Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Resumo Investigar o que se faz e se pensa nas escolas sobre literatura infantil é o objeto deste estudo, problematizando o conceito de literatura que embasa determinadas práticas escolares. O trabalho tem o objetivo de investigar as obras de literatura infantil que são exclusivamente escolhidas e compradas por escolas públicas para promover a leitura, independentemente dos programas oficiais de distribuição gratuita de livros. A partir de observações realizadas em escolas de uma rede de ensino municipal, este artigo analisa os acervos adquiridos e as decisões e discursos cotidianos que constituem a leitura e literatura na escola. O(s) espaço(s) definido (s) como “biblioteca” nas instituições educacionais será(ão) o cenário deste trabalho, sendo que o campo dos Estudos Culturais surge como uma das ferramentas que, na contemporaneidade, possibilita a análise crítica das práticas culturais, a desnaturalização dos discursos e disciplinas que atravessam os indivíduos no circuito pedagógico. Os dados analisados neste artigo provocam reflexões sobre a literatura infantil e suas interfaces com a educação, apontando aquela como uma ferramenta pedagógica que corrobora discursos e efeitos de verdade da escolarização. Palavras‐chave: Estudos Culturais. Literatura Infantil. Educação. Discursos. ELEN MAISA ALVES DA SILVA Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva Introdução Uma das questões centrais nos processos educacionais é o sucesso escolar, ou seja, as proposições pedagógicas na gestão e na docência que, enquanto ação humana consequente, reverberam em melhoria do ensino e aprendizagem para o aluno. Com objetivo de superar este desafio educacional, a literatura infantil tem sido referida como uma ferramenta lúdica e de entretenimento que, conectada a proposições pedagógicas que visam assegurar o ensino e aprendizagem, contribuiria para a majoração de índices durante o processo de escolarização formal. Tais premissas – aliadas ao reconhecimento da leitura de literatura como campo que potencializa a imaginação e a sensibilidade dos leitores – têm norteado várias políticas educacionais e, dentre as iniciativas brasileiras, destaco neste estudo as ações para a valorização da literatura e fomento à leitura através do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) que, em regime de cooperação com a Secretaria da Educação Básica/Ministério de Educação e Cultura, tem o objetivo de selecionar e distribuir gratuitamente livros e materiais didáticos nas escolas públicas brasileiras. Proposto desde 1998, o PNBE é regulamentado na Resolução/CD/FNDE nº. 07/2009 e investe esforços financeiros para a “democratização do acesso às fontes de informação, ao fomento à leitura e à formação de alunos e professores leitores e ao apoio à atualização e ao desenvolvimento profissional do professor” (BRASIL, art. 2º., 2009) nas escolas das redes de ensino federal, estadual, municipal e do Distrito Federal. Todas as escolas que são cadastradas no Censo Escolar pelo Instituto Anísio Teixeira (INEP) participam automaticamente desta proposta, que contempla a constituição de acervos para os diferentes níveis de ensino com obras de diferentes modalidades literárias (prosa, poesia, HQ, livros de imagens, etc.). Considerando a expressiva e permanente distribuição de obras de literatura infantil nos níveis de ensino discriminados na Lei Federal nº. 9.394/96 como “obrigatórios” e de responsabilidade dos Municípios, parece‐nos relevante esquadrinhar o que determinadas escolas vêm entendendo como “literatura infantil” ou por “livros para crianças”: os discursos e práticas que estabelecem e engendram a literatura e seus propósitos na educação escolarizada. Neste sentido, há o desafio em pensar os livros X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.2
