O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA E A AUTORIA Lezinete Regina LEMES (Mestrado, ICEC/ICE/UFMT, [email protected]) Resumo: O presente artigo é parte de uma pesquisa de Mestrado intitulada O discurso autoral nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio: análise linguística, cujo objetivo é desvelar a constituição da autoria discursiva em relação à análise linguística, presente nos livros didáticos e nos seus respectivos Manuais do Professor. Neste artigo, são discutidos dois conceitos importantes para a compreensão da autoria em uma obra didática: gêneros discursivos (BAKHTIN, 1952-53/197) e tripartição autoral ― autor-herói, autor-ouvinte e autor-contemplador ― (BAKHTIN (1922-24/1979). Trata-se de um tema relevante, haja vista que os LDP são enunciados concretos em que a cada momento sócio-histórico refletem e refratam questões relacionadas ao ensino-aprendizagem de língua materna. Palavras-chave: livro didático, língua portuguesa, autoria Abstract: This present article is part of a master research named The authority speech on the educational Portuguese Language books (PLB) from hight school: linguistics analyze, whose main objective is to present the authority building´s speech in connection to linguistics analyze, on the educational books as well the Teacher´s Guide. On this article we discuss two important concepts to the authority understanding in a educational book: speechful in kind ( BAKHTIN, 1952-53/1979) and authority into three different parts ― author hero, auditor author and taker care author ― (BAKHTIN (1922-24/1979). This work treat with a relevant article, because the PLB are specific enunciator in which each social-historical moment they reflect and break questions related to teaching-learning from mother tongue. Keywords: educational book, mother tongue, autoral. 1 Notas introdutórias Discorrer sobre autoria é uma tarefa não muito fácil, porque envolve conceitos que estão no âmbito da Literatura, em que temos dois sujeitos atuando ao mesmo tempo: o autor-pessoa é o componente da vida social, destituído de uma atividade criadora, ou seja, ele “é o acontecimento ético e social” (BAKHTIN,1922-24/1979; e o autor-criador é aquele que se faz reconhecer pela sua obra, uma vez que ele se inscreve nela, como diz Bakhtin, “o autor deve ser compreendido, acima de tudo, a partir do acontecimento da obra, em sua qualidade de participante, de guia autorizado” (1922-24/1979). Nesse sentido, nosso objetivo neste artigo é mostrar que esses dois conceitos são recorrentes em nosso meio social. Para isso, tomaremos o livro didático de Língua Portuguesa enquanto gênero discursivo, por acreditarmos que, no processo de elaboração, ele sofre influências dos agentes mais imediatos e dos mais distantes. Isso acaba sendo representado na atividade textual pelo autor-criador, precisamente pelo seu estilo individual, em que ele manifesta sua subjetividade, sua apreciação valorativa, enfim, o autor-criador torna-se único, pelo desenvolvimento de seu projeto discursivo. Para compreendermos a constituição do sujeito-autor nos livros didáticos de língua materna, primeiramente, apresentaremos a releitura do livro didático de Língua Portuguesa enquanto gênero do discurso segundo Bunzen (2005, 2007), Bunzen e Rojo (2005), Padilha (2005), Barros-Mendes (2005). Após, apresentaremos o conceito de autoria, segundo Bakhtin (192224/1979). 2 Livro didático de Língua Portuguesa: um gênero do discurso Batista e Rojo (2005), após um estudo sobre o estado da arte no que tange a pesquisas relacionadas ao livro didático (LD), chegaram a conclusão de que é necessário que a literatura escolar considere-o como um objeto de investigação, tendo em vista que ele envolve diferentes dimensões (econômicas, técnicas, sociais, políticas e educacionais) e não apenas “um meio para o estudo de conteúdos e de metodologia de ensino” (2005, p. 43). Rangel (2001), em seu artigo Livro didático de Língua Portuguesa: o retorno do recalcado, cujo título é bastante sugestivo, considera importantes os novos olhares que têm sido dados ao LD. Segundo ele, houve um período em que o LD era visto como