DESENHO E PROGRESSO NO SÉCULO XIX: O LICEU DE ARTES E OFÍCIOS DO RIO DE JANEIRO Doralice Duque Sobral Filha UFRJ – FAU – PROARQ, Programa de Pós Graduação em Arquitetura. [email protected] Resumo Durante quase todo o século XIX defendeu-se a crença que um dos principais fatores de modernização, progresso e civilidade advinha do poder da instrução escolar nos seus mais diversos níveis. O presente artigo busca resgatar o papel do desenho no inicio do desenvolvimento profissional e tecnológico no Brasil, com a inauguração do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, pelo seu fundador, o arquiteto Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, em 1856. A partir do livro do jornalista e crítico de arte Felix Ferreira, „Do Ensino Profissional: o Lycêo de Artes e Officios‟, publicado em 1876, buscaremos resgatar os discursos referentes à educação profissional, que antecederam as conhecidas reformas de Rui Barbosa na década de 1880." A valorização da arte surgiu como temática central para o uso do desenho no Liceu e a sua vinculação na mudança da realidade física, social e moral da cidade. O papel do desenho, em seus diferentes matizes, se insere no discurso como regra a ser apreendida por toda a população como qualitativo de ordem, desenvolvimento e enobrecimento da jovem nação que se formava. Palavras-chave: desenho, século XIX, ensino técnico, Liceu de Artes e Ofícios. Abstract For almost the entire nineteenth century have been defended the belief that one of main factors of modernization, progress and the civility became from power of schooling in all its various levels. This article seeks to rescue the role of drawing in early professional and technology development in Brazil, with the inauguration of the "Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro", by its founder architect Francisco Bethencourt Joaquim da Silva in 1856. From the book by journalist and art critic Felix Ferreira, 'The Vocational Education: the Lycée of Arts and Despatches', published in 1876, we´ll seek to recover the discourses about professional education contributed by design, since the prior Rui Barbosa known reforms in the 1880s. The appreciation of art has emerged as a central theme for the use of drawing in the "Liceu" and its linking to the change of physical, social and moral reality of the city. The role of drawing in its various hues, is part of the discourse as rule to be grasped by the whole population and quality of order development and ennoblement of the young nation that was forming. Keywords: drawing, nineteenth century, technical education, Liceu de Artes e Ofícios. 1 Introdução Em um país emergente como o Brasil, a importância da profissionalização como possibilidade de se obter uma colocação no mercado de trabalho, altamente competitivo, é tema que vem sendo discutido e ampliado nas perspectivas do ensino básico e técnico a nível nacional. A globalização do mercado de trabalho é realidade e resultado dinâmico da revolução científica e tecnológica em que vivemos, e não é de agora a importância desse tema como desenvolvimento nacional. É mister perceber alguns impasses que transcendem essa realidade quando se depara com a diminuição das disciplinas de desenho nos currículos escolares a nível básico, técnico e superior, dado que a nova base tecnológica demanda mais educação geral e desenvolvimento das capacidades abstratas, exigindo uma formação mais polivalente possível. Embora o Brasil apresente um pensamento pouco desenvolvido sobre as demandas disciplinares para a atual temática Arte, Ciência e Tecnologia, que ao longo dos anos vêm desprezando os conteúdos de desenho e geometria, nem sempre se pensou assim no país. Desde o século XIX, com a institucionalização do ensino superior, profissionalizante e primário, arte, técnica e artesanato foram alvos de investimentos para aumentar qualitativamente a massa trabalhadora que se formava, especialmente