AO CONSELHO SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE
SÃO PAULO
Processo CSDP nº 351/2013
Cotas étnicos-raciais na Defensoria Pública de São Paulo
“[...] a história da civilização é a história da superação dos preconceitos e a
cada momento histórico as pessoas têm de escolher de que lado vão ficar na
História: se vão avançar o processo social e vão incluir a todos ou se vão parar
o processo social e cultivar o preconceito. De modo que é possível decidir essa
questão olhando para trás, onde se avistam milhões de judeus que foram
massacrados em campos de concentração, milhões de negros que foram
transportados à força em navios negreiros, mulheres que atravessaram os
séculos oprimidas moral e fisicamente pelas sociedades patriarcais, deficientes
que foram sacrificados, índios que foram dizimados. Em cada fase da vida,
em cada fase da História existe sempre uma racionalização para justificar o
preconceito”1.
CONECTAS DIREITOS HUMANOS, ARTICULAÇÃO JUSTIÇA E
DIREITOS HUMANOS – JUSDH2 e CENTRO DE ESTUDO DAS RELAÇÕES
DE TRABALHO E DESIGUALDADE – CEERT vêm a presença de V. Sas.
apresentar manifestação no Processo CSDP nº 351/2013 que discute a implementação de
Luís Roberto Barroso. Sustentação oral na ADPF 132.
A Articulação Justiça e Direitos Humanos – JUSDH é composta por movimentos sociais e organizações de
direitos humanos (Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, Ação Educativa – Assessoria,
Pesquisa e Informação, Geledés Instituto da Mulher Negra, AATR – Associação de Advogados de
Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, SDDH – Sociedade
Paraense de Defesa dos Direitos Humanos e Dignitatis – Assessoria Técnica Popular) que atuam com
litigância nos diferentes temas de direitos humanos e vêm trabalhando com uma agenda de democratização
da justiça por meio do monitoramento e incidência política junto aos órgãos do Sistema de Justiça, Poder
Executivo e Legislativo. Mais informações em: http://www.jusdh.org.br/.
1
2
1
políticas de ações afirmativas para ingresso na carreira da Defensoria Pública de São Paulo,
nos termos que seguem.
1.
Retratos de uma Desigualdade Racial Brasileira
O Brasil ainda enfrenta uma realidade de profunda desigualdade entre grupos
étnico-raciais, na qual negros estão excluídos de todas as esferas de poder, tanto social
quanto econômico. Dados demonstram que, a despeito dos avanços democráticos vividos
pelo país, a desigualdade que desfavorece certos grupos vulneráveis ainda persiste.
De acordo com o último relatório censitário do IBGE, a população brasileira é
composta em sua maioria, 50,7%, por pretos e pardos. Além de ser de maioria negra, a
população brasileira também é formada em sua maioria por mulheres – são quase 4
milhões a mais de mulheres do que homens no Brasil.
Essa população distribui-se em uma pirâmide social e racial em que a
população branca está no topo da concentração de renda, ao passo que a população negra
está na base da pobreza e, portanto, da exclusão social. Os dados mostram que os negros
são mais de 82% entre os mais pobres e somente 16% entre os mais ricos3.
Em se tratando de oportunidades de educação, os negros são a grande maioria
dos brasileiros apenas com ensino fundamental e com ensino médio. De acordo com o
Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, dos brasileiros com ensino superior quase 65%
brancos e 35% são negros4.
Mesmo ainda sendo desigual, essa porcentagem mostra avanço na redução da
discriminação e desigualdade. A realidade atual é explicitamente diferente do Brasil de
2002, anterior a inserção de políticas educacionais afirmativas, onde os negros
correspondiam à apenas 7,6% dos universitários5.
Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012.
Ibidem.
5 Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2002.
3
4
2
2.
Ausência de Representatividade Plurirracial nos Espaços de Poder
Em nossa sociedade, o acesso ao ensino superior é uma forma importante de
ascensão social. Há dez anos o país adota políticas de ações afirmativas para o ingresso em
universidades com fins de reparar desigualdades históricas e reduzir a marginalização social.
Ainda que o processo tenha se iniciado de forma tímida, hoje presenciamos mais
diversidade e pluralidade nas instituições de ensino brasileiras, no entanto essas mudanças
ainda não alcançaram as carreiras socialmente representativas.
Em país de maioria negra, o que causa perplexidade é não haver estranhamento
na ausência de representação da diversidade brasileira nos espaços de poder. O Relatório de
Desenvolvimento da ONU aponta que no Brasil “quanto mais se avança rumo ao topo das
hierarquias de poder, mais a sociedade brasileira se torna branca”6.
