JORGE DA S I LVA * POPULAÇÃO NEGRA E AÇÃO AFIRMATIVA A muitos brasileiros soa como um despropósito falar em discriminação racial no Brasil. Para eles, estes seriam problemas de outros países. O nosso seria, no máximo, a discriminação “social”, a afetar os pobres por serem pobres, e não por serem negros1 , ou estrangeiros, ou mulheres, ou indígenas, apresentando-se como evidência deste fato o grande número de brancos e brancas pobres. Para os que pensam assim, a solução para a desigualdade estaria na adoção de medidas igualitárias universalistas, principalmente por meio de políticas distributivas e da melhoria da educação do povo em geral. A muitos homens negros soa como um despropósito falar em discriminação contra as mulheres, muitas das quais, por sua vez, também afirmam ser um despropósito falar 34 D I R E I TO S H U M A N O S : A T UA L I Z A Ç Ã O DO D E B AT E em políticas especiais para promover a igualdade de negros; e assim por diante, cada grupo imaginando-se o único verdadeiramente discriminado, ou o mais discriminado. Curiosamente, parece que a afirmação mítica de que vivemos num país sem discriminações só não se aplica ao grupo do qual fazemos parte. Constata-se, portanto, que, entre os que acham ser um despropósito falar em discriminação, apenas homens brancos, ou melhor, homens identificados com a raça branca, mantêm-se coerentes na defesa do mito. Tendo em vista os aspectos polêmicos da questão, é preciso que nos façamos duas perguntas cruciais: (a) temos ou não uma questão racial não resolvida no Brasil?; e (b) em caso afirmativo, por que preferimos fingir que ela não existe? Respondo que sim, e que costumamos fingir que ela não existe para não afetar a crença de que vivemos num país sem discriminações, crença esta que está na raiz da narrativa de nossa identidade como Nação. Advirta-se, no entanto, que não estamos falando de preconceito (questão de foro íntimo), nem da discriminação individual, e sim da discriminação institucional, a que afeta os grupos discriminados no seu conjunto, excluindo-os da participação no poder e da riqueza nacional. Como se sabe, a discriminação só existe porque há os que ganham e os que perdem com ela, sendo compreensível a divergência de pontos de vista entre uns e outros. Não seria diferente no Brasil. POR UMA IDENTIDADE NACIONAL GENUÍNA Os navegadores portugueses encontraram, abaixo da linha do Equador, uma terra com um extenso litoral de praias e enseadas paradisíacas. Uma terra habitada por gentes pardas e saudáveis, contadas aos milhões, reunidas em famílias, tribos e “nações”: Tupi-guarani, Tapuia, Tupinambá, Tamoio, Tupiniquim, Xavante, Charrua. Eram povos de línguas ágrafas, não se conhecendo ao certo de que paragens teriam vindo, e há quanto tempo estavam ali, conluiados com a exuberante natureza. Mas ali estavam eles, com seus costumes, adaptados às condições materiais do ambiente; com seu modo de viver e de conceber o mundo. Pelo calendário cristão, há quinhentos anos esse lugar entrou na história de um outro lugar, continuando, no entanto, sem uma história própria, em que os antigos habitantes, os autóctones, participassem da narrativa na condição de sujeitos. Depois, aos milhões, entram em cena gentes da cor do ébano, igualmente instadas à amnésia delas próprias. Alguns séculos mais tarde, as elites desse lugar resolvem contar a história da nova Nação, que passa a ser narrada como tendo um povo único, uma única religião, uma única língua e um único modo de ser. O tempo começa a correr no dia 22 de abril de 1500, data da carta de Pero Vaz Caminha. Dali em diante, não seria difícil “imaginar” e reconstituir, da frente para trás, a história da Nação. A uniformidade da narrativa não haveria de ser atrapalhada por aqueles “homens pardos, todos nus”, como os viu Caminha, nem pelos da cor do ébano. Enfim, uma Nação sem conflitos, una, sem preconceitos, com presente e futuro, mas sem passado. Nos relatos, a bondade do senhor e patriarca, e o recato de mulheres obedientes. O tempo passa, e o paradigma social da “casa-grande” abastada, esbanjando felicidade e poder, e da “senzala” infecta, esbanjando sofrimento e ignorância, vai desafiar os tempos republicanos e impor a dualidade social sob novos rótulos: mansão e barraco, condomínio e “conjunto”, colina e morro, “asfalto” e favela, campina e alagado, cidadão e “suspeito”. É evidente que a representação cordial que temos de nós mesmos tem seus aspectos positivos. Mas insistir em tomar a representação como se fosse a realidade em si mesma é investir na