o “responsável pelos insucessos da escola em relação a suas funções essenciais” (2001, p.14). Outro pensamento a ser superado é o desprestígio que cerca os estudos sobre LD, apesar das mudanças ocorridas nas abordagens temáticas e do surgimento de linhas de pesquisas direcionadas para este objeto de investigação. Considerando as novas abordagens em relação a este “utilitário da sala de aula” 1 , Bunzen 1 Esta termologia pertence a uma das classificações postas por Alain Choppin (1922) para distinguir quatro tipos de livros escolares: “a) os manuais ou livros didáticos ¯ utilitários da sala de aula, obras produzidas com o objetivo de auxiliar no ensino de uma determinada disciplina [...]; b) os livros paradidáticos ou paraescolares ¯ obras complementares que tem por função resumir, intensificar ou aprofundar conteúdos específicos do currículo de uma disciplina [...]; c) os livros de referência ¯ dicionários, atlas e gramáticas, destinados a servir de apoio (2005) postula que o livro didático de Língua Portuguesa (LDP) é um gênero discursivo, cuja definição está embasada na teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin e seu Círculo. Segundo o pesquisador, o LDP é um gênero que pertence a determinadas esferas da atividade humana, circunscritas a um momento sócio-histórico. O gênero LDP procura, na medida do possível, “refletir as condições específicas e as finalidades de cada uma das suas esferas de origem e de circulação” (BUNZEN, 2005, p. 27). Bunzen e Rojo (2005, p. 86), ao argumentarem que LDP é um gênero discursivo, afirmam que ele possui unidade discursiva, autoria e estilo, proporcionada via fluxos e alinhamentos do discurso autoral, responsável pela articulação de textos e gêneros diversos e que tal processo indicia muito mais a produção de enunciados em um gênero do discurso do que um conjunto de textos num suporte, sem um alinhamento específico, sem estilo e sem autoria [grifo dos autores]. Para Barros-Mendes (2005, p. 26), o LDP está constituído por “diferentes discursos e espaços discursivos imbricados em seus campos de produção e de circulação.” Aceitamos este posicionamento da pesquisadora, por entendermos, também, que o LDP assume discursos de outras esferas (jornalística, acadêmica, científica, escolar etc.), os quais estarão presentes durante a produção e posterior circulação. Um exemplo é a consideração dos gêneros discursivos como objeto de ensino, pois a intenção é, na medida do possível, trabalhar a língua materna na perspectiva dos gêneros. Esse propósito está de acordo com os documentos oficiais, que acabam por homologar essa prática de ensino nos LDP. Padilha (2005) acredita que, na elaboração de um livro didático, há três elementos que atuam de forma indissociável: o autor (autor-criador), o herói (objeto) e o ouvinte (contemplador). O primeiro elemento é caracterizado como sendo aquele responsável pelo desenvolvimento do projeto autoral, isto é, “a seleção dos textos, os recortes, as adaptações a formulação das atividades, a escolha teórico-metodológica, as diferentes propostas, o projeto gráfico” (PADILHA, 2005, p. 81). Seguindo esta linha de pensamento, Padilha (2005, p. 88) considera que "o autor, assim, como no romance, insere outros gêneros, que servem, no caso do livro didático, ao propósito pedagógico, assim como cartas e outros gêneros inseridos no romance servem aos propósitos do enredo, da sequencialização dos conteúdos, na narrativa extensa." O segundo elemento está relacionado aos objetos de ensino que serão escolhidos e didatizados. Caberá ao autor todo processo de didatização para os conteúdos selecionados por ele, segundo suas concepções de língua(gem) ou conforme outras interferências, a saber: os documentos oficiais, as práticas escolares já difundidas etc. A atuação do autor-criador, nesse momento, não é uma das tarefas mais fáceis, tendo em aos aprendizados [...]; d) as edições escolares de clássicos ¯ que reúnem, de modo integral ou sob a forma de vista que ele deverá responder a um projeto discursivo autoral pré-determinado, o qual será materializado por meio dos objetos de ensino priorizados por ele, a sua