após a abolição da escravatura e da imigração que ocorrera no país1, em prol do progresso e civilidade. O desenho passou a ser, desde então, um dos carros chefe do ensino para a realização de mudanças na realidade social, com todo o sentido de organização e racionalização que este propõe. Ao retrocedermos ao período acima, iniciamos importantes questionamentos sobre a importância desse aprendizado para a formação cultural e técnica das cidades, especialmente nas áreas de arquitetura e engenharia, que se revelaram como grandes fomentadoras de ordem e racionalidade por meio das práticas de intervenção urbana. Com isso, das instituições que iniciaram o processo de 1 "O apoio à imigração era uma das reivindicações mais constantes dos proprietários rurais desde que o fim do tráfico colocou o problema da substituição da mão de obra escrava" (CARVALHO, 1996, p. 259) modernização do ensino durante o século XIX2, podemos destacar a Academia Real Militar inaugurada em 1811 e a Academia Imperial de Belas Artes inaugurada em 1826 que contribuíram para a inserção no pensamento técnico e artístico do Brasil. No entanto, quando se fala em ensino profissionalizante sem referência à classe elitizada, o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, fundado em 1856, foi um dos principais agentes motivadores para formação e capacitação artística da população nos mais variados ofícios. É por meio desta instituição que buscamos regatar, junto aos estudos atuais já desenvolvidos sobre a mesma (MURASSE, 2001; BIELINSKI, 2003), uma visão sobre a instituição que teve seu foco de ensino no papel do desenho como fomentador de um desenvolvimento artístico voltado à ordem e ao progresso, legendas de um futuro republicano. Na profusão dos discursos referentes à educação profissional que incluíam o ensino do desenho durante o século XIX, utilizamos como principal fonte de pesquisa os estatutos do ensino do Liceu de Artes e Ofícios, sob as palavras do seu fundador Francisco Joaquim Bethencourt da Silva e frisadas pelo jornalista e crítico de arte Felix Ferreira em 1876. Neste sentido, Azevedo (1996, p. 561) vai dizer que, “Um dos preciosos documentos para o estudo de uma sociedade e do caráter de uma civilização se encontra na legislação escolar, nos planos e programas de ensino e no conjunto de suas instituições educativas”. É importante lembrar que um dos documentos essenciais que nos faz pensar a propagação do ensino de desenho e as suas influências para o desenvolvimento nacional foi escrito por Rui Barbosa em 1883, intitulado Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Tal documento ecoa os discursos e tentativas de estabelecimento da disciplina pelos seus precedentes – os fundadores do Liceu de Arte e Ofícios do Rio de Janeiro –, logo que foi uma tentativa de compilação e organização pedagógica. A ligação entre Rui Barbosa e o Liceu fica também evidente no seu discurso O desenho e a Arte Industrial, de 1882. 2 A institucionalização do ensino de desenho no Brasil do século XIX A valorização da arte e dos ofícios por meio do desenho constitui uma visão racionalista, comum ao século XIX nos países ditos civilizados como França, Inglaterra, Alemanha, porém ainda herdada dos períodos anteriores, principalmente do Iluminismo e da Revolução Industrial. O fato de essa disciplina constar no ensino profissionalizante brasileiro evidencia uma preocupação política nacional com a 2 A lembrar das aulas de Fortificação e Desenho iniciadas durante o século XVIII em várias localidades do país (N. da A.). capacitação e a inserção da população como 'agente' da mudança da realidade social e cultural das cidades. Buscando priorizar o cultivo do Belo, foram necessários profissionais habilitados na área do desenho visando a modernização e o progresso artístico, e, consequentemente, econômico do país. A harmonia e a ordem, ideias de civilização e a cresça na „indústria‟ persistiram