Ação Afirmativa: matrizes teóricas e normativas, implementação norte-americana e debate acadêmico brasileiro AFFIRMATIVE ACTION: THEORETICAL AND NORMATIVE SOURCES, NORTH AMERICAN IMPLEMENTATION AND BRAZILIAN ACADEMIC DEBATE* Resumo O presente artigo visa a apresentar algumas fontes filosóficas, políticas e morais que têm sido utilizadas para embasar a discussão sobre o multiculturalismo, indispensável à problematização do tema ação afirmativa. Dessa maneira, realizaremos um breve histórico dessas políticas, examinando a origem de tal instituto nos Estados Unidos e a recepção ou desenvolvimento de teorias racialistas em território brasileiro. Palavras-chave POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA – RELAÇÕES RACIAIS – TEORIA DO RECONHECIMENTO – MULTICULTURALISMO – TEORIA SOCIAL – PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL. DANIELA BASTOS BOGÉA CÂMARA Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) [email protected] Abstract This article aims to introduce some philosophical, political and moral sources that have been used to base the discussion about multiculturalism, essential to the problematization of the subject of Affirmative Action. Thus, we will present a brief history of these policies, examining the their origin in The United States and the reception or development of race theories in Brazilian territory. Keywords AFFIRMATIVE ACTION POLICIES – RACIAL RELATIONSHIPS – THEORY OF RECOGNITION – MULTICULTURALISM – SOCIAL THEORY – SOCIAL THOUGHT IN BRAZIL. * Este trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os temas foram propostos originariamente na disciplina “Teoria política, direito e políticas públicas: a ação afirmativa em perspectiva comparada”, ministrada no Iuperj/UCAM, durante o primeiro semestre de 2004. Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 73 Black 73 7/22/2006 6:26:55 PM São quatro crioulos inteligentes / Rapazes muito decentes / Fazendo inveja a muita gente / Muito bem empregados / Numa secretaria / Educados e diplomados em Filosofia / E quando chega fevereiro / Ver os crioulos no terreiro / É sensacional No dia de carnaval / São figuras de destaque / No desfile principal / Mas no dia de carnaval / No dia de carnaval / São figuras de destaque / No desfile principal Esses quatro crioulos / São o orgulho da gente de cor / Só quem os conhece / Poderá dar o justo valor / Trabalham, estudam, / Têm o samba por divertimento / Para eles a moral é o maior documento São quatro crioulos inteligentes... No dia de carnaval... MEDEIROS, E. E & SANTANA, J. Quatro Crioulos, 1971 INTRODUÇÃO sse antigo samba de Elton Medeiros, para além de remeter a um dos principais debates – as desigualdades sociorraciais entre brancos e negros1 – no interior daquilo que se convencionou chamar de pensamento social brasileiro, contém uma metáfora: o mito da democracia racial e a crença no ideal de branqueamento ainda persistem e, apesar dos atuais esforços, estamos longe de concretizar a pretensão de igualdade de oportunidades para todos.2 No âmbito dessa perspectiva de concretização da igualdade, a adoção e a avaliação do sistema de cotas para afrodescendentes em concursos públicos e exames vestibulares3 no Brasil é um tema que vem sendo tratado de modo consistente, não apenas na área do direito, como também em outros campos do conhecimento. Particularmente, as abordagens oriundas dos campos da filosofia e da política, aliadas às análises jurídicas, têm contribuído para fortalecer a idéia de que os estudos interdisciplinares são mais ricos e cada vez mais indispensáveis à compreensão da dinâmica das práticas sociais, por exemplo, o acesso aos postos de trabalho, 1 Desde já, passaremos a considerar, na categoria negros, tanto os pretos quanto os pardos ou os mestiços. Nesse ponto, acompanhamos o entendimento do brasilianista SKIDMORE, 1992, e de HASENBALG, 1996. 3 Como exemplo, podemos citar interessante tese de doutoramento defendida no Museu Nacional/ UFRJ, em 1998, por TEIXEIRA, M.de P. Negros na Universidade: identidade e trajetória de ascensão social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2003. 2 74 Imp43_miolo_k.pdf 74 Black Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:56 PM cuja exigência é o nível superior, à parcela da população tradicionalmente marginalizada. Graças a esse método, se apreendem, no seu conjunto, as facetas mais importantes da situação-problema relativa à reserva parcial de vagas para alunos oriundos de escolas públicas, negros e pardos, portadores de deficiência física e integrantes de minorias étnicas em algumas universidades estaduais e federais brasileiras. Algumas vezes, entretanto, o direito e outras ciências sociais esquecem a complexidade da sociedade e da cultura brasileira,4 tentando fechar os olhos para o candente problema: como contemplar a questão do acesso dos negros às universidades brasileiras? De que forma tal questão deve ser encarada (e aqui várias justificativas se entrelaçam): como justiça social e/ou eqüidade distributiva?, solução de um débito histórico?, reconhecimento de nossa diversidade cultural?, ou, hipótese por muitos aventada, de maneira cética? Assim, delimitaremos, a seguir, os caminhos por meio dos quais abordaremos as principais correntes que têm voz nessa arena de debates e opiniões. O presente ensaio divide-se em duas seções. A primeira visará a apresentar algumas fontes filosóficas, políticas e morais utilizadas para embasar a discussão sobre o multiculturalismo, indispensável à contextualização do tema na cena brasileira. A segunda seção tratará de realizar um breve histórico referente à ação afirmativa (AA), examinando sua origem nos Estados Unidos, bem como possíveis correspondências em estudos que procuram interpretar e construir uma identidade para o Brasil. Nesse sentido, a AA será aqui cotejada tanto por suas bases ético-político-filosóficas – em que a polêmica sobre a teoria do reconhecimento5 e aquela travada entre a oposição liberalismo versus comunitarismo6 comparecem – quanto por seus contributos de ordem sociocultural, como as dis4 Para uma análise da complexidade da sociedade brasileira contemporânea, cf. SOARES, L.E. “A duplicidade da cultura brasileira”. In: SOUZA, J. (org.). O Malandro e o Protestante. A Tese Weberiana da Singularidade Cultural Brasileira. Brasília: Ed. UnB, 1999. 5 Cf. HONNETH, 1992. 6 Uma “resenha” abrangente das interpretações liberais e comunitaristas desenvolvidas no Brasil sobre as relações raciais pode ser encontrada em COSTA & WERLE, 2000. cussões sobre o padrão brasileiro de relações raciais7 ou ainda, se quisermos, sobre a singularidade (ou ambivalência) cultural8 que aqui pervade o imaginário das instituições e das pessoas. Obviamente, não pretendemos esgotar tão amplo assunto, atualmente matéria de tantas divergências teóricas; apresentaremos tão somente os mais importantes elementos que compõem, digamos, a pauta do dia sobre a AA, assim como os seus possíveis desdobramentos para o caso brasileiro. QUESTÕES POLÍTICO-FILOSÓFICAS: A TEORIA DO RECONHECIMENTO E O “PARADIGMA” MULTICULTURALISTA Uma das principais noções que tem inspirado os cultores da AA em todo o mundo é a denominada teoria do reconhecimento. O termo reconhecimento9 advém da fenomenologia da consciência, de Hegel,10 que, na famosa passagem sobre a relação entre senhor e escravo, lança as bases para Fraser e Honneth, muito tempo depois, reassumirem os significados moral e cognitivo dos vocábulos recognição ou reconhecimento (Erkennen/Anerkennung e Anerkennen) como os fundamentos de uma nova teoria social. Nas palavras dos autores, Recognition has become a keyword of our time. A venerable category of Hegelian philosophy, recently resuscitated by political theorists, this notion is proving central to efforts to conceptualize today’s struggles over identity and difference. Wheter the issue is indigenous 7 A crítica à centralidade da categoria raça, nos estudos das desigualdades raciais no Brasil, foi feita por COSTA, 2002. 8 Essa é a visão sustentada por SOUZA, 2000. 9 Segundo Hegel, os significados de recognição, reconhecer e reconhecimento sobrepõem-se em Anerkennung e Anerkennen, embora nem sempre coincidam. Anerkennen é uma formação do século XVI que tomou por modelo o latim agnoscere (apurar, reconhecer, admitir) e se apoiou no sentido jurídico (do século XIII) de Erkennen (“julgar, sentenciar, por exemplo, uma pessoa culpada,”), não na acepção mais antiga de conhecer, ter consciência de. Portanto, sugere mais um reconhecimento aberto e prático do que meramente intelectual (apud INWOOD, 1997). 