didatização, as relações entre esses objetos com a concepção de ensino do autor e do que é difundido no cenário acadêmico. E o último elemento, segundo Padilha (2005, p. 83), diz “respeito às formas de estruturação das obras tendo em vista os seus leitores: os alunos e o professor, bem como outros interlocutores, como os avaliadores do PNLD”. Esse ponto de vista é corroborado por Bunzen (2005, p. 42- 43), quando diz: [...] podemos afirmar que as formas que o LDP vai adquirindo, se levarmos em consideração a relação gênero/atividade humana, são resultantes das concepções sobre as atividades de ensino e aprendizagem formal e sobre seus agentes (professores e alunos). É uma relação dialógica que se instaura entre a seleção de objetos de ensino e sua apresentação, levando em consideração determinados interlocutores e determinadas concepções de ensino-aprendizagem. Bakhtin (1952-53/1979, p. 301) fala-nos da importância dos parceiros da comunicação (destinatários) na interação verbal numa dada esfera: Todas essas modalidades e concepções do destinatário são determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado ser refere. A quem se destina o enunciado, como o falante (ou que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência do enunciado — disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário que o determina como gênero. [grifo nosso]. Em virtude disso, é possível fazermos uma analogia entre o LDP e o romance, por percebemos que seus autores orquestram diferentes vozes, buscando estabelecer conexão entre elas. Assim como o autor do romance, eles procuram deixar que seu discurso seja notado, como também os discursos dos documentos oficiais, dos pareceristas do MEC, dos professores, numa clara demonstração de que esses discursos configuram sua composição. Outro dado relevante é dizer que o LDP constitui-se enquanto gênero, testemunhando as mudanças sofridas no ensino de língua materna, por conta das variadas concepções de língua(gem) que norteiam o cenário educacional de nosso país. Ao afirmarmos isso, estamos partindo do pressuposto de que os autores de livros didáticos, na medida do possível, estão redefinindo seus objetos de ensino a fim de estabelecer um diálogo mais estreito com as atuais concepções de ensino-aprendizagem em relação à língua(gem) como também negando outras com as quais trabalhavam. Para Bunzen (2005, p. 37), enfocar o LDP como um gênero do discurso significa dar relevo à sua própria historicidade, ou seja, compreendê-lo não como um conjunto de agregados de propriedades sincrônicas fixas, mas observar suas excertos, as edições de obras clássicas [...]” apud Batista e Rojo (2005, p. 14-15) [grifo dos autores]. contínuas transformações que tem uma forte relação com o próprio dinamismo das atividades humanas. Nesse sentido, o LDP é um gênero discursivo tendo em vista que mantém diálogo com diferentes interlocutores como também ressoa vozes não apenas dos interlocutores mais imediatos como também de outros momentos. É um jogo de forças sociais que faz com que a autoria de um livro didático seja vista como uma produção conduzida, tendo em vista que o contexto social é um fator preponderante na elaboração de um LD. Bakhtin/Medvedev (1928) dizem, em relação ao romance, que o meio externo é, ao mesmo tempo, interno e externo à obra literária. Segundos os pensadores russos, essa interação da obra com o meio social acaba por refletir e refratar o meio ideológico do qual faz parte. E, de forma análoga, podemos pensar que o livro didático também passa por essa situação, embora saibamos que há diferenças quanto às proposições e valores de uma obra artística e de uma obra didática. A obra didática está inscrita na esfera editorial e, ao mesmo tempo, na esfera oficial e escolar 2 . Em cada uma dessas esferas, notamos que o LDP não sofre transmutação como sofre um romance, isto porque o livro didático deve seguir certos parâmetros para estabelecer e manter contato com as esferas sociais com as quais pretende dialogar. Esta ligação estreita com as esferas acaba delimitando e configurando o gênero LDP com seus interlocutores, pois é um enunciado concreto, pleno