no discurso dos primeiros pensadores que antecederam ao ideal republicano. Segundo Souza (2000), no final do século XIX, a escola primária, por exemplo, foi elevada a condição de redentora da nação e de instrumento de modernização. A crença no poder da instrução como fator de mudança social e física das cidades difundiu-se, sobretudo, com a introdução de novas disciplinas nos currículos dos cursos profissionais e primários como Ciências e o Desenho. Diversos meios possibilitaram a circulação dessas idéias e modelos: as Exposições Universais, os congressos de instrução, relatórios oficiais elaborados por ministros do ensino, publicações em jornais, livros, revistas, etc (SOUZA, 2000). O desenho como elemento curricular imprescindível para educação, vinculado à noção de progresso, teve forte presença nas duas Academias fundadas no século XIX, a Militar e a de Belas Artes. Essas duas instituições tiveram importante papel na difusão artística e técnica nacional, especialmente com a inserção de novos métodos de composição e projetos, e tinham como principal tônica o respaldo do desenho no ensino. Na Carta de Lei de 4 de dezembro de 1810 da criação da Academia Militar, já estavam prescritas algumas atribuições do método adotado para o ensino, apontando diversas literaturas bases, como Le Gendre e Gaspar Monge, para solução de problemas práticos com a utilização do desenho e geometria (BARATA, 1973, p.4853). Os alunos possuíam aulas diárias de desenho e arquitetura civil. No decreto nº 140 de 09 de março de 1842 lê-se com clareza a distribuição das disciplinas por ano demonstrando que a cadeira de desenho era importante em todos os níveis da formação do engenheiro (Quadro 01). Mesmo com a mudança de perfil e de nome da Academia Militar (Escola Central em 1858 e Politécnica em 1878) as disciplinas que envolviam o desenho – Desenho Linear e Topográfico; Noções de Topografia, Teoria Geral das Projeções, Resolução Gráfica dos problemas de Geometria Descritiva e suas aplicações à Teoria das Sombras, Desenho de Máquinas, Desenho Topográfico, Desenho de Arquitetura, Ordenação de Edifícios Civis e Militares, Execução de Projetos, Desenho de Construção e Máquinas – foram sendo progressivamente empregadas e distribuídas ao longo os anos do curso. Quadro 01 – Curso de 07 anos com dezesseis cadeiras da Real Academia Militar - 1842 1º ano Aritmética, Álgebra Elementar, Geometria e Trigonometria Plana, Desenho. 2º ano Álgebra Superior, Geometria Analítica, Calculo Diferencial e Integral, Desenho. 3º ano Mecânica Racional e Aplicação às Máquinas, Desenho. 4º ano Trigonometria Esférica, Astronomia e Geodésica, Química e Mineralogia, Desenho. 5º ano Topografia, Tática, Fortificação Passageira, Estratégia e História Militar, Direito das gentes, Militar e Civil, Desenho. 6º ano Artilharia, Minas, fortificações Permanentes, Ataque e defesa, Botânica e Zoologia, Desenho. 7º ano Arquitetura e Hidráulica Militares, Geodésica, Montanhística e Metalurgia, Desenho. Fonte: BARATA, 1973, p. 60-61. A Academia Imperial de Belas Artes3 também adotou o desenho como prioridade no ensino durante toda formação do artista. Segundo Galvão (1954, p. 72), pelos Decretos de 1816, 1826 e 1831, o ensino de cada arte seria feito, integralmente, por um só professor. Assim, para o estudo de arquitetura os alunos deviam provar apenas o conhecimento do desenho do natural e a freqüência às aulas de geometria elementar e ótica da Academia Militar. Segundo Amaral (2005, p. 147), Lebreton, líder da missão artística francesa, pretendia fundar duas escolas, uma para as Belas Artes e outra para as Artes e Ofícios. As idéias de Lebreton eram revolucionárias para o Brasil no início do século XIX, pois pretendia dar início à fase industrial do país pautada no ensino do desenho. Manuel de Araújo Porto-alegre, nomeado diretor da Academia em 1854, foi responsável por profundas mudanças no currículo acadêmico, que passou