10 Para tanto, Hegel fez a distinção entre ética e moral. O conjunto de obrigações éticas fundadas na política e na comunidade que promovemos e sustentamos é o que Hegel chama de Sittlichkeit (eticidade). Essa palavra é o termo alemão para ética e com o mesmo tipo de origem etimológica que Sitten, o qual pode ser traduzido como costumes, que, por sua vez, encontra a sua origem etimológica paralela no termo latino mores, do qual também deriva a palavra moral. No entanto, Hegel emprega Sittlichkeit em contraste com Moralität (moralidade), ou seja, a eticidade em oposição à moralidade (HEGEL, G.W.F. Philosophy of Right, p. 104-164, s/d apud FARIAS, 2004). 75 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 75 Black 7/22/2006 6:26:56 PM on” implies the Hegelian thesis, often deemed at odds with liberal individualism, that social relations are prior to individuals and intersubjectivity is prior to subjectivity. Unlike redistribution, moreover, recognition is usually seen as belonging to “ethics” as opposed to “morality”, that is, as promoting substantive ends of self-realization and the good life, as opposed to the “rightness” of procedural justice.12 land claims or women’s carework, homosexual marriage or Muslim headscarves, moral philosophers increasingly use the term “recognition” to unpack the normative bases of political claims.11 Como vemos, o enunciado, prenhe de significações, contém o conceito filosófico de identidade atinente aos aspectos ético-morais de justiça social em tempos de capitalismo tardio. As disputas políticas pelo reconhecimento de diferenças culturais e pela redistribuição socioeconômica, plenas de indagações que alguns creditam à modernidade tardia ocidental, podem ser encontradas na discussão entre liberais (neokantianos) e comunitaristas (neohegelianos). Tal polêmica teve início na teoria social, entre os anos 1970 e 1980, quando da publicação, pelos teóricos liberais, dos livros A Theory of Justice; What is Equality? e Commodities and Capabilities. Fraser chega mesmo a afirmar que ela teria substituído a grande controvérsia da década anterior, especialmente aquela envolvendo marxismo(s) e pós-estruturalismo(s). Mesmo reconhecendo as restrições implicadas pelos marcos cronológicos, a verdade é que a década de 1980 pode ser considerada um limiar muito importante na definição das crises e mutações do mundo contemporâneo. Um dos pares conceituais mais relevantes, e ao mesmo tempo mais complexos, para entender os dilemas da justiça social na era pós-socialista, em Nancy Fraser e Axel Honneth, diz respeito ao duplo redistribuição/reconhecimento. Como atesta a introdução do livro Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange, publicado pelos autores, em 2003, Redistribution comes from the liberal tradition, especially its late-twentieth-century Anglo-American branch. In the 1970s and 80s this tradition was richly extended as “analytic” philosophers such as John Rawls and Ronald Dworkin developed sophisticated theories of distributive justice. Seeking to synthesize the traditional liberal emphasis on individual liberty with the egalitarism of social democracy, they propounded new conceptions of justice that coud justify socio-economics redistribution. [...] Thus, “recogniti11 FRASER & HONNETH, 2003, p. 1. 76 Imp43_miolo_k.pdf 76 Black Recognition, termo em inglês oposto a redistribution, também ganha, em diversos autores (Charles Taylor e Axel Honneth, por exemplo), múltiplos significados, freqüentemente postos em divergência. Não obstante a polissemia encerrada por tais expressões, o diagnóstico acerca da problemática entre essas duas formas de reivindicações – uma de natureza político-econômica (redistribuição) e outra, simbólico-cultural (reconhecimento) –, levado a termo por Fraser e Honneth, aposta na afirmativa inicial de que o âmbito da economia compreenderia uma injustiça socioeconômica, enraizada na estrutura político-econômica da sociedade, cujos exemplos incluem exploração, marginalização econômica e privação. Em contrapartida, na esfera da cultura, a injustiça cultural estaria arraigada a padrões sociais de representação, interpretação13 e comunicação, por meio de dominação cultural, não-reconhecimento ou, o que é a mesma coisa, desrespeito. No entanto, para entender o alcance dos conceitos de redistribuição e reconhecimento, é mister a compreensão prévia da delicada relação entre essas esferas, cuja separação os autores – em atenção ao que podemos chamar de uma teoria crítica do reconhecimento, capaz de alavancar reformas de cunho político, mas, ao mesmo tempo, revolucionária – não ignoram por completo, tampouco aceitando sem reservas as diferenças entre ambas noções. Já em 1997, Nancy Fraser redigira o famoso artigo “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”, em que buscara elucidar o que havia batizado de dilema 12 Ibid., p. 10. Roberto MOTTA (2000) reconhece pelo menos três principais paradigmas no estudo das relações raciais, no Brasil, durante o século XX, relacionados, respectivamente, aos trabalhos dos teóricos Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e Carlos Hasenbalg. 13 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:56 PM redistribuição-reconhecimento, com base no exame de três modos típico-ideais de coletividade social, tendo em vista: 1. identificar aqueles mais vulneráveis ao referido dilema; 2. diferenciar remédios afirmativos e transformativos para a injustiça; e 3. examinar suas respectivas lógicas de coletividade.14 Ainda segundo essa autora, tais distinções são problematizadas “a fim de propor uma estratégia política para integrar demandas por reconhecimento com reivindicações por redistribuição com um mínimo de interferência mútua”.15 A proposta de Axel Honneth, inspirada em reflexão anterior de Nancy Fraser, tem a percorrer o caminho construído pelo jovem Hegel, em que as bases para o entendimento do reconhecimento como a categoria central da política moderna pressupõem a compreensão de duas vertentes da concepção teórico-metodológica hegeliana. Como deslinda Jessé Souza, Honneth pretende, de um lado, apreender “um registro não metafísico e aberto à investigação empírica”16 e, de outro, ressaltar “sua intuição original da necessidade de supor-se um contexto normativo pré-existente como dado primário e original para a prática social e política e, portanto, de uma concepção dialógica da formação da identidade social e cultural”.17 Ao salientar a natureza relacional do problema do reconhecimento presente no dualismo entre expectativas e formas institucionalizadas de reconhecimento, cristalizadas em valores, normas, leis etc., o autor põe em evidência a noção de conflito, que resulta do confronto entre esses dois aspectos. Outra questão assinalada por Honneth é o caráter pragmatista da psicologia social de Georg H. Mead, ainda que se trate de um pragmatismo formal, ou seja, que requeira apenas a universalidade das estruturas de desenvolvimento, em detrimento da generalização de conteúdos, que em Mead podem ser particulares. Honneth pretende se fixar nos aspectos cognitivo e moral desse pragmatismo, sendo que os sentidos da interação social e da experiência em Mead são a chave inicial para 14 15 16 17 FRASER, 2001a, p. 248. Ibid., p. 248. SOUZA, 2000, p. 162. Ibid., p. 162. entender como se deu o desenvolvimento da razão e da moral peculiares ao surgimento da sociedade moderna. Importante notar que a racionalização interna à esfera política pode ser percebida como uma maneira de resolver o dilema da interação do homem com o ambiente familiar e natural, em outras palavras, as relações sociais e a identidade dos grupos. A saída praxiológica será conciliar ambas as tendências, ou seja, tomar como objeto não apenas o sistema de relações sociais objetivas, mas, sobretudo, de caráter intersubjetivo. Honneth aprende com a corrente marxista, na figura de um de seus representantes, Ernst Bloch, que a teodicéia do sofrimento, em substituição à da felicidade, açambarca a proposta de felicidade futura para aqueles que aceitam seus desígnios. Essa construção mitológica do sofrimento continuado admite uma metafísica racional própria, que, segundo esse autor, inaugura a moral como tal e abre espaço para a enunciação da seguinte constatação: o que faz as pessoas se moverem é esse sentimento de indignidade, de ultraje e de humilhação no plano da luta política. De acordo com Honneth, a identificação de si mesmo passa pelo outro. Assim, surge aqui o interesse do autor em examinar os princípios de uma concepção de moralidade sustentada na teoria do reconhecimento. Nesse sentido, ele sustenta que “a reprodução da vida social é governada de modo imperativo pelo mútuo reconhecimento, porque o desenvolvimento único de uma perspectiva normativa de vida social tem como enfoque a interação social”.18 Em sentido diverso, Fraser pretende fundar uma nova epistemologia,19 propondo que o tema do reconhecimento deva ser estudado não da perspectiva da fenomenologia (do ponto de vista do paradigma indivíduo-cêntrico), mas como um conceito fundado num sistema de valores com base numa ontologia das relações sociais (da ótica do paradigma sociocêntrico), retirando-o do campo da ética hegeliana comunitarista e particularista para colocá-lo no da justiça ou da morali18 19 GUIMARÃES, 2001, p. 25. FRASER & HONNETH, 2003. 