de eco e de ressonâncias provenientes da esfera oficial (PCN, PCN+, PCNEM, PNLEM, OCEM, LDB, DCNEM) como também da esfera escolar. Todos esses enunciados estão subjacentes ao todo do enunciado do LD, configurando sua tríade (forma composicional, estilo, tema). Bakhtin (1952-53/1979, p. 297) afirma: “Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva”. Dessa forma, reafirmamos que o livro didático de Língua Portuguesa é um gênero discursivo numa instância pública (esfera editorial, oficial, escolar) em que os três elementos constitutivos do gênero se fazem presentes: o conteúdo temático são os objetos de ensino selecionados para as aulas de língua materna, isso é, a transmissão, explicação e a produção 2 Entendemos por esfera Editorial o lugar de produção do livro didático, por Federal, os agentes envolvidos na avaliação do livro e os pareceristas do MEC e por Escolar, os interlocutores do livro didático — professor e alunos. de conhecimentos e saberes, os quais recebem uma determinada apreciação valorativa dependendo da concepção de língua(gem) dos autores 3 . Já a forma composicional relaciona-se às divisões que o LDP apresenta: texto de apresentação, sumário, unidades, seções etc. Em relação ao estilo, dividimo-lo em estilo do gênero e estilo do autor. Este é reconhecido pela configuração dada pelo autor ao seu LDP, o qual individualizará sua produção. Por exemplo, um LDP destinado ao Ensino Médio, dependendo do estilo individual de cada autoria, possui uma configuração diferenciada, em que o autor pode abordar os objetos de ensino por meio de unidades temáticas, temas transversais, gramaticais, em relação à prática de leitura e produção de texto na perspectiva dos gêneros discursivos e/ou textuais. E o estilo do gênero permite que um enunciado concreto torne-se único, apresentando um estilo próprio, que o diferenciará de outros gêneros. Por exemplo, o LD “tem uma finalidade didática de ensinar, instruir, conduzir”, o que justifica a existência de “ordens, instruções, explicações, exposições” no LDP (BUNZEN e ROJO, 2005, p. 90), ou seja, é o estilo didático do gênero, que pode ser transmissivo, dedutivo, indutivo, construtivo, informativo ou injuntivo. Sendo assim, os autores têm um projeto discursivo autoral e, juntamente com outros agentes das situações mais próximas (editores, revisores, diagramadores, leitores críticos etc.) e mais distantes (especialistas do MEC, professores, os alunos etc.), que estão igualmente, porém de forma indireta, envolvidos em sua elaboração, determinarão o processo de edição, seleção, negociação dos objetos de ensino e de distribuição destes objetos ao longo do livro, determando a configuração das unidades didáticas 4 . Segundo o pesquisador Bunzen, em virtude desse movimento dialógico, o LDP é um gênero escolar, porque assume uma função social de “re(apresentar) para cada geração de professores e estudantes o que é oficialmente reconhecido, autorizado como forma de conhecimento sobre a língua(gem) e sobre as formas de ensino-aprendizagem” (BUNZEN, 2005, p. 27). 3 Tripartição autoral da teoria bakhtiniana nos LDP Iniciamos esta seção com esta fala de Bakhtin (1922-1924/1979, p. 37): " Na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre regressamos a nós mesmos; e o acontecimento último, aquele que parece-nos resumir o todo, realiza-se sempre nas categorias de nossa própria vida." 3 Neste sentido, reafirmamos o pensamento de Bakhtin/Volochinov (1929), quando diz que há apreciação valorativa em qualquer produção. Isso é perceptível no projeto autoral dos livros didáticos. Cada autor tem seu estilo e acredita numa concepção de ensino e aprendizagem de língua materna. 