intolerância. Não é possível construir uma ordem social igualitária na presunção de que não há conflitos de interesses, exigindo que grupos imensos de cidadãos continuem a pa- POPULAÇÃO NEGRA gar a conta de uma ilusória harmonia, sofrendo resignados a discriminação, fingindo não entender que isto acontece. Ademais, cumpre assinalar que, em qualquer lugar, a luta contra a discriminação sempre encontrou nas representações construídas pelo dominador um de seus principais obstáculos. Ainda sofremos os efeitos do imperialismo colonial europeu, que se estendeu pelo mundo acreditando-se portador da missão “divina” de levar a civilização aos “primitivos”, com visão essencializada dos grupos humanos. Ora, é da essência dos pássaros voar e do escorpião aferroar, mas não é da sua essência falar, rir, pensar. Para o expansionismo europeu, entretanto, basear-se apenas nas essências humanas não atendia aos seus propósitos. Era preciso inventar novas “essências” e atribuí-las a estes e aqueles grupos, de modo a hierarquizá-los como se fosse algo natural. Alguns signos se prestariam a isso com perfeição, notadamente os de “raça” e de “gênero”. A raça serviria para diferenciar os humanos segundo uma hierarquia cromática, situando-se as qualidades tidas por positivas nos mais claros, e as tidas por negativas nos mais escuros. O gênero diferenciá-los-ia segundo uma hierarquia referida à força, atribuindo-se ao “mais forte” (o homem) as qualidades da razão, do empreendimento e do destemor, e ao “mais fraco” (a mulher) as qualidades da emoção, da intuição e da resignação. Entre nós, a dificuldade de dar coerência a essas invenções pode explicar a extrema ambigüidade dos discursos narrativos da nacionalidade, em que convivem harmoniosamente exercícios de “mímica” dos valores europeus E A Ç Ã O A F I R M AT I VA com a exaltação dos valores da “raça brasileira” – produto final de uma espécie de fusão em que teriam desaparecido as “essências” do branco, do negro e do indígena – e surgido um novo tipo, muito melhor, o “brasileiro”, com características não menos ambíguas. Em princípio ele será desracializado e incolor, mas poderá ser mestiço, ao mesmo tempo em que poderá ser ou branco, ou negro, ou indígena. Assim, não sendo uma coisa nem outra, poderá ser todas elas. Estranhamente, contudo, depois dessa “fusão” e do ufanismo em torno da miscigenação, 53,8% dos brasileiros continuam a se apresentar ao IBGE como brancos. E o próprio IBGE mostra onde estão e o que fazem brancos, pretos, pardos e índios no Brasil. Ainda assim, insiste-se com os negros em que eles devam apresentar-se simplesmente como “brasileiros”, e que sejam mais patriotas, para o que bastará que cultuem os símbolos da Pátria e ufanem-se do tamanho e das belezas do Brasil. As crianças brasileiras continuam a aprender que o Brasil é o maior em tudo: o maior território, o maior rio, o maior estádio, a maior ponte, o maior futebol, a maior democracia racial, para depois, já na adolescência, frustrarem-se com a realidade de um Brasil que lhes foi escondido. Ora, que orgulho pode ter de seu País um jovem discriminado em razão da cor de sua pele, de sua origem ou condição social? Que patriotismo se pode esperar de populações perseguidas pela polícia em seus guetos miseráveis? Ou amontoadas pelos corredores de hospitais infectos? Que patriotismo se pode esperar dos povos descendentes daqueles milhões de saudáveis “homens pardos, todos nus”, se os seus ancestrais foram física e culturalmente massacrados, e hoje, nesta vastidão que é o Brasil, A INDA SOFREMOS OS EFEITOS DO IMPERIALISMO ainda têm que lutar, e morrer, COLONIAL EUROPEU, QUE SE ESTENDEU PELO MUNDO por um pedaço de terra? O Brasil apresenta taxas ACREDITANDO-SE PORTADOR DA MISSÃO “DIVINA” DE de violência incomparavelLEVAR A CIVILIZAÇÃO AOS “PRIMITIVOS”, COM VISÃO mente mais elevadas do que a quase totalidade dos países ESSENCIALIZADA DOS GRUPOS HUMANOS. 