Há estudos que mostram que os negros estão sobrerrepresentados nos nichos
profissionais menos valorizados (construção civil, comércio ambulante e setor de serviços),
ao passo que estão sub-representados em ocupações mais valorizadas pela sociedade
(comércio não-ambulante, profissões liberais, ramo de serviços auxiliares de atividades
econômicas).
Essa desigualdade tem também uma dimensão política e está presente nos
espaços de poder onde são tomadas decisões sobre os bens coletivos. No Congresso
Nacional, por exemplo, em 2006, os negros eram 8,9% do total de deputados federais, e
nenhum deputado foi identificado como indígena. Em 2007, 6,2% dos senadores eram
negros e não havia a senadora negra7.
Hoje, 2014, a eleição para composição do Congresso Nacional elegeu uma
formação da Câmara dos Deputados ainda mais branca.
Com efeito, entre os 513
Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005. Racismo, pobreza e violência. Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, p. 52.
7 Relatório Anual das Desigualdades Raciais 2007-2008. Org: Marcelo Paixão e Luiz M. Carvano. Rio de
Janeiro: Garamond, 2008, p.148.
6
3
deputados recém eleitos, 410 deles (79,9%) se declararam brancos, outros 81 deputados
(15,8%) se disseram pardos e somente 22 (4,2%), pretos.
Os candidatos que se declararam pretos e pardos também tiveram mais
dificuldades de serem eleitos que os brancos: a cada dez brancos foram eleitos, enquanto,
no caso de pretos e pardos, somente um a cada 30 conseguiu uma vaga8.
Essa nefasta sub-representação também é presente nas instituições essenciais
para o sistema de justiça, já que “todos os dados utilizados [...] para traçar um perfil das profissões
jurídicas no Brasil indicam que, em termos de cor da pele, os juristas compõem uma parcela da população
“desconcertantemente branca”9.
Pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e
Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), do Instituto de Economia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostra que os pardos e pretos correspondem a apenas
22,7% dos juristas e advogados do funcionalismo público10.
Isso acontece, em grande parte, por conta do modelo de processo seletivo
dessas carreiras. Ainda que feito de uma maneira a evitar privilégios e escolhas pessoais, a
forma como hoje se realiza o processo de ingresso nas carreiras para as instituições do
sistema de justiça tem produzido o resultado perverso de favorecer um mesmo perfil de
candidatos que, em geral, são aqueles que não pertencem e nunca pertenceram aos grupos
sociais excluídos e marginalizados por sua desigualdade social e/ou econômica.
A dedicação necessária para aprovação nesses concursos exige um tempo do
qual as pessoas que precisam garantir sua renda, muitas vezes, não dispõem. Além disso, o
estudo depende quase sempre do acompanhamento de um curso preparatório, o qual
Revista Carta Capital. “Brancos serão quase 80% da Câmara dos Deputados”. Disponível em:
http://www.cartacapital.com.br/politica/brancos-serao-quase-80-da-camara-dos-deputados-3603.html
9 Frederico Normanha Ribeiro de Almeida. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política de justiça no
Brasil. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 211.
10 Disponível em: http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/mercado-de-trabalho/24483-negros-sao30-do-funcionalismo-diz-pesquisa
8
4
notoriamente de tem um alto custo financeiro.
Deste modo, acaba medindo mais
investimento financeiro do que acúmulo de conhecimento.
3.
Ações Afirmativas como Forma de Democratização do Sistema de Justiça
A realização das ações afirmativas almeja o reconhecimento da existência de
injustiças e desigualdades históricas, implementando condicionantes que possam
garantir um acesso igualitário, democrático e plural às oportunidades de acesso para uma
das carreiras mais socialmente prestigiadas.
A existência de uma política de ação afirmativa decorre da necessidade de
reparação e da implementação de uma adequada aplicação da justiça redistributiva. As
políticas de ações afirmativas no contexto étnico-racial têm sido interpretadas como
medidas que visam reverter a discriminação histórica sofrida por negros, assim, a utilização
de tais políticas positivas de discriminação serve para “remedia[r] as desvantagens infligidas às
minorias pelo preconceito racial do passado”11, herança que permanece surtindo efeitos na
sociedade contemporânea:
“[...] o reduzido número de negros e pardos que exercem cargos ou
funções de relevo em nossa sociedade, seja na esfera pública, seja na
esfera privada, resulta da discriminação histórica que as sucessivas
gerações pertencentes a esses grupos têm sofrido, ainda que na maior
parte das vezes de forma camuflada ou implícita”12.
