Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Estado de São Paulo
NOTAS SOBRE AS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL1
Sergio Gardenghi Suiama2
Ministério Público Federal do Brasil
I. Breve histórico da desigualdade racial brasileira.
O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Isso
aconteceu em 1888. Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 3,6 milhões de
negros africanos foram traficados para o Brasil, para servir de mão-de-obra à
exploração dos produtos primários produzidos pela antiga colônia de
Portugal, bem como para atividades domésticas braçais de todo o tipo. A
escravidão no Brasil foi tão extensa que, em meados do XIX, o Rio de
Janeiro possuía a maior concentração urbana de escravos do mundo
ocidental desde o fim do Império Romano: 110 mil, de um total de 226 mil
habitantes. Em 1890, ano seguinte à proclamação da República, a população
negra no Brasil superava a formada por brancos (respectivamente 56% e
44%).
1
Documento apresentado no seminário “Advancing Equity: Economic Inclusion & Building
Opportunities for the Majority”, promovido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento,
realizado no dia 06 de dezembro de 2006, em Washington D.C. Agradeço o valioso diálogo
com os colegas Ela Wiecko V. de Castilho, Daniel Sarmento, Luiz Fernando Martins da Silva,
Emília Botelho e Jorge Bruno Souza, na construção desse texto.
2
Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo (State of São Paulo Federal
Prosecutor for Human Rights). E-mail: [email protected]. Webpage:
www.prsp.mpf.gov.br/prdc.
Os efeitos persistentes (lingering effects) da escravidão3 são
sentidos até hoje. Um grande abolicionista brasileiro, Joaquim Nabuco, dizia
em 1881: “Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao
poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será
ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta
estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo,
superstição e ignorância.”4 A advertência de Nabuco, porém, não foi ouvida,
e nos anos que se seguiram à abolição o governo brasileiro adotou políticas
agressivas
de
“branqueamento”
de
sua
população,
estimulando
a
substituição da mão-de-obra negra pela européia. Com tais medidas, os
negros recém-libertos foram marginalizados e excluídos do mercado de
trabalho formal, sendo-lhes reservados os piores postos.
As tabelas e gráficos abaixo reproduzidos comprovam que as
desigualdades raciais se estendem para quase todos os indicadores das
condições de vida da população brasileira.
3
Há extensa historiografia a respeito da escravidão no Brasil e seus efeitos. A bibliografia
básica compreende, dentre outros, os seguintes autores e obras: Joaquim Nabuco, O
Abolicionismo (São Paulo, Publifolha, 2000); Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala (São
Paulo, Global, 2005); Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (São Paulo, Companhia
das Letras, 1995); Florestan Fernandes, A Integração do Negro na Sociedade de Classes
(São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1965); Emília Viotti da Costa, Da Senzala à
Colônia (São Paulo, UNESP, 1998); Lilia Moritz Schwarcz, O Espetáculo das Raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930 (São Paulo, Companhia das
Letras, 1993); Luis Felipe Alencastro, História da Vida Privada no Brasil, v. 2 (São Paulo,
Companhia das Letras, 1998); e Roberto DaMatta, Carnavais, Malandros e Heróis: para uma
sociologia do dilema brasileiro (Rio de Janeiro, Rocco, 1997). Uma boa introdução ao
assunto é dada por Lilia Moritz Schwarcz, em Racismo no Brasil, São Paulo, Publifolha,
2001. A escravidão brasileira – diz Schwarcz – “legitimou com sua vigência a hierarquia
social, naturalizou o arbítrio e inibiu toda discussão sobre cidadania. Além disso, o trabalho
manual acabou ficando limitado exclusivamente aos escravos, e a violência se disseminou
nessa sociedade de desigualdades, onde se acreditava, como dizia o provérbio colonial, ‘que
os escravos eram os pés e as mãos do Brasil’” (Racismo no Brasil, op. cit., p. 39).
4
Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, op. cit., cap. I.
2
3
4
Os dois últimos gráficos mostram claramente os limites de
políticas públicas de cunho universalista na promoção da igualdade material
entre brancos e negros. Daí a necessidade de se combinar ações de caráter
universalista (color blind) com medidas concretas capazes de assegurar o
desenvolvimento e a proteção de grupos raciais (race-conscious measures),
a fim de propiciar a seus integrantes o pleno e igualitário exercício dos
direitos fundamentais (como preconiza o art. 2º, § 2º, da Convenção da ONU
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial).
O desenvolvimento de ações afirmativas no Brasil não pode,
porém, reproduzir automaticamente as experiências bem sucedidas dos
EUA, uma vez que somos um país de mestiços (42,1% dos brasileiros se
declaram “pardos”; 51,4%, “brancos”, e 5,9% “pretos”) e, portanto, a oposição
entre brancos e negros não é tão nítida como na sociedade americana. As
relações sociais no Brasil são organizadas a partir do cruzamento dinâmico
de princípios diferenciadores múltiplos. Como observa o antropólogo Roberto
DaMatta, “num sistema com esse tipo de dinamismo, não há dúvida de que
existem obstáculos muito grandes na individualização das classes sociais,
entrecortadas pelas suas possibilidades de múltipla interação e classificação
5
social em eixos variados, já que ninguém se fecha em torno de uma só
dimensão classificatória”.5 Em outras palavras, a ambigüidade estrutural das
identidades coletivas e individuais dos brasileiros impede a reprodução
automática dos modelos americanos de ações afirmativas, fundados em
padrões identitários mais homogêneos.
