, a cenas que presenciou, a conversas que teve. Tudo isso acrescido do “toque final” de um jornalista ou profissional de comunicação que corrigirá erros, intervirá na construção do discurso, modificando a narrativa e pedirá ao autor, quando necessário, que acrescente mais alguma informação. Em mídias como áudio, vídeo e fotografia, o educomunicador edita as imagens e gravações realizadas pelos adolescentes, além de acompanhar o processo de produção, orientando os jovens sobre como se portar diante de uma câmera, gravador e de um entrevistado. Além disso, esse profissional, muitas vezes, promove o encontro do adolescente comunicador com o adulto a ser entrevistado. Ele ainda transmite noções mínimas de fotografia e filmagem e seleciona os melhores takes e fotos produzidas por eles. Quadro 2. Contrastes entre cobertura jornalística e cobertura educomunicativa Cobertura jornalística Cobertura educomunicativa Atividade profissional Exercício do direito humano à Características referentes à natureza comunicação Não necessariamente engajada Necessariamente engajada Envolve conhecimento Não profissional Notícia é fruto de um processo de Notícia é fruto de um processo de Características referentes apuração aprendizado ao processo Edição não necessariamente Edição dialogada dialogada Características referentes Prestação de serviço de informar a Militância, participação social e à finalidade sociedade mobilização Enquanto profissional, o educomunicador precisa garantir que o processo seja rico, possibilitando que a imersão dos adolescentes nos espaços onde ocorrem a cobertura seja educativo. Em outras palavras, o educomunicador deve favorecer que os jovens tirem proveito da experiência, incentivando o aprofundamento na temática e discussões, sensibilizando-os para essa importância, além de garantir que esse processo se traduza em produção midiática por parte dos adolescentes. 48 Apesar dos contrastes, é preciso ressaltar as semelhanças entre cobertura jornalística tradicional e cobertura jornalística na perspectiva da Educomunicação. Ambas adotam a notícia como elemento de partida e se estruturam como discurso informativo. Além disso, os relatos dos jovens, independente do suporte midiático utilizado, passam por uma edição para que o processo se converta em produto final e seja instrumento de aquisição de informação, tenha ela a finalidade que tiver. Para coberturas em diversas linguagens, são estabelecidos critérios de produção, frequência e periodicidade para as notícias. Se a intenção é postar os conteúdos produzidos em um site noticioso, é preciso garantir que no período do evento, que geralmente dura mais de um dia, haja sempre novos conteúdos sobre seus acontecimentos. Esse é um dos critérios mais desafiadores de uma cobertura educomunicativa, considerando que se trata de uma atividade amadora. No entanto, essa questão pode ser superada, dependendo do número de jovens envolvidos. Em casos de coberturas de eventos nacionais, a diversidade regional no grupo de jovens garante a pluralidade de pontos de vista. Com isso, entende-se que as coberturas educomunicativas aproximam o adolescente e/ou jovem de discussões políticas, inserindo-os em espaços de militância, debate e formulação de propostas de políticas públicas que estejam relacionados com a sua faixa etária ou situação socioeconômica. O jornalismo adotado nesse contexto, portanto, é meio pedagógico para viabilizar seus direitos, especialmente o direito à participação e também o direito humano à comunicação. 3.4. Participação de adolescentes e jovens por meio da Educomunicação Para um adolescente em processo de formação cidadã, a produção de notícias sobre o contexto em que vive relaciona-se, inicialmente, com o desenvolvimento da percepção do seu entorno e, posteriormente, com a leitura crítica dos problemas sociais que vivencia e a aplicação dos conceitos acerca dos direitos humanos à sua própria realidade. A adoção do jornalismo como ferramenta educomunicativa, com a finalidade de proporcionar ao jovem a compreensão e o questionamento de uma série de acontecimentos próximos à sua realidade pode ser, portanto, o início do desenvolvimento crítico, da politização, da 49 participação cidadã e da militância do jovem em causas sociais, especialmente quando inserido em espaços públicos de debate como conferências e fóruns destinados à construção de políticas públicas e reflexão acerca dos direitos humanos. São em contextos como esses que a Viração Educomunicação procura inserir adolescentes e jovens para realizar uma cobertura jornalística. Conforme indica Soares, os jovens participantes desses projetos apontam o desejo de encontrar possibilidades de produção da cultura, através do uso dos recursos da comunicação e da informação, os sonhos cotidianos e a transformação da realidade local. Eles se abrem para a compreensão crítica da realidade social e ampliam seu interesse em participar da construção de uma sociedade mais justa, confirmando sua vocação pela opção democrática de vida em sociedade (SOARES, 2011, p. 31). É fundamental, no entanto, que jovens inseridos nesses contextos sejam sensibilizados para além da tarefa de comunicadores que terão em espaços políticos. Se a ideia é promover – ou dar início a – um processo de participação política, em que jovens intervenham criticamente na construção de propostas, é preciso sensibilizá-los para esse propósito que, além de uma necessidade, é também um direito humano. Bordenave (1985) afirma a necessidade de que toda atividade dedicada à formação humana incentive um comportamento participativo que, apesar de inerente ao ser humano, envolve necessidades específicas para se efetivar e que podem ser viabilizadas em atividades coletivas. O autor lembra a origem da palavra “participação” e diferencia “fazer parte” de “tomar parte”. Este último tem um sentido mais engajado e define melhor o que é “participação”. Assim, pode-se compreender que “tomar parte” significa incidir em processos que correspondem não apenas aos grupos em que naturalmente estamos inseridos, como família e comunidade, mas principalmente em questões que Bordenave (1985) chama de processos de macroparticipação, que se referem a questões que dizem respeito à vida em sociedade, a decisões que interferem no cotidiano de uma numerosa coletividade. Ele entende que aos sistemas educativos, formais e não formais, caberia desenvolver mentalidades participativas pela prática constante e refletida da participação. O interessante é que a luta pela participação social envolve ela mesma processos participatórios, isto é, atividades organizadas dos grupos com o objetivo de expressar necessidades ou demandas, defender interesses comuns, alcançar determinados objetivos 50 econômicos, sociais ou políticos, ou influir de maneira direta nos poderes públicos (BORDENAVE, 1985, p. 25). A promoção de uma cobertura realizada por adolescentes é uma forma de promover a participação da juventude em espaços públicos de discussão. Mas falar em viabilizar o direito humano à comunicação é diferente de promover a participação política por meio da comunicação. O primeiro refere-se a uma aproximação às mídias e seus instrumentos, ao estímulo ao uso dessas ferramentas no cotidiano, a partir do qual é possível compreender a dimensão cidadã da comunicação e sua utilidade na participação social e política. Em outras palavras, envolver adolescentes e jovens na produção noticiosa sobre direitos humanos, em contextos políticos, não faz de sua intervenção comunicativa, necessariamente, uma ação política, embora seja uma forma de promover a intervenção da juventude, ou como alguns grupos e organizações sociais preferem, o protagonismo juvenil. A qualidade da participação se eleva quando as pessoas aprendem a conhecer sua realidade; a refletir; a superar contradições reais ou aparentes; a identificar premissas subjacentes; a antecipar consequências, a entender novos significados das palavras; a distinguir efeitos de causas, observações de inferências e fatos de julgamentos. A qualidade da participação aumenta também quando as pessoas aprendem a manejar conflitos; clarificar sentimentos e comportamentos; tolerar divergências; respeitar opiniões; adiar gratificações. A qualidade é incrementada quando as pessoas aprendem a organizar e coordenar encontros, assembleias e mutirões; a formar comissões de trabalho; pesquisar problemas; elaborar relatórios; usar meios e técnicas de comunicação (BORDENAVE, 1985, p.72). Paulo Lima, idealizador e diretor executivo da Viração Educomunicação, entende que a presença de um grupo de jovens em um espaço público, realizando a cobertura dos acontecimentos que nele ocorrem, é uma forma de participação política da juventude, ancorada na comunicação. Especialmente quando se trata de um grupo de adolescentes que, quando crianças, foram vítimas de trabalho infantil e, “voltam à cena da questão não enquanto vítimas, mas na condição de comunicadores” 19. No entanto, participação política, por meio da comunicação, pressupõe consciência acerca do que é comunicar e de seu papel político. Diz Dallari que 19 Informação verbal colhida pelo pesquisador. 51 Um dos mais notáveis escritores brasileiros, Osman Lins, observou que não se pode conseguir qualquer mudança profunda na sociedade se não houver antes a mudança na consciência de cada um (...). Assim, pois, para a efetiva participação política o primeiro passo deve ser dado no plano da consciência. Dado esse passo, está aberto o caminho para a plena participação, pois o indivíduo conscientizado não fica indiferente e não desanima perante os obstáculos. Para ele a participação é um compromisso de vida, exigida como um direito e procurada como uma necessidade (DALLARI, 1984, p. 43). Bakhtin afirma que a consciência é fruto do processo de interação social, por meio do qual o sujeito adquire ideologia, “todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas” (VOLOSHINOV apud MIOTELLO, 2013, p.169). Dessa forma, a participação política por meio da comunicação é relativa, não automática. A participação será política quanto mais adesão e entendimento acerca do papel político da comunicação tiver o adolescente participante do processo educomunincativo. É o que se observa no perfil de alguns dos colaboradores jovens da Revista Viração, que possuem um histórico de militância política antes de iniciarem no processo de produção midiática. Considerando que, hipoteticamente, a experiência da cobertura jornalística jovem seja uma primeira vivência de participação coletiva ou protagonismo juvenil em um espaço público, não é possível mensurar o quanto foi possível compreender dessa vivência para afirmar o jovem comunicador, indiscutivelmente um sujeito partícipe – no exercício do seu direito –, como um sujeito político, consciente do significado do exercício do seu direito. É como afirma Bakhtin/Volochinov: Enquanto a consciência permanece fechada na cabeça do ser consciente, com uma expressão embrionária sob a forma de discurso interior, o seu estado é apenas de esboço, o seu raio de ação ainda limitado. Mas assim que passou por todas as etapas da objetivação social, que entrou no poderoso sistema da ciência, da arte, da moral e do direito, a consciência torna-se uma força real, capaz mesmo de exercer em retorno uma ação sobre as bases econômicas da vida social (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002, p. 118). Ainda assim, pode-se dizer que a intervenção educomunicativa feita no contexto dos eventos é uma maneira de despertar o senso coletivo e o engajamento político, mas não se trata de uma participação política efetiva, ao menos que o grupo em questão já esteja envolvido com esse tipo de participação fora do contexto das coberturas. 52 Para os jovens que já integram algum movimento social, a experiência em torno da comunicação é mais uma forma de participação política e cidadã, caso percebam de que forma o exercício da produção noticiosa pode ser aplicada aos contextos de participação política em que já atuam e até mesmo ao próprio evento do qual participam como comunicadores. Caso contrário, é possível falar em participação. Para que ela seja política, é necessário um processo de sensibilização anterior para o sentido da comunicação e que o seu papel, no âmbito dos direitos humanos, da política e da cidadania, esteja claro para todos os envolvidos no processo. E nesse processo, é preciso, segundo Dallari, enfatizar que “se muitos ficarem em atitude passiva, deixando as decisões para outros, um pequeno grupo, mais atuante ou audacioso, acabará dominando, sem resistência e limitações” (DALLARI, 1984, p. 33). Nesse contexto, seria preciso compreender, ainda que minimamente, a pauta dos movimentos sociais pela democratização dos meios de comunicação, de ocupar o espaço público que a mídia de massa representa, mas que, historicamente, é concentrada por poucas famílias com fins comerciais, caracterizando o setor brasileiro das comunicações como oligopólio (LIMA, 2011). Em outras palavras, é preciso tornar compreensível para o adolescente comunicador que a sua ação em uma cobertura se trata de uma ação de resistência a um modelo hegemônico que não o contempla e ao qual se deve resistir, propondo alternativas. Pode-se considerar, no entanto, que o sentido da presença de um grupo de adolescentes realizando uma cobertura em um espaço predominantemente adulto chame, naturalmente, a atenção para a questão da necessidade de a juventude exercer seu direito à voz e à participação. No entanto, a atividade de produzir mídia, por si só, não indica um posicionamento crítico sobre a questão do direito humano à comunicação. Jovens que participam de uma cobertura educomunicativa podem se envolver com produção de mídias sem compreenderem o papel político e social da comunicação. Nesse sentido, a Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Comunicadores (Renajoc) é um exemplo de participação política em torno da comunicação. A Renajoc programa, todos os anos, ações para debater e evidenciar a discussão acerca da democratização dos meios de comunicação e do próprio direito humano à comunicação. Essa rede ocupa espaços de discussão de questões acerca da comunicação, pautando-a em diversos contextos políticos relacionados à juventude e aos direitos humanos, como o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve) e Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à 53 Comunicação com Participação Popular (Frentecom), além de promover seus próprios atos políticos em 17 de outubro, Dia da Juventude Comunicativa, chamado Dia C, em que integrantes da rede realizam ações locais de intervenção para discutir e manifestar a questão do direito humano à comunicação e democratização dos meios de comunicação. É preciso, portanto, questionar, como se faz nesta pesquisa, se o uso do jornalismo como meio pedagógico, por si só, tem sido eficiente no desenvolvimento da criticidade de adolescentes e jovens sem contato prévio com a questão do direito humano à comunicação e democratização dos meios. Vale ainda indagar se a participação que ocorre nesses espaços públicos, que os aproximam do poder político, tem permitido a compreensão efetiva das problemáticas colocadas em discussão e a problematização dos diferentes atores e discursos que circulam nesses espaços, cada qual defendendo interesses específicos e, por vezes, contraditórios, mas que se não se evidenciam ao adolescente, sujeito em processo de construção de sua percepção crítica. 54 4 DISCURSO, MÍDIA E PODER Noticiar fatos e opiniões é, para crianças e jovens e sociedade como um todo, uma experiência de intervenção na realidade e, portanto, de participação social. A produção infantojuvenil de mídia em espaços predominantemente adultos e/ou formais é, ao mesmo tempo, um instrumento de aproximação, desvelamento e compreensão desse universo para os jovens que, dessa forma não apenas acedem, mas também participam de sua concretização – como espaço simbólico e concreto da realidade – como atores. Nesse sentido, os enunciados e discursos produzidos por eles e por seus entrevistados são ancorados na prática da Educomunicação, a partir da qual os sujeitos têm a oportunidade de refletir sobre questões sociais, problematizando-as, por meio do diálogo e da contrapalavra (Bakhtin/Volochinov, 2002). Conforme destaca Mungioli (2009, 593), toda palavra, entendida aqui em sua dimensão discursiva, demanda uma resposta, uma contrapalavra. Ou seja, o processo de comunicação verbal, e mais estritamente o processo de construção de sentidos, coloca em jogo não apenas a capacidade de o ser humano expressar-se por meio da fala – referida aqui em seu sentido estrito –, mas também, e principalmente, de se fazer entender e compreender por meio de todo um saber discursivo tecido pelas relações sociais de sujeitos constituídos social e historicamente. É dentro dessa compreensão que reside o princípio da responsividade que caracteriza o pensamento dialógico bakhtiniano. Nesse sentido, a prática de cobertura jornalística ancorada nos princípios da Educomunicação, que discutimos neste trabalho, propicia o exercício dialógico da comunicação. A partir da Educomunicação, jovens podem ouvir os adultos com base em uma nova perspectiva, na qual assumem a condição de sujeitos partícipes, ou seja, a instância cidadã, e são capazes de intervir em seu contexto sócio-cultural, ou nos espaços onde são estimulados a participar, mesmo que de uma maneira ainda orientada, e tomam parte em seu lugar de direito junto ao adulto, também sujeito social, com o qual podem trocar, aprender e dialogar. A Educomunicação, dessa maneira, não transforma apenas o jovem, que passa a se enxergar como sujeito, mas também pode influenciar o adulto a se sensibilizar e reconhecer a relevância da participação juvenil para o fortalecimento dos processos democráticos. Trata-se de, nas palavras de Soares (2011), de “garantir ao jovem a possibilidade de sonhar, não exatamente com um mundo fantástico e seguro que lhe seja dado pelos adultos, mas com um 55 mundo que ele mesmo seja capaz de construir, a partir de sua capacidade de se comunicar” (SOARES, 2011, p. 53). A promoção da participação social de crianças, adolescentes e jovens, no contexto das práticas educomunicativas, é suscitada a partir das mídias, com as quais a geração nascida no final da década de 1990 e início dos anos 2000 já possui intimidade, não apenas como espectadores, mas também como produtores. Nas últimas décadas, a convergência digital e o advento da Web 2.0 representaram uma significativa mudança nos hábitos culturais, especialmente para uma parcela de jovens, que passou a exercer seu potencial comunicativo na internet, participando de chats, criando blogs e perfis em redes sociais, postando material audiovisual, muitas vezes produções realizadas a partir de seus próprios celulares, em sites de conteúdo colaborativo, como o YouTube. Entende-se, dessa maneira, que o jovem pode, por intermédio das linguagens midiáticas e do exercício da contrapalavra, enunciar-se como sujeito e, portanto, autor de um discurso próprio e socialmente constituído, premissa e resultado de um processo comunicativo/educativo, dialógico. Também na concepção de Freire, um processo efetivamente educativo requer diálogo e é, por isso, comunicativo. É a partir da interação com o outro que o discurso emerge do sujeito, capaz de enunciar o mundo. O indivíduo torna-se um enunciador, que após reelaborar os discursos que recebe, constrói o seu próprio. Observe-se que, na medida em que “recebe” os discursos, ele é também enunciatário. Em outro sistema de referências, é chamado de “emissor”, porém essa categoria não esclarece a presença dessa pluralidade de discursos (dessa polifonia), os quais constituem, na verdade, a base do que está sendo dito (BACCEGA, 2007, p. 92). E, por discurso, entende-se toda manifestação dotada de sentido, construída e embasada no diálogo e que se institui a partir da formação ideológica do seu autor, que irá associá-la ao discurso produzido (BACCEGA, 2007). Na condição de enunciador, o sujeito elabora seus enunciados a partir de um referencial e de sua própria relação com o enunciado (FOUCAULT apud BRANDÃO, 2002). Segundo Brandão, Foucault entende o discurso como um compositório de enunciados sem, no entanto, compreender o sujeito que o elabora como unitário com relação ao discurso. Em outras palavras, o autor entende que o sujeito é “disperso”, não unitário, e essa característica também se 56 manifesta no discurso. Trata-se de uma dispersão “que reflete a descontinuidade dos planos de onde fala o sujeito que pode, no interior do discurso, assumir diferentes estatutos” (BRANDÃO, 2002, p. 30). Em um romance fictício, por exemplo, escrito por um único autor, há diferentes discursos, assumidos pelos diferentes personagens, cada qual com uma linguagem e modo de se expressar que, no entanto, é fruto da criação de um único sujeito real, seu escritor, que reelabora seu conhecimento acerca dessa multiplicidade em seu próprio discurso. A questão da multiplicidade de discursos, reconhecida por Foucault, é também abordada por Bakhtin como “polifonia”, que se define pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes plenivalentes e consciências equipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo. Essas vozes e consciências não são objeto do discurso do autor, são sujeitos de seus próprios discursos. (BEZERRA, 2013, p. 194) E, mesmo polifônico, o locutor desenvolve seu discurso em determinada perspectiva e com uma finalidade específica, ou seja, apropria-se dele e nele se projeta por inteiro, uma vez que, a partir da dimensão semiótica da linguagem e do pensamento (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002) as relações de linguagem se constroem por meio do reflexo e da refração do signo ideológico. Nesse contexto, o locutor/enunciador pode desviar-se para, posteriormente, retomar a sua orientação para cumprir com seu objetivo, conforme o entendimento de Maingueneau. Para ele, “nas situações de interação oral, ocorre constantemente de as palavras ‘escaparem’, de ser necessário recuperá-las ou torná-las mais precisas etc., em função das reações do outro” (MAINGUENEAU, 2013, p. 59). Maingueneau afirma ainda que todo discurso faz sentido apenas como parte integrante de um “interdiscurso”, ou seja, fruto de um processo interativo. O discurso reelaborado em um enunciado é compreendido porque possui uma referência a um universo de discursos, já conhecido pelo enunciatário. Para o autor, o discurso sempre está relacionado com um sujeito, “um EU, que se coloca como fonte de referências pessoais, temporais, espaciais e, ao mesmo tempo, indica que atitude está tomando em relação àquilo que diz e em relação a seu coenunciador” (MAINGUENEAU, 2013, p. 61). A elaboração de um discurso próprio se faz ao longo da vida, conforme o sujeito conhece e se reconhece na realidade, ainda quando entra em contato com contextos alheios aos seus, pois, 57 também quando interage com o diferente, o sujeito busca referências próprias para compreender o que lhe é estranho e para adaptar-se à nova situação, lançando mão de analogias, comparações e questionamentos. No âmbito do discurso, quando em contato com diferentes modos de expressão, os sujeitos em interação buscam o significado do que não compreendem da fala do outro. Em uma situação dialógica, questionam, utilizam gestos, termos usualmente conhecidos, tudo para que as palavras proferidas possam ir ao encontro do outro e este possa, de fato, perceber que compreendeu novos conceitos, novas realidades, possíveis graças à reelaboração que faz a partir de seu repertório prévio. Entende-se, dessa forma, que o discurso do outro só faz sentido em um processo dialógico, em que os sujeitos, em condição de igualdade, estabelecem uma troca entre si, possível pelas mútuas intervenções, que permitem a compreensão, a apropriação e a reelaboração das ideias em novos discursos. A partir de Paulo Freire, entende-se que o contato com o novo e a tentativa de compreendêlo leva o sujeito à criticidade, necessária ao seu desenvolvimento como ser humano inacabado. Diz Freire que “no momento em que a percepção crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a se empenharem na superação das ‘situaçõeslimite’” (FREIRE, 2011, p. 126). Em consonância com Freire está o pensamento Martín-Barbero, que entende que a comunicação está alicerçada na cultura. Em outras palavras, os sentidos se estabelecem a partir dos processos de mediação do sujeito em seu contexto social, nas instâncias socializadoras. É na interação, portanto, que o indivíduo se converte em sujeito capaz de dialogar, encontrando no outro significações e ressignificando-as em seu próprio contexto, pois dialogar é descobrir na trama de nosso próprio ser a presença dos laços sociais que nos sustentam. É lançar as bases para uma posse coletiva, comunitária, do mundo. A palavra não é um mundo à parte, mas faz parte da práxis do homem: “a justiça é o direito à palavra”, pois é a possibilidade de ser sujeito em um mundo onde a linguagem constitui o mais expressivo lugar do “nós” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 33). Dessa forma, entende-se que a relação entre sujeito e mensagens midiáticas constitui-se também em um processo dialógico, tendo os meios de comunicação como colaboradores para a sua 58 formação, uma vez que é por meio deles que o sujeito toma conhecimento do mundo, embora sob o ponto de vista de quem o enuncia. Conforme lembra Baccega (2007), pelas mídias, recebe-se o mundo editado. Dessa forma, entende-se que a influência dos discursos e valores disseminados pelos meios de comunicação não ocorre de maneira direta sobre o sujeito social. Mas ecoam distintamente em cada ser humano, pois cada um possui particularidades inerentes a fatores antropológicos, sociais, psicológicos e intelectuais, vivenciados em diferentes contextos, ou seja, os discursos dos meios estão sujeitos a mediações. Nesse contexto, a comunicação, compreendida como processo de interação com o diferente, com o outro, seja com as mensagens midiáticas, com as opiniões divergentes nas conversações cotidianas, seja na imersão em diferentes realidades, envolve, necessariamente, conflito. O desafio que se coloca à comunicação, portanto, não se limita à garantia de manifestação da diversidade de pontos de vista. É necessário que se reflita sobre o seu papel conciliador, conforme lembra Wolton: Vigora menos atualmente o sentido clássico de compartilhamento de valores comuns e mais a ideia de convivência atrelada à necessidade de conciliar lógicas antagônicas. Ontem, comunicar era compartilhar e reunir, ou unir. Hoje, é mais conviver e administrar descontinuidades. Cada um desses conceitos, informação e comunicação, absorve uma parte do referencial do outro (WOLTON, 2011, p. 26). As negociações de sentido às quais se refere Martín-Barbero se estabelecem a parir da relação entre os discursos midiáticos e a sociedade, uma ação que vai além da simples oferta de consumo de informação. A ideologia presente em suas mensagens fará sentido a quem as recebe se o seu teor vai ao encontro de suas experiências concretas na realidade. 4.1. Mídia, discursos e ideologia Os discursos midiáticos são, portanto, ideológicos, uma vez que são constituídos de vozes e termos escolhidos intencionalmente por seus autores. No âmbito do jornalismo, a escolha de fontes específicas para a elaboração de uma reportagem já revela a tendência ideológica do jornalista. Bakhtin entende que as palavras demonstram posicionamento, uma vez que “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é 59 ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002, p. 31). Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc) (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002, p. 32). Nesses sentido, o termo "invasão" é um dos mais significativos exemplos de manifestação ideológica por meio da palavra, que inclusive, é constantemente adotado pelas mídias. A palavra em questão é relacionada constantemente, nas mídias, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e seu significado é pejorativo, uma vez que denota ilegalidade, a violação de propriedades privadas. Os movimentos sociais preferem o uso de "ocupação" – hoje já empregado por alguns veículos –, que denota legalidade, utilização de espaços ociosos. (BACCEGA; CITELLI, 1989, p. 25). Esse caso talvez seja o que melhor transpareça o aspecto ideológico da palavra. O sentido de “invadir” dialoga com os interesses de uma classe social dominante que, de fato, se sente invadida com a presença de um grupo em sua propriedade privada, sem autorização de seus donos. Assim como o sentido de “ocupar” concorda com o princípio de direito à terra e utilização de espaços vazios por quem não tem onde produzir e morar. A mídia comercial, fruto da classe dominante, utiliza em seus discursos o verbo “invadir” para qualificar as ações do MST. Como lembra Bakhtin/Volochinov (2002), toda palavra contem valores e sentidos quando inseridas em discurso. Descortina-se, em suas entrelinhas, a carga negativa que a sociedade atribui ao movimento social. Nesse sentido, faz-se necessária a desmistificação da suposta neutralidade da palavra, sobretudo no contexto jornalístico, a partir da compreensão do sentido ideológico que as palavras possuem, que empregadas em determinados discursos e contextos, explicitam os antagônicos interesses de classes sociais e posições públicas e privadas que conflitam atualmente na sociedade. Para além do processo de edição da realidade, que já manifesta as inclinações ideológicas dos meios de comunicação, é importante a análise do papel da palavra nos discursos midiáticos. É claro que a escolha ou rejeição de determinados termos e palavras fazem parte do trabalho de editores de veículos de comunicação dos mais diversos portes e alcance. 60 Talvez não seja o caso de discutir a intencionalidade do emprego de certas palavras, pois, conforme o conceito de dialogia de Bakhtin/Volochinov, retomamos constantemente referências passadas, mesmo quando o objetivo do discurso é abordar o presente ou discorrer sobre expectativas futuras 20. Isso quer dizer que, cotidianamente, utiliza-se um vocabulário (e, em certa perspectiva, os discursos cristalizados) ensinado pelos livros, jornais, escola e pela convivência cotidiana, nos diferentes contextos sociais nos quais o sujeito está inserido, sem, necessariamente, refletir sobre o sentido ideológico que as palavras utilizadas carregam. O valor exemplar, a representatividade da palavra como fenômeno ideológico e a excepcional nitidez de sua estrutura semiótica já deveriam nos fornecer razões suficientes para colocarmos a palavra em primeiro plano no estudo das ideologias. É, precisamente, na palavra que melhor se revelam as formas básicas, as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002, p. 36). Por isso, torna-se relevante destacar a característica inerente de toda palavra (e do discurso): a opacidade. O discurso jornalístico, por exemplo, não é imparcial. No entanto, os conceitos de neutralidade e isenção associados ao jornalismo fazem com que muitos consumidores de notícias não apenas tomem conhecimento de um fato reportado, mas principalmente assimilem como verdade a ideologia transmitida nas entrelinhas da informação. Dessa maneira, o uso ou rejeição dos meios pode influenciar o emprego ou não de alguns termos nos discursos cotidianos, especialmente para aqueles que têm a grande mídia como principal fonte de informação e educação. Para Bakhtin/Volochinov, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais sensível de relação social (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002, p. 36). Termos como “drogado” e “aidético”, por exemplo, antigamente empregados nos discursos midiáticos para se referir a “usuários de drogas” e “pessoas que vivem com o vírus HIV”, são hoje considerados pejorativos, caíram em desuso nos meios formais de disseminação de informação e, consequentemente, perderam força e frequência nos discursos cotidianos. Essa ideia corrobora com 20 Informação verbal concedida durante aula. 61 o entendimento de Baccega acerca do papel da palavra de conservar o antigo e de promover o inédito: “Essa cultura ‘pronta’ nos é transmitida pela linguagem, principalmente a verbal, através da palavra. O fato de podermos construir o novo é uma possibilidade que também nos é dada sobretudo pela palavra” (BACCEGA, 1998, p. 28). Assim, percebe-se que as mídias têm o papel de reforçar – ou até mesmo forjar – ideologias por meio de seus discursos. No que tange aos meios de comunicação de massa, observa-se que as mensagens midiáticas procuram dar ênfase a ideologias hegemônicas, muitas das quais se alicerçam em senso comum, direcionado os debates cotidianos, conduzindo a sociedade para os temas a serem discutidos e também para a perspectiva sob o qual devem ser analisados. Trata-se da hipótese do agenda setting, lembrada por Barros Filho: A mídia, ao nos impor um menu seletivo de informações como sendo “o que aconteceu”, impede que outros temas sejam conhecidos e, portanto, comentados. Ao decretar o seu desconhecimento pela sociedade, condena-os à inexistência social. Nesse sentido, o menu da mídia, porque é o único temário comum de agentes sociais em comunicação, é o que apresenta maior incidência nas comunicações interpessoais (BARROS FILHO, 2003, p. 170). Isso não quer dizer que, em tese, a teoria hipodérmica 21 faça sentido nos dias de hoje. Atualmente, entende-se que receptores de mensagens midiáticas têm condições de avaliar o teor das informações que recebem. No entanto, essa avaliação é realizada a partir de um repertório prévio, fruto de vivências concretas do sujeito sócio-histórico-cultural imerso em um cotidiano que não está reduzido às mensagens que recebe dos meios de comunicação. Não é possível descartar o repertório construído a partir de contextos sociais como família, religião, além de questões relativas ao âmbito social e psicológico de cada indivíduo, que pode, naturalmente, recusar ideias e valores diferentes do seu contexto natural. Apesar disso, defende-se o aprimoramento do senso crítico do sujeito a partir do contato com a diversidade de pontos de vista, que nem sempre os meios de comunicação de massa contemplam. A falta de contato com pontos de vista diversos alheia os seres humanos da realidade efetiva, que passam a analisar as situações apenas a partir de suas experiências pessoais. 21 Segundo a teoria hipodérmica, da década de 1930, o indivíduo poderia mudar de comportamento a partir de uma mensagem que recebe pelos meios de comunicação. 62 Esse é, inclusive, um dos argumentos dos movimentos sociais pela democratização dos meios de comunicação, que percebem o cerceamento do oligopólio formado pelos grandes veículos de comunicação à diversidade cultural e de discursos. O controle dos meios de massa por poucos grupos com finalidade comercial faz com a informação seja submetida a interesses particulares e de mercado, o que viola o direito à comunicação. A histórica concentração do controle da mídia brasileira em mãos de poucos grupos privados restringe a concorrência, vale dizer, a pluralidade de proprietários e, consequentemente, aumenta os riscos de maior controle do conteúdo, isto é, de menos diversidade. Diversidade que não deve ser confundida com diferença ou segmentação mercadológica, mas diversidade na representação de distintos interesses da sociedade (LIMA, 2011, p. 223). 