Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Resumo Na sociedade contemporânea a palavra Gestão vem sendo amplamente utilizada em contextos empresariais, pedagógicos e também pessoais. Parece que tudo é uma questão de Gestão, com significativa centralidade também na educação. Inscrito no campo teórico dos Estudos Culturais, o artigo aborda a centralidade da gestão escolar na atualidade. Coloca em relevo aspectos históricos implicados nas transformações conceituais que nos conduziram ao entendimento que temos hoje da “gestão” e discute elementos que visibilizam a gestão escolar como estratégia de atrelamento das escolas à lógica das sociedades contemporâneas regidas pelo mercado. Palavras‐chave: gestão escolar; administração escolar; escola e sociedade de consumidores; educação e mercado. Carla Conceição Souza Nunes Universidade Luterana do Brasil [email protected] X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica A proeminência e popularização da gestão na atualidade é um fato inconteste. Tudo hoje parece ser uma questão de gestão, e tudo supostamente se resolve com gestão adequada, seja da vida privada ou pública, de organizações ou pessoas, de indivíduos ou coletivos, do corpo ou da alma, de coisas materiais ou imateriais. Nesse panorama, a coordenação dos processos educativos não escapa desta tendência, nela se inscrevendo de forma incisiva, complexa e competente. Partimos da ideia de que a gestão escolar está intimamente relacionada com a sociedade de consumidores de que fala Zygmunt Bauman (2009). Hoje a educação é também vista como um empreendimento que precisa ser gerenciado, visando ao alcance de metas e resultados relacionados com uma suposta qualidade do ensino e, consequentemente, com a preparação dos sujeitos para o adequado encaixe nos imperativos mercantis da vida contemporânea. De acordo com Bauman (2011), podemos afirmar que a Gestão Escolar igualmente busca atender demandas destes tempos líquidos em que a durabilidade está sendo substituída pela transitoriedade e flexibilidade, incluindo‐se aí a dos processos educativos. Tempos em que “as políticas de vida se deslocaram/variaram para o domínio operado pelos mercados de consumo” (BAUMAN, 2011, p. 207), e as políticas de gestão escolar parecem também buscar atender, em suas propostas e rotinas educativas, a essa centralidade dos mercados e do consumo. É a produtividade do trabalho na escola que importa agora. Para discutir tais questões, este artigo aborda tópicos de uma dissertação de mestrado1 que problematiza a gestão escolar mediante análise da revista Nova Escola Gestão Escolar, artefato cultural que emerge direcionado especificamente à modelagem e aprimoramento das práticas escolares de gestão. O estudo procurou mostrar como essa revista constrói, para uso de gestores, professores e pedagogos, uma concepção de gestão escolar em que esta é alçada à condição de “redentora” da escola. Não haveria alternativa para a escola fora desta lógica contemporânea em que tudo e todos entram no cômputo dos interesses e dos ganhos implicados nas políticas que governam a própria vida. Para este artigo, optamos por um recorte do estudo que (a) coloca em relevo 1
Não é referenciada a dissertação para atender ao requisito de anonimato. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.2
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes aspectos históricos implicados nas transformações conceituais que nos conduziram ao entendimento que temos hoje da “gestão” e (b) discute elementos que visibilizam a gestão escolar como estratégia de atrelamento das escolas à lógica das sociedades contemporâneas regidas pelo mercado. Transformações no campo semântico – da administração à gestão Ao incursionar pelo campo semântico das palavras administração e gestão, discutimos os sentidos das expressões que são complementares e centrais para a discussão que aqui apresentamos. Não buscamos um significado definitivo e não temos o entendimento de que uma expressão esteja se sobrepondo à outra, mas que ambas são significativas para se compreender a administração/gestão das escolas na contemporaneidade. São conceitos que carregam significados merecedores de uma análise aprofundada. Para tal abordagem, recorremos a estudos que tratam do tema e subsidiam uma discussão acerca da emergência e das transformações em seus usos. Claudia Falavigna Abbud (2009), no último capítulo de sua dissertação de Mestrado, apresenta uma análise dos processos relacionados à administração e à gestão recorrendo, para definir tais vocábulos, a obras de referência, como dicionários da língua portuguesa e da língua inglesa. Segundo esta autora, o significado da palavra administração está relacionado ao ato ou forma de administrar, de reger negócios públicos ou