EXPLANATION OF MOTIFS
Process, iconography and composition in the work of Beatriz Milhazes
Oswaldo Corrêa da Costa
HISTORICAL CONTEXT
Three characteristics of Brazilian art history might help us appreciate the distinctiveness of Beatriz Milhazes’s contribution: the timid colors of Brazilian
modernism, the lack of significant abstraction in Brazil before WWII, and the
affiliation of subsequent Brazilian abstraction to imported stereotypes. I propose
a quick survey of these aspects in order to understand the uniqueness of how
Milhazes responded to her context, building a body of work whose singularity
might explain, in conjunction with other factors, the exceptional projection it
has achieved in recent years.
Timid colors
As described by Rodrigo Naves in his seminal text “O olhar difuso” [The diffuse
gaze], the reticent tones of Brazilian modernism are consistent with a more pervasive national timidity, inherited from Portugal but reinforced by the colony’s
social organization:
Because everything points to a diffuse visuality in Portuguese culture that blocks the development
of a properly visual culture. In a way, it is required that we identify, in these dispersed
cultural manifestations, a quasi-logic that unifies this vague and embarrassed gaze.
Later, Naves adds:
In Brazil, the situation is not very different. On the contrary, it seems we have inherited a good deal of the Portuguese resistance to the visual arts [...].
A possible explanation for this cultural trait lies in the feeble intermediations encountered in Brazilian society [as a result of] the Portuguese legacy of depreciation of labor, the relative absence of social hierarchy, the presence of slavery and
agrarian patriarchalism, the industrial, cultural and educational backwardness, the
political tutelage exercised by the elites, and the disorganization of the masses.1
1 Rodrigo NAVES - “O olhar difuso –
notas sobre a visualidade brasileira”,
Gávea, Rio de Janeiro, nº 3, junho de
1986, p. 61-68, italics in original.
It is curious how the modernism of a country that presents (and represents)
itself as vibrant and colorful is notable for the sobriety of its tones. Artists who
achieved the most critical consensus – e.g., Goeldi, Guignard, Pancetti, and
Volpi – built their poetics using contained palettes, while those who achieved
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EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
Processo, iconografia e composição na obra de Beatriz Milhazes
Oswaldo Corrêa da Costa
CONTEXTO HISTÓRICO
Três aspectos da história da arte brasileira ajudam a situar a contribuição de
Beatriz Milhazes: a timidez cromática do modernismo brasileiro, a ausência de
abstração no Brasil antes da Segunda Guerra Mundial e a filiação da subseqüente
abstração brasileira a matrizes importadas. Proponho um rápido exame dessas
particularidades para entendermos como a obra de Milhazes responde ao contexto brasileiro, consolidando-se como um registro cuja singularidade explicaria, em conjunção com outros fatores, a projeção inusitada que vem alcançando
nos últimos anos.
Timidez
As tonalidades esmaecidas do modernismo brasileiro são coerentes com uma
timidez plástica mais generalizada, herdada de Portugal, mas reforçada pela
organização social da colônia, conforme descreveu Rodrigo Naves no texto seminal “O olhar difuso”:
Porque tudo leva a crer que existe uma visualidade difusa na cultura portuguesa a emperrar o
desenvolvimento de uma cultura propriamente visual. De certo modo, é necessário praticamente inventariar, na dispersão das manifestações culturais, uma quase lógica
que unifique este olhar vago e envergonhado.
Mais adiante, Naves afirma:
No Brasil, a situação não é muito diferente. Ao contrário, parece que herdamos
boa parte da resistência portuguesa às artes plásticas [...].
Um caminho para a explicação deste traço cultural do país talvez se encontre na
pobreza de mediações da sociedade brasileira [e nos] legados portugueses da depreciação do trabalho e da relativa falta de hierarquização social, a escravidão, o
patriarcalismo agrário, o atraso industrial, cultural e educacional, a tutela política
das elites e a desorganização das grandes massas.1
1 Rodrigo NAVES - “O olhar difuso –
notas sobre a visualidade brasileira”,
Gávea, Rio de Janeiro, nº 3, junho de
1986, p. 61-68, itálico no original.
É, no mínimo, curioso observar como o modernismo de um país que se apresenta (e auto-representa) como vibrante e colorido se notabiliza pelos tons
sombrios. Suas expressões de maior consenso crítico – Goeldi, Guignard, Pan-
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greatest public recognition – e.g., Segall, Portinari, and Di Cavalcanti – also
grounded themselves on the color of the soil. It is as if reflecting the surrounding colors were not good form, a vulgar imitation of nature.
If we look at the period before modernism in Brazil, we find that, consistent with this economy, there is no color in what many consider the most
important expression of colonial Baroque, the soapstone prophets carved by
Aleijadinho for the sanctuary of Bom Jesus de Matosinhos in Congonhas
do Campo. Even the 66 statues sculpted in cedar by Aleijadinho and his
assistants depicting the Stations of the Cross were later painted by others.
Neither does the extravagant use of gold, characteristic of the Baroque, mimic
the sunshine that scorched the colonial landscape. On the contrary, it symbolized the afterlife awaiting those who endured, with pious submission,
the harshness of this new land.
In tune with Naves, historian Tadeu Chiarelli noted recently that Mário de
Andrade, possibly the most important Brazilian critical voice between the
wars, considered the national character to be “tender, sticky, shy, and hokey,
introverted and uneducated as to nation and land”2. Chiarelli continues:
2 Tadeu CHIARELLI - Pintura não é só
beleza – a crítica de arte de Mário de Andrade,
Letras Contemporâneas, Florianópolis,
2006, p. 75.
3 Idem, p. 76.
4 Here and elsewhere in this text I use
the term avant-garde in the Modernist
sense of innovation in the investigation of a medium’s formal limits.
In continuing this description of the Brazilian temperament – of the half breed mulatto – and, above all, in defining this ignorance with respect to land and nature,
Mário de Andrade goes on to introduce Aleijadinho definitively into his text:
“[...] In truth, the map of this immense country had yet to become geographed
into the conscience of these people. Ambitions, disillusions, privileges, sudden
collapses, rivalries, profound indispositions: it was only natural that this would
produce a soul with little experience of life, full of frightened wonder, forgetting
itself in the mists of religious superstition, whose realism, whenever apparent,
did so overwhelmed by emotion, far removed from the natural, as something
dramatic, expressionistic, even more deformed than the symbols themselves.
And, in fact, the Inconfidência [TN: a legendary pro-independence rebellion that
was brutally put down in 18th Century Minas Gerais] was no more than that.
And so was nearly all the sculptural work of Aleijadinho.”
In this sequence [...] what characterizes the “soul of Minas Gerais” or Brazil is
what characterizes the work of its greatest artist.3
So, Brazilians would have, by national temperament, a rustic introversion in
the visual arts that reveals itself through faded colors and a diffuse gaze. What
are the exceptions? Anita Malfatti inaugurated expressionism in Brazil with
vibrant colors, but was unable to maintain her initial impetus in the face
of local conservatism. Tarsila do Amaral, especially in the Pau-Brasil and
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cetti, Volpi – construíram poéticas sobre paletas contidas, ao passo que suas
expressões mais publicamente reconhecidas – Segall, Portinari, Di Cavalcanti
– buscaram embasamento na cor da terra. É como se a imitação dos tons da natureza não fosse de bom tom, como se o recurso à cromática circundante fosse
uma mimese vulgar da natureza.
Se olharmos para o período anterior ao modernismo, perceberemos que, de
forma coerente com essa economia, não há cor alguma no que muitos consideram a expressão máxima do barroco colonial, o conjunto de profetas de Aleijadinho no santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo.
Mesmo as 66 figuras dos Passos da paixão, esculpidas em cedro por Aleijadinho e
seus assistentes para seis futuras capelas, foram pintadas mais tarde por outros.
Tampouco o dourado allover que caracteriza o barroco imitava o sol intenso que
escaldava a paisagem colonial. Pelo contrário, simbolizava o paraíso que aguardava quem suportasse, sem inconfidências, a penúria dessa nova terra.
Em sintonia com Naves, o historiador Tadeu Chiarelli notou recentemente que
Mário de Andrade, talvez a mais importante voz crítica no Brasil entre as guerras, considerava o caráter brasileiro “meigo, meloso, tímido e caipira, envergonhado e ignorante da pátria e da terra”2. Chiarelli continua:
Será na continuidade desta descrição do caráter do brasileiro – do mulato mestiço
– e, sobretudo, na definição dessa ignorância da terra e da pátria, que Mário de
Andrade irá introduzir definitivamente o Aleijadinho em seu texto:
[...] “Em verdade, na consciência daquela gente inda não tinha se geografado o
mapa do imenso Brasil. Ambições, desilusões, nababias, quedas bruscas, estaduanismo, mal-estar fundo: era natural que brotasse uma alma com pouca prática
da vida, cheia de arroubos assustados, se esquecendo de si mesma nas névoas da
religiosidade supersticiosa, cujo realismo, quando aparecia, aparecia exacerbado
pela comoção, longe do natural, dramático, expressionista, mais deformador que
os próprios símbolos. E de fato não passou disso a Inconfidência. E foi isso quase
a obra toda de escultor do Aleijadinho.”
Nesta seqüência [...] [o] que caracteriza a “alma mineira” ou brasileira é o que
caracteriza a obra do seu artista maior.3
2 Tadeu CHIARELLI - Pintura não é só
beleza – a crítica de arte de Mário de Andrade,
Letras Contemporâneas, Florianópolis,
2006, p. 75.
3 Idem, p. 76.
Então teríamos, por constituição nacional, uma timidez caipira nas artes plásticas, que se manifestaria tanto no olhar difuso como nas cores esmaecidas.
Quais seriam as exceções? Anita Malfatti inaugurou o expressionismo no Brasil
com cores vibrantes, mas não sustentou o ímpeto inicial. Tarsila do Amaral,
especialmente nas fases pau-brasil e antropofágica, assentou a pedra fundamental do modernismo brasileiro com suas cores primárias, traços simplificados e
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Anthropophagic phases, came closest to an authentically Brazilian modernism with her primary colors, reduced lines and local themes. But both Anita
and Tarsila, sooner or later, turned their back on the avant-gardes4, tempering their palettes and adopting deliberatively naive representational styles.
After Tarsila, Brazil had to wait three decades before the New Figuration movement of the 1960s embraced more adventurous colors, in line with American
Pop Art and European New Figuration. During the same decade, with his bólides,
penetráveis and parangolés, Hélio Oiticica became the first Brazilian abstract artist
to adopt a color scheme that could neither be called tentative nor diffuse.
Absence of abstraction
The monopoly held by figurative art in Brazil before WWII is the consequence of an across-the-board esthetic conservatism that, in turn, is due
to the lateness with which the country developed a middle class capable
of sustaining an avant-garde culture. Before 1929, the Brazilian economy
was still predominantly agricultural, in the hands of rural oligarchies who
orchestrated a republic in which women didn’t vote and presidents were
controlled alternatively by the coffee and milk producing states (São Paulo and Minas Gerais). In contrast, Europe already had liberal democracies
(disguised as monarchies) and mature bourgeoisies, an ideal ground for the
avant-gardes. The Crash of 1929 and the subsequent Great Depression radically
altered the distribution of political power, with considerable impact – for the
worse – on avant-garde culture. In the 1930s, a crop of right wing totalitarian
states emerged whose “return to order” esthetic generated a reactionary conservatism in the arts.
5 See Tadeu CHIARELLI - Op. cit., for
an analysis of how the work of Candido Portinari played this role.
6 See Tadeu CHIARELLI - Op. cit., for
a wide-ranging discussion of Mário de
Andrade’s positions.
In Brazil, return to order was not the only factor responsible for the absence
of abstraction: right wing ideologies found improbable allies on the left,
which had become equally conservative towards the end of the 1920s. Both
promoted an art based on national values, founded on classical ideals, featuring
narrative iconography at the service of regional themes5. The most influential
Brazilian critic of the time, the leftist Mário de Andrade, contributed to the
conservative climate with his opposition to any kind of abstract art or atonal music6 (in the same decade, the American art critic Clement Greenberg,
also departing from a leftist point of view, adopted a diametrically opposite
position, championing absolute abstraction as the only way to defend art
against mass culture). Abstraction – considered degenerate by the right and
alienated by the left – was seen as the enemy of national identity. The effectiveness of these oppositions was such that artists of the caliber of Kandinsky,
Klee, Malevich and Mondrian had little repercussion in Brazil at the time. And,
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temática local. Mas Anita e Tarsila, mais cedo ou mais tarde, deram as costas às
vanguardas4, rebaixando suas paletas e adotando estilos de representação deliberadamente ingênuos. Depois de Tarsila, tivemos que esperar mais de três
décadas até que a nova figuração brasileira empreendesse um cromatismo mais
aventuroso nos anos 1960, em sintonia com a nova figuração internacional.
Na mesma época, com seus bólides, penetráveis e parangolés, Hélio Oiticica foi o primeiro artista abstrato a adotar um cromatismo que não se poderia chamar de
tímido ou difuso.
