Um buraco chamado SIVAM
O sistema que custou 1,7 bilhão de dólares
vive em pane, traz riscos para a aviação e
não é capaz de vigiar a Amazônia.
Leonardo Coutinho
AVIÕES-FANTASMA A foto ao lado mostra uma das telas de
controle do SIVAM. A imagem, feita em 2 de junho, exibe o
espaço aéreo de São Luís, no Maranhão. Tudo o que aparece
na cor laranja são informações falsas transmitidas pelos
radares do sistema militar. Eles detectam aviões inexistentes.
No momento em que a imagem foi captada, apenas um avião
sobrevoava, de fato, a área. Ele aparece em verde (destacado
pelo quadrado vermelho). No controle aéreo da Amazônia,
esse tipo de falha, chamado de "pista falsa", é constante.
O Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) foi criado em 1997
VEJA TAMBÉM
para que a Aeronáutica pudesse monitorar o espaço aéreo da
Nesta reportagem
Amazônia. O governo investiu 1,7 bilhão de dólares para que o
• Quadro: Por que os radares
sistema fosse capaz de controlar as rotas de jatos comerciais, o
são ineficientes
percurso de aeronaves militares, detectar aviões de traficantes e
contrabandistas que entram no país, mensurar a devastação
Exclusivo on-line
ambiental e até mesmo levar telefone a povoados isolados. Em
• Vídeo: Reunião do CINDACTA
2002, os dados dos seus radares passaram a ser partilhados pelo IV mostra problemas dos
CINDACTA 4, que cuida do tráfego aéreo no norte do país, e pelo radares
Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), que monitora as
florestas. A confiabilidade do SIVAM foi colocada em xeque pela primeira vez há dez meses, quando
o vôo 1907 da Gol colidiu com o jato Legacy. As investigações mostraram que, embora o sistema
não tivesse contribuído para a ocorrência, havia buracos negros no céu da Amazônia – áreas que os
radares não alcançam. Desde então, VEJA visitou seis instalações do SIVAM, entrevistou
controladores de vôo, militares, pilotos, reuniu fotografias, gravações e documentos confidenciais
sobre o sistema. A conclusão a que se chega a partir desse material é estarrecedora: o SIVAM é
incapaz de vigiar a Amazônia.
Alberto Cesar Araujo/Folha Imagem
Sala de controle em Manaus: registro de aviões que não existem e de
falsas colisões
O sistema não opera em condições minimamente aceitáveis para a aviação comercial nem para fins
militares. Seus radares sofrem panes constantes. Quando isso acontece, as telas mostram aviões
que não existem e informam de forma errada o rumo e a velocidade das aeronaves que estão, de
fato, no espaço aéreo. Um relatório da Aeronáutica obtido por VEJA revela que, no início da década,
essas panes eram toleradas, porque "poucas aeronaves voavam na região". Desde então, o tráfego
aéreo aumentou e a freqüência das falhas também. Um exemplo do risco pelo qual passam as
pessoas que sobrevoam a Amazônia é o episódio ocorrido em 27 de março último, na sede do
CINDACTA 4, em Manaus. Por vinte segundos, o console de controle de vôos indicou que um
Airbus A330 da TAM havia colidido no ar com um Boeing 737-800 da Gol entre as cidades de Sinop,
em Mato Grosso, e Cachimbo, no Pará. Antes de indicar o desastre, o sistema apontou mais de 100
mudanças repentinas de velocidade, proa e altitude, como se os jatos fizessem acrobacias. Todas
as informações eram falsas, inclusive a do acidente. Mas, quando o alarme soou, o controlador de
vôo que monitorava os aviões entrou em choque. "O perigo está em um controlador ignorar um
perigo real, devido à constante sinalização de alarmes falsos", alerta o documento do Comando da
Aeronáutica.