4.2. Legitimação do discurso Charaudeau entende que as mídias legitimam o poder na medida em que lhe confere notoriedade e incorpora em seus discursos a voz oficial sem colocá-las em dúvida. A seleção dos atores sociais que a imprensa escolhe para comentar os fatos – de especialistas a políticos – demonstra a relevância dadas pelos meios de comunicação a essas figuras. Ao serem incorporados a um conteúdo jornalístico, os discursos, dependendo da credibilidade que recebem no contexto da mensagem midiática, se consolidam como verdadeiros, relevantes e credíveis. A obrigação da escolha segundo a notoriedade, e particularmente no mundo político, faz com que as mídias se tornem o receptáculo da palavra do establishment, seja quando funcionam como transmissores, seja quando provocam o processo evenemencial ao suscitar declarações por parte desses mesmos atores. Vê-se assim que os acontecimentos não residem nos próprios fatos, mas nas relações dos políticos ou das personalidades notáveis. Pois aqui é como a brincadeira de gato e rato: as mídias só podem relatar o visível das ações e do discurso político; como os políticos sabem disso, mostram o visível que querem, o qual, verdadeiro ou falso, está destinado a mascarar uma outra coisa, com fins estratégicos (CHARAUDEAU, 2013, p. 193). O autor juntamente com Foucault (2013) entende que o discurso político, ao se difundir nas mídias, tem um propósito para além do que se revela, que nem sempre se evidencia, mas que visa, de alguma forma direcionar o interlocutor para os interesses do enunciador. Por isso, adverte 63 que ninguém se deixe enganar; mesmo na ordem do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e livre de qualquer ritual, se exercem ainda formas de apropriação de segredo e de não permutabilidade. É bem possível que o ato de escrever tal como está hoje institucionalizado no livro, no sistema de edição e no personagem do escritor, tenha lugar em uma “sociedade de discurso” difusa, talvez, mas certamente coercitiva (FOUCAULT, 2013, p. 38). Os discursos são, portanto, dotados de uma eficácia comunicacional construída a partir da criação de uma atmosfera pelo enunciador para estabelecer empatia por meio do discurso. Essa atmosfera é conceituada como cenografia em Maingueneau, e é constituída no próprio ato de enunciação. Para além da mensagem que quer transmitir, o enunciador procura envolver o interlocutor em seu discurso, lançando mão de mecanismos que facilitem a adesão do outro. Isso porque todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer instituindo a cena da enunciação que o legitima (...). Com efeito, tomar a palavra significa, em graus variados, assumir um risco; a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala (MAINGUENEAU, 2013, p. 98). Portanto, a competência do enunciador não se resume à mensagem propriamente dita, mas também a escolhas que conformarão o dispositivo da enunciação a fim de envolver o enunciatário. Assim, também no âmbito das mídias, observa-se que a notícia conta com esse mecanismo de envolvimento do receptor, compreendido por Charaudeau como “encenação”, que se faz por meio da própria narrativa. Para isso, no entanto, o jornalista procederá a uma determinada construção da notícia e trará a informação de acordo com certos modos discursivos em função dos dispositivos pelos quais ele passa (...). Ela será relatada segundo um modo discursivo que descreve os fatos com minúcia, produzindo um efeito de subjetividade, mas também como uma descrição dramatizante, produzindo um efeito emocional suscetível de despertar, naquele que se informa, instintos de voyeurismo ou de medo (CHARAUDEAU, 2013, p. 129). A mídia, devido ao potencial persuasivo de seu discurso, também pode ser considerada uma instância de poder. Mesmo desconsiderando a teoria hipodérmica da comunicação, não se pode negar o importante papel que ainda desempenham na formação de opinião, no reforço ou na 64 desconstrução de estereótipos, no agendamento de questões sociais a serem discutidas e, inclusive, demandando atenção de governos à implementação de políticas públicas em diversos setores. Tanto é que, aliam-se ao poder público em algumas situações ou então medem forças com ele, de acordo com seus interesses. Nesse sentido, Charaudeau (2013) pontua que os meios, ao se aproximarem demais do poder, correm o risco de comprometer sua credibilidade junto à sociedade e, opostamente, quando dá muita abertura a esta, pode ser acusada de demagogia. Ademais, ainda que a sociedade questione os meios de comunicação, compreendendo que a mídia não detém a verdade sobre os fatos e sim um ponto de vista sobre eles, boa parte da população ainda forma sua opinião a partir de seus discursos, conhecendo o mundo a partir de sua seleção e visão da realidade. 4.3. Leitura crítica das mídias Nesse sentido, compreende-se, cada vez mais, a importância de problematizar as mensagens das mídias, estimulando, em diversos espaços, a sua leitura crítica, além, é claro – no âmbito da Educomunicação – procurar viabilizar o direito humano à comunicação, especialmente de crianças, adolescentes e jovens, bem como disseminar a discussão sobre a importância da democratização dos meios de comunicação para que cumpram, efetivamente, o serviço público que o Estado transfere à iniciativa privada e para que o espaço e o alcance que hoje, hegemonicamente, as empresas de comunicação controlam sejam estendidos a iniciativas da sociedade civil sem fins lucrativos. Nesse sentido, Orozco-Gomez entende a necessidade de estabelecer mecanismos para que outras instâncias sociais educativas desempenhem o papel de mediadoras entre crianças e as mensagens dos meios de comunicação de massa, exercendo, dessa maneira, um papel educativo e problematizador frente à mídia. Para ele, a recomendação é a de construir um juízo muito menos maniqueísta e muito mais integrado, menos visceral, que permita pesar os elementos positivos e negativos que oferecem os meios e atuar a partir daí; por exemplo, desenhando estratégias de intervenção para tornar as crianças mais autônomas e críticas frente a todas as mensagens nocivas dos MCM e, ao mesmo tempo, muito mais capazes de desfrutar e aproveitar os outros elementos positivos para seus próprios fins (OROZCO-GOMEZ, 1997, p. 64). 65 E, para além da mediação necessária entre os meios de comunicação de massa e o sujeito em formação, seja ele criança, jovem ou adulto, a fim de que os conteúdos das mensagens midiáticas sejam objeto de análise, reflexão e crítica, é necessário compreender que a formação ideológica do indivíduo é reflexo de processos educativos. Dessa maneira, cabe à educação sensibilizar os sujeitos para novos paradigmas, a partir dos quais será possível a elaboração de novos discursos sociais que orientarão processos de transformação social. Nessa perspectiva, Foucault compreende que é por intermédio da educação que os sujeitos tomam conhecimento da diversidade de discursos, destacando, no entanto, que eles são contextualizados de acordo com juízos de valor. Pensamentos tornam-se relevantes e valorosos ou irrelevantes e desprezíveis, a depender da mediação realizada para a recepção desses discursos. O autor explica que A educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, é bem sabido que segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo (FOUCAULT, 2013, p. 41). Dessa maneira, compreende-se que novos entendimentos sobre as relações sociais podem surgir a partir da leitura crítica dos conteúdos disseminados pelas mídias, ação por meio da qual crianças, jovens e adultos inseridos em processos educomunicativos poderão ressignificar antigos discursos, compreendendo-lhes o contexto sócio-histórico e tendo condições para reelaborá-los de acordo com a realidade em que estão inseridos. Para tanto, faz-se necessário um processo de mediação no qual é imprescindível o diálogo para uma efetiva desconstrução crítica do senso comum com o objetivo de problematizar a realidade e visando à transformação social. Ademais, é necessário ainda não se ater à leitura dos conteúdos da mídia hegemônica, uma vez que essa atitude seria limitar-se à agenda setting, ainda que com o intuito de problematizar questões, suscitando questionamentos e teorias que façam contraponto ao posicionamento dos meios de comunicação às questões que reportam. É importante haver aproximação da mídia alternativa e dos movimentos sociais propriamente ditos, por pautarem questões que a grande mídia sequer aborda em seus conteúdos. 66 PARTE II ANÁLISE DO OBJETO 67 5 CAMINHOS E MAPAS DA PESQUISA A partir do exposto nos capítulos anteriores deste trabalho, procuramos situar o leitor no âmbito dos discursos que permeiam a prática das coberturas educomunicativas: o discurso do adulto, com o qual o jovem que exerce o papel de comunicador interage para a elaboração de outros discursos; o jornalístico, expresso a interlocutores jovens que acessam os veículos de comunicação da Viração Educomunicação. Dessa forma, nosso problema de pesquisa se configura a partir da confluência entre práticas educomunicativas e produção de discursos, pensados como partes interdependentes de um processo contínuo que se desenvolve sócio-historicamente no contexto da Educomunicação. Buscando estudar a complexidade desse processo, a partir do próximo capítulo procura-se discutir de que modo os discursos de adultos e jovens interagem e como se dá o processo de formulação do discurso jornalístico pelo jovem, a partir da fala do adulto. Antes disso, no entanto, pretendemos expor ao leitor os procedimentos adotados para essa discussão que se centra em uma expertise da Viração Educomunicação, organização que concebeu e aplica uma metodologia de ação que envolve adolescentes em uma cobertura comunicativa de eventos. A reflexão sobre esse processo, no âmbito desta pesquisa, se dá com base na análise não apenas dos produtos de comunicação resultantes da cobertura educomunicativa, mas também na própria metodologia aplicada pela organização durante a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, evento para o qual a Viração coordenou uma cobertura colaborativa da qual participaram 21 adolescentes de 15 a 18 anos, cada um oriundo de um estado brasileiro e sob a qual a organização atuou enquanto prestadora de serviço. 5.1. Objetivos da pesquisa O objetivo desta pesquisa é discutir a formação do jovem que participa da cobertura jornalística ancorada em práticas educomunicativas desenvolvidas pela Viração Educomunicação durante eventos promovidos pelo governo federal Dessa forma, procurou-se refletir sobre o 68 emprego do jornalismo e da produção midiática como metodologia educativa de inclusão e de participação social de jovens em ambientes de discussão formal e predominantemente adulto. Objetivos específicos: a) A partir da prática de cobertura educomunicativa da Viração Educomunicação, pretende-se problematizar o processo de produção de notícias e aplicação de práticas jornalísticas no contexto da produção midiática realizada por jovens, tendo como base a análise dos discursos dos diversos atores envolvidos; b) Problematizar a cobertura educomunicativa como prestação de serviço, com vistas ao estímulo ao senso crítico do jovem nesse contexto; c) Refletir sobre o papel do educomunicador como mediador na formação do jovem; d) Compreender o caráter e a finalidade do produto midiático, fruto do processo educomunicativo; e) Propor uma metodologia que potencialize o caráter educomunicativo da cobertura educomunicativa da Viração. 5.2. Hipóteses de trabalho Partindo do pressuposto de que a Educomunicação pretende a transformação social por meio de um processo de estímulo ao senso crítico, procurou-se compreender se a prestação de serviço limita esse objetivo durante a cobertura e, mais do que isso, se o educomunicador desenvolve uma mediação capaz de equilibrar os interesses do contratante com a necessidade de fazer do processo da cobertura um momento de formação crítica com relação à temática do evento coberto. Assim, procuramos problematizar as hipóteses que seguem: (1) A cobertura educomunicativa é uma instância da comunicação institucional do evento e, como tal, reforça o discurso oficial; 69 (2) Os conteúdos produzidos no contexto de coberturas de eventos institucionais reproduzem os discursos oficiais e, no contexto das notícias produzidas, não são reelaborados, questionados ou problematizados. (3) Os jovens não imprimem uma identidade efetivamente jovem ao assumirem o papel de comunicadores em um evento predominantemente adulto e, dessa forma, a mobilização de outros jovens para a temática do evento coberto fica comprometida. (4) Os educomunicadores atuam mais no sentido de orientar a produção midiática, com vistas aos conteúdos a serem produzidos, do que no auxílio à interpretação e compreensão da fala do adulto, para que o jovem construa um discurso próprio por meio de linguagens midiáticas. 5.3. Procedimentos metodológicos A pesquisa aqui relatada teve como um de seus principais objetivos a análise da cobertura educomunicativa com vistas a estudar como a Educomunicação se faz presente nesse tipo de intervenção. Para tanto, tornou-se essencial conhecer mais a metodologia desenvolvida para essa atividade, especialmente no desenrolar da produção de conteúdos pelos jovens envolvidos. Discutimos, dessa maneira, aspectos como: (1) a mediação do educomunicador durante esse processo; (2) a percepção do jovem do processo educomunicativo proposto pela organização; (3) a assimilação pelo jovem dos discursos dos adultos, a partir dos quais produz notícias em diferentes linguagens; (4) a recepção dos conteúdos produzidos por adolescentes. A técnica de pesquisa que adotada neste trabalho se caracteriza como estudo de caso. Segundo Yin (2005) essa técnica pretende propor uma reflexão acerca da realidade, a partir de um caso específico. Não se trata apenas de descrevê-lo ou apenas explorá-lo. É o que o autor chama de “função explanatória”: O estudo de caso é a estratégia escolhida ao se examinarem acontecimentos contemporâneos, mas quando não se podem manipular comportamentos relevantes. O estudo de caso conta com muitas das técnicas utilizadas pelas pesquisas históricas, mas acrescenta duas fontes de evidências que usualmente não são incluídas no repertório de um historiador: observação direta dos acontecimentos que estão sendo estudados e entrevistas das pessoas neles envolvidas (YIN, 2005, p. 26). 70 Não apenas foram realizadas entrevistas com os envolvidos na cobertura educomunicativa, objeto desta pesquisa, mas levou-se em conta também a observação do processo realizado em outubro de 2013, no evento coberto, uma vez que este que escreve é profissional da Viração Educomunicação há três anos e entende que essa experiência confere ao presente trabalho aspectos etnográficos. Dessa forma, o estudo de caso apresentou-se com opção adequada de método, uma vez que “a principal tendência em todos os tipos de estudo de caso, é que ela tenta esclarecer uma decisão ou um conjunto de decisões: o motivo pelo qual foram tomadas, como foram implementadas e com quais resultados” (SCHRAMM apud YIN, 2005, p. 31). Adotou-se a Análise do Discurso para interpretar os próprios conteúdos (discursos) jornalísticos produzidos pelos jovens e os depoimentos/entrevistas de gestores da organização, adolescentes participantes da cobertura e jovens que assistiram a um produto audiovisual, fruto da cobertura educomunicativa da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Há, portanto, uma tentativa de interpretar os discursos, associando-os a conceitos abordados na primeira parte deste trabalho. Em outras palavras, procuramos associar as falas e opiniões expressas nas respostas dos gestores e jovens aos fatos observados e aspectos teóricos apresentados, numa tentativa de evidenciar questões implícitas no processo e metodologia educomunicativa empregada na cobertura em questão. Assim, entendemos que o presente trabalho se atém à segunda concepção de Slakta de prática discursiva, que não pode se explicar senão em função de uma dupla competência: 1. uma competência específica, sistema interiorizado de regras especificamente linguísticas e que asseguram a produção e a compreensão de frases sempre novas – o indivíduo eu utilizando essas regras de maneira específica (performance); 2. uma competência ideológica ou geral que torna implicitamente possível a totalidade das ações e das significações novas (BRANDÃO apud SLAKTA, 2002, p. 18). Além da Análise do Discurso das entrevistas concedidas pelos atores envolvidos na iniciativa da cobertura educomunicativa, procuramos analisar ainda os discursos jornalísticos produzidos em seu contexto, observando o posicionamento dos seus autores com relação à temática 71 e também aos discursos presentes em suas produções, com o propósito de discutir se os conteúdos resultantes do processo estão de acordo com a proposta da organização de viabilizar um espaço para que o jovem expresse livremente suas opiniões acerca dos fatos e falas cobertas. Os produtos resultantes desta cobertura realizada pela Viração Educomunicação foram disponibilizados no site Agência Jovem de Notícias, em que foram postados os conteúdos em texto, áudio, vídeo e fotografia, realizados durante a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Foram analisadas as notícias produzidas entre 7 e 10 de outubro de 2013, período que compreende o evento propriamente dito e o dia anterior ao início da conferência, dedicado à oficina preparatória dos adolescentes para a cobertura. Foram analisadas apenas as notícias de autoria dos adolescentes ou as que os adotam como fonte de informação, a partir de busca realizada em 24 e 25 de fevereiro de 2014 no referido site. Foram acessados ainda sete vídeos produzidos no contexto da III Conferência Global e disponibilizados no canal do site YouTube da organização, dos quais esta pesquisa destaca e analisa quatro, em razão do teor jornalístico que os permeia. Para compreender de que modo os adolescentes envolvidos nesse processo assimilaram a vivência educomunicativa ao participarem da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, bem como os discursos adultos a partir dos quais suas notícias foram produzidas, realizamos entrevistas com três dos adolescentes participantes da cobertura em ambas as etapas. Daniel Mendes, de 16 anos, de Florianópolis (SC); Thailane Oliveira, de 18 anos, de São Gonçalo (RJ); e Thamires Rozendo, de 18 anos, de Girau do Ponciano (AL). O critério de escolha desses adolescentes foi o fato de terem atuado enquanto entrevistadores e terem estado presentes em dois momentos específicos da cobertura do evento: uma entrevista coletiva com a ministra Tereza Campello, da pasta do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e com o ativista indiano Kaillash Sathyaste. Isso porque as perguntas procuram compreender de que forma os adolescentes interpretaram os discursos de ambos, sendo a primeira entrevistada uma demanda institucional do órgão ao qual a Viração deveria prestar esclarecimentos quanto ao processo de cobertura, que foi o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), e o segundo entrevistado por ter sido uma entrevista espontânea, articulada pelos próprios jovens, por quem demonstraram admiração e interesse pela personalidade e história de vida. Além dos adolescentes, foram entrevistados dois gestores da Viração Educomunicação, entre eles o coordenador da cobertura educomunicativa da III Conferência Global sobre Trabalho 72 Infantil, responsável pela redação da proposta e relatório final das atividades, bem como a diretora executiva da organização que, presencialmente, acompanha e gerencia a rotina da equipe em São Paulo 22. O objetivo dessas entrevistas foi compreender a proposta da cobertura educomunicativa e suas circunstâncias quando realizadas sob prestação de serviço, com especial atenção ao aproveitamento do jovem inserido nesse processo. Houve, ainda no contexto da presente pesquisa, a necessidade de compreender se os conteúdos produzidos durante uma cobertura educomunicativa conseguem, de fato, dialogar, informar e mobilizar outros adolescentes e jovens, nesse contexto, receptores das notícias produzidas pelos adolescentes comunicadores. Por esse motivo, realizamos uma pesquisa de recepção com quatro jovens de São Paulo duas meninas de 15 anos, um menino de 16 anos e outro de 18 anos, estudantes de um cursinho popular onde leciona este pesquisador. Todos eles foram entrevistados pessoalmente e, para todos, foi exibido um mesmo vídeo, em que uma jovem comunicadora participante da cobertura educomunicativa entrevista um representante adulto da sociedade civil durante a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. O mesmo vídeo que orientou a pesquisa de recepção foi objeto de análise dos gestores da Viração Educomunicação que, com base nesse material, responderam a uma questão sobre a metodologia da cobertura educomunicativa. O vídeo em questão intitula-se Entrevista com Antônio Oliveira, do Fórum do Ceará, na 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil 23. Também foi entrevistada a educomunicadora Elisangela Nunes Cordeiro, que ficou à frente do processo de incidência política dos adolescentes durante a cobertura da etapa global, por e-mail. Ela foi entrevistada de modo paralelo aos demais participantes da pesquisa, uma vez que suas respostas atenderam a necessidades específicas desta pesquisa. Elisangela foi indagada sobre um processo paralelo (mas não completamente alheio) à cobertura, que foi o de participação política de alguns dos jovens do grupo, mas cuja metodologia interessa à presente pesquisa. Dez dos 21 participantes da cobertura tiveram foco em participação política do evento, acompanhando os debates e se posicionando durante as discussões, com o objetivo principal de elaborar uma declaração final com um posicionamento político dos adolescentes, que foi lido em 22 A Viração possui dois diretores executivos, responsáveis pela governança da organização. Paulo Lima, fundador, compõe a diretoria executiva com Lilian Romão, que faz parte da organização desde 2009, quando Paulo mudou-se para a Itália, onde vive desde então. 73 plenária no último dia do evento. Esses jovens, no entanto, não se envolveram na produção midiática, embora tenham participado de momentos de entrevista coletiva. As entrevistas com os gestores e a pesquisa de recepção com quatro jovens de São Paulo foram realizadas presencialmente. As entrevistas com os três jovens que participaram da cobertura foram realizadas por skype e telefone, tendo em vista que todos eles residem fora de São Paulo. 5.4. Questionários norteadores das entrevistas Procuramos contemplar três perfis de envolvidos nas coberturas educomunicativas: (1) os idealizadores e executores de sua metodologia, (2) os jovens que vivenciam o processo de cobertura e (3) jovens na faixa etária a qual se destinam as mensagens midiáticas produzidas na cobertura educomunicativa. Dessa forma, as perguntas realizadas foram: (1) Para os gestores da Viração Educomunicação: a) Em que momento da história da Viração a organização começou a fazer coberturas no caráter de prestação de serviço? b) Para você, o que é uma cobertura educomunicativa? c) Houve algum receio na adoção desse tipo de cobertura? d) Quais as diferenças entre uma cobertura educomunicativa feita por militância e outra feita sob condição de prestação de serviço? e) Você acha que haveria diferença no processo e nos conteúdos produzidos se a cobertura fosse realizada por adolescentes e jovens que já tivessem envolvimento anterior com comunicação? f) A intenção da cobertura é ser uma instância da comunicação institucional do evento? g) Você considera cobertura educomunicativa quando o jovem comunicador reproduz a versão do contratante ou patrocinador? h) A proposta de cobertura educomunicativa afirma que essa ação é o olhar do adolescente sobre o fato e a oportunidade que possuem de exporem suas opiniões sobre o assunto. No 23 Disponível no canal do YouTube da Viração Educomunicação, com acesso por meio do link: 74 entanto, a jovem entrevistadora da linguagem audiovisual se manifesta apenas fazendo perguntas. Por que isso acontece? i) Como vocês lidam com o jovem que tem a opinião discordante daquela da instituição para a qual a Viração está na condição de prestadora de serviço? j) Como acontece a mediação do processo para que ele, ao mesmo tempo que atende às expectativas do contratante, cumpra com o papel de estimular o senso crítico por meio da produção midiática? k) Para você, promover o direito humano à comunicação é o mesmo que promover a participação política? (2) Para três jovens participantes da cobertura educomunicativa: a) Para você, o que é uma cobertura educomunicativa? b) O que você achou das perguntas feitas aos entrevistados? c) O que você achou das respostas que a ministra deu às perguntas? d) O que você achou das respostas que o Kaillash deu às perguntas? e) De qual entrevistado você gostou mais? f) Para você, com qual entrevistado houve mais interação? g) Se você já tivesse tido contato com comunicação antes da cobertura, o que poderia ter sido diferente? h) Todas as perguntas feitas para os entrevistados partiram dos adolescentes? i) Como acha que sua participação poderia ser mais educomunicativa? (3) Para quatro jovens na faixa etária a qual se destinam os conteúdos da Viração: a) O que você achou do vídeo? b) O que chama a sua atenção neste vídeo? Por quê? c) Do que trata o vídeo? d) Como você resumiria o que foi dito pelo entrevistado? e) O que você achou da pergunta feita pela entrevistadora? 75 6 A NOTÍCIA PRODUZIDA PELO JOVEM As coberturas educomunicativas promovidas pela Viração Educomunicação acontecem em diferentes contextos e perspectivas, como visto no capítulo 1. É objeto deste trabalho a cobertura realizada pela organização com a participação de 21 adolescentes, cada qual oriundo de um estado brasileiro, que atuaram como comunicadores durante a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. A única experiência anterior em produção de conteúdos noticiosos da maioria dos adolescentes foi durante a etapa nacional da conferência, ocorrida dois meses antes da etapa global, também em Brasília 24. Essa cobertura foi uma prestação de serviço da Viração Educomunicação à Organização Internacional do Trabalho (OIT), tendo dois ministérios do governo federal co-realizadores do evento no Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Os adolescentes envolvidos nesse processo passaram por uma formação em maio de 2013 sobre trabalho infantil e, em agosto do mesmo ano, aturam pela primeira vez como comunicadores durante a etapa nacional da conferência. A pesquisa, no entanto, analisa o processo de cobertura durante a etapa global do evento, ocorrido dois meses após a etapa nacional, em outubro de 2013. Esses três encontros aconteceram na capital federal. Os participantes desta cobertura foram meninas e meninos de idades entre 15 e 18 anos, mobilizados pelo governo federal em 20 estados do país e Distrito Federal, por meio dos Conselhos Estaduais de Direitos da Criança e Adolescente (CEDECA), que antes do início de cada uma das etapas da conferência, receberam momentos de formação em linguagens midiáticas com os educomunicadores da Viração, com vistas à cobertura educomunicativa. As mídias por meio das quais a cobertura seria realizada foi definida pela em reunião de equipe de educomunicadores responsável por acompanhar a atividade com os adolescentes em Brasília, antes mesmo da etapa nacional do evento. As linguagens trabalhas – podcast, vídeo, texto escrito, fotografia e jornal mural – não foram definidas em conjunto com os adolescentes, mas 24 Exceção feita a um adolescente de Tocantins, que participou da cobertura educomunicativa da IX Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, coordenada pela Viração, em agosto de 2012. 76 apresentadas a eles no momento de formação, nas duas etapas da conferência, para que escolhessem com que mídia trabalhar. Essa divisão por linguagens faz parte da metodologia das coberturas realizadas pela Viração, seja no caráter de prestação de serviço ou militância política em temáticas que fazem parte da missão e valores da organização. Buscando analisar os discursos dos atores envolvidos na cobertura educomunicativa e levando em conta os objetivos e hipóteses formulados no capítulo anterior, resumimos, a partir do próximo item, os pontos abordados nas entrevistas, destacando algumas falas dos entrevistados, numa tentativa de trazer à luz questões implícitas no processo das coberturas educomunicativas, sob três aspectos: (1) da gestão do processo; (2) da vivência da cobertura educomunicativa pelos jovens comunicadores; e (3) da recepção dos discursos midiáticos construídos na cobertura educomunicativa. 6.1. Gestores da Viração e a cobertura educomunicativa Os gestores da Viração Educomunicação entrevistados afirmam que a cobertura educomunicativa é uma maneira de propiciar a vivência de comunicação a adolescentes e jovens e que a intervenção por meio da comunicação em espaços de debates, a partir da mobilização desses atores, é uma expertise da organização. No contexto de prestação de serviço, há acordos a serem cumpridos com um contratante, que espera retornos dessa ação com relação à participação e produção midiática dos adolescentes envolvidos nesse processo. Os dois gestores entrevistados afirmaram que em uma cobertura sob prestação de serviço há normas a serem cumpridas e metas a serem alcançadas, enquanto em uma cobertura educomunicativa feita por militância – ou seja, por identificação com a temática do evento e sem contrapartida financeira – há maior liberdade de atuação dos jovens. Algo a ser destacado na fala de ambos foi o cuidado anterior no planejamento da ação de cobertura em caráter de prestação de serviço e da definição de papeis, que envolve a própria equipe de educomunicadores e os adolescentes e/ou jovens participantes. A cobertura feita unicamente por militância, ou seja, sem contrapartida financeira, ocorre sem limitações ou exigências de quantidade de conteúdos a serem produzidos. É importante ponderar que as coberturas que a organização 77 promove também no caráter de prestação de serviço são de eventos que abordam questões que estão de acordo com as temáticas sociais pelas quais a Viração milita, como os direitos humanos, comunicação, educação e juventude. A diretora executiva Lilian Romão afirma que a metodologia proposta para o contratante procura dar conta do processo pedagógico que envolve a participação de jovens. A Viração propõe horas de formação para os jovens envolvidos na cobertura e os educomunicadores da organização procuram acompanhá-los em diferentes grupos, cada qual responsável pela produção em uma linguagem midiática. O coordenador Rafael Silva afirma que a cobertura feita sob prestação de serviço e que envolve jovens sem vivência anterior com comunicação exige da equipe de educomunicadores uma maior tutela. Ele diz ainda que há maior confiança por parte da equipe com os jovens que passam por um ciclo de formação de seis meses na Viração em comunicação e humanidades, quando estes realizam alguma cobertura. No entanto, destaca que todos os conteúdos produzidos, seja por um jovem envolvido com comunicação ou sem vivência anterior em produção midiática, passam por uma revisão e edição de um jornalista da equipe. Nas palavras de Rafael Silva: Todo conteúdo da Viração, antes de ir para o site da Agência Jovem de Notícias ou para a revista, passa pelas mãos de um jornalista. Tem uma segunda revisão, independente de quem produziu, tenha tido uma formação anterior ou não. O conteúdo é revisado de qualquer maneira. No grupo da conferência, certamente, se muitos já tivessem participado de grupos de comunicação antes, o conteúdo sairia bem mais aprofundado (...). Lá, tínhamos que estar do lado deles, tanto é que nos dividimos em grupos – de rádio, de vídeo, de texto – com um educador para acompanhá-los. Com os jovens daqui, não. Fazemos a separação de pautas e os deixamos livres, porque sabemos que eles vão conseguir se virar, justamente por eles terem tido técnicas de entrevista, participado de coberturas anteriores, o que não elimina essa revisão final. A diretora executiva Lilian Romão afirma que a organização adota essa metodologia justamente para suprir a necessidade do jovem que não possui vivência anterior na produção de mídia. Ainda assim, ela acredita que uma experiência anterior dos jovens com comunicação faria o processo da cobertura diferente. No entanto, é interessante perceber que Lilian destaca a produção em si, no entendimento de que vivenciar a comunicação está atrelada à produção de mídia, de informação, por parte dos adolescentes, e não necessariamente à interação e consequente compreensão dos discursos presentes nesses espaços: 78 No nosso caso, a proposta foi produzir comunicação e vivenciá-la dentro de uma realidade. Eles não necessariamente vão para lá pensando em produzir comunicação, mas esse é o lugar específico da organização, de ter habilidade para lidar com o heterogêneo, mas é esse grupo que vai fazer com que o trabalho gere resultados. Observamos, com base nas entrevistas, que o entendimento de comunicação por parte dos gestores ainda se relaciona com uma noção mais específica do termo, relacionado a conteúdos midiáticos. Essa concepção não encontra respaldo na perspectiva adotada neste trabalho conforme discutimos no capítulo 4, baseando-nos em Bakhtin/Volochinov (2002) e Wolton (2011). Wolton diferencia comunicação de informação. Para o autor, a comunicação é mais complexa e incerta que a informação, uma vez que pressupõe relação com o outro. A partir do autor, entendemos que a informação eficaz é fruto de um processo comunicacional. Em outras palavras, o processo de interação e compreensão de discursos, a partir da relação social, resultará em informações precisas, claras e elucidativas. Para Wolton, Existem três grandes categorias de informação: oral, imagem e texto. Esses dados podem estar presentes em diversos suportes. Tem-se informação notícia ligada à imprensa; a informação-serviço, em plena expansão mundial graças especialmente à internet; e a informação-conhecimento, sempre ligada ao desenvolvimento dos bancos e bases de dados. Falta a informação relacional, que permeia todas as demais categorias e remete ao desafio humano da comunicação (WOLTON, 2011, p. 17). Entendemos que a cobertura educomunicativa tem por objetivo a produção midiática feita por adolescentes e jovens, o que, por si só, já representa inovação pela proposta e pelo aprendizado do uso das ferramentas de comunicação e tecnologias da informação. No entanto, percebemos a necessidade de potencializar seu caráter comunicativo, a partir da concepção de Bakhtin/Volochinov e Wolton. Em outras palavras, endossamos a necessidade de pensar em uma produção midiática (informacional) que seja a finalidade do processo, não o processo em si. 6.2. A visão dos jovens sobre a cobertura educomunicativa 79 Essa necessidade é indicada na avaliação que a jovem Thailane Oliveira, de São Gonçalo (RJ), fez de sua própria participação na cobertura. Quando indagada sobre como a sua participação poderia ter sido mais educomunicativa, ela responde: Por conta da cobertura, não pudemos participar dos debates. Acho que se a gente tivesse participado mais ativamente dos debates, teríamos mais informações e perguntas. Se realmente tivéssemos participado do evento, a cobertura teria sido melhor. A gente se preocupava mais em entrevistar, em fazer os textos, fotos, vídeos. A gente via um pedacinho e desse pedacinho, a gente deduzia. A metodologia da organização em dividir os participantes da cobertura em grupos para trabalhar diferentes linguagens midiáticas indica o foco da organização na produção. Por outro lado, a fala da adolescente explicita a necessidade de uma maior participação dos adolescentes nas discussões do evento, reforçando que isso dará condições para produzir conteúdos mais profundos e fundamentados. A jovem demonstra, com isso, compreender a necessidade de se informar e comunicar para elaborar o texto noticioso, pois entende que a elaboração de uma notícia exige envolvimento com a temática noticiada e conhecimento prévio acerca das pessoas que discursam/participam no contexto do evento. Apropriando-se, da informação e possivelmente construindo conhecimento, a notícia será elaborada com mais naturalidade, será espontânea. Talvez a falta de um processo efetivamente comunicativo tenha sido o motivo pelo qual se observou nesta pesquisa efetivo e claro posicionamento crítico por parte dos adolescentes em poucos conteúdos midiáticos da cobertura educomunicativa. 6.3. Conteúdos produzidos no contexto da cobertura educomunicativa No site Agência Jovem de Notícias, foram localizadas 11 notícias em texto, das quais duas apresentam o posicionamento de seus autores. Uma delas encontra-se no texto intitulado Migração e mobilidade: questão entre Síria e Jordânia é debatida na Conferência sobre Trabalho Infantil 25, de autoria da adolescente Daniele Fiel, da Paraíba, e de sua educadora e acompanhante Rose 25 Disponível na íntegra em: http://www.agenciajovem.org/wp/?p=17093. Acesso em 24.fev.2014, às 22h22. 