Ausência de abstração
O conservadorismo estético que prevalecia no país era coerente com o atraso no desenvolvimento de uma burguesia que pudesse sustentar uma cultura
de vanguarda. A economia brasileira era ainda predominantemente agrícola
e a concentração de renda e cultura estava nas mãos de oligarquias rurais que
orquestravam uma miragem de república, onde os presidentes se alternavam
entre os estados do café e do leite. Em contraste, na Europa dos anos 1920 já
existiam burguesias maduras e, mesmo sob monarquias titulares, prevaleciam
democracias liberais, solo fértil para as vanguardas. A quebra da bolsa de Nova
York, em 1929, e a subseqüente depressão mundial mudaram radicalmente a
distribuição do poder político, com reflexos diretos sobre a cultura. Na década
de 1930, surgiu uma safra de estados totalitários cuja estética de “retorno à ordem” gerou um crescente conservadorismo nas artes plásticas.
4 Aqui e em outros lugares do texto,
utilizei a palavra “vanguarda” no sentido modernista de inovação na pesquisa dos limites formais de um meio.
5 Ver Tadeu CHIARELLI - Op. cit., para
uma análise de como a obra de Candido Portinari cumpriu esse papel.
6 Ver Tadeu CHIARELLI - Op. cit., para
uma discussão abrangente das posições de Mário de Andrade.
Mas, no Brasil, o retorno à ordem não foi o único responsável pelo desinteresse pela abstração: aqui as ideologias de direita, paradoxalmente, encontraram aliadas improváveis nas ideologias de esquerda, igualmente conservadoras,
a partir do final dos anos 1920. Ambas promoviam uma arte de valores
nacionais, fundamentada em ideais clássicos, de iconografia e temática regionalista5. A figura paradigmática de Mário de Andrade, partindo da esquerda,
contribuiu para o clima esteticamente conservador com sua oposição a qualquer tipo de arte abstrata ou música atonal6 (curiosamente, na mesma década,
o crítico de arte Clement Greenberg, nos Estados Unidos, também partindo
de uma ideologia de esquerda, adotaria uma posição diametralmente oposta,
propondo a abstração como única maneira de defender a arte contra a cultura
de massa). A abstração – degenerada para a direita e alienada para a esquerda
– era vista como inimiga da identidade nacional. A eficácia desses posicionamentos foi tamanha que artistas do calibre de Kandinsky, Klee, Malevich
e Mondrian tiveram pouquíssima repercussão no meio brasileiro da época.
Tome-se como exemplo o caso de Maria Helena Vieira da Silva, pintora portuguesa que pertence à primeira linha da abstração informal parisiense. Ela
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to illustrate, the Portuguese artist Maria Helena Vieira da Silva, an important
member of the Parisian informal abstraction movement, created abstract works
before and after her long stay in Rio de Janeiro (1940-7), but not during.
But Brazil was not alone: in the United States, even without a totalitarian regime
and the same degree of return to order, regionalism prevailed in the 1930s. In
the public works undertaken by the Roosevelt government to reinvigorate the
American economy during the Great Depression, local themes prevailed out
of the same desire to cultivate a national identity. The fall of the Axis and the
restoration of liberal democracies in most of Western Europe were necessary to
sweep away the return to order movement, bringing back the avant-gardes and
reestablishing the currency of abstraction. In America, the artistic environment
had benefited from the influx of European avant-garde artists, escaping not
only the War but also the persecution to which they were subjected on account
of their work. After the War, nurtured by these arrivals and riding a growing
economic supremacy, American abstract expressionism launched a new artistic
paradigm, vigorous and expansive.
Affiliation with imported stereotypes
In Brazil, the emergence of abstraction happened slowly and tentatively,
and it took the first São Paulo International Biennial, in 1951, to bring about
greater openness towards international avant-gardes. Unfortunately, the lack
of a local abstract tradition made the ground ripe for mimicking foreign
styles, especially from Europe, since it was not yet clear that artistic hegemony,
in an entirely reconfigured political scenario, was moving to the other side
of the Atlantic. The Concrete Art of Max Bill and the Ulm School influenced
the establishment of the first abstract movement in the Brazil, one that
looked, during the initial years, like a franchise of the Swiss movement.
As was only to be expected, in some cases the requisite homework wasn’t
done: unlike the Swiss, some Brazilian concrete artists signed in front of
their canvases, introducing a note of subjectivity that violates one of the
movement’s elementary principles. But if Brazilian constructivism began by
following an imported template, by the end of the 1950s it had gained momentum and a degree of originality with the appearance of a local variant,
Neoconcretismo. A byproduct of digesting Concrete Art, Neoconcretismo became, thus,
the first example of abstract anthropophagy.
At the other end of the abstract spectrum, non-constructive approaches were
less fortunate. Though this school was dominant in the United States (Abstract
Expressionism) and Europe (Lyrical Abstraction), it failed, in Brazil, to generate a local expression analogous to neoconcretismo. The Nippo-Brazilian school
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fez obras abstratas antes e depois do seu refúgio no Rio de Janeiro (1940-7),
mas não durante.
Mas o Brasil não era exceção: nos Estados Unidos, mesmo sem um regime totalitário e o mesmo grau de retorno à ordem, o regionalismo também dominou a
década de 1930. Nas obras públicas empreendidas pelo governo Roosevelt para
recuperar a economia americana, prevaleceram temáticas locais, em detrimento da abstração, graças à mesma vontade de cultivar uma identidade nacional.
Foram necessárias a queda do Eixo e a restauração das democracias liberais na
Europa ocidental (com exceção de Espanha e Portugal) para varrer de cena,
fora do bloco soviético, tanto o retorno à ordem quanto os diferentes tipos de
realismo, recolocando as vanguardas e, principalmente, a abstração no primeiro
plano. Durante a Guerra, o cenário artístico americano beneficiou-se do fluxo
de artistas europeus de vanguarda, refugiados tanto das hostilidades como da
perseguição que seu trabalho atraía na Europa. Informado por esse ingresso e
montado sobre um crescente poderio econômico, o expressionismo abstrato
americano instaurou, já na segunda metade da década de 1940, um novo paradigma, vigoroso e expansivo.
Filiação a matrizes importadas
No Brasil, a transição ocorreu mais lenta e timidamente. Foi somente a partir da primeira Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, que surgiu uma
abertura maior para as vanguardas internacionais, especialmente a abstração.
Infelizmente, a falta de uma tradição local criou terreno fértil para importações
de abstrações estrangeiras, sobretudo as européias (nos anos que se seguiram
à Guerra ainda não estava claro que a hegemonia artística, num cenário geopolítico inteiramente reconfigurado, estava se redistribuindo para o outro lado
do Atlântico). Com a chegada da arte concreta de Max Bill e da Escola de Ulm,
estabeleceu-se pela primeira vez no país um movimento abstrato, mas importado como pacote fechado, aparentando ser, ao menos nos primeiros anos, uma
franchise da matriz suíça. Como era de se esperar, em alguns casos o dever de
casa não foi feito: ao contrário dos suíços, alguns concretistas brasileiros assinavam na frente das telas, revelando uma subjetividade que viola os princípios
elementares do movimento. Mas se, no seu primeiro momento, o construtivismo brasileiro limitou-se a reproduzir uma matriz importada, no fim dos anos
1950 ele tomou impulso e alcançou maior originalidade com o surgimento do
neoconcretismo, nossa primeira instância de antropofagia abstrata.
A abstração não-construtiva foi ainda menos feliz. Apesar de dominante nos Estados Unidos (expressionismo abstrato) e na Europa (abstração lírica), no Brasil
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represents a special case, and did much to promote informal abstraction during
the 1960s and 1970s; its syntax, however, was mostly drawn from Japanese
calligraphy and French informalisme, contributing relatively little to the development of a site specific abstract grammar. While there is consensus regarding the
considerable pictorial force of Antonio Bandeira and Iberê Camargo, it is hard
to discern in the colors and forms of the former – developed in conversation
with French painting of the 1950s – and in the turbulent and somber impasto
of the latter – reflections of a restless psyche – painterly languages that embody
a specifically Brazilian visuality.
MILHAZES AND HER GENERATION
Paraphrasing the Zen saying “when the student is ready, the teacher will appear”, a work of art will only appear when the culture is ready. If the work of
Hélio Oiticica is a prime example of an investigation, simultaneously formal
and intimate, that was grounded in its context, it must be remembered that his
contribution was only recognized at the end of the 1980s, after the eclipse of
Brazil’s military dictatorship. It was only at that point that several fundamental
changes took place in the Brazilian artistic environment: the profession of artist
overcame the historic prejudice against manual labor, which had made art an
activity for mulattoes, women and immigrants; Brazilian art entered the international circuit of museums and galleries; and abstraction, almost a century
after its emergence, finally achieved acceptance.
It was in this context that the work of Beatriz Milhazes emerged, during a
period when painting had become, once again, the dominant medium in the
visual arts, after a decade of exile in the 1970s. In Brazil, the same impulse
that generated German neo-expressionism, Italian transvanguarda and its American cousins manifested itself in the so-called Generation 80, a label established by the large-scale exhibition “How are you, Generation 80?”, organize
in 1984 by Marcos Lontra at the Parque Lage School of Visual Arts (EAV)
in Rio de Janeiro.
Milhazes was in the exhibition, together with Daniel Senise, Jorge Guinle,
Leda Catunda, Leonilson, and others. Many painters of the new generation
seemed to think that creating works without stretchers was enough to signal
a contemporary stance, but the novelty of tacking the support directly to the
wall often obscured the fact that the procedure itself – brush on surface –
remained the same. Among the above, Leda Catunda was the only one
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ela não teve um desdobramento análogo ao neoconcretismo, de adaptação às
contingências locais. A escola nipo-brasileira, um caso especial, fez mais do que
qualquer outra para divulgar a abstração informal no Brasil, mas seus principais
artistas parecem antes dever à herança caligráfica japonesa e ao informalismo
francês do que ao ambiente local. Existe um consenso sobre a potência pictórica
das obras de Antonio Bandeira e Iberê Camargo. Mas é difícil entrever nas cores
e formas de Bandeira, amadurecidas num diálogo com a pintura francesa dos
anos 1950, e no empaste poderoso e sombrio de Iberê, fruto de uma economia
psíquica turbulenta, linguagens que representem uma visualidade especificamente brasileira.
MILHAZES E SEU TEMPO
Parafraseando o ditado zen “quando o aluno está pronto, o professor aparece”, uma obra só aparecerá quando a cultura estiver pronta. Se a obra de Hélio
Oiticica é um bom exemplo de uma investigação formal e íntima fundamentada no seu contexto, lembramos que sua contribuição só veio a ser reconhecida
no final da década de 1980, depois do fim da ditadura militar. Foi somente nos
anos 1980 que certas mudanças fundamentais, anteriormente apenas prenunciadas, finalmente ocorreram no meio artístico brasileiro: a profissão de artista
libertou-se do preconceito histórico contra o trabalho manual (que a mantivera
tradicionalmente como província de mulatos, mulheres e imigrantes), a arte
brasileira ingressou no circuito internacional de museus e galerias e as diversas
modalidades de abstração, algumas com quase um século de prática na Europa,
foram finalmente aceitas pelo público local.
Nesse contexto, de volta à pintura, mas pintura que precisava pertencer ao seu
tempo, iniciou-se a produção de Milhazes. No Brasil, o mesmo impulso que gerou o neo-expressionismo alemão, a transvanguarda italiana e os seus correlatos
americanos se manifestou na chamada “Geração 80”, rótulo fixado pela exposição “Como vai você, Geração 80?”, organizada em 1984, por Marcos Lontra,
na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), Rio de Janeiro.
Milhazes participou da exposição junto com colegas como Leda Catunda, Leonilson, Jorge Guinle e Daniel Senise. Muitos pintores da nova geração achavam
que bastava expor pinturas sem chassis para reivindicar uma postura contemporânea, mas a novidade de pregar o suporte diretamente na parede freqüentemente ocultava o fato de que o procedimento – pincel sobre superfície – continuava o mesmo. Entre os acima citados, Leda Catunda foi a única que, desde
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who, from the beginning, adopted a fully distanced approach, attaching
everyday objects to, and painting over, found patterns and images. Leonilson and Senise, in different ways, only abandoned conventional painting
procedures in the 1990s. Jorge Guinle, notorious for his painterly abilities
and visual erudition, died before he could develop a contemporary procedure that would make his work complete. Nuno Ramos, the most radical of
those who questioned traditional painting without relinquishing its practice,
constructed huge reliefs that tested, with pantagruelic intensity, the limits
of matter. Dudi Maia Rosa (from the earlier generation, but emerging in
the 1980s) created large geometric structures, mixing fiberglass with
pigmented resin, where surface and paint – what supports and what is supported – achieve a singular synthesis. This restlessness towards traditional painting had already manifested itself, to some degree, in the previous
generation, and it is interesting to note that Charles Watson, the teacher
who most influenced Milhazes at Parque Lage, was formerly an assistant
to Richard Smith7, a painter who explored, like few others, new possibilities
for the medium in the 1960s and 70s.