77 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 77 Black 7/22/2006 6:26:57 PM dade kantiana liberal e universalista. Não obstante o reconhecimento estar na ordem do dia, devese trazer de volta a questão da redistribuição. Re melius perpensa, será por um certo tipo de “procedimentalismo” que Fraser irá defender o que chama de dualismo perspectivo, o qual, configurando um recurso heurístico, consistirá numa abordagem avançada aos problemas do economicismo, do culturalismo e do pós-estruturalismo a serem superados por ela. Honneth, por seu turno, está interessado em fazer uma filosofia do conhecimento, pois o conhecimento fenomenológico cuida da experiência vivida do indivíduo que, segundo esse autor, seria inteiramente distinta do substrato moral partilhado pelas pessoas, figurando, em determinada medida, na legitimidade do Estado. Portanto, a importância da filosofia moral do sujeito, no exame sobre as relações sociais entre os grupos, sugere em que medida Honneth estabelece o suposto da ordem como paradigmático à sociedade moderna. Da mesma maneira, para outros autores, como Fraser, a concepção de conflitos políticos pós-socialistas em sociedades hierarquizadas requereria a afirmativa de que a transformação, ao invés da afirmação, é a chave para compreender a sociedade em fins de século XX. Em suas palavras, “Ao contrário, assumirei que, não importando como nós os consideremos metateoreticamente, será útil manter uma distinção de trabalho, de primeira ordem, entre injustiças socioeconômicas e seus remédios, por um lado, e injustiças culturais e seus remédios, por outro”.20 Dando continuidade ao exame da teoria do reconhecimento, veremos agora como se apresenta a sua noção política, completando, assim, o breve panorama acerca do multiculturalismo a que nos propusemos. A fim de estabelecer uma definição mais ou menos genérica, que consiga abranger os distintos significados adquiridos, nos autores presentes, pelo conceito de multiculturalismo, utilizo a denominação proposta por Charles Taylor. Ao lado de outros nomes (Anthony Marx e Will Kymlicka, entre outros),21 ele con20 FRASER, 2001a, p. 253. 78 Imp43_miolo_k.pdf 78 Black cebeu a perspectiva relacional entre cultura e política como o leitmotiv da sociologia. Taylor define o termo multiculturalismo como a number of strands in contemporary politics turn on, the need, sometimes the demand, for recognition. The need, it can be argued, is one of the driving forces behind nationalist movements in politics. And the demand comes to the fore in a number of ways today’s politics, on behalf of minority or “subaltern” groups, in some forms of feminism and in what is today called the politics of multiculturalism.22 Não obstante, mediante distintas apropriações analíticas, o conceito em questão é ressemantizado no interior da estrutura conceitual-teórica proposta por cada autor, por intermédio do que ênfases socioculturais específicas são construídas sobre as relações dos grupos entre si, bem como sobre os lugares ocupados por determinadas parcelas dos cidadãos de um Estado-nação nas dinâmicas conflitivas por nacionalidade, etnicidade, raça, gênero e sexualidade. Enfim, são distintas bandeiras que preconizam diferentes concepções acerca da luta pelo reconhecimento e mobilizam, de modo mais ou menos intenso, repertórios específicos para abordar tal problema. Em resumo, vimos como em Fraser a intersecção entre coletividades ambivalentes – expressas no imperativo da participação de movimentos sociais ligados às mais variadas categorias identitárias, como classe, raça, gênero e sexualidade – inscreve-se num processo necessariamente dialético. Vimos também de que maneira ela tende a promover a inevitável construção de coalizões, as quais somente poderão ter êxito valendo-se de uma estratégia de reforma que se afirme por intermédio da transformação das estruturas recônditas dos sistemas político, econômico, social e cultural, bem como das formas de exploração capitalista. E, por fim, como a dimensão do reconhecimento, em Honneth, se apresenta plasmada na idéia de permanência da unidade dos Estados 21 Evidentemente tal lista não obedece nenhum critério de similitude das linhas de pensamento entre os autores citados, bem como não esgota a quantidade dos teóricos que contribuíram para a sistematização de uma sociologia política cultural. 22 TAYLOR, 1992, p. 25. Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:57 PM nacionais, a qual, por isso mesmo, poderia até prescindir da necessidade de grandes conflitos, justamente por conta da diversidade no arranjo político-cultural (abordagem do tipo monista, ao contrário de Fraser) que vem se firmando no âmbito das identidades coletivas. QUESTÕES HISTÓRICO-CULTURAIS: O ADVENTO DO INSTITUTO DA AÇÃO AFIRMATIVA NOS EUA E O CORRESPONDENTE DEBATE ACADÊMICO NO BRASIL Tendo já introduzido uma parte dos argumentos que fornecem as bases filosóficas, morais e políticas sobre as quais se assenta a noção de AA, apresentamos agora um breve panorama do surgimento do referido instituto nos Estados Unidos, além da subjacente reflexão acadêmica sobre a questão racial no Brasil, razão pela qual preferimos adotar, ainda que ocasionalmente, um viés comparatista. Abordaremos, portanto, de que modo a AA em solo norte-americano deita raízes no antagonismo entre as antigas colônias do Sul e do Norte, de cujos combates o então nascente país assistiu à marcha surda do preconceito racial que, por seu turno, somente seria trazido a lume do debate público, juntamente com outras pautas, pelos movimentos de promoção dos direitos civis, ligados, em sua maioria, à militância dos negros e das mulheres. Para o caso brasileiro, cuidaremos de informar o arcabouço e as diversas nuanças referentes ao tratamento da questão (do preconceito) racial, com o que o surgimento da AA em âmbito nacional terá suas origens problematizadas e desdobramentos devidamente considerados. Obviamente, os pontos referidos na seção anterior serão também relacionados à irrupção da AA, uma vez que praticamente todas as idéias abrangidas por aquelas correntes filosófico-morais – multiculturalismo, liberalismo, comunitarismo etc. – acabam convergindo para o fulcro do debate contemporâneo sobre inclusão social, identidade étnica,23 reconhecimento de diferenças ou promoção/preferências24 de direitos específicos. Assim, a AA aparece não apenas como conseqüência, mas sobretudo como sintoma da existência de múlti23 Cf. SCHWARTZMAN, 1999. plos movimentos no interior da sociedade, evidenciando o dinamismo de novos paradigmas que pouco a pouco vão se infiltrando no conjunto do pensamento social/jurídico da atualidade. Na história da formação dos Estados Unidos da América, o clássico embate entre as 13 colônias do Norte – território de exploração original da nova terra e local de desembarque dos Pilgrim Fathers – e as colônias do Sul – expoentes do cinturão agrícola que moveu, durante um largo espaço de tempo, a economia da recém-independente nação – foi testemunha de conflitos que, desde o século XVIII até a Guerra de Secessão, em 1865, moldaram um pathos específico por meio do qual boa parte dos padrões de sociabilidade e dos modos de condução política e econômica do país se consolidaram, impermeáveis, durante pelo menos um século, a mudanças que pudessem alterar o status quo fomentado desde o início. Dito de outra forma, nos EUA, até a primeira metade do século XX, fenômenos específicos manifestos em diferentes áreas – no campo da economia, na arena da política, mas sobretudo nos padrões vigentes de relações sociais – tiveram suas origens menos creditadas ao mero sucesso do modelo nortista, de orientação liberal, do que à insensível luta que se continuou travando, mesmo após a vitória do Norte sobre o Sul, na referida guerra. Era a promessa de liberdade e igualdade contra a dura realidade da segregação e do preconceito raciais, frutos por muito tempo esquecidos da herança escravocrata do Sul, que rendido, e posteriormente unido, ao credo industrial das colônias mais “iluminadas”, acabou cobrando dos negros e de seus descendentes o preço atroz daquela alforria: estigma, ódio inter-racial, exclusão. Essa história, realmente, já é muito conhecida e por si só não diria nada sobre como os Estados Unidos assistiriam, tempos depois, ao resgate da dignidade dos hoje afro-americanos. Assim, antes de abordar essa fase, vale a pena apontar mais 24 Para ver mais sobre a produção de idéias a fim de manter a guerra contra a ação afirmativa, concebendo-a como uma forma de preferência racial, ler alguns dos resultados da pesquisa de campo realizada por GILLIAM, A. “O ataque contra a Ação Afirmativa nos Estados Unidos – um ensaio para o Brasil”, in: SOUZA, 1996. 