80 Veloso 26. A notícia relata a fala de um dos integrantes de uma plenária da conferência. Chama a atenção o último parágrafo, que diz: Há ainda um grande número de meninas refugiadas que são exploradas sexualmente. Os pais as vendem para exploradores. Casos como esse demonstram a necessidade de revisar a legislação vigente que dispõe sobre migração. Estando ou não em seus países crianças são crianças e precisam ser protegidas. Pense nisso! O trecho reproduzido demonstra um posicionamento crítico-analítico das autoras quando reconhecem a necessidade da legislação ser menos dura com relação a meninas em situação ilegal. Observamos ainda o seu caráter mobilizador, quando, de modo enfático, apela ao leitor que reflita sobre a questão. No entanto, é preciso considerar que este texto é assinado pela adolescente em parceria com uma adulta, sua acompanhante 27. Dessa forma, não é possível saber de quem partiu esse apontamento crítico com relação à situação de migração e violação de direitos tratada no texto. Todavia, essa produção pode ser um indicativo de que a parceria entre adulto e jovem pode resultar em um conteúdo analítico, que pode ser fruto de um processo dialógico entre seus autores. A notícia #FimdoTrabalho Infantil Exemplo de militância e sensibilidade 28, de autoria de Thailane Oliveira, do Rio de Janeiro; e Sarah Suzane, do Acre, ambas de 17 anos 29, relatam a trajetória do militante indiano pelo direito à educação e contra o trabalho infantil Kaillash Sathyaste, destacando partes das declarações dadas por ele durante entrevista coletiva concedida aos jovens comunicadores. Durante o segundo dia da III Conferência Global Sobre Trabalho Infantil, em Brasília, o indiano Kaillash Sathyaste concedeu uma entrevista aos adolescentes comunicadores. Ele disse que conscientizar as pessoas mais tradicionais de que uma criança não deve trabalhar, mas sim de que deve estudar ainda é um dos maiores desafios na erradicação do trabalho infantil. “As pessoas amam suas crianças, mas não as respeitam como parte da sociedade. É direito da criança ter acesso à educação.” 26 Os adolescentes foram a Brasília acompanhados por um adulto responsável por eles na Capital federal. Esses adultos estiveram presentes com eles durante a atividade da cobertura e, alguns deles, em alguns momentos, também se envolveram na produção de conteúdos. 27 Os adolescentes participantes da cobertura foram a Brasília acompanhados por adultos, responsáveis por eles durante a estadia na capital federal. A maioria deles teve como responsável um educador que o acompanha em suas cidades de origem. 28 Disponível na íntegra em: http://www.agenciajovem.org/wp/?p=17104. Acesso em 24.fev.2014, às 22h46. 29 Idade das jovens em outubro de 2013, época da Conferência. 81 Ele contou ainda que durante sua infância se questionava sobre o motivo de estar na escola estudando e ter meninos e meninas trabalhando. Movido pela curiosidade, perguntou ao pai de um garoto que trabalhava porque seu filho não estava na escola. O homem olhou para Kaillash como se a pergunta não fizesse sentido e, pacientemente, respondeu: “Nós nascemos para trabalhar!”. Essa resposta o inspirou a promover uma transformação. Após os 30 anos, Kaillash conseguiu promover dois movimentos dedicados ao direito à educação e ao enfrentamento do trabalho infantil. E seu esforço lhe rendeu a indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2006. O texto, no entanto, não evidencia, diretamente, opinião ou posicionamento crítico sobre o contexto relatado pelas adolescentes, que se limitaram ao dito relatado (CHARAUDEAU, 2013). Mas, a escolha das jovens por relatar a fala do militante indiano demonstra, segundo o autor, adesão às palavras do enunciador. Isso significa que, ao transformar o relato do personagem em questão em notícia, há uma demonstração implícita de que as autoras do texto se identificam, admiram e/ou concordam com o que foi dito por seu relator. (...) o discurso relatado se constrói ao término de uma dupla operação de reconstrução/ desconstrução. De reconstrução, porque se trata de tomar um dito para reintegrá-lo a um novo ato de enunciação, passando esse dito a depender do locutor-relator (...). De desconstrução porque o discurso relatado mostra que se trata realmente de um dito tirado de um outro ato de enunciação, distinguindo o dito relatado do dito de origem e operando uma reificação deste último, que serve para provar a autenticidade do discurso do relator (CHARAUDEAU, 2013, p. 163). Segue a mesma linha de dito relatado o texto intitulado: “Nós vamos conseguir!” é voz única entre nações pelo #FimdoTrabalhoInfantil 30, de autoria de Thailane Oliveira, do Rio de Janeiro; e Sarah Suzane, do Acre, que sistematiza em um mesmo discurso jornalístico falas de três militantes estrangeiros pela erradicação do trabalho infantil, entrevistados pelos adolescentes comunicadores, em inglês: As expectativas eram grandes quanto à 3ª Conferência Global Sobre Trabalho Infantil e o primeiro dia do evento veio como uma caixinha de surpresa: a presença inesperada de adolescentes surpreendeu muito dos presentes, como a africana Leah Ambwaya, que se mostrou satisfeita com a atuação juvenil no evento (...). Já a iraquiana Dunya Al-aboody resaltou que nem sempre os nossos esforços são proporcionais aos resultados e que devemos ter paciência de esperar que os resultados venham. “Não devemos nos permitir desanimar, isso é algo muito maior que nossos desejos e expectativas. Devemos encontrar na dificuldade forças para lutar! Afinal, existem pessoas que contam com os nossos esforços (...). 30 Disponível em: http://www.agenciajovem.org/wp/?p=17078. Acesso em 27.fev.2014, às 15h34. 82 Thailane domina o idioma e conseguiu realizar a entrevista com os três militantes. A africana Leah Ambwaya, a iraniana Dunya Al-aboody e o sul-africano Katete Jackson Jones deram declarações aos jovens sobre como enfrentam a questão em seus países. Em um conteúdo produzido em linguagem radiofônica, com o título Ouça as impressões dos adolescentes sobre o primeiro dia da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil 31, a educomunicadora Elisangela Nunes, da Viração e uma acompanhante de um dos jovens entrevistam os adolescentes Suzana Silva, de Pernambuco; Daniel Mendes (Cazuza), de Santa Catarina; e Daniele Fiel, da Paraíba. A seguir, há a reprodução da entrevista: Educomunicadora: Cazuza, qual o momento mais interessante da discussão de hoje de manhã? Cazuza: Na minha opinião, foi quando o Guy Ryder citou Martin Luther King, que diz que o arco da história é longo, mas é uma curva em direção à liberdade. Educomunicadora: E o que isso significa? Cazuza: Que nós temos um caminho muito cumprido e árduo, mas que tem um fim muito recompensante (sic). Acompanhante: E para você, Suzane, o que mais te chamou a atenção? Suzane: O que chamou a minha atenção foi saber que a Convenção 182 da OIT ainda não é universal, pois nove países não aderiram [a ela]. Educomunicadora: O que você destaca, Dani? Daniele: Vou destacar aqui o triste dado trazido por todos os palestrantes da manhã, que a meta de erradicação do trabalho infantil até 2016 será impossível, mas isso não pode nos desanimar. Precisamos nos articular e juntar forças para continuar a luta. E esperamos dos representantes de Estados que elaborem projetos e não as desculpas. Das três respostas dadas, é possível perceber um efetivo posicionamento crítico, uma opinião explícita, apenas na fala de Daniele, que demonstra compreender a morosidade do poder público em adotar medidas de enfrentamento à questão do trabalho infantil. O enunciado do adolescente Daniel (o Cazuza) também chama a atenção por demonstrar a capacidade de interpretar a fala de uma autoridade presente no evento, mas, na resposta, ele não expressa nitidamente uma opinião. Trata-se de uma paráfrase da fala de outras pessoas, que embora indique compreensão, não encerra um posicionamento crítico. 31 Disponível em: http://www.agenciajovem.org/wp/?p=17071. Acesso em 25.fev.2014 às 12h10. 83 Cabe, no entanto, destacar que a fala de Daniel responde à primeira pergunta feita pela entrevistadora que lhe pediu que falasse do momento mais interessante da manhã. E a segunda resposta está atrelada à primeira pergunta, portanto se constrói a partir dela. Já a pergunta feita a Daniele deixa-lhe mais espaço para expressar o que lhe pareceu importante destacar. De toda forma, a elaboração das perguntas também é um passo importante na construção de um espaço de interlocução e de construção de sentidos. Após a assistência do vídeo Entrevista com Antônio de Oliveira, do Fórum do Ceará, na 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil, os gestores foram questionados sobre o motivo pelo qual a adolescente se manifesta apenas fazendo perguntas que se sucedem como se ela não levasse em conta a interlocução entre ela e o entrevistado, ou seja, entre os enunciados construídos naquela comunicação. A pergunta se deve ao fato de que a proposta de cobertura educomunicativa apresentada à OIT afirmava o seguinte: As crianças e os adolescentes são protagonistas da cobertura. Apresentarão ao mundo suas opiniões sobre os temas abordados nas conferências e numa perspectiva não comercial da informação, comumente tratada pelos veículos da grande imprensa cuja natureza é empresarial. Aprenderão a fazer o planejamento de uma cobertura, a levantar dados para suas produções (texto, ilustração, áudio, vídeo, fotografia) a debater suas opiniões, a perceber a importância dos momentos de escuta, a se comunicar com as pessoas, principalmente as que não estarão nos eventos, pensando em como mobilizá32 las (VIRAÇÃO, 2013, p. 7) . Para uma melhor compreensão da análise dos gestores acerca desse material, transcrevemos a seguir o vídeo em questão: 0” a 9” – Alanna (Entrevistadora) diz: Depois de várias reuniões preparatórias até aqui, hoje é o grande dia. A III Conferência Global sobre a erradicação (sic) do Trabalho Infantil. 10” a 17” – Exibição da vinheta de abertura. 18” a 27” – Entrevistadora: Estamos aqui com a Antonio de Oliveira. Ele é do Fórum. Antônio, o que o Fórum tem feito pela erradicação do trabalho infantil? 28” a 52” – Antônio de Oliveira (Entrevistado) responde: Várias ações na área de educação e assistência social, da saúde, nos conselhos, numa ação intersetorial. Nós estamos lançando agora, neste mês, a Agenda Cearense contra o Trabalho Infantil, que é uma articulação intersetorial para fortalecer as políticas públicas de atendimento às crianças e adolescentes, em especial às voltadas à prevenção e erradicação do trabalho infantil no estado. 53” a 55” – Entrevistadora: O que você espera desse evento aqui? 32 Grifo deste pesquisador. 84 56” a 1’18” – Entrevistado: a troca de experiências entre os países, numa conferência global é bastante importante. Aqui, as pessoas acabam conhecendo experiências de outras regiões e isso fortalece a ação, a troca de boas práticas, fortalecimento, fortalecendo as nossas ações. Nós esperamos que esta conferência possa possibilitar isto: a troca de boas práticas e fortalecimento das ações locais. 1’19” a 1’27” – Exibição de uma vinheta de encerramento. O coordenador da atividade justifica dizendo que esse formato preza pela informação em vez da opinião e ainda que, fazendo perguntas, a adolescente está se manifestando, colocando a sua linguagem, inclusive suas dificuldades. Ao ser questionado se a cobertura pode ser considerada educomunicativa quando o jovem reproduz a versão do patrocinador ou contratante, ele afirma: Não é educomunicativo, mas eu acho que não foi o que aconteceu nesse evento em si. Nós tínhamos as pautas, definidas entre educadores e jovens, mas a forma como o jovem atuou no evento foi livre. Tanto é que no vídeo que você enviou, a adolescente que fez a comunicação não sabia o nome do entrevistado e não sabia a função que ele exercia. Ela diz que ele é do Fórum do Ceará. Ela deixou muito aberto, não conseguiu identificar, deixar claro. Para ela tanto faz se fosse um gestor ligado ao Ministério do Trabalho, como alguém da sociedade civil, do Fórum. Ela queria saber qual a opinião dele sobre o evento e o que ele trazia para tentar erradicar o trabalho infantil. Nesse caso, não ficou tão prejudicado, creio eu. Nesse sentido, a diretora executiva da Viração Lilian Romão, apesar de reconhecer que há uma associação feita entre a comunicação institucional do evento e a cobertura educomunicativa, afirma que a organização e os adolescentes atuam com liberdade durante a atividade de cobertura: Quem está contratando para fazer a cobertura do evento não vai querer que alguém vá lá e detone, embora isso não fique estabelecido (...). Eu entendo que pensam que contrataram uma organização responsável por desenvolver uma metodologia de comunicação, educação e vivência com os jovens que vai gerar determinados produtos. Não sinto que em algum momento isso aconteça de uma forma direta. Cabe, então, destacar que a logomarca da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, da OIT e do governo federal figuram no rodapé das duas edições impressas do boletim impresso – um dos produtos da cobertura educomunicativa – juntamente às logomarcas do site Agência Jovem de Notícias e da Viração Educomunicação, o que evidencia uma relação institucional de parceria entre essas entidades. No entanto, isso não necessariamente representa falta de autonomia da Viração com relação aos realizadores do evento. 85 De nome #SacaSó!, o boletim foi distribuído no segundo e terceiro dias da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Trata-se de uma folha de sulfite tamanho A4, com três notas publicadas em português em um lado e, no verso, a versão em inglês, com uma espécie de resumo de alguns textos produzidos para o site Agência Jovem de Notícias e destinado aos participantes do evento. O primeiro boletim deu mais destaque aos acontecimentos e falas oficiais, enquanto a segunda edição destacou personagens e militantes estrangeiros que compartilharam suas experiências e interagiram com os adolescentes. No entanto, a principal notícia de ambos destaca a fala do governo federal. A terceira edição do boletim tem, como primeira notícia, uma seleção de falas da ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, ditas durante entrevista coletiva aos jovens comunicadores. Imagem 03: edição 2 do boletim #SacaSó! Considerando a opinião da participante Thailane Oliveira, que expressou a necessidade de participação nos debates para aprofundamento e compreensão dos assuntos tratados para que os adolescentes tivessem repertório para indagar os adultos presentes no evento, a postura da jovem 86 Alanna Mangueira em realizar perguntas mais genéricas ao entrevistado pode ser consequência da própria metodologia de cobertura educomunicativa aplicada pela Viração, uma vez que seu foco está na produção de mídia e não na compreensão dos debates para a produção de discursos jornalísticos. Então, a partir das falas dos gestores, que ressaltam que a cobertura da Conferência, por ser uma prestação de serviço, envolve demanda por conteúdos à qual os educomunicadores atuam para atender, as notícias produzidas nesse contexto com tom oficial se constituem dessa maneira não por uma orientação expressa do contratante ou dos educomunicadores, mas pela falta de habilidade do jovem em problematizar o discurso do adulto. É claro que, dessa maneira, os educomunicadores têm responsabilidade pelo resultado do conteúdo produzido e do tom que ele transparece, uma vez que lhes coube atuar como formadores desses jovens. Nesse sentido, o coordenador da cobertura reconhece que a organização nem sempre consegue envolver o adolescente participante no tema da conferência adequadamente. Nas palavras de Rafael Silva, para as coberturas feitas por militância, conseguimos nos preparar de forma mais adequada. Organizamos uma reunião de pauta com os jovens, observamos os que, de fato, estão interessados em cobrir determinados temas. Mas, com a parceria, não. Temos que cobrir determinados temas porque faz parte do contrato e os jovens às vezes não estão preparados para as demandas que vão surgindo, demandas que a organização traz e para as quais, muitas vezes, a Viração não os preparou antes. É possível compreender, pela fala de Rafael, que a Viração acredita que a sensibilização para a temática da cobertura deve ocorrer antecipadamente ao evento. No entanto, é preciso problematizar a questão, a partir de Freire (2011), que afirma que o processo educativo se faz a partir do momento em que os sujeitos estão inseridos em um determinado contexto social. Freire afirma que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2011, p. 95). É claro que vivenciar a conferência, estar em contato com os discursos colocados nesse espaço não anulam a necessidade de formação antecipada na temática. Mas a preparação prévia para o evento tampouco descarta a necessidade de aprofundamento no próprio processo dinâmico 87 de uma conferência. E, nesse contexto, o papel do educomunicador vai além de orientar para a produção midiática. A partir de Freire, é possível entender que uma vez educador e educandos inseridos em um contexto novo e estranho a ambos, cabe ao educador estabelecer mecanismos de interação e compreensão pautados pela troca e pelo diálogo, pois, deste modo, o educador problematizador re-faz, constantemente, seu ato cognoscente, na cognoscitividade dos educandos. Estes, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico também (FREIRE, 2011, p. 97). A diretora executiva da organização, Lilian Romão, justifica a manifestação da jovem entrevistadora apenas por meio de perguntas como uma vivência de uma forma de comunicação, acordada em grupo. Lilian entende que a entrevista é um gênero relevante de comunicação no contexto das práticas educomunicativas, uma vez que nem sempre, em um processo comunicativo, o papel do comunicador é tomar a palavra, mas também escutar e aprender com o outro. Nesse sentido, Lilian afirma que quando você vai fazer uma entrevista, deve entender que não é só sua fala que vale e nem sempre você está apoderado para falar de todos os assuntos, mas é preciso escutar para haver noção do contexto. Essa é uma questão que a Viração trabalha, quando sai do lugar de jovem protagonista para falar de participação de jovens, o que significa viver a sociedade com outras pessoas, mesmo sem entendê-la completamente, mas é por isso que é preciso experimentar, comunicar e vivenciar. De fato, a prática da entrevista envolve um importante aspecto do processo comunicativo: o diálogo, em que a escuta é fundamental para a compreensão. Bakhtin/Volochinov (2002, p. 121) sublinham a necessidade de interlocução: “O centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo”. Vale lembrar a importância que Freire (2011) dá ao questionamento e à curiosidade como elementos-chave para o processo de superação do ser humano inacabado, enfatizando que “a superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza” (FREIRE, 2011, p. 32). E completa: 88 A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos (FREIRE, 2011, p. 33). A curiosidade faz parte da condição humana, conforme indica Freire. No entanto, com senso crítico, o sujeito refina a busca por respostas e aprende que o diálogo que se estabelece com o outro nem sempre leva ao consenso, mas promove o encontro de sujeitos. A prática da entrevista, no contexto educomunicativo, promove esse encontro, uma vez que adulto e jovem convivem e se aproximam, mas não necessariamente a troca, a compreensão. Para isso, é preciso que o discurso do adulto (ou de qualquer outro entrevistado) seja problematizado, a partir de um processo de mediação, por intermédio do qual a criticidade se desenvolve. E sua ausência, em um contexto midiático – ainda que educomunicativo – pode conotar, em vez de inocência ou falta de habilidade, cumplicidade. Charaudeau (2013) destaca três possibilidades de diálogo nas mídias: bate-papo, conversa e entrevista. Este último formato, no entanto, é o que mais estabelece distância entre os interlocutores, pois A entrevista, ao contrário das outras duas outras, exige uma diferenciação de status, de tal modo que um dos parceiros seja legitimado no papel de “questionador” e o outro num papel de “questionado-com-razões-para-ser-questionado”. A alternância de fala se acha então regulada e controlada pela instância entrevistadora segundo suas finalidades (CHARAUDEAU, 2013, p. 214). Considerando esse entendimento do autor, consideramos que o gênero adotado pela Viração para colocar adolescente e adulto em interação, no contexto de uma cobertura educomunicativa, pode sugerir/reforçar a ideia de soberania do adulto sobre o jovem, uma vez que é o adulto quem responde ao jovem, quem ensina, portanto, sendo a resposta aceita pelo jovem sem qualquer réplica, reforçando um aspecto de passividade. Aspecto esse que pode remeter à concepção de educação bancária refutada por Freire. O fato de os conteúdos terem sido produzidos a partir das falas oficiais, sem um direcionamento específico nas perguntas, evidencia a ausência de criticidade na formulação das questões. Isso faz com que o público da cobertura receba as informações sob o ponto de vista 89 oficial, mais do que sob o ponto de vista de outro jovem. Esse tipo de tratamento dado à notícia pode ser prejudicial à credibilidade da informação. E o discurso do adulto transmitido na íntegra, ainda que em uma resposta, tem uma significação diferente do que se fosse reformulado no discurso de seu interlocutor inicial (o jovem) e passasse a ser informação transmitida por ele. Charaudeau, nesse sentido, afirma que é preciso proceder a uma seleção. Esta se faz em função da identidade do declarante e do valor do seu dito. A identidade do declarante pode variar da maior notoriedade possível ao anonimato absoluto. Com isso, surge o seguinte problema: dar a palavra aos notáveis corresponde a mostrar-se como organismo da informação institucional; dar a palavra aos anônimos corresponde a mostrar-se como organismo da informação cidadã ou mesmo popular. No primeiro caso, as mídias podem ser consideradas sérias, mas ao mesmo tempo podem ser consideradas suspeitas; no segundo caso, as mídias apresentam-se como a imagem da democracia, mas também podem ser acusadas de demagogia (CHARAUDEAU, 2013, p. 168). Dessa maneira, a centralidade que adquire os discursos de autoridades nos trechos acima estudados e nos produtos realizados durante a cobertura pode se apresentar como parte do "organismo institucional". Esse fato se reforça ainda pelo caráter pouco crítico das intervenções dos jovens durante as entrevistas. Trata-se de uma questão-chave para nosso estudo. Cabe salientar que o coordenador da cobertura Rafael Silva entende que a própria contratação da Viração Educomunicação já evidencia o posicionamento favorável da organização ao tema tratado nos eventos e que isso não impede que haja um processo educomunicativo com os jovens, desde que esse posicionamento fique claro. No entanto, ele afirma que não sabe até que ponto o posicionamento da Viração ficou evidente para os adolescentes comunicadores. Ele diz: Não tinha porque, ali, dentro do que estávamos envolvidos e dos parceiros envolvidos, sermos contra, até porque o evento em si estava de acordo com o que acreditamos (...). Ficamos realmente, nessa cobertura, pró-governo, mas estávamos envolvidos com o tema e com os parceiros que trabalhavam com o tema, a própria Viração traz essa temática (...). Quando o nosso posicionamento fica claro, não há problema. É negativo quando isso não fica claro, quando fica nas entrelinhas. Eu não sei o quanto isso ficou claro para o jovem. Talvez eu não tenha me atentado para questioná-los se estava claro que a Viração estava lá com o governo porque também traz essa pauta e também porque quer pautar esses governantes para tentar reduzir os números de trabalho infantil. Vale destacar, no entanto, que nossa indagação, como vimos destacando desde o início deste trabalho, refere-se menos ao caráter de parceria da cobertura e mais ao processo de formação dos 90 jovens e aos conteúdos e discursos por eles produzidos. Também em relação à parceria entre o contratante e a Viração, Lilian Romão, diretora executiva da Viração, entende que não é possível controlar o posicionamento dos jovens no contexto de uma cobertura, especialmente quando estão exercendo a função de entrevistadores: Não temos como controlar a pergunta que o jovem vai fazer para a ministra, se ele quiser chegar na hora e fazer uma determinada pergunta, ele faz. O nosso trabalho é fazer com que ele se empodere, para chegar e fazer a pergunta de acordo com princípios éticos, morais e da ética da comunicação, além do conteúdo: como se pensa e se planeja o conteúdo, quem vamos entrevistar e, depois da vivência, vamos experimentando outras coisas, principalmente por causa da vivência do parceiro sobre aquela experiência e, não necessariamente, sobre a nossa vivência. Apesar de não se exercer um controle sobre a fala do jovem na produção midiática de uma cobertura jornalística feita na perspectiva da Educomunicação, é preciso refletir sobre até que ponto perguntas mais complexas e que podem divergir dos interesses do contratante, mas são necessárias no processo de formação do adolescente comunicador, são estimuladas pelos educomunicadores no contexto de prestação de serviço e se os profissionais da organização teriam, de fato, esse papel de levá-los à desconstrução e questionamento crítico do discurso da autoridade. Durante nossa pesquisa, constatamos que os três adolescentes comunicadores entrevistados disseram que as perguntas às autoridades, em especial à ministra Tereza Campello, partiram dos próprios adolescentes e que o auxílio dos educomunicadores restringiu-se à melhor formulação das questões, a elaborá-las de modo objetivo e sem vícios de linguagem. “Teve uma ajuda da equipe da Viração e da educomunicação também. Os adolescentes pensaram bastante, mas eles ajudaram a formular mais a pergunta, a deixá-la mais certa. Foi um trabalho todo mundo junto e misturado”, disse a adolescente Thamires Rozendo, de Alagoas. Dois dos três adolescentes explicitaram claramente que essa intervenção dos educomunicadores foi positiva. Apenas um deles disse que, durante a entrevista coletiva com o ativista indiano Kaillash Sathyaste, alguns adultos sugeriram perguntas e o grupo composto por adultos e adolescentes chegou a um consenso sobre que perguntas deveriam ser feitas. No entanto, o adolescente não explicitou se esses adultos eram os acompanhantes dos adolescentes ou os educomunicadores da Viração. 91 As opiniões dos dois gestores da Viração quanto ao papel do educomunicador no contexto de uma cobertura educomunicativa são diferentes, mas não opostas ou discordantes. O coordenador acredita que o educomunicador deve procurar fazer com que o espaço do evento a ser coberto seja o mais amigável possível para o adolescente e esse papel deve ser exercido anteriormente à cobertura, no processo de negociação com os realizadores do evento. Para ele, o educomunicador deve garantir formação e antecipação, ou seja, sensibilizar os jovens para a temática do evento e negociar com os realizadores o espaço a ser ocupado pelos adolescentes comunicadores: Queremos levar o jovem, mas o espaço não é adequado para ele. Os conferencistas continuam usando linguagem técnica, o espaço é chato. Para um jovem ficar ali o dia todo, realmente, em algum momento, não vai ser interessante para ele. Nos vídeos, os adolescentes não conseguem reproduzir exatamente o que ouviram, então acabam trazendo perguntas mais abertas, mais genéricas, do cotidiano de uma pessoa comum. Então, em um espaço político, de tomada de decisão, o jovem talvez não consiga se familiarizar tanto porque o espaço não é apropriado para ele. A diretora executiva da organização também acredita que o papel do educomunicador é fazer com que o evento seja o menos burocrático possível para o jovem, mas, diferentemente do coordenador, acredita que esse é um processo que deve ser realizado em parceria com o jovem. Ela destaca a importância de mediar o processo e expectativas dos adultos com relação à atuação dos jovens enquanto comunicadores nesses espaços: Durante a Conferência não foi nada fácil mediar expectativas das pessoas com relação à participação dos jovens. Cada um tinha uma expectativa e nós, da Viração, estávamos no meio, pedindo calma e lembrando que era a primeira vez que eles colocavam adolescentes para participar. E nem assim conseguimos suprir as expectativas de todos. Dessa forma, é possível perceber que a diretora ressalta o papel do educomunicador durante o processo da cobertura, enquanto o coordenador o destaca como sendo anterior à ação, como se estivesse circunscrita ao planejamento da cobertura e espaço de incidência do jovem no evento. Para os gestores, é papel do educomunicador negociar as condições da intervenção dos jovens no espaço do evento coberto. Lilian Romão e Rafael Silva não se referiram ao pedagógico de, durante o processo de imersão dos adolescente no evento, procurar dialogar com os jovens sobre os 92 acontecimentos e discursos com os quais têm contato para, assim, esclarecê-los ou estimular sua reflexão. A diretora executiva também entende que é papel do educomunicador facilitar o processo de produção noticiosa, ajudando o jovem com as técnicas de comunicação e que nessa aproximação entre adolescentes e mídias, o educomunicador deve prezar pela expressão do jovem, sensibilizando os organizadores do evento para a necessidade de reconhecer essa vivência como um momento de formação e construção de criticidade do adolescente: Perguntam se podemos fazer determinadas coisas com os jovens ou controlar certas situações e a gente diz que não pode. Existe sim uma pressão por conteúdo, mas a pressão pela entrega do conteúdo. Então, da nossa parte, há uma ética com o jovem e com a metodologia, para de fato dar a liberdade para que ele fale, senão a gente cai em um lugar em que a nossa própria metodologia pode ser anulada. Para Lilian Romão, a metodologia proposta para o contratante da cobertura educomunicativa prevê um cuidado especial com o adolescente mobilizado para participar do evento como comunicador, o que evidencia para o contratante o caráter educativo da atividade que, segundo a diretora executiva, não deve ser esquecida em nome da parceria. Nesse sentido, o coordenador Rafael Silva entende que é necessário evidenciar para o contratante o caráter de uma cobertura feita na perspectiva da Educomunicação, com a participação de adolescentes e jovens. Para ele, é preciso deixar claro que a cobertura educomunicativa não se configura como uma cobertura jornalística profissional e que envolve amadorismo e, por vezes, falta de qualidade técnica nos conteúdos produzidos, o que ele chama de “linguagem diferenciada”: Quando dizemos que um produto tem linguagem informativa jornalística, trazemos muito a ideia de que será produzido por um jornalista formado, que aprendeu técnicas e que o texto será coeso do começo ao fim e no qual tentaremos garantir os dois lados. Na cobertura educomunicativa isso não acontece, por mais que o jovem tenha tido uma formação ou tenha visto essas técnicas de jornalismo e redação. Não é um texto jornalístico, com começo, meio e fim. É um texto que tem alguma informação ali, mas não está estruturado no velho ou novo jornalismo. Então, a linguagem diferenciada é essa. O público que lê, que busca comunicação informativa, conteúdo jornalístico quer encontrar isso. Então, tentamos trabalhar com esse contratempo, com essas diferenciações. No entanto, é preciso destacar certa contradição na fala do coordenador quando comparada a outro trecho da entrevista. No trecho acima, Rafael afirma que é preciso deixar claro para o 93 contratante da cobertura que uma das características das produções midiáticas realizadas na perspectiva da Educomunicação, envolvendo jovens, é a falta de qualidade técnica. No entanto, anteriormente, ele afirmou que todos os conteúdos produzidos passam pela revisão e edição de um jornalista, educomunicador da equipe da Viração (ver trecho da entrevista apresentada na p. 77 deste trabalho). A contradição na fala do coordenador talvez explicite a distância entre a expectativa do contratante a respeito da cobertura educomunicativa e o seu processo em si, em que jovens inexperientes em comunicação têm dificuldade (o que é natural do ponto de vista educomunicativo) em produzir conteúdos noticiosos, levando-se em conta o preparo anterior que tiveram para produzir notícias e a natural falta de habilidades técnicas para a tarefa. Dessa forma, a intervenção de jornalistas nas produções minimiza a falta de domínio técnico dos participantes da cobertura, fazendo com que o processo amador de produção resulte em produtos de comunicação que atenda às expectativas de quem contrata a Viração para essa finalidade. Ademais, a intervenção de um jornalista também tem a ver com a garantia de inteligibilidade do conteúdo produzido, além, é claro, de fazer com que a experiência com mídias seja educativa. Em nenhuma das notícias analisadas no capítulo qa, em qualquer das linguagens midiáticas, foram identificados textos sem sentido. É possível que as produções entregues aos educomunicadores tenham, num primeiro momento, essas características levantadas pelo coordenador. No entanto, o produto final, conforme ele próprio ponderou em resposta anterior, é fruto da construção do jovem associada à edição do profissional. 6.4. Recepção de conteúdo da cobertura educomunicativa Para além da questão da qualidade técnica das produções e do que os contratantes esperam da cobertura, observamos uma falta de clareza dos gestores quanto à vocação dos conteúdos produzidos nesse contexto. Pela fala do coordenador Rafael Silva, transcrita a seguir, entende-se que um conteúdo com claro posicionamento ideológico e feito por adolescentes e jovens é, naturalmente, uma peça de comunicação capaz de mobilizar adolescentes e jovens para uma questão social: 94 Quando você produz uma notícia de cunho militante, ao mesmo tempo você está mobilizando outras pessoas para o público que você está atingindo sobre aquele assunto e está articulando política com isso. De alguma forma é um material que, ao mobilizar, vai fazer com que as pessoas retuitem, compartilhem em sua página do Facebook ou então que ela vá às ruas. Isso é participação política no mundo atual. No entanto, a pesquisa de recepção realizada com quatro jovens de São Paulo demonstra que o público pretendido pela Viração não se identifica com as notícias produzidas pelos jovens comunicadores. A partir do vídeo Entrevista com Antonio Oliveira, do Fórum do Ceará, na 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil, analisado no item anterior, três dos quatro jovens entrevistados afirmam que o conteúdo foi produzido para um público mais velho. A adolescente Gabriela Faria Villela, de 15 anos, respondeu: O que você achou do vídeo? Eu achei que é um vídeo meio sério. É um assunto muito importante, mas eu acho que ficou uma coisa meio séria. Não seriam muitas as pessoas que veriam até o final. Você acha que é um vídeo feito para um público de que idade? Acho que um pouquinho mais velho, acho que crianças não assistiriam. Acho que uns 20 ou 30 anos, para mais. Da mesma opinião, a adolescente Maria Victória Ferreira Petrólio, também de 15 anos, qualificou o vídeo como “sério”. Para ela, o conteúdo é destinado para pessoas de todas as idades. Gustavo Francatti, de 16 anos, também entende que o vídeo é feito para um público abrangente, embora com foco em um público jovem e adulto, “de 16 a 24 anos e assim por diante”, nas palavras dele. Victor Esteves de Moraes Pereira, de 18 anos, também entende que o vídeo é destinado para todos os públicos, com maior foco a “quem organiza, quem contribui com o trabalho infantil”, pessoas de aproximadamente 30 anos, segundo o jovem. O fato de todos os jovens terem entendido que o vídeo destina-se a um público abrangente, sem foco específico para a sua própria faixa etária, indica que não houve plena identificação com o formato em que a mensagem foi transmitida. Ao serem questionados sobre o que chama a atenção deles no vídeo, todos eles, com exceção a Maria Victória, que não soube responder, destacaram aspectos relacionados à fala do entrevistado. 