In the 1980s, discussions about the viability of painting reached a climax during the Bienal of 1985, in which curator Sheila Leirner assembled the so-called
“Great canvas”, a long and narrow corridor where an uninterrupted sequence
of large paintings assailed visitors from both sides. Oscillating between documentation and farce, the new hegemony of painting was, in this manner, simultaneously crowned and mocked. Milhazes did not like what she saw:
The Bienal. It was sad. Monotonous. Destructive. Cruel. They tried to destroy
painting. They almost succeeded. The display was deliberately based on fashion.
An expressionistic Bienal, that didn’t want anyone to stand out but, instead, wanted to show that “individuality has come to an end” (the curator’s words). The
fashion for painting is waning. The fashion for expressionism in particular. It
was as if we were talking about a hit parade. I’d rather believe that things haven’t
reached this point yet. Maybe I’m being naïve; but I prefer that.8
Despite her disappointment, or perhaps in reaction to it, Milhazes did not allow
herself to become discouraged:
I have no doubt that I am a painter. That is my profession.9
7 Smith was awarded the Grand Prize
at the IX São Paulo Biennial in 1967.
8 Letter to the author, Rio de Janeiro,
10/12/1985.
9 Letter to the author, Rio de Janeiro,
11/01/1985.
The artist remembers the moment, in 1985, when she felt the call:
Everything changed the first time I saw a painting by Matisse. It was a very emotional experience to see the materials, the colors, the format. This kind of art
becomes unreachable because of the distance created by history and the repro-
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o princípio, adotou um procedimento inteiramente crítico, pintando e colando
objetos do cotidiano sobre estampas e imagens prontas. Leonilson e Senise, em
registros diferentes, só abandonaram procedimentos convencionais no decorrer
da década de 1990. Jorge Guinle, notório pela capacidade pictórica e erudição
visual, começava a se desvencilhar de um vocabulário informal europeu (Asger
Jorn, Bram van Velde etc.) quando a morte prematura, em 1987, negou-lhe a
oportunidade de desenvolver um procedimento contemporâneo que tornasse
completa sua obra. Nuno Ramos, o mais radical dos que questionaram a pintura tradicional sem abrir mão da sua prática, construiu enormes relevos onde
testa, com intensidade pantagruélica, os limites da matéria. Dudi Maia Rosa
(da geração anterior, mas surgido nos anos 1980) desenvolveu estruturas de
fibra e resina pigmentada onde tinta e superfície alcançam uma síntese singular
entre o que suporta e o que é suportado. Essa inquietude com relação à pintura
tradicional já se esboçara com a nova figuração da geração anterior, e é interessante notar que Charles Watson, o professor que mais influenciou Milhazes no
Parque Lage, foi assistente de Richard Smith, artista inglês7 que explorou, como
poucos, novas possibilidades para a pintura nos anos 1960 e 70.
Na década de 1980, as discussões sobre a viabilidade da pintura chegaram ao
clímax durante a Bienal de 1985, na qual a curadora Sheila Leirner montou a
chamada “Grande tela”, um longo e estreito canal de paredes de compensado
onde uma seqüência ininterrupta de grandes telas abordava os visitantes dos
dois lados, como um corredor polonês. Oscilando entre documentação e farsa,
a nova hegemonia da pintura foi, assim, simultaneamente consagrada e satirizada. Milhazes não gostou do que viu:
A Bienal. Foi triste. Monótona. Destrutiva. Cruel. Quiseram acabar com a pintura.
Quase conseguiram. A montagem foi intencionalmente em cima da moda. Uma
Bienal expressionista que não quis ressaltar ninguém e sim mostrar que “a individualidade está no fim” (palavras da curadora). A moda da pintura está passando.
A moda do expressionismo principalmente. Parece que estamos falando de um hit
parade. Prefiro não acreditar que as coisas estão nesse nível, já. Pode ser ingenuidade; fico com ela.8
Apesar da decepção, ou em reação a ela, Milhazes não se deixou abalar:
Não tenho dúvidas mais sobre o fato de que sou pintora. Esta é minha profissão.9
7 O artista recebeu o grande prêmio
da IX Bienal de São Paulo, em 1967.
8 Correspondência com o autor, Rio
de Janeiro, 12/10/1985.
9 Correspondência com o autor, Rio
de Janeiro, 01/11/1985.
A artista lembra o momento no qual, em 1985, sentiu essa vocação:
Tudo mudou a primeira vez que vi uma pintura de Matisse. Foi uma experiência muito emocional ver os materiais, as cores, o formato. Esse tipo de arte vira
inalcançável por causa da distância da história e das reproduções com que temos
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ductions with which we have to resign ourselves. Suddenly, I was looking at the
work, eye to eye. I saw the brushstrokes and realized that you can make mistakes,
so the sensation grew that I could, myself, paint like this.10
In 1986, Milhazes was in a new show at Parque Lage, also organized by Marcos Lontra, under the title “Occupied Territory”. In collaboration with the artist Chico Cunha, Milhazes occupied the school’s opulent, marbleized theater,
once the property of opera singer Gabriella Besanzoni, using a golden curtain
to scatter even more reflexes around the room, creating a space suffused with
immaterial light, a minimalist ode to excess. A legacy of the exhibition was the
public reaction:
I never in my life received so many compliments. People would kiss me simply
because they didn’t know any other way to express their appreciation. [...] I don’t
know, for the first time I felt the sensation of having made something that people
considered important. I felt in the flesh the importance of art.11
This installation is related to the paintings that Milhazes was executing at the
time, in which gold acrylic paint appeared frequently. It also anticipates the sets
that she would design for the Márcia Milhazes Dance Company. In 1987, Milhazes went on a tour of China, still relatively closed, with her sister’s company:
I believe that China will leave deep impressions in me. Things have been absorbed, and I don’t know what will come of them once I’m gone.12
For the first time I want to make work about something specific, a series dedicated to
China, with stored emotions that can only be realized through work. There will be
lots of collage. At least, these are my first impressions.13
10 Apud Marina DE VRIES - “Een
schilderij dat wit is als een bruid”
[A painting as white as a bride],
Het parool, Amsterdam, 04/23/1997,
translation by the author.
11 Letter to the author, Rio de Janeiro,
12/15/1986.
12 Letter to the author, China (city undecipherable), 05/30/1987.
13 Letter to the author, Rio de Janeiro,
06/16/1987.
14 See José Roberto TEIXEIRA COELHO
- A China no Brasil, Editora Unicamp,
Campinas, 1999.
If the series dedicated to China never came true, the reference to “lots of
collage” appears prophetic. While the paintings made after the trip feature
motifs painted on fabrics pasted to canvas, collage already was, in a more general sense, a perennial impulse in Milhazes’s work, one that would soon lead
to transfers on canvas and, in 2003, collages on paper. The “deep impressions” left by the country are harder to pin down. Like Milhazes, much Chinese
painting arranges a pre-existent vocabulary (ideograms) upon a surface where
images coexist without vanishing points. Chinese painting uses dégradé to represent the sea, and this device became a frequent presence in Milhazes’s motifs after 1993, especially in the arabesques, hearts, stars, flowers and stripes.
We could also speculate about an indirect Chinese influence, seen in the Baroque art of Minas Gerais, the so-called chinesices imported from the Portuguese
colony of Macau14.
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que nos contentar. De repente, estava olhando para a obra, olho no olho. Vi as
pinceladas e vi que você pode cometer erros, de maneira que cresceu a sensação
de que eu mesma poderia pintar assim.10
Em 1986, Milhazes participou de nova exposição no Parque Lage, organizada
por Marcos Lontra, com o título “Território Ocupado”. Em colaboração com
o artista Chico Cunha, Milhazes ocupou o teatro marmorizado e opulento da
cantora lírica Gabriella Besanzoni, parte das instalações da escola, usando uma
cortina dourada para jogar ainda mais reflexos sobre todo o ambiente, criando
um espaço imantado de luz imaterial, um elogio econômico ao excesso. Um
legado da exposição foi a reação do público:
Nunca recebi tantos elogios na minha vida. Pessoas me beijavam por não saber
o que fazer para expressar o quanto gostaram. [...] Eu não sei, mas pela primeira
vez tive a sensação de ter feito algo importante para as pessoas. Senti na pele a
importância da arte.11
Essa instalação relaciona-se com a pintura que Milhazes fazia na época, onde o
acrílico dourado aparecia com freqüência. Antecipa, também, os cenários que
viria a criar para a Márcia Milhazes Cia. de Dança. Em 1987, Milhazes acompanhou a companhia de sua irmã numa turnê pela China, então ainda relativamente fechada:
Sinto que a China vai deixar fortes marcas em mim. Coisas se introduziram neste
período e não sei como será fora daqui.12
Pela primeira vez também tenho vontade de fazer trabalhos com relação a alguma
coisa específica, uma série dedicada à China, são sentimentos que guardei que só
poderei concretizar através do trabalho. Vai ter muita colagem. Pelo menos são
essas minhas primeiras imagens.13
10 Apud Marina DE VRIES - “Een
schilderij dat wit is als een bruid”
[Uma pintura que é branca como
uma noiva], Het parool, Amsterdam,
04/23/1997, tradução nossa.
11 Correspondência com o autor, Rio
de Janeiro, 15/12/1986.
12 Correspondência com o autor, China (cidade ininteligível), 30/05/1987.
13 Correspondência com o autor, Rio
de Janeiro, 16/06/1987.
Se a série dedicada à China nunca se concretizou, a referência a “muita colagem” parece profética. As pinturas que se seguiram à viagem mostram motivos pintados sobre tecidos colados sobre tela, mas é num sentido
mais abrangente que a colagem parece um impulso perene em Milhazes, impulso este que em breve iria desabrochar nos decalques sobre tela e, a partir
de 2003, nas colagens sobre papel. As “fortes marcas” deixadas pelo país
são mais difíceis de precisar. A pintura chinesa, assim como a de Milhazes,
organiza um vocabulário preexistente (no caso da primeira, ideogramas) sobre uma superfície onde convivem imagens sem ponto de fuga. Outra possível influência da pintura chinesa seria o dégradé que aparece nas representações do mar, pois ele se torna uma presença constante na obra de Milhazes
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Abram o reino! | Open
the kingdom!, 1988
acrílica e tecido sobre tela | acrylic
and tissue on canvas
170 x 180 cm
Looking for a new direction, at the end of 1987 Milhazes began to subdivide her surfaces into smaller sections. Instead of dividing square canvases
into nine smaller squares, as she had done in 1984/5, she began to divide
them into 20 rectangles or 25 squares, all showing the same motif against
different backgrounds of painted canvas or decorative fabric. Desculpe, mas teve que
ser assim [I’m sorry, but that’s how it had to be] from 1987 revives the fabric
collages seen in Milhazes’s first works, like untitled, 1981. The same can be
seen in Abram o reino! [Open the kingdom!], 1988. In addition to the stylized
flower vase, prevalent in this period, other motifs begin to appear inside the sections, such as peace symbols (Assim na Terra como no Céu [On Earth as in Heaven],
1998) and concentric circles (Com quem está a chave do banheiro 10? [Who has the key
to bathroom 10?], 1989).
15 Conversation with the author, Rio
de Janeiro, 03/03/2007.
After a year, Milhazes had what she considers her only artistic crisis: the grids
began to feel repetitive, had become a “bureaucratic”15 repetition. As a result,
early in 1989, she began to experiment with monotypes, giving birth to the
rich process of pictorial construction that continues to this day. Using a procedure that recognized, implicitly, the exhaustion of traditional painting as an
avant-garde medium, Milhazes began to develop an abstract language, unaffiliated to foreign sources, that incorporates, without embarrassment or shame,
the entire color spectrum associated with Brazilian life. An ambitious claim,
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Com quem está a chave do
banheiro 10? | Who has the key
to bathroom 10?, 1989
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
170 x 180 cm
a partir de 1993, principalmente nos arabescos, corações, estrelas, flores e
listras. Poderíamos, também, especular sobre as influências chinesas encontradas no barroco mineiro, as chamadas “chinesices”, reflexos da colônia portuguesa de Macau14.
Procurando um caminho, no final de 1987, Milhazes passou a dividir a tela em
seções menores. Em vez de subdividir telas quadradas em nove quadrados menores, como fizera em 1984/5, passou a dividir suas telas em 20 retângulos ou
25 quadrados, todos mostrando o mesmo motivo sobre fundos diferentes de
tela pintada ou tecido decorativo. Desculpe, mas teve que ser assim, de 1987, retoma
a colagem de tecido das primeiras experiências de Milhazes, como sem título,
de 1981. O mesmo se vê em Abram o reino!, de 1988. Além do vaso estilizado de
flores, muito freqüente nessa época, começam a aparecer outros motivos dentro
das seções, como o símbolo da paz (Assim na Terra como no Céu, 1988) e círculos
concêntricos (Com quem está a chave do banheiro 10?, 1989).
14 Ver José Roberto TEIXEIRA COELHO
- A China no Brasil, Editora Unicamp,
Campinas, 1999.