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva como artefatos culturais que produzem “jeitos de ver e jeitos de ser” (KLEIN, 2010, p. 181), considerando as circunstâncias que tornam possível a literatura infantil nas escolas para além do que é proposto pelo PNBE, ou seja, a composição de acervos a partir de títulos que são escolhidos e adquiridos pelas próprias escolas. A partir desta premissa, convido o leitor e a leitora a refletirem sobre a educação e os seus contextos de inscrição, problematizando a cultura não como um âmbito autônomo e determinado (JOHNSON, 2000, p. 13), mas como uma “cadeia ampla e abrangente de instituições e práticas” (HALL, 1997). Isso significa pensar as relações de poder e representações a partir das obras infantis escolhidas e adquiridas pelas escolas, questionando as pedagogias culturais que engendram tramas discursivas que constituem a materialidade dos sujeitos. Motivações para a pesquisa Literatura. Gestão Escolar. Leitura. Docência. Currículo. Livros. Muitas foram as questões para problematizar a educação na articulação com os Estudos Culturais, visto que este campo acolhe a discussão de diferentes questões do mundo contemporâneo e a cultura escolar e suas práticas cotidianas na inscrição de condutas e apropriação de conhecimentos. Na perspectiva dos Estudos Culturais, um dos desafios é pensar a produção e efeitos de verdade que legitimam processos simbólicos e discursivos no meio escolar, buscando “[...] as rupturas que permitiram a constituição do presente, tal como ele se apresenta” (FONSECA, 1995, p. 70). Mobilizar, deslocar o entendimento de escola significa indagar este espaço como uma arena privilegiada para a intervenção na contemporaneidade, colocando em xeque os artefatos culturais. Ao questionar as disposições pelas quais se organiza uma possível formação de leitores nas escolas, parece interessante considerar a dimensão cultural imbricada nas práticas pedagógicas, uma vez que “a escola contemporânea nos surge como o espaço das múltiplas heterotopias” (Ó, 2009, p. 115). Neste sentido, a pesquisa da qual o presente estudo é um recorte foi deflagrada pelo interesse na questão da literatura infantil no meio escolar, a partir de uma rede de ensino municipal em terras gaúchas. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva Este pensamento remete ao papel polissêmico do trabalho docente, da gestão e do currículo escolar, vislumbrados como uma prática social, problematizando‐se as funções e competências face à complexidade dos diferentes contextos culturais do mundo contemporâneo e seus reflexos nas (e para além das) instituições educacionais. Ao abordar os livros para as crianças elencados exclusivamente pelas escolas, evocam‐se novas perguntas sobre as definições e visões reducionistas que pregam paradigmas educacionais e pensam as realidades sociais e a materialidade dos sujeitos. Para organizar o nosso olhar específico sobre a literatura infantil, suas marcas e efeitos no aluno, entende‐se como metodologia: [...] um certo modo de perguntar, interrogar, de formular questões e de construir problemas de pesquisa que é articulado a um conjunto de procedimentos de coleta de informações – que, em congruência com a própria teorização, preferimos chamar de “produção” de informação – e de estratégias de descrição e análise (MEYER & PARAÍSO, 2012, p. 16). Sem a pretensão de encontrar respostas completas e prontas sobre a circulação da literatura infantil na escola, este trabalho movimenta‐se na perspectiva de buscar experiências culturais que acontecem no contexto escolar, uma vez que o texto produz múltiplos significados e, “consequentemente, nunca poderá existir uma leitura fixa, baseada na noção de um conjunto de posições ideiais‐típicas” (HALL, 2003, p. 370). Escolhendo os livros Segundo Hall (1997), “todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado”; assim, para pensar o conceito de leitura e de formação de leitores imbricados nas decisões e práticas escolares, para além do recebimento compulsório dos acervos do PNBE, seria necessário deslocar as reflexões para a realidade escolar. Logo, a imersão no meio escolar tornou‐se importante para delinear a pesquisa, pensando os (im)‐possíveis desdobramentos deste estudo. Para tanto, a rede de ensino municipal em que estamos inseridas foi o lugar escolhido para evocar/fomentar a investigação. Por tratar‐se de uma incursão de caráter X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva exploratório, o corpus de análise deste estudo contemplará o recorte de 08 escolas municipais: 04 instituições de educação infantil e 04 instituições de ensino fundamental – compreendendo o universo de, aproximadamente, 3.700 alunos e 60 professores e