particulares. A expressão pode se referir ao cargo de chefia ou direção das organizações, e também está relacionada com o controle e disciplinarização, objetivando o cumprimento das metas destas organizações (p.92). O vocábulo gestão, por sua vez, segundo Abbud (2009), é definido como um ato, efeito ou arte de gerir. A gestão também está relacionada com a condução, supervisão, planejamento, organização e coordenação de processos, projetos ou atividades tendo como meta atingir resultados positivos (p.93). Abbud (2009) ressalta aspectos históricos relativos a estas palavras: administração aparecendo em Português no século XIV e gestão no século XIX. (...) este intervalo de tempo já pode nos conduzir a pistas interessantes. Administração, então, pode ser associada ao início dos tempos modernos. Sua forma atual em nossa língua pode ser detectada X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes ao tempo do início da expansão do domínio português sobre os mares, nos alvores da era das descobertas, da Renascença, da consolidação dos reinos europeus que dariam mais tarde origem aos estados nacionais modernos – num tempo em que começam a se ampliar as percepções sobre o mundo conhecido e, portanto, sobre o espaço e o tempo (p.94, grifos nossos). A gestão seria filha do século XIX, quase contemporânea do que se convencionou chamar de administração científica, de um tempo em que se expandiram os saberes para gerir os negócios do Estado e as novas invenções humanas para ampliar o mundo da produção e do consumo. Ela ganhou o sentido que hoje lhe é atribuído na passagem da ênfase na produção fabril para a constituição das grandes corporações. Seu ambiente típico não é o do chão da fábrica, mas o recinto climatizado das empresas (p.95, grifo nosso). Não se trata de apontar para a pura substituição de um termo pelo outro, com o irremediável declínio do que vinha sendo nomeado como administração. Poder‐se‐ia dizer que, nos jogos de linguagem que povoam as práticas cotidianas, o que ocorre é um lento encobrimento de uma perspectiva pela outra, do qual são representativos não apenas a preferência pelo termo gestão, mas a imposição de outros significados e práticas a ele associados (p.98, grifos nossos). As ideias expostas nos excertos citados enfatizam a temporalidade em relação à utilização das palavras administração e gestão onde, em consonância com o contexto sociopolítico e cultural, cada uma estabelece uma orientação em relação às formas de agir. É importante sublinhar que o sentido da palavra administração no século XIV não está necessariamente relacionado com as questões da escola, mas seu aparecimento e uso já indica a emergência desta nuance nas artes de governar. O que também fica evidente é que não há uma pura e simples substituição dos termos, mas uma mudança em relação às ênfases, esta também relacionada com o período histórico em que ambas são praticadas. Assim, no que diz respeito à escola, antes de chegar à contemporânea gestão escolar, esta instituição esteve sob a influência da administração escolar. No passado, a palavra administração era mais adequada, pois o foco estava na ordem, na busca da perfeição e no cumprimento de diretrizes. A própria palavra administração nos remete a questões relacionadas com a lógica da organização e da hierarquia tão caras à X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes modernidade. O objetivo da administração escolar era primar pela ordem, acionando dispositivos de coordenação, acompanhamento e controle das ações pedagógicas. Alguns livros, estudos e textos da área colocam em evidência as peculiaridades da administração escolar. O livro História da Administração Escolar no Brasil (ANDREOTTI; LOMBARDI; MINTO, 2010) nos subsidia com um conjunto de trabalhos sobre a trajetória desta área na educação brasileira. Os textos foram elaborados tendo como referência questões sociais, políticas e econômicas nos períodos do Brasil Colônia, Imperial, Primeira República, Era Vargas, Nacional Desenvolvimentismo, Governo Militar, Nova República e Neoliberalismo. Também em um artigo da segunda edição da Nova Escola Gestão Escolar (junho/julho, 2009) foi apresentado como teria surgido a figura do diretor escolar, em meados de 1894, entendido como um dos marcos da “renovação educacional prometida com a Proclamação da República”. O artigo ressalta que, atualmente, “de positivo, permanece apenas a importância do diretor — e seu papel decisivo na realização do sonho republicano de uma escola pública de qualidade para todos” (p. 18). Na tese de doutorado de Viviane Klaus (2011), intitulada “Desenvolvimento e Governamentalidade (Neo) Liberal: da Administração à Gestão Educacional”, a autora problematiza como a gestão se tornou algo central na educação e como se deu a mudança