Depois de um ano, a trama de retângulos mostrou-se insatisfatória. É da pesquisa subseqüente, motivada por esse descontentamento, que nasce o rico processo de construção pictórica que prevalece até hoje, um procedimento que reconhece, implicitamente, o esgotamento da pintura tradicional enquanto meio
de vanguarda. Desde então, Milhazes vem elaborando uma linguagem abstrata,
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one that needs to be supported by an examination of the elements that sustain
this work: process, composition, and iconography.
PROCESS
Since the Renaissance, but particularly since Modernism, easel painting established itself as the exemplary medium in the visual arts. In the popular imagination, the figure of the painter, wearing apron and bonnet, facing a canvas,
brush in one hand, palette in the other, standing before an easel in his studio
or out in a field, became the Platonic embodiment of the artist. Any intermediation that a painter cares to introduce between a canvas and a brush
interferes with this direct relationship, visceral and almost primeval, between
hand and surface. Why would any painter who loves his craft adopt such
an intermediation?
The viability of painting has been under discussion since photography was
invented early in the 19th Century. The so-called death of painting has been
declared from time to time, but these successive deaths have never signified
the impossibility of painting, only the passing of a specific function of painting. Critics successively claimed that photography had made objective painting
obsolete, that abstraction had made figurative painting obsolete, that collage
had made the brushstroke obsolete, and that the monochrome had exhausted
all possibility of formal innovation in painting (not to mention that the readymade had already made all painting anachronistic). Each stage of Modernism
believed itself to have overthrown the preceding one, an artistic version of
the ancient urge to kill the father. In historical terms, the most widespread
crisis of painting lasted approximately from 1968 (a politically turbulent year)
until 1982, when Documenta VII announced its return. During this period,
painting really seemed to have been demoted, not so much as a professional
or pleasurable activity, but as an avant-garde medium16.
16 For a more complete discussion see,
by the author, Dudi Maia Rosa e as mortes da
pintura, Metalivros, São Paulo, 2005.
The full-scale return of painting in the 1980s was a tide that lifted all ships. Its
most visible exponents were the progeny, in everything but scale, of easel painting, practicing a cinemascope revival of expressionism, intensely gestural and
materially charged. Others wanted to paint but, aware that a painting made in
the traditional manner acquires, by definition, a traditional connotation, did
not consider it appropriate to use older techniques to investigate contemporary issues.
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sem matrizes importadas, que incorpora, sem vergonha ou pudor, todo o cromatismo associado à vida brasileira. Uma afirmação ambiciosa, que precisa ser
aprofundada com um exame dos elementos que sustentam essa obra: processo,
composição e iconografia.
PROCESSO
Desde o renascimento, mas principalmente a partir do modernismo, a pintura
de cavalete tornou-se a forma mais paradigmática de expressão plástica. Na
imaginação popular, instalou-se a imagem do pintor vestindo avental e boné,
em pé no estúdio ou en plein air, pincel numa mão e paleta na outra, diante de
uma tela ligeiramente inclinada sobre um cavalete. Qualquer intermediação entre pincel e tela interfere nessa relação direta, visceral e quase primeva, entre
mão e superfície. Por que um pintor haveria de adotar tal intermediação?
A morte da pintura vem sendo declarada de tempos em tempos desde o começo
do século XIX, mas essas sucessivas mortes nunca significaram a impossibilidade de pintar, apenas o fim de uma determinada função da pintura. Por exemplo,
segundo essa visão, a fotografia tornou obsoleta a pintura objetiva, a abstração
tornou obsoleta a pintura figurativa, a colagem tornou obsoleta a pincelada e o
monocromo exauriu as possibilidades de inovação da pintura (sem falar que o
readymade já havia tornado anacrônica toda e qualquer pintura). Cada momento
do modernismo acreditava ter superado o anterior, numa versão plástica da
pulsão antiga de matar o pai. Em termos históricos, a crise mais abrangente da
pintura durou aproximadamente de 1968 (ano politicamente turbulento) até
1982, quando a Documenta de Kassel anunciou sua volta. Durante esse período, a pintura parecia realmente ter desaparecido, não como atividade profissional ou prazerosa, mas como veículo de vanguarda15.
15 Para uma discussão mais completa,
ver, do autor, Dudi Maia Rosa e as mortes da
pintura, Metalivros, São Paulo, 2005.
A volta da pintura dos anos 1980 foi uma maré que levantou todos os barcos. Seus expoentes mais visíveis praticavam um neo-expressionismo gestual
ou matérico e eram herdeiros, em tudo menos escala, da pintura de cavalete.
Outros queriam pintar mas, conscientes de que uma pintura feita da maneira
tradicional adquire, por definição, conotações tradicionais, não queriam utilizar procedimentos anteriores para investigar questões contemporâneas. Em
paralelo, amadureceu um novo zeitgeist, prenunciado por posturas anti-subjetivistas como o readymade, o neoplasticismo e o concretismo, no qual o feminismo
e o multiculturalismo questionaram a caracterização do grande artista, sempre
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In parallel, a new zeitgeist matured – anticipated by anti-subjectivist positions
like the readymade, Neoplasticism and Concrete Art – in which feminism
and multiculturalism questioned the notion of “great artist”: always male,
white and European. If the death of the author was a rhetorical exaggeration,
there is no doubt that authorial subjectivity was challenged by procedures like
appropriation, seriality, and randomness. Thus, after the monochrome, a painter who wanted to be contemporary had to, at a minimum, distance herself
from earlier practices, interrupting the direct relationship between brush and
canvas. It was in this setting, of a return to painting, but painting that had to
be of its time, that the work of Milhazes emerged.
The materials used in a work of art and the manner in which they are used
mean something, are never neutral. Milhazes doesn’t use oil paint because
that would place her in direct confrontation with traditional painting17. In
the beginning, she used acrylic directly on canvas, but began to feel growing
uneasiness with this procedure, as traditional, mechanically-speaking, as painting with oil. Having grown tired of the grids (1987/8), early in 1989 Milhazes
spent three months experimenting with monotypes, applying acrylic paint to
sheets of bookbinding plastic and transferring the results to canvas, like a decal.
It was then that she began to incorporate abstract art clichés, motifs borrowed
from (Sonia) Delaunay, Arp and Kandinsky.
I always considered the flat surface to be a filter between the canvas and the artist. When I developed my monotype technique at the end of 1989, I was in the
middle of a crisis. Up to that point I painted images directly on canvas, but I
became bored with geometry. I wanted to mix constructive and geometric ideas
with decoration and symbolism, because that is closer to life.18
The first and still experimental results (pictures like Perché vienne la pancia, 1990,
were wrapped in the actual painted plastic sheet) appeared in Milhazes’s third
Rio de Janeiro solo exhibition, at Galeria Saramenha, the first that the artist
considers “good”19.
17 Conversation with the author, date
not registered.
18 Apud Marina DE VRIES - Op. cit.
The correct date for the monotype
experiments is the beginning
of 1989.
19 Conversation with the author, Rio
de Janeiro, 03/03/2007.
This use of transfers in Milhazes’s work belongs to the tradition – rich in ethical and theoretical implications – of collage. Within the ethics of Modernism,
the act of transferring an existing image, be it created by the artist or a found
object, has important connotations that range from the affirmation, in analytic
cubism, of the flatness of the picture plane to the most important theoretical
contribution of Pop Art: the transfer of existing images as a way of showing an
object without representing it. Collage was present in Milhazes’s work from the very
beginning but, starting in 1989, all her work becomes, to a significant extent,
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homem, branco e europeu. Se a morte do autor foi um exagero retórico, não
há dúvida de que a subjetividade autoral foi posta em cheque pelo reativamento de procedimentos como apropriação, serialidade e aleatoriedade. Depois do
monocromo, uma pintura que quisesse ser do seu tempo precisava, no mínimo, distanciar-se de práticas anteriores, interrompendo a relação direta entre
pincel e tela. Nesse contexto, que alguns consideram pós-moderno, iniciou-se
a produção de Milhazes.
Os materiais utilizados numa obra de arte, assim como seu processo de aplicação, são portadores de significado, nunca neutros. Milhazes diz que não usa
tinta a óleo porque isso a colocaria em confronto direto com a pintura tradicional16. Durante os primeiros anos de carreira, ela pintou diretamente sobre
tela com tinta acrílica, mas descobriu, aos poucos, uma inquietude com esse
procedimento, tão tradicional quanto o uso do óleo. Em 1989, Milhazes teve
o que considera sua única crise: a trama de vinte e cinco quadrados que vinha
usando havia se transformado numa repetição “burocrática”17.
Durante três meses, no começo de 1989, Milhazes fez experiências com monotipia, aplicando tinta acrílica sobre folhas de plástico de encadernação e transferindo o resultado para telas, como se fosse um decalque. Foi então que Milhazes
começou a incorporar clichês transferidos da arte abstrata, motivos extraídos
de (Sonia) Delaunay, Arp e Kandinsky.
Sempre considerei a superfície lisa como um filtro entre a tela e o artista. Quando
descobri a técnica de monotipia no final de 1989, estava no meio de uma crise.
Até então eu pintava imagens diretamente sobre a tela, mas fiquei entediada com
a geometria. Eu queria misturar idéias construtivas e geométricas com decoração
e simbolismo, pois isso se aproxima mais da vida.18
Os primeiros resultados dessa pesquisa, ainda experimentais (telas como Perché
vienne la pancia, 1990, eram revestidas com a própria folha de plástico pintada),
apareceram na terceira individual carioca de Milhazes, na Galeria Saramenha,
a primeira que a artista considera “boa”19.
16 Conversa com o autor, data
não-registrada.
17 Conversa com o autor, Rio de Janei-
ro, 03/03/2007.
18 Apud Marina DE VRIES - Op. cit.,
tradução nossa. A data correta é a do
texto (“começo de 1989”).
19 Conversa com o autor, Rio de Janei-
ro, 03/03/2007.
O uso do decalque na obra de Milhazes a insere na tradição – rica em implicações éticas e teóricas – da colagem. Dentro do modernismo, o gesto de
transferir uma imagem pronta, seja ela criada pelo artista ou uma apropriação,
tem conotações importantes que vão desde a afirmação, no cubismo analítico, da planaridade da superfície até a contribuição teórica mais importante
da arte Pop: a transferência de imagens prontas para mostrar um objeto sem
representá-lo. A colagem esteve presente desde os primeiros anos da obra de
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collage: from the paintings with transfers to the compositions made with candy
wrappers, from the multiple layers applied in the screen prints to the vinyl adhesives used in public works.
In Milhazes’s first experiments, the transfer of acrylic-painted motifs coexisted with the collage of other materials, like the fragments of canvas that
appear in Com quem está a chave do banheiro 10? [Who has the key to bathroom
10?], 1989. In untitled, 1989, in addition to the pasted strip of canvas
in the center, there is a mixture of paint and lace transfers along the edges. In
Me perdoa, te perdôo! [Forgive me, I forgive you!], 1989, the red bands are collages of painted lace glued on painted canvas while the blue bands are collages
of acrylic paint.
Between 1989 and 1995, the motifs had been pasted with white PVA glue
mixed with ochre pigment. This took a long time to dry, and the pigment
left a shade behind the transfers, making it harder to create forms with lighter
contours and giving the paintings an appearance of age. In 1995, Milhazes
showed in her first major international exhibition, the Carnegie International
in Pittsburgh. After a conversation with the institution’s conservators, she
adopted transparent acrylic medium as the adhesive for the transfers. The new
Me perdoa, te perdôo! | Forgive me,
I forgive you!, 1989
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
189 X 234 cm
Coleção | Collection
Museu Nacional de Belas Artes
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Milhazes, mas a partir de 1989, de certa forma, toda a sua obra é colagem: desde
as pinturas com decalque até as composições feitas com invólucros de balas,
passando pelas múltiplas camadas aplicadas nas serigrafias e os adesivos de
vinil utilizados nas obras públicas.
Nas primeiras experiências, de 1989, a colagem de motivos pintados em tinta
acrílica convivia com a de outros materiais, como os fragmentos de tela que
aparecem em Com quem está a chave do banheiro 10?, 1989. Na obra sem título de
1989, além da tela colada na faixa central, aparecem decalques de tinta e de
renda nas bordas. Em Me perdoa, te perdôo!, 1989, as faixas vermelhas são colagens de renda pintada sobre tela também pintada, enquanto as bandas azuis são
colagens de tinta acrílica.
Entre 1989 e 1995, os motivos foram fixados com cola PVA branca misturada
com pigmento ocre. A secagem era lenta e o pigmento deixava um sombreado
por trás dos decalques, dando um ar de envelhecimento e dificultando o uso
de formas com traços mais finos. Em 1995, Milhazes participou de sua primeira exposição internacional proeminente, no Carnegie Museum of Art de Pittsburgh. Após uma conversa com os restauradores da instituição, a artista adotou
o meio acrílico transparente. O novo adesivo mudou o aspecto das telas: as
cores ficaram mais brilhantes, o resultado ficou mais límpido e tornaram-se
visíveis linhas que antes ficavam apagadas pelo pigmento ocre. O meio acrílico
passou, então, a ter uma tripla função: cola para decalques, diluente para tintas
e base para telas.