II. Políticas de ações afirmativas em curso.
A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR) – órgão vinculado diretamente ao Gabinete da Presidência
da República – foi criada pela Lei 10.678, de 2003. O artigo 2º da Lei de
criação, atribui à SEPPIR a função de assessorar o Presidente da República
na formulação, coordenação, articulação, promoção, acompanhamento e
avaliação de todas as políticas de igualdade racial desenvolvidas pelo
governo federal. Todavia, transcorridos pouco mais de três anos de sua
criação, é preciso dizer que a SEPPIR ainda não assumiu, de forma plena,
as competências que lhe foram outorgadas pela lei. Indagados pelo
Ministério Público Federal, os gestores do órgão não souberam nem mesmo
informar a totalidade dos programas de ações afirmativas desenvolvidos pelo
governo federal.
É evidente que, para que programas desenvolvidos por 21 órgãos
superiores da Administração Federal tenham real eficácia e sejam
harmônicos entre si, é necessário que a SEPPIR assuma verdadeiramente
as funções de formulação, coordenação, articulação, acompanhamento e
avaliação das políticas de ação afirmativa, o que ainda não está ocorrendo.
5
Roberto DaMatta, Carnavais, Malandros e Heróis, op. cit., p. 194. Ou, como diz Lilia Moritz
Schwarcz, a propósito do Brasil: “Neste país miscigenado, onde o modelo de branco
escapava ao alentado perfil anglo-saxônico, as cores tenderam a variar de forma
comparativa. Quanto mais branco, melhor; quanto mais claro, superior. Aí está uma máxima
difundida que vê no branco não só uma cor, mas também uma qualidade social. Conforme o
conflito passa para o terreno do subentendido, fica cada vez mais complicado desvendar o
problema. Ao contrária, ele se esconde nas brechas do cotidiano, cuja decodificação é, no
mínimo, passível de dúvidas” (Racismo no Brasil, op. cit., p. 49).
6
De modo geral, o governo federal vem desde 2003 aumentando o
volume de recursos gastos com ações afirmativas, como mostra o gráfico
abaixo6:
Governo federal: evolução das despesas executadas para a promoção da igualdade
racial (em R$)
67.954.388
24.597.446
7.184.613
2003
2004
2005
Fonte: SEPPIR.
As políticas de ações afirmativas em curso no Brasil carecem de
base legislativa mais robusta, uma vez que ainda não houve a aprovação do
Estatuto da Igualdade Racial (projeto de lei n.º 3.198/00). O projeto já foi
aprovado no Senado Federal, mas ainda depende de análise pela Câmara
dos Deputados. Também na Câmara está o projeto de lei n.º 73/99, que
institui o sistema de reserva de vagas para negros e indígenas no ensino
superior público federal.
Malgrado as lacunas legislativas, houve significativos avanços em
alguns setores. Um programa federal de concessão de bolsas de estudo em
instituições particulares – o ProUni – foi responsável pela inclusão de 38.413
estudantes negros no ensino superior. Nas universidades públicas, há
experiências de programas de ações afirmativas com adoção de quotas em
23 estabelecimentos, beneficiando cerca de 11 mil negros e indígenas em
todo o país7.
6
Os resultados finais de 2006 ainda não estavam disponíveis no momento de conclusão
deste artigo.
7
Por outro lado, pouco se avançou na formulação de programas
efetivos de combate à discriminação nas relações de emprego. O destaque
positivo é a atuação do Ministério Público do Trabalho, através da
Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e
Eliminação da Discriminação no Trabalho8. A Coordenadoria faz o
mapeamento do mercado e, constatando a ocorrência de discriminação,
ainda que não-intencional9, notifica as empresas do setor, buscando a
celebração de “termos de ajustamento de conduta” com metas para a
admissão e ascensão funcional do grupo discriminado, a fim de reverter a
situação de desigualdade existente. Caso o acordo não seja possível, o
Ministério Público do Trabalho ajuíza ações coletivas (class actions),
requerendo em juízo uma medida injuntiva (injunctive relief) apta a
proporcionar a igualdade concreta no acesso, remuneração e ascensão
profissional dos trabalhadores discriminados.
Ainda haveria muito a se dizer; a restrição de espaço, porém, me
obriga a apresentar, desde logo, recomendações concretas dirigidas aos
organismos de financiamento, com o objetivo de criar maiores oportunidades
econômicas para afrodescendentes em nível nacional, regional e local.
7
Fonte: SEPPIR, Relatório de Atividades 2005, Presidência da República, Brasília, 2005, pp.
38-39.
8
<www.pgt.mpt.gov.br/pgtgc>.