95 Apenas Gustavo, que se disse surpreso em observar que a Conferência já está na terceira edição – o que para ele demonstra que o mundo inteiro está empenhado em erradicar o trabalho infantil – fez comentários com relação à estética do vídeo: “É uma coisa bem feita, parece não ter influência de profissionais renomados, mas de pessoas interessadas e tudo mais.” Intriga o fato de nenhum deles ter destacado que o que salta aos olhos no vídeo é o fato de haver uma adolescente de 15 anos no papel de entrevistadora. Por esse motivo, a última pergunta feita aos jovens receptores foi: que idade você acha que a entrevistadora tem? As respostas foram as seguintes: “Acho que uns 22”, “18 ou 22, por aí”, “Eu não percebi muito, mas eu acho que uns 25, mais ou menos”, “20 ou 25, no máximo”. Imagem 04. A adolescente Alanna Mangueira, de 15 anos, entrevista representante do Fórum Cearense de Erradicação do Trabalho Infantil É evidente que a idade da entrevistadora é um aspecto subjetivo. Uma adolescente pode aparentar ser mais velha ou mais nova do que realmente é. Por esse motivo, foi questionado aos jovens por que motivo atribuir essa idade a ela. Todos os jovens indicaram o estranhamento com relação ao fato de uma adolescente exercer a função de entrevistadora. A seguir, há a explicação do jovem Gustavo Francatti sobre esse estranhamento: Que idade você acha que a entrevistadora tem? 96 Boa pergunta. Acho que uns 22. Na verdade ela tem 15. Ah, que coisa! Por que você pensou que ela teria 22? Eu sou um cara muito ruim com idades, admito. Mas é difícil encontrar pessoas nessa idade que se interessem por esse assunto. A resposta do jovem receptor remete ao conceito de ethos, em Barthes (apud Maingueneau, 2013). A adolescente, no momento em que estava diante da câmera, com microfone em mãos deixava de ser adolescente e passava a ser comunicadora, saltando aos olhos de quem assiste ao vídeo a imagem convencional de repórter televisiva. É possível ainda que a adolescente entrevistadora, ao encarnar esse papel, tenha recorrido, ainda que de modo inconsciente, a referências do senso comum para “encenar” uma postura que não faz parte do seu cotidiano. Além disso, deve-se ressaltar, para a composição da cenografia do discurso (MAINGUENEAU, 2013) as roupas que a entrevistadora veste (pouco usuais para jovens da idade dela) e que lembram o figurino das repórteres das grandes redes de televisão. Dessa forma, a jovem, ao colocar-se como entrevistadora, transmite características de comunicadora, não mais sua personalidade e identidade. Dirigindo-se ao outro – ou seja, aos receptores da entrevista ou ao próprio entrevistado –, a adolescente adotou “os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume para se apresentar. (...) O orador enuncia uma informação, e ao mesmo tempo diz: eu sou isto, eu não sou aquilo” (BARTHES apud MAINGUENEAU, 2013, p. 107). A reprodução do ethos de comunicador entre adolescentes em uma cobertura educomunicativa, no entanto, é algo a ser destacado, uma vez que a ideia desse tipo de atividade é o estabelecimento de um diálogo entre adolescente e especialista adulto, sem deixar que a identidade jovem seja diminuída diante do discurso do adulto. E a maneira como a jovem Thamires Rozendo, integrante da cobertura educomunicativa, define educomunicação destaca o reforço do ethos em detrimento à expressão espontânea. Para ela, tem gente que, em um espaço que fala sobre adolescente, entende que os adolescentes não sabem nada, que a gente só quer saber de “festinha e farinha”, mas não. Com a 97 educomunicação, a gente pode se comunicar com os adultos como se a gente fosse da 33 mesma – como é que eu posso dizer? – sociedade, como se fosse de adulto para adulto. Observamos, portanto, que a jovem entende a cobertura educomunicativa como uma maneira de adolescentes interagirem com adultos, de modo que aqueles “ascendam ao patamar” destes, algo nunca antes imaginado não fosse a Educomunicação. A definição que Thamires deu à cobertura é pautada na hierarquização, em que o adulto prevalece ao jovem, ainda que este tenha o direito de interagir com aquele. Não ignoramos, obviamente, a dificuldade de qualquer adolescente de agir de modo espontâneo em uma situação como essa, por diversos fatores. A experiência nova e inesperada de produzir mídia, a falta de repertório acerca da temática do evento, a atmosfera estranha da conferência, a linguagem burocrática do adulto, entre outros aspectos, fazem com que a conduta do jovem no contexto da vivência educomunicativa não seja espontânea. Como, então, fazer com que a adolescente não anule sua personalidade diante do papel que tem a desempenhar? A resposta a essa questão talvez esteja no processo de mediação promovido pelos educomunicadores, entre as instâncias e discursos presentes no espaço e o jovem comunicador. O coordenador Rafael Silva afirma que uma das marcas da cobertura educomunicativa da Viração é o trabalho a partir da linguagem do jovem e entende que, no contexto de uma cobertura, os adolescentes não conseguem decodificar todas as informações que recebem, com reflexos no conteúdo produzido. Ele afirma: Quem não está familiarizado com uma cobertura jornalística feita por adolescentes e jovens realmente, num primeiro momento, se espanta porque acredita que vai receber um jovem capacitado, um jornalista mirim, com perguntas técnicas, mais aprofundadas. Mas, uma grande marca, inclusive, da nossa cobertura, é que a gente tenta trabalhar a linguagem do jovem. A gente tem a pauta, tenta defini-la com ele, tentando trazer um pouco do contexto do que é aquele evento e de quem ele vai tentar entrevistar. Mas sabemos que ele não consegue captar tudo isso. De alguma maneira, na cabeça dele, todos os assuntos vão se embaralhar, não vai conseguir definir cargo e não vai conseguir explicar isso para o público. Então, isso vai ficar muito livre para ele. É interessante perceber que o coordenador associa a dificuldade de assimilação das informações dos adolescentes sobre as pessoas presentes no evento com liberdade de atuação na 33 Grifo deste pesquisador. 98 elaboração dos conteúdos, entendendo que a linguagem do jovem expressa a confusão que a experiência vivenciada durante a conferência proporciona. E, de certa forma, admite que a mensagem transmitida não terá clareza, o que é evidente, pois uma vez que “todos os assuntos vão se embaralhar”, o próprio adolescente comunicador não possui entendimento da mensagem que irá transmitir. Mesmo confuso, o produto de comunicação é imprescindível em razão do acordo com o contratante. Focalizar o produto como orientador do processo educomunicativo – e não como finalidade – pode ser uma das razões pelas quais as mensagens manifestam confusão, uma vez que os adolescentes não compreendem o que precisam transmitir. Isso indica ainda um deficitário processo de mediação do educomunicador, que não decodifica as informações para uma melhor atuação dos adolescentes na cobertura. Wolton chama de incomunicação a consequência da hipervalorização da informação. A partir do autor, entende-se que a informação exige tempo para ser criada, uma vez que é resultado de um processo comunicativo, de troca e tentativa de compreensão e entendimento. Para ele, imprescindível é a lentidão, pois salvar a informação significa lutar contra a tecnologia do “ao vivo” e valorizar outro papel para os jornalistas. Implica fazer a informação reencontrar o tempo e a lentidão, os intermediários que documentam e os jornalistas, a triagem e a difusão de conhecimentos legitimados. A lentidão é o tempo dos homens; a velocidade, o tempo das tecnologias (WOLTON, 2011, p. 55). E é nesse processo lento, necessário à compreensão, que o aprendizado acerca das discussões se efetivará, dando condições ao adolescente de produzir conteúdos coesos e inteligíveis a outros adolescentes, com vistas a sensibilizá-los para a temática social noticiada. Essa é o objetivo da cobertura, na perspectiva do coordenador Rafael Silva, que acredita que os adolescentes comunicadores conseguiram transformar a linguagem técnica para o público deles, lembrando que se houve algum público atingido foi o próprio público jovem e se chegou para um adulto ou algum especialista foi para olharem e verem que os jovens estão participando. Mas o objetivo foi que eles se comunicassem com um público da mesma faixa etária da deles. 99 A partir das respostas dos jovens que participaram da pesquisa de recepção, é possível afirmar que, ao contrário do entendimento do coordenador, a linguagem técnica do adulto não foi desconstruída ou reelaborada pelos adolescentes comunicadores. A seguir, está transcrita novamente a entrevista que a adolescente Alanna Mangueira, de 15 anos, fez com Antônio de Oliveira, representante do Fórum Cearense de Erradicação do Trabalho Infantil, que foi exibida aos quatro jovens de São Paulo, com o objetivo de discutir a recepção desse conteúdo. 0” a 9” – Alanna diz: Depois de várias reuniões preparatórias até aqui, hoje é o grande dia. A III Conferência Global sobre a erradicação (sic) do Trabalho Infantil. 10” a 17” – Exibição da vinheta de abertura. 18” a 27” – Alanna diz: Estamos aqui com a Antonio de Oliveira. Ele é do Fórum. Antônio, o que o Fórum tem feito pela erradicação do trabalho infantil? 28” a 52” –Antônio de Oliveira responde: Várias ações na área de educação e assistência social, da saúde, nos conselhos, numa ação intersetorial. Nós estamos lançando agora, neste mês, a Agenda Cearense contra o Trabalho Infantil, que é uma articulação intersetorial para fortalecer as políticas públicas de atendimento às crianças e adolescentes, em especial às voltadas à prevenção e erradicação do trabalho infantil no estado. 53” a 55” – Alanna pergunta: O que você espera desse evento aqui? 56” a 1’18” –Antônio de Oliveira responde: a troca de experiências entre os países, numa conferência global é bastante importante. Aqui, as pessoas acabam conhecendo experiências de outras regiões e isso fortalece a ação, a troca de boas práticas, fortalecimento, fortalecendo as nossas ações. Nós esperamos que esta conferência possa possibilitar isto: a troca de boas práticas e fortalecimento das ações locais. 34 1’19” a 1’27” – Exibição de uma vinheta de encerramento. Os quatro jovens entrevistados demonstraram compreender em essência as respostas do entrevistado. Quando questionados sobre o tema do vídeo, todos fizeram menção ao trabalho infantil, sendo que três deles demonstraram compreensão mais específica da temática, explicitando que o vídeo não trata apenas de trabalho infantil, mas principalmente de erradicação ou diminuição do trabalho infantil. No entanto, nem todos conseguiram assimilar corretamente as respostas do especialista entrevistado. Uma das meninas entrevistadas, ao ser questionada sobre como resumiria a resposta do entrevistado, afirmou: “Ele falou que estão começando a ver uma lei para atender as crianças e os adolescentes para tentar acabar com isso, só que ele falou com umas palavras mais difíceis (risos). Mas eu acho que foi isso que ele quis falar”. A partir desse trecho, compreendemos que a jovem 34 Grifo deste pesquisador para destacar as respostas do entrevistado. 100 associou o termo “políticas públicas” a “lei”, o que não é de todo errado, mas compromete a real interpretação da fala. Nesse sentido, Charaudeau (2013) lembra a necessidade que tem o discurso midiático de tornar compreensível ao público leigo um assunto complexo. No âmbito da Educomunicação essa necessidade persiste, uma vez que o conteúdo produzido tem – ou deveria ter – caráter mobilizador, conforme apontou o coordenador da cobertura. O autor acredita que a acessibilidade da informação baseia-se na hipótese de que o grau de compreensão de um discurso está ligado à simplicidade, a clareza com a qual o discurso é construído. Todas as escolas de jornalismo e os manuais de redação insistem nesse aspecto da escritura jornalística, aconselhando evitar uma retórica considerada muito escolar ou universitária, explicações muito complexas e o uso de um vocabulário excessivamente técnico. Entretanto, essas noções causam problemas na medida em que dependem de critérios que variam em função de múltiplos parâmetros ligados ao capital social, econômico, cultural (Bourdieu) dos sujeitos a quem as mídias pretendem dirigir-se (CHARAUDEAU, 2013, p. 81). Pela falta de familiaridade com a especificidade de alguns termos envolvidos na mensagem audiovisual, um dos meninos entrevistados associou a Agenda Cearense contra o Trabalho Infantil, mencionada pelo especialista durante a entrevista à adolescente Alanna Mangueira, com um conjunto de atividades que envolveriam crianças vítimas de trabalho infantil: A moça perguntou o que eles estão fazendo para parar o trabalho infantil. Ele falou que estão fazendo alguns projetos direcionados à criança e ao adolescente, chegou a citar um calendário para que as crianças não tenham tempo de fazer esse trabalho infantil, mas que estejam disponibilizando o tempo deles para coisas mais produtivas para eles mesmos, para o crescimento próprio deles. Outro jovem entrevistado, no entanto, demonstrou ter uma compreensão mais precisa da resposta do entrevistado, embora essencial: Que eles querem terminar com o trabalho infantil, tendo relações com outros países, tendo aquela comunicação, vendo o que é correto ou não e todos com um objetivo final, que é terminar com o trabalho infantil e ter benefícios para toda a população, principalmente as crianças. A segunda menina foi a única a dizer que não se lembrava do conteúdo das respostas. O resumo das respostas do especialista feito pelos jovens que assistiram ao vídeo demonstra um 101 entendimento superficial do que o adulto entrevistado disse. Conforme indicou a jovem Gabriela, o uso de termos técnicos e distantes da realidade de adolescentes comuns, como “articulação intersetorial” e “políticas públicas” pode ter dificultado a interpretação de sua fala. Além disso, a formalidade com a qual o especialista se coloca não está presente apenas em sua fala, mas também em seu traje. O uso do terno pode ter ampliado a distância entre o locutor adulto e os interlocutores jovens. Gabriela foi perguntada ainda sobre o papel da entrevistadora: E você acha que a entrevistadora poderia contribuir nesse sentido, para o vídeo ficar mais fácil? Acho que também. Ela poderia falar mais como os adolescentes falam também ou como todo mundo fala. Porque aí o público seria um pouquinho mais novo. A resposta de Gabriela reforça a necessidade de refletir acerca do que se entende por “linguagem do jovem”, termo usado pelo coordenador Rafael Silva, durante entrevista, utilizada no contexto das coberturas promovidas pela Viração. Trata-se de um indicativo de que a linguagem da adolescente entrevistadora – verbal ou não verbal – causa estranhamento em vez de identificação em jovens receptores. É importante destacar uma resposta dada também por Gabriela, quando questionada sobre o que achou das perguntas feitas pela entrevistadora ao especialista. Ela afirmou: “Eu acho que foi o básico que ele tinha que saber. Para um vídeo de um minuto e vinte e sete acho que foi bom”, o que implícita o lugar comum ao qual se ateve a conversação e, mesmo sem compreender alguns dos termos ditos pelo adulto, durante a entrevista, Gabriela demonstra que as perguntas não foram provocativas, inusitadas. Os outros jovens, ao contrário, qualificaram as perguntas elaboradas pela entrevistadora como “objetivas”, “bem direcionadas” e “bem feitas”. Suas falas, no entanto, assim como as de Gabriela, reforçam que o tom das perguntas foi superficial, sem surpresa: “foi o que o pessoal de fora precisa saber”, “acho que ele falou certo, o que todos queriam ouvir”, “Para um vídeo de um minuto e vinte e sete acho que foi bom”. Entendemos, a partir do exposto, que os jovens receptores puderam compreender em essência a fala do adulto, embora com equívocos de interpretação, associando livremente os termos utilizados pelo especialista. Percebemos ainda, a partir do indicado pelos jovens entrevistados para 102 esta pesquisa, que a adolescente entrevistadora manifesta-se semelhantemente a uma adulta, verbal e gestualmente, o que dificulta o estabelecimento de empatia entre o público pretendido e o conteúdo midiático em si. Também é possível observar que os adultos entrevistados agiam como se falassem aos órgãos de imprensa tradicionais, e, por isso, não se preocuparam em construir um discurso dirigido ao jovem. Obviamente, não cabe à Viração resolver esse problema, apenas atestamos aqui a importância de que ambos os interlocutores (entrevistador e entrevistado) tenham compreensão do caráter dialógico da comunicação e do contexto educomunicativo da cobertura, em especial. 6.5. Análise dos vídeos Seguindo o mesmo formato adotado no material analisado na pesquisa de recepção, nas outras entrevistas em vídeo, a adolescente entrevistadora também apresenta sucintamente os entrevistados adultos e dirige a eles uma ou duas perguntas elaboradas previamente. No vídeo Entrevista com Francisco Brito, do PETI, na 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil, com duração de 1min49sec, a adolescente fala durante 11 segundos. A seguir, a reprodução simplificada dos tempos do vídeo: 35 0” a 15” – Exibição da vinheta de abertura . 16” a 24” – Alanna (Entrevistadora): Estamos aqui com Francisco Brito. Ele está representando o PETI. Francisco, o que vem a ser o PETI? 25” a 56” – Entrevistado: O PETI é o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Esse programa foi fundado desde 1996 e é uma grande ação de enfrentamento direto ao trabalho infantil. E o PETI se compõe de três elementos básicos, que são: transferência de renda para as famílias, atendimento aos adolescentes nos serviços de convivência – criança e adolescente em situação de trabalho, e atendimento à família também na rede SUS. Isso é o que se compõe enquanto PETI. 57” a 1’00” – Entrevistadora: Qual foi a sua participação, então, para que esse evento viesse a acontecer aqui? 1’01” a 1’49” – Entrevistado: Bom, a decisão do evento de acontecer no Brasil ocorreu em um processo em que o próprio Brasil se colocou, manifestou interesse em realizar este evento aqui, dada a sua experiência em erradicação do trabalho infantil. O Brasil tem uma 35 A vinheta de abertura, utilizada em todos os vídeos produzidos na conferência, apresenta velozmente, sob o ritmo de uma música eletrônica, uma sequência de fotografias de pessoas presentes na conferência posicionadas de costas para o painel oficial do evento, seguida de uma animação criada pelos jovens participantes da cobertura. Nessa animação, letras aparecem paulatinamente em um fundo branco e formam os dizeres “III Conferência Global sobre Trabalho Infantil”. Depois de surgido completamente na tela, o nome do evento se desfaz com a inserção de uma mão que captura algumas das letras que o compõe. 103 política exitosa nesse sentido, não é só o PETI, é um conjunto de ações, educação, o Bolsa Família, a própria situação econômica do país que vem melhorando. Então, um conjunto de ações que vem dentro das políticas públicas de uma forma organizada vem se traduzindo nos números e que hoje a gente já tem um certo rebaixamento do percentual do trabalho infantil no país de uma forma bastante exitosa. O vídeo Entrevista com Isa Oliveira, do FNPETI, na 3ª Conferência sobre Trabalho Infantil tem 1min22seg de duração, dos quais a adolescente fala durante 15 segundos, limitando-se a apresentar a entrevistada, fazer perguntas previamente elaboradas e agradecer pela disponibilidade de Isa: 0” a 15” – Exibição da vinheta de abertura. 16” a 24” – Alanna (Entrevistadora) diz: Estamos aqui com a Isa Oliveira. Ela faz parte do FNPETI. Isa, qual a sua participação para a realização desta conferência? 25” a 47” – Isa Oliveira (Entrevistada): Como secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, nós participamos da comissão organizadora nacional, que organizou, discutiu os temas para esta 3ª Conferência Global. O Fórum é uma instância não governamental e representou, neste espaço, a sociedade civil brasileira. 48” a 53” – Entrevistadora: Isa, você acha que é possível erradicar o trabalho infantil até 2020 e as piores formas até 2016? 54” a 1’19” – Entrevistada: Eu acho que não é só possível. É uma obrigação ética e moral do governo brasileiro e da sociedade brasileira eliminar todas as piores formas de trabalho infantil até 2016 e todas as formas até 2020. Então, não é só possível. É um dever ético, é um compromisso de todos, Estado e sociedade brasileira. 1’20” a 1’22” – Entrevistadora: A Viração agradece. Imagens do processo de produção de parte da vinheta de abertura, feita por um grupo de adolescentes, é exibida durante o vídeo, em seu início, no momento em que Alanna faz a primeira pergunta à Isa Oliveira. A voz da jovem é coberta pelas imagens de um trio de adolescentes que distribuem letras em uma mesa branca que forma o nome “III Conferência Global sobre Trabalho Infantil”, durante três segundos. Durante as respostas da entrevistada, foram inseridas outras imagens de adolescentes conversando com adultos no espaço do evento, realizando gravações externas, e também flashes da entrevista coletiva com o militante indiano Kaillash Sathyaste, reproduzida em texto por outro grupo de adolescentes e publicada na íntegra na edição nº 101 da Revista Viração. Algo a ser destacado é o tempo em que, efetivamente, a jovem tem voz nas peças de comunicação produzidas em vídeo. O vídeo em que a adolescente mais fala é em uma entrevista de 1minuto e 27 segundos, dos quais Alanna fala por 20 segundos, limitando-se a apresentar o 104 entrevistado e a realizar perguntas, o que representa pouco menos de um quarto do vídeo. O vídeo em que Alanna menos se expressa é durante a entrevista com Francisco Brito que, inclusive é o mais longa das entrevistas. A jovem apresenta o entrevistado e faz as perguntas em 11 segundos, que representa um décimo do tempo do vídeo. Nos três produtos de comunicação audiovisual mencionados até o momento, não observamos qualquer tipo de posicionamento crítico por parte da entrevistadora adolescente que se limita a fazer perguntas e a apresentar, de modo padronizado e repetitivo, seus entrevistados. No entanto, no vídeo Momentos da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil, em que a adolescente comunicadora entrevista outra adolescente, observamos uma conduta menos passiva e uma tentativa de questionamento e aprofundamento da resposta dada pela jovem entrevistada. 00” a 12” – Exibição da vinheta de abertura. 13” a 43” – Exibição de trecho do pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff, feito ao lado da Orquestra do Instituto Baccarelli. 44” a 57” – Alanna (Entrevistadora), entre cinco adolescentes da Orquestra: Estamos aqui com representantes da Orquestra Juvenil Heliópolis do Instituto Baccarelli. Qual a influência desta instituição na erradicação do trabalho infantil? 58” a 1’18” – Entrevistada: Bem, o objetivo do Instituto Baccarelli é exatamente este: tirar as crianças da rua e colocá-la no Baccarelli para ter a música, para ensinar para eles a música. Tem mães que trabalham à tarde e não querem deixar os filhos na rua sozinhos. O Baccarelli faz essa função de deixar as crianças lá e ter a música como ensino (sic). 1’19” a 1’22” – Entrevistadora: Mas isso ajuda bastante na erradicação do trabalho infantil, na sua opinião? 1’23” a 1’28” – Entrevistada: Ajuda, porque as crianças não vão ter como trabalhar se estão no Baccarelli, aprendendo música. A segunda questão feita pela entrevistadora parece querer aprofundar a resposta dada pela jovem integrante da orquestra. Em conversa pela rede social Facebook, Alanna justificou ter feito a pergunta dizendo ter se esquecido da questão que havia sido elaborada previamente à gravação da entrevista. Alanna conta que a pergunta original seria: “em sua opinião, o que o Instituto faz para ajudar as famílias dessas crianças?”. No entanto, a pergunta que fez improvisadamente demonstrou uma elaboração a partir da resposta dada anteriormente pela entrevistada, o que representa um efetivo processo comunicativo. A partir da lógica de se basear em um roteiro elaborado, a adolescente não necessariamente precisaria prestar atenção à fala do outro, mas apenas ficar atenta ao momento em que o entrevistado silencia, para verbalizar a pergunta seguinte do roteiro. 105 No âmbito da Educomunicação, o processo de produção noticiosa se caracteriza pelo diálogo, compreensão e interação entre entrevistador e entrevistado. Nessa mesma linha, encontrase a discussão que apresentamos neste trabalho baseada no princípio da contrapalavra e da dialogicidade (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2002). Ou seja, se a comunicação for efetivamente realizada entre os interlocutores, maior será a possibilidade de existir interação, processo em que ambos os envolvidos na conversação interatuem e produzam sentido por meio dos discursos, sendo sujeitos de seu discurso. Dito de outra forma, é preciso que se estabeleça efetivamente um "eu" e um "tu" para que a comunicação ou a interação verbal ocorra. Também esse processo de interação, pensado em sentido pleno, propiciaria tanto uma informação mais qualificada quanto a ocorrência de aprendizagem ativa por parte do jovem. Nesse sentido, observamos ainda o quanto a informação, mesmo presente em mídias interativas ou produzida no contexto de práticas consideradas inovadoras, pode ser associada a um tipo de educação bancária, justamente por não ser fruto do que Paulo Freire chama de dialogia, um dos pressupostos da Educomunicação. Freire diz: “A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que deveria ter ou se transforma em palavra oca, alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la”. Também Wolton (2011) ao distinguir informação de comunicação vai ao encontro do que diz Freire. Em seu entendimento, mesmo presente em contextos mais interativos, a informação ainda é uma forma autoritária de enunciar o mundo, enquanto as enunciações oriundas de processos comunicativos, frutos de entendimento, compreensão, diálogo e negociação entre atores sociais, encontram-se escassas nos dias atuais. Há um paradoxo? Sim. É a vitória da informação que revela essa dificuldade crescente da comunicação. Durante séculos, essas duas palavras foram quase equivalentes. Eram, em todo caso, companheiras de luta pela liberdade de expressão, pela emancipação política e pelos direitos do homem. Hoje, é antes de tudo a informação que se impõe, enfatizando a ideia de uma comunicação “automática”. O futuro está na problemática da comunicação, ou seja, das condições de aceitação e de negociação pelos receptores das informações oriundas de todos os lados. Esse será o desafio essencial. A informação tornou-se abundante; a comunicação, uma raridade. Produzir informações e a elas ter acesso não significa mais comunicar (WOLTON, 2011, p. 16). É desafio, portanto, também nas práticas educomunicativas que optam pela produção midiática, fazer com que o processo de construção noticiosa seja fruto da comunicação entre 106 adolescente e adulto, em um sentido mais amplo do comumente conhecido. Seja essa comunicação não apenas a aproximação e o contato entre esses atores, mas o envolvimento real, para além da hora de gravação. 6.6. O jovem comunicador e o discurso do adulto Dessa forma, pudemos observar que a dificuldade em compreender o discurso do adulto por parte dos adolescentes resulta em consequências no produto final e em sua recepção por outros jovens. O próprio coordenador da atividade reconhece a falta de habilidade dos adolescentes que atuaram como comunicadores de organizar as informações que recebem no contexto de um evento como foi a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Dessa forma, entendemos que é necessário que os educomunicadores preparem e auxilie o jovem a se posicionar diante do adulto, incentivando-o ao diálogo, o que implica em pedir informações adicionais ao especialista ou autoridade entrevistada quando esta se expressa de maneira pouco acessível ao público jovem, principal destinatário dos produtos midiáticos e dos discursos elaborados ao longo da cobertura educomunicativa. Observamos ainda, a partir de Wolton e da declaração de uma das adolescentes participantes da cobertura, que a excessiva valorização da informação e a própria composição dos discursos levam ao que o autor chama de incomunicação. De acordo com o que declarou Thailane Oliveira, de 18 anos, integrante da cobertura em questão, a dinâmica com os adolescentes comunicadores foi orientada pela produção midiática. O tempo de dedicação a essa atividade, segundo a jovem, dificultou a própria tarefa de elaboração de conteúdos noticiosos sobre o tema do evento, o trabalho infantil. Pretendemos, então, a partir de agora discutir o processo de imersão dos adolescentes na prática educomunicativa, levando em conta suas impressões sobre os discursos adultos com os quais tiveram contato nesse contexto. Dessa forma, foi realizada uma entrevista com três integrantes do grupo de adolescentes comunicadores da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. A proposta foi analisar perfis de discursos de dois adultos com os quais os jovens interagiram em momentos de entrevista coletiva, em que boa parte deles estavam presentes. Foram 107 escolhidos, portanto, três desses jovens que participaram do processo de elaboração da pauta e da conversa propriamente dita com a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello e com o militante indiano Kaillash Sathyaste. A proposta de comparação entre os discursos desses dois personagens se dá em razão das maneiras pelas quais ambos chegaram ao grupo de adolescentes e também pela diferença de lugares e modo de se expressar de cada um deles. A entrevista com a ministra Tereza Campello, durante a etapa global da Conferência, foi uma demanda do MDS 36, enquanto a entrevista com Kaillash Sathyaste se deu inicialmente pela vontade espontânea de parte do grupo de adolescentes, que acompanhou seu discurso em plenária, momento em que elogiou a presença de adolescentes naquele espaço de discussões, em saber mais sobre sua história. Indagamos a opinião dos adolescentes sobre as perguntas feitas para as duas personalidades quando foram entrevistados separadamente pelo grupo. Chama atenção a resposta dada pela jovem Thailane Oliveira, de 18 anos, quando compara os discursos dos dois entrevistados: A ministra foi mais direta, mais séria, foi uma resposta diplomática, teve uma postura mais formal nas respostas, como se fosse uma resposta já programada. Já o Kaillash foi mais para o lado sentimental. Antes das respostas ele falou o que aquilo significava para ele, que não era algo supérflulo. Ele contou as experiências que ele teve, de quando ele era pequeno, de questionar os pais quando ele ia para a escola. É algo que ele traz desde novo. Ele foi mais sentimental nas respostas dele. A jovem demonstra ter clareza com relação aos gêneros do discurso, a partir da posição social que os personagens com os quais teve contato exercem. O uso de palavras como “direta”, “diplomática” e “formal” para se referir à ministra indicam a posição de autoridade e o discurso racional proferido por Tereza Campello. Com relação a Kaillash, no entanto, Thailane utiliza termos como “sentimental”, “não era algo supérfulo” e “experiência”, compreendendo que o militante indiano, mais do que dominar o tema do trabalho infantil, possui uma relação pessoal com essa temática, o que promoveu uma maior empatia entre ele e o grupo, de acordo com os três jovens entrevistados. 36 Diferentemente da etapa nacional da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, em que os adolescentes, de modo espontâneo, convidaram Tereza Campello, após a mesa de abertura, para uma entrevista. No entanto, é preciso destacar que um dos adolescentes que a entrevistaram integrou a mesa de abertura com a ministra e outras autoridades e tomou a 108 Dessa maneira, em Maingueneau, compreendemos que os gêneros utilizados não são uma questão de livre escolha do orador, mas estão diretamente associados com o papel que exercem e não necessariamente com sua personalidade individual: Os gêneros de discurso não podem ser considerados como formas (ô) que se encontram à disposição do locutor a fim de que este molde seu enunciado nessas formas. Trata-se, na realidade, de atividades sociais que, por isso mesmo, são submetidas a um critério de êxito. Os “atos de linguagem” (a promessa, a questão, a desculpa, o conselho etc) são submetidos a condições de êxito: por exemplo, para prometer alguma coisa a alguém, é preciso estar em condições de realizar o que se promete, que o destinatário esteja interessado na realização dessa promessa (MAINGUENEAU, 2013, p.72). O adolescente Daniel Mendes, de 16 anos, entende que com Kaillash houve maior liberdade de diálogo em comparação com a entrevista com Tereza Campello, para a qual, segundo ele, houve uma preparação prévia que tirou o foco do momento do diálogo: Talvez você não se lembre em detalhes, mas eu queria que você falasse um pouco sobre o que você achou das perguntas feitas aos dois entrevistados. Eu acho que as perguntas que foram feitas à ministra foram um pouco desfocadas comparadas ao que eu imaginei que seriam. Acho que com o Kaillash tivemos mais liberdade, mesmo que em outra língua, tivemos mais liberdade de conversa, respostas mais diretas. E o que você chama de “desfocadas”, com relação às respostas da ministra? Nós já tínhamos preparado algo. Nós tivemos muito mais improvisação com o Kaillash, foi algo muito mais instantâneo, impulsivo. E você acha isso positivo ou negativo? Eu acho isso positivo. As respostas do adolescente indicam a importância da espontaneidade no diálogo, que possibilita uma real interação entre interlocutores. A despeito disso, inclusive, os três jovens entrevistados afirmaram que o grupo interagiu melhor com Kaillash do que com a ministra Tereza Campello. Isso porque, no entendimento de Daniel, “ele pediu para que todos nós sentássemos no chão com ele, em roda, para que estivéssemos no mesmo nível. Isso deixou todo mundo mais confortável. E todas as respostas eram firmes, claras e diretas”. A jovem Thailane Oliveira, de 18 palavra, tendo, portanto, o mesmo direito de se manifestar que os adultos, o que facilitou a aproximação entre jovens e 109 anos, tem opinião semelhante: “Eu achei que foi com o Kaillash, ele foi mais cuidadoso, mais articulado com os jovens. A Tereza foi mais meticulosa. E com o Kaillash, fomos mais descontraídos, começamos com piada, quebrou aquele gelo e, com ele, eu achei que foi mais fácil.”. E Thamires Rozendo afirmou: A gente falava como adolescente e ele também falava como adolescente. A gente falava uma coisa, como se fosse um problema sério e ele também falava, mas num tom que esse problema não era tão grande, porque a gente ia resolver esse problema. Eu achei muito legal e se tivesse a oportunidade, eu gostaria de entrevistá-lo novamente, mesmo eu não sabendo falar inglês. Conforme exposto no item anterior, a partir da análise da resposta da jovem Thamires sobre o que entende por cobertura educomunicativa, verificamos com este último trecho transcrito, uma mudança de interpretação. Thamires havia afirmado que na cobertura educomunicativa havia uma interação como se fosse “de adulto para adulto”. Nesse novo contexto, ao se lembrar da conversa com Kaillash, afirma que o entrevistado agiu como adolescente, e não os adolescentes tiveram que agir como adultos, de modo formal e (por que não dizer) burocrático. Talvez a empatia e espontaneidade entre o militante indiano e os jovens tenha se dado justamente pelo modo como Kaillash se colocou diante dos jovens, conforme indicaram Daniel e Thamires: sem a postura de autoridade que possui um representante do Estado e por falar sobre sua vida pessoal, sua história de engajamento e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, como aqueles com os quais dialogou durante o evento. Não havia um ethos autoritário, portanto, a distanciá-lo dos jovens, mas, ao contrário, um sujeito que se mostrava próximo, em situação de igualdade. Diferentemente da ministra, que mesmo mostrando-se disponível ao diálogo com os adolescentes, não falou de si, de sua história, mas do seu papel frente a um ministério. Nesse sentido, Martín-Barbero (2014) lembra que o diálogo é a tentativa de colocar indivíduos em um lugar em comum e que a linguagem é o meio pelo qual esse encontro torna-se possível. Para ele, ministra. 