gestores. Para obter dados que contextualizassem as práticas particulares de literatura infantil nas escolas foram agendadas com os gestores breves visitações – cerca de duas horas ‐ ao espaço físico das escolas. Além das obras adquiridas, este estudo investigou, também, outras situações paralelas aos acervos “institucionalmente constituídos”, uma vez que é impossível circunscrever o espaço de leitura e literatura infantil à biblioteca. Este “entorno” foi importante para pensar a literatura e seus significados no trabalho pedagógico: os discursos, espaços, iniciativas, metodologias e estratégias dos gestores e professores para “fazer circular” a literatura infantil na escola. Para a visita às escolas não houve a preocupação em rascunhar, de antemão, algumas perguntas para professores ou diretores. No entanto, devido à fala “expositiva” do gestor na primeira escola visitada, sentimos a necessidade em organizar as indagações em torno dos seguintes temas: A escola possui biblioteca? A escola participa do PNBE? A escola adquire livros de literatura infantil? Como estes livros são catalogados? De que forma? Os testemunhos orais, sem o rigor de uma entrevista formal sinalizaram questões pertinentes para refletir sobre educação e literatura infantil na ótica dos discursos e representações sobre infância e escolarização. Apresentamos a seguir um breve panorama das mesmas, sistematizando algumas ilustrações: A biblioteca da escola. Nas escolas visitadas, observamos que a biblioteca nem sempre se apresenta como um espaço físico centralizado, amplo, com mesas e cadeiras destinadas às tarefas escolares. As escolas de ensino fundamental visitadas possuem um lugar próprio, fixo para a oferta e empréstimo de livros aos alunos. Por outro lado, nas escolas de educação infantil, observamos que a área dos edifícios, em sua totalidade, é utilizada para as salas de aula. A biblioteca pode ser entendida como todos os lugares em que é possível disponibilizar livros: sala múltipla, salas de aula, área coberta, sala da direção, sala de planejamento. Em algumas escolas, estes “lugares” são chamados de X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva “cantinhos da leitura” organizados em cada sala de aula. Na maioria das escolas visitadas, as obras infantis estão organizadas em estantes ou caixas com tarjas de identificação de que o acervo é destinado ao público infantil. Conforme os depoimentos dos gestores, o espaço destinado à biblioteca pode ser redimensionado para sala de aula, considerando a necessidade de organização das turmas e ofertas de vagas. Como uma das dificuldades para o funcionamento da biblioteca durante o ano letivo, os gestores apontaram a ausência de profissionais lotados nas escolas. O PNBE: Todas as escolas visitadas confirmaram a adesão ao Programa, apesar da possibilidade de cancelamento do cadastro no PNBE em caso de manifestação de desinteresse – e deferência da Secretaria de Educação – para o Governo Federal (BRASIL, 2009). Segundo as falas dos gestores, os livros distribuídos pelo Programa são considerados “ótimos”, “diversificados” e são manuseados por professores e alunos nas escolas de educação infantil e, geralmente, destinados ao empréstimo para aos alunos nas escolas de ensino fundamental. Nas escolas visitadas, observamos que os livros são guardados nos espaços destinados à leitura e pesquisa para o acesso aos professores e alunos. Cabe registrar que, em uma escola de ensino fundamental, uma professora afirmou que não utilizava os livros do PNBE, mas seu acervo pessoal para a narrativa de histórias; já, na educação infantil, uma das gestoras relatou que mantém os livros guardados em caixas e dispostos em armários para o manuseio exclusivo dos alunos do Jardim. 