a ser dividido em seções de pintura, escultura, arquitetura, música e ciências acessórias, com aulas noturnas. Ao aluno de arquitetura, por exemplo, cabia freqüentar os cursos de desenho geométrico e industrial; desenho de ornatos, e arquitetura civil, tendo como suporte os cursos específicos à arquitetura como a aritmética, geometria descritiva, trigonometria, estereotomia, além de história das artes, estética, arqueologia, perspectiva e teoria das sombras (UZEDA, 2000-2001, p. 52). Em 1859, por decreto de 25 de maio, o ensino da Academia foi dividido em dois cursos: diurno e noturno transferindo-se para este último o Ensino Industrial, previsto na reforma de 1855 e a aula de modelo vivo. O Ensino Industrial que constava das 3 Joaquim de Lebreton (literato, jornalista, crítico de arte francês) – chefe da Missão francesa de artistas e artífices vinda para o Brasil em 1816, funda a Escola Real de Sciencias, Artes e Officios, posteriormente denominada Academia Imperial de Belas Artes. aulas de matemáticas aplicadas (noções de aritmética, de geometria, de descritiva, de trigonometria, de topografia, de estereotomia, de perspectiva); desenho geométrico (desenho linear, as três ordens gregas, teoria das sombras); desenho de ornatos, escultura de ornatos, passou a ser constituído de: Desenho Industrial (regida pelo prof. de desenho de ornatos), escultura de ornatos e de figuras (regida pelo prof. de escultura de ornatos), Matemáticas elementares (aritmética, geometria prática, e elementos de mecânica) regida pelo prof. de matemáticas aplicadas. (GALVÃO, 1954, p. 114) Manuel de Araújo Porto Alegre (Apud, Ferreira, 1876, p. 28) abrindo as aulas de desenho geométrico da Academia de Belas Artes em 1855, pronunciou o seguinte discurso: Os espíritos vulgares consideram o dezenho como a arte de luxo, ou passatempo agradável, porém, os homens que pensam, as intelligencias superiores, o encaram como uma necessidade para a civilização; porque elle é uma revelação do pensamento, a escripta universal da linguagem das formas. As cadeiras de desenho geométrico, desenho de ornatos, escultura de ornatos e matemáticas aplicadas, previstas na reforma de 1855, visam, além de servir direta e indiretamente ao desenvolvimento das artes, “auxiliar os progressos da indústria nacional” (CUNHA, 2000, p. 119). Quando o ensino profissional entra em ação em 1858, uma grande marca em prol dos feitos artísticos como fonte de progresso foi deixada pelo seu fundador o arquiteto Francisco Joaquim Bethencourt da Silva4. A intenção de uma mudança na realidade física e social das cidades só poderia acontecer pela arte e pela população educada para esse fim. Sr. Bethencourt da Silva em um relatório sobre a Exposição Nacional de 1861 acrescenta que: “a geometria, primário alicerce de um incessante progresso artístico e industrial não deveria ser ignorada, como é, por nenhum artista ou operário; e bom seria que na entrada de todas as officinas se gravasse aquella sabia inscrição que Platão mandou lavrar sobre a porta da academia: não pode entrar quem não sabe geometria” (FERREIRA, 1876, p. 20-21). A preocupação com o progresso do país buscou relacionar os conhecimentos específicos em diversas áreas, a técnica, artística e artesanal, em todas as camadas da população, priorizando o cultivo do belo, da harmonia e da ordem, a fim de civilizar a população. O desenho associa, dessa forma, a noção de norma, padrão a uma 4 Fundou o Liceu de Artes e Ofícios, a Sociedade Propagadora das Belas Artes, foi arquiteto da Casa Imperial, professor de desenho da Escola Central, professor de arquitetura da Academia de Belas Artes. regularidade racional onde o trabalho passa prioritariamente do ensino escolar, teórico, para a atividade prática. 