9
Utiliza-se aqui o argumento formulado pela Suprema Corte dos EUA, no célebre caso
Griggs v. Duke Power Co. (401 U.S. 424-1971), segundo o qual “practices, procedures, or
tests neutral on their face, and even neutral in terms of intent, cannot be maintained if they
operate to 'freeze' the status quo of prior discriminatory employment practices”. Isto porque
não apenas a discriminação aberta está proibida, mas também “practices that are fair in
form, but discriminatory in operation”. Neste julgado, a Suprema Corte americana decidiu
que cabe ao Autor da ação tão somente provar a materialidade dos fatos que, no seu
entender, acarretam o desfavorecimento ou a discriminação do grupo, incumbindo ao Réu o
ônus de provar que as exigências impostas são absolutamente indispensáveis ao bom
desempenho do cargo pleiteado. Para uma ampla análise das ações afirmativas no direito
americano, cf. Joaquim B. Barbosa Gomes, Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da
Igualdade, Rio de Janeiro/São Paulo, Renovar, 2001. Cf. tb. Daniel Sarmento, “Direito
Constitucional e Igualdade Étnico-Racial” in Flávia Piovesan e Douglas de Souza (coord.),
Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial, Brasília, SEPPIR, 2006, pp. 59-108.
8
III. Recomendações.
1) De âmbito geral:
(a) priorizar investimentos em ações afirmativas nas áreas de
educação, emprego
e
violência
policial, enfrentando,
especialmente, a discriminação por impacto desproporcional
(disparate impact) praticada contra a população negra;
(b) fortalecer a atuação institucional da Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR – de
modo a assegurar a persistência das estratégias e políticas
de promoção da igualdade racial desenvolvidas no âmbito
do
Estado
brasileiro.
O
fortalecimento
deve
vir
acompanhado de mecanismos que possibilitem a efetiva
participação das organizações sociais na tomada de
decisões
e
no
orçamentária10,
acompanhamento
bem
como
da
da
maior
execução
presença
de
afrodescendentes nas equipes executivas e consultoras dos
programas e projetos sociais financiados pelo Banco. Seria
de todo relevante atribuir ao Conselho Nacional de
Promoção da Igualdade Racial – CNPIR (ou a outro órgão
colegiado
semelhantes
com
às
participação
outorgadas
social)
à
Equal
competências
Employment
Opportunity Comission – EEOC americana, no que se refere
à identificação e solução de situações concretas de
discriminação no serviço público e nas relações privadas;
10
A recomendação está em plena consonância com as proposições contidas no documento
“Retos institucionales para la sostenibilidad y la equidad de la política social en América
Latina y el Caribe”, produzido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, para o 6º
Fórum de Equidade Social, realizado em setembro de 2004. Disponível em:
<http://www.iadb.org/sds/doc/sexto_fes.pdf> (acesso em 02.12.06).
9
(c) apoiar a aprovação dos projetos de lei 3.198/00 (Estatuto da
Igualdade Racial)11 e 73/99 (sistema de reserva de vagas
para negros e indígenas no ensino superior).
2) De caráter específico:
(a) nas operações de financiamento a instituições públicas ou
privadas brasileiras, condicionar a concessão do crédito à
adoção de programas internos de ações afirmativas, que
assegurem a igualdade concreta no acesso, remuneração e
ascensão profissional de afrodescendentes e mulheres. Tais
programas poderão contar com o acompanhamento do
Ministério Público Federal e do Ministério Público do
Trabalho;
(b) estimular a universalização dos programas de ação
afirmativa
intermédio
no
da
ensino
adoção
superior
de
público,
quotas
inclusive
proporcionais
por
à
participação dos grupos étnicos vulneráveis na população
local. Tais programas deverão contemplar, inclusive, a
previsão de fontes permanentes de receita para custear a
permanência dos alunos carentes nas instituições de
ensino;
(c) apoiar programas que envolvam a mudança dos padrões
simbólicos de representação do negro na sociedade
brasileira e que busquem combater o racismo institucional12,
especialmente nas organizações policiais.
11
A redação atual do projeto apresenta falhas graves de técnica legislativa e também
algumas inconstitucionalidades. Certamente precisa ser revisto antes de sua aprovação final
pelo Congresso brasileiro.
12
Isto é, aqueles “comportamentos violadores do princípio jurídico da igualdade [que] tendem
a se dissimular em práticas jurídicas, sociais, empresariais e culturais de caráter muitas
vezes anódino na aparência, mas dotados de formidável força de exclusão” (Joaquim B.
Barbosa Gomes, Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade, op. cit., p. 197).
10
São essas as propostas que entendo mais relevantes no cenário
político atual. Gostaria de concluir dizendo que o Ministério Público brasileiro
pode ser um bom interlocutor das agências financiadoras internacionais no
acompanhamento das políticas de ações afirmativas. Afinal, é nosso dever
constitucional zelar para que os recursos públicos sejam corretamente
aplicados.
11
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Notas sobre as politicas de acoes afirmativas no Brasil