No mais, as ações afirmativas também se justificam pelo argumento da
diversidade.
Partindo do pressuposto que todas as etnias, raças, culturas e formas de vida
possuem um caráter valorativo equivalente, a criação de políticas pelas instituições do
Poder Público que visem a integração da diversidade existente na sociedade, além de trazer
Brennan, Thomas E. Ministro da Suprema Corte Estadunidense. Voto no caso Regents of the University of
California vs. Blake.
12 Ministro Ricardo Lewandowski, voto do julgamento da ADPF nº 186. STF
11
5
benefícios sociais básicos como um maior entendimento intercultural e inter-racial e a
destituição de preconceitos e estereótipos, possibilitará ao Estado atingir o princípio
fundamental do pluralismo.
Tais fatores, portanto, corroboram para a implementação de uma diversidade
intelectual que possa modificar, a longo prazo, as formas negativas de concepções sociais e
culturais da sociedade:
“[...] a diversidade racial exercerá um papel para estímulo da inteligência
prática. E exercerá esse papel na medida em que facilitar a aproximação
de pessoas que foram inseridas em posições diversas dessas hierarquias
convencionais e que podem explicitar um ponto de vista diversificado e
provocador de críticas para a construção de novas hierarquias
convencionais e que podem explicitar um ponto de vista diversificado e
provocador de críticas para a construção de novas hierarquias morais
intersubjetivamente. Nessa linha, a aproximação de experiências diversas
frente à discriminação, no caso frente à discriminação racial, pode
estimular aquela inteligência prática”13.
Esses pressupostos já foram utilizados e aplicados para a concretização de
políticas afirmativas nas universidades, mas a mesma lógica pode ser estendida às carreiras
públicas, em especial as carreiras jurídicas.
Inegável que as instituições essenciais para a Justiça se constituem em espaço
ainda muito homogêneo e as ações afirmativas são medidas necessárias para pluralizá-las.
A introdução de ações afirmativas para ingresso na carreira da Defensoria
Pública almeja duas propostas de democratização do sistema de justiça. Além de tornar o
próprio processo seletivo para a carreira mais democrático, a adoção de tais medidas
possibilita um recrutamento plural de profissionais detentores de experiências
diversificadas, o que se apresenta como solução para diversificar a carreira e com isso
IKAWA, Daniela. Direito às Ações Afirmativas em Universidades Brasileiras. In. Igualdade, Diferença e
Direitos Humanos. Coordenadores: SARMENTO, Daniel. PIOVESAN, Flavia. IKAWA, Daniela. Lumen
Juris Editora. 2010. Pg. 282
13
6
ampliar o horizonte interpretativo social daqueles que tem como missão a defesa de uma
população marginalizada socioeconomicamente.
A Defensoria Pública é entidade do sistema de justiça que tem por essência a
defesa dos excluídos, a luta diária da instituição é almejar decisões e interpretações judiciais
mais favoráveis aos direitos dos mais vulneráveis.
Por combater de forma massiva e sistemática inúmeras injustiças sociais, é
justamente da Defensoria que se espera uma postura mais ativa e efetiva na transformação
social dentre todas as instituições de justiça.
Diante de tal conjectura, considerando o papel externo realizado pela
instituição, entende-se que a Defensoria também deveria estar na vanguarda de
modificações das condições estruturais de sua própria composição. Para tanto é essencial
que a Defensoria realize uma autocrítica do perfil que hoje adentra os quadros de
defensores públicos da instituição, adotando uma postura de também contemplar os que
não foram socialmente privilegiados, tendo sempre como norte a redução de desigualdades
sociais.
Assim como outras instituições essenciais para o funcionamento da justiça, a
composição atual da Defensoria Pública não reflete em termos de raça o que a sociedade
brasileira representa.
A compreensão e atendimento adequado das necessidades de uma sociedade
tão diversa e heterogênea como a nossa, exige do Judiciário, Ministério Público e
Defensoria Pública uma composição equivalente.
4.
Constitucionalidade, Obrigatoriedade e Inexigibilidade do Princípio da
Reserva de Lei para a Implementação de Políticas de Ação Afirmativa
A Constituição Federal de 1988 ampara uma discriminação positiva com base
no princípio da igualdade.