79 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 79 Black 7/22/2006 6:26:57 PM alguns atores/fatos que contribuíram e legitimaram a sonegação de direitos à população negra, sem o que não teremos condições de compreender as especificidades do contexto no qual a idéia de AA viria a medrar. A rigor, o término da economia escravista foi, portanto, apenas o início de um conjunto de ações, discursos e padrões de relacionamento social que, freqüentemente amparados na lei, subvencionaram a falta de direitos aos negros, quando não retardaram também, embora de modo oculto, a plena incorporação na sociedade de outros segmentos, por exemplo, as mulheres ou os indígenas. Como se segue, nos EUA o papel da Suprema Corte, por suas jurisprudências, foi capital à consolidação de uma política segregacionista. Em diversas ocasiões, a Suprema Corte norte-americana foi chamada a se pronunciar sobre determinadas decisões do Congresso Nacional. Além de ter preparado a cena para a eclosão da Guerra de Secessão, mediante a ingerência no famoso caso Dred versus Sandford, de 1857, ela anularia o importante Civil Right Act, levando, em 1896, ao caso Plessy versus Ferguson, em que ratificaria “sua condescendência em relação à discriminação real dos negros na sociedade americana”.25 Até a resolução favorável ao fim (paulatino) da segregação racial, com Brown versus Board of Education – em cumprimento à Emenda 14 da Bill of Rights (aprovada ainda no século XIX, proibindo aos Estados federados a prática da discriminação racial) –, várias outras deliberações judiciais instauraram ou mantiveram, direta ou indiretamente, sistemáticas práticas de discriminação contra as colored people. Isso, quando simplesmente não reformavam por completo as determinações legais provindas do Legislativo federal, prolatando novas sentenças em favor de legislações estaduais, geralmente afeitas à segregação entre brancos e não-brancos. Como afirma Feres Júnior, com relação ao caso Plessy versus Ferguson, Na prática, a Suprema Corte deu mais um sinal verde para a continuação de práticas discriminatórias. Se a população negra dos EUA não voltou à condição escrava, ela tampouco conseguiu usufruir os di25 FERES JÚNIOR, 2004, p. 5. 80 Imp43_miolo_k.pdf 80 Black reitos políticos e civis dos americanos brancos. Isso foi particularmente verdadeiro nos estados do sul, onde vivia a imensa maioria dos afros-descendentes daquele país. A solução tentada por muitos foi a migração para os grandes centros urbanos industriais do nordeste em busca de melhores oportunidades. Contudo, mesmo nesses lugares, foram vitimados pela segregação social e política, expressa espacialmente pela multiplicação dos guetos negros nas áreas mais desvalorizadas nas metrópoles americanas.26 Entretanto, a partir da década de 1940, notadamente por conta de iniciativas fomentadas no rastro do chamado New Deal, uma série de incentivos e políticas compensatórias/redistributivas passou a incrementar a incorporação, sobretudo econômica, de camadas há muito preteridas pelo mercado. O liberalismo norte-americano do pósSegunda Guerra Mundial passava, então, a abrigar o germe do Welfare State, com o qual grossas fileiras anteriormente não contempladas por políticas públicas eram agora levadas em consideração, tendo alguns de seus anseios aplacados pelos longos braços do Estado. Todavia, não obstante a progressiva inclusão à esfera econômica daquelas pessoas – em geral negros, imigrantes e mulheres pobres; toda a sorte, enfim, de indivíduos marginalizados por sua condição econômica, étnico-racial ou de gênero –, muitas demandas ainda não eram sequer objeto de apreciação pelo governo. À inversão do posicionamento jurisprudencial da Suprema Corte, em 1954, expressa em sua concordância com a supramencionada Emenda 14 da Constituição Federal norte-americana, correspondiam os primeiros esforços de reconhecimento da constitucionalidade de tal emenda, que dotavam-na de efetivo vigor e respondiam aos cada vez mais fortes clamores dos movimentos pelos direitos civis, nos quais aos negros cabia relevante papel. A revogação de uma série de práticas tradicionalmente exercidas nos Estados sulistas – sobretudo no âmbito das instituições de ensino, em que, até mesmo espacialmente, os negros tinham sua liberdade restringida – passou a se tornar realidade no governo J. F. Kennedy. Valendo-se de fortes 26 Ibid., p. 5. Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:57 PM medidas governamentais, propôs-se a real inclusão dos negros nas universidades, além da promoção de um conjunto de vantagens de caráter equalizador, no que diz respeito às desigualdades: nascia a idéia de AA, pelo menos como a conhecemos nos dias de hoje, com a criação do Equal Opportunity Employment Committee. Contudo, diante do contraste de políticas executivas e da realidade refratária a mudanças presente em muitos Estados do sul, o embate entre os crescentes movimentos pró-direitos civis aos negros e as correntes contrárias à integração deles recrudesceu, explodindo em episódios de sangue e intolerância, dos quais vários ícones surgiram, repletos de significação política e ideológica – Martin Luther King, Malcom X, movimentos Black Power, Black Panthers e, por outro lado, a reação de um centenário Ku Klux Klan, entre outros. Portanto, é possível afirmar que uma série de acontecimentos concorreu para que, mesmo de maneira não uniforme, o instituto da AA viesse, já nos anos 1960, a resguardar aos negros oportunidades iguais na sociedade.27 Em 1964, com a aprovação de um novo Civil Rights Act, que, sustentado nos setores progressistas da sociedade ianque, viria a ratificar peremptoriamente as garantias contra a discriminação racial, a indução de transformações sociais pela via das políticas públicas passa a constar como um dos mais importantes meios à consecução dos objetivos do movimento negro e também de outros segmentos reivindicatórios, como os das mulheres e, mais tarde, os dos homossexuais, dos ambientalistas e de tantas outras minorias que o entrechoque de diversos grupos veio a assistir, no decurso dos anos 1980 e 1990. Assim, surgida por várias formas específicas – políticas de inclusão de negros no exército, 27 Algumas dessas políticas de ação afirmativa, à época de Kennedy e Nixon, podem ser resumidas sob duas rubricas: o modelo que seguia a teoria do impacto desproporcional, requerendo “que os empregadores utilizassem critérios diferenciados para julgar o desempenho de minorias nos exames [a empregos públicos]”, e a teoria do impacto diferenciado potencial, segundo o qual os empresários eram obrigados “ao uso de cotas raciais na contratação de empregados e [à adoção de] uma tabela com as proporções percentuais a serem alcançadas e o tempo estimado para que elas se tornassem realidade” (FERES JÚNIOR, 2004, p. 8-9). incentivos a empresários para a contratação de pessoas dessa cor, meios diferenciados de seleção e avaliação de funcionários públicos afrodescendentes, emprego de cotas nas universidades, fomento do esporte como mantenedor de negros nos bancos escolares e até mesmo a prática deliberada do busing,28 entre outras ações –, a AA nos EUA recende ao fato de que o preconceito racial foi, durante longo tempo, amplamente salvaguardado por jurisprudências e vivenciado por vastos setores da sociedade norte-americana, sobretudo pelos sulistas, como algo moralmente aceitável e, até mesmo, desejável. Some-se a isso que, a partir de determinado momento histórico, os elementos atinentes à segregação racial foram, pouco a pouco, iluminados, debatidos, contestados – embora, por outro lado, também reconduzidos, escamoteados ou protegidos, numa luta cada vez mais evidente, da qual diversas frações, na vida pública, não puderam se subtrair. Dessa forma, não obstante a AA nos EUA não corresponder a uma construção perfeita ou inequívoca, capaz talvez de expressar as diversas vozes de sua sociedade – justamente aquelas acusadas pelas correntes multiculturalistas de indispensáveis à criação de um cenário mais rico, porquanto mais pleno de dissensos –, seu advento, em terras brasileiras, para além de meramente reafirmar nossa proverbial tendência em “copiar” o que vem de fora, pode sugerir que a adoção de tais expedientes resulta em exitosa e rica experiência social, mas apenas quando observados os matizes históricos e culturais que conformam o contexto de cada nação. Sem isso, a “importação” significaria apenas a cópia de uma experiência que não nos diz respeito. Portanto, veremos agora de que maneira o instituto da AA se aplica ao caso brasileiro, ressaltando as singularidades – culturais, históricas e sociopolíticas – por meio das quais a noção de democracia racial, por exemplo, instalou-se durante 28 Busing significa o termo pelo qual era conhecida, durante o governo Kennedy, a prática de misturar os itinerários dos ônibus escolares, com a finalidade de brancos e negros poderem, digamos, juntar-se uns com os outros, ainda que apenas durante o trajeto para a casa ou para o colégio. 