35 36 D I R E I TO S H U M A N O S : A T UA L I Z A Ç Ã O DO D E B AT E do mundo. Talvez devêssemos nos perguntar se o tipo de violência (e não necessariamente a violência em si) vivida em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, não é em parte uma manifestação de sentimentos de frustração e ódio provocados por esse estado de coisas. Afinal de contas, de que realmente temos tanto medo?... DISCRIMINAÇÃO NATURALIZADA Impõe-se demonstrar que a discriminação racial no Brasil ficou “naturalizada”, e que este fato tem explicação. Na verdade, grande parte da teorização dos estudiosos brasileiros da segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século XX foi influenciada pelos determinismos então em voga na Europa, notadamente o racial e o climático. Aceitando o determinismo racial acriticamente, esses estudiosos meteram-se num beco sem saída. Por um lado, aceitar a teoria da superioridade racial branca era algo que só poderia trazer orgulho aos que se consideravam representantes brasileiros daquela raça. Por outro lado, eles não podiam aceitar a idéia de viver num país onde só poderiam vicejar a morbidez e o atraso, como conseqüência da grande população negra, da mistura de raças e do clima tropical. Mas havia salvação: a imigração européia. Em dado momento, a partir principalmente de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, os discursos do poder passaram a utilizar o signo da raça como um valor da nacionalidade, e não um desvalor, como até então. A aceitação no Brasil, ainda que tardia, de que não havia diferenças mentais entre os grupos humanos, contudo, não haveria de estender-se à igualdade social. A alegoria da democracia racial viria a cair como uma luva, e então, durante décadas, as elites brasileiras investiram na exaltação da mesma. Qualquer opinião divergente era considerada falta de patriotismo, tentativa de subversão etc., razão pela qual de mito o assunto virou tabu. Daí, acreditando piamente no mito, a maioria aca- bou por “naturalizar” a discriminação, achando normal a posição de inferioridade social da população negra. No Brasil, considera-se natural que, num governo que propala estar adotando políticas de ação afirmativa, não se veja um rosto preto, pardo ou de mulher entre os ministros da República. Ora, afirmativo corresponde a uma atitude deliberada, não valendo a desculpa da coincidência ou do acaso. A não ser que o governo conclua que não há negros ou mulheres aptos a ocupar tão alta posição. Considera-se “natural” a rarefação de comissárias e comissários de bordo negros nos aviões nacionais (sem falar como passageiros), em comparação, por exemplo, com as tripulações dos aviões norte-americanos. Quem quiser conferir, é só comparecer ao aeroporto e prestar atenção na chegada dos vôos internacionais de companhias aéreas brasileiras e norteamericanas, sobretudo se considerarmos que os negros do Brasil (pretos e pardos) somam 45,3% e os negros norte-americanos (todos os não-brancos de ascendência africana) não passam de 12%. É temerário que a legislação, os governantes e os tribunais silenciem quanto à possibilidade concreta de, na terra da “democracia racial”, uma empresa operar exclusivamente com funcionários brancos, até mesmo em Salvador, onde a população economicamente ativa de pretos e pardos é de 81,4%, segundo o Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho, do DIEESE. Considera-se igualmente “natural”, e não ridículo, que o Brasil seja apresentado no exterior como uma democracia racial apenas por representantes diplomáticos brancos (até na África negra!), atribuindo-se a ausência de negros, quando o fato é questionado, ao concurso público. Ou seja, um instrumento aparentemente neutro é utilizado para garantir a exclusão daqueles a quem se nega educação de qualidade na escola pública. É a isto que na doutrina jurídica norte-americana se chamou de POPULAÇÃO NEGRA “impacto desproporcional”. Provisões aparentemente neutras, mas que tenham como resultado o desvirtuamento dos fins igualitários da Nação, podem ser consideradas inconstitucionais. Esta é uma das razões de a Suprema Corte daquele país ter declarado constitucional a política de ação afirmativa. Considera-se “natural” a rarefação de negros e negras na universidade, nos tribunais superiores (como juízes e juízas), no generalato das Forças Armadas, no clero, na mídia, no empresariado, e até em modestas posições, como caixas de bancos, garçons de bons restaurantes ou vendedoras(es) de shoppings. E finalmente considera-se “natural” que, em cidades com expressiva população afrodescendente, os negros e negras sejam predominantes nas favelas e periferia, nas cadeias, na faxina, na estiva, nas ruas como pivetes, e nas páginas policiais dos jornais como vítimas ou autores de chacinas. O que mais pode explicar a indiferença com tudo isto, se não for o acharmos a posição de exclusão dos negros como algo “natural”, ou culpa deles próprios? Se concordarmos que, de fato, a discriminação ficou naturalizada entre nós, e se entendermos que este é um dos principais obstáculos na luta contra a mesma, o primeiro passo será desnaturalizá-la, o que não será