20 Conversa com o autor, Rio de Janeiro, 04/03/2007.
A transferência de películas feitas de antemão, além de representar uma
tomada de posição frente à pintura tradicional, permite que o impulso
ordenador conviva com o expressivo de maneira cronologicamente distinta. O uso
do decalque permite que Milhazes experimente várias colocações de um motivo antes de escolher a definitiva. Além disso, existe a possibilidade de usar
um motivo muito tempo depois de pintado. Por exemplo, as flores branca
e vermelha que aparecem no quadrante superior direito de Tempo de verão,
1999, foram pintadas sete anos antes, em 1992. Segundo Milhazes, as folhas de plástico sobre as quais são pintados os motivos são reaproveitadas
depois que estes são transferidos, de maneira que muitas dessas folhas
têm mais de dez anos de uso20. Como a transferência dificilmente é perfeita,
essas folhas acumulam resíduos, uma memória do que se foi. Ao iniciar o
quadro O macho, 2002, Milhazes descarregou na tela crua os restos de um
bom número de folhas veteranas, tornando essa pintura particularmente interessante por conter a memória de motivos utilizados anteriormente.
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material had an impact on the paintings’ appearance: their colors became
more brilliant, the results became cleaner, and it became possible to use lines
that, previously, would have disappeared below the ochre pigment. From that
point onwards, transparent acrylic medium served a triple function: adhesive
for transfers, thinner for paint, and primer for canvas.
The transfer of previously made motifs not only assumes a stance towards
traditional painting but allows the ordering impulse to coexist with the expressive in a chronologically distinct way. Not only is Milhazes able to experiment
several placements of a motif before choosing the definitive one, but there
is also the possibility of using a motif long after it was painted. For example, the white and red flowers that appear in the northeast quadrant of
Tempo de verão [Summertime], 1999, were painted seven years earlier. According
to Milhazes, the plastic sheets are reutilized once the motifs are transferred,
so that many have logged over ten years of use20. Since the transference
process is seldom perfect, the plastic sheets accumulate residues, a kind
of memory. In O macho [The male], 2002, Milhazes began by discharging on to
the blank canvas the residues of several old sheets, making this painting particularly notable for containing the ghosts of previous paintings.
The transfer process is described in most texts about Milhazes and, in some
cases, one is led to understand that the layer of paint is peeled from the
plastic sheet and then pasted on the canvas. In actuality, the layer is always
transferred directly from the sheet to the canvas, never existing as a loose
object. Milhazes brushes the adhesive over the motif and then attaches the
plastic sheet to the desired place using thumb tacks, not hesitating to penetrate
earlier layers of paint and pierce the canvas (to the distress of any professional
accustomed to handling artworks with white gloves). The process is laborious. The motifs need to accumulate four layers of paint, otherwise the skin is
too thin to transfer. Depending on the humidity, each transfer then has to dry
for a day after it is pasted. Even with the help of a blow drier, this is a process
that, one might say, hinders any spontaneity that might manifest itself.
20 Conversation with the author, Rio
de Janeiro, 03/04/2007.
In contrast with figurative motifs like flowers and fruit, effects like velatures
need to be painted directly because they cannot exceed one layer of paint,
resulting in a skin too thin to transfer. According to Milhazes, velatures first
appeared in Rio de Janeiro 31.04.1910, 1993/4. The composition was refusing to
come together, so she covered the parts she liked least, simultaneously relegating and promoting them to the condition of pentimento. Another example of the
use of velatures is Macho e fêmea [Male and female], 1995, where the background
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O macho | The male, 2002
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
100 X 96 cm
O processo de decalque é mencionado em quase todos os textos sobre Milhazes
e, em algumas descrições, entende-se que a película de tinta é descascada do
plástico e depois colada sobre tela. Na realidade, a película é sempre transferida diretamente da folha de plástico para a tela, nunca existindo solta. Antes de
transferir, Milhazes passa meio acrílico sobre o motivo e fixa a folha de plástico no lugar desejado usando tachinhas, não hesitando em furar as camadas
anteriores de tinta e atravessar as telas (para a aflição de qualquer profissional
acostumado a manusear obras de arte com luvas brancas). Os motivos precisam
acumular quatro demãos de tinta, se não a película fica fina demais para ser
transferida. Dependendo da umidade do ar, cada decalque precisa secar por um
dia depois de pintado e por mais um dia depois de colado. Mesmo com a ajuda
de um secador de cabelo, esse processo é demorado e, diga-se de passagem,
dificulta que qualquer impulsividade possa se manifestar.
Em contraste com motivos como flores e frutas, as veladuras não devem ultrapassar uma demão e, portanto, precisam ser pintadas diretamente, pois resultariam camadas finas demais para serem transferidas. Segundo Milhazes, a veladura apareceu pela primeira vez na tela Rio de Janeiro 31.04.1910, 1993/4. Como
a composição se recusava a se resolver, Milhazes cobriu as partes de que gostava
menos, simultaneamente as relegando e promovendo à condição de pentimento. Outro exemplo do uso de veladuras é Macho e fêmea, 1995, onde o fundo
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Macho e fêmea | Male and female, 1995
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
180 x 200 cm
is so blue and transparent that it appears submerged. In O popular [The popular],
1999, it is the foreground that appears veiled, creating a curious tension between what is downplayed and what is emphasized.
Also consistent with a critical stance towards traditional painting, brushstrokes
exist in Milhazes’s transfers, but are invisible because they appear on the side
of the skin that is attached to the canvas. Since the paint is not absorbed
by either plastic or canvas (another sign of critical distance), the color remains
identical to what came out of the tube. Another distancing aspect of the transfer
process, one that it shares with printmaking, is the need to paint the negative
of what one wishes to see, since what emerges from the plastic sheets will
be the inverse of what was painted.
If we examine the surfaces of Milhazes’s paintings and collages carefully, we
perceive a roughness that points to a combination of factors: the imperfection
of the transference process, resulting in a carious appearance; the transfer of old
residues, creating pentimento; the superimposition of several more or less transparent layers, generating palimpsests; and the pencil lines, used in preparatory
stages, that the artist has recently begun to leave visible. In the collages, the
colored candy wrappers are attached with no attempt to hide the folds, marring
the sheen of their seductive surfaces. The compositional equilibrium of these
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Rio de Janeiro 31.04.1910 | Rio de
Janeiro 31.04.1910, 1993/4
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
180 x 180 cm
parece submerso de tão azul e transparente. Já em O popular, 1999, no primeiro
plano parece haver uma veladura, o que cria uma tensão curiosa entre o esmaecido e o saliente.
De modo também coerente com uma posição crítica em relação à pintura
tradicional, as pinceladas existem nos decalques de Milhazes, mas são invisíveis, porque ficam no lado da película que é afixado à tela. Como a tinta não
é absorvida pela tela (outro índice de distanciamento), a cor permanece idêntica à que sai do tubo. Outra peculiaridade do uso do decalque, que o aproxima dos procedimentos da gravura, é a necessidade de pintar o negativo do
que se deseja ver, pois o que sairá das folhas de plástico será o inverso do que
se pinta.
Se examinarmos as pinturas e colagens com cuidado, notaremos uma rudeza
nas superfícies que aponta para uma conjunção de fatores: a imperfeição do
processo de decalque, que resulta em transferências cariadas; a transferência de
resíduos antigos de tinta das folhas de plástico, que cria um efeito de pentimento ou rasura; a superposição de camadas mais ou menos transparentes, que cria
uma aparência de palimpsesto; e as marcas de lápis que a artista vem deixando
visíveis, usadas em estágios preparatórios. Nas colagens sobre papel, que começaram a ser feitas em 2003 e logo contagiaram as pinturas (ver O sol de Londres,
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works only becomes complete when tensioned by the laceration of their surfaces. Without this clash, less apparent in reproduction but clearly visible when
we examine it in person, the work of Milhazes would be less complete, less
qualified to serve as a metaphor for the world.
COMPOSITION
The space in Milhazes’s works is not the space of traditional perspective, but
neither is it flat. It contains a variety of levels, not only because of the specific
depth that characterizes each color – darker and colder colors appear further
while lighter and warmer colors appear closer – but also according to the use of
velatures. Here one finds none of the Modernist preoccupation with emphasizing the flatness of the picture plane.
Despite the laborious and meticulous accumulation of pictorial information,
Milhazes is everything but precious. There is considerable looseness in assembling a picture, an absence of Swiss precision that, running counter to what
one might expect from the use of a device such as a transfer, emphasizes the
artisanal aspect of the work. Milhazes only achieves procedural cleanliness in
the screen prints and public commissions, works made in collaboration with
technicians dedicated to precision.
Years before the development of her transfer technique, Milhazes already manifested the concerns that would characterize her development:
The central problem that I was facing, in my work, was the duality between the
Baroque and the Neoclassic, the full and the empty. I felt the need to fill, to overload, to superimpose images; at the same time, with the same intensity, to “clean”
as much as possible, to simplify.21
I love imposing myself rigid limits with respect to painting.22
21 Letter to the author, Rio de Janeiro,
07/08/1985.
22 Letter to the author, Rio de Janeiro,
01/10/1986.
23 Letter to the author, Rio de Janeiro,
05/25/1986.
24 Apud Roberto COMODO - “Explosão de cores e arabescos”, Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 10/11/1993.
I am taking the various spatial solutions that have been achieved and reorganizing
them in a way that is often arbitrary. I am not pledged to any style or movement
(like everyone from my generation), only to my own work. I feel totally free to
visit Malevich, P. Klee, Picasso, Gris and Matisse, without restriction.23
Years later:
What interests me in painting is the thought that lies behind the picture plane,
how to contain an intensity of elements in a straight and shallow space.24
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2003), as embalagens coloridas de balas e bombons são aplicadas sem disfarçar
as dobras, maculando o brilho das superfícies sedutoras. O equilíbrio de composição dessas obras só se completa quando tencionado pelo dilaceramento de
suas superfícies. Sem esse embate, menos aparente nas reproduções, mas claramente visível quando examinamos os trabalhos ao vivo, a obra de Milhazes
seria menos completa, menos capacitada como metáfora do mundo.
COMPOSIÇÃO
O espaço criado na obras de Milhazes não é o espaço da perspectiva tradicional,
mas também não é plano. Trata-se de um espaço formado por diversos níveis,
que se projetam cada um de maneira diferente, não só pela profundidade característica de cada cor – as mais escuras e frias tendem a parecer mais longínquas
e as mais claras e quentes, mais próximas –, mas também de acordo com o uso
das veladuras. Nessa obra, não existe a preocupação modernista de ressaltar a
planaridade da tela.
Apesar do acúmulo trabalhoso e meticuloso de informação pictórica, Milhazes
é tudo menos preciosista. No processo de montagem de uma obra existe uma
boa dose de desprendimento, uma imprecisão pouco suíça que, na contramão
do que poderia resultar de um artifício como o decalque, enfatiza o aspecto
artesanal da obra. A produção de Milhazes só adquire limpeza processual nas
serigrafias e nas obras públicas, trabalhos feitos em colaboração com técnicos
dedicados à precisão.
Anos antes do desenvolvimento da técnica do decalque, Milhazes já demonstrava as preocupações que viriam a marcar sua trajetória:
O problema central que estava enfrentando, no meu trabalho, era a dualidade entre o barroco e o neoclássico, o cheio e o vazio. Sentia uma necessidade de encher,
de sobrecarregar, de superpor imagens; ao mesmo tempo, com a mesma intensidade, uma necessidade de “limpar” ao máximo, simplificar.21
Adoro me impor limites rígidos em relação à pintura.22
21 Correspondência com o autor, Rio
de Janeiro, 08/07/1985.
22 Correspondência com o autor, Rio
de Janeiro, 10/01/1986.
23 Correspondência com o autor, Rio
de Janeiro, 25/05/1986.
Estou pegando as diversas soluções espaciais já conquistadas e reorganizando-as de
uma forma muitas vezes arbitrária. Não tenho compromissos com nenhum estilo
ou movimento (aliás, como todos da minha geração), tenho apenas compromissos com meu próprio trabalho. Sinto-me com total liberdade de visitar Malevich,
P. Klee, Picasso, Gris e Matisse, sem constrangimentos.23
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I want the structure of geometric art, but with formal freedom, using imagery
belonging to different worlds.25
My main interest has always been chromatic organization, but I understand today
that the chromatic movement that interests me comes not from the “laws” of
color, or the general visual arts universe, but from ornamentation and the subjectmatter of life.26
In this organization of colors and forms, Milhazes’s tendency is to seek equilibrium. Many of her compositions are essentially symmetrical, especially (and
most naturally) the square ones. Even the asymmetrical ones, with few exceptions, try to balance the disparate areas. In Milhazes, we seldom find compositions that revel in disequilibrium, like Toulouse-Lautrec’s Admiral Viaud, 1901,
in the collection of the São Paulo Museum of Art.
25 Apud Paulo HERKENHOFF - Beatriz
Milhazes, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 2006, p. 227.
26 Idem, p. 229.
27 Conversation with the author, Rio
de Janeiro, 03/03/2007.