81 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 81 Black 7/22/2006 6:26:58 PM largo intervalo em nosso imaginário. Ao mesmo tempo, aduziremos outras visões, que, denegando o mito freyreano da harmonia inter-racial, importam para pensarmos os modos peculiares com que a AA pode representar importante instrumento de reflexão e atuação sobre nossa história, nossos pecados e nossas mazelas. Já presente no ideário infuso tanto na literatura quanto na historiografia românticas, que versavam sobre a recém-liberta nação brasileira, a idéia de que a composição da identidade nacional deveria necessariamente contemplar a amálgama insensível daquelas três raças pode ser identificada como uma das mais importantes matrizes ao estabelecimento da reflexão acerca do lugar do negro em nossa sociedade, em especial após a abolição da escravatura. Acompanhando o surgimento de uma nova nação, em 1822, a tarefa de compor uma identidade nacional própria, já desvinculada das teias que nos prendiam ainda ontem a Portugal, carecia de angariar elementos “autóctones”, de inventariar o que nos seria dado pela própria natureza, a fim de que, ligando esses aos componentes de cunho marcadamente eurocêntricos, pudéssemos resolver pelo menos dois problemas de uma só tacada: como instituir (a unidade de) nossa nacionalidade e arquitetar (ao menos teoricamente) um projeto bem concertado de integração sociorracial? O início de um pensamento social e político brasileiro arrogou-se essa tarefa, lançando as bases sobre as quais, algumas décadas depois, noções como democracia racial ou paraíso racial seriam seriamente elaboradas, contribuindo para a sedimentação de um paradigma, no mínimo, míope com relação às reais dimensões do problema do racismo no País. Portanto, apresentaremos, a partir de agora, algumas das mais relevantes idéias e escolas que, ao longo de quase um século de questionamentos, têm pervadido a reflexão sobre o par integração/discriminação do negro no Brasil, que servirá ao presente ensaio como o pano de fundo teórico contra o qual a concepção de AA vem aqui se desenvolvendo. Nina Rodrigues, médico e antropólogo do século XIX, é considerado por muitos como res- 82 Imp43_miolo_k.pdf 82 Black ponsável pelo transplante de conceitos racialistas da Europa para o Brasil. Foi devoto “pesquisador” das linhagens africanas que desembarcaram no Brasil em mais de três séculos de tráfico escravista, buscando-lhes os caracteres – em geral, por meio da análise acurada de traços fisionômicos específicos, a chamada frenologia – com os quais pudesse inferir determinados comportamentos naturais dessa ou daquela raça. Assim, Rodrigues, que chegou ao cúmulo de examinar o cérebro do defunto de Antônio Conselheiro, pode ser encarado como um dos principais nomes da corrente denominada racialista, que entrevia nos negros e mestiços uma grave ameaça à pureza da raça branca. Nesse sentido, pensar a incorporação dos negros recém-saídos da escravidão, bem como a real inclusão de todos os mestiços à sociedade “oficial”, pressupunha imaginar, antes, formas necessariamente assépticas de absorção de outras raças ao elemento pretensamente dominante – o branco europeu –, o que levava facilmente a sugestões que, por eufemismo, chamamos de limpeza étnica. Como ressalta Guimarães, “o núcleo desse racialismo era a idéia de que o sangue branco purificava, diluía e exterminava o negro, abrindo, assim, a possibilidade de que os mestiços se elevassem ao estável civilizado”.29 Não seria necessário informar de que modo tais concepções propugnadas por Rodrigues cairiam como uma luva para a posterior adoção de políticas de imigração seletiva, levada a cabo notadamente antes do Estado Novo. Com a falência das idéias de cunho racialista na Europa, o paradigma brasileiro para o exame da questão racial pouco a pouco foi se alterando para um viés culturalista. É claro que, nesse paradigma, as teorias não se assemelhavam em tudo; alguns detalhes, em geral a ênfase na contribuição ou não de determinados elementos raciais, as afastavam esporadicamente umas das outras. Entretanto, é possível afirmar que o relativo triunfo das idéias reunidas sob o rótulo de culturalismo repousa justamente no fato de que elas souberam aglutinar em seu cerne uma resposta positiva 29 GUIMARÃES, 1999, p. 50. Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:58 PM contra o determinismo racial, mediante o que se substituíam o fatalismo fenotípico e o recorrente medo de uma revolução ao estilo haitiano30 pela confiança num futuro pleno de harmonia, feito pelo encontro, pacífico por excelência, de negros, brancos e índios. Tal encontro, resultante de contatos assimilacionistas, em que os conteúdos de cada cultura se imiscuem uns com os outros, por mútuas trocas, fricções e compensações interétnicas, das quais o mulato ou o mestiço, por exemplo, surgirão freqüentemente como os estandartes mais bem acabados de um mundo praticamente sem conflitos. Desse modo, a tradição culturalista no Brasil – representada, entre outros, por Gilberto Freyre,31 Arthur Ramos, Oracy Nogueira32 e, sob certos aspectos, por Darci Ribeiro, Roberto da Matta e Lívio Sansone33 – busca pensar a situação do negro menos pela afirmativa da discriminação racial do que pela hipervalorização da integração – que em cada um desses autores ganhará contornos diferentes – dos negros no tecido social brasileiro. Comecemos por Gilberto Freyre. Em suas duas grandes obras, Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mocambos, Freyre condensa, sob a forma de ensaios, a idéia de que o Brasil, em que pese o caráter específico da colonização portuguesa, tem como destino ser a sede de uma democracia racial, na qual índios, negros e portugueses, mas sobretudo esses últimos, comporiam um quadro extremamente plástico e, por isso mesmo, dotado de uma solidez capaz de minar qualquer perigo de degenerescência social 30 Referimo-nos aqui à revolução capitaneada por escravos libertos no Haiti, no século XIX, cuja menção por muito tempo inspirou temor aos liberais, tanto os do Império quanto os da República Velha, os quais receavam que acontecesse aqui o mesmo evento ocorrido naquela nação caribenha. 31 A esse respeito, cf. FREYRE, 1990. 32 Cf. NOGUEIRA, 1985. 33 Cf., entre vários autores que perceberam a relação entre o público e o privado, DA MATTA, 1997. A despeito dos estudos realizados no interior de nossa vasta tradição culturalista, entendemos que os fenômenos sociais podem (e devem) ser reinterpretados à luz de abordagens que rompam com esse tipo de reificação recorrente, como as dicotomias casa e rua ou áreas moles e áreas duras, identificadas nas respectivas pesquisas empíricas dos antropólogos Roberto Da Matta e Lívio Sansone. Este último escreveu um instigante artigo de apresentação ao debate do estado da arte acerca de divergências travadas no campo das relações raciais, em perspectiva comparada Brasil-EUA. Cf. SANSONE, 2002. motivada por elementos raciais. A tônica em Freyre são os antagonismos em equilíbrio. Como bem assinala Carlos Guilherme Mota, o resultado global, considerada a história das relações de dominação, reponta na valorização de um tipo de relacionamento que dê abertura para a mestiçagem. [...] Rompia-se, aparentemente no nível da explicação – que até então se propunha como saber científico – uma compartimentação que os quadros ideológicos anteriores preservavam cuidadosamente: o da separação entre as “raças”, elemento essencial a ser preservado numa sociedade de estamentos e castas. Fortalecia-se a ideologia da democracia racial.34 Tanta foi e tem sido a força oculta no discurso freyreano que, pode-se dizer, ele fez um perfeito casamento com a ideologia praticada pelo Estado Novo, segundo a qual ressaltava-se o caráter de unidade do Brasil e dos brasileiros – a unidade e o vigor de um grande país somente seriam possíveis com a resoluta terraplanagem de qualquer traço de conflito entre seus habitantes, não importando se negros, pardos ou brancos. As afinidades entre uma política que envernizasse a realidade da discriminação racial e uma teoria de cujo modelo nos fosse dado imaginar o melhor dos mundos – justamente aquele situado no futuro, como o reservado ao Brasil de Stefan Zweig35 – apontam a direção que os desdobramentos do argumento tomariam desde então, em que, grosso modo, as teorias tomariam posição a favor ou contra a concepção de democracia racial inserta em Freyre.36 De certo modo, também o debate atual em torno da política estadual de cotas guia-se nesses termos; a oposição ao paradigma freyreano representa corajosa postura e compactuar com a visão edênica37 propugnada tanto pelo autor pernambucano quanto por Sérgio Buarque de Holanda em nada adiantaria, se quiséssemos, de fato, alavancar uma discussão objetiva sobre os mean34 MOTA, 1980, p. 55. Cf. ZWEIG, S. Brasil: país do futuro. Trad.: Odilon Gallotti. Rio de Janeiro: Guanabara, originalmente publicado em 1941. 