3. A aquisição de obras infantis. Das instituições visitadas, apenas uma instituição de educação infantil declarou não comprar livros, enquanto, do ensino fundamental, duas escolas sinalizaram que não há aquisição de livros de literatura infantil para além dos livros recebidos dos programas governamentais. Para a aquisição de títulos, as escolas referiram sobre a utilização de recursos financeiros do Círculo de Pais e Mestres, promoções e contribuições espontâneas recebidas pelas escolas e, também, verbas vinculadas ou do Tesouro Livre em que há a possibilidade de investimento em livros de literatura infantil. Os depoimentos obtidos referem que os livros são adquiridos em diferentes fontes: internet, livrarias, feiras. Destaque especial deve ser feito à presença constante de livreiros nas escolas, ofertando livros e coleções de títulos infantis. A X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva respeito de compras efetuadas junto a tais agentes comerciais, durante as visitações nas escolas, obtivemos a argumentação incisiva sobre a preferência por tal prática pela facilidade de acesso (não é necessário sair da escola) e de pagamento (valores parcelados e sem comprometer o CNPJ da instituição). Justificativa para a aquisição de livros. Muitas são as formas de “diagnosticar” sobre a aquisição de livro infantil na escola para além dos acervos oficiais: caderninho para coletar sugestões de livros, mural na sala dos professores para que registrem títulos que consideram interessantes, momento específico em reuniões pedagógicas para professores divulgarem títulos. Todas as escolas, nas falas das gestoras e/ou professoras entrevistadas, referiram a importância dos livros de literatura infantil para auxiliar na metodologia dos professores. Assim, declararam ter prioridade os livros que poderiam ser utilizados para o trabalho em projetos da escola ou projetos das turmas. Nas listagens para aquisição também houve referência a títulos indicados pela Secretaria de Educação ou a títulos convenientes a projetos de que a escola está participando, em nível municipal, estadual ou federal. Escolha dos livros. Os relatos obtidos indicaram que, geralmente, os professores escolheriam os livros. Algumas vezes, relata‐se que o diretor adquire títulos sem a consulta aos professores, pelo entendimento de que a sua função exercida na escola abrange decisões como a compra de livros. Nos depoimentos, não houve referência à participação dos pais ou outros funcionários das escolas na escolha dos livros de literatura infantil. E nem das crianças. E nem dos alunos. Catalogação dos livros. Nas escolas, observamos que o controle dos acervos – comprados e os enviados pelo PNBE – é realizado em livros, folhas avulsas e arquivos em computador. As seis escolas que adquirem livros de literatura infantil não possuem listagem diferenciada dos livros comprados ou ganhados, por se entender que todos são 
Segundo os relatos dos gestores, as aquisições das escolas devem, preferencialmente, atender no mínimo a três cotações de preços emitidas por pessoa jurídica com cadastro regular em certidões ‐ INSS, FGTS, Estadual e Municipal ‐ uma vez que os pagamentos são desprendidos do Tesouro Livre ou verbas vinculadas através de notas de empenho. Por outro lado, a aquisição de livros, diretamente de livreiros, pode ser autorizada diretamente pelo Círculo de Pais e Mestres, utilizando os recursos das escolas – obtidos com a realização de festas, rifas e/ou contribuições de pessoas físicas – com pagamentos parcelados em carnês. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva “livros da escola”. Em especial, destaca‐se o relato obtido em uma escola de ensino fundamental pelo qual se considera os livros comprados como “livros de consumo”, visto que não são catalogados e, por serem escolhidos pelos professores para aquisição, deveriam circular pelos alunos e suas famílias através de uma sacola itinerante. Livros de literatura infantil identificados. A lista de livros a que tivemos acesso e que serve de objeto de análise a este estudo contempla livros adquiridos/comprados pelas oito escolas municipais visitadas. Ainda que se trate apenas de uma amostra dos acervos totais adquiridos pelas mesmas escolas, julgamos que sua análise pode apontar para certas tendências que respondem à questão inicial sobre os conceitos de “livros adequados para infância” que circulam em escolas públicas. Do acervo aqui apresentado, 15 títulos foram selecionados pelos gestores – 13 livros infantis e 02 livros didáticos – e abrangem tanto obras destinadas a crianças quanto títulos que “investem” em ações para o desenvolvimento das crianças, mas destinados à leitura de professores. Estão eles apresentados no Quadro 1, abaixo. QUADRO 1 Livros de Literatura Títulos Autoria Editora A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho Agnese Brinque‐