3 O Desenho e a formação profissional: O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro Segundo o depoimento de Felix Ferreira em 1876, duas questões tornaram-se parte do atraso do Brasil frente ao desenvolvimento das „artes industriais‟: a primeira relata o autor, “provem da vulgarização do dezenho – a segunda desse cancro social que se chama escravidão” (FERREIRA, 1876, p. 25). É importante salientar que o Brasil, a partir da década de 1850, tinha extinguido o tráfico negreiro o que repercutiu em um grande aumento populacional nas áreas centrais urbanas. É também a fase de grandes acontecimentos que modificaram substancialmente a paisagem da cidade do Rio de Janeiro. Intensifica-se a imigração portuguesa no país, a sociedade se organiza a favor do desenvolvimento da indústria, a aprovação da Lei de Terra tão necessária aos proprietários rurais, grandes epidemias acometem a população, dentre várias questões que viriam a mobilizar o pensamento político e social da época. É desse pequeno panorama mostrado, com a intervenção cada vez maior do Estado e a presença da figura do Imperador, que surgem as idéias de estabelecer a escola elementar universal, leiga, gratuita e obrigatória. Enfatizam-se a relação entre educação e bem-estar social, estabilidade, progresso e capacidade de transformação. Daí, o interesse pelo ensino técnico ou pela expansão das disciplinas científicas. A harmonia, que deve existir entre a educação e as exigências industriais da atualidade, exige também que o dezenho occupe um lugar conspícuo na educação popular, como também pela sua utilidade prática, deve ser elle ensinado em todas as escolas públicas (FERREIRA, 1876, p. 28-29). Este importante depoimento da época demonstra a representatividade que a disciplina de desenho teve, nos seus mais variados ramos, no processo de inserção do país na nova era industrial que há muito havia sido lançado em diversos países europeus. Assim, o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro fora idealizado pela Sociedade Propagadora das Belas Artes, ambas fundadas em 1856, pelo arquiteto Bethencourt da Silva. O artigo 1º do regulamento do Lyceu prescreve que a instituição tem como missão especial, além de disseminação pelo povo do belo como educação, propagar e desenvolver, pelas classes operárias, a instrução indispensável ao exercício racional da parte artística e técnica das artes, ofícios e indústrias. Essa visão ficou muito bem sedimentada quando verificamos na seção de Estudos do regulamento, as matérias constituintes do ensino do Liceu, divididas em dois grupos: Seção de Ciências Aplicadas e Seção de Artes. Esses dois grupos por sua vez foram divididos em 17 cadeiras, como apresentados no quadro abaixo: Quadro 2: O ensino Principal do Lyceo de Artes e Officios do Rio de Janeiro Artes Ciências Grupos Cadeiras Aulas teóricas Nº de Professor 1º Aritmética 4 2º Álgebra até eq. do 2º grau 1 3º Geometria plana e no espaço 2 4º Geometria Descritiva e estereotomia 1 5º Física Aplicada 1 6º Química Aplicada 1 7º Mecânica Aplicada 1 8º Desenho de figura (Corpo Humano) 6 9º Desenho Geométrico, inclusive as três ordens clássicas. 2 10º Desenho de ornatos, flores e animais 2 11º Desenho de máquinas 1 12º Desenho de arquitetura civil e regras de construção. 2 13º Desenho de arquitetura naval 1 14º Escultura de ornatos e arte cerâmica 1 15º Estatuária 1 16º Gravura a talho doce, água forte e xilografia 1 17º Pintura: estudo a tempera, estudo particular de diversas tintas, mordentes, vernizes, processos, etc., empregados na pintura e douradura de artefatos. 