36 PAIXÃO, 2004. 37 Sobre o motivo edênico no imaginário nacional, cf. o clássico CARVALHO, J.M. “O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro”. In: PANDOLFI, D.C. et al. (orgs.). Cidadania Justiça e Violência. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1999. 35 83 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 83 Black 7/22/2006 6:26:58 PM dros que o tema – a situação do negro no Brasil – adquire em nosso contexto, desde o início da colonização até os tempos atuais. Ao longo da década de 1950, o chamado Projeto Unesco, insuflado pelo rescaldo da barbárie anti-semita, que havia chegado ao ápice durante a Segunda Guerra Mundial, armava-se do auxílio de uma série de pesquisadores, a fim de examinar, no Brasil, as formas específicas de relacionamento entre os diversos grupos étnico/ raciais aqui presentes. Vários cientistas sociais foram empregados, com a finalidade mais ou menos tácita de descobrir no Brasil um “paraíso racial”. Nomes como Arthur Ramos, Roger Bastide, Donald Pierson, Charles Wagley, Ben Zimmermann, entre outros, se articularam na empreitada. O método continuava a ser o qualitativo, embora já se desprezasse a técnica ensaística que havia celebrado um Gilberto Freyre. Entretanto, talvez apenas ali residisse uma diferença entre o “mestre de Apipucos” e o grupo ligado ao Projeto Unesco. Liderado por Arthur Ramos, esse grupo insistia no fato de que, no Brasil, as raças estariam confortavelmente integradas umas às outras, embora chamasse mais a atenção aos estudos sobre comunidades e aculturação, nos quais se revelavam, se bem que ainda incipientes, traços de preconceito de cor. Enfim, ao contrário das teorias racialistas ligadas a Nina Rodrigues, as propugnadas por Ramos voltavamse mais à problematização da cultura como elemento fundamentalmente aglutinador dos indivíduos, mesmo que entre esses fosse identificada esporadicamente a presença do preconceito. Já por Oracy Nogueira, também financiado pela Unesco, descobriu-se de que maneira poderíamos comparar o preconceito existente no Brasil com aquele reinante nos EUA. Portanto, principiando a inversão do olhar, que se completaria com Nelson do Valle e Silva e Carlos Hasenbalg na década de 1970,38 Nogueira partiria do pressuposto da existência do preconceito racial no Brasil. No entanto, a diferença com relação ao modelo praticado nos EUA residiria no fato de que, aqui, o pre38 HASENBALG & SILVA, 1988. 84 Imp43_miolo_k.pdf 84 Black conceito seria de marca – traços fenotípicos, de um cabelo sarará até o teor de melanina da pele –, ao passo que, lá, seria de origem – ligado, portanto, à árvore genealógica da pessoa que, não importa quão “branca” pareça, logo deverá ser vista como “gente de cor”, desde que apenas um longínquo negro tenha um dia comparecido em sua ascendência. Logicamente, devemos reconhecer que Nogueira, embora considere a ocorrência de preconceito racial no Brasil, não o faz sem transferir ao plano da subjetividade o critério de classificação racial. Isso, a rigor, só faz escamotear uma realidade que, como sabemos, vai muito além da mera identificação de alguns traços físicos. Nogueira acaba contribuindo inadvertidamente para a manutenção da idéia de que, na verdade, não existe julgamento de cor apoiado em raça no Brasil (já que seríamos todos misturados mesmo, certo?) e que bastam, talvez, uns olhos mais claros e uma cútis mais pálida para decretar que fulano pode deixar de ser, por exemplo, um café-com-leite rosado para granjear a posição de um moreninho quase branco. Daí para a retomada da doutrina de branqueamento seria um pulo. O critério de Oracy Nogueira, apesar de reconhecidamente problemático – já que poderia conter o preconceito de origem também –, evidencia de que maneira a questão da integração do negro na sociedade brasileira se processa pelo estabelecimento de zonas intermédias, em que, muitas vezes, sutis processos intersubjetivos de reconhecimento acabam valendo, na hora de expurgar ou absorver as vítimas do preconceito à sociedade chamada “oficial”. Como vimos, a oscilação entre um ideal de embranquecimento da população brasileira, calcada sobre as correntes ditas racialistas (portanto, fortemente avesso à aceitação das diferenças) e a construção de uma ideologia de harmonia/democracia racial – que, por sua vez, resultava simplesmente contrária à idéia de ser avesso à aceitação da diversidade – sugeria, no fundo, estratégias bem parecidas de manejo da questão racial como instrumentalização de uma ideologia de Estado que ora se pretendia executor do melhoramento da raça, ora se arrogava a posição de artífice da união indiscriminada dos seus cidadãos. Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:58 PM À queima das bandeiras dos Estados da Federação, promovida por Vargas, durante o Estado Novo, poderia muito bem corresponder à eliminação das diferenças étnicas e culturais das diversas camadas da população, levada a termo pelos ideólogos do Brasil como paraíso racial. Dito de outra forma, a supressão do reconhecimento da autonomia dos Estados, num contexto de um Estado forte e centralizador, poderia ser equiparada, se operarmos num alto nível de abstração, ao não reconhecimento, por parte daquele mesmo Estado, de que a discriminação racial realmente corroia as relações entre as pessoas e prejudicava, assim, a tão almejada unidade dos brasileiros como um povo no seio do qual se comungasse da mais perfeita paz. Podemos afirmar que os estudos sobre raça, renda e desigualdade/mobilidade social, muitos deles embasados em dados quantitativos, foram e, de certa maneira, ainda têm sido pioneiros na mudança daqueles paradigmas de interpretação aqui mencionados em favor de uma abordagem, ao mesmo tempo, surpreendentemente simples e reveladora: especialmente com os estudos iniciados por Nelson do Valle Silva e Carlos Hasenbalg, “descobrimos” quão perversa é a discriminação racial (ainda mais se velada por aquelas doutrinas), justamente por conta da associação entre cor e renda. Em linhas gerais, esses autores redimensionavam o tratamento dado ao tema da desigualdade socioeconômica, ao conferir tanta ou maior ênfase à categoria raça/cor do que à tradicional variável classe social. Optando por correlacionar cor e renda, passaram a destacar os efeitos concretos que sucessivas décadas de sonegação de direitos aos não-brancos tiveram sobretudo no que tange à desigual distribuição, não apenas de renda, mas notadamente de oportunidades. É importante também ressaltar que, partindo-se desse novo enfoque, abandonam-se tanto a perspectiva multirracial quanto o horizonte do hibridismo39 ou mesmo do branqueamento raciais. Trata-se agora dos labels brancos em contra39 Utilizamos essa expressão diferenciadamente do sentido consagrado em SANTOS, W.G. dos. Razões da Desordem. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 77-115, em especial o capítulo III, “Fronteiras do Estado mínimo – indicações sobre o híbrido institucional brasileiro”. posição aos não-brancos. Se, por um lado, essa nova categorização pressupunha a existência, analiticamente justificável, de uma identificação negativa que visasse a suportar a miríade de classificações de cores possíveis, por outro, poderia subtrair, sob tal polarização, a perspectiva da ambivalência própria ao registro autodeclarado da cor do sujeito objeto da pesquisa em foco. Assim, aproximando-se das técnicas de pesquisa norte-americanas, das quais o survey era visto como uma espécie de instantâneo da realidade, Valle Silva e Carlos Hasenbalg surgem, ao mesmo tempo, como epígonos de uma tradição já estéril e como dois dos pioneiros a partir dos quais os estudos – sociológicos, antropológicos, jurídicos – sobre o macrotema cor têm trilhado um percurso cada vez mais empírico. Em suma, se tivéssemos como dividir o vasto conjunto de teorias, escolas e autores que, ao longo de mais de um século de tradição intelectual, se têm debruçado sobre o par integração/ discriminação do negro no Brasil, poderíamos fazê-lo confinando aquelas primeiras concepções – basicamente racialistas ou culturalistas – a um modelo mítico-idealista de interpretação do problema, ao passo que as atuais vertentes tenderiam a compor um paradigma, digamos, mais realista, ressalvada aqui a pluralidade de métodos que as têm orientado. CONCLUSÃO Os anos 1980 no Brasil não foram apenas a época da distensão política, muito menos representaram uma “década perdida”. Pelo menos do ponto de vista dos movimentos sociais, naquele período começou-se a observar um incremento no volume da participação da sociedade, seja no que diz respeito aos anseios legítimos do conjunto de todos os cidadãos – a questão do resgate do amplo direito ao voto, por exemplo – seja no que concerne às novas demandas de grupos que começavam a surgir, num cenário a cada dia mais plural e dinâmico. Desde as associações de bairro, os conselhos profissionais e os diversos grupos pró-ecologia até os movimentos de homossexuais, de mulheres, de consumidores e, last but not least, o movimento negro – toda uma série de no- 85 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 85 Black 7/22/2006 6:26:58 PM vos setores da sociedade passou a vocalizar suas necessidades e suas propostas, juntando-se em variados grupos identitários cada vez mais específicos e representativos de um ambiente que poderíamos chamar de multicultural. Pouco a pouco, vários canais de expressão política e social, cerrados durante o longo período de ditadura militar, surgiam como vetores por meio dos quais aqueles grupos exigiam a construção não apenas de uma nova Constituição – mais democrática e inclusiva –, como também o cumprimento de um extenso rol de garantias sociais que incluíam, entre outras, o reconhecimento da legitimidade de camadas há muito olvidadas pelo Estado – em especial os negros. Por conseguinte, nos últimos vinte anos, o Brasil tem assistido à multiplicação do movimento negro, o qual, militante em favor do reconhecimento de suas causas – que não são poucas, muito menos homogêneas –, tem conseguido crescente espaço na pauta de reivindicações levadas a público, seja por meio do simples debate seja pela consecução de políticas públicas especificamente voltadas a esse segmento. Duas importantes datas simbólicas, como maio de 1988 (Centenário da Abolição da Escravatura) ou novembro de 1995 (Tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, data da qual promulgou-se o Dia Nacional da Consciência Negra, em 20 de novembro, e tornada inclusive feriado nacional), somaram-se ao ano de 1996, quando, pela primeira vez, um presidente da República, na ocasião de um seminário internacional sobre AA,40 assumiu a existência do racismo no Brasil. No referido seminário, que consagrou atenção ao tema do multiculturalismo e findou por inspirar a implementação do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), procurou-se debater o racismo e seus desdobramentos, bem como as possíveis formas de transformação dos cenários nos quais os direitos e as oportunidades aos negros se lhes mostravam ainda precarizados, dados a persistência da discriminação e o recorrente descaso dos governos para com o reconhe- Tal seminário congregou as diversas contribuições teóricas trazidas pelos estudiosos do multiculturalismo, dos direitos humanos e do próprio instituto da AA numa perspectiva comparada, iluminando, assim, o percurso que as políticas públicas voltadas às minorias logo tomariam no Brasil, em especial na virada do milênio. Cumpre dizer que tais contribuições detiveramse sobre pelo menos três diferentes abordagens. A primeira disse respeito ao “caráter moral e politicamente deficitário da sociedade brasileira relativo ao lugar desigual que o negro nela ocupa, resultado de persistente discriminação racial”.42 A segunda abordagem teve a ver com a “alternativa liberal universalista”, pela qual somente chegaríamos ao fim do racismo pelo fim da categorização raça. Finalmente, houve também um tratamento que postulou “o entendimento do caráter sui generis das relações e classificações raciais na sociedade brasileira [...], [sendo] sua justificativa moral a da interação, da sociabilidade, do não-conflito, da ambigüidade tornada positiva”.43 Deve-se aduzir a isso que a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na África do Sul, em 2001, viria a ser o corolário de um processo no qual se operaram profundas mudanças na agenda global. É que da 40 41 O seminário tomou o nome de “Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos”, ocorrido na cidade de Brasília/DF, em julho de 1996. 86 Imp43_miolo_k.pdf 86 Black cimento da legitimidade das causas levantadas pelos negros. O PNDH, a curto prazo, [...] previa o estudo de políticas públicas que valorizassem os negros. A médio prazo, [...] buscava desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta. Para o longo prazo, os objetivos eram de cancelar todas as leis discriminatórias, desenvolver políticas e regulamentações que buscassem combater a discriminação racial e formular políticas compensatórias que promovam social e economicamente a comunidade negra. O governo federal então endossou a idéia de políticas públicas explicitamente baseadas em raça para apoiar os afro-brasileiros.41 42 43 TELLES, 2003, p. 78. GRIN, 2001, p. 183. Ibid., p. 183. Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:59 PM referida conferência sairia uma espécie de nova Declaração de Direitos Humanos, a Declaração de Durban e seu corolário Plano de Ação, fundamentalmente mais orientada à aceitação da diversidade e ao reconhecimento do respeito e da dignidade como conditio sine qua non ao necessário convívio igual entre os desiguais. Também o Brasil definitivamente vêm se adequando a essas novas diretrizes. A AA no Brasil não é privilégio dos últimos anos. Um breve apelo à memória bastaria, caso quiséssemos listar alguns exemplos de ações, promovidas geralmente pelo Estado, das quais algumas camadas historicamente menos favorecidas já há algum tempo têm saído beneficiadas. É o caso, por exemplo, das mulheres (com aposentadoria gozada relativamente mais cedo do que os homens), portadores de necessidades especiais (com cotas em concursos públicos), doentes crônicos (com prerrogativa de saque antecipado do FGTS), idosos (com acesso preferencial à Justiça) e até taxistas (com facilidades na compra de carro zero, bem como com descontos no Imposto de Renda). Não devemos, pois, julgar a AA pelo seu suposto caráter de novidade; sua importância, aplicada aos negros – pelos atuais sistemas de cotas para acesso a algumas universidades brasileiras – deve-se ao fato de tocar justamente em estruturas que há muito se supunham inalteráveis no quadro da sociedade brasileira, desde a escravidão até os dias de hoje. O sufrágio feminino soava como piada há cem anos, e, se não ousassem trabalhar fora, talvez às mulheres se sonegasse, ainda nos dias de hoje, o gozo de muitos direitos. Muitos objetarão que a matéria é diferente. Os que defendem a AA replicariam que, guardadas as devidas diferenças, as mulheres eram (e, lamentavelmente, ainda são) encaradas como tão “naturalmente” desiguais, que, fosse aos homens e mesmo às mulheres demandado o porquê de tantas diferenças entre os sexos, responderiam irrefletidamente que tudo é devido a uma questão de mérito individual e que, afinal de contas, cada um tem o que merece. O melhor exame de consciência não substitui nunca a louvável tentativa de passar do exame ao debate, e do debate à expe- riência. Se, por vontade do legislador, a AA atualmente vem se traduzindo em sistemas de cotas, não é senão em virtude de contingências pegadas ao calor da hora, modelos que podem e deverão, ao longo da experiência, ser constantemente avaliados, refutáveis, reconstruídos, reinventados. As cotas não representam senão o epifenômeno de uma conquista muito mais profunda da sociedade: ter a possibilidade de debater livremente a questão do racismo e até mesmo passar dos anais dos seminários a ações concretas que, postas a nu, são jogadas aos leões da opinião pública,44 da academia ao homem da rua.45 Devemos lembrar que estamos diante de um momento – e mesmo aqueles que não concordam integralmente com cotas para negros, preferindo-as mais dirigidas aos pobres, assentirão com isso – em que pelo menos três motes se encontram na encruzilhada das escolhas que devem ser tomadas: a AA encarada como pagamento de débito histórico, como reconhecimento da diversidade cultural ou como efetiva justiça redistributiva. O invento desse “remédio”, como muitos chamam a AA, não exclui a combinação de duas ou mais receitas; o objetivo final, contudo, delimita-se em haurir o que for precário, o seu ótimo, enquanto se faz da desigualdade não a desculpa para que se perpetrem mais crimes, mas o fermento pelo qual igualmente se reparta a riqueza construída em democracia. 