baruzzi Book Porcolino e Vovó Margarete Brinque‐
Wild e Book Capa Stephen Michael King A velhinha que dava nome as coisas Cyntia Rylant Brinque‐
Book X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
Chuva de Manga James Brinque‐
Rumford Book X Anped Sul
Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva Márcia A Ilíada e a Odisséia – Coleção clássicos em quadrinhos Williams O amigo do rei Ruth Rocha Ática Ática Coleção Africanidades Antonio Ciranda Jonas Dias Cultural Filho e Márcia Honora Animais da Fazenda Igloo Books Ciranda Cultural Gorrinho, uma loucura crônica João Pedro Paulus Roriz Chica da Silva João Pedro Paulus Roriz Sai da Lama, Jacaré! Graça Lima Paulus De onde viemos? – Explicando as crianças, os fatos da vida, sem absurdos. Peter Mayle Zastras X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
Diário de um Banana (volumes 1, 2 e 3) Jeff Kinney X Anped Sul
Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva Vergara & Riba Livros para a Prática Pedagógica Títulos Autoria 150 Jogos para Jorge Batllori e Victor estimulação da Escandell Educação Infantil Editora Ciranda Cultural Coleção Jogos e Brincadeiras de A a Z Tania Dias Queiroz e João Luiz Martins Rideel A análise dos títulos oportuniza várias interpretações quanto aos critérios de sua escolha. Nos livros “Sai da Lama, Jacaré!”, “Diário de um Banana” e “Porcolino e Vovó”, por exemplo, as narrativas privilegiam “o mundo atual” das crianças e adolescentes, abordando questões da infância e a vida cotidiana de forma lúdica. Em outras obras, como “Chuva de Manga” e livros da “Coleção Africanidades” – esta última abrangendo cerca de dez títulos – colocam‐se em discussão questões como raça e etnia, e é evidente que sua escolha atende às políticas educacionais que reforçam nas escolas o ensino de História e Cultura Afro‐brasileira. Estes últimos livros citados foram adquiridos pelas escolas por solicitação da Secretaria de Educação, assim como os títulos “Gorrinho, uma loucura crônica” e “Chica da Silva”, aquisições feitas devido à participação da escola em programa de leitura. Mesmo tendo sido a sua aquisição motivada por outra injunção, é importante mencionar que o primeiro título segue o mesmo filão de sucesso de “Diário 
Anualmente, todas as escolas de ensino fundamental desta rede de ensino participam de um projeto de leitura realizado em nível estadual, que, em sua 12ª edição, em 2014, conta com a participação de vários autores brasileiros para a infância e adolescência e milhares de leitores. Este projeto se concretiza através da divulgação dos autores, da leitura e seleção de suas obras e da aquisição de acervos. Cada escola escolhe o seu autor (autor vivo) após a análise das obras enviadas pelas editoras, considerando o perfil de seus alunos. Ao final do projeto, as escolas propõem atividades lúdicas que envolvam as demais escolas municipais para socializarem as leituras realizadas durante o ano letivo. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva de um Banana”, na medida em que adota o formato de um diário de adolescente que aposta no humor, enquanto o segundo se relaciona – também de maneira ficcional – com questões da etnia negra e história afro‐brasileira. Neste acervo, foi possível observar a presença de obras clássicas adaptadas pelas editoras e autores, adequando a estrutura, a linguagem e as ilustrações das narrativas primordiais para aproximá‐las aos leitores infantis. No caso de “A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho”, obra que, aliás, integra um dos acervos do PNBE‐2012 para a Educação Infantil, tem‐se um exemplo de outra vertente fecunda da literatura infantil contemporânea ocidental, qual seja, um reconto bem humorado e subvertedor de um conto de fadas tradicional. Já no caso de “A Ilíada e A Odisséia em Quadrinhos” não há propriamente uma paródia ou subversão deliberada das narrativas originais, mas a intenção de reiterar a literatura canônica, privilegiando a tradição cultural de obras consideradas universais na literatura. Além destes títulos apresentados pelos gestores para “ilustrar as aquisições das escolas”, outros títulos foram visualizados durante o período de visitação e, uma vez que circulam no meio escolar como obras de literatura infantil, são abordados nesta investigação. Assim, este novo recorte, apresentado no Quadro 2, compõe um grupo de 07 obras: 05 títulos infantis e 02 títulos didáticos, destacando‐se coleções com vários volumes. Embora os títulos tenham sido escolhidos e comprados pelas escolas, este segundo acervo, diferentemente daquele apresentado pelos diretores, não possui obras com autoria “prestigiada” no campo da literatura infantil, nem provêm de editoras reconhecidas como produtoras incontestáveis de “boa literatura” pela crítica de tal segmento de literatura. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva QUADRO 2 Livro Infantil Títulos Autoria Editora Hotweels – Desafios das Equipes ‐ Ciranda Capa Cultural Chapeuzinho Vermelho ‐ Ciranda Cultural João e o Pé de ‐ Ciranda Feijão Cultural Cristina Coleção Marques & Cássicos Adoráveis (10 Roberto volumes) Belli Brasileitura Coleção As aventuras dos Seres do Mar (10 volumes) Roberto Belli Brasileitura Livros para a Prática Pedagógica Títulos Autoria Editora Coleção Dente de Leite Educação – Projetos Pedagógicos para Educação Infantil (6 volumes) Waldirene Dias Mendonça / Carmem Lúcia F. Vaz Claranto X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.12
Coleção Patati Patatá Ana Maria X Anped Sul
Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva Rideel Riquena Estes livros infantis se distinguem dos primeiros apresentados, primeiro, porque as escolas têm acesso a eles com facilidade através de livreiros que representam editoras e visitam regularmente as instituições com foco no permanente consumo dos títulos. Observe‐se que tais livros não circulam no mercado com os selos que pudessem sugerir sua riqueza literária. As edições citadas caracterizam‐se por um cunho popular e de circulação de massa, sendo adquiridos em maior quantidade e custo muito baixo, sem burocracias que possam fragilizar as finanças da escola como pessoa jurídica. De certa forma, parecem se enquadrar na descrição abaixo feita com relação a uma ampla gama de livros que circulam no mercado brasileiro. [...], a literatura para crianças começou a desenvolver‐se somente depois de a literatura adulta se ter tornado uma instituição bem estabelecida. Até ao século XVIII, raramente se escreviam livros especificamente para crianças, e toda a indústria de livros para crianças só começou a florescer na segunda metade do século XIX. [...], a criação da noção de infância foi uma premissa indispensável para a produção de livros para crianças e determinou em larga medida o desenvolvimento e as opções de desenvolvimento de literatura para crianças (SHAVIT, 2003, p. 21‐22). Este é o caso, por exemplo, da “Coleção As Aventuras dos Seres do Mar” que contempla dez títulos: “A Baleia Coralina”, “A Foca Ludmila”, “Celeste, a estrela do mar”, “Golfinhos brincalhões”, “Guido, o pinguim”, “O Polvo Octaviano”, “O Siri Anastácio”, “O Tubarãozinho Izael”, “Tino, a tartaruga‐marinha”, “Tuti, o peixinho dourado”. Nestes títulos, as narrativas são curtas, com uma escrita sem preocupações estéticas, sendo que as ilustrações não apresentam qualidade ou diferenciação editorial, como na maioria dos títulos do acervo elencado pelos gestores. Assim, se, no primeiro caso, em obras como “Amigo do rei”, “A velhinha que dava nome as coisas”, “Porcolino e a Vovó”, as ilustrações se destacam nas narrativas pela sua originalidade e riqueza estética e pela importância como enriquecedoras do texto escrito, no segundo caso, por exemplo, as X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.13
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva obras “Hotweels – desafios das equipes” e “João e o Pé de Feijão”, apresentam ilustrações estereotipadas e limitadas em seu potencial de leitura. Cabe pontuar, também, as estratégias editoriais e textuais como uma das formas de divulgação desses últimos livros nas escolas. Dentre as editoras elencadas nos acervos deste estudo, destacam‐se as editoras “Ciranda Cultural” e “Brasileitura”, não somente porque possuem representação – livreiros – que se deslocam para diferentes endereços escolares para a divulgação e apresentação dos livros para gestores e professores, em ações mercadológicas agressivas, mas, também, por uma produção editorial de baixo preço, destinada aos leitores infantis, frequentemente com o apelo