7
É possível extrair essa possibilidade do dever incumbido ao Estado pela
Constituição de abolir a marginalização e as desigualdades, conforme previstos nos art. 3º,
III, art. 23, x e art. 170, VIII, bem como das regras que expressamente obrigam o Poder
Público a estabelecer políticas positivas visando à promoção e integração de segmentos
desfavorecidos, como elencado nas disposições do art. 3º, IV, art. 23, X e art. 227, II:
Art. 3º, III – erradicar a (....) marginalização e reduzir as desigualdades
sociais...”; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
Art. 23, X – combater (...) os fatores de marginalização [...] as causas da
pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social
dos setores desfavorecidos;”
Art. 170, VII – redução das desigualdades (...) sociais;
Art. 227, II - criação de programas (...) de integração social dos
adolescentes portadores de deficiência;”
O supracitado art. 3º, situado no rol dos Objetivos Fundamentais da
República, consiste, por si só, em princípio que implica uma prestação positiva por parte do
Estado. Esses novos elementos constitucionais estabelecem novos parâmetros acerca da
interpretação do que se entende por igualdade:
“[...] Pode-se dizer, sem receio de equivoco, que se passou de uma
igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a
discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos
“construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança de
óptica, ao denotar “ação” [...]”14.
No mais, existem normas constitucionais que já dispõem acerca de políticas
específicas que objetivam a compensação e redução das desigualdades de oportunidades.
São as disposições constitucionais de discriminação positiva:
14
Ministro Marco Aurélio. Voto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº186.
8
Art. 7o, XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos, nos termos da lei”;
Art. 37, VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos
para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua
admissão;”
Art. 145, § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e
serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte...;”
Art. 170, IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração
no País;”
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim
definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las
pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias,
previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por
meio de lei”.
Assim, a Carta Magna vigente traz em seu corpo a modalidade da
discriminação justa, o que resulta em um alargamento substantivo do conteúdo semântico
do princípio da igualdade, bem como a ampliação objetiva das obrigações estatais em face
do tema. Nesse sentido, versa o Ex-Ministro Ayres Britto:
“[...] nunca é demasiado lembrar que o preâmbulo da Constituição de
1988 exige a igualdade e a justiça, entre outros, ‘como valores supremos
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos’, sendo certo
que reparar os compensar os fatores de desigualdade factual com
medidas de superioridade jurídica é política de ação afirmativa que se
inscreve, justamente, nos quadros da sociedade fraterna que a nossa
Carta Republicana idealiza a partir de suas disposições preambulares”15.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, pacificou
15
Ministro Ayres Britto. Voto do RMS 26.071. STF.
9
entendimento acerca da constitucionalidade de políticas de ações afirmativas,
ainda que tenham sido criadas através de deliberação administrativa.
Referida ADPF, como se sabe, foi submetida pelo partido Democratas para
apreciação da Suprema Corte pleiteava a declaração de inconstitucionalidade das cotas
raciais para ingresso na Universidade de Brasília – UNB, medida de ação afirmativa
estabelecida por meio de ato administrativo do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão
da
Universidade de Brasília (CEPE/UNB).
A UNB se valeu da prerrogativa de autonomia universitária para a criação da
medida que reserva 20% de suas vagas para negros e indígenas. Na ocasião do julgamento,
a Suprema Corte, por unanimidade, declarou a constitucionalidade das políticas de ações
afirmativas, por considerar que as cotas:
(i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e
diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas,
(ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos
meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem
a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos
eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana16.
De acordo com o Ministro Marco Aurélio, “as normas proibitivas não são suficientes
para afastar do cenário a discriminação”17. Ao julgar a ADPF 186, o Supremo Tribunal Federal
consolidou um posicionamento de igualdade plena, e não a igualdade meramente formal
estabelecida em lei:
A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação
do problema do não cidadão, daquele que não participa política e
democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado,
porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os
demais. Cidadania não combina com desigualdade. República não
16
17
Dispositivo do voto do Ministro Ricardo Lewandwski na ADPF 186.
Ministro Marco Aurélio. Voto na ADPF 186.
10
combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação.
E, no entanto, no Brasil que se diz querer republicano e democrático, o
cidadão ainda é uma elite, pela multiplicidade de preconceitos que
subsistem, mesmo sob o manto fácil do silêncio branco com os negros,
da palavra gentil com as mulheres, da esmola superior com os pobres, da
frase lida para os analfabetos... Nesse cenário sócio-político e
econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e
preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o
leitor que não lhe rebuscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos
igualados superiormente em nossa história feita pelas mãos calejadas dos
discriminados18.