possível sem aceitar que este estado de coisas não é fruto do acaso. POR POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA Chega a ser preocupante a irritação de certas pessoas simplesmente ao ouvirem falar de ação afirmativa e cotas; ao saberem que o Governo Federal; alguns estados, como Estado do Rio de Janeiro; a Universidade Estadual da Bahia; o Itamarati; o Supremo Tribunal Federal e tantos outros setores se engajam em desenvolver programas de discriminação positiva a favor de negros e minorias. Ora, está demonstrado, à exaustão, que a situação de desigualdade dos negros não é “natural”; que é fruto, sim, da discriminação passada, mas, so- E A Ç Ã O A F I R M AT I VA bretudo, da discriminação presente. Não bastam as políticas gerais, se não forem adotadas, paralelamente, medidas pontuais para diminuir o fosso social que separa negros e brancos no Brasil. Muitos bradam: “A saída é a educação!”. Esquecem-se de que, no Brasil, a estrutura educacional tem matriz excludente e de que, ao longo do tempo, o sistema de ensino vem desempenhando com eficiência o papel de repassador de preconceitos e de intolerância com os diferentes. A saída é, sim, a educação, mas com o questionamento do papel do sistema de ensino. Isto posto, “desnaturalizada” a discriminação, não há como deixar de reconhecer igualmente a importância da ação afirmativa para a promoção social das populações negras, devendo-se advertir que ação afirmativa não é sinônimo de cotas numéricas, como muitos pensam. Ação afirmativa compreende, por exemplo: programas contra a chamada discriminação “não intencional” no emprego, praticada por empresas contratantes com o governo, prevendo-se sanções, como proibição de licitar, multas etc., para as recalcitrantes; criação de linhas de crédito especiais para financiar empresas de negros, mulheres e minorias; proibição da adoção de requisitos e testes para contratação que, aparentemente neutros, não sejam necessários à execução das tarefas para as quais os candidatos se habilitam; programas de apoio a empresas e instituições privadas de ensino, com linhas de crédito especiais e outros incentivos, a fim de que desenvolvam ações para que seus quadros de trabalhadores, docentes e discentes reflitam a diversidade social brasileira; incentivo à destinação de vagas das universidades públicas (federais, estaduais e municipais) para alunos negros oriundos da escola pública, a fim de que, minimamente que seja, o seu quadro de discentes seja representativo dessa diversidade. Há que reconhecer, todavia, que tudo isso será pouco se não avançarmos como Nação. 37 38 D I R E I TO S H U M A N O S : A T UA L I Z A Ç Ã O DO D E B AT E Nesse sentido, não é possível continuarmos nos enganando. Como insistir em falar que somos um país pacífico ostentando o título de campeão da violência? Definitivamente, o Brasil não é um país igualitário, e muito menos uma democracia racial. Premente é a necessidade de refletir sobre as conseqüências de o sistema de ensino vir repassando acriticamente concepções fantasiosas, como a “fábula das três raças”, no dizer de Roberto da Matta, sobre a formação da sociedade brasileira, em que, explícita ou implicitamente, o branco é apresentado como inteligente e empreendedor, o negro como forte e alegre, e o indígena como ingênuo e dependente. Faz sentido que os senhores recorressem a tudo para manter os escravos na ignorância e para anular qualquer manifestação de identidade particular, e que a intolerância com as suas crenças permanecesse no início da República. Mas não se compreende a intolerância hoje. Ora, onde foram os escravos buscar semelhanças entre Olorum e o Deus Criador do catolicismo; entre Ogum e São Jorge? De onde os brancos tiraram elementos para comparar Exu a Satanás? E Jesus Cristo, era mesmo louro e de olhos azuis? Não há como progredirmos como Nação só com fantasias. E com intolerância com os diferentes. Independentemente das ações afirmativas, se quisermos realmente construir uma identidade genuinamente brasileira, o primeiro passo será rever o papel do sistema de ensino na imposição de uma visão fixa, única, e no repasse de preconceitos. Por exemplo, indagando dos professores de História se continuam a contar para seus alunos a “fábula das três raças”. 1 pardos da classificação do IBGE, ou seja, 45,3% da população brasileira. A palavra negro é usada como sinônimo de afrodescendente, e não como categoria de cor, correspondendo ao somatório de pretos e *JORGE DA SILVA Membro do Conselho Nacional de Combate à discriminação.