110 dialogar é arriscar uma palavra ao encontro não de uma ressonância, de um eco em si mesma, mas sim de outra palavra, da resposta de um outro. Daí que para fazer uma pergunta necessito assumir um pronome (eu) ao qual responde um outro (tu) e conformar o nós que faz possível a comunicação (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 33). Dessa maneira, compreendemos que dialogar não significa, propriamente, uma busca por consenso ou concordância, mas sim uma troca em que os sujeitos sintam-se em igualdade para oferecerem uns aos outros o seu repertório, entendimento, visão e experiências. O jovem Daniel, ao destacar a maneira como Kaillash propôs o encontro com os adolescentes demonstra que ele quis estabelecer essa condição de igualdade com os adolescentes. O “falar como adolescente” mencionado por Thamires pode estar associado não exatamente à linguagem verbal de Kaillash, mas, sobretudo, pela maneira de se colocar diante dos jovens, por sua característica acolhedora e sensibilidade em propor essa igualdade entre ele e os adolescentes, ao sugerir que sentassem todos no chão e em roda para iniciarem uma conversa. A entrevista com a ministra também foi em roda, no entanto, jovens e adultos sentaram-se em cadeiras e estipulou-se uma ordem para que os adolescentes realizassem perguntas, pois a ministra teria um tempo determinado disponível para conversar com os adolescentes, conforme informou sua assessoria aos educomunicadores. Outro ponto a ser destacado foi o fato de o idioma estrangeiro não representar barreira à interação entre Kaillash e os adolescentes comunicadores 37. Nesse sentido, a partir de MartínBarbero (2014), é possível entender que o idioma não é empecilho para a troca entre indivíduos, uma vez que o autor entende a fala como uma atitude dialógica, em que falar não é somente se servir de uma língua, mas pôr um mundo em comum, fazê-lo lugar de encontro. A linguagem é a instância em que emergem mundo e homem ao mesmo tempo. E aprender a falar é aprender a dizer o mundo, a dizê-lo com os outros, a partir da experiência de habitante da terra, uma experiência acumulada através dos séculos (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 30). Assim, Paulo Freire entende que a educação, para ser transformadora, necessita lançar mão do diálogo como forma de problematizar a realidade, afirmando que “A educação problematizadora se faz assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, 111 como estão sendo no mundo com quem e em que se acham” (FREIRE, 2011, p. 100). E essa atitude favorece a compreensão acerca do outro, de sua linguagem e experiências. E é nesse entendimento que reside a condição ideal para que o jovem elabore um discurso próprio, possibilitado pelo encontro entre o discurso do outro e sua própria realidade. Bakhtin (apud Bezerra) afirma, inclusive, que os discursos próprios carregam em si uma multiplicidade de discursos aprendidos, criados e ressignificados pelos sujeitos ao longo da vida, o que conceitua como polifonia, que prescinde convivência e interação. O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito e inacabável. Trata-se de uma mudança da posição do autor em relação às pessoas representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em individualidades (BEZERRA, 2013, p. 194). A multiplicidade de vozes que constituem o discurso próprio do indivíduo faz parte dos processos de mediação vividos ao longo da vida, da formação que o sujeito tem e que fazem sentido em sua realidade. Em outras palavras, os discursos próprios são resultado da interação efetiva do sujeito com outros discursos, tendo a realidade concreta como mediadora desse processo. Assim, Martín-Barbero entende que o sujeito apenas consegue construir o próprio discurso a partir de quando o discurso do outro faz sentido e, por isso, consegue ressignificá-lo em um discurso próprio. Aprendendo a dizer sua palavra, o homem penetrou a própria trama do processo histórico. Em vez de se submeter a uma repetição e memorização mecânica, oca, de palavras ditadas de cima e de fora, o homem aprende a “admirar” sua cultura, primeiro passo para recriá-la, para sentir-se criador. A pedagogia converte-se em práxis cultural, posto que a cultura é invenção de formas e figuras, sons e cores, que, enquanto a expressam, transformam a realidade (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 41) Parte significativa dos adolescentes que participaram da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil foram orientados a participar do evento não para produzir notícias em diferentes linguagens midiáticas, mas para participar politicamente das discussões. No total, a Viração envolveu 21 adolescentes na atividade de cobertura, dos quais 10 acompanharam os debates com a finalidade de produzir uma declaração com uma posição política dos adolescentes sobre a questão 37 A entrevista com Kaillash Sathyaste contou com a tradução simultânea de uma jornalista parceira da Viração que 112 do trabalho infantil no mundo. No entanto, mesmo participando desse grupo, os adolescentes acompanharam as entrevistas coletivas com Tereza Campello e Kaillash Sathyaste e outros momentos de produção midiática que oferecesse a eles subsídio para escrever essa declaração. É interessante notar que essa declaração é um texto com claro posicionamento crítico dos adolescentes, característica não encontrada nos conteúdos noticiosos produzidos durante a conferência. Chama a atenção, inclusive, a diferença de atuação entre os participantes desse grupo para os demais jovens, mais envolvidos na produção midiática de textos, fotografias, vídeos e podcasts. Os jovens do grupo de participação política acompanharam mais os debates com a finalidade de compreender as discussões para construir um posicionamento, evidente no primeiro trecho da Declaração dos Adolescentes Participantes da 3ª Conferência Global sobre Trabalho Infantil, reproduzido a seguir. Durante esses três dias de encontro, estivemos presentes para reforçar a ideia de que temos um papel fundamental na construção de políticas públicas para acabar com o trabalho infantil no mundo. Temos um jeito diferente do adulto de ver e sentir o mundo. Assim como o idoso. Muitas vezes, os adultos só lembram do que fizeram de ruim e feio quando eram adolescentes. Nós temos muita energia e vontade, mas ainda precisamos de adultos que nos incentivem e criem outras formas de nos incluir na formulação de políticas para nós adolescentes. Para estimular a nossa participação é necessário criar espaços para que isso venha acontecer. Muitas vezes, em nossa própria casa, somos incentivados a trabalhar desde muito cedo. E o que fazer em uma situação como essa? Quando conseguimos entender e acessar nossos direitos, também conseguimos interferir em pensamentos e condutas de nossas famílias, que embora queiram o melhor para nós, às vezes podem não estar certos o tempo todo. A declaração foi lida na íntegra por dois adolescentes integrantes do grupo de participação política em plenária, diante de autoridades do governo federal e militantes do mundo inteiro presentes na conferência. Além da leitura, os outros conteúdos produzidos foram apresentados por representantes de cada grupo que trabalhou linguagens midiáticas específicas durante a conferência. O texto da declaração demonstra posicionamento por parte de seus autores, a respeito da relevância da participação política de crianças e adolescentes nos espaços de discussão formal. A declaração apresenta ainda uma posição problematizadora dos adolescentes, quando questionam o que fazer quando incentivados a trabalhar desde cedo, uma vez que entendem possuírem direitos – deixando implícito que o trabalho infantil trata-se de uma violação aos seus direitos – e que seus participou do evento, mas não integra a equipe de educomunicadores da organização. 113 pais, muitas vezes, não comungam desse entendimento, tomando decisões contrárias ao que é correto. O texto é também crítico ao deixar entender, no segundo parágrafo, que o adulto costuma discriminar a adolescência. Nesse aspecto, observamos que o resultado da dinâmica de participação no evento desse grupo – destinado à participação política – foi a produção de uma declaração, com notável posicionamento, opinião e elaboração de propostas. Entretanto, o processo de imersão nos debates da conferência não poderiam ter resultado em outro produto, igualmente crítico e com clara posição ideológica, que não fosse um formato tradicionalmente político? Com base em Charaudeau, entendemos que sim, pois o autor afirma que um dos papeis da mídia é também comentar, de modo crítico e analítico, o que noticia. Charaudeau entende que comentar o mundo constitui uma atividade discursiva, complementar ao relato, que consiste em exercer suas faculdades de raciocínio para analisar o porquê e como dos seres que se acham no mundo e dos fatos que aí se produzem (CHARAUDEAU, 2013, p. 175). Isso está em consonância com Freire e Martín-Barbero, ao reportar o significado do comentário para em um processo educativo ou educomunicativo, definido por Freire como “criticidade”, e por Martín-Barbero por “aprender a dizer a própria palavra”. Maingueneau (2013) também chama a atenção para a relação entre discurso e suporte utilizado para expressá-lo e difundi-lo. O grupo de adolescentes que participou politicamente elaborou, como produto final uma declaração com a opinião do grupo sobre trabalho infantil e sugestões de formas de enfrentamento à questão. Já os demais adolescentes produziram notícias e entrevistas, mas de acordo com a análise feita no capítulo anterior, em apenas um podcast é possível identificar opinião e comentários críticos por parte dos adolescentes. Obviamente que o objetivo de envolver jovens em um processo direto de participação política difere do envolvimento dos outros adolescentes em produção midiática, no entanto, é possível incorporar ao processo de cobertura a elaboração de discursos críticos. Nesse sentido, Maingueneau (2013) afirma que o suporte do qual se apropria o indivíduo para expressar-se modifica o teor da mensagem. Em outras palavras, uma declaração é um produto relacionado à participação política efetiva, enquanto um texto jornalístico, ainda que crítico, continuará a ter esse caráter e não terá o mesmo significado que uma declaração. Assim, 114 não podemos dizer que, com esses diferentes mídiuns, estejamos lidando com o mesmo gênero de discurso: as modificações das condições “materiais” da comunicação política transformam radicalmente os “conteúdos” e as maneiras de dizer, a própria natureza do que se chama “discurso político” e “política” (MAINGUENEAU, 2013, p. 83). A educomunicadora Elisangela Nunes, da Viração, que acompanhou o grupo, explicou como foi a dinâmica de trabalho dos dez adolescentes envolvidos na participação política da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Segundo ela, nos primeiros dias do encontro, antes mesmo do início do evento, ela e outra educadora realizaram uma contextualização sobre trabalho infantil, com a exibição de vídeos e dados de pesquisa, sobre os quais o grupo debateu. Esse momento preparatório foi ainda de mapeamento, pelas educadoras, do quanto os adolescentes estavam inteirados da questão: As rodas de diálogo e discussão aconteceram com a participação de todos, porém, no dia de fechar a carta, não estávamos com o grupo completo. Houve muitas disputas para o fechamento da carta final, tanto por parte do governo, como por parte de algumas organizações da sociedade civil que queriam trazer suas pautas. Mas quatro jovens conseguiram acompanhar todo o processo da construção da carta até o final e até se envolveram nessas disputas. No segundo momento, começamos a levantar e discutir propostas para os pontos mais críticos levantados pelos adolescentes e pensar estratégias de participação dos adolescentes na conferência. A educomunicadora destaca momentos de “rodas de diálogo e discussão”, que envolveram todos os integrantes do grupo de participação política, a fim de que compartilhassem as compreensões individuais acerca dos debates realizados durante a conferência e, posteriormente, definirem posicionamentos com relação ao enfrentamento ao trabalho infantil. É interessante notar que a educomunicadora chama a atenção para “disputas” de interesse em torno da declaração final, em que outras instâncias sociais, presentes no evento, quiseram intervir: Chegamos à redação final nessa disputa, com as educomunicadoras tentando ao máximo que a carta tivesse a voz dos adolescentes, sendo que a sociedade civil queria incluir suas pautas e o governo, querendo modificar a “essência” do que foi construído pelos adolescentes. Mas acredito que ao final conseguimos garantir 80% das queixas e demandas levantadas pelos adolescentes naquele espaço. 115 Observamos, com a fala da Elisangela, que a declaração dos adolescentes, além de conter um posicionamento crítico, é resultado de um processo de negociação entre as educomunicadoras e alguns dos adolescentes do grupo que mais se engajaram no processo. Mas a educomunicadora afirma que o tom da carta inicialmente pensado pelos jovens do grupo de participação política teria sido ainda mais crítico não fosse a intervenção de representantes do governo. Ela entende essa intervenção como um ato de violência: Tínhamos que fechar no encontro uma carta final para que os adolescentes realizassem a leitura. O governo brasileiro queria aparecer como “bonzinho”, como aquele que dá espaço para o adolescente participar e que tem tido conquista na pauta nos últimos anos. No caso do discurso dos adolescentes, a carta teria um tom de denúncia, e reivindicação de espaço para participação. Violência também é impedir a autorrealização individual, atrasar processos, progressos de pessoas, coletivos (caso dos adolescentes) ou mantê-los estagnados (sem participação). Posso estar pegando pesado, mas sinto que isso é pratica comum de órgãos e organizações que trabalham com adolescentes e jovens. Que em vez de dar voz aos adolescentes e jovens, os catequizam para carregar suas bandeiras, às vezes até sem dialogo, discussão construção. Isso é preocupante, mas vivemos mediando isso o tempo todo na Viração. A declaração de Elisangela demonstra a dificuldade da organização em legitimar, junto ao governo, a participação do jovem. Além disso, foi possível perceber que o poder público tenta, por intermédio de uma produção juvenil, transmitir uma imagem condizente com seus próprios interesses, utilizando-se do discurso de autoria dos jovens e até impondo-lhes um discurso que interessa às autoridades e instâncias governamentais. Em outras palavras, seria como se os adolescentes autores da declaração elogiassem o governo de modo espontâneo, sendo que este interveio na reflexão de modo incisivo. Mas, de acordo com a posição de Elisangela, a Viração procura mediar para que a produção do jovem não se descaracterize em razão da prestação de serviço. No entanto, essa intervenção direta no momento da finalização não foi o único momento em que o parecer do governo foi levado em conta para a produção da declaração. A jovem Thamires Rozendo, que integrou o grupo de participação política, afirmou que a entrevista coletiva com a ministra e com o militante indiano foram momentos importantes para elucidar questões que auxiliaram na redação dessa declaração, que a jovem chama de carta, em suas respostas. A seguir, há a transcrição de um trecho da entrevista em que ela faz referência à declaração: 116 E o que você achou das perguntas que vocês fizeram para esses dois entrevistados? A gente fez o que precisava para fazer a carta. As perguntas que a gente fez para a ministra e para o indiano ajudaram bastante na elaboração da nossa carta. Mas como as perguntas ajudaram a vocês a escreverem a carta? Ajudou para as soluções para acabar com o trabalho infantil. E essas perguntas eles responderam muito bem. E isso ajudou, porque a carta precisava de várias soluções, que a gente elaborou com base nas entrevistas. Mas vocês usaram na carta soluções que eles deram nas respostas deles? Sim, algumas sim. O momento de entrevista coletiva, de acordo com a jovem, foi importante para que os adolescentes do grupo de participação política elaborassem sugestões para as autoridades presentes, que auxiliem no enfrentamento ao trabalho infantil e favoreçam a participação de crianças e adolescentes nas discussões referentes ao tema. Mas, não apenas as declarações durante as entrevistas foram importantes para a elaboração da declaração, como também o processo de mediação adotado pelas educomunicadoras responsáveis pelo grupo, que se reunia com frequência para promover a troca de aprendizados e esclarecer dúvidas quanto ao discurso dos militantes e autoridades presentes na conferência. A educomunicadora Elisangela diz que os jovens integrantes desse grupo reuniam-se com ela e sua colega de uma a duas vezes por dia para debaterem as questões levantadas durante a conferência e que cada conversa durava entre três e quatro horas. O resultado final desse processo de reflexão foi um texto com claro posicionamento crítico dos adolescentes. Apesar de haver um grupo de adolescentes orientados para a participação política, o coordenador da cobertura educomunicativa Rafael Silva entende que a comunicação, por não ser neutra, é em si um ato político e, por isso, acredita que quando adolescentes exercem o direito humano à comunicação já estão participando politicamente. Ele afirma: É participação política, primeiro porque eles se envolveram e, segundo, se eles atingiram a um público, os próprios amigos em si, talvez eles tenham mobilizado. E essa mobilização não pode ser entendida como se o jovem que assistiu fosse sair de casa para ir ao Congresso brigar. Mas essa mobilização consiste em plantar a semente, para que ele entenda que aquilo é ruim – se essa foi a mensagem do conteúdo – para que, em um próximo momento em que estiver envolvido com esse tema, consiga trazer aquilo novamente e, conforme a sua participação em outros espaços, consiga entender que seu envolvimento vai ser importante. 117 A diretora executiva Lilian Romão concorda, mas considera que participação política vai além do ato de se comunicar. Ela entende que garantir o direito humano à comunicação favorece a produção de comunicação e o posicionamento, que são atos políticos, mas é preciso considerar essa garantia como integrante da participação política, não como participação política em si. Para Lilian, promover a participação política do jovem está relacionado com várias outras coisas, entre elas a capacidade de sensibilizar quem dirige, os “fazedores” de política, e esse é um papel nosso de sensibilização. É papel nosso também indagar os espaços de participação política com os jovens, porque é claro que esses espaços têm uma construção histórica que é muito bacana, mas não podemos deixar de ter um olhar crítico para a função, por exemplo, dos conselhos e fóruns hoje em dia. O jovem que escreve, se manifesta, que faz a entrevista e sua escolha, que ajuda a editar, enfim, a produção da comunicação é um ato político. Mas também não é só isso, pois estamos falando de todo um contexto em que favorecer esses espaços, o acesso e o direito à comunicação é importante para que lá na frente ele tenha minimamente uma concepção sobre o direito humano a participar da sociedade. No entendimento de Dallari (1984), é imprescindível à participação política a tomada de consciência que, no entanto, não é um processo natural. O autor alerta para a necessidade de difundir essa “consciência”, com trabalhos educativos de sensibilização para as questões sociais. E, certamente, todo processo educomunicativo, que visa à transformação social, deve envolver métodos e mecanismos que despertem a consciência dos indivíduos nele inseridos, a partir do estímulo à reflexão problematizadora da realidade. “Assim, pois, para a efetiva participação política o primeiro passo deve ser dado no plano da consciência. Dado esse passo está aberto o caminho para a plena participação, pois o indivíduo conscientizado não fica indiferente e não desanima perante os obstáculos” (DALLARI, 1984, p. 43). Dessa forma, é preciso compreender até que ponto o envolver adolescentes em um processo de produção de conteúdos midiáticos leva-os, efetivamente, à tomada de consciência e, consequentemente, à mobilização de outros adolescentes e jovens por meio de ferramentas da comunicação. 6.7. Retomada das hipóteses 118 Considerando o exposto até este momento, retomamos as hipóteses levantadas no capítulo anterior para tecer considerações sobre cada uma delas, no sentido de auferir-lhes legitimidade ou de relativizá-las a partir das leituras possíveis dos indicativos expostos no decorrer da pesquisa. (1) A cobertura educomunicativa é uma instância da comunicação institucional do evento e, como tal, reforça o discurso oficial. Com base na fala dos gestores, observamos que há um vínculo entre a cobertura educomunicativa e a comunicação institucional do evento, em razão do caráter de prestação de serviço. Conforme a declaração do coordenador Rafael Silva, de que a Viração, enquanto realizadora da cobertura educomunicativa da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, estava “pró-governo”, indica que o posicionamento da organização era de parceria com a OIT e ministérios co-realizadores do evento. Ademais, a própria presença dos logotipos do evento, da OIT, do governo federal, da Agência Jovem de Notícias e da Viração juntos, dispostos lado a lado no rodapé do boletim impresso #SacaSó já é um indicativo de parceria e institucionalidade estabelecida. Também nos vídeos, observamos a logomarca do evento ao final da edição, no entanto, não constam as dos realizadores. Pela análise realizada dos conteúdos produzidos, observamos o caráter mais institucionalizado das produções na maior parte dos conteúdos produzidos, pois se identifica, em sua redação, uma forma de enunciação definida como “dito relatado” por Charaudeau, em que o texto limita-se a contar o que um enunciador afirmou em determinado contexto, o que, para o autor, demonstra adesão ao discurso do enunciador. Além disso, o coordenador da cobertura justifica a ausência de contraponto nas notícias ao afirmar que “o outro lado não estava ali”, no sentido de que, no espaço da conferência, os jovens não teriam contato com opiniões diversas ao pensamento predominante naquele espaço. (2) Os conteúdos produzidos no contexto de coberturas de eventos institucionais reproduzem os discursos oficiais e, no contexto das notícias produzidas, não são reelaborados, questionados ou problematizados. 119 O reforço do discurso oficial é notável nos conteúdos produzidos, especialmente em vídeo, evidenciado pelo formato de entrevista, em que o adulto responde a uma questão da jovem, sem réplica por parte da entrevistadora, o que demonstra que não se estabelece um diálogo efetivo, mas apenas respostas a questionamentos ensaiados. No entanto, observamos que esse reforço não é intencional. Ocorre em razão da dificuldade da jovem em desconstruir o discurso excessivamente técnico e burocrático do adulto. Na linguagem escrita, no entanto, observamos que o discurso do adulto é reelaborado para se constituir em uma notícia que segue o formato de dito relatado. Em outras palavras, os textos demonstram que os discursos dos adultos passaram por uma reelaboração, no entanto, não se observa posicionamento crítico com relação às falas presentes nas notícias escritas pelos jovens, conforme prevê a proposta de cobertura feita à OIT. A reprodução da fala oficial ou sua reelaboração em forma de dito relatado denota a falta de habilidade ou conhecimento dos adolescentes acerca dos termos técnicos abordados pelos adultos e sobre as instâncias governamentais e da sociedade civil que discutem a questão da erradicação do trabalho infantil. Isso condiz com a fala do próprio coordenador Rafael Silva, que destacou a dificuldade da jovem entrevistadora em apresentar o entrevistado Antonio de Oliveira, ou quando chama de “linguagem diferenciada” o tipo de construção de suas produções midiáticas dos jovens. Não se observou que a reprodução do discurso oficial não seja uma orientação dos educomunicadores ou de um acordo pré-estabelecido entre Viração e contratante, nem mesmo a tendência ideológica da Viração Educomunicação. É preciso destacar, no entanto, que o formato de entrevista utilizado nos conteúdos audiovisuais ajuda a reforçar o sentido de reprodução do discurso oficial. Com base em Charaudeau (2013) e da análise feita, entendemos que esse gênero reforça a institucionalidade do produto audiovisual, uma vez que dá notoriedade a um determinado especialista ou discurso ideológico ou institucional que manifesta, porque lhe é concedido um espaço na mídia. Outro aspecto que reforça essa tendência são as perguntas ensaiadas previamente, que limitam e, diríamos, impossibilita uma interação de fato com o adulto, criando em cerceamento quanto à possibilidade de o jovem rearticular as falas dos entrevistados em um novo discurso, o que se observa nas notícias produzidas em texto, em que seus autores utilizam da técnica do dito relatado. 120 (3) Os educomunicadores atuam mais no sentido de orientar a produção midiática, com vistas aos conteúdos a serem produzidos, do que no auxílio à interpretação e compreensão da fala do adulto, para que o jovem construa um discurso próprio por meio de linguagens midiáticas. Observamos a necessidade de um processo que facilite a compreensão dos jovens acerca das falas dos adultos. No entanto, a facilitação do educomunicador direciona-se ao exercício de práticas midiáticas e não, especificamente, à compreensão e debate acerca da fala do adulto, o que poderia favorecer o entendimento do contexto pelo adolescente e, consequentemente, a elaboração de informações de forma que o jovem comunicador sinta-se apropriado para a tarefa de ser comunicador no evento. A jovem Thailane Oliveira, participante da cobertura, demonstrou, em uma de suas declarações, a necessidade de vivenciar mais o evento para a produção de conteúdos mais profundos e qualificados. Observamos, com isso, que a metodologia aplicada pela Viração entende que a produção de mídia por parte dos jovens é, em si, uma oportunidade de interação com o adulto. No entanto, notamos que o encontro promovido entre jovem e adulto, nesse contexto, não promoveu efetivamente o diálogo, a compreensão, a troca entre sujeitos, de acordo com a concepção de Bakhtin/Volochinov (2002) e de Freire (2011). E, com base em Wolton (2011), foi possível observar que o foco na produção de informação leva ao que chama de “incomunicação”. Em outras palavras, o excesso de informação inviabiliza a reflexão acerca da infinidade de conteúdos que os sujeitos recebem cotidianamente. Semelhantemente, em um contexto de cobertura educomunicativa, conceber uma metodologia em torno da produção de mídia e não como finalidade de um processo de imersão é valorizar a urgência pela informação em detrimento da lentidão que um processo educativo/comunicativo requer. A partir do autor, portanto, é possível compreender que a informação aprofundada pode ser consequência de um processo comunicativo (de interação) entre indivíduos. A ausência de um ambiente mais dialógico, no entanto, pode ser reflexo da própria condição de prestação de serviço e da quantidade de conteúdos acordados entre Viração e contratante, uma vez que consideram a cobertura realizada por militância mais livre que a cobertura como prestação 121 de serviço. Talvez por esse motivo, os gestores da organização entendem que o papel da equipe de educomunicadores seja facilitar a produção midiática. E, uma vez que o foco esteja na produção, o educomunicador não percebe a necessidade de desconstrução do ethos de comunicador, para que o adolescente atue nessa perspectiva com a espontaneidade necessária para a mobilização de outros jovens para a temática coberta. Assim sendo, reconhece como “linguagem jovem” o amadorismo e a falta de habilidade do jovem, que mantém na mensagem de sua autoria a inabilidade de se posicionar diante da câmera e frente a um entrevistado adulto. Nesse sentido, os próprios jovens inseridos nesse processo afirmam que os educomunicadores tiveram uma conduta mais voltada ao aspecto técnico, de formatação (não formulação) de questões, além do papel de revisão e edição do conteúdo, abordado pelo coordenador. (4) Os jovens não imprimem uma identidade efetivamente jovem ao assumirem o papel de comunicadores em um evento predominantemente adulto e, dessa forma, a mobilização de outros jovens para a temática do evento coberto fica comprometida. Em razão do tipo de mediação do educomunicador, consequência do foco em produção proposto pela metodologia de construção da cobertura educomunicativa no contexto da prestação de serviço, a própria elaboração de um discurso noticioso com característica jovem fica comprometido. A pesquisa de recepção realizada com quatro jovens de São Paulo demonstrou que a linguagem técnica do adulto não foi transformada pelos jovens comunicadores. A maioria dos jovens entrevistados para a pesquisa de recepção efetuada, inclusive, não compreendeu ou entendeu a fala do adulto de modo equivocado. Observamos a dificuldade de reflexão acerca dos discursos dos adultos para a criação de um discurso próprio mais especificamente na linguagem audiovisual. Nas demais linguagens midiáticas isso não se evidencia, mesmo porque a pesquisa de recepção não foi aplicada com base nas outras linguagens. O ethos de repórter televisivo tradicional é assumido pelo adolescente e não é desconstruído durante o processo educomunicativo, o que comprometeu a identificação da entrevistadora como adolescente por seus pares, também jovens, que assistiram ao conteúdo audiovisual, atribuindo a ela 122 uma idade superior, em razão não de sua aparência física, mas da maneira como se colocou no vídeo. A fala da jovem Thamires Rozendo, reforça a assunção desse ethos, uma vez que entende a educomunicação, a partir da vivência que teve em Brasília, como uma forma de se comunicar com os adultos como “se a gente fosse da mesma – como é que eu posso dizer? – sociedade, como se fosse de adulto para adulto”. 123 7 PROPOSTA DE INTERVENÇÃO A presente pesquisa discutiu a metodologia e a realização das atividades de jovens durante a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil e observou fragilidades da cobertura educomunicativa então realizada. Tais fragilidades se manifestam na recepção dos conteúdos produzidos e no próprio paradigma considerado em sua metodologia, com ênfase na produção de conteúdos midiáticos. Dessa forma, entendemos a necessidade de revisão do modelo que centraliza na informação a vivência educomunicativa, em vez de colocá-la como finalidade de um processo comunicativo/educativo, dialógico, portanto. Com vistas à criação de espaços de diálogo no contexto da cobertura educomunicativa, propomos que a Viração estabeleça um ecossistema comunicativo mediado por frequentes momentos de encontro para troca de impressões entre os jovens sobre o evento. Esses encontros servirão para a compreensão e reelaboração coletiva dos discursos apreendidos nesses contextos. Soares (2011) ressemantiza o termo “ecossistema comunicativo”, originalmente de Jesús Martín-Barbero, para se referir à criação intencional de espaços dialógicos, horizontais e participativos em ambientes educativos, especialmente para crianças, adolescentes e jovens, conforme abordado no segundo capítulo deste trabalho. A atual metodologia de trabalho da Viração, no entanto, fundamenta o seu ecossistema comunicativo na produção noticiosa, uma maneira de aproximar adolescentes e adultos, nesse contexto. No entanto, conforme visto anteriormente, essa aproximação não garante, em todos os momentos, o diálogo e o entendimento do discurso do adulto por parte do jovem comunicador. Assim, a partir desse conceito de Soares, propomos a criação de uma metodologia focada na comunicação enquanto processo educativo, tendo a produção midiática como finalidade, como modo de registro da vivência educomunicativa e sistematização de sua compreensão da temática, possível graças à interação com os atores presentes no espaço do evento coberto e, principalmente, pela problematização dos discursos com os quais os jovens tiveram contato, a partir da mediação exercida pelos educomunicadores da organização. 124 Nesse sentido, observamos a necessidade de que os educomunicadores sejam capazes não apenas de facilitar – de modo dialógico, horizontal e democrático – a produção midiática, mas tenham ainda a sensibilidade para exercer o papel de mediadores culturais, capazes de buscar, junto ao jovem, descobrir a significação do desconhecido – do linguajar técnico e burocrático do adulto –, para que conhecedor da formalidade que regem algumas relações adultas, o jovem, sem relegar sua identidade nesses momentos, seja de fato o comunicador-mobilizador capaz de sensibilizar outros jovens, que se reconhecem nele e a partir dele descobrem o novo. É a proximidade e facilitação do educomunicador em estimular a busca conjunta por respostas, de modo espontâneo, que garantirá ao produto midiático a leveza e a clareza necessárias à mobilização de outros jovens. Entendemos que esse processo fará com que os conteúdos produzidos sejam mais críticos e/ou analíticos, fruto de compreensão e posicionamento coletivos, e que as entrevistas com especialistas e autoridades terá o caráter de conversa com o adulto, em que o jovem entrevistador, ciente do tema recém-debatido em grupo, terá condições de colocar-se enquanto sujeito questionador junto ao adulto. O caráter de “cobertura”, ancorado na perspectiva jornalística, não será desconsiderado, uma vez que a proposta continuará sendo a produção de conteúdos noticiosos que, no entanto, não mais regerá o processo. Por isso, com essa proposta, compreendemos a importância de rever a quantidade de conteúdos propostos aos contratantes da Viração, destacando profundidade dos materiais resultantes do processo, em vez do número de produtos midiáticos a serem entregues. Observamos que, durante a experiência da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, a atribuição dada à Viração de trabalhar com parte do grupo de adolescentes com vistas à participação política fez com que a organização desenvolvesse um método de trabalho voltado à sensibilização dos jovens à temática, que ocorreu não apenes previamente à conferência, mas principalmente durante o evento, uma vez que o objetivo desse grupo era se posicionar politicamente durante e também por meio de uma declaração, com evidente posicionamento político. E para atingir esse objetivo, seria necessária uma reflexão mais aprofundada na questão. A presente proposta sugere, portanto, que esse método se estenda à produção midiática. Isso porque, a metodologia sugerida entende a necessidade de que a experiência do evento não seja condicionada ou limitada pela proposta da cobertura educomunicativa, mas que a cobertura 125 aconteça na medida em que os jovens vivenciem as discussões e as problematizem junto aos educomunicadores e colegas. Isso é diferente de estar presente em espaços para produzir uma reportagem, como fazem os jornalistas. Sugerimos que o jovem vivencie a experiência de um evento e que ela se manifeste, com coerência, em conteúdos midiáticos. Imagem 05: Ilustração da diferença de concepção entre a metodologia aplicada atualmente e a proposta de intervenção Isso não significa, no entanto, que os jovens participem do evento de forma difusa e desorganizada. Sugerimos, inclusive, que a totalidade de jovens previstos para a atividade se organize em subgrupos de trabalho, para que possam, ao final de cada processo de discussão coletiva, produzir uma peça sempre em uma mídia específica ou então, após cada discussão, produzir um conteúdo em uma linguagem diferente. Os subgrupos de discussão devem vivenciar coletivamente o evento, participar dos mesmos debates, realizar anotações, registrar impressões – seja em áudio, vídeo, texto ou fotografia – mas sem o objetivo de que esse registro seja um conteúdo noticioso final, mas apenas uma maneira de apreender suas impressões do evento para o momento de discussão e compartilhamento. 