de ênfase da administração para a gestão Educacional. Nesse caso, a autora se volta aos sistemas mais abrangentes da educação, extrapolando, mas não desconsiderando, o espaço mais restrito da escola. Para compor o corpus de sua pesquisa, mapeou os contextos políticos, econômicos e sociais do pós‐guerra e da década de 1990. Segundo ela, a centralidade da Administração da Educação no pós‐guerra estava alinhada com a urgência em relação ao desenvolvimento do país. Isso perpassava primeiramente pela ideia de garantir o acesso à educação a todos os cidadãos. Por isso, a necessidade de ordem e Administração das escolas. No cerne desta questão estão os princípios do movimento da Escola Nova, que mobilizou educadores nos anos 1920 e 1930, período em que, segundo Klaus (2011), foram amplamente discutidas por escolanovistas, como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, questões sobre “a importância da administração da educação, a necessidade de contabilizar a população a ser educada, a noção de sistema de ensino” (p.130). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes A suposta necessidade da administração vai assim permeando todas as áreas da sociedade em nome do desenvolvimento do país. Esta questão também afeta a escola. É importante destacar que a administração escolar foi influenciada pela teoria administrativa que teve com expoentes Henry Fayol, da França, e Frederick W. Taylor, dos Estados Unidos da América. Seus estudos foram adaptados para subsidiar a composição da formação de administradores escolares. Para garantir a ordem e o controle da escola, a administração escolar foi organizada em setores especializados denominados direção (coordenação geral das ações), supervisão escolar (coordenação da ação docente) e orientação educacional (harmonização da conduta discente com a administração geral da vida escolar). Essa segmentação das ações consolidou‐se como prática naturalizada nas instituições de ensino, corroborando com a lógica da ordem moderna. Em nosso país, as décadas de 1960 e 1970, com mudanças significativas na política, na cultura e na sociedade, demarcam o auge da administração escolar. Segundo a pesquisa de Jociane Rosa de Macedo Costa (2002), Esse período foi marcado por intensas iniciativas governamentais no campo educacional; a educação, destacada com um fator estratégico de reorganização da sociedade, é remodelada para atender ao projeto político desenvolvimentista, na versão apresentada a partir do golpe militar de 1964 (p.31). Para Costa (1995), esse golpe estava alinhado aos interesses tecnocráticos que disseminaram no âmbito político e pedagógico das escolas o objetivo de “transformar as escolas em empresas educativas regidas pela logica da eficiência e da eficácia, a serviço de uma concepção peculiar e interessada de modernização educacional” (p.15). Já na década de 1980, a ênfase na administração das escolas começa a ser tensionada. Questões como a democratização da educação, a participação da comunidade na escola e a autonomia da escola mexem com as estruturas escolares em busca de algo mais condizente com os novos tempos e com o processo de redemocratização do País. A partir da promulgação da Constituição Federal em 1988 “a legislação educacional passou a adotar uma nova terminologia para se referir a X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes organização da escola, substituindo o termo administração por gestão” (MINTO, 2010, p.182, grifos nossos). No final do século passado, mais especificamente nos anos 1990, o termo administração escolar perde espaço e a gestão escolar começa a ganhar centralidade significativa no contexto educacional brasileiro. As políticas públicas do país voltam‐se para a importância de ser realizada uma boa gestão da escola visando a uma educação de qualidade. A gestão passa a ser então associada à boa qualidade da educação. Segundo Minto (2010), inicialmente a gestão escolar teria assumido um papel mais técnico do que político, “orientada exclusivamente pelos critérios econômicos da gestão, tais como: gestão de receitas e despesas, redução de custos, aumento da proporção entre alunos e professores, aumento da produtividade da escola” (p.182). Podemos dizer que essa centralidade da gestão está relacionada com as concepções da lógica neoliberal e suas proposições em relação ao gerenciamento das escolas onde a busca por excelência e resultados estão presentes nos discursos que marcam as esferas educativas. Nessa tendência, torna‐se cada vez mais evidente o atrelamento das políticas e objetivos educacionais e escolares aos interesses econômicos e mercantis em jogo. Hoje, a palavra gestão vem sendo amplamente utilizada em contextos empresariais, pedagógicos e também em relação às questões pessoais de nossa vida. Abbud (2009) afirma que “o termo gestão está vindo a substituir administração, nestes novos tempos” (p.89). A palavra gestão parece estar mais alinhada com esses tempos líquidos, fluídos e instáveis, já que sugere mais afinidade com a flexibilidade considerada imprescindível às instituições contemporâneas. Expressões como gestão financeira, gestão do tempo, gestão da aprendizagem, gestão da carreira, gestão do espaço, gestão da família, autogestão, etc. fazem parte de nosso repertório cotidiano e nos remetem constantemente a essa centralidade do gerenciamento de tudo que faz parte de nossas vidas. De acordo com Bauman (2009), essa obsessão pelo gerenciamento é uma marca desses tempos líquidos em que vivemos, caracterizados pela flexibilidade das organizações e das pessoas para se adequarem às exigências da sociedade de consumidores. Na contemporaneidade, tudo o que cerca nossa vida “é dinâmico demais para permitir que se façam as coisas do mesmo jeito ano X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes após ano, ou que se faça a mesma coisa” (SENNETT, 2010, p.22). Por isso a importância e a centralidade de ações gestoras em atitudes pessoais ou profissionais na busca constante da realização plena da vida, vida composta de episódios que precisam ser gerenciados de forma competente para que não se tornem refugo da sociedade contemporânea. A proeminência da gestão nas sociedades orientadas para a mercantilização e o consumo mexe com as estruturas da escola contemporânea, afetando a organização e os objetivos dos espaços educativos. No artigo “A conveniência da escola”, Costa e Momo (2009) problematizam esses novos usos da escola, atrelados à lógica social vigente, onde a economia, os interesses mercantis e a política interferem em todos os âmbitos da vida, e as empresas adentram as escolas em projetos sociais que visibilizam sua atuação com aura de benemerência. Segundo as autoras, “a escola da atualidade está impregnada de marcas das sociedades contemporâneas, eivadas de ambivalências” (p.522). Em grande parte, estas marcas estão atreladas à lógica mercantil, à competição e aos interesses de mercado, que utilizam o espaço escolar para disseminar seus preceitos. Para Costa e Momo (2009), [A]aliar‐se a projetos sociais com propósitos democráticos edificantes contribui para posicionar os mega conglomerados mercantis da atualidade em um território protegido, sancionado pela sociedade. A cultura é sua poderosa aliada e a escola um de seus espaços preferenciais, especialmente porque confere legitimidade e a tarja de “boas intenções” às suas iniciativas (p.532). Ao corroborar com esta lógica, a escola ajuda a construir uma boa imagem para as empresas, bancos, indústrias e outras organizações que se utilizam deste espaço para se firmarem como referências para a sociedade e, consequentemente, fortalecerem sua imagem, conquistarem clientes, venderem mais seus produtos e atingirem suas metas mercadológicas. Nestes tempos flexíveis, a educação também passa a ser entendida como um produto, uma mercadoria, e a escola, inscrita na lógica de mercado, começa a ser vista como uma empresa. A partir desta compreensão, a gestão da escola é influenciada por preceitos empresariais e responde às exigências da competitividade econômica. É por X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes isso, conforme Laval (2004), que o foco hoje está na gestão escolar, pois a ela compete “traduzir a lógica educativa em lógica de mercado (o aluno se assemelha a um cliente e o professor a um ‘colaborador’) e, enfim, fazer da empresa a norma ideal a qual a escola deve se dobrar” (p. 283). O gestor escolar assume, assim, a gerência de um serviço educacional que tem como produto principal a produção de sujeitos para as sociedades globalizadas de mercado. De acordo com Laval (2004), No plano das referências simbólicas, o gerencialismo substitui, pouco a pouco, o humanismo como sistema de inteligibilidade e legitimidade da atividade educativa, justificando, assim, o peso crescente dado aos administradores, aos experts, aos estatísticos. Esse gerencialismo é um sistema de razões operacionais que pretende suportar o significado da instituição, pelo único motivo de que tudo parece dever se racionalizar segundo o cálculo das competências e a medida das performances (p.193). Esta concepção empresarial que vai influenciando a escola é mais um traço da sociedade líquida moderna de consumidores onde a ênfase está no mercado e tudo se transforma em mercadoria (BAUMAN, 2008, JAMESON, 1996). Parece que não há como a escola escapar desta lógica e, por isso, progressivamente, a educação se torna mais um produto que precisa adequar‐se às exigências, tendências e imperativos mercantis das sociedades contemporâneas. Neste contexto, justifica‐se