On the contrary, the harmony of Milhazes’s compositions is closer to the classical proportions of Ingres or the stability of Chardin. To illustrate, O peixe [The
fish], 1996/7, follows principles of equilibrium similar to those of orthodox
compositions like Soldados índios de Mogi das Cruzes, província de S. Paulo, combatendo Botocudos [Indigene soldiers from Mogi das Cruzes, São Paulo province, in combat
against Botocudos], 1834, by Debret.
With a smile, Milhazes defines herself as “an Anglo-Saxon soul in a Brazilian
body”27, but it is only in her drawings that this characterization manifests itself.
These drawings, while not for sale, are reproduced in publications and show
Henri Toulouse-Lautrec
Almirante Viaud | Admiral Viaud, 1901
óleo sobre tela | oil on canvas
139 x 153 cm
Coleção | Collection
Museu de Arte de São Paulo
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Jean Baptiste Debret
Soldados índios de Mogi das Cruzes,
província de S. Paulo, combatendo Botocudos | Indigene soldiers from Mogi das
Cruzes, São Paulo province, in combat
against Botocudos, 1834
litografia | lithography
Acervo | Collection
Pinacoteca do Estado de São Paulo
Coleção | Colletion
Brasiliana/Fundação Estudar
Doação | Donation
Fundação Estudar, 2007
O peixe | The fish, 1996/7
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
188 x 300 cm
24 Apud Roberto COMODO - “Explosão de cores e arabescos”, Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 10/11/1993.
25 Apud Paulo HERKENHOFF - Beatriz
Milhazes, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 2006, p. 227.
26 Idem, p. 229.
27 Conversa com o autor, Rio de Janei-
ro, 03/03/2007.
Anos mais tarde:
O que me interessa na pintura é o pensamento sobre a superfície do plano da tela,
como conter uma intensidade de elementos num espaço estreito e raso.24
Eu quero a estrutura dos geométricos, porém com uma liberdade formal e de
imagens que pertence a mundos diversos.25
O meu principal interesse sempre foi a organização cromática, porém reconheço
hoje que o movimento cromático que me interessava não vem das “leis” de cor ou
do universo plástico em geral e sim dos ornamentos e assuntos da vida.26
Na organização das cores e formas, a tendência de Milhazes é buscar o equilíbrio. Muitas de suas composições são essencialmente simétricas, principalmente as quadradas. Mesmo as assimétricas, com poucas exceções, procuram balancear as áreas díspares. Dificilmente encontramos uma composição que cultiva
o desequilíbrio, como o Almirante Viaud, 1901, de Toulouse-Lautrec, na coleção
do MASP.
Pelo contrário, o ajuste das composições de Milhazes está mais próximo
das proporções clássicas de Ingres ou da estabilidade de Chardin. Para ilustrar, notemos que O peixe, 1996/7, segue princípios de equilíbrio semelhantes aos de uma composição de Debret como Soldados índios de Mogi das Cruzes,
província de S. Paulo, combatendo Botocudos, 1834.
Com um sorriso, Milhazes se define como uma “alma anglo-saxônica dentro de
um corpo brasileiro”27, mas é só nos desenhos que isso se manifesta plasticamente. Não-comercializados, esses desenhos são reproduzidos em publicações
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Antoni Gaudí
Estudo para a construção do Temple
Expiatori de la Sagrada Família, em Barcelona | Study for the building of Temple
Expiatori de la Sagrada Família, Barcelona
Museu | Museum
Temple Expiatori de la Sagrada Família
Milhazes’s sensibility in a direct manner, without the resistance of canvas or the
mediation of transfers. In them, we see a fin-de-siècle esthetic reminiscent of the
art nouveau of Audrey Beardsley.
28 The Golden Rule and the Fibonacci
Series are intimately connected: if a
number from the series is divided by
the previous number, the result is
the golden rule.
In matters of scale, Milhazes claims greater facility with larger canvases because
she feels more comfortable with the openness of their spaces; in the smaller canvases, it is harder to avoid too many elements or, on the other hand, oversimplification. The square is one of her favorite formats because it is the most neutral:
it imposes neither verticality nor horizontality, avoiding connotations of portrait
or landscape. Among the compositional devices, Milhazes favors the circle because it keeps the gaze in constant movement. Combining these preferences, a
circle within a square is an ideal scheme, and appears often. On the other hand,
she likes to invent and tackle pictorial problems, so she continues to experiment
with small canvases and narrow formats, both horizontal and vertical.
29 Some texts about Milhazes com-
mend this lack of systems in her work,
even expressing a certain animosity
towards mathematical or geometric
principles. Fréderic Paul writes that
Milhazes and other artists are uniting
against what he calls the “tyranny of
the right angle”. According to Paulo
Herkenhoff, who has been following
the work of Milhazes with singular
dedication, the artist confronts the “intellectual bureaucracy of the Republic
of the Ruler […] a group of formalist
critics fixed on geometry”.
Looking at Milhazes’s compositions, one has the impression that the disposition of elements is governed by a system, but it is an intuitive system rather
than an exact principle like the Golden Rule (1:1,618), the Fibonacci Series
(1:1:2:3:5:8:13:21:34...)28, or multiples of three (as detailed in the medieval
treatise Harmonia Mundi Totius). Similarly, Milhazes’s colors are also not chosen
according to an underlying theory, such as outlined by Josef Albers (Interaction of color) or Johannes Itten (The art of color: The subjective experience and objective rationale of color)29. Nevertheless, it is generally accepted that natural princi-
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e expõem a sensibilidade de Milhazes de maneira direta, sem a resistência da
tela ou a mediação dos decalques. Neles, vê-se uma estética fin-de-siècle, que lembra o art nouveau inglês de Audrey Beardsley.
Com relação à escala, Milhazes diz ter mais facilidade com telas maiores, pois se
sente mais à vontade com um espaço mais aberto; nas telas pequenas, sustenta
que é mais difícil não colocar elementos demais ou, por outro lado, não simplificar demais. O quadrado é um de seus formatos preferidos por ser o mais
neutro: não impõe verticalidade ou horizontalidade, evitando conotações de
paisagem ou retrato. Entre as ferramentas de composição, o círculo ocupa lugar
de destaque por manter o olhar em constante movimento. Juntando as duas
preferências, um círculo dentro de um quadrado representa uma combinação
formalmente ideal e recorrente na obra de Milhazes. Por outro lado, a artista diz
que gosta de inventar e enfrentar problemas pictóricos, por isso continua experimentando com formatos pequenos e telas verticais e horizontais estreitas.
28 A proporção áurea e a série de
Fibonacci estão intimamente ligadas:
se um número da série é dividido
pelo seu antecessor, o resultado é a
proporção áurea.
29 Alguns textos sobre Milhazes elo-
giam essa falta de sistemas em sua
obra, expressando até certa animosidade com relação a princípios matemáticos ou geométricos. É o caso de
Fréderic Paul ao afirmar que Milhazes
e outros artistas estão se unindo contra o que ele denomina a “tirania do
ângulo reto”. Paulo Herkenhoff, que
vem acompanhando a obra de Milhazes com uma dedicação singular, diz
que a pintora enfrenta a “burocracia
intelectual da República da Régua”,
constituída, segundo ele, por “um
grupo de críticos formalistas fixados
na geometria”.
Olhando para as obras de Milhazes, tem-se a sensação de que a disposição de
elementos sobre o plano pictórico é governada por algum sistema, mas tratase de um sistema intuitivo e não um princípio exato como a proporção áurea
(1:1,618), a série de Fibonacci (1:1:2:3:5:8:13:21:34...)28, ou múltiplos de
três (conforme o tratado Harmonia Mundi Totius, que descrevia a ordem e proporção que os humanistas teriam descoberto no planejamento do mundo). De
maneira análoga, as cores de Milhazes também não são escolhidas a partir de
alguma teoria, como as de Josef Albers (Interaction of color) ou Johannes Itten (The
art of color: the subjective experience and objective rationale of color)29. Embora Milhazes
não use um sistema, existem princípios naturais que informam noções vigentes
de boa forma e esses princípios são absorvidos e aplicados por intuições bem
sintonizadas. Além dos métodos matemáticos, existem também os heurísticos – o
velho e bom “tentativa e erro” –, que nos levam empiricamente ao equilíbrio.
Por exemplo, no subsolo da Catedral da Sagrada Família, em Barcelona, vê-se
como Gaudí modelava suas estruturas assombrosas sem ajuda de um sofisticado
programa de computador como o que possibilita as formas de Frank Gehry.
Gaudí manipulava um conjunto de pesos e contrapesos virados de cabeça para
baixo até alcançar uma solução estética que demonstrasse estabilidade estrutural. Uma vez atingido esse objetivo, simplesmente invertia a estrutura.
Não é muito diferente o processo de Milhazes, que experimenta diferentes
combinações até alcançar soluções que considera satisfatórias. Mas o mais importante nesse equilíbrio tão depurado (que, em isolamento, não passaria de
uma proeza de prestidigitação) é sua capacidade de estruturar, nas pinturas e
103
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ples permeate notions of good form, and these underlying rules are absorbed
and applied by sensitive intuitions. In addition to formal methods, there are
also heuristic ones – the old “trial and error” – that can lead us empirically
to a state of compositional equilibrium. For example, in the basement of the
Sagrada Familia cathedral in Barcelona we can see how Gaudí modeled his
astonishing structures without the help of sophisticated software: he would
manipulate an array of weights and counterweights, all hanging upside down,
until he found an esthetic solution that was structurally stable. Once this was
achieved, he would simply invert the structure.
Milhazes’s process of experimenting different combinations until she achieves
a satisfactory solution is not so different. But what is most important about
her refined equilibrium (that, in isolation, would be little more than a feat of
prestidigitation) is its ability to structure, in the paintings and collages, a fully
contemporary acidity and detachment.
As has been noted many times elsewhere, both the process and iconography employed by Milhazes incorporate much of what is habitually associated
to the feminine world: patient manufacture, use of ornament, and references
to clothing and decoration. But conviviality between forms may also be likened
to another characteristic that female anthropologists have proposed as feminine: the search for harmonious social relations. Unlike men, who are in the
habit of reacting to danger by fighting or fleeing, “women often show a very
different reaction to stress, one that revolves around nurturing and seeking
the support of others rather than aggression or escape. [...] in stressful situations, women often sought out the company and support of others”30.
ICONOGRAPHY
30 Erica GOODE - “Scientists find a
particularly female response to
stress”, The New York Times, New York,
05/19/2000.
Milhazes has an extensive repertory of icons that serves as an image bank for
her compositions. The motifs that fill this vocabulary are drawn from art, design and everyday life. Thus, one of Milhazes’s challenges is to orchestrate
convivial relations between disparate universes. According to the artist, this
interest in superimposing images and styles comes from her research into Cubism at the time of her studies with Charles Watson at Parque Lage. As in Cubism, different planes coexist on the surface of her works, creating an ambiguous space that exists only in them.
Many of Milhazes’s compositions contain so much information that the first
104
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nas colagens, uma acidez e um distanciamento inteiramente contemporâneos.
Como já foi notado diversas vezes em outros escritos, tanto o processo como
a iconografia de Milhazes incorporam muito do que se costuma associar ao
universo feminino: manufatura paciente, recurso ao ornamento, referências ao
vestuário e à decoração. Mas é também nas relações equilibradas entre as formas que encontramos uma característica que algumas antropólogas propõem
como feminina: a busca de relações sociais harmoniosas. Diferentemente dos
homens, que costumam reagir, diante de uma situação de perigo, de maneira
bipolar, lutando ou fugindo, as “mulheres freqüentemente demonstram uma
reação muito diferente, procurando e oferecendo amparo no lugar de agredir
ou fugir. [...] em situações de risco, as mulheres freqüentemente buscam a
companhia e o apoio de seus pares”30.
ICONOGRAFIA
Milhazes possui um extenso repertório iconográfico que serve como banco de
imagens para suas composições. Os motivos que compõem esse vocabulário
pertencem aos universos da arte, do design e do cotidiano. Assim, um dos
desafios de Milhazes é provocar o convívio de elementos oriundos de esferas
diversas. Segundo a artista, o interesse pela superposição de imagens e estilos
vem do interesse pelo cubismo, cultivado na época dos estudos com Charles
Watson no Parque Lage. Como no cubismo, diferentes planos convivem na superfície de suas obras, criando um espaço ambíguo que só existe nelas.
Por vezes, as composições de Milhazes são carregadas de tantas informações
que a primeira tendência é privilegiar o geral à custa dos detalhes. Para estimular uma observação mais lenta e cuidadosa, que perceba a articulação interna dos elementos, isolamos alguns motivos recorrentes. Na p. 106, vêem-se
exemplos de variações do mesmo motivo; na p. 107, exemplos da variedade
de motivos31.
30 Erica GOODE - “Scientists find a
particularly female response to
stress”, The New York Times, New York,
05/19/2000.
31 Se esse didatismo tem seus riscos –
isolar um motivo é como pinçar uma
palavra de uma frase –, espero que
uma consciência maior da individualidade desses (e outros) componentes
estimule a familiaridade com outras
características que se poderiam perder
numa visão totalizante.