2 Fonte: FERREIRA, 1876, p. 84. O liceu representou, tanto em seus estatutos quanto em seu programa disciplinar, a percepção que o desenho seria um meio de “propagar o ensino artístico pelas classes operárias” (Ibid, p. 25). Para o fundador da instituição, o arquiteto Bethencourt da Silva: (...) é preciso que o povo se eduque, se adestre, se aperfeiçoe, se familiarize com o dezenho em sua mais pura e franca manifestação, que se identifique com essa linguagem gráfica das idéias que povoam as faculdades do entendimento; e para que a coletividade inteira adquira essa peculiaridade, é indispensável grande esforço dos que governam, trabalho tenaz, perseverante e infatigável de annos e annos, e, as vezes, de séculos e séculos. Educar portanto nosso operário, o artífice, na prática do dezenho, familiarizal-o com a sciencia e especialmente com as artes plásticas, é promover, com probabilidade de bom êxito, a originalidade da indústria brasileira (BETHENCOURT DA SILVA, 1901) Diferente da Academia de Belas Artes, que oferecia cursos a nível superior com elevada peculiaridade de cada arte, o Liceu se pronunciava como uma escola de artes aplicadas às diferentes ramificações da industria fabril e manufatureira, indispensável para a existência de uma sociedade civilizada. Segundo FERREIRA (Ibid, p. 78): A arithmetica, a álgebra, a geometria, o dezenho de figura, o de ornatos, o geométrico e o de machinas são ali ensinados com aplicação aos officios e as profissões industriais. A aprendizagem das bellas-artes não é ali feita para o exercício da mesma arte propriamente dita, mas para o aperfeiçoamento dos officios de carpinteiro, pedreiro, canteiro, torneiro, ourives, estucador, etc, etc, e das industrias fabril de tapeçaria, louças, armas, chitas, papeis pintados, etc. A seção de Artes e sua grade curricular (Quadro 02) centrada no ensino de desenho, reforçam a prerrogativa da instituição em sua missão de disseminar o gosto pelas belas artes sua vinculação aos ofícios e espalhá-la em vários aspectos físicos da produção industrial da cidade. Apesar de o Liceu ter sido fundado em 1856, só em março de 1858 suas aulas começaram a funcionar, com 351 alunos matriculados, sendo o desenho a primeira aula lecionada na instituição (BIELINSK, 2003). Com filantrópica que era, a instituição oferecia cursos gratuitos sem qualquer discriminação de raça, idade, crença, nacionalidade. Tinha o corpo docente e institucional formado por médicos, juristas, artistas, engenheiros, arquitetos, etc., que não recebiam nada em troca dos serviços prestados. Os cursos do Liceu inicialmente se subdividiam em Profissional e Livre, e compreendiam cerca de 50 ou mais profissões, sendo que na década de 1880, foram acrescentados os cursos Profissional Feminino (1881) e o Comercial Noturno de 4 anos (1882), ambos também pioneiros e com número elevado de matriculas. (BIELINSK, 2009) Desde sua fundação cumpria, a escola, de fornecer uma revista semestral, O Brazil Artístico, que durou apenas um ano, além de organizar uma biblioteca, sessões públicas para apresentação dos trabalhos dos alunos, concursos públicos para prêmio dos melhores trabalhos, viagem dos melhores alunos dentre outras ofertas. As exposições, iniciadas em 1859, feitas pelo Liceu tiveram um aspecto vanguardista. Nelas eram colocados à mostra, os trabalhos dos alunos de pintura, escultura, desenho, gravura, arquitetura, dentre outros, onde concorriam a prêmios e medalhas. Nas seções de desenho, por exemplo, os alunos expunham cópias de gesso de sólidos geométricos, desenho de máquinas e desenho e cópias de ornatos, figuras etc. É interessante colocar que o próprio Bethencourt da Silva, além de ser 1º secretário perpétuo e posteriormente diretor da instituição, foi professor de desenho geométrico, desenho de máquinas, de ornatos e de arquitetura e um grande entusiasta das exposições organizadas pelo Liceu. Apesar da grande fama da instituição, durante os anos de 1863 a 1867, o Liceu teve que fechar as portas, não por falta de alunos, pois tinha por volta de 2.378 matriculados (BELINSK, 2009), mas por falta de recursos. Volta a funcionar em 1869 e em 1871 as matriculas chegaram a 3.068. “Em 1880, o Liceu de Artes e Ofícios já havia se tornado e era considerado o mais importante estabelecimento de ensino técnico-profissional do país, sem rival, também, na América Latina” (Ibid). Ainda na década de 1880 dois novos cursos foram inseridos no programa do