porquê, nesses deslocamentos e mudanças de ênfase no funcionamento e nas finalidades da escola, a gestão escolar se torna algo tão central e significativo para os rumos desta instituição nesses novos tempos. Esta questão está relacionada com a sociedade em que o eixo principal é o consumo. A sociedade de consumidores e a gestão escolar Refletir sobre o tempo presente é um desafio instigante que Zygmunt Bauman realiza com maestria. Suas profícuas análises oferecem ferramentas que nos ajudam a compreender a contemporaneidade mediante um olhar mais aguçado sobre as mudanças nos modos de vida. Elas apontam que a sociedade que antes procurava moldar seus X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes membros como produtores está sendo lentamente substituída por esta que os molda como consumidores. Contudo, isso não significa que na sociedade contemporânea tenha desaparecido a produção e vivemos apenas consumindo, pois não existe uma lógica de substituição de uma pela outra, mas uma mudança de ênfase. Ou seja, não deixamos de ser uma sociedade de produtores para nos tornarmos exclusivamente uma sociedade de consumidores; hoje as duas estão simultaneamente presentes. Bauman (2001) explica que “a sociedade de consumidores do presente significou, portanto, uma mudança de ênfase mais que uma mudança de valores” (p. 182). Na sociedade de consumidores analisada por Bauman (2008), o consumo assume um papel central que marca a vida dos sujeitos. Fazendo uma comparação entre a sociedade de produtores e a sociedade de consumidores, podemos dizer que na primeira o consumo estava baseado na aquisição de bens duráveis, que ostentassem riqueza e garantissem segurança a longo prazo. Já nos tempos atuais, a ênfase está no consumismo e na busca constante da satisfação de desejos, sempre crescentes, voláteis e insaciáveis, já que nesta sociedade o que importa é estar em movimento e não fixar‐se. Assim, ser membro desta sociedade de consumidores exige que estejamos em processo constante de qualificação e aprimoramento para que nos mantenhamos como uma mercadoria atraente e desejável. Isso não é fácil, pois decorre de algo individual dependente do esforço de cada um. “Uma vida de consumo não consiste em possuir e adquirir. Nem mesmo tem a ver com se livrar do que foi comprado anteontem e exibido com orgulho um dia depois. Ela diz respeito, antes de mais nada, a estar em movimento” (BAUMAN, 2011, p.152). Nesse contexto e com base nos estudos realizadas na dissertação já mencionada, percebemos que um dos eixos da educação na sociedade de consumidores é, sem dúvida, a gestão escolar. A educação escolar está relacionada com uma boa gestão do tempo, do espaço, da aprendizagem dos alunos, da formação permanente dos professores, da qualidade da estrutura física, do acesso à tecnologia, da disponibilidade de bons livros, do currículo, etc. É fato que, segundo Bauman (2009), “para o bem ou para o mal, as criações culturais precisam de gerentes” (p.79). De onde se pode dizer que X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes as escolas precisam de gestores preparados para atuar neste contexto da sociedade de consumidores. Conforme expusemos no item anterior, a organização da escola passou de uma ênfase na administração para a gestão, supostamente atrelada às transformações embutidas na transição da sociedade de produtores para a sociedade de consumidores. Isso implica que, segundo Bauman (2009), os gerentes passaram da “regulação normativa” para a “sedução”; do monitoramento diário para as relações públicas; e do modelo panóptico de poder, indiferente, sobrerregulamentado, com base na rotina, para a dominação exercida por meio de uma incerteza difusa, sem foco, da precarité e de uma quebra de rotina incessante e aparentemente casual (p.78). Na atualidade, parece que a coordenação e o controle excessivos estão sendo substituídos por uma suposta “liberdade” dos sujeitos, já que a inflexibilidade das rotinas estaria na contramão dos interesses voláteis da sociedade de consumidores. Nesta concepção, conforme Sennett (2010), “enfatiza‐se a flexibilidade. Atacam‐se as formas rígidas de burocracia, e também os males da rotina cega” (p.9). Os gestores escolares da sociedade de consumidores abandonaram a ambição em relação ao controle, à regulação e ao cumprimento de normas. Em vez disso, colocaram‐se como “honestos corretores das necessidades (leia‐se pressões irresistíveis) do mercado” (BAUMAN, 2009, p. 79). Nesta perspectiva, é preciso compreender a serviço de que se celebra a importância e a necessidade de gestores. Nas palavras de Bauman (2009) encontramos respaldo para dizer que ... novos realmente são os critérios que os gerentes atuais — no seu novo papel de agentes das forças do mercado e não dos poderes