Dentro da iconografia de Milhazes, o símbolo de “paz e amor” é notável pela
regularidade com que aparece de 1988 até hoje. O mesmo poderia se dizer
da pomba representando o Divino. Outros motivos se anunciam, desaparecem
e depois voltam. Os alvos, por exemplo, aparecem cedo (e.g., Com quem está a
chave do banheiro 10?, 1989), mas só proliferam a partir de 1995. Na pintura Te
quiero, 1992, nota-se um antepassado do círculo “Pucci” atrás de uma trepadeira,
pressagiando os que aparecem freqüentemente a partir de 2001. Em A primavera, 1995, vêem-se as primeiras listras, freqüentes a partir de 1999. Fundos de
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Exemplos de motivos freqüentemente
usados pela artista | Examples of motifs
frequently used by the artist
impulse is to privilege the general at the expense of the specific. To encourage
slow and careful observation, and draw attention to the internal articulation of
elements, we have isolated some recurring motifs. Above, we see examples of
variations, on the next page, of variety31.
31 If this didacticism has its risks –
isolating a motif is like pulling a word
from its sentence – I hope that greater
awareness of the individuality of these
(and other) components will stimulate
familiarity with other characteristics
that could otherwise lose themselves in
a totalizing vision.
Within Milhazes’s iconography, the peace sign is notable for the regularity
with which it recurs, from 1988 until the present. The same could be said
of the dove representing the Divine. Other motifs announce themselves,
disappear, and then return. Targets, for example, appear early (e.g., Com quem está
a chave do banheiro 10? [Who has the key to bathroom 10?], 1989), but become
recurrent only after 1995. In Te quiero [I love you], 1992, we can detect,
lurking behind a vine, an ancestor of the “Pucci” circle, anticipating a
motif that would appear frequently after 2001. In A primavera [Spring], 1995,
we see the first stripes, elements that appear regularly after 1999. Colored
square backgrounds appear sporadically, in 16 não, 22 [Not 16, 22], 1990,
São Jorge II [St. George II], 1998, e O sol de Londres [The London sun], 2003. And,
like an echo, the grid of 25 squares from 1987-9 reappears in 1993 (La dessert
[The dessert]) and 1996 (Chora, menino [Cry, my boy]).
Milhazes’s iconography changes slowly and gradually, in response to new pictorial problems. The distribution of motifs and patterns follows syntax and, as
106
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Variações de motivos: flor, renda, coração
e alvo, tal como aparecem em alguns
trabalhos de Milhazes | Motif variations:
flower, lace, heart, target, such as they
appear in some works by Milhazes
quadrados coloridos aparecem esporadicamente, em 16 não, 22, 1990, São Jorge
II, 1998, e O sol de Londres, 2003. Como um eco, a trama organizadora de 25 quadrados, utilizada em 1987-9, reaparece em 1993 (La dessert [A sobremesa]) e
1996 (Chora, menino).
As mudanças na iconografia de Milhazes ocorrem de maneira gradual, baseadas
em novos problemas pictóricos a serem resolvidos. A distribuição dos motivos e padrões obedece a uma sintaxe e, como tal, pode ser entendida como
um procedimento análogo ao da linguagem, onde construímos significados
combinando elementos preexistentes numa determinada ordem ou seqüência.
Mas, diferentemente da linguagem, ou da arte narrativa, a sintaxe de Milhazes não descreve eventos (como uma pintura bíblica ou histórica) ou mostra
situações (como uma natureza-morta, paisagem ou retrato). Também não é
inteiramente abstrata (como, por exemplo, as obras de Mondrian, Pollock,
Ryman ou Marden), pois contém elementos estilizados do real. Sua precedente
mais próxima talvez seja a abstração praticada por Kandinsky nos anos 1920,
também composta de motivos. Em Milhazes, todas as permutações são possíveis: os elementos de fundo podem ser abstratos (e.g., padrões geométricos)
ou figurativos (e.g., rendas) e os de primeiro plano também podem ser abstratos (e.g., círculos concêntricos) ou figurativos (e.g., flores). Se tomássemos
a figuração narrativa e a abstração absoluta como pólos opostos, a figuração
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A primavera | Spring, 1995
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
125 x 120 cm
such, can be understood as a procedure analogous to language, where we convey meaning by combining preexisting elements in a certain order or sequence.
But, unlike language or narrative art, Milhazes’s syntax does not describe events
(e.g., biblical or historical painting) or show situations (e.g., still life, landscape
or portrait). It is also not entirely abstract (like Mondrian, Pollock, Ryman, or
Marden) because it contains figures. The closest precedent may be the abstraction practiced by Kandinsky in the 1920s, also composed of motifs.
In Milhazes, all permutations are possible: the background elements can be
abstract (e.g., geometric patterns) or figurative (e.g., lacework) while the
foreground elements can also be abstract (e.g., concentric circles) or figurative (e.g., flowers). If we take narrative figuration and absolute abstraction as
opposite poles, Milhazes’s non-narrative figuration would occupy an intermediate position, perhaps like opera occupies a middle ground between theater
and music.
32 “Bridget Riley: Reconaissance”, September 21, 2000 to June 17, 2001.
Milhazes is interested in the work of fashion designers like Christian Lacroix
and Emilio Pucci and the jewelry designer Miriam Haskell. In the visual arts,
Bridget Riley’s patterns became a point of reference starting in 2001, after Milhazes saw Riley’s exhibition at Dia Center for the Arts32 (though it is worth
noting the presence of straight and undulating lines in earlier paintings such as
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Te quiero | Te quero | I love you, 1992
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
180 x 180 cm
não-narrativa de Milhazes ocuparia um lugar intermediário, talvez como a ópera ocupa um terreno entre o teatro e a música.
No mundo do design, Milhazes se interessa pelo trabalho de estilistas como
Christian Lacroix e Emilio Pucci e da designer de jóias Miriam Haskell. Nas artes plásticas, os padrões de Bridget Riley passaram a ser uma referência a partir
de 2001, depois que Milhazes viu a exposição de Riley no Dia Center for the
Arts32 (mas cabe notar a presença de listras retas e onduladas em telas anteriores
como O Buda, 2000, e O selvagem, 1999). Existe, também, uma forte ligação com
o design de objetos do cotidiano, possível manifestação de um subconsciente
gráfico coletivo.
32 “Bridget Riley: Reconaissance”, 21
de setembro de 2000 a 17 de junho
de 2001.
33 Conversa com o autor, Rio de Janeiro, 03/03/2007.
Milhazes se define como uma artista Pop33 e, ao mesmo tempo, como uma
artista abstrata, uma aparente contradição. Mas a arte Pop fez muito para sabotar a distinção entre abstrato e figurativo, usando figuração sem propósito
narrativo, como faz Milhazes. Mas se os motivos e padrões das telas de Milhazes
não têm função narrativa ou descritiva, é inevitável que tenham conotações:
o coração representa o amor tanto quanto a pomba significa religiosidade.
Mesmo elementos aparentemente neutros, como listras, apontam para as artes decorativas, que mantêm relações de maior ou menor tensão com as artes
chamadas eruditas. A ausência de narrativa, em parte compensada pelas cono-
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O Buda [The Buddha], 2000, and O selvagem [The savage], 1999). There is also
a strong connection between Milhazes’s motifs and the mundane design of
everyday objects, possibly a manifestation of a design unconscious.
Milhazes defines herself as a Pop artist33 and, at the same time, as an abstract
artist, an apparent contradiction. But Pop did much to sabotage the distinction between the abstract and the figurative by using figures without narrative purpose, much as Milhazes does. But if the motifs and patterns in
Milhazes’s canvases have no narrative or descriptive function, it is inevitable
that they have connotations: the heart will always represent love as much
as the dove, in Catholic iconography, represents religious devotion. Even
apparently neutral elements such as stripes point to the decorative arts, which
maintain a more or less tense relationship with the so-called fine arts. The
absence of narrative, partially offset by the connotations of each motif, creates
a reading filled with ambiguity, blocking facile interpretations and keeping
the eye guessing.
33 Conversation with the author, Rio
de Janeiro, 03/03/2007.
With respect to seriality, when Milhazes divided the canvas into repetitive
squares or rectangles and filled them with repeating motifs, she seemed to
have adopted a procedure similar to Warhol’s, but this lasted only from 1984
to 1989. After that, the closest thing to seriality would be the recurrence of
O Buda | The Buddha, 2000
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
190 x 255 cm
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tações de cada motivo, provoca uma leitura cheia de ambigüidade, que resiste a
interpretações fáceis e mantém o olho em suspensão.
Com respeito à serialidade, quando Milhazes dividia a tela em retângulos ou
quadrados iguais e repetia um motivo de maneiras diferentes, parecia ter adotado um procedimento semelhante ao de Warhol, mas isso durou apenas de
1984 a 1989. Depois disso, o que mais se aproximaria da serialidade seria
a recorrência do mesmo motivo em diferentes quadros, um procedimento
mais característico de Johns. Em todo caso, as motivações por trás da repetição
parecem diversas. Na Pop, a serialidade era uma alusão à produção em massa
e, também, uma maneira de realçar o glamour de uma imagem ao mesmo
tempo em que, paradoxalmente, afirmava sua condição de commodity. Em Milhazes, a recorrência é fundamentalmente um recurso de composição; as flores,
por exemplo, tão emblemáticas do seu trabalho, se repetem porque a “flor
me ajuda na resolução de um problema pictórico − em vez de ser algo da vida
que desejo representar numa pintura”34.
Os motivos de Milhazes, por serem pintados à mão, começam a vida de maneira conservadora, como representações tradicionais, mas só são representações
enquanto secam nas folhas de plástico; no instante em que são transferidos para
a tela, adquirem um novo estatuto, cheio de ambigüidade contemporânea: deixam de ser representações, passando a ser índices35 de representações.
34 “Pensando diferente, Beatriz Mi-
lhazes conversa com Jonathan Watkins”, in Adriano PEDROSA (ed.),
Beatriz Milhazes: mares do sul, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro,
2002, p. 95.
35 Uma distinção teórica importante:
um índice é um rastro, ou pegada,
do real, ao passo que uma representação é sua imitação. A colagem e a
transferência são procedimentos
ditos indiciais; apresentam, mas
não representam.
Os títulos das obras de Milhazes só são dados depois de prontas as obras.
Segundo a artista, os títulos são o “último motivo” que ela lhes acrescenta36.
Milhazes mantém uma lista de nomes de onde escolhe algum que lhe pareça
adequado. Por exemplo, o título da tela O caipira, 2004, deve-se ao fato de Milhazes considerar suas cores estridentes37. A artista lembra que pintores abstratos
costumam não dar títulos, ou apenas numeram seus trabalhos, ao passo que
pintores figurativos tendem a escolher títulos descritivos. Ao dar títulos
descritivos a obras abstratas, Milhazes adiciona uma camada final, paralela e
autônoma, de significado.
36 Conversa com o autor, Rio de
Janeiro, 13/10/07.
CONCLUSÃO
37 É curioso notar que os dois caipiras
famosos de Almeida Jr., O violeiro, 1899,
e o Caipira picando fumo, 1893, vestem-se
de maneira austera, o primeiro de
calça branca e camisa xadrez cinza e
branca, e o segundo de calça de brim
azul-marinho e camisa branca.
Amarelo palha esverdeado com sutis reflexos acobreados. Límpido e brilhante,
com perlage médio para fino. Aroma frutado intenso, com toques de abacaxi e
tostado; fruta vermelha ao fundo. Salada de frutas com guaraná, puxando para
laranja. Tudo muito sutil. Intenso e com qualidade muito boa. Acidez viva.
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the same motif in different works, a procedure more characteristic of Johns. In
any case, the motivations are different. In Pop, seriality was an allusion to mass
production and a way to enhance the glamour of an image at the same time as
it, paradoxically, affirmed its commodity status. In Milhazes, recurrence is fundamentally a compositional device; flowers, for example, recur because “[the]
flower helps me resolve a pictorial problem − instead of being something from
life that I want to represent in a painting”34.
Milhazes’s hand painted motifs begin life as traditional representations, with a
conservative status, but they are only representations while drying on the plastic sheets; the moment they are transferred to canvas, they acquire a new statute, full of contemporary ambiguity: no longer representations, they become
indices35 of representations.
The titles of Milhazes’s works are only given after they are finished. She claims
they are “the last motif”36 that she attaches to them. Milhazes keeps a list from
which she picks one that seems fitting. For example, the title of O caipira [The
country bumpkin], 2004, resulted from the impression that its colors were
strident37. Milhazes notes that abstract painters tend to avoid titles, simply numbering their canvases, while figurative painters tend to pick descriptive names.
By giving a descriptive title to an abstract work, Milhazes is adding a final, parallel but autonomous, layer of meaning.
34 “Pensando diferente, Beatriz Mi-
lhazes conversa com Jonathan Watkins”, in Adriano PEDROSA (ed.),
Beatriz Milhazes: mares do sul, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro,
2002, p. 95.