Liceu, o Profissional Feminino (1881) e o Comercial Noturno (1882). O curso destinado a mulheres, além de ter sido pioneiro e causado bastante polêmica na época, tinha uma grande curricular bastante diversificada. As cadeiras de desenho eram distribuídas ao longo das quatro séries anuais: 1º ano – desenho elementar; 2º ano – desenho de sólidos geométricos; 3º ano – desenho de ornatos, cópia de estampa; 4º ano – desenho de ornatos (cópia de gesso). Já no curso comercial as disciplinas de desenho eram divididas nos dois primeiros anos em: desenho linear e noções de geometria com aplicação à estereotipia (CUNHA, 2000, p. 126). O Liceu alcançava, assim, várias camadas da população e ao visar, sobretudo, uma ação estética sobre o meio urbano, buscava transformar a cidade em uma obra de arte. Por meio do ensino do desenho, expressou a necessidade de um rigor geométrico e um gosto sensível pela arte na composição e organização dos processos industriais do país. Dotando a instituição de um valor ético, D. Pedro II frisou bem quando o Liceu tornou-se uma escola Imperial: “O liceu não é só educador é também moralizador” (BARROS, 1956). Para Amaral (2005, p. 155), “uma cidade totalmente desenhada expressaria uma sociedade organizada para o trabalho”, o que caracteriza também uma noção ordenadora da sociedade pela ação de uma educação direcionada. (...) Além disto, que vantagens não resultarão deste ensino artístico para o povo e para a nação! Que valor não terão as obras da indústria nacional, quando as Bellas-Artes tiverem enriquecido os adornos de todas as nossas produçções melhorando o seu fabrico, harmonizando as suas linhas, dando-lhes uma nova forma, aplicando-lhes todos os recursos da natureza brasileira!... (BETHENCOURT DA SILVA, 1911, p. 40) Uma nova estética para os produtos brasileiros se insere, também, num discurso nacionalista que despontava com mais intensidade no final do século XIX com Rui Barbosa. O ensino público ganha força e o ensino do desenho atinge o auge com o pensamento ruibarbosiano, o que nos permite compreender a história desta disciplina como de fundamental importância para a história da educação brasileira, que atualmente inicia um novo processo de promoção das instituições técnicas voltadas a formação e capacitação de mão de obra qualificada. 4 Conclusão O fato de o desenho, em suas mais variadas acepções, constar no ensino profissionalizando durante o século XIX, evidencia uma preocupação política e social com a formação de uma mão de obra capacitada para a execução dos mais variados ofícios. Como linguagem de modernidade, o desenho tornou-se, para o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, elemento curricular imprescindível para a educação e inclusão das classes populares nos processos produtivos, além de promover saída para o atraso em que se encontravam as artes, a indústria e a manufatura no país. É, sobretudo, com este pequeno panorama, que validamos a ideia de que a formação para o trabalho passando por um espaço escolar diferente da oficina, com disciplinas integradoras como o desenho, buscam valorizar a integração entre teoria e prática, e é um dos suportes para a organização, espírito de iniciativa que tanto vem sendo cobrado aos futuros profissionais. Resgatar a história do Liceu, evidenciando seus aspectos curriculares fundamentados pelo seu fundador Francisco Joaquim Bethencourt da Silva, o coloca como pioneiro do ensino técnico destinado à formação mão de obra para atender as necessidades materiais da população. No contexto do século XIX e para a instituição os diferentes sujeitos que promoveram o ensino técnico concordavam em um aspecto básico: o ensino do desenho é essencial na formação do trabalhador. Tal fato nos permite compreender esta disciplina como parte integrante da história do ensino profissional brasileiro. Referências AMARAL, Cláudio Silveira. 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