do Estado construtor da nação — empregam para avaliar, “auditar”, “monitorar”, julgar, censurar, recompensar e punir seus tutelados. Naturalmente, são critérios do mercado de consumo, do tipo que estabelece uma preferência pelo consumo, a satisfação e o lucro instantâneo (p.79). Nestes tempos líquidos, fluídos, mutáveis, velozes, instáveis, em que tudo parece atrelado ao consumo, a escola precisa de plasticidade para estar em constante movimento e moldagem. Para os sujeitos da sociedade de consumidores, a educação X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes passou a ser uma mercadoria muito valiosa, e a gestão escolar impõem‐se como algo necessário para que esta acompanhe os contornos e flexões desses novos tempos, com exigências sempre renovadas. As sociedades capitalistas contemporâneas, intensamente mercantilizadas, posicionam o consumo como processo central ao qual todos são convocados. Uma boa gestão transforma escolas, saberes, conhecimentos, assim como pessoas (alunos, professores, etc) em mercadorias valorizadas e aptas a circular na sociedade de consumidores. Podemos dizer que a gestão escolar nesta sociedade também é uma mercadoria e está à disposição para corroborar preceitos da lógica vigente; a criação de uma revista especializada para tratar especificamente desse âmbito da atuação escolar é uma contundente evidência disso. A ênfase no gerenciamento da escola é mais uma manifestação dos interesses mercantis implicados em suas atuais formas de funcionamento. Mas não apenas isso. É preciso que ela seja produtiva na fabricação de sujeitos encaixáveis na sociedade de consumidores. Segundo Costa e Momo (2009), há “indícios de que a ‘conveniência’ da escola ultrapassa o interesse mercantil imediato e se projeta como estratégia direcionada a uma variada gama de propósitos sociopolíticos, econômicos e culturais” (p.523). Para a escola se tornar esse bem de consumo adequado a esta sociedade de consumidores, a gestão escolar deve assumir esta missão e gerenciar as escolas de acordo com os preceitos da economia de mercado contemporâneo. Consideramos que a gestão escolar constantemente está se recriando, reinventando, para acompanhar a lógica da sociedade de consumidores onde “cada sujeito está engajado em práticas de empreendedorismo dedicadas a transformar a si próprio em uma mercadoria vendável e consumível” (COSTA, 2009, p. 37). Isto vai impregnando a escola, pois, conforme Momo e Costa (2009), Sendo a escola um lugar na cultura, um lugar onde a cultura circula, onde culturas se encontram e negociam, onde se produz e consome cultura, ela também começa a ser posicionada em relação a esse novo jeito da cultura operar, e também nos ensina muito sobre nosso período histórico e sobre novas funções e significados da escola na ordem contemporânea orientada para e pelo mercado (p.524). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.12
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Administração e Gestão na escola: para além de uma questão semântica Carla Conceição Souza Nunes Referências ABBUD, Claudia Falavigna. O que há de Melhor na gestão de pessoas? Mídia escrita e educação corporativa. 2009. 109f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009. ANDREOTTI, Azilde L.; LOMBARDI, José Claudinei; MINTO, Lalo Watanabe (orgs.). História da Administração Escolar no Brasil. Campinas, SP: Editora Alínea, 2010.p. 173 a 199. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. ______. Vida para consumo. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ______. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. ______. A ética é possível num mundo de consumidores? Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. COSTA, Jociane Rosa de Macedo. A pedagogia nas malhas de discursos legais. 2002. 74f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. COSTA, Marisa Vorraber. Trabalho docente e profissionalismo. Porto Alegre: Sulina, 1995. ____ e MOMO, Mariangela. A conveniência da escola. Revista Brasileira de Educação, Campinas: Autores Associados, v.14, n. 42, set./dez. 2009. p. 521‐533. JAMESON, Fredric. Pós‐Modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco e Rev. de Iná Camargo Costa. São Paulo: Ática, 1996. KLAUS, Viviane. Desenvolvimento e Governamentalidade (Neo) Liberal: da Administração à Gestão Educacional. 2011. 226f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa. O neoliberalismo em ataque ao ensino público. Trad. Maria Luiza M. de carvalho e Silva. Londrina: Editora Planta, 2004. MINTO, Lalo Watanabe. A Administração Escolar no Contexto da Nova República e do Neoliberalismo. In: ANDREOTTI, Azilde L.; LOMBARDI, José Claudinei; X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.13
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