35 This is an important theoretical
distinction: an index is a trace, or footprint, of the real, whereas a representation
is its imitation. Collage and transference are so-called indexical processes;
they present, but do not represent.
36 Conversation with the author, Rio
de Janeiro, 10/13/2007.
37 Paradoxically, the hillbillies shown
in Almeida Jr.’s best-known paintings
O violeiro [The guitarist], 1899, and
Caipira picando fumo [Hillbilly rolling
tobacco], 1893, are dressed austerely,
the first wearing white pants and
a checkered white and grey shirt,
the second wearing blue jeans and
a white shirt.
CONCLUSION
Pale straw yellow with subtle copper highlights. Clean and sparkling, with
fine to medium perlage. Intense and fruity aroma, with hints of pineapple
and toast, ending in red fruit. Fruit salad with guaraná, laced with a touch of
orange, all very subtle. Excellent quality, intense, vibrant acidity. Citrus and
mold flavors. Medium body, good balance, and excellent consistency. Generally well-balanced. Long finish, ending with lemon peel, yeast and bread.
Discreet final bitterness.
This description, that could, with some poetic license, be an organoleptic reaction to a work by Milhazes, is, in reality, a patchwork of terms used to describe
champagne. There is, indeed, something effervescent about her compositions.
But if her enterprise were an exploration of gaiety, of beauty and ornament,
it would mimic the decorative arts that inspire it. In the same way that a wine
needs to balance sweet and bitter (otherwise it becomes juice or vinegar), the
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Americana | American, 2002
acrílica sobre tela | acrylic on canvas
199 x 160 cm
Sabores cítricos e grãos. Amargor médio, álcool equilibrado, bom corpo. Equilibrado no total. Persistência longa, com nítida casca de limão, terminando em
levedura e pão. Discreto amargor final.
Essa descrição, que poderia, com alguma licença poética, ser uma reação organoléptica a uma tela de Milhazes, é, na realidade, uma colagem de termos
usados para descrever espumantes. De fato, existe algo de efervescente nas composições de Milhazes, mas se sua obra fosse somente uma exploração do belo,
das possibilidades do ornamento, estaria mais próxima das artes decorativas em
que se inspira. Diferentemente, assim como o vinho precisa equilibrar doçura
e acidez (se não vira suco ou vinagre), a riqueza da pintura de Milhazes é parte
de uma equação complexa de pesos e contrapesos. Ao examinar seu processo
de construção, comentamos como essas superfícies precisam ser vistas ao vivo
para se notar sua imperfeição. Elas não escondem, e é fundamental que não escondam, as cicatrizes de uma pesquisa formal cheia de percalços. Quem celebra
essas telas com base apenas nas imagens ignora o lado acre da sua concepção
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richness of Milhazes’s paintings is only a part of a complex equation of weights
and counterweights. When examining the process of constructing these surfaces, we commented on how they needed to be examined in person in order
to understand their imperfection. They do not hide – and it is fundamental that
they not hide – the scars of a formal investigation permeated with obstacles.
Whoever celebrates them solely on the basis of their images ignores the bitter
side, part of their entire conception. I want to stress this counterpoint because
the constant references, in texts about Milhazes, to Carnaval, opera and the
Baroque encourage the impression that her work is, above all, a manifestation
of exuberance and theatricality. Instead, I believe that the most visible qualities
of Milhazes’s paintings and collages – the richness of syntax and the compositional equilibrium – only become complete in counterpoint with the laceration
of their mottled surfaces. Without this tension, they would mirror a world that
does not exist: a carnival without slums, a Baroque without slavery, an opera
without heartbreak.
The omnipresent tension between beauty and asperity in the work of Milhazes
should pacify those who consider ornament synonymous with frivolity, a position that gained currency after the rise of the Bauhaus and the International
Style in architecture, and constructivism and minimalism in the fine arts. Another, more synthetic argument against austerity would be Matisse. In any case,
this anti-decorative position deserves to be reexamined.
According to Arthur Drexler, legendary head of the architecture and design
department at The Museum of Modern Art, Mies van der Rohe supposedly declared: “We will have simplicity, no matter how much it costs”38. In the power
struggle between esthetically austere ideologies and more luxurious movements such as art déco and, later, Postmodernism, ornament was seen by the
former as an index of vulgarity, extravagance, retrogression and anachronism.
Drexler, too, associated ornament with opulence, but put the question in terms
of social class:
38 Arthur DREXLER - “Engineer’s
architecture: truth and its consequences”, in The architecture of the Ecole des Beaux-Arts, The Museum of Modern Art,
New York, 1977, p. 36.
39 Idem, p. 36-7.
By the 1920s and 1930s in the United States, architectural opulence [...] had
become a pleasure available to everyone through the advent of the movie palace.
But opulence as an architectural virtue has made its way since the First World War
steadily downward through the cultural strata of society: today it is the exclusive
province of the uninstructed.39
But, in defense of ornament, Drexler equates the decorating impulse with
Eros, the life instinct, suggesting that austerity is a compulsion of Thanatos, the
death instinct:
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inteira. Quero insistir nesse ponto porque as referências constantes, nos textos
sobre a artista, ao carnaval, ao barroco e à ópera estimulam a impressão de que
essa obra é, sobretudo, uma manifestação de exuberância e teatralidade. No
entanto, creio que as virtudes mais visíveis da obra de Milhazes – a riqueza de
sintaxe e o equilíbrio de composição – só se completam em contraponto com
esse dilaceramento de superfície. Sem essa tensão, essa obra seria espelho de um
mundo que não existe, de um carnaval sem favela, de um barroco sem escravatura, de uma ópera sem coração partido.
Essa tensão constante entre beleza de imagem e aspereza de superfície deveria apaziguar quem considera “ornamentalismo” sinônimo de “frivolidade”,
postura que se difundiu depois da ascensão da bauhaus e do international style, na
arquitetura, e do construtivismo e do minimalismo nas artes plásticas. Outro
argumento, mais sintético, seria Matisse. Em todo caso, essa postura antidecorativa precisa ser reexaminada.
Segundo Arthur Drexler, lendário chefe do departamento de arquitetura e design do Museum of Modern Art de Nova York, Mies van der Rohe teria declarado: “Queremos simplicidade, não importa quanto custe”38. Na luta pelo
poder entre ideologias austeras, como as mencionadas no parágrafo anterior, e
seus opositores, como a art déco e, mais tarde, o chamado pós-modernismo, o
ornamento era visto (pelas primeiras) como índice de vulgaridade, extravagância, retrocesso e anacronismo. Drexler, também, equacionou ornamento com
opulência, e colocou a questão em termos de classe:
Nos Estados Unidos, nas décadas de 1920 e 1930, a opulência arquitetônica [...]
havia se transformado em um prazer acessível para todos graças ao surgimento
do palácio cinematográfico. Mas, desde a Primeira Guerra Mundial, a opulência
enquanto valor arquitetônico tem decaído inexoravelmente dentro das hierarquias
culturais da sociedade: hoje em dia ela é domínio exclusivo dos não-instruídos.39
Mas, em defesa do ornamento, Drexler propôs que o impulso de decorar é uma
pulsão de Eros, o instinto da vida, ao passo que a austeridade é uma pulsão de
Thanatos, o instinto da morte:
38 Arthur DREXLER - “Engineer’s
architecture: truth and its consequences”, in The architecture of the Ecole des Beaux-Arts, The Museum of Modern Art,
New York, 1977, p. 36, tradução nossa.
39 Idem, p. 36-7.
A simplicidade, por exemplo, denota virtude tanto na arquitetura como na vida:
honestidade, previdência, comedimento, humildade. [...] Quando a noção de
simplicidade, aplicada ao design de edifícios e artefatos, adquire a força de uma
imposição moral, essa equação entre simples e bom oculta um vínculo menos
óbvio: o bem resulta de uma restrição; o sumo bem resulta da suma restrição;
o sumo bem leva ao fim da vida. Assim, a comunidade Shaker proibia relações
sexuais entre seus adeptos casados, extinguindo-se em nome da extrema devoção
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Simplicity, for example, connotes virtue in architecture as in life: probity, forethought, restraint, humility. [...] When the idea of simplicity takes the force of
a moral injunction applied to the fashioning of buildings and artifacts, the
avowed equation of simplicity with goodness obscures a less obvious connection:
goodness is constraint, the ultimate good is the ultimate constraint; the ultimate
good brings life to an end. Thus the Shaker community forbade sexual intercourse
between its married adherents, extinguishing itself in consummate piety and
good design. [...] The loss of ornament [...] has impoverished our architecture
beyond any advantage simplicity can return. But its restoration does not depend
on its being made inexpensive, or even on an allocation of funds that would find
the expense justified. It depends on valuing the connection between ornament
and freedom, and providing for it the moral space, so to speak, in which the free
will can play.40
This argument is persuasive, but the life instinct is not always benign: dangerous animals, poisonous plants, bacteria and viruses are also alive. When life
proliferates uncontained in an organism, it becomes malignant. In fact, the audacity of Milhazes’s formal and chromatic exploration derives from her relentless brinkmanship, flirting dangerously with entropy while testing the limits of
ornament. How does one maintain control of a metastasis of signs? Ornament,
in Milhazes, is inseparable from the sores and blisters of its investigation, constantly betraying the unrealistic Eden promised by its images.
As I have attempted to suggest, a palette that reflects its place of origin, and
a style of abstraction without foreign affiliation, are both signs of maturity
in a country that only recently acquired a middle class capable of sustaining
contemporary production. The paintings and collages of Beatriz Milhazes,
seducing us with their attractive iconography and distributive good taste,
and then betraying us with a pockmarked and coarse topography, wear the
contradictions of a society in which the joyousness of Samba and Carnaval
emerges from the poverty of the slums. Here, the perfection of a Bridget Riley
would never do. The tension in Milhazes’s work mirrors our everyday predicament, rife with contradictions. After all, when one discovers that a beautiful flower is carnivorous, it does not become less beautiful; it only acquires a
terrible beauty.
40 Idem, p. 51.
I am grateful to the artist, a friend since 1984, for access to primary sources; to Ivo Mesquita and Marcelo Araujo for the invitation to add my point of view to the many already on record; to Glauce and
José Luiz Milhazes for the revealing conversations about their daughter’s childhood; to Tadeu Chiarelli
and Rodrigo Naves who, because they are cited, read preliminary drafts and offered detailed and useful
suggestions; and to Thais Rivitti for her valuable input and editorial skills.
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e do bom design. [...] A perda do ornamento [...] empobreceu nossa arquitetura
muito além de qualquer vantagem que a simplicidade possa trazer. Mas sua volta
não depende de torná-lo mais barato, ou mesmo de uma distribuição de recursos
que justifique a despesa. Ela depende de valorizarmos a correspondência entre
ornamento e liberdade e de fornecermos o espaço moral, por assim dizer, dentro
do qual o livre-arbítrio possa se manifestar ludicamente.40
Do transcrito acima sobressai um substrato persuasivo em defesa do ornamento, podendo-se situar sua presença na obra de Milhazes como índice do instinto da vida. Mas esse instinto nem sempre é benigno: afinal, os animais peçonhentos, as plantas venenosas, as bactérias e os vírus também são vivos. Quando
a pulsão da vida prolifera incontida num organismo, torna-se maligna. Parte
da ousadia da pesquisa formal e cromática de Milhazes decorre do constante flerte com esse desgoverno. Como manter controle de uma metástase
de signos que beira perigosamente a entropia? O ornamento, em Milhazes,
é indissociável das feridas e chagas da manufatura, traições do Éden prometido pelas imagens.
Como venho insistindo, a adoção de uma paleta que reflete seu local de origem
e o desenvolvimento de um estilo de abstração sem filiação estrangeira são sinais
de maioridade em um país que adquiriu relativamente tarde uma classe média
que pudesse sustentar uma produção realmente contemporânea. As pinturas
e colagens de Beatriz Milhazes, ora atraindo com sua iconografia amistosa
e bom gosto distributivo, ora traindo essa harmonia com a rudeza sofrida de
suas superfícies, incorporam as contradições da sociedade em que nasceram,
onde a alegria do samba e do carnaval brota da miséria das favelas. Jamais caberia aqui a perfeição de uma Bridget Riley. A tensão entre iconografia e manufatura na obra de Milhazes encerra, por mimese, boa parte da nossa problemática,
com toda a sua contradição. Afinal, quando se descobre que uma flor bonita
é carnívora, ela não fica menos bonita, apenas adquire uma beleza terrível.
40 Idem, p. 51.
Agradeço à artista, de quem sou amigo desde 1984, pela disponibilidade e o acesso a fontes primárias;
a Ivo Mesquita e Marcelo Araujo pelo convite para somar meu ponto de vista aos tantos já registrados;
a Glauce e José Luiz Milhazes pelos depoimentos esclarecedores sobre o ambiente em que cresceu a
artista; a Tadeu Chiarelli e Rodrigo Naves que, por serem citados na seção Contexto Histórico, leram
versões preliminares e ofereceram sugestões detalhadas e úteis; e a Thais Rivitti, pela leitura afinada
e valiosa contribuição editorial.
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