126 A depender do evento, os subgrupos podem ainda organizar seus integrantes em duplas ou trios para acompanharem momentos simultâneos do evento e que, em reunião conjunta com os demais jovens do subgrupo, todos possam compartilhar o que compreenderam com os demais. A ideia é que esses momentos de encontro para reflexão sobre o que vivenciaram não se limitem apenas à troca de ideais, mas também à sistematização coletiva dos aprendizados, gerando, consequentemente, conteúdos. O resultado da discussão em grupo pode resultar em um ou mais produtos de comunicação, a depender da real assimilação dos jovens, da troca e do tipo de mediação adotada pelo educomunicador. Os educomunicadores devem, portanto, orientá-los ao registro e, quando possível, acompanhar os subgrupos nesses momentos para que, quando em discussão, entendam a origem do enunciado dos jovens em roda – expresse ele dúvida, aceitação, concordância, discordância ou estranhamento com relação ao discurso do adulto. Nos momentos de conversa, o educomunicador pode fazer uso de flipchart, por exemplo, para sistematizar a discussão, anotando palavras-chaves e frases do grupo de jovens a fim de que, ao final da discussão, consigam sintetizar os principais conceitos e aspectos trazidos para que todo o grupo possa visualizá-los. Entendemos que essa ação de sistemaização facilita o encontro de uma abordagem para a produção midiática, seja ela em texto, vídeo, podcast ou fotografia, com base no aprendizado. Propomos ainda, sempre que possível, que os educomunicadores tenham uma atenção especial na abordagem e esclarecimento dos adultos entrevistados quanto ao caráter da cobertura educomunicativa. A simples explicação da atividade pode fazer com que o especialista ou autoridade torne seu discurso e sua postura mais acessível ao jovem. O que propomos enquanto intervenção é, portanto, um processo sem a urgência que uma cobertura tradicional jornalística, que fragiliza sua perspectiva educomunicativa, garantindo ao processo o tempo necessário à reflexão, sendo, em alguma medida, adaptável aos diferentes contextos em que jovens orientados por educomunicadores da Viração estarão inseridos, nem que isso resulte em uma escolha consciente da organização em parceria com a contratante ou realizadora do evento coberto e, se possível, com os jovens, em não assumir a cobertura de todos os espaços de um evento. 127 CONSIDERAÇÕES FINAIS O ingresso na especialização em Educomunicação: Comunicação, Mídias e Educação, da ECA/USP representou um sonho realizado e uma valiosa oportunidade para este pesquisador de respaldar suas práticas educomunicativas enquanto profissional da ONG Viração Educomunicação. O interesse em atuar na interface comunicação/educação, perseguida desde a adolescência, se engrandecia conforme observávamos – ainda sem compreender – o entusiasmo dos jovens em participar das ações promovidas pela Viração e que tivemos a satisfação de acompanhar. Durante o curso, os conceitos e teorias estudadas vieram ao encontro não apenas de uma expectativa profissional de compreender a Educomunicação como fenômeno, mas, sobretudo, de nosso sonho particular de uma comunicação educativa e transformadora. Foi gratificante observar com fascínio que esse ele não se limita aos devaneios de jornalista recém-formado, mas já está bem estruturado em teses de autores que hoje respeitamos, admiramos profundamente e nos quais buscamos fundamentar nossa visão sobre esse fascinante e promissor paradigma. A Educomunicação propõe uma mudança de valores, sobretudo nas relações sociais, procurando, ao menos, torná-las mais horizontais, o que favorece a liberdade dos indivíduos de se expressar, colocando-se, efetivamente, como sujeitos partícipes. Nessa perspectiva, a Viração propõe uma metodologia inovadora, pois ao envolver os jovens no processo de produção e vivência midiática, procura garantir a eles o direito humano à comunicação e à participação cidadã. Essa metodologia tem promovido a transformação social, pois descortina ao jovem um novo mundo de possibilidades, adaptável às suas realidades, que envolvem a expressão, o uso da linguagem jornalística e a mobilização social por meio de simples e acessíveis meios de comunicação. No entanto, para que seu caráter seja ainda mais transformador, é preciso atentar para algumas fragilidades que esta pesquisa conseguiu identificar por meio da análise dos conteúdos produzidos em uma cobertura promovida pela organização e também pelas entrevistas concedidas tanto de atores envolvidos em seu processo de concepção (gestores) e execução (jovens comunicadores), como de jovens na faixa etária à qual se destinam os produtos comunicacionais realizados nesse contexto (jovens receptores). 128 Observamos que a metodologia da cobertura educomunicativa, por centrar na produção de informação o processo educomunicativo, baseia-se em uma concepção superada de comunicação, hoje entendida mais como relação e diálogo do que como produção de informação, cujo excessivo foco, conforme visto em Wolton, leva à incomunicação. Entendemos, dessa forma, que o problema metodológico não incide, de fato, na prestação de serviço, mas na metodologia adotada. O que pode fragilizar ainda mais o processo é a pressão pelos conteúdos, que não existe em uma cobertura por militância. A consequência da incomunicação pôde ser identificada pela pesquisa de recepção dos conteúdos realizados no processo da cobertura educomunicava, uma vez que os jovens receptores demonstraram não se identificarem com o seu formato, além da dificuldade em compreender a mensagem, em que o discurso do adulto não foi reelaborada pelo jovem comunicador, em razão da ausência de interação efetiva entre ele e o especialista entrevistado, outro aspecto da incomunicação. Isso, no entanto, não invalida a proposta específica da organização em aproximar o jovem do processo de produção midiática. O que endossamos, por outro lado, é que a produção de notícias em linguagens midiáticas permeie a vivência do jovem no evento, mediada pelos educomunicadores. Dessa forma, ainda que em um contexto dialógico e horizontal que a metodologia procura estabelecer entre educomunicadores e jovens, no contexto das coberturas educomunicativas, o educomunicador deve transcender o papel tecnicista de facilitador de um processo de produção midiática, criando mecanismos de diálogo com os jovens com vistas à compreensão coletiva do contexto em que a cobertura se insere, processo sem o qual as informações produzidas terão um déficit em seu caráter mobilizador. Com a ampliação da perspectiva mediadora do educomunicador, há um ganho duplo para o processo: a compreensão dialogada do jovem a respeito da temática do evento coberto e produtos midiáticos, resultantes do processo, que transparecerão a profundidade da compreensão do adolescente. Além disso, nessa mediação estabelecida, os jovens, com a facilitação do educomunicador, tentam reelaborar a discussão formal a partir de seu próprio do grupo de jovens, o que favorece a reelaboração do discurso do adulto sem perder de vista a identidade juvenil da 129 expressão em linguagem midiática. Isso modifica a recepção do conteúdo, que tem mais condição de exercer o caráter mobilizador que espera a organização. Esse olhar que se propõe sobre a mediação a ser exercida pelo educomunicador durante o processo de cobertura não descarta seu papel de negociador junto ao órgão contratante da iniciativa, de tornar o espaço formal das conferências cobertas mais amigável à participação de adolescentes e jovens. No entanto, levando-se em conta os processos de mediação pelos quais os organizadores do evento passaram e estão condicionados, é preciso refletir se cabe, de fato, ao educomunicador incidir na estrutura burocrática nas quais se baseiam esses espaços em vez de concentrar energia em desconstruí-lo junto aos jovens participantes, apropriando-os para vivenciá-lo tal como ele é, no entendimento de que essa estrutura tem um porquê de ser e que sua transformação depende mais de novos processos de mediação com outros atores sociais do que apenas a tentativa imediata de sensibilização dos gestores. É junto ao jovem, na experiência educomunicativa de entendimento dessa estrutura e dos discursos que a permeiam, que reside uma forma de mediação que visa a sua sensibilização e criação de uma consciência voltada à transformação. Assim, quem sabe dessa forma, quando o jovem de hoje se tornar adulto gestor do futuro, tenha também a sensibilidade de repensar as engessadas estruturas do Estado, que mais intimidam que estimulam o jovem à participação política. 130 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação/educação e a construção de nova variável histórica In: CITELLI, A.; COSTA, M.C. Educomunicação. Construindo uma nova área do conhecimento. São Paulo: Paulinas, 2011, 31-41. _________________________. Palavra e discurso. São Paulo: Ática, 2007. BAKHTIN, Michail; VOLOCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002. BARROS FILHO, Clóvis. Ético na comunicação. São Paulo: Summus, 2003. BEZERRA, Paulo. Polifonia In: BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2013, 191-200. BONA, Nívea; CONTEÇOTE, Marcelo; COSTA, Laílton. Kaplún e a comunicação popular In: Anuário Unesco/ Metodista de Comunicação Regional, Ano 11, n.11, jan/dez, 2007, 169-184. 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Naquele momento tinham muitos eventos, momentos específicos, em que a chamada para uma ação de cobertura da Viração também tinha a ver com alguns objetivos também de cobertura da Viração. Os Jogos Panamericanos, eu me lembro do Fórum Mundial de Combate à Exploração e Violência Sexual de Crianças e Adolescentes, que foi uma grande experiência e que conciliou um pouco disso. Então, a Viração entrou como uma parceira responsável por mobilizar e a forma de mobilizar também foi fazendo a cobertura com os jovens. Neste momento em que eu estive aqui, começaram a surgir outras demandas, que não diziam, necessariamente, respeito a eventos direcionados para jovens ou que debatiam direitos, à frente do evento em si. Então, foi um momento em que outras iniciativas e organizações começaram a nos procurar por causa da experiência de cobertura jovem. Eu me lembro, por exemplo, da cobertura do evento do SESC, que foi um momento, inclusive, em que o pessoal disse que era um evento totalmente voltado para adultos e a Viração foi convidada para fazer a cobertura pela característica de envolver jovens e conseguir fazer a cobertura com outra dinâmica. E para você, o que é uma cobertura educomunicativa? Aí eu acho que vou misturar vivência com concepções. Acho que a cobertura educomunicativa está relacionada a um processo de mobilização e diálogo, de vivência específica, naquele momento pontual, sobre o tema que se debate e de comunicação. Hoje em dia, isso é muito facilitado porque as técnicas de comunicação não são mais mito. Antigamente, pegar uma câmera, fazer uma gravação em áudio parecia um mito, algo totalmente distante. Então, você já tem uma interatividade maior, uma coisa mais próxima. E quando você fala da cobertura educomunicativa, ela traz um pouco disso, de vivenciar as técnicas dentro de um processo que vai possibilitar ao jovem conviver e produzir em grupo, pensar e vivenciar o evento de outra forma, colocando-o em um papel de ação dentro desse evento. Em algum momento, houve algum tipo de receio por parte da Viração em adotar esse modelo de cobertura? É um modelo que foi se construindo ao longo do tempo. Da experiência que eu tenho junto à Viração, por exemplo, no Fórum Social, foi uma experimentação. A ideia de chegar em um evento, reunir jovens que estavam lá e fazer uma cobertura, desbravou um outro espaço, um outro lugar. E a Viração tem um ganho quando não coloca muito empecilho ou medo de experimentar determinadas ferramentas. Se analisamos isso como uma história, podemos pensar que temos uma habilidade técnica, um conhecimento de lidar com situações como essas, planejando, medindo proporções, conseguindo encarar eventos internacionais e também conseguindo encarar eventos locais, de poucas horas. Acho que, por exemplo, hoje, a gente não precisa lidar com tanta experimentação mais. Hoje a gente já consegue, em uma cobertura, desenvolver vários produtos com qualidade e 135 com uma capacidade de lidar com a produção disso. Mas não é só isso. Também tem a capacidade dos educomunicadores de lidarem com isso e com os jovens, de não intimidá-los e não se perderem no meio do processo, trazendo uma característica muito mais próxima, mas vivencial com o adolescente e com o jovem que está no evento. Existem diferenças entre uma cobertura educomunicativa feita por militância e uma cobertura educomunicativa feita sob de prestação de serviço? Se existem, quais seriam elas? Na prestação de serviço, há a elaboração de um projeto. Então, há objetivos muito específicos, produtos a produzir, um processo metodológico a cumprir, prazos, está estabelecido um planejamento, execução e, após, avaliação e relatório. Acaba sendo bem diferente, porque quando você faz isso por militância, você tem mais capacidade para lidar com dinâmicas outras que podem não estar previstas. É uma coisa mais livre, que você vai construindo, vai negociando com os jovens. Geralmente, na prestação de serviço, você tem números de jovens que vão participar, lugares em que eles vão ficar, há toda uma dinâmica pensada anteriormente, planejada e que envolve, inclusive, custos, que você tem outra responsabilidade, não apenas de vivência e formativa. E tem a parte, de fato, de envolver esses jovens na produção dos materiais. Há um diferencial bem grande. Então, eu poderia afirmar que uma cobertura feita sob prestação de serviço tem mais limitações do que uma cobertura feita por militância? Ela tem itens pré-estabelecidos. Se, por exemplo, é um tema que está muito próximo do processo de formação do jovem, a Viração, institucionalmente, também tenta dar conta de uma demanda de produção de comunicação. Há eventos em que estão os jovens, mas também a equipe que, em parte, fica responsável por produzir alguns conteúdos, porque existe uma meta relacionada ao conteúdo ou tema debatido no evento. Então, eu acho que há diferenças de um lugar pré-estabelecido, o que você vai fazer naquele espaço, o que pode ser completamente planejado pela organização ou a partir do que os jovens pretendem fazer de comunicação. No caso da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, os jovens que participaram da cobertura não são jovens que participam dos processos de formação da Viração. Você acha que haveria diferença no processo e nos conteúdos produzidos se a cobertura fosse realizada por adolescentes e jovens que já tivessem envolvimento anterior com comunicação? Eu acho que sim, seria uma diferença natural do processo formativo mesmo. Mas sendo uma prestação de serviço, ela é pensada para lidar com esse jovem que vai participar do evento. A Educomunicação foi o método, a estratégia apresentada pela Viração, mas poderiam haver outros, como a arte-educação. No nosso caso, a proposta foi produzir comunicação e vivenciar a comunicação dentro de uma realidade. Eles, não necessariamente vão para lá pensando em produzir comunicação, mas esse é o lugar específico da organização, de ter habilidade para lidar com o heterogêneo, mas é esse grupo que vai fazer com que o trabalho gere resultados. Se você vai com um grupo livre para fazer cobertura, você não tem esse compromisso de atender, especificamente, os jovens que vão lá. Então, nesse caso, a participação deles é livre. Mas, com esses adolescentes, a característica é outra. O educador é um educomunicador, um facilitador que tem o papel de orientar, dialogar, facilitar o processo, vivenciando o evento a partir do jovem, não pela organização ou por 136 ele mesmo. A característica da prestação de serviço dá outra conotação, outro tempo e outra forma de olhar para esses momentos. E por ser uma prestação de serviço, a intenção da cobertura é ser uma instância da comunicação institucional do evento? Geralmente, as pessoas vinculam, inevitavelmente. Quem está contratando para fazer a cobertura do evento não vai querer que alguém vá lá e detone, embora isso não fique estabelecido. Quando acontece alguma coisa muito específica, isso fica estabelecido no objetivo, por exemplo, fazer assessoria ou cobertura institucional do evento e, quando isso é um objetivo, o parceiro se manifesta. Se a gente não concordar nós dizemos que não poderemos prestar o serviço. Mas a maior parte das vezes, a gente dialoga, porque o processo educomunicativo também é um espaço de expressão, um espaço em que, muitas vezes, os jovens estão desbravando outros espaços com os gestores. Não são os jovens que têm que ter determinadas barreiras e concepções quebradas, mas os gestores precisam ter concepções desconstruídas sobre a participação do adolescente e do jovem, porque a gente também se acostumou com o fato de quem fala é o adulto, o jovem escuta e acata, se não acata, é rebelde. São concepções que a nossa sociedade tem, então, quando fazemos isso como prestação de serviço, antes, quando planejamos com o parceiro, procuramos estabelecer esses momentos, em que ficarão estabelecidos papeis com clareza, inclusive o da Educomunicação. Não temos como controlar a pergunta que o jovem vai fazer para a ministra, se ele quiser chegar na hora e fazer uma determinada pergunta, ele faz. O nosso trabalho é fazer com que ele se empodere, para chegar e fazer a pergunta de acordo com princípios éticos, morais e da ética da comunicação, além do conteúdo: como se pensa e se planeja o conteúdo, quem vamos entrevistar e, depois da vivência, vamos experimentando outras coisas, principalmente por causa da vivência do parceiro sobre aquela experiência e não necessariamente sobre a nossa vivência. Quando os parceiros sentem determinadas coisas, eles voltam e questionam, propondo coisas novas e, a partir daí, vamos mediando de acordo com o que foi estabelecido, planejado e construído. E você considera cobertura educomunicativa quando o jovem comunicador reproduz a versão do contratante ou do patrocinador do evento ou da cobertura? Eu não sei se eu consigo fazer essa relação direta, porque eu não sei se em algum momento essa relação aconteceu, do tipo “eu te contratei para você falar o que eu quero”. Eu entendo que pensam que contrataram uma organização responsável por desenvolver uma metodologia de comunicação, educação e vivência com os jovens que vai gerar determinados produtos. Não sinto que em algum momento isso aconteça de uma forma direta. Tanto que a gente acaba sendo muito provocado e de várias partes. Perguntam se podemos fazer determinadas coisas com os jovens ou controlar certas situações e a gente diz que não pode. Então, eu não sei. Existe sim uma pressão por conteúdo, mas a pressão pela entrega do conteúdo. Por exemplo, o parceiro estabelece um horário para a entrega de um jornal ou vídeo. Em alguns eventos eles pedem para ver o jornalzinho antes de ser publicado e a gente diz: “claro” (risos), mas nem sempre dá. Então, eu acho que há uma rebeldia e uma ética, porque isso é ético também com o jovem e com a metodologia, para de fato dar a liberdade para que ele fale, senão a gente cai em um lugar em que a nossa própria metodologia pode ser anulada. Por exemplo, a gente chega na escola e o nosso papel, ao trabalhar com o jovem é incentivá-lo, o tempo todo, a falar bem da escola? Que capacidade crítica a gente está desenvolvendo? Então, um pouco 137 dessa rebeldia, dessa criticidade é sempre necessária para que eles e também a gente, independentemente de determinadas coisas, tenha sempre esse posicionamento diante do mundo. Na proposta de cobertura educomunicativa da III Conferência Global, diz que “a cobertura educomunicativa é o olhar do adolescente sobre o fato e a oportunidade que possuem de exporem suas opiniões” sobre o assunto em si. No entanto, a jovem entrevistadora no vídeo que você acabou de ver se manifesta apenas fazendo perguntas. Por que isso acontece? É uma vivência da comunicação. Eles debatem a pauta antes, existe um momento que eles conversam sobre comunicação, como fazer o vídeo e eles definem quem eles vão entrevistar. Eu me lembro que durante a Conferência, inclusive, eles definiam quem ia abordar tal pessoa para chamar para fazer a entrevista. Então, foram dadas sugestões no primeiro dia sobre entrevistas possíveis, sobre quem eles gostariam de abordar, a programação foi passada ponto a ponto. Acho que, nesse caso, é a vivência da comunicação, em que não necessariamente o jovem terá o papel de falar. Mas a vivência da conferência e dos outros espaços, inclusive da Educomunicação, é também possibilitar um lugar que possibilite um olhar diante do mundo. Quando você vai fazer uma entrevista, que entenda que não é só sua fala que vale e nem sempre você está apoderado para falar de todos os assuntos, mas é preciso escutar para haver noção do contexto e para o jovem isso é uma questão que a Viração trabalha, quando sai do lugar de jovem protagonista para falar de participação de jovens, o que significa viver a sociedade com outras pessoas, mesmo sem entendê-la completamente, mas é por isso que é preciso experimentar, comunicar e vivenciar. Eles não vão para lá para falar o tempo todo nem para falar o que eles querem ou da forma como eles querem, mas para um processo de vivência, em que eles vão planejar e fazer isso em grupo. Por exemplo, se ela dissesse que gostaria de fazer tal coisa e o grupo discordasse, eu tenho certeza de que se chegaria a um meio termo, em que o grupo decidiria o que é melhor. E nesse contexto, qual seria o papel do educomunicador? De facilitar. E ele também tem coisas a oferecer e a receber desse jovem. Nesse caso específico, ele vai dominando uma área do conhecimento que é fundamental para a prática. É o educomunicador que vai falar sobre algumas ferramentas de comunicação, sobre uma pauta. Nesse momento, ele tem esse papel. É uma coisa que, inclusive, o Paulo Freire, nos processos de educação popular, tentava dizer para os educadores, fossem eles populares ou formais, que é dar espaço às vivências. Levar um conteúdo é diferente de impor um conteúdo, e o seu lugar é propiciar a troca, entendendo que não é só você que vai levar conteúdo para o outro, mas é bom não se furtar desse lugar, porque senão você só se torna um facilitador. E, em momentos específicos, o educomunicador tem o papel de ajudar o jovem com as técnicas de comunicação e facilitar para que ele saia desses momentos com uma prática de comunicação. Como vocês lidam com jovens que têm a opinião discordante daquela da instituição para a qual a Viração está na posição de prestadora de serviço? A Viração tem uma postura muito livre com relação a isso, desde o espaço interno dela, o tempo todo ouvir, não se fechar no mundo, no seu próprio mundinho ou gerar uma arrogância institucional do domínio pleno do que fazemos. A gestão da Viração tem procurado sempre colocar em prática um processo democrático, educomunicativo, de escuta, em que não são determinadas pessoas que definem o que é a organização, mas que é um conjunto de pessoas que, somadas, fazem a Viração, 138 por mais que algumas delas assumam determinados papeis e isso é, inclusive, uma busca, uma meta, para que as pessoas sejam empoderadas dos seus papeis e, dentro deles, consigam conduzir os processos de determinada forma, trazendo suas soluções e indagações. E isso é uma busca, no sentido de que a prática da organização não tenha discrepância com o que a organização quer para o mundo. Nesses momentos, os educomunicadores acabam funcionando dessa forma, tanto que eles se reúnem antes do evento ou sob demanda. Nesses grandes momentos, sempre há uma figura que faz mediações institucionais. Então, temos princípios básicos: os educomunicadores não barram conteúdos, mas procuram levar todo um processo ético e de vivência também com os próprios jovens. Isso significa que se o jovem entrevista alguém com uma opinião totalmente contrária é preciso respeitar essa opinião e agradecer a participação. Da Conferência, especificamente, creio que lidamos como momentos de tentativas de interferência. Tem muitas coisas que, com bastante ética e um pouco de ousadia, conseguimos cativar nesses espaços de uma maneira bacana. Como acontece a mediação do processo para que ele, ao mesmo tempo que atende às expectativas do contratante cumpra com o papel de estimular o senso crítico por meio da produção midiática? Acho que é na metodologia, na intervenção do educomunicador. Há um knowhow institucional, que está relacionado às pessoas que estão aqui. E essas pessoas trazem suas próprias vivências, formas de sentir a comunicação e, de certa forma, a postura que a Viração adota nos eventos tem a ver com esse coletivo, como o grupo que chega lá e o tempo todo está disposto a resolver problemas a partir do diálogo, a se posicionar politicamente diante dos nossos parceiros, tanto que durante a Conferência não foi nada fácil mediar expectativas das pessoas com relação à participação dos jovens. Cada um tinha uma expectativa e nós, da Viração, estávamos no meio, pedindo calma e lembrando que era a primeira vez que eles colocavam adolescentes para participar. E nem assim conseguimos suprir as expectativas de todos. Mas eu acredito que todas essas experiências anteriores e o fato de termos uma equipe que minimamente se prepara anteriormente para estar com o jovem, estabelecendo as dinâmicas, é uma característica que a gente possui e domina, inclusive com relação aos tempos em que vamos entregar cada um dos materiais. Outro ponto importante é a visão crítica que a própria organização tem na preparação do relatório, apontando pontos positivos e negativos e o quanto eles estavam relacionados à nossa própria atuação e ao posicionamento do parceiro. Isso não podemos perder de vista, porque é quando exercemos a nossa influência política de alertar o parceiro para cuidar de determinados processos se ele quer dar espaço ao jovem. Para você, promover o direito humano à comunicação é o mesmo que promover a participação política de adolescentes e jovens? Não, acho que são campos que se relacionam. Promover a participação política do jovem está relacionado com várias outras coisas, entre elas a capacidade de sensibilizar quem dirige, os “fazedores” de política, e esse é um papel nosso, de sensibilização. É papel nosso também indagar os espaços de participação política com os jovens, porque é claro que esses espaços têm uma construção histórica que é muito bacana, mas não podemos deixar de ter um olhar crítico para a função, por exemplo, dos conselhos e fóruns hoje em dia. São esses os únicos espaços? Queremos garantir que os jovens estejam nesses espaços ou queremos construir outros espaços para os jovens? Não estou anulando uma ou outra possibilidade, mas estou falando de possibilidades. Mas, por exemplo, os conselhos, algumas vezes, também assumem posturas de reproduzir ou defender 139 determinado governo ou partido. Então, ainda nesses espaços, vamos precisar de todo um processo de olhar crítico e vivências. Por exemplo, temos um desafio enorme com relação ao conselho de juventude para tentar favorecer que a participação no Conselho da Juventude seja cada vez menos partidária e mais cidadã de fato, porque a juventude que chega ao conselho não tem apenas uma postura partidária, mas tem uma postura política em si. Trata-se de todo um processo para incentivar a participação política. A democratização da comunicação, trabalhar a questão do acesso do jovem ao direito humano à comunicação é um ponto dentro desse universo de participação política. No nosso caso, entendemos que a produção da notícia, o fazer comunicação é, em si, um ato político. O jovem que escreve, se manifesta, que faz a entrevista e sua escolha, que ajuda a editar, enfim, a produção da comunicação é um ato político. Mas também não é só isso, pois estamos falando de todo um contexto em que favorecer esses espaços, o acesso e o direito à comunicação é importante para que lá na frente ele tenha minimamente uma concepção sobre o direito humano a participar da sociedade. Mas o direito humano à comunicação é um deles, porque o direito humano à participação envolve vários outros, que estão relacionados a direitos humanos de modo geral, ao papel do jovem na sociedade, como ele acessa e interage com a escola, ao papel dele na família. São vários outros papeis que dizem respeito ao que, no futuro, vai significar o direito humano à participação desse jovem. E o direito humano à comunicação foi o que escolhemos diretamente, porque acreditamos que se ele começa a se posicionar politicamente produzindo comunicação, isso também é uma ferramenta para que ele vá se apropriando para favorecer o direito dele à participação. Não necessariamente garantirão, mas vão favorecer. 140 ANEXO 2 - ENTREVISTA COM RAFAEL ALVES DA SILVA, COORDENADOR DA COBERTURA DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL Em que momento da história da Viração, a organização começou a fazer coberturas no caráter de prestação de serviço? Desde quando eu entrei aqui, em 2006, a Viração já fazia isso de forma bem pontual. Uma cobertura marcante que eu me lembro foi dos Jogos Panamericanos, que foi para o governo. Começamos um hotsite da Agência Jovem que concentrou todos os conteúdos desse espaço, mas eu não cheguei a participar desse evento. A minha entrada, inclusive, foi por meio de uma prestação de serviço, a Revista Escuta Soh, a partir de uma cobertura de uma rede de jovens vivendo e convivendo com HIV e Aids. Mas não foi de um evento específico? A primeira revista sim. Todo conteúdo produzido no evento deu origem à primeira revista, em 2007. Todo conteúdo trazido do evento, eu tive que transformar em texto para poder produzir um veículo. E para você, o que é uma cobertura educomunicativa? Consiste em envolver pessoas não jornalistas, mas que tenham interesse por comunicação e desenvolvimento social, que estejam atuando no campo político, na militância em diversos assuntos e que tenham interesse em contribuir de alguma forma. No nosso caso, usamos os veículos de comunicação para que essa pessoa – criança, adolescente ou adulto – possa usar esse espaço para poder colocar o que pensa e para poder entender o que pensa. A cobertura envolve algumas etapas. Antes há uma preparação prévia, quando é possível, uma formação técnica mais aprofundada sobre determinado assunto, em seguida uma etapa de preparação com informações técnicas sobre a ferramenta que ele vai utilizar, seja produção de quadrinhos ou de vídeo e a terceira etapa é a cobertura em si e, dentro dessa ação, tentar envolver um processo crítico, não estar ali por acaso, só por estar, mas questionando o que o jovem está ganhando com aquilo e o que vai conseguir levar para os espaços que frequenta. Houve algum tipo de receio na adoção desse tipo de cobertura? Em alguns momentos, por parte de alguns colaboradores, é questionado o quanto é importante estar ali e, inclusive, esse processo. Eu falei das etapas, mas nem sempre elas são garantidas por vários motivos. Às vezes por que fechamos uma parceria muito em cima e, com isso, não se garante esse processo de antecipação e aprofundamento, de formação dos adolescentes, e às vezes porque os adolescentes que participam não são os daqui, da Viração, mas são escolhidos pela organização parceira. Então, nem sempre é possível garantir essa preparação antecipada, o que gera angústia e desconforto, que acabam atropelando o processo. Mas de todas as coberturas para as quais a Viração foi convidada, acho que a Viração nunca chegou a recusar alguma, mesmo porque, das coberturas das quais participamos, os eventos sempre estão de acordo com o que acreditamos, com a nossa linha de atuação pelos direitos humanos, então nunca houve necessidade de recusar uma cobertura até agora, que eu me lembre. 141 Existem diferenças entre uma cobertura educomunicativa feita por prestação de serviço e por militância? Talvez a principal sejam os contratempos. Quando temos uma prestação de serviço pensada em longo prazo, já conseguimos nos planejar um pouco antes. Quando corriqueiramente elas acontecem em cima da hora, acontece essa diferenciação. As que a Viração se propõe a fazer, conseguimos nos preparar de forma mais adequada. Organizamos uma reunião de pauta com os jovens, observamos os que, de fato, estão interessados em cobrir determinados temas. Mas, com a parceria, não. Temos que cobrir determinados temas porque faz parte do contrato e os jovens às vezes não estão preparados para as demandas que vão surgindo, demandas que a organização traz e para as quais, muitas vezes, a Viração não os preparou antes. E como a Viração lida com esses momentos, especialmente com os jovens? Enfim, tentamos balancear. Primeiro, ninguém é obrigado a estar no evento. Abrimos o convite e vemos quais estão interessados. Eles ficam livres para ir ao evento e, chegando lá, apresentamos o que tem que fazer. Os que estão lá, não podem ficar à toa. Ao optarem por não fazer, acho que devem sair. A gente não obriga a fazer nada, mas, ao mesmo tempo, precisamos entregar conteúdo. Então, tentamos envolver os interessados, que querem continuar colaborando, tentando fazer com que aquilo seja agradável, por mais chato que seja, às vezes. Você acha que haveria diferença no processo e nos conteúdos produzidos se a cobertura fosse realizada por adolescentes e jovens que já tivessem tido envolvimento anterior com comunicação? Isso especificamente quanto à cobertura da III Conferência Global? Acho que varia de caso a caso. Todo conteúdo da Viração, antes de ir para o site da Agência Jovem de Notícias ou para a revista, passa pelas mãos de um jornalista. Tem uma segunda revisão, independente de quem produziu, tenha tido uma formação anterior ou não. O conteúdo é revisado de qualquer maneira. No grupo da conferência, certamente, se muitos já tivessem participado de grupos de comunicação antes, o conteúdo sairia bem mais aprofundado. No entanto, eu acredito que muitos dos que estavam ali não chegaram do nada, tinham um processo de participação em suas cidades, claro que, em um caso ou outro os conselhos indicaram adolescentes que haviam acabado de chegar, mas muitos já tinham um processo de militância na área de direitos de crianças e adolescentes, então tinham um pouco, embora mínima, de propriedade para aquele tema. Tivemos pouco tempo para formá-los e a forma como tentamos lidar com isso foi garantir que um educador estivesse próximo a eles em cada momento da produção de conteúdo. Aqui na formação, por exemplo, já nos sentimos mais confiantes quando um jovem vai fazer uma entrevista sem a nossa tutela, mas mesmo assim, quando entregam um conteúdo, vai para essa revisão. Então, a principal diferença é esta: lá, tínhamos que estar do lado deles, tanto é que nos dividimos em grupos – de rádio, de vídeo, de texto – com um educador para acompanhá-los. Com os jovens daqui, não. Fazemos a separação de pautas e os deixamos livres, porque sabemos que eles vão conseguir se virar, justamente por eles terem tido técnicas de entrevista, participado de coberturas anteriores, o que não elimina essa revisão final. O conteúdo em si acaba saindo com a visão deles. Para você, a intenção da cobertura educomunicativa é ser uma instância de comunicação institucional do evento? 