4 Entendem-se por unidades didáticas os capítulos ou lições que compõem o livro [Carbone (2003) apud Bunzen (2005, p. 27)]. Sabemos que ler as obras do Círculo de Bakhtin é enveredarmos num plano teórico em que se consideram as relações sociais, ou, como bem colocou, “nossa própria vida”. Esse outro que se faz presente em todas as instâncias públicas e privadas, por onde nossos discursos circulam, são revozeados, em se tratando de Bakhtin, é “uma concepção de linguagem, uma concepção que pressupõe também uma concepção de homem e de mundo” (TEZZA, 2007, p. 234). Considerando esse movimento dialógico, trazemos para discussão o conceito de autoria de Bakhtin, um tema que foi pensado para a produção artística, e com o qual buscaremos dialogar, a fim de estabelecer vínculos com a autoria de livro didático de Língua Portuguesa (LDP). Vale ressaltar que O autor e herói (1922-1924) de Bakhtin é um texto inacabado, em que se encontram trechos “mutilados” desde a parte inicial. Além disso, o texto conta “com vários trechos ilegíveis ou suprimidos e, o menos importante, não ter sequer um título” (TEZZA, 2007, p. 231). Apesar dessa problemática, buscaremos transpor aqui nossa compreensão acerca da autoria para Bakhtin. Para isso, o LDP será apresentado em conjunto com a terminologia usada por Bakhtin para designar os elementos constituintes na autoria, cujo propósito é facilitar a compreensão desse tema emblemático. Nesse sentido, corroboramos a afirmação de Tezza (2007, p. 234) e tomamos para nós também, quando diz que “O autor e herói é uma bela viagem teórica — e certamente difícil, de modo que nossa primeira leitura, diga-se desde já, não tem a mais remota pretensão de esgotá-la.” Após essa breve contextualização, discutiremos a seguir a tripartição autoral na obra bakhtiniana. Bakhtin (1922-1924) no texto O autor e herói critica aqueles que insistem em relacionar o assunto da obra com a vida do autor. Essa visão biografista é estabelecida quando são extraídos “trechos que pretendem ter um sentido e, com isso, esquece-se completamente o todo do herói e o todo do autor, o que faz que se escamoteie o essencial: a forma da relação com o acontecimento, a forma como este é vivido no todo constituído pela vida e o mundo.” (1922-1924, p. 30) Com base nessa afirmação de Bakhtin, nosso objetivo é compreender a autoria nos livros didáticos de Língua Portuguesa, tendo em vista que o autor (pessoa física) é reconhecido muito mais pelos seus interlocutores (professores e alunos), pela sua atividade textual, pelo todo da sua obra didática. Portanto, há de se considerar o autor-criador. Podemos dizer que essa atitude responsiva dos interlocutores coloca em evidência o dialogismo, conceito amplamente discutido nas obras do Círculo de Bakhtin. Segundo Clark e Holquist (2004, p. 91), " Bakhtin concebe a outridade como fundamento de toda a existência e o diálogo como a estrutura primacial de qualquer existência particular, representando uma constante troca entre o que é e o que não é ainda." Bakhtin postula que o todo de uma obra está relacionado à reação que esse todo suscita no autor, englobando tanto o objeto quanto a reação do herói ao objeto. Em virtude disso, o autor-criador assume diferentes perspectivas para seu herói. Nesse sentido, o que interessa ao autor-criador não é todo do homem, mas seus atos isolados que, em boa medida, nos permitem confrontá-los, uma vez que eles nos pertencem também. Para Bakhtin (1922-1924, p. 34)," [...] o autor sabe e vê mais que ele, não só na direção do olhar de seu herói, mas também nas outras direções, inacessíveis ao próprio herói; é esta precisamente a postura que um autor deve assumir a respeito de um herói [...]" Cabe-nos, então, reapresentar a tripartição autoral, pois, na seção anterior, abordamos este conceito quando falamos da elaboração do livro didático: autor-criador (autor), autor-herói (objeto) e autor-ouvinte (contemplador). Esse conceito teórico sobre autoria foi produzido levando em conta as obras literárias. Mas reconhecemos que é possível transpô-lo para um livro didático. Segundo Padilha (2005), a tripartição na obra didática é visível, na medida em que o autor-criador é o responsável diretamente pelo projeto autoral de uma determinada editora, pois caberá a ele a responsabilidade de transpor e didatizar diferentes objetos de ensino, desde a seleção dos objetos a escolha teórico-metodológica, que norteará o desenvolvimento do seu trabalho. Bakhtin (1922-1924, p. 28) acredita que o autor é “a única fonte da energia produtora das formas, a qual não é dada à consciência psicologizada, mas se estabiliza