à “divulgação de contos clássicos” ou a intuitos pedagógicos (“conhecer os seres do mar”) e aos professores. Como estratégia comumente utilizada, tais obras se configuram explicitamente na fronteira entre o pedagógico e o literário (FERREIRA, 2006). Em ambos os acervos, apesar das peculiaridades de cada um, a pedagogização esteve presente na intencionalidade do profissional da escola que escolhe, compra e narra a história para o aluno ou disponibiliza a leitura da obra para o mesmo. Vê‐se, mais especificamente, a corporificação do objetivo de ensinar as crianças através de histórias infantis, exemplo do livro “De onde viemos? – Explicando as crianças, os fatos da vida, sem absurdos”, e ensinar aos professores sobre a docência e como obter sucesso escolar dos alunos, conforme a Coleção “Dente de Leite Educação: Projetos Pedagógicos para Educação Infantil” e o livro “150 Jogos para estimulação da Educação Infantil”. A apresentação em separado dos dois conjuntos de livros não teve como finalidade colocar em “contraste” as obras selecionadas pelos diretores em detrimento daquelas cujas presenças foram visualizadas pelas pesquisadoras, mas, sim, discutir a cultura escolar e suas marcas em nossas existências (HALL, 1997), afirmando determinadas realidades, bem como significados e representações culturais. A expressão “centralidade da cultura” indica aqui a forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo. A cultura está presente nas vozes e imagens incorpóreas que nos interpelam das telas, nos postos de gasolina. Ela é um elemento chave no modo como o meio X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.14
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva ambiente doméstico é atrelado, pelo consumo, às tendências e modas mundiais (HALL, 1997, p. 5). Neste cenário, parece interessante pensar sobre as práticas sociais, examinando‐
as sob a ótica da cultura, problematizando os artefatos culturais que “ensinam” modos de ser sujeito de modo particular. Isso significa considerar que a formação de nossas identidades se dá culturalmente, na mediação objetiva de regras e nas normas contextualizadas em um determinado tempo e lugar. Nossa intencionalidade é colocar em evidência “a presença dos discursos” e como ocorrem as interlocuções com os leitores infantis nas escolas. Considerando a intensa produção literária para a infância e o caráter formativo da escola, parece interessante pensar os efeitos da circulação dos livros infantis e as razões pelos quais são escolhidos, problematizando os critérios pelos quais a literatura se presentifica em tais espaços, assim como quem são os sujeitos que escolhem e definem os livros que são adquiridos pelas escolas. Marcando páginas... O panorama descrito foi considerado para problematizar as narrativas e discursos que circulam sobre literatura infantil no meio escolar. Relembramos que os acervos aqui apresentados são recortes do total de títulos adquiridos por escolas, em movimento paralelo ao PNBE para o acesso à leitura e formação de leitores. A partir do cenário em tela, é possível questionar o que se entende por literatura e quais os critérios para definir a validade dos livros que circulam nas escolas. Neste sentido, esta proposta, ainda que em recorte, tem o objetivo de provocar outros modos de propor a prática de leitura e as escolhas de livros infantis na educação escolarizada, visto que as práticas educativas constituem culturas, criando formas de ser e estar no mundo contemporâneo. Ao analisar os livros elencados pelas escolas como importantes para aquisição, é possível pensar que a literatura infantil – no caso, vista através de escolhas de livros feitas pelas escolas para integrarem os acervos disponibilizados às crianças ‐ é construída sob o viés histórico e cultural, reiterando, X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.15