Antonio Milena
Equipamentos abandonados em Tabatinga, no
Amazonas: faltou uma antena
Em 19 de abril, menos de um mês depois, o sistema voltou a entrar em colapso. Dos 25 radares da
Amazônia, dezesseis apresentavam falhas graves. Os defeitos foram expostos em uma reunião dos
controladores de vôo do CINDACTA 4. Um deles filmou o encontro (assista em
www.veja.com.br/videos). Em situações em que os equipamentos não funcionam, como naquele dia,
o SIVAM (que, lembre-se, custou 1,7 bilhão de dólares) entra no que se chama "operação nãoradar": os aviões passam a sobrevoar a Amazônia quase que completamente às cegas e são
guiados apenas por rádio. Essas falhas no sistema de controle aéreo têm as causas mais variadas,
que vão desde a falta de regulagem dos radares até as fortes chuvas que atingem a região e
interferem na transmissão de dados.
Além dos riscos que oferece à aviação comercial, o SIVAM é completamente ineficiente para fins de
defesa aérea. Os radares não são capazes de acompanhar a rota de aeronaves que trafegam
abaixo de 3.000 metros. Nessa altitude, os aviões só são detectados se voarem sobre os radares.
Isso ocorre porque a área de cobertura dos radares têm amplitude restrita (veja o quadro). Como
monomotores e bimotores, os aviões preferidos por traficantes e contrabandistas, geralmente voam
em baixa altitude, o sistema não consegue flagrar o trânsito de mercadorias ilícitas na Amazônia. O
major-brigadeiro Álvaro Pinheiro da Costa, vice-diretor do Departamento de Controle de Espaço
Aéreo (DECEA), reconhece o problema: "Com a ajuda de um GPS, pilotos de aeronaves ilegais
conseguem voar em altitudes que tornam impossível detectá-los". O Comando da Aeronáutica
chegou a armar um esquadrão de aviões supertucanos com mísseis para interceptar e,
eventualmente, derrubar os aviões dos invasores. Mas, como o sistema é incapaz de identificá-los, o
esquadrão nunca interceptou nenhuma aeronave. Por falta de uso, a maior parte dos supertucanos
acabou sendo transferida da Amazônia para Goiás.
A Aeronáutica calcula que, para cobrir todo o espaço aéreo da
Amazônia, seria necessário instalar mais 625 radares, além dos
25 que já estão em operação. Como isso é muito caro, os
militares apelaram para uma gambiarra: deslocaram os radares
existentes para cidades nas quais se vende combustível de
aviação. Com essa medida, conseguem rastrear pequenos aviões
que fazem rotas legais. Isso não coíbe, porém, o tráfego de
aeronaves de criminosos, que se abastecem em bases
clandestinas. Além de operar com radares quebrados e incapazes
de flagrar invasores, o SIVAM sofre com o abandono. Em
Tabatinga, cidade amazonense que faz fronteira com a Colômbia
e é uma das principais portas de entrada de cocaína no Brasil, foi
erguida uma base do sistema para ajudar no patrulhamento da
região. Ela deveria receber informações dos radares e repassálas à Polícia Federal. O governo construiu um prédio, comprou
equipamentos eletrônicos, mas alguém se esqueceu de instalar a
antena para receber o sinal de satélite. Resultado: a base foi
abandonada.
Os terminais de comunicação instalados em pontos remotos da
floresta, como aldeias indígenas, comunidades isoladas e postos
Estação desativada na fronteira com a
de fronteira, tiveram a mesma sorte. Os Vsats, compostos de
Bolívia: sem manutenção
telefone e computador com conexão à internet via satélite,
deveriam servir de canal de comunicação para que índios, ribeirinhos e policiais que trabalham no
interior informassem problemas como crimes ambientais e tráfico de drogas. Dos 665 aparelhos
instalados, pelo menos 400 estão fora de operação. Esquecido, mal administrado e cheio de
defeitos, o SIVAM está prestes a entrar no folclore. Já caminha a passos largos para se tornar o
curupira do século XXI: muitos ouviram falar, uns dizem que já viram, mas ninguém põe a mão no
fogo pela sua existência.
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