em um produto cultural significante”. O trabalho do autor-criador, neste caso, a obra didática, será transformado em um produto que remeterá a ele. Em relação ao autor-criador, Bakhtin (1922-1924, p. 28) assinala: [...] a reação ativa do autor se manifesta na estrutura, que ela mesma condiciona, de uma visão ativa do herói percebido como um todo, na estrutura de sua imagem, no ritmo de sua revelação, na estrutura de entonação e na escolha das unidades significantes da obra. O excerto acima nos evidencia que, no processo de elaboração de uma obra didática, o autorcriador pode ser visualizado ao longo de sua obra, seja no projeto gráfico adotado, na divisão dos capítulos, na disposição dos conteúdos, na concepção de língua(gem) assumida etc. O autor, durante a produção, pensa apenas no acabamento da sua obra. O processo para o autor não interessa, o que é importante é o produto criado, o que colabora para que remetamos à sua obra. O herói como vemos está no todo da obra. Segundo Bakhtin (1922-1924, p. 32), "O autor é o depositário da tensão exercida pela unidade de um todo acabado, o todo do herói e o todo da obra, um todo transcendente a cada um de seus constituintes considerado isoladamente [...]" [grifo nosso]. Conforme Padilha (2005), a expressão autor-herói está relacionada ao ponto de vista da estética, em que existe um “eu” e um “outro”, elementos fundamentais para se compreender a autoria no LDP. O autor-herói é reconhecido quando se procura dar mais importância ao objeto de criação, procurando “discutir o herói como se tratasse de um autor, como se fosse possível discutir ou aprovar o que existe e ter-se-á esquecido a refutação estética” (BAKHTIN, 1922-1924, p. 30). Em vista disso, dizemos que autor-herói são os objetos de ensino a serem escolhidos, transpostos e didatizados. É importante dizer que há um imbricamento entre autor-criador e autor-herói, uma vez que este está diretamente ligado ao primeiro. Para Tezza (2007, p. 239), “[...] o discurso do herói sobre si mesmo está impregnado do discurso do autor-criador sobre o herói.” Acreditamos que s e não houvesse a figura do autor-criador, não teríamos a formatação que o LDP adquiriu ao longo de sua história, pois como bem afirmou Bakhtin (1922-1924), o autorcriador é quem determina os valores que serão assumidos pelos heróis. Afirmamos, ainda, que "a obra pedagógica será constituída e acabada pela força motriz que é a posição valorativa do autor e todos os elementos que a compõem estarão alinhavados e intermediados pelo discurso autoral" (PADILHA, 2005, p. 81). O último elemento, autor-contemplador, são os interlocutores imediatos (os professores, os alunos, os avaliadores do PNLEM) e mais distantes (a Academia, os pesquisadores em geral) do autor-criador. Segundo Bakhtin (1922-1924), é necessário que o autor busque o outro, a fim de que possa ter um todo na sua obra. Para isso, ele busca em situações cotidianas exemplificar a presença do outro para que assim o autor-contemplador possa ter atitude responsiva em relação à sua produção. Analogamente, dizemos que o autor-ouvinte se faz presente na obra didática, precisamente, no Manual do Professor e no texto de Apresentação no livro do aluno. Em cada um destes textos, o discurso do autor-criador põe em evidencia seu autor-contemplador. No Manual do Professor, o autor-contemplador são os professores como também os avaliadores do PNLEM. Isso porque há um movimento discursivo que os projeta. Quando se observa atentamente o manual, precisamentena sua estrutura, há uma sequência de informações que são colocadas, como exemplo, a concepção de ensino-aprendizagem de língua(gem), a metodologia, a avaliação, a organização, a bibliografia etc. Já, no texto de apresentação, o diálogo é direto com os alunos, usuários do livro didático, em que se busca conquistá-lo, dizendo que o livro didático está atento às mudanças que tem sofrido o ensino de língua como também afirmar que é importante estudar a língua materna. Os três elementos expostos ao longo deste texto evidenciaram que a autoria para Bakhtin está no todo arquitetônico, em que autor-criador, autor-herói e autor-contemplador permitem a atividade artística tanto uma visão ética quanto estética 5 . Nesse sentido, reconhecemos que assumirmos sua concepção de autoria é enveredar por mundos dialógicos, já que para ele, nossos enunciados são sempre dialógicos, em que o outro nos constitui. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. M. ([1952-53]1979). Os gêneros do discurso. In: _____. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______ (1922-1924). O autor e o herói. In:____ (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______(1922-1924). O autor e o herói. In____ (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina G. Pereira. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _____(1919). Arte e responsabilidade. In:____ (1979). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______; VOLOCHINOV, V. N (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BAKHTIN, M. M./MÉDVEDEV, P. N (1928). El método formal en los estudios literários introductión crítica a una poética sociológica. Madrid: Alianza Editorial, 1994. BARROS-MENDES, A. N. N. A linguagem oral nos livros didáticos de língua portuguesa do Ensino Fundamental – 3º e 4ª ciclos: algumas reflexões. São Paulo, SP: PUC 2005. (Doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem), do Programa de PósGraduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. _____; PADILHA, S. J. Metodologia de análise de livros didáticos de língua portuguesa: desafios e possibilidades. In: COSTA VAL, MARCUSCHI (orgs.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: CEALE, Autêntica, 2005. BATISTA, A. A. G. A avaliação dos livros didáticos: para entender o programa nacional do livro didático (PNLD). In ROJO, R H. R.; BATISTA, A. A. G. (orgs.). Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003. 5 A visão ética e a estética são elementos intrínsecos à obra literária. Entendemos que a visão ética são os valores socias que mediam as ações do artista e a visão estética é o trabalho de ressignificação do artista para um determinado tema que ele queira retratar em sua obra. Por exemplo, se pensarmos na questão social que assola o nosso país, cada um de nós tem um ponto de vista, uma visão de mundo para essa problemática (visão ética). Quando essa questão é retratada do ponto de vista artístico, ela recebe toda a apreciação valorativa do artista, tornando-se única, um todo acabado. Um bom exemplo são as fotografias de Sebastião Salgado. Cada imagem retratada, cada manifestação, particular (BAKHTIN, 1922-24, p. 4) é fundamental para caracterizar “esse todo como elemento da obra.” BUNZEN, C. Livro didático de língua portuguesa: um gênero do discurso. Campinas, SP:UNICAMP, 2005. (Mestrado em Estudos da Linguagem), do Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2005. _______. O ensino de “gêneros” em três tradições: implicações para o ensino-aprendizagem de língua materna. Disponível em <http://www.letramento.iel.unicamp.br/publicacoes/artigos.html>. Acesso em 10 nov. 2008. _______; ROJO, R. Livro didático de língua portuguesa como gênero do discurso: autoria e estilo. In: COSTA VAL, MARCUSCHI (orgs.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: CEALE, Autêntica, 2005. CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikail Bakhtin. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004. PADILHA, S. J. Os gêneros poéticos em livros didáticos de língua portuguesa do ensino fundamental: uma abordagem enunciativa discursiva. São Paulo, SP: PUC 2005. (Doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem), do Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. _______. O autor entre autores. In: Revista Polifonia. Instituto de Linguagens [da] Universidade Federal de Mato Grosso. Ano 5, n° 04. Cuiabá: Editora Universitária, 2002. RANGEL, E. Livro didático de língua portuguesa: o retorno do recalcado. In: DIONÍSIO, A. P.; BEZERRA, M. A. O livro didático de português: múltiplos olhares. 3.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. TEZZA, C. Sobre o autor e o herói – um roteiro de leitura. In FARACO, C. A.; TEZZA. C.; CASTRO, G. (org.). Diálogos com Bakhtin. 4.ed. Curitiba: UFPR, 2007.