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva discursivamente, a “educação e cuidado” ou “leitura e escrita”, por vezes, objetivos pedagógicos postulados nas prerrogativas educacionais da Educação Infantil e Ensino Fundamental. Entretanto, e é importante salientar este aspecto, o livro é, também, um produto comercial, uma vez que a aquisição de obras pelas escolas fomenta e orienta a intensa produção editorial a criar diferentes técnicas de venda e novas formas de divulgação para o consumo de livros infantis. Logo, ao se escolherem obras nomeadas como literatura para aquisição, carregam‐se junto ao conceito contextos e normas culturais e, em relação aos livros destinados às crianças, o livro é o artefato que “emite” a visão do adulto sobre as coisas. Considerando que a escola é uma instituição de caráter formativo, as “meras histórias” (HUNT, 2010) ascendem ao padrão de “bom livro” quando “propõe aos leitores possibilidades para tornar‐se melhor” (FERREIRA, 2012, p. 77); isto é, quando capazes de ensinar algo aos leitores infantis, supondo‐se que tenham, em especial, efeitos positivos na alfabetização/letramento e na formação de leitores. Nossa discussão aproxima‐se das ideias de Ferreira (2012, p. 78), quando referem uma das estratégias preferidas na educação infantil e nos anos iniciais para propor um modo de fazer literatura: “é compreendida como aquela que traz benefícios (cognitivos, culturais, históricos), amplia e acrescenta “conteúdos” valorizados socialmente”. Aponta‐se na direção de uma “pedagogia cultural” o que remete a uma educação que ocorre em diferentes lugares. Para tanto, diferentes aparatos e/ou tecnologias culturais são utilizadas para implicar sentidos e significados “como um “dispositivo produtivo”, que é, ao mesmo tempo, material e abstrato” (WORTMANN, 2010, p. 112). Realizada sob a inspiração dos Estudos Culturais, esta tentativa analítica intenta “uma pedagogia que transcenda os limites das teorizações e ações tantas vezes definidas como eminentemente pedagógicas, adentrando no complexo campo das ações e produções da cultura” (Ibidem, p.119). Por fim, podemos relembrar que a articulação do campo da educação com os Estudos Culturais promove importante deslocamento das discussões sobre o ideário educacional, ampliando as práticas educativas para além dos muros da escola. Neste cenário, cabe questionar as diversas teorias, ferramentas e políticas educacionais para X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.16
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Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva definir e instituir o que é educação, criando conexões com outros campos e ideias e novas possibilidades de ensinar e aprender. Referências BRASIL, Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v.134, n. 248, 23 dez. 1996. Seção I, p. 27834‐27841. _______. Programa Nacional Biblioteca da Escola. Disponível em: ‹http://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca‐da‐escola/biblioteca‐da‐escola‐
apresentacaohttp://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca‐da‐escola/biblioteca‐da‐
escola‐apresentacao› Acesso em: 07 abr. 2014. FERREIRA, Norma Sandra de Almeida. Livros Infantis: uma estratégia editorial. In: ________________ (org.). Livros, Catálogos, Revistas e Sites para o Universo Escolar. Campinas: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil, 2006. p. 137‐152. _______________________________. A prática de “ler literatura” como distinta de muitas outras práticas de leitura. Nuances: estudos sobre educação, Ano XIII, v.21, p.76‐
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X Anped Sul
Para além dos programas oficiais: a literatura infantil escolhida pela escola Elen Maisa Alves da Silva KLEIN, Madalena. Literatura infantil e produção de sentidos sobre as diferenças: práticas discursivas nas histórias infantis e nos espaços escolares. Pro‐Posições, v.21, n. 1 (61), p. 179‐195. Jan./Abr.2010. MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Orgs.). Metodologias de pesquisas pós‐críticas em educação. Belo Horizonte: Massa Edições, 2012. Ó, Jorge Ramos. A Governamentalidade e a Escola Moderna: outras conexões investigativas. Educação & Realidade, v. 34, n.2, p. 97‐117. Maio/Ago. 2009. SHAVIT, Zohar. Poética da Literatura para Crianças. Trad. Ana Fonseca. Lisboa: Caminho, 2003. WORTMANN, Maria Lúcia Castagna. Pedagogia, cultura e mídia: algumas tendências, estudos e perspectivas. In: BUJES, Maria Isabel Edelweiss & BONIN, Iara Tatiana. Pedagogias sem fronteiras. Canoas: Ed. ULBRA, 2010. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.18
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a literatura infantil escolhida pela escola