Por poderem ser extraídas dos princípios e disposições constitucionais, a
criação de políticas de ação afirmativa já é dotada de força normativa, não sendo necessário
lei para que tais políticas sejam instituídas. A própria Constituição Federal faz imperativo a
implementação de tais medidas. Esse foi o entendimento adotado pela Suprema Corte no
julgamento da ADPF 186:
“Revela-se, então, que a prática de ações afirmativas pelas universidades
públicas brasileiras é uma possibilidade latente nos princípios e regras
constitucionais aplicáveis a matéria. A implementação por deliberação
administrativa decorre, portanto, do princípio da Carta Federal e também
da previsão, presente no art. 207, cabeça dela constante, da autonomia
universitária. Cabe lembrar que o Supremo, em visão evolutiva, já
reconheceu a possibilidade de incidência direta do Diploma Maior nas
relações calcadas pelo direito administrativo”19.
Assim como as universidades, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004,
Defensoria Pública possui autonomia funcional e administrativa. Ora, se a própria
Constituição diz claramente que as Defensorias Públicas devem ser autônomas funcional e
administrativamente, não há como não incumbir à esta instituição a mesma possibilidade de
pluralizar os seus quadros que foi conferida às universidades públicas.
18
19
Ministra Carmem Lucia. Citada em voto do Ministro Marco Aurélio na ADPF 186.
Ibidem.
11
Ainda no âmbito das normas constitucionais, convém relembrar o dispositivo dos
parágrafos segundo e terceiro do art. 5o, os quais asseguraram proteção constitucional aos
direitos emanados dos tratados internacionais
e a Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – promulgada pelo Brasil há
décadas –, estabelece que os Estados tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social,
econômico, cultural e outros, as medidas especiais e concretos para assegurar como convier o desenvolvimento
ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantirlhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.
Cumpre ressaltar que esses tratados não são o “teto máximo” de proteção, mas o
“piso mínimo” para garantir a dignidade humana, constituindo o “mínimo ético irredutível”20. Em
outras palavras, os Estados podem e devem ir além, jamais aquém destes parâmetros.
5.
Conclusão
Ilustres Conselheiros e Conselheiras. Ainda que não adote oficialmente política
de segregação racial, percebe-se que o Brasil ainda mantém índices alarmantes de
desigualdade étnica-racial.
Verdade que muito foi avançado e conquistado na implementação de políticas
educacionais de ações afirmativas, com dez anos de medidas inclusivas perfis sociais e
étnico-raciais diversos de universitários estão concluindo o ensino superior e saindo para o
mercado de trabalho.
Tais mudanças, todavia, ainda não alcançaram as carreiras mais socialmente
representativas da sociedade, em especial naquelas inerentes às instituições do sistema de
justiça. Portanto, é necessário a adoção de medidas que visem reverter o perfil padrão
vigente, pondo fim “a reprodução e perpetuação de uma mesma elite dirigente”21, medidas que
PIOVESAN, Flavia. Implementação das obrigações, standards e parâmetros internacionais de direitos
humanos
no
âmbito
intra-governamental
e
federativo.
Disponível
em
http://www.internationaljusticeproject.org/pdfs/piovesan-speech.pdf
21
Ministro Ricardo Lewandowski. Voto na ADPF 186.
20
12
possibilitem “a construção de um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social, um espaço
que contemple a alteridade”22.
Propõe-se aqui a consolidação de uma Defensoria Pública mais plural e
democrática. Uma defensoria que possibilite repensar e reinventar a representação social
nas instituições do sistema de justiça, para deixarem de ser espaços essencialmente
brancos/masculinos.
A exemplo de outras Defensorias Públicas pelo Brasil que já implementaram
essas medidas – como as do Rio de Janeiro e Mato Grosso – faz-se fundamental, portanto,
à Defensoria Pública de São Paulo implementar tal política pública imediatamente, como
uma forma de garantir a pluralidade e representatividade da instituição, garantindo o
compromisso com a efetivação dos Direitos Humanos e a efetivação dos objetivos
fundamentais da República trazidos pela Constituição Federal.
São Paulo, 17 de outubro de 2014.
CONECTAS DIREITOS HUMANOS
ARTICULAÇÃO JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS – JUSDH
CENTRO DE ESTUDO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E
DESIGUALDADE – CEERT
22
Ibidem.
13
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