44 Cf., em O Globo, Rio de Janeiro: GIL, G. “A utopia, do poder ao palco” (5/set./04); KAMEL, A. “Não somos racistas” (9/dez./03), “O racismo e os números” (12/dez./03), “Racismo sem números” (20/ abr./04) e “Racismo e fraude” (15/jun./04); TEIXEIRA, A. “Pelo fim do vestibular” (19/jun./04). E também VIANA, H. “Mestiçagem fora de lugar”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27/jun./04. 45 Cf. BAILEY, S. & TELLES, E.E. “Políticas contra o racismo e opinião pública: comparações entre Brasil e Estados Unidos”. Opinião Pública, v. VIII, n.o 1, Campinas: CESOP/Unicamp, p. 30-39, maio/02; FRY, P. “O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a ‘política racial’ no Brasil”, Revista da USP, n.o 23, p. 122-135, 1996; FRY, P. & MAGGIE, Y. “O debate que não houve: a reserva de vagas para negros nas universidades brasileiras”. Enfoques – Revista Eletrônica da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 1, n.o 1, p. 93-117, 2002; GRIN, M. “Retrato do branco quando negro”. Insight/Inteligência, ano 5, n.o 21, p. 44-47, abr.-maiojun./03; GRIN, M. & CARVALHO, J.M. “Universidade pública, elitista?”. Ciência Hoje, v. 34, n.o 203, p. 16-20, abr./04; e CÉSAR, R.C.L. “Ações afirmativas no Brasil: e agora, doutor?”. Ciência Hoje, v. 33, n.o 135, p. 26-32, jul./03. 87 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 87 Black 7/22/2006 6:26:59 PM Referências Bibliográficas ANDREWS, G.R. “Desigualdade racial no Brasil e nos Estados Unidos: uma comparação estatística”. Estudos AfroAsiáticos, Rio de Janeiro, n.o 22, p. 47-83, set./92. BERNARDINO, J. “Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 24, n.o 2, p. 247-273, ago./02. COSTA, S. “A construção sociológica da raça no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 24, n.o 1, p. 35-62, abr./02. COSTA, S. & WERLE, D.L. “Reconhecer as diferenças: liberais, comunitaristas e as relações raciais no Brasil”. In: AVRITZER, L. & DOMINGUES, J.M. (orgs.). Teoria Social e Modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, p. 207-236, 2000. DA MATTA, R. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DWORKIN, R. “What is equality? Part 2: equality of resources”. Philosophy and Public Affairs 10, n.o 4, p. 283-345, outono/81. ECCLES, P.R. “Culpados até prova em contrário: os negros, a lei e os direitos humanos no Brasil”.Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.o 20, p. 135-163, jun./91. FARIAS, J.F. de C. Ética, Política e Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. FERES JÚNIOR, J. “O combate à discriminação racial nos EUA: estudo histórico comparado da atuação dos Três Poderes”. Manuscrito. Rio de Janeiro, 2004. FRASER, N. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. In: SOUZA, J. (org.). Democracia Hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, p. 245-282, 2001a. ______. “Recognition without ethics?”. Theory, Culture & Society. London/New Delhi: Thousand Oaks/Sage, v. 18, n.os 2-3, p. 21-42, 2001b. FRASER, N. & HONNETH, A. Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange. London/Nova York: Verso, 2003. FREYRE, G. Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Record, 1990. GRIN, M. “Esse ainda obscuro objeto de desejo – políticas de ação afirmativa e ajustes normativos: o seminário em Brasília”.Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.o 59, p. 172-192, mar./01. GUIMARÃES, A.S.A. Racismo e Anti-racismo no Brasil. Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo, São Paulo: Editora 34, 1999. GUIMARÃES, R. da S.“A dimensão afirmativa das ações: uma articulação possível entre igualdade de oportunidades e valorização social”. 2001. 106p. Dissertação (mestrado em sociologia). Iuperj, Rio de Janeiro. HANCHARD, M. “Cinderela negra?: raça e esfera pública no Brasil”.Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.o 30, p. 41-59, dez./96. HASENBALG, C. “Entre o mito e os fatos: racismo e relações raciais no Brasil”. In: CHOR MAIO, M. & SANTOS, R.V. (orgs.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, p. 235-249, 1996. HASENBALG, C. & SILVA, N. do V. Estrutura Social, Mobilidade e Raça. São Paulo/Rio de Janeiro: Vértice/Ed. Revista dos Tribunais/Iuperj, 1988. HONNETH, A. “Invisibility: on the epistemology of ‘recognition’”. Aristotelian Society Supplementary 75, n.o 1, p. 111-126, 2001. ______.“Integrity and disrespect: principles of a conception of morality based on the theory of recognition”.Political Theory, v. 20, n.o 2, p. 187-201, maio/92. INWOOD, M. Dicionário Hegel. Trad.: Álvaro Cabral; rev. téc.: Karla Chediak. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 275-277, 1997. Verbetes “Recognição e Reconhecimento”. KYMLICKA, W. Politics in the Vernacular: nationalism, multiculturalism, and citizenship. Oxford: Oxford University Press, p. 1-66, 2001. ______. Multicultural Citizenship : a liberal theory of minority rights. New York/Oxford: Clarendon Press/Oxford University Press, p. 1-172, 1995. 88 Imp43_miolo_k.pdf 88 Black Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 7/22/2006 6:26:59 PM MARX, A.W. Making Race and Nation: a comparison of South Africa, the United States, and Brazil. Cambridge Studies in Comparative Politics. Cambridge: Cambridge University Press, p. 1-46, 1998. MOTA, C.G. Ideologia da Cultura Brasileira – 1933-1974: pontos de partida para uma revisão histórica. 4.ª ed. São Paulo: Ática, 1980. MOTTA, R. “Paradigmas de interpretação das relações raciais no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.o 38, p. 113-133, dez./00. NOGUEIRA, O. Tanto Preto Quanto Branco: estudos de relações sociais. São Paulo: T.A. Queiroz Ed., 1985. PAIXÃO, M. “Antropofagia e racismo: uma crítica ao modelo brasileiro de relações raciais”. Manuscrito. Rio de Janeiro, Brasil, 2004. RAWLS, J. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971. SANSONE, L. “Um campo saturado de tensões: o estudo das relações raciais e das culturas negras no Brasil”.Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 24, n.o 1, p. 5-14, abr./02. SEN, A. Commodities and Capabilities. Amsterdã: North-Holland, 1985. SKIDMORE, T.E.“EUA bi-racial vs. Brasil multirracial: o contraste ainda é válido?” Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.o 34, p. 49-62, nov./92. SCHWARTZMAN, S.“Fora de foco: diversidade e identidades étnicas no Brasil”.Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.o 55, p. 83-96, nov./99. SOUZA, J. “A dimensão política do reconhecimento social”. In: AVRITZER, L. & DOMINGUES, J.M. (orgs.). Teoria Social e Modernidade no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, p. 159-184, 2000. ______.“Democracia racial e multiculturalismo: a ambivalente singularidade cultural brasileira”.Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.o 38, p. 135-155, dez./00. ______ (org.) et al.“Multiculturalismo e racismo: uma comparação Brasil-Estados Unidos”. Anais do Seminário Internacional, Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Brasília, 276p., jul./96. TAYLOR, C. “The politics of recognition”. In: TAYLOR, C. & GUTMANN, A. (eds.). Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton/New Jersey: Princeton University Press, p. 25-73, 1992. TELLES, E.E. Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Trad.: A.A. Callado; N.R. Marques e C. Olsen. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Ford, 2003. ZONINSEIN, J. “Ethnic minorities and the political economy of development: a new role for public universities as managers of affirmative action in Brazil?”. Unpublished Paper, Michigan State University, 2004. Dados da autora Advogada (bacharel em direito pela Universidade Cândido Mendes-UCAM/RJ) e cientista social (bacharel em ciências sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é tecnologista no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI/ RJ). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Recebimento: 18/nov./05 Aprovado: 16/fev./06 Agradecimentos Às sugestões, no início da elaboração do texto, e à leitura atenta de João Feres Júnior, às indicações de material e opiniões de Luiz Fernando Martins da Silva e aos valiosos comentários e à ajuda incomensurável de Vinicius Bogéa Câmara. 89 Impulso, Piracicaba, 17(43): 73-89, 2006 Imp43_miolo_k.pdf 89 Black 7/22/2006 6:26:59 PM