142 Quando atrelada a uma parceria, acaba tendo um posicionamento mais claro. Estávamos lá para cobrir um evento do governo, com participação da OIT, ONU. Não tinha porque, ali, dentro do que estávamos envolvidos e dos parceiros envolvidos, sermos contra, até porque o evento em si estava de acordo com o que acreditamos. É claro que teve pautas que não podíamos trabalhar, que eram mais delicadas e os jovens que estavam participando não estavam tão apropriados do tema para poder atuar e não cabiam naquele espaço, porque o outro lado não estava presente ali, o que não impedia também – e isso não ficou impedido pelo contrato – de não fazermos [o contraponto]. Não teve um “start” da nossa equipe e dos próprios jovens de trazerem o outro lado. Ficamos realmente, nessa cobertura, pró-governo, mas estávamos envolvidos com o tema e com os parceiros que trabalhavam com o tema, a própria Viração traz essa temática. Então, a culpa em si não é só da parceria que foi firmada, mas da equipe em si, que não teve esse cuidado, esse outro olhar, mesmo porque não teve um conteúdo produzido que teve que ser evitado, com exceção à colocação de logos, mas isso foi mais uma questão de comunicação institucional do que política. Mas você acha que isso é positivo para o jovem que participa, especificamente para o jovem da cobertura da III Conferência Global? Quando o nosso posicionamento fica claro, não há problemas. Eu não me lembro de, em algum momento, termos sido contra o governo. É negativo quando isso não fica claro, quando fica nas entrelinhas. Eu não sei o quanto isso ficou para o jovem. Talvez eu não tenha me atentado para questioná-los se para eles estava claro que a Viração estava lá com o governo, porque também traz essa pauta e também porque quer pautar esses governantes para tentar reduzir os números de trabalho infantil. Isso permeia outros temas que a Viração trabalha. Acho que um momento claro é quando, na Revista, demos uma matéria contra a redução da maioridade penal, trazendo as nossas razões. Então, é positivo sim, a partir do momento que o nosso posicionamento fica claro para todos os envolvidos. É negativo quando fica nas entrelinhas, quando não está tão evidente. Você considera cobertura educomunicativa quando o jovem comunicador reproduz a versão do contratante ou do patrocinador? Não é educomunicativo, mas eu acho que não foi o que aconteceu nesse evento em si. Nós tínhamos as pautas, definidas entre educadores e jovens, mas a forma como o jovem atuou no evento foi livre. Tanto é que no vídeo que você enviou, a adolescente que fez a comunicação não sabia o nome do entrevistado e não sabia a função que ele exercia. Ela diz que ele é do fórum do Ceará. Ela deixou muito aberto, não conseguiu identificar, deixar claro. Para ela tanto faz se fosse um gestor ligado ao Ministério do Trabalho, como alguém da sociedade civil, do fórum. Ela queria saber qual a opinião dele sobre o evento e o que ele trazia para tentar erradicar o trabalho infantil. Nesse caso, não ficou tão prejudicado, creio eu. Você tocou num ponto interessante, sobre as perguntas que ela dirige. Como você avalia o teor dessas perguntas e a recepção delas por esse entrevistado? Quem não está familiarizado com uma cobertura jornalística feita por adolescentes e jovens realmente, num primeiro momento, se espanta porque acredita que vai receber um jovem capacitado, um jornalista mirim, com perguntas técnicas, mais aprofundadas. Mas, uma grande marca, inclusive, da nossa cobertura, é que a gente tenta trabalhar a linguagem do jovem. A gente tem a pauta, tenta defini-la com ele e tenta trazer um pouco do contexto do que é aquele evento e de 143 quem ele vai tentar entrevistar. Mas sabemos que ele não consegue captar tudo isso. De alguma maneira, na cabeça dele, todos os assuntos vão se embaralhar, não vai conseguir definir cargo e não vai conseguir explicar isso para o público. Então, isso vai ficar muito livre para ele. Mas a recepção, pelo que eu acompanho, até então tem sido positiva. Não me lembro de nenhum caso que tenha sido negativa, de um entrevistado que tenha parado a entrevista no meio e tenha saído ou criticado algo. Ele entende, talvez a partir da segunda ou terceira pergunta, que é de uma forma mais didática, que é uma entrevista diferenciada de uma mídia tradicional e ele consegue conduzir isso de uma forma tranquila. Às vezes não percebe e segue com uma linguagem mais técnica e isso é uma grande discussão que trazemos dos eventos de governo. Por exemplo, o governo é nosso parceiro de contratação para as coberturas, com o argumento de que a sociedade civil nos questiona e diz que deveríamos levar mais jovens para esses eventos, só que o governo não garante que aquele espaço seja apropriado para o jovem estar presente. Queremos levar o jovem, mas o espaço não é adequado para ele. Os conferencistas continuam usando linguagem técnica, o espaço é chato. Para um jovem ficar ali o dia todo, realmente, em algum momento, não vai ser interessante para ele, porque falam numa linguagem que não é interessante. Nos vídeos, ele não consegue reproduzir exatamente o que ouviu, então acabam trazendo perguntas mais abertas, mais genéricas, do cotidiano de uma pessoa comum. Esse vídeo reflete muito isso. Então, em um espaço político, de tomada de decisão, o jovem talvez não consiga se familiarizar tanto porque o espaço não é apropriado para ele. Então, queremos envolvê-lo nele, reforçando a sua participação, mas o espaço talvez não esteja tão adequado, e isso se reflete nas perguntas e na participação do entrevistado. E nesse contexto, então, qual seria o papel do educomunicador? O papel do educomunicador é tentar polarizar, equilibrar de certa forma para o jovem e, ao mesmo tempo, tentar garantir que esse espaço seja apropriado para o adolescente, e isso vem antes da cobertura. Vou trazer um evento futuro: vamos ter um evento para discutir governança na internet, em que estarão presentes ministros e representantes de outros países para discutir a internet no mundo, aspectos como internet, segurança e privacidade. Pelas características que estão sendo apresentadas, vai ser um evento formal, tal como foi a Conferência Global. Vai ter um espaço em que eles querem que o jovem participe, aliás, estão tentando viabilizar que os jovens participem e a Viração foi convidada para estar lá com os jovens também. Do jeito que está, vai ser muito chato para esses jovens estarem. E estamos tentando fazer reuniões com a CGI, uma das organizadoras, para garantir que os espaços em que os jovens estejam não sejam feitos apenas por gestores da internet, só pela galera que trabalha no Ministério da Ciência e Tecnologia, mas que nessa mesa tenham adolescentes e jovens que possam trazer uma linguagem diferenciada, uma linguagem não técnica e que consiga dialogar com quem não trabalha com internet, com um técnico em TI. Quem são esses adolescentes? São adolescentes aqui da Agência, que tiveram uma formação no ano passado e vários debates relacionados ao Marco Civil da Internet e governança da internet, então, de certa forma eles estão um pouco mais por dentro do tema, não aprofundados sobre isso, mas sabem do que se trata, e os outros são da Renajoc (Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Comunicadoras e Comunicadores), que pautam esse tema. Acreditamos também que eles têm também proximidade com o tema e empoderamento, inclusive, para falar em uma mesa. 144 Certo, mas não ficou claro o contexto da Conferência Global, em que os jovens não têm familiaridade nem com comunicação nem com o tema do evento e sua formalidade, qual seria o papel do educomunicador. Você diz com os jovens? Isso. É justamente tentar garantir essa etapa que eu disse no início, de formação e antecipação. Para a Conferência Global, houve uma etapa anterior, que foi a etapa nacional e um momento de formação antecipado, antes de o evento iniciar. Era um tempo curto, talvez 12 horas somando os dois dias. É claro que não dá para fazer uma preparação tão intensa, então coube ao educador familiarizar ao máximo esse jovem no evento. Outra solução que tentamos encontrar, talvez não tenha dado tão certo, mas conseguimos conversar com muitos jovens pelas mídias sociais. Fizemos um grupo no Facebook, depois da etapa nacional, para tentar alimentar os jovens de assuntos relacionados ao tema, publicávamos matérias que saiam, vídeos, tentamos fazer com que eles também trouxessem debates e assuntos pautados nas regiões deles. Às vezes deu certo, às vezes não, mas essa foi a forma que encontramos para que o educador atuasse de forma que o jovem se familiarizasse mais para chegar na etapa global mais empoderado. Acho que o papel principal é tentar garantir um espaço antes do evento para aproximar o jovem do assunto tratado. A proposta de cobertura educomunicativa da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil afirma que essa ação “é o olhar do adolescente sobre o fato e a oportunidade que possuem suas opiniões sobre o assunto”. No entanto, a jovem entrevistadora da linguagem audiovisual se manifesta apenas fazendo perguntas. Por que isso acontece? É um formato que utilizamos de forma que esse conteúdo fosse mais informativo e não opinativo. Não acho também que uma coisa tenha excluído a outra. A linguagem dela está ali colocada, da forma que ela se sentiu mais à vontade para produzir aquele conteúdo e na preparação da pauta e na escolha do próprio entrevistado. Creio que tenha havido uma discussão entre jovens e educador para se chegar àquilo. Então, eu não acredito em conteúdo neutro, há sempre posicionamento, seja na mídia tradicional, seja na militância, que é o caso da nossa cobertura. Então, ali fica explícito o que queríamos passar, que é a questão da erradicação do trabalho infantil, e os jovens com os quais trabalhamos fazemos com que estejam de acordo com essa bandeira, porque acreditamos que é o correto, o ideal. No conteúdo, por mais que tenha sido informativo, tem um peso da participação do jovem ali. Quanto a não ter uma opinião direta dela, acho que isso tem a ver com essa pouca familiarização do tema. Eu não estava acompanhando a equipe dessa jovem, então não sei o quanto ela estava apropriada para isso, mas na cobertura tivemos textos e áudios em que os jovens colocavam a sua opinião em outras matérias. Por exemplo, teve uma reportagem em áudio em que eles entrevistaram apenas os adolescentes para saber o que estavam achando sobre aquilo. Então, foi um momento encontrado e a forma adequada que eles acharam para os jovens opinarem. Aquele vídeo em si talvez não traga isso. Mas há outras formas e linguagens para utilizar. E nesses contextos de prestação de serviço, como a Viração lida com o jovem que tem a opinião discordante daquela da instituição para a qual presta serviço? Dentro dessa etapa de formação, em que tentamos garantir antecipadamente, discutimos direitos humanos. A Viração se baseia também em direitos humanos, então, de certa forma, não nos 145 posicionamos contra. Então, nessa formação, tentamos trazer uma discussão aberta para entender o que o jovem pensa em um primeiro momento, depois colocamos as nossas impressões e, claro, o educador, por mais que tente ser educomunicativo, tente entender todos os lados, claro que ele vai se posicionar também. Então, nessa formação específica, trabalhamos nos posicionando contra o trabalho infantil. Todas as discussões levadas eram nesse sentido e, de certa forma, posicionamos, condicionamos o jovem nisso, a pensar da mesma forma. Eu não vou entrar na questão se isso é negativo ou positivo, mas dentro do que acreditamos, creio eu que isso seja bom... Você pode voltar a pergunta? Como a Viração lida com o jovem que tem a opinião discordante da instituição para a qual presta serviço, que não é com relação à Viração, mas a postura de questionar um discurso que vem pronto, criticar e questionar esse discurso pronto, de um entrevistado, por exemplo. Como a Viração lida com isso, sendo que é prestadora de serviço? Tivemos casos de recusar projetos, coberturas específicas não. Há um convite prévio das organizações parceiras, que analisamos se é interessante ou não. Quando é uma pauta discordante, tentamos ouvir o discurso que ele traz, mas sua desconstrução não acontece naquele primeiro momento, vamos desconstruindo conforme o trabalho e conforme vamos tentando envolvê-los nos temas. Não sei trazer um caso específico de cobertura, mas algo marcante foi uma formação da Agência no ano passado, em que os educadores foram eu e Elis e o tema foi a redução da maioridade penal. Três jovens desse encontro eram completamente a favor da redução e todos os outros, de um grupo de 25 pessoas, eram contra. A discussão ficou acalorada justamente por conta desses três e eu e a Elis acabamos não percebendo que estávamos nos colocando contra eles. E isso foi trazido em um encontro de avaliação e foram muito fiéis e abertos por dizerem que, naquele dia, se sentiram desconfortáveis com a nossa postura. Eles disseram que em determinado momento pararam de dizer o que pensavam, pois se sentiram podados. E realmente não tive esse olhar e na hora eu comentei que eles deveriam ter trazido isso na hora, não tive o olhar de que eu internalizei demais no assunto, na minha opinião e na minha visão, não ficando aberto para esse outro lado. Mas isso está muito ligado a algo que eu acredito, que precisamos trabalhar. É pensar que somos humanos, temos erros e acertos e que a palavra “colaborativo”, que usamos nessas coberturas, inclui também esse momento de avaliação, que às vezes se perde, mas também cabe ao jovem, ao educando em resgatar isso. Você já falou um pouco, mas acho legal aprofundar: como acontece a mediação do processo para que ao mesmo tempo que atende às expectativas do contratante cumpra o papel de estimular o senso crítico por meio da produção midiática? Tudo isso vem antes de fechar contrato, essa mediação antecipada dos responsáveis pela organização com o parceiro para, primeiro, garantir que se entenda o que é uma cobertura educomunicativa. Já aconteceu várias vezes de explicarmos e chegar na hora do evento, o parceiro não entender, não ficar muito claro, de ainda achar que se trata de uma cobertura mais tradicional, com conteúdo bem mais denso, como faria um veículo de grande porte. Então, tentar explicar de forma antecipada o que é essa cobertura educomunicativa, que vai ser com uma linguagem diferenciada, e tentar garantir esse encontro antecipado para que os jovens possam entender o assunto que vai ser tratado, para que possamos, em um tempo mínimo, levar um repertório daquele assunto e fazer com que o jovem tenha uma leitura sobre ele. Então, essa mediação tem que ser feita 146 antecipadamente, quanto mais encontros dentro dos nossos prazos forem possíveis, melhor. Tanto antes, como durante o evento também. Então, cabe aos representantes da organização ter um educador da área de formação sempre nessas reuniões, para que isso seja garantido e esteja acontecendo também. E isso acontece com frequência? Não, nem sempre. Como eu disse, é possível citar alguns exemplos de prestação de serviço em que o parceiro disse que tinha entendido o que é essa cobertura – acho que o evento sobre HIV/Aids, que aconteceu em São Paulo em 2012, essa própria conferência global, em alguns momentos alguns dos parceiros talvez não entenderam o que é essa cobertura justamente por não terem participado dessas reuniões – então, tivemos que lidar com esses desentendimentos durante o evento, fazendo reuniões em momentos-chave e de curta duração para tentar explicar novamente o que achávamos que já estava entendido. São processos, a própria Viração aprende com o tempo. Hoje, por exemplo, eu não iria para esse fórum sobre governança na internet sem ficar claro para a CGI que conteúdo final será apresentado, inclusive para a organização que está nos contratando [para essa finalidade], a Fundação Friedrich Ebert, que já é uma parceira de longa data, mas com a qual sempre vai valer a pena repactuar o que vai ser feito. Não vai sair um conteúdo, por exemplo, que eles vão poder republicar em um site institucional deles se eles não entenderem que é um conteúdo com linguagem diferenciada, que não vai conversar com todos os públicos. O que você chama de linguagem diferenciada? Quando a gente diz que um produto tem linguagem informativa jornalística, trazemos muito a ideia de que será produzido por um jornalista formado, que aprendeu técnicas e que o texto será coeso do começo ao fim e no qual tentaremos garantir os dois lados. Na cobertura educomunicativa isso não acontece, por mais que o jovem tenha tido uma formação ou tenha visto essas técnicas de jornalismo e redação, isso nem sempre é garantido. Nós passamos, mas o jovem não consegue captar isso. Então, a linguagem diferenciada é essa. O público que lê, que busca comunicação informativa, conteúdo jornalístico quer encontra isso, talvez. E quando vai para um processo da Agência Jovem de Notícias, isso não tem lá. Às vezes há um texto em que o começo é uma poesia e é só, não tem o outro lado também. Então, tentamos trabalhar com esse contratempo, com essas diferenciações. Um conteúdo diferenciado é isso. Não é um texto jornalístico, com começo, meio e fim. É um texto que tem alguma informação ali, mas não está estruturado no velho ou novo jornalismo. Então, a que público serve a cobertura educomunicativa? Com a linguagem jovem, atende ao público jovem. Para mim, é muito claro que esse conteúdo não é para todos os públicos. Quando envolvemos algum especialista em comunicação, em jornalismo, um texto específico, conseguimos direcionar para um público maior, mas não é o que mostra a Agência Jovem de Notícias, por exemplo. Sabemos que boa parte do conteúdo feito pelo jovem e que está publicado ali não atende todo mundo. Só vai ser lido, visto, ouvido e assistido por um público que se identificou com aquela linguagem e que sabe que aquele conteúdo vai precisar de um aprofundamento se ele quiser se envolver no assunto. Por exemplo, eu acesso o material produzido durante a cobertura da Conferência Global, mas eu sei que se eu quiser algo mais aprofundado, vou ter que procurar em outro site. Ali é algo mais superficial, mais primário da visão dos jovens, do 147 qual não vai sair tão informado sobre o assunto caso não vá procurar em outros lugares também. O conteúdo diferenciado exige isto: saber que terá que procurar em outros meios de informação. Para você, promover o direito humano à comunicação é o mesmo que promover a participação política? Sim, porque eu entendo comunicação para o desenvolvimento, que é o que a gente faz, em três eixos: mobilização, participação e informação/divulgação. Quando você produz uma notícia de cunho militante, ao mesmo tempo você está mobilizando outras pessoas para o público que você está atingindo sobre aquele assunto e está articulando política com isso. De alguma forma é um material que, ao mobilizar, vai fazer com que as pessoas retuitem, compartilhem em sua página do Facebook, isso é participação política no mundo atual, ou então que ela vá às ruas. Temos muitos textos que convocam as pessoas a participar de eventos na rua, diferente de textos, de um veículo tradicional, que reporta o que já aconteceu e não convida. Os nossos têm um cunho mais político nesse sentido, de convidar o jovem a participar de algo, o que inclui espaços políticos. Não só na rua, mas também na Câmara. A comunicação para o desenvolvimento também consegue contemplar essa participação política. Mas no contexto da Conferência Global, o envolvimento dos jovens com comunicação, pode-se dizer que isso é participação política, a cobertura que eles fizeram? Eu acredito que sim, justamente porque eles conseguiram transformar a linguagem técnica – o que talvez muitos não tenham entendido também – para o público deles, lembrando que se houve algum público atingido foi o próprio público jovem e se chegou para um adulto ou algum especialista foi para olharem e verem que legal os jovens estarem participando, mas o objetivo foi que eles se comunicassem com um público da mesma faixa etária da deles. É participação, primeiro porque eles se envolveram e, segundo, se eles atingiram a um público, os próprios amigos em si, talvez eles tenham mobilizado. E essa mobilização não pode ser entendida como se o jovem que assistiu fosse sair de casa para ir ao Congresso brigar. Mas essa mobilização consiste em plantar a semente, para que ele entenda que aquilo é ruim – se essa foi a mensagem do conteúdo – para que, em um próximo momento em que estiver envolvido com esse tema, consiga trazer aquilo novamente e, conforme a sua participação em outros espaços, consiga entender que seu envolvimento vai ser importante. Em algum momento que aquilo for levantado na escola e ele conseguir associar essas questões e trazer aquilo novamente e futuramente, em algum outro espaço, ser reavivado, talvez ele consiga se interessar em participar ativamente do assunto. Então, é político a partir do momento em que mobiliza e instiga, mesmo que fique guardado dentro do jovem e que futuramente venha à tona, e consiga mobilizar outros. E o que faz com que esse conteúdo instigue e mobilize esse jovem? E se ele toma conhecimento desse assunto, por exemplo, pela Rede Globo, assistindo uma matéria sobre trabalho infantil no Jornal Hoje e tem um conteúdo sobre a mesma questão na Agência Jovem de Notícias. Em que esses conteúdos são diferentes para que possamos chamar a comunicação feita pela Agência Jovem de Notícias de participação política? No conteúdo da Rede Globo... Difícil... 148 O que eu quero dizer é que um jovem assistindo ao Jornal Hoje pode assistir uma notícia sobre trabalho infantil e compreender que aquilo é ruim e, num momento futuro, ele pode se lembrar da notícia. Se ele tomar conhecimento pela Agência Jovem de Notícias, também. Mas, em essência, o que difere esses conteúdos que faz com que a Agência Jovem seja participação política e a Rede Globo não? Ou você pode dizer que a Rede Globo é participação política também, vai de acordo com a sua análise. Quem está envolvido está atuando de certa forma política, mas quanto ao público que chega, você me pegou. É uma boa questão, Bruno. Se esse conteúdo for publicado na Agência, na Revista Viração ou outro espaço que nós utilizamos, será um conteúdo que não vai ter diferenciação dos outros. A mesma matéria que a Globo faria sobre trabalho infantil teria essa mesma absorção pelo jovem. Ela vira mobilização quando há um trabalho com esse conteúdo. Por exemplo, o Quarto Mundo só vai ser, de fato, mobilizador, quando um professor pegar o vídeo e utilizar na sala de aula e promover um debate, senão, estará postado na internet e vai ser mais um material. A Revista Viração, a mesma coisa. Se não houver o trabalho de um professor, educador ou de um grupo de jovens que propõe uma discussão a partir daquilo, ele realmente não vai ter essa mobilização. Então, talvez os conteúdos não se diferenciem, a princípio, sendo mais um conteúdo de uma mídia comum, mas se for utilizado por um educador em outro espaço e que tente promover uma discussão sobre aquilo, talvez consiga ter uma participação política maior. 149 ANEXO 3 - ENTREVISTA COM ELISANGELA NUNES CORDEIRO, EDUCOMUNICADORA DO GRUPO DE ADOLESCENTES QUE PARTICIPARAM POLITICAMENTE DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL Como era a dinâmica de trabalho do grupo de participação política? Nos primeiros dias, realizamos uma contextualização da temática com os meninos e meninas, passamos vídeos, discutimos dados de pesquisas. Foi um momento para mapear os saberes que os adolescentes já tinham sobre o assunto e alinhar o conhecimento. Também foi compartilhado por eles a situação dos seus estados, os acompanhantes, em especial que atuam na área de direito de crianças e adolescentes também contribuíram. No segundo momento, começamos a levantar e discutir propostas para os pontos mais críticos levantados pelos os adolescentes e pensar estratégicas de participação dos adolescentes na conferência. Aproximadamente quantos jovens participaram desse grupo? Dez adolescentes. Como foi o processo de elaboração da Declaração dos Adolescentes? Todos escreveram? As rodas de diálogo e discussão aconteceram com a participação de todos, porém no dia de fechar a carta, não estávamos com o grupo completo. Houve muitas disputas para o fechamento da carta final, tanto por parte do governo, como por parte de algumas organizações da sociedade civil, que queria trazer suas pautas. Mas quatro jovens conseguiram acompanhar todo o processo da construção da carta até o final e até se envolveram nessas disputas. O que você chama de "disputas"? Por que você acha que representantes da sociedade civil e governo queriam incluir suas pautas em uma declaração de autoria dos adolescentes? Tínhamos que fechar no encontro uma carta final para que os adolescentes realizassem a leitura. O governo brasileiro queria aparecer como “bonzinho”, como aquele que dá espaço para o adolescentes participar e que tem tido conquista na pautas nos últimos anos. No caso do discurso dos adolescentes, a carta teria um tom de denúncia e reivindicação de espaço para participação. Existem movimentos de organizações que trabalham com adolescentes que não têm espaço, e quando percebem a oportunidade de apresentar suas pautas, fazem de tudo e nem percebem que estão atropelando o processo e violando o direito à voz desses adolescentes. Violência também é impedir a auto-realização individual, atrasar processos e progressos de pessoas, coletivos ( caso dos adolescentes) ou mantê-los estagnados ( sem participação). Posso estar pegando pesado, mas sinto que isso é prática comum de órgãos e organizações que trabalham com adolescentes e jovens, que em vez de lhes dar voz, os catequizam para carregar suas bandeiras, às vezes até sem dialogo, discussão, construção. Isso é preocupante, mas vivemos mediando isso o tempo todo na Viração. Como se chegou à redação final da carta? Chegamos à redação final nessa disputa. As educomunicadoras tentando ao máximo que a carta tivesse a voz dos adolescentes, a sociedade civil querendo incluir suas pautas e o governo querendo modificar o tom, a “essência” do que foi construído pelos os adolescentes. Mas acredito que ao final conseguimos garantir 80% das queixas e demandas levantadas pelos adolescentes naquele espaço. 150 Com que frequência, durante a conferência, os adolescentes do grupo de participação política se reunia para as rodas de diálogo e, em média, quanto tempo durava esse processo? Uma vez ou duas ao dia. O processo durava de três a quatro horas. Por que você acha que nem todos os adolescentes não se envolveram no momento da redação? Além de participarem desse grupo, os adolescentes estavam, envolvidos em produção de textos, radio, fanzine e vídeo... E a participação desses grupos na produção de noticias foi fundamental, porque eles tinham um repertório para falar do assunto, eles discutiram muito o tema... Eles também foram os adolescentes que deram entrevistas para imprensa local. Houve uma edição final da carta? Como foi esse processo? Sim, houve uma edição, foi a parte mais estressante, em que o governo chegou querendo modificar a carta e retirar pontos apontados pelos adolescentes como problemas. 151 ANEXO 4 - ENTREVISTA COM JOVENS PARTICIPANTES DA COBERTURA DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL THAILANE OLIVEIRA, 18 ANOS, RIO DE JANEIRO (RJ) A partir do que você vivenciou em Brasília, eu gostaria que você me explicasse o que é uma cobertura educomunicativa. É juntar a informação, utilizar os jovens para que eles, através da nossa forma de comunicar, pudéssemos fazer uma cobertura jornalística com detalhes informativos. É a união dessas duas coisas. Deu para entender? Deu sim, perfeito. Eu queria saber se você se lembra da entrevista com a ministra Tereza Campello e com o Kaillash. Você se lembra deles? Sim. Talvez você não se lembre em detalhes, mas eu gostaria de saber o que você achou das perguntas que foram feitas para os dois entrevistados. Eu achei que as perguntas dos adolescentes foram muito bem elaboradas, foram diretas e eles também nos responderam de acordo com o que a gente perguntava e nós também tivemos um treinamento, uma etapa preparatória em que tivemos todo aquele cuidado para que as coisas dessem certo, para fazer a pergunta certa, porque tínhamos pouco tempo e para arrancar o máximo de informação que a gente pudesse. E a partir do que você se lembra, o que você achou das respostas que a ministra deu para as perguntas que vocês fizeram? Das perguntas que eu me lembro, ela foi bem direta. Teve a pergunta da Thamires, que foi uma das primeiras, sobre as adolescentes se prostituírem e serem aliciadas, se havia ligação com a fome. E ela falou que sim e que o governo estava fazendo campanha com caminhoneiros e postos de gasolina. Achei que ela explicou bem, exatamente o que a pergunta queria. Você está com a memória muito boa, porque nem eu me lembrava dessa. Mas com você contando, eu me lembrei. E o que você achou das respostas que o Kaillash deu às perguntas de vocês? A ministra foi mais direta, mais séria, foi uma resposta diplomática, teve uma postura mais formal nas respostas, como se fosse uma resposta já programada. Já o Kaillash foi mais para o lado sentimental. Antes das respostas ele falou o que aquilo significava para ele, que não era algo supérfulo. Ele contou as experiências que ele teve, de quando ele era pequeno, de questionar os pais quando ele ia para a escola. É algo que ele traz desde novo. Ele foi mais sentimental nas respostas dele. E de qual entrevistado você gostou mais entre o Kaillash e a Tereza? Eu gostei muito da Tereza, achei que com ela eu pude ver mais da política, porque aqui [no Rio de Janeiro] a gente tem uma visão muito fechada para o nosso Estado e quando ela falou, explicou 152 mais sobre as políticas que estão sendo aplicadas no Brasil em si, eu achei legal. Eu gostei dos dois, mas mais da Tereza, porque tem mais a ver com o nosso dia a dia. E, para você, com qual entrevistado houve mais interação? Eu achei que foi com o Kaillash, ele foi mais cuidadoso, mais articulado com os jovens. A Tereza foi mais meticulosa. E com o Kaillash, fomos mais descontraídos, começamos com piada, quebrou aquele gelo e com ele, eu achei que foi mais fácil. Mesmo sendo em inglês, né? Mesmo sendo em inglês a gente conseguia. No meu caso, eu tenho certa fluência em inglês, mas mesmo com os outros adolescentes, mesmo eles não sabendo, era possível que eles entendessem, pelos gestos deles, pela forma de dizer. E se você já tivesse tido contato com comunicação antes da cobertura, você acha que alguma coisa poderia ter sido diferente? Claro que ajudaria bastante, porque era tudo novo para a gente. No caso, e nunca havia participado de um evento desse e estar lá, eu meio que me deslumbrei naquele momento. Toda aquela responsabilidade, sabe? Acho que se eu já tivesse tido contato poderia ter sido mais proveitoso do que foi, porque eu saberia mais sobre como as coisas acontecem, o cuidado com o tempo... poderia ter aproveitado mais. Certo. E todas as perguntas feitas para os entrevistados partiram dos adolescentes? Partiram sim. A gente teve uma ajuda para elaborar, mas a maioria delas foi nossa. As pessoas deram palpites, mas as perguntas partiram de nós. Que pessoas? No caso, o pessoal da Viração deu uma ajudinha na hora de elaborar, mas uma ajuda bem básica, porque boa parte delas foi a gente que fez, a ideia. Eles nos ajudaram mais na questão da ortografia, concordância, evitar usar muita gíria. E como você acha que a sua participação poderia ser mais educomunicativa? Eu achei que foi muito boa, mas por conta da cobertura, não pudemos participar dos debates. Acho que se a gente tivesse participado mais ativamente dos debates, teríamos mais informações e perguntas. Se realmente tivéssemos participado do evento, a cobertura teria sido melhor. Sim, a gente se preocupava mais em entrevistar, em fazer os textos, fotos, vídeos. A gente via um pedacinho e desse pedacinho, a gente deduzia. THAMIRES ROZENDO, 17 ANOS, ALAGOAS Eu queria que você me dissesse o que é, para você, uma cobertura educomunicativa, com base em tudo o que você viveu em Brasília. Na base do que a gente aprendeu lá, a Educomunicação é muito importante para o nosso dia a dia. Porque o importante é a gente manter a educação com a comunicação, para a gente se expressar melhor, os adolescentes. Porque tem gente que, em um espaço que fala sobre adolescente, entende 153 que os adolescentes não sabem nada, que a gente só quer saber de festinha e farinha, mas não. Com a Educomunicação, a gente pode se comunicar com os adultos como se a gente fosse da mesma – como é que eu posso dizer? – sociedade, como se fosse de adulto para adulto. A Educomunicação fez muito bem para a gente. E você se lembra da entrevista com a ministra Tereza Campello e com o Kaillash? Sim, lembro. E o que você achou das perguntas que vocês fizeram para esses dois entrevistados? A gente fez o que precisava para fazer a carta. As perguntas que a gente fez para a ministra e para o indiano ajudaram bastante na elaboração da nossa carta. Mas como as perguntas ajudaram a vocês a escreverem a carta? Ajudou para as soluções para acabar com o trabalho infantil. E essas perguntas eles responderam muito bem. E isso ajudou, porque a carta precisava de várias soluções, que a gente elaborou com base nas entrevistas. Mas vocês usaram na carta soluções que eles deram nas respostas deles? Sim, algumas sim. E o que você achou das respostas que a ministra Tereza Campello deu às perguntas? A gente perguntou o que o MDS tem a ver com o trabalho infantil. E ela falou que o MDS é um dos principais que atuam contra o trabalho infantil, eles ajudam bastante nesse combate. Eu entendi que de 100 por cento, 90 eles estão nesse trabalho, porque, como a gente sabe, o Brasil é bem liberal, mas tem gente que não quer saber sobre o trabalho infantil. Ao contrário, o MDS é muito importante e ajudou bastante a gente. Nessa ida para Brasília, para participar da conferência, e em vários outros momentos, o MDS combinou com a gente bastante. E foi muito importante a gente fazer a entrevista com a ministra, eu achei muito interessantes as respostas dela. E as respostas que o Kaillash deu às perguntas? Apesar de estar em inglês (risos), a moça traduziu e ficou muito legal. Eu achei ótimo porque mesmo ele não estando no nosso Brasil ele viu como são as condições dos trabalhadores infantis, ele percebeu como é triste. Então, as respostas dele foram muito interessantes também. Mesmo ele não vivendo no Brasil, as respostas e ajudas que tinham para a gente foram boas. Eu adorei fazer a entrevista com a Tereza Campello e com o Kaillash também. Pessoalmente, de qual entrevistado você gostou mais? Pessoalmente? Sim. Poxa vida, os dois foram ótimos! Os dois são uns amores de pessoas, eles são envolventes, não falam tudo assim, como se fossem advogados, eles se descontraem com a gente. E a Educomunicação ajudou bastante. A gente fez educomunicação com eles, mas eles também fizeram com a gente, porque foi tudo na mesma linguagem, sabe, de adolescente mesmo. Eu gostei dos dois 154 igualmente, mas é certo que o Kaillash foi mais divertido, interagiu bastante com a gente, foi muito engraçado. Dos dois, qual deles interagiu mais com vocês? O Kaillash, com certeza. Por quê? O jeito dele de falar com a gente, de se expressar. A gente falava como adolescente e ele também falava como adolescente. A gente falava uma coisa, como se fosse um problema sério e ele também falava, mas num tom que esse problema não era tão grande, porque a gente ia resolver esse problema. Eu achei muito legal e se tivesse a oportunidade, eu gostaria de entrevistá-lo novamente, mesmo eu não sabendo falar inglês. Se você tivesse tido contato com comunicação antes dessa cobertura, você acha que a experiência poderia ter sido diferente? Eu acho que não, porque se eu tivesse antes, seria a mesma coisa. Porque eu entendi que a Educomunicação a gente tem que prestar atenção, porque faz parte do nosso dia a dia para a gente entender os outros. Acho que não mudaria nada não. Mas foi legal, muito legal participar. As perguntas que os adolescentes fizeram para os entrevistados foram pensadas só pelos adolescentes? Não, teve uma ajuda da equipe da Viração e da Educomunicação também. Os adolescentes pensaram bastante, mas eles ajudaram a formular mais a pergunta, a deixá-la mais certa. Foi um trabalho “todo mundo junto e misturado”. E uma última pergunta: como você acha que a sua participação poderia ter sido mais educomunicativa na cobertura em geral? Acho que se a gente tivesse conversado mais com alguns ministros, com o ex-presidente Lula com a presidente Dilma, acho que teria sido mais educomunicativo para a gente, seria mais interativo. Por quê? Porque a gente falou com a ministra e ela foi uma grande vitória para a gente. A gente falou com o Kaillash, que foi muito importante para a Educomunicação. Mas com a presidente, seria ainda mais integrante, porque para a presidente você tem que passar as coisas diretamente para ela. É certo que gente leu a carta, mas é melhor falar o que a gente pensa diretamente para ela, com as nossas palavras, pessoalmente, debatendo com ela. A carta ajudou sim, mas teria sido interessante se a gente tivesse falado diretamente para ela. DANIEL MENDES, 16 ANOS, FLORIANÓPOLIS (SC) Eu queria que você começasse me dizendo o que, para você, é uma cobertura educomunicativa. Na minha opinião, uma cobertura educomunicativa seria a cobertura de algum evento político ou sociopolítico feita a partir de Educomunicação. 155 E o que é Educomunicação? A Educomunicação é... Bem, na época eu tinha uma definição mais certa e fresca do que é Educomunicação. Tudo bem, mas diga a partir do que você viveu, o que vier à mente agora. A Educomunicação é uma diretriz de comunicação, feita com trabalho em equipe, uso do brainstorming, ideias coletivas, sem qualquer crítica, com a presença de adolescentes. Ótimo, excelente! Você se lembra que eu pedi para você recordar a entrevista coletiva com a ministra Tereza Campello e com o Kaillash? Sim. Talvez você não se lembre em detalhes, mas eu queria que você falasse um pouco sobre o que você achou das perguntas feitas aos dois entrevistados. Eu acho que as perguntas que foram feitas à ministra foram um pouco desfocadas comparadas ao que eu imaginei que seriam. Acho que com o Kaillash tivemos mais liberdade, mesmo que em outra língua, tivemos mais liberdade de conversa, respostas mais diretas. E o que você chama de “desfocadas”, com relação às respostas da ministra? Nós já tínhamos preparado algo. Nós tivemos muito mais improvisação com o Kaillash, foi algo muito mais instantâneo, impulsivo. E você acha isso positivo ou negativo? Eu acho isso positivo. Por quê? Porque eu sou ariano, para mim é bom impulsividade, acho que dá certo. E acho também que teve resultados melhores do que as perguntas com a ministra. E o que você achou das respostas que a ministra deu às perguntas, a forma como ela se colocou para vocês. O que você achou disso? Prefiro não responder a pergunta. Tudo bem. Então, o que você achou das respostas e da maneira como o Kaillash se colocou? Inicialmente, ele pediu para que todos nós sentássemos no chão com ele, em roda, para que estivéssemos no mesmo nível. Isso deixou todo mundo mais confortável. E todas as respostas eram firmes, claras e diretas. E você acha que isso é bacana? Sim, isso é positivo. E de qual entrevistado, então, você gostou mais? Do Kaillash, com certeza. 156 Você já respondeu, mas apenas para deixar claro, com qual entrevistado você acha que houve mais interação? Com o Kaillash. E se você tivesse tido contato com comunicação antes da cobertura, o que poderia ter sido diferente? Eu provavelmente estaria mais preparado para tudo. Você acha que não estava? Inicialmente, me faltou um pouco de foco, porque o meu foco dentro da conferência, antes, era outro e eu fui pego de surpresa com a Educomunicação. Pego de surpresa positivamente ou negativamente? Neutro. Entendi. Você esperava participar de uma forma e participou de outra? Sim. Não acho que tenha sido negativo, só foi uma maneira diferente, mas não acho que tenha sido positivo pela mudança no que eu já havia traçado, entendido como conferência. Todas as perguntas feitas para as duas entrevistas partiram dos adolescentes? Não. Como é que foi isso, então? Nós tivemos adultos que também fizeram perguntas e alguns adultos conversaram com os adolescentes e tivemos um consenso quanto às perguntas, pois queríamos uma pergunta mais resumida, mais composta. Como foi essa intervenção dos adultos? Eles direcionaram as perguntas que deveriam ser feitas ou apenas transformaram as perguntas de vocês em questões mais concisas? Os adultos indagaram tanto quanto os adolescentes, logo antes da entrevista com o Kaillash. Tivemos perguntas de adultos e de adolescentes que foram “digeridas”, digamos assim, pelos adolescentes e transformadas em outras perguntas. O que você quis dizer com “digeridas”? Uma reciclagem. Nós temos uma pergunta e o outro tem uma pergunta e eu posso fazer outra pergunta que englobe as duas. Entendi, mas isso para você foi bom ou ruim? Isso foi positivo. Então, nos dois momentos, as perguntas partiram tanto de adultos quanto de adolescentes? Sim. 157 Mas as perguntas que foram feitas pelos adolescentes, alguma delas não partiu dos adolescentes? Não. Uma última pergunta: como você acha que a sua participação poderia ter sido mais educomunicativa? Minha participação teria sido mais educomunicativa se eu tivesse tomado conhecimento da cobertura educomunicativa antes do tempo que eu tive. E que tempo foi esse? Quando foi que você tomou conhecimento? Na conferência nacional que tivemos Que foi em agosto. Isso. 158 ANEXO 5 - PESQUISA DE RECEPÇÃO A PARTIR DA ASSISTÊNCIA DO VÍDEO ENTREVISTA COM ANTÔNIO OLIVEIRA, DO FÓRUM DO CEARÁ, NA 3ª CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL MARIA VICTÓRIA FERREIRA PETRÓLIO, 15 ANOS O que você achou do vídeo? Sei lá. Ele falou de trabalho infantil, não foi? Foi. Mas qual foi sua impressão sobre o vídeo de uma maneira geral? Foi legal, foi chato, divertido, sério? Sério. Você acha que esse vídeo foi feito para que público? Para o público em geral. Mais ou menos que idade? Todas as idades. Tem alguma coisa que te chama a atenção no vídeo? Não. Do que trata o vídeo? Trabalho infantil. Você consegue resumir ou dizer algo que te vem à mente do que o entrevistado falou? Não lembro de nada (risos). O que você achou da pergunta que a entrevistadora fez? Ela fez duas perguntas. Ela fez duas. Eu não lembro de nenhuma. Como você avalia o comportamento da entrevistadora? Ah, é normal o comportamento dela. Que idade você acha que a entrevistadora tem? 20 ou 25, no máximo. GABRIELA FARIA VILLELA ORLANDO DE MELLO, 15 ANOS O que você achou do vídeo? 159 Eu achei que é um vídeo meio sério. É um assunto muito importante, mas eu acho que ficou uma coisa meio séria. Não seriam muitas as pessoas que viriam até o final. Você acha que é um vídeo feito para um público de que idade? Acho que um pouquinho mais velho, acho que crianças não assistiriam. Acho que uns 20 ou 30 anos, para mais. Tem alguma coisa que chama a sua atenção em especial? O começo, quando ela vai falar com a pessoa, que ela queria saber o que tinha acontecido com o homem que era do fórum. E eu achei que o assunto, que já é meio popular, que foi muito bom. E qual é o assunto? Que eles são contra o trabalho infantil e tudo mais. Você conseguiria resumir o que o entrevistado falou? Então, mais ou menos (risos). Ele falou que estão começando a ver uma lei para atender as crianças e os adolescentes para tentar acabar com isso, só que ele falou com umas palavras mais difíceis (risos). Mas eu acho que foi isso que ele quis falar. E o que você achou das perguntas que a entrevistadora fez? Eu achei que foi o básico que ele tinha que saber. Para um vídeo de 1’27” acho que foi bom. Que sugestões você daria para que esse vídeo conseguisse atender uma faixa etária menor? Eu acho que alguma animação, fala com palavras mais fáceis, não falar tão rígido como ele estava falando, falar mais fácil. E tinha que ter alguma musiquinha antes, alguma coisa assim, sabe? E você acha que a entrevistadora poderia contribuir nesse sentido, para o vídeo ficar mais fácil? Acho que também. Acho que a língua da pessoa. Ela poderia falar mais como os adolescentes falam também ou como todo mundo fala. Porque aí o público seria um pouquinho mais novo. Só uma última pergunta: que idade você acha que a entrevistadora tem? Eu não percebi muito, mas eu acho que uns 25, mais ou menos. VITOR ESTEVES DE MORAES PEREIRA, 18 ANOS O que você achou do vídeo? Achei legal, cara. É um tema bastante abrangente, acho que todo mundo deveria saber sobre o tema, que não é correto o trabalho infantil, e o que eu vi do vídeo é que os países querem trocar [informações] para a erradicação, para acabar com essa atividade com as crianças e, consequentemente, ter benefícios para as crianças também. O que chama a atenção nesse vídeo? A troca de informação entre os países. O que geralmente é dentro do país, cada país tem seus costumes, eu fiquei meio surpreso com isso, com os países trocarem informações. 160 E com relação ao formato do vídeo? A entrevista, a entrevistadora, o entrevistado, a música ou a falta de música? Tem algum elemento que te chame a atenção, algo que para você seja uma novidade, tirando o tema? Não, normal, bem curta a entrevista. Você já falou, mas é legal retomar: do que trata o vídeo? Sobre a erradicação do trabalho infantil. Terminar com o trabalho infantil, porque eu acho que as crianças não merecem isso, adolescentes e os mais jovens têm uma certa limitação de serviço e não é correto, né, cara? Estar tirando a infância de uma criança, aproveitamento de vida, não é de bom grado e no futuro pode ter consequências não tão boas. Como você resumiria o que foi dito pelo entrevistado? Que eles querem terminar com o trabalho infantil, tendo relações com outros países, tendo aquela comunicação, vendo o que é correto ou não e todos com um objetivo final, que é terminar com o trabalho infantil e ter benefícios para toda a população, principalmente as crianças. Você fala: “eles querem acabar com o trabalho infantil”. Eles quem? Os órgãos, os organizadores do projeto, os governos dos países. E o que você achou das perguntas feitas pela entrevistadora? Objetivas, bem objetivas. Acho que ele falou certo, o que todos queriam ouvir. Você acha que esse vídeo foi feito para que público? Bom, para todos, na verdade. Mas o certo mesmo, o público certo é quem organiza, quem contribui para o trabalho infantil, né? E se a gente pudesse pensar em uma idade dessas pessoas para quem você acha que esse vídeo foi feito, mais ou menos? Acho que uns 30 anos. Você acha que a entrevistadora tem que idade? 18 ou 22, por aí. GUSTAVO FRANCATTI, 16 ANOS O que você achou do vídeo? É um vídeo bem interessante, não é um tema muito atual, é uma coisa que vem acontecendo há muito tempo e hoje não é noticiado, mas mais trabalhado para não acontecer, o trabalho infantil. Tem alguma coisa que chama a sua atenção no vídeo? Por ser a terceira conferência global. Então, não é só aqui que está acontecendo, é no mundo inteiro e eles estão se reunindo, como ele mesmo disse, para trocar experiências para tentar alguma solução que o mundo inteiro consiga estar fazendo. 161 Além dessa parte, que é mais de conteúdo do vídeo, alguma coisa te chama a atenção no formato? O fato de ser uma entrevista, uma musiquinha na entrada, algo te chama a atenção nesse sentido? No sentido de filmagem e tudo mais? Isso. É uma coisa bem feita, parece não ter influência de profissionais renomados, mas é uma coisa feita, pelo que me parece, por pessoas mesmo, interessados e tudo mais. Você já falou, mas é legal resgatar: do que trata o vídeo? O vídeo é sobre o trabalho infantil e estão fazendo uma conferência para saber o que fazer para que seja menor o índice até que zere o índice de trabalho infantil. E como você resumiria o que foi dito pelo entrevistado? A menina, a moça perguntou o que eles estão fazendo para parar o trabalho infantil. Ele falou que estão fazendo alguns projetos direcionados à criança e ao adolescente, chegou a citar um calendário para que as crianças não tenham tempo de fazer esse trabalho infantil, mas que estejam disponibilizando o tempo deles para coisas mais produtivas para eles mesmos, para o crescimento próprio deles. E o que você achou das perguntas feitas pela entrevistadora? Foram bem direcionadas, foi o que o pessoal de fora precisa saber, o que está acontecendo. Foram bem feitas. Se você pudesse pensar em um público para o qual esse vídeo foi direcionado, que público você imagina que seria? Acho que para todo mundo. Porque ela não está falando com os jovens sobre o que eles estão fazendo, eles estão abrindo um leque de opções muito grande, porque uma criança de cinco anos pode ver e entender, como um idoso pode estar assistindo e também estar entendendo. Ela explanou bem o tema, não escolheu um linguajar direcionado, falou de um jeito que todo mundo fala, não usou palavras de teor muito difícil, mas também não usou gírias e tudo mais. É um leque bem amplo. Então você acha que esse vídeo não foi pensando em um público etário específico? O tema é para um público de jovens e adultos, para que eles entendam o que está acontecendo, mas eu acho que se qualquer pessoa ver, conseguiria estar entendendo. Jovem e adulto de que idade? De 16 a 24 anos e assim por diante. Que idade você acha que a entrevistadora tem? Boa pergunta. Acho que uns 22. 162 Na verdade ela tem 15. Ah, que coisa! Por que você pensou que ela teria 22? Eu sou um cara muito ruim com idades, admito. Mas é difícil encontrar pessoas nessa idade que se interessem por esse assunto. 163 ANEXO 6 - PROJETO COBERTURAS EDUCOMUNICATIVAS DO PROCESSO DA III CONFERÊNCIA GLOBAL SOBRE TRABALHO INFANTIL Apresentação Este documento trata da construção das Coberturas Educomunicativas do processo da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil que será realizada entre agosto e outubro de 2013, cumprindo as etapas Nacional, Global e a Mobilização virtual entre elas. O projeto visa a ampliar a participação qualificada de crianças e adolescentes no processo da Conferência, promovendo a reflexão, produção e difusão de conteúdos sobre o tema do TI a partir deles; utilizar a comunicação para informar, articular, mobilizar e contribuir com a formação de sujeitos de direitos. Esta proposta é resultado da pesquisa, experiência e observação de ações realizadas no âmbito da Educomunicação possibilitando a organização dos processos comunicacionais e a ascensão da Comunicação à condição de construtora de sujeitos políticos e autônomos. Parte da premissa da comunicação como um direito humano. Para tanto, deve ser lido com olhos atentos para o reconhecimento de que toda criança, todo jovem, adolescente e pessoa adulta pode (e deve) se expressar. Significa que devam ter a garantia de acesso à produção, veiculação e distribuição de informação, às tecnologias de comunicação. Significa reconhecer a comunicação como um direito universal e indissociável de todos os demais. Duração do Projeto 3 meses (outubro a dezembro de 2013) Valor total do Projeto R$ 47.700,00 Infraestrutura geral de equipe de Educomunicadores para as Coberturas Educomunicativas das etapas Nacional e Global, além da etapa intermediária de Mobilização virtual de 27 adolescentes (um de cada Estado). Não inclui valores de logística para estes. Contrapartida - Publicação da logomarca do patrocinador no site Agência Jovem de Notícias: www.agenciajovem.org - Publicação da logomarca do patrocinador na seção da III Conferência Global no site do evento - Publicação da logomarca do patrocinados nas pílulas e outros conteúdos produzidos ao longo das coberturas; - Publicação da marca do patrocinador na edição especial da Revista Viração sobre a III Conferência com 30 mil exemplares a serem distribuídos em todo o Brasil (Fóruns Estaduais de PETI, Conselhos de Direito, assinantes da Viração) Responsável pela coordenação do Projeto Rafael Alves da Silva Nome da organização e sigla Viração Educomunicação CNPJ 11.228.471/0001-78 Endereço (nome da rua, número, complemento) Rua Augusta , 1239, conj. 11 Cidade São Paulo UF SP Bairro Consolação CEP 01305-100 164 Telefone(s) (11) 3237-4091 Fax (11) 3237-4091 Nome completo da pessoa responsável pela organização Juliana Rocha Barroso CPF Telefone(s) 274.067.968-89 (11) 3237-4091 Endereço (nome da rua, número, complemento) Rua Augusta, n0 1.239, conj. 11 Cidade São Paulo E-mail [email protected] Página eletrônica (site) www.viracao.org E-mail [email protected] UF SP Bairro Consolação CEP 01305-100 O Conceito O processo de construção das Coberturas Educomunicativas da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil está permeado pelo conceito chamado Educomunicação38. Trata-se de um referencial teórico, estudado há mais de 15 anos, que sustenta a inter-relação comunicação/educação como campo de intervenção sócio-educativa. Parte de dois pressupostos39: 1) que a educação só é possível enquanto “ação comunicativa”, uma vez que a comunicação configurase, por si mesma, como um fenômeno presente em todos os modos de formação do ser humano; 2) que toda comunicação – enquanto produção simbólica e intercâmbio/transmissão de sentidos – é, em si, uma “ação educativa”. Processos democráticos, dialogicidade, expressão comunicativa e gestão compartilhada dos recursos da informação fazem parte de sua concepção. É definida por comunicadores e educadores como o conjunto das ações voltadas ao planejamento e à implementação de práticas destinadas a criar e a fortalecer ecossistemas comunicativos participativos – entendidos como grupo de linguagens, escritas, representações e narrativas que alteram a percepção40 – destinados a contribuir com a formação de sujeitos de direitos e a ampliação de espaços de expressão da sociedade. Podemos entender, então, que processos e procedimentos comunicativos possibilitados pela linguagem são uma garantia de participação ativa da vida social. Além disso, que tratamos de um sistema complexo, dinâmico e aberto, pensado como um espaço de convivência e de ação integrada.41 Segundo Paulo Freire, que também orienta as ações desta proposta, somos seres de comunicação e podemos ser educados porque a nossa natureza permite que sejamos construtores de conhecimentos. Nesse sentido, observarmos que o ato de conhecer não se dá apenas no individual, mas no coletivo, na relação entre as pessoas. Em síntese, a dimensão comunicacional pode ser uma formação interativa, dialógica, engajada e comprometida com a construção de conhecimentos para transformar o mundo, tornando-o mais humano, mais justo e mais solidário. Além disso, que o aprendizado em direitos humanos passa pelo (re)conhecimento dos seus próprios e dos demais. Envolve mudança de atitudes e posturas, novas concepções que compreendam a convivência com a diversidade como um direito humano e o fundamento para democratização do acesso à riqueza socialmente construída. Este documento 38 Abordamos neste documento o conceito estudado e defendido pelo Núcleo de Comunicação e Educação da ECA-USP. Dois autores são referências históricas da concepção divulgada pelo Núcleo: Paulo Freire e Mário Kaplún. Paulo Freire(1921-1997), educador brasileiro que se denominava menino conectivo, dizia que comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de ser informado e o direito de acesso aos meios necessários à plena liberdade de expressão. Mário Kaplún (1923-1998), comunicador argentino, foi um dos primeiros a empregar o termo “educomunicação” para instituir o campo da Educação para a Comunicação – ou da leitura crítica dos meios de comunicação. Foi o precursor da Comunicação Educativa e Popular no continente latino-americano numa perspectiva de favorecer a recepção participativa. O NCE coordenou o Projeto Educom.rádio – Educomunicação pelas ondas do rádio, da Secretaria de Educação de São Paulo, entre 2001 e 2004. O conceito virou lei, a Educom, em São Paulo, sancionada em 2004. 39 SOARES, Ismar. Educomunicação: o conceito, o profissional e a aplicação. São Paulo: Paulinas, 2011. p.17 40 MARTÍN-BARBERO, Jesús. La educación desde la comunicación. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2002. 41 Idem 2. p. 16. 165 está imbuído da percepção de que a Educomunicação é um dos possíveis caminhos para se alcançar a democratização da comunicação que, por sua vez, uma das fundamentais instâncias para o acesso ao direito à comunicação. Portanto, a prática social apresentada por esta proposta pressupõe trabalhar em rede no desenvolvimento de uma comunicação compartilhada e colaborativa para construção de saberes, para o encontro de sujeitos interlocutores. Sujeitos estes que ao se perceberem conscientes de sua incompletude, reinventem sua prática social, tornem-se construtores e/ou reconstrutores de seu tempo conectando-se uns aos outros. O Projeto O processo de construção de conferências propicia uma intensa movimentação da sociedade civil organizada, junto com os governos, na discussão e definição de políticas públicas de vários segmentos; tendo como ator principal, em todo o processo de construção, a criança e do adolescente. Tal intensidade encontra na comunicação um imprescindível meio para que ela aconteça. A partir do referencial teórico da Educomunicação, a metodologia proposta pretende estimular a co-responsabilização de todos as atores envolvidos na execução das ações e a capilaridade das mesmas. O Projeto consiste na articulação, mobilização e formação de adolescentes de todo o país em Cobertura Educomunicativa durante a Etapa Global da III Conferência sobre Trabalho Infantil e a Participação com debate e formulação de propostas da adolescência para o combate ao trabalho infantil e a participação de crianças e adolescentes nessa área. O que é Cobertura Educomunicativa? Orientada pelo referencial teórico-metodológico da Educomunicação, a Cobertura Educomunicativa utiliza técnicas do jornalismo. Porém, diferente desta prática que é realizada de maneira mais individual – o repórter, por exemplo, coleta as informações e estrutura sua produção sozinho. A preocupação maior na Cobertura Educomunicativa é o processo e, para tanto, que os procedimentos sejam executados de forma colaborativa. As crianças e os adolescentes são protagonistas da cobertura. Apresentarão ao mundo suas opiniões sobre os temas abordados nas conferências e numa perspectiva não comercial da informação, comumente tratada pelos veículos da grande imprensa cuja natureza é empresarial. Aprenderão a fazer o planejamento de uma cobertura, a levantar dados para suas produções (texto, ilustração, áudio, vídeo, fotografia) a debater suas opiniões, a perceber a importância dos momentos de escuta, a se comunicar com as pessoas, principalmente as que não estarão nos eventos, pensando em como mobilizá-las. Por que essa formação é importante? A possibilidade de trabalhar com a Educomunicação abre espaço para a criação e fortalecimento de vínculos entre eles, não apenas no momento da cobertura, mas na escola e na comunidade. Cria, divulga e fortalece o direito à comunicação que também dá acesso a todos os demais, além de estimular o protagonismo de crianças e adolescentes. Vai além da já reconhecida liberdade de expressão: é também o direito de todas as pessoas de ter acesso aos meios de produção e difusão da informação, de ter condições técnicas e materiais para produzir e veicular essas produções e de ter o conhecimento necessário para que sua relação com esses meios ocorra de maneira autônoma. Neste percurso, crianças e adolescentes ganham autonomia e senso de coletividade ao compreender de que forma eles podem buscar, sistematizar e multiplicar seus aprendizados em um processo de formação de liderança que compreende e respeita as necessidades específicas da comunidade e da cidade, pois parte da percepção dos sujeitos que residem nela. O envolvimento dessas crianças e adolescentes contribui para a construção social de uma imagem positiva desse momento da vida, além de promover entre o grupo a leitura crítica dos meios de comunicação. Além disso, ao produzir sua própria comunicação, a imagem do evento, da escola, da comunidade e da cidade também se transforma, ganhando voz e visibilidade não apenas em seu território, mas na sociedade como um todo. Ou seja, uma formação de sujeitos direitos – informação para a ação –, que será feita por meio de vivências democráticas para a construção de uma cultura colaborativa de compartilhamento de saberes. Responsabilidades da organização contratada para as formações 166 • • • • • • Coordenação geral Planejamento Oficinas de formação – temática e técnica linguagens/planejamento Cobertura Educomunicativa Ação de mobilização para a participação – debates e propostas Sistematização e relatoria Linguagens trabalhadas nas Coberturas Educomunicativas: Jornal mural, fanzine, TV de bolso, fotografia, rádio, redes sociais e site (texto). 1. Jornal mural: Noções básicas de um jornal mural feito a partir de colagens, desenhos, textos curtos a partir de uma pergunta a ser respondida pelas crianças e adolescentes, cada um respondendo em sua própria língua, dentro de balõezinhos. Os jornais murais serão expostos em espaços públicos de grande circulação. 2. TV de bolso: Noções básicas de produção e edição de vídeo a partir de celular e câmeras digitais. 3. Fotografia: Produção de fotos a partir de temas acordados pelos participantes da oficina e contemplando vários momentos das conferências e/ou atividades paralelas. 4. Site e redes sociais: Produção de textos para a cobertura em tempo real a ser veiculada nas plataformas do evento e da Agência Jovem de Notícias, nos perfis das redes sociais da Viração (e do evento, caso seja criada). 5. Rádio: Produção de spots radiofônicos e entrevistas curtas a serem veiculados nas plataformas do evento e da Agência Jovem de Notícias. 6. Fanzine: Produção de publicação artesanal feita a partir de recortes de revistas, textos curtos, desenhos e xerocopiadas em preto e branco. 7. Participação: ação dos adolescentes na própria conferência, seus painéis e debates, além da mobilização para construção de papeis e propostas efetivas dos adolescentes para a erradicação e para a participação. Grupos das Coberturas Educomunicativas: Etapa Global - 27 adolescentes (um por Estado) – 15 cobertura – 12 participação - 5 Educomunicadores (sendo um coordenador geral) As ações Objetivos Ações Metas Responsáveis a) Estimular o trabalho em rede. 1) Promoção de rede amigável de adolescentes via plataformas virtuais e redes sociais. 1) Envolvimento de adolescentes, visibilidade da mobilização para a Conferência e contribuição para o fortalecimento da comunicação feita por adolescentes. ONG Educomunicação b) Estimular a participação de adolescentes e pessoas adultas em vivências democráticas. c) Estimular a construção de uma cultura colaborativa de compartilhamento de saberes. 2) Facilitação da comunicação entre diferentes grupos de adolescentes para compartilhar experiências, produtos de comunicação (via plataformas e/ou redes sociais). d) Contribuir para a constituição de sujeitos de direitos por meio práticas educomunicativas. 3) Desenvolvimento de textos, fotos, fanzines e depoimentos em audiovisual sobre o tema do TI. e) Contribuir com a divulgação e compreensão da comunicação como um direito humano e indissociável dos demais e, consequentemente, para a democratização dos meios de comunicação. 4) Oficinas de formação para a cobertura durante as etapas nacional e global. f) Promover a formação dos adolescentes comunicadores nos temas relacionados ao TI. g) Estimular a produção e difusão de conteúdos produzidos por/para/com e adolescentes sobre TI, no contexto da III Conferência Global. 5) Realização da cobertura compartilhada durante as etapas nacional e global. 6) Produção e distribuição virtual de materiais confeccionados adolescentes e jovens (banners eletrônicos, boletins, textos, áudios, vídeos, peças radiofônicas, entrevistas etc.) 7) Participação nas ações e debates da conferência. 2) Estímulo ao protagonismo de adolescentes em ações que contribuam para a sensibilização e construção de políticas públicas para o setor. 3) Sensibilização à compreensão da comunicação como um direito humano. 4) Divulgação, reconhecimento da importância do trabalho compartilhado, contribuição à criação de uma nova cultura de comunicação colaborativa e de um acervo de conteúdos. 5) Participação direta dos adolescentes nos debates da conferência. Prazos Viração De julho a outubro. 168 Metodologia de Formação e planejamento da Cobertura Educomunicativa e Participação Objetivos: • • • • • • • Construir os acordos de convivência para o grupo da educomunicação; Promover a integração do grupo de adolescentes e educadores; Sensibilizar os adolescentes para o tema do Trabalho Infantil; Apresentar e discutir a programação da Conferência; Planejar as ações de cobertura educomunicativa (levantamento de pautas, divisão de grupos, etc); Promover formação técnica para as linguagens a serem trabalhadas; Estimular a participação ativa dos adolescentes durante a Conferência. - Para a etapa global haverá uma reunião de planejamento da Cobertura e participação feita entre a equipe da Viração Educomunicação e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O encontro será definido, em dia e horário, entre as duas partes. Divisão do Grupo: ficará dividido em: 15 adolescentes para a cobertura e 12 adolescentes para a participação; Cobertura Educomunicativa: será facilitada por quatro educomunicadores para o desenvolvimento dos materiais ao longo da Conferência Global. Participação: será facilitada por dois educomunicadores: uma indicada pelo MDS (professora Luiza Moura), que cuidará de sensibilizar para os temas e programação da Conferência Global, e outro educomunicador da própria Viração, responsável por garantir um processo educomunicativo, democrático e colaborativo. 169 ETAPA GLOBAL Orçamento Recursos Humanos 1 Etapa Coordenador Geral 1 Horas 80 R$ 120,00 R$ 9.600,00 Educador indicado pelo MDS 1 Horas 80 R$ 80,00 R$ 6.400,00 Educomunicadores Passagens aéreas e diárias * 3 1 Horas Etapa 80 R$ 80,00 R$ 19.200,00 R$ 12.500,00 Passagens aéreas 1 PAX 5 R$ 1.500,00 R$ 7.500,00 Diária 5 R$ 200,00 R$ 5.000,00 Diárias (alimentação, hospedagem e transporte) 5 TOTAL DA ETAPA GLOBAL R$ 35.200,00 R$ 47.700,00 Monitoramento e avaliação A avaliação será processual, ou seja, realizada ao longo do tempo de preparação e execução do projeto por meio da Comissão Organizadora da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil. Para êxito da ação, serão construídos instrumentais que garantam a orientação, formação, definição e execução de procedimentos, tais quais: comunicacional, pedagógica, planejamento coletivo e compartilhado, registro e sistematização das ações e organização de atividades. O acompanhamento é compreendido como um processo de formação, avaliação e intervenção permanente, o que possibilita a re-leitura e redefinição dos mecanismos administrativo-financeiros, dos fluxos de comunicação e das práticas político-pedagógicas. Acompanhar, na concepção freiriana de educação que muito influencia a educomunicativa, pressupõe uma metodologia que inclui a investigação, a escuta e o olhar atento para a ação e para o discurso; a problematização das práticas; a sistematização, em sínteses provisórias, dos processos vividos, dos encaminhamentos e dos resultados; a apreensão crítica, como ponto de partida para a construção da prática educomunicativa; a avaliação como um olhar crítico da práxis educomunicativa. A avaliação sobre as ações proposta neste documento devem considerar o processo coletivo de construção de procedimentos e produtos, envolvendo planejamento da ação, execução e a produção de materiais, como também o resultado decorrente deste trabalho. O legado “(...) que todos se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão de mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas sugestões e nas de seus companheiros (FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido) A realização de Coberturas Educomunicativas, nos moldes aqui proposto, foi experimentado no processo da 9ª Conferência Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes, em 2012 e tornou-se referência para outras ações e reflexões dos grupos envolvidos. O processo de organização e execução das Coberturas Educomunicativas da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, assim como o da 9CNDCA, será constituído de muitas vivências e deixará legados importantes. Abaixo seguem listados alguns dos mais importantes. • • Sensibilização e/ou compreensão da temática do trabalho infantil, em especial do tema proposto para a III Conferência Global: "Estratégias para Acelerar o Ritmo da Erradicação das Piores Formas de Trabalho Infantil". Sensibilização e/ou compreensão da comunicação como um direito. 170 • • • • • • • • Sensibilização e/ou compreensão da importância dos momentos de escuta, de planejamento, de formação. Percepção das realidades locais e como ela se relaciona com outras. Apropriação das tecnologias de informação e comunicação. Sensibilização e/ou compreensão da importância do registro para construção da memória. Construção colaborativa de saberes. Construção da memória do processo de preparação e execução da III Conferência Global sobre Trabalho Infantil por meio de textos de cobertura, artigos, fotografias, vídeos, áudios, relatórios, anais. Constituição e/ou fortalecimento de laços afetivos, de articulações entre pessoas e grupos. Ingresso dos adolescentes na Rede de Adolescentes e Jovens Comunicadores(as) https://www.facebook.com/groups/RNAJC/ Instituição proponente Viração é uma organização de comunicação, educação e mobilização social entre adolescentes, jovens e educadores. Criada em março de 2003, a Viração impactou na vida de mais de 5 milhões de pessoas no Brasil por meio dos 31 projetos especiais desenvolvidos ao longo de 10 anos. Recebe apoio institucional do UNICEF, UNESCO, ANDI, USP, Ashoka Empreendedores Sociais, Fundação Friedrich Ebert, Província de Trento, Ministério da Cultura e do Centro de Competencia en Comunicación para a America Latina. Tem como missão fomentar e divulgar processos e práticas de educomunicação e mobilização entre jovens, adolescentes e educadores para a efetivação do direito humano à comunicação e para a transformação socioambiental. Viração possui metodologia própria de trabalho e experiência comprovada em processos, projetos e produtos de educomunicação e de mobilização social juvenil; habilidade para trabalho em escolas e com grupos de diferentes naturezas; experiência em planejamento, gestão e habilidade de trabalho em grupo, em parcerias e redes, na implantação e implementação de projetos sociais na área da infância e juventude; experiência no desenvolvimento de materiais de comunicação e cobertura jornalística a partir do olhar de crianças, adolescentes e jovens; e histórico de compromisso com os Direitos da criança, do adolescente e do jovem. A base desta visão é o entendimento de que o adolescente é um sujeito de direitos que precisa ser considerado em sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, com potencialidades e vulnerabilidades específicas, mas que representa uma grande oportunidade de desenvolvimento para sua família, comunidade, escola, governo e para si próprios. Além de trabalhar para o desenvolvimento integral dos adolescentes, Viração também atua na implementação de uma comunicação integral e integradora, não entendida apenas sob o ponto de vista tecnológico e instrumental. Em 2012, a Viração desenvolveu 13 projetos com adolescentes e jovens, realizou cerca de 50 coberturas jovens de eventos, teve ação estratégica em espaços de formulação de políticas públicas, como a Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente em instâncias estaduais e federal. Atuou com jovens de todo o país, de 20 Estados, integrantes dos Conselhos Virajovens e também mobilizadores da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Comunicadoras e Comunicadores (Renajoc). Missão: Promover práticas de comunicação e educação entre jovens e adolescentes. Objetivo geral: Promover junto aos jovens e adolescentes atividades na área de educação e comunicação e fornecer uma revista que atue como um fórum de debates sobre a realidade dos adolescentes e jovens, tendo como eixos editoriais os direitos humanos, os direitos e deveres de adolescentes e jovens cidadãos, a abertura mundial, a educação, à paz e à solidariedade entre os povos e o respeito à diversidade cultural e religiosa, e ainda seguindo as diretrizes do Ministério da Educação e Cultura (MEC), como ética, saúde, meio ambiente, pluralidade cultural, educação sexual, trabalho e consumo. Guia de Educomunicação: Conceitos e práticas da Viração http://www.agenciajovem